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MARCELLO SALVAGGIO

A Rosa e a Cruz
A ROSA E A CRUZ

Volume 2
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PRIMEIRO ATO

As bruxas

I – Fogo

Algo crepitava, acompanhando os passos nas folhas; passos


ritmados, que a intervalos regulares interagiam com o brilho que se
erguia entre as árvores, galhos e arbustos para trás, uma sarça
ardendo que não se consumia, sob chamas rubras, fixadas nos
grandes olhos cerúleos de uma pequena cabeça que as fitava sem
medo, escapando os cabelos loiros do capuz meio rasgado como uma
fumaça clara de uma tentativa de reter um incêndio já contido por si,
sem a mínima vontade de se espalhar e devorar a madeira, limitando-
se a aquecer o ambiente e reduzir a cinzas só o que lhe parecia
indigno de sua altiva presença. Cinco mulheres, trajadas em mantos
marrons que cobriam túnicas azuis e de máscaras estranhas,
simulando algum ser de nariz comprido e olhos vermelhos, o rosto
peludo como o de um urso, pêlos ali bem reproduzidos, dançavam
em volta de um altar, que à medida que o ritmo foi acelerado, por
outras cinco que tocavam tambores (os sexos destas cobertos
somente com folhagens), começou a ser invadido pelo fogo, que
percorria na terra um rastro da sarça até ali, este sim, ao contrário do
arbusto espinhento, logo absorvido pelas labaredas que cresciam,
soberanas feito serpentes ferozes que se agitavam rumo aos céus,
descascando-se e recobrindo-se de uma pele berne, seus olhos de
rubi voltados para o céu repleto de astros borbulhantes de calor, as
fornalhas celestiais, prontas para receberem seus espíritos.
- O que foi feito pelo homem, perecerá. O que a natureza gerou,
permanecerá.- Pronunciou-se, em um idioma semelhante ao
aramaico, uma mulher pálida em botas e trajes negros, que descobriu
seu rosto, revelando o semblante calmo, os cabelos loiros curtos e
olhos de um celeste evasivo; usava uma corrente de ouro com um
pingente alado e parecia ser a condutora da cerimônia, passando
perto da menina de capuz esfarrapado, que demonstrava respeitá-la,
porém não temê-la; as duas se olharam nos olhos. Depois a garota,
que devia ter dez ou onze anos, voltou a direcionar sua atenção para
as chamas, e sem dar maior importância ao altar, e sim à sarça, que
não deveria se consumir graças às artes das bruxas, que por meio
daquele ritual imantavam a natureza de sua ilha e assim juravam
protegê-la e a protegiam, evocando os espíritos animais e
elementais.- Nós só persistiremos enquanto compreendermos que
fomos engendradas pela natureza e a respeitarmos.
- E então ela nos respeitará e nos amará como uma mãe ama suas
filhas.- Completou outra sacerdotisa, de aparência mourisca e
vestuário idêntico ao da outra dirigente, a não ser pela corrente de
prata com um amuleto de lua crescente e pelos anéis preciosos em
seus dedos.
- Miriam, qual pretende que seja seu elemento de batismo em sua
primeira cerimônia?- Indagou a adulta loira à menina, que levou um
susto porém não gritou, limitando-se a um sobressalto discreto,
quando viu emergirem das folhagens alguns seres diferentes: uns
eram como lagartos, vermelhos, de cristas com veios em que o
sangue rubro reluzia com evidência, orelhas inflamadas ou velas
belamente coloridas, os olhos traquinos; outros cobras arredias, de
pupilas vibrantes e sibilos de uma crepitação insistente; por fim,
salamandras ardendo em brasas, suas expressões ocultas e
misteriosas. Uma fé precisa e uma vontade renovada explodiram em
seu ser e assustou as veteranas ao correr junto com aquelas criaturas,
que poucas tinham conseguido enxergar até aquela altura, e só ela na
totalidade, em direção à sarça.- Miriam, o que está fazendo?!
- Quieta.- Uma velha, que até então estivera sentada nas sombras, se
erguera e não parecia possível explicar como em um instante se
postara ao lado da moça, segurando-a pelo pulso e impedindo-a
assim de ir atrás da menina, detendo as demais apenas com a sua
intenção; aparecia toda coberta de cinza-escuro, os beiços rasgados,
o rosto sulcado e com algumas cicatrizes e queimaduras, algumas
rugas lembrando cruzes, os olhos decerto exaustos, com pálpebras
que quase os cobriam por inteiro. Ainda assim, tinha muita energia.-
E não argumente.- Reagiu com firmeza à tentativa de rebelião da
mais jovem, que se preparara para protestar; os lábios abertos, a
língua em movimento, nenhum som saiu.- Você perguntou a ela
sobre o elemento de batismo, e a resposta lhe está sendo dada.
Miriam compreendia, mas não sabia; não tinha noção do porquê
estava tão à vontade com aqueles seres, de como poderiam lhe
inspirar tamanha confiança a ponto de permitir que dirigissem os
movimentos de seu corpo. Apesar do medo, do pavor diante das
chamas, a confiança neles era maior, o que foi aos poucos
apaziguando o terror; entrar no fogo seria como para outras
mergulhar numa lagoa, sem chamuscamentos. Ao chorar, suas
lágrimas evaporavam; lembrou-se que, apesar de gostar de tomar
banho, nunca lhe agradara ir fundo nas águas, temia se perder na
imensidão ou se afogar nas profundezas, ser arrastada pela
correnteza. De todo modo, às vezes sentia muita sede...Litros e litros
não bastavam para aplacá-la e sua mãe, a sacerdotisa de cabelos
loiros curtos que conduzira boa parte daquele ritual, que agora
pertencia à garota, ficava assustada ao pensar que aquela gargantinha
não podia ser assim tão grande e ávida. Contudo, parou bem à frente
da sarça, para alívio da mulher, retida pela velha e limitada pela
garota, deixando que os elementais do fogo mergulhassem sozinhos e
a devorassem. A natureza ficaria desprotegida? A imantação não fora
bem-sucedida? De forma nenhuma: quando uma cerimônia tomava
um rumo diferente do previsto, significava que o espiritual havia
concedido a todas uma dádiva, que as deusas tinham tomado para si
as rédeas do destino das magas e bruxas, que estariam muito melhor
protegidas e conduzidas dali em diante, a planta consumida pelas
chamas sendo uma oferenda, não uma falha, a forças que estavam
unidas à natureza e ao mesmo tempo acima dela. No entanto, o
batismo em um elemento, um primeiro contato com este, se limitava
a uma aproximação comedida de uma criança ao escolhido, por
exemplo a um córrego, a uma fogueira, a uma montanha ou a uma
gruta, seguida de orações feitas em conjunto com a iniciadora, que
nas noites seguintes propiciariam sonhos e viagens espirituais, de
intensidade gradativa, com mestras da magia e elementais; nunca
ocorrera antes, ao menos que se tivesse registro, uma corrida de uma
neófita junto com as salamandras rumo à residência destas; quando
em um “batismo” algo do gênero, tão intenso, e acima de tudo único,
sem precedentes, chegava a ocorrer, significava que a maga ou bruxa
que viria seria excepcional. “Será que me enganei?”, a velha bruxa se
questionou, porém no instante seguinte as chamas, que já haviam
reduzido o arbusto a cinzas, deixaram os restos de lado e envolveram
a pequena Miriam, sem tocá-la, numa provocante dança de cobras
voadoras de fogo, que se transformaram em pequenos dragões; a
menina começou a suar, imóvel, mas permaneceu ali sem desespero.
Quem suava frio, sem nenhuma quentura, misturando isso às suas
lágrimas, era a mãe, que não agüentou mais e gritou quando sua
garota passou a arder no fogo, que ficou azul, porém despido de
agressividade, sem lhe causar o menor dano.
- Respire, Miriam...Respire fundo.- Sua avó, que era aquela velha
feiticeira, passou a orientá-la. “E pensar que, quando comecei, as
salamandras me odiavam! Fui uma teimosa, tanto que consegui me
fazer respeitar e dominar o fogo; só que as marcas dessa persistência
e da rebeldia dos elementais estão até hoje no meu rosto...”, não
podia deixar certas recordações de lado.- Você tem muita sorte; por
alguma razão, elas gostam de você. Retribua esse amor...Não pense.
Respire...- Largou a mãe, que não atrapalharia mais em nada, para se
concentrar inteiramente na menina, que só ouvia a voz de sua
orientadora enquanto o mundo se dissolvia para dar lugar a um
universo incandescente, de puro magma, onde ao olhar para as
estrelas no céu conseguia vê-las de perto, em detalhes todos os seus
processos sob elevadíssimas temperaturas; uma grande alegria
preenchia seu peito, o ar que respirava o combustível para produzir
mais chamas, ao passo que as bruxas adultas que acompanhavam o
crescimento da fogueira azul nutriam pensamentos e emoções
distintas: inveja por não terem o mesmo potencial ou não serem
valorizadas pela ríspida Agar; medo por temerem que aquele poder
saísse do controle da menina; algumas a subestimavam portanto,
enquanto outras a superestimavam, loucas para correr para longe
dali; certas veteranas ficaram envergonhadas.
- Ela não vai conseguir. É demais pra uma menininha. Eu tô com
muita pena.
- Pena? Ela só tem aparência de menina. É um monstro. Você não vê
o olhar dela? Parece que não tem sentimentos. Se é o que parece, só
vai viver pelo fogo, queimando tudo ao redor, inclusive a nós. Acha
que vai ter coração pra poupar alguma coisa?
- Não fale assim, é só uma criança...
- Não, Yudith está certa. Já existiram bruxas que tinham poder
demais, por isso abandonaram a Ordem e passaram a rivalizar até
com certos demônios.
- Não acredito nessas lendas.
- Fiquem quietas!- Tinham tentado cochichar no volume mais baixo
possível; ainda assim, Agar escutara cada palavra. Não que
atrapalhassem sua concentração; era experiente o bastante para não
ser afetada. Prejudicariam, por outro lado, a jovem Miriam, que sem
perceber seria atingida energeticamente pelo burburinho, o que
poderia desencadear inclusive a ira dos elementais do fogo.- Se não
querem atrapalhar, afastem-se. E vão para longe...- As mais medrosas
de imediato seguiram esse conselho.
A menina abriu os braços, disponibilizou seu peito e permitiu que as
salamandras continuassem a se deleitar, pouco a pouco dançando
mais para dentro e menos para fora, a fogueira diminuindo e as
chamas descendo em espiral para dentro de seu coração; com uma
ternura não-evidente, decidiu que estava entregue. Quando suspirou,
mais nenhum sinal de fogo ao seu redor.
- Parabéns. Hoje você me deixou orgulhosa, minha querida. E quem
iria esperar? Eu sabia da sua inteligência e que escolheria o
fogo...Porém ainda ignorava o seu potencial.- Nessa hora, Miriam se
desvencilhou das matas e correu para sua avó; deram-se um belo
abraço.
- Também estou orgulhosa de você, minha filha. Não se esqueça que
ainda não é uma mulher...Mas já é uma iniciada de grau elevado.-
Sua mãe, Rebeca, a abraçou na seqüência, sendo correspondida.
- Depois quero que vocês me expliquem melhor. Entendi algumas
coisas, mas não tudo.- A menina expôs com simplicidade; algumas
outras bruxas, não invejosas e mais ou menos corajosas, que haviam
permanecido por ali, foram se aproximando para cumprimentá-la.-
Quero aprender sobre as salamandras.
- Elas serão suas melhores e verdadeiras professoras. Contudo, nós
poderemos lhe dar algum material de estudo.- A velha Agar sorriu
como poucas vezes em muitos anos.
- Hoje achei que fosse morrer...
- É o que toda nós pensamos quando o mundo muda. Quando o
nosso mundo muda...- Miriam era filha de Rebeca e do cuteleiro
Tobal, um homem alto, gordo e branco, com a cabeça raspada e a
barba ruiva, visto sempre alegre e de traços faciais delicados, o nariz
pequeno e olhos azuis vívidos; viviam na cidade que ficava além da
caverna entre as colinas que julgavam ser a morada das bruxas, na
verdade uma passagem, mais voltada à prática de rituais, cujos
caminhos cada uma delas conhecia de cor desde que começava a
atravessá-lo sozinha após a primeira iniciação, que costumava
ocorrer entre os onze e os catorze anos, sendo transmitido à pequena
um mapa que deveria decorar. Ao contrário do que se pensava, havia
homens vivendo entre as integrantes da Ordem de Magdala, que caso
contrário não poderia ter novas gerações, em sua maioria de origem
judaica ou descendentes de pessoas de outras etnias e credos não-
cristãos (para os quais Jesus era um profeta ou sábio iluminado, não
o Filho único de Deus), que viviam em Judá antes do país ser
dizimado pela Igreja, com a permissão para serem ferreiros,
agricultores, pedreiros e muitas outras profissões, só proibidos de se
dedicarem a qualquer forma de magia.
- Não é por julgarmos os homens inferiores ou indignos. É apenas
que eles têm o mundo à disposição, dominam a Igreja e os reinos,
enquanto nós só temos essa pequena ilha. Se cedêssemos o domínio
sobre a magia e a natureza a eles inclusive aqui, talvez nossa paz iria
por água abaixo. Homens querem sempre entrar em guerra com
outros homens!- Agar explicava a Miriam.
- Eu ouvi o que você disse!- Nos fundos da casa, enquanto batia na
lâmina de uma espada com seu martelo, Tobal bradou, brincalhão.
- E vai me dizer que é alguma mentira? Se não fosse pela
belicosidade dos homens, teríamos nascido em Jerusalém e não aqui.
- Acho que apesar de tudo aqui é melhor! Tranqüilidade, posso forjar
as melhores armas sem pressa e só pra mim!
- Como vê, existem algumas exceções, mas não pense que são todos
como o seu pai.- A velha tornou a se voltar para a neta, que escutava
com atenção; pinheiros bravos, eucaliptos e castanheiros compunham
a floresta da ilha, com uma prevalência nítida dos pinheiros, por
volta de trinta metros de altura, em volta da única cidade, que devia
contar entre dois e três mil habitantes, mantida oculta também por
meio de feitiços, o que dificultava ainda mais que fosse encontrada
por quem não era praticante avançado de alguma forma de magia.
- Eu não sou nenhum calça-frouxa, só não gosto de derramar
sangue! Agora se algum idiota vier pra cima de mim...- Resposta que
fez sua filha sorrir, enquanto a batida do martelo, metal no metal,
ribombou com ainda mais força.
Algumas horas depois, à noite, estava com outras pequenas bruxas
em um matagal, recebendo as instruções de sua mãe, que era uma
excelente instrutora; adiantada em relação às da sua idade, fazia parte
de uma turma com garotas mais velhas, dos quinze aos dezoito anos.
Entre estas, uma que era considerada “retrógrada”, a mais velha e
defasada, uma morena rechonchuda chamada Raquel, que se dizia
que não levava nada a sério, só querendo saber de brincar, sem
disciplina e negligente nos exercícios de concentração. As outras
zombavam o tempo todo:
- Olha a idade que você tem! Como é que ainda faz essas coisas?
Banho de lama, que nojo...- Dessa vez que caíra no lodo, no entanto,
fora por uma corda que suas colegas haviam estendido para que
tropeçasse; Miriam observava. Rebeca, que vira tudo, interveio:
- Hmm...Mas quem eu vi amarrando uma corda baixa entre os
troncos não foi a Raquel.- A observação fez as duas neófitas
gelarem.- O melhor caminho para reconhecer nosso verdadeiro Eu é
todos os dias tentar discernir a voz de cada um dos nossos pequenos
eus, alguns dos quais não foram sequer formados por nós: os nossos
semelhantes deixam ovos em nós, que ao nascerem revelam ser
aranhas, que montam teias em nosso interior; e essas teias se enchem
de poeira. Aprendam a perceber que nem tudo é o que parece, que
nossos preconceitos não possuem a menor valia quando começamos
a avaliar o que somos e podemos. O mesmo vale para vocês duas e
para você, Raquel...Afinal quem plantou os preconceitos alheios foi
você mesma.- Conhecia o potencial da jovem, que não por acaso
classificara de “retrógrada”, pois embora tivesse se tornado relapsa já
mostrara em outras ocasiões ser um talento inato; às vezes tinha
medo que Miriam seguisse o mesmo rumo, pois era outro caso
precoce. No entanto, as personalidades eram absolutamente
diferentes: sua filha analítica, responsável, dedicada aos exercícios,
atenta, centrada até demais para a idade; a outra com a cabeça em
mundos distantes, em um turbilhão emocional difícil de
compreender. Ainda assim, as duas acabaram ficando próximas e a
menina ajudou a adolescente a se reencontrar, ao mesmo tempo que a
segunda começava a deixá-la mais leve.
- Antes de sermos bruxas ou magas, temos que ser seres humanos
íntegros, integrais. Para tanto, devemos observar o que nos falta e o
que temos em excesso. Ninguém aprende a respeito do universo
exterior se não conhece a si mesma; sem autoconhecimento a escada
é estreita, os degraus frágeis e a queda se torna iminente. Hoje antes
de dormir quero que anotem, que separem uma folha e escrevam nela
todos os seus defeitos, tudo o que pensam que as prejudica, seus
vícios, impulsos, paixões e aspectos desagradáveis do caráter. Sejam
duras, o máximo que puderem, não tenham dó de si mesmas, reflitam
e coloquem as ocasiões no passado em que seus defeitos e
deficiências afloraram com mais força, percebam as nuances e
variações destas, não encubram nenhuma falha, afinal se fizerem isso
as únicas prejudicadas serão vocês mesmas; ninguém mais irá ler o
que escreverão, apenas vocês. Livrem-se de todo o lixo que
acumularam. A intenção do exercício é equilibrar em vocês as
características dos quatro elementos: sei que cada uma tem um
elemento específico de batismo, porém ter uma predominância de um
não significa negligenciar os outros. As deusas querem que sejamos
completas. Ao dom se soma o trabalho; dádivas sem labor são
inúteis, são as cores nas asas de uma borboleta que não voa.- E nessa
última frase olhou bem para Raquel, que, envergonhada por ser pega
distraída, desviou o olhar.
- A sua mãe é bem severa, mas de um jeito que tem doçura também.
Quando vim pra essa turma, fiquei com medo...Mas ela é a melhor
instrutora que peguei até hoje!- Raquel observou na manhã seguinte,
andando com Miriam em volta de um lago.
- É bom você valorizar isso então pra continuarmos na mesma
turma, juntas. Se for reprovada de novo, a próxima instrutora pode
ser tão exigente quanto, só que menos paciente.
- E como foi o exercício com os defeitos? O que conseguiu separar?
- Achei que isso deveria ficar só pra cada uma de nós.
- É...- Olhou para o outro lado, sem jeito.- Mas é que no meu caso
foram tantos que encontrei que fiquei ainda mais constrangida do que
quando a sua mãe me olha daquele jeito que você conhece!
- Observe e corrija. O bom disso é que está aprendendo a
reconhecer.
- Às vezes você é muito parecida com ela...- Ao que Miriam não
respondeu, recordando-se, ao ver seu reflexo na água, da prática na
noite anterior, quando sob a escassa luz de uma lâmpada a óleo fraca
se debruçara sobre a folha de pergaminho e escrevera com sua pena
seus defeitos e perturbações; ao terminar, a luz parecia ter adquirido
mais força, ficado mais intensa. Estava livre de um peso e, durante a
atividade, sequer se dera conta da importância do que estivera
fazendo, se sentindo por fim mais leve e ao adormecer sonhando com
uma realidade multicolorida, um arco-íris que se abria solto e
tranqüilo à sua percepção.
- Para que conheçamos nosso EU, temos que ficar atentas. A atenção
não se limita a quando meditamos ou fazemos uma atividade ritual:
deve ser integrada ao dia a dia, e acho que perceberam isso quando
anotaram suas falhas de caráter e refletiram sobre como se
manifestam, atentando para cada situação irritante ou desafiadora.
Partindo do princípio que fizeram o que lhes pedi, a respiração hoje
será o fundamental: relaxem seus corpos, o máximo que puderem,
escolhendo a postura que lhes parecer mais confortável, tanto faz se
querem ficar em pé, sentadas ou deitadas, relaxem
independentemente da posição e a cada inspiração, de forma calma,
imaginem que não apenas seus pulmões como seus corpos por inteiro
estão absorvendo o ar, cada poro ativo neste exercício, feito esponjas
secas mergulhadas na água.- O exemplo agradou Raquel, que foi se
percebendo mais forte e alerta; Miriam sentiu que se
espalhava...Conseguiu notar a chama da vida nos pássaros, nos
insetos, na grama, nas flores e nas árvores, sem falar na luz que
permitia tudo aquilo. Silêncio; e demorou algum tempo até que
Rebeca tornasse a falar:- Agora, escolham uma qualidade desejada e
repitam em suas mentes a palavra relacionada a essa qualidade e
criem imagens mentais nítidas relacionadas a ela. Não se precipitem;
façam isso em paz, sem pressão, preservando a imagem e, ao inspirar
o ar, não se esqueçam da respiração, absorvam junto o que precisam,
ao passo que na expiração coloquem para fora os defeitos e situações
que se opõem ao que estão realizando. Façam isso com convicção.-
Miriam percebera, na noite anterior, o quanto era impaciente e
orgulhosa, ainda que não parecesse, guardando dentro de si sua
revolta interna contra diversas situações e, ao se colocar acima
destas, não as resolvia, enraivecida com as mentiras e desconfianças
alheias, querendo que tudo fosse ao seu modo; conquanto não fosse
de espernear ou reclamar, por dentro se lamentava, se culpava e
culpava os outros, exigente em demasia consigo mesma e com todos
que a cercavam. Tinha que se inspirar para ser mais intimamente
tolerante...- Não se esqueçam que isso não se limita a uma prática
diária. Trata-se de uma prática para o tempo todo...Para cada
segundo. Se por exemplo estiverem em uma situação que as levará a
perder a razão, inspirem tranqüilidade e expirem a raiva. Isso é para
que se dêem conta que observaram a raiva e a estão colocando para
fora: não a ignoraram e nem a reprimiram. Em novas folhas, poderão
descrever situações, ou mesmo criar histórias, em que uma
determinada característica positiva é aplicada; aos poucos os maus
hábitos serão substituídos.- Uma vez terminado o exercício, após
meia-hora, foi feita uma nova proposta:- Quero que se reúnam em
duplas. Desta vez, irão conversar; e uma vai apontar os defeitos da
outra. Só que isso tem que ser mantido em sigilo! Não falem alto,
não exponham suas companheiras. A conversa é de duas em duas, de
mulher para mulher.- Raquel de imediato olhou para Miriam, que se
achava com a atenção fixa na mãe e instrutora. Quando percebeu que
estava sendo observada e se voltou para a companheira, a outra riu.
- Você é quase perfeita, menina...Nem tem muito o que falar. Só sei
que vai descer o pau em mim, e pode ficar à vontade.
- Seja sincera, Raquel. Sei que existem coisas em mim que
incomodam você.
- Tudo bem. Às vezes esse seu ar...Sei lá...Espero não perder a
amiga!- Era a única que tinha...
- Não se preocupe, é um exercício, e tem que ser levado a sério.
- Certo...Você às vezes parece prepotente, mesmo eu sabendo que
não é! Mas se for reparar no que as outras meninas zoam de mim,
você é justamente o contrário: elas têm medo de você, e acho que
não é isso o que você quer.
- Claro que não, sou uma aprendiz como todas. E o medo é o maior
inimigo em qualquer aprendizado, inclusive no aprendizado da
amizade.- Da mesma forma, Raquel era sua única amiga.
- Se quer saber, tenho aprendido muito com você. Agora pode
mandar brasa em mim! E sei que nisso você é boa.
- Ainda falta bastante pra você criticar em mim.- Miriam deixou
escapar um sorriso; já no dia seguinte, ao nascer do sol, quando foi
aberta uma rodada de dúvidas, Raquel despencando de sono pela
prática do dia começar mais cedo do que de costume (isso porque
Rebeca teria outros compromissos pouco depois), uma menina
recém-admitida à turma, cabelos castanhos, olhos cor de mel e rosto
com curvas de pêra, ainda parecendo bastante insegura, expôs o que
vivenciara:
- Às vezes tenho os mesmos sonhos, numa mesma noite ou em
noites diferentes. Vez ou outra, acordo com a cabeça girando e muito
cansada. Vários sonhos de vôo, e percebo presenças em volta de
mim. Comentei antes com algumas colegas, e me disseram que
estava ficando louca...- Ao que Raquel riu discretamente, recebendo
um olhar sério de Miriam que fez com que parasse de imediato.- Mas
eu não sinto assim. E quando comentei com os meus pais e o meu
irmão, eles dão risada e me olham como se eu estivesse inventando.
Às vezes vejo familiares que já faleceram; uma prima que eu adorava
uma vez me mostrou uma pedra grande azul-clara, parecia uma
safira, só não entendi nada do que ela falou no sonho. E sinto um
formigamento...
- A sua mãe é iniciada?
- Não. Ela é só uma artesã. A minha família meio que nunca foi
muito aberta com relação à magia. Só me deixaram vir até aqui
porque o meu avô disse que seria melhor, foi o único que me apoiou
e disse que podia ser algo diferente, ainda mais que quando tenho
esse tipo de sonho sempre venta demais perto de casa, e só perto de
casa.
- Ninguém devia rir ou fazer pouco caso do que você diz, Gabriela.-
A menina tinha a idade de Miriam, talvez só um pouco mais ou
menos, porém era imatura e instável mental e emocionalmente; ainda
assim, Rebeca notara, pelo que dissera e pelo que podia sentir, um
potencial latente tão grande quanto o de sua filha.- Ao que tudo
indica, está vivenciando viagens espirituais.
- E o que seria isso?- Dessa vez Raquel ficou atenta; era um tema
que a interessava.
- Quando adormecemos, ao descansar nosso cérebro induz o corpo a
um relaxamento muscular profundo, e nesse momento nosso espírito
sai para o plano espiritual, pois precisa da energia desse plano para
se revitalizar, só que geralmente não ocorre a viagem; a
descoincidência costuma ser milimétrica, com a alma ficando pouco
acima da carne, e muitas vezes quando a reconexão acontece de
forma brusca podemos sentir um torpor, uma paralisia; isso é porque
o espírito ainda não se encaixou perfeitamente à matéria. É com o
espírito pouco acima do corpo que ocorrem os sonhos,
acompanhados pelo movimento rápido dos olhos, como já pudemos
observar quando fizemos experiências acordando pessoas nos
momentos em que isso ocorria, e elas relatavam seus onirismos, que
podem ser de dois tipos: nos mais comuns, somos passivos, vivemos
e sentimos sem interferir, por mais absurda que seja uma cena; em
outros, mais raros, sabemos que estamos sonhando e podemos mudar
a realidade que surge diante de nós. Enquanto os sonhos ocorrem há
sempre a manifestação dos movimentos rápidos dos olhos e o
cérebro é o órgão que os produz, sendo o que mantém a maior
interação com o espírito, que se reduz durante as viagens espirituais,
passando o cérebro apenas a manter as funções vitais, ao passo que o
espírito se desgarra e se distancia, cessam os movimentos rápidos e
nestas a coerência é plena, há cenários que não podem ser alterados
por mais que se queira e nelas podemos nos desgastar se não
desenvolvemos a consciência completa, pois ficamos à mercê de
outros seres desse plano, visto que também somos seres espirituais;
apesar de possuirmos corpos, não somos corpos. A consciência
espiritual é desenvolvida com treinamento, e você deve buscar
desenvolvê-la, para isso contando com a nossa ajuda e compreensão.
- É possível então durante essas viagens encontrar parentes que se
foram?
- Claro, e não só parentes como qualquer outra pessoa, boa ou má.
Você não entendia o que sua prima dizia porque saiu
espontaneamente, sem ter nenhum tipo de treinamento.
- E por que isso ocorre?
- Às vezes você passou por treinamentos em outras vidas, que agora
precisa rememorar. Que fique claro, a energia espiritual é a base do
nosso aprendizado, e é tão necessária para nós como a energia que
vem dos alimentos, sólidos ou líquidos, ligada aos elementos terra e
água, da respiração, ligada ao elemento ar, e da luz do sol, ligada ao
elemento fogo. Usando todas essas fontes de energia e colocando o
seu corpo físico em equilíbrio, o espiritual estará pronto para
aprender ou recordar...- E Miriam de fato não cresceria valorizando
apenas o espírito; se sua mãe lhe dava lições valiosas nesse sentido,
seu pai treinava seu corpo com afinco e intensidade; aos treze anos
começaram suas instruções com a espada e aprendeu a andar a
cavalo.
- Você é melhor do que muitos marmanjos que já treinei! Não é
bruta, mas tem bastante força, e é muito ágil, rápida! Só não pode
confiar demais em si mesma...E nem de menos!- Na troca de golpes
treinando com espadas de madeira, ele se aproveitou de um momento
de distração da menina para lhe derrubar a arma e ficar com a ponta
apontada para a sua garganta, seca depois de muito suor derramado.-
Por hoje chega. Pode ir beber água que eu também cansei!- E liberou
uma gargalhada antes de ir tomar algumas canecas de cerveja; apesar
de beber muito, sua filha nunca o vira embriagado. Ficava admirada;
o álcool devia evaporar junto com o suadouro.
Os anos passaram e Miriam chegou aos seus vinte, estreitadas as
amizades com Raquel e Gabriela; algo que costumavam fazer juntas
era cortar os cabelos e cuidar dos penteados. Embora as três
trabalhassem uma na outra, Raquel era de longe a mais criativa e
desinibida, ainda que Miriam a princípio tivesse resistido a entregar
sua cabeça às tesouras da companheira, preferindo as da mãe e as de
Gabriela, até que esta última lhe revelara um dia, exibindo fios
macios e brilhantes:
- Acho que você devia confiar! Foi ela quem fez isso, dê uma
olhada, e toque...- Em contraste evidente com as mulheres das ilhas
próximas, que já haviam visitado, as magas e bruxas de Magdala (a
ilha passaria a ter esse nome devido à Ordem, nenhuma relação com
a localidade mencionada na Bíblia) costumavam lavar os cabelos
com freqüência e usar diferentes tipos de loções à base de ervas.
Algumas até descoloriam os cabelos com uma pasta de pedra-ume,
enxofre, soda e ruibarbo, que emplastrava os fios por mais de uma
hora, ou com água de lixívia, mergulhando cinzas em um pote com
água fria e deixando-as descansar ali por horas, coando-se depois
essa água, que se transformava em um líquido descolorante
impregnado de sais alcalinos. Ao visitarem as ilhas vizinhas, haviam
tido que aderir aos toucados, com hábitos que incomodavam em
especial a vaidosa Gabriela:- A maioria delas lava a cabeça no
máximo três vezes por ano! Algumas pobres coitadas acham que é
pecado e que pode até trazer doenças! Muito pior aqueles pentes pra
despiolhar...Que nojo!
- Preconceitos cristãos que a gente nunca vai seguir. O que acharia
de raspar as sobrancelhas que nem aquelas aldeãs que vimos, hein
Miriam?- Inquirira Raquel, rindo quando a outra se limitara a fazer
uma careta e a menear a cabeça para os lados.
- Deixa a Miriam em paz. Pior nas cidades em que fomos, onde as
donzelas, pra não ficarem com as bochechas rosadas que nem as das
camponeses, usavam sanguessugas no rosto!
- Palidez é estilo pra esse pessoal. Se você quiser, aplico em ti uma
receita que aprendi, friccionando esterco de vaca temperado com
vinho na pele, deixando passar um tempo em uma tina de banho
cheia d'água, com fogo embaixo, o que eu vi mantido por galhos de
sabugueiro, pra transpirar bastante, e depois um banho pra finalizar o
tratamento! Menos nojento do que sanguessugas pra você que é
fresca...
Contudo, apesar de gostar de sair com as amigas, os passeios
solitários pela ilha a agradavam ainda mais; sentia-se como um
pássaro de asas de fogo e olhos de rubi, num vôo sereno e corajoso,
sem precipitação a despeito da intensidade de sua prática. Portava
embainhada em sua cintura a espada que Tobal fizera especialmente
para ela, de empunhadura flamejante. Acompanhara o processo desde
o início, encantada com a interação entre o fogo, o ferro e o aço, a
deusa das chamas que ao acarinhar seu companheiro moldava
diferentes formas, enquanto o deus coxo se encarregava de bater o
martelo com força. O forno de seu pai era de tijolos vermelhos,
alimentado com carvão vegetal, que aceso permitia a difusão do
calor graças ao fole. O aço precisava ser aquecido até o ponto certo,
que só o forjador hábil reconhecia. Tobal um cuteleiro, portanto um
especialista em facas, espadas e machados, armas cortantes em geral,
ao passo que colegas seus produziam ferramentas, chaves, grades e
ferraduras. Todavia, tinha uma opinião bem definida a seu favor:
- Não existe nada igual a uma boa espada!- Dissera enquanto
golpeava na bigorna o aço que seria para a arma da filha, visando o
rubro.- É uma arte. Apesar de parecer cansativo, na verdade é
gratificante. Percebe que a espada e a cruz têm formatos similares?
- Mas a cruz é um símbolo de martírio. De sofrimento portanto.-
Observara Miriam.
- E a espada não? A espada é guerra. E Cristo disse que tinha vindo
trazer a espada, que colocaria irmão contra irmão, pai contra filho, o
filho contra o pai. Na verdade, é um símbolo mais apropriado para
ele do que a própria cruz.
- Mamãe me disse que Cristo tentou fazer com que Pedro difundisse
a Luz aos homens, enquanto Madalena a transmitiria para as
mulheres, só que foi ignorada pela Igreja. Em nenhum momento
Jesus discriminou as mulheres, mas a inveja de Pedro e de outros
apóstolos fez com que Madalena fosse ignorada nos Evangelhos que
seriam considerados oficiais, e todo o poder acabou nas mãos dos
homens. Se Pedro era a pedra, ele precisava de um coração, pois a
pedra serve para dar a base, mas não tem o amor. O feminino fez
falta à Igreja, e por isso ela se degenerou, já que sem a junção entre o
feminino e o masculino não pode haver amor e luz; uma espada de
luz.
- Uma espada de luz! É uma bela metáfora, mas não passa de uma
metáfora! Espadas são feitas de metal e fogo...E depois de sangue.
Luz passa longe.
- O fogo e a luz estão intimamente ligados.
- Sou um ferreiro, não entendo muito desse palavreado de bruxas...-
Miriam gostara mais de ver a forja ativa, uma camada de carvão com
uns 15 cm por todo o forno, as chamas alimentadas pelo ar, soprado
de baixo para cima, que lhe lembrava os exercícios de respiração que
avivavam seu fogo interno; às vezes se sentia como uma dragoa
pronta para voar, unindo os dois elementos.- Sei mais sobre o brilho
do aço! Talvez essa seja a única a luz que me entende...- Sorria ao
manusear as peças quentes com a tenaz, desbastar o metal com as
limas e manejar os cinzéis para a modelagem. A espada pronta, no
entanto, não resultara de um trabalho solitário: a confecção do aço e
a perfeição do fio certamente tinham sido frutos de seu trabalho;
entrementes, para as partes de madeira solicitara a ajuda de um
amigo carpinteiro, do mesmo modo a extração do couro necessário
feita pelos coureiros e os retoques finais proporcionados pelo
gravador, pelo ourives e pelo montador, que se encarregara do último
ajuste:
- Sendo pra sua filha, nem ia cobrar nada. Mas sabe de uma coisa?
Como ela nunca me deu bola, aquela gracinha, acho que vou ter que
cobrar.
- Veja como fala, sua bola de sebo!- O montador era um sujeito
rústico, com seus quarenta anos, moreno de nariz grande e olhos
caídos, troncudo, de braços cheios de pêlos.- Mais respeito! Se falar
outra vez isso pra mim, te parto no meio! Mas se falar pra ela, a coisa
pode ser pior...Não quero cinzas na minha porta, menos ainda as de
um porco como você!- Apesar do tom parecer ofensivo, estavam
acostumados àquele tipo de brincadeira; amigos de longa data,
costumavam extrair juntos o minério bruto que o cuteleiro iria usar
em seus trabalhos e assim também garantir a prosperidade do outro,
transformado depois em lingotes, ainda impuros, cortados no
tamanho ideal e enfim purificados e o carbono sendo adicionado.
- Forjar uma espada é um trabalho e tanto...- Miriam comentara.
- Forjar uma espada é O trabalho!- Tobal replicara, os olhos da filha
fixos no rubro metálico; tinha ainda muito a dizer: enxergava com
precisão os detalhes, do seu ponto de vista cada um deles um
pequeno demônio, um diabrete, ou um duende traquino, pronto para
pregar as piores peças, carregado com olhos dissimulados de fogo
perdido, que ao serem fitados de longe deixavam no solo rastros de
cinzas vorazes, pouco acostumadas à paciência.- Sem uma boa ponta,
a sua estocada não irá servir de nada, será um cutucão ou fará
cócegas; sem uma boa lâmina, o corte será impossível; graças à cava
não irá carregar um peso maior do que poderia suportar, não se
esqueça que falamos não de carregar mas de manejar, às vezes por
longos períodos, e bruxa ou não você é uma mulher, não tem a
mesma força física de um brutamontes; a guarda protege a sua mão,
você ainda quer manter uma mão, não quer? Ainda mais com dedos
tão bonitos, que um pouco vão ficar estragados com o tempo, mas
são ossos do ofício! O pomo, esse que não é o de Adão, é um botão
de contrapeso, além de servir como adorno, e você é mulher, não iria
fazer pra você a espada de um bárbaro, ou você queria uma assim,
sem nenhum enfeite? O rebite fixa tudo...Do mesmo jeito que a
espada vai pertencer a um único homem...Ops, a uma única pessoa,
apesar de ter sido trabalho de muitos...Ou muitas. Não tenho
preconceito...Só tomo cuidado com os diabinhos que vêm perturbar o
meu trabalho! Uma espada, pra ser boa, precisa de uma atenção
redobrada a cada coisinha que quem usa não tem nem idéia! E
desperdiçam essas obras de arte por aí, quebrando depois de uma ou
duas batalhas, como se não fosse algo pra ser manuseado com apuro,
preservado pela vida toda ou por uma parte considerável dela! O
espadachim de verdade sabe derramar sangue sem danificar tanto a
sua arma, golpear no lugar e no momento certos, encerrar uma luta
com o menor número possível de ataques, e usar um escudo pra se
defender que é melhor, quando possível, já que certas espadas são
um tanto pesadas. Mas esses fracotes sem escudos, com espadas
leves, são de causar revolta! Não têm noção do suor que foi
derramado, de como trabalhamos a flexibilidade, já que uma lâmina
tem que absorver impactos e se flexionar sem quebrar de cara, do
balanceamento, buscando o equilíbrio entre a lâmina e o cabo, do
centro de percussão, permitindo que o golpe saia com eficiência, do
afilamento, com a diminuição progressiva da espessura e largura da
lâmina, e isso nem todas usam. Pra você a que estou providenciando
é de afilamento gradual, prefiro assim, acho mais bonito, apesar da
maioria das bruxas preferir as pontudas Só que você, filha, é
diferente. É especial.
- Não sou especial. Sou como todos e todas: tenho carne, sangue,
ossos e espírito.
- Acha que não? Pra mim você é...Toda filha pro pai é especial!
- Nesse sentido, talvez tenha razão. Apesar de nem todos os pais se
comportarem com a mesma dignidade que o senhor.
- Obrigado pelo elogio! Mas é melhor calar a boca e não me
contestar. O seu pai sabe o que é bom pra você e te valoriza. Vou dar
um jeito nos seus diabinhos também.
- Sabe que sou muito detalhista.
- Detalhista até demais pra alguém tão jovem! Um pouco sua mãe
lhe fez mal. Não devia ser tão séria com a sua idade! Quando tinha
os meus dezenove ou vinte anos, estava mais interessado em correr
por aí e levantar as saias das mulheres!
- Duvido muito. Ainda mais morando em um lugar cheio de
bruxas...
- Como acha que conheci a sua mãe?
- Sei que com a minha idade o senhor já era um ferreiro respeitado.
- Isso não me impedia de fazer o que queria.
- Deixe de inventar coisas e encher a cabeça da menina...- De
repente, Rebeca aparecera.- É melhor que se limite a trabalhar.-
Trazia consigo um sorriso jeitoso.
- Essa mania das bruxas de aparecer de repente! Mas que susto, meu
amor...
- Susto porque o peguei mentindo ou porque havia alguma verdade
nessa história de levantar as roupas das mulheres? Não foi desse jeito
que me conheceu não...Vai ter que explicar isso direito.- Miriam riu
com discrição junto com os pais; se sentia bem à vontade com os
dois, pessoas que cada um à sua maneira a compreendiam e que ela
sabia compreender, pois, acima do fato de serem seus pais, eram seus
amigos, sua mãe uma professora exigente, mas amorosa, e seu pai
forte e jocoso, sendo que apesar das brincadeiras a protegeria feito
um ogro caso necessário. Considerava-se satisfeita com seu convívio
familiar, só às vezes cogitando como seria ter um irmão ou uma
irmã, dividir espaços e responsabilidades, e não sabia dizer se lidaria
bem com isso, ouvindo algumas vezes os desabafos de Gabriela após
as brigas com o caçula. Só tinha receio que, se algum dia o céu
ficasse azul demais, não tardassem a chegar nuvens de tempestade;
em mais de uma ocasião tivera um sonho com essa imagem.
Em seus passeios solitários, ao olhar para o céu do dia gostava de
parar e prestar atenção no sol, poderoso mesmo quando as copas das
árvores tentavam barrar sua luz. Foi numa manhã assim, cristalina
como seus olhos, que avisou algo mais do que o astro-rei,
surpreendente, batendo asas cada vez mais próximo, ao que parecia
buscando um local de pouso. O estrondo em descida trazia consigo
ventos fortes, carregados de faíscas, mesmo que não fosse descer
assim tão perto. Tratava-se de uma manifestação rara nas águas do
Mediterrâneo; se dizia que fossem comuns apenas em ilhas dos
mares do norte ou do mar tenebroso: um dragão.
Ao observá-lo distante, ainda assim era possível perceber que se
tratava de um animal imenso, maior do que qualquer elefante, negro
com asas percorridas por veias e sulcos vermelhos que se
evidenciavam quando as batia e, contudo, seu brilho parecia aos
poucos se apagar como um fogo que se entristece e se encolhe. O
dragão iria pousar porque estava próximo de seu fim, o que inspirou
um sentimento confuso em Miriam e, apesar do medo, a instigou
para que o seguisse.
Ao vê-la se aproximar quando se deitou sobre uma relva cansada,
exposto ao sol em uma área ampla de poucas árvores e tendo os
outros animais se retirado ou se escondido, evidenciou seus olhos
altivos, o grau de ameaça crescendo junto com as pupilas negras, que
se expandiram até os cobrirem por completo, acompanhados de uma
expressão globalmente hostil que lembrava mais um humano do que
um réptil; de forma nenhuma um demônio, pois se tratava de uma
expressão carregada de ambigüidades, sem o peso de um mal
absoluto. Não que os demônios não tivessem as suas dualidades e
conflitos, porém certamente menos evidentes, por baixo das
carapaças marcadas pela crueldade e pelo sofrimento, do que naquela
face comprida e orgulhosa, cujos maxilares se escancararam
exibindo uma língua grande e flexível, de rubor virulento, e dentes
de inigualável brancura. A criatura possuía poderes espirituais: isso
ficou evidente porque, sem precisar tocar seu corpo, Miriam sentia
aquela língua como se fosse um chicote em sua alma. Aproximou-se
teimosamente, na superação das dores. “É inacreditável! Será que é
real o que estou vendo? Não me lembro de ter ingerido nenhuma
fruta desconhecida ou tomado alguma poção estranha. Então só pode
ser real. Admito que por muito tempo pensei que os dragões não
passassem de ficção, que a minha avó exagerasse nos relatos sobre o
mar tenebroso. Não vou perder a oportunidade de me aproximar de
um deles, por mais perigoso que seja. Ainda não sei se esse é bravo,
vovó disse que há os malignos e os benfazejos, os temperamentais e
os pacatos, são como as pessoas, com diferentes humores. Espero ter
sorte; se for o que espero, poderei aprender muito com ele sobre o
fogo.”, refletiu, e pouco a pouco dores e pressão foram se esvaindo, a
criatura aparentemente optara pela paz e deixara da impor sua mente
sobre a da jovem bruxa, permitindo que chegasse perto. “Você é
virgem. Posso sentir o odor característico das donzelas intocadas.
Não teme que a devore?”, a comunicação telepática a surpreendeu
mas não a fez retroceder, só deixando os últimos passos mais
trêmulos antes de parar para cravar seus olhos nos dele, as lagoas de
água cristalina nos mares de betume. “Não sou cristã. Não cultivo
esse tipo de superstição.”, já treinara um pouco de telepatia com a
mãe e a avó, sem muito sucesso; com o dragão o diálogo parecia
facilitado por ele, bem mais adiantado na comunicação psíquica do
que suas instrutoras familiares. Referiam-se às lendas, nos países
cristãos, que falavam que os dragões, ao atacarem as cidades, teriam
o costume de devorar suas virgens. “Ótimo. Mas se eles estivessem
certos, você estaria perdida: é quase impossível encontrar virgens nas
cidades de hoje.”; “Isso tem alguma importância com relação a você
estar aqui?”; “Um pouco. Cansei de levar a vida fugindo e
lutando...Cheguei a uma idade em que isso é desgastante demais.
Aliás, já que não me parece que seja hostil, vou lhe contar a verdade:
vim buscar uma ilha tranqüila para o meu repouso eterno. Não tive
forças suficientes para examinar esta por completo e verificar seus
habitantes, então acho que pode me ajudar; há cristãos por aqui? Ou
outros dragões?”; “Nem uma coisa, nem outra.”; “Você responde
bem. E fico feliz com a sua resposta...Sinal que ainda existem ilhas
de inteligência no oceano da estupidez; literalmente falando.”; “Os
cristãos podem ser em sua maioria ingênuos e supersticiosos, mas
nem todos devem ser cruéis.”; “Diz isso porque nunca conviveu com
eles. Passou a vida toda nesta ilha, não é?”, Miriam aquiesceu com
um aceno de cabeça e o dragão prosseguiu: “Se eles são capazes de
queimar alguém só por ter uma opinião diferente, um outro humano,
imagine o que costumam fazer com seres de aparência “demoníaca”
como nós dragões.”; “A sua aparência não é demoníaca. Desde que o
avistei, senti algo grandioso, que não é nem humano, nem animal,
nem demoníaco.”; “É animal sim, como são vocês humanos e talvez
os demônios. Mas somos espécies diferentes, seres distintos. Pena
que os cristãos achem que só merecem viver os que repetem sem
parar as palavras de um idiota que morreu há mais de dois mil
anos.”; “Cristo não foi um idiota. Pelo que aprendi, foi um iniciado
de altíssimo grau, que teve suas palavras deturpadas.”; “Foi um
idiota porque não deixou nada escrito. Vocês humanos precisam
registrar as coisas para entendê-las, relê-las, e lê-las de novo. Têm
cabecinhas muito complicadas, confusas e restritas. É preciso muita
simplicidade, precisão, nada de ambigüidades. Mas o que os
pretensos mestres humanos fazem? Enchem a cabeça das massas,
que são naturalmente estultas, com um palavrório metafórico. Se são
inteligentes o bastante para criar esses arcabouços verbais, cheios de
armadilhas, por que não simplificam as coisas para os imbecis? É por
isso que digo que ele foi um idiota. Sinto se a decepcionei.”; “Mas e
entre vocês, não existem os guias, os líderes, e os dragões comuns?
Não sei bem como me expressar em relação a isso...”; “Entendi o que
está querendo perguntar, não precisa ter medo de me ofender. Desde
que percebi que tinha coragem suficiente para se aproximar de mim,
e sem logo desembainhar sua espada, pensei que seria uma digna
testemunha de meus últimos momentos. Sinto se estou um pouco
enraivecido...Não é a revolta que produz as minhas chamas. Se quer
saber, parando de dar voltas agora, dragões são diferentes de
humanos, não existe um “povo” entre nós, somos solitários. E, ao
contrário do que se pensa, há diferenças substanciais entre as
espécies de dragões. Nem todos conseguiriam conversar com você
como estou fazendo, mentalmente, e alguns teriam tentado engoli-la
quando chegou perto. Além de existirem alguns anões irritantes e
outros ainda maiores do que eu...”; “Então minha avó está certa,
existem bons e maus dragões...”; “Os cristãos diriam que existem os
que irão para o Inferno e os que voarão rumo aos Céus; ou não tão
longe, afinal são dragões! Teriam que dar uma boa volta em torno do
monte Purgatório! Como não sou boa coisa, iria ficar tonto nesse giro
e acabaria caindo no caldeirão do Diabo.”; “Não me parece que tenha
má índole.”; “Você é muito séria, garota. Nem parece que tem a sua
idade. Foi uma brincadeira, não precisa levar tudo ao pé da letra.”;
“Eu entendi. Só não acho que seja apropriado brincar neste
momento, se o senhor está em seus últimos instantes na Terra.”; “O
que quer eu diga? Que agradeça o meu pai e a minha mãe? Nós não
temos famílias formadas. Minha mãe colocou os ovos e se foi; e de
sete irmãos fui o único sobrevivente. O mais difícil foi aprender a
lidar com certos humanos. Eles não aprenderam e caíram mais
cedo.”; “Seres tão possantes devem se defender bem...”; “Somos
totalmente desunidos, enquanto vocês são desunidos unidos...”;
“Talvez possa lhe preparar um remédio. Ou melhor, tenho amigas
que fariam poções de cura muito eficientes.”; “Então por que não vai
buscar?”; “Como é?”; “Não estou falando sério...Você é inteligente,
mas a sua falta de senso de humor às vezes atrapalha! Não é uma
questão de doença; trata-se de velhice e cansaço. Quero ir embora.”;
“Então se essa é a sua vontade...”; “A minha vontade é soberana não
é? Afinal o corpo e o espírito são meus...Ou será que não? Espero
não ser alvejado por nenhum tirano celeste; inclusive gosto da minha
cor...Mas não gosto de furos.”; “Se puder me ensinar algo, gostaria
de aprender com o senhor.”, a jovem por fim explicitou; a pupila se
reduzira e o gigantesco animal a encarou com um ar de dúvida.
“Desde o começo, veio com segundas intenções então...”; “Mentir
não faz o meu gênero.”; “Será? Todos os humanos são mentirosos. O
que muda são os graus, muito ou pouco.”; “E os dragões não?”;
“Agora parece mais irônica e desafiadora. Muito bem...Saiba que não
vou durar muito. É questão de minutos, sendo mais preciso. Não
daria mesmo para que buscasse algum medicamento caso ainda fosse
possível me salvar e eu quisesse isso. Mas vou lhe fazer um
desafio...”, as asas daquele dragão eram similares às de morcegos,
com quatro pontos de sustentação, diferentes das asas de pássaros,
com apenas dois, e por isso podia carregar bastante peso além de
suas próprias toneladas, eleváveis no ar graças ao hidrogênio gasoso
produzido pelas bactérias em seu sistema digestivo e canalizado para
duas bolsas de armazenamento que quando infladas contribuíam para
o vôo, facilitado também por seus ossos ocos; com relação ao fogo,
podia produzi-lo ao ingerir certos minerais. Muitos resíduos de
rochas sedimentárias seriam encontrados em seus intestinos, com o
suficiente de platina para provocar explosões. Após o falecimento de
seu imenso benfeitor, Miriam ainda retornaria algumas vezes para
recolher seus restos e estudá-los, realizando estas observações e
anotando-as, anos depois lidas por sua amiga Flora, que não deixaria
de admirar os restos da imensa criatura, diversos preservados graças
a substâncias protetoras preparadas por Raquel. Agora por que
benfeitor? “Quando eu expirar, irá retirar um dos meus dentes com a
sua espada. Não recomendo que faça isso agora, porque a dor pode
me fazer soltar uma boa baforada quente...”, começou a expor. Não
sabia que estava lidando com uma bruxa do fogo. Miriam deixou
esse detalhe passar e continuou a escutar com atenção: “Depois,
enterrará esse dente, e vai derramar em cima algumas gotas do seu
sangue. Não precisa se assustar, pois não precisará ser muito.”, ela
não demonstrara receio ou medo, porém ele o sentira. “Se quiser
colocar mais, o problema é seu, algumas gotas são o bastante. Assim
como não deve ter medo, não seja exagerada e pretensiosa. Alguns
segundos passados, terá um surpresa.”; “Que surpresa?”, não resistiu
e indagou. “Disse que era uma surpresa...Mas sei que não vai aceitar
isso como resposta. Isso é magia draconiana. Passada de geração em
geração, sem necessidade de instrução direta, mas simples, pelo
nosso próprio sangue, ao contrário dos seres humanos, que gostam
de complicar as coisas. Um artifício para, caso humanos nos agridam
e estejamos encurralados, possamos convocar alguns ajudantes.”;
“Que tipo de ajudante?”; “Seres draconianos, nascidos do dente do
dragão e do sangue humano, que pode ser o pouco que conseguimos
derramar em uma luta, costumam ser muito fortes, muito mais do
que humanos comuns, e quanto mais o dragão estiver próximo da
morte, mais resistentes e poderosos ficam. No seu caso, irá nascer
uma fêmea por você ser mulher...Nem por isso ela será boazinha!
Nem você é. A mais, draconianos possuem um ódio tremendo de
humanos e, se o dragão morre antes que nasçam, tornam-se órfãos
ávidos por vingança.”; “E qual o sentido desse desafio? Por que eu
me arriscaria?”; “Pense, minha jovem...Você pode deduzir sozinha.”,
Miriam deteve uma nova pergunta ao se dar conta que ele não
responderia mais; nunca mais. Sentiu um corte na comunicação, que
foi como um choque em seu cérebro; os olhos permaneciam abertos,
porém faltava a ironia vital. “Sinto muito, nem sequer perguntei o
seu nome...Como sou descuidada.”, aproximou-se para fechar as
pálpebras coriáceas do dragão, o que conseguiu com um certo
esforço, já que eram bastante duras. Pensou se deveria ou não seguir
as instruções...E se a guerreira draconiana fosse perigosa demais?
Algo precioso, contudo, ela teria a oferecer.
Com um golpe preciso de espada, portanto, arrancou o dente e o
“plantou” na terra, deixando sobre esta seu sangue ao fazer um corte
em seu braço direito, secando na seqüência o ferimento auto-
induzido com o calor de sua aura, que se concentrou na região certa,
parando o escorrimento. Ficou um pouco tonta por alguns segundos,
ajoelhando-se no chão, e ao se restabelecer, graças a força da terra
que sentiu subir por seus pés, reergueu-se, aguardando o resultado.
“Não nego que estou curiosa. O que há de vir? Será mais humano ou
mais semelhante a um dragão? Admito o medo. Irei superá-lo ao
colocar toda a atenção dentro mim, no que não foi dominado ou
preenchido.”, pensou; ao cabo de alguns segundos, um susto ao uma
mão de garras afiadas e um verde enegrecido emergir do solo e tentar
agarrar seu pé esquerdo, retrocedendo com agilidade; não muito
tempo transcorreu e a criatura emergiu por inteiro, sofrendo um
ataque imediato da bruxa, cuja espada entretanto não cortava seu
duro couro, sequer riscando-o, uma longa e grossa cauda sinuosa
atrás, que não parava de balançar, e o rosto entre o de um humano e o
de um lagarto, dentes afiados e saliva pegajosa, que grudava nos
palatos quando a abria, contendo com toda a probabilidade algum
veneno, como Miriam deduziu e por isso se desviou do cuspe
lançado em sua direção, que derreteu uma pedra ao atingi-la e secou
toda a relva; possuía longos cabelos, estranhamente lisos e femininos
ainda que sujos de terra, e media quase dois metros de altura,
lançando-se com evidente ódio, que esguichava dos olhos amarelos
de pupilas negras, contra a jovem, que deixou seu braço esquerdo em
chamas enquanto com o direito apenas ia manuseando a espada,
fazendo assim um esforço extra, já que costumava segurá-la com
ambas as mãos; quando a adversária ficou próxima, disparou o fogo
que acumulara, revelando-se não só inócuo como contra-producente:
a bizarra draconiana sugou as labaredas com suas narinas para depois
expeli-las de volta. Miriam não sofreu danos, já que sabia absorver
bem o calor, dissipando o excesso em caso de estar muito fraca, mas
aquele monstro não parou de atacar, avançando com suas garras.
Como o fogo comum ao que tudo indicava seria inútil, da mesma
maneira que a espada, que só servia para defender os ataques e a
lâmina começava a trincar, para a futura tristeza de Tobal, resolveu
usar a única carta que ainda mantinha na manga. Mesmo que fosse
perigoso e ainda não tivesse aplicado contra alguém um ataque
mágico do gênero, era sua única chance de sobrevivência. Enquanto
se concentrava, o céu se encheu de nuvens e se lembrou das
advertências de sua avó, que lhe pedira muita cautela no uso dos
elementais do relâmpago:
- Eles são diferentes das salamandras. Não são de muita brincadeira
e não admitem prepotência ou orgulho. Isso porque são bastante
orgulhosos; como poderiam respeitar uma maga ou bruxa que fosse
como eles? É preciso ser sempre superior às forças que se quer
dominar, caso contrário o domínio nunca será obtido, pois faltará luz
em seu interior, e não haverá por isso respeito da parte dos seres
espirituais. Os elementais evoluem moralmente de acordo com a
postura da iniciada, não é por acaso que os mais elevados e
poderosos não servem as frívolas; por isso, muita atenção à sua
atitude interior quando for trabalhar com os espíritos do raio; vigie-
se; uma vela não é suficiente; a luminosidade e o calor são
tremendos. Cuide de estar tranqüila, porque se estiver tensa a carga
irá apagar seu sistema nervoso ou simplesmente não fluirá, tornando
seu esforço mental inútil e sua morte inevitável caso seja seu último
recurso em um confronto contra uma entidade maligna. Eu mesma
usei poucas vezes...Conto nos dedos de uma mão. Thor, como diziam
os homens do norte, era capaz de abater gigantes.- Em treinamentos,
Agar se habituara a ficar impressionada com sua neta, que com êxito
já canalizara faíscas de eletricidade por seus braços, mantendo seus
olhos bem abertos enquanto executava movimentos ágeis e precisos,
seguindo bem concentrada e evitando dessa forma que raios que às
vezes caíam por perto a atingissem e amplificassem em demasia a
descarga em seu corpo, algo comum nas aprendizes que ainda não
possuíam controle sobre seu poder. Poucas bruxas flamíferas tinham
coragem suficiente para experimentar os elementais elétricos em
vista de acidentes ocorridos no passado, com as que não morreram ao
perderem o domínio sobre a energia que tentaram conduzir ficando
loucas, dementes ou paralíticas, o que entre as desgraças era
considerada por Miriam a menor, afinal uma bruxa poderia continuar
sendo útil e perigosa mesmo sem se mexer. Entrementes, aquela
jovem adorava se movimentar e foi com júbilo que recebeu dos céus
um primeiro relâmpago, largando sua espada e deixando que
passasse por seus ombros, atrás dos quais se postara um ente,
invisível para os que não possuíssem uma espiritualidade
desenvolvida, de tórax poderoso, sem pernas, somente um
rodamoinho de raios abaixo, azul, os olhos em cintilação dourada e a
expressão indefinida, asas elétricas em constante convulsão; ao
estender os braços fortes, liberou o estrondo do trovão e sua presença
fez a draconiana recuar, Miriam colocando a mente em silêncio e
deixando a descarga sair por seu indicador direito, atingindo o peito
da oponente, que urrou pelos segundos que durou a agonia; contudo,
seguiu de pé e manifestou um olhar de fúria absoluta antes de fechar
as pálpebras e, tendo perdido as energias para o alívio da humana,
despencar ao passo que as nuvens se retiravam, o céu tornava a ficar
limpo, os animais podiam sair da apreensão e o elemental regressava
para o seu reino oculto. “Do couro dela uma proteção; dos ossos uma
nova espada...”, chegou a resposta; não soube dizer a si mesma, presa
à dúvida, se fora uma dedução própria ou se o espírito do dragão se
insinuara em seus ouvidos, aproveitando-se de seu cansaço não só
para instruir como para provocar. “Obrigada...”, sentiu-se impelida a
agradecer; estivesse ele ali ou não, isso não importava.
Seu pai a princípio ficou triste com o estado em que ficara a espada,
feita com tanta dedicação e carinho, mas ao escutar toda a história da
aventura da filha concluiu que não seria ruim trabalhar naquele novo
“material”; foram juntos estudá-lo de perto e recolhê-lo, o mesmo
com os restos do benfeitor, acompanhados também pela curiosa
Raquel, sendo que haveria um revezamento; cada vez que dois
fossem, um ficaria junto aos restos do dragão montando guarda
contra curiosos e animais carniceiros:
- Às vezes é bom experimentar algumas novidades. Nunca trabalhei
com os ossos e o couro de um dragão. Aliás, nem mesmo achava que
existissem!- Comentou Tobal, com a curiosidade e a promessa
interna de contínua superação constituindo uma compensação pelas
avarias ao presente feito. Estava acima disso: era um homem de
visão, vendo nos desastres anunciados possibilidades de
reconstrução, das cinzas e fezes à transmutação, como já lera em
certos tratados alquímicos, que não compreendera, mas que por
algum motivo tinham lhe parecido belos.
- Ausência de evidência não é evidência de ausência. E agora
esfregam a lenda na sua cara...- Raquel zombou.- Imagine só...Daqui
a alguns anos, poderão dizer que Jerusalém nunca existiu, que não
passa de um mito! Isso até algum camponês descuidado cair num
buraco e encontrar ruínas do Santo Sepulcro, ou bater com uma
enxada na terra e achar os Dez Mandamentos!
- Ser cético e pessimista, ao contrário de vocês, tem seus benefícios.
Ao não esperar nada de bom da vida, quando as coisas boas vêm são
muito mais curtidas, apreciadas e valorizadas. Diferente do otimista,
que se decepciona o tempo todo ou acaba não dando valor ao que
tem, porque acha que sempre mais vai vir, até o dia em que a
decepção chega de qualquer jeito. Mas tenho um defeito, moça: não
sou totalmente pessimista e nem cético; uma maldita ponta de
esperança ficou na minha caixa de Pandora. É sempre assim!
- Em todo caso, não se tratam dos ossos e couro do dragão e sim da
criatura que nasceu do dente dele, que foi quem deixou a minha
espada no estado que o senhor viu.- Disse Miriam.
- Foi brigar com cabeça dura, deu nisso. Não devia ter batido tão
forte.
- Tanto faz se dragão, dragãozinho ou cabeça de pedra; vamos
começar a fazer o trabalho ou a gente não termina isso hoje.- Raquel
se adiantou.
- Não pedi pra você vir. Foi voluntária.
- O senhor não provoca...Vim pela Miriam! Por marmanjo nenhum
eu viria mesmo...
- Ah...- A jovem bruxa do fogo, bastante cansada, teve vontade de
ser grosseira naquela hora, exausta como estava, mas se segurou. Foi
uma madrugada de trabalho e suor, aos poucos os amigos de seu pai
vindo para ajudá-los a levar os restos do dragão e da draconiana,
logo banhados por Raquel para deter a putrefação. Aquelas poções
não eram feitas apenas de fluidos vegetais como sofriam a influência
da intenção mágica da bruxa, que coordenava os pequenos
elementais do líquido para que se embrenhassem nos pedaços da
matéria e alterassem suas propriedades mais ocultas e misteriosas,
permanecendo ali e nutrindo as células com carinho o bastante para
mantê-las estáveis. Não podia ver os detalhes microscópicos do
processo; compreendia-os de outra maneira, sem teorias e conceitos,
baseando seu estudo em uma intuição profunda.
Já a filha de Rebeca e Tobal, quando de madrugada pôde enfim
deitar em sua cama, por incrível que pudesse parecer não conseguia
dormir, virando de um lado para o outro, o que não se devia ao calor
que sentia e que não sabia com precisão se era interno ou externo; a
“culpa” era das recordações e pensamentos, que não a deixavam em
paz por um segundo, desde o primeiro avistamento do dragão ao
transporte da última parte da draconiana, passando pela batalha com
esta, pelo medo que sentira e pela canalização do relâmpago. Podia
ter morrido naquele momento...E nisso ficou muito feliz e satisfeita
consigo mesma, pois conseguira controlar em uma situação de
perigo, não em um mero treinamento, uma força por muitos
considerada incontrolável. Chegou assim à conclusão que podia fazer
mais...
Na manhã seguinte, enquanto seu pai começava a trabalhar em uma
nova espada com base nos ossos da criatura e o armoreiro vizinho em
uma proteção, foi sozinha para uma colina afastada treinar seu
domínio sobre os raios; novamente os céus escureceram, porém foi
interrompida:
- Não se force. Não acha que está se arriscando demais? Um
relâmpago por semana é uma demonstração de coragem. Mais de um
se torna tolice, temeridade, vaidade; e vai além dos limites que o
corpo humano pode suportar.- Era a velha Agar.
- O meu pai contou à senhora?
- Não costumo conversar muito com homens. Foi a Raquel. Como a
conheço, imaginei que tentaria repetir a experiência.
- Não é por vaidade, vovó. É que ontem, quando lutei contra aquele
monstro, fiquei realmente com medo de morrer. Me vi sem
alternativas vendo que nem o fogo e nem a espada funcionavam. E se
algum dia encontrar outro inimigo, um pior, que resista a um
relâmpago? A senhora não imagina como fiquei quando achei que ela
fosse resistir...Quando olhou pra mim cheia de ira, e se munindo
dessa fúria pra continuar de pé. Eu não estava em condições de
canalizar outro relâmpago...
- E nunca vai estar. Nunca ouvi falar de ninguém que tenha usado
dois relâmpagos em batalha.
- Isso a senhora nunca havia me dito. Só deixava claro que dominar
os raios é difícil, nunca mencionando nada a respeito da quantidade
de vezes que seria possível usar a técnica.
- Às vezes omito certas coisas. Admito que a subestimei outra
vez...Achei que nunca tentaria um segundo raio porque não
conseguiria nem um primeiro. Mas a sua mente é mesmo forte e
obstinada...Você me dá raiva, menina. Tenho que ser sincera.
- Desde a iniciação, a senhora não acha que devia ter aprendido a me
conhecer?
- Claro. Mas eu continuei resistente, talvez por um certo orgulho,
afinal você está prestes a me superar, e com tão pouca idade. Como
disse, tenho que ser sincera; me forçar a ser sincera.- Pausou,
retomando a fala só depois de alguns segundos:- Nesse caso, fique
sabendo que existiram sim as que tentaram repetir a técnica de
canalização dos relâmpagos em uma única batalha, só que não
conseguiram vencer.
- Porque o inimigo resistiu?
- Porque elas não resistiram ao segundo ou terceiro raio, as
pouquíssimas que chegaram ao terceiro. Não se faça de tonta, coisa
que nunca foi.
- Mas por que tantos raios contra um único inimigo? Então eu estava
certa ao temer seres piores do que a draconiana.
- Há demônios que riscariam suas entranhas para traçar com toda
calma e firmeza a palavra “terror”; espero que nunca encontre
nenhum deles.
- A senhora já encontrou?
- Acho que a resposta para esta pergunta é óbvia. Minha sorte é que
não estava sozinha.
- E quem a ajudou?
- Você é bem curiosa, garota. Só que não vou responder tudo com
tanta facilidade. A vida não vem assim, pronta como uma torta que
sua mãe prepara.
- Como se a minha mãe fizesse muitas tortas...
- De vez em quando sei que faz, aprendeu comigo.- A velha sorriu e
se retirou, enquanto o céu tornava a clarear.
Um pouco desanimada, Miriam voltou para casa, sem muito
entusiasmo até para visitar a forja do pai e ver como andava sua
espada. Fez isso no dia seguinte, e Tobal notou:
- O que foi menina? Parece bem mal, está com as maçãs do rosto até
desbotadas! Não gosto de te ver assim. Não vá me dizer que arrumou
algum namorado...
- É claro que não.
- Então por que está desse jeito?
- Não sei explicar...- Na noite anterior, tivera um pesadelo, onde uma
criatura amarela de garras enormes a perseguira em uma floresta
escura, e só se lembrava com certeza da cor do monstro pelo fato de
ter olhado para trás, a imagem presente não passando de uma
mancha. Acordara ofegante, com a impressão que seus pais
estivessem mortos, e correra para o quarto dos dois, vendo-os um nos
braços do outro, ressonando com a porta entreaberta, para seu alívio.-
Estou diferente desde que lutei com a “filha” do dragão.
- Viu como é diferente, como a vida muda quando se tem um filho
ou uma filha?
- Não fui eu que tive essa “filha”.
- Mas é como se tivesse tido. A nova espada e a nova proteção serão
seu bebê e um berço pra ele.- E seu pai estava certo; quando ficaram
prontas, entregues ao mesmo tempo, não pôde deixar de admirar a
magnificência da lâmina, rubra como a empunhadura que em seu
centro exibia como adorno uma imitação do antigo olho do dragão, a
guarda em forma de asas. Já o traje feito do couro da draconiana era
negro, com direito a colete, saia justa até os joelhos e botas.
Aparentemente, não protegia tanto assim; Tobal explicou:- Vai ter
que usar umas proteções metálicas pro resto, mas tudo bem; o
armoreiro me disse que o material que servia deu pra isso, o resto
amoleceu de um jeito estranho e era imanuseável, parecia que não
queria ser trabalhado. Os ossos também me deram um certo trabalho,
mas tinham bastante metal, e a lâmina não perdeu a vermelhidão em
momento nenhum desde o começo do processo.
- Ele não pode ter ficado com parte da matéria? Estranho apodrecer
assim com o trabalho da Raquel...
- Não apodreceu, amoleceu. Se quiser ir verificar, ele já me disse
que pode. Mas é perda de tempo, eu nem iria. È um cara confiável,
trabalho com ele há anos, e um tanto covarde. Não teria coragem de
me passar a perna pra depois ter as costelas quebradas!- Miriam
deixou de lado as brincadeiras e explicações de seu pai e se pôs a
refletir; recantos confusos em sua alma ardiam.
Alguns meses se passaram, o traje e a espada deixados de lado em
seu quarto, e sua dedicação se centraria em aprimorar seus dons com
o fogo, até que um jovem aprendiz de seu pai começou a freqüentar
sua casa, a convite de Tobal, certa vez entrando por curiosidade nos
aposentos da filha de seu mestre e se deparando com aquelas duas
maravilhas, que de imediato o deixaram extasiado: então eram
aquelas a veste e a lâmina forjadas a partir da matéria de um dragão,
das quais o cuteleiro falara fugazmente, sem se preocupar se a
curiosidade aguçada do rapaz poderia produzir inconvenientes!
Chegou a se aproximar e a tocar o material.
- Olá...- Levou um susto quando ouviu a voz de Miriam, no ato
assumindo a cor de um pimentão dos mais rubros e se virando para
fitar a moça, da qual sentia um certo medo por ser uma adepta da
magia e que ao mesmo tempo exercia sobre ele uma certa fascinação,
considerando-a bastante atraente e bonita, sem ousar uma
aproximação por respeito ao seu instrutor.
- Oi...Desculpa...Não queria entrar no seu quarto...Quer dizer...Eu
entrei...Mas era pra ver a espada e a roupa...O seu pai me
falou...Sobre o dragão...- Foi se engasgando e se enrolando para
tentar se explicar, tentando mostrar o maior respeito possível.- Eu já
estou indo, tá?
- Ainda não usei esse traje e essa espada como deveria. Acho que
estou aguardando a ocasião apropriada.- Ela surpreendeu Zaqueu,
assim se chamava aquele jovem de cabelos cor de palha, olhos baços,
ombros largos e maçãs do rosto coradas, alto e robusto; ao invés de
se retirar, não saiu de perto.- O meu pai às vezes fica um pouco
bravo, diz que são um filho e uma filha que venho renegando. Mas
talvez não os esteja usando por medo. Porque sei que quando tiver
que utilizá-los pra valer, será em uma hora em que a morte estiver
próxima de novo, como a senti no confronto com a guerreira
draconiana. E foi uma sensação terrível.
- O seu pai...Até comentou comigo. Disse...- Tomou coragem para
falar.- Que você era bem mais viva há uns meses atrás, pra eu não
estranhar...Que anda muito apática.
- Sei disso. Mas também não é só pelo que ele pensa. Ando tendo
pesadelos e pressentimentos ruins. Isso tem me incomodado.
- Por que está dizendo isso pra mim? Nunca nem conversamos
direito...
- Mas acha que não o venho observando? O meu pai tem que
escolher um bom aprendiz, um sucessor que seja digno da arte que
ele exerce. Não iria permitir que alguém de má-índole se apoderasse
do que ele sabe, ou que fosse transmitido para alguém fraco, sem
personalidade. Um cuteleiro precisa ter força interior, ou suas
espadas serão fracas. Apesar de nunca ter exercido essa profissão,
sou boa observadora e aprendi muitas coisas, se não da parte de
técnica ao menos no que diz respeito à alma incandescente da forja e
ao calor que molda o aço.
- Não confia na capacidade do seu pai de escolher?
- Uma pessoa nunca será o bastante. Por isso meu intento está em
auxiliá-lo a fazer as escolhas certas. E você, do meu ponto de vista,
foi uma boa escolha.
- Obrigado...Mas por que acha isso?
- Percebi que tem uma marca pessoal, e mesmo não sendo ainda
firme é resistente o bastante pra suportar os golpes do martelo da
vida, que vão moldando o metal do nosso caráter. Um mero covarde
também não teria entrado no meu quarto. E alguém com más
intenções teria que sair correndo daqui e se jogar no primeiro lago
que visse; as salamandras não toleram certas atitudes.
- Mas eu senti um pouco de medo...E quando você apareceu,
reconheço que me assustei.- Refletiu a respeito, vindo-lhe à mente a
imagem de seu corpo sendo atacado por chamas violentas se tivesse
vindo com a postura interior errada.
- Sei disso. Como sei que ser corajoso não significa não sentir medo.
A coragem reside na superação dos temores.
- Sabe de uma coisa? Você também precisa enfrentar melhor os seus
medos, que devem estar gerando esses pesadelos e maus
pressentimentos.- Tomou coragem para expor.
- E tem alguma sugestão sobre como eu deva fazer isso?
- Precisa relaxar um pouco. E não há melhor meio pra relaxar do que
certos exercícios. Sem pressão, se cobrança, pelo prazer de se
exercitar. De quebra, você inaugura a sua espada e o seu traje. Eu
também sei lutar...
- Está sugerindo para treinarmos juntos?
- O que acha? Seria uma boa...- Parou diante do ar reflexivo dela,
que desviou o olhar.- Ou não?
- Vou pensar. Mais tarde dou uma resposta...- E sem encará-lo
novamente virou as costas e saiu de seu próprio quarto; Zaqueu ficou
pensativo.
Alguns dias depois, o rapaz encerrara por aquela tarde seu
aprendizado na oficina, indo treinar sozinho no bosque com a sua
espada e seu corpo; alternava golpes e visualizações de técnicas com
abdominais e flexões de braço. De súbito, no auge do suadouro,
percebeu que estava sendo observado...E já sabia quem estava por
perto:
- Oi, Miriam!- Esboçou um sorriso, falando para o ar, sem saber
onde precisamente ela se achava; passaram-se alguns segundos e
apareceu bem à sua frente, já com a veste e a espada draconianas;
inspirou fundo, um calor forte subindo por seu corpo. A jovem bruxa
se aproximou devagar, os cabelos presos, com uma postura de rainha
amazona.- Fico feliz que tenha vindo.
- Agradeço a sua paciência. Muitas das minhas colegas não
entendem como o meu elemento possa ser o fogo e eu não seja nada
impulsiva. Esquecem-se que o fogo também é o elemento que
origina a luz, ou seja, rege o discernimento e o raciocínio.
- Não acho você fria como dizem por aí. Pelo contrário: o meu corpo
ferve quando você chega perto de mim...- Ficou meio sem jeito
quando ela continuou quieta e séria, fitando-o.- Eh...Sem ofensas,
certo? Você me entendeu.
- Entendi sim...- Pela primeira vez sorriu para ele, um sorriso
discreto, com os cantos dos lábios; ainda assim, foi uma vitória
tremenda para Zaqueu, que escancarou sua felicidade antes de
começarem a treinar. Com o transcorrer dos dias, a lâmina da sua
espada teve que voltar à forja para reparos, enquanto a dela
permanecia intacta, e mais: apresentava um brilho maior e sua
capacidade de corte se incrementara, retalhando rochas com
facilidade.
- É impressionante...A cada treino, a sua espada fica melhor. É como
a nossa musculatura, que depende do exercício. Em vez de se
desgastar, a lâmina draconiana se aprimora. Deve ser o melhor
material do universo!- Observou admirado em um dia em que se
sentaram, ao final de mais uma sessão, de frente para um córrego de
águas esverdeadas, olhando com atenção para os detalhes da arma,
que Miriam lhe permitira observar e tocar.
- Se o melhor do universo, não sei. Mas sem dúvida o melhor que
conhecemos.
- Agora o traje...Você tem algo a me dizer sobre ele?
- Não há dúvidas que protege bem de golpes. Mas as maiores
virtudes dele não se relacionam a ataques físicos. Andei exercitando
meu domínio sobre o fogo vestida com ele e o que percebi é que
parece que as chamas ficam mais fortes, mais vorazes, que ganham
um combustível a mais. Também, escondida da minha avó, voltei a
treinar com relâmpagos. E fiquei exausta...Mas consegui soltar dois
raios de uma só vez em um dia.
- Meu Deus, Miriam...Não acredito que você fez isso...
- Vai me dar uma bronca e contar pra minha avó?
- De jeito nenhum! Você tinha comentado uma vez sobre a
dificuldade desse tipo de magia...E se você confiou em mim, nunca
trairia a sua confiança, de jeito nenhum!
- E consegui sem alterar a temperatura à minha volta, sem mudar o
clima, sem interferir na natureza mais do que o necessário. O
relâmpago sobe pelos meus pés e simplesmente se solta, parece que
as botas da roupa ajudam nessa canalização. É o fogo da terra.
- Só fico um pouco preocupado. Vá com calma e cuidado. Não
quero que você se machuque.
- Claro, não sou louca. Vou devagar.
- Seu devagar eu sei como é. Nos treinos, acha que está pegando
leve e de repente dá um salto enorme e me apavora legal...Apesar de
não ser impulsiva, é fogo mesmo: é desbravadora, com muito brilho,
cheia de energia e ardendo pra inovar.
- Obrigada...- Zaqueu percebeu que ela ocultara um sorriso mais
explícito ao virar seu rosto para o outro lado, buscando também
esconder o enrubescimento.
- Eu que agradeço, Miriam...Por você ter me deixado fazer parte da
sua vida.
- Quem sou eu pra deixar ou não deixar alguma coisa na vida das
pessoas? Somos todos livres.
- Claro, livres em tudo. Os sentimentos também são livres...E sabe o
que eu sinto por você.
- Zaqueu, é melhor irmos devagar.
- Devagar por quê? Quando o sentimento vem, ele vem, não importa
se rápido ou devagar...- Quando ela tornou a fitá-lo, não demoraram
muito para aproximar os rostos; então fecharam os olhos e o primeiro
beijo veio como decorrência natural.

Em um pântano onde os sapos, insetos e outros animais morriam


devagar ou rapidamente, em conformidade às suas reservas de força
vital, alguns apodrecendo, outros sangrando com violência, havendo
os que simplesmente despencavam sem vida, ergueu-se do lodo que
ficava cada vez mais escuro uma criatura de imensa envergadura,
asas membranosas nas costas, chifres na testa, pêlos por todo o corpo
musculoso e negro, inclusive na cauda, e uma barba espessa; sua
boca, ao se escancarar de júbilo por sua libertação após séculos,
deixou pingar a saliva pegajosa em vermelho amassado; possuía
centenas de dentes compridos e pontiagudos.
- Ó, Rasheverak! Saudamos tua volta, renomado duque do Inferno!
Saudamos a ti e a teu mestre Astaroth, que também temos certeza
que em breve virá, respondendo ao nosso chamado!- Comemorou a
mulher em manto azul, seu capuz jogado para trás, revelando um
rosto jovem e ambicioso, alta e de porte altivo, os longos cabelos
pretos escorrendo por seus ombros, no entanto não chegando à
metade da perna do demônio, que possuía instigantes olhos de um
fogo devorador; e não estava sozinho: ao seu lado, ressurgiam
dezenas de outros, que também haviam sido selados ali em um
passado distante, suas legiões. Estavam na ilha de Magdala; como
evidenciava a cena, nem todas as magas e bruxas seguiam um
caminho reto, havendo as que iam para a marginalidade,
voluntariamente exiladas, as banidas e as que continuavam na
comunidade, dissimulando com astúcia, cumprindo os mais sinistros
rituais em busca de poder enquanto suas companheiras caíam no
sono ou estavam distraídas com afazeres domésticos ou refeições
familiares. Quem seria esta que libertara Rasheverak?
- O que você deseja de mim? Por que me libertou?- A voz do
monstro era grave e obscura, com grunhidos entremeados e
hesitações ao tentar pronunciar determinadas palavras; como se via,
precisava recuperar sua destreza na linguagem humana.
- Porque vossa excelência é dos poucos que pode nos ajudar a
corrigir a situação em que nossa Ordem se encontra.- A bruxa, com
seus trinta anos de idade, olhos negros e a tez morena, tinha uma voz
forte, de uma feminilidade valente.- Somos magas, bruxas e
feiticeiras poderosas. Ainda assim, temos que ficar confinadas em
uma ilha, sendo perseguidas fora dela, espremidas pela cristandade;
se continuarmos assim, cedendo às imposições dos atuais donos do
mundo, seremos em breve esmagadas. Nossas líderes, fracas, pensam
que continuaremos assim, a salvo e tranqüilas pela eternidade; não
têm visão, não raciocinam que quando nos encontrarem os cristãos
não hesitarão em nos esmagar para suprimir o último rastro de
oposição veemente que ainda enfrentam no planeta. Os mesmos
cristãos que são inimigos do príncipe Astaroth.
- Quer dizer que pretende que eu lute ao lado de vocês contra eles?
- Não é tão simples, excelência. Antes teremos que dobrar as fracas
e as conservadoras. Eu o convoquei para que demonstre a elas seu
poder, para que as humilhe e mostre o quanto são vulneráveis.
Depois, pode me fazer sua sacerdotisa...E tomaremos as ilhas cristãs.
- Acho que está cometendo um erro. Não disse que são magas
poderosas? Se é assim, representariam perigo para mim. Mas não me
parece que seja o caso, já que posso humilhá-las.
- Somos poderosas para os padrões humanos, porém não nos
comparamos ao senhor.
- Fico feliz em saber que minhas legiões poderão ter em breve novas
integrantes.
- O mundo mudou muito desde a última passagem do senhor pela
Terra. Permita-me informá-lo.
- Não será necessário. Eu saberei me informar.
- Aceita-me ao menos como sua sacerdotisa?- Mesmo aquela bruxa
sentiu um certo medo quando se viu circundada de criaturas
pegajosas, que haviam acabado de sair do pântano.
- Magos e bruxas do seu tipo são traiçoeiros. Como acha que fui
selado da última vez? Por ter confiado em um humano. Pensei que
ele me servia, mas só estava me usando. Dessa vez será diferente:
vou lutar para conquistar novas legionárias, e para o príncipe
Astaroth e nosso imperador Lúcifer. Não vou deixar que os humanos
se aproximem muito! Serão apenas minhas escravas...E vou tomar a
cristandade por mim, não por vocês.- Escancarou um sorriso de
ironia demoníaca, enquanto sua evocadora, que percebeu que não
podia mais mover os pés, já envolvida por espirais de uma massa
escura e pegajosa que iam se enrolando em suas pernas, arregalou os
olhos de pavor.- Antes mesmo que possa pensar em reverter a
conjuração, você já estará morta.
- Não, vossa excelência! Está cometendo um enorme equívoco! Eu o
iria servir lealmente!
- Conheço a lealdade humana. Mas não se frustre tanto: você irá
fazer parte das minhas legiões. Porém da mesma forma que suas
companheiras depois, como um dos meus zumbis que só querem
saber de sangue e carne fresca. Um dia todos eles foram seres
humanos.- O pentagrama de prata da corrente no pescoço da
feiticeira se rompeu; gritou e, no desespero, deu início aos berros à
exposição de uma série de fórmulas mágicas de banimento e
enclausuração, em altíssima velocidade, porém não com rapidez o
bastante para impedir que sua garganta fosse cortada e seu peito
perfurado por fios afilados que saíram das unhas do duque diabólico.
Sua cabeça permaneceu onde estava; e em breve se juntaria aos
outros ex-humanos das tropas de Rasheverak, que de humano só
tinham preservado vagamente certos traços das aparências, sem
nenhuma vontade própria, as carnes podres e os olhos esbugalhados,
as roupas em trapos e os dentes de hienas. Mortos-vivos da pior
espécie, seus corpos repletos de chagas, miasmas e feridas
pustulentas.
De onde estava, meditando entre as árvores para comungar com a
natureza, Agar sentiu uma mudança repentina na energia à sua volta
e recebeu um golpe no estômago; em sua visão espiritual, as folhas
das plantas ficavam secas e marrons, os troncos se descascavam
sozinhos, e relva era rasgada por ventos necrófilos e no físico os
animais procuravam se esconder. Antes sentada no solo para sentir a
vibração da terra, levantou-se com prontidão e, contando com a
resposta perfeita de seus músculos, apesar da idade, lançou seu
chamado telepático a Rebeca: “Junte todas nós, e os homens
também. Algo pior do que jamais enfrentamos está se
aproximando.”, a mãe de Miriam, que estava comendo com sua
família àquela hora, recebeu as palavras junto com um choque
mental; seu crânio ardeu e levou as mãos ao rosto, os olhos
queimando.
- Mãe, o que você tem?- Miriam, que estava do outro lado da mesa,
ao lado de Zaqueu, questionou; não demorou para sentir a presença
mental da avó e ouvir a advertência mental, silenciando portanto
antes que os outros dois.
- Ei, meu amor, o que foi?!- Inquiriu Tobal, ao lado da esposa,
amparando-lhe a cabeça em seus braços.- Mesmo que seja coisa de
bruxa, estou aqui pra te ajudar!
- Senhora Rebeca, quer um pouco de água?- Gentil, o namorado da
filha ofereceu.
- A minha mãe que falou comigo agora...Mentalmente. Estamos sob
ataque...- A experiente bruxa conseguiu enfim falar, levando o
aprendiz de cuteleiro a erguer as sobrancelhas, seu marido a liberar
alguns resmungos ininteligíveis e sua filha a ficar de pé.
- Não percebi de imediato, mas agora compreendi.- Miriam se
manifestou.- E vamos precisar da colaboração de todos.- Olhou para
o pai e para Zaqueu.
- Podem contar comigo pro que for!!- A manifestação corajosa do
rapaz levou a jovem a sorrir.
- Qual a natureza desse inimigo? Será um dragão que veio atrás do
outro, achando que a Miriam fez alguma coisa pro primeiro? Ou são
cristãos?- Inquiriu Tobal.
- Nenhuma das duas coisas.- Rebeca respondeu.- Pelo que consegui
perceber, é algo muito pior...- Deixaram de lado o pernil, o espinafre,
as maçãs e o vinho e partiram ao encontro do que deveria ser, o
ferreiro tirando a poeira de sua velha armadura de coloração brônzea
e sua filha, como era de se esperar, em traje e espada draconianos,
assumindo a lideranças das bruxas jovens.
Agar já retornara e a organização das “tropas” estava pronta quando
a horda de mortos-vivos despontou e, guiando-a, disforme porém
ainda reconhecível, a feiticeira que evocara Rasheverak:
- É Mariela.- A velha bruxa confirmou.
- No que a transformaram??- Indagou Rebeca; as duas encabeçavam
o grupo de bruxas e magas experientes. Ficou abismada com o rosto
macilento e os olhos pustulentos da antiga companheira.
- Talvez a pergunta certa seria “no que ela se transformou?”- A avó
de Miriam nutria sérias desconfianças a respeito de Mariela havia um
bom tempo, o que agora se evidenciava: “Sempre foi muito
ambiciosa. Queria poder por poder, conhecimento pelo
conhecimento, sem se importar com o aprimoramento moral. Deve
ter tentado lidar com necromancia e esse foi o resultado.”, os zumbis
avançavam também com base no olfato, rastreando as bruxas pelo
cheiro que sua condutora ainda emanava; davam a impressão de ser
um bando de lobos descerebrados e famintos.
- Que bichos mais feios...E fedem mais do que o sovaco do seu pai
depois que ele fica horas e horas martelando! Dá pra sentir daqui...-
Raquel tampou o nariz e balançou a mão à frente do rosto.
- Não é hora pra brincar. Nunca lidamos antes com mortos-vivos. A
nossa vontade de viver terá que ser redobrada, já que dizem que
lutando contra seres ressuscitados por necromantes podemos ser
contaminadas e nos tornarmos como eles se formos mordidas. E um
pouco de frieza não fará falta...- Pronunciou-se Miriam.
- A esquentadinha falando em frieza. Mas será que precisava reunir
todo mundo só pra isso?
- Olha em quantos eles são...- Interveio outra jovem.
- Mesmo assim. A Rebeca e a Agar sozinhas acho que dariam conta.
- Não. A minha mãe e a minha avó estão agindo bem. Em quanto
mais formos, menos provável que alguma ou algum de nós seja
mordido. Não vamos dar a eles a mínima chance.- Replicou Miriam.
- Algum problema, Gabriela? Não gosto desse seu silêncio.
- Ah...- Só escutaram a companheira expirar pela boca.
- Ei, garota?! O que foi?? O que deu em você que nem fala direito??
- Pela Deusa...Ela está muito quente e suando...- Outra moça notou.
- Gabriela, o que há?- Miriam se aproximou.
- Parece que ela pegou uma febre forte...
- Quem me dera fosse só febre...- Gabriela abriu um sorriso irônico.
- Me diga...O que está acontecendo?- Perguntou a jovem líder.
- Me surpreende que você não tenha percebido. Fique mais atenta,
afinal você que está no comando. Não sente o que está por trás
desses zumbis? Parece que nem a sua avó sentiu...Só que de alguma
forma inconsciente ela se preveniu.
- Ao que está se referindo? Fale com clareza.
- Vocês logo vão ver...- E não demorou para surgirem atrás dos
zumbis dezenas de demônios, com um, o mais alto, em destaque ao
centro de todos, funcionando feito um sol negro, que absorvia toda a
luz ao invés de emaná-la: Rasheverak estava pronto para somar mais
almas às suas forças.
- O que é aquilo?...- Inquiriu um homem ao lado de Zaqueu e Tobal.
- Seja lá o que for, vamos acabar com ele!- Bradou o valente
ferreiro, com dificuldades para não demonstrar o tremor ao segurar
sua espada; olhou para o aprendiz, que, em comparação com o
mestre, parecia mais tranqüilo. Conviver com Miriam o fizera bem
mais seguro do que o rapaz era até algum tempo antes.
Os zumbis tinham que ser queimados o mais cedo possível; por isso
as bruxas do fogo, Miriam inclusive, lançaram suas chamas em
direção aos mortos-vivos. Contudo, não seria assim tão fácil: havia
entre estes ex-bruxos e ex-bruxas, que embora despidos de raciocínio
e libre-arbítrio conservavam o aprendizado mágico como pura
intuição, desviando as labaredas dos ignorantes corpos de guerreiros,
que partiram em fúria na direção dos homens, rasgando algumas
armaduras com as mãos nuas, sua força física centuplicada em
relação a seres humanos normais, e arrancando braços e cabeças
como quem quebra bonecos; os demônios, entre voadores e
rastejantes, riram e caíram sobre as mulheres, Rasheverak lançando
seu olhar diretamente contra a que lhe parecera a mais forte: Agar.
“Não pense que vai me dobrar com facilidade. Os seus dias estão
contados, criatura dos abismos.”, a velha o desafiou altivamente e
um passou a pressionar a mente do outro, imóveis na aparência, mas
quando alguém tentava tocá-lo ou algum demônio ou zumbi se
aproximar dela, acabavam queimados; preocupada com o marido
mais do que com a mãe, Rebeca direcionou sua atenção para proteger
Tobal e amplificou a força dos homens, com o auxílio de um grupo
de magas e bruxas, ao imantar suas armas e armaduras com o poder
dos elementos, para que assim resistissem mais aos golpes dos
zumbis; os que haviam caído vítimas dos mortos-vivos, entrementes,
se voltaram contra seus antigos companheiros, “revivendo”, seus
membros retornando aos seus corpos, devido à intenção de
Rasheverak, que conseguia fazer isso ao mesmo tempo que lidava
com Agar.
- Por que não conseguimos acertar essa desgraçada?? Por quê?!-
Bradou um demônio alado armado com uma maça; e outro maciço,
que parecia feito de aço rubro, sofria com a mesma falta de
resultados: suas armas, garras e dentes podiam até passar perto de
Gabriela, mas não a atingiam; de repente, lâminas de vento se
manifestavam e cortavam em pedaços as criaturas hostis.
Raquel manipulava a água à sua volta, inclusive dentro dos corpos
de diversos demônios, muitos toscos para o nível que ela alcançara,
sem forças mentais e espirituais suficientes para resistir, acabando
com o sangue congelado ou o perdendo-o pelos poros. Esse mesmo
sangue, uma vez fora, era transmutado pela bruxa e servia para
formar “chicotes” líquidos que afora fustigar podiam adquirir
grossura e sufocar os inimigos ao envolverem suas cabeças.
Entretanto, de nada teria servido tanta destreza se tivesse sido
mordida pelo zumbi que a atacou pelas costas, incinerado pelas
chamas de Miriam.
- Poder não é tudo. Preste atenção até no que pode estar se
escondendo atrás da sua sombra.- Advertiu a amiga, que, aliviada
depois do susto de ver e sentir o fogo queimando atrás de si, se
limitou a concordar com um aceno de cabeça, sem rir ou sorrir como
de costume.
“Onde será que ela está?”, Zaqueu se questionou enquanto
combatia; queria lutar ao lado da namorada, porém fileiras de
mortos-vivos se interpunham no caminho; e, pior do que isso, os
zumbis com conhecimentos de magia principiaram a conjurar
elementais, retorcidos, disformes, desorientados e mal-tratados,
ainda assim seres de natureza, tendo início terremotos, incêndios,
vendavais e uma chuva forte: gnomos sadios entraram em conflito
com outros de barbas sujas e pobres, de poucos fios, que porém
continuavam sendo fortes, tenazes e investiam às cegas, da mesma
forma que seus evocadores; salamandras descontroladas rodopiavam
e brasas caíam nos tetos das casas; quando encobertas pelas serpentes
de fogo chamadas pelas bruxas de Magdala, tiveram início diversas
batalhas de fogo contra fogo, rodas incandescentes que abrangiam
umas às outras girando em conflito; quando os silfos se chocaram,
pequenos tufões derrubaram árvores e moradias; e as ondinas da ilha
não toleravam as elementais sujas do astral inferior que estavam
invadindo suas águas.
- Vamos precisar de bem mais pra vencer.- Lamentou Rebeca,
demonstrando um certo abatimento; Miriam, por sua vez, se
entregara literalmente ao calor da batalha, prensada por três
pequenos demônios, bastante ágeis. Todavia foi capaz de perceber a
energia estranha de uma bela garota de cabelos encaracolados que
viu de olhos fechados, com a qual ficou bastante preocupada, pois
podia estar sendo enfeitiçada pelas feiticeiras-zumbis ou desistira de
viver, cerrando a visão ao mundo; mas quando levantou as pálpebras,
esta que pela idade ainda devia ser uma aprendiz e exibia um sorriso
ausente no rosto, despontaram do solo peculiares plantas espinhosas,
que a protegeram como muros vegetais, demônios e zumbis que
tentavam penetrar por ele despencando inertes, vítimas de algum
veneno. Insetos e pássaros também se reuniram ao seu redor e
passaram a atacar os que a ameaçavam; não podia ser uma
coincidência.
“O que você quer de nós? Como está vendo, os seus esforços estão
sendo inúteis. O seu exército está diminuindo. Logo terá que bater
em retirada...”, Agar provocou o demônio. “Não preciso dar
satisfações a uma humana. Não demorarão a ser minhas escravas,
queiram ou não. Acham mesmo que me preocupo com as aberrações
que estão lutando? São descartáveis. Já que vocês estão se mostrando
superiores, será um imenso prazer e não só uma obrigação renovar
uma tropa tão defasada...”, a despeito de suas palavras e de sua
altivez, a velha bruxa já não agüentava e não pôde mais deter as
linhas afiladas que saíram das unhas das mãos do inimigo e
perfuraram seu corpo; em pouco tempo ela seria sua
marionete...Literalmente. Eram fios pretos, e com estes cravados em
sua carne desgastada Rasheverak a puxou para perto de si.
- Mãe!- Rebeca e Miriam viram e intervieram, porém outros fios
partiram do centro do corpo do monstro e, enquanto a neta os cortou
com sua espada e a avó tivera força espiritual suficiente para desviar
os que a tinham atingido de seus pontos vitais, a mãe não conseguiu
fazer nada e teve cérebro e coração atravessados.
Tobal, ao ver sua esposa cair, tentou se desbaratar em um segundo
dos zumbis que ainda estavam à sua frente para socorrê-la; a
precipitação custou caro:
- Cuidado, senhor Tobal!- Zaqueu tentou deter o ímpeto do instrutor,
que até então estivera lutando ao seu lado com cuidado e esquivas e
golpes calculados e precisos; foi impossível, o ferreiro sendo
incendiado pelas labaredas convocadas pela última feiticeira morta-
viva que restava, o metal de sua armadura derretendo sobre sua
própria carne; quando Raquel, sem segurar as lágrimas por nutrir
uma grande afeição pelo pai de sua melhor amiga, usou uma lâmina
d'água para arrancar a cabeça da bruxa-zumbi, já era tarde demais.
Miriam ainda assim continuou para salvar ao menos sua avó, suas
pernas não mais respondendo tão bem à sua vontade como momentos
antes, queimando em raiva e ímpeto, e Rasheverak não conseguiu vê-
la quando cortou os fios da “marionete” diabólica. Instantes depois, o
demônio sem entender bem o que acontecera, a jovem surgiu à sua
frente e, surpreso com aquela velocidade, não conseguiu se desviar
do golpe da espada incandescente bem em seu joelho direito.
- Vamos ajudar a Miriam!- Raquel bradou, só que além dela apenas
Gabriela, Zaqueu e a garota das plantas e dos bichos, que ainda não
conheciam, responderam ao chamado; a filha de Rebeca e Tobal
estava fazendo uso de todos os artifícios mágicos possíveis,
empregando os silfos para aumentarem a sua velocidade e os
elementais da terra para que lhe dessem mais força física.
“Definitivamente, você não está só acima da média...Irá se tornar
uma maga capaz de superar até mesmo a excelência. Primeiro
dominando os elementos...E depois os transcenderá em muito,
alcançando algum dia a perfeição na magia. Estou muito orgulhosa
de você e por isso imploro que não morra, minha querida! Não
morra, por favor. Não só por nós como por você mesma.”, Agar não
tinha mais energias para se concentrar e enviar qualquer mensagem
telepática à neta; fazia sua prece dentro de si mesma, na vã esperança
que de alguma forma chegasse à preciosa jovem. “Se não houver
alternativa, nos deixe aqui. Mas não morra!”
Miriam nunca abandonaria seus entes queridos; e com a ajuda dos
espíritos do ar começou a levitar e atingiu altura suficiente para
atravessar um dos olhos de Rasheverak, que urrou não só pela dor da
perfuração como pela alta temperatura.
- Sua puta maldita! Como pode ser tão rápida??- Esbravejou e
liberou diversas linhas afiadas de seu corpo todo; dessa vez a neta de
Agar contou com a ajuda de suas companheiras, Gabriela desviando
boa parte para que se cravassem na terra, Raquel congelando outras e
a garota fazendo crescer rochas e plantas que as receberam e
absorveram.
- Saia daqui, Zaqueu!- Ao ver seu namorado, implorou de forma
enérgica para que ele se afastasse dali; como homem que era, o rapaz
não deixou de sentir algumas feridas em seu orgulho; se não era
capaz de protegê-la, como seria digno de seu amor? Miriam não
pensava nesses termos e não se preocupava nem um pouco com os
rótulos costumeiros no relacionamento entre os sexos, mas como ele
iria compreender? Não se considerava nenhum fraco e covarde,
conquanto tivesse tremido após ser flagrado pela jovem maga, no dia
fatídico, nos aposentos dela.
“Não vou perder mais ninguém...”, decidida, Miriam se desfez dos
silfos e pousou no solo; respirou profundamente e, sem adiar mais,
afastando os pensamentos e emoções conflitantes, buscando de toda
maneira não pensar em seus pais, deixou que a força dos relâmpagos
subisse por suas pernas e, enquanto Gabriela, Raquel e a menina
distraíam Rasheverak, disparou um com cada braço, a espada em
uma mão e o dedo indicador da outra apontados na direção do
monstro, que atingido no peito teve seu coração reduzido a cinzas.
Suas companheiras não teriam suportado muito mais e suspiraram
aliviadas assim que o demônio despencou. Quando Zaqueu, ainda
um tanto magoado, se aproximou de Miriam, o que viu dessa vez,
para seu pasmo, foi uma jovem mulher fragilizada, entregue a um
choro convulsivo, engasgando com suas próprias lágrimas. Então,
pelo menos naquele momento, se deu conta do quanto suas
encucações de ego eram chauvinistas e fúteis. Abraçou e beijou o
rosto de sua amada...
- Me desculpa...- Miriam balbuciou.- Não devia ter gritado com
você daquele jeito.
- De jeito nenhum, eu que tenho que me desculpar se você achou
que me ofendeu! A situação não era pra qualquer um. Se você berrou
comigo, é porque gosta mesmo de mim e não queria me perder.- “E
mesmo que não possa protegê-la lutando, posso proteger de outras
formas...”, chegou à conclusão ao cingi-la firme e carinhosamente
em seus braços.
- Não consegui salvar a minha mãe...E nem o meu pai...- Gabriela
chegou mais perto e ficou boquiaberta; nunca vira sua amiga
chorando daquela forma. As emoções antes restritas estavam
eclodindo juntas de uma só vez. Mesmo que jamais a tivesse visto
daquele jeito, compreendeu bem.
- Não fale besteiras. Você não tinha a obrigação de salvar todos
sozinha. Eles também eram fortes e caíram de forma nobre, lutando
até o fim. Não precisavam de proteção...Numa guerra sempre há
mortes.
- Mas que guerra foi essa, sem nenhum motivo??
- Os motivos são sempre da pior espécie e não importam agora. Mas
olhe ao seu redor: o que importa é que você salvou muitas outras
vidas.
- Se não fosse pelas outras, eu também não teria conseguido.
- Mas era a única capaz de causar algum dano real nele. Lembre-se
que nem a sua avó pôde.
- Deixa de ser chorona, menina...- Ofegante, tentando disfarçar seu
cansaço, Raquel se aproximou, junto com as outras bruxas, magas e
homens; de alguma forma todos estavam agradecidos, mesmo as que
já tinham nutrido certa inveja da neta de Agar, que por sua vez estava
sendo socorrida por um grupo de mulheres e recebendo os primeiros
cuidados, assim como os demais feridos. Dezenas de corpos
apodreciam ao ar (os dos zumbis duplamente) e seria preciso
reconstruir todo o local; trabalho não faltaria.- Acha que nunca mais
vai poder se comunicar com eles? Não se esqueça de quem você é...-
E Miriam principiou a enxugar seu rosto.
- A magia permite que as portas entre os mundos não se fechem
jamais.- Complementou a garota de cabelos cacheados, fitada com
surpresa por Raquel, curiosidade por Gabriela e admiração pela filha
de Rebeca.
- Como você se chama?- Indagou esta última.
- Flora. E gosto de trabalhar com o elemento terra. Tinha ouvido
falar muito de você, Miriam. Estou honrada por poder conhecê-la.
Você sabia que já me compararam a você?
- É mesmo?
- Dizem que sou um prodígio, como você foi.
- Menininha modesta...- Raquel zombou.- Ops, brincadeira,
brincadeira...Não leva a sério, tá? Você é mesmo muito boa, e que
coragem pra peitar o monstro junto com a gente com tão pouca
idade...- Raquel contemporizou ao receber um olhar entristecido da
garota. “Mas que estranho...Mesmo parecendo triste, ela está
irradiando alegria e felicidade. Essa menina é mesmo diferente...”,
observou Gabriela.
- Bom, Flora...Podemos treinar juntas depois.- Miriam conseguiu
voltar a falar uma quantidade maior de palavras de uma vez,
respirando com profundidade.- Só antes quero me recuperar.
- Claro. Eu entendo. Mas mesmo sem treinar, gostaria de ser sua
amiga. Assim já posso começar a aprender.- O olhar era de decepção,
não condizendo com o júbilo interior que Gabriela percebia.
- Não fica desapontada...- Raquel interferiu.- Mas a nossa amiga vai
precisar mesmo de um bom descanso.
- Não estou desapontada. Estou muito feliz por ter ajudado tanta
gente hoje.
- Não é o que parece...
- Apesar de tanta gente ter morrido, poderia ter sido pior, por isso
não vou me entristecer. O meu rosto é que às vezes engana as
pessoas.
- Ah, tá...- “Mas que menina esquisita!”, Raquel comentou consigo
mesma.
Miriam deixou de lado Flora e suas companheiras para, sob os
olhares admirados até das bruxas mais experientes, firmar bem suas
pernas, que tinham resistido à carga de dois relâmpagos, e começar a
ajudar nos trabalhos que seriam necessários, seguida por Zaqueu.
Não via a hora de ver sua avó, porém, certa de sua sobrevivência,
antes precisava cuidar de certos deveres.

E o desejo sussurrou à alma, na forma de um sátiro escuso: “Não a


vi descer, mas agora a vejo subir, toda pomposa. Por que mente,
sendo que pertence a mim?”, ao que a alma respondeu: “Eu o vi.
Você não me viu, nem me reconheceu. Usou-me como acessório e
não percebeu com quem tratava.”; depois de dizer isso, a alma
partiu, exultante de alegria, escancarando suas asas. Dessa vez
alcançou a terceira potência, chamada ignorância, que podia ouvir
sua passagem embora não enxergasse, e questionou a alma dizendo:
“Aonde vai? Estás aprisionada à maldade. Estás aprisionada, não
julgues!”, e a alma disse: “Por que me julgou apesar de eu não tê-la
julgado? Estava aprisionada; contudo, não aprisionei. Não fui
reconhecida, enquanto o Todo está se desfazendo, tanto as coisas
terrenas como as celestiais”. Quando a alma venceu a terceira
potência, subiu e viu a quarta potência, que assumiu sete formas: a
primeira trevas; a segunda uma donzela cheia de volúpia; a terceira,
um ciclope; a quarta a comoção da morte; a quinta o reino da
carne, onde se pisava em sangue e toda a matéria era alimento; a
sexta a vã sabedoria da carne; a sétima, a sabedoria irada. As sete
potências da ira, que perguntaram à alma: “De onde vem,
devoradora de homens, ou aonde vai, conquistadora do espaço?”. A
alma respondeu da seguinte forma: “O que me subjugava foi
eliminado e o que me fazia regressar sofreu sua última e decisiva
derrota. Meu desejo foi consumido e a ignorância morreu. Num
mundo fui libertada de outro; num instante fui libertada de um tipo
celestial e também das teias do Inferno e dos grilhões do
esquecimento, que são transitórios. Daqui em diante, alcançarei em
silêncio o final propício dos tempos, e as portas do Reino irão se
abrir”.- Trecho de um manuscrito encontrado na catedral de
Florença nos tempos do secretário Cesare Cavalcanti, parte de uma
versão do apócrifo Evangelho de Maria Madalena.

A igreja acabara de fechar as portas naquele final de tarde, não


tendo mais sequer uma gota de sopa para os moradores de rua, que
ainda formavam uma fileira entre homens, mulheres, adolescentes,
velhos e crianças. Diante dos protestos que começaram a pipocar, o
presbítero reabriu os portões e se manifestou sem muita paciência:
- Não vêem que não temos mais nada?? Acabaram-se a carne de
porco, a de vaca e os legumes. Se quiserem, posso lhes servir água e
pedra, mas duvido muito que seja do agrado de vossas senhorias!- Os
tabiques pareciam ter desmoronado com a chuva forte; falara com
uma considerável ironia, aguardando a reação dos maltrapilhos com
um sorriso de escárnio. “Vamos ver se me livro dessa gentalha hoje!
O bispo insiste em alimentá-los, mas está na hora disso acabar! Que
trabalhem nos campos e saiam da cidade, que não precisa dessa ralé
parasitária. Florença é uma cidade de comerciantes e artistas, com a
missão de levar a prosperidade ao mundo, não um antro de
vagabundos; não pode degenerar como Milão, que é cheia de
mendigos...”
- Se tem água, padre, nos dê ao menos isso então.- Adiantou-se uma
idosa.- Não bebo desde ontem e estou com a garganta muito seca,
começo a me sentir mal demais!
- Se quiser, você pode entrar e tomar um pouco d'água. Porém aviso
que não temos muita. Podemos ajudar os que se acham em pior
situação. Quantos de vocês estão há muito tempo sem beber?-
Indagou, e quase todos levantaram as mãos.- Acho que terei que ser
mais específico...Quantos de vocês estão há mais de um dia inteiro
sem colocar sequer um gota de água na língua?- Indagou sem
nenhuma compaixão, com um sarcasmo carregado, olhando ao redor
com um certo descaso, quando uma mulher de marrom jogou seu
capuz para trás e se revelou, parecendo surgida do nada. O sacerdote
franziu a testa; evidente que não pertencia àqueles mortos de fome,
perfumada e atraente, o rosto e os cabelos bem-tratados e com uma
voz forte:
- Muito me surpreende que a Igreja, sendo tão rica, com todo o
fausto que temos em Roma, não possa dar um pouco d'água aos
pobres. Que eu saiba, Cristo não fazia questão de andar entre os reis
e nobres de seu tempo, preferindo pescadores. Surpreende-me que,
ao pegar um peixe, seus supostos herdeiros o queiram gordo só para
si. Se é tão difícil para um rico entrar no Reino dos Céus, então a
Igreja deve ter sido excluída Deste há muito tempo.
- Quem é você?- A mulher atraiu os olhares da multidão de
excluídos.- Acha que sabe de alguma coisa? O que conhece da
história da Igreja? Não tenho idéia do que faz, mas não me parece
que tenha anos suficientes para falar com tanta autoridade.
- E o reverendo por acaso tem cabelos brancos?- De fato, era um
rapaz alto e magro, o corte de cabelo arredondado, os fios castanhos,
os ombros estreitos e os olhos vivazes.
- Não. Porém não sou um bispo nem me jacto de ser historiador da
Igreja. Além disso, pronuncia palavras de herege...O que as mulheres
podem saber sobre o corpo de Cristo? Ele nunca teve uma mulher
entre seus apóstolos, que eram doze homens, e escolheu Pedro, um
homem, para sucedê-lo.
- E quanto à Virgem Maria, não tem nenhuma importância? Isso me
surpreende.
- A Virgem foi um caso à parte entra as descendentes da pecadora
Eva, sofrendo com as dores do parto para dar à luz o Salvador e
assim redimindo em parte o sexo feminino. Mas não se pode falar de
redenção completa, esta que só pôde ser realizada pelo Filho, que
mesmo assim nunca confiou nas mulheres. Por acaso você é uma
daquelas bruxas que alegam que existe uma “Deusa”?
- Peço perdão por me meter no meio. Mas não me parece que essa
moça seja uma bruxa. Veja que rosto ela tem...Não é disforme, muito
pelo contrário!- Interveio um mendigo de meia-idade, somente três
ou quatro dentes na boca; olhou para ela, que sorriu com ternura.
- Bruxas podem trocar de aparência. A degeneração da aparência
acompanha a decadência moral, porém há muitas que se disfarçam,
passando-se por belas donzelas, e assim inclusive seduzem os tolos,
que acreditam estar diante de “anjas”. Como se isso existisse!
- Não é minha intenção entrar em discussões sobre magia e o sexo
dos anjos. Só ressalto que as palavras dela são cristãs, de amor e
auxílio ao próximo, ao passo que o reverendo, que deveria ser um
vigário de Cristo, se nega a fazer qualquer coisa.
- Eu me nego? Mas quanta ingratidão...Se acham mesmo que ela
pode lhes dar algo, que a sigam e cobrem dela! É fácil falar, difícil é
fazer. Vejam se ela tem pão e peixes para vocês...
- Talvez seja quase tão pobre quanto nós, mas teve a coragem de
mesmo assim vir nos defender.
- Não sou tão pobre e vou ajudá-los. Mas antes gostaria de lhes
esclarecer algo a respeito das bruxas, visto que pelo que eu me
lembro em Florença todos os cidadãos são livres para professarem
suas religiões. Aqui o secretário do povo limitou os poderes da
Igreja, e não podem queimar magos e hereges nesta cidade. Ou estou
errada?- Ela questionou, silenciando a todos; de fato, os Cavalcanti
haviam recentemente oficializado a proibição de flagelações,
fogueiras, autos de fé e quaisquer tipos de perseguições em seu
território. Após muita discussão, estipulara-se o pagamento de uma
taxa mensal à Igreja, a décima parte da arrecadação dos impostos, e
esta afirmara que assim, mesmo com a presença de adoradores do
demônio, hereges e descrentes, as almas dos moradores cristãos
estariam protegidas, só não garantindo a proteção de seus corpos. A
medida não fora motivada por razões puramente altruístas: não eram
poucos os pagãos, gente que deixara de lado o cristianismo e incréus
que o secretário do povo conhecia e com os quais estabelecera
ótimas relações, entre estes alguns dos mais ricos homens de
negócios, sem falar nos banqueiros judeus, que lhe eram bastante
úteis, muito mais do que os padres, sempre tímidos no apoio político;
Cesare Cavalcanti tencionava cimentar uma base firme e eclética e
assim governar com tranqüilidade, satisfazendo todas as facções,
mesmo a Igreja, que com o dízimo tributário ficaria mansa.
- Então confirma que é uma bruxa?- O presbítero insistiu falando
baixo.
- Sou uma mulher que valoriza a vida, não sei se sou bruxa,
sacerdotisa, maga ou freira. Rótulos não importam. Existo para
comungar com Deus, qualquer que seja a forma. Ao contrário dos
padres, não preciso esperar pelo Paraíso. Consegui encontrá-lo aqui e
agora, dentro de mim. O meu nome é Miriam, e esse nome não lhe
traz nenhuma lembrança de seus estudos?
- Um nome hebreu...
- Pelo visto se esqueceu que a Virgem era judia.
- Deve ser da Ordem das bruxas de Judá...Ou de Magdala; não sei e
nem me interessa como se chamam. Corajosa ao se revelar em
público!
- Eu disse que pertenço a alguma Ordem? Os eclesiásticos, sempre
pretensiosos, gostam de fazer deduções e tiram conclusões até sobre
o que não conhecem e não vivenciaram.
- Não devo satisfações a uma bruxa. E vocês...- Voltou-se para os
moradores de rua.- É melhor que fujam, que escapem o quanto antes,
ou essa feiticeira poderá lhes causar as piores desgraças.- Aquelas
pessoas, no entanto, não se moveram; havia confusão: algumas
acreditaram no padre, mas tinham medo de serem fulminadas pela
mulher misteriosa se corressem; outras não possuíam mais nenhuma
fé no sacerdote e na Igreja e não acreditavam em bruxas,
permanecendo firmes onde estavam, à espera da caridade de uma
leiga; uma terceira categoria estava desiludida com os padres e
acreditava em bruxas, porém sem julgamentos de que todas fossem
malignas, esperando o que devia acontecer. Uma senhora ergueu um
crucifixo com as mãos trêmulas, os braços sem forças depois de dias
sem se alimentar; nada dizia porque era muda.
- Ao contrário do padre, que os expulsa, quero acolhê-los. Contudo,
não obrigarei ninguém a vir comigo. Virá quem quiser, quem confiar.
A maior evidência que não sou má é que não forço a concordância e
nem condeno as pessoas ao Inferno se não concordam comigo.
Afinal, não sou Deus nem sua representante oficial; sou humana
como vocês, vulnerável e falível em vários sentidos, e já não basta o
tanto que sofremos neste mundo? Que sentido fazem os açoites e
pancadas às almas? Os demônios já estão entre nós.
- Bruxa ou seja lá o que for, ela tem razão! Os religiosos
gananciosos são os piores pecadores que existem, pois podem ter
tudo e ainda condenam os que nada têm!- Esbravejou um dos pobres.
- Estão sendo seduzidos pela bruxa.- O padre se mostrava duro feito
uma estátua.
- Repito que não me importo se ela é bruxa ou não. Sempre pensei
que já sofremos demais nesta vida para que soframos ainda mais na
próxima. Se Deus fosse tão cruel, por que nos criaria?
- Deus, meu pai! Desde que esse Cesare Cavalcanti se tornou
secretário, só o que conta em Florença é o ouro! Ninguém mais lê o
Livro ou se recorda das vidas de Cristo e dos santos! O ouro e o
estômago, embora não só de pão e de riquezas viva o homem! Os
hereges se acumulam porque a Palavra não tem mais valor. Todos
querem, querem e querem!
- Como se o reverendo fosse tão humilde assim...
Miriam recolocou seu capuz e foi se retirando devagar, sendo
seguida pela maioria. Entre os que permaneceram onde estavam,
havia os paralisados pelo medo; medo de quem e do quê? O padre
fechou as portas com pressa e a senhora com o crucifixo, que ficara
de joelhos, de repente reuniu suas forças e conseguiu andar melhor,
indo atrás da maga: era o que Miriam se tornara, estudando nos
livros e fora deles, no plano espiritual, a respeito da natureza de
coisas superiores.
- Florença caminha para o ocaso. As bruxas se manifestam sem
nenhum recato, à luz do dia, e fazem prodígios anunciando a vinda
do Anticristo. Esta será a primeira cidade na qual ele se manifestará,
ou talvez já esteja entre nós, na figura de Cesare Cavalcanti, um
homem terrível, inescrupuloso e traiçoeiro, que não mede esforços
para ter todos aos seus pés.- Lamentou o jovem presbítero para outro
sacerdote, este sentado entre as trevas no extremo de um banco
próximo de um altar com uma imagem da Virgem em um manto
azul-escuro; sua batina, contudo, era rubra.
- Não exagere. O Cesaraccio é só um político ambicioso e
oportunista. Não se trata de nenhum monstro.- Era um padre
vermelho de aparência vaidosa, os cabelos castanhos bem cortados e
a pele perfumada.- Não duvido que, no afã de proteger até mesmo os
judeus, acabe assassinado.
- Florença é a única sede da cristandade onde esses assassinos de
Cristo ainda podem circular livremente. Os malditos Cavalcanti
tiveram o disparate de derrubar os muros do gueto!
- Deixe-os cavarem sua própria cova. O Anticristo é muito provável
que seja um fruto desses descuidos, vindo para apunhá-los pelas
costas. Vamos nos esquecer por enquanto dos hebreus e dos
Cavalcanti. Falava das bruxas...Por acaso viu uma hoje?
- Não só vi como fui humilhado e desafiado por uma diante dos
maltrapilhos, muitos dos quais ela conseguiu arrastar consigo.
Vergonhoso para um vigário de Cristo.
- Fale-me sobre ela. Se conseguiu fazer isso, cativando essa gente,
não se trata de uma bruxa qualquer. Vim até aqui por ordem de Sua
Santidade justamente para averiguar se as bruxas não estão livres
demais em Florença e se não há demônios evocados por estas para
que enviemos nossos cruzados a fim de proteger os cristãos
inocentes. Não está no acordo com o Cesaraccio a proteção dos
corpos e sim das almas de nosso rebanho, porém não podemos ficar
indiferentes. Nossa missão não se limita a tratados com governantes
e nem cede ante as leis dos homens. Se preciso, inclusive
infringiremos as leis e exterminaremos as feiticeiras se for para o
bem da população cristã.
- Sua Santidade é realmente magnânima; até em demasia, padre
Caio. Vou lhe contar os detalhes...

Em posição de oração em frente ao altar, as mãos juntas e os olhos


fechados, o padre Caio parecia isolado de tudo, abstraído em sua
comunhão com Deus. Era madrugada e todos os ofícios deviam estar
terminados, quando uma névoa avermelhada, a princípio surgindo
como uma tímida fumaça, principiou a tomar conta da igreja. O
sacerdote, com as pálpebras trancadas, parecia alheio a isso.
- Você é a bruxa que carrega o nome original da mãe do Ungido, não
é?- Inquiriu ainda sem mudar de posição, numa aparente indiferença.
- Como sabe? O pároco pode ter lhe dito algo, mas não parecia
inteligente o bastante para deduzir qualquer iniciativa minha.-
Miriam foi se materializando naquelas brumas que pouco a pouco
foram se adensando mais e mais, até lembrarem um sutil tecido
berne. Diferentemente da última vez, estava com a veste e a espada
draconianas.
- Se ele não é, eu sou. Uma bruxa de Judá não teria vindo apenas
para alimentar os famintos e dar água aos sedentos. Um padre
vermelho é mais interessante para vocês.
- Se já sabe de onde venho, também vou ser direta: vim até aqui para
saber a verdade sobre os cruzados. Há um bom tempo que
investigamos esse braço armado da Igreja, mas sem chegar a
respostas conclusivas.- Tinha em mente, entre outros, o encontro
recente de Gabriela com um cruzado etíope, considerando que ela
sentira emanar daquele guerreiro, como nos demais de sua categoria,
mas sua percepção se apurando cada vez mais, uma energia vital
similar à de Rasheverak, com o qual haviam combatido alguns anos
antes.
- E acha que vou lhe dar as respostas aos nossos segredos assim de
mão beijada? Até agora as deixamos em paz, só que podemos muito
bem, se começarem a nos perturbar demais, enviar alguns cruzados
até a ilha de Magdala e exterminá-las. Pensam que estão muito
seguras...No entanto, somos capazes de achá-las com facilidade.-
Levantou e reabriu os olhos, por fim encarando-a.
- Não creio que seja Cristo que nos denuncie.
- Até que é bem mais bonita do que eu imaginava. Com essa voz,
pensei que fosse masculinizada. Já ouvi falar que algumas de vocês
seguem a linha de Safo...
- Admiro essa poetisa e se algumas das minhas companheiras
preferem mulheres, não me importo; mas não somos todas iguais
nem tenho aversão aos homens, apenas à falsa superioridade
masculina. Somos todos seres humanos.
- Eu não sei nada sobre os cruzados...- Caio cruzou os braços; seu
rosto parecia sério, emanando discretamente a ironia contida, que
escoava pela voz.- Apenas às vezes carrego alguns vidros com o
sangue de Cristo. Sou um ignorante. Se quiser, pode me matar; afinal
suas deusas não gostam de sacrifícios humanos?
- Não estou interessada no seu sangue, muito menos em deusas
sedentas. Quero saber o que corre nas veias dos cruzados.
- Venha arrancar a minha língua então.
- Não vou fazer isso.
- Sabe o que mais lamento? Ter que ser casto pelo resto da vida.
Mas...Agora que estou me lembrando! Quem disse que preciso ser
casto se ninguém me flagrar quebrando o meu voto?- Passou a falar
de forma bem lenta e a mostrar um sorriso sarcástico.
- Deus não é onisciente? Não está nos vendo neste exato instante?
- Se o Velho é, ele anda bem descuidado, ou com outras coisas mais
importantes pra se preocupar.
- Se é assim, por que tornou sacerdote?
- É uma longa história. Veio aqui para saber sobre os cruzados ou
sobre os padres vermelhos? Ah, acho que entendi a sua jogada...É
muito esperta! Veja bem, o que acha de um trato? Se eu lhe der as
informações que deseja, por que não passa uma noite comigo?
- Primeiro você teria que revelar o que sabe, já que nada me garante
que depois cumpriria a sua promessa. De todo modo, antes eu iria
julgar a qualidade das informações.
- Orgulhosa! Quer dizer que não se deitaria comigo de qualquer
forma, trocando em miúdos.
- Tenho um homem muito melhor do que você à minha espera.
Homens como você são os que me dão mais nojo.
- E mulheres como você são as que mais me atiçam. Para as pagãs
não é tudo permitido?
- Se fosse assim, não teríamos outros ascetas além dos cristãos, e o
senhor deve conhecer um pouco do mundo.
- Isso é. No entanto, a bem da verdade, você se engana. Tudo é
permitido para todos, mesmo para os cristãos, desde que eles
queiram. Faltam vontade e coragem aos medíocres, enquanto em
você me parecem ser duas coisas que não faltam: sinto o fogo vindo
de dentro; imagino como deve ser entre os lençóis...
- O senhor é um mago disfarçado de padre.
- Vou lhe dar uma informação: assim são todos os padres vermelhos.
- Era o que eu pensava. Mas por que está me revelando isso?
- Sempre que vejo alguém indo para o patíbulo, gosto de lhe
cochichar um consolo antes da morte.
- Bem que imaginei.- Espíritos cinzentos, sem muita definição,
circundaram o falso sacerdote, protegendo-o do ataque das chamas
de Miriam com um ar frio que anulava o fogo; pouco antes, pusera
para dormir o jovem presbítero daquela igreja, intuindo a vinda da
bruxa; se ela não tivesse aparecido naquela noite, teria repetido a
operação na seguinte, colocando algumas gotas de uma substância
especialmente preparada no vinho deste, o que propiciava um sono
pesado de várias horas. Sem empecilhos, puderam portanto travar um
intenso enfrentamento, uma chama rosa brotando do lado esquerdo
do peito da maga e desta irradiando para o chão um círculo mágico e
um pentagrama contido neste feitos de uma luminosidade da mesma
cor, ao norte evocados os gnomos, ao leste os silfos, a oeste as
ondinas e ao sul as salamandras, criando um segundo círculo, rubro,
que ergueu paredes ígneas rumo ao teto da igreja, sem entrementes
causar danos à matéria; cuidava do espiritual, bloqueando a entrada
dos demônios e espíritos turbulentos, traiçoeiros e irados convocados
pelo outro magista, que se munira de um circulo cinzento que não
parava de girar e de um hexagrama onde o triângulo inferior se
erguia em destaque. Um monstro serpentiforme surgiu nas costas de
Caio e cuspia veneno na direção de sua adversária; a substância
nociva, contudo, evaporava ao tocar a barreira flamígera. O que se
refletiu no físico foi uma grande elevação de temperatura, o templo
parecendo invadido pelo sol escaldante de um meio-dia estivo.
- Não imaginei que fosse tão teimosa. Por quanto tempo acha que irá
resistir?
- Faço essa pergunta para o senhor.- Quando a testa de Miriam
brilhou, o padre vermelho teve a impressão que iria desmaiar; sua
consciência se turvou. A luz foi aumentando, branca com nuances
douradas, e as chamas da maga assumiram a mesma tonalidade,
isentas de ferócia; os seres atormentados e as criaturas das trevas,
para a surpresa do feiticeiro, começaram a se retirar, alguns
apavorados, outros proferindo palavrões ou urrando de raiva ou dor.
O padre se sentiu fraco, enquanto os piores demônios a seu serviço,
tragados por um vórtice luminoso, juraram vingança e insultavam
seu evocador; seu círculo foi quebrado quando ela, se aproveitando
de seu descuido, invadiu seu espaço mágico, pisando sobre o
hexagrama, cujos triângulos se apagaram. Só havia em volta um
único fogo alvo, um ouro ígneo em determinados momentos.- Terá
que vir comigo. Lamento apenas pelos humildes que terei que deixar
para trás, mas ao menos saciaram a fome por alguns dias e não
perderão assim toda a esperança na humanidade.- Já deixara pago o
mês de aluguel da casa que ocupara em seu período de estadia em
Florença; de qualquer forma não poderia continuar mais por muito
tempo ali. Quando Caio enfim fechou os olhos, vermelhos e
desgastados, despencando no chão, a luz se transformou em névoa e
os envolveu; quando aquelas brumas quentes se dissiparam, o frescor
e o silêncio puderam se manifestar.

II – Ar

- Tenho minhas desconfianças já há algum tempo. E depois do


encontro que tive com esse cruzado negro, estou achando cada vez
mais estranho...- Gabriela comentou com Miriam, as duas a sós na
casa da segunda, que fora de seus pais e agora dividia com Agar e
Zaqueu.
- Concretamente, o que acredita que eles sejam? A sua percepção
das correntes fluídicas está cada vez melhor, ninguém lê a energia
vital típica de cada ser como você, ao menos entre as magas e bruxas
que conheço. Acho que é capaz de dar um parecer preciso.
- Obrigada pelos elogios, mas você nunca elogia de graça; quer
saber. E por enquanto não posso dar uma resposta categórica,
lamento. Por outro lado, o pneuma ser algo tão misterioso e difícil de
analisar é o que me fascina nele. Se não conhecemos bem sequer o
nosso próprio sangue, quanto mais um fluido sutil. Apesar que
quando se fala dos cruzados, o sangue talvez seja a base do mistério
e dos nossos questionamentos.- Deixou deslizar um sorriso travesso.
- Entenda a minha preocupação. Enquanto a Igreja tiver esses
guerreiros, não poderemos fazer nada fora da ilha. Eles são as
espadas, disfarçadas de cruzes, postas em nossas gargantas.
- Que planos está arquitetando, Miriam? A maioria acha que nunca
vamos sair daqui.
- Mas você sabe que não estamos seguras. Não vão nos deixar em
paz para sempre. Algum dia irão nos procurar para nos exterminar, e
será a pior batalha que já enfrentamos, pois teremos diante de nós
talvez 12 indivíduos com um potencial comparável ao do demônio
que matou a minha mãe.
- Você é precavida, não quer que aquilo se repita. E é ousada
também, cogitando a possibilidade de desafiarmos a Igreja. Outra
acharia você louca, mas acho que é a melhor líder que temos.
- Não faço questão de ser líder, e sim de ajudar as pessoas a
viver...Sobreviver não basta. Se ficarmos ilhadas aqui, seremos
presas fáceis no futuro, por mais treinamento que tenhamos; é
preciso proceder ao ataque, temos que nos espalhar. Por outro lado,
não se pode atacar o inimigo sem conhecer suas fraquezas. Os
cruzados, desconfio, são lâminas de dois gumes para a Igreja.
- Eles não são anjos nem santos, isso senti de perto. Mas também
não são humanos...E não são demônios. Só que irradiam um pneuma
que lembra muito o demoníaco, ao mesmo tempo que não são todos
mal-intencionados ou fanáticos, alguns são até bons, mesmo que não
sejam virtudes personificadas. Não acredito na história do sangue de
Cristo...
- Creio que a Igreja esconde algo deles e, se eles viessem a
descobrir, seriam a lâmina que poderia cortar ao nosso favor ao invés
de ficarem contra nós.
- Nisso você é bem otimista. Mas temos mesmo que traçar vários
planos e futuros possíveis.
- Se não é o sangue de Cristo que corre nas veias deles, o que seria?
- Algo introduzido por magia. Os tais padres vermelhos devem ser
magos da pior espécie.
- Salomé e Dalila voltaram ontem. Estiveram em Roma, Veneza e
Florença.
- Lembro que você tinha enviado as coitadas. Pelo menos devem ter
apreciado as cidades, que são muito bonitas, mas perigosas pra nós.
- Partirei para Florença em pouco tempo.
- O quê?? Dessa vez acho que ficou louca...
- Não, Gabriela. Dalila me disse que em Florença, ao contrário do
que ocorre na maioria das cidades e estados cristãos, a legislação e as
autoridades são brandas e até benevolentes com gente de outras
religiões. O disfarce nem precisa ser tão grande. E acho que lá,
justamente por isso, será um bom lugar para investigar a Igreja. Se
um padre vermelho aparecer, melhor ainda.
- Não pode ser uma armadilha? Tem que tomar cuidado.
- Acha que não sei me cuidar?
- Sei que sabe, e muito bem, mas sempre é bom ir com cuidado. Não
vá acender fogueiras em praça pública pra aquecer os pobres.
- Olha, eu já pensei nisso...- Miriam brincou, como era raro nela, e
com um fundo de verdade.
- Sua doida! Melhor ouvir o que te digo: terá a voz da razão do seu
lado.
- Confio em você, Gabriela. Mas não precisa ser tão pretensiosa e
exagerada.
- Ir pra lá se matar sozinha é que você não vai. Posso ir com você.
- De forma nenhuma. Mesmo com a tolerância, temos que ser
cautelosas. Você disse há pouco que pode ser uma armadilha. Vou
verificar isso. Duas de nós seria uma bela pescaria para eles.
- Os cristãos sempre gostaram de peixe. Só que não sou tão chegada.
- O que a incomoda mais, o cheiro quando está cru?
- Nem sei explicar direito. Sei que prefiro um bom queijo. Ah, vou
jantar com a Raquel hoje, se quiser aparecer está convidada. A Flora
também vai...Mas será que o seu marido deixa?- Fez uma careta
discreta, mas traquina.
- Vocês só sabem falar e falar mesmo...Se não deixo o Zaqueu à
noite, é porque gosto de estar com ele, que trabalha o dia todo, não
porque ele proíba alguma coisa, muito pelo contrário.
- Eu sei, foi só brincadeira. A Raquel me disse que vocês poderiam
muito bem aparecer juntos, mas não fazem isso porque tem outras
coisas mais interessantes pra fazer...
- Como eu disse, vocês falam demais...
- Eu não disse nada!
- Acha que acredito nisso? Você está ficando até parecida com ela
em alguns pontos, depois de tanta convivência...O que é assustador.
- Não, de jeito nenhum...Duas Raquéis seriam demais até pra mim.-
Miriam sorriu um pouco e, ao se retirar da casa da amiga, Gabriela
deixara a maga do fogo mais leve do que de costume; juntas,
queimavam qualquer peso e depois as cinzas eram levadas embora
pelo vento.

A maga do ar tinha a certeza de possuir um dom: não suas análises


do pneuma; sua maior dádiva, que recebera da Deusa, consistia em
sua capacidade de aliviar as responsabilidades alheias; se não podia
eliminá-las, ao menos permitia que flutuassem. Miriam às vezes lhe
parecia por demais compenetrada e responsável, nisso perdendo boa
parte do que a vida tinha de bom e leve. Por outro lado, Gabriela
gostava de seus momentos de solidão e silêncio, retirando-se para
meditar ou escrever, tomando nota de suas impressões e
experiências, hábito que conservava desde seu aprendizado inicial
em magia.
“Não há lugar melhor do que este na ilha...”, referia-se à colina
mais alta da ínsula; ali contemplava bosques, lagos, cavernas,
córregos e inspirava o ar tenro de silfos frios. Ela também gostava de
se aliviar, livrando a mente das lembranças de seus pais, falecidos
havia alguns meses, seu pai antes e sua mãe seguindo-o poucas
semanas depois, ambos vítimas de paradas cardíacas repentinas. Mas
se o caso dela era explicável, devido à perda do inseparável
companheiro de tantos anos, a tristeza aos poucos cravando suas
garras num coração mole e envelhecido, o dele permanecia do seu
ponto de vista um mistério, visto que se tratara de um homem forte,
um bruto, que nunca ficava doente e não tinha mal-estares,
serralheiro dia e noite, pois dizia que mesmo quando sonhava
continuava trabalhando, o que sua filha interpretava que ele podia até
sair do corpo e criar um cenário inteiro no qual continuava a
desenvolver suas atividades diárias; alegava inclusive obter idéias e
soluções de problemas em seus serões oníricos. Ainda assim, sua
mãe sempre suportara tudo pacientemente, e o compreendia, afinal
também era artesã e, além de ajudar o marido em sua oficina, fazia
belos vasos, se bem que não sonhava com estes...
O buraco mais fundo em seu peito, no entanto, não residia ali por
causa de seus pais: o motivo maior era seu avô, o sempre sereno e
sábio Acab, o único que a apoiara a seguir o caminho da magia.
Saudades de alguém que plantara em seu ser sementes de verdade
que jamais esqueceria, trazendo-as com os ventos que desciam de um
céu interior sem tempestades. Por que não buscar seus espíritos? Por
que não usar a magia para quebrar as barreiras entre as dimensões e
dar um fim às saudades? Uma conversa não faria mal...Assim diriam
algumas pessoas, só que Gabriela pensava diferente: “Temos um
tempo na Terra e um tempo posterior a essa estadia; se eles se foram
e não se comunicaram mais, talvez seja porque nosso tempo juntos
só tinha que ser mesmo na Terra, ou voltaremos a nos reunir somente
quando todos estivermos do outro lado, ou tratou-se apenas de uma
passagem e cada um irá seguir por experiências diferentes, entre
encarnações e caminhos infinitos, ou ainda não chegou a hora de
revê-los nesta vida. Não penso que seja correto ir atrás deles ou
chamá-los pela magia; podem estar em uma realidade distante,
desenvolvendo outro trabalho, com outros ou novos entes queridos, e
um reencontro só avivaria o que depois iriam se tornar saudades
ainda maiores, além de não ser tão fácil como se pensa evocar almas
comuns, que não são tão estáveis como demônios ou elementais, que
mesmo que fluam de uma forma para a outra, que troquem de
atitudes aparentes, permanecem com um mesmo núcleo existencial
por séculos ou milênios. Os humanos, em média, são mutáveis num
grau muito maior. Minha prece, que deixo aqui no alto, é para que
estejam bem...”, Acab, manco de uma perna, dizia ter ficado assim
após um confronto contra um demônio, em sua juventude, do qual
conseguira sair vitorioso (!) graças a um amuleto com o tetragrama
cabalístico que recebera da avó de Gabriela, que namorava na época
e que viria a falecer vítima de um conluio de bruxas invejosas,
posteriormente expulsas da comunidade ao serem descobertas.
- Na hora do desespero, a luz se manifestou e transformou em pó
aquela aberração. É por isso que digo, Gabi: aprender magia hoje é
questão de sobrevivência, não um luxo, um algo a mais do
aprendizado humano. Sobre o poder do tetragrama, ele interagiu com
a minha fé; sua avó, que Deus a tenha, que teve o azar de confiar em
quem não merecia confiança, me dizia que na natureza existem duas
forças que produzem um equilíbrio, e muitos chamam isso de luz e
sombras, masculino e feminino, ativo e passivo; já o ternário se
resume na unidade, a criação, a preservação e a destruição sendo
faces de um mesmo Deus que abre os olhos, dança e depois dorme,
voltando a abrir os olhos no futuro. O quatro, por sua vez, ata o Uno,
que é a Divindade transcendente, e o trino, que é sua manifestação
neste plano de existência, brilhando no homem quando este ama o
saber. Na filosofia há quatro operações do espírito: afirmação,
negação, discussão e solução; tese, antítese, comentário e síntese.
Quando se respira fundo, sempre sobra tempo para observar,
comentar, discutir; este é o espaço de tempo para se encontrar o que
se procura, que completa o trabalho, ou as eras do mundo não seriam
quatro, indo este da degeneração absoluta para o estado menos
imperfeito, e não de volta à perfeição. Repare que em muitas línguas
o nome de Deus possui quatro letras e em hebraico estas quatro
fazem três, pois há uma que se repete duas vezes, justo a que
expressa a Palavra e a criação desta. O tetragrama também é a cruz,
um símbolo muito mais antigo do que o Cristo, e por isso temos que
respeitá-la, seja como for, ainda que não sejamos cristãos; nela o
divino e o humano não se separam, unindo-se em um centro que é
tocado pelo acima e pelo abaixo, pelos opostos verticais, e apresenta
braços que vão se tornando asas. Nunca subestime nenhum símbolo,
pois são eles que fazem o homem e não o contrário.- Dissera certa
vez à admirada neta; o medalhão, de ouro com as letras gravadas,
derretera no dia da batalha contra Rasheverak.
- Pra mim o que protegeu o vovô daquela vez foi a fé dele; nunca
que um amuleto conseguiria alguma coisa contra um demônio; não
acredito nessas coisas. Mesmo o que vocês bruxas fazem é impor a
própria fé, exercer um poder que Deus concede e que vocês
canalizam, mesmo quando pensam que os objetos têm alguma força.
Mas eles só possuem a força que vocês atribuem; esse é o verdadeiro
dom dos magos e das feiticeiras; ou a maldição que cobre vocês.
Prefiro confiar em Deus pura e simplesmente, deixando fluir.-
Opinara a respeito Baruch, seu irmão caçula, que tinha tão poucos
cabelos como era ainda pouca sua idade, deixando crescer a barba
para ficar com uma aparência mais madura, tendo herdado a
serralheria de seu pai, trabalho que passou a desenvolver com sincero
apreço e dedicação, não por simples conseqüência ou necessidade.
Seus pontos de vista, com a passagem dos anos e dos meses, foram
se modificando, passando de simpatizante do cristianismo em uma
terra de pagãos a teísta simplório (pura e simplesmente acreditando
em Deus, descrente em medalhões, pentagramas e anjos, como nos
tempos da declaração acima) e por fim, ao terminar algumas leituras
de certos filósofos, a um panteísmo cético, sua confiança (ou
desconfiança, mais ou menos velada) na Divindade se apresentando
de forma diferente em cada um desses momentos de sua existência.
Volátil e não-fixo, não era ignorante, ao contrário do que podia
aparentar pelo jeito desleixado, julgando parvoíces a maioria das
superstições e preferindo crer que Deus era simples, inclusive nos
espaços frios e ardentes entre a vida e a morte, não havendo trapo
mais vulnerável do que o ser humano, e certo de que a morte não
mudaria esse fato. Desacreditava nos relatos de visões do além-
túmulo, reputando que não passavam de alucinações, e afirmava que
se os demônios existiam e os anjos não se manifestavam isso só
poderia significar que Deus não devia ser bom e magnânimo como
pensavam, e sim considerando-o um fluido universal que a tudo
permeia e ordena, permitindo que o universo não seja puramente
caótico, todavia uma essência nem boa e nem má, a crueldade dos
seres “infernais” não sendo maior do que a que sempre existira na
natureza, estes sendo os predadores dos homens, em parte presos
talvez em outro domínio da realidade, ainda não explorado o
suficiente pelos seres humanos, que de “espiritual” não devia ter
nada. A eternidade da vida estava na decomposição do cadáver, nos
seus átomos e componentes voltando à terra, e assim sucessivamente,
não havendo fim para a matéria, apenas para a identidade; não ficava
espavorido na perspectiva de “desaparecer”, mas feliz por ser útil à
natureza, não compreendendo os corações opressos diante de uma
realidade tão clara. Ou o fedor dos carnes mortas deixava ver alguma
essência anímica escapando, algum ar, algum vapor? Possivelmente
a alma existia e mesmo as viagens para fora do corpo eram uma
realidade, afinal certa vez fizera um teste com sua irmã, que saíra do
físico e fora ao seu quarto, verificando detalhes de coisas e um
manuscrito, na seqüência confirmando com exatidão o que vira;
contudo, nada garantia que os átomos do espírito, que só deviam ser
mais sutis, da mesma forma matéria, não se dispersassem para
formar novas almas após a morte corporal, como pensava o filósofo
Demócrito. Não sendo visíveis a olhos nus, não seriam vistos nos
cemitérios, onde passariam sem apupos e babaréus. Tão transitória e
fugidia, a alma humana não escaparia, se fosse vista, de ser motivo
de escárnio, mais frágil do que os ossos, aninhada entre estes e os
órgãos; por isso se escondia, sem crueldade para enganar os
basbaques, limitando-se a desejar uma preservação mínima, na
realidade inexistente. Aos que preconizavam paraísos e infernos,
nunca bastaria a consolação de tê-los à luz do dia ou da lua; poucos
se compungiam pelo sofrimento alheio, e Baruch compreendia a
necessidade de existirem crenças e dogmas, ainda que mentirosos,
caso contrário os seres humanos seriam ainda menos compassivos,
não vendo o menor sentido em uma vida que aparentemente se
dispersa, não compreendendo o descanso de cada criatura se entregar
a Deus e ir fazer parte de uma nova manifestação com o
apodrecimento de seu corpo fugaz, a morte a maior das apoteoses. O
egocentrismo jamais permitiria uma fé tão absoluta, uma confiança
tão grande em Deus a ponto de entregar toda a sua própria matéria a
Ele. Mais fácil couraçar-se em meias-verdades, na autoridade dos
“sábios”, seguir os colarinhos rendilhados e barretes ou as saias das
bruxas, do que esquadrinhar a natureza. Não fazendo distinções entre
homens e animais, adorava citar o Eclesiastes: “Quem sabe se o
sopro de vida dos filhos dos homens subirá às alturas e se o corpo da
vida dos animais descerá ao fundo da terra?”, e tanto gostava de
bichos que tinha em casa dois gatos, um cão e ainda cuidava de um
galinheiro, consumindo e vendendo os ovos, jamais suas preciosas,
que ainda lhe davam um bom rendimento.
- E o que você acha dos que dizem que após a morte o espírito fica
inconsciente, aguardando o julgamento final?- Gabriela o questionara
por curiosidade; gostava de conversar e de ouvir, mesmo que não
estivesse em nada de acordo com o seu interlocutor, e nunca perdia o
controle em discussões, sendo seu sorriso irritante para os
debatedores impetuosos demais.
- Não vou opinar sobre o que parece sem sentido pra mim, mas se a
pessoa acredita nisso, o problema é dela; o mundo não vai mudar
com crenças, o que pode acontecer é a crença segurar um pouco mais
o seu sopro, talvez. Não pode criar um novo, porque o que existe já
existiu antes, Deus já criou, e agora se limita a Ser, o tempo todo,
enquanto o homem foge, e acha que cria, mas só transforma o que já
se acha na natureza. A morte ocorre porque não se pode criar um
sopro novo, a menos que o que os alquimistas digam seja verdade, e
nisso faz sentido a procura deles, porque seria a única forma de
imortalidade. Agora Juízo Final? É outro o modo que Deus coloca a
humanidade à prova, tentando demonstrar pela natureza, que nada
mais é do que outro corpo, um corpo imenso, que nós somos como
os animais. O destino do homem e do animal são idênticos, tanto um
como o outro morrem, são seres fugazes, que se movem dentro de
um conjunto maior. O que diferencia o homem é que é o único
animal que julga, e julga a si mesmo, sem se lembrar que até no
Gênese está que o que vem do pó volta ao pó. A Bíblia, antes dos
filósofos, foi o que me levou a questionar as coisas primeiro. E, além
do Gênese, o Eclesiastes, que diz que só resta a nós nos alegrarmos
com as nossas obras, afinal depois delas não sabemos o que vai
acontecer.
- Mas você não parece estar tão em dúvida assim. Parece ter várias
certezas, isso depois de já ter visto um demônio e confirmado que
posso sair do corpo quando alcanço o estado adequado de
consciência.
- Não é tão simples. Você pode ter visto as coisas no meu quarto
com vidência, sem sair do corpo. O que você fez ainda não prova
nada. E sabe por que prefiro acreditar que as coisas têm um fim, que
tudo é fugaz?
- Isso te dá segurança, e te consola, dando a perspectiva de um
descanso.
- Não só. Me faz chegar à conclusão que Deus é neutro, o que é
melhor do que ser mau. Os mortos são mais felizes do que os vivos,
porque se livram do mal que se pratica acima deles, é um consolo
que Deus dá, e mais felizes do que quem não nasceu ainda, porque
quem vai nascer terá que sofrer. A conclusão é que, pra esse
sofrimento ser ameno, é preciso amar o que há antes do fim, comer e
beber, dançar, brincar, ter mulheres...
- Ou homens.- Gabriela complementou, com um ar zombeteiro.
- No seu caso, com certeza. Mas o que quero dizer é que se Deus
não fosse neutro e não nos desse ao menos o consolo do descanso,
não poderíamos celebrar a alegria e canalizar uma fé que nos faz
sentir como partes de um todo que nos dá razão. Deus, assim como
não é ruim, também não é bom. Já pensei que ele fosse as duas
coisas, ou uma ou outra, hoje acho que não é nenhuma, ou como
explicar que pra um concede riquezas, recursos e honras, e nada falta
de tudo o que poderia desejar, e a outro nada, ou depois deixa o que
tem tudo ser roubado? Em alguns casos, o melhor seria o aborto do
que largar esses fetos em uma areia miserável, onde vão ter que
rastejar até o fim rápido dos seus dias.
- A Igreja colocaria você na fogueira por isso. Eles não admitem
abortos. E falo sério: em uma das viagens que fiz, vi uma menina de
onze anos indo pra forca em praça pública por ter abortado depois de
ser estuprada por um nobre, que ficou impune. Consideram que no
ventre a vida já é consciente. Só o que acho é que, sendo a Igreja tão
rica, já que é contra o aborto e mais vale sacrificar a vida de uma
mãe, quando esta por exemplo é frágil e corre o risco de morrer no
parto, do que a de um feto, então que os clérigos cuidem desses
bebês que essas mulheres pobres não têm a mínima condição de
cuidar, largando mais um na turba dos miseráveis.
- É por isso que digo que o aborto é o melhor em alguns casos e não
me importo com o que a Igreja fala. Rica como é, nisso estou de
acordo com você, então que assuma pra si os indesejados. O
abortado não viu e nem conheceu o calor do sol, e em certos dias isso
é ótimo. Como está no Eclesiastes, mais vale a honradez do que um
bom perfume, e o dia da morte é melhor do que o dia do nascimento.
É melhor ir pra uma casa onde haja luto do que ir a uma casa onde se
faz festa por um bebê, porque esse nenê vai padecer.
- Apesar de tudo, você vive citando a Bíblia.
- Só os trechos com os quais me identifico. Até que a Bíblia não é
toda um lixo ou um louvor à barbárie e à violência. O que os cristãos
deviam ler, eles só lêem o que convém pra eles, é que o pó volta pra
Terra e o sopro pra quem soprou, ou seja, pra Deus.
Em uma de suas viagens para conhecer a cristandade de perto,
Gabriela fora parar no meio de uma manifestação de hortelões em
uma pequena cidade, em uma ilha onde não havia feudalismo e os
pequenos proprietários tinham maior liberdade para cultivar e
comerciar desde que pagassem uma taxa à Igreja (o aumento desta
provocara a revolta); decidira se divertir um pouco, analisando o
pneuma das pessoas ali e, quando um grupo de cavaleiros chegou
para reprimir o protesto, suas armas misteriosamente caíam ou se
desviavam como que empurradas por braços invisíveis ao tentarem
golpear certos manifestantes, acertando outros em cheio. Ao fim da
confusão, se deixou prender para que não desconfiassem de nada,
julgando-a uma simples camponesa, e só levando para o cárcere,
além dela, os que a maga, em sua observação, deduzira serem
indivíduos violentos, manipuladores ou cruéis, enquanto os com
alguma bondade tinham conseguido escapar.
- Acho que teve alguma feitiçaria aqui...Não entendo o que
aconteceu! Eu usava a espada, só que escorregava da minha mão.
Qual delas será que é a bruxa?- Além de Gabriela, duas outras
mulheres da rebelião haviam sido detidas.- Uma deve ser...
Jogadas as três em uma cela de grades sólidas nas janelas e ferrolho
pesado, para que aguardassem a chegada de algum prelado que as
analisasse, receberam nas horas seguintes uma cuba guarnecida de
cobre, cheia d'água, para que molhassem os lábios, obrigadas a beber
no chão como cães; com a maga bem quieta, ambas as camponesas
falavam sobre o terror do ecúleo e de outros instrumentos de tortura.
Isso que falavam sobre já ter, por vingança, picado vivo o filho de
um vizinho, outro campônio, casado e aparentemente respeitável,
que as violentara. “O mais curioso é que não falam comigo, mal me
notam, como se eu fosse invisível.”, percebera Gabriela, que na
cidade anterior fora a uma taverna com os cabelos cortados e de
capuz, engrossando a voz e passando-se assim por rapaz, onde
observara outro tipo de mulher, uma jovem balconista sedenta de
amor que ostentava belos cabelos descoloridos, só que obrigada a
servir senhores com sede de vinho e cerveja...Como os seres
humanos podiam ser diferentes! O fim que às vezes não variava:
alguns dias depois, veria a mesma mocinha prestes a ser jogada no
fogo, em meio ao êxtase de uma multidão, réu de infanticídio por ter
estrangulado o neném de uma amiga que engravidara
involuntariamente de um bêbado que a estuprara. Dos três teria
somente ele não teria o mesmo destino, pois conseguira escapar.
Voltando à prisão, o carcereiro, um folgazão, empanzinava-se das
vitualhas destinadas às que estavam ali, cedendo-lhes só uma
pequena parte, e no resto de tempo cuidava de azeitar e polir
ferrolhos e esvaziar os urinóis. “Todos cometem barbaridades aqui.
Pobres, ricos, quem deveria cuidar ou quem seria cuidado; pobre do
Cristo se são esses os que acreditam nele...”
De noite, enquanto todos dormiam, convocara os silfos e com a
ajuda destes sutilizara sua matéria e atravessara a porta, encerrando-
se assim sua breve aventura. No dia seguinte, todos deviam ter
descoberto qual delas era a bruxa; talvez tivesse salvado a vida das
outras duas...Talvez não.

Na respiração, o movimento da terra e o dinamismo das alturas; os


pulmões de Deus se enchem para o júbilo dos pássaros e das
estrelas que nunca serão alcançadas. Na inspiração Divina, o ar
acumulado constitui a matéria em potencial que irá formar o
universo; na expiração, surge o mundo, depois novamente
absorvido, e assim sucessivas vezes, até que se alcance a perfeição.
Tal é o sentido do Juízo: Deus julga constantemente sua própria
obra, sem no entanto deixar de amar os corpúsculos que povoam o
ar que Ele respira, estes dotados por sua vez da mesma qualidade do
Criador, embora em menor escala, inspirando e expirando para
criar infernos e paraísos (…). O melhor ar é aquele sem vento, que
permite uma respiração sem turbulências; nele o santo encontra a
paz, podendo concordar o ritmo de seus pulmões com o de seu
coração. No entanto, o vento deve ser transcendido e não renegado;
os sábios filósofos do passado também atestaram sua importância:
“É o elemento ar que, por meio do vento, leva o pólen às flores.”,
escreveu com sabedoria Aristóteles. E o mesmo amante da sabedoria
nos deixou a constatação que é o ar que imprime movimento às
criaturas vivas justamente por ser o mais ágil e volátil dos
elementos, não se prendendo a nada. Um cosmo que não respira não
vive; um universo que só se apegasse, que permanecesse atrelado
apenas ao denso, jamais se entregaria ao fenômeno do pensamento,
que pressupõe uma volatilidade da consciência. Respirar une as
almas, como disse Anaxímenes, pois sendo os espíritos
fundamentalmente essências aéreas, um absorve e compreende um
pouco do outro quando respira com respeito, paciência e sem
tensões excessivas. Os pensamentos podem inclusive se fundir e se
mesclar, e nisso é necessário estar atento; os silfos se divertem com
as pequenas e as grandes armadilhas mentais, da mesma forma que
as fadas gostam de transformar a fera em princesa para depois fazê-
la voltar a ser fera. Ao lidarmos com o ar, falar em permanência é
para os ignorantes, a menos que se conquiste a si mesmo e se faça
cessar o vento.- Parte de um manuscrito redigido por Gabriela
intitulado Entre nuvens, defumações e vidas.

O jantar com Flora e Raquel foi bastante divertido, principalmente


pela segunda, fazendo piadas de suas desilusões amorosas.
Entrementes, depois houve tempo para conversas sérias e
interessantes, com Gabriela atenta em especial ao que Flora falava a
respeito das diferentes propriedades de diversas plantas; conquanto
tivesse algum conhecimento, os da jovem bruxa eram muito maiores:
- Uma vez usei um pouco do líquido dos bagos do estramônio,
depois de tirar os espinhos; a experiência que se seguiu foi
maravilhosa, e bastaram algumas gotinhas no ungüento que tinha
preparado: tive visões incríveis da natureza e podia falar com os
animais e as plantas perfeitamente, sem me confundir. Quando me
dei conta, estava voando acima das árvores.
- Estava mesmo? Ou era o seu espírito ou a sua mente? Que eu
saiba, eles têm uma toxina que se passar da dose certa pode matar
qualquer uma.- Raquel objetou.
- Porém há como aplicá-la com sabedoria e induzir assim vivências
espirituais. Claro que foi um vôo astral; assim como a partir daquele
dia passei a compreender melhor a essência animal e desde então
eles se comunicam comigo com uma certa clareza.
- Entendi. Mas imagino que se desse um pouco pra um cristão, aí
eles iam falar que entenderam como é que as bruxas voam nos cabos
das vassouras!
- Falando assim, parece muito positivo. Mas por enquanto prefiro
não arriscar, apesar de ter curiosidade de bater um papo com os
bichos do meu irmão.- Comentou Gabriela.
- Não precisa ter receios. Posso fazer a poção pra você.- Sugeriu
Flora.- Não confia em mim?
- Além dessa não teria outra, menos perigosa?
- Uma bruxa competente deve saber preparar bem as substâncias
com as quais trabalha, a maioria delas tendo alguma toxicidade. As
flores de acônito, por exemplo...
- São muito bonitas, num roxo vivaz e com aquelas formas de
capuzes...
- A bela aparência esconde o veneno. Sendo a erva sagrada de
Hécate, é outra que pode arrancar do corpo com facilidade.
- Com ou sem volta?- Inquiriu Raquel.
- Continua sendo uma questão de dose, porque altera os batimentos
cardíacos. Há quem prefira a seiva negra das frutinhas venenosas da
maria-preta, que quando aplicada na pele provoca tremores e não
demora a produzir a projeção de consciência.
- Você já usou alguma vez?
- Sim, mas prefiro a pomada do talo da flor da cicuta, passando nas
áreas do corpo de pele mais fina e sensível.
- São flores rendadas, já as observei.- Comentou Gabriela.
- A fama de veneno não é gratuita, mas a cicuta tem mais a oferecer.
- Li uma vez também sobre os nenúfares brancos, só que em um
texto cristão, que dizia que seriam usados em “poções de vôo” junto
com pulmão de asno, veneno de sapo, pó de sepultura e gordura de
crianças não-batizadas.
- Tadinhas das bruxas...- Raquel balançou a cabeça.
- Os nenúfares servem, o resto não passa de difamação, como bem
sabemos.- Disse Flora.
- Claro. Como me diverti lendo aquelas baboseiras...- Comentou
Gabriela.
- Fora o que dizem sobre os ungüentos amorosos! Ou os planos
diabólicos contra pobres homens indefesos...- A morena zombou,
fazendo uma careta e uma voz “malignas”, Gabriela sorrindo e Flora
séria.- Apesar que em certos caras eu gostaria de ter usado o ópio da
papoula pra fazer os desgraçados dormirem, pulverizado pervinca
com minhocas e servir com carne pra ficarem apaixonados, colocado
uma rosa numa poção pra destilar a minha beleza, deixando eles de
queixo caído, e abusado dos bagos das mandrágoras vocês sabem por
quê!
- Eu preferiria que o heléboro-negro realmente ajudasse a ficarmos
invisíveis aos homens.- Opinou Flora.- Isso já bastaria.
- Você fala muito mal deles, sempre...Mas nunca provou, então
como pode saber? A gente fala mal com conhecimento de causa!
Você pode queimar a língua algum dia, amiguinha.
- Não pretendo me apaixonar. É uma doença.
- Você pode se divertir e não se envolver. É melhor do que
permanecer celibatária...- Disse Gabriela.- Acredite: a maçã não é tão
ruim, mesmo que pareça podre.
- Ficaria tentada a agir como Circe, usando o meimendro negro para
transformar em porcos todos os homens à minha volta.
- Tudo bem que não ajudo, você só me vê reclamando deles, mas é
como a Gabriela disse. Dá pra se divertir também. Só que ela é
esperta e eu burra, porque sempre quebro a cara.
- Diz uma lenda que a escarola era uma jovem que rejeitou as
incursões amorosas do deus do sol, que, para se vingar, a
transformou no que vemos hoje.- Contou a maga do ar.
- Viu só? Bancando a Ártemis caçadora, esse vai ser o seu destino.
- É melhor que parem de tentar me convencer a me enroscar com
algum homem. Tenho a minha vida, independentemente de estar com
alguém ou sozinha. Sabem qual é a minha única paixão, a natureza, e
deveriam imaginar como fico feliz quando o que ela me dá inclusive
ajuda a salvar vidas. Ando tratando de uma senhora com problemas
no coração usando as campainhas roxas da dedaleira; descobri que
numa dose certa, pequena, deixam de ser venenosas. Só lamento não
ter sido mais rápida...Podia ter salvo a vida dos seus pais.- Olhou
para Gabriela sorrindo, e a amiga respondeu com benevolência:
- Você fez o que pôde. Estava começando, e já era um prodígio. A
vida dos meus pais não valia mais do que as que está salvando agora.
Fora que ressuscitar alguém, quando já passou da hora, só se fosse
por milagre.
- Fui pretensiosa, esse foi o meu maior erro.
- Esquece isso, menina. Eu andava com aquelas dores terríveis,
vinham desde que enfrentamos aquele monstro e eu fiz um esforço
violento naquela guerra, e graças ao remédio que você preparou à
base de hera e aipo silvestres, passou tudo. Você é muito
competente.- Raquel elogiou.
- Obrigada...- Flora voltou a ficar séria.- Não imagina o quanto o
incentivo de vocês, que são minhas professoras praticamente, é
importante.
- Professoras nada, você é que costuma dar aulas pra gente. Somos
suas amigas. E nem por isso deixamos de criticar quando é preciso, a
Gabriela me conhece: quando louvo é por merecimento. Até a
Miriam reconhece o seu dom com as plantas e os animais.
- Quem me agradeceu esses dias foi a Mirna.
- Ela teve neném há poucos dias, não foi?
- Isso. Preparei uma poção com o esporão do centeio, e ela quase
não sentiu dores no parto. Outros antiinflamatórios que estou
testando são à base de verbena. Alguns tratados dizem que ameniza
até o sofrimento por queimaduras. Pretendo verificar isso...- E
continuaram a conversar. Alguns dias se passaram e Gabriela, que
andava com a mente um pouco dispersa, não logrando experiências
espirituais recentes, acabou recorrendo a Flora para que lhe
preparasse algo:
- Não sou muito adepta de sair do corpo sem ser pelos meus
próprios méritos, mas vou abrir uma exceção. Tenho estado agitada
demais.
- Foi uma sábia decisão. Mesmo que nunca mais use o estramônio,
uma dose será o suficiente para reabrir canais energéticos que devem
ter ficado obstruídos.
- É como estou me sentindo...Meio “presa” demais ao corpo.
- Isso vai se resolver.- E, após ingerir a substância, foi meditar; nos
primeiros minutos, nenhum efeito, o que causou uma certa irritação:
“Será que nem assim?”, tentou rastrear as razões daqueles bloqueios
em sua consciência, vendo em alguns momentos a imagem de seu
avô. “Será que ele está querendo falar comigo? Se for algo
espontâneo, tudo bem...Só não quero provocar nada.”, contudo, o que
se seguiu nada teve que ver com familiares ou problemas do gênero,
a princípio vendo uma luz azul piscando ao seu lado, e nisso
tomando um susto; a claridade logo desapareceu, porém foi sentindo
um entorpecimento do corpo e quando se deu conta estava volitando
sobre ele, uma sensação de leveza e liberdade agradabilíssima,
porém que não a limitou a permanecer onde estava, levando de
repente seu espírito e sua visão a pairarem acima de cenas e pessoas
desconhecidas, em um tempo que não soube determinar, o que era
certo que não se tratava do presente. Um homem, ou melhor um rei,
como denunciavam seus trajes e o trono ao fundo, acompanhado em
seu amplo salão por um velho de aparência decrépita, observava um
extrato vermelho:
- Tem certeza que funciona? É feito à base do quê?- Perguntou, sua
expressão incrédula, ao homem idoso, que devia ser um feiticeiro e
estava em andrajos, a despeito do colar de ouro com um medalhão
repleto de diamantes.
- Água forte, cobre, arsênico e verdete.- Respondeu com uma voz
grave, densa e poderosa, que nada tinha de desgastada.- Também,
espero que vossa majestade não se enoje, tive que colocar pedaços de
unhas, as mesmas com as quais cavei as terras dos túmulos dos
homens de Hayk, e alguns ossos destes guerreiros. Moí tanto as
unhas como os ossos, por isso não se preocupe.
- Vi você na missa...E de repente saiu correndo dizendo: “Que os
mortos saiam dos seus túmulos!”; isso fazia parte do ritual? As
pessoas ficaram petrificadas, o padre demorou alguns minutos para
retomar o ofício.
- Claro. Ainda voltei ao cemitério, tomei um punhado de terra bem
perto do mausoléu de Hayk, entrei e apanhei dois ossos dele,
depositando-os em cruz na entrada de vosso palácio.
- Os meus guardas vieram me trazer esses ossos. Estranho...Em
outras ocasiões, teriam jogado fora.
- Então está com eles em seus aposentos, majestade?
- Imaginei que fosse obra sua, por isso guardei em um baú.
- Após profanar o túmulo do grande Hayk, não há mais retorno. Mas
agora será vossa vez de trabalhar. À noite, quando for deitar, pegue
os ossos e, na cama, conserve-os no peito em forma de cruz,
imagine-se em um caixão, visualize todo o cenário em volta como
sendo um cemitério e chame: “Que os mortos saiam de seus túmulos!
Que venha o exército de Hayk”, por três vezes, e eles atenderão o seu
chamado.
- Só que antes de tudo, tenho que ingerir este seu preparado...
- É fortemente necessário. Confia em mim, não é, majestade?
- Confio.- De um só gole, tomou a substância. Depois lambeu os
beiços.- Esquisito...Não tem gosto de nada que eu conheça, mas não
é tão ruim. Chega a ser adocicado.
- As coisas nunca são ruins como imaginamos quando sofremos por
antecipação. Logo terá um novo e invencível exército!- O bruxo,
todo cinzento, barbas e roupas, mesmo a pele tendendo a esse tom,
desapareceu em uma fumaça da mesma cor. Aquele que permaneceu
era o rei Dicran da Armênia, que, no desespero de ver seu país
atacado tanto pelos persas como pelos bizantinos, usaria a magia
para evocar as tropas de Hayk, herói lendário, e fazê-las lutar a seu
favor. Seus homens de carne e osso não eram mais suficientes para
conter os ímpetos de duas potências.
À noite, fez como o feiticeiro o instruíra, de súbito as janelas de seu
quarto se abrindo e batendo, um vento forte se manifestou e, quando
a turbulência deu uma parada, ergueu-se trêmulo, por mais que
tentasse disfarçar o medo, para encarar um espectro esverdeado
vestido com uma couraça maciça e um capacete que lembrava a
cabeça de um urso, barba espessa e cabelos ruivos compridos:
- Depois que meu túmulo e os de meus guerreiros foram profanados,
nos tornamos seus prisioneiros.- Bradou de forma não tão submissa,
tendendo mais ao desgosto e à amargura.- No outro mundo,
continuamos a lutar, com a vantagem que podíamos nos deleitar com
batalhas eternas, já que nunca mais morreríamos, nossas feridas se
reconstituindo e nosso sangue voltando a escorrer, para depois irmos
descansar no castelo dourado dos deuses, onde tínhamos à disposição
donzelas, mel e licores. Mas você, de repente, nos tirou de onde
estávamos, e nem mesmo os deuses que nos hospedavam puderam
fazer nada, pois este mundo é do domínio de outros senhores. Agora
voltamos a pisar nesta terra, que reconheço como minha, ainda que
quando por aqui circulava não existia nada do que estou vendo.
Contudo, forçados a ficar aqui como prisioneiros, isso não significa
que seremos seus servos.
- Grande Hayk...Não imagina o quanto já ouvi falar e li a seu
respeito. No passado, sua flecha atravessou o terrível gigante Bel e
nos livrou dos assírios. Por isso pensei que seria o único capaz de
salvar nosso reino, hoje contendido entre os partos e os gregos.
Evoquei seu auxílio porque não temos forças suficientes para lidar
com o ataque simultâneo de dois impérios, que quando nos
conquistarem dividirão estas terras entre si.
- Apesar de todo o tempo longe, ainda amo este reino e os homens
que aqui vivem. Mas você está sendo sincero? Sinto que tem medo
de perder a vida mais do que se importa com seus súditos.
- Não nego que não desejo a morte. Porém jamais fugiria
abandonando as pessoas que fazem esta terra ser o que é, um país de
bravos e trabalhadores incansáveis.
- Por estas terras, não me negaria a entrar mais uma vez no campo
de batalha deste mundo. No entanto, um rei fraco sempre é
merecedor de sua queda.
- Se me julga um fraco, por que não observa como luto contra os
inimigos?
- Não será necessário. Convenceu-me. Concordarei em servi-lo...-
Nesse instante, o rosto de Dicran se abriu em um amplo sorriso; era
bastante jovem, não passando dos trinta anos, tendo herdado o trono
após a morte dos pais, assassinados por sicários persas.- No entanto,
sob uma condição. Terá que nos libertar assim que a guerra chegar ao
término, e restituir meus ossos ao meu túmulo.
- Suas condições estão aceitas, grande Hayk.
- Imaginei que não iria declinar.
- Quanto aos seus homens, onde estão?
- Ocultos nas sombras. Só irão sair delas nos momentos de luta,
durante as batalhas, e então seu exército se verá reforçado por uma
tropa invulnerável, com soldados que perdem as cabeças e as
recolocam em seguida, além de serem de todo modo poderosos e
intransponíveis.
- Obrigado, grande Hayk.- O rei armênio se inclinou e o espírito
desapareceu.
Enquanto isso, Diodoro, o general bizantino, um homem de cabelos
perlados e olhos de uma fera afiada e estudiosa, não via a hora que
aquela guerra terminasse e pudesse conquistar a capital daquele
altivo reino que insistia em resistir, assim garantindo depois, nas
negociações com os persas, a parte mais rica, sendo que os rivais
tinham a mesma intenção. Em seu acampamento, o grego quase não
dormia, fazendo planos dentro de planos e montando estratégias
sozinho ou revezando os acompanhantes em sua tenda. Informara-se
com seu espião Clitos sobre a força do exército dos armênios e tinha
certeza que o número superior de soldados compensaria a valentia
de seus inimigos. Os dias se passaram e, na iminência do combate
decisivo, seu exército próximo de Yerevan, seus batedores voltaram
pouco depois da aurora a fim de informar sobre as posições dos
inimigos do lado do rio Hrazdan. Diodoro se opôs a um ataque
frontal (proposto por um de seus comandantes), porque o rio era
profundo em alguns pontos e a outra margem íngreme e alta.
Decidiram que seria melhor acampar onde estavam e decidir no dia
seguinte como realizar a travessia, o que atrapalhou ainda mais o
sono do líder dos invasores.
Contudo, a prudência perdeu espaço em vista da falta de
alternativas e, como a guerra não poderia se prolongar por muito
mais tempo ao se tomar em conta a motivação dos soldados, acabou-
se decidindo pelo enfrentamento direto. À direita, comandadas por
Diodoro, ficaram as unidades, a partir da direita, dos agrianos, dos
arqueiros, dos cavaleiros mercenários e um esquadrão da cavalaria
peônia. À esquerda, sob o camando por Aristides, as unidades eram,
da esquerda para a direita, a cavalaria grega, um esquadrão da
cavalaria trácia, três brigadas de falangistas cipriotas e duas de
macedônios, lanceiros e os hipaspistas de inspiração macedônia. Os
números da cavalaria eram os mesmos em todas as partes da linha,
sendo a infantaria mais numerosa do lado direito. Os arqueiros e
agrianos formavam uma extensão na extremidade direita. Por mais
preocupado que estivesse, o general sentiu sua confiança crescer ao
contemplar os rostos de seus guerreiros de elite e perceber neles uma
vontade ferrenha de encerrar o conflito e voltar para casa. Ele próprio
estava com o mesmo espírito, saudoso de sua esposa e filhos.
O plano de Diodoro consistia em usar os piqueiros para atingir os
cavalos ou seus cavaleiros, seguindo com a infantaria para penetrar
pelos buracos abertos e romper as linhas do inimigo fazendo uso da
cavalaria maciça e estendendo sua linha para a direita para flanquear
o inimigo. Com seu capacete lembrando os antigos elmos espartanos,
alto e com uma armadura vermelha, ficava em destaque à frente dos
seus melhores homens a cavalo e, quando as trombetas soaram e o
exército desceu ao pedregoso leito do rio, o primeiro assalto foi feito
à esquerda da posição do general por um esquadrão de lanceiros,
mercenários, pela cavalaria peônia e pela brigada de hipaspistas.
Enquanto o ataque incitava a cavalaria do inimigo, Diodoro não se
envolveu em combate, estendendo a linha do seu lado do leito do rio
para a sua direita, de modo que os arqueiros e os agrianos
flanqueassem os opositores. Nessa hora, o grupo de lanceiros e
mercenários, que encabeçara o assalto infligindo baixas, começava a
ser empurrado de volta. Foi então que o líder dos bizantinos ordenou
o ataque geral. À frente do Esquadrão de Cavalaria Real, fez uma
carga contra os inimigos que haviam rechaçado o esquadrão
enfraquecido e, na luta corpo a corpo, levou a melhor com sua
companhia graças à força, determinação e experiência que possuíam,
sem desconsiderar as proteções eficientes contra dardos e flechas e as
lanças de corniso.
Do lado armênio, a espada de Dicran se partira, assim como a de
seu cavalariço, recebendo a de outro guerreiro. Começava a recear.
“Onde estará o maldito Hayk? Fizemos de tudo, e ele não aparece!
Será que não devia ter confiado na magia? Terá sido o que vi naquela
noite apenas uma alucinação provocada pela poção que aquele bruxo
me deu? Se me enganou, irá pagar caro! O problema é que, do jeito
que vai essa batalha, o mais provável é que eu não viva para me
vingar. De qualquer forma, ele não terá paz caso minha morte chegue
hoje. Irei atormentá-lo para sempre, bruxo maldito! Caso tenha sido
verdade, o que começo a achar impossível, rogo que chegue o quanto
antes, e que não traia a minha confiança se é um homem de palavra e
deseja continuar sendo chamado de “grande”, ou irei tratá-lo como
deplorável e covarde Hayk! Não devia ter confiado na magia...Se
funcionasse, por que todos os grandes generais da história não a
usaram sempre? Talvez a tenham usado e ninguém saiba; não sei no
que prefiro acreditar, só quero viver...”, os olhos do rei armênio
refulgiam em um fogo áspero; verdes na origem, tornavam-se mais
escuros a cada instante; naquele momento, Diodoro e os que estavam
com ele se encontravam no alto da margem, mas não em formação,
quando uma cunha da cavalaria inimiga, encabeçada por Arabkir,
temido cavaleiro e governador da mais próspera das províncias do
reino, deu início à sua carga. O general bizantino disparou para a
frente, atingindo-o no rosto e derrubando-o; na seqüência, outro
guerreiro atacou Diodoro e esmagou parte de seu capacete com uma
maça. Quando o grego conseguiu perfurar o peito deste inimigo com
sua lança, Arabkir se erguera e com sua cimitarra estava pronto para
matar o general, tendo no entanto seu braço direito arrancado por um
bizantino. Os armênios passaram a perder terreno em toda a linha,
com à esquerda de Diodoro os hipaspistas e os falangistas usando
seus piques com bons resultados, ao passo que à direita arqueiros e
agrianos agrediam a cavalaria adversária pelos flancos e mesclavam-
se à sua própria cavalaria, proporcionando que a ala direita do
inimigo recuasse, e os mercenários abriam caminho para o alto da
margem. O centro dos armênios deixou espaço e a cavalaria em
ambas as alas se desmanchou e deu início a uma fuga precipitada
para o desespero de Dicran. Logo Diodoro reagrupou seus homens e
rodeou o rei armênio e sua guarda, que tinha ficado compacta mais
por causa do espanto com a reviravolta dos acontecimentos do que
por considerações táticas. Mesmo aqueles sendo lutadores
excepcionais e experientes, treinados para lutar até a morte no caso
da vida do monarca estar ameaçada, teriam pouquíssimas chances de
fazer algo em tal situação; entrementes, não se renderiam. “No fim
das contas, foram os vivos que ficaram comigo até o fim, meus
homens mais próximos e leais, enquanto os “invulneráveis”, as
lendas e as bruxarias me deixaram na mão. Não há nada mais que
possa ser feito; estou derrotado. Só não posso demonstrar que sou
um covarde; já que estou aqui, vou mostrar a esses gregos do que os
armênios são capazes.”
- Aquele é o rei de Yerevan. Vamos dar um fim nisso, homens!-
Bradou Diodoro, que prometera que, uma vez de volta à Grécia,
encomendaria em Atenas estátuas de bronze em louvor aos
sobreviventes, que seriam colocadas em posições de destaque na
Academia Militar de Constantinopla, além de homenagear com
lápides e inscrições os guerreiros que haviam tombado com valor,
afinal mesmo os fortes podiam cair na guerra, vítimas de ataques
desleais, concedida aos filhos destes a remissão de impostos sobre
terras, propriedades e serviços pessoais. “E os persas terão que
aceitar as nossas condições!”, sorriu por dentro; como de costume,
visitaria os feridos e ouviria seus relatos, fazendo questão de
demonstrar que os considerava como companheiros, não subalternos.
- Vamos mostrar a esses gregos que verdadeiros cristãos não se
rendem, a exemplo daquele que morreu na Cruz por nós!- Dicran
tentou animar sua guarda.- Iremos lutar até que a última de nossas
vidas se apague.- Contudo, não foi necessário; aquelas vidas ainda
brilhariam por um bom tempo: os bizantinos ficaram em choque
quando uma flecha vinda não tinham idéia de onde atravessou o
peito de Diodoro, levando-o a tombar com tudo de seu cavalo.
- Não pode ser...- Um dos cipriotas, amigo do general, deixou cair o
queixo, o próprio rei armênio incrédulo diante do que ocorrera; mas
só pôde explodir de felicidade e até liberou uma enlouquecida
gargalhada, assustando seus próprios soldados, quando viu que os
inimigos estavam morrendo sem que pudessem compreender como,
atingidos pelos golpes de adversários invisíveis que pouco a pouco
começaram a se materializar. Dicran cedo discerniu Hayk, com seu
arco e um cavalo negro de crina flamejante, o olhar severo voltado
em sua direção. “Perdão, grande Hayk. Se ouviu o que pensei a seu
respeito, tente compreender a situação de um homem em um
momento de desespero! Achei que tudo não passasse de um engano e
que jamais viriam! Mas agora que vejo que me enganei, peço perdão
em nome de Deus...”, desculpou-se, o antigo guerreiro virando a cara
e se concentrando na batalha; a guarda do monarca, mesmo sem
compreender o que ocorria, cumpriu seu dever e avançou para
enfrentar os bizantinos, desbaratados de forma inesperada por um
exército sobrenatural. Alguns acreditaram que Deus enviara seus
anjos para defender a cristianíssima nação da Armênia, reconhecendo
seus esforços e sua fé, porém havia os que consideravam possível
aquilo ser obra de feitiçaria demoníaca, dado que aqueles fantasmas
violentos não se pareciam nem um pouco com anjos; de todo modo,
não cabia a eles questionar nada e sim lutar, esperando que fossem
agraciados ou perdoados pelo Cristo e pelo Pai por estarem lutando
ao seu lado ou ao lado do Demônio; a intenção valia mais. Dicran
não se envolveu nesse combate, observando à distância a morte de
todos os membros de sua guarda e o triunfo dos espectros, que
mesmo em muito menor número esmagaram o oponente. Os
bizantinos não regressariam tão cedo às margens do Hrazdan e dias
depois uma derrota similar seria infligida aos persas. Hayk em seu
cavalo, para muitos que o viram, na batalha seguinte havendo
sobreviventes, passou a ser considerado um querubim, belo e
triunfante e ao mesmo tempo terrível e assustador; era a potência do
Deus dos exércitos que derrubara Jericó e destruíra Sodoma e
Gomorra, agora ao lado dos armênios e muitos garantiram que graças
às virtudes do rei, que seria o maior de toda a história.
- Sinto muito, grande Hayk, mas não posso abrir mão de vocês. Uma
vez defendido o reino, devemos proceder a um novo passo: enquanto
ficarmos confinados nesta terra, seremos sempre agredidos. Chegou
a hora do povo armênio mostrar por que veio ao mundo: iremos de
agora em avante proceder à expansão. Formaremos um novo
império, capaz de rivalizar com Bizâncio e Persépolis; ou melhor, o
império que irá destruí-los e abarcar todo o mundo. Apenas iremos
respeitar a santa Igreja; de resto, todos cairão e verão surgir um
monarca universal. A Armênia será o mundo, meu amigo.- Dicran foi
tomado pelas maiores ambições após a retirada de persas e
bizantinos; Hayk meneou a cabeça, visivelmente desgostoso, e
argumentou:
- Você pode fazer o que quiser, apesar de eu não estar de acordo.
Estranho que seu deus, pelo que entendi, seja de amor e compaixão,
diferente dos meus deuses antigos, um deus aparentemente fraco, e
eu seja da opinião que poucas terras, mas bem cultivadas e cuidadas,
sejam suficientes, enquanto você acredita que é preciso ocupar as
terras alheias. Parece que é você quem segue deuses guerreiros; ou,
mais do que guerreiros, deuses violentos e sem honra. Só que pra
mim nada disso importa, e sou indiferente às suas opiniões e ao fato
de ter encontrado um mundo de cabeça pra baixo; meu mundo hoje é
outro e quero retornar a ele. Rezo para que apesar da sua falta de
freios o povo destas terras sobreviva, mas você prometeu que
libertaria a mim e aos meus homens quando tivesse terminado de
protegê-las.
- Grande Hayk, no mundo de hoje não basta reinar sobre si e
governar as próprias terras. É preciso buscar outras, ou as potências
não nos respeitam e nos esmagam. É preciso ser império para ser
respeitado por outros impérios. Entretanto, compreenda que meus
propósitos finais são de paz: não quero mais um império e sim um
império universal, e não ocorrerão nunca mais guerras, pois todos
estarão em Um e sobre o governo de um. Não sou incoerente com o
meu deus.
- É um tolo, Dicran. Mesmo que construa esse império, acha que
será eterno? Poderá não usufruir dele como pensa. Cedo ou tarde irá
morrer e terá que acertar as contas com seu deus. Com relação a uma
paz perene, é impossível; os homens são belicosos, é da natureza
humana guerrear, e um dia o seu gigante dos pés de argila irá ruir,
seu fim se dará de dentro para fora.
- Quero ao menos tentar; isso não custa. E é uma aventura
inquietante, não acha?
- Digo que custa. Irá gastar todos os recursos do reino nessa
campanha insana.
- Hayk, você mesmo disse que é meu prisioneiro.
- Porém não seu servo.
- Será?- Para que o fantasma materializado do guerreiro não pudesse
continuar se opondo, jogou sobre ele um ungüento, que escondera
em seu manto, preparado poucas horas antes pelo bruxo cinzento
para um fim específico: transformar o espírito de Hayk em uma
alma-zumbi, obediente a todas as ordens de Dicran. O guerreiro
lendário ardeu e se contorceu, tentou até investir contra o rei, caiu no
chão e, ao se levantar, com os olhos parecendo iguais aos de antes
(porém um mago perceberia naquelas pupilas uma ausência do fogo
da consciência; restavam as cinzas da vida, dispersas em volta), jurou
lealdade e obediência eterna ao soberano da Armênia; com os outros
não precisaria se preocupar, afinal seguiam sem titubeações as
ordens de seu líder.
Tiveram assim início os ataques a países vizinhos, a primeira meta a
de conquistar uma saída ao mar, derrotando diversos reinos até
chegar a península de Absheron. Lá, a rainha local, considerada uma
perigosa feiticeira, foi posta sob tortura a fim de denunciar eventuais
colaboradores entre os que haviam ficado em seu palácio e se
rendido e oferecido suas ajudas sem que obtivessem no entanto a
confiança do novo monarca, afora revelar onde escondera seu
tesouro. Dicran a acompanhou sendo despida pelos carrascos, seus
pêlos arrancados e a busca em seu corpo por alguma marca
demoníaca (sinal ou mancha que se acreditava que evidenciasse o
ponto que a bruxa supostamente oferecia ao Diabo para que este
sugasse seu sangue), pois como ainda não se tinha certeza que usasse
de magia negra, considerando apenas as denúncias de conspiradores
que tinham colaborado com os invasores e boatos no povo, os
tormentos apropriados para adoradoras das trevas ainda não
poderiam ser aplicados; supunha-se que as torturas para bruxas
tinham que ser mais duras não só por serem malignas como por
resistirem mais à dor. Uma marca, na perna esquerda de Sumgayit,
assim se chamava a soberana de Absheron, acabou sendo encontrada
para seu desespero, e uma corda foi amarrada a seu pescoço e com
uma engenhoca eram-lhe aplicados bruscos safanões, que
provocavam ferimentos ásperos; na seqüência, foi colocado um
terrível instrumento de ferro na boca da mulher, com dois pinos
espetando-lhe a língua e outros dois perfurando-lhe as faces. Não
demorou para que “confessasse” as práticas de bruxaria: cânticos
obscenos e rituais de sexualidade escancarada que visavam liberar
energia vital e reprodutiva para gerar criaturas astrais, golens de
fluido anímico que prejudicariam os conquistadores; em seguida
denunciou aliados reais e inimigos (nesse caso se aproveitara da
situação), revelando por fim a localização do grosso de seu ouro e de
suas jóias. Nos dias seguintes, praticamente toda a corte do reino foi
executada, mesmo os que tinham jurado fidelidade ao novo rei,
menos uma jovem filha de um conde, que Dicran resolveu tomar
para que fosse sua rainha, cedo porém apaixonando-se por outra e
casando-se também com esta, o que desencadeou uma reação
violenta no bispo de Yerevan em seu retorno triunfal à capital
armênia, onde recuperaria suas forças e guardaria seu novo tesouro.
Quanto a Sumgayit, terminou deixada de lado para que os carrascos
fizessem o que bem entendessem com ela, que na verdade não era
uma feiticeira, conhecendo certas práticas por meio de livros.
- Vossa majestade está cometendo um terrível erro e poderá dar
origem a uma abominação por meio deste casamento pecaminoso.
Um homem não deve ter duas mulheres, assim como uma mulher
não pode ter dois homens. Não é o amor e sim a luxúria que o está
conduzindo.- Disse o bispo diante de seu trono; o rei dos armênios
não se importava, com uma expressão de pouco caso, e respondeu de
forma educada mas irônica:
- Vossa excelência reverendíssima, qual a razão de um homem não
poder amar duas mulheres? Nas escrituras temos o exemplo de
Abraão, com Sara e Agar. Do meu ponto de vista, não há pecado
além daquele que concebemos em nossas mentes. Ou dirá que um
dos grandes patriarcas foi um luxurioso, um indivíduo sujo e
obsceno?
- Não falei nada disso em relação a vossa majestade, apenas o
advirto. Considere que os tempos eram outros, e que Abraão
precisava ter filhos, que a humanidade era pequena naquela época.
Deus precisava usar às vezes meios que hoje são considerados
estranhos.
- A humanidade continua pequena. Ainda não está do tamanho que
Deus gostaria, nem em quantidade de pessoas, nem em expansão. A
descendência de Abraão ainda não iguala a quantidade de estrelas.
Tal é minha meta.
- Advirto-o da mesma forma em relação a ambições grandiosas.
- Não sou guiado pela soberba, apenas amo o que a vida pode
realizar.- Deixara de lado inclusive seu velho aliado, o bruxo
cinzento, que desaparecera havia um bom tempo e Dicran, inebriado
pelo poder, sequer notara sua falta; isso enquanto em frente ao mar às
portas de Absheron, em uma igreja vazia, em uma noite em que as
águas se achavam agitadas, um grupo de bruxos e bruxas se reuniu
para executar a vingança do reino contra seu invasor. Sumgayit
estava morta, e sabiam que, embora cristã, havia sido uma mulher
tolerante e inteligente, que não suprimira outras religiões. A mesma
liberdade acreditavam que não poderiam esperar do rei dos armênios,
além de desejarem a autonomia daquelas terras.
- Seu lado pio não passa de um fachada. Dicran também é um
feiticeiro, tanto que seu exército sempre vence com a ajuda de outro,
de espectros adensados, que se manifestam de repente no calor da
batalha. Por mais que alegue que sejam anjos, algum de vocês
acredita nisso?- Indagou um dos feiticeiros.- Contudo, precisa
parecer um cristão exemplar para agradar os seus súditos.
- Mas parece que ele está perdendo a razão. Soubemos que vai se
casar com duas mulheres em uma mesma cerimônia. Ou seja,
permite o paganismo apenas para si.- Interveio uma bruxa, e depois
de algum tempo se amontoaram em volta de um cão apavorado, que
fora batizado com o nome do monarca e serviria como transmissor
do efeito mágico. Torturaram sua carne; só que não parou por aí:
ataram mãos e pés do cadáver de um homem, cujo corpo fora
roubado de um cemitério, às patas do cachorro, e prenderam os
órgãos sexuais retirados do corpo mutilado à barriga do pobre
animal, ainda vivo, colocando-os enfim entre as chamas de uma
fogueira incandescente. Concluída a cerimônia, conduzida com o
acompanhamento de cantos de ódio e violência, jogaram a oferenda
grotesca ao mar, que ficou ainda mais agitado. Nas horas seguintes
desabou uma tempestade que tingiu os céus de negro; os ventos
uivaram sobre as águas revoltas e foram vistas criaturas horríveis
emergindo das profundezas, entre polvos colossais e serpentes
marinhas.
Mesmo a quilômetros de distância, o rei armênio sentiu uma forte
dor no peito e apavorou as duas mulheres em sua cama, perdendo a
ciência de si e começando a espancá-las; as duas fugiram e o único
que se manifestou em seus aposentos foi o feiticeiro cinza.
- Até que enfim está de volta! Por onde andou?- Ao vê-lo, o
pensamento pôde regressar, conquanto as forças lhe faltassem e só
pudesse falar com ofegação; as pernas davam a impressão que iriam
se quebrar, os ossos de seus joelhos saltando para fora, e o coração
parecia na iminência de explodir.
- Aguardando que isso ocorresse.- Respondeu de forma sinistra.
- O que está dizendo? Preciso da sua ajuda...
- Não ouvi o seu chamado durante todo este tempo em que esteve
com suas duas belas e jovens noivas. Por que agora reclama?
- O seu modo de agir está estranho. Não me diga que...
- Acha que nasci para servir? Por que durante todo esse tempo teria
ficado ao seu lado se não fosse por meus próprios interesses?
- Eu lhe prometi ouro, prata e pedras.
- Se posso ter tudo, por que me contentaria com a parte? Você não
foi capaz nem mesmo de ser gentil com duas doces donzelas...Bastou
um feitiço fraco, e sucumbiu.
- Está confessando que me enfeitiçou?? Não posso acreditar!
- Já sujei demais as minhas mãos. Deixei dessa vez que as coisas
ocorressem da forma mais natural. Se a magia já é perigosa para os
magos, quem dirá para alguém que brinca com ela externamente! Só
vou colher a oportunidade.
- O que vai fazer, seu desgraçado?!
- Nada. Apenas aguardar o seu fim e tomar o seu lugar.
- Não pode fazer isso.
- Os fracos que nunca podem nada. Adeus, Dicran.
- Hayk é leal a mim, não a você.
- Quem disse que preciso de um exército de mortos? Posso proceder
de forma muito mais sutil e eficiente do que um tolo como você.
- Por que então demorou tanto a me trair?
- Não devo satisfações a você. Porém, de forma sucinta, ainda
precisava estudar o que realmente desejava e como poderia obter
isso. Afora que só conseguia manter a aparência de outro por
algumas horas. Só nestes últimos dias logrei obter o domínio pleno
na técnica, bastando me alimentar bem para não acabar exausto, e
poderei ficar permanentemente como alguém que não sou. Por essa
razão que fiquei ausente por todo esse período, menos mal que minha
falta não foi sentida; estava me aplicando no que me seria útil, e não
somente...Evoquei novas forças, e Hayk e seus velhos bárbaros não
se comparam a elas; um exército de demônios irá chegar às portas do
Vaticano e só então Dicran morrerá e reassumirei o comando. Mas
compreenda...Você não será esse Dicran.
O rei faleceu em contorções bruscas, entre urros e palavrões; e
ninguém ousou se aproximar do quarto antes que o feiticeiro tivesse
reduzido a cinzas o cadáver de seu antigo aliado, com as labaredas
que saíram de suas mãos, e tomado a forma deste. O novo Dicran, ao
abrir as portas, se apressou para se desculpar com suas noivas e
explicar que fora vítima de feitiçaria, porém se salvara graças a fé em
Cristo, auxiliado em última hora pelo arcanjo Miguel.
Como era previsível, o rei dos armênios não teve paz no além-
túmulo, indo justamente para os domínios onde Hayk e seus homens
o aguardavam. Em um vale espinhoso, seria submetido a sucessivas
torturas e espancamentos, depois sendo arrastado até o palácio dos
deuses pagãos do guerreiro lendário, com sua carne se reconstituindo
a cada massacre. O destino do bruxo cinzento também terminaria
sendo o de ali despertar e sofrer, pois os espíritos dos homens que
haviam sido profanados não o perdoariam, isso após sua derrota para
um grupo de cruzados liderado pelo célebre Barbarossa, que a Igreja
enviara à Armênia após receber pedidos dos povos cristãos daquela
área, diante da impotência dos exércitos humanos ao lidar contra as
hordas de demônios convocadas pelo enlouquecido rei Dicran. Uma
vez decapitado o feiticeiro por Barbarossa, os dois “Dicrans” se
reuniram mais uma vez para receberem a ira de Hayk.
Gabriela submergira naquelas cenas, mal se dando conta que
passara de expectadora a vivenciadora, sentindo na pele as agruras e
as ambições do rei armênio, chegando a se esquecer de si mesma e
do presente para experimentar apenas o passado. Só ao reabrir os
olhos de repente recuperara a consciência ordinária, e não como
quem volta de um sonho, porque fora muito intenso, tanto quanto a
própria vida...Porque deduziu que de fato fora uma vida.
- Isso não me surpreende. Nunca vi vidas passadas ao ingerir o
estramônio, mas nossos dons e focos são diferentes. Como sou mais
ligada à natureza, minha interação com ela aumentou; como você
interage com mais facilidade com os planos espirituais, acabou
vendo uma vida regressa e tenho certeza que em breve os seus
poderes aumentarão, se já não aumentaram e você não percebeu.-
Flora comentou quando conversaram sobre a experiência.- Lamento
apenas que tenha sido uma vida como homem...- O sarcasmo não
ficou claro devido à expressão entristecida do semblante.
- Aprendi muitas coisas com essa experiência. Em primeiro lugar,
que a alma realmente não tem sexo; em segundo, que além de
demônios e espíritos elementais, animais e humanos há centenas ou
milhares quiça de outros seres no plano espiritual. Os deuses que
povos como o de Hayk veneram ou veneravam podem ser criaturas
ancestrais anteriores à própria humanidade; ou, em alguns casos,
“deuses” moldados junto com seus palácios pela imaginação
humana, que os cristalizou e rendeu poderosos. E os Infernos
também não são apenas de propriedade dos demônios...
- E você tem alguma idéia de como conseguiu se libertar da fúria de
Hayk?
- Nenhuma.- Gabriela sorriu.- Mas o que importa é que consegui e
estou aqui, afinal, ao contrário do que os cristãos acham, nenhum
inferno é eterno. Hoje, Hayk também deve estar bem melhor.
- Será mesmo? Perece-me que ele era o típico homem que só pensa
em guerras, batalhas, sangue e violência. Não tinha uma conexão
com a natureza e seus espíritos. Sua alma era ignorante, bruta.
- Mas tinha a honradez dele, enquanto eu, como Dicran, não.
- Mas você progrediu. Só ao ter deixado de ser homem...
- Sempre implicando com eles!
- O que posso fazer se não me levam a confiar e não me mostram
que são dignos de respeito?
- Se você admite que as almas dos animais transmigrem em
humanos, por que não admite que o homem e a mulher sejam da
mesma qualidade?
- Se você achasse isso, teria se casado, como a Miriam, ou não?
- Nunca digo nunca, mas acho que não chegou a hora. E casar? Não
gosto dessa palavra, me soa muito cristã. Marido e esposa são termos
pesados! Prefiro um bom companheiro, que ainda não encontrei.
- Mas não nego que as almas dos homens transmigrem e se tornem
mulheres. É um claro salto, uma demonstração de progresso
espiritual.
- Você não toma jeito mesmo...
- A Raquel concordaria comigo, pelo que já sofreu com eles.
- Apesar de parecer louca, nesse aspecto ela é mais sensata.- Na
noite seguinte, Gabriela teve alguns sonhos com Dicran, sem
conseguir registrar os detalhes; esperou que as deusas fossem
generosas e não permitissem que em sua vida presente caísse em
tentações semelhantes. Contudo, estava quase certa que conseguiria
resistir...

III – Água

Raquel gostava muito de espelhos, e não só para admirar os


resultados de seus cremes e loções capilares ou para a pele à base de
ervas, mel e outros produtos naturais como reservara um, sem revelá-
lo nem mesmo às suas amigas, para funções mágicas. “Não que eu
tenha grandes ambições nesse sentido. Só quero registrar nele as
minhas emoções para que, quando me encarar nele, observe e apague
a postura errada, porque o que se sabe é que nosso passado não
passa, ao contrário do que a enganosa palavra sugere, ficando em nós
as mágoas, as raivas, as tristezas, turbulências e tempestades
interiores, que largam destroços e marcas piores. Nossos portos estão
cheios de navios abarrotados de entulhos, as águas cinzas recebem
abutres escamosos que não só voam como nadam, mergulhando para
caçar os peixes mortos, cansados embaixo do oceano; em vez de
minha alma e por decorrência o meu corpo ficarem com todas as
cicatrizes, que não deixam de sangrar fácil, vou transferir o que
posso para o espelho...”, o material não era um vidro comum, ou
melhor não era vidro, e sim gelo polido banhado com uma poção que
tinha sido preparada especialmente para essa obra, fixando em si
tanto o superficial como o profundo, não deixando escapar o
movimento das ondas, afinal mesmo estando sólido ainda era água:
após uma briga com um namorado, fora se olhar e vira o rosto
repleto de cortes, os piores acima das sobrancelhas e nas bochechas,
que cresciam e inchavam, cada vez mais vermelhas, terminando por
decidir que seria melhor encerrar aquele relacionamento, que a
estava machucando de forma anormal desde que aparecera uma
jovenzinha se dizendo grávida do sujeito, fonte de aborrecimentos
intermináveis para a bruxa, que num instante pensou em jogar todos
os seus elementais contra a garota, parando ao pensar sobre as
conseqüências e não tendo coragem de se abrir sobre isso com
Gabriela, envergonhada só de pensar em falar a respeito com
Miriam; em outra ocasião, com medo de se envolver com um homem
mais jovem, que dizia no entanto estar perdidamente apaixonado por
ela, fitou-se e o que viu foram alguns calombos na cabeça e os
cabelos caindo. “O que interpreto com isso? É pior do que tarot!
Ouvi dizer que na Lusitânia colocam chifres na porta de quem é
traído, e o homem que perdoa é obrigado a andar com um chapéu
com essas coisas na cabeça. Aqui, se a regra se aplicasse às
mulheres, que são quem manda aqui como eles lá, a minha porta
ficaria lotada! Mas eu que não ia andar com nada na cabeça...Pelo
visto, o espelho está me avisando!”, e decidiu a princípio não
namorar o rapaz, que continuou a segui-la e, admirador dos modelos
europeus de amor cortês, leitor constante de histórias de menestréis,
fascinado pelos trovadores, passou a fazer serenatas e a freqüentar
sua janela tarde da noite com alguns outros músicos; ele mesmo era
um harpista de regular para ruim, no entanto compensado pelos
tocadores de charamelas, cistres, saltérios, triângulos e gaitas de fole.
“Espelho desgraçado! Só quer me tapear, me deixar com a pulga
atrás da orelha...Ou eu que sou uma burra e não sei nem usar direito
o que eu mesmo criei, interpretando de um jeito completamente
errado! Gosto de música, mas a essa hora?? Pra fazer tudo isso, ele
deve gostar mesmo de mim...Reuniu amigos, tudo pra chamar a
minha atenção! O espelho só registrou a minha insegurança, foi isso.
Tenho medo de voltar a ser enganada, e não tinha como isso não sair
do outro lado. Só que preciso entender o MEU lado...O lado da vida,
não dos reflexos. Se não tivesse dado bola pros meus receios, não
estaria com essa bagunça não me deixando dormir...”, estava brava e
feliz ao mesmo tempo, nervosa e satisfeita, ao se olhar no espelho
encarando uma sombra difusa que acabou tomando a sua forma só
que com duas cabeças, uma sorridente e a outra triste; mandou às
favas o passado e espectros voaram do “vidro” para cima,
abandonando sua clausura. Deixando de resistir, não abriu sua porta
àquela hora, porém no dia seguinte procurou o rapaz e por fim
aceitou seu pedido de namoro, evidente o júbilo nas faces de ambos.
- Vamos ver se dessa vez tenho melhor sorte. Estou cansada de
tentar, tentar e só quebrar a cara.
- Talvez deva bater menos cabeça com cabeça, porque desse jeito o
crânio que quebra, é uma conseqüência natural e não se consegue
pensar. Deixe que os ventos a levem, siga o ritmo da vida, não tenha
pressa. A ansiedade só atrapalha.- Gabriela comentou a respeito
quando soube do novo romance.- Mas posso dizer que estou muito
feliz por você estar com alguém de novo! Só precisa ficar confiante,
não fazer comparações com o passado.
- Vou tentar, minha amiga. Bem que queria ser como você às vezes.
- Somos únicas, e cada uma de nós dá o que tem de melhor e único.
Ele se apaixonou por você, é o que importa; tem que se valorizar,
tomar consciência disso.
- Não sei o que ele viu em mim. Não sou bonita, falo além da conta,
brinco demais pra algumas pessoas, até comigo mesma...Sou bem
chatinha, pra ser sincera.
- Pelo contrário, você é muito divertida! Só não enxerga quem aí sim
é chato. Relaxa, menina.
- Às vezes acho que os homens enjoam de mim porque se irritam.
Homem tem um ego muito grande, e frágil, não gosta de rir de si
mesmo. Qualquer coisa eles desmontam.
- Esse é mesmo um problema masculino, mas eles riem sim de si
mesmos, só não admitem que uma mulher ria deles.- Gabriela
liberou um risinho.
- Acho que vou tentar me conter um pouco...- Raquel disse num tom
um pouco melancólico.
- Está falando sério? Não faça isso, Raquel...Tem que ser você
mesma. Ou uma hora o seu eu verdadeiro estoura.- E a bruxa mais
velha se lembrou do espelho; chegou a vê-lo rachando e se partindo
para depois derreter. Aquela água solidificada não admitia mentiras.
O relacionamento seguiu bem pelos três meses seguintes, até ele
começar a ficar distante, um tanto frio, e a não ir em seu encalço
todos os dias; quando ela ia, parecia não ser tão desejada, ou mesmo
não o encontrava em casa. Os encontros passaram a rarear, de quatro
vezes por semana a três, depois a duas, então a uma e por fim a uma
vez por mês. Sem explicações de término, sem drama e sem
despedidas pareceu estar tudo acabado, feito um vapor que se evola
de uma panela cheia d'água, ao final não restando sequer uma gota.
Só que uma bruxa não se contentaria com tão pouco, sempre em
busca da razão de algo acontecer: numa noite, foi até a casa do rapaz,
só que ao invés de bater à sua porta esperou que saísse e decidiu
segui-lo, acompanhando-o para a floresta. Sempre se escondendo
atrás das árvores, dos arbustos ou das pedras à medida que
avançavam, espantou-se quando o jovem filho do moleiro, que se
chamava Mateus, loiro, corado e de grandes olhos azuis, parou e veio
vindo do mato uma figura estranha, um homem em manto azul-
escuro e a cabeça branca e raspada repleta de símbolos, olhos de
fundo amarelo e pupilas negras; sentiu um calafrio diante daquele
indivíduo, que se manifestou com uma voz gutural e encorrugida,
encarando o outro com uma intensidade doentia, parecendo não ter
dentes:
- Trouxe o que lhe pedi?
- Sim, meu mestre. Finalmente poderá ter o que deseja.
- Por que demorou tanto?
- É mais paciente do que imaginei, e precisei de um bom plano para
trazê-la aqui. Agora pode se saciar...- Sorriu com um cinismo
doentio, que Raquel não conhecia, tentando presumir do que ou de
quem estavam falando. “Que clima pesado...Como pode?? Esse aí
não parece ser o Mateus...E quem é esse outro??”, perguntou-se, de
repente nascendo do solo tentáculos vegetais que a prenderam;
tomando um susto, não conseguiu reagir a princípio.- Minha querida
Raquel, espero que me desculpe! Não fiz por mal. Nunca duvide do
quanto amei você...- O “rapaz” se voltou para sua “amada” ainda
distante.
- Até que enfim será minha. Estava cansado de só ter migalhas
humanas...- O que parecia ser um mago das trevas a puxou para perto
de si, arrastando-a pela terra sob seus pés; seus olhos frios se fixaram
no alvo desesperado. A bruxa vociferou:
- O que é isso, Mateus?? Por que isso?? Quem é esse homem? Por
acaso você vendeu a alma??
- Me perdoe, Raquel. Mas você não ama e nem nunca amou o
Mateus. Você ama quem se encontra neste corpo.- O semblante
começou a se deformar, com dentes aguçados surgindo e as veias dos
olhos saltando em vermelho e calombos aparecendo na testa; a pele
ia perdendo a cor e a voz doce e macia ficava retorcida e grave,
enfumaçando-se.
- Há um bom tempo que esse corpo que a acompanha não pertence
mais a uma alma humana...- Disse o feiticeiro.- Pertence a um dos
meus servos, que enviei para capturar você.
- Como sempre, tiro a sorte grande com os homens...Quem é você e
o que quer de mim?!- Bradou ainda retida por aqueles cipós nos
braços e pela terra que endurecera; cogitou evocar as ondinas para
amolecê-la, mas depois chegou à conclusão que ainda não era hora
para lutar.
- O meu nome é Iulius, nasci muito longe daqui, de uma família
romana se quer saber...Só que nos tempos em que Roma ainda era
um grande império irreligioso, antes do nascimento do descendente
de Davi e Salomão que colocou tudo a perder. Teríamos um mundo
mais livre hoje se não fosse por aquele profeta dos miseráveis.
- Não estou interessada em filosofia e história. Quero as suas
explicações sobre o que quer de mim. Pretende me comer? Aviso que
sou indigesta.
- Como disse, estou farto de migalhas humanas. Por isso bem que
gostaria que você fosse meu novo alimento. Mas depois que vi o
espelho que fez, acho que pode ser mais interessante do que pensei.
Quero seu espelho de gelo!
- Quer dizer que anda me espionando?? De que jeito? Mateus...
- Não, Mateus não é meu informante nisso. Ando estudando vocês,
bruxas de Magdala, há décadas. Sou bastante paciente, ao contrário
do que pareci diante do meu ajudante, mas isso porque ele tinha a
carne em mãos e não a trazia.- Raquel olhou para o
namorado...Namorado? Já não sabia mais o que ele era, e se sempre
fora um monstro ou se fora possuído depois de conhecê-la. Como
Miriam e Gabriela não haviam notado nada? O jovem encerrava sua
transformação, com asas membranosas brotando em suas costas e os
pés monstruosos arrebentando os sapatos, camisa e calça já rasgadas
pelos músculos que tinham inchado de modo desmensurado.- Na
verdade sou um habitante do astral. Só que antes de perder o meu
corpo em um acidente de laboratório, há muitos séculos, enquanto
fazia experiências para descobrir o elixir da eterna juventude, já
havia encontrado uma maneira de transferir minha alma para
autômatos orgânicos, feitos tanto com engrenagens como com pele,
órgãos e ossos de seres humanos. Naquela época aperfeiçoei minha
capacidade de projeção do espírito a esse ponto, mas isso só
funcionava e continua a funcionar com os bonecos que faço e imanto
com símbolos precisos. Por sorte o primeiro boneco escapou à
explosão e pude seguir vivendo nele e fazendo outros, que mantenho
por segurança em diferentes lugares do mundo, trocando minha alma
de corpo quando me apraz, assim como posso vagar pelo plano astral
na intersecção deste com o físico, observando vocês. Também
aprendi a comandar demônios inferiores, como no caso do que
possuiu o corpo do jovem moleiro. Tudo para que ele me trouxesse
você. Não se iluda: desde o início o espírito humano não se achava
mais nesse corpo, podendo haver algumas fagulhas no ímpeto de
menestrel; porém mesmo essa postura foi planejada.
- Mas então como ninguém percebeu nada??
- Acha mesmo que não?- À indagação do bruxo, Raquel sentiu as
presenças de Miriam e Gabriela, justamente as duas que ela não
compreendera por que não haviam notado nada de estranho.
- Gabriela, sua desgraçada! Por que me incentivou a ir em frente
com ele?!
- Desde o começo percebi algo de ruim, mas era muito sutil, e não
podia ter certeza. Rezei para que estivesse enganada, porque queria
ver você feliz, e assim te deixei tentar. Só que hoje percebi que
estava errada e vim me redimir. Por isso chamei a Miriam também.
- Enganei todas vocês muito bem!- O monstro que deformara o
corpo de Mateus com sua alma corrompida riu da cara das três.
- Você não fez nada, imbecil.- O bruxo recriminou seu subordinado.-
Tive que fazer um esforço tremendo para suprimir a sua grosseira
energia maligna durante todos esses meses.
- E mesmo assim percebi algumas pontas de pneuma violento.-
Comentou Gabriela.
- Por que quer esse espelho da Raquel? E o que pretende conosco?-
Miriam, que prestara bastante atenção no que ouvira do inimigo,
avançou; dela o feiticeiro parecia ter um certo receio, como a bruxa
do ar percebeu, sentindo-se mais segura caso ele fosse muito esperto
e perigoso. Estava com uma maga de primeira grandeza ao seu lado.
- É melhor não avançar mais, ou quebro os ossos da sua amiga. Vou
lhe responder, não se perturbe tanto: é apenas que sua querida irmã
de bruxaria não sabe que poder tem em mãos, que é capaz de
preservar naquele vidro de gelo conhecimentos preciosos, e acessar
através dele os registros de Akasha, que guardam todas as
informações a respeito do astral e do físico. Trata-se de uma lente
que pode revelar o segredo da Pedra Filosofal e muitos outros, pois
possui a propriedade de armazenar os sentimentos humanos, que pela
fé transformam a água em vinho. Por enquanto Raquel só sabe
guardar ali emoções turbulentas e mandá-las embora, mas poderia
transmutá-las nas expressões mais sublimes do coração e do
intelecto.
- Ouvi que este corpo que ocupa é na verdade um autômato.
Pretende algum dia recobrar um corpo humano ou isso não o
interessa mais?
- É essa a razão primordial de eu querer esse espelho. Os autômatos
possuem um grande defeito: me tornaram um vampiro, porque
necessitam constantemente de carne e sangue humano para se
manterem em funcionamento. Sempre que entro em um deles, sinto
uma fome devastadora, e preciso comer...Só que comer humanos
normais, sem poderes, sem dons, não me satisfaz, e muito menos
estes dão os nutrientes necessários para esta magnífica máquina
orgânica, sendo necessárias dezenas de homens e mulheres para
permitir que sobreviva por míseras semanas em atividade. Quando
inativo, fica bem, hibernado; no entanto, para caminhar e correr, o
alimento é fundamental. Bruxas e magos, com seus copros imantados
por correntes espirituais e corpos geralmente saudáveis, equivalem a
mais ou menos cinqüenta humanos comuns...Que por isso defino
como sendo migalhas, enquanto meu pão são vocês. Entrementes,
ainda afirmo que não gosto de viver assim, perseguindo o meu
semelhante...E se vim atrás das bruxas de Magdala em busca de
sustento, encontrei algo maior: com o espelho poderei transferir a
minha alma para um outro corpo humano, incorporar em um humano
como alguns demônios de categoria baixa conseguem fazer.
- E por que mantém a Raquel viva?
- Miriam, isso é pergunta que se faça?!- A bruxa das águas
esbravejou; Gabriela fixou seus olhos no demônio que possuíra
Mateus, louco para atacar, contido pelo feiticeiro dos títeres de carne.
- É uma ótima pergunta, que tem uma resposta simples: quero que a
sua amiga me sirva. Não foi o moleiro quem se sentiu atraído por
ela...- E deixou escapar um sorriso de canto de lábio perfeitamente
humano e um tanto diabólico.- O que acha disso?- Voltou-se para a
morena.- Sou um patrício, um homem de berço, e ainda assim me
olha com essa cara de nojo? De onde acham que saíram os versos
que ele cantou para você? A poesia e música não eram falsas, apesar
do cortejador ser. Não porque não existisse, e sim por não ser quem
se apresentava.
- Era melhor você ter derrubado a porta pra roubar o meu espelho de
uma vez. As coisas comigo têm que ser sempre assim...- Deixou que
escorressem algumas lágrimas raivosas.
- Me dê seu espelho e garanto que só farei você sorrir de hoje em
diante. Suas amigas não têm com o que se preocupar...Não posso
dizer que a amo, porque não tenho mais esse tipo de sentimento. Mas
quero fazê-la feliz, fazer nossas carnes felizes.
- Por que eu?? Por que teve que escolher justo eu???
- Porque você é especial, Raquel. Não é qualquer mulher que
consegue forjar uma espada de fio perfeito, mesmo que depois não
saiba o que fazer com ela.- Gabriela e Miriam permaneceram na
observação, deixando de interferir; Miriam até se afastou, intuindo o
que estava por vir.
- Vai pro Inferno, seu filho da puta...- Principiou por uma mancha
úmida aparecendo perto das pernas de Raquel, no lugar onde tinham
caído algumas de suas lágrimas, eclodindo uma água violenta que
libertou seus pés, cortou os tentáculos vegetais e jogou longe o
inimigo; “Mateus” partiu para cima, porém seus golpes não atingiam
a bruxa, que não conseguiu atacá-lo, mas Gabriela já estava fazendo
um bom trabalho e Miriam voltou a avançar, desta vez em
velocidade, e decapitou o monstro humano. Depois se desculpou
com a amiga:
- Perdão, Raquel. Não havia outro jeito...Sinto muito.
- Era só um corpo...Que não me amava. E nunca amei ele...O que
amei foi uma ficção.- Replicou com amargura, ainda chorando.- Ou
um sortilégio...Uma trapaçaria...- Passou um braço sobre os olhos
cheios também de raiva.- Vou me vingar daquele sujo.
“Acho que a subestimei...”, levantando-se encharcado de um
arbusto espinhoso, Iulius sofria com dores em todo seu “corpo”; do
seu ponto de vista, ainda havia muito a ser feito, estava apenas
começando, pois queria não só o espelho mágico como desejava o
sangue e os espíritos de Miriam e Gabriela. Não desistiria: espalhou
um clarão ao seu redor e se tornou invisível; na seqüência, passou a
volitar sobre o chão, onde fez surgirem espigões pétreos e vegetais
que foram se espalhando pelo solo até chegarem à área das bruxas; as
teria ferido com gravidade se uma quarta, para seu espanto, não
tivesse chegado, bloqueando sua magia. A terra principiou a reverter
o ataque, como se borbulhasse por dentro, e o feiticeiro sentiu que a
força que provinha desta o procurava. A quarta mulher, que não viu
mas sentiu, tinha um sabor acre, diferente.
- Onde ele está?- Indagou Flora, recém-chegada, às suas
companheiras.
- Nós não sabemos. Desapareceu. É um mago cheio de ardis. Há
tanto tempo com a mesma consciência, treinando e estudando,
conhecendo tanto o astral como o físico, não pode ser qualquer um. É
perigoso.- Observou Miriam.
- Além disso tudo, guarda algo da força e do conhecimento de cada
oponente que sugou. Possui um pneuma confuso, que não é unitário,
são centenas de vozes e rostos se manifestando ao mesmo tempo. As
almas de suas vítimas ainda não estão livres, se encontram presas,
amarradas mesmo que não saibam.- Comentou Gabriela, que sentira
o ataque de Iulius antes das outras e advertira mentalmente Flora,
que acabara de chegar.- E se espalham pela floresta, fazendo com
que eu fique confusa. Algumas pedem ajuda, outras ficam do lado
dele. Já são escravas ou também vampiras, mesmo que ele não se dê
conta da maioria. Só consigo identificar a energia dele quando ataca,
que é o único momento em que se torna coesa. Talvez por isso
também não tenha decifrado direito a energia do invasor do corpo do
Mateus desde o princípio.
- Órion, consegue encontrá-lo?- A bruxa da terra e dos seres vivos,
sem perder a concentração do solo, que usaria como arma quando
tivesse a primeira oportunidade, se voltou para o seu cão-lobo, que
começou a farejar, enquanto Raquel não dizia nada, olhando de um
lado para o outro, tentando não explodir. Miriam suspirou e chegou
perto da amiga para aconselhá-la:
- Não adianta ficar desse jeito. Descontrolada, não poderá se vingar.
As forças do inimigo tendem a só crescer quando nos
desencontramos de nós mesmas. O que há fora se distorce quando o
que temos dentro se contorce. Concentre-se; lembre-se de quem é.
- Quem eu sou?? Grande coisa...Eu não sou nada. Sou um fracasso
como bruxa...A única coisa que fiz bem, o maldito espelho, pode
servir pro mal e já querem tomar de mim!- Raquel meneou a cabeça
para os lados com brusquidão e levou as mãos ao rosto; Órion
apontou para uma área estranha, em direção à qual começou a rosnar:
Gabriela notou que ali parte de uma árvore estava “interrompida” no
seu campo de visão mesmo sem haver aparentemente nada à sua
frente, diferentemente de suas companheiras, que completavam a
imagem pela tendência cerebral de se preencher um espaço com
elementos conhecidos; seu treinamento dava cada vez melhores
resultados, podendo enxergar ambientes com a visão do espírito, e
assim logo deduziu que o inimigo estava ali e passou a vê-lo e sorriu
satisfeita, indicando à companheira:
- Está ali!- Quando os olhos se encontraram, e não foram só quatro,
pois havia a visão psíquica aberta para ambos, Iulius levou um susto,
pois estivera certo de que não seria notado, seu raciocínio
interrompido, encerrada a tranqüilidade para elaborar um plano, e um
estalagmite direcionado por Flora saiu do solo e o empalou; Órion
latia sem parar. Raquel correu na direção do bruxo outra vez visível,
formando em suas mãos uma espada de gelo, após resfriar e adensar
o ar à sua volta, e fincou-a no peito do títere.- Esse é um boneco, mas
o que ela está procurando não é.
- Espero que ela consiga.- Comentou Flora, com seu sorriso peculiar.
A dor da segunda perfuração, diferente do que fora a primeira, era
muito superior a qualquer dor física; o antigo feiticeiro percebeu que
não estava conseguindo deixar aquele corpo, bloqueado pelos
sentimentos da bruxa do espelho, e à sua volta se juntavam suas
vítimas do passado, algumas que haviam estado sob seu domínio,
consciente e ou inconscientemente, recobrando nem que fossem
centelhas de sanidade, e se preparavam para uma estrondosa
vingança; sangue escorria de seu espírito e ia sendo congelado; o frio
abrasava seus olhos, sua mente, e dessa forma ficou cego; mesmo no
plano astral não conseguiu enxergar mais nada. Num ato desesperado
de sua vontade, tentou com sua intenção se deslocar para outro
autômato, sem sucesso. Sua alma não poderia morrer, mas aos
poucos foi perdendo a consciência, esmagada por centenas de outras,
atormentadas, como corvos que iam pousando e fechando suas asas
sobre a carcaça, ou baratas que se acumulavam sobre um monturo,
ao fim indiscernível, cascas em volta de cascas com o núcleo que era
uma polpa sangrenta e indefinida, sem espaço para ver, sentir ou
pensar. Foi se dissolvendo, enquanto os que vitimara se
desmanchavam no ar.
- É horripilante...- Disse a maga do ar, olhando para a Miriam, com a
qual estava compartilhando a visão do fim de Iulius; esta não disse
nada, atenta e preocupada com Raquel.- Uma alma que agora vai
passar por um bom sofrimento cíclico nos mundos inferiores e
depois por encarnações problemáticas. Apesar que eu também já não
fui tão boa coisa e hoje estou aqui.
- Se ele conseguir uma encarnação feminina, talvez evolua um
pouco.- Opinou Flora, que apesar do semblante sério Gabriela sabia
que estava sendo irônica.
- Pelo que esse monstro fez a Raquel sofrer, por hoje concordo com
você.
- Estou com muita pena dela.
- Não sinta pena.- Miriam interveio.- É disso que ela não necessita
agora. Precisa de amor e apoio.
- Estou sofrendo por ela. Às vezes me coloco no lugar dela e chego à
conclusão que é por isso que nunca vou querer um homem ao meu
lado. As armadilhas são muitas.
- Já basta o sofrimento da própria pessoa. Sofrer pelo outro é uma
estultice. Temos que ficar firmes para amparar quem sofre, não cair
nas lágrimas junto, o que não resolve nada.
- Você está muito rígida hoje, Miriam. Por acaso nunca sofreu por
alguém?- Indagou Gabriela.
- Sofri por mim. Pelo que me foi causado ou pela falta de alguém.
Entendam que não estou minimizando o sofrimento alheio, nem
dizendo que devemos ser insensíveis e recriminar quem chora. O que
quis dizer é que temos que ser sensíveis o bastante para ter a força de
resistir à compaixão fácil, que acomoda, e agir, dando a mão para
erguer quem caiu.
- Entendi melhor agora, mas cada um sente e reage de forma
diferente; a Flora não é você.
- Não é o momento para discutir.- Miriam se afastou e foi para perto
de Raquel, que uma vez derrotado Iulius ficara de joelhos, próxima
do falso corpo.
- Você não me entendeu...Fazer o quê?- Gabriela encolheu os
ombros, sorriu e depois avançou junto com a outra; Flora acariciou
Órion, que parara de rosnar e latir porém ainda se achava um tanto
inquieto por dentro, conquanto não se movesse; a jovem bruxa sentia
seu estado de ânimo perturbado. Acompanhou como sempre a dona
para perto da sofrida amiga, aos poucos reanimado pelos passos que
davam em harmonia sobre a terra, revigorando-se com o conjunto
das forças, e lambendo-lhe a mão quando precisou sinalizar que
estava melhor. Satisfeita com a resposta, ela passou os dedos
carinhosamente pelas orelhas em riste. Era um cão maior do que o
normal e com olhos lupinos, de extraordinária sensibilidade grupal.
- Não precisa perguntar como estou. Estou péssima, é só o que
consigo responder.- Assim Raquel reagiu à aproximação de Miriam,
levantando a cabeça com uma expressão triste e perturbada, os olhos
inchados, para encarar a companheira.
- Não ia mesmo perguntar. Ia deixar você se expressar primeiro.
Deveria saber como entendo e respeito esse tipo de momento.
- Mas você ainda tem o seu marido e a sua avó pra te apoiar. Eu não
tenho ninguém. Nunca tive. Eu que devia ser séria o tempo todo, em
vez de me iludir fazendo brincadeiras. Melhor ficar louca de vez,
ninguém me entende!
- Não fala besteira, menina.- Gabriela interveio.- E nós somos o
quê?
- Você se esqueceu do que aconteceu com os meus pais?- Indagou
Miriam.- Todos sofremos. Neste mundo, ninguém nasce livre de
padecimentos, ou as crianças não nasceriam chorando e sim rindo. Se
o seu estado anterior era artificial, se tentava se impor uma alegria
que não existia, se não era o seu verdadeiro eu essa pessoa que
conhecíamos e que nos contagiava com seu jeito de ser, então se
observe e reflita: talvez seja hora de mudar. Seja como for, vamos
continuar do seu lado, ao contrário do que você pensa.
- Não é a “Raquel divertida” que amamos. É a Raquel, apenas e
simplesmente ela.
- Pelo visto, a vingança não a satisfez.
- De jeito nenhum! Porque não resolveu nada do meu problema, do
mesmo jeito que aquele demônio que você mandou de volta pro
Inferno não trouxe os seus pais de volta. A minha felicidade não
volta mais, e cansei de desilusões, uma atrás da outra.- Despejou
Raquel.
- Viva para si mesma. Ame-se. Não precisa de nenhum homem para
ter valor.- Opinou Flora; Órion se aproximou para lamber o rosto da
bruxa ainda no chão. Ela retribuiu acarinhando-lhe a cabeça e
abraçando-o, ainda sem sorrir.
- Você não entende...Não procuro ninguém pra me dar valor. E acho
que nenhuma mulher procura isso, as que procuram são idiotas. Só
queria um pouco de carinho.
- O carinho às vezes precisa vir de dentro da gente.- Observou
Gabriela.
- É a mesma ladainha de sempre. Na hora de encontrar esse carinho,
onde ele está?
- Preste atenção, olhe direito pra si mesma...Vai acabar encontrando.
Só não pode ter ansiedade.
- Chega. Vou me levantar...Não sei se existe uma fênix das águas,
que em vez das cinzas renasce do balde que derramou, mas eu vou
tentar. Sou cabeça-dura mesmo.
- É assim que tem que ser. Seja teimosa, afinal enquanto estamos
vivas a guerra não termina.
- Mas que às vezes cansa, isso cansa...- Liberou um sorriso,
correspondido pela maga do ar; Flora e Miriam estavam sérias e a
segunda foi se retirando.- Que as deusas me dêem forças; não é mole
eu ser eu. Sou insuportável demais. Vai ver fui eu mesma que
transformei o Mateus em capeta.
- Melhor tirar um sarro da própria desgraça do que sofrer com ela. A
Flora que me desculpe, mas rir e sorrir é melhor do que qualquer
planta medicinal!
- O problema é quando esse sarro mascara, quando é falso, uma
fuga. Vou tentar não confundir mais as coisas, e ter as minhas horas
de seriedade quando precisar de seriedade.- Ao ouvir isso, Miriam
sorriu sem ser vista.- Agora a primeira coisa que vou fazer quando
voltar pra casa é destruir aquele espelho; pra que nunca caia nas
mãos de nenhum bruxo atrás de bruxinhas.
- Se quiser, hoje pode se segurar em mim...Arrasto você pra casa.
Assim guarda as suas forças pro trabalho que vai realizar.
- Eu hein...Preferiria me segurar no Órion, pelo menos ele é macho,
e esse é dos bons, diferente dos machos humanos!- Raquel se soltou
e fez carinhos no cão, que abriu a boca e exibiu sua satisfação
lambendo-a e abalando o rabo; Flora enxugou os olhos, umedecidos
por algumas lágrimas inesperadas.

IV – Terra

Cada uma das plantas e ervas nos aposentos de Flora guardava um


significado, uma função e uma história específicas, que ela fazia
questão de preservar com carinho, não só fisicamente como em seu
coração, que buscava uma constância maior nos caminhos e
itinerários, mesmo que aos olhos de suas colegas parecesse talvez a
mais estável mesmo com a pouca idade. Das abóboras, variando em
cor e tamanho, gostava das pequenas e pesadas, de casca dura, que
moía para ajudar em problemas de anemia e quaisquer outros
relacionados ao sangue, e polpa mais rígida; não podia deixar de se
lembrar de uma viagem que fizera a uma das ilhas do norte, em uma
cidadezinha onde estavam caçando bruxas e uma mulher fora detida
justamente por guardar uma abóbora em casa, o que era considerado
sinal evidente de feitiçaria; uma grande, provavelmente
encomendada, aparecera na porta de sua casa contendo dentro um
gato e um rato mortos em posição de conflito, como se tivessem
perecido lutando um contra o outro naquele espaço exíguo.
- Em nome do Espírito Santo, morte às feiticeiras!- Um grupo de
“bons cristãos”, com tochas, facas e arados, se aproximara da casa da
mulher, derrubando sua porta ao se darem conta que não sairia e
puxando-a para fora após queimarem a residência, pisoteando e
reduzindo a cinzas tudo o que poderia haver de bom; ela costumava
alimentar animais e pegar alguns para si, o que era visto como outra
marca de bruxaria:- A casa dela está cheia de gatos, sapos e outros
monstros disfarçados de bichos! Acabem com todos eles! São arautos
do sabá!- E esse fora o destino daqueles seres inocentes, inclusive
dos pássaros nas gaiolas. Flora se limitara a observar, enquanto a
neve caía, levando em conta que a maioria dos que estavam ali eram
homens.
Sabia que a abóbora, de fácil digestão e regulando as funções do
intestino, tinha ação de fortalecimento sobre o pâncreas e os rins,
promovendo o aumento da diurese e agindo sobre a próstata,
diminuindo ou evitando a hipertrofia da mesma. Mas se confessava
que para os homens não lhe agradava receitar nada; a energia vital
residindo nos rins, armazenadas ali as reservas necessárias à
existência futura, só tinha algum ânimo ao tratar de quem era do sexo
masculino quando tinha uma filha e/ou uma companheira que amasse
genuinamente e com intensidade. Com os solitários, possuía sérias
dificuldades, ainda mais quando lhe pediam ajuda e logo distribuíam
assédios e cantadas, inclusive os idosos, que ignorava e que a
convenciam que em qualquer idade existiam pervertidos.
Crescera com sua mãe entre outras duas irmãs mais velhas; seu pai,
um carpinteiro chamado Huss, de modos simples, ruivo de olhos
verdes, fora um bom homem, seu fraco justamente o de não resistir
aos encantos femininos e acabando, para desespero e indignação de
Joana, a mãe de Flora, por engravidar uma vizinha da família, da
qual nasceram duas gêmeas. Sete mulheres para um só homem; era
demais, e previsivelmente foi expulso de casa, impedido de ver as
três meninas, que cresceram acreditando ter sido abandonadas, o que
acabou sendo mais forte na caçula, dado que Huss morrera quando
tinha apenas doze anos e na época quase não saía de casa, por ordem
da mãe, a não ser acompanhada por suas instrutoras para seu
treinamento mágico, a fim de que não corresse o risco de se
encontrar com ele. Joana também adoeceria e viria a falecer naquele
período, sem revelar toda a verdade do caso, pouco depois da que
dera à luz as gêmeas. Flora cresceu com uma forte mágoa do pai e
dos homens, chegando à conclusão que nunca fora amada, e nem
mesmo os argumentos das irmãs, que haviam conhecido melhor o
carpinteiro, puderam convencê-la do contrário. Além disso, seu tio,
irmão de sua mãe, também não fora bom exemplo, envolvendo-se
com a magia goética às escondidas daquela sociedade de bruxas e
sendo encontrado, por sua companheira, sobre um pentagrama
invertido traçado no chão e velas apagadas em cada ponta, repleto de
queimaduras. “Homens não deveriam mexer com magia. Eles não
têm o mesmo dom.”, afirmava; da mesma forma, ficava possessa
quando algum homem se metia em seus tratamentos, dando opiniões
em uma área na qual jamais a natureza masculina alcançaria um
entendimento profundo, a relação com a terra e seus frutos vistos
como algo inerente à sensibilidade feminina.
Buscava manter a melhor alimentação possível e aconselhava a suas
amigas e pacientes para que nunca deixassem de lado uma boa
salada, com alface e agrião entre outras verduras, a primeira
promovendo a circulação de energia do organismo, evitando as
estagnações que poderiam ocorrer no fígado e no trato digestivo,
como diarréias e dores abdominais, e a segunda benéfica tanto para o
estômago e o sangue como no umedecimento das vias respiratórias,
seus problemas de tosse e boca seca na infância solucionados
justamente graças a essa hortaliça. Também costumava usar alface
em preparados medicinais para combater insônia, icterícia e
vertigens e o agrião para eliminar toxinas do organismo, combinando
as duas em tratamentos de reumatismo.
Gostava também de preparar banhos, usando a alfavaca contra
pernas inchadas (além desta ser útil como diurético), um problema
do qual muitas vinham se queixar com freqüência, os casos mais
graves não podendo nem encostar o pé no chão pelas dores
decorrentes do inchaço. Flora às vezes ficava preocupada, dando-se
conta que precisava melhorar seu equilíbrio emocional, porque em
muitos casos esse mal se devia a algumas mulheres guardarem
problemas e mágoas em demasia. Um de seus distúrbios de
adolescência inclusive nunca fora solucionado: quando parecia séria
ou triste, estava na verdade alegre; quando sorria, estava de mau
humor ou triste. Não havia o que invertesse esse padrão, conduzindo-
a a uma “normalidade”. O fato começara a se manifestar após sua
primeira menstruação, que por sinal fora a única por muito tempo, o
que levara sua mãe na época à conclusão que se tratava de um
problema relacionado; a garota não queria mais menstruar, isso
confessava, e fora-lhe explicado com atenção e ternura por Joana, de
cabelos castanhos cacheados e olhos da cor do mar, bastante parecida
com a filha, só um pouco mais rechonchuda:
- Filha, você não precisa ter medo e nem nojo. É um processo
natural do corpo feminino, e você precisa inclusive saber qual é o seu
ciclo, quais são os dias certos, e dar valor a isso, porque é uma defesa
que temos, eliminando sangue sujo; quando não acontece, podemos
ter problemas sérios, muita energia fica estagnada.- E os processos
seguintes incluíram muitas cólicas e dores no abdômen, sintomas
minimizados aos poucos com banhos de assento, que incluíam ervas
como cavalinha, alecrim, eucalipto, alfazema, arruda, louro e urtiga
branca; contudo, nada da distorção emocional ser resolvida, e não
demorou para a amenorréia voltar a se manifestar. Sua mãe decidiu
tentar um chá que aprendera com a avó de Flora, levando ao fogo
algumas folhas de calêndula, entre outras plantas, junto com a água,
deixando-as ferver por dois minutos e abafando, destampando e
coando após cinco minutos; adocicou com mel para ficar mais
agradável e uma xícara três vezes ao dia eliminou a ametremia. No
entanto, nada dela sorrir ou parecer nervosa ou chorar na “hora
certa”; a própria não encontraria jeito de resolver o problema com
nenhuma de suas infusões. Por isso ainda não se julgava perfeita
como bruxa-curandeira: se não era capaz de curar a si mesma, de que
maneira poderia curar as outras? Por mais competência que tivesse
nesse segundo campo, recebendo constantes agradecimentos e
presentes pelo sucesso nos tratamentos, não se conformava por não
poder retribuir a um sorriso e, para quem não a conhecia, muitos
gestos seus poderiam passar por ironia, arrogância e desrespeito.
- Você se cobra demais, é rígida, e não se liberta e ainda não libertou
o seu pai de si mesma. Ele já está morto, já não devia te perturbar
mais. Sabe de uma coisa? Os piores fantasmas não são os que podem
nos dar um susto aparecendo no meio da noite e sim os que moram
dentro da nossa cabeça; e muitas vezes os que aparecem não deixam
de pertencer a essa segunda categoria.- Gabriela expusera em uma
conversa.- Você é muito competente, e um talento nato pra quase
tudo. Dê valor a isso e deixe o passado pra trás; não o arraste como
uma bola de chumbo acorrentada à sua perna ou, como você teme,
algum dia ela vai inchar.- A maga sorriu, e o sorriso daquela amiga
era talvez o que Flora mais admirava; pena que não pudesse
corresponder. Por mais esforço que fizesse, seu rosto não
correspondia, e se tentasse sairiam caretas estranhas que a faziam
sentir ridícula, ainda mais por terem uma vez provocado o riso de
Raquel, que em seguida recebera uma bronca de Miriam.
- Todas nós nos cobramos e somos duras com nós mesmas, o
problema é que algumas passam dos limites, e eu sou uma dessas.-
Gabriela já compreendia a expressão severa como um sorriso de
resposta.- A minha sorte é que tenho amigas como você, porque se
dependesse das minhas irmãs não teria nada, nenhum apoio, e elas
são diferentes de mim, guardam uma mágoa profunda da mamãe que
não tenho e por isso nem quiseram se envolver na bruxaria.
- Menos mal que não tem ressentimentos em relação à sua mãe, pelo
menos.
- Ela cuidava muito de mim, com um carinho e uma atenção que não
tinham igual. Acho que por isso as minhas irmãs ficaram com
ciúmes, inveja, ainda mais por eu ter herdado e até expandido o dom
dela com as plantas. Sempre tive essa facilidade; quando lia algo
sobre ervas, no momento seguinte já estava trabalhando nelas,
pronta, enquanto as outras demoravam muito mais.
- E as suas outras irmãs?
- Não conheço bem. São duas conhecidas, pouco mais do que duas
estranhas. Talvez pela raiva que guardo do meu pai, não quis me
relacionar com elas, que me lembram muito ele.
- Talvez devesse se aproximar delas. Seria uma quebra do passado e
um caminho pra começar a perdoar o seu pai...E você precisa fazer
isso.
- É...- Flora sorriu dessa vez, demonstrando sua tristeza, o que
turvou o semblante de Gabriela; não foi adiante nas palavras. Um
sinal de que algo poderia ocorrer foi quando, dias depois, uma das
filhas do pai de Flora bateu à sua porta e estava com uma criança no
colo: tratava-se da rebenta de um dos tios da moça por parte de mãe.
A meia-irmã foi simpática e afável o tempo todo, tendo procurado
Flora por sua fama de curandeira; a menina estava com amidalite.
- Ela tem bastante desconforto pra engolir. Sente dor e arde.
- Também pudera, está com as amígdalas inflamadas, com muita
vermelhidão e inchaço.
- E o que pode ser usado pra resolver?
- As amígdalas ficam na entrada da garganta como uma proteção,
barrando os agentes patogênicos externos. Mas elas podem inflamar
como uma decorrência de substâncias estranhas no organismo,
toxinas, ou por má alimentação e má respiração. Pra amenizar o mal-
estar, costumo preparar dois chás de ervas, um pra inalação e outro
pra bochechos.
- Vai me passar a receita?
- Vou mostrar como se prepara e dar a primeira amostra pra você.-
Sorriu, ao que a meia-irmã, que não a conhecia tão bem, imaginou
que fosse por receptividade, retribuindo, embora Flora na verdade
não conseguira segurar sua melancolia e queria que o quanto antes
aquela mulher se retirasse. Lavou as ervas, confrei, tansagem e
malva, e em seguida as levou ao fogo com água, deixando ferver e
depois abafando e coando.- Esse tem que ser bochechado de quatro a
cinco vezes ao dia.
- E o outro como funciona?
- É o próximo que vou preparar.- Juntou em um recipiente folhas de
tansagem, cebola, sal e eucalipto, colocando água fervente por cima,
cobrindo o rosto da garotinha e pedindo-lhe para que aspirasse o
vapor.- E existem outros chás que servem, e você pode preparar da
mesma forma que o primeiro: se tiver em casa urtiga, bardana,
alfavaca e salsaparrilha, misture-as; se tiver casca de angico, folhas
de amoreira, camomila, canela, salvas carapiá, hortelã, malva e
folhas e flores de rosas, chás dessas plantas produzem bons efeitos.
- Obrigada, Flora. Como posso agradecer pela atenção?
- Não precisa me agradecer por nada. É o meu trabalho.- E tornou a
sorrir, embora pelo tom de voz parecesse ríspida; a outra percebeu
algo de estranho, mas julgou que fosse impressão sua. “Não voltar
mais seria um grande favor...”, pensou a caçula de Huss e Joana.
Nos dias que se seguiram, Flora enfrentou problemas com azias e
catarro, o que conseguiu amenizar graças a um chá de anis estrelado;
seus banhos costumavam ser demorados, mas começou a estendê-los
ainda mais, lavando seus cabelos com arruda cozida com um pouco
de vinagre, o que lhe fora receitado por Raquel quando esta notara
que seus fios andavam um pouco ressecados, isso desde a visita da
meia-irmã. Pouco depois, veio a outra, com um menino.
- O que ele tem?
- Muita tosse. Consultei uma outra curandeira, ela disse que é
bronquite, só que não resolveu; o que ela passou não adiantou nada.
Então resolvi seguir a indicação da minha irmã, quer dizer, da nossa
irmã.- E riu um pouco, Flora permanecendo aparentemente séria,
embora tivesse rido por dentro com um tanto de amargura; era
idêntica à outra, os cabelos ruivos lisos e os olhos bem verdes.- Ah,
antes de tudo, esse é meu filho.
- Meus parabéns, é um belo garoto.- Teve que se torcer para dizer
isso, mas falou.- Está com quantos anos?
- Fez quatro anos há duas semanas!- A receita foi à base de assa-
peixe e, após o sucesso, houve uma volta, com barbatimão em forma
de lavagem, aplicada externamente, para feridas e esfoladuras que o
menino sofrera. Contudo, foi essa a relação que continuou entre as
três: de curandeira e pacientes, sem nenhum envolvimento mais
profundo, entre conversas sornas. Por sinal, afora as que tinham se
tornado suas três grandes amigas, Miriam, Raquel e Gabriela, era
bastante arisca e esquiva com as pessoas, próxima como se sabia das
plantas, e principalmente dos bichos.
Acreditava piamente que as almas, no caminho da evolução
espiritual, podiam passar por corpos vegetais e animais sem que isso
acarretasse necessariamente em uma decadência, havendo casos nos
quais alguém que fora um ser humano precisaria se encarnar como
animal para conhecer de perto outras formas de vida e de enxergar a
realidade e lidar com a existência, explicando-se assim os casos de
bichos que pareciam ser quase tão inteligentes quanto humanos,
realizando coisas inacreditáveis. Em uma de suas viagens, caíra-lhe
em mãos um texto de São Barnabé, presenteado por um padre
quando ela fora a uma Igreja na Bretanha se passando por cristã: “O
porco designa os voluptuosos e os ingratos, que não reconhecem os
seus superiores se não por necessidade, e são luxuriosos, têm asco da
castidade; as aves de rapina são os reis e os poderosos que vivem
sem trabalhar às custas do povo; os peixes que habitam as
profundezas do mar figuram os pecadores impenitentes; a doninha e
a lebre são símbolos de impureza; os ruminantes, cuja carne é
permitido comer, representam os justos que refletem sobre os
ensinamentos enviados por Deus, seus pés rachados revelando-nos
que caminhando neste mundo aguardam a vida futura.”, e havia os
que interpretavam esse trecho como uma indicação que Barnabé
advogava pela metempsicose, e não só apresentava uma simbologia;
entrementes, isso era negado com veemência pelos eclesiásticos,
ponto de vista defendido por pensadores laicos que acabavam
forçados a se calar (afinal o homem fora feito à imagem e
semelhança de Deus para governar sobre as outras criaturas, não para
sua alma entrar no corpo de uma). E com a metempsicose tradicional
Flora concordava em parte...Pois enquanto esta afirmava ser o animal
um degrau inferior na escada da vida, a bruxa defendia que não
existiam graus, somente experiências distintas, e não seria à toa que
os povos antigos adoravam certos animais como deuses. Discordava
frontalmente do texto, sabendo que este aludia a algumas prescrições
judaicas, no que dizia respeito a animais puros e impuros (e como
reminiscência disso a população da ilha de Magdala, a maioria de
origem judia, por muito tempo não criou nem comeu porcos), sendo
vegetariana não por considerar certas carnes impuras ou indignas e
sim por convicção que não precisava comer nada que fosse obtido
com sofrimento e violência, pedindo permissão mesmo às plantas
quando as arrancava da terra ou às frutas e folhas de galhos,
abençoando-as na seqüência.
Os animais não necessariamente deviam ser pecadores,
concordando que os ruminantes podiam ser mesmo mártires, que se
sacrificavam para nutrir outros seres e aguardavam uma vida futura;
quanto à carne suína, estudara o suficiente para saber que a
imposição contida na Bíblia servia para convencer gente sem
instrução, que não entenderia de outra forma, a não ingerir um
alimento que no deserto, onde a proibição fora feita, estraga com
facilidade, tornando-se uma matriz de inúmeras doenças. Não que o
porco, um pobre animal, fosse tudo o que de ruim diziam dele;
tratara-se somente de um meio para prevenir os ignorantes a respeito
de males maiores.
- E por que a Igreja é contra a metempsicose?- Perguntara
justamente ao padre que lhe dera o texto.
- Porque é uma blasfêmia. Deus nos fez únicos, e para uma única
vida.- Diante dessa resposta, ela se lembrara de alguns trechos das
Confissões de Santo Agostinho, que lera recentemente: “Não terei eu
vivido em outro corpo, em alguma outra parte, antes de entrar no
útero de minha mãe?” e “Dizei-me, eu lhe suplico, ó Deus,
misericordioso para comigo, que sou miserável, dizei se minha
infância sucedeu a outra idade já morta, ou se tal idade foi a que
levei no seio de minha mãe? (...) E antes desse tempo, quem era eu,
minha doçura, meu Deus? Existi, porventura, em qualquer parte? Era
eu, por acaso, alguém?”; também se recordara que Jesus teria dito
que João Batista havia sido Elias, mas preferira não polemizar com o
presbítero.- Além disso, quem defende a metempsicose nega a
ressurreição de Cristo e a remissão dos pecados humanos. Se fosse
possível reencarnar, que a alma trocasse de corpos na Terra, de que
teria valido a Paixão? Afinal, qualquer um poderia se redimir por
conta própria e teria inúmeras chances para isso. Deus é
misericordioso, mas é por essa misericórdia que existe o Purgatório
para os pecadores que se arrependem; não há necessidade de retornar
a este vale de lágrimas. Escute bem, minha filha: discussões
destrutivas e infrutíferas sempre ocorreram e vão continuar
ocorrendo na esfera da ciência, da política e da filosofia. Mas temos
a Verdade e a Vida, que está à nossa disposição se seguirmos o que as
escrituras nos dizem. Para a boa-nova, não precisamos morrer e
retornar centenas de vezes só para nos aperfeiçoarmos de uma
maneira ínfima, ou então regredirmos, que é o que de mais
abominável podem sugerir os que defendem a metempsicose,
afirmando que nos tornamos animais! Barnabé falou apenas sobre
símbolos...Não a respeito de animais efetivos, muito menos sobre
trocas de corpos. Não se deixe corromper pelos pensadores
pretensamente livres, que fazem de suas vidas um campo de batalha
e querem que assim seja para todos, removendo os inocentes da
única doutrina sincera, que em nenhum momento tem o dedo do
Diabo, tanto que é apenas a Igreja que sempre combateu e combate
os demônios. Os hebreus desapareceram, da mesma forma os infiéis
muçulmanos, e quanto aos hindus e aos seguidores de Buda também
se tornaram poucos, e não passam de idólatras que nada podem
contra as forças do Inferno conjuradas por magos e bruxas. O veneno
se espalha às vezes sem querer: quando um comerciante defende por
exemplo o aborto para uma filha que foi violentada, está sem se dar
conta não só sacrificando a vida de um inocente que deveria nascer
pela vontade de Deus, ou o ventre da jovem não teria ficado
intumescido, como estimulando as pessoas a acreditarem na
metempsicose, pois logo aparecerão os partidários dela para defender
o aborto, afinal vidas vêm e vão e corpos são trocados; a vida não
tem nenhum valor para essa gente! Será que me entende, minha
jovem? Não existiria assim a justiça divina, tão só ações e reações,
escambos espirituais. Os piores envenenadores são os inconscientes,
que não passam de marionetes do Demônio; de que adianta plantar
uma árvore, se esta dá frutos venenosos? Citei o caso do aborto
porque foi algo que ocorreu recentemente neste burgo em uma
família rica, porém ímpia.
- Acho que compreendi, reverendo. Mas que fim tiveram o pai e a
filha neste caso, se foi o que realmente aconteceu?
- Tratei de excomungá-los junto com os médicos e as curandeiras
que propiciaram o aborto. Estas últimas foram para a fogueira, pois
como se não bastassem os meios naturais usaram de magia para dar
um fim à vida da pobre criança.- Flora não costumava ficar muito no
mundo cristão pois não suportava tantos dogmas e autoridades
pretensiosas, ainda mais sendo masculinas; preferia ficar na sua ilha,
onde podia contar com uma companhia melhor, menos verborrágica:
Órion, meio-lobo e meio-cão, resultado da relação de um cadela que
engravidara na vizinhança após a passagem de um lobo por ali.
Como o dono não tinha nem espaço e nem ânimo para criar outro
animal em sua casa, sendo sua esposa uma cliente de Flora, a bruxa
logo se oferecera para cuidar do filhote, que se revelou forte, ágil e
obediente, só demorando a se acostumar com outros seres humanos
além da “mãe” adotiva:
- Nossa, como ele é bravo!- Raquel exclamou após quase ter a mão
mordida ao tentar acariciá-lo quando ainda tinha menos de um ano.
- Órion, comporte-se!- Flora deu a bronca e o animal parou de
rosnar e saiu de baixo da mesa com docilidade e por fim aceitando as
carícias da outra.
- Que mudança...Um macho humano assim obediente que seria bom
em qualquer circunstância, né amiga?- Sorriu de forma maliciosa.-
Bravo com as outras mulheres, submisso só à dona...Pena que as
pessoas são diferentes dos bichos.- E a mais jovem não respondeu,
limitando-se a se aproximar e afagar as orelhas do cão-lobo com uma
expressão sorridente, na verdade repleta de melancolia.
Com o tempo, foi percebendo como a personalidade do animal era
semelhante à sua; pareciam ter sido mesmo feitos um para o outro,
ainda que não houvesse romantismo nessa afirmação...
Quando cresceu, passaram a sair juntos pela floresta e ela lhe
permitia caçar para que se alimentasse, não abdicando assim o
animal de suas características selvagens. Por ele e por si mesma,
orava com suas próprias palavras sobre qualquer que fosse a presa,
coelho, gamo ou esquilo, a fim de que o solo absorvesse o que não
fosse comido, servindo assim de alimento à terra, e recebesse o
espírito do inocente, que se reintegraria à roda da vida para dentro de
pouco escolher uma nova encarnação. “Tendo se sacrificado, nada
mais justo do que na próxima existência neste plano se tornar um
animal mais forte, menos indefeso; assim está provado que na
natureza não existem injustiças, que são introduzidas pelo homem,
somente um processo contínuo de aprimoramento ao ambiente de
acordo com as necessidades. Um dia, alguns serão caçadores; em
outro, caças. Cabe ao homem, que se julga feito à imagem e
semelhança de Deus, e privilegiado por seu pretenso intelecto,
embora não seja o único consciente de si mesmo, ficar fora tanto de
uma coisa como de outra, pois assim como pode escapar às garras e
aos dentes dos predadores, podendo se defender quando necessário,
não precisa caçar para sobreviver. Talvez justamente por ser onívoro
que o homem seja o único animal com livre arbítrio, capaz de optar
se quer ou não se tornar um assassino ou um comedor de cadáveres;
a vida de qualquer forma vai e volta, gestada nas entranhas da terra e
parida com uma sinceridade que a liberdade não nos fornece.”

SEGUNDO ATO

Da Árvore

(...) devemos falar sobre as inteligências, os espíritos e os anjos.


Uma inteligência é uma substância inteligível, livre de qualquer
massa corpórea grosseira e perecível, imortal, insensível, que ajuda
em tudo e tem influência sobre tudo. As inteligências, os espíritos e
os anjos têm a mesma natureza. Chamo de anjos não aqueles a quem
normalmente chamamos de demônios, mas os espíritos que, na
acepção da palavra, sabem, entendem e conhecem.
Há três tipos destes, de acordo com a tradição dos magos. Os
primeiros chamados de supercelestes, com mentes totalmente isentas
de corpo, esferas intelectuais adorando um único Deus, sua unidade
ou centro mais firme e estável. São chamados de deuses por
participarem da Divindade e estarem sempre plenos de Deus. Estes
permanecem sempre ao redor de Deus, não regem os corpos do
mundo nem são designados para governar as coisas inferiores, mas
infundem nas ordens inferiores a luz recebida de Deus, distribuindo
a cada um a sua tarefa. Os segundos são as inteligências celestes,
chamados de anjos do mundo, designados para as esferas no mundo
além do culto divino, e para o governo de cada céu e cada astro.
São divididos em tantas ordens quantos céus existem no mundo e
quantos astros há nos céus. São chamados de Saturninos os que
governam o céu de Saturno e o próprio Saturno, de Joviais os que
governam o céu de Júpiter e o próprio Júpiter, e assim por diante
todos os nomes dos diferentes anjos assim como as virtudes de
outros anjos (...)
Em terceiro lugar, estabeleceram como ministros os anjos para
dispor as coisas que estão abaixo, chamados por Orígenes de
poderes invisíveis, aos quais as coisas da terra são designadas para
serem ordenadas. Às vezes, orientam, invisíveis, nossas viagens e
todos os nossos negócios, frequentemente estão presentes nas
batalhas, e, como ajuda secreta, proporcionam aos seus amigos o
sucesso desejado, pois podem proporcionar prosperidade e infligir
adversidade ao seu bel-prazer. Estão subdivididos em ordens
conforme suas essências: ígnea, aquática, aérea ou terrestre.
Estas quatro espécies de anjos são computadas de acordo com os
quatro poderes das almas celestes, ou seja, a mente, a razão, a
imaginação e a natureza vivificadora e movedora. Os ígneos seguem
a mente das almas celestes, contemplando coisas mais sublimes. Os
aéreos seguem a razão, favorecendo a faculdade racional, e de certa
maneira, separam-na da sensitiva e vegetativa, servindo a uma vida
ativa, assim como os ígneos servem à contemplativa. Os aquáticos
seguem a imaginação, servindo a uma vida voluptuosa. Os terrestres
seguem a natureza, favorecendo a natureza vegetal (...)
Da mesma maneira que uns são chamados homens da floresta,
outros montanheses, outros campesinos, outros domésticos, há
deuses das florestas, deuses dos campos, sátiros, familiares, fadas
das fontes, fadas das florestas, ninfas do mar, as náiades, as
nereidas, as dríades, hamadríades, parcas, musas, as graças, os
gênios, os duendes, e assim por diante (...)
Escreveram-se muitas coisas a respeito do número dos anjos. Os
teólogos mais recentes, seguindo os mestres das sentenças Agostinho
e Gregório, concluem que o número de anjos bons transcende a
capacidade humana. Por outro lado, correspondem-lhes inúmeros
espíritos impuros, havendo tantos deles no mundo inferior quantos
espíritos puros no superior. Alguns sacerdotes afirmam que isto lhes
foi revelado. Abaixo destes existem espíritos subterrâneos, os
obscuros, os quais os platônicos chamam de anjos que falharam,
designados pela justiça divina a serem os vingadores da iniqüidade
e da falta de fé. Chamam-nos de anjos malignos e espíritos nefastos
porque frequentemente perturbam e ferem até por vontade própria.
Formam muitas legiões, correspondentes aos nomes dos astros, dos
elementos e às partes do mundo, regidos por reis, príncipes e
soberanos. Quatro reis dos mais nefastos regem-nos de acordo com
as quatro direções do mundo. Abaixo deles governam vários
príncipes das legiões e muitos oficiais particulares. Daí as
Górgonas, as Fúrias, como Tisífone, Alecto e Megera, e Cérbero. Os
seres deste tipo, como diz Porfírio, habitam o interior da própria
Terra. Não há dano que não ousem cometer. Têm uma natureza
violenta e agressiva, tramando e realizando danos violentos e
repentinos. Quando fazem incursões às vezes se ocultam, às vezes
atacam abertamente, comprazendo-se imensamente em todas as
coisas nefastas e danosas (...)
Poderíamos duvidar se anjos ou daimons, por serem espíritos
puros, usam qualquer discurso vocal ou linguagem entre eles ou
conosco. Paulo diz em algumas ocasiões: "se falo na língua dos
homens ou dos anjos". Muitas pessoas se perguntam qual será sua
linguagem ou língua. Muitos pensam que, se os anjos usam um
idioma, certamente é o hebraico, porque este foi o primeiro de todos
e veio do céu, e existia antes da confusão de línguas na Babilônia. É
a língua na qual foi dada a lei por Deus Pai, nela o Evangelho foi
pregado por Cristo, o Filho, e tantos oráculos foram dados aos
profetas pelo Espírito Santo. E como todas as línguas tiveram que
passar e passam por diversas mutações e transformações, esta é a
única que continua sempre intacta. Um sinal evidente da validade
desta opinião é que, embora o daimon e a inteligência usem a
linguagem das nações nas quais habitam, falam sempre em hebraico
com quem entende esta língua. Mesmo assim, para nós é velada a
maneira como os anjos falam, assim como velados estão eles
mesmos para nós. Para falarmos precisamos de órgãos como a
língua, as mandíbulas, o palato, os lábios, os dentes, a garganta, os
pulmões, a áspera artéria e os músculos do peito, que são acionados
pela alma. Se falamos distantes um do outro, precisamos elevar
nossa voz. Se falamos próximos um do outro, podemos sussurrar no
ouvido, como que unidos ao ouvinte, sem qualquer barulho, como
uma imagem dentro do olho ou num espelho. Assim falam as almas
que saíram do corpo, as anjos e os daimons. Aquilo que o homem faz
com uma voz sensível, eles o fazem imprimindo a imagem do que
estão dizendo naqueles com quem estão falando, de maneira melhor
do que se tivessem que se expressar numa voz audível. O seguidor de
Platão diz que Sócrates percebia seu daimon pelos sentidos, não do
seu corpo físico, mas pelo sentido do seu corpo etérico, oculto no
físico. Avicena acreditava que os anjos eram vistos e ouvidos pelos
profetas desta maneira. Este instrumento, qualquer que seja sua
virtude, pelo qual um espírito traz ao conhecimento do outro as
coisas que estão na sua mente, é chamado pelo apóstolo Paulo de
língua dos anjos. Ainda assim, frequentemente eles emitem uma voz
audível, como aqueles que gritaram na ascensão do Senhor:
"Homens da Galiléia, por que estais a olhar para o céu?". E no
Velho Testamento falavam com vários patriarcas com uma voz
sensível, mas somente quando assumiam um corpo. No entanto,
ignoramos totalmente com que sentido estes espíritos e daimons
ouvem nossas invocações e orações e vêem nossas cerimônias.
Os daimons têm um corpo espiritual naturalmente sensível, que
toca, vê e ouve sem qualquer meio e sem qualquer impedimento.
Mas eles não percebem assim como nós, com diferentes órgãos, e
sim como as esponjas que assimilam a água, assimilando todas as
coisas sensíveis com os seus corpos ou de alguma outra maneira
desconhecida para nós. Nem todos os animais são dotados desses
órgãos, pois conhecemos muitos a quem faltam os ouvidos e mesmo
assim percebem o som, embora desconheçamos como.- Excertos de
Magus, de Francis Barrett.
“Eis o pentagrama: encerra-se com ele o que para muitos é abstrato
e uma questão de fé ou crença; não que a fé seja desnecessária, mas o
fundamental sempre será a prática, a experiência, sem a qual o
magista se limita a fantasiar, sem obter nenhum resultado. Pelo
pentagrama fica evidenciado o domínio do Espírito sobre os quatro
elementos, encadeando as salamandras, os silfos, as ondinas e os
gnomos, do mais sutil ao mais denso; trata-se do signo que permite
descortinar o espiritual diante do material, respeitado do Céu ao
Inferno, compreendido como a chave para cada uma das portas do
palácio do Rei. A primeira, ao ser aberta, mostra uma casca marcada,
cada linha em sua pele representando um caminho, uma seqüência de
eventos que se conectaram para formar o que de perto é um sulco:
este é o corpo físico, com suas limitações e sendeiros estreitos, ainda
assim possíveis. Ao abrir a segunda fechadura, temos a princípio
uma respiração; não há imagens, nem sons, nem o que tocar ou com
quem falar, podendo ser sentido um odor vago e indeterminado, onde
se escondem milhares de rostos, que pouco a pouco tomam forma:
estamos diante do espírito, que por dom da natureza e pela bênção de
Deus cria pela imaginação, que não é senão a capacidade inerente à
nossa alma de assimilar reflexos e imagens contidas na luz astral. A
imaginação não é a fantasia dos loucos, ainda que faça parte da
inspiração dos poetas; vai além, acessando as valiosas informações
contidas nos registros de Akasha, dos quais os indianos nos falaram
em sua literatura e que os grandes sábios e gênios conseguem
acessar, ainda que a maioria sem consciência disso, compondo obras
que ficam para sempre como generosas heranças de suas passagens
pela Terra para a humanidade, na verdade interpretações canalizadas
de idéias primordiais que talvez sejam inacessíveis ao intelecto
humano, ou ao menos enquanto o humano não se tornar Christos,
que nada mais é do que um estado, não um indivíduo. Mahdi,
Mashíach, Buddha, Avatar, palavras diferentes para designar o
homem-deus, distante do homem comum como este se diferencia dos
animais. Esta é a minha visão; penso diferente dos essênios, que
acreditavam que Jesus fosse um iniciado puro e avançado, que após
sucessivas encarnações teria alcançado esse grau para, após receber
os ensinamentos e as instruções dos ascetas do deserto, sublimando o
corpo, transubstanciando a carne, estivesse preparado para receber o
Cristo, uma entidade à parte, enquanto acredito que o homem e
Christos não são realidades separadas e sim a união absoluta do
humano com o divino, quando o humano se supera, sem existirem
cisões, na verdade a centelha da luz absoluta já estando presente em
qualquer pessoa, conquanto adormecida. Os essênios postulavam o
Cristo como algo similar ao anjo guardião, que do meu ponto de
vista é o mensageiro, o intermediário entre o Criador e a criatura
enquanto esta não alcança seu ápice espiritual; quando isso ocorre, o
anjo da guarda não é mais necessário e se torna apenas mais um
valioso amigo espiritual ou se integra ao Christos; ainda não tenho
um parecer definitivo a esse respeito. O meu Cristo é mais interno,
de algum modo semelhante ao corpo-alma, ao soma psuchicon de
Paulo, ao Manto Nupcial Dourado de Mateus; dessa forma, cada um
é seu próprio salvador, tendo sido Ele, Jesus, um exemplo e não um
martelo. A Igreja ama recortar as sutilezas; em público, porque em
privado recolhe cada pedacinho. Como se dará o segundo advento?
Acredito que não nos corpos, mas nas almas de cada indivíduo,
quando cada um se tornar o que o Mestre foi. Os muçulmanos
afirmavam que Jesus Cristo não foi crucificado, que Judas teria sido
transformado em seu sósia e crucificado em seu lugar, assim punido
pela traição, e o grande profeta teria partido em seguida; nisso onde
estariam o exemplo e a sublimidade do Ensinamento? Não à toa que
o islão foi erradicado da Terra. E os que restam desta crença espúria
sofrem com os erros de seus antepassados; se a Igreja erra ao colocar
pesos e cortinas, Maomé não passou de um vendaval assassino. Não
há de se confundir a Igreja com a monstruosidade que são os
cruzados, que são piores do que justificar a fé pela espada; estes são
obra apenas de parte dos eclesiásticos, de sua facção mais podre, os
curas que se vestem com sangue, literal e figurativamente; mas tenho
que deixá-los de lado no momento...Para que possa depois combatê-
los. A minha imaginação tem que se tornar diáfana, a ponto de
discernir todos os segredos que meus inimigos e inimigos da Igreja e
do povo de Deus guardam; a massa vítrea cheia de escórias
putrefatas tem que se tornar clara e cristalina. Desde que soube que
aquelas criaturas de rostos humanos são na verdade em parte
demônios, minha obsessão se tornou exterminá-las, para assim salvar
a alma do corpo que Cristo deixou na Terra, porém terei que reunir
forças que ainda sequer consigo conceber. O domínio sobre os
sonhos é fundamental; não posso mais admitir a dispersão, que
desprende minhas energias, e devo buscar compreender o que a luz
me mostra, sem introduzir fantasias onde há realidade, deixando de
confundir os reflexos com os seres que se observam e não dando
importância às ilusões dos seres infernais nem confiando cegamente
nos sentidos, pois o que os olhos vêem com freqüência é mentira,
preferindo selecionar o que desejam que seja mostrado à consciência.
No sonho, negarei a fuga; abrirei o fruto que sai desta flor extática,
porém negra, de aparência discreta e néctar doce, chamada Sono. O
problema do sono é que é o êxtase dos fugitivos, dentro do qual se
alienam para escaparem de sua consciência; a única diferença entre o
sono e o silêncio da entrega a Deus é o grau de presença, nulo em
um, pleno em outro, o que pode deixar a entender que são opostos;
contudo, no Uroboros a boca e a cauda estão muito próximos. O
sonho, portanto, estando próximo do êxtase, é, quando a fruta está
fechada, sua casca tornada grossa, uma cortina que oculta e
interrompe o fluxo do olhar; ao ser aberta, expõe a verdade de outros
planos da existência. Sonhar significa receber refrações de raios de
uma realidade além da ordinária, o que se distingue das alucinações,
que são ilusões ocasionadas por reflexos. Ao alucinar, o homem pode
ser tentado, pois seus pesadelos se materializam, seus medos se
impõem e Deus fica como que não tendo nada a dizer, afinal seu
filho ficou surdo, indiferente, e a esse embebedamento invasor segue
a loucura. O iniciado, o mago, deve saber distinguir o reflexo do raio
e separá-los; isso só foi feito por poucos até hoje e é por isso que os
verdadeiros sábios se contam nos dedos de três ou quatro mãos.
Admito que ainda sou um ignorante, sabendo somente reconhecer
que na natureza não existe vácuo ou vazio; tudo é povoado, tudo
vive, e onde temos a impressão que não há nada existe um respirar
silencioso que dá sentido a uma existência que só é ínfima aos
nossos olhos restritos. Digo e repito para mim mesmo: os sentidos
são enganosos, e se eles não vêem a estrela, eu a vejo, e nisso está o
sentido do pentagrama, que é uma estrela da imaginação que
interliga os mundos, uma máquina que nos transfere de um andar
para o outro dentro de um palácio onde as portas ficam nos tetos e
pisos. Os meus dedos estremecem, uma volúpia santa e ingênua,
juvenil e sincera, apodera-se de mim e faz ferver as minhas veias e
excita os meus nervos; as vertigens se diluem, a alma se fixa aos
poucos; frente a este signo que Deus presenteou ao homem, meu
coração se enche de alegria e uma impulsão inexplicável me leva a
crer que os mistérios da natureza serão desvendados. Tudo se torna
claro sem que as palavras precisem ser ditas; os espíritos me
circundam antes que eu possa vê-los, mas sei que estão aqui, e não
tenho medo. Se os sentidos são morte em comparação com a
intuição, permaneço de pé para que a minha mente não me engane; o
meu peito se impõe para retirar o véu. Vejo algumas mulheres
grávidas; suas crianças vibram, pulsam, qualquer que seja o estágio
de desenvolvimento em que se encontram, e podem ser todos ao
mesmo tempo, do embrião ao recém-nascido, o momento já veio, a
exposição pouco importa, o sol os espera sem temor. Alguns
julgariam estúpido que um símbolo tenha tanto poder; mas se é
assim, por que milhões cederam à cruz e multidões ainda se prostram
diante dela? O sinal por si nada é, limita-se a um desenho; porém as
correntes espirituais que um signo carrega formam uma alma, e se
talvez em um mundo anterior a este o pentagrama tenha sido
imantado por Deus, não há nada que nós, mortais, possamos fazer
para reverter essa magia. Encontramos um dogma que é Verbo, uma
vontade para a qual tudo o que dela se exclui não refulge, é mudo e
opaco. Magia é a ação consciente sobre si mesmo, sendo a ação
sobre o meio em que se vive uma conseqüência; Deus a pratica o
tempo todo, pois se por um instante se tornasse inconsciente e
deixasse de olhar para Si mesmo, o universo se desmantelaria, nós
nos tornaríamos efetivamente pó em um determinado momento e
depois sequer o pó faria sentido, engolido por uma luz cada vez mais
quente e sem controle que se faria forno, chamas que por fim se
entregariam à própria falta do fogo; chegaríamos ao crepúsculo das
criaturas, à supressão do medo que não é vontade. Por onde
continuar andando se o deserto não tem saída? O alto nos oferece a
chuva e o mar; as areias se desgastam, a praia se abre a ondas que
tocam o adeus. Pela bondade de Deus, esse dia da definitiva
despedida nunca irá chegar; se temos noite, é porque o dia existe, e
nisso mora a sabedoria, o segredo da chave que reúne e aponta, sem
que se precise falar em queda; ninguém será capaz de me matar,
apenas de me despir. Meu único medo é de ficar nu em pleno Paraíso
e assim ser expulso antes de realizar o que tenho a fazer antes que o
Jardim seja profanado. Com humildade, peço para que a espada do
querubim me seja entregue; com ela, terei sonhos que não serão mais
delírios e sim saborosos bulbos de esperança...”, diante do
pentagrama traçado em ouro no chão, o Superior General da
Companhia de Jesus decidiu que era melhor parar de pensar e,
pondo-se em oração, entrou no círculo mágico, traçado em sua
imaginação, que entrementes se tornou concreta: uma luz azul de
traços dourados se manifestou sem hesitações, envolvendo Fernando
Pizarro, cujo susto inicial deu lugar a uma devoção e uma
tranqüilidade inauditas; abriu os braços e depois suavemente a boca,
pronunciando devagar algumas palavras de fé. Sua respiração se
expandia, com todos os poros de seu corpo passando a auxiliar as
narinas; em seus olhos, o reluzir de um manto áureo; em seus dentes,
e havia alguns empretecidos ao fundo, o alvor se tornou absoluto;
seu pescoço ficou firme e suas costas relaxadas; por suas pernas
percebeu que subia outra luz; e do encontro inesperado nasceu o
novo, a seus pés aparecendo uma espada de lâmina prateada e
empunhadura solar, cravejada com pedras de fulgor de estrelas; não
era excessivamente grande nem comprida, na medida certa para ele,
um trabalho precioso que transcendia o humano. Quando se abaixou
para apanhá-la, sentiu passos sem ouvi-los; diante de sua face,
testemunhando com reverência ao levantar os olhos, viu aquele que
evocara, um dos querubins das portas do Éden:
- Sou Sidael. Nunca deixo de atender aos que me chamam. Fiques
porém ciente que não poderei combater por ti. Trouxe-te esta espada
para que me substitua, para que com ela sejas capaz de cortar os
demônios sem ferir a ti mesmo. Não és espadachim; porém como
mago deverás compreender que o Poder vai além de técnicas, objetos
e objetivos.- Quantas asas aquele ser possuía, impossível precisar,
envolvendo Pizarro em dezenas de camadas, e ao centro de todas seu
núcleo era nada mais nada menos do que Deus puro,
confortavelmente acomodado em um trono que transcendia o espaço,
abaixo deste um touro alado e acima uma criança celestial; centenas
de vozes, masculinas e femininas, falavam em uma; as constelações
se moviam para demonstrar que, embora as estrelas influenciem o
homem, este as influencia ainda mais, dependendo de sua postura
para que todas mudem de lugar, para que a temperatura dos sóis se
modifique, para que as disposições dos astros e as distâncias entre
estes se alterem, de forma imperceptível à percepção terrena, de todo
modo efetiva, e uma nova explosão ocorre na vestidão sideral a cada
toque de mãos decidido. Um leão alado e uma águia se somaram ao
coro.
Quando o querubim se tornou mais semelhante a um jovem de pele
e cabelos dourados à frente do assento supremo, não deixou de ter à
sua volta dez cortinas de linho fino torcido e de estofo azul, púrpura
e carmesim. Encerrando-se aos poucos o êxtase místico, as asas não
se abriam mais em sua plenitude e foram sendo recolhidas, porque
caso isso continuasse o Vôo subseqüente traria um vento tremendo
com a força de mil carruagens do Céu, devastando a morada do
magista.
- Com esta espada, anjo do Senhor, serei capaz de dar um fim à farsa
dos cruzados?- Levantou-se com a lâmina em mãos; só que tinha
dificuldades para suportar em seus dedos a alta temperatura do punho
e não conseguia encarar o querubim de frente.
- Não te esqueças, filho de Deus, que os cruzados são homens, e
assim sendo teus irmãos. Portanto, se lhes causar males por causar,
estejas ciente de que não ficarás impune.- Aquelas palavras gelaram
o sangue do jesuíta.- A despeito do que corre em suas veias, nem
todos eles são maus ou corruptos, em sua maioria ignorantes e
ludibriados, havendo alguns que também contestam e compreendem.
O inimigo pode ser mais semelhante a nós do que imaginamos. Por
isso, raciocines e estudes, não julgues, não te permitas ser guiado
pelo ódio, ou mesmo teu sangue humano ficará contaminado. Quanto
ao calor da espada, posso ouvir tua mente, relaxes e não te
preocupes; se colocares confiança, poderás segurá-la sem que te
queimes.- E Pizarro, ainda tenso pelo que fora dito a respeito dos
cruzados, com as faces cada vez mais quentes, dizendo a si mesmo
que não devia se precipitar, pôs-se a respirar fundo. Com algum
tempo, e o silêncio interno e externo, a arma não precisou esfriar:
suas mãos se elevaram à mesma temperatura, refulgindo em
conjunto.- Parabenizo-te pelo esforço; porém se te cedi esta lâmina é
porque estava consciente de que saberias manuseá-la. Não precisarás
mover teu corpo: coloques nela tua intenção e tudo irá se
movimentar sozinho. Não pressiones; e sem agir terás ação. Agora
me despeço, e não te esqueças do que te disse.
- Agradeço profundamente, santo mensageiro de Deus...- O general
dos jesuítas não conseguia dizer mais nada; além do êxtase interno
que crescia, estava emocionado demais por ter conseguido algo no
qual pouquíssimos magos obtinham êxito: conjurara um anjo e
obtivera uma resposta afirmativa. Só podia ser grato à Palavra e à
Vida, e assim ficou de joelhos, com a espada junto a seu peito, que se
aquecia tanto quanto o fogo metálico que a constituía.

TERCEIRO ATO

Adão e Eva

À entrada do pequeno burgo, o verão oferecia uma aurora nevoenta,


sob um clima fresco e agradável, com o sol abrindo caminho de
forma muito paciente entre as brumas. Aquele viajante, de todo
modo, não seria incomodado pelo frio ou pelo calor, ao passo que era
a hora de baixarem a ponte levadiça. Os guardas, de armaduras
foscas repletas de saliências e escudos amarelos com a insígnia de
um cão alado, símbolo da cidade, logo deduziram de quem se tratava,
com um misto de temor e admiração, no mesmo momento em que os
hortelões chegavam para negociar seus legumes e ouviam-se as rodas
rangentes de algumas caleças, para um velho supersticioso seu
“canto” anunciando, feito uma porta velha que denuncia a chegada
de um fantasma, a guerra que se seguiria com a entrada daquele
homem de armadura assustadora.
- Seja bem-vindo, cruzado de Sua Santidade.- Um dos homens se
inclinou para cumprimentar Saoshyant, e os outros o acompanharam;
o restante das pessoas ao vê-lo passava com discrição, muitos
curiosos porém como que não querendo ser notados.
- Eu que me sinto lisonjeado ao conhecer esta que parece ser tão
graciosa urbe...E abençoado por Deus pela oportunidade de livrar os
inocentes que nela residem do mal.- O caçador de demônios avançou
irradiando um sorriso confiante, ao raiar do dia se deparando ao
entrar na cidade com uma chamativa pastelaria que acabara de abrir e
que emanava um extraordinário aroma de massas e frituras. “O
pecado da gula é um dos mais cruéis...”, pensou enquanto, mesmo
sem precisar comer, cogitava se deveria ou não entrar na pastelaria,
depois de algum tempo desestimulado pelo compromisso marcado e
pelo açougue vizinho, o odor desagradável que saía a lhe lembrar o
de certos cadáveres e uma mulher de avental sujo a enxaguar a
soleira da porta manchada de sangue. “O vegetarianismo tem me
ajudado bastante, tanto que meus rituais e exercícios fluem melhor e
me sinto mais leve no dia a dia. Menos quando fico perto de um
açougue...”, o nojo o motivou a se afastar dali, observando no
caminho algumas cenas, como o cãozinho liberado por sua dona para
farejar alegre e impunemente a grama e as árvores de uma praça,
onde se imobilizou, concentrado, em postura contrita para satisfazer
suas necessidades antes de voltar a cheirar e brincar, as crianças
roliças e tagarelas se dirigindo à escola, um potro galopando ao
longo de uma sebe, jovens burgueses portando bestas e alforjes para
caçar tordos, um idoso tocando uma cornamusa para ganhar alguns
trocados, o chapéu aos seus pés ainda vazio, em frente a uma
taverna, encurvado mas hábil, indivíduos em roupas finas, porém os
calçados destroçados, os pés inchados cheios de calos e bolhas, que
deviam ser fugitivos, que tinham percorrido quilômetros antes de
chegarem ali, tendo passado pelos guardas ao lhes cederem algumas
boas moedas, seus trajes denunciando que não se tratavam de pés-
rapados (agora só raspados), uma jovem de magreza héctica e
semblante agastado olhando para o céu, numa expectativa apressada
por mudanças, um bêbado a tartamudear sozinho em busca de
desculpas mal-definidas que explicassem seu estado e por fim uma
jovem que o fez parar, em meio a todas essas observações e
reflexões, mesmo ainda estando de costas, os cachos esmaecidos,
uma palidez e finura de colo que o encantaram de imediato, fazendo-
o por alguns momentos, ao mover as mãos delicadas que escapavam
das mangas compridas do vestido, imaginá-la refrescando a pele em
banhos de talco, que já ouvira serem apreciados pelas moças da
região, ainda mais quando se abaixou com seu saquinho de grãos
moídos para alimentar alguns pintarroxos; ao mexer na roupa,
deixava à mostra os tornozelos enquanto dispunha as ondulações do
estofo sobre as coxas, num movimento de exasperada sensualidade
para quem não estava acostumado ao corpo feminino. “Como é
pesado às vezes o fardo da castidade...Conquanto esteja convencido
que de alguma forma potencializa nossos dons. A pastelaria não me
fez parar desse jeito, demonstrando que talvez a luxúria seja o
pecado mais cruel; nunca ouvi falar de filhos de cruzados...Será que
somos estéreis? Ou a Igreja suprime acidentes do gênero? O que
penso é que há uma sensatez por trás do fato de sermos forçados à
continência: somos padres, sacerdotes, além de sermos guerreiros, e
comemos, bebemos e vivemos sob o teto da Igreja, não podemos
portanto deixar heranças nem sustentar filhotes; em segundo lugar,
por razões de segurança, afinal não se sabe que tipo de ser sairia da
união de alguém com o sangue de Cristo e uma mortal; e em terceiro,
existe uma finalidade mágica não revelada, pois não são poucos os
que dizem que o homem perde muito de sua força vital ao derramar o
sêmen, e isso está em diversos livros de magia, que incitam o mago a
se conservar senhor de sua semente, fertilizando a si mesmo o tempo
inteiro, sem abrir mão de sua virilidade; ao mesmo tempo, as magas
devem controlar suas menstruações. O sangue e o sêmen são fluidos
preciosos, que ajudariam a formar corpos mais sutis, que permitem
ao ser humano adejar acima da realidade. Recentemente, fiz uso de
alguns opiáceos para relaxar, relembrando certas receitas de
Helmont, e consegui sair do corpo com uma rapidez inédita e um
prazer sexual inenarrável, conquanto as partes baixas do meu corpo
tenham ficado adormecidas; jamais tive mulher, porém foi superior a
qualquer forma de onanismo, e sem fantasias, nenhuma imagem
entre as que costumava ter quando me excitava com a alvura de belos
corpos nus, pés descalços de donzelas passeando entre florações
delicadas, como as que vi quando em uma passagem que tive por
Flandres, em visita às terras de meu velho e bom pai e mestre, e essa
mocinha que estou vendo me lembra as que tive a oportunidade de
admirar na ocasião, com o detalhe que nunca vi nenhuma nua, só na
minha imaginação, diferente do que aquelas drogas me
proporcionaram, prazer e êxtase puro, chegando a não me perceber
mais como uma identidade limitada, não mais um homem; quiçá
tivesse alcançado o estado da Rosa dos Beatos em volta de Deus no
Paraíso. A carne se tornara um calhau envolto numa mecha de pêlos
escuros, com traços bosquejados de maneira canhestra. Bem
diferente de imaginar os joelhos sendo acariciados e a boca não
como uma gruta de mastigação e sim como uma abertura lúbrica para
prazeres inexplicáveis do ponto de vista da razão: qual a finalidade
em trocar saliva, em cruzar as línguas? Que forma de prazer tão
infantil, desagradável ao se pensar nas feridas de certos lábios e nos
restos de comida em alguns dentes! Contudo, a curiosidade me
aferra, pois o estado induzido pelos opiáceos se foi, talvez para
sempre, porque não quero tornar a usá-los, sei como podem ser
nocivos, e não pretendo ter pesadelos com torpores convulsos; foi
uma aventura, uma experiência, magnífica sem dúvida, mas que não
me conduziu à santidade e nem à maestria dos magos e alquimistas
realizados, tendo que voltar a este plano para aprender a lidar com a
maciez das pétalas e os espinhos no cabo. Et invenit dormientes, não
quero ser encontrado dormindo, não posso relaxar; fantasias e
desejos irão continuar enquanto o estado artificialmente induzido não
for natural. E, enquanto este não for natural, a malignidade ainda terá
poder sobre mim e não poderei exterminá-la. Meu amigo Bernardo,
se está por aí, me dê forças para resistir à tentação...”, referia-se a
uma abade com o qual desenvolvera uma amizade após eliminar de
um vilarejo próximo ao seu mosteiro um demônio faminto, que
embora magro, e fraco para os padrões de um cruzado, fizera muitas
vítimas na região; de olhos amarelos esbugalhados, alguns ossos
expostos e língua flexível e perigosa, imersa em um hálito ácido, não
resistira à espada do persa. Como recompensa, afora o dinheiro pago
pela aldeia que iria para a Igreja, o abade Bernardo lhe dera vinho e
um bom pão, o bastante para satisfazê-lo na oportunidade, ainda mais
com o tempero apurado de uma boa conversa. Lástima que alguns
meses depois receberia uma carta informando-o do adoecimento do
velho prior, correndo para se despedir e encontrando-o restringido a
pedir por meio de sinais um pouco de água ou o urinol posto na
quina da cama; vira a capela contígua apinhada de monges
empunhando círios. Não pudera fazer nada, e nessa hora se lamentara
por não ter em mãos o elixir da longa vida, por ter renunciado à
busca alquímica, que se não teria servido para ele ao menos seria de
utilidade para os seus semelhantes. Culpara-se, condenara a si
mesmo por preguiça, tempo depois porém consolado por sua própria
consciência (ou por algum mensageiro do alto? Às vezes se
perguntava. Talvez nunca viria a saber), convencendo-se que se a
medicina universal não era distribuída a todos isso se devia ao fato
de esta ser a vontade de Deus, que a maioria nascia efetivamente
para morrer algum dia, que nem todos precisavam prolongar suas
existências em um mar de lágrimas, e para a massa o alívio da vida
eterna espiritual superaria sempre a estadia agoniada na Terra. “Se a
Pedra Filosofal fosse para todos, esta nunca seria fruto do labor e da
sabedoria, mas encontrada em cada esquina sem a necessidade de
purgações e da observação do artista.”, refletira.
- ...nunc et in hora mortis nostrae...- Escutara com amargura a
última oração antes da partida do amigo rumo à Rosa dos Beatos,
ainda antes de se consolar ou ser consolado; precisava de tempo para
buscar muitas coisas, mas naquela hora cogitara retomar a alquimia,
posteriormente colocada de lado outra vez, afinal não restituiria mais
a vida a Bernardo e, mesmo que fosse capaz de reviver os mortos, ele
iria querer ser revivido? Devia estar muito mais feliz com seus
confrades no Céu. “Na Rosa em torno do Pai, posta sobre a Cruz do
filho, onde todos podem repousar seus pés; a cruz não deveria nunca
ser interpretada como suplício e sim no sentido profundo, ritualístico,
sugerido pelo homem com os braços abertos a saudar o nascer do sol,
na hora em que a sombra projetada no solo forma a imagem de uma
cruz. E essa sombra é ilusória como são as trevas que nos assediam,
e transitória como a nossa carne, afinal até um cruzado ou
alquimista, embora não morra de morte natural, pode ser
assassinado; este corpo nunca será um veículo permanente, no que se
diferencia a alma, que desabrocha aos poucos, crescendo em perfume
e cor, como uma rosa, à medida que passamos a olhar mais para
Deus e menos para a nossa sombra, mais para o coração e menos
para os pés. O que há de sofrimento na cruz são as adversidades e
tribulações que este “asno”, nosso corpo, pode receber, porém há
mais do que aparece, na vida, quando a rosa é colocada em seu
centro.”, suas reflexões entretinham a mente, só que seus olhos
pouco haviam saído do lugar e a jovem o percebeu, a princípio com
um pouco de medo, depois ao tentar observá-lo melhor, meio de
costas, muito discreta, sentindo que não tinha más intenções. Ficou
curiosa e resolveu se voltar em sua direção, surpreendendo-o:
- O senhor também gosta de pássaros?
- Muito!- Disfarçou bem a surpresa, abrindo um sorriso tranqüilo.-
Me desculpe se a assustei. Mas não queria perturbá-la; estava tão
concentrada...
- Obrigada pela consideração...- “Que lindo sorriso que ela tem; não
está maculado pela neblina da aurora da manhã.”- O senhor parece
ser um cavaleiro. Mas de onde vem? Não é daqui.
- Sou um cruzado.- Não adiantava mentir. Mais cedo ou mais tarde,
todos naquela pequena cidade saberiam.
- Ah...A sua armadura realmente não é usual, e parece sugerir isso.
Não gosto de mortes, de violência, prefiro ver os pássaros comendo e
cantando. Mas reconheço que pessoas como vocês são necessárias, e
acabam sendo as que mais sofrem, arriscando suas vidas. Saiba que
os admiro muito.
- Não precisa negar também que nos teme um pouco.
- É verdade.- A moça desfizera seu sorriso; seus olhos eram
parecidos com a água de uma fonte, vibrando numa claridade
dinâmica.- Sinto muito, espero que me perdoe...Inclusive fiquei com
medo quando me dei conta que me observava...Ainda sem saber se
tinha boas intenções. Peço perdão, porque sei que são homens castos
e que lutam pelo nosso bem.
- Já estou acostumado.- Saoshyant manteve o seu.- Apesar de termos
o sangue de Cristo, parece que ele deu a nós apenas sua virtude, não
seu carisma. E se formos pensar bem, mesmo ele foi temido em sua
época, ou não teria sido crucificado. Caifás e sua corja temiam o
poder do Salvador.
- Independentemente disso, peço desculpas, reverendo. Guerreiro ou
não, é um sacerdote, um homem devoto, e merece ser respeitado
como tal.
- Tem algo a me dizer sobre o demônio que atormenta esta cidade?
- Nunca o vi, mas ouvi relatos. Sei que é muito violento...E só ataca
à noite. Por isso saio de dia.
- Espero que me perdoe a indiscrição...O que a senhorita faz?
- Ajudo o meu pai. Somos comerciantes. Só estou aproveitando uma
brecha no meu tempo, ainda cedinho, antes de começar a trabalhar.
- Compreendo. Foi um prazer. O meu nome é Saoshyant.
- O prazer foi meu, reverendo Saoshyant. Sou Daniela.- Despediu-se
dela com um cortês aceno de cabeça, dando-lhe as costas. Não podia
perder mais tempo com caprichos; precisava falar com o prefeito,
que lhe daria mais detalhes sobre o demônio que deveria matar.
Contudo, os caprichos da matéria podiam continuar vivos na mente:
“Foi bom ter vindo sozinho. Em todos os sentidos, me sinto livre.
Não vou precisar me restringir, caso surja a oportunidade de usar
magia; minha voz e minha espada estão prontas. Ela parou de sorrir
quando lhe disse que sou um cruzado...Perdi a coisa mais bela que
havia visto na viagem, mas melhor do que mentir, já me basta o que
oculto dentro da Igreja. Nesse caso, a magia não serve...Também
porque não quero usá-la nesse sentido. Preciso ser mais firme; afinal,
se quero mas não faço, não passo de um hipócrita ou de um omisso,
longe de ser um santo ou um mago verdadeiro; o santo supera os
impulsos, enquanto o mago os domina. Não me encaixo em nenhuma
das duas categorias, infelizmente. Uma vez conversei com Raja a
respeito de magia sexual, e ele disse que existe um meio de não
derramar o sêmen e não ser casto, embora hoje ele o seja, que na
Índia chamam de Tantra, e disse que o praticou durante anos com a
esposa. O que ocorre nesse método é a sublimação do sexo, com o
casal se vendo como um deus e uma deusa, ou, se respeitarmos a
ótica cristã, como Adão e Eva antes da queda, como a rosa e a cruz,
como Deus e o mundo, como os noivos do Cântico dos Cânticos,
buscando não o prazer sexual e sim ir além dele, entrando em um
êxtase sagrado. Não tenho opinião formada a respeito, já que nunca
experimentei esse tipo de magia. De acordo com Raja, o fazia sentir
muito mais forte e disposto, além de tê-lo ajudado a desenvolver seus
poderes. O sexo de fato não deveria ser encarado como pecado, não
quando há amor; nesse caso creio que mesmo o derramamento de
sêmen não acarrete em perda de energia, que deve ser restituída por
Deus pelo carinho que os amantes nutrem um pelo outro; esse amor
renova todas as forças, preserva a virilidade e a feminilidade, e o
Criador é grato por uma união que o auxilia na expansão do
universo; é a viriditas alquímica, o vigor abençoado, um frescor
verde, a natureza simples das coisas, a vida em estado puro,
explodindo num fulgurante piscar de olhos.”, e enxergava ao evocar
tais conceitos os da “fonte” de Daniela, que provavelmente nunca
mais veria. Tratou de pisotear suas hesitações e excitações, tendo que
colocar algumas nos bolsos, para alcançar a casa do prefeito,
antecedida por um corredor de tílias. Uma vez lá dentro, após bater a
aldraba em forma de cabeça de dragão e ser atendido por um
empregado, recebeu o convite para tomar um vinho com o político.
- Este foi produzido pelos franciscanos da cidade! É ótimo. Não vai
se arrepender se provar.
- Acho que tenho que estar sóbrio para pegar o demônio. Ou não?
- Ouvi dizer que os cruzados nunca se embriagam. Se não estou
equivocado, Cristo adorava vinho!
- O senhor está certo, e bem-informado.- Saoshyant trocou alguns
gracejos com seu anfitrião no início da conversa; algo necessário
para o assunto que seria tratado. “Mas ele teve sorte. Se quem tivesse
vindo fosse o Fiódor ou o Sigmund, iria rir sozinho das piadas.”
- A criatura nunca ataca antes da última missa da noite.-
Principiaram as explicações.- Quando a igreja fica escura, é quando
ele age, como se os santos e os anjos adormecessem junto com os
cidadãos nessa hora.- Aquele homem parecia um tanto efeminado, os
olhos esmeraldinos e a barriga proeminente apesar dos ombros
estreitos, calvo e simpático.- Por isso pedi ajuda ao santo corpo de
Cristo. Não importa o preço, temos bastante ouro guardado, desde
que nos livrem desse monstro.
- Preciso de mais detalhes. Há alguma descrição? Ele tem vítimas
preferenciais? Onde já foi visto?
- Da última vez, foi visto rondando esta casa.
- Então está aí a razão de ter nos chamado. Enquanto estava matando
gente miúda...
- De forma nenhuma, monsenhor Saoshyant!
- Não sou monsenhor. Escute, prefeito...Comigo, precisa ser muito
sincero. Ou a minha ajuda será limitada, de acordo com o seu nível
de colaboração.- Um pouco falava a verdade, um pouco provocava;
ficara sério por fora, rindo um bocado por dentro.
- Quanto a vítimas, não faz distinções. Mas parece que gosta mais de
gente rica. E leva os pertences embora.
- Um demônio esperto. E depois dizem que são criaturas irracionais,
que não dão valor ao ouro!
- Um amigo meu perdeu o filho, que portava um belo medalhão.
- E o senhor tem filhos?
- Uma linda filha...Mas apenas uma. Compreende agora minha
preocupação?
- Plenamente. Asseguro que não irá acontecer ao senhor o que
ocorreu ao seu amigo.
- Com relação à aparência, dizem que tem asas.
- Um voador...
- Pai...- De repente, uma voz feminina...E familiar ao cruzado:
Daniela estatuou-se no ato ao vê-lo sentado ali, na poltrona em frente
à do prefeito, após um sobressalto.
- Meu anjo! Reverendo, conheça minha criança: este é meu anjo
precioso, minha Daniela!- O prefeito se levantou para apresentar a
jovem.
- Nós já nos conhecemos.- Saoshyant manteve uma aparência
compenetrada e sua sinceridade, numa postura que deixou a jovem
ainda mais tensa, conquanto a tivesse impressionado positivamente:
“Ele não mente. Não é como a maioria dos padres.”, a bem da
verdade, ela não simpatizava muito com sacerdotes desde que vira
um pouco concentrado em orientar algumas pobres beatas ao final de
uma missa, mais interessado em olhar para os seus decotes. Afora
que não lidava bem com certos dogmas e determinações da
Igreja...Ao menos os pagãos permitiram sacerdotisas.- Nos
encontramos em uma praça pouco depois que cheguei à cidade. Ela
estava alimentando alguns pássaros. Não conversamos muito, mas
observei a cena e ela me cumprimentou. “Ele não disse que eu
menti...”, comentou mentalmente consigo mesma.
- Minha filha tem essa mania estranha, e uma fixação por animais!
- De forma nenhuma, prefeito. Achei encantador! São poucos os que
se preocupam com nossos irmãos da natureza. Deveríamos ter
sempre o exemplo de São Francisco de Assis em mente!
- Ah, sim...Perdão! Havia me esquecido de São Francisco e de sua
devoção para com todas as criaturas. Mas há que se tomar em conta
que não é preciso exagerar e as condições são distintas!
- São Francisco também era de uma família próspera, da burguesia
ascendente de Assis. Não era nenhum pobretão antes de receber seu
chamado.
- Não é um tanto precoce comparar minha Daniela a um santo?
Ainda que para mim ela seja sim um anjo...
- Não estou comparando. Só defendendo o direito que ela tem de dar
comida aos animais se isso a faz sentir bem. Qualquer caridade que
fazemos afasta os demônios de nossas almas.
- Está certo, tem razão, reverendo...
- Pai, cheguei agora...Vim avisar o senhor que vou para o meu
quarto.- Aos poucos a moça foi recuperando a voz e a desenvoltura
nos movimentos, evitando olhar para o cruzado.
- O que me incomoda mais não é a comida aos bichos. É você sair
ao nascer do sol, correndo o risco que ainda haja algum demônio por
aí. Não imagina como fico preocupado quando vou olhar seu quarto
e percebo que não há ninguém.
- Eu sei, pai...Mas é que se sair mais tarde, a cidade fica com muito
movimento e os pássaros se escondem.
- Se você se preocupa com os passarinhos, eu me preocupo com
você.
- Isso não será mais necessário em breve.- Interveio Saoshyant,
ficando de pé.- Hoje vou dar um fim nesse pesadelo.
- Não imagina como ficarei grato, nobre cruzado!
- Eu já sou grata ao senhor.- Daniela tomou coragem para encará-lo
quando ele se voltou em sua direção; não conseguiu dizer mais nada,
porém era o suficiente para que ambos compreendessem. O guerreiro
estendeu um sorriso breve, com a moça permanecendo séria, e se
retirou primeiro enquanto agradecia pelo vinho e pela boa acolhida.
- Sempre que quiser voltar, a porta estará aberta.- Disse o político; o
cruzado refletiu: “Talvez eu volte mesmo...”, pensando na jovem que
não poderia tocar.

A noite já estava em seu auge, a cidade inteira entregue ao sono, em


silêncio praticamente absoluto, considerando que os ratos e os gatos
de rua que os perseguiam eram bastante sorrateiros. Saoshyant
procurava sentir fontes de energia e intenções malignas, sem que a
lua deixasse de refletir seus dilemas quando olhava para a igreja e via
os anjos postados, parecendo alertas, e ainda assim adormecidos,
afinal não passavam de estátuas: “Quando a voz inconstante dos
homens se une às vozes constantes do Céu e da Terra é que se fazem
os milagres de todas as coisas. O que mais espero é algum dia poder
me equilibrar; o meu maior problema é que muitas das vozes que
ouço em mim sequer são minhas: Helmont, Hong, Raja,
Daniela...Onde EU fico no meio disso? Dividido entre dois mundos,
que na verdade são um só; assim como a castidade não se opõe ao
amor e sim à devassidão, o maior dos equívocos é opor magia e
cristianismo. Que males fizeram Zoroastro, Orfeu e Pitágoras?
Nasceram antes de Cristo? Se é assim, deveríamos negar todo o
conhecimento que obtivemos e recomeçar quase do zero, considerar
somente as descobertas e os feitos posteriores a Jesus; antes só teria
havido ilusão! Não sei como podem pensar assim, tendo sido o
próprio Cristo um judeu e como tal um filho de suas tradições. Os
cristãos iam aos leões, os magos passaram a ir ao fogo depois que os
cristãos tomaram o poder; lamento tudo isso porque sou cristão, mas
não deixo de ser um mago. No cerne da magia estão o conhecimento
e o silêncio, enquanto no do cristianismo está o amor; silêncio sem
amor é quietismo; conhecimento sem amor é destruição; amor sem
conhecimento é ingenuidade; amor sem silêncio é perturbação. Nos
Evangelhos, vemos o Verbo encarnado nos mostrar isso: três magos
o adoraram, nada é mais explícito. Fica claro que os seguidores de
Cristo deveriam considerar os magos como irmãos ou se tornar eles
mesmos magos, caso se julguem preparados para tanto; Cristo, o
filho de Deus, só amplificou feitos anteriores, não criou nenhum
novo, basta estudar as tradições e confirmar. É por precaução, para
evitar agressões, que a sabedoria passou assim a se ocultar do vulgo,
não por elitismo; que o digam os sopradores, que se perdem nos
labirintos do erro da alquimia, e os que simplesmente desistem após
uma enorme desilusão com a algaravia hermética. Só que eu
vi...Observei os fatos, separei a verdade da mentira, o sutil do
grosseiro, e sei que não foi pela ira de Deus que meu mentor pagou.
A Bíblia, tão repleta de sabedoria, acaba parecendo uma imensa
banalidade, um conjunto de fábulas e mitologia; e a crendice, por
incrível que possa parecer, deixa um terreno fértil para as sementes
da descrença. O Apocalipse, a Revelação, permanecerá dessa
maneira para sempre sob cortinas; Enoque foi rasgado; Ezequiel
esquecido; o Eclesiastes se torna um lamento. Sem as clavículas, não
adianta dispor faixas. A Igreja talvez odeie a magia porque o mago é
um sacerdote emancipado, experimenta por si e não depende de
hierarquias; ao buscar a comunhão com Deus e com seu anjo da
guarda, o magista declara implicitamente que não necessita de
intermediários, ou seja, que a Igreja é inútil. Entretanto, isso não
passa de uma análise superficial. A Igreja deveria ser uma escola, um
local que preparasse seus fiéis para a união mística; nunca seria
desnecessária, porque nenhum mago se faz sozinho e um dia todo
espadachim foi um garoto desengonçado que mal conseguia manejar
sua lâmina, exceção feita aos pequenos prodígios, que são um em
milhares e de qualquer forma nem todos conseguem se manter como
tais, muitos caindo na preguiça ou mesmo no mal pelo fato de terem
carnes tenras por debaixo das couraças de nascença. Uma Igreja
firme poderia permitir que junto com as carnes se desenvolvessem
ossos fortes; hoje, contudo, a Igreja é espiritualmente fraca, por mais
politicamente forte que seja, e sou forçado assim, como clandestino,
a fazer um trabalho decuplicado em mim mesmo e no mundo. Estou
certo que o mal nunca irá me seduzir; por mais que a magia seja
considerada uma arte das trevas, o Diabo nunca me fez nenhuma
visita ou proposta, sou eu que vou ao encontro de seus lacaios, a fim
de destruí-los...”, foi quando escutou o ruído de alguém se
aproximando, mas sem qualquer energia maligna; envolta em um
capote, seu rosto porém bem reconhecível por dentro, lá estava
Daniela, parando diante do mago-cruzado com uma expressão
pensativa:
- O que veio fazer aqui a essa hora? Sabe que é perigoso. Se eu fosse
mais impulsivo, como alguns colegas meus, poderia ter decapitado
você.
- Sei que não faria isso. É muito sensitivo. Em todos os sentidos.
- Talvez seja mesmo.- Deixou escapar um sorriso.- Mas se tem algo
a me dizer agora, diga logo e vá embora. Não é grosseria...É pela sua
segurança, entenda.- Em seguida recobrou a seriedade, mas sem
sisudez ou nervosismo.
- Não tem nada a me perguntar?
- Por que não disse na primeira vez que era a filha do prefeito?
- Achei que iria para a igreja ou para o mosteiro dos franciscanos,
não para a casa do meu pai. Além disso, não são todos aqui que
sabem que sou a filha do prefeito, afinal pouco saio, ou melhor, não
saio, sem ser pra dar comida pros pássaros. O meu pai já tentou me
segurar com guardas pra me impedir, só que fiz um escândalo tão
grande que alguns vizinhos chegaram a ouvir um pouco. A partir
desse dia me deixa sair só pra isso, mesmo ficando preocupado, com
a condição que não revele a ninguém quem eu sou. Com você ele não
disse nada, nem se mostrou preocupado por eu ter falado com você,
porque é um cruzado. Se fosse um homem comum, teria agido de
outro jeito.
- Cruzados continuam sendo seres humanos.
- Não é como ele pensa.
- Sua mãe faleceu há muito tempo?
- Percebeu então que o meu pai é viúvo...E duplamente viúvo: a
minha mãe faleceu de doença quando eu tinha cinco anos; depois ele
perdeu a segunda esposa, quando eu tinha dez.
- Sinto pelo seu pai. Se uma viuvez já é dura, imagino duas. Deve
ser por isso que tem tanto medo de perder você.
- Como sabe que é duro, se nunca sentiu?
- Imagino que seja. Sou um ser humano; nunca fui viúvo, porém
também já perdi entes queridos. Traço um paralelo.
- Mas vocês não morrem.
- Claro que morremos. Entre nós, morremos em batalha às vezes até
antes dos nossos amigos envelhecerem.
- Me desculpe, talvez tenha subestimado os seus sentimentos...
- Não guardo ressentimentos. Não simpatizava com os cruzados
antes de me conhecer?
- Não conhecia nenhum cruzado, mas não gosto de padres. E não
entendo o voto de castidade.
- Hoje talvez tenha encontrado mais uma razão para a castidade: um
sacerdote viúvo não teria tempo para pensar em Deus e orar se
ficasse chorando por sua esposa.
- Não sei o que é pior...Se os padres ou essa sua resposta.
- Por que ela seria tão ruim?
- Porque não valoriza o sentimento. Parece até que pra ficar perto de
Deus é preciso ser distante, fria...Ou frio.
- Não foi o que eu quis dizer.
- Os homens são assim, sempre alegam que é um mal-entendido
quando dizem alguma coisa que não deviam ter dito.
- Daniela, é melhor você ir...
- Está me dispensando? Isso quer dizer que estou te incomodando
com o que falo. Isso também é típico dos homens: não gostam de
ouvir.
- Não é isso...- Desta vez sentira antes uma agulhada repentina nas
costas, uma sensação que depois se expandiu de forma insuportável,
passando à percepção dolorida de uma grande má-intenção.
- Ainda tenho outra coisa pra te dizer. Aliás, foi por isso que vim;
não pra responder nada...- Contudo, ao se aproximar dele, notou um
rosto cada vez mais perturbado e os olhos esbugalhados, parecendo
uma fera em estado de alerta; o olhar da moça mudou, entrando em
sintonia com o do cruzado, e sua intuição lhe disse que algo terrível
estava para acontecer.- Saoshyant?- Indagou, preocupada; sentiu
medo pelos dois.
- Abaixe-se!- Derrubou-a com força no chão para impedir que fosse
pega pela criatura alada, que deu um rasante e fincou as garras de
seus pés no peito do guerreiro, arrastando-o por alguns metros
enquanto batia suas asas de quiróptero com ferocidade; a armadura
era porém espessa, o monstro tendo que largar ali suas unhas, cujo
veneno não chegaria ao corpo do cruzado, para não ser atingido pela
espada montante. Voou para bem alto.- Não pense que vai escapar!
Daniela observou a cena, impressionada; o demônio lembrava uma
gárgula de catedral, com uma envergadura considerável e cerca de
dois metros de altura, o corpo negro aderente à noite, admirável que
Saoshyant conseguisse enxergá-lo bem. Ao perceber um novo sorriso
no rosto dele, desta vez com um certo sadismo, foi invadida por
emoções e impressões tumultuadas, entre tristeza, medo, angústia e
admiração. Um homem pouco previsível...Nisso a fascinara.
O rosto do cruzado porém se turvou quando viu surgirem outros
dois voadores; moveu sua espada antes que fosse tarde e lâminas de
vento e fogo cortaram e queimaram os três inimigos, um dos quais
caiu bem próximo da filha do prefeito, com as vísceras expostas
ardendo em brasa; outro despencou longe, com a garganta cortada e
os membros inferiores chamuscados; e o primeiro que atacara tivera
suas asas retalhadas e seu crânio terminou explodido pelo calor após
a queda.
- Que horror...- Daniela não suportou aquele ensaio do Inferno e
vomitou.
- A vida de um cruzado não é nada fácil, como pode ver. Ainda
assim gostaria de fugir comigo?
- Acha que é isso que vim lhe dizer??- Voltou a falar com
dificuldades, ainda nauseada e cuspindo.
- Tenho certeza.
- Você é prepotente.
- Se sou ou não, não importa. Mas já tem a sua resposta e é não.-
Falou com seriedade, tentando entretanto ser o menos duro possível,
apenas firme, pois não queria machucá-la...E nem machucar a si
mesmo. Suas emoções não pareciam estáveis...Ainda mais no meio
de uma batalha que ainda não se encerrara.
- Eu estou indo...- Se reergueu a custo após alguns instantes, só
cuspindo e vomitando mais um pouco no chão e ele em silêncio.
- Não. Agora não pode ir.- Ela o encarou com perplexidade, mas
logo compreendeu, ainda convulsionada, ao fitar seu rosto
endurecido.- Não se preocupe. Vou protegê-la.- “Mais demônios?? A
cidade estava empestada...”, a jovem refletiu; Saoshyant a abraçou e
a apertou junto a seu peito, seus olhos bem abertos assim como os
dela, porém os seus de alerta enquanto os da moça de pavor, tateando
em busca de segurança até seus ombros. “Uma pena. Se eu tivesse
outra vida...”, pensou o cruzado, enquanto se aproximava um ser que
não se podia dizer ao certo se era humano ou demônio:
- Mesmo para um cruzado, três voadores de força considerável em
tão pouco tempo é de surpreender. Mas você não me engana;
conheço bem os elementais do fogo e do ar.- Avançava um indivíduo
encapuzado, não muito alto, de túnica comprida, todo de preto; não
era ainda possível enxergar o rosto oculto no capuz.- E observei o
que fez. Não é apenas um cruzado. Estou diante de um mago.
- E você quem é? Nem mesmo mostra seu rosto. Não tem coragem
para isso?
- Tenho muita coragem, como irá perceber ao lidar comigo. Pode
deixar ir a sua amiga...Não estou mais interessado nela e sim em
você.
- Quer dizer que a queria? E por quê? Acha que vou confiar em
você?
- Pode confiar; ela agora é insignificante.
- Se a queria para alguma espécie de perversão, saiba que não posso
substituí-la nesse sentido...
- O sangue de uma virgem é sempre bom para muitas experiências.
Mas melhor é um novo mago ao nosso lado.
- Quem é você? Diga o seu nome.
- O meu nome não importa mais há muitas gerações. Mas já deve ter
ouvido falar dos adâmicos.
- Li a respeito. Agora faz sentido...Mas sei pouco. O que sei é que
são devotos de Lúcifer e costumam usar metais e sangue de jovens
em experiências “alquímicas”.
- Por que o desdém ao falar de nossas experiências?
- Porque a verdadeira alquimia abrange a transmutação interna pela
relação com Deus e a externa pela interação com a natureza. Não faz
o menor sentido sacrificar vidas inocentes para isso, já que só Deus
determina a nossa hora e não temos o direito sobre o dia e a noite de
nossos semelhantes.
- A morte faz parte da vida, sem putrefação o rei não renasce, e se
garotas e meninos morrem em nossas mãos é porque era a hora
determinada para eles. E por que se revoltar contra isso? Esses
“inocentes” tiveram a vida que necessitavam na Terra e após a morte
se descortinará diante deles a “vida eterna”, se para o Inferno ou o
Paraíso dependerá do que realizaram. Ora, se eram ruins e vão para o
Inferno, qual o problema nisso? O mundo estará livre de mais
delinqüentes. Se eram bons, por que os cristãos se enraivecem?
Estarão na presença de Deus, distantes do sofrimento da carne, não
pisarão mais neste mar de lágrimas, imaculados em uma realidade
perenal. Se os cristãos se revoltam com a morte, é porque não
aceitam que sua “vida eterna” possa ser de verdadeira felicidade e
beatitude. No fundo sempre temem que o outro lado da existência
não seja o que imaginam, que Deus seja um juiz por demais severo
ou que na verdade o “Paraíso” não passe de uma catatonia, de uma
paralisia estulta, de uma imobilidade apática, de um tédio horrendo.
Caso contrário, todos iriam querer morrer.
- Isso é ignorância. Não podemos simplesmente desistir da vida,
pois temos muito a realizar e aprender aqui. Este mundo PODE ser
um vale de lágrimas, mas ele não É um. Somos nós que o
transformamos em um, do mesmo modo que ao morrer somos
sempre nós que optamos pelo Inferno ou pelo Paraíso, que são mais
estados de espírito do que lugares no espaço.
- Seu ponto de vista não é muito católico, mago.
- Claro que é. É universal, e portanto católico. Se não estou de
acordo com certas determinações dos homens que governam a Igreja,
isso não significa que não faça parte Dela.
- Isso é bem conveniente. Não segue o que os padres dizem, mas
mora com eles, come sua comida, bebe de seu vinho. Não me parece
que isso seja muito cristão.
- A Igreja é minha casa e os padres não são seus donos. Apenas a
ocupam temporariamente, assim como eu. Não abuso da
hospitalidade de ninguém. E, como deve saber, quase não como.
- Se os hospedeiros me dão a oportunidade, faço muito mais...Você
ainda é um tolo. Só que tem potencial; fico imaginando como seria
ter um cruzado ao nosso lado, com os nosso conhecimentos...
- Não teria inveja?
- Claro. Mas ao menos estudaria melhor como vocês foram feitos de
perto, e se pudesse faria o mesmo em mim. Tenho que admitir que os
padres vermelhos, embora sejam jovens, foram muito engenhosos.
- Seria impossível. Você morreria se entrasse em contato com algo
tão puro quanto o sangue de Cristo. Não uma criatura tão fétida
como você...
- Alguém como você acredita mesmo no que os padres vermelhos
falam? Nunca teve um pingo de desconfiança sobre as suas origens?
Acha mesmo que o sangue de Cristo permitiria possessões?
- Se nos entregamos ao pecado, ele nos abandona e ficamos mais
vulneráveis do que seres humanos comuns. É um risco que corremos.
- Hahahaha...- Enfim seu rosto começava a se manifestar...Calvo, a
pele azul.
- Não vejo nada de engraçado nisso.
- É muito ingênuo...Uma ovelha negra não deixa de ser uma ovelha!
- O que está querendo insinuar?
- Caso se junte a nós, posso lhe relevar o que é realmente esse
“sangue de Cristo”.
- Acha que vou cair na sua armadilha?
- Não responda assim, amigo. Quero o seu bem...
- Sei que não quer o meu bem e muito menos é meu amigo.
- Nós adâmicos adotamos esse nome porque somos os magos mais
antigos que a Terra conheceu. Como pode deduzir pelo nome,
estamos relacionados a Adão, que foi expulso do Paraíso. Não que
descendamos dele, que não passa de uma lenda...Mas
compreendemos que, como ocorreu metaforicamente ao primeiro
homem, fomos jogados por Deus, este Ser onipotente e cruel, em um
mundo tenebroso e violento, onde por livre e espontânea vontade
nunca desejaríamos ter nascido. Fomos obrigados a aceitar que um
dia nos tornaríamos pó, mesmo com todo o trabalho feito na terra e o
suor da fronte, e nossas mulheres tiveram que passar a suportar
sofrimentos atrozes para gerar mais vida; o que deveria ser um dom
se tornou uma provação, preparar nossos pães significou uma série
de alimentos amargos, até que conseguíssemos aprender a fazer, e
enquanto isso muitos de nós não puderam ter em vida o prazer da
degustação. Se maldita a terra se tornou por nossa causa, por que
esse tirano a criou então? Nos proibiu inclusive de beber sangue, o
supremo nutriente, que propicia uma vida mais longa, pois nada mais
é do que a vida materializada e liqüefeita...O livro que vocês
veneram diz: “Tudo o que se move sobre a terra e todos os peixes do
mar nas vossas mãos serão entregues. Tudo o que se move e vive ser-
vos-á para alimento; como vos dei a erva verde, tudo vos dou agora.
Carne, porém, com sua vida, isto é, com seu sangue, não comereis”.
Pela lei do ingênuo Moisés, o tirano ordenou: “Qualquer homem da
casa de Israel ou dos estrangeiros que peregrinam entre vós que
comer algum sangue, contra ele me voltarei e o eliminarei do seu
povo. Porque a vida da carne está no sangue. Eu vo-lo tenho dado
sobre o altar, para fazer expiação pela vossa alma, porquanto é o
sangue que fará expiação em virtude da vida”. E no Novo
Testamento, por meio de Jesus e seus imitadores, continuou a proibir
o consumo de sangue: “Pois pareceu bem ao Espírito Santo e a nós
não vos impor maior encargo além destas coisas essenciais: que vos
abstenhais das cousas sacrificadas a ídolos, bem como do sangue, da
carne de animais sufocados e das relações sexuais ilícitas; destas
coisas fareis bem se vos guardardes.”; a que isso se deve?
Logicamente ao fato que o Tirano não quer que tenhamos uma vida
longa e próspera. Deseja para nós a pobreza e a existência curta de
sofrimentos, torturando-nos de seu trono. Pois ele teme que, caso
algum dia nos tornemos verdadeiramente sábios e eternos, possamos
desafiá-lo e tomar seu lugar, cada um sendo Deus de si mesmo. Por
isso que somos filhos de Adão e não de seu Criador, a Adão nos
unimos contra as injustiças e arbitrariedades do mundo, à sua
indignação e revolta por ter sido expulso do Paraíso. A serpente,
quando tentou Eva, não mentiu em nenhum momento; Deus sempre
foi o verdadeiro enganador, que nunca nos permitiu provar da Árvore
da Sabedoria. A serpente quis nos mostrar a Luz que origina todos os
fenômenos, despertar a Fé em nosso potencial interno...É por isso
que ela é Luz e Fé: ela é Lúcifer...Que nos mostra o verdadeiro Deus,
além deste demiurgo corrupto.
- Quer dizer que apesar de tudo ainda não renegam Deus por
completo.
- Caso se refira ao que os cristãos conhecem como Deus, sim, nós o
renegamos; renegamos o monstruoso demiurgo. Contudo, nem
mesmo Lúcifer renegaria a Luz que molda todo o cosmo, pois ele
também é um filho desta, aliás o primeiro entre todos, antes do
terrível Micael, que o demiurgo moldou à sua imagem e semelhança
para nos perseguir e tiranizar.
- Devo reconhecer que conhece bem a Bíblia, porém não
compreende seu sentido mais profundo.
- Quem tem a compreensão restrita não sou eu e sim quem se
encontra à minha frente.- Retirou o capuz, revelando um rosto de
feições belas, traços apolíneos, os olhos totalmente negros, sem
nenhum branco, e as mãos que antes pareciam revestidas de luvas
escuras revelaram o mesmo azul da face; sua expressão continha um
evidente sarcasmo, que porém não ocultava tão bem as depressões da
alma.- Vou tentar abrir os seus olhos, ovelha negra.
- Olhando-o de perto, me lembra alguns dos ídolos dos hindus.
- Não temos nenhum parentesco. Nós adâmicos abdicamos dos tons
da tez humana por uma coloração que transmita mais profundidade.
- Quanto aos demônios que matei, os estava usando então para
conseguir ouro e jovens...
- Exatamente. Me surpreende que alguém com a sua inteligência e
seu poder de dedução ainda não tenha conseguido enxergar a verdade
por trás dos padres vermelhos.
- Se há algo oculto, não será você quem vai me passar alguma
informação confiável.
- Não vale a pena ser tão orgulhoso...
- Seguidores de Lúcifer condenando alguém por seu orgulho?
- Quando o orgulho se deve à estupidez e não ao conhecimento, a
um ponto de vista estático e não à certeza de ter aprendido com a
vida e ter muito a ensinar, torna-se condenável.- Daniela se apavorou
ao ser atirada longe pelo cruzado, gritou e teria se machucado
seriamente se os silfos evocados não tivessem erguido seu corpo a
tempo e permitido sua levitação, para seu espanto e alívio, enquanto
Saoshyant, sentindo que o inimigo era perigoso, principiava a mover
sua espada para os lados com as duas mãos após colocar seu amuleto
de jade do Catai para fora da armadura, este emanando uma luz que
cravou quatro pentagramas no chão; o adâmico não se moveu,
abrindo um báratro astral debaixo de seus pés, de onde saíram
diversas criaturas abomináveis, materializando-se à vista de alguns
curiosos que começaram a aparecer, atraídos pelo barulho ou pelo
que de longe parecia um perfume, de perto um cheiro forte e
nauseabundo.
- Saiam daqui! É perigoso demais!- Como se não bastasse lutar
contra o mago das trevas, precisava proteger as pessoas, e não só
Daniela, conjurando os gnomos para que, armados com martelos e
machados, investissem contra os demônios, ao passo que os silfos,
invisíveis ou semi-transparentes para os homens comuns, se
encarregavam de arrastar os que não deviam estar ali, que tiveram a
impressão que fantasmas os estavam empurrando; uniram-se na
seqüência as salamandras à batalha, seus corpos em brasa, e as
ondinas ao salvamento, fazendo cair uma pesada chuva na cidade.
Saoshyant, com os cabelos encharcados, encarou seu inimigo.
“Não estou mesmo diante de um oponente qualquer. Se eu fosse
uma estrela, ele seria minha sombra, ou uma estrela de oposição. Só
que ele é muito mais antigo do que eu, ao mesmo tempo que também
sou se considerarmos que todos nós podemos ter muitas vidas, que a
metempsicose é possível. A diferença é que troquei de corpos e não
tenho memória. Mas qual o sentido da alquimia, de prolongar a
estadia neste mundo, se for para cometer crimes horrendos? Uma vez
li um estudo de magos que estudaram do plano astral a estrela Sirius;
embora a Igreja não reconheça que existem outros sóis além do
nosso, e sustente que a Terra seja o centro do universo, ela talvez só
o seja do ponto de vista espiritual, já que pela observação dos astros
e pelos cálculos dos antigos, a começar por Eratóstenes, chegamos à
conclusão que pisamos em um planeta que de plano não tem nada, e
sim redondo, e é um entre tantos espalhados pelo cosmo, assim como
nosso sol é um entre muitos, não existindo estrelas fixas.
Infelizmente a Igreja se esquece que o Cristo nunca se preocupou
com esse tipo de questão e sim com nossa índole e nossos atos; ao se
envolver com questões de ciências, deveria incentivá-las e não
estimular a estase do conhecimento, pois se um estudo astronômico
pode retirar a Terra do centro do universo nunca retirará o Cristo do
centro de nosso espírito, que é o que em verdade importa. Se estou
na Igreja, é para varrer inclusive dela o mal, e que os anjos me guiem
Algum dia espero senti-los ao meu lado...Se estão, que sigam comigo
e me permitam algum dia receber as mensagens do Senhor. Sinto por
ser uma estrela solitária, Daniela! Contudo, na oposição tenho uma
sombra funda e me lembrei do estudo sobre Sirius porque esta é uma
estrela dupla, com sua irmã gêmea sendo um mundo de densidade
espantosa, espiritualmente degenerado, proporcionando assim uma
influência ambígua, bifurcada como a língua da Serpente, que revela
e envenena ao mesmo tempo; se um dos sóis de Sirius é mais de
vinte vezes mais brilhante do que o nosso, o outro é de um material
milhares de vezes mais denso do que o chumbo, portanto não se
compara à foice de Saturno, é tremendamente mais violento; la
estaria o castelo construído por Beelzebú, agora ocupado por Lúcifer,
havendo um portal no mar tenebroso da Terra que pode nos levar
diretamente para lá. Os olhos desse homem me fazem lembrar desse
portal...”, o silêncio com que se fitavam e a aparente distância
disfarçavam a luta que se dava nos planos inferiores e superiores,
voragens negras e luminosas se cruzando acima dos magos, um
dragão preto de asas sangrentas e outro dourado e vermelho
serpentiforme, que às vezes se misturavam e se confundiam, em vista
das tentações que ambos começavam a enfrentar.
O adâmico se lembrou de um de seus antigos alunos, um conde
evocador de demônios, que costumava espancar sua esposa e odiava
os padres mais do que tudo, tendo uma vez derrubado certos
sacerdotes católicos de uma ponte, empurrando com a ajuda de seus
aliados sobrenaturais a carruagem em que estavam quando iam para
o seu condado; depois de ser morto por um cruzado, seu fantasma
não tivera mais paz, importunado pelos que antes o serviam e
torturado pelas pessoas que prejudicara em vida. Qual seria o seu
destino se fosse derrotado? Por mais que acreditasse ser
impossível...Afinal o outro ainda era inexperiente como mago. O
problema era o sangue que lhe percorria as veias...Que lhe fez
recordar seu doce aposento, na verdade não exatamente um quarto, e
sim o caixão onde costumava se deitar a cada seis meses e ali
hibernar por dois, escondido em uma gruta onde seu corpo ficava
oculto havia milênios, num lugar onde quem se aproximava
começava a se sentir muito mal e desistia de seguir em frente. Ficava
ali para repor suas forças, submerso no sangue humano que recolhia
de jovens com a ajuda de seus ajudantes demoníacos; quando em
meses de atividade, de qualquer forma não saía de dia, pelo fato da
luz do sol o machucar (sua aparência não influía em nada, sendo
capaz de alterá-la), trabalhando em algum de seus laboratórios (tinha
diversos espalhados em muitas ilhas, montados em outras cavernas
em florestas) até escurecer. Já enfrentara três cruzados e matara dois
e fora derrotado por outro, o célebre Barbarossa, porém conseguira
escapar graças à sua arte, aquele guerreiro ignorando por completo a
magia; no decorrer do confronto com Saoshyant, um certo medo
cresceu em seu interior pois era a primeira vez que enfrentava um
cruzado com um aprendizado mágico, e principalmente depois que
os elementais começaram a levar a melhor sobre seus demônios e
larvas. Não queria matá-lo, pretendia convertê-lo, porém precisava
ficar atento porque provavelmente não conseguiria escapar dele.
Passou a induzir visões para perturbar a mente do mago-guerreiro,
atacado por cenas em que Daniela parecia morta, trucidada por
licantropos que na verdade eram pessoas comuns, entre as que
afastara, transformadas em monstros pelo adâmico. Ficou em dúvida
se isso poderia estar realmente acontecendo ou se eram miragens
provocativas, perdendo um pouco do equilíbrio emocional; foi nessa
hora que o inimigo tornou a falar:
- Se eu fosse você, iria ajudar a sua amiga. Ela está em sérios
apuros. Os seus silfos não serão o suficiente para deter os meus
aliados...- Ao que Saoshyant se questionou: “Será que tive a visão de
um futuro horrível? Ou ele está tentando me ludibriar? Não posso
mais prestar atenção nesse monstro humano...”, uma cruz de muitas
linhas transversais se manifestou no solo, pela ação do bruxo azul, e
um novo demônio se manifestou, muito mais forte do que os
anteriores: pingava sangue de seus lábios rubros, os dentes afiados
branquíssimos, sem nenhum pêlo ou cabelo, o corpo marrom, os
braços compridos e disformes, musculoso e com calombos nas costas
e um único olho pouco acima do pequeno nariz, medindo quase três
metros de altura; com sua espada, o cruzado bloqueou o primeiro
soco, sentindo as pernas imobilizadas e tendo que se limitar ao
movimento do quadril e ao da arma em suas mãos para se defender
dos golpes seguintes, que prosseguiriam em estonteante velocidade.
A perversão no rosto do monstro era gritante, logo evidenciada por
suas palavras:
- Quero aquela mocinha...Quero comer ela inteira...- Falava tanto no
sentido sexual como com vontade de se alimentar, sua língua
salivando e seu falo ereto; a uma abominação se seguiria a outra. O
adâmico lhe prometera que teria o quisesse na Terra depois de
derrubar o cruzado.
- Você não vai nem chegar perto dela...- Para a surpresa do monstro,
o golpe de espada seguinte não se limitou à defesa, vindo carregado
de gelo e fogo, e cortou as mãos de seus braços duros; seguiu-se o
salto do guerreiro, por fim com as pernas libertas, tendo dobrado a
magia do inimigo com a ajuda dos gnomos, e o demônio foi partido
ao meio.- E agora, o que vai fazer? Parece que os seus trunfos estão
se esgotando.- A vitória de Saoshyant parecia iminente: não mais
dava importância às visões e tentações enviadas e os ajudantes astrais
do adâmico estavam sendo derrotados pelos elementais e
desaparecendo, do mesmo modo que a carne e o sangue do que o
cruzado acabara de derrubar.
- Você me surpreende...Ainda mais considerando o sangue que corre
por suas veias.
- É o sangue daquele que vocês não reconhecem.
- Seu tolo...Ainda insiste em acreditar nisso?!- Pela primeira vez o
inimigo deu a impressão de ter perdido a paciência, franzindo a
fronte e deixando escapar de seu semblante uma maldade pura. De
repente então, ao observar aquela face e sua expressão da forma mais
atenta, o persa sentiu dúvidas reais a respeito de sua natureza...Desta
vez, parecia que o inimigo não queria enganá-lo.
- Ao que se refere afinal?
- Inteligente como é, devia ser capaz de perceber sozinho. Mas já
que não se dá conta, vou lhe dizer a verdade!- Falava agora com fúria
e decisão, despido de ironias.- Os padres vermelhos mentem. Na
realidade, são magos e bruxos perigosos, que no entanto não se
submetem a Lúcifer e o desafiam, o sangue que corre em seu corpo
sendo de origem demoníaca e não crística. Quando surgem
“possuídos”, na verdade não há nenhuma possessão...Não há
demônios externos, e sim demônios internos que despertam pela
influência do sangue, potencializado por sentimentos e emoções
destrutivas. O que a Igreja chama de “possuídos” são humanos que
se tornam demônios, como um dia ocorreu com Lilith, a verdadeira
matriarca da humanidade.
- Se é verdade o que está me dizendo, por que demorou tanto para
falar?- Saoshyant, num primeiro momento, ficou chocado e sentiu
sua pele gelar, ainda mais devido à sinceridade que parecia emanar
do adversário; mesmo seus elementais retrocederam. Depois
principiou a refletir que tudo podia não passar de um grande teatro.
“E tem que ser assim...”- Dá a impressão que você ficou maquinando
uma história e agora a atira na minha cara como se eu não fosse
desconfiar.
- Os padres vermelhos enriqueceram ainda mais a Igreja graças aos
cruzados. Isso é inegável...Se Cristo estivesse por trás disso, acha
que ele permitiria? Pense nos ideais que sempre seguiu...- A ironia
retornou, com um sorriso se desenhando naqueles lábios que ainda
pertenciam a um rosto carregado de medo e raiva; a possibilidade de
vitória do adâmico morava agora em seu esforço para desequilibrar o
interior de Saoshyant.
Daniela, levada pelos silfos para uma rua deserta e impedida de sair
dali por uma barreira de elementais, que haviam se postado à sua
frente e agora podia vê-los com uma certa clareza reluzindo na noite,
parara havia pouco de chorar de medo e desespero, querendo saber o
que se passava com Saoshyant. Interpelou aqueles espíritos:
- Por favor, vocês podem me dizer o que está acontecendo? Como
ele está? Vocês podem sentir, não podem?- Já ouvira falar de magos
que podiam convocar espíritos da natureza, com os quais ainda se
sentia pouco à vontade, porém sem temor, lembrando-se que seriam
criaturas como animais ou plantas, dignos de amor, e grata pelo fato
de a estarem protegendo; como resposta, um silfo cerúleo de olhar
severo e longos cabelos e braços que ora apareciam, ora
desapareciam, encarou-a com firmeza e se manteve mudo, o único ali
a fitá-la, depois se voltando mais uma vez para a frente. Não que a
tivesse ignorado; falara numa linguagem sutil, que a jovem mulher
não compreendia, e ia repetir as perguntas, quando sentiu seu corpo
gelar e os lábios entorpecidos...Para seu pavor, viu o adâmico às suas
costas, escancarando um sorriso de crueldade e frieza; uma projeção:
entrementes, não tinha elementos para distingui-la da realidade, até
que uma salamandra em brasa foi se arrastando pelo chão e tocou seu
corpo, fazendo com que recuperasse aos poucos o calor da carne e os
movimentos dos lábios; friccionou as mãos instintivamente e,
afastando o palor que a embebera, se deixou lamber pela língua de
fogo da criatura, deixando sair uma luz de si mesma que desfez o
fantasma do bruxo, cuja vida, Saoshyant discerniu ao aprofundar sua
visão espiritual, se agitava como uma chama azul-escura, que retinha
a claridade, não a expondo de forma nenhuma, na região de seu
estômago. Lutando contra suas perturbações internas, o cruzado
queria provas...Da Igreja que estivesse com o sangue de Cristo e dos
adversários, dos satânicos, que possuísse o sangue de demônios.
Seus olhos aos poucos foram ficando vermelhos, sua indignação,
tristeza, raiva e medo cresciam, questionava-se sobre sua natureza
íntima, e num dado momento, quando ia golpear o centro do corpo
do adâmico, ambos já esgotados, o inimigo tendo todos os seus
aliados sobrenaturais sido derrotados, se deteve.
- O que foi? Por que parou? Há algo em mim que você quer salvar,
não é? Sabe que tenho muitas informações e não pretende
desperdiçar isso tudo. Foi uma sábia decisão, mago-guerreiro...Você
me venceu, e estou sem forças; acha que tenho muitas escolhas? Só
posso lhe contar o que sei para que me poupe a vida.- Apesar das
palavras, o mago sombrio sorria; a derrota em batalha não
significaria nada diante de uma vitória moral. Quem fora o
verdadeiro vencedor do confronto?- Se você fosse um cruzado
comum, o teria deixado na ilusão, nunca daria o gosto da sabedoria
aos ignorantes. Mas você é um mago como eu; e poderá ser
EXATAMENTE como eu sou. Não era a sua hora de morrer e sim
sua hora de saber.
- Estou estranho...- Começou a ofegar e suava em demasia.
- A sua verdadeira natureza está prestes a vir à tona. Não a reprima.
Essa é a sua natureza, mesmo que tenha que abdicar de sua
humanidade.
- Do que está falando, seu desgraçado?!- Rangeu os dentes.
- Não há nada que possa fazer. Irá se tornar um “possuído”...Ou
melhor, enquanto o humano antes prevalecia sobre o demoníaco,
agora ocorrerá o contrário. Apenas eu posso ajudá-lo. Conheço
fórmulas que podem reverter essa situação. Se for comigo agora ao
meu laboratório mais próximo, as poções que vou lhe dar impedirão
a transformação. Mas temos que ser rápidos. Caso você se torne um
demônio, certamente não irá querer mais regressar ao estado
humano.
- Isso nunca...
- Ainda me restam forças para um teletransporte...Vamos.
- E quais os efeitos colaterais dessas coisas que vai me dar?
- Você se tornará um de nós. Venha...- Insistiu, enquanto os seres
elementais desapareciam e a chuva parava, para a surpresa de
Daniela, que pensou que se isso ocorrera Saoshyant devia ter vencido
e a cidade recuperara a paz. Riu; no entanto, foi um riso breve, pois
cogitou se não podia ter acontecido o contrário, os espíritos da
natureza em fuga pela morte de seu mestre. Pôs-se a correr para
reencontrá-lo, estivesse vivo ou morto; esperava que vivo, inclusive
para o bem dela.
- Se é assim, vamos juntos para o Inferno...- O olhar de susto foi o
último do adâmico, cortado ao meio pela espada do cruzado, que
sorria de uma forma feroz e cruel que de humana tinha pouco ou
nada. Seus dentes se aguçavam; seu rosto se contorcia. Um vento
forte e gelado bateu e agitou seus cabelos; sentira prazer e júbilo ao
encerrar a vida do inimigo.- Não agüento mais...Mas que calor é
esse?- Gotas tímidas; uma nova chuva teve início. Só que desta vez a
água que caía não tinha transparência, enegrecida; seus olhos
emitiam uma vermelhidão que escancarava as órbitas; uma enxurrada
gelada foi encharcando seus cabelos, mas só se sentia ardendo e
dolorido, o que o levou a ir arrancando sua armadura, jogou sua arma
e seu amuleto, que se despedaçara durante a luta e agora era inútil,
no chão, e depois de algum tempo, bem quando Daniela chegou, toda
molhada e com o corpo muito frio, o único ser humano que ousara se
aproximar do lugar, estava apenas de calça, descalço, e sentiu que de
suas costas brotariam em breve duas enormes asas.- Não...Não posso
permitir isso...- Uma lasca de consciência humana interveio e o
desespero se sobrepôs ao êxtase do mergulho no ódio...Todos os seus
ressentimentos e mágoas vinham à tona e ainda assim pensou que
não era o que devia fazer.- Não é nada externo, realmente...O
demônio está nascendo de um ovo que pulsa dentro de mim. Esse
demônio sou eu! Não acredito como tinha tanta maldade, tanta fúria,
todas essas marcas violentas no meu interior...- Falava alto sozinho,
até que avistou Daniela; indeciso se devia gritar para que não se
aproximasse, porque era perigoso demais, ou se queria que chegasse
perto justamente para se despedir dela como humano, e lhe dar o
carinho que sentia que queria dar, a despeito da falsa castidade,
beijando seus lábios com ternura e paixão, proporcionou tempo
suficiente para que ela chegasse e o abraçasse, grudando em seu
torso nu.- Vá embora, Daniela...Eu...- Refletiu um pouco antes sobre
como deveria falar...- Estou sendo possuído. É perigoso
demais...Venci a luta, mas não resisti a certas tentações. Fuja, e fuja
para bem longe, vá embora desta cidade.
- Seu idiota, acha mesmo que eu faria isso depois de tudo?? Posso
ser muito pequena pra você, não sou maga e nem guerreira, mas
tenho a minha grandeza também. E não vão te abandonar...Mesmo
que um demônio possua você ou você vire um demônio. Não me
interessa. Morro com você se for assim. De qualquer jeito, já estou
me sentindo mal depois de tanta chuva...- Sorriu com melancolia.
- Daniela, caso tenha se apaixonado por mim então, mesmo com tão
pouco tempo que pudemos estar juntos, quero lhe fazer um
pedido...Se me ama, não importa se como amigo ou de outra forma,
faça uma coisa por mim...
- Eu faria qualquer coisa.
- Não vou durar muito nessa condição. Eu lhe peço: pegue a minha
espada e corte a minha cabeça.- Estas palavras deixaram a jovem em
choque; as carícias nas costas do cruzado pararam; seus dedos
haviam congelado.- Por favor...Não quero virar um demônio...Quero
manter a minha humanidade e, numa próxima vida, seja lá onde for,
me lembrar de você.- Os músculos dele palpitavam; estava fazendo
um tremendo esforço para deter a explosão definitiva.
- Não posso fazer isso...- Ela se desgrudou e o olhou de frente.
- Como não pode?? Quer que me torne um monstro, mate você e
depois me esqueça do seu amor?! Faça isso por mim se me ama
realmente, Daniela!
- Se eu matar você, me mato em seguida.
- Por que esse sentimento?? O que eu tenho de tão especial? Você
mal me conhece.
- Não sei explicar. Você simplesmente tem; e não vou matar você.
Você vai continuar sendo humano, Saoshyant.
- Isso é impossível agora...- Contrastava com a desilusão interna
uma sensação similar a de quando um homem está prestes a ejacular;
sentimentos e emoções contraditórias se chocavam a ferro e fogo. O
pior medo se confirmou quando o braço do cruzado foi se tornando
metálico, seus dedos se fecharam e depois se fundiram ao resto,
transformando o membro em uma lâmina afiada e pontiaguda, que
perfurou o peito da moça. Teve a impressão que seu coração pararia
antes do dela.
- Você vai conseguir, afinal é um mago...Eu sei disso...- Os lábios
dela se encheram de sangue e dessa forma o beijou, no último e
talvez um dos únicos instantes de verdadeira alegria em sua vida;
deu-se um estouro de uma luz rosa e dourada que ocultou os dois, ao
passo que um “não” assustador devastava a alma do persa, que
deixou as lágrimas escorrerem com força. Toda a ira desapareceu,
dando lugar a um amor e a uma ternura ímpares que culminaram em
um último abraço, sua amada se desintegrando em meio àquela
claridade. Contudo, apesar do choro, seus músculos relaxaram e
nenhuma asa brotaria mais de suas costas; seu sorriso suprimido, os
olhos recuperavam a aparência original e os dentes voltavam a ser os
de um homem. A tempestade que caía se acalmou e teve um fim
junto com a luz, o cruzado sozinho de pé, o semblante destroçado
porém ainda humano, ao término de tudo. Nem mesmo o sangue de
Daniela restara. Para Adão, sequer o pó de Eva; como iria trabalhar
em sua terra daquele dia em diante?

- Lamento, vossa senhoria. Mas a ida a Roma não nos revelou nada
além da resposta dada por carta por Vossa Eminência, o cardeal
Mazzarino. Inclusive conversei com alguns padres vermelhos, e
lamentaram profundamente a deserção de Saoshyant, desaparecido
durante todos estes meses, e o conseqüente sequestro da senhorita.
- Ele não pode ter morrido no confronto, já que o corpo de um bruxo
foi encontrado dividido em dois justamente no local onde ele lutou
para proteger a cidade. Depois de terminar o trabalho, tomado pela
luxúria, deve ter se esquecido de sua função sagrada e vindo aqui e
raptado a minha filha, apaixonado que estava...Eu que fui cego e não
percebi isso! Ela deve ter lutado, mas como iria resistir? Por outro
lado, pode ser que também tivesse se apaixonado, e por isso ninguém
ouviu nada, nenhum grito...É possível que tenham combinado uma
fuga. Ao mesmo tempo, ele pode tê-la golpeado sorrateira e
covardemente e carregado minha pobre menina inconsciente para
longe; não devo culpá-la...De qualquer forma, foi uma vítima. Não
entendo como alguém que possui o sangue de Cristo possa cair em
pecado e se tornar um delinqüente! Terá sido possuído, como
acontece com alguns cruzados que se entregam aos pecados e aos
prazeres segundo o que a Igreja diz, pois para eles o erro é punido
com muito maior severidade, todo o sangue de Cristo se esvaindo e
ficando totalmente vulnerável aos demônios, mais até do que as
pessoas comuns, tentado pelo poder? Nesse caso, Daniela pode ter
sido devorada por um monstro, nem deve estar mais viva. Deveria
ser grato a alguém que salvou a minha cidade, mas como se depois
me roubou o que tinha de mais precioso? Amanhã talvez abandone a
prefeitura...
- Vossa senhoria não pode estar falando sério...
- Não faz mais o menor sentido ficar aqui. Tudo neste lugar me
lembra Daniela. E como sei que seria impossível encontrá-los, a
menos que Deus queira, já decidi o que fazer: vou aceitar a tonsura e
me fazer monge.- O sofrido prefeito, falando com um de seus mais
fiéis empregados, que havia anos acumulava funções de paciente
ouvinte e mensageiro, estava decidido a deixar o mundo, pois nada
nele fazia mais sentido; a Fé seria sua única tábua de salvação para
que preservasse a sanidade, bem distante da santidade. Remoía-se em
decepções, mágoas, tristezas e especulações; enviara uma carta ao
Vaticano pedindo informações sobre o cruzado Saoshyant e se
tinham notícias de sua filha, desaparecida na mesma noite que ele, e
depois de pagar pelo extermínio do mago negro e dos demônios
(apesar dos pesares, o serviço fora feito) recebera como resposta o
misterioso desaparecimento, assumido como deserção, do guerreiro.-
Mas não se preocupe, meu bom Luigi. Vou deixar para você e os
outros o meu patrimônio, já que não tenho herdeiros.
- Seria demais para nós...Não merecemos.- Por dentro, o empregado
de meia-idade, que após trinta anos de serviço se afeiçoara ao patrão,
mas de todo modo não era de ferro, ficara saltitante, ainda mais certo
de que a maior parte da fortuna caberia a ele. Poderia enfim pagar o
dote da donzela pela qual se apaixonara!- Repense, meu senhor.
- Estou decidido. Você não tem uma filha, por isso não é capaz de
entender. Se é, deve concluir que estou certo. Não preciso de polidez
nem de piedade. Buscarei meu refúgio em Deus, pedindo a Ele, caso
algum mal tenha sido feito a ela, que o malfeitor seja castigado.-
Pensou que gostaria de matar Saoshyant com as próprias mãos, algo
no entanto impossível racionalmente, dada a disparidade de forças. E
se pagasse à Igreja para que outro cruzado partisse em busca do
desertor? Seria algo impraticável...Possuídos e fugitivos costumavam
se ocultar muito bem e a quantia gasta para manter constantemente
um cruzado a seu serviço seria enorme, acabando com suas posses.
Deus o recompensaria de alguma forma se fizesse a caridade de
deixar o que tinha aos seus empregados. Quiçá assim se
compadeceria de seu sofrimento e lhe permitisse ver Daniela pela
última vez antes de morrer...
Quando ficou sozinho, algumas horas depois, já era noite; não
acendera nenhuma tocha ou lâmpada em seus aposentos, limitando-
se à luz da lua; quis permanecer em silêncio, sem claridade, e sem
nenhuma companhia, ainda que Luigi tivesse se oferecido a servi-lo
até durante a madrugada se precisasse. Contudo, trancara a porta e
cerrara firmemente as janelas, deixando apenas as cortinas abertas;
não queria que nada e nem ninguém o perturbasse em sua meditação.
Animais, pessoas, suas sombras e ruídos; todos incômodos. No
fundo, esperava que sua filha surgisse de repente, nem que fosse
como fantasma. Caso estivesse morta, nesse sentido a probabilidade
de encontrá-la seria maior, porque acreditava sinceramente na
comunicação entre vivos e espíritos, conquanto não declarasse isso
de maneira explícita, pio católico que se mostrava, afinal Deus não
seria nada generoso se criasse uma barreira intransponível entre os
dois mundos. Só tinha medo que tivesse se tornado um espectro
errante, sem lugar no Paraíso (para o Inferno certamente não iria,
afinal era boa demais) ou no Purgatório, tendo que esperar o Juízo
Final para ser admitida por Deus, após ser assassinada pelo demônio
que possuíra o corpo do cruzado. Esse seria o destino dos que
morriam nas mãos de monstros, dissera-lhe uma vez uma
cartomante, se bem que não precisava acreditar nela, ainda que
aquela cigana tivesse previsto sua fortuna e sua eleição. A charlatã
podia muito bem ter se aproveitado de certas palavras suas durante a
conversa, lido certos olhares seus, agindo por intuição, astúcia e
indução, dizendo o que ele queria ouvir e que por acaso se
concretizara; sim, era uma impostora! Deus, infinitamente
misericordioso, nunca abandonaria uma alma inocente. Por isso
mesmo também era possível que ainda estivesse viva, e podia até
estar vivendo feliz com o guerreiro, apesar que a vida de um cruzado
desertor nunca seria fácil. Um pouco de ciúmes não deixou de sentir
ao levantar essa hipótese, ao mesmo tempo que desejava que fosse
feliz e se preocupava com seu destino, esperando que tivesse o
suficiente para viver. Apesar de sua simplicidade e ternura, ser
jogada longe do luxo e do conforto, mergulhar de repente na
realidade, poderia ser um choque forte demais para a sua alma.
- Mas o que foi isso?- De súbito, sentiu um vento gelado às suas
costas e não resistiu, perguntando ao ar; ao olhar para trás, a janela
fora aberta...
“Que estranho...Como pode ter abrido sozinha?? Que sensação
estranha...”, era uma janela bastante grande, pela qual um homem
alto poderia passar inteiro; com um medo confuso se levantou para
fechá-la, sofrendo com alguns arrepios por seu corpo que foram
aumentando em quantidade e intensidade; no entanto, depois que a
fechou, deu de cara com uma silhueta familiar, imóvel em um canto
sombrio. Engoliu a seco e um terrível calafrio percorreu sua espinha;
não precisou se mover mais: Saoshyant, saído da escuridão, entrou
na claridade lunar.
- Olá, prefeito. Espero que me desculpe a demora.- Exibia um
sorriso amargurado, que porém aos olhos daquele homem pareceu de
um sarcasmo diabólico.
- Maldito seja...Onde está a minha Daniela? Vou denunciá-lo à
Igreja e será perseguido.
- Fique calmo. Vossa excelência não precisa se exaltar.
- Você leva a minha filha e acha que as coisas podem ser resolvidas
de que maneira?- Apesar do ódio, o medo falava mais forte; seus
braços tremiam e falava mais baixo do que gostaria, temendo que um
escândalo fizesse o cruzado desertor se enfurecer e matá-lo.- Como
pôde fazer isso tendo o sangue de Cristo em suas veias? Ou já não é
mais com Saoshyant que falo e sim com um demônio que faz uso de
uma casca?
- Não se preocupe, prefeito. Não vou lhe fazer mal...E lhe garanto
que sou Saoshyant. Mas tinha uma dívida a ser paga com vossa
excelência...Só precisa me ouvir. Se eu fosse um demônio ou um
mal-intencionado, não teria corrido riscos vindo até aqui para lhe
falar sobre o que aconteceu com Daniela, deixando-o na espera por
ela eternamente...Ou pensando que sou um monstro.
- Ahh...Não estou me sentindo bem...
- Insisto para que relaxe...- Chegou mais perto e segurou o homem
quando percebeu que este iria cair; estava pálido. Sofrera uma brusca
queda de pressão.- Olhe bem nos meus olhos...- Suando frio e no
desespero para não perder a consciência, entre o pavor e o mal-estar
físico, encarou o ex-cruzado, mergulhou em suas pupilas e nesse
instante começou a se refazer, recobrando o vigor físico e uma
coloração saudável, voltando a sentir seus pés e suas pernas. Ainda
assim, foi levado pelo mago-guerreiro para a cama, onde ficou
sentado.- Agora acredita que não lhe quero mal?
- Pode estar agindo assim por culpa. Por algo que fez a Daniela.-
Levou a mão direta ao peito; sofria com um pouco de falta de ar.
- Como bom político, sabe analisar bem as atitudes e posturas
pessoais.- Seu semblante assumiu uma seriedade profunda, algo
lacônica, enquanto o político apresentava uma aparência agora
biliosa, tanto física como mental e espiritualmente.
- Me diga o que aconteceu. Quero saber de toda a verdade. Se for
sincero, não irei persegui-lo nem desejar o fim mais atroz para a sua
pessoa.
- Mesmo se lhe disser que matei Daniela?
- Sem ter sido possuído, por que faria isso?
- Porque os piores demônios estão dentro de nós...- E Saoshyant
cumpriu a vontade do pai de sua amada e lhe revelou tudo o que
ocorrera no confronto com o adâmico, não o poupando sequer do que
descobrira a respeito dos cruzados; quando terminou, o pobre homem
rico ficou sem palavras, estático, e permaneceram em silêncio por
alguns bons segundos, até o ex-cruzado emendar:- Se quiser me
odiar, me odeie, me queira ver morto...Mas infelizmente não vou
atender seu desejo nesse caso. Tenho que continuar vivo em nome de
algo muito maior. Para vingar Daniela e não só; para me vingar pelo
que me tornaram, vivendo no fio da espada o tempo todo.
- Quem me garante que você não seja um demônio me ludibriando e
caluniando a santa Igreja?- A mudez foi quebrada de forma abrupta,
com uma virulenta aceleração da fala.
- Não devo nada a ninguém. Afinal não tenho mais templo ou teto.
Por isso disse a verdade. Cabe a vossa excelência acreditar ou não.
Tem seu livre-arbítrio. Mas nunca me esquecerei do amor dela...
- Você devia ser casto...
- Acabou-se o tempo de seguir determinações. Só quero me livrar de
todo o sangue dentro de mim que não seja o meu.
- É difícil digerir a sua história. Mas ouvindo como fala, prestando
atenção, eu que já estudei muito oratória e fiz centenas e ouvi outras
centenas de discursos políticos, aprendi a ler e perceber mentiras e
verdades. Por mais que eu não queira acreditar, acho que está sendo
sincero.
- Como disse antes, vossa excelência é livre. Agora devo partir.
- Estava pensando em me tornar monge...Como farei isso se a Igreja
não passa de um antro de demônios e magos negros, caso você esteja
certo?
- O problema não é a Igreja e sim os homens que a comandam. É
contra eles que tentarei ser o braço da justiça de Deus, esmagando e
retalhando os que usam a Palavra sem o devido respeito. Há muitos
bons padres, bons monges e boas freiras; o problema está nos
monstros que estão na cabeça do corpo de Cristo. É vital um
processo de purgação; e neste homens como o senhor também serão
necessários. Teremos os que lutarão, como eu, e os que irão orar,
como o senhor, que ajudarão a reformar a Igreja de dentro para fora,
sendo os futuros papas e cardeais: de coração, não de pompa.
- Não sei se tenho realmente vocação para monge, se estou sendo
sincero nisso ou se o faço por desilusão. Às vezes penso que não
suportaria uma vida de reclusão e simplicidade.
- O senhor está confuso, e é natural. Aconselho que relaxe por
alguns dias, que pense bem, estude a doutrina cristã, leia, medite, e
chegue a um parecer. Daniela de qualquer forma ficará orgulhosa se
agir guiado por boas intenções para consigo mesmo e nossos
semelhantes.
- Como vou respeitar os cruzados de agora em diante, sabendo o que
são? Como lidarei com os padres vermelhos? Não posso mais ser
político.
- A decisão será sua, assim é a vida...- Ainda na cama, o prefeito
deixara Saoshyant se afastar, um de costas para o outro; quando o
vento frio se repetiu, deduziu que o mago se fora. Ao se voltar para a
janela, estava mais uma vez aberta; só que dessa vez se fechou
sozinha.
- Deus, me dê forças e me permita não ter tanto medo! Será sempre
o mesmo o destino de Adão desde que passou ao exílio na Terra?
Espero não viver tanto assim...- E deu início a uma longa prece, que
não demoraria a incluir mais o silêncio do que as palavras, ficando
acordado até o sol começar a nascer, emergindo do distante paraíso
perdido no horizonte.

QUARTO ATO

Nas catacumbas

O Paraíso, distante no alto, fora perdendo as cores até desaparecer


por completo. Bem embaixo, e palpável, um vilarejo sofria com as
chamas, mas nem por isso estas ofereciam algum obstáculo para o
homem que avançava entre elas, indiferente ao calor, com uma
armadura que não derretia possivelmente por haver algo maior e
mais importante dentro dela.
Algum tempo depois, extintas as labaredas, alguém escutou um
grito gelado: era o desespero de sua nova viúva amante, que
Sigmund, um dos doze cruzados, cavalgava sem compaixão sobre
uma cama desbotada e rústica, despida de lençóis, com um sorriso
que estivera ausente enquanto lutara contra os demônios voadores
que tinham colocado fogo na aldeia. Nenhum receio ou comoção ao
cortar a garganta do primeiro, de pálpebras ensanguentadas, ao passo
que em suas espadas os dragões tentavam completar seu ciclo de
desespero. Para o segundo inimigo, lançou uma das lâminas ao alto e
esta lhe perfurou o peito, a criatura caindo sobre uma casa de teto de
palha e arrebentando-o. O caçador de seres infernais ficara satisfeito;
suas habilidades pareciam melhorar a cada dia, sua força e precisão
aumentavam, e cogitou se Leovigild ficaria orgulhoso. “Poderia até
ficar, mas nunca admitiria, me elogiando num segundo e no outro
jogando um palavrão na minha cara e cuspindo no meu pé.”, a reação
mais lógica, enquanto a viúva suplicava para que parasse, para que
não cedessem ao pecado, porque o Diabo estava à espreita, e um
fedor insuportável, misto de esperma e fezes, invadia o quarto, o
semblante do guerreiro cada vez mais sardônico e às suas costas uma
imensa criatura musculosa de chifres curvos que encobriam sua face,
a pele marrom e uma cauda áspera e espinhosa, imundo de sombras;
um riso lúgubre escapava do rosto oculto, que devia ser monstruoso,
carregando uma respiração opressiva, superando em destruição,
agonia e horripilância o terceiro oponente que Sigmund eliminara,
cortando seu corpo do abdômen para cima e deixando as entranhas
para fora. A seriedade, contudo, era esmagada durante o sexo para
dar lugar a um humor irritante, que se iniciava em seus lábios e
corroía suas partes baixas. A mulher pedia para que fosse poupada
ou, se estivesse fazendo isso pelo bem dela, que melhor seria a morte
do que viver em desonra.
Próximo do mar, aquele povoado estava contagiado por uma
umidade salgada, que às vezes tampava as fossas nasais do cruzado,
que tinha a impressão de tê-las cheias de sal. Ao se concentrar na
vontade de ser senhor de seu próprio corpo e apertar a base do nariz,
conseguia voltar a respirar bem por algum tempo, depois retornando
o entupimento; em outras horas ficava com a impressão que estava
andando embaixo d'água e que a respirava. O céu, enquanto
confrontara as criaturas do Inferno, parecera-lhe mais o teto de uma
cerrada caverna submarina; e a sensação de extremo fechado se
ampliara ao montar sobre aquela senhora, indo parar em um cenário
onde havia rochas perpassadas por um vento frio e evasivo, ao passo
que ela se via em um bosque de árvores de troncos atrofiados e sem
folhas e escutava um contínuo arrastar de pés e vez ou outra pisadas
amortecidas. Cristais principiaram a titilar ao vento, e depois se
quebraram. De súbito, Sigmund se viu num impasse: para onde iria?
Pareceu-lhe que a memória se curvara, e um grão de culpa
despencara em seu lago e produzira ondas perturbadoras. Não
precisava temer: tinha o poder para reagir a qualquer adversidade; e
aquela mulher era dele por direito, pois salvara seu vilarejo, e porque
era necessário, temendo a loucura que com uma certa frequência o
levava a rir sem a mínima vontade. Tocava a testa enrugada de uma
mãe de sete filhos ao passo que a penetrava com força e tampava sua
boca com a outra mão para que parasse de gritar; os berros haviam-
lhe parecido, antes de bloqueá-los, a cada segundo mais perigosos e
estridentes. Em sua própria boca existia tensão; sua língua se turvava
em balbucios incompreensíveis. Chegou a se questionar se não
estava se entregando demais ao prazer e se isso não iria constituir um
combustível para uma futura possessão; o pecado provinha do
excesso.
Aquela era uma área infestada: passara por cinco aldeias e em todas
havia ao menos três demônios, que não poupavam sequer as igrejas;
existia algo de errado na região. Entrementes, mesmo com todos
esses pensamentos, não perdia a atenção da que naquele momento
compartilhava um leito com sua carne. Quando ejaculou, sobreveio
um profundo alívio e uma sensação de que poderia se entregar a um
torpor soporífero semi-eterno; porém não o fez. Suas feições se
acalmaram, o sorriso cessou, os passos pararam, o demônio atrás se
recolheu e o cruzado dirigiu sua expressão congelada para as paredes
ranhentas. A porta entreaberta, porque aquele vilarejo era tão
precário que não havia por ali um serralheiro capaz de fazer uma
fechadura, rangia parecendo liberar um choro estrídulo e angustiado,
similar ao que provinha da recém-violentada, que resistiu só mais um
pouco antes de desmaiar com os olhos molhados. O nariz do cruzado
agora escorria.
Quando deixou a aldeia, a bolsa que carregava cada vez mais cheia
de moedas, sem aceitar de modo algum presentes alternativos como
pães, carnes ou tortas, dirigiu-se em seu cavalo para a floresta que
havia por perto, que percorreria para alcançar a próxima e última
requisição agendada. A Igreja pedira para que deixasse esta por
último por ser a mais perigosa, quiçá onde residia um demônio maior
ou um feiticeiro ou bruxa de grandes poderes responsável pelos
problemas da região e pela presença de todas aquelas criaturas
sombrias. Buscou respirar bastante enquanto galopava entre as
árvores, se sentindo melhor longe das pessoas, sem vozes para
perturbá-lo. Todavia, a uma certa altura do caminho começou a
escutar a aproximação de outro cavalo; seus sentidos eram
excelentes, e conseguiu até visualizar, pelo tipo de trote, os cascos
antes que este despontasse, um belo animal de um pêlo rubro
brilhante, e sobre este um homem de barba e cabelos ruivos que o
fitou com intensidade: era Malcolm. Os dois pouco se conheciam e
quase nunca tinham se falado, porém eram companheiros de vista e
ao menos não possuíam nada um contra o outro. O inglês ficara
aliviado, no dia da indicação, ao saber que não seria Charles que
estaria ao seu lado durante o trabalho, apesar de pena que não fosse
Antenor.
- Olá, Sigmund.- Cumprimentou o austríaco.- O padre Jonathan
disse que aqui iria acabar por encontrá-lo. Esperei alguns dias, mas
você veio.
- Peço perdão se me atrasei. Eram mais monstros do que o
esperado.- “Não esperava outro de nós aqui. Se os padres vermelhos
o mandaram, isso significa que a ameaça por vir é bem pior do que
os seres abjetos que enfrentei nesse meio-tempo.”
- Não se desculpe, afinal não esperava me encontrar aqui e não tinha
prazo. Os padres me enviaram depois de reavaliar sua missão e
deduzir que teria algumas dificuldades no próximo passo.
- Compreendo. Isso deve significar que há algo desafiador à nossa
espera. Tem ideia do que seja, foi informado de algo?- “Eles nunca
dão todas as informações. Parece que nos testam o tempo todo;
querem que arrisquemos nossas vidas sem questionar e que
caminhemos sem hesitações com as nossas próprias pernas. Talvez
este seja o melhor método, porém um tanto duro e pouco cristão.”
- Falaram-me sobre uma caverna onde diversos bruxos se reúnem
para evocar demônios, e é por isso que esta região foi assolada por
eles. Temos que ser rápidos, pois a tendência é o caos aumentar em
frequência e intensidade.- “Olhando-o mais de perto e com atenção,
ele dá a impressão de ser um pouco parecido comigo. Não é
desrespeitoso como Charles, nem distraído ou efusivo como são
Antenor ou Saoshyant; acho que vamos nos dar bem.”, observou o
inglês, diferente do outro: “Não sei por que, mas ele não me passa
uma boa impressão. Temo que se me visse fazer certas coisas, me
denunciaria; não tem um olhar confiável. Preciso ficar alerta.”
- Vamos nos apressar então.
- Só que teremos que esperar pela noite. De dia não aparecem.
- Seremos pacientes nisso.- Ao que Malcolm concordou com um
aceno de cabeça e partiram com seus cavalos, que embora fossem
animais comuns se tornavam infinitamente mais rápidos com
cruzados montados sobre suas costas, de alguma forma interagindo
com o sangue que percorria as veias dos condutores e as energias
vitais emanadas por estes. O andar e o trote podiam ser normais, mas
o galope se tornava frenético, as pernas adquirindo uma força
inaudita, derrubando qualquer acompanhante normal que se
propusesse a montar junto, os cruzados não sendo insensatos a ponto
de permitir isso. A noite foi descendo calmamente, sem a menor
precipitação.
- Um primeiro acabou de entrar.- Tempo depois, Malcolm apontou,
os dois ocultos entre as folhagens, quando um homem ou uma
mulher, sob máscara e capuz, entrou em uma gruta que tinha uma
cruz de pedra no alto, por isso suspeita para os cruzados, aos quais
havia sido dada uma descrição compatível; aquela fora uma capela
rústica e, mesmo com todas as tentativas dos adoradores do
Demônio, que deviam tê-lo golpeado e tentado arrancá-lo a todo
custo, o símbolo no alto só mostrava algumas discretíssimas
rachaduras, quase imperceptíveis.
- Proponho que aguardemos um pouco. Vamos entrar quando
estiverem em plena cerimônia. Pegos de surpresa, concentrados que
se encontrarão em suas evocações, não terão tempo de lançar feitiços
contra nós nem de resistir às nossas espadas.
- Será mesmo essa a melhor estratégia? E se não não forem apenas
feiticeiros e houver algum demônio dando as ordens lá dentro? Se
demorarmos a agir, logo os inimigos irão se multiplicar e poderá se
tornar muito mais difícil.
- Por esse lado você tem razão.- De todo modo, nem o austríaco e
nem o inglês tomaram alguma iniciativa a princípio. Malcolm já
vinha de uma caça a bruxos e bruxas no norte e matara mais de vinte
feiticeiras em um ritual orgiástico em que os surpreendera,
capturando outras e outros e depois contribuindo nas torturas das que
foram levadas para Roma, algumas das quais se declaravam cristãs
em sua terra natal:
- A mentira está na base, na raiz do pecado. Por isso que dizem que o
Diabo é o pai da mentira. E não ouse me contestar, sua imunda!-
Encarara com intenso ódio e simultânea excitação uma bela bruxa de
olhos azuis e cabelos loiros cacheados que caíam pelas suas costas,
os braços pendurados com as mãos presas por correntes. Em breve
teria seus lábios grossos arrancados para que nunca mais beijasse o
falo do Diabo ou fizesse coisas ainda piores com tal membro impuro.
- Você é um ignorante. Não conhece e nem respeita as nossas
práticas e não compreende que o sexo não é sujeira e sim vida, ou
como acha que nasceu, seu cristão hipócrita?
- A quem chama de hipócrita, se você se passava por cristã?
- Fazia isso para não passar pelo que estou passando agora, vítima
da sua Igreja abominável. Queria paz e fazer amor, apenas amor; não
é disso que o Cristo falava? Nós seguimos a natureza e encontramos
nela o Espírito de todas as coisas.
- Você não é digna de citar o nome de Cristo! Uma boca lasciva que
passou por quantos membros, inclusive lambendo o de Satanás?!
Dentro de pouco os seus beiços serão arrancados.- Seu rosto
vermelho suava, seus olhos ficavam da mesma cor dos cabelos; em
sua mão direita, tentando desfaçar o tremor, um látego.- E idêntico
será o destino da sua língua, para que deixe de proferir blasfêmias e
de tocar no nome de Deus em vão. O Pai e o Filho deixarão de ouvir
seus perjúrios.
- Se não sou digna de nomear o Cristo, por que outros “pecadores” e
“pecadoras” chegaram a conviver com ele, entre cobradores de
impostos e prostitutas? Acho que me esqueci que vocês não são e
nunca serão Jesus, não passam de aproveitadores que abusam do
nome dele para perpetrar barbaridades e exercer poder e autoridade.
Não são sequer capazes de entender a natureza, que deveriam
homenagear e agradecer com amor pelos frutos que recebem.
- Não somos como vocês, pagãos que veneram ídolos e demônios
disfarçados de deuses!- Deixara de resistir e permitira que o golpe
violento desabasse sobre a carne da moça, rasgando inclusive a veste
sutil que a cobria; o grito de dor disparara e uma ferida grosseira se
abrira de imediato. Os olhos da jovem bruxa se encheram de raiva.-
A Criação há muito tempo foi corrompida pelos homens que pecam.
O paraíso terrestre, único local imaculado, está distante de nós.
Resta-nos caminhar por uma terra governada por Satanás e ceder a
ela nosso pó, na esperança que Deus tenha a piedade de buscá-lo de
volta, retirando do Demônio o que pertence somente a quem Criou,
assim como Cristo redimiu Adão e os patriarcas.
- Só responde e observa o que lhe interessa. Não passa de um
hipócrita! Apesar de fingir que seguia uma doutrina com a qual não
me identificava, pelo menos era sincera na que realmente era a minha
fé, e fiz minha essa Verdade. Você, diferente disso, só tem violência
no coração e fala em nome de um deus do amor! Não tolera pessoas
do tipo das que seguiram o messias que você venera; julga impura a
Criação do seu próprio Deus! Então como esse Criador pode ser
puro? Não entende como deturpa a vida?
- Pelo seu linguajar, deve ser de boa família. Como foi cair na
feitiçaria? Imagine o desgosto dos seus pais! Não teve piedade deles?
Não...- Antes que ela pudesse responder, chicoteara-lhe a boca com
força; os lábios queimaram.- Bruxas nunca têm piedade ou
compaixão! São monstros em formas humanas atraentes, que
enganam e seduzem. Você é uma abominação...- E o golpe seguinte
fora no abdômen; não tivera como impedir a ereção.
- Malcolm, meu bom Malcolm, vá com calma! Ainda temos muito a
extrair dela. Vá devagar, ou a acabará matando.- Jonathan entrara,
com seu sorriso característico.
- É um demônio humano; além de ser da estirpe de Eva. Como me
exige piedade, reverendo?
- Não exijo piedade, apenas paciência. Compreenda que ela tem
confissões a fazer e que a força de um cruzado é diferente da de um
carrasco comum. Ao menos dose a sua força.- Requisitara; a jovem
loira contorcia seu rosto de dor, sem mais ânimo para falar.- Se puder
se controlar, terá a sua recompensa depois.- E o inglês sabia do que
se tratava: poderia torturar aquela e outras mulheres, desde que não
usasse toda a potência de seus braços.
Alguns dias depois, enquanto aguardava a sessão que Jonathan lhe
prometera, ficara observando um livro com detalhadas iluminuras
sobre bruxaria; seu ódio, carregado de recordações amargas,
destronara qualquer outro sentimento de seu peito. A primeira que
observara fora uma com à esquerda Satã dirigindo suas amantes para
dentro de uma árvore oca, no alto um navio castigado pela tormenta
que feiticeiras à direita evocavam em um caldeirão e no centro um
secretário fazendo seus registros numa adega em que uma orgia
ritualística era celebrada com vinho, licores e cerveja; refletira sobre
os males que a bebida alcoólica podia provocar, conduzindo o
homem ao pecado pelo entorpecimento dos sentidos, anestesiando
sua moral e liberando a monstruosidade dos abismos do desejo. Não
por acaso os sabás incluíam narcóticos e poções, que seriam uma
ampliação do falso êxtase do álcool, a bebedeira constituindo o sabá
do homem comum. Ficara impressionado, em seguida, com a
ilustração de um gato mumificado, acompanhado por ratos na mesma
situação, e as notas explicavam que estes seriam seus acompanhantes
e seu provável alimento no além-túmulo. Quantas superstições! Em
primeiro lugar, como se os animais tivessem uma alma e, em
segundo, como se houvesse a necessidade de alimento no Paraíso!
Talvez no Inferno sim, porém devia haver fome e sede e nenhuma
comida. Não prestara atenção no esmero do enfaixamento e na
pintura facial. Falando em animais, passara para um sapo cavalgando
o esqueleto de outra criatura monstruosa, dirigindo-se ao ritual de
Satã, e para uma coruja ocupando o centro de um desenho em que
era circundada por cães ferozes; por que tanta fixação pelos animais
se os humanos que precisavam de ajuda para escapar do tormento
eterno? Certas bestas eram impuras, e ouvira falar de uma autópsia
feita em uma bruxa que revelara um enorme sapo vermelho no lugar
do coração; acreditava nisso, considerando que após o pacto o lado
humano delas se restringia a uma casca. O calafrio maior viera
quando dera de cara com uma representação de Lilith, buscando com
suas garras meninos para seduzir e matar e meninas para que
formassem seu séquito, ladeada justamente por corujas e com um
felino sob seus pés; suas asas eram negras, e portava um chicote.
Pensara no prazer que sentia ao agredir com um instrumento
semelhante as pecadoras e virara a página com pressa ao ser
percorrido por uma aflição pungente; buscara parar de pensar nessa
última imagem, encontrando na folha seguinte um desenho de
Medeia, que não sabia quem era mas descobriria pelo que estava
escrito embaixo, retirando um carneiro rejuvenescido de dentro de
seu caldeirão para demonstrar o poder de seu elixir ao idoso pai de
Jasão, devolvendo-lhe a juventude. As experiências ímpias dos
alquimistas, que não se contentavam com o tempo de vida que Deus
lhes dera, buscando prolongar a fútil existência terrena, lhe vieram à
mente; milhares de pequenos demônios deviam se acumular nas
cucúrbitas, pelicanos e cadinhos desses feiticeiros da matéria, almas
ingratas em busca de uma perenidade impossível, valorizando em
demasia a carne, feita para se decompor e não para permanecer. Seus
olhos se transferiram para dançarinas que rodopiavam ao som de
flautas e tambores, com cachos de uvas em seus pescoços; a dança
era claro outra ação que incitava ao pecado, não podendo ser
proibida, mas que devia ser contida, principalmente entre os
ignorantes e as mulheres sem freio. A iluminura seguinte soubera
identificar, pois aludia a Holda, lenda famosa nas terras que um dia
governara, cavalgando os ventos e sobrevoando os vivos com um
exército de mortos, o céu incendiado acima, punindo ou
recompensando os agricultores pela maneira como tratavam a terra;
se a lenda fosse verdadeira, devia ser uma bruxa ou demônio que
queria se passar por deusa, sendo que ninguém além do Senhor de
todas as coisas seria realmente capaz e teria o direito de distribuir
prêmios ou castigos ao seu rebanho. “Maligna Holda, passe longe,
seja deglutida pelo Inferno...”, não resistira e pronunciara uma breve
oração que se dizia que sempre a manteria distante. “Vá para longe
com seu nariz de aço e não me tente. Seu poder é insignificante se
comparado ao do senhor das hostes...”, e passara para uma cena com
duas megeras provocando uma chuva forte através de uma sopa com
o sangue de um gato e a pele de uma cobra; no céu, voavam
montadas em uma vara com forquilha três feiticeiras, cada qual com
uma cabeça de animal: asno, cão e galinha. “A bruxaria é se
bestificar, se animalizar, e depois continuar descendo, até tocar no
que nunca deveria ser tocado. Deus, espero que não me condene por
estar com tantas abominações em mãos, porém o que meus olhos
veem minha mente nunca sentiria com deleite...”, dissera para si
próprio.
Teófilo prestando homenagem ao Demônio fora a ilustração
seguinte, e Malcolm se lembrara da obra que não lera nem assistira,
mas que conhecia por depoimento de Antenor, que acompanhara uma
representação do auto sacramental, escrito por Eutiquiano de
Constantinopla (dito testemunha ocular do fato, o que teria sido
confirmado por São Bernardo e São Pedro Damião, entre outros),
ainda na Lusitânia e lhe narrara em resumo as desventuras do clérigo,
vigário da igreja de Adana na Sicília e coordenador dedicado dos
bens eclesiásticos por um longo tempo, deixando assim o bispo local
livre para cuidar das almas. Contudo, chegara, como chega para
todos os seres, o dia em que o monsenhor entregara sua alma a Deus,
e os fiéis, tristes, amenizaram seu desconsolo espalhando a boa
notícia que Teófilo deveria ocupar a sede vacante, o que o cura
recusara com humildade, legando dessa forma a responsabilidade sob
o rebanho da região para outro prelado, que porém não confiava no
bom administrador, removendo-o do cargo. Invadido pela decepção,
o eclesiástico, sentindo-se traído, começara a vagar pela cidade, com
o Demônio, que passara a perceber como quem percebe outra pessoa,
berrando em seus ouvidos com uma nitidez tensa e raivosa:
- Arrancaram seu posto! Arruinaram-lhe a carreira! Como fizeram
isso a você, Teófilo? Isso não pode ficar assim! Um homem tão
competente não pode sofrer dessa maneira.- O que levou o
atormentado padre a bater à porta de um feiticeiro, que lhe deixou
bem claro que só havia uma única e terrível solução:
- Precisa pedir a ajuda dos seres infernais.- Foi assertivo; uma
certeza não compartilhada por Teófilo, que vacilou. Só que a mágoa
foi mais forte e terminou por aceitar a proposta, com Satanás sendo
conjurado pelo feiticeiro e aparecendo da maneira mais hedionda e
grotesca, roendo os ossos de Judas com uma cabeça e os de outros
traidores históricos com a outra.
- Você vai fazer exatamente o que eu pedir.- Deixou claro e,
exalando um odor forte de enxofre, despejou seus termos junto com
urros, palavrões e blasfêmias, tudo sendo registrado em um
pergaminho com o sangue do ex-vigário, o pacto selado com seu
anel, devendo renunciar à Fé, à Igreja, à Virgem Maria e a Jesus
Cristo. Como na imagem que o inglês não deixava de observar com
horror, cerrando os punhos ao se lembrar com ódio dos que insistiam
em adorar Lúcifer, que só causava desgraças aos seres humanos, o
ex-padre se ajoelhou e prestou vassalagem ao Demônio, juntando as
mãos, que logo seriam cobertas pelas do Diabo. Bastou passar um
dia e o bispo que o prejudicara reconheceu que suas suspeitas eram
falsas e pediu perdão a Teófilo, devolvendo-lhe seu cargo. A
satisfação e a felicidade foram inconcebíveis; entrementes, havia ao
fundo um certo desconforto...Uma serpente se arrastava presa a elos
de metal em uma escuridão pútrida, bem no fundo de sua alma.
Como se estivesse o tempo todo sendo fitado por olhos pérfidos de
fogo, sangue e carvão, chorava sem parar, seu remorso dilacerava seu
espírito e seu corpo e passou a refletir que nenhuma valia tinha seu
cargo se estava condenado ao atroz sofrimento eterno. Uma mão
escura e cheia de espinhos, não só de garras, mesmo na palma,
prendia seu coração, relembrando-o que sua felicidade jamais seria
eterna. Quando não suportou mais a situação, entrou na igreja e
atirou-se aos pés de uma imagem da Virgem, suplicando-lhe que
salvasse sua alma. Lágrimas amarguíssimas deslizavam por seu rosto
e a santa e misericordiosa mãe de Deus era a única que poderia
salvá-lo naquele instante, com sua ternura que fazia o Maligno
tremer de medo. Nada aconteceu num primeiro momento, mas
continuou voltando ao altar e rezando por quarenta anos, até que
numa noite a piedosa Maria decidiu aparecer e enfim lhe falou:
- O que você fez, Teófilo? Renunciou à amizade, ao amor, a mim e a
meu Filho para se entregar ao nosso pior inimigo, deixo claro que
não só meu e dele, e sim seu também?- Teófilo, sem parar de chorar,
implorou o perdão de Maria, aludindo a outros pecadores
regenerados como São Paulo, São Mateus e Santa Maria Madalena.
Ela lhe respondeu:- Posso lhe dar meu perdão, mas não o de Jesus,
que aqui não se encontra. Vou rogar a Deus por você.
Depois da Santa Virgem ter partido, o clérigo intensificou suas
lágrimas, preces e penitências, sem nunca, durante todo aquele
período, sair de perto de seus pés. Em outra noite, a Mãe de Deus
tornou a aparecer:
- Rejubile-se, Teófilo. Suas orações chegaram a Deus. De hoje em
diante, eu e meu Filho iremos protegê-lo. Não precisa mais temer o
Demônio e suas artes.
- Minha Senhora, agradeço-lhe do fundo do coração. Só não estou
plenamente satisfeito e consolado porque Satanás ainda conserva o
documento imundo em que está escrito que renunciei à Senhora e ao
seu filho. Há algum meio de me livrar dessa escritura ou de fazer
com que me seja restituída? Deve haver algum jeito.
- Sim, meu caro. Claro que há. Mas já disse que não precisa mais
temer. Irei pessoalmente ao Inferno e trarei comigo esse pergaminho.
- Mas é perigoso demais, minha Senhora!
- Quem está com Deus não conhece o perigo, pois nunca se acha só.-
Durante três dias o prelado aguardou, prostrado em terra, ao cabo dos
quais Maria retornou, com o pacto maldito em mãos, e o entregou ao
clérigo para deixar claro seu perdão e o do Senhor.
Bastou amanhecer o novo dia para que Teófilo, esqueletizado, fosse
até o bispo e, a seus pés, narrou-lhe entre soluços o que ocorrera e se
dispôs a deixar o cargo, pois não era digno. O documento foi
entregue e o bispo fê-lo queimar diante dos fiéis presentes. Todos
exaltaram a bondade de Deus e a compaixão da Virgem. Como o
perdão tinha sido dado diretamente por Deus, não havia razão para
remover Teófilo de seu posto, que continuaria a exercer.
Depois de três dias, o ex-pactuante morreu. Cumprira sua missão na
Terra, a de exaltar a piedade do Criador, e podia migrar feliz para as
alturas. Outra iluminura, bem ao lado, mostrava Nossa Senhora com
uma espada na mão direita, serena e com autoridade sem ser
autoritária, obrigando o Diabo, corroído por um desespero cínico e
um ódio selvagem, a devolver o pergaminho do pacto. Malcolm
ficou refletindo a respeito do arrependimento e se lembrou de uma
discussão que tivera com Antenor:
- O nosso mundo é muito pior do que o do tempo das escrituras!
Não há como perdoar certos pecados. Muitos se orgulham de serem
bruxos e pecadores, de causarem o mal a seus semelhantes.
- Entretanto, Deus nunca deixa de ser bom. Ela o era no tempo das
escrituras e continua sendo. Considerando isso, não deveríamos
massacrar os hereges, por mais impenitentes e soberbos que sejam,
pois são seres humanos como nós. Há que se combater a raiz do mal,
que são os demônios, não as pessoas, que estão na superfície.
Justamente pelo fato da Fé em Cristo ser a única segura, temos que
proteger os que não a têm, de parca compreensão, e ofereceremos a
outra face se tentarem nos prejudicar. Estou certo que nesses casos
Deus irá nos proteger.
- É muito bonito o que diz, mas você sabe perfeitamente quem é
hoje o senhor do mundo. E se trata de uma legião; está por todas as
partes.- Apesar de ser grato como nunca ao lusitano por este uma vez
tê-lo salvo de uma possessão, sentia-se perturbado, envolto por uma
névoa desconfortável, quando o companheiro desfechava seus
argumentos, e o incômodo e a confusão só passavam ao se
distanciarem. As brumas interiores pareciam formar em
determinados momentos uma capa suja e ora volátil, ora densa,
emanando odores nauseabundos. Sem se dar conta, o inglês sempre
torcia o nariz, o que causava estranheza em seu interlocutor, ainda
que não ocorressem comentários posteriores.
- Ao dizer que é o Demônio o senhor do mundo, quer afirmar que
essa criatura desprezível é superior ao nosso Criador? Não confunda
a fé cristã com as superstições persas, que dividiam o universo entre
dois deuses, um bom e um pérfido, como Saoshyant me explicou
uma vez. Nós só temos um Deus, que se manifesta de três formas.
Não precisamos ter medo que os ímpios destruam a doutrina do
Cristo. Esta renascerá sempre, assim como Ele ressuscitou, bastando
que um fiel permaneça vivo. E, estou quase certo disso, mesmo se
esse fiel morresse Cristo voltaria à Terra e repetiria seu sacrifício
caso fosse necessário, calando e mostrando.- Malcolm, tão seguro em
seu ódio aos hereges, principiara a ter seus primeiros
questionamentos a respeito do tratamento dado a estes, inclusive por
ele próprio, após desenvolver a amizade com Antenor; porém o
ressentimento que sentia era mais forte, comparável ao que Teófilo
sentira contra o bispo...Não, não podia ser! Afinal o vigário de Adana
em sua raiva clamara por Satanás, enquanto ele na sua só chamava
por Jesus Cristo! Situações totalmente diferentes e moralmente
opostas...Seriam realmente? De vez em quando tinha vontade de usar
seu chicote contra Antenor. O bom cruzado, no entanto, era
realmente puro e não merecia esse tipo de tratamento, seria o mesmo
que achacar, espancar e pisotear um santo, guardadas as devidas
proporções. O pior talvez não fosse a mágoa que tinha...E sim o
prazer que sentia. Luxúria, lascívia: era mais uma entre as tantas
vítimas do pior dos pecados, do mais visceral, do mais difícil e
atormentador, do qual nem mesmo com o sangue do salvador se
viam livres, ainda por cima aliado à vontade de vingança, à ira. Era
sua única forma de se aliviar...No fundo, em alguns momentos não se
sentia diferente dos sodomitas e de outros pervertidos.- Fique calmo,
nós vamos conseguir.- Dissera-lhe numa certa ocasião Antenor, com
uma sombra de sorriso nos lábios, que enquanto olhava as iluminuras
lhe pareceu algo petulante, ao incitá-lo a seguir em frente por uma
floresta que virara um acúmulo de massas de lama vincada e
vegetação negra e espinhosa, tornada assim pela ação de um
demônio rastejante, imenso, o dorso crivado de espigões, semelhante
a uma serpente de rosto humano, que se dizia que devorava as
expressões faciais das mulheres; conseguiram derrotá-lo juntos, um
imobilizando-o com suas flechas e o outro decapitando-o com sua
espada. Precisava realmente de calma; sempre fora o que mais lhe
fizera falta, em todas as épocas de sua vida, até nas poucas felizes.
- Um inseto atado aos fios de uma teia de aranha. Essa é a situação
do herege quando cai nas mãos da Igreja. A justiça é inevitável; não
há nada que possa ser feito para salvá-lo. Apesar da aranha para
muitos ser um animal feio e repugnante, é estritamente necessária
para que moscas e outros seres verdadeiramente asquerosos não
proliferem. Assim é a Igreja, cujos julgamentos podem ser cruéis aos
olhos de certos idiotas, mas são necessários para manter a Ordem do
mundo.- Escutara uma conversa entre Charles e o padre Tharien; a
opinião do francês era a oposta da de Antenor, e nesse sentido
poderia ser mais condizente com a de Malcolm não fosse o
antagonismo entre os dois. Entretanto, as concepções do inglês
estavam se transformando depressa nos corredores abstrusos de um
labirinto de mármore negro; tornara-se difícil continuar mantendo o
castelo exterior de pé com suas muralhas. Fragmentos coligidos de
conceitos e dogmas haviam passado a ser insuficientes; seu rosto
apoplético ao bater nos hereges dizia pouco a respeito de sua
desesperadora profundidade, seu frágil ego acanhado sob uma luz
fria e avara, sem que a afetuosa censura de seu juízo moral o tirasse
do lugar.
- Ecclesia abhorret a sanguine. Assim deveríamos pensar.- Dizia-lhe
o amigo lusitano.
- Iterum peccavi...- Malcolm agora repetia para si, depois de torturar
algum herege, quando chegava à conclusão que passara dos limites
pelo prazer. Acabava sendo um onanista da pior espécie.- In summa
serenitate.- Respondia como se encontrava para algum padre depois
de orar; e isso era verdadeiro, conquanto durasse pouco. Sua alma
logo voltava a ser acrimoniosa; importante ao menos continuar de
pé.- Anima stans et non cadens...- Outro trecho de prece que fazia
parte do seu cotidiano; quando rezava, só em dias muito conturbados
demorava para que as palavras deixassem de rolar de seus lábios com
uma velocidade superior à do pensamento. Geralmente conseguia se
concentrar. Em tempos recentes, passara a orar para que se
aperfeiçoasse em seu ofício, que a despeito de matar demônios era
sobretudo sacerdotal, fazendo-o um digno servidor de Cristo.
Recordou-se com um aperto no peito de um padre devoto que
apreciara e que morrera afogado ao tentar atravessar um açude em
época de degelo; tinha pena dos que não tinham como garantir suas
próprias vidas, com corpos tão frágeis. Para se afogar, um cruzado
teria que ficar debaixo d'água por horas e resistiria às mais baixas
temperaturas. E todas as preces não haviam servido para salvar a
vida daquele bom sacerdote, que fora seu único amigo antes de
Antenor, visitando-o sempre que podia nos intervalos entre uma
missão e outra, tendo-o conhecido durante uma caçada a um
devorador de crianças. A neve da região passaria a lhe mostrar uma
brancura estranha, plúmbea, diferente de outras neves, e assim
compreendeu de forma vaga como alguns nórdicos conseguiam
distinguir variados tons de alvo.
Passando à ilustração seguinte, deparou-se com uma imagem com
falsos monges adorando o traseiro de um bode monstruoso e acima
bruxas cavalgando demônios por um céu de estrelas negras; aquilo
lhe causou tamanha repugnância, a ponto de perceber um impulso de
vomitar a compota de frutas que comera uma hora antes, que
rapidamente virou a página, se bem que longe estivesse de terminar,
a agonia e o nojo crescendo junto com a curiosidade à medida que
avançava na leitura e na observação. A cada instante seu ódio áspero
e seu asco pelos bruxos, bruxas e hereges se atracava com mais vigor
e ressentimento na lama com as tentações do Diabo e também de
Antenor.
Passou seu olhar para as duas próximas páginas, nas quais havia
uma série de pequenas representações, a primeira acima com uma
velha bruxa jogando migalhas de pão em um círculo mágico; no
interior deste, demônios dançavam junto com chamas e animais, um
dragão envolvendo a cena, e o objetivo era que o futuro lhe fosse
revelado. Na nota, leu que o desenho se referia a uma certa Catherine
Boham, que andava pela rua levando pendurado no pescoço um saco
com um sapo costurado dentro, dentro do qual havia por sua vez
pedaços de ratos. Abaixo ilustrada sua execução na forca, ao lado de
outras duas bruxas, uma destas cercada por bizarros bichos de
estimação, entre rãs com cabeças de gato e grandes aranhas,
etiquetados com nomes de seres infernais. Malcolm fez o sinal da
cruz e passou para uma senhora de muletas, de aparência frágil,
porém com um olhar diabólico; explicado embaixo: “distante da
graça de Deus como os Céus do Inferno”, e ao lado três feiticeiras
montadas em um enorme porco, de corpo muito comprido, a da
frente segurando uma tocha e a terceira cutucando a do meio.
Em outra figura, uma mulher jovem e atraente amamentava um cão,
evidente alegoria do Diabo; estava escrito que esta certo dia ofendera
uma senhorita, que jurara vingança e a denunciara, cumprindo a
justiça que não escapa dos olhos de Deus. O cruzado estivera em
diversas execuções de bruxas, como espectador ou participando:
numa tarde de sol esbranquiçado e ar frio, a atmosfera nevoenta,
colocara uma acusada que se recusara a confessar mesmo sob tortura
em um saco e o atirara à água com toda a ira de seu braço esquerdo,
o suficiente para manusear tão pouco peso; ao jogá-la, sentira uma
tremenda excitação, aplacada depois que a vira afundar, ao contrário
de outra, que, as mãos atadas aos pés, flutuara sobre as águas...O que
de nada servira, pois dessa maneira ficara comprovado que se tratava
de uma feiticeira e acabara queimada. Quando via uma mulher
dessas no patíbulo, um fogo subia também por seu corpo, tomado de
um calor virulento e sexual, fazendo um sinal da cruz, ao término do
processo, que lhe parecia restituir a paz. Uma das execuções que
mais gostara de assistir fora numa praça em uma cidade de Castela,
em que jogaram a acusada no ventre em brasa de um touro metálico;
o julgamento mais peculiar feito com uma balança, visto que as
bruxas eram consideradas de leveza sobrenatural, afinal podiam voar
pelos ares, de um lado colocada a suspeita e na outra uma pesada
Bíblia, havendo uma diferença de peso pré-determinada que era
quase impossível de ser alcançada. Sabia que alguns de seus
companheiros, entre os quais Cavalcanti e Antenor, julgavam esses
métodos superados e artificiosos.
De volta à caverna dos hereges, Sigmund e Malcolm acabaram
chegando a um consenso de poucas palavras e decidiram invadir o
local após testemunharem a entrada seguida de diversos indivíduos
em vestes suspeitas, que com toda a certeza eram feiticeiros e
feiticeiras.
Ao contrário do que fariam outros entre os 12, os dois irromperam
sem muitos planos, cortando e arrebentando com suas espadas os que
pegaram desprevenidos e Malcolm com um golpe mais furioso do
que o normal contra um grupo de amantes nus que já devia estar ali
havia bastante tempo, participando de uma longa orgia interrompida
por sua lâmina, que espalhou sangue sobre os fluidos sexuais e
respingou de vermelho os que ainda não haviam sido atingidos. Ao
fundo, uma mulher à frente de um altar de pedra azul, com um cálice
de prata cravejado de pedras preciosas, retirou seu capuz e revelou
em sua testa um terceiro olho de fundo verde com uma pupila negra.
Possuía uma tez macilenta, olheiras grosseiras e cabelos desbotados.
A pele de suas mãos descascava a olhos vistos e soltou um grito
estrídulo de horror que levantou do solo um grupo de gigantes
rochosos, feitos da própria matéria da gruta. O austríaco se
encarregou destes, destruindo-os em segundos com a potência das
duas espadas imantadas com sua força sobrenatural, e desabou sobre
a bruxa, que sem usar os pés apareceu pouco atrás, fazendo com que
os golpes rachassem o chão; com sua mente, passou a introduzir
pensamentos destrutivos e de fraqueza e impotência na mente do
cruzado, cujo físico principiou a refletir...Ao mesmo tempo que
Malcolm enfrentava dois feiticeiros nus, um velho de barba e cabelos
compridos, o outro jovem e loiro, que levitavam invocando os
elementais do ar e formavam círculos e lâminas de fogo com a ajuda
dos espíritos ígneos; os ventos que o derrubavam por um momento,
no entanto, não eram suficientes para manter o inglês no chão e este
se levantava e resistia com seu corpo a qualquer chama evocada
pelos inimigos. Em um salto que surpreendeu o idoso, levou a barba
deste junto com a garganta; e num outro movimento perfurou o peito
do rapaz.
Sigmund decidiu com firmeza que não era o momento de se
intimidar; domou o esmorecimento introduzido pela adversária e
enrijeceu seus músculos para atirar uma de suas armas: a inimiga não
se teletransportou a tempo e foi transpassada. Seu companheiro
continuou dizimando mais feiticeiros despidos e alguns que pouco
tempo antes estavam no coito, tentando se conter no entusiasmo que
sentia para não permitir que aflorassem pecados graves como a
luxúria e o orgulho. Temia que dessa vez não escaparia da possessão
caso algo desse errado. Só de pensar em algum demônio à espreita às
suas costas, sentia o cheiro de sujeira fermentada e o delgado fio de
prata que ligava a alma ao corpo ameaçava ser rompido, tocado por
dedos de unhas sujas e afiadas que conviviam com espessuras
sombrias. Melhor se concentrar em dar um fim àqueles que se
perdiam no labirinto da existência, deixando que o sangue ansioso
destes escapasse dos finos claustros que ficam ocultos ou
semiocultos nos corpos dos sábios e dos ignorantes; só o sangue dos
segundos devia sair: um paradoxo para quem já tinha sua alma presa.
Alguns minutos bastaram para que todos os participantes da seita
estivessem mortos, o austríaco um pouco mais ofegante do que o
inglês, que estava mais sujo, ambos de qualquer forma se sentindo
vitoriosos. Aproximaram-se e olharam um para o outro, sem mostras
de riso. No entanto, não estava terminado como haviam pensado:
- Muitos obrigada, meus queridos...Vocês fizeram exatamente o que
eu queria! Eles podiam não saber, mas agora também estão felizes,
afinal foram agraciados com a minha eterna companhia!- A voz,
feminina e lasciva, não era a princípio de assustar a mente mas de
excitar os sentidos, deslizando como uma língua macia pelas orelhas
e amplificando a audição, cada detalhe de movimento ouvido ainda
melhor, lábios carnosos sobre os dos cruzados roubando beijos que
não puderam impedir, seus corpos penetrados por um saboroso
arrepio, suas narinas captando o odor de cópula, seus olhos por fim
podendo contemplar uma manifestação apavorante: o sangue, os
pedaços de cadáveres e os fluídos sexuais espalhados foram usados
para dar forma a um terrível demônio, no início inumano, sem pernas
ou braços, apenas uma cabeça com chifres e cabelos pegajosos sobre
uma massa sangrenta, aos poucos surgindo o tronco, os braços, as
mãos, depois pernas e pés; os cornos posteriormente desapareceram,
enquanto os olhos arregalados se tornavam duas belas ametistas, uma
donzela nua de esplendoroso fascínio, medindo por volta de um
metro e setenta, os cabelos negros descendo até o chão, tomando
corpo no final. De monstro a anjo. Contudo, anjo apenas na beleza
física; seu olhar violeta era pérfido e seus movimentos sinuosos
bloqueavam os movimentos dos cruzados sem a menor violência
aparente. Na névoa maldosa que espalhou brotaram os rostos dos que
tinham sido assassinados pouco antes, e todos clamavam por
vingança. Sigmund teve a impressão que aquelas vozes destruiriam
seus tímpanos, ao passo que seu colega, tomado de pavor e sua
espada como que pesando toneladas, foi forçado a se ajoelhar para
não soltar a arma.- É assim que deve fazer. Preste homenagem a
mim. Sinta-se um privilegiado por ter me visto nascer novamente
neste mundo.
- Quem é você, monstro de aparência tentadora?? Não pense que me
engana...E também não estou de joelhos por devoção.- Replicou
Malcolm.
- Sei que está assim por falta de forças, mas isso pode mudar.
Entregue-se a mim e terá força e vigor.- Aproximou-se e acariciou
seu rosto; na sequência se abaixou também e, ficando próxima de
beijá-lo, com um sorriso depravado, levou uma cusparada no rosto.
- Nós não queremos ele! Nunca o aceitaremos!- Bradavam as
cabeças nas brumas.
- Saia de perto do meu companheiro...- Sigmund tentou mover sua
espada, sem sucesso.
- Calem-se, todos vocês.- Falou sem perder a calma e sem deixar de
sorrir, ao mesmo tempo que se reerguia e enxugava a saliva.- Eu dou
as ordens aqui. Sempre foi e sempre será dessa maneira. Uma pena
que existam os que insistem em me contestar e desobedecer.-
Encarou fixamente o inglês.- Você tem mais em comum conosco do
que pensa. Ou pensa e sabe, mas não admite.
- Cale a boca, sua bruxa suja!
- Bruxa? Ousa me rebaixar a uma condição tão reles? Você é
outro...- Fitou o austríaco.- Parece que a Igreja foi sábia na escolha
em quem mandar pra cá. Fique ciente que não sou uma reles
humana: sou Naemah, princesa do Inferno.
- Naemah? Acho que agora é compreensível por que não
conseguimos nos mover.- Grunhiu Malcolm.- Mas por que se
manifestou aqui e hoje?
- Disse aos meus servos que um dia me manifestaria a eles,
dependendo da devoção demonstrada e dos sacrifícios efetuados.
Mas carne e sangue de animais nunca iriam me satisfazer, do mesmo
modo que sêmen e secreções são oferendas muito pequenas face à
energia vital que minha presença demanda. Graças a vocês, e só a
vocês, obtive o que precisava.- Lambeu os beiços e expandiu o
sorriso com intenção provocadora; os rostos espectrais à sua volta
começavam a se adensar.
- E acha que esses miseráveis estão felizes por algo tão horrível lhes
ter acontecido?
- Terrível? Miseráveis? Você não sabe escolher bem as palavras,
meu nobre cruzado. Não imagina o quanto eles estão felizes. Para
vocês parecem um acúmulo pegajoso e fantasmagórico de cabeças
disformes e irracionais, mas o que podem compreender da realidade
que vai além das convenções humanas? O Inferno é aquilo que o ser
humano não pode compreender...Ao menos enquanto não estiverem
ao nosso lado, provando do néctar que o fogo e o gelo ríspido têm a
oferecer.
- Você joga com palavras e associações sem nexo. Está tentando me
enfeitiçar com fórmulas ocultas, velando-as por trás de um discurso
ilógico?
- Deixe de ser paranoico. Por que eu precisaria descer ao ponto de
disfarçar a minha magia? Sou explícita, sempre fui, não gosto de
alusões e disfarces, e se quisesse bastariam algumas palavras minhas
e vocês cairiam mortos neste exato instante. Não há razão para
esconder o meu poder...
- Então por que nos mantém vivos?- Sigmund questionou, possuído
pelo terror quando ela se virou para encará-lo, o escárnio evidente
em seus olhos e lábios; as pernas do austríaco ameaçavam desmontar
e o restante de seu corpo derreter, espalhando-se pelo solo frio.
- Não sei. Talvez porque nutro uma espécie de gratidão...Acham que
os demônios só possuem sentimentos ruins? Não caiam nas
artimanhas e discursos prontos desses padres difamadores! Apesar
que pelo visto já caíram; e por isso, por serem tão estultos, deveria
castigá-los de forma dura. Quiçá eu devesse temê-los, e algum dia
irei me arrepender por deixá-los vivos; não...Duvido muito! São
insignificantes demais para representarem alguma ameaça. É
provável que eu os queira vivos para que algum dia possa tê-los em
meus braços...Ou para satisfazer o meu cortejo, que já está
reclamando porque vocês não se aproximam ou porque não deixo
que cheguem perto.- Os olhos de Malcolm viram uma escadaria em
espiral que afundava na escuridão; por ela subiam com as mãos, sem
usar ou sem que possuíssem pés, criaturas nebulosas que depois se
ergueram humanamente, em formas voluptuosas, mulheres mais ou
menos belas, nas quais no entanto a vulgaridade se destacava,
vestidas ou não.
- Agora estou me lembrando. Naemah é a senhora dos íncubos e
súcubos!
- Alguns me diminuem, dizem que minhas preciosas amigas e meus
amigos seguem Lilith. Isso não deveria me incomodar tanto...Porém
reconheço que me perturba: Lilith já tem muitas outras atribuições e
responsabilidades; por que jogam tudo nas costas dela? No reino dos
gigantes, há outros muito grandes que podem parecer pequenos
diante deles, acho que a isso se devem os argumentos e observações
dos que me menosprezam.
- Vão embora, demônios imundos.- Malcolm, saturado de medo,
rosnou; um grupo de súcubos o envolveu e não podia deixar de
receber os beijos daqueles seres, impedido de se mover. Lambeu os
lábios quando uma pausa foi dada; feridas nasciam. Ia ficando
pálido, à medida que sentia que sua energia vital era sugada. Em
Sigmund, que começou sendo acariciado, o estômago embrulhava e
sua carne por baixo da armadura, trêmula, não mostrava a mínima
firmeza.
- Vocês deveriam tratar bem as donzelas, afinal não deixam de ser
cavaleiros. Sejam corteses, meus rapazes.- O ar denso dificultava a
respiração, como que pedaços de vidro entrando pelas narinas; os
lábios do inglês se moveram sem que som nenhum saísse, porém
Naemah riu ao discernir alguns palavrões. Os cruzados foram
perdendo as forças e o cenário ficando nublado e trêmulo, até que
desmaiaram. Ao despertarem, não sabiam quanto tempo depois,
ainda aterrorizados na mesma caverna, após pesadelos que não
podiam recordar, perceberam que estavam nus, as partes de suas
armaduras e as roupas de baixo postas de lado, e que tanto demônios
como espectros tinham ido embora, assim como os corpos, sangue e
secreções não mais existiam, deixando um silêncio perturbador.
Sigmund chegou a se questionar se fora um sonho ruim, se nada
daquilo fora real, se haviam sido drogados ou iludidos de alguma
forma pelos bruxos, que teriam conseguido escapar; no entanto,
Malcolm estava certo de que tudo fora real, em vista da esqualidez
que suas mãos ainda apresentavam, e seu semblante perturbado se
voltou para o colega:
- É um milagre estarmos vivos. Aquele monstro foi realmente
movido por alguma gratidão, ou algum anjo estava próximo para
induzi-lo a isso, o que não deverá se repetir, afinal considerando hoje
já nos retribuiu o favor que lhe fizemos. Da próxima vez estaremos
mortos.
- Então foi mesmo tudo real? Estou muito confuso, Malcolm.
- Ainda duvida?? Nenhum feiticeiro domina tamanho poder,
produzindo uma ilusão que reproduzisse a força de um príncipe do
Inferno. Esqueceu-se que não podíamos sequer nos mexer? E estou
mais do que esgotado neste instante; mal tenho energias para mover
o pescoço e meus braços; as minhas pernas estão voltando aos
poucos da dormência.
- Você tem razão. Mas estou certo que não foi nenhuma forma de
agradecimento ou piedade o que motivou Naemah a nos deixar
vivos. Ela realmente não nos considerou uma ameaça.
- Infelizmente isso também é certo. Não pudemos fazer nada.
- Talvez apenas os doze cruzados juntos teriam alguma chance
contra um príncipe do Inferno.
- Desde que este não contasse com seus aliados...Aqueles súcubos
me esgotaram.- E não conseguia se recordar das feições daqueles
demônios em cascas de mulheres, surgindo em vez dos rostos destes
os das moças e senhoras que já torturara, de todas as bruxas
(supostas e verdadeiras) e hereges que tivera a oportunidade de
chicotear ou fazer coisas piores; Sigmund, da sua parte, vira em cena
nas criaturas, e se lembrava bem disso, as cabeças de todas as viúvas
que possuíra. O primeiro se perguntava se Naemah não estaria ainda
agindo, provocando-o e induzindo tentações, fazendo com que
questionasse sua atividade na Igreja e sua atitude em relação à
descendência de Eva; o segundo se perguntou se não estava pouco a
pouco escorregando para o abismo, cultivando um vício contrário ao
juramento que fizera, se não era levado a concretizar o que desejava
pela ação de algum poderoso súcubo, e sentindo um calafrio tomou
coragem para inquirir:
- O que você acha que realmente acontece com aqueles entre nós
que são possuídos?- A pergunta saíra após alguns segundos de
silêncio entre ambos, com o inglês conseguindo se levantar devagar e
demonstrando um certo choque ao ser indagado. O austríaco notou
algo de estranho no ar; as duas consciências ainda se arrastavam por
catacumbas mudas.
- Por que essa dúvida agora? Fomo sugados, mas em nenhum
momento ameaçaram nos possuir.
- Mas e se acontecesse? Será que a alma realmente vai para o
Limbo? Ou nos tornamos um com o demônio que toma nosso corpo?
Soube de alguns cruzados que enfrentaram possuídos que ainda
afirmavam ser quem eles possuíram.
- Trata-se de uma estratégia dos demônios para nos confundir e nos
obrigar a ter compaixão, forçando-nos a hesitar, pois nenhum bom
cruzado mataria outro sem antes ter razões precisas para isso. É o
que penso. Quanto às nossas almas, acredito no que diz a Igreja.-
“Será que devo contar a ele o que passei com Antenor? Talvez seria
pior...E não ajudaria em nada. Afinal a possessão não se concretizou
e aquela fúria, aquele ódio e aquela irracionalidade que me
invadiram quando fiquei no limiar da perda da consciência não me
trouxeram nenhuma resposta precisa. Só o que sei é que vi o horror e
senti algo pior do que a morte, ao mesmo tempo que entravam um
prazer e uma excitação que palavras jamais explicariam, superiores a
qualquer excitação dos sentidos. É tudo muito confuso, nebuloso,
obscuro...Cristo, meu senhor e meu Deus, espero que algum dia sua
luz possa revelar sua Sabedoria ao mundo.”, refletiu Malcolm.
- Não duvido do que a Igreja diz, apesar do corpo de Cristo estar
repleto de homens que não seguem sua palavra. O Mestre não deixou
nada a esse respeito, afinal cruzados não existiam em sua época, e é
por essa e outras razões que nossa existência se torna perturbadora
para nós mesmos. Se todos seguissem a Palavra, sequer
precisaríamos existir.
- Só que os homens necessitam de nós. Enquanto monstros como
Naemah existirem, seremos mais do que necessários, e acredito que
será assim até o dia do Juízo Final. Hoje somos vitais para que o
sangue humano continue escorrendo dentro de seus próprios
corredores, sem estourar para fora em um desespero que conduz a
um labirinto ainda pior, sem paredes, sem chão; sem nada.
- Temo dizer que nos limitamos a apaziguar. Não há como salvar
almas e corpos. Como você disse, teremos que esperar pelo Juízo
Final para que Satanás e seus príncipes sejam atirados no lago de
fogo. Ainda é cedo para vencer a guerra; nossa principal virtude deve
ser a paciência.
- Paciência na vida sim. Mas é melhor voltarmos para Roma agora.
Ela pode mudar de ideia...- Estendeu a mão ao colega, que aceitou, e
com força o ergueu.
- A nossa missão foi cumprida. Aqueles bruxos não se reunirão mais.
- Não em nosso mundo...
- Mas o outro mundo não é de nossa alçada. Temos que continuar
deixando nossas pegadas nesta terra e tendo paciência para seguir em
frente mesmo que nenhuma resposta seja encontrada.
- Estamos de acordo.- Mantiveram as mãos unidas por alguns
segundos antes de as separarem para se vestirem e recolocarem suas
armaduras; no caminho de volta, acompanharam seus cavalos na
incapacidade de pronunciar qualquer palavra.

QUINTO ATO

Os espinhos da Rosa

Os olhos do deserto estavam voltados para a fome. Uma caravana


seguia cabisbaixa, os camelos magros, ainda assim em melhor estado
do que aqueles homens e mulheres, exaustos com as sacolas pesadas
para seus físicos, suas mãos repletas de calos, os velhos sobre os
animais com outras bagagens e as crianças forçadas a ir a pé mesmo
com os pés ardendo nos sapatos de solas rasgadas (os únicos ali, pois
os adultos tinham que se sacrificar e andavam descalços sobre a areia
quente) e os joelhos como se tivessem estacas fincadas. Dirigiam-se
ao sul, em direção a um pântano de água salgada, e de lá esperavam
chegar à cidade de Galba, onde enfim poderiam descansar e comer
algo que não fossem os insetos que haviam recolhido ao longo do
caminho e lagartos já difíceis de caçar, pois seus membros tinham se
tornado lentos com a fraqueza e o sol de dia e o frio à noite eram
fortes demais para estimular o movimento. A carne e os frutos secos
que haviam levado estavam esgotados; a areia era áspera, repleta de
pedriscos, e cada gota de água nos cantis valorizada ao extremo, sem
excessos, um gole ínfimo quando a sede extremava, para que durasse
o suficiente. Não havia quase diálogo, o raciocínio era fraco, a cáfila
cambaleava nas horas em que o calor atingia o seu auge e não
conseguia sair da imobilidade quando a lua surgia, trazendo consigo
uma secura gélida que os obrigava a parar e dormir enrolados nas
cobertas; levantavam-se a custo assim que o sol nascia, na esperança
que fosse ameno e complacente naquele dia, o que só ocorria nas
primeiras horas da manhã, que era quando conseguiam avançar
melhor, logo tornando a castigar os lombos dos viajantes, que já não
tinham mais tanta certeza se aquele empreendimento valeria a pena;
seus lábios rachavam, seus olhos ardiam; ainda assim, tarde demais
para voltar.
- Há quantos dias que estamos nesse deserto? Será que nos
perdemos?- Indagou uma mulher de rosto queimado, as olheiras
inchadas e a pele manchada e repleta de sulcos, com um lenço mal
colocado sobre os cabelos pretos ressequidos, querendo escapar da
cabeça, curvada sob o peso das trouxas que carregava consigo; não
parecia ter olhos e sim um par de borrões verdes na face.
- Não, isso não aconteceu. Está tudo sob controle. Foram só
quarenta dias.- Respondeu um indivíduo atarracado, de olhos
esmeraldinos bem vivos, talvez pela esperança que carregava, barba
espessa como os outros homens ali, testa proeminente e cabelos
quase raspados.
- Quarenta dias? Tem certeza? Parece mais que estamos aqui há uns
seis meses.
- Se tanto tempo tivesse transcorrido, já seríamos carne para os
abutres, ou ossos já sem nenhuma carne.- Respondeu, e aqueles dois
pareciam ser alfabetizados, comunicando-se em um latim vulgar
bastante correto, os sotaques diferentes, o dele fazendo lembrar o
castelhano e o dela o catalão, comerciantes que tinham unido suas
famílias sob o propósito firme de alcançarem Galba, pequena cidade
onde não enfrentariam tanta concorrência como em suas terras de
origem, além de não terem agiotas em seu encalço; com o fim dos
mantimentos trazidos, suas bagagens tinham quase que só
mercadorias, repletas de objetos de artesanato e ferramentas, não
tendo trocado de roupas desde o início da aventura. A mulher temia
mais por suas crianças, se bem que se tivesse permanecido em sua
cidade teriam sido tomadas como escravas pelo usurário.
- Se não fosse esse calor tão forte, talvez suportasse melhor. Sempre
fui muito sensível ao sol.
- Entre as minhas mercadorias, há pomadas muito boas. Algumas
encomendei de uma bruxa, muito simpática por sinal; à base de aloé,
servem até para queimaduras e hanseníase.
- Não gostaria de consumir algo que fosse feito por bruxas.- Fechou
na mão direita o crucifixo em seu peito.- Além do que seria difícil
encontrá-la agora, no meio de todas as coisas. Daria trabalho demais
abrir tudo pra achar as pomadas.
- Isso com certeza não, só cansaria um pouco; sei onde elas estão.
- Obrigado, mas não. Deixemos como está. A previsão é de quantos
dias para alcançarmos pelo menos o pântano? Se não me engano,
você tinha dito que seriam mais dois dias.
- No ritmo que estamos avançando, acredito que cinco. Mas falando
de bruxas, acho que deveria ser menos preconceituosa. Nós dois
tivemos um passado na Igreja, você foi freira, eu fui monge, e a
deixamos de lado, preferindo até o comércio, justamente por não
concordarmos com certas imposições e conceitos que excluem e
violentam os seres humanos. Bruxas não necessariamente são más,
muitas têm um enorme conhecimento das plantas e suas
propriedades, e curam um sem-número de pessoas.
- Sou contra queimar os bruxos e as bruxas, e sei que muitos fazem
o bem ainda que na senda errada, mas como posso saber quais são
bons e quais os maus? Prefiro não me arriscar. Qualquer substância
preparada por uma alma venenosa estará de alguma forma
envenenada, se não na matéria no espírito; o que não deveria ocorrer
são os julgamentos precipitados, a aceitação de denúncias sem base
por ganância dos padres. Mas não sou contrária à forca e à
incineração dos magos das trevas, que nunca poderão ser contidos
pelo encarceramento. E sob boas intenções, muita maldade pode se
achar à espreita, com olhos de fogo piores do que este sol. Por isso
prefiro padecer com o calor.
- Cada um faz a escolha que lhe apraz.- Replicou o homem, e
seguiram em frente até, após tantos dias sem avistarem uma alma
humana que não fosse dos integrantes de seu grupo, discernirem no
ar trêmulo uma silhueta, que ao se aproximar foi ficando mais nítida,
à distância o vermelho-rubi do traje que vestia revelando o ouro na
gola e nos pulsos quando próximo, um ouro que no entanto o líder da
caravana, que conhecia bem esse metal, nunca tinha visto tão
reluzente, assim como era o negro daqueles cabelos ondulados
compridos, a barba curta da mesma cor, a pele morena escura, o nariz
largo e anéis de pedras preciosas nos dedos, os pés encobertos pela
túnica que ia até o chão; o que um homem como aquele fazia em
pleno deserto, e com um rosto e olhos que irradiavam uma saúde
plena, absoluta? Era alto, por volta de um e noventa, e de costas
largas. Quando o fitou num segundo momento, contudo, todos os
ornamentos e joias desapareceram e se viu para seu espanto diante do
mesmo homem só que em uma vestimenta muito simples, branca, e
sandálias nos pés. A despeito da brusca mudança, a vitalidade
continuava intacta e um sorriso se abriu pouco antes das palavras
serem postas em ato:
- Estou indo para Verre, mas sei que o caminho ainda é longo. É um
prazer encontrar outros viajantes neste espaço tão solitário.- O mais
espantoso era que aquele sujeito não carregava nada consigo; Verre
ficava a dias de distância, como chegaria sem água e comida? E, pior
do que isso, há quanto tempo devia estar caminhando no deserto,
sendo Galba a cidade mais próxima?- Ainda que nossas direções
sejam opostas, os saúdo e lhes desejo a companhia de Deus no que
estão empreendendo. Da minha parte, estou feliz por ter
reencontrado seres humanos.
- Prazer. O meu nome é Diego.- O comerciante se apresentou com
uma certa hesitação, enquanto os outros em sua caravana olhavam
sem olhar, parados, e Teresa, a ex-freira, parecia desconfiada; para
andar assim no deserto, aquele poderia ser um feiticeiro perigoso, um
demônio disfarçado ou um bandoleiro das areias. Entrementes, não
parecia alguém disposto a roubar o pouco que tinham.
- O meu pai se chamava Isaac, meu avô Davi, e eu me chamo José.
O prazer é todo meu. Vejo que parecem muito cansados da viagem.
Posso ler isso em suas expressões.
- O que nos impressiona...- Teresa falou devagar, olhando por um
momento para Diego.- É o senhor estar tão bem e não carregar nada
em suas costas ou em suas mãos, ainda mais estando sozinho. Diga-
nos qual o seu segredo.
- Estão pensando que sou algum bruxo?- Liberou uma gargalhada.-
Não temam, meus amigos!
- Os nomes que expôs são de origem hebraica. Isaac, Davi, e o seu
próprio. Nada contra São José, pai terreno do Cristo, mas
convenhamos que é algo suspeito, ainda que as bruxas de Judá sejam
cautelosas e nunca revelem suas origens. Só não o temo porque
acredito que se quisesse nos fazer mal já teria feito.
- Bruxas de Judá, a senhora bem disse. E não bruxos! Sou homem,
então como posso pertencer ao grupo delas? Um tanto contraditório,
não acha?
- As bruxas conseguem disfarçar até mesmo seu sexo.
- Acha que têm assim tanto poder? Mas está bem...Parei apenas para
saudá-los. Vamos seguir em paz nossos caminhos, e que Deus os
acompanhe.
- O mesmo para o senhor.
- Muito obrigado!- Afastaram-se, Diego com frequência olhando
para trás para ver como o desconhecido ia embora, se desapareceria
de maneira repentina, porém o distanciamento se deu de forma
gradual, humana, sem interferências mágicas. “Talvez o tenhamos
julgado mal. O que eu vi deve ter sido simplesmente uma miragem,
apesar de não ter ilusões que vou ficar rico algum dia; só quero ter
conforto e trabalhar em paz. Apesar que claro, se ouro e joias vierem,
não vou renegá-los...”, sorriu para si mesmo, como não fazia desde o
início da viagem, aos poucos percebendo que após o encontro com
José parecia ter ficado mais forte fisicamente, sentindo menos fome e
cansaço, e seu humor em relação ao seu interno se alterara: antes,
mesmo que por fora brincasse, estivera melancólico e exausto por
dentro. Ao passo que Teresa, ao pegar seu cantil para beber um gole
d'água e oferecer outros às suas crianças, notou para sua surpresa que
o pouco líquido que havia antes agora transbordava:
- Mas o que aconteceu? Não é possível.
- O que foi, Teresa?- Inquiriu o ex-monge.
- A água. Deve ser uma miragem, dê uma olhada!
- O seu cantil estava quase vazio, não estava?
- Então você está vendo! Não deve ser miragem.
- Encheu de repente?
- Isso mesmo...- Ficou assustada. Devia ser bruxaria.- Eu não vou
beber isso.
- Você ficou louca??? E se Deus nos concedeu um milagre? No meio
do deserto, vai abdicar de água??- Questionou com uma veemência
que chamou a atenção dos outros membros da caravana, que mesmo
na apatia em que se encontravam encararam os dois condutores.
- Milagres não acontecem assim. Foi aquele homem. Era um mago,
e deve ter feito surgir água envenenada. Como disse antes a você,
não confio em feiticeiros.- Curiosamente, um dos idosos começou a
mexer em uma sacola que levava consigo sobre um dos camelos,
notando-a mais cheia do que de costume, estimulado ainda mais pela
conversa de ambos. E lá encontrou diversos mantimentos, entre
charque, pão e frutas, mostrando com seu sorriso sem dentes o que
aparecera.
- Está vendo? Foi um milagre! Eu também estou me sentindo
melhor do que antes.
- Coincidência demais o “milagre” ter acontecido justo depois da
passagem daquele José!
- Não me importo se ele era bruxo, mago, feiticeiro, monge do
deserto; se de alguma forma foi enviado por Deus para nos ajudar,
não vou recusar esse presente por superstição.
- Se acha que é superstição, faça como quiser e aceite o presente do
Demônio!
- Veremos quem está com a razão...- E nos dias que se seguiram,
Teresa, a única a não consumir o que aparecera após o encontro com
José, passou a não acompanhar mais Diego na liderança nem o
restante do grupo nas brincadeiras e conversas que ressurgiram, na
vida renovada, a única ali que continuava sem forças e cada vez mais
calada, as provisões se renovando misteriosamente sempre que
terminavam. Um dia não resistiu mais e comeu um pouco de pão,
carne e uma maçã.- Acho que você se enganou.- Estavam próximos
de Galba, vindo a provocação do revigorado companheiro; a mulher
não respondeu nada, se limitando a olhá-lo com raiva. Momentos
depois, vomitou todo o alimento e pareceu confirmar suas suspeitas:
- Eu sabia! Sabia que estava envenenado!
- Os alimentos? Como explica que ninguém mais teve essa reação?
- Porque sou a única aqui que resiste às tentações do Demônio.
- Acha mesmo? Será que não é porque o veneno está em você?- E ao
questionamento de Diego ela parou, e como que um clarão invadiu
sua mente, revelando pequenos demônios em recantos escuros; os
diabretes fugiram, oprimidos pela luz, e das tocas antes sombrias
saíram belos e majestosos animais de pêlos acastanhados, que não
pertenciam a nenhuma espécie conhecida. Enfim pôde compreender:
- Não é possível...
- Você gosta mesmo de dizer isso!
- Eu sei agora quem era aquele homem...- E voltou-se com uma
expressão mista de espanto e maravilhamento, que assustou o outro
num primeiro momento e em seguida também o iluminou.

Verre andava convulsionada devido a diferentes problemas e


carestias. Naquele dia, em certas calhes, corriam os membros de uma
rebelião encetada por um padre em sua disputa contra o senhor
feudal, as hortaliças e frutas da feira derrubadas no chão e garotos de
rua e mendigos acelerando para pegar o que podiam, levando os
pobres negociantes ao desespero mais descontrolado, alguns não
suportando mais a situação e disparando aos berros para socar os
manifestantes ou chutar os estômagos dos que tentavam recolher o
que lhes pertencia, outros em estado de choque, e ainda havia os que
se limitavam a gritar e a chamar por alguma autoridade ou maldiziam
a Igreja e os nobres; a revolta acabou suprimida a ferro e fogo pela
guarda urbana, o clérigo levado para a prisão, da qual seria liberado
no dia seguinte, ciente de seus privilégios.
Na praça central, tinham encerrado a increpação e hereges seriam
enforcados para o júbilo do povo reunido em volta; atribuíam a
supostas bruxas a epidemia de peste, enquanto ratos perambulavam
por toda a parte. Um prodígio, que se deveu certamente a um ato de
feitiçaria, se deu quando, ao colocarem a primeira na forca, a corda
arrebentou antes que fosse fatal para a condenada. Todos
emudeceram, espanto que só aumentou nas tentativas seguintes, em
todas a corda arrebentando. Não havia outra escolha, a não ser
preparar uma fogueira, mesmo que a mulher tivesse dito in extremis
que estava arrependida; afinal, ao que tudo indicava, continuava a
usar magia.
- Eu juro, juro por tudo o que é mais sagrado, por Deus e pelos anjos
do Céu, que estou sinceramente arrependida e que não uso artifícios
demoníacos para escapar da provação merecida que me conduzirá ao
Purgatório! Já confessei, não me joguem às chamas!
- Cale-se, bruxa imunda!- Bradou o sacerdote que conduzira desde o
início aquele processo.- Está mais do que evidente que continua a
usar o que o Demônio lhe ofereceu, que não abdicou de seu pacto!
Portanto, o fogo, que se prolongará no Inferno, é a única pena à qual
merece ser submetida. Fomos por demais brandos com você,
acreditando que estivesse arrependida.
- Perdão, reverendo! Perdão, por favor...- Enquanto os carrascos
preparavam a fogueira, a mulher se atirou de joelhos aos pés do
prelado, ao passo que as outras, e havia jovens e velhas, gordas e
esbeltas, altas e baixas, de todos os tipos, iam ser enforcadas e a
multidão atirava tomates e cascas de frutas sobre estas, à exceção de
um homem, que permanecia ao fundo, acompanhando tudo com
atenção e respeito: o mesmo José que a caravana encontrara no
deserto, com um olhar sério mas calmo. As vaias aumentaram
quando outras cordas se partiram em sucessivas tentativas de
enforcamento.
- Malditas bruxas! Querem nos dar a entender que são imortais! Pois
todas receberão as labaredas!- As acusadas, a maioria das quais
pouquíssimas vezes havia feito uso de magia, no máximo uma
simpatia para atrair um pretendente nos casos mais “extremos”,
denunciadas por inveja ou simples malignidade, puseram-se a chorar
e a gritar, a puxar seus cabelos, se ajoelharam, imploraram
misericórdia; eram simplórias, não havia nelas altivez ou revolta.
Queriam simplesmente morrer sem tanto sofrimento, já que a vida
não lhes era mais permitida.- Calem-se! Têm a desfaçatez de pedir
clemência, mas não tiveram pudor e respeito a Deus quando
lamberam o membro do Diabo e juraram fidelidade a ele! Por que
não pensaram antes?! Agora é tarde...- Um sorriso odioso ficou
evidente embaixo do bigodinho do clérigo, que, firme em seus
propósitos, queria sentir o cheiro de carne de bruxas queimada; era
sincero em sua fé absurda, um fanático que não media esforços para
punir os que escapavam da conduta exemplar. Acreditava inclusive
que, se alguém era denunciado, isso só acontecia porque algum anjo
havia soprado aos ouvidos do denunciador, ainda que este fosse um
inimigo do acusado ou tivesse inveja deste último, que a delação
tinha que ser feita de qualquer modo; Deus onipotente podia se
aproveitar até dos maus sentimentos para fazer justiça e punir o
Demônio.- Sejam ao menos hoje sinceras e não reneguem o seu
senhor, mesmo o que predomina entre vocês sendo sempre a mentira
e a traição.
José permaneceu onde estava, sua atenção no fogo; após a primeira
bruxa ou “bruxa” ser colocada, berrando de desespero, o pior ocorreu
para os sádicos que se adunavam: as chamas não queimavam, e a
suposta feiticeira, que continuou viva, até parou de gritar quando
percebeu que não sofria nada.
- Mas o que está acontecendo aqui?? A magia delas não pode ser tão
poderosa!- O cruel pároco meneou a cabeça para os lados e
furiosamente se aproximou das labaredas; outras piras foram acesas,
e como na primeira nenhum resultado.- Algo deve ser feito! Vamos
orar, orar em conjunto, para afastar os poderes das trevas e permitir
que estas bruxas queimem! Vamos invocar o poder do Cristo e com
fé conseguiremos fazer com que Deus triunfe sobre a feitiçaria!
- Acha mesmo que Cristo se empenharia em assassinar um grupo de
mulheres, que se tivessem realmente poder para não serem afetadas
pelo fogo se deixariam capturar por vocês e não se defenderiam?-
José apareceu de repente próximo do sacerdote, com uma voz firme e
macia, tendo se desvencilhado por meios misteriosos dos corpos e
braços da multidão, que silenciara.
- Quem é você e o que pensa que está fazendo? Não vê que estamos
no meio de um auto da fé?
- Apenas estou expondo a sua estupidez. Não vê que diante de seus
olhos ocorreu um milagre?
- Milagre??? Do que está falando?! Se elas não nos atacam é porque
para isso não têm poder, apenas conseguem se proteger com o pouco
que lhes resta de sangue diabólico nas veias, e que será removido
quando rezarmos! Ou então querem nos humilhar e zombar do poder
de Deus, só que não terão êxito. Como ousa interferir?? Não sei
quem é, mas quer ser jogado ao fogo junto com elas? Se as protege,
não pode ser um bom cristão.
- Contenha sua fúria. Cristo não disse que aquele que não tivesse
pecados que atirasse a primeira pedra? Pois atirem em mim se
quiserem e ouçam:- Voltou-se para o povo, dando as costas ao padre,
cujos olhos se turvaram ainda mais.- Está evidente que Deus não
quer que estas pobres mulheres morram, tanto que de todas as
maneiras está salvando suas vidas, porque são inocentes. Nem
cordas, nem chamas, nem correntes e muito menos lâminas as
matarão, pois não é da vontade do Criador que injustiças sejam
cometidas.
- Por acaso estudou teologia para falar sobre justiça divina? Não
passa de um maltrapilho.
- Jesus não era filho de um carpinteiro?
- Herege! Como pode se comparar ao Cristo?!
- Estou apenas lembrando que o Reino dos Céus pertence aos
simples. Como são estas mulheres...
- Quer elevar bruxas ao Reino de Deus?
- Se fossem bruxas de verdade, você não estaria mais vivo
vociferando blasfêmias.
- Quem é o blasfemo aqui?! Guardas, ordeno que prendam esse
homem!- Contudo, quando se aproximaram daquele indivíduo, suas
armaduras principiaram a trincar; a turba recuou.- O que temem?!
Vão em frente, prendam esse bruxo! Não se resignem, pensem em
Deus e ele não terá poder sobre vocês!- As lanças se partiram e as
espadas começaram a derreter quando “José” fechou os olhos, elevou
seus braços e no lugar do sol pareceu se manifestar uma imensa rosa
de pétalas de fogo, cujo calor no entanto só afetava as armas, e
depois as roupas dos considerados “respeitáveis”: o despeitoso padre,
para sua vergonha, ficou nu após chamas misteriosas e inofensivas à
sua pele consumirem sua batina; ninguém porém riu, alguns
sorriram, e muitos foram ao chão de joelhos e se prostraram;
ecoaram na mente do vigário as palavras do Evangelho: “Vós,
porém, não sereis chamados mestres, porque um só é vosso Mestre, e
vós todos sois irmãos.”, de forma que por fim, após anos de
presunção, orgulho e julgando saber e ser mais do que os outros,
fazendo as vezes de professor e juiz, se deu conta de seus erros,
inclusive tendo lhe vindo à mente os pecados que cometera em nome
de Cristo, nada era pior, e isso só poderia lhe estar sendo revelado
pelo próprio Jesus, o único com poder suficiente para manifestar
tamanha força por fora e nas almas de seu rebanho; a rosa no céu
girou e alguns guardas fugiram, acreditando que estavam diante de
um mago de poderes imensuráveis, ao passo que outros se
entregaram ao mesmo sentimento de arrependimento e devoção do
sacerdote; o sorriso do Mestre dizia tudo.- Perdão...Perdão, meu
único verdadeiro Senhor e filho do homem!- Tal era o milagre da
água se tornar vinho.
- Enfim se deu conta de sua própria fraqueza. Que não cometa mais
arbitrariedades e crimes em meu nome. Não que me importe com
isso, mas não deve cometê-los em nome de ninguém. Se quer se
tornar um criminoso e seguir a senda do mal, pelo menos assuma as
suas responsabilidades.- Segurou o rosto do padre entre suas mãos e
no instante seguinte desapareceu, junto com a rosa e toda a visão.
Aos que tinham compartilhado uma experiência tão intensa restaram
diferentes impressões: para uma parte uma certeza que modificara
seus espíritos, pois mesmo que Ele não estivesse mais lá o tinham
visto, sentido e partilhado de sua infinita misericórdia, casos como o
do cura; outra parte permaneceu em um êxtase de amor permitido
pelo Alto; alguns, de pouca fé, ficaram em dúvida, bem poderia ter
sido uma ilusão induzida pelo Demônio, mas não tiveram ânimo de
se pronunciarem naquela ocasião; outros poucos, que tinham ido
testemunhar a execução sem sadismo e más intenções, entre estes
amigos e familiares das “bruxas”, pensaram que se dera a visita de
um santo ou mago poderoso, que estivera ali em nome de Jesus
porque seria o único que aqueles fanáticos iram ouvir: agradeceram.
Quem afinal era realmente “José”?

Lá estava Antenor, um dos doze cruzados, os guerreiros santos


encarregados de livrar o mundo dos demônios, sentado em uma
cadeira, meditando como seu amigo Raja lhe ensinara em outras
ocasiões, buscando colocar toda a sua atenção no alto de sua cabeça,
onde de súbito, para seu espanto, viu se abrir uma flor, semelhante a
uma rosa, todavia com muito mais pétalas do que qualquer flor
terrestre; devia ser a rosa celestial, a rosa dos beatos, e ainda de olhos
fechados seu sorriso se abriu para receber a dádiva, da qual se
julgava indigno, porém logo lhe veio uma voz: “No que Deus o
escuta sobre o que deseja, você é merecedor.”, tendo a impressão de,
ao contemplar o centro daquela flor, estar aos pés da Virgem, cujo
rosto não era visível, pura luz sob um véu azul; no entanto, quando
parecia que ia se entregar à mãe de Deus, se viu transferido para uma
paisagem infernal, pela qual só se ouviam e viam gritos, agulhas e
sangue, onde toda a luz se apagou e sua visão se expandiu: estava
diante de um lago de fogo; entendeu que ali mergulhavam os
pecadores dos quais até Deus se esquecia, afundando e
permanecendo assim para sempre; deviam ser realmente criminosos
terríveis, porém num instante, quando direcionou melhor sua
atenção, viu uma mão queimada, enegrecida, se erguer do magma.
Naquela perdição e no abrasamento afogado, teve pena da criatura,
chegando a se questionar: “Será possível que sou mais compassivo
do que Deus? Posso não ter sua sabedoria, não tenho ideia de que
abominações foram cometidas por essas almas, mas não consigo
conceber que um ser humano precise sofrer dessa maneira pela
eternidade. Nada é tão grave como para merecer isso, que gostaria de
compreender o porquê de me estar sendo mostrado.”, quando o rosto
do pecador ficou visível, o maior susto: a face, mesmo queimada e
disforme, era a do papa, a do Santo Padre, “o Céu não dá penhores”,
foi-lhe soprado em seus ouvidos, e retornou à percepção do corpo e
da realidade material, seus dedos ardendo com se estivessem cheios
de queimaduras, ainda que intactos. Sua carne tremia e tentou se
levantar, porém encontrou as pernas entorpecidas, só aos poucos
recobrando os movimentos. “O que será que aconteceu? Será que
pequei? Fui pretensioso ao pensar que poderia falar com a Virgem?
Mas e quanto ao Santo padre?? Ele estava bem, o vi hoje pela
manhã! Acho que já sei o que foi.”, passada a tremedeira e ficando
de pé, deduziu que fora um ataque dos demônios, aproveitando-se de
seu estado de sensibilidade espiritual, ao qual não estava tão bem
acostumado como seu companheiro indiano, para assediá-lo e
assustá-lo. “Só pode ter sido isso. Tenho que tomar cuidado. Talvez
não tenha dom para isso, nem concentração suficiente. Espero que
me perdoe, Raja; nunca serei capaz de fazer o que você faz, os
nossos inimigos se aproveitam de cada uma de nossas fraquezas para
tentarem a possessão, e eu estou cheio de portas para que eles
entrem.”, o lusitano se viu apontando suas flechas para as ameaças
espirituais à sua volta, que voaram janela afora, depois se decidindo
a visitar Inocêncio XV...Isso enquanto, em volta de um coração
abrasado de amor, carnes e ossos novos e uma alma antiga seguiam
juntos, para a revolta de invisíveis demônios pútridos que escapavam
para os céus, por uma via ao longo da qual dezenas de piras haviam
sido acesas. Sem lamentar, “José” contemplava o fogo e o absorvia
em si; pouco a pouco, sob sua vontade, as fogueiras foram se
apagando e os homens e mulheres nestas ficaram livres, e intocados,
os que já tinham sofrido queimaduras restabelecidos, suas peles
perfeitas para seus próprios espantos, e os reduzidos a cinzas tendo
seus corpos reconstituídos. Quando o olharam, muitos o
reconheceram.
- Não é apenas um homem santo. Nenhum homem santo teria a
capacidade de realizar tais feitos!- Exclamou um homem que estivera
sob correntes e, além de se ver livre, testemunhara a transformação
da matéria dos que estavam por perto.- O fim dos tempos chegou e
Ele está de volta!- De fato eram muitos os sinais: demônios à solta;
lutas contantes e ao aberto entre o Bem e o Mal; estupros, fome,
doenças, invasões; a mão da Besta e do Anticristo por toda a parte!
- Veio também decerto para punir seus ministros que foram
corrompidos pelo medo, pelo poder e pela luxúria!- Havia entre os
que tinham escapado da fogueira por milagre cristãos legítimos, ali
por denúncias injustas e interesses obtusos; entre os pagãos e
descrentes, alguns permaneceram estáticos, sem conseguirem
explicar a situação a si mesmos, enquanto outros reconheciam a
presença de um grande iniciado e se inclinavam ou iam ao chão para
saudá-lo e reverenciá-lo.
- Se é você mesmo, por que demorou tanto tempo?- Acusou com
rispidez um incrédulo que fora condenado por seus tratados de
medicina supostamente retirarem a dignidade divina do homem e
assumi-lo como uma mera máquina orgânica.- Visitou apenas
mártires e anacoretas, e se esqueceu daqueles pelos quais
supostamente teria vindo? Por que abandonou os humildes nas mãos
de seus “apóstolos”, vítimas da miséria e das chagas da peste? Se é
desse jeito, sou mais Cristo do que você, já que muitas vezes socorri
feridos, costurei corpos, amputei membros, e tudo para salvar vidas.
Por acaso julgava este povo miserável e sofredor indigno da sua
presença? Fique ciente, se nos Céus não foi capaz de enxergar isso,
que eles o amam. Ingenuamente, é verdade, mas o amam, ainda que
imersos no pecado, ou no que você define como pecado.- Ao que
“José”, na verdade Jesus, se limitou a manter em sua direção um
olhar ao mesmo tempo terno e penetrante, sem pronunciar uma única
palavra; o cético, que ficou aborrecido, ameaçou esbravejar, porém
corou diante da multidão que se formava em volta dos dois e
começou a gaguejar, a voz não saía mais com força e renunciou aos
seus argumentos e se retirou tempestivamente, grato por ter sua vida
salva apesar de sua revolta, embora não tivesse verbalizado o
“obrigado”, e pensando em sair o quanto antes da região; se o fim
dos tempos estava próximo, começaria por ali.
- Ad majorem gloriam Dei.- Pronunciou um monge fadado ao fogo
por ter tido relações com um noviço (por vontade mútua),
entrementes um indivíduo repleto de ardor místico e com ânsia por
boas ações, célebre nos vilarejos das vizinhanças pela sopa que
preparava para os pobres (antes de ficar muito mais famoso pelo ato
de sodomia), agora não por acaso, após ser devolvido à vida terrena,
com seus hábitos monacais reconstituídos pelo milagre; as fogueiras
não crepitavam mais e as ruas antes ardentes ofereceram passagem
para um novo exército, ao qual passaram a se juntar cavaleiros e
guardas da cidade quando viram que aquele homem apagava
qualquer chama que não fosse a da Fé e as armas apontadas em sua
direção derretiam, dobravam ou se desviavam; tratava-se de um
outro calor, diferente daquele ao qual estavam acostumados.
- Se é mesmo o senhor, reviva o meu filho.- Uma mulher chegou
com um caixãozinho em seus braços, onde estava depositada uma
criança de seis ou sete anos, um garoto bonito e ainda corado; o
Salvador direcionou seu olhar e, em alguns segundos, o menino
levantou aos mãozinhas, desvencilhando-as das flores, e esfregou
seus olhos. A mãe escancarou a boca e os olhos, e ao seu sorriso se
somou um pranto de amor ardente; uma figueira secou; o ar estava
perfumado de loureiros e limoeiros; a criança foi erguida pela
mulher, que a abraçou com toda a força de seu sentimento, todo o
vigor da gestação recordada, e olhou em torno com um ar de espanto.
Só pareceu se acalmar quando seu rosto ficou diante do de Jesus.-
Não sei como agradecer, meu senhor! Não tenho palavras!- O
caixãozinho fora ao chão e o vento espalhava as flores.
- E quem precisa de palavras para demonstrar sua gratidão a Deus?
Antes tomemos nosso caminho e respeitemos nosso coração.- Falou
com uma voz que para ela abriu os céus. O menino não entendia
muito do que estava acontecendo, porém não conseguia deixar de
encarar o Cristo, que sorria em sua direção, e que se ajoelhou junto
com aquela mãe para em seguida reerguê-la com suas mãos.- Não
precisa dar provas de humildade, já conheço seu coração. Da
próxima vez, pode se inclinar diante de qualquer um de nossos
irmãos, que são de igual forma filhos de Deus.
- Obrigada, meu senhor!- Concomitantemente, esbirros curiosos
saíam de seus gabinetes.
- Do Céu à Terra, da Terra aos Céus! A boa notícia é que o senhor
voltou!- Bradou um dos “hereges” atrás; na Igreja, havia os que
subiam para tocar os sinos sem a autorização do padre.
Contudo, Jesus olhou fixamente para uma face destacada na
multidão: um rosto fino, mas seco, de olhos azuis profundos em suas
cavas e brilhantes, no entanto emanando um clarão sinistro,
pertencente a um esbelto cavaleiro, de cabelos loiros perfeitamente
cuidados, reluzentes, lisos, até a base do pescoço; usava uma
armadura dourada e prateada, polida, sem saliências ou espigões de
nenhum tipo, com o sol no centro do peito e a lua nas costas, além de
uma longa capa. Sua expressão, de aparente tranquilidade e
gentileza, ocultava um ar de violência elegante e cínica. Montado
sobre um belo animal cândido de crina do mais puro alvor, foi se
aproximando devagar. O Mestre já sabia de quem se tratava. Quando
este cavaleiro desceu e ficaram frente a frente, próximos, o tempo
estancou: não havia mais nenhum movimento em volta além dos que
aqueles dois realizavam e os homens e os bichos da cidade se
tornaram estátuas de carne e osso; na sequência, o cenário urbano
desapareceu e estavam sobre o planeta, entre as estrelas, sobre um
vidro transparente do qual tudo era visível.
- Passaram-se dois mil anos desde o nosso último encontro em meus
domínios, não me lembro ao certo se pouco mais ou pouco menos,
isso não importa, e você retornou. Desta vez veio para tentar tomá-
los para si?- Indagou o elegante guerreiro de cabelos dourados.
- Nada disto aqui é seu. Os homens são livres, você sabe muito bem
disso. E, ao contrário do que pensa, nunca deixei de observá-los e
considerar seus pensamentos e sofrimentos.
- Então por que não desceu antes?
- Não lhe devo nenhuma explicação.
- Você cometeu um erro fundamental. Transmitiu tudo o que era seu
ao papa. Lembra-se da pedra? Tudo agora depende dele, que não irá
querer ser incomodado antes do tempo. Por isso, é melhor que se vá.
Não continua a salientar que quer que os homens sejam livres? Pois
está vendo o resultado da “liberdade”.
- Que liberdade pode existir se não se dão conta da sua presença, se
continuam a escutá-lo sem que percebam?
- Quer dizer que veio para torná-los surdos? Onde irá colocar então
a sua preciosa liberdade?
- Nunca perderão a audição que possuem. Falta-lhes a visão para
que enxerguem quem é aquele que mente e dá conselhos que
conduzem ao Abismo.
- Quanta generosidade, veio para arrancá-los da cegueira! Mas tem
certeza que é o que eles querem? Irão se dar conta do quanto sempre
foram fracos e impotentes, vulneráveis e influenciados. Todo o ego
humano irá ruir. E, quando isso acontecer, a sanidade desabará junto.
- Livrar-se do ego não é perder a sanidade, é justamente o oposto, ao
contrário do que você sempre sustentou.
- Você sempre dificulta as coisas e é por isso que os seus apóstolos
se corromperam. Por que não vai em frente e me destrói? Por que
não me humilha na frente dos seus fiéis? Seria muito mais fácil. Ah,
me esqueci que seria uma demonstração de ego! O problema é que
não considerou que seus discípulos possuíam e possuem egos;
portanto, se corrompem na liberdade.
- Sabe que não fui o único a ascender aos Céus.
- Mas é o mais famoso entre os que realizaram esse feito, e por tal
razão seu nome continuará a ser usado para sustentar o
insustentável.- O cenário se alterou novamente, transformando-se em
um deserto árido e rochoso.- Teria sido tudo mais fácil se no nosso
encontro há dois mil anos tivesse transformado as pedras deste
deserto em pães; a humanidade teria seguido os seus passos com
passividade, se transformado em um rebanho dócil, e eu teria que me
contentar com meu desterro entre os bárbaros e os torpes. Não teria
sido assim?
- Chama assim os seus companheiros?
- É o que são aqueles demônios imundos. Meus irmãos são os que
caíram comigo.
- Diferente de você, nunca desejei a ilusão do poder e do comando;
sabe que, se tivesse transformado em pães as pedras, eles teriam
ficado com medo que algum dia a minha mão se retirasse e o pão
chegasse ao fim, do mesmo modo que os seus servos, mesmo os que
se consideram príncipes, temem que algum dia você retorne para
Deus, pois de alguma forma é o único que lhes dá a esperança de que
podem vencer uma guerra que não existe.
- Não existe? Não é assim que pensam os homens, que sentem fome,
e nem a sabedoria e nem a fé podem aplacá-la. Não são como eu, que
tenho à disposição bilhões de serviçais que sempre podem me trazer
o melhor vinho, e desprezo o sangue existindo produtos tão
melhores. Os séculos irão transcorrer e os sábios dirão, de forma
direta, que os famintos substituíram os pecadores, e que tudo é
permitido, afinal como se podem exigir virtudes de quem não é
alimentado?
- A questão não se revolve com tanta facilidade. Não é porque um
homem está na miséria que deve se dedicar ao crime e à infâmia;
milhares de almas que caíram na pobreza não se entregaram ao mal,
pelo contrário: o amor delas é sincero e simples, e a este você mesmo
aludiu de forma distorcida.
- De qualquer maneira, se tivesse realizado o milagre dos pães para
todos, muitas inquietações humanas teriam chegado ao fim.
- Inquietações das quais você se alimenta. E, ainda que me acuse,
sabe que não vou mudar de postura e por isso permanece tranquilo.
- Os que mais me impressionam são os herdeiros da sua palavra.
Construíram, começando pela primeira pedra, um templo que parece
indestrutível; contudo, suas colunas são na verdade de argila. E me
deleito ao pensar que se consideram meus inimigos, que querem de
alguma forma se igualar a mim no domínio deste mundo. São meus
servos indiretos, diferentes dos meus servos diretos, os demônios,
mas cada um em sua categoria posso dizer que são complementares,
não importa que lutem entre si; ambos mantêm a humanidade cativa
em sua liberdade, a liberdade que você provocou. Não temos um
paradoxo: o homem livre é forçado a encarar sua própria solidão e
dessa forma se aduna e constrói paredes, pois se deixa conduzir pelo
medo, assim prisioneiro dentro do que livremente criou; pobre
coitado! Se não fosse assim, como poderia continuar vivo entre as
feras da noite? E dentro desses limites ergue os altares, onde coloca
os ídolos diante dos quais se inclina...Ou precisaria procurar por eles
à luz da lua, que é fraca e às vezes se oculta; não é de cortar o
coração? Eles sentem dor! Por que você não se apoderou da
liberdade humana? Se quiser, pode estabelecer hoje o Reino de Deus.
Só que não, prefere deixá-los livres para que andem no escuro com
velas que você deixou no chão, mas que eles tiveram que acender
também sozinhos.
- Você pode seduzir os ingênuos. Entretanto, seu discurso não me
impressiona.
- Você disse que tinha vindo não para suplantar a Lei e sim para
aplicá-la, mas o que fez na prática? Quase que eliminou toda a Lei,
deixando um único mandamento: amar. O amor é algo muito vago, e
deixa os corações livres para decidirem entre o Bem e o Mal, não
produzindo uma imagem precisa que sirva de guia. Nem mesmo uma
estátua sua deixou, para que tivessem uma imagem do Salvador.
Nada! Como pode se sentir contrariado se “deformam” os seus
ensinamentos? O que ocorre é uma consequência natural do que você
deixou para trás, ou melhor, do que não deixou.
- Sem amadurecimento, que só é possível na liberdade, o homem
não pode compreender Deus.
- Porém o livre-arbítrio, ainda que seja sedutor, é muito doloroso,
não oferece princípios sólidos capazes de tranquilizar a consciência
para sempre. Deixa espaço para noções vagas, silogismos estranhos,
enigmas; a sua atitude acabou sendo a de alguém que não amava seu
povo.
- E por quê?
- Porque não cuidou deles. Não demonstrou quem é, e assim muitos
ainda duvidam! Sem poder, não há amor; o fraco nunca é amado. Se
você tivesse se atirado do alto do Templo, os anjos o teriam
sustentado e seu corpo seria erguido sem ferimentos, ficando
evidente sua Divindade à multidão; mas isso não aconteceu. Do
mesmo modo que não desceu da cruz quando zombavam da sua dor e
troçavam: “Se descer daí, vamos acreditar em você.”; nada. Estive
presente naquela ocasião, e observei e comemorei cada detalhe.
Soube que a partir daquele evento o meu domínio se solidificaria.
Tudo pela sua pretensão de não escravizar o homem pelo milagre,
expondo o ponto de vista de uma fé que fosse livre e não baseada na
magia; Deus no nascimento e na morte, não no maravilhoso e no
sobrenatural. Devo reconhecer que foi de uma altivez sublime; os
homens, no entanto, não são anjos ou deuses, são seres fracos e
revoltados, e o sacrifício para alguns foi suicídio, pura loucura, e
para outros era mais um profeta ou pregador qualquer que morria
numa cruz. Nada que os romanos não vissem todos os dias, em
especial na Judeia.
- O que você quer que eu diga?
- Reconheça que perdeu, que não tem mais direitos sobre este
mundo. Porque o homem precisa de prodígios e na sua ausência
forjou seus próprios, inclinando-se diante de magos, feiticeiras e
adivinhos, e mesmo sendo estes ímpios e heréticos. Claro que há
padres que também se dedicam às artes sórdidas, e digo que são
muito bons nisso. Eles também não se contentaram com você.
- Quando disse que Eu era o caminho, a verdade e a vida, não me
referi à minha personalidade mundana e sim à Luz eterna que mora
em mim; os que puderam e poderão compreender, estão e estarão
comigo. Quanto aos outros, não há pressa; virão quando for o tempo.
Cada pessoa se move como pode.
- Outro louvor à liberdade! Entrementes, se os ama tanto, devia
impor um fardo mais leve, e sabe como? Considerando-os menos,
tendo uma estima e uma confiança menores. Quem lhe garante que
algum dia se encontrarão ao seu lado? O mais provável é que a cada
dia se distanciem mais, prova viva disso sua Igreja, que está com o
Inferno há séculos; seus seguidores aceitaram o presente que você
recusou: todos os reinos da Terra; pegaram o gládio de Roma e não o
soltaram mais. Os papas são os novos Neros e Domicianos, ou foram
além destes, construindo um império sob bases muito mais firmes do
que os sucessores de César; conquanto as colunas continuem sendo
de argila. O que me encanta é que não esquecem jamais o passado.
Suas celebrações, que herdaram dos pagãos, serão sempre mais
importantes do que o “amor”. Fazem questão de não serem livres,
enquadrando-se em datas e jogos infantis, brincando em coros e
recusando carnes na sexta-feira santa! Isso que mordem a carne de
seus semelhantes a cada oportunidade que surge, e não os condene
por isso, afinal sentem fome.
- Sei que não está me tentando, pois não sou mais vulnerável. Qual o
propósito desta conversa?
- Mostrar a você que será infrutífera uma segunda tentativa para
instaurar a liberdade e o amor.
- Isso veremos...- O cenário tornou a se modificar: à distância,
observou junto com Lúcifer, seu terrível interlocutor, que de nuvens
escuras sobre picos de rocha negra saíam relâmpagos, assim como
daquelas mais acima, que encobriam o céu, de igual modo brumas de
trevas; ainda possuíam contudo alguma luz em seus interiores,
demonstrada por seus raios. O Adversário assumira a forma de uma
irônica criança e quem veio do horizonte, provocando revolta entre
os lampejos, era que afastava toda a claridade, não possuindo
nenhuma e fazendo questão que esta permanecesse de fora e em
convulsão: enquanto Lúcifer continuava sendo luz e fé à sua
maneira, aquele outro anjo caído, Lucifuge, expulsava e escapava de
qualquer sol ou relampo; suas imensas asas possuíam penas
desbotadas e revoltas, seus cabelos emaranhados e lisos caíam sobre
sua testa e por seu pescoço, seus olhos imersos na escuridão não
mostravam pupilas; em seu torso e em suas pernas, havia partes de
uma armadura rebuscada, e em suas mãos duas espadas de lâminas
curvas, brancas e surpreendentemente luminosas, contrastando com
todo o resto negro, turvo e soturno.
- As espadas de Lucifuge são as mais prodigiosas entre as que os
anjos caídos possuem. Ele as conservou como eram antes da queda e
acredito que só sejam inferiores à de Micael. Por outro lado,
justamente por terem sido preservadas e sua alma não, são lâminas
de dois gumes. Se ele as tocar uma única vez, se for ferido por elas,
os sofrimentos serão atrozes, muito maiores do que em qualquer
inimigo.
- Não permitirei que interfiram naquele homem.
- É o que veremos. Não pretende deixá-lo livre?- Os maior dos anjos
caídos sorriu, ao passo que o outro permanecia sério como estava
havia milênios, desde a queda sem sorrisos, direcionando sua
intenção para Pizarro, o General dos jesuítas, que naquele momento,
após traçar ao seu redor um círculo mágico e desenhar com a mente
os sinais cabalísticos necessários, segurava sua espada, prestes a dar
início ao seu ritual e receber novas instruções de planos superiores:
“Com o fortalecimento interno, estou certo que poderei resistir ao
turbilhão das forças hostis. Antes de tudo, tenho que permanecer
firme comigo mesmo, lidar com meus preconceitos, com meus
ressentimentos, com minha indignação pelo fato da santa Igreja estar
nas mãos de magos negros e ministros corruptos. O ódio e a pressa
não irão me levar a lugar algum; percebo ao meu redor os monstros
que se aninham, tanto os que saíram de dentro como os que vivem
fora, criados ou incriados pelos homens, aguardando o instante
propício para agir. Entre os que ainda se encontram confinados ao
plano astral, não têm poder direto sobre o ser humano, porém tentam
a todo custo impedir nosso crescimento. É interessante estudar essas
criaturas, que se perdem em um desejo insano de poder e na inveja
dos seres superiores, mas ao invés de se empenharem em seu próprio
crescimento tentam de todos os modos interferir em nossa mente
para nos persuadir a desistir de nosso caminho, introduzem remorsos
e culpas, arrependimentos desnecessários, sentimentos de
inferioridade, de distância, ódio e inimizade, preocupações e
vergonha. Não importa o que façam, o objetivo deles é manter a
humanidade em situação de desvantagem de consciência para poder
manipulá-la para seus fins mesquinhos, o que gera em seus egos a
sensação ilusória de domínio, fazendo com que se sintam superiores
nessas condições. São jogos mentais, que se conseguem nos atrair
nos fazem perder um tempo precioso em nossa existência e em nosso
progresso. A única solução real para isso é não dar ouvidos, ignorá-
los, porque nesta condição percebem que não têm poder algum e se
retiram humilhados. As influências externas procuram desviar nossas
mentes e nossa atenção, criando situações mentais dignas de nota
para nós, como problemas que temos que resolver, pessoas a ajudar,
buscas por mistérios que pretendemos desvendar, porém para cada
coisa há uma hora apropriada e quando se busca uma comunhão com
Deus todo o resto deve ser posto de lado. Minha fortaleza interna não
pode ser construída apenas pelo que já conheço; o mundo é grande, o
universo ainda maior; ergue-se um castelo de ouro com muralhas que
protegem sem isolar, portas bem soldadas mas janelas abertas à luz,
que vai materializando o ouro que forma todo o resto. Não há como
ajudar enquanto não se estiver pronto, receptivo, muito embora,
como se sabe, Deus, princípio de fundidade nos três mundos, não se
possa admitir como algo passivo, e isso está inclusive nas ideias da
sabedoria chinesa, que estudei superficialmente, mas ainda assim
compreendi desse modo o porquê do ternário superior dos trigramas
de Fu-Hsi se compõe de três yang, três linhas masculinas, e é por
isso também que a trindade cristã não admite uma personificação da
mãe, que está contida implicitamente no Filho, sendo absurdo
personificar o Espírito Santo na figura de uma mulher, visto que este
é um agente fecundador e não um ventre que recebe a força de Deus;
ele é a força de Deus. O Cristo se eleva aos Céus e assume a Virgem,
sua mãe na Terra, e é por isso que se fala em ascensão no caso de
nosso Salvador e de assunção no de Maria, que quando desce ao
Inferno o faz para receber em si o pecadores, transformando-os de
dentro para fora. No que diz respeito ao feminino portanto na
doutrina da Igreja, quanto a Deus considerado como Pai tem na
natureza sua filha, como Filho a Igreja é sua esposa e a Virgem sua
mãe, e como Espírito Santo fecunda o ventre da humanidade. Não
desvinculemos Deus e o homem, pois a criatura e o Criador devem
ser um; a mais alta razão está em chamar o Mestre de filho do
homem e de filho de Deus, pois as duas coisas se complementam.
Como o homem e o mundo poderiam ser impuros se a natureza é
emanação do Senhor da Vida? Os gnósticos nunca souberam o que
diziam, nunca raciocinaram mais profundamente, rendendo-se às
aparências de um mundo injusto. Prefiro a teoria de Juliano, o sol do
mundo divino sendo a luz infinita, incriada e espiritual, que se
verbaliza no mundo filosófico, tornando-se o foco das almas e da
verdade, por fim se corporificando e se tornando luz visível no sol
primordial do terceiro mundo, o sol central entre os sóis do nosso
universo, do qual todas as estrelas seriam faíscas. Já em seu tempo
Hegésipo mencionava os heréticos que pregavam a maldade de um
falso Criador e odiavam a vida: Simão, Cleóbio, Dosíteo, Gorteio e
os masboteus. Homens e seitas oriundos do judaísmo, como hoje são
aquelas bruxas, e não poderia ser diferente em vista do que
representa a massa desse povo tão contraditório, que assassinou
Jesus, que por sua vez era um deles, mas o homem Jesus; o Cristo
não pertence a povo algum. São Justino, em seu Diálogo, apontava
esses judeus-cristãos, distinguindo entre os que participavam da fé
comum, mas permaneciam fiéis às observâncias judaicas, e os que
descendiam da comunidade de Tiago; havia também os que
reconheciam Jesus como Cristo, mas o Cristo seria o Homem entre
os homens, caso dos ebionitas, que afirmavam que Jesus nascera de
Maria e José, ou seja, a diferença em relação aos outros seres
humanos residiria em uma condição interior; seria portanto um
profeta no estilo dos presentes no Antigo Testamento e não o Filho
de Deus, nisso algo semelhante ao que surgiria posteriormente no
islamismo do ímpio Maomé, que porém se considerava acima de
todos os seus antecessores mesmo sendo um assassino. Nas Viagens
de Pedro dos ebionitas, o que há mais é proselitismo essênio, sendo
apropriado considerá-los portanto essênios que seguiam de alguma
forma os ensinamentos de Jesus de Nazaré, afeiçoados à tradição
judaica conquanto hostis ao Templo, crendo na metempsicose. Não
havia nada de nocivo nesta seita, do meu ponto vista, pois apesar de
se prenderem ao judaísmo não pregavam que o mundo fosse criado
por algum outro ser que não Deus; e grupos com princípios
semelhantes surgiriam depois sem manchar a luz da Palavra, como o
Elcasaísmo, com sua ênfase no perdão e uma revelação que faz
lembrar o Canto da pérola nos Atos de Tomé, sentindo-se influências
partas e com a característica que seus fiéis oravam voltados para
Jerusalém como os muçulmanos fariam depois para a Meca, num
ensinamento que não deixava de lembrar o de Hermas. Piores os
nicolaítas, que se entregavam à libertinagem. O pecado não está na
carne, mas em sua atitude para com ela, e esses gnósticos hipócritas,
ao mesmo tempo que condenavam a matéria e a declaravam filha de
Satanás, entregavam-se aos prazeres mais devassos; Balaão e seus
seguidores mergulharam no dualismo persa e na imunda Babilônia.
Lembro-me de Cerinto, que dizia que o mundo foi criado por um
demiurgo que ignorava o verdadeiro Deus. E quem seria este,
Lúcifer, que se esqueceu da Luz? A doutrina dos caídos deve ter seu
fundo de verdade, talvez dizendo respeito a nós mesmos, porém não
posso compartilhar do ódio ao mundo. O que dizer dos seguidores de
Simão, para os quais aquele mago imoral foi apenas uma má
inspiração para suas distorções? Diz-se que adoravam Simão como o
primeiro Deus e o associavam uma certa Helena, que seria seu
primeiro pensamento, em oposição aos anjos que criaram o mundo e
inspiraram o Antigo Testamento. O primeiro Deus teria vindo para
libertar o homem dos anjos que governavam mal a criação. Mas que
mensageiros seriam estes, se na intimidade da Doutrina os anjos não
passam de emissários do Senhor? Helena parece que foi na verdade
uma prostituta que era amante de Simão ou, como figura simbólica,
uma representação do processo de helenização vigente na época ou
uma reminiscência do culto de Helena na Samaria. Simão pode
nunca ter existido, visto que Pedro, que o teria confrontado, na
verdade se chamava Simão; talvez seja na realidade uma
representação simbólica do enfrentamento do primeiro papa consigo
mesmo, seu conflito com seu destino de primeira pedra da Igreja,
considerando-se que por diversas vezes afirmou e negou Cristo,
dependendo das circunstâncias, redimindo-se pelo suposto sacrifício
de ponta-cabeça; caso realmente isso tenha ocorrido, foi ali que do
meu ponto de vista Pedro venceu Simão, seu lado que negava o
Salvador, e se tornou o porteiro dos Céus. Muito se falou do altar
consagrado a Simão na ilha do Tibre, mas se tratava de algo erigido
para uma divindade sabina da fertilidade, Semo Sancus, e não para
Simão, o mago, sendo possível porém que seus tolos seguidores, que
nunca o tinham visto provavelmente, tenham reconhecido ali uma
expressão do culto de seu deus e fundador. Satornil opunha os sete
anjos criadores, com o Deus dos judeus por chefe, ao Deus
escondido, que não concederia toda sua luz aos homens, escolhendo
os que mesmo tendo sido criados por Javé mereceriam a salvação; se
essa fosse a realidade, o que não compreendo é qual seria a função de
Deus, se dele nada surgiu. Ainda assim, essa doutrina era um pouco
melhor do que a dos discípulos de Simão, pois não idolatrava um
homem supostamente existente e não se entregava à devassidão, no
entanto indo para o outro extremo, odiando o corpo. Os
barbelognósticos falavam sobre sete arcontes que teriam tentado
formar algo à semelhança de Deus: um homem, que era incapaz de
se mover; a Sabedoria, Sophia, transmitiu-lhe uma força que o
tornou superior aos arcontes, suscitando a inveja dos mesmos, em
particular de Ialdabaoth, o Javé judeu, que expulsou o homem de seu
Paraíso por pura inveja. Por culpa da Sabedoria, teriam surgido todas
as desgraças. Uma Sabedoria que me parece ter mais em comum com
Pandora, ainda que se não fosse por ela, segundo estes gnósticos, nós
não estaríamos aqui. Os setenses diziam que os éons do Pleroma, ou
seja do Todo primordial, semelhante ao Ain Sof da Cabala, são,
depois do Pai, o Filho e o Espirito Santo, e em seguida o Cristo e a
Igreja. Os éons do Pleroma produzem Sophia, que por sua vez
engendra, pela união com as águas inferiores, sete filhos: Ialdabaoth,
Iao, Sabbaoth, Adonai, Elohim, Astaphaim e Horaios; estes formam
o homem e Cristo desce através dos sete céus, para o espanto destas
potências, tomando formas específicas de anjos para passar por cada
céu, até o dia em que chega à Terra. Mitologia em excesso e
especulações que em nada nos aproximam de Deus e de sua glória,
deixando em segundo plano o cerne do ensinamento cristão, que é o
amor! A ausência do amor é uma característica justamente do
judaísmo, que se pauta mais pela Lei, pela força, que salienta um
ódio à vida, que não pode ser como é, uma revolta que não semeia
nada; dos judeus, admito apenas a Cabala, que nunca teve a aceitação
dos ortodoxos justamente por celebrar Deus, o homem e a existência,
e quase que a considero como algo à parte tanto do judaísmo como
do Cristianismo; na verdade, é mais uma ciência. Perdão por meus
julgamentos, meu Senhor; mas nunca comerei carne imolada aos
ídolos como faziam os nicolaítas...”, um foco azul se manifestou na
escuridão e foi se adensando e clareando até dar forma a um espelho,
enquanto o mago parava de refletir e começava a ficar em silêncio
mental; numa primeira imagem, ao invés de discernir a si mesmo,
tomou um susto ao ver o rosto do que parecia ser um demônio, aos
poucos apaziguado com a tranquilidade e a lucidez do semblante
daquela criatura, que embora animalesca, de traços entre o canídeo, o
caprino e o reptiliano, não tinha nenhum rastro de maldade, da
mesma maneira que outras que apareceram atrás, e a proximidade foi
sendo substituída por uma visão mais geral, com as entidades se
ajoelhando para cantar louvores a Deus, despidas de qualquer cólera
ou malícia, seus corpos gradativamente adquirindo uma dignidade
sublime. Pouco tempo se passou e sucederam-se novas visões e
experiências: no vidro, a roda do zodíaco girou, os peixes gêmeos em
seu interior aquoso, um ígneo, que porém não se apagava, e o outro
líquido, que parecia em absoluta harmonia com a água, porém sem
perder a própria individualidade, sutilmente distinguível com seu
corpo transparente, acompanhando-a, conquanto em direções
opostas, ao passo que o sentido do fluxo era ora horário, ora anti-
horário; do lado de fora, a espada do querubim nas mãos do mago se
assemelhou por alguns instantes a um caduceu, percorrida por duas
serpentes de fogo; estes ofidianos se entrelaçaram por três vezes e
abaixo do Círculo estava Cérbero, latindo com suas três cabeças, à
espera que o magista cometesse um deslize e despencasse no Inferno,
onde as chamas teciam elogios ao Criador pelas três línguas do
relâmpago. Em alma, Pizarro saiu para sobrevoar um cemitério,
enquanto nos quatro cantos de sua sala as lâmpadas colocadas antes
do início do ritual se acendiam sem que houvesse óleo; finda a
escuridão absoluta, os mares se moveram para cantar as esferas
celestiais; de volta ao corpo, viu das tumbas se erguerem não
humanos e sim os piores monstros, permanecendo com o espírito
imóvel a remover seu temor, ciente de que aquelas mortes e criaturas
eram todas suas; estendeu as mãos e no lugar do veneno do medo um
fogo líquido percorreu suas veias; percebeu que as estrelas
conversavam entre si, que os sóis suspiravam com as flores, e um
pássaro cantarolava que o momento estava próximo; contudo, optou
por fortalecer seu silêncio. No centro da roda do zodíaco agora havia
terra e nesta estava depositada uma chave; gênios do Ar sacudiram
suas asas em um tumulto misterioso, voando de esfera a esfera, e
uma luz ofuscante pairou sobre o oceano. Chegara a hora de estender
a mão para o espelho, que iria atravessar para apanhar a chave.
Entrementes, duas espadas reluziram; nenhuma relação com a sua,
que num instante de distração fez seus dedos arderem: uma
tempestade se manifestou fora, além das janelas, as lâmpadas se
apagaram, o vidro rachou e Lucifuge apareceu diante do círculo
mágico.
- Seja quem for, sinto suas más intenções. Afaste-se em nome de
Deus.- Pizarro cingiu a arma mágica com firmeza, suportando a dor e
o susto.
O anjo caído se preparou para atacar, parando apenas quando à
frente do jesuíta se postou seu Salvador...Nos dois sentidos. Tinha o
dobro da altura do filho do homem, porém jamais ousaria ir adiante.
- Mas quem...- O mago ficou impressionado com a luz daquelas
costas; não pertenciam a um anjo, e ainda assim não deviam em nada
à divindade do querubim com o qual estivera.
- Por hoje renuncio. Mas não poderá protegê-lo para sempre.- De
Lúcifer somente a voz se fez presente ali; o outro anjo caído
desapareceu na sequência e, antes de partir, Jesus olhou para Pizarro
com um sorriso ameno. Com o coração grato e apaziguado, este logo
se abriu para perceber a verdade depois de sentir um amor que não
podia ser terreno; caiu de joelhos:
- Não sou digno. Não acredito nisso! Meu Senhor...
- Eu viria por um homem indigno? Não é preciso ser perfeito para ter
dignidade; e tenha fé, acredite, se não quiser ter um legado como o
de Pedro.- O Cristo deixou para trás o mago boquiaberto e voltou à
cena na cidade e ao momento presente; viu o elegante cavaleiro se
retirando lentamente, ao fundo, sem se voltar para trás. Crianças,
mulheres e homens se juntavam ao seu redor; como iria terminar
dessa vez?

- Não pode ser ele. Por que viria? Por que não veio antes então?-
Questionou Honorius.
- Talvez tenha se cansado de apenas observar. Quiçá tenhamos
passado dos limites, o que não significa que não possamos enfrentá-
lo.- Mesmo naquela situação, Jonathan não removia seu sorriso.
- Não sei como pode ficar calmo numa situação como essa. Ele não
é previsível.
- Consultei Meridiana a respeito, e ela não soube me dar uma
resposta objetiva, pois o teme.- Interveio o papa.
- Não há razão para pânico. Ele não vai nos fazer mal, é incapaz de
causar sofrimento a outrem. Limitar-se-á a um protesto estéril.-
Jonathan persistiu em seu ponto de vista.
- Pode não fazer nada diretamente, mas o que aconteceu ao Império
Romano? O mesmo pode suceder a nós.- Disse Tharien.
- No que está pensando, Torquemada? Por que não se manifesta?
- Porque aqui isso talvez seja desnecessário. É onde ele está que sou
necessário hoje.- Respondeu o Inquisidor.- Irei cuidar disso.
- Sozinho? Não está sendo pretensioso?
- Ele não deixa de ser um herege.- A afirmação fez Jonathan soltar
uma gargalhada.- E não ria; os tempos são outros. Os hereges estão
relacionados à Igreja, não a ele; agora que resolve voltar, depois de
delegar os poderes a Pedro, e por consequência a nós? Não é assim
que o mundo funciona abaixo dos sete céus.
- Tem toda a razão, meu amigo!
- E bruxos hereges, que descumprem as regras da Igreja, têm todos o
mesmo tratamento: não haverá exceções; Raja e Fiódor virão
comigo.
- Está seguro de si. Isso significa segurança para todos nós.
- Se eu fracassar, ninguém mais poderá fazer nada. Só que isso não
vai acontecer.
- Num novo calvário, de qualquer forma se precisarem passar
séculos para que ele volte a triunfar, nós já não estaremos mais aqui
para sofrer as consequências.
- E, se estivermos, estaremos prontos para enfrentá-lo mais uma vez.
- Os alquimistas que atentem aos seus tesouros!- Naquela reunião,
nenhum cruzado, apenas padres vermelhos; por falar em cruzados:
- Só tome cuidado para não perder os dois. Aqueles quatro que
partiram ainda não voltaram da ilha das bruxas.- Honorius se impôs
diante de Torquemada.
- Sou da opinião que devemos começar a providenciar substitutos.-
Sugeriu Celius.
- Calma, muita calma. Há mil anos atrás, ninguém foi precipitado.
Tomemos o exemplo de nossos antecessores.- Opinou Jonathan, sob
os olhares tensos de seus companheiros.
- Para preservar o futuro é preciso ter os olhos bem fixos neste, e
não no passado.
- Será mesmo? O homem não aprende que o passado se repete.
- Melhor deixarmos as discussões de lado. Não levam a nada.-
Torquemada replicou com azedume; Jonathan, cínico, manteve seu
sorriso, em parte por saber que o Inquisidor mantinha um laboratório
onde realizava suas experiências alquímicas, visando encontrar o
tesouro dos tesouros. Em anos de experiências, já trabalhara com a
espagiria vegetal, tendo retirado o sal de folhas, conseguido torná-lo
branco e cristalino, e produzido uma Pedra Vegetal que intensificava
os efeitos medicinais de diversos remédios à milésima potência;
talvez por isso nunca se via aquele sacerdote adoentado, pelo
contrário, sempre ativo, dinâmico, saudável, impetuoso e terrível.
Também se dedicara à espagiria animal, destilando sangue e urina, e
à mineral, com seu forno de carvão, laborando com afinco nos
metais. Mais recentemente, tinha pego gosto pela preparação do
espírito do vinagre e experiências decorrentes do trato com este,
fundindo pequenas quantidades de chumbo neste espírito, atento, ao
lidar com certos compostos metálicos, às suas propriedades tóxicas.
Caso conseguisse algum dia a Pedra, iria dividi-la com seus
confrades?
Ali mesmo no Vaticano, mas em outro aposento, Fernando Pizarro,
General dos jesuítas, refletia a respeito de suas últimas visões e
experiências: “Só pode ser pela espada que fui atacado! Não há outra
razão para que eu, um humilde servo de Deus, me torne alvo de
demônios tão perigosos como o que senti que iria me matar. Porém o
mais incrível e surpreendente é que Cristo me protegeu! Só podia ser
ele. Depois daquele dia, não voltei a praticar nada, não tenho
chamado meu anjo da guarda e preferi me dedicar por algum tempo a
questões burocráticas da Companhia. No entanto, devo em breve
recuperar a coragem e retornar ao Círculo, clamando pela proteção e
bênção dos planos superiores.”, ensimesmado no gabinete interior de
sua alma, que estava dentro de seu corpo, por sua vez contido em seu
gabinete externo, não percebeu a entrada de seu companheiro Simão
Rodrigues, que o assustou ao abordá-lo, ainda que o comandante da
Companhia de Jesus não tenha demonstrado, simplesmente
encarando seu interlocutor com olhos indagadores:
- Perdão por interromper suas meditações, reverendo. Apenas me
agradaria conversar por alguns momentos com vossa excelência.
- Eu que me desculpo, Simão. Estava distraído...Mas estou
disponível. A que se deve a sua presença? Há um bom tempo que não
conversamos.
- De fato. Passei alguns meses em Lisboa e Oporto, cidades de
minha terra natal, onde era preciso evangelizar certas comunidades,
que estavam caindo no relaxamento dos costumes.
- Lembro-me que me tinha enviado o pedido para ir e o autorizei,
mas não nos vimos na ocasião, pois andávamos ambos por demais
atarefados. O relaxamento é cada vez mais comum, graças ao bom
Deus que solucionável. Os homens não necessitam mais da
destruição de suas cidades para que se recordem do Criador.
- Menos mal que assim seja, embora o melhor seria que nunca se
esquecessem. De todo modo, não vim aqui para falar da Lusitânia.
Soube de um homem que anda pelo mundo realizando milagres? Não
o vi ainda, porém sei que cura os enfermos, ressuscita os mortos,
apaga as fogueiras e converte pecadores inveterados. Há quem
acredite que seja o Cristo que voltou para o fim dos tempos.
- Não acredito em nada disso. O povo é muito crédulo.- Depois de
alguns segundos quieto, desta vez sem conseguir ocultar sua
surpresa, foi o que Pizarro logrou dizer, invocando o fantasma de sua
experiência mágica em sua mente; percorrido por um calafrio,
cogitou se a proteção do Filho de Deus naqueles instantes
assustadores poderia ter alguma relação com os boatos do populacho.
Quiçá tivessem um fundo verdadeiro. Vestiria por fora, contudo, um
manto de incredulidade.- Deve ser algum bruxo, algum impenitente
que está fazendo uso de sua magia à luz do sol, tentando convencer
ignorantes. Dizem que Simão, o mago, teve uma estátua erigida em
Roma por seus prodígios; não há nada pior do que milagreiros e
taumaturgos que fazem alarde dos seus poderes. Essa é a diferença
dos verdadeiros santos, que não se deixam notar.
- Mas é inegável que esse homem está fazendo o Bem. Alguns
disseram que se faz chamar por José.
- O nome não importa. Em uma era de demônios como a que
vivemos, você deveria estar ciente que o Mal se disfarça e que os
magos podem curar e realizar prodígios às vistas do vulgo. Nossos
olhos, no entanto, têm que ser espelhos limpos, que refletem apenas
a realidade.
- Isso é difícil, reverendo. Nossas crenças e interpretações sempre
interferem.
- Quer dizer que está acreditando que possa ser o Cristo?
- Com tanta perversidade espalhada na Terra, é possível que
estejamos sim no final dos tempos. A Besta cravou seu número até
mesmo na Santa Igreja, e o Cristo não deseja que seu corpo fique
imundo. Já se passaram dois mil anos desde que ele veio...Por que
mais espera? É chegada a hora de decidir entre os santos, os bons
fiéis e o Purgatório, quanto antes melhor para a vida.
- Caso se trate de um novo Simão, estamos em maus lençóis porque
não temos um Pedro para responder ao seu desafio. Algo lhe diz que
não se trata disso?
- O Santo Padre talvez poderia lhe fazer frente, embora vossa
excelência pense que ele seja mais alguém como Silvestre
II...Diferentemente, creio que nosso papa seja um homem honesto,
embora cercado por partidários do Anticristo, que em breve deverá se
manifestar de forma explícita, ainda que já esteja agindo no seio da
Igreja.
- Por meio dos cruzados?
- Ainda sente tanta adversidade por esses bravos guerreiros? Estou
certo que Antenor e outros poderiam provar ou desmascarar esse
pretenso Cristo.
- O problema não está neles, é capaz de você ter me ajudado a
perceber que não são tudo o de ruim que eu pensava, mas naqueles
que os comandam. Os padres vermelhos poderiam ser esses sectários
do Demônio...Ludibriando os cruzados.
- Vossa excelência se refere principalmente ao mestre inquisidor,
Torquemada. Não é?
- Chegamos a um ponto em comum. Pelo visto você leu os meus
pensamentos. Pois existem certos limites para a defesa da Fé.- O
papa negro, ficando repentinamente mais soturno, juntou os dedos
das mãos ao apoiar seus cotovelos sobre sua mesa.
- Tem razão. Afinal São Pedro não necessitou de torturas e carrascos
para derrotar Simão.- O luso estremeceu não só pela coincidência de
nomes, salientando para si mesmo as diferenças entre um bom
sacerdote e um mago, um apóstolo e um exibicionista das potências
infernais, a fim de afastar qualquer tentação, como com a aparência
do “papa negro”, que de súbito lhe pareceu sombrio e por demais
misterioso; isso ainda mais quando sorriu em sua direção com um
certo sarcasmo ao perceber que o jesuíta se perdera em reflexões
sobre a natureza de seu próprio nome e enrubescera. E se o General
da Companhia, que considerava não só como um superior como um
amigo, lhe escondesse amplas verdades? Era possível que este só o
considerasse um subordinado, não cultivando a humildade
evangélica? Uma estranha raiva cativou seu espírito; tratou de
suprimi-la, cogitando que o Demônio estivesse tecendo suas tramas
para jogá-los um contra o outro. Precisava tomar cuidado com suas
impressões. E se, ao Simão, o mago, aparecer na conversa, isso não
se tratasse de algo casual e o General fosse um velado simpatizante
da magia, crendo mais nesta do que na volta de Cristo? Talvez
desconfiasse dos cruzados e dos padres vermelhos por temê-los. Mas
não podia ser um bruxo! Era um homem justo e ponderado. Confuso,
seu embaralhamento foi notado pela sensibilidade de Pizarro, que
refletiu que deveria ser mais cauteloso ao confiar naquele padre de
bom coração, porém de mente vulnerável. “Seja o que for esse
milagreiro, se o mesmo Cristo que veio me salvar na outra noite ou
outro indivíduo, a dúvida será sanada em breve. O grande Inquisidor,
outro general da Igreja, não vai ficar de braços cruzados.”
Alguns dias se passaram e Torquemada chegou em Sevilha, onde o
suposto Jesus andava fazendo seus últimos milagres, com Fiódor e
Raja. O russo quase não falara durante a viagem, estava com o
pescoço cada vez mais endurecido, enquanto o indiano conversara
bastante com o padre, a carruagem parando diante da catedral, onde
iriam se hospedar e em frente à qual, por coincidência ou não, aquele
homem de trajes simples e sandálias velhas acabava de curar uma
vítima da peste: Fiódor não arregalou os olhos, mas por dentro
engoliu a seco e ficou impressionado ao ver bulbos que desinchavam
e retrocediam até desaparecerem por completo; Raja perguntou ao
Inquisidor Geral, enquanto mantinha a calma, e notava neste último
uma considerável ansiedade e tentava analisar o que o indivíduo
misterioso transmitia, nesse início de observação não conseguindo
decifrar nada, uma incógnita que não lhe pareceu mago, anacoreta,
yogue ou demônio:
- Pelo que já falamos, chegamos à conclusão que não se trata do
Cristo. Mas o que ele seria?
- O mais pretensioso de todos os magos que já encontramos.
Desçam e detenham-no.
- Não pode ser Lúcifer, que veio realizar prodígios na Terra para
impressionar os ignorantes?
- Espero que não seja, ou vocês nada poderão fazer. Se for ele, de
todo modo será um sinal do fim dos tempos. Lembrem-se que está na
Palavra que, antes do retorno de Cristo, o Anticristo que viria e
realizaria inúmeras façanhas.
- Então está nos mandando para morrer?- Questionou Fiódor.
- Acho que deveriam estar prontos para isso desde que aceitaram se
tornar cruzados.
- Mas por que Lúcifer teria se manifestado?
- Os pecados dos homens passaram dos limites, meu filho.- A
despeito da aparência carinhosa do tratamento, Torquemada, que já
não era nada afável, estava ainda mais ríspido do que de costume.-
Mas isso ainda não é certeza; portanto não temam. Talvez seja um
simples mago. É o mais provável, pois acredito que ainda irão se
passar mais mil anos, completando os três mil desde o nascimento de
nosso Salvador, para que os três aspectos de Deus tenham se
manifestado e ocorra, com a descida do Espírito Santo, o embate
final.
- E se a teoria de vossa excelência estiver errada?
- Então talvez seja mesmo Lúcifer. Mas quem está ao lado de Deus
não teme a morte. Se for o Inimigo, o meu destino não será diferente
do de vocês. E como mártires seremos bem recebidos no Paraíso.- O
Inquisidor estava temeroso. Sabia que, se fosse realmente o Cristo,
nenhum mal lhe ocorreria diretamente; ainda assim, não conseguia
mais conter o suor frio, um pouco por dúvida, um pouco por
vergonha. Como encarar o maior inimigo? Enxugou o rosto com um
lenço, o semblante menos pétreo e mais angustiado, enquanto os dois
cruzados desciam para prender aquele homem.
- Já sei porque vieram. Estou entregue.- Diante dos cruzados, ele
estendeu as mãos, ao que Fiódor permaneceu com os olhos imóveis,
desconfiado, afinal podia ser uma armadilha, e Raja o estudava dos
pés à cabeça, se aproximando mais do que o russo; quando as pupilas
de um encontraram as do outro, levou um choque elétrico, quase
caindo para trás e só mantendo a consciência graças ao seu potencial
psíquico. Fiódor então se moveu, acreditando que seu companheiro
fora agredido, e produziu um corte no peito daquele homem com sua
espada invisível. A roupa foi rasgada e o sangue jorrou, seguindo-se
um golpe no rosto com a outra mão por parte do cruzado de cabelos
loiros, o misterioso pregador indo ao chão, aparentemente
inconsciente, e Raja se recuperando devagar. Torquemada, olhando
da janela do coche, ainda se achava tenso.
- Você está bem?- Fiódor colocou suas mãos nos ombros do
companheiro.
- Não sei o que aconteceu, mas ele não me agrediu.- Por fim
conseguiu replicar.
- Como assim? Então por que aquela sua reação?
- Foi estranho. Mas senti como se o que houvesse de impuro em
minha alma tivesse reagido à pureza interna dele. Definitivamente,
não é um homem comum. O que não significa que seja maligno, pelo
contrário. Talvez estejamos diante de um santo.- E Fiódor se voltou
com o corpo inteiro para o indivíduo caído, espantando-se com seu
semblante sereno mesmo inconsciente, as pálpebras calmamente
pousadas sobre um sorriso pacífico. O indiano notou que a mente do
colega ficara turva, pesada, e resolveu tranquilizá-lo:- Não se
preocupe, você não agiu mal. Se ele for o que eu acho que é, não vai
julgá-lo por isso. Você agiu por um irmão.
- Com tão poucos homens de bem no mundo, espero que eu não
tenha contribuído a eliminar mais um. Vamos socorrê-lo.- Tomou-o
em seus braços; em volta, já se formara uma multidão: a maioria
estava perplexa, sem conseguir dizer nada ou avançar; alguns, ao
reconhecerem quem se achava nos braços do cruzado, se puseram a
chorar; o ex-doente atingido pela peste, curado pouco antes e não
tendo se afastado muito do lugar, retornara ao ouvir o tumulto:
- Mas o que está acontecendo?
- Pegaram ele...Pegaram o homem santo.
- Quem??
- Os caçadores de demônios. Os cruzados.
- Aquele não é um simples homem santo! É nosso Salvador que
retornou! Deus, vocês sabem o que fazem??!- Gritou e foi ouvido por
Fiódor, que não se voltou e entrou na carruagem.
- Fiquem calmos. Analisaremos de perto o que está acontecendo e
este homem ficará em observação. Não temam: se for um santo, será
em breve posto em liberdade.- Raja resolveu dar satisfações ao povo,
e principalmente à ex-vítima da peste, antes de entrar.- Sentimos pelo
modo como tivemos que proceder, mas era necessário. Não se
esqueçam das estratégias usadas pelos demônios, que muitas vezes
buscam nos cativar.
- Não acredito em vocês! Vão matá-lo, crucificá-lo novamente! A
Igreja está corrompida e ele me mostrou isso, curando-me enquanto
os padres me diziam para me resignar, afinal minha doença era
decorrência de meus pecados!
- Raja, não temos tempo. Não adianta argumentar com essa gente.
Entre logo.- Torquemada interrompeu o cruzado indiano, que se
preparava para dar uma resposta.
- Você se acalme. Não vê que eles fazem isso pelo nosso bem, por
precaução? Quantas vezes os cruzados salvaram as nossas vidas?
Não acuse a santa Igreja, cuja primeira pedra foi Cristo quem
colocou. Se for realmente quem esperamos, mal não lhe será feito.-
Uma mulher de cabelos brancos e rosto desgastado interveio.
- Como posso me acalmar?? Ele me curou e agora querem matá-lo!
- Ninguém vai matá-lo. Querem nos proteger.- Um velho também se
manifestou.
- São assassinos! Vão levá-lo para o Tribunal! Nunca fui atacado por
um demônio, enquanto a peste quase me matou.
- Deixe eles debaterem entre si. Vamos.- E dessa vez Raja, que
permanecera observando, sem mais falar e nem se mover, obedeceu a
ordem do Inquisidor, entrou e a sege partiu; algum tempo depois,
alguns homens bateriam à porta do sujeito que fora curado e o
levariam para que fosse julgado pelo tribunal da Inquisição como
defensor e colaborador de um bruxo...

Torquemada dispensou a presença dos dois cruzados após lhes dizer


que seu trabalho com “José” fora cumprido e que só permaneceriam
em Sevilha para garantir sua segurança enquanto o caso não fosse
solucionado em definitivo. O taumaturgo foi colocado em uma cela
suja e visitado pelo Inquisidor Geral em uma noite chuvosa,
absolutamente mais ninguém por perto, depois da ferida que fora
produzida por Fiódor ter se curado sozinha, restando só uma grande
cicatriz a princípio, porém mesmo esta foi aos poucos
desaparecendo. Estava sem camisa e descalço, seu traje limitado a
uma calça velha. Ao entrar, o padre sentiu um certo enjoo, porém
firmou os pés e cravou seus olhos no prisioneiro:
- A situação está sob o seu controle, não é? Pelo que eu saiba, há
mais de dois mil anos foi assim, tanto que tinha plena consciência da
traição de Judas. A diferença é que não sou nenhum Judas, que fez
tudo por você, sacrificando seu próprio nome e sua honra, ou não?-
Indagou o padre vermelho; Jesus o fitou com atenção e ternura, os
olhos do Salvador irritantemente calmos para o Inquisidor.- E não me
venha com discursos de amor; ao deixar este mundo, você deixou as
pessoas livres para que escolhessem entre você, seu opositor e um
caminho à parte, que é o rumo no qual me incluo. Tenho aversão a
demônios, assim como minha visão do mundo e de Deus não condiz
com a sua; afirmo o ser humano e a natureza, independentemente de
ídolos. Não sou uma marionete de um “Criador” que nunca foi
criador, um deformador da natureza que me abandonou em um
mundo hoje hostil, originalmente uma mãe generosa que Ele por
inveja e egoísmo encheu de espinhos. Por que deveria ser grato e
servi-lo? Um pouco agradeço, por Ele me deixar livre, embora entre
paredes, e por me subestimar. Por isso não venha me retirar a única
coisa que tenho de realmente valiosa, do mesmo modo que o é para
uma pequena parte dos seres humanos. Não sou nem nunca fui uma
ovelha do seu rebanho; sou um lobo e tenho fome, a vida não me
sacia, e por isso, ao invés de servir você ou compactuar com Lúcifer,
recuso tanto um quanto o outro; não seguro na mão de nenhum dos
dois, nem de Satanás, nem do demiurgo; me ergo sozinho e sou.
Superar a mim mesmo, é essa a minha senda. Não venha me
atrapalhar, não ouse tornar tudo pequeno.
- Vou lhe contar uma história...- O Cristo, que estava no chão, com
as costas apoiadas na parede, se levantou.- Para quem superestima o
poder e despreza o amor, devo lhe dizer que os dois não estão assim
tão distantes. Dizem que houve um tempo, e não se importe se a
história que vou contar parece desmentir ou contradizer o livro do
Gênese, porque isso não é verdade quando se fala sobre planos
distintos, em que os seres humanos andavam sobre as árvores,
tinham rabos e uma pelugem espessa, não sabendo raciocinar; um
dia, um anjo do Senhor desceu até esses homens das árvores e os
modificou: fez com que perdessem o rabo, caminhassem sobre as
duas pernas e descessem das árvores; ainda eram brutos, peludos e
agressivos, mas tinham adquirido um pouco de razão e obedeciam o
anjo, por amor e gratidão por tê-los tornado mais inteligentes,
capazes de produzirem seu próprio fogo e espantarem os predadores,
e o entenderam quando ele disse que um dia voltaria. Séculos se
passaram, ou milênios, e essa humanidade primitiva se envolveu em
conflitos violentos, na barbárie mais pura, quando o anjo retornou e,
mesmo que os descendentes daqueles homens não o conhecessem
diretamente, o reconheceram pela memória da espécie, o amor pelo
mensageiro de Deus sendo imenso em seus registros interiores, e
dessa forma pararam de lutar entre si e seguiram o enviado, num
período de paz que durou décadas. Contudo, o ser de luz teve que se
retirar mais uma vez, dizendo que num tempo distante viria outro
para ajudá-los, e assim transcorreram gerações, os homens foram se
tornando mais inteligentes e menos peludos, só que não menos
cruéis, e o tempo do mal só passou com a chegada desse segundo
anjo, que não precisou instruí-los, bastando sua presença para que se
lembrassem do que o anterior lhes dissera. Um grande amor foi
sendo cultivado para com essa criatura iluminada e as guerras não
existiram enquanto ele esteve na Terra. E assim os anjos foram se
sucedendo, sempre pacificando a humanidade quando ela mais
precisava sem que necessitassem desembainhar seus gládios de fogo.
- Está querendo dizer que você é o enviado desta era, mas que não
irá fazer nada com suas forças?
- Se tiver ouvidos, ouça: de nada adianta que eu transforme pedras
em pães se vocês não sabem repetir a mesma operação; em parte
você não está tão equivocado, é preciso afirmar a si mesmo para
seguir na vida, mas por outro lado cai em erro, porque também é
necessário negar a si mesmo, compreender que não somos nada
sozinhos e aceitar que nosso irmão também se afirme, sem jamais
esmagá-lo. Deixei claro a Judas que precisava dele, como ele
precisava de mim para romper seus próprios limites, e ambos, cada
um à sua maneira, superamos nossos egos naqueles dias e nos
afirmamos diante de Deus, na Verdade e na certeza de nossos
caminhos, ele negando para si toda a possibilidade de fama e
reconhecimento positivos, eu negando o apego pelos frutos de meu
trabalho, deixando que os homens recebessem a mensagem que
trouxe comigo cada qual ao seu modo, tendo que compreender o que
um dia seria feito em meu nome.
- Está vendo de perto quais foram os resultado dos seus atos. Está
satisfeito? Se é assim, passa longe de ser o Filho de Deus. Deveria
ter o poder para modificar o coração dos homens.
- Tenho esse poder, é o amor que sinto, mas não posso me afirmar
negando todo o resto. Meu fogo ilumina, não queima, e se alguns são
cegos para a luz, ou se afastam dela, é porque preferem permanecer
no escuro. Só não deveriam jamais arrastar consigo seus irmãos.
- As trevas sempre me pareceram frias, banais e mesquinhas. Mas
faço questão de acender minha própria fogueira.
- Poderia fazer isso sem ferir seu semelhante.- Uma forte dor de
cabeça atacou o Inquisidor Geral, que ardeu bufando em si; uma luz
ofuscante penetrava em seus órgãos e vísceras e o queimava por
dentro:
- O que você fez??- Grunhiu raivosamente; algo pegajoso e ofídico
se arrastava às suas costas.
- Um dos sentidos da história que lhe contei é que o amor pode ser a
pior escravidão. Além do veneno mais letal para os que não estão
acostumados a recebê-lo.
- Não me olhe com esses olhos...Não tenha pena de mim! A pena é a
sua arma, não a minha!
- E você acha que mereceria pena? Se é assim, se considera muito
pequeno.- E o Inquisidor se sentiu realmente minúsculo diante da
criatura ofidiana que principiava a rodeá-lo, uma cobra gigantesca,
maior do que uma anaconda, com presas afiadas que o ameaçavam e
deixando no chão uma lama esverdeada à medida que se avolumava,
a pele luzidia evidenciando uma poderosa musculatura; encarou
Torquemada: olhos em espiral cujo centro estava marcado por um
fogo tóxico, repleto de perversidades. O Inquisidor tentou conter seu
medo: “Não é real, não pode ser real! Não passa de uma ilusão que
ele está provocando em mim.”, e buscou se convencer.- Se acha que
se trata de uma miragem, não a repute a mim, que só posso desiludir,
não iludir, trazer à luz, não acobertar com as trevas, mostrar a
Verdade, jamais evidenciar a mentira, que possui outro pai; em todo
caso, considera com seriedade que seja uma falsa experiência? O que
é mais real do que o que temos em nosso interior? O que é mais real
do que os pesadelos quando estamos dentro deles? Se Deus nos fez à
Sua imagem e semelhança, é porque também somos criadores, ainda
que em pequena escala.
- Você leu a minha mente. O que demonstra que pode muito bem
criar monstros que só existem na imaginação e induzi-los em mim.
Deixe de lado esse ar de intocável santidade.
- Sabe que não lhe faria mal. O mal que o atinge é causado única e
exclusivamente por sua própria pessoa. Enquanto usar máscaras, seus
olhos não enxergarão como os de um homem livre, por mais que
fiquem descobertos. A visão depende do conjunto de sua face.- A
assustadora serpente não atacava, porém parecia pronta para isso.-
Quanto à criatura, ela não precisa atacá-lo visivelmente; você já foi
mordido, sem perceber, e está envenenado. O medo que sente o
denuncia. E digo o medo que sente, não falo em “seu medo”, porque
o medo não é seu, e nem meu, não se trata de uma condição natural
do ser humano, mas de um veneno que se infiltra, de um assédio
abrasador.
- Na natureza formada pelo seu pretensioso Pai, o medo é mais
normal das condições. Os animais vivem e se movem no medo,
dependem dele para saber que devem escapar de certos predadores e
não confrontá-los.
- A condição humana, a verdadeira, não a de seus conceitos, é outra.
O homem não tem predadores externos, é predador de si mesmo;
portanto, não sentiria medo se vivesse bem consigo e com seu
semelhante. Como isso não ocorre, e o homem é lobo do homem, a
imensa serpente se aproxima para tentá-lo, para torná-lo inseguro,
pois com isso ela pode sugar a vida em nossos corações, dado que ao
mesmo tempo que injeta o veneno ela suga o sangue; não nego que
um dia ela tenha me atacado com sucesso, ou eu não teria hesitado
diante da cruz, por isso compreendo a situação dos que vivem na
Terra. No entanto, hoje ela não mais conseguiria me tocar, não sendo
um acaso que me dê as costas e olhe somente em sua direção. Digo-
lhe apenas: não hesite e ame; quem ama não pode temer, pois sabe
que esse amor é uma centelha de uma fogueira eterna, que nos
protege e consome todos os males.
- Estou farto!- Torquemada queria sair dali, só não sabia como;
ainda temia e sua mão direita ia fazer o sinal da cruz, porém a
conteve a tempo, limitando-se à linha vertical. Fechou os olhos com
força, as pálpebras queimavam, e os dedos no peito aliviaram as
dores torácicas; ficou mais alguns minutos no local, sem conseguir
conversar, quando de forma repentina o inimigo desapareceu.
- A serpente foi se arrastar por outros chãos, sempre em busca do
paraíso do qual um dia foi banida, ferindo-se no cascalho e em areias
ásperas; encontrará algum novo Adão e uma nova Eva, para lhes
injetar vergonha e medo de que o Criador irá puni-los com
severidade.
- Não pense que irei agradecê-lo.- Percebera que fora o Cristo que
expulsara o monstro; uma dormência afetava seu braço direito,
pesado e atingido por um formigamento intenso.
- Não precisa se lamentar pelo que é desnecessário. Basta-me minha
gratidão para comigo mesmo; afora que tenho alguns que são gratos
a mim até mesmo pelo que não fiz.
- Só vou facilitar o seu processo. Não será longo...Amanhã mesmo
ocorrerá a execução.- “E assim seja.”, completou a mente de
Torquemada, sua voz exterior com uma dureza que a voz interna não
possuía; por dentro, era afligido pelo pesar e por uma angústia
corrosiva. “Será que vou conseguir? E se estiver errado sobre tudo?
Não, não estou e nem posso estar!”, debatia-se, ao passo que Jesus,
mantendo o mesmo semblante, voltou a se sentar. Não disseram mais
nada um para o outro, conquanto o Salvador não tivesse tirado os
olhos do Inquisidor, e este lhe deu as costas e se foi, a princípio com
a cabeça erguida, porém entre resmungos interiores, tanto profundos
como superficiais, pouco a pouco se curvando e abaixando o
pescoço, encalacrando-se em seus receios; seu subconsciente parecia
induzi-lo a se enrolar em si mesmo, sem a menor piedade por seus
músculos e ossos, contraindo todo o tronco.
No dia seguinte, após serem espalhados pela madrugada e manhã
cartazes por toda a cidade que anunciavam o fim do mais perigoso e
infernal dos pecadores, o homem que se declarava e agia como
Cristo, na verdade um poderoso emissário de Lúcifer, detido pelos
bravos cruzados, a praça principal de Sevilha ficou lotada no final da
tarde: junto com outros heréticos, o Filho do Homem seria
queimado, a menos que abjurasse e negasse explicitamente quem era,
assim conduzido à forca. “Outra vez? Você não se cansa disso? Por
que não pára de bancar a vítima sacrificial, o cordeiro imolado, e não
acaba com toda essa gentalha? Assim como pode reviver os mortos,
sabe que é capaz de acabar com as vidas de todos que não o seguem
e de jogá-los diretamente em meu báratro; a sua ira pode desencadear
as piores pestilências e incêndios. Por que sempre abaixa a cabeça?”,
no caminho para o patíbulo, Jesus, revestido por um sambenito
repleto de cenas e símbolos infernais, ouviu em sua mente a voz do
senhor dos caídos. “Não vai adiantar nem levar a nada. Na aparência,
este mundo já é seu; os homens estão livres, inclusive para caírem
sob o meu domínio. Por que não demonstra suas qualidades de
mago?”, o falatório prosseguiu por alguns minutos, até que, como o
outro não respondia, não lhe dando a mínima importância, o rei do
Inferno, incomodado por aquele silêncio mental, do seu ponto de
vista desolador, decidiu se retirar. Dois mil anos antes, fora mais
difícil; compreendia até mesmo por que alguém que falava em seu
nome não conseguia sequer fazer um sinal da cruz com um mínimo
de sinceridade. E as frutas e tomates podres atirados pela multidão
atingiam seu corpo, mas atravessavam seu espírito, do mesmo modo
que vaias, assovios provocativos, palavrões e bonecos sacrílegos,
como um que imitava sua aparência e que fora jogado a seus pés
cheio de agulhas. Ia adiante com serenidade.
- Acha então que Torquemada se equivocou?- A uma considerável
distância da execução pública, Fiódor perguntou a Raja; ser humano
nenhum enxergaria algo dali, porém a visão dos cruzados era mais
apurada.- Quem seria realmente esse homem?
- Não sei, não posso afirmar nada; o que sei com certeza é que ele
não introduzia o mal em ninguém, pelo contrário, o retirava, o que
pode ser doloroso e desencadear confusões. O ser humano abomina a
dor; no entanto, não compreende, na maioria das vezes, que a força
se faz quando se superam e transcendem os traumas, que a liberdade
é mais preciosa quando se sai de uma prisão e que a semente morre
para que a planta viva.
- Só sei que me senti mal por tê-lo ferido. É que pensei em ajudar
você, mas não pude deixar de me sentir culpado depois, dada a
bondade que emana desse homem.
- Não coloque peso no que fez. Está feito. Ele não é do tipo que
guarda mágoas.
- Pode realmente existir alguém que não acumule ressentimentos?
- Isso deveria ser a base do que seguimos. Perdoar o próximo e a nós
mesmos, setenta e sete vezes ou mais. Mas não somos bons cristãos.
Bons cristãos quase que inexistem.
- Por que não falou ou fala com Torquemada a respeito?
- Sei que não adiantaria.- E o outro não moveu a cabeça, mas
concordara; sabia da verdade. Não havia nada a ser feito.
- Talvez, melhorando o que você disse, tenha existido um único bom
cristão.
- E quem acha que foi?
- O que foi pendurado na cruz, e que está para ser queimado agora.
- Quer dizer que também acha que é Ele.
- Você desde o começo achava, mas só agora admite porque falei.
Não é assim?
- Não iria me arriscar, afinal estamos nos conhecendo melhor apenas
nestes últimos dias.
- É muita pureza para um ser humano comum. Mas não podemos e
nem devemos fazer nada; se Ele veio, é porque sabia o que tinha que
fazer e será de acordo com Sua vontade.- Seria o final dos tempos? E
quanto ao sangue que corria em suas veias? Os dois cruzados
sentiam que se moviam, porém não se moviam: os pés de Raja
estáticos; as mãos fechadas de Fiódor suando.- Se estamos nos
tempos da revelação final, acredita que este foi o primeiro anúncio?
- Quiçá o fogo não o queime. Ou o queimará demais, incinerando as
cinzas. Nada é certo, é diferente da primeira vez: agora são seus
próprios apóstolos que o julgaram e o condenaram. O primeiro
triunfo e falso milagre de Satanás; o verdadeiro retorno, em corpo
glorioso, ainda deve estar por vir. O que me deixa apreensivo é que,
se isso que estamos falando for em algum ponto verdade, os
demônios ficarão a cada dias mais fortes, e um único descuido
significará a possessão.
- Acredita que os eleitos serão poucos?
- Todos tiveram inúmeras chances, ao longo de muitas vidas na
Terra, pelo menos esse é meu ponto de vista, para se tornarem
eleitos; por isso não poderão ser muitos. A purificação e o
arrependimento devem ser possíveis no Inferno, e essa será a única
possibilidade dos não eleitos após o Juízo Final. Como não sou
pretensioso, não me incluo em nenhuma categoria; entrementes,
talvez não se trate do final dos tempos. E por isso Ele não está
hesitando em se entregar às chamas.
- Se não é, por que teria retornado?
- Para observar seus ministros de perto. E, como a maioria dos meus
compatriotas, acredito que Jesus não foi a única descida do Cristo.
Você nunca ouviu falar de Krishna e Rama, mas na Índia são
bastante famosos.- Ignorou o olhar estranhado do russo, voltando sua
atenção mais uma vez para o patíbulo; se a Igreja queimava sua
própria alma, qual seria o futuro do mundo? E que sentido haveria na
continuidade de sua missão? “Tenho que proteger os inocentes, as
pessoas pobres, ignorantes e indefesas, pelas quais Ele veio e deixou
seu sangue. Como posso agradecer?”, tentava justificar e
compreender; Rama e Krishna haviam sido guerreiros, necessários
em seu tempo; porém na era em que viviam os cruzados havia
guerreiros em excesso. “Não faria sentido voltar o fogo contra
aqueles que o atiçaram...”, ao passo que Fiódor Pavlovich, o
“silencioso”, buscava calar a mente para não cair em
questionamentos excessivos, pois não podia admitir que o mal
triunfasse dentro da própria Igreja, Torquemada lembrando seu tio
Alexei, não em postura e atos, mas em paralelos...
O Inquisidor, por sua vez, não se furtara de observar os cruzados e
mantinha sua opinião de anos que o ideal era que esses guerreiros
tivessem vidas curtas, porque quando viviam muito tempo
começavam a desconfiar das atitudes da Igreja e a questionar em
excesso, havendo poucas exceções entre certos aposentados de
confiança utilizados para trabalhos específicos. Contudo, não era por
acaso que preferia enviar certos veteranos para as missões altamente
perigosas; mesmo os úteis e mais poderosos nunca seriam
insubstituíveis, pois as gerações como um todo acabavam se
equivalendo.
Cavalcanti, por exemplo, cumprira bem seu papel por alguns anos,
até chegar a hora de ser enviado para enfrentar as bruxas de Judá,
entre as quais provavelmente devia ter encontrado seu fim. Não que a
Igreja precisasse temer um cruzado solitário e suas contestações ou
que não cogitasse uma vitória em Magdala, porém quanto mais
ocupado e precisando ficar vigilante para salvar sua própria vida,
menos tempo e espaço em sua mente o contestador teria para
elaborar e expor seus pensamentos.
- Deveríamos preservar melhor a memória dos martírios nos
primórdios da Igreja, a fim de compreender que Cristo, que disse
para darmos a outra face, nunca aprovaria o tratamento que hoje
damos aos hereges, que nos iguala aos mais bárbaros criminosos
pagãos. Começo pelo caso de São Saturnino, que nos tempos do
imperador Valeriano estabeleceu sua igreja perto do capitólio de
Toulouse, local de um templo de Júpiter famoso na Gália inteira por
seus oráculos; diz a tradição que os demônios responsáveis pelas
profecias tendo parado de falar com a chegada do santo, a reputação
do senhor do Olimpo teria diminuído sensivelmente e as ofertas se
tornaram cada vez mais escassas, os sacerdotes pagãos propondo no
início a Saturnino que edificasse um templo fora da cidade, e que
seria suntuoso e magnífico. Deu-se no entanto a recusa e assim
resolveram se livrar do bispo pela violência; foi num dia de festa,
tendo reunido a população para um sacrifício solene, que viram
Saturnino atravessando a praça a caminho da igreja e disseram que
ali estava aquele que atraía sobre todos a cólera do pai dos deuses, e
que fosse portanto executado se não queria fazer sacrifícios. Não
tardou para os fanáticos correrem em direção ao padre, e o
arrastaram para o templo, onde seria obrigado a se ajoelhar diante da
estátua do deus e a queimar incenso em sua honra. Em vez de acatar,
o mártir cuspiu no ídolo e os sacerdotes se lançaram sobre ele e o
amarram pelos pés à cauda de um touro selvagem, que estava
destinado ao sacrifício, e a besta, excitada pelos gritos da multidão,
disparou arrastando o condenado. E não nos esqueçamos de São
Diniz, Eleutério e Rústico, que foram decapitados na mesma época;
dizem que a cabeça de Diniz foi apanhada após a execução e levada
por um trajeto de mais de uma légua até a capela que ainda hoje tem
seu nome.- Pouco antes de partir para a ilha das bruxas, Lorenzo
pedira para participar de uma reunião do Santo Ofício e Torquemada
permitira, curioso para ver até onde iria sua eloquente coragem;
Charles fora outro cruzado que quisera tomar parte, só que a
princípio se limitando a escutar, no canto da sala, com um sorriso de
escárnio durante a maior parte do tempo, ansioso para ouvir a
respeito das próximas medidas que o Tribunal tomaria contra novos
grupos heréticos e ávido para confirmar a intensificação das torturas,
conquanto a insensatez do colega, que não parara de falar desde que
iniciara seu discurso contrário aos excessos da Inquisição, o
interessasse um pouco.- Mais adiante tivemos São Maurício, na
época de Maximiano, a quem o imperador concedera o título de
César e que passara à Gália para combater as facções de Clio,
Amando e dos Bagaudes. Uma vez vencidos seus inimigos, o César
mandou vir do oriente uma legião composta por cristãos, chamada
Tebana, que queria empregar, assim como os seus outros soldados,
na perseguição dos fiéis; mas a legião se recusou a marchar e formou
o seu acampamento próximo à cidade de Agaune, ao pé de uma
montanha, o que irritou Maximiano, que devido àquela
desobediência requisitou tropas a Diocleciano com a finalidade de
submeter os rebeldes. Reconhecidamente inimigo dos cristãos, o
imperador enviou os reforços enquanto os tebanos se mantinham
firmes em sua resolução. Ocorreram os primeiros massacres, porém
aqueles eram soldados de Cristo comandados por três oficiais
exemplares, Maurício, Cândido e Exupero, que os exortavam a
morrer pela fé e recordavam constantemente o exemplo de seus
irmãos, que pelo martírio haviam ascendido para o Céu. Houve uma
tentativa de abrandar a cólera do tirano: Maurício declarou que tendo
armas em mãos preferiam morrer inocentes a viver culpados, e por
isso não resistiriam. Mas, como sempre, os déspotas não estão
abertos ao entendimento, e a terra foi inundada com o sangue de seis
mil homens degolados, que tinham deposto as armas e dado seus
pescoços aos seus perseguidores. Um comportamento que deixou os
romanos perplexos, assim como irritante para eles foi o modo de se
portar de meu santo homônimo, que no mesmo dia da morte de Sixto
II, em período de vagatura da Santa Sede, distribuiu aos cristãos
pobres os recursos da Igreja, sem excluir os vasos que serviam à
comunhão, com a finalidade de salvar certas riquezas que poderiam
cair nas mãos dos pagãos. A notícia desses atos despertou a cupidez
do prefeito de Roma, Cornélio Saecularis, que deduziu que os
cristãos deviam possuir uma tremenda quantidade de tesouros
escondidos, mandando prender São Lourenço. Cornélio disse que era
certo que nas cerimônias cristãs os ministros ofereciam libações com
vasos de ouro e recebiam o sangue de suas vítimas em taças de prata,
sob a luz de candelabros de ouro nos quais colocavam velas feitas
com cera perfumada. Uma vez levado ao tribunal, o santo declarou
que daria então a César o que era de César, como mandava o Mestre,
e confessou ser a Igreja realmente muito rica, enquanto o imperador
não possuía grandes tesouros. Cristo não teria mandado cunhar
moedas, afinal não trouxera dinheiro ao vir ao mundo, mas somente
palavras, cabendo portanto ao Estado o ouro e as palavras aos fiéis,
só precisando de alguns dias para colocar tudo em ordem e fazer o
inventário das riquezas. O prefeito claro que confiou na promessa de
alguém que tinha a fama de uma moral impecável, e concedeu três
dias a Lourenço, que correu pela cidade procurando em cada rua os
cristãos mais desfavorecidos, entre enfermos, coxos e estropiados;
reuniu-os e, quando chegou o terceiro dia, mandou-os ficar no
vestíbulo da basílica e convidou Cornélio a contemplar os tesouros
de Deus: ali estavam todo o ouro e a prata do mundo. Imagine-se a
revolta do político quando este deu de cara com uma turba de
miseráveis pedindo esmolas. O santo explicou que o tão
ardentemente desejado não passava de um metal tirado da terra, que
só fazia excitar os crimes, o ouro real a luz que dava vida àqueles
pobres. O que é evidente é que isso não foi aceito pelo prefeito, que
ordenou aos algozes que trouxessem um leito de ferro sob o qual
colocaram um brasido meio apagado, e assim o mártir seria
queimado de maneira vagarosa. Despiram-no e prenderam-no na
grelha improvisada, a resignação e a coragem manifestadas durante
aquele suplício operando a conversão de inúmeros pagãos, entre os
quais havia diversas pessoas distintas, não só em posição social
como em espírito. O poeta Prudêncio disse que o rosto de Lourenço
estava cercado de uma excepcional claridade e que um perfume
exalava das carnes consumidas, que não foi sentido pelos cruéis e
pelos ímpios, claramente percebido pelos neófitos, e mesmo em meio
a terríveis tormentos o santo não deixou de entoar louvores a Deus.
Ao ficar calcinado de um lado, disse ao prefeito, zombando de sua
crueldade como antes zombara de sua avidez, para que voltasse seu
corpo para o outro lado, o que foi feito, e antes de deixar a carne
ainda teve o estoicismo de dizer que podia comê-lo, pois já se achava
bem assado.
- Aonde está querendo chegar com esse longo discurso?- Indagara
um carrancudo cardeal, trajado em branco e vermelho (cardeais não
utilizavam mais batinas total ou quase que totalmente rubras desde a
criação da Ordem dos padres vermelhos, o branco passando a ocupar
um espaço equivalente, mantidos os trajes em que o preto
predominava), após lançar um olhar feroz contra um bispo bonachão
que rira do caso do mártir. Alguns tinham ficado explicitamente sem
jeito, desconfortáveis, quando o cruzado falara a respeito do ouro
ambicionado pelo prefeito Cornélio e lançara alguns olhares
discretos, porém intensos, profundos como só ele conseguia, sobre os
anéis e crucifixos repletos de pedras e metais preciosos portados por
quase todos os altos sacerdotes presentes.
- O que percebi é que muitos aqui não conhecem as histórias dos
martírios, ou conhecem de modo por demais superficial. É preciso
que todo padre conheça muito bem como os santos sofreram para
que perceba que não deveria induzir sofrimento gratuito em seu
semelhante, mesmo que este siga Satanás, desde que não seja por
legítima defesa.
- Está querendo comparar os santos que morreram nos tempos do
auge da carnificina romana aos ímpios e aos hereges? Tome cuidado
com suas palavras, pois não é infalível mesmo com o sangue de
Cristo correndo em suas veias. Não se deixe corromper pelo orgulho.
- Em nenhum momento me coloquei acima de algo ou de alguém.
Apenas chamei a atenção para a crueldade e para a avareza, que são
pecados dos antigos romanos comuns a muitos padres nos dias de
hoje. Há os que se deleitam com os tormentos dos hereges.
- Isso é melhor do que deixá-los impunes.- Charles se manifestara
pela primeira vez.
- Mas o que ganhamos ao agirmos contra os que se limitam a
professar uma fé diferente?
- Muitos deles evocam demônios às escuras. Não devemos
subestimar os falsos cordeiros.
- Antes de condenar, é preciso provar. E fato é que muitos são
condenados às pressas porque isso rende muito à Igreja, afinal quem
arca com as despesas referentes aos instrumentos de tortura?
Famílias inteiras são deserdadas e suas casas e terras confiscadas.-
“Está ficando cada vez mais corajoso...Ou seria imprudente? Se por
um lado o compreendo, o admiro e durante muito tempo o julguei
necessário, não só para os cruzados como para mim, agora dá a
impressão de estar passando dos limites aceitáveis.”, Torquemada
refletira.
- São habitações de hereges e pecadores inveterados, que precisam
da Igreja para serem purificadas.- Interviera outro bispo.- Não
superestime a sua compreensão.
- Deveriam ler a respeito do martírio dos doze cristãos de Utica, que
foram lançados numa cova cheia de cal viva. Como seus corpos se
mesclaram indistintamente à substância, encerraram aquela massa
compacta num caixão. Não me superestimo, mas querem acabar
como esses doze mártires? Será que ninguém aqui pode manifestar
uma opinião diferente? Todos devem ser uma massa compacta,
rígida, sem admitir nenhuma diferença, nenhuma cor?
- O que nos diferencia dos hereges é justamente nossa coesão. Ou
seguimos Cristo ou não seguimos, não existe meio termo; ou estamos
com Deus, ou estamos contra ele. Isso está inclusive nos Evangelhos.
Sinto dizer, mas a sua nova não é tão boa.
- Não estou expondo nenhuma novidade, e sim evidenciando,
através de velhas histórias, que cada vez mais ficamos iguais aos
nossos antigos opressores. De mártires, passamos a carrascos.
- Não há como comparar santos e bruxos. Está se perdendo, meu
rapaz.
- A espada tem sua utilidade, mas a Igreja se perde quando se fixa
nela. Lembremos de Santo Antônio, que se retirou para uma alta
pirâmide, distante de qualquer contato humano, com a única
finalidade de orar a Deus e pedir por tranquilidade, atacado na
primeira noite por um demônio que o fustigou de tal maneira que o
deixou sem sentidos; de manhã, um grupo de fiéis que viajava por
aquelas terras e por acaso visitava a pirâmide o encontrou moribundo
e, crendo que estava morto, o levou a uma Igreja para que fosse
enterrado. Só que durante a noite Antônio se levantou do caixão e
voltou para a pirâmide, onde se entregou a novas orações e desafiou
o demônio. As pedras, quando a meia-noite chegou, começaram a se
mover, e logo se transformaram em feras e criaturas imundas e
agressivas, que o arranharam, morderam, rasgaram e sufocaram. O
santo, mesmo com todo esse sofrimento, aguardou em oração pelo
nascer do sol, e as criaturas foram desaparecendo, até que ao
perguntar “Deus, onde estás?”, obteve a resposta: “Eu estava aqui.”
- Trata-se de uma bela história, sem dúvida. Contudo, os tormentos
de Santo Antônio foram espirituais, enquanto os bruxos e os hereges
são materiais e ameaçam diretamente nossas vidas. Você daria a
outra face a um demônio? Cristo disse explicitamente que veio trazer
a espada, não a paz. A espada também lembra a cruz, ou não?-
Inquiriu Charles.
- Os demônios são nossos inimigos, mas nem tudo se relaciona a
eles. Temos que ficar atentos para que não despenquemos no
maniqueísmo. Você sabe quem foi Mani? É apenas uma pergunta,
antes que me acusem de ser prepotente.
- Ao se explicar dessa forma, já está exibindo o seu orgulho, pois
não admite que possam pensar mal de você. Mas vejamos...Não, não
sei quem foi esse senhor, e nem me interessa caso seus ensinamentos
não condigam com os da Santa Igreja.
- É preciso conhecer o inimigo para vencê-lo. O pior orgulhoso é o
que se orgulha de sua própria ignorância, como muitos padres fazem
hoje, e é provável que Mani fosse assim, pretendendo que existissem
no universo dois princípios coeternos e opostos: Deus e a matéria, a
luz e as sombras, os autores do Novo Testamento e os da Torah;
considerava-se o paracleto enviado por Jesus Cristo, afirmando que o
Salvador tivera tão somente a aparência humana, não sofrendo na
verdade, negando o testemunho e a interpretação dos evangelistas. O
bem e o mal seriam mais como duas substâncias em luta constante,
dentro do próprio homem, que teria duas almas, cada uma presidida
por um dos dois princípios. Logo, o mal era considerado metafísico e
ontológico, o indivíduo não sendo livre e nem responsável pelo mal
que fazia, que lhe era imposto. O que não impedia os maniqueus de
condenarem as guerras e não comerem nem carne e nem ovos, de
não beberem nem leite e nem vinho, que chamavam de “fel do
demônio”.
- É compreensível que não admitissem a guerra, se julgavam que o
mal não estava sujeito ao livre-arbítrio. Acabavam sendo indiferentes
ao mal, e deixando que ele ocorresse, porque condenar o grupo ou a
ação não exime o indivíduo, que é quem age e quem forma um
grupo; essa “abertura” lhes custou a própria existência, minada
pouco a pouco de dentro da seita.- Interveio Torquemada.
- Que me lembre, os maniqueus profanavam a eucaristia com
infâmia, misturando a ela a semente humana; alegavam que Jesus era
o Sol e que demonstrava sua divindade pela luz no Céu e sepultando
a Terra nas trevas à noite; identificavam a lua como a morada dos
demônios, e o espaço como um rio sobre o qual as almas dos mortos
eram transportadas à luz eterna, não crendo na Ressurreição e
sugerindo que certas almas, as dos maus, ficavam encerradas nos
animais, nas plantas e consideravam os lavradores como homicidas
pregressos, condenados por seus crimes à miséria e ao trabalho
braçal. Uma metempsicose infantil, afinal na Ordem de Deus todos
são necessários e têm a mesma importância. Como pretende nos
comparar a esses hereges?- Indagou um purpurado de queixo
destacado e olhos fundos, o rosto comprido e repleto de rugas, que
nunca tinha a mínima intenção de parecer simpático.
- Raciocine conosco e com seu irmão e companheiro de batalhas,
meu filho.- Pronunciou-se um bispo bastante idoso e de voz mansa, a
aparência muito calma.- Não somos nem nunca seremos como os
maniqueus. O mal é a ignorância, o desconhecimento e
distanciamento de Deus, nunca uma essência autônoma; existe
apenas um Senhor, e é o que mora nos Céus. Nós nos limitamos a
combater o mal, ao passo que os seguidores de Mani faziam
justamente o contrário, cediam ao mal, condenando-o passivamente e
conformados que a alma do homem jamais poderia ser pura.
Condenavam as criaturas de Deus, enquanto nós as abençoamos.
Lembro-me de uma história maniqueia que falava sobre um católico
que se queixava das moscas e dizia que não aguentava mais aqueles
insetos, e que Deus devia destruí-los, ao que o maniqueu perguntou
quem as teria criado; o católico, titubeante e nervoso, não ousou
dizer que fora Deus. “Então, se não foi Deus, quem as criou?”,
indagou o maniqueu, e o católico respondeu que devia ter sido o
demônio. “Se o demônio criou as moscas, como por bom senso
admite, quem teria feito as abelhas, com suas picadas
insuportáveis?”, o maniqueu se aproveitou para fazer astuciosamente
essa segunda pergunta, e a essa questão o outro novamente não
ousou responder que Deus fora o artífice. E nem os gafanhotos, nem
os cães, nem as aves, nem os macacos...Nem mesmo o homem, com
tantas impurezas e imundícies em seu corpo, poderia ser obra de
Deus, e assim o esperto maniqueu convenceu seu interlocutor. Menos
mal que os verdadeiros católicos não sejam tão ingênuos e
suscetíveis! Mani não admitia a totalidade, não reconhecia o
universal, e acabava sendo presa fácil da parcialidade, em verdade
uma demonstração da pouca inteligência desse homem, que se
limitava a ver o aparente e não enfrentava nem sequer admitia sua
ignorância.
- Não sou contrário a combater o mal. Oponho-me a julgamentos
precipitados, à avareza dentro da Igreja, à ferocidade, ao uso da
tortura. Nada disso contribuiu para aliviar o mal no mundo, pelo
contrário, pois as aparições de demônios, e cada vez mais perigosos,
estão se tornando mais frequentes do que eram no passado. Será isso
resultado do acaso?- Lorenzo insistiu.
- Está sugerindo que evocamos demônios?- O mais carrancudo dos
bispos franziu a fronte.
- Diocleciano declarava em seus editos que era permitido aos
algozes inventar novas formas de tortura contra os cristãos,
empregando-se para feri-los bastões, cordas e açoites; eram presos a
postes, esquartejados por máquinas; podiam rasgar suas carnes com
unhas de ferro, arrancar pedaços das pernas, das faces e do ventre,
sendo que alguns eram pendurados por uma das mãos, outros
amarrados a colunas sem que os pés tocassem o chão, a fim de que o
peso do corpo aumentasse seus sofrimentos. Nessas condições
ocorriam os interrogatórios, e quando um juiz passava para um novo
caso, deixava seus oficiais observando os que cediam aos tormentos
e acabavam negando Cristo. Era comum iludir os inocentes, criando
expectativas de libertação, e os carrascos apertavam os nós sem
piedade, até que ficassem próximos de desmaiar, e em seguida os
desprendiam e arrastavam pelo chão para que recebessem novos
suplícios. Isso não soa familiar? Por acaso é comportamento digno
de homens que querem que os demônios fiquem distantes?
Compreendo as contradições da Igreja, mas prefiro valorizar a
Palavra e a Vida.
- A diferença fundamental é que os mártires sempre resistiram,
enquanto os hereges, as bruxas e os pagãos renegam suas crenças na
primeira oportunidade que surge.
- Então o que eram os cristãos que não resistiram e que negaram
Cristo diante dos homens de Diocleciano? Foram menos cristãos por
não terem suportado a dor atroz? Se é assim, o que seria de São
Pedro, que negou Cristo antes de ter sofrido qualquer tortura?
- Mas Pedro também se tornou um mártir quando amadureceu.
- E essas pessoas que não tiveram a oportunidade de “amadurecer”?
Se naquele momento não estavam prontas para sofrer o martírio, nem
por isso eram covardes e indignas do amor de Deus.
- Como vossa mercê mencionou diversos mártires, não posso deixar
de citar São Victor, que, depois de ter sido colocado no cavalete por
ordem do prefeito Astério, foi atormentado durante três horas, e os
algozes já tinham quebrado suas pernas, e seu corpo se mostrava
mais como uma massa informe de carnes calcinadas, quando lhe
apareceu o Cristo, que, ao tocá-lo com sua cruz, fechou e sanou suas
feridas; o prefeito, embasbacado, sem total compreensão do
fenômeno, mas vendo a cura, fez cessar o suplício e ordenou que
reconduzissem Victor à sua prisão. A notícia do milagre chegou no
dia seguinte ao imperador, que não acreditou no que lhe fora narrado
e mandou que o prisioneiro fosse trazido à sua presença e queimasse
incenso em honra dos deuses. Só que Victor não obedeceu,
derrubando o ídolo que estava no altar; furioso, o imperador deu a
ordem que lhe cortassem uma perna, com a qual profanara o recinto
sagrado. No entanto, do corte não saiu nem uma gota de sangue,
obrigando-os a colocarem o santo debaixo da mó de um moinho, mas
o que deveria esmagar seus ossos se partiu em pedaços, e o soberano
terminou por ceder. Essa história serve para ilustrar que existe uma
diferença fundamental entre os cristãos e qualquer outro condenado:
só quem está com Cristo é capaz de produzir milagres.
- Mas pergunto...Alguém aqui teria a coragem e a resignação
possuída por mártires como São Victor? Garantem que jamais
cederiam à dor? E teriam a fé necessária para permitir o milagre?
- Ninguém aqui conhece o coração de seu próximo. Já basta,
Lorenzo.- Impôs Torquemada.
- Estou apenas argumentando, Eminência. Não é minha intenção
ofender a dignidade dos presentes, porém não posso deixar de expor
meu ponto de vista a respeito do desperdício de vidas. É um assunto
que comecei a compreender um pouco pela quantidade de sangue
que já vi escorrendo das fauces dos demônios; gostaria de minimizar
a existência dessa praga em nosso mundo.
- Não pode apagar os pecados dos leigos, e se são eles que atraem as
criaturas do Inferno, ou se somos nós, que permaneça sendo feita a
vontade de Deus, a fim de que possamos aprender.- A reunião
tornaria a tratar de certos casos específicos de heresia que vinham
ocorrendo na região e Cavalcanti logo se retirara, Charles
permanecendo.
Rechaçando o passado, o Inquisidor Geral acompanharia a
execução de “José” de um trono entalhado com figuras disformes e
demoníacas oprimidas por anjos e pela cruz, que encimava o assento.
Ao seu lado, em pé, um bispo andaluz de nome Xavier, em torno do
qual circulavam inúmeras lendas por consequência de sua autoridade
moral, um prelado que ao que tudo indicava seguia os mandamentos
de Deus à risca: contava-se que um dia, enquanto aquele piedoso
homem conversava com outros sacerdotes à frente da catedral de
Sevilha, uma cortesã viera lhe pedir impudicamente o pagamento por
uma noite de orgia que teria passado com ela e que se recusava a
pagar, o que se tratara de uma clara tentativa de seus inimigos, que o
invejavam, dentro da própria Igreja, para difamá-lo; os que
conheciam sua virtude avançaram indignados sobre a mulher, porém
ele, sem se deixar arrastar, dissera que daria a ela a quantia pedida.
Bastaram as moedas pousarem nas mãos da prostituta e esta fora
logo atacada por um espírito das trevas, caíra pela terra, rolara pelo
pó em abomináveis contorções, rasgara suas roupas e soltara rugidos
atroadores que pareciam sair das piores bocarras do Inferno. Xavier
então orara pela pecadora e, após a terra tremer, um perfume
sulfuroso se espalhara pelo ar e ela se vira livre da criatura infernal,
caindo a seus pés e implorando para ser sua discípula; como ele lhe
teria dito que apenas Cristo é digno de seguidores, a profissão
impura foi abandonada e a antes impenitente passara à vida religiosa,
ainda que ninguém soubesse seu nome e em que convento se achava;
dizia-se que o bispo Xavier, acima de tudo, prezava a modéstia e a
discrição em suas obras, só sendo falado e comentado porque o povo
testemunhava e divulgava seus milagres.
Certa vez, outro bispo, Andrés, consultara-o para saber se devia
proceder à excomunhão de um comediante de rua, que insistia com
seus trajes e modos berrantes e montava com sua companhia
espetáculos irreverentes por diversas cidades da Andaluzia, não
deixando de frequentar missas e de ouvir os padres, mas os diálogos
obscenos e as cenas que ridicularizavam as autoridades seriam lícitas
de ser apresentadas por um bom cristão e para um público que
necessitava de arreios morais?
- Expulsa esse histrião do corpo de Cristo. A lei de Deus proíbe aos
homens que trajem roupas de mulheres e imitem seus gestos e
maneiras; as autoridades constituídas também devem ser respeitadas,
pois se estão na Terra exercendo um posto é porque Deus as investiu
dessa função: a César o que é de César e a Deus e o que é de Deus;
César jamais deixa de ser válido e necessário. Como escreveu São
Paulo, não há autoridade que não venha de Deus, e as que existem
foram estabelecidas por Deus. Aquele que se revolta contra a
autoridade opõe-se à ordem estabelecida por Deus e adere portanto à
rebelião dos anjos. Os demônios em muito apreciam o escárnio! Mas
os homens de Deus devem ficar afastados desse tipo de
manifestação. Ou esse ímpio renuncia ao seu veneno e a representar
os papéis de cortesãs e de rainhas impudicas, ou que seja afastado da
comunhão dos fiéis. A Igreja não precisa desse tipo de indivíduo. Se
alega por desculpa sua pobreza, a Igreja se encarregará de auxiliá-lo
como faz com seus outros filhos, contanto que se conforme com uma
alimentação frugal e que não espere que lhe se deva uma recompensa
por tê-lo retirado do pecado, tendo em vista que esse é seu interesse e
não o nosso. O homem que deve procurar Cristo e não esperar que
ocorra o contrário. Sei que não aceitará, afinal está acostumado a
comprar quitutes e a levar uma vida libertina, mas a Palavra é a
Palavra.- Mostrara sua firmeza, ainda mais contra um sujeito com
suspeitas de sodomia, um vício no qual, segundo a opinião do bispo,
incorriam muitos atores, visto que no teatro andaluz era mais comum
homens representarem personagens femininos do que chamarem
mulheres para os papéis, e de qualquer maneira Xavier desprezava
essa “arte”, de origem pagã, que estimulava a humanidade à
dissimulação e ao fingimento, afora que alguém que se passava por
mulher no teatro podia muito bem acabar sofrendo a influência de
súcubos e íncubos, aumentando assim a quantidade de afeminados.
Em outro episódio ocorrido pouco tempo depois, um vigário
chamado Castro lhe perguntara por carta se devia advertir umas
santas moças que tinham feito votos de virgindade e pretendiam
vencer o Mal partilhando o leito de jovens padres e diáconos; Xavier
respondera que seria melhor realmente avisá-las dos perigos que
corriam, e que se ainda tinham conservada sua virgindade até a
chegada da resposta seria preferível que não renovassem
experiências tão arriscadas e evitassem o escândalo.
Fisicamente, era um homem gordo, de rosto pesado, pele desbotada
e cheia de rugas, grandes bochechas e caminhar pomposo; seus olhos
pequenos, quase indecifráveis, e admirava Torquemada,
satisfeitíssimo por este ter enfim colocado um término aos abusos
daquele bruxo herege que se passava por Cristo e devia ser mais um
desses sodomitas, considerando-se que interpretava tão bem. Chegou
a sentir um calafrio ao contemplá-lo mais de perto, logo suprimido,
do mesmo modo que reprimia a atração física que sentia por certos
mancebos, fazendo o sinal da cruz quando lhe vinham pensamentos
lúbricos que acreditava serem provocados por demônios, rezando e
pedindo em voz baixa: “Deus, afasta de mim esses espíritos do
mal...”
Em contrapartida, estavam lá dois admiradores de “José”, um
diácono e seu amigo, dos poucos que não atiravam nada em sua
direção, que haviam fugido de seu vilarejo, próximo da capital
andaluz, perseguidos por um demônio faminto que vinha atacando a
aldeia (e que seria dias depois abatido por Fiódor, após os cruzados e
o Inquisidor deixarem Sevilha), um habitante das profundezas que
todas as noites deixava a caverna que habitava para investir sobre o
povoado; atraído por alguma razão pelo odor daqueles dois, pele e
olhos macilentos e braços compridos e cheios de garras, fortes e
flexíveis como cordas da melhor qualidade, as pernas musculosas,
maior do que um urso, continuara a segui-los e inspirara o pior terror
que poderiam sentir. Passaram pelos matagais almofadados e
seguiram para as montanhas, encontrando à entrada de uma gruta um
solitário em meditação, ao qual, julgando-o algum santo anacoreta,
pediram proteção. Este lhes disse que não tinha como fazer nada,
mas que deviam ter confiança em Deus e que orassem para Ele, o
único que seria capaz de ajudá-los naquele instante. Sumiu em
seguida, misteriosamente, e ambos se decidiram a orar, conservando-
se de pé, as mãos estendidas ao céu, as lágrimas de medo aos poucos
substituídas pelas de fé e confiança. O demônio, depois de ter
visitado todas as rochas e cavernas, desceu, só tendo encontrado duas
árvores uma junto da outra, sem nenhum cheiro atrativo. No dia
seguinte, um pastor passaria por ali e, ao tocar aquelas árvores, as
duas voltariam a ser humanos: o par de aldeões, cuja fé
metamorfoseara em plantas. Os dias se passaram e, em passagem
pela grande cidade para visitarem um tio, reconheceram o principal
condenado do auto da fé: justamente o homem santo que os tinha
salvo ao restituir-lhes a certeza em Deus, ao permitir que se
lembrassem que eram seres feitos à imagem e semelhança do Criador
e não meros animais assustados; o espanto quando o viram ali foi
tamanho que, ao mesmo tempo que lhes faltava a coragem para se
manifestarem contra os carrascos, cogitaram se não era mesmo Jesus
que retornava para um novo martírio.
A Igreja não deixava de sofrer com ilhas de contestação; estas
contudo não demoravam a ser absorvidas por águas que embaíam os
fiéis, reconduzindo-os às terras costumeiras. Entre os condenados da
ocasião, além de Jesus, havia diversas “bruxas” e um incestuoso, de
nome Eusébio, que vivera na mesma casa de sua jovem irmã e de seu
cunhado até ser surpreendido por este último em doentio adultério;
ao menos assim se supunha, ou fora uma estratégia do cunhado
(talvez em conluio com a irmã) para ficar com o patrimônio do
rapaz, que se não era rico tinha o suficiente guardado em um baú
para garantir que não passariam fome por vários meses ou até anos.
- Há um estranho movimento nas chamas.- Raja observou depois
que o Cristo avançara para aparentemente consumar seu segundo
martírio; ateado o fogo, silhuetas marrons começaram a se contorcer
nas labaredas.
- Arrastar de correntes e ranger de dentes...- Fiódor recitou um verso
que ouvira uma vez do abade Mendeleev a respeito do Inferno.
- Estou ouvindo isso também. Porém não só...
- Era apenas um verso, mas já que ouviu...
- Os outros parecem não estar vendo ou sentindo nada.
- Não escutei nada, mas posso sentir algo que me lembra o que
recitei.
O corpo de Jesus durou poucos segundos na fogueira,
desaparecendo; e, para o pânico geral, à desmaterialização seguiu-se
um espalhar das chamas por todas as direções e destas demônios,
alguns pura reverberação ígnea, outros terrosos, porém percorridos
por veios de magma, e os que pareciam feitos de rocha vulcânica.
Fiódor hesitou: “Essa gente é capaz de se deleitar com a morte de
inocentes, brada pelas cinzas e pelo sangue de hereges que nem
comprovados muitas vezes são, e agora quer ser salva? Sei que terei
de intervir, mas não me sinto minimamente estimulado...”, só partiu,
ainda sem entusiasmo, numa velocidade muito menor do que a sua
de costume, ao seguir Raja, que com seu tridente em mãos explicou
qual seria sua motivação:
- Precisamos ir porque, mesmo que sejam poucos, há alguns que não
vieram se deleitar com as mortes e sim para chorar pelos
condenados.- Percebera não o desânimo, visto que o russo estava
cheio de vigor físico, mas a ausência de vontade em ajudar, buscando
incentivá-lo a lutar; uma situação diferente da de Krishna e Arjuna na
Bhagavad Gita, visto que, se o indiano estava se colocando na
posição do mestre cocheiro (guardadas as devidas proporções), o
correspondente ao príncipe Pandava não estava querendo ir para a
batalha por julgar os outros indivíduos ali indignos de continuarem
vivendo, não o contrário. Naquele momento, os demônios faziam até
a sua vontade.- Afora que Torquemada é nosso superior.- O indiano
expôs um elemento pragmático, se não com a intenção de se
encorajar moralmente, para se convencer da necessidade de
combater. Nada nisso de poético ou de elevada espiritualidade. Seu
pescoço estava dolorido e suas costas ardiam.
- Por que acha que esses monstros surgiram? Tem alguma
explicação? Acho que Cristo pode ter ficado furioso, e assim decidiu
deixar que a ira de Deus descesse sobre a humanidade.
- Como disse a você antes e ratifico, Ele não é e nem pode ser um
homem vingativo, que guarda mágoas e ressentimentos. Pois apesar
de ser uma Pessoa de Deus não deixa de ser humano, e foi Deus que
se fez carne justamente para demonstrar o amor que tem por nós, ou
para conservá-lo, diferenciando-se do que fazia nos tempos do Velho
Testamento, quando ao que parecia ainda não conhecia bem suas
criaturas. Mas depois de sofrer na pele as agruras da matéria, as
tentações, as dores e a agonia, duvido que continue com a
mentalidade do castigo, se é que a teve algum dia; pode ter sido uma
mera interpretação humana, que não tem como compreender
racionalmente o Brahman, que está além dos sentidos.
- Não me aprofundei nos meandros da Bíblia nem conheço bem o
cristianismo indiano, ou melhor, não conheço nada. Só o que sei, e
devo me lembrar sempre disso, é que tenho o dever de nunca deixar
ninguém para trás.- “Como fizeram comigo um dia...”, pensou, sem
dizer; desceram ao local das execuções, e nas outras piras as
labaredas também tinham se espalhado, mas os corpos dos
condenados não haviam desaparecido como o de Jesus, apenas ficado
queimados, e um demônio encurvado de pele e garras vermelhas em
chamas, os ossos aparecentes, estava à frente de Torquemada, este
impassível, e do bispo Xavier, em brutal contraste escondido atrás do
trono do Inquisidor Geral, tremendo sem parar de joelhos no chão.
Como aquele homem algum dia expulsara uma entidade das trevas
do corpo de uma mulher, se sequer tinha forças em suas pernas para
fugir do monstro e em vez de rezar só balbuciava sílabas desconexas,
sua mente tão dispersa quanto o suor que escorria pelas diferentes
partes do seu corpo? O padre vermelho não se movia nem
demonstrava aflição e, prestes a ser atacado, a cabeça do presunçoso
agressor, que não parara por um instante de rosnar em sua direção,
rolou aos seus pés e seu corpo despencou pouco atrás, derretendo em
seguida. Fiódor surgira, com um olhar sereno.
Pouco afastado, Raja cuidou sozinho de cinco ou seis, enquanto a
multidão debandava, o indiano desviando as labaredas, que passavam
ao lado, quando realizava certos movimentos com seu tridente. Ao
traçar no solo uma cruz de luz dourada, como que absorveu para sua
armadura a matéria ígnea que formava aqueles seres, precisando em
apenas um caso usar a rosa em sua testa, que se abriu e com seu
perfume foi desmanchando um gigante de rocha fétida e
incandescente, que urrou antes de se tornar poeira e cinzas. Um
voador, de asas repletas de linhas de sangue fúlgidas, tentou atingi-lo
pelas costas, fulminado por um lançamento do russo, que atirara sua
espada invisível e assim decapitou o oponente. Restava apenas mais
um, que parecia o mais perigoso:
- Impressionante! Não é à toa que são considerados guerreiros de
Cristo. Não há nada que possa pará-los!- Comentou Xavier,
entusiasmado e com o rosto cheio de alívio por ainda estar vivo, o
lenço que guardara em seus trajes ficando encharcado com o suor
que tentava enxugar.
- É justamente por isso que temos que ser cautelosos com eles e eles
cautelosos consigo mesmos. Possuem o sangue de Cristo, mas não
são Cristo. Se caírem no pecado, lidar com o poder que têm se torna
muito difícil.- Torquemada replicou com aspereza, mas o outro, um
homem sempre tão rígido, naquele momento não se importava com
mais nada, não se segurava, só conseguindo rir...
Raja saltou e fincou seu tridente no dorso do que parecia ser uma
hidra de magma, enquanto o russo ia cortando as cabeças; o
Inquisidor, despreocupado com o resultado do confronto, que estava
definido, ficou a refletir como e por que figuras monstruosas haviam
sido paridas pelo fogo que (ao menos aparentemente) consumira o
mais puro e sublime dos homens. Retaliação do Ser dos seres? Ou
materialização dos seus equívocos e julgamentos em nome de uma
doutrina que dizia para “não julgar”? Parecera mais uma punição
para os que se divertiam com a desgraça alheia, para as feras
enrustidas do populacho inculto, do que para ele, que em nenhum
momento sofrera um perigo real em face àquelas criaturas brutas;
talvez, cogitou, a punição para seus crimes seria muito mais severa e
dolorosa do que uma simples morte. Ao imaginar uma futura e
inevitável derrota, engoliu a seco e tremeu por dentro tudo o que o
bispo Xavier tremera por fora. Ou triunfava com a alquimia...Ou
seria o fim. Contudo, mesmo imortal, não seria invulnerável; por
quanto tempo persistiria e para onde poderia fugir, e continuar
fugindo, de si mesmo e dos anjos de espadas flamejantes? Ou mesmo
dos demônios sedentos de vingança...Na guerra entre os Céus e o
Inferno, era ainda mais arriscado ficar no meio do que escolher um
lado ou outro.
Ao término do combate, destroços, sangue e cinzas espalhados pelo
lugar; nenhuma cruz em vista, as que existiam antes feitas em
pedaços ou carbonizadas. Raja teve a visão de uma imensa rosa
desmanchada, suas pétalas espalhadas pelo chão sujo, e só os
espinhos de seu cabo mais vivos do que nunca; o bispo e o Inquisidor
geral se aproximaram dos dois cruzados:
- Meus parabéns.- Xavier parecera ter recobrado a razão e a
serenidade.- E agradeço por terem salvo a minha vida e a de centenas
de pessoas hoje. Que Deus os abençoe para sempre.
- Apenas fizemos o nosso trabalho.- Fiódor respondeu de forma
simples, e seus lábios ficaram rijos como seu pescoço; Raja sorriu, e
o prelado beijou as testas dos dois. O indiano valorizou aquele gesto,
enquanto que para o russo não significou nada, recebendo-o por
formalidade; Torquemada não retirava os olhos, atento, e receoso
pelo que não podia esperar.

SEXTO ATO

A imperatriz da morte

Em 794, ou seja, pouco mais de duzentos anos antes da grande


catástrofe, Carlos Magno parara nas colinas entre os rios Reno e
Meuse, cansado de tantas campanhas e viagens, e estabelecera sua
comitiva em Aachen, um balneário famoso por suas fontes minerais,
célebre desde os tempos romanos. A proximidade de ricas reservas
de caça e o clima saudável chamaram a atenção do imperador, ao
qual agradava a vida ao ar livre e, mais importante do que isso, a
cidade estava situada em uma posição estratégica junto a rios e
estradas que davam acesso a boa parte do reino. O soberano não
demorara a convocar artesãos qualificados de todos os seus domínios
e orientara Otão de Metz, seu arquiteto chefe, para projetar uma
capital que rivalizasse com Roma, Ravena e as capitais do mundo
antigo; em decorrência dessa diretiva, nada fora economizado e Otão
usou o mármore multicolorido italiano e acessórios de ouro, latão e
prata com liberalidade. Destaque para a catedral e sua capela
palatina, consagrada pelo papa Leão III, uma estrutura com um pátio
interno octogonal (circundado por um deambulatório de dezesseis
lados), decorada com colunas, mármores e mosaicos retirados de
antigos edifícios romanos, onde Carlos rezava três vezes ao dia e que
escolhera como seu sepulcro; a formar e suportar a estrutura do
octógono, encontravam-se oito grandes colunas gêmeas, interligadas
por arcos de volta-perfeita; orientado visualmente para o centro
aberto, acessível através das escadas existentes nas duas torres do
deambulatório, o piso superior possuía, entre cada pilar, vedações em
bronze; a cúpula era composta por oito gomos que surgiam do
prolongamento dos pilares da base, percebendo-se nesta parte um
distanciamento das técnicas da antiguidade para que se alcançasse
uma maior leveza; funcionando como altar, um pequeno espaço
retangular, que em tempos posteriores a Otão e a seu senhor seria
revestido a vitrais. Contudo, embora magnífica, não passava de uma
parte do encrave real de 20 hectares: e uma galeria coberta ligava o
recinto sagrado ao palácio, sede do governo e moradia da família
real, onde só a sala de recepção media 20 por 45 metros,
demonstrando a grandiosidade dos tempos áureos dos francos.
Após o fim da dinastia carolíngia, restara em Aachen um
competente principado. Porém como esquecer os áureos tempos
imperiais? Alguém circulava pela capela...
Primeiro, a silhueta misteriosa parou para observar o mosaico com
o Cristo no trono ladeado por dois anjos e, ao longo de toda a base
do perímetro da cúpula, os vinte e quatro reis que ofereciam suas
coroas a Jesus; depois, seus olhos caíram sobre um trono verdadeiro,
não de mimese, cuja impressão em um descuidado seria de um
assento simples demais para um imperador. No entanto, aqueles não
eram olhos quaisquer e conheciam a qualidade e o valor dos
mármores antigos que o formavam. Sobre ele, de volta à Terra,
Shamiram se sentou, assumindo a si mesma em um êxtase cínico.
Acabara de vencer as tropas do principado, seus soldados ocupados
em despojá-las e submeter os sobreviventes à escravidão. Seu
exército estava formado por homens de grande porte, com o dobro da
estatura e massa muscular dos que habitavam aquelas terras, a tez
morena como a sua, que contava com longos cabelos ondulados que
iam até a base de sua coluna, delicadas sobrancelhas acima dos olhos
negros de cruel dissimulação, sorriso sinuoso, mãos enganosamente
meigas, usando um vestido comprido e justo que destacava seus
quadris e a cintura fina, seus dedos repletos de anéis e em seu
pescoço um colar de pérolas negras. A maior força de sua investida
não estivera entretanto nos gigantes da infantaria, nem nos arqueiros
montados sobre cavalos colossais e nem nas malhas, capacetes e
armas de metal fúlgido, e sim ali, em volta de seu colo, pois aquelas
gotas globulares haviam sido um presente de alguém muito
importante em seu passado, que lhe permitia convocar os aralez:
estes eram criaturas das profundezas infernais, semelhantes a
imensos cães de pêlos pretos e eriçados, as caudas compridas e os
dentes de aparência letal, cujas virtudes principais não residiam
porém em sua capacidade de ataque; na verdade, de nada adiantava
abater um dos guerreiros daquela rainha lendária se na sequência um
aralez se materializava e lambia suas feridas mortais, fazendo com
que em segundos este revivesse com forças renovadas! Assim caíram
as tropas do príncipe de Aachen, sem que Shamiram precisasse
desembainhar a espada que levava em seu cinto, que tinha a imagem
de Assur em seu centro, o disco solar alado em destaque, uma única
vez.
- O seu caso é semelhante ao meu, com a diferença que nunca
encontrou mulher que o cativasse, enquanto eu, depois de Sarah,
nunca encontrei nenhuma igual...- Disse Asmodeus, o corpo negro
incandescente e os olhos em brasa, os braços cruzados diante do
grande espelho mágico na parede do quarto escuro, mostrando a
Bruce Aleister, este sobre um pentagrama invertido envolvido por
um círculo, as cenas daquela guerra, que contudo eram o que menos
interessava ao mago, que estava trajado com uma esplendorosa toga
cerimonial.- Depois de séculos, minha seguidora Shamiram volta a
se manifestar na Terra graças ao meu poder, que cresce a cada dia na
matéria, e aos vícios dos homens, pois em vícios ela é
soberana...Soberana absoluta! Acredito que ela irá impressioná-lo, e
por isso a estou mostrando, mas tome cuidado.
- Já me impressionou, alteza; trata-se de uma beleza sem igual, e de
uma paixão interna que exala e que não encontro em nenhuma
cristãzinha, e que mesmo nas pagãs de hoje parece estar ausente por
completo. Nunca estive diante de uma bruxa tão fascinante, e não
vejo a hora de tê-la em meus braços. Pode me levar até Aachen?
Serei o novo Carlos Magno!
- Se eu lhe disse para tomar cuidado, foi para que prestasse atenção.
Shamiram não é mulher para qualquer homem, e tanto pode elevá-lo
como destruí-lo sem a menor piedade. Primeiro ela que o terá em
seus braços...Depois, caso se apaixone, será sua. Caso contrário, se
não acordar nela o fogo traiçoeiro mas adocicado que arde nas
mulheres, despertará o que queima os homens.
- Fale-me mais dela, caro príncipe. Quero saber detalhes; caso
contrário, como conseguirei conquistá-la? Assim como o comandante
militar deve conhecer seu inimigo, o mesmo se aplica ao amante
quando quer cativar aquela que o interessa. Estou farto de frígidas,
que fique claro.
- Você ainda não encontrou a alma de Sarah e quer que o satisfaça
em tudo.
- Tenha paciência, meu senhor. Prometo-lhe que não irei falhar!
- Não confio nas promessas dos homens.- Ainda assim, Asmodeus
envolveu o espelho mágico, de moldura de ouro, com uma cortina de
fumaça. Quando esta se foi, novas cenas principiaram a surgir, na
verdade muito velhas, o passado de Shamiram se descortinando aos
olhos do mago.
- A minha palavra eu dou; se os outros homens não cumprem as
suas, não é culpa minha.
- Então é melhor que se apresse a cumprir a sua.- Apesar do tom de
ameaça, Bruce sorriu; estava cada vez mais confiante em si mesmo,
sem temer o que viria e veria no futuro e do passado, deslizando sua
mão sobre a navalha do presente, pois os deuses estavam sendo
generosos com ele, considerando mais Asmodeus como um deus, nos
moldes das grandes divindades pagãs, do que como um demônio no
sentido judaico-cristão. Como um ser de puro mal poderia lhe dar
tantas dádivas, não sentindo mais tanta fome e sede como os mortais
ordinários e gozando de saúde perfeita desde que lhe fora dada para
moer e misturar ao leite de cabra uma pedra vegetal repleta de seiva?
Também desde aquela ocasião, ao andar pela terra ou passar pelos
rios, não era raro acabar encontrando ouro e pedras preciosas. A
riqueza mundana e o vigor corporal tinham vindo, faltava somente o
amor de uma mulher, que queria que fosse recíproco, não para
preencher alguma carência sua ou alheia; desejava alguém à sua
altura, com uma força interior equivalente ainda que distinta, com a
qual pudesse compartilhar os tesouros da vida. Nunca encontrara
nenhuma mulher completa como ele se considerava completo,
satisfazendo seus desejos nos últimos tempos com belas jovenzinhas
camponesas, só que estas não tinham nenhum fogo; eram
criaturinhas de palha.
Logo na primeira cena que se delineou com clareza, a
magnificência da antiga Babilônia, entre pombas que rumavam para
os céus, sobre os esplendidos jardins suspensos, em um dia
ensolarado. As muralhas externas da cidade tinham por volta de 50
milhas de comprimento e 320 pés de altura; os jardins haviam sido
construídos num passado ainda mais distante pelo rei
Nabucodonosor, junto a uma miríade de zigurates, ruas e palácios,
erguidos a princípio para a felicidade de sua amada esposa, a rainha
Amyitis, nostálgica das montanhas verdejantes de sua nação, a
Média, onde era filha do rei, uma terra elevada e cheia de pastagens,
em contraste com o deprimente, do ponto de vista de Amyitis, solo
arenoso e plano da capital babilônica. Nabucodonosor procedeu
assim à construção de uma montanha artificial com diversos andares
de vegetação vigorosa. Consistiam de terraços superpostos, erguidos
sobre pilares cúbicos, ocos e preenchidos com terra para que ali
fossem plantadas as árvores de maiores dimensões. Pilares e terraços
eram constituídos de tijolos cozidos e asfalto, a subida até o andar
mais elevado devendo ser feita por escadas e, na lateral, ficavam os
motores de água, que incessantemente conduziam a água do rio
Eufrates até os jardins, pois a região da Babilônia raramente recebia
chuvas. A água era elevada de forma a fluir através dos terraços,
molhando as plantas de cada andar, uma tarefa levada a cabo por
meio de um sistema de bombeamento por corrente. Considerando-se
que pedras eram raras nas planícies da Mesopotâmia, o tijolo de
argila o material mais comum em suas construções, contando uma
espécie de betume usado como liga e ainda assim podendo ser
dissolvido pela água, certas medidas precisaram ser tomadas para
que o líquido não arruinasse as fundações do complexo: as
plataformas sobre as quais estavam os jardins foram portanto feitas
de pedra importada e cobertas por camadas de juncos, asfalto e
azulejos; e, acima, colocaram-se coberturas com folhas de chumbo
para que a umidade vinda da terra não chegasse a atingir as
fundações dos pilares; apenas depois disso era introduzida a terra. Os
jardins alcançavam a altura das muralhas e ali, inspirando-se em
Amyitis, que Shamiram quisera estabelecer sua corte, seu marido, o
rei Ninos, não se opondo, em um palacete no centro da lagoa
artificial das águas mais azuis.
- Tudo o que minha esposa deseja, sei que faz isso com sabedoria,
não se restringindo aos impulsos do coração.- Quem falava às vezes
sem raciocinar quando se referia a ela, colocando o peito à frente dos
olhos, era o próprio Ninos. Shamiram não tinha origem nobre, tendo
sido achada no deserto ainda neném, ao lado de um peixe ressecado,
por um pastor chamado Simas. Anos depois, o governador da Síria,
Ioannes, encontrara-a em uma de suas campanhas e se apaixonara
perdidamente; levara-a consigo, arrancando-a dos braços do pai
adotivo, do qual, ela mesma confessaria anos depois, nunca iria
sentir falta (dizia-se que fora violentada por este diversas vezes),
criada sem mãe, e com o tempo a jovem se revelara não só uma
amante voraz como uma guerreira intrépida, acompanhando-o na
Bactriana. No entanto, lá seu primeiro marido encontrara a morte,
enquanto Shamiram pudera comemorar o triunfo como líder das
tropas assírio-babilônicas e casando-se com o rei alguns meses após
seu retorno, outro que se apaixonara no ato, encantado com sua
beleza, oratória e coragem. Contudo, Ninos não queria se arriscar a
perdê-la; por isso, depois que se casaram passara a proibi-la de
participar da vida militar, mantendo-a na Babilônia, do seu ponto de
vista ali segura, mesmo quando ficava meses afastado de seus
súditos, lutando em terras distantes. Se era assim então, se não podia
gozar dos prazeres da guerra e seu marido fazia questão de ficar tanto
tempo distante, a nova rainha decidira que gozaria de outros
prazeres...E dessa forma os soldados que não iam com Ninos
visitavam seus aposentos com frequência quando ele estava ausente,
assim como dezenas de escravos e mesmo jovens cortesãos. O
soberano dos babilônios não era feio, seu porte atlético e a aparência
viril, porém isso para ela não era o suficiente.
“Dos homens aprecio a essência, não a superfície. Isso posso ler nos
olhos, que enquanto são vazios em Ninos, nesse estrangeiro posso
perceber que estão injetados de um sangue que brilha tanto quanto
nosso amado sol.”, refletia, em seu trono ao lado do de seu esposo,
de reluzente verde como os degraus abaixo, a respeito de Ara,
soberano dos armênios, que viera com uma embaixada até a
Babilônia para tratar de assuntos comerciais e territoriais. Após a
derrota dos báctrios, restavam independentes da Assíria naquela
região apenas as terras da Armênia, o rei desse povo com a intenção
clara de preservar sua autonomia sem a necessidade de romper a paz.
Mesmo na Babilônia muito se falava da coragem de Ara, que por
diversas vezes subjugara a violência de invasores perigosos e
comentavam até que fosse um vencedor de dragões. Media quase
dois metros de altura, a pele bronzeada como seus cabelos, físico
pujante e seu olhar, digno de um leão altivo, cativara de imediato as
mulheres da corte de Ninos; a rainha não fora uma exceção. “Esse
homem será meu...”, deixou claro para si mesma; era diferente de
todos os seus amantes...Não podia permitir que lhe escapasse.
Prestando pouca atenção nas questões de Estado tratadas no
encontro, preparou de madrugada, quando todos tinham ido dormir,
inclusive o nobre hóspede, uma bebida para seu marido; instruíra-se,
graças a muitas leituras, depois de aprender também a escrever, com
a ajuda de sábios preceptores, em diferentes linhas de bruxaria que
existiam na época, incluindo preparos de unguentos e poções.
- Acorde, meu querido Ninos...Acorde.- Ela o arrancou de seus
sonhos.
- Shamiram? O que foi? Já fizemos amor durante toda a noite.
Preciso descansar um pouco.- Bocejando e ainda tonto, o rei se
espreguiçou e fitou mesmo assim com ternura o belo rosto de sua
amada.- Será que não pode esperar a manhã?- Acariciou-lhe a face.
- Não é nada disso, meu querido. É que preparei algo para você. A
receita tirei de algumas tábuas que falam sobre as bebidas dos
deuses.
- Você e suas leituras...Nunca deixo de agradecer aos deuses pela
esposa que tenho, carinhosa, simples, sem todas as frescuras dessas
mulheres da corte, e ainda sábia e dedicada, que não se importa de
acordar no meio da madrugada para preparar algo delicioso para o
seu marido.
- Claro que não me importo. Só não posso lhe dizer do que é feita. É
uma surpresa!
- Que assim seja. Tomo com todo o prazer, só espero que não me tire
o sono. Desconfio que esteja fazendo isso para que fique acordado a
noite inteira com você, não me cansando nunca!- Esboçou um sorriso
malicioso.
- E isso seria ruim?- O sorriso dela era traquino, porém exalava uma
aparente ingenuidade, uma de suas características que encantara
Ninos. “Você vai dormir mais, e bem...Muito bem.”
- Claro que não. Fico aliviado que me deseje.- O rei levou aos lábios
o líquido rosado que lhe foi oferecido e começou bebendo devagar,
depois com gosto, porque era de um sabor muito agradável.- Estava
delicioso. Agora pode me dizer que espécie de licor era esse?- No
entanto, de súbito sua garganta travou; deixou cair a taça de madeira
e era como se tivesse tentado engolir o caroço de um pêssego e este
tivesse parado no meio de seu pescoço. Veio uma forte vertigem, sua
cabeça girava, e o cenário se alterou para uma prisão lúgubre, de teto
abobadado, onde as paredes de pedra fria transudavam umidade;
pouquíssimos raios de sol penetravam pelas janeiras seteiras
gradeadas e uma penumbra descolorida prevalecia, jogado o grande
rei da Babilônia sobre um amontoado de palha deixado a esmo nos
ladrilhos, ao seu lado uma velha de rosto transfigurado pelo
sofrimento, tiras de linho ensanguentadas enrolando as pernas
quebradas. Como fora parar ali? O que ocorrera aos seus aposentos
reais? Realidade e realeza...Talvez as duas palavras não
coadunassem. Tudo, toda a sua “vida” anterior, poderia não ter
passado de um sonho, do delírio esperançoso de um condenado à
morte que acreditara ser o senhor de um império. Ou fora parar ali,
depois de dias inconsciente, após ter sido drogado por sua amada
esposa? Não podia conceber a traição. Contudo, por mais confuso e
pouco lúcido que estivesse, ao que parecia ainda sob efeito da
bebida, era o que lhe restava cogitar. Olhou bem para a idosa mulher
ali próxima: as mechas de cabelos brancos emoldurando uma face
contorcida, que terminou por reconhecer: sua mãe.
- Eu lhe disse para não se casar com aquela mulher. Mas você não
me ouviu!- Falou com uma voz rouca e arrastada, apavorando e
imobilizando o filho à medida que a pele de seu rosto apodrecia; e
arrancou um dente mole que aparentemente lhe doía.- Homens nunca
sabem seguir sozinhos.
Ninos foi atacado por uma forte falta de ar e se debateu até perder a
consciência por completo; na vida concreta, ainda estava em seus
aposentos, ao menos seu corpo, jazendo diante de Shamiram, que
sorria sinistramente. Verificou que o coração do marido parara de
bater. Já podia se considerar viúva e seria anunciada em breve como
imperatriz da Babilônia. E, ainda mais importante do que isso, seu
caminho estava livre para empreender a conquista de Ara...
- Sinto muito pelo rei Ninos. Dava a impressão de ser um soberano
digno, que não apreciava a guerra pela guerra.- O próprio veio
procurá-la nos aposentos reais após o funeral, manifestando suas
condolências à viúva; conquanto não deixasse de considerá-la a mais
bela das rainhas que conhecera, o respeito e a cordialidade teriam
que falar mais alto.
- Muito obrigada, rei Ara da Armênia. Não imagina o quanto sua
compaixão me alivia e me engrandece. Ninos foi meu companheiro
por anos, e o pior é que ao que tudo indica foi envenenado por
alguém de nossa própria corte. Dessa forma, sei que também corro
perigo. Em quem devo confiar? Como posso olhar para os meus
guardas e ter certeza que não me trairão? Ainda mais porque sou só
uma mulher. Se ele, que era um homem forte e inteligente, não pôde
evitar a traição, me pergunto o que será de mim sem um pulso forte
ao meu lado.
- Pelo que sei de vossa majestade, é uma mulher de coragem, que já
lutou em guerras. Ouvi falar de sua bravura. Por que agora se retrai?
A fraqueza não vem do sexo, mas da falta de espírito em qualquer ser
humano, tanto faz se homem ou mulher, e a senhora não possui
espírito em falta.
- Agradeço pelas palavras, creio que já posso considerá-lo um novo
e precioso amigo. Mas há anos que deixei o campo de batalha, até
porque Ninos não queria que arriscasse a minha vida, e dessa forma
perdi muito da destreza e da valentia que possuía. Hoje não passo de
uma mulher frágil, protegida por um exército inteiro; sou forte nas
aparências, mas não tenho força interior.
- Tem certeza que foi alguém da própria corte assíria que mandou
assassinar Ninos?
- Absoluta. Os reis sempre possuem inúmeros inimigos e meu
marido não era exceção. Além do mais, sempre tive muitos
admiradores, não imagina quantos invejavam Ninos. Posso não ser
morta, mas já prevejo a enxurrada de pretendes, tanto pelo trono
como pela paixão desregrada. Mas como vou poder me casar outra
vez, ter um novo rei ao meu lado, se este pode ter sido o assassino do
meu marido? Não tivemos filhos, infelizmente; e não posso confiar
em ninguém.
- Penso que o rei tenha cometido um erro ao afastá-la das batalhas.
Contudo, se por fora esmoreceu, seu caráter continua o mesmo, seu
íntimo nunca se altera, minha rainha; o que tem que fazer é recuperar
o que escondeu, o que está oculto, mas que nunca perdeu. Dessa
forma, terá a força e a destreza para enfrentar os inimigos internos e
externos.
- Forte e sábio...Uma combinação incrível molda a sua alma, rei dos
armênios. Quiçá houvesse um meio de evitar o assédio dos
pretendentes e, para além disso, impulsionar o reino da Assíria para
uma prosperidade e uma expansão nunca antes vistas...- Direcionou-
lhe um olhar intenso e direto, que o fez ficar em dúvida:
- O que está querendo sugerir, majestade?
- Um império Assírio-Armênio seria o mais poderoso que a Terra já
viu, ainda mais sob o nosso comando. Não tenho dúvidas que
conquistaríamos juntos uma quantidade inimaginável de terras e
riquezas. Você me cederia sua força, sua base, me permitindo
recuperar meu espírito, e eu lhe daria todo meu amor e meus
conselhos para que fosse prudente quando necessário.
- Majestade...Não posso aceitar.- Ao vê-la serpenteando em sua
direção, seus sentidos foram tentados; via adiante apenas a atraente
mulher, tentando se lembrar que era a recém-viúva rainha da Assíria
e que era casado, com uma leal esposa a aguardá-lo em seu país.
- E por que não?- O tom de autocomiseração e a voz arrastada
visavam comovê-lo.
- Seria um tanto cedo para desrespeitar a memória do rei Ninos.
- Não pense assim. Em breve virão pretendentes sem a menor
intenção de respeitá-la; e entre eles e você, sabe agora quem eu iria
preferir. Não tenha dúvidas, Ara.
- Rainha, não pense que não a julgo bela ou que desprezo sua
proposta. Mas há algo fundamental que me impede de permanecer na
Babilônia: já tenho esposa e filhos.
- E por que não me disse antes?
- Até agora, não achei que fosse necessário dizer. Mas um rei sempre
tem ao seu lado uma rainha.- A questão o deixara cheio de culpa.
Fora proposital: Shamiram, abatida por fora, sorria por dentro.
- Mas e uma rainha sem rei? O que pode ser feito quanto a isso?-
Mostrou todo um falso abatimento...Ao mesmo tempo que lhe
envolveu o pescoço e o abraçou, aproximando seus quadris.
- Sinto muito, majestade. Mas não posso permanecer.- Ara lhe
acariciou as costas, lutando consigo mesmo para não ir além; chegou
a ver um leão se debatendo com uma leoa em seu coração, em uma
luta selvagem e desigual.- Só posso lhe oferecer minha amizade.
- O que já é muito. Obrigada, meu bom amigo...- Aparentemente, a
rainha da Assíria se resignara; entrementes, durante os dias que o rei
armênio ainda tinha na Babilônia, foi incrementado seu assédio,
tanto de formas sutis e sofisticadas como sendo incisiva em algumas
ocasiões, convidando-o para jantares, presenteando-o com perfumes,
mostrando-lhe seus tesouros e buscando constantemente aproximar
seu corpo e seus lábios o máximo que podia; nada de Ara ceder...Até
que na última noite em que ele permaneceria ali, resolveu fazer a
proposta:
- Você pode voltar sempre que quiser. E faço-lhe uma nova oferta: se
for da sua vontade, aceito ser sua segunda esposa. Contento-me com
isso. Não preciso ser a primeira. Tenha sua mulher e seus filhos na
Armênia, e me terá sempre aqui, à sua espera. Se em seu reino esse
tipo de costume é proibido, aqui só estará sujeito às leis da Assíria,
onde os homens podem tomar duas esposas.
- Rainha Shamiram, minha mulher nunca aceitaria, e para estar com
você eu teria portanto que mentir. Não pretendo ser desleal e enganá-
la. Isso me importa mais do que arruinar minha reputação com o meu
povo. Serei sincero: amo minha família; e por mais que deseje vossa
pessoa, não vou negar isso, o homem que dissesse que vossa
majestade não lhe desperta desejo é um mentiroso, minha alma fala
mais alto do que meu corpo. Não sou um animal, que simplesmente
satisfaz seus desejos; sou um homem que tanto respeita sua esposa
como respeita vossa majestade. Nunca irei usá-la.
- Não me importo de ser usada, desde que seja por você.-
Aproximou-se para abraçá-lo.
- Não, grande rainha.- Ele a rechaçou, colocando sua mão à frente de
uma forma que a entristeceu tanto por fora quanto por dentro, suas
lágrimas não sendo apenas exteriores.
- Não posso sequer me despedir com um abraço?
- Não será necessário. Sabe que é uma grande amiga. E não precisa
tocar meu peito para que esteja dentro dele.- Ara se sentira tentado a
aceitar a proposta de ter uma esposa na Assíria e outra na Armênia;
contudo, se tivesse que assumir o trono da Babilônia, sérias
complicações decorreriam. Era impossível tornar concubina uma
rainha, e queria voltar a seu reino com a consciência e o coração
limpos.
Meses transcorreram após a partida de Ara e Shamiram não o
esqueceu, recusando sistematicamente os pretendentes que se
manifestavam, mesmo alguns antigos amantes. Ainda não odiava o
rei dos armênios por tê-la rejeitado; isso porque inclusive não
desistira, enviando uma delegação para seu amado com presentes e
ofertas, e súplicas e promessas de recompensas, pedindo para que
retornasse à Babilônia porque não aguentava mais de saudades e não
via a hora de tê-lo em seus braços. Deixando isso por escrito em
armênio através do intérprete real, que a apoiava em seus planos com
a esperança de algum dia se deitar com ela, já tendo recebido alguns
beijos, esperara que chegasse aos olhos da rainha da Armênia, que
certamente ficaria enciumada e desejaria explicações do esposo,
desencadeando complicações em seu casamento. Só que isso não
ocorreu, pois Ara já explicara à sua esposa o que se passara na
Assíria e esta não vira mentira nos olhos do marido.
A soberana assíria era no entanto persistente, e a delegação assim
foi e voltou muitas vezes, os presentes sempre devolvidos, o que por
fim provocou a ira de Shamiram, que decidiu, depois de tantos anos,
pegar em armas, lançando-se com seu exército sobre as terras do
único homem que a rejeitara, sob a alegação, dada no Conselho dos
sábios da Babilônia, que este a assediara e que secretamente
planejava tomar o trono da Assíria. Muitos não acreditaram, afinal já
se passara um certo tempo desde a partida do armênio e sabiam da
libertinagem da rainha, que mesmo apegada a Ara continuava tendo
seus amantes, mais provável o assédio da parte ela, porém nada
disseram, aceitando a proposta, afinal seria uma oportunidade e tanto
para anexar ao império aquelas terras que faltavam.
Na fúria de seu desejo, ela o queria vivo; não raciocinara ainda
sobre o que faria se o visse morto, o que era provável em se tratando
de uma guerra, cega pela paixão, não sabendo como pedir aos seus
homens para que não o matassem. De qualquer modo deu a ordem,
pois era a rainha.
No planalto de Ayrarat, deu-se a batalha decisiva. O número de
armênios flutuava entre os cinco e dez mil combatentes, ao passo que
as forças assírias contavam com mais de quarenta mil homens. Uma
diferença considerável, tendo início o combate com uma chuva de
flechas que os primeiros lançaram ao serem cercados; isso forçou as
tropas de Shamiram a entrarem no núcleo de Ara, que preparara
guerreiros de lanças longas para fazerem frente às armas dos
invasores, que pelo que estudara faziam mais uso de espadas curtais
e punhais para o combate corpo a corpo. A rainha, em seu majestoso
cavalo negro, não temia o confronto direto, aliás, o queria para que
pudesse derrubar seu odiado amado mantendo-o vivo; e conforme a
infantaria da ala direita armênia atacava o flanco dos mercenários
babilônios, por trás deles Shamiram e sua cavalaria abriram caminho
até o rei dos armênios.
Contudo, antes que pudessem chegar, para a surpresa de todos, um
assassino traiçoeiro, um armênio que paradoxalmente sempre
sonhara matar seu rei por muito admirá-lo, não admitindo que
qualquer outra criatura o levasse ao mundo dos mortos, até então
oculto na poeira levantada pela batalha, saltou sobre Ara e o
apunhalou pelas costas para depois fugir; a morte de seu líder
desmantelou o até então bem montado e armado exército armênio,
assim como fez com o coração da rainha da Assíria.
“Como fui tola! Como pude pensar que a guerra dá alguma garantia
de sobrevivência? Ainda mais quando lutamos tendo ao nosso lado
alguém que amamos. No meu caso pior ainda, lutei contra alguém
que amava! E a guerra nos cospe na cara, parece que faz questão de
nos forçar ao desapego; na verdade sair viva é a exceção, não a regra;
e quando pensamos que podemos perder a pessoa, nós a perdemos.
Ara, meu querido...Espero que me perdoe, e que os seus filhos me
perdoem. Não vou deixar que isso seja em vão.”, se segurou para não
chorar sobre os despojos de seu amado, reservando as lágrimas à sua
intimidade, e ordenou que seu corpo fosse embalsamado e levado
com ela de volta à Babilônia, onde, com a ajuda dos deuses, disse aos
comandantes, que num primeiro momento a tomaram por louca, iria
ressuscitá-lo e tornar aquele inimigo honrado um herói a serviço do
império. Isso foi dito por meio de mensageiros também à rainha e
aos príncipes armênios, que passaram para a tutela de um governador
nomeado pela imperatriz, um de seus generais, e que teria a
obrigação de deixá-los nas melhores condições, sem escravizá-los
como era costume fazer com as castas reais dos povos derrotados;
caso algum mal ocorresse àquela família, o governador teria a sua
própria aniquilada. A viúva de Ara, ao ficar ciente da morte do
marido, perdera o sentidos, e ao recuperá-los ficara ainda mais
desolada por saber que o corpo não fora trazido de volta, e sim
levado por Shamiram, seu ódio pela soberana dos assírios
aumentando, e ainda mais quando soube que os manteria ali, como
objetos decorativos, manifestando sua falsa piedade; teria preferido
morrer e fazer os filhos fugirem para vingar o pai no futuro.
Contudo, o governador montou uma guarda que vigiava a família
real armênia durante todas as horas do dia para impedir que a rainha
se suicidasse ou tomasse qualquer outra atitude perigosa, mantendo
distantes objetos cortantes e substâncias venenosas, visto que esta já
gritara que queria morrer o quanto antes para ficar próxima do
marido e que não pouparia esforços para isso. Não acreditava que a
imperatriz da Babilônia pudesse trazer seu esposo de volta à vida; no
máximo vestiria um de seus escravos com trajes da nobreza armênia
e o faria passar por Ara, porque nenhum ser vivo, quanto mais uma
mulher lasciva, possuiria o poder de trazer de volta alguém que já
desceu para o mundo dos mortos. No máximo, caso fosse uma
feiticeira, produziria com sua magia ímpia algum homúnculo,
alguma aberração de bruxa, e diria que Ara estava de volta, desta vez
ao lado dela, sendo que o verdadeiro Ara nunca cedera e nem cederia
aos seus truques.
De volta à sua capital, Shamiram tentou de todas as formas
devolver a vida a seu amado em rituais secretos. Só que mesmo
embalsamado, o corpo começou a feder e, após ficar exausta,
ordenou, depois de secar seu pranto, que o cadáver fosse coberto e
lançado em um precipício profundo.
Fracassara, e fora o pior sentimento de sua vida, sua sensação de
impotência crescendo quando clamou que ao menos o espírito de Ara
aparecesse para visitá-la, sem obter nenhuma resposta; silêncio
absoluto. Quebrou todos os vasos de seus aposentos e atirou joias
pelas janelas, recolhidas ao longo da madrugada e da manhã pelos
guardas que rondavam o palácio, apenas um aparecendo depois para
devolver o que recolhera e tendo uma recepção inesperada:
- Não quero nada que as suas mãos sujas tenham tocado. Mas quero
que elas me toquem.- E o puxou para dentro de seu quarto,
descontando com ira na carne o que sua alma não teria; fizeram amor
por horas, ela fantasiando o tempo todo que aquele homem era o rei
dos armênios.
Transcorridos meses, a viúva de Ara, abdicando de seus planos de
suicídio por seus filhos, foi com estes exilada em uma cidade
periférica do império babilônico, enquanto Shamiram resolveu de
alguma forma compensar as terras da Armênia pela perda de seu rei.
Também, conquanto não declarasse, queria homenagear seu único
verdadeiro amor, sem excluir seu fascínio pelo conforto e por
realizações grandiosas que eternizariam seu nome. Dirigiu-se a
Ayrarat, à região montanhosa ao sul daquele território.
O verão estava em seu auge, o que a deixou encantada com os
campos floridos, a cor da terra, a pureza do ar, o murmurio dos rios e
a limpidez das fontes. Decidiu construir por ali uma cidade e uma
residência real onde poderia passar um quarto do ano, deixando a
aridez da Assíria durante a estação mais quente para desfrutar
daquele paraíso terrestre. Para o leste, chegou ao lago Van, à margem
do qual avistou uma colina, um grande rochedo escarpado, que se
estendia em direção ao ocidente; ao norte, esta declinava, mas ao sul
ascendia perpendicularmente em direção ao céu e dali se abria uma
campina extensa. Ao leste, até a beira do lago, mostrava-se um vale
amplo pelo qual corriam ribeiras de água doce que desembocavam
em magníficos prados; vilarejos se dispunham nessa área, à direita e
à esquerda dos rios, e uma pequena montanha se erguia nas
proximidades.
Criteriosamente examinando o lugar, Shamiram ordenou que da
Assíria e de diferentes partes de seu império fossem trazidos
quarenta e dois mil trabalhadores e, entre estes, seis mil artífices de
ferro, bronze, pedra e madeira, expertos em seus ofícios. A ordem foi
cumprida e, quando todos esses homens chegaram, deram início aos
trabalhos construindo um aqueduto com pedras maciças e compactas,
cimentado com areia e argamassa, de considerável comprimento e
altura. No futuro, nas fissuras da estrutura, bandidos iriam se
entrincheirar, usando-as como refúgio e esconderijo...
A imperatriz dividiu a multidão de trabalhadores em grupos e para
liderar cada um nomeou mestres seletos; através de notáveis
esforços, assim em poucos anos foi completada a construção de uma
cidade com palácios requintados, de dois ou três andares, ataviados
com diferentes tipos de pedras multicoloridas e cada qual provido de
janelas conforme a precisão, sem falar nos muros sólidos e nos
portões de bronze. As seções foram divididas em ruas largas e
erigidas em diversos pontos casas de banho, porque a soberana
valorizava em muito as necessidades de higiene. Uma parte do rio
principal foi desviada através da cidade para servir às necessidades
locais e para irrigar parques e jardins.
Shamiram fez questão de adornar as diferentes áreas da nova urbe
com pés verdejantes de toda espécie de frutas e folhagens, plantando
vinhas numerosas e férteis. A cidade murada se tornou magnífica e
gloriosa, dirigindo para ali uma elite assíria e os habitantes das
aldeias. Permitiu que surgissem construções espantosas, nas quais era
difícil entrar ou sair, labirintos usados para seus rituais particulares,
onde profanos não seriam admitidos, sob o risco de enlouquecerem
nos corredores intricados.
Do lado do penhasco voltado para o sol, cavou diversas câmaras; e
sobre parte da superfície do rochedo, de forma suave, inscreveu
textos; deixou estelas e ordenou que memorais fossem escritos a seu
respeito. Julgou que nunca seria esquecida, por mais curva que fosse
a memória dos homens, e nesse tempo negara qualquer possibilidade
de casamento, assumindo de uma vez somente para si o trono da
Babilônia.
- Não veem que ela está se excedendo? Gasta todos os recursos de
nosso império em terras bárbaras. Dessa maneira, em breve não
teremos mais ouro na Assíria. Irá todo para os armênios.
- Para cativar um povo, é preciso fazer algo por ele. Nosso império
nunca irá durar se não cativarmos os outros povos. Estude o passado,
Tiglath. Irá ver que todos os impérios anteriores ao nosso caíram
pelo excesso de ambição e centralização. É preciso espalhar para
durar.
- Só que para tudo existe um limite. Seria melhor que tivéssemos um
homem, um pulso forte para dar limites a Shamiram, que sequer é da
nobreza.
- Sou da opinião que não se nasce nobre. Nos tornamos nobres, e ela
provou que é com seus feitos e sua coragem. Não devia duvidar dela.
Antes duvide de si mesmo.
- O caso da morte de Ninos nunca foi esclarecido. E ela tem
amantes. Isso não teria importância se não afetasse o equilíbrio do
reino, mas afeta.
- É humilhante demais ser comandado por uma mulher?- No
Conselho dos sábios da Babilônia, as opiniões se dividiam; quem
permanecia em silêncio era o prefeito e patriarca dos medos,
encarregado de cuidar da capital na ausência da soberana, o mago
Elburz, que viera de uma terra de pastores, criado entre ovelhas,
cabras e vacas, tendo chegado na Assíria adolescente e estudado
muito para adquirir sabedoria e se aprimorar em sua arte, juntando
esse conhecimento à feitiçaria mais rústica que trouxera de sua
pátria.
Apesar da confiança que Shamiram depositava nele, considerando-o
seu braço direito justamente por ser como ela, alguém de origem
humilde e um adepto da magia, planejava se apoderar do trono, só
não tivera até então confiança de que poderia vencer sua protetora, o
que adquirira por fim naqueles dias, decidindo dar início à batalha
que decidiria os destinos do império assírio.
Alto, usava uma barba curta e cabelos longos e vultuosos, pretos,
sua pele morena, e tinha um físico que já atraíra a imperatriz, que
não ousara ir adiante talvez porque seus olhos eram característicos de
um espírito que ela não conseguiria dominar: olhos de fogo, dignos
de um adorador do astro-rei, certa noite se fechando em seus
aposentos na escuridão absoluta e, respirando profundamente após
traçar no chão, com sua mente, dois círculos, movendo uma mão de
cada vez, um vermelho e um dourado, convocando espíritos solares,
o que produziu uma fúlgida e repentina claridade que espantou as
trevas. Dois seres de faces redondas e cabelos incandescentes, mãos
que pareciam decantar magma nos crisóis de vidro dourado e espaço
infinito que carregavam, asas violetas nas costas, se manifestaram
para atender seu pedido, emanando raios de ouro que iam até o limite
da porta de sua morada, não ultrapassando-a; ainda assim, no dia
seguinte alguém do andar de baixo comentaria que acordara no meio
da noite com a impressão de já ser meio-dia...
- O que deseja? Viemos por uma requisição que imaginamos ser
importante.- Disse uma das criaturas, fitando Elburz de um modo
que o levou a ficar petrificado, sem no entanto recuar.
- Nobres espíritos do sol, quero que queimem o corpo e a alma da
imperatriz Shamiram, que se excedeu em suas ambições em seu
governo da Assíria.- Requisitou o mago.
- Não costumamos interferir na realidade humana, com seus tolos e
vãos jogos e negócios. E não tomamos nenhuma atitude por pura
ambição de quem nos evoca.- Aquelas palavras do outro espírito
solar, que parecia ter uma personalidade mais severa, fizeram com
que engolisse a seco, enquanto começava a suar e a sentir um calor
interno inacreditável. Sua pele ficaria muito bronzeada depois
daquele encontro.- Sei que é movido pela cobiça. Mas se por outro
lado ela tiver cometido muitos crimes, faremos o que nos pede.
- Agradeço sua compreensão, nobre espírito da casta real dos
planetas.- E as duas presenças fecharam os olhos e deram a
impressão que estavam concentradas, examinando e julgando as
ações da imperatriz; quando os reabriram, uma luminosidade
fortíssima atingiu o mago, que entretanto não conseguiu cerrar os
seus olhos.
- Decidimos que pela morte do nobre Ara, Shamiram será punida.
Por suas paixões desregradas e pelo assassinato de Ninos também
sofrerá as consequências. Regozije-se, homem; a vitória lhe foi
dada.- Elburz escancarou seu sorriso. Ao mesmo tempo, em Ayrarat,
a soberana dos assírios acordou de repente, mas percebeu que não
sentia sua carne; era uma sensação diferente, e por um momento de
leveza e liberdade. Entrementes, isso se transformou em medo e peso
quando viu seu corpo deitado em seu leito, nos braços de um escravo
adormecido, e imóvel, parecendo ter cessado de respirar. Não tinha
um coração naquela hora, mas este teria parado naquela situação.
Faltavam ar e paz; manifestaram-se então, cada um de um lado de
sua alma, os dois espíritos solares, e à frente discerniu surpresa a
figura do prefeito e patriarca dos medos, encarando-a com
severidade.
- Mas o que está acontecendo aqui??
- É o seu fim, Shamiram. Seus excessos serão punidos pela mesmo
fonte que permitiu sua existência por todos estes anos. O sol não
pretende mais nutrir uma filha que desrespeita seus irmãos. Até a
paciência do Pai tem um limite.
- É impossível...Só pode ser um pesadelo!
- É real, minha imperatriz. Não lamente. Esse dia chega para todos
nós.
- É impossível que seja Elburz. Ele nunca esteve à minha altura,
ainda que eu o apreciasse. Somos semelhantes em caráter, e ele não
me trairia.
- Somos mesmo semelhantes. Você não levou em conta portanto
como é realmente.
- Seja quem for, custe o que custar, vou voltar para o meu corpo!
Isso não faz o menor sentido.- Convocou seus espíritos aliados, em
sua maioria criaturas das sombras, que fugiram de imediato ao verem
os espíritos do sol; Shamiram ficou espantada, ainda mais quando
aqueles dois liberaram uma luz que a cegou e a emudeceu,
permitindo que gritasse somente para si mesma; seu corpo astral foi
se entorpecendo e se desmanchando, perdeu toda a noção de si, e
quando recobrou a consciência, não tinha ideia de quanto tempo
depois, achava-se entre os escombros da noite.
Anos se passariam em uma condição deplorável nas trevas, sem que
encontrasse outra alma além da sua; o sol definitivamente a excluíra
de sua presença, tornando-a órfã de toda a luz. Nenhuma esperança e
em tudo ausência; não tinha sequer para onde caminhar, pois não se
via nem mesmo um chão onde colocar seus pés, muito menos uma
estrada pela qual seguir. O silêncio se abria para o instintivo, sem
ter porém para onde direcionar, no abandono da lógica onde
inventar o hoje era esquecer o amanhã, na expectativa do
passado, que se fora sem deixar rastros. O raciocínio firme se
tornou um estado atraente, só que distante demais, os
pensamentos trêmulos, indo e vindo muitas vezes sem um
conteúdo preciso, uma massa amorfa e sem som que se introduzia
mente adentro para enganar o poço dos momentos; abraços,
beijos e amantes...Cabelos negros enovelados em cabelos de
ouro, olhos que se perdiam para fitar um horizonte maciço, que
na sequência se dissolvia, dizendo adeus sem loquacidade.
Tentando passar a vida, uma neblina branca se confundia com
grãos de areia que pairavam pelo ar, sem formar um solo;
continuaria sem ter onde pisar, diminuindo o ritmo à medida que
avançava, e quando se dava conta seus passos davam para trás e
um cansaço devastador a derrubava, sem deixá-la pensativa, um
sol duro se manifestando nas recordações, e vinha a secura do
deserto; na Babilônia vozes em dezenas de línguas diferentes,
nenhuma compreensível. Na Terra seu império já ruíra, vindo
uma ventania de urros, estertores de desespero, com um pássaro
de asas cortadas tentando voar; ao abrigar o animalzinho em suas
mãos, este se transformava em uma serpente, que se enrolava em
seus braços e após o susto desaparecia, oculta nos ossos da
brumas. O silêncio retornava; mas que silêncio era esse? Espaço
e tempo em profusão, um exagero para uma consciência limitada,
onde as veias pulsavam e o sangue escorria para fora, impuro,
perguntando sem encontrar respostas, com ou sem palavras; as
entranhas ouviam, o coração não entendia. A escuridão começava
a ficar brilhante...E depois se apagava, deixando uma desilusão
totalizante e incompreensível. Sua ausência dilacerada em si
mesma lentamente afagava seu útero, vazio, e que ficaria assim
para sempre, sem um amuleto a reluzir no oceano para guiá-la
por ondas fundas e sem definição, o perigo nas grutas que tinham
interior mas não entrada, onde se aprofundava sem perceber, e
depois não conseguia sair, presa tinha a impressão que por eras
inteiras, vendo e não vendo passar o mundo, o que intuía com
uma percepção disforme. Nas cavernas os gritos do Inferno, que
se manifestavam como uivos despedaçados, desmembrando o
silêncio, e quando cogitava ter companhia tudo ficava outra vez
mudo; a natureza tinha que ser muda, ao contrário do ser
humano. Uma natureza que não permitia amor, mas que deixava
saudades, tremeluzindo os olhos de morcegos que depois fugiam
para longe, entre insetos velhos e enrugados. Temia a passagem
não sabia do quê, pois não havia nada a passar; a realidade era
um continuum trêmulo, o mais apavorante consistindo no fato
que este se fechava quando ameaçava abrir e se abria quando
anunciava um fechamento. O bolor no tempo não fazia tanto
sentido, o limo de espaços percorridos estava disperso, sua alma
valia pelas aflições de todas as outras que conhecera, o horror
ecoava nos toques incertos, onde não havia paredes. Um vaga-
lume passava, e a espada logo atrás perfurava seu ventre, sem
deixar saltar o alívio da morte, do fim; não havia fim: essa era a
maior razão do desespero. A coragem faltava, e não existia meio
de findar com o sofrimento; clamaria por quem? Esquecera-se
dos nomes de seus deuses e espíritos protetores; e havia dias em
que a lascívia tomava conta de seu ser, não havendo ninguém
para saciá-la. Olhos no medo; para qualquer canto ao qual
lançasse sua vista, não havia confiança. Onde estava a rainha?
Como podia ficar daquela maneira? Como podia ser tão indigna?
A roda tremeluzia e se apagava, uma mão interferia e cessava
com o giro; outra mão, enrugada, fazia com que rodasse em
sentido contrário. Pés pisoteavam seu peito, que ardia; deitava-se,
mas não tinha como descansar. Sono? Nenhuma possibilidade de
repouso. Lençóis desconjuntados e cinzentos se avolumavam
sobre o seu corpo inexistente e o atravessavam, desaparecendo
como se nunca tivessem existido; na verdade, nunca haviam
existido. Fluxo, fluidos, passagem; para onde ir? Nenhum rumo.
- Shamiram...Ouço seu desespero.- Enfim, após um tempo
insuportável de ausências, uma voz que não vinha de dentro se
manifestou; deixou os ouvidos mais atentos, tentou perceber se não
era apenas uma impressão, e uma alegria tomou conta da superfície
de seu ser, ainda que não tivesse ânimo para ficar de pé, pois
desistira de caminhar. Ficou imóvel, esperando que esse outro (um
outro!) entrasse em contato definitivo.- Não precisa me temer.- Na
escuridão, algo principiou a tomar forma; não havia meio de a
princípio não sentir medo.
- Quem é você?- Tomou coragem para indagar; o desconhecido
tocou seu rosto.
- Maldita seja para sempre.- Asmodeus se revelou, trazendo consigo
uma proposta: convidou-a a ser a comandante de uma legião de
poderosos espíritos, os aralez, e junto a estes formaria um exército
com guerreiros humanos, coordenando combatentes de tempos
lendários, fortes mas indisciplinados, que tinham perdido suas almas
após suas mortes, em decorrência de promessas e acordos feitos em
vida; em troca, requisitava à imperatriz apenas a sua lealdade. Nas
ocasiões nas quais essa milícia se manifestasse na Terra, seria uma
força praticamente invencível, seus membros revividos
periodicamente pelos aralez, que não eram fáceis de ser abatidos.
Para seu júbilo maior, apresentou-lhe ainda Elburz em correntes, sem
deixar de lado algumas explicações:- Sua própria conduta ambiciosa
fez com que os espíritos solares o abandonassem. Eles não são como
eu: fazem exigências muito maiores. O resultado do pacto com essas
forças foi a destruição desse desafortunado mago, que pouco depois
de aniquilá-la foi envolvido em uma trama da qual não teve como
escapar, despido de qualquer proteção, pois você, por paradoxal que
pareça, de uma forma que ele não se dava conta, protegia esse
traidor.- Cabisbaixo, encarou-a com ódio e pesar; a raiva foi
retribuída: Shamiram se aproximou com um olhar carregado, belo e
traiçoeiro, distorcido e recurvo.- Entrego-lhe a alma dessa serpente,
mas pense que se por um lado ele a arruinou, por outro permitiu que
chegasse aos meus domínios e nos encontrássemos.
- Por que faz tudo isso por mim? O que ganha com a minha
lealdade?- Perguntou ao demônio, que das sombras principiou a
deixar que se destacassem, sobre um chão nebuloso que se formava,
aquelas criaturas que lembravam grandes cães de pêlos eriçados.
Elburz, de joelhos, começou a suar, tanto de medo como de um frio
que queimava seus músculos e percorria sua espinha, ao passo que
sua rival se engrandecia, percebendo que seu vigor e sua vontade
cresciam.- E como posso ter certeza que é realmente Elburz e que
não está me ludibriando?
- Analise por si mesma. Investigue os olhos dele, da forma mais
atenta que puder, ao contrário da última vez em que estiveram frente
a frente, e não se deixe levar por suas emoções. Verificará que não
estou mentindo. Com relação ao que ganho, notei que sua postura é
adequada ao tipo de condução que os aralez e os guerreiros que
quero que comande precisam. Tenho muitos afazeres e não posso dar
toda a atenção que desejaria a eles. Você irá me auxiliar, cumprindo
as minhas ordens primárias, e eu lhe darei poder sobre meus
soldados mortos, que se tornarão vivos quando necessário.-
Shamiram lançou novamente seu olhar sobre o mago acorrentado,
desta vez com toda sua atenção; a um certo ponto cerrou as
“pálpebras”, tentando evitar o que via por fora e enxergando e
sentindo na pele uma turbulência de cores e anéis afiados; respirou
fundo e leu no peso das correntes que não podia ser outra pessoa, o
que confirmou com um último e decisivo encontro de olhares. De
repente, os aralez rosnaram e saltaram sobre o inimigo, fazendo antes
o metal em pedaços e depois arrancando a carne para enfim morder e
roer seus ossos. Seria massacrado, a tortura se repetindo sempre que
se regenerasse, o que iria acontecer com alguma periodicidade;
deixando-o entregue a dores atrozes, deu-lhe costas.- Como pode
perceber, já começaram a obedecê-la...

- Eu não tinha outra escolha. Se não aceitasse a sua proposta,


continuaria vagando sem rumo por aqui até sabe-se lá quando.
- Acho que se deu conta portanto de onde tiro vantagem. Não tenho
nada a perder diante de alguém que já perdeu tudo. Só que agora
você tem muitas novidades à disposição...E também não tinha nada a
perder.
- Por já ter perdido tudo, como você disse.
- Recuperar é impossível, Mas terá mais, e muito mais.
- Não sei o que, mas não me importa, desde que não vire comida de
cães do Inferno como aconteceu com Elburz.- Notou um colar de
pérolas negras no pescoço, enquanto o inimigo era estraçalhado e a
insultava com as palavras mais chulas de seu repertório, sua língua
sendo uma das últimas partes carnosas do seu corpo a ser rasgada, e
uma das primeiras que se reconstituía para o recomeço do tormento.
Nos séculos seguintes, Shamiram tornaria a se manifestar com os
aralez e os seus homens por diversas vezes, de forma esporádica,
principalmente em lugares onde a luxúria era muito praticada,
sugando a vitalidade alheia e causando mortes e destruição de formas
diretas e indiretas, em certas ocasiões surgindo no meio de alguma
batalha para auxiliar os príncipes mais lúbricos e pervertidos.
Desaparecia em instantes após conceder a vitória a seu protegido do
momento, que assim se convencia que estava no caminho correto,
acreditando que pelo prazer sensual Deus ou os deuses se
manifestavam ao homem, e entrava após sua morte, se fosse digno,
para as hostes da antiga rainha da Babilônia; caso não fosse,
Asmodeus transformava sua alma em alimento, sugando-a por
décadas até transformá-la em um ovoide sem nenhuma característica,
dotado de uma vaga consciência, reintegrando-se tardiamente ao
ciclo da vida no máximo como um mineral.
A antiga imperatriz da Assíria e agora nova imperatriz de Aachen
estava em seu trono quando recebeu visitas: uma era um velho
conhecido; a outra um novo aliado, pelo que sentira. Uma presença
agradável a seu ver; estimulante até.
Ao prestar atenção em Bruce, se aproximando ao lado de
Asmodeus, uma velha sensação, depois de séculos, foi deslizar por
sua pele; tanto tempo sem um homem vivo! Não que os poderosos
guerreiros cedidos por Asmodeus a desagradassem, só que após
terem cedido suas almas ao príncipe demoníaco não tinham mais
personalidade, palavra e desejos pessoais, fazendo tudo o que ela
pedia; precisava de alguém com vontade própria, que inclusive a
desobedecesse um pouco. Embora ele não fosse um suprassumo de
beleza, carregava em si um núcleo precioso de ímpeto e verdades
interiores, um sumo que iria adorar sugar.
- Senhora dos aralez, este é Bruce Aleister, outro de meus servos.
Estou certo que se darão bem.- Asmodeus os apresentou e explicou a
ela sobre ele; estavam envolvidos por uma fumaça carmesim que foi
aos poucos se dissipando; Shamiram cruzou os dedos e sorria.
- Será um prazer tê-lo como hóspede em minha corte pelo tempo
que for, senhor Aleister! Que todos os dons e favores lhe sejam
concedidos. Sinta-se em casa.
- Estou certo que me sentirei, minha senhora.- Deixou livre um
sorriso lascivo.
- Na vida precisamos traçar nossos próprios caminhos. Fico feliz
que tenha deixado as amarras da Ordem de Cernunnos, sua alteza já
me falou a respeito dela. O caminho da magia é mais belo e
grandioso quanto mais nos afastamos de dogmas e regras, quando
nos tornamos autônomos para explorar o universo por meio de
nossos destinos. Que todas as cortinas se abram para você.
- E será uma honra aprender com a senhora. Sei que com tantos
séculos que transcorreram desde que encontrou sua alteza, deve ter
aprendido muito e possuir uma sabedoria incrivelmente superior à
minha. Curvo-me ao seu conhecimento.- E se inclinou
respeitosamente; contudo, Shamiram percebeu a falsidade daquele
ato, o mago tentando ocultar o sorriso repleto de sarcasmo com a
cabeça baixa e os cabelos caídos; teria ficado furiosa se fosse
verdadeira submissão, pois não queria mais escravos e sim alguém
para estar ao seu lado; não ficou pois ele evidentemente estava
fazendo um jogo, e isso a divertiu.
- Decidam ou não unir forças, vou lhes dar uma ordem. Quero que
encontrem Sarah, a alma de mulher que há tanto tempo procuro.-
Asmodeus interveio enquanto Bruce se reerguia.- Não admitirei mais
atrasos da próxima vez que me chamar.- Encarou o mago.
- Compreendo, alteza. Não medirei esforços.
- É melhor que assim seja.- O demônio se revestiu de uma fumaça
cinzenta e fuliginosa antes de desaparecer; quando se foi, a antiga
imperatriz da Babilônia e Aleister não negaram a profundidade dos
olhares de um para o outro.
- Será um prazer tê-lo em minha corte. Se desejar, daremos forma a
uma única chama, que irá queimar pelos prados desta região. Como
pensa que irá me cativar?
- Que tal dessa forma?- Ele sorriu, formou um círculo mágico
amarronzado ao seu redor movendo o braço direito e das letras que
tinham sido escritas ergueram-se alguns elementais troncudos, cujos
rostos pareciam feitos de cascas de árvores e os pés de raízes, seus
olhos de âmbar, trazendo em suas mãos pedras preciosas.- Ou ainda
acha que é muito pouco?
- São lindas. E eles também são cativantes!- Saiu de seu trono e
acarinhou as criaturas atarracadas, que se acercaram mais,
desfazendo pouco a pouco seus receios e a seriedade de suas faces,
uma inclusive rindo por sentir cócegas ao ser tocada. Depois a
imperatriz tocou os diamantes, rubis, ametistas, lápis-lazúli,
esmeraldas e outras.- Como conseguiu que trouxessem tantas
riquezas?
- São pedras que estes espíritos guardam em suas cavernas e nas
profundidades da terra, que cederam a mim quando os submeti. Mas,
se quiser, podem ser todas suas. E eles também trabalharão em prol
da sua causa, nova imperatriz de Aachen.
- Já tenho meu exército, e não quero que esses pequenos se
machuquem.
- Não os subestime pelo tamanho. Garanto que são muito
poderosos.- Um inflou o ventre, numa tentativa de parecer maior,
levando Shamiram a rir. O elemental liberou uma gargalhada na
sequência; gostavam mais dessa nova senhora, Bruce manifestando
uma expressão severa.
- Você é mais sábio do que dizia ser. Acho que superestimou os
meus conhecimentos. Apesar dos séculos, admito que você parece
ser um mago de primeira linha, tão poderoso quanto eu. E sua força
sinto que irradia de todo o seu ser: sua aura, seu corpo, suas palavras!
Nada é gratuito; nada é jogado fora. Estou de acordo que será um
prazer trabalhar com Bruce Aleister. De hoje em diante, me chame
apenas por Shamiram. Não serei sua senhora; seremos amigos.
- Não vejo a hora de ter realmente a sua amizade.
- Você já a tem. E vamos nos conhecer cada vez melhor.-
Aproximou-se e colocou as mãos sobre seus ombros; depois
aconchegou os lábios, o rosto dela próximo produzindo nele uma
violenta tensão que o deixava excitado. As paixões agitavam seu mar
interno; os olhares se mesclaram e, enquanto os elementais se
retiravam sob a ordem do mago, que não queria bisbilhoteiros ao
perceber a curiosidade daqueles espíritos, que desiludidos foram
desaparecendo, ela roçou sua perna na dele, e entregaram-se ao
primeiro beijo. Até Ara se tornaria em breve uma lembrança
esquálida.

SÉTIMO ATO

Memento Mori

- Vi quatro anjos de pé nos quatro cantos do mundo, retendo os


quatro ventos; Bóreas, Nótos, Euros e Zéfiro acorrentados para que
nenhum vento soprasse sobre a terra, nem sobre o mar, nem contra
árvore alguma. Um quinto outro anjo subiu ao lado do sol nascente,
tendo o selo do Deus vivo, e clamou com grande voz aos quatro
anjos: “não danifiquem a terra, nem o mar, nem as árvores, até que
selemos em suas frontes os servos do nosso Deus vivo”. Ouvi o
número dos que foram assinalados com o selo, cento e quarenta e
quatro mil de todas as tribos dos filhos de Israel: da tribo de Judá
havia doze mil assinalados; da tribo de Rúben, doze mil; da tribo de
Gade, doze mil; da tribo de Aser, doze mil; da tribo de Neftali, doze
mil; da tribo de Manassés, doze mil; da tribo de Simeão, doze mil; da
tribo de Levi, doze mil; da tribo de Issacar, doze mil; da tribo de
Zabulom, doze mil; da tribo de José, doze mil; da tribo de Benjamim,
doze mil assinalados. E por que Israel? Porque Israel é o povo
sagrado, abençoado por Deus, e não se refere apenas aos judeus, e
sim a todo aquele que Deus consagra. Este é o verdadeiro significado
de Israel, da bravura de Jacó, aquele que lutou contra o anjo, o
homem que domina suas próprias paixões e que não irá se apavorar
quando surgir uma assustadora multidão, que ninguém poderá contar,
de todas as nações, tribos, povos e línguas, que ficará de pé diante do
Trono e em presença do Cordeiro, com palmas nas mãos e trajando
compridas vestes brancas, clamando com extraordinária voz: “nossa
salvação pedimos ao nosso Deus, que está assentado sobre o Trono, e
ao Cordeiro”. Todos os anjos estarão em pé ao redor do Trono e dos
anciãos e dos quatro seres viventes, e irão se prostrar e adorar a
Deus; dirão Amém. Louvor, glória, e sabedoria, e ações de graças, e
honra e poder, e força ao nosso Deus, pelos séculos dos séculos. Um
dos anciãos virá me perguntar: “estes que trajam as compridas vestes
brancas, quem são eles e donde vieram?”, e eu responderei: “Meu
Senhor, tu sabes. Estes são os que vêm da grande tribulação, e
lavaram as suas vestes e as branquearam no sangue do Cordeiro. Por
isso estão diante do trono de Deus e o servem de dia e de noite no
seu santuário; e aquele que está assentado sobre o Trono estenderá o
seu tabernáculo sobre eles. Não há o que temer. Nunca mais terão
fome, nunca mais terão sede; nem cairá sobre eles o sol, nem calor
algum; não precisarão mais derramar água da fronte porque o
Cordeiro que está no meio, diante do Trono, os apascentará e os
conduzirá às fontes das águas da vida; e Deus lhes enxugará dos
olhos toda lágrima. O homem que teme, nesse caso, está sob a
influência de Satã, que lhe inspira dúvidas e temor.”- Bradava no
centro de uma praça, em frente à catedral da cidade, um velho de
barbas brancas como seu traje, acompanhado por duas jovens, que
rodopiavam ao seu redor, em êxtase, uma morena de cabelos curtos e
olhos azuis e outra loira de cabelos longos e olhos castanhos,
também trajadas em alvura; a um certo ponto, pararam de girar e
retiraram de seus bolsos recipientes repletos de hóstias. O povo que
se acumulava em volta parecia hipnotizado, sem questionar ou recear
o que testemunhava.- Santo, santo, santo! Sagrado seja o senhor dos
exércitos! Maximila e Priscila irão ministrar os verdadeiros
sacramentos para vós, pois o que a Igreja faz atualmente é cortar a
carne do Cordeiro e vendê-la a altos preços ao Demônio! Recebam o
verdadeiro corpo de Cristo, que hoje só pode ser cedido por
mulheres, e quando são virgens e imaculadas, como é o caso destas
duas, porque os homens, que dominam a Igreja, tornaram impuro o
Sangue.- Aquele homem se chamava Sotero, líder da seita herética
dos soteristas, que andava com aquelas duas e um séquito de outras
mulheres coordenando cerimônias de sacramentos, que em sua
Ordem eram ministrados apenas por elas, e fazendo profecias; os
olhos de ambas ainda davam a impressão de rodopiar.- Se comerem
deste corpo ficarão livres da influência da Besta!- Apontou para as
hóstias, sem tocá-las, o que não podia fazer por ser do sexo
masculino.- A mesma que reside na Igreja que julgam santa, mas que
se tornou o antro dos demônios!
- Não deem ouvidos a esse homem! É um herege com pretensões de
profeta!- Enfim o pároco se manifestou, irrompendo entre os
populares e indo encarar o rival; Sotero mantinha uma seriedade
severa e convicta.- Não veem que o que estes perdidos dizem não faz
sentido? Mulheres não podem ministrar sacramentos! Não
despenquem na impiedade, meus filhos.
- O que eles fazem é pela primeira vez ouvir uma voz sensata.-
Falou Priscila, a loira, que o padre sentiu que o tentava pela luxúria.
- Não ouçam esse homem! É o que ele é, apenas um homem, ainda
que se julgue investido de uma função sagrada. Venham conosco, e
nós os faremos dignos e dignas.- Disse Maximila.
- Mas se não somos mais puras, como faremos?- Indagou uma
mulher de meia-idade.
- Não importa. Em comunhão conosco, tornar-se-ão puras.
- Não cedam às palavras do Demônio!- Nessa hora, mesmo com o
sol do meio-dia e o clima ameno, um relâmpago desceu do céu e
fulminou o sacerdote, dando um susto em todos os presentes, menos
naquele trio.
- Estais vendo?- Indagou Sotero.- O castigo de Deus se abateu sobre
o verdadeiro ímpio. Sigais conosco e os verdadeiros tesouros de
Deus estarão disponíveis.- Após um novo batismo sem água, apenas
na afirmada pureza de espírito, e uma comunhão feita sem vinho,
sacramentos administrados pelas duas mulheres, a multidão, incitada
por aquele pretenso profeta, investiu com sua fúria, a catedral foi
saqueada e o bispo local terminou assassinado. Com algumas
variações, esse processo se repetiria por diferentes cidades e vilarejos
da região.
Como era previsível, prefeitos e gente que não fora cativada pela
heresia enviaram pedidos de socorro à Igreja, que não ficou
indiferente. Charles e Antenor foram enviados para irromper no
castelo de Sotero, que um dia fora um austero senhor feudal, tendo
enlouquecido, acreditava-se, devido à prática da magia. Iam a pé, o
lusitano sob uma certa tensão, o albino tranquilo e se divertindo na
expectativa da missão, não abrindo mão de irritar seu parceiro:
- Quem hesita ao derramar o sangue de hereges não deveria se
considerar um cruzado.- Antenor não respondeu à provocação,
permanecendo em silêncio como durante quase todo o trajeto, ciente
que os padres tinham enviado os dois juntos não por acaso. Se eram
sacerdotes cristãos acima de tudo, precisavam se harmonizar, não
cultivar rusgas; por outro lado, como podia cultivar amizade por
alguém com convicções tão opostas às suas? Cristo dissera para amar
os inimigos, pois ao amar apenas os amigos não haveria mérito.-
Quem não compreende que os dogmas da Santa Igreja são verdades
voltadas à preservação da vida, leis de Deus, não leis dos homens,
não merece viver, porque não compreende o mecanismo essencial da
vida, que é simples, não necessita de exílios no deserto e de jejum.
Você não deve saber, mas homens como Orígenes se isolavam para
comer somente ervas cozidas na água da chuva, que era a única coisa
que bebiam; a troco do quê? O filho de Deus comia peixe e bebia
vinho! São os hereges que criam falsas normas e se mutilam em
troca de uma sabedoria que não é a de Deus. Cristo se sacrificou por
nós. Ninguém mais precisa se sacrificar. Quem se penitencia não é
cristão, pois não crê na remissão dos pecados e nem na ressurreição
dos mortos. O ascetismo é heresia.
- Mas isso é motivo para que sejam varridos do mundo? São todos
seres humanos, criados à imagem e semelhança de Deus, assim como
nós.- Não aguentou mais manter seu “voto” de silêncio e falou,
fazendo com que o francês, que alcançara seu objetivo, ampliasse seu
sorriso cínico.
- Não seja simplório e ignorante. Eu, que nasci em um vilarejo
miserável, depois que entrei para a Igreja não parei mais de estudar,
tanto as doutrinas santas como as dos hereges, neste último caso para
compreender sua insensatez e ter argumentos para destruí-las. Leia
mais, não se limite ao que dizem. Está escrito que os eleitos serão
poucos.
- Ex inimico cogita posse fieri amicum...Como sabe se leio ou não
leio, e que autoridade tem para dizer que sou um ignorante na Fé?
Você não me conhece, e pelo visto nem faz questão, tirando
conclusões a priori. Compreendo o porquê dos padres nos terem
colocado lado a lado e sozinhos desta vez, mas vou ser sincero: está
difícil suportar; é um duro teste.
- Você também não me conhece. Não sabe o que passei para me
tornar um cruzado. Deveria ao menos me respeitar.
- Como se você respeitasse alguém.
- Respeito os homens, abomino o pecado. Você pelo visto não
respeita os homens, apenas o pecado, pois conclui que todos devem
ser fracos a ponto de serem aceitos com erros e limitações, que todos
cedem ao pecado e que por isso se perdoem os pecadores! É de uma
tremenda pobreza de raciocínio.
- Não é tão simples assim. O que penso é que teríamos que fazer um
esforço para perdoar, pois Cristo disse que deveríamos perdoar
setenta e sete vezes; tentar tornar nosso inimigo um amigo; amar os
nossos semelhantes como a nós mesmos, independentemente do que
façam. Quem nunca pecou que atire a primeira pedra.
- Digo que seu modo de pensar é pobre porque, apesar de soar
bonito, não funciona em nosso mundo. Os demônios aumentam a
cada dia em quantidade e força; será que as suas palavras serviriam
para persuadi-los?
- Não falo em mudar os demônios, e sim em salvar os homens.
- Mas são os homens que atraem os demônios! Não seja ingênuo. O
mundo sangra porque a humanidade retalha a terra; nada ocorre
gratuitamente. Deus não deixa nada impune. Se as pessoas fossem
justas, Ele permitiria que os demônios se manifestassem?- Não
adiantava continuar discutindo; Antenor deixou Charles com seu
sorriso, que acreditasse ter vencido a discussão, e se calou
novamente. Continuaram assim até alcançar, no início da noite, o
castelo de Sotero, os portões guardados, o que era evidência de
magia, por dois gigantes de pedra: golens; que ele alegava serem
criaturas santas, presenteadas por anjos escultores.
O luso preparava duas flechas que puxou de suas veias, limpas de
todo sangue, mas quando se deu conta o albino não se encontrava
mais ao seu lado, dirigindo sua espada contra a primeira criatura, de
rocha duríssima e sem face, superando os dois metros de altura, e
mesmo assim cortando sua cabeça; ondulante, lançou-se sobre o
segundo, mais baixo, na verdade uma gárgula de pedra com
aparência de demônio voador, que se alçou para o alto, recebendo
então as setas precisas do outro cruzado, que perfuraram a rocha com
facilidade; ainda assim não o derrubaram, do mesmo modo que o
outro decidiu continuar a lutar mesmo sem uma cabeça. Afinal, se
não tinha olhos, nariz ou boca, para que precisaria de uma?
- Eu cuido do voador!- Antenor, que pensara em elaborar um plano,
já havia se dado conta que não era mais possível; Charles não
manifestou nenhum temor diante do golem, que apesar de muito
rápido e forte para um humano comum, nunca conseguiria acertá-lo
com seus socos:
- Veja só...Uma estátua que acha que tem vontade própria! Vamos
colocar as coisas no lugar.- Pareceu ter sido um único movimento de
espada; porém foram dezenas, os pedaços de pedra se espalhando
inertes pela terra. Quanto à gárgula, uma sequência de flechas
disparadas com energia a aniquilou.- Poderia ser sempre assim,
inclusive com os hereges.- Não se furtou de criticar o colega ao
término da luta.
- É diferente acabar com artefatos de feitiçaria, ainda mais com um
voador e traiçoeiro, e lidar com seres humanos.
- São esses “humanos” que criam esses artefatos, que não seriam
nada sem os poderes do Inferno. Eu diria que não são mais humanos!
Uma vez que alguém vende sua alma ao Diabo, torna-se seu lacaio e
portanto abdicou da humanidade para se tornar um demônio.
- Não vejo bem assim, mas respeito o seu ponto de vista.
- Respeita...Será mesmo?- E pensou, enquanto exibia um irritante
sorriso: “Seria muito bom se ele fosse possuído. Apesar que acho que
não vai demorar muito; com esse jeito certinho, esses conceitos tão
abertos, liberais, deve ser um dos maiores pecadores! Um dia esses
pecados se voltarão contra você! Essa tolerância excessiva que não
leva a nada em nosso mundo!”, ao cogitar a morte de Antenor, um
frêmito de prazer percorria sua pele; mas teria que se conter até que o
rival fosse possuído, e que não morresse antes. Entraram sem
cerimônias no castelo dos hereges, derrubando os portões e dando de
cara, no primeiro espaço, com mais de cem maltrapilhos, uns
andando e conversando, outros estendidos sobre um tapete vermelho,
dormindo, rezando, falando ou simplesmente relaxando, e um
terceiro grupo comendo em uma grande mesa de vidro e madeira,
espalhados por um amplo saguão de paredes finamente decoradas
com tecidos bernes e discretas pinturas, à luz de lâmpadas a óleo
contidas em recipientes muito bem trabalhados e velas em cruzes;
olhares e exclamações de espanto foram inevitáveis:
- Mas como conseguiram vencer os guardiões sagrados??
- São demônios com aparências humanas!
- Deus nos proteja!
- Fiquem calmos. Nós...- Contudo, a tentativa de diálogo por parte
de Antenor foi interrompida pela ação de Charles; bloqueou sua fala
ao ver o outro cruzado com um braço pingando sangue em sua mão
direita e a espada manchada de vermelho na outra.
- Que sabor mais amargo! Só poderia ser de um herege.- Disse o
albino ao levar à sua boca o sangue que pingava, deixando seu
companheiro embasbacado; em segundos, passando feito um tufão
de lâminas, imperceptível a olhos humanos comuns, o francês
semeou o horror entre os pobres indivíduos ali presentes, não só
tendo cortado o braço que segurava como retalhando muitas outras
partes de corpos, entre orelhas, narizes, dedos, pernas e outros
braços. Gritos de dor e medo estouraram por todos os cantos;
correria, pedidos de socorro a Deus e aos homens, desespero e
cólera; alguns tentaram se lançar contra os dois guerreiros e só assim
a paralisia do luso, provocada pelo choque da cena, foi quebrada: não
teve coragem de causar mal àquelas pessoas, apenas se defendendo
com golpes secos e afastando-os com as mãos, enquanto Charles
aproveitou para se divertir e se deleitar muito mais, cortando
membros e abrindo ventres e gargantas; pânico. Foi quando as duas
“santas” apareceram, Priscila e Maximila, em longos vestidos
brancos e com os olhares cravejados de um espanto ofuscante.
- Devem ser cruzados! Os guerreiros demoníacos criados pela
Igreja!- No alto de uma das escadarias que conduziam ao andar
superior também surgiu Sotero; apesar do massacre, parecia
tranquilo e certo de seu triunfo.- Pertencentes a diferentes
nações...Em um tempo em que na verdade os reinos se enfureceram;
chegou, porém, a tua ira, meu Deus, e o tempo determinado para
serem julgados os mortos, para se dar o galardão aos teus servos, os
profetas, aos santos e aos que temem o teu nome, tanto os pequenos
como os grandes, e para destruíres os que destroem a Terra!-
Enquanto Antenor tentava salvar os que julgava inocentes,
colocando-os fora de combate e postando-se à frente de seus corpos
sem consciência, mas ainda respirantes, Charles se lançou sobre os
três, bloqueado a princípio por uma cúpula que os envolveu e que
parecia ser feita de um fogo ora azul, ora transparente.- Este é o fogo
do Espírito Santo! Não poderá passar por ele, seu demônio!- Encarou
Charles, que não parecia carregar a mínima preocupação mesmo
depois de ser rechaçado pela primeira vez; seus olhos se cravaram
nos do velho herege, que sentiu um calafrio insólito percorrer todo
seu corpo, e nessa hora começou a ficar gelado, e o fogo à sua volta
também principiou a perder força. Priscila fechou os olhos e berrou;
Maximila arregalou os seus de pavor. O albino, com um semblante
insano e principiando a gargalhar, atravessou a proteção formada e
perfurou o peito de Sotero com sua espada, arrebentando-o e
arrancando seu coração, como uma carne espetada qualquer, depois
de levá-lo ao chão. Não parava de rir, um riso que ia cada vez mais
enfurecendo Antenor. Priscila correu, enquanto Maximila, em estado
de choque, foi a vítima seguinte, tendo sua cabeça decepada. Charles,
decidido a “brincar”, não a deixou ali, pegando-a com a mão que não
usava a espada e indo atrás, andando bem devagar, da que escapara;
visava infundir-lhe o terror do Inferno já em vida, preparando-a para
o castigo de Deus e o deleite de Satanás. Sorrindo, seguiu pelo
segundo andar do castelo:
- Onde você está, minha querida? A sua amiga quer falar com você.
Tem muitas profecias a fazer!
- Ele já foi longe demais...- Antenor por fim se decidira a colocar um
término nos excessos do companheiro; sem mais obstáculos
aparentes, os soteristas todos inconscientes ou mortos, se preparou
para partir no encalço do albino quando teve que se deter outra vez
ao sentir alguém às suas costas. Uma esfera de luz branca foi lançada
em sua direção e se desviou por pouco; quando aquilo tocou a
parede, queimou o que havia em volta e fez um buraco considerável.
- Um cruzado! Como sempre atrapalhando o nosso trabalho. O pior
é que são ignorantes soberbos que não têm a menor noção de suas
próprias naturezas.- Manifestou-se um homem em túnica e capuz
negros, sem adornos; seu rosto era de um azul absolutamente álgido,
como se tivesse sido pintado, seus olhos com pupilas cor de neve e
fundo escuro.
- Quem é você???
- Posso ser Cristo se quiser.- Abriu um sorriso sardônico antes de se
desfazer de sua forma anterior e sua feição tomar as aparências de
uma representação tradicional do Salvador, longos cabelos e olhos
claros em veste de carpinteiro; enganaria qualquer ingênuo. A
expressão de bondade e humildade, no entanto, era claramente
forjada.- Posso ser o que desejar, da mesma forma que vocês
acreditam no que querem, no que lhes é confortável, desconhecendo
a realidade.
- Acho que já sei o que aconteceu. Você é um mago negro que se
passou por Cristo ou por algum santo ou anjo e ludibriou toda essa
comunidade; Sotero caiu num erro comum aos magos, acreditando
piamente em suas visões. Mas por quê?
- Por que vocês trabalham para a Igreja? Tudo tem seu motivo.
- Quero que me explique, seu desgraçado. Por sua culpa dezenas de
pessoas morreram hoje, inclusive mulheres, crianças e idosos! Quero
entender o que leva alguém a fazer o mal. Por quê??
- Que eu tenha visto, foi seu companheiro que matou essas pessoas.
Eu não fiz nada.
- Nós só viemos para cá porque você provocou isso, porque incitou a
heresia. Mas qual era o seu objetivo? Pelo visto não era nos atrair.
- Sotero foi um bom idiota. Me cedeu este castelo, ao acreditar que
estava tratando com Cristo, e obtive assim um lugar tranquilo para
realizar as minhas experiências. Já fui médico e sou fascinado pelo
corpo humano! Ele nunca me negou alguns camponeses, enquanto o
que fiz foi propor o sacrifício de corpos em troca da ida das almas
para o Paraíso!- Voltou à aparência original.
- Mas como ele foi tão tolo para acreditar que Jesus iria pedir que
sacrificasse vidas inocentes??
- Ele estava certo da proximidade do fim dos tempos, e o Apocalipse
estimula certas loucuras. Por que não enviar alguns eleitos aos Céus
antes do final dos dias, poupando-os do sofrimento das últimas
tribulações e do enfrentamento com a Besta? Sotero ficaria, assim
como aquelas duas, pois estavam dispostos a se sacrificar pela vitória
do Bem, abrindo mão do Paraíso, por enquanto, para serem mártires
na luta contra o Anticristo. E onde estaria o Anticristo? É claro que
no Vaticano.
- E o que você fez com os corpos dessas pessoas?
- O que fiz e farei. Saiba que a Pedra dos Filósofos pode ser obtida
por materiais orgânicos, e nada é mais rico do que o material
humano, seus fluidos carregados do intelecto da criatura que ousou
desafiar o Déspota dos Céus, o terrível demiurgo, ao provar da
Árvore do Conhecimento; prefiro inclusive o sangue de mulheres,
que é até mais saboroso, pois Eva foi a grande rebelde! Ainda não
obtive o tesouro dos tesouros; mas estou certo que o terei em breve.
Além do mais, é prazeroso e interessante observar os órgãos, ver
como as coisas funcionam por dentro, e apesar dos meus mais de
cem anos de existência sempre tenho algo de novo a observar e
aprender.
- Como pode viver tanto sem o sangue de Cristo?
- Por meio do sangue e da vida dos humanos, é claro. Só que
pretendo obter a Pedra justamente para não necessitar de mais nada
externo; quando tiver ingerido o elixir, farei isso apenas por prazer,
para degustar das delícias do Paraíso recobrado.- Antes que aquele
feiticeiro adâmico terminasse de falar, Antenor atacou com suas
flechas, que foram desviadas pela mera intenção do inimigo, indo se
cravarem nas paredes atrás.- Não adianta me atacar. E mesmo que
conseguisse me golpear com essas flechas ridículas, não poderia me
matar.- Colocou o capuz para trás, revelando a ausência de cabelos
nas laterais, havendo somente uma faixa de fios brancos grudados do
centro da cabeça até o fim da nuca. Exibiu mais uma vez seu sorriso,
levando Antenor a engolir a seco.
- Ainda estou com a cabeça da sua amiga, mas já arranquei um dos
olhos! Quer que arranque o outro ou prefere que corte o nariz ou uma
das orelhas? Você escolhe! Seja boazinha e apareça, minha querida.-
Charles fizera o que declarara; e já sentira a presença da desesperada
jovem, mas fingia que ainda não a localizara. Sua crueldade ia bem
além do que aquela moça poderia imaginar, com requintes que a
fariam desmaiar em um instante em vez de meramente deixá-la
tremendo; só que o albino a queria bem consciente.- Por que não
fazemos um jogo? Você tira o seu olho, e eu o coloco na sua amiga.
Você fica com o dela! O que acha? Não eram amigas o suficiente pra
isso?? Talvez os hereges não consigam ser amigos um do outro de
verdade, eu entendo...Ainda mais mulheres! Acho que superestimei
vocês.
- Dizem que o demiurgo criou centelhas iguais em poder e diferentes
na essência, mas que a maior parte pecou; então “Deus”, para puni-
las, encerrou-as em diferentes formas, aqueles espíritos puros
transformando-se em astros, plantas, homens, animais e anjos, até
mesmo estes últimos sujeitos ao Bem e ao Mal, e as almas seriam
como nossos corpos, matéria, só que mais sutil, e nada haveria de
certo e permanente: inclusive no Céu os bem-aventurados seriam
vulneráveis aos pecados, e os demônios não deveriam ser inimigos
do Senhor pela eternidade. Contudo, a conversão dos espíritos do
Mal só teria lugar após uma quase infinita série de milênios, e
quando mais um novo mundo tiver se seguido a um número
considerável de mundos, não podendo existir um tempo sem
manifestação, afinal o Criador não pode ficar ocioso. O que acha
dessa doutrina? A ouvi uma vez do supervisor de um outro grupo de
“hereges”. Hoje o sangue dele circula em meu corpo, junto com o de
tantos outros...- Antenor continuava atirando flechas, normais,
envenenadas e incendiadas, sem o menor resultado, principiando a
ficar cansado, o adversário não se movendo um centímetro.- Acho
que estou começando a me cansar de só eu falar. Acredito que esteja
na hora de você falar um pouco e de eu atacar; será que vai conseguir
fazer como eu? É a minha vez.- Abriu os braços e das suas mãos
saltaram espinhos que se cravaram por todo o corpo do lusitano,
transpassando sua armadura; a princípio, não sentiu nada. As dores
vieram depois, acompanhadas de uma forte tontura e sua vista
começando a embaçar.- Pelo visto, problemas...Muitos problemas
para você.- Ao passo que Priscila, escondida atrás de uma estante
com livros, notava o silêncio. De repente Charles parara de falar.
Todavia, ao olhar para sua mão direita, percebeu que faltavam dois
dedos e urrou.
- Mas que horror! Como você grita! Por que não fica quieta?!- O
albino, à sua frente, agora simulando estar bravo, jogou a cabeça de
Maximila aos pés da outra.- Ah, meu Deus...Mais escândalo não! Por
que não um pouco de caridade e não cede um de seus olhos à sua
amiga? Ela vai dar para você os dedos dela, que ainda estão
inteirinhos.
- Seu monstro!- Estava desesperada, entre lágrimas, gritos e
gemidos.
- Eu, um monstro? Não foi o Cristo que disse que se um braço incita
a pessoa a pecar, que se arranque esse braço? Vocês hereges pecam
com os braços, os pés, os olhos...Estou só poupando vocês de um
trabalho que seria terrível de realizar por conta própria! Arranco os
membros para vocês e assim não têm mais como pecar! Não estou
sendo muito bonzinho? Talvez vocês precisem de alguém mais linha
dura. Se é o que prefere, tome!- E jogou a espada na direção de
Priscila, que sem parar de chorar ficou surpresa ao ver aquela lâmina
assassina tão próxima.- Agora é com você. Que se livre sozinha do
pecado.- E deu-lhe as costas.
- Vou matar você, demônio!- Cheia de ira e ódio, a jovem pegou a
arma e se lançou sobre Charles.
- Veja só...É mesmo uma menina má!- Lenta demais. O cruzado
desaparecera da sua frente e ressurgira em suas costas, já segurando
sua espada e um braço da moça, o que ainda tinha uma mão com
todos os dedos.- Mas não é assim que se manuseia uma lâmina dessa
categoria. Além de má, é tosca e ignorante. Mas o que poderia
esperar de uma herege? Pfff...- Suspirou.- Superestimei meeeesmo
vocês. Quem não tem inteligência para aceitar Cristo, vai ter para
quê?- E quando se deu conta, Priscila estava sem os dois braços.-
Pronto!- Cortou-lhe então as pernas e deixou o “resto” ali, gritando
de agonia.

No saguão, parecia ter chegado o fim de Antenor; em meio ao ódio


por Charles e pelo adâmico, que não conseguia atingir de forma
nenhuma, em pranto interno por si mesmo e pelos inocentes, quis
jurar por sua própria pessoa e por Deus que não deixaria aqueles dois
monstros saírem vivos, e mesmo que não lhe restassem forças, faria
o possível para cumprir essa promessa. Sangue escorria por todos os
furos em sua armadura; seu rosto, contorcido pela tristeza e pela
raiva, começava a se deformar.
“Acho que vou ter que parar de brincar. O outro deve estar voltando
e se não cuidar dele logo pode se transformar em algo muito pior.
Vou matá-lo agora.”, contudo, dessa vez os espinhos não
conseguiram perfurar a pele do cruzado. Tocaram sua superfície, para
depois caírem no chão; algo ocorrera. Seu corpo inteiro estava
ficando mais duro e resistente. “Merda...”, pela primeira vez, uma
flecha incendiada, veloz demais para ser percebida, atingiu o bruxo,
perfurando a palma de uma de suas mãos e fazendo com que a carne
ardesse. O cheiro de queimado se espalhou enquanto o inimigo
gritava; em Antenor, que sempre fora tão humano, seus olhos
começavam a perder o que tinham de humanidade, tomados pelo
vermelho. Refletiu enquanto continuava a atirar:
“Isso não devia estar acontecendo, se é o que estou pensando, se é o
mesmo o que quase aconteceu com o Malcolm! Não estou
percebendo nada ao meu redor. Todo o ódio, toda a maldade, estão
vindo de dentro! Mas será que não é assim?? Pelo menos pra mim,
talvez o demônio haja com sutileza, me fazendo pensar que ainda
estou no controle. Com tanta raiva, tanta vontade de destruir, de
vingança...Devo ter pecado demais em pensamento. Nunca matei
sem motivo, nunca roubei, nunca fiz mal consciente a ninguém. Só
sempre cumpri o que tinha que fazer. Por que então?? Por que o mal
está se apossando de mim?! De qualquer forma, tenho que vencer. E
não só esse mago como o Charles! Os dois são faces diferentes da
mesma moeda! Se o Charles sair vivo daqui hoje, não vai deixar de
matar mais gente inocente enquanto acha que só mata demônios e
bruxos! Não posso mais permitir isso, não vou deixar...Mesmo que
tenha que ser possuído por um demônio! Que esse demônio o
humilhe e o envie para o Inferno. Ele é pior do que dez demônios,
porque é humano. A maldade humana, de um ser que é ambíguo e
que deveria ser bom, porque tem liberdade de escolha, sempre será
pior do que a maldade de um espírito essencialmente maligno. Se
esse demônio me ajudar a matar Charles, cedo a ele. Faço um pacto e
vamos os três para o Inferno, tudo para que a humanidade fique livre
do pior monstro que conheci!”, uma fome e uma sede devastadoras
foram tomando conta de Antenor. Em suas costas cresceram asas,
semelhantes às de morcegos, porém eram três, de um negrume
brilhante, e voou envolto em chamas contra o adâmico.
- Droga, maldito!!!- Exclamou o bruxo, que estivera se esquivando
das setas atiradas em sua direção, sem evitar de ter seu peito
perfurado por uma lança flamígera que nasceu na palma da mão
direita do cruzado, fincando-o contra uma parede. Escancarou a boca
e os olhos, liberando um berro que durou alguns segundos, e quando
silenciou as pálpebras e os lábios permaneceram como estavam, bem
abertos, apagando dessa maneira.
“Vitória, mas a que custo? O que sei é que tenho que vencer...”, a
fome provinha do ódio, englobado por uma assustadora melancolia;
foi invadido por um pavor de si mesmo.
- Muito bem, muito bem...Meus parabéns! Eu sabia que esse dia iria
chegar. Deus não deixa que os pecados permaneçam impunes! É uma
lei da Criação, que caso contrário não faria o menor sentido.- Ouviu
a voz irritante de Charles, sentado no alto das escadas e aplaudindo
com ironia.- Mas você ainda não foi totalmente possuído. O que está
esperando?? Entregue-se de uma vez ao demônio para que ele venha
me enfrentar, enquanto sua alma despenca no Limbo ou nas caldeiras
do Inferno!- Brilharam os olhos maníacos do cruzado hermafrodita;
nesse momento, Antenor não conseguiu se segurar mais: seu urro foi
seguido de um tremor de terra e, mesmo com a imagem de Malcolm
passando de relance em sua mente, como se quisesse salvá-lo, uma
última mão estendida, um último pedido implorante para que
resistisse, às vezes chegando com a voz de seu pai, percebeu que
suas asas cresciam, assim como seus braços, ficando repletos de
garras, e em um êxtase com uma liberação de prazer orgasmática
percebeu uma sombra liquefeita que de seus pés fluiu para todo o
resto de seu corpo; trevas diluídas. Pela primeira vez notou
companhia: demônios bailavam em uma sarabanda infernal; uma
parte de seu ser estava convalescente, a mínima parcela que queria
manter uma consciência humana, mas que logo acabou subjugada;
manchas negras surgiram ao seu redor e salpicaram sua mente, que ia
sendo despedaçada, com imundícies incandescentes que iam
derretendo estes fragmentos; espalhou-se um estimulante, para seu
novo ser, odor de carniça. Enquanto o ex-companheiro se
transformava em puro ódio por ele, tendo como único motivo de sua
existência matá-lo e saciar sua fome, comparável à de alguém com
uma semana sem levar sequer uma migalha de pão à boca, Charles
permitiu que seu sorriso se abrisse vistosamente. Raciocínio,
sentimentos e outras emoções passaram a inexistir: e em sua nova
forma, depois de toda sua armadura ser arrebentada, tornara-se, isso
era passível de admissão, um monstro majestoso, de olhos dourados
contendo pupilas que recordavam diamantes negros (preciosidade
perdida), uma pele coriácea e rebrilhante que fazia lembrar o espaço
sideral, enormes asas membranosas (justo em alguém que tanto
rejeitara os seres alados), mãos e pés largos de seis dedos cada,
encerrando-se em notáveis garras polidas, feições reptilianas, crista
bipartida na cabeça e cauda bifurcada, superando os três metros de
estatura e com seis ou sete de comprimento.- Por um bom tempo
esperei essa oportunidade!- O albino lambeu os restos de sangue na
espada, de pronto se pondo a correr e saltar para evitar os ataques
que começaram a vir em sua direção, em impressionante velocidade,
como lanças que saíam das palmas das mãos da criatura que um dia
fora Antenor, cusparadas de saliva ácida e avanços com cauda, garras
e dentes afiados; além disso, voava, num primeiro rasante
conseguindo agarrar o cruzado pelo pescoço e levá-lo consigo de
encontro à parede que arrebentou; depois Charles logrou escapar, não
demorando para que o combate se transferisse para fora do castelo,
onde a liberdade de ação seria consideravelmente maior. Os dois
sendo rápidos, o possuído parecia levar vantagem com as armas que
materializava, cravando dardos e flechas no solo em suas tentativas
de atingir o oponente. “É emocionante! Há quanto tempo que não
tenho um monstro desse nível para abater? Hoje o Inferno irá sentir a
falta de mais um barão ou duque...”, extasiado diante do perigo, o
ofegante guerreiro ia devorando o ar à medida que sua musculatura,
se não crescia, se tornava mais definida e pronta para movimentos
precisos e vigorosos. Com reverência, se deixou arrebatar pelo
enlevo psíquico-corporal, certo do absoluto sucesso de sua missão,
presente e futuro; ao invés de se desviar, passou a cortar com sua
espada as lanças atiradas em sua direção e começou a duelar com as
garras do demônio, esquivando-se somente de sua cauda musculosa,
numa evidente demonstração que mesmo entre os cruzados se achava
em um nível de força e destreza superiores à média.- Vamos, seu
monstro! É só isso o que tem a me oferecer?? Um fraco que possuiu
outro fraco?! Não me decepcione!
Os dentes do possuído se cravaram com força no ombro esquerdo
do cruzado, que gargalhou ao invés de gritar de dor; em seguida
sacudiu seu corpo com a boca e o atirou longe, disparando outra vez
em fúria para onde o tinha lançado, não vendo quando o albino
rodopiou e atingiu com sua espada o ombro correspondente; o
inimigo guinchou com violência.
- Agora estamos quites.- Charles parecia não se importar com o
sofrimento físico, desatando a rir ainda mais e cortando uma das
mãos do demônio; este porém não demorou a reconstituí-la, e o
mesmo se passou com um pedaço de sua cauda, a um certo ponto
parecendo não suportar mais aquele “jogo” e aumentando sua
velocidade; todavia, o francês também acelerou, continuava a
acompanhá-lo, o duelo de garras e metal se estendendo até que o
guerreiro foi pego no pescoço e ao estrangulamento se somava o
fincar das terríveis unhas, o sangue pingando junto com a falta de ar.
O arrogante hermafrodita ficou verde, solto no chão quando parecia
estar morto. A criatura, que recém-saíra (ou o contrário?) do Inferno
liberou um urro que dessa vez pareceu de alegria e deleite, pronta
para saciar sua fome depois de ter cumprido o que seu ódio lhe
exigira; aprontou-se para o banquete, a comemoração sendo um
descuido fatal: Charles simulara a parada cardíaca, o que sabia fazer
com perfeição, e acabava de perfurar a garganta do adversário, por
fim realizando um esforço um pouco maior e decapitando-o; como se
não bastasse o seu próprio sangue em seu pescoço, rosto e ombro, o
sangue do oponente esguichou sobre o cruzado, dando-lhe um banho
antes que despencasse sem vida.- Deu um pouco de trabalho. Mas
nada de excepcional.- Foi o comentário para si mesmo.- É muito
amargo...- Disse ao provar daquele sangue arroxeado.- E ainda por
cima viscoso! Continua não tendo a menor sutileza.- Apesar de não
demonstrar, estava bastante cansado e precisou se sentar ali e ficar
imóvel, apenas respirando e sentindo as batidas do coração, com a
intenção que seus ferimentos cicatrizassem rapidamente, como lhe
fora ensinado vários anos antes durante seu treinamento. Como a
capacidade de recuperação do corpo de um cruzado era infinitamente
superior à de um humano, em poucos minutos de repouso o sangue
coagulou e as feridas cicatrizaram. Poderia seguir de volta ao
Vaticano, um caminho que não seria feito com pressa.
Em seu retorno, teve que dar parte do fim de Antenor aos padres
vermelhos, reunindo-se com estes, entre as estátuas dos quatro
arcanjos, sob uma luz fragilizada:
- Foi uma pena. Justo um dos cruzados mais virtuosos, se deixar
possuir assim.- Comentou Celius.
- Isso demonstra como nenhum de nós esta a salvo do Demônio e do
pecado. Temos que velar sempre, com constância. Precisamos ser
vigilantes o tempo inteiro, a fim de evitar a invasão do mal.-
Replicou o albino, contendo seu sorriso, com uma aparência séria.
- Por outro lado, nos rejubilamos por ver que saiu vivo de uma
verdadeira batalha campal contra tantos hereges e um possuído. Está
transbordando de força, meu caro Charles.- Disse Jonathan.
- Eu mesmo me surpreendi com o meu progresso, reverendo.- Por
fim deixou escapar seu sorriso de canto de lábio, coadunando com o
de Jonathan.
- Não precisa parecer severo nem se culpar por nada.
Compreendemos que não teve escolha.
- Evidentemente que não. Claro que teria preferido trazer o meu
irmão vivo.
- Todos sabem que você e Antenor eram no mínimo rivais. Não
acredito que esteja entristecido. Ainda assim, não posso recriminá-
lo.- Honorius se impôs com sua severidade típica.- Apenas ore e peça
perdão a Deus por seus pecados, porque no fundo de seu coração sei
que ficou feliz com a possessão e a morte de Antenor, ainda mais
porque teve a oportunidade de executar a sentença pessoalmente.
- Não seja tão duro, padre Honorius! Ficou até loquaz agora. Que
escolha nosso irmão tinha?- Indagou Jonathan, sem retirar a ironia de
seu semblante.
- O livre-arbítrio pode ser uma armadilha. O pior é quando
acreditamos que somos livres para tomar uma decisão, e ela destrói
nosso semelhante. Nem tudo é simples.
- Peço perdão, reverendo.- Charles tornou a se manifestar, não
deixando de expandir seu sorriso.
- É a Deus que deve pedir, não a mim.
- Farei isso imediatamente. Não nego que eu e Antenor não éramos
bons amigos, mas não foi Cristo que disse que devemos amar até os
inimigos? Do meu modo, eu o amava.
- Está bem.- A boca de Honorius estava dolorida. “Mas a que ponto
de cinismo ele chega!”
- Pode se retirar, Charles. Já compreendemos.- Tharien deu a reunião
por encerrada.
- Com a vossa permissão...- A passos compassados, o cruzado se
retirou após uma reverência.
- Foi uma ótima interpretação, Honorius.- Jonathan comentou com o
outro a seguir.
- Não foi apenas interpretação. Acho que realmente precisamos ficar
atentos com ele. Há algo que me preocupa. Mais do que eliminar um
companheiro que se tornou um demônio, o pior esteve na maneira
como ele agiu com os hereges. Está certo que precisavam ser
eliminados, mas os requintes de crueldade dele estão passando dos
limites. E, depois de exterminar com prazer alguém que foi enviado
junto com ele para cumprir uma missão, não vou me surpreender se
em breve começar a matar por matar, ou se já não faz isso, com a
desculpa de estar caçando hereges. Não se esqueçam...- Tossiu.- Que
precisamos de outros seres humanos no mundo. Ainda não é um
tempo de “eleitos”.- Soltou com ironia, ofegante, já cansado de falar.
- Está tudo sob controle. Ainda mais que a próxima missão dele será
bem complicada.
- Está pensando em enviá-lo para onde?- Indagou Torquemada, que
até então se mantivera em rigoroso silêncio.
- Esta é uma pergunta retórica, não é? Vossa excelência já deve
imaginar. Soube dos distúrbios em Aachen, não soube?
- Inclusive pude sentir a presença de Asmodeus por lá.
- Acho que será a prova de fogo para o nosso caro Charles!- Ao
passo que Malcolm, ao receber a notícia da morte de Antenor, não
demonstrou abalo num primeiro momento, depois se retirando em
seus aposentos para refletir no escuro; o homem que um dia salvara a
sua vida partira para a jornada definitiva na escuridão. “O que é essa
sensação de impotência? Por que a vida precisa ser tão injusta? Não
dei nada em troca ao homem que permitiu que eu estivesse aqui hoje.
Não pude impedir seu fim, e o que mais questiono é como alguém
como ele pôde ceder ao pecado! Parece-me ilógico, absurdo; em
mim isso seria perfeitamente concebível, tenho que admitir. Nele
não. É sinal que tenho que ficar muito mais atento, pois o que
acontece com um pode acontecer a qualquer outro entre nós. O que
não ameniza o que estou sentindo; não minimiza o fato de não ter
feito nada por ele! Perdão, Antenor. Tenho que orar pela sua alma. E
hoje não posso nem mesmo lançar meu ódio contra Charles. Não
tenho esse direito; antes é hora de rezar muito por você. Mas terá
sido um acaso isso ter acontecido bem na missão com aquele
francês? Por que não em outra? E se ele estiver mentindo e tiver
matado você? Eu nunca o perdoaria. Ele pode ter matado você à
traição! Porém dizem que os restos do demônio foram encontrados.
Portanto, você se deixou mesmo possuir. Uma pena que a
comunicação entre os mortos e os vivos não seja algo lícito para
quem segue a senda verdadeira, só que bem que gostaria de ouvir de
você o que se passou realmente. Com quem estou conversando?
Nunca antes me senti assim. Charles, se você fez o que cogitei, se
estão tentando protegê-lo de alguma forma, por meio de falsas
provas, o seu fim será o pior possível. Não tenho medo da sua
espada.”, aos poucos foi afastando a imagem do albino de sua mente,
com seu sorriso terrível, e fez em voz alta uma oração por Antenor e
por todos os bons falecidos que conhecera, em especial pelas almas
dos cruzados:
- Suplico-Te, ó Tu que és a Luz do mundo e o Senhor dos Exércitos,
neste momento exato, quando com as mãos da esperança me seguro à
orla das vestes de Tua mercê e bondade, para que bem recebas Teus
servos que se elevaram e se elevarão à região da Tua proximidade,
dirigindo suas faces aos esplendores da luz do Teu Semblante,
volvendo-se para o horizonte da Tua aprovação, aproximando-se do
oceano da Tua misericórdia e que, durante suas vidas, Te
expressaram louvor e arderam com o fogo do Amor por Ti. Ordena-
os, ó Senhor meu Deus, de acordo com o que seja próprio de Tua
suma bondade e excelsa misericórdia. Possam os seres que a Ti
ascenderam, eu Te peço, ó meu Senhor, recorrer Àquele que é o mais
sublime Companheiro, e abrigar-se à sombra do tabernáculo da Tua
majestade e do santuário da Tua Glória. Do oceano do Teu perdão,
esparge sobre eles, ó meu Senhor, o que os torne dignos de
permanecerem, por toda a eternidade de Tua própria soberania,
dentro de Teu mais excelso Reino e Teu Domínio supremo. Potente
és Tu para fazer o que Te apraz, e rogo em especial pelas almas de
meus irmãos que lutam e lutaram, que caíram pela Cruz, obrigados a
substituí-la pela espada, e no fim as formas de ambas se confundem.
Permitas a compreensão da Verdade e da Vida e livra-os do oblívio e
do abismo, pois, mesmo que tenham pecado e ainda pequem, lutam e
lutaram bravamente contra as hordas que, embora nunca tenham
ameaçado Teus domínios, assustam e ferem os homens. Que eu não
caia em heresia e que esta prece possa se elevar até Ti, na
compreensão de Teu Amor.- Malcolm se sentiu mais tenro, mais
pacato. Fato que Antenor modificara um pouco seu coração, e a
prece contribuíra para que sentisse isso diretamente; ao menos
enquanto não visse alguma bruxa, passaria por um homem calmo e
verdadeiro consigo mesmo. Sim e não: pensou até em rever seu ódio
pelas bruxas em homenagem ao espírito do amigo. “Talvez eu possa.
Não sei se consigo...”, lutava contra o prazer do pecado; sua alma em
riste. Precisava efetivamente rezar mais; e muito mais.

Com um semblante inocente, o Santo Padre buscava afastar de sua


alma as preocupações a respeito dos desentendimentos entre os
jesuítas e os padres vermelhos, o “papa negro” nos últimos tempos
mais ameno e menos conflituoso, menos agressivo e mais
introspectivo, ao contrário de muitos irmãos menores, o que no
entanto ao invés de tranquilizar o pontífice o deixava mais
desconfiado e apreensivo, distraindo-se ao se debruçar naquele
momento na análise de uma nova tradução das deliciosas
Etimologias de Isidoro de Sevilha em italiano (ou seria toscano? Em
Roma não falavam exatamente a mesma língua...), notando algumas
discrepâncias em relação ao original que anotava com sua pena e
depois levaria ao tradutor, que não queria que ficasse com fama de
traditore, afinal era amigo seu, um monge beneditino inteligente só
que bastante avoado e fantasioso. Primeiro releu o capítulo 29 do
Livro I, conferindo certos detalhes:

“1. Etimologia é a origem dos vocábulos, já que por essa


interpretação captamos o vigor e as raízes das palavras, digamos que
nos tornando íntimos delas. Aristóteles denominou-a symbolon e
Cícero adnotatio, porque a partir de uma instância de interpretação,
de um exemplo ou modelo, tornam-se conhecidas as palavras e os
nomes das coisas, tais como flumen (rio), que deriva de fluere, pois
cresce fluindo. A palavra em si, com essa combinação das letras F e
L, já transmite uma sensação de fluidez, independentemente de
atentarmos ao seu significado; presumimos que o som também revela
muito da natureza dos vocábulos, sendo em alguns casos uma parte
da raiz que nos primórdios contribuiu para a formação do sentido.

2. O conhecimento da etimologia é com frequência necessário para a


interpretação do sentido, pois, sabendo de onde se originou o nome,
com mais rapidez se compreende seu potencial significativo; o
exame de qualquer assunto é mais fácil quando se conhece a
etimologia, isso é certo. Contudo, alguns nomes foram impostos
pelos antigos não de acordo com a natureza, mas de forma arbitrária,
assim como nós mesmos não deixamos de fazer quando damos a bel-
prazer nomes a nossos servos, animais e propriedades.

3. Por isso nem sempre é possível encontrar a etimologia dos nomes,


porque alguns foram dados pelo arbítrio da vontade humana e não
segundo a qualidade com que foram criadas as coisas. Há
etimologias de causa, como é o caso de reges (reis), que vem de
regere (reger) e de recte agere (conduzir retamente); outras são de
origem, como homo (homem), que provém de humus (terra), o que
nos remete até a história de Adão; outras procedem dos contrários,
como lutum (barro), aquilo que deve ser lavado (lotum, lavando),
pois o barro não é limpo; ou como lucus (bosque), que, opaco pelas
sombras, tem pouca luz (luceat).

4. Há também as feitas por derivações de nomes; e outras ainda se


originaram no grego e passaram para o latim, como silva (selva) e
domus (casa).

5. Algumas procedem dos nomes de localidades, cidades ou rios.


Inúmeras provêm de palavras de diversos povos, não apenas gregos e
latinos, e é difícil discernir sua origem, pois existem palavras
bárbaras e desconhecidas dos clássicos. Por fim, já citamos um
exemplo do que pode derivar também da sonoridade, num efeito
mais ou menos onomatopeico e, quanto às classes de vocábulos, o
gramático Donato distinguiu na oração oito, que ao fim nos
reconduzem às duas mais importantes, os nomes e os verbos, cujo
entendimento é fundamental para a etimologia.”, Inocêncio sorriu
diante de certas alterações e adições, refletindo: “Aquele gabarola
devia estar pensando em milhares de coisas ao mesmo tempo
enquanto fazia a tradução! Vamos ver o que consigo arrumar aqui...”,
e pouco depois passou ao segundo capítulo do livro XI, que falava a
respeito das idades do homem:

“1. As idades do homem são seis, nem mais nem menos se quisermos
ser precisos: infância. meninice, adolescência, juventude, maturidade
e velhice.

2. Nossa primeira idade é a infância, que vai do nascimento aos 7


anos. O homem na primeira idade, como explicaremos melhor
adiante, é chamado infante justamente por a princípio ser incapaz de
falar (in-fans). Não tendo ainda os dentes bem arranjados, continua
por toda essa fase incapaz na linguagem, isto é, de tecer um discurso
complexo.

3. A segunda idade é a da meninice (pueritia procede


etimologicamente de pura), que ainda não mostra um corpo apto para
a procriação, e por isso podemos falar de pureza, embora não
necessariamente de bondade, estendendo-se até os 14 anos.

4. A terceira é a adolescência, já “adulta” para a procriação, ainda


que em seu início a mente não esteja pronta. Do verbo adolescere,
crescer, desenvolver; adolescens é o particípio. Do mesmo modo que
gestante é aquela que está em processo de gestação, e governante é
quem exerce o ato de governar, o adolescente protagoniza o
desenvolvimento, o crescimento. Adultus é outro particípio do
mesmo verbo e significa crescido. Dura até os 28 anos.

5. A quarta idade é a juventude, a de maior firmeza, encerrando-se


aos 50 anos. O jovem já pode ajudar (juvare), contribuir no trabalho.

6. A quinta é a maturidade, ou gravidade (gravis é pesado; por


extensão, temos grave e gravidade no sentido de respeitabilidade,
considerando respeitável a experiência de vida, que resulta em uma
sabedoria que só o tempo pode dar, e, complementarmente, leviano
entra no sentido de frívolo), a passagem da juventude para a velhice,
pois o homem maduro ainda não é velho, mas também já não é
jovem, pois se acha numa idade mais avançada à qual os gregos dão
o nome de presbyter. Entre os gregos, o velho, mesmo sendo
sacerdote, não é chamado presbyter, e sim géron. Esta é uma etapa
que se inicia aos 50 anos e termina aos 70.

7. A velhice é a sexta idade, a única que não tem limite superior,


sendo considerada velhice toda a duração que a vida vier a ter após
as 5 idades anteriores, esteja o homem na condição física que estiver.

8. Senil se diz da última parte da velhice porque é o fim da sexta


idade, em geral quando falta clareza de mente numa idade já
avançada. Nestas seis etapas a vida humana foi descrita pelos
filósofos, chegando por fim a morte.”, da qual Inocêncio se julgava
seguro e a salvo, ao menos enquanto tivesse Meridiana, com a qual
partiu para se encontrar, fechando as Etimologias e colocando a pena
de lado. Chegara a hora! Soprou a vela próxima e ficou na penumbra,
indo retirar outro livro de uma estante em sua parede, abrindo-se uma
passagem com uma escadaria pela qual, após recolocar a “obra”,
principiou a descer, fechando aquela entrada ao puxar uma alavanca
no nono degrau que pisou. A luz era escassa, continuando assim até,
terminada a descida, deparar-se com uma porta fechada de onde
provinha uma claridade dourada; ali, pouco discernível, o desenho de
um pentagrama invertido.
- Que se abra! Vou entrar.- Ordenou; e a porta de pedra se abriu.
Do lado de dentro, guardara Meridiana; estava transcorrendo alguns
dias do verão no palácio pontifício de Castel Gandolfo, afastado ao
menos naquele período do Vaticano, conquanto não estivesse
mentalmente distante de suas questões. Ao menos podia passar um
tempo observando dos balcões o lago Albano, passeando nos jardins
papais ou no observatório astronômico, ainda que este último fosse
mais frequentado pelos jesuítas, alguns dos quais se interessavam por
matemática e pelo estudo dos céus.
- Aqui estou, Meridiana, receptivo aos seus conselhos. Por que me
disse há alguns dias, antes de partirmos, que aqui estaria mais seguro
e poderíamos conversar melhor do que no Vaticano? O que ocorre?-
Como mostravam suas palavras, não viera apenas passar férias.
- Homem, não percebe que tramam contra você? Abra os olhos e
atente.- A cabeça arregalou os seus de uma forma aterrorizante, que
fez mesmo Inocêncio, acostumado a ela, retroceder com uma
expressão tensa; a luz que emanava da testa daquela criatura não
eram raios limpos, fúlgidos, e sim uma névoa luminosa, que se
espalhava e encobria a si própria e ao seu visitante para quem
eventualmente os olhasse de fora, que veria tão somente uma bruma
dourada e difusa; os traços toscos de pedra não transmitiam
impressões de vida e crueldade menores do que qualquer rosto
humano.
- Juro que não percebi nada, Meridiana. O que acontece? E por que
espalha essa claridade?
- Para que não sejamos vistos ou percebidos. Também tenho que
admitir que falhei. Esta névoa mágica irá bloquear qualquer
possibilidade de acesso ao “papa negro” e seus servos.
- Está se referindo a Pizarro? O que há com ele? Eu o tenho sentido
estranho, distante. E agora você me diz que ele tem de alguma
maneira acesso a nós? E a que servos está se referindo?
- Seres elementais. Pizarro é um mago, e de primeira grandeza. Nós
fomos descuidados.
- Está querendo dizer que ele sabe sobre você? Que usa espíritos da
natureza para me espionar?
- O interesse dele está nos padres vermelhos. Diante da rivalidade
com os jesuítas, você deveria ter ficado mais atento nesse aspecto. E
ele já conhece a verdade sobre os cruzados.
- Então é por isso que anda sem se mostrar! Maquinando uma
estratégia, afiando um punhal para cravá-lo em minhas costas.
Quando percebi seu ocultamento, logo pude deduzir que havia algo
de relevante e perigoso envolvido, só não imaginava que fosse isso;
mas de fato o superior dos jesuítas é uma raposa, ou melhor, uma
serpente. Sempre desconfiei que fosse um mago, pelo cheiro de
incenso que exala ao seu redor, o que não imaginava era que tivesse
capacidade suficiente para penetrar nos segredos dos padres
vermelhos. Acho que o subestimei.
- Passou da hora de contra-atacar. Ele tem um amigo, do qual se não
cuidarmos em breve se tornará seu cúmplice. Sozinho, não pode
fazer quase nada; mas se começar a juntar aliados, se tornará
perigoso. Por isso enviei uma das minhas subordinadas para dar cabo
desse pequeno, para que Pizarro perceba que é melhor não mexer
conosco; que fique no seu canto e não ouse nos atrapalhar.
Precisamos infundir medo.
- Isso não irá despertar ódio e desejo de vingança nele?
- Talvez. Mas o que pode o ódio frente ao medo? Ele se sentirá
impotente, e perderá a coragem; um homem que se acha fraco deixa
de ser uma ameaça, por mais que deteste seu inimigo.
- Ele se aliou a Lúcifer?
- De forma alguma. No conflito, ele foi pelo terceiro caminho.
- Para mim isso é uma surpresa. Sempre pensei que alguém como
ele fosse ter simpatia pelos caídos e não pelos estáticos.- O papa
abriu um sorriso maldoso.- Mas me diga, Meridiana: quem é o amigo
de Pizarro ao qual você se refere?
- O jesuíta Simão Rodrigues.
- Compreendo. Ouvi falar que frequenta muito o gabinete do Senhor
General da Companhia de Jesus, realmente. Por acaso sabe se ocorre
sodomia entre os dois?
- Esse tipo de detalhe não me interessa. Não estou nesta rocha para
observar as minudências das vidas humanas. Estou aqui para
restabelecer as coisas como eram antes dos caídos, que como você
sabe só nos usam como peões. Asmodeus, Belial, Baal, Naemah,
Mammon, Astaroth...Não compreendo como eles se sujeitaram a esse
papel ridículo; Beelzebú foi o único que não se curvou, e teve o
destino que você sabe qual foi. Cabe a mim somente desenrolar
minha parte na missão de devolvê-lo ao trono que lhe é de direito.
- E quando isso ocorrer, nosso trato estará desfeito?
- Você e seus padres terão este mundo para si apenas, o que mais
poderiam desejar? Ao menos enquanto nós estivermos nos
restabelecendo. Os homens na Terra, os demônios no Inferno e os
anjos no Céu; assim será a ordem como era no princípio dos tempos.
Então, não caberá a mim, e sim ao imperador Beelzebú, decidir se
nos contentaremos com as paragens infernais, da humanidade
recolhendo somente o lixo, ou se lutaremos pelo controle da Terra.
- Nesse contexto, os anjos poderão descer outra vez, e de uma forma
diferente da primeira, dando um fim tanto aos homens como aos
demônios e trazendo o anunciado fim dos tempos. No caso só alguns
poderão ser salvos...Mas é possível que ninguém seja.
- O tempo dirá. Que venham! Estou certa que não vencerão com
facilidade.
- Se nos unirmos para tomar os Céus...
- Isso é luciferiano demais para o meu gosto.
- Está certa.- O papa meneou a cabeça em concordância e
enterneceu seu semblante; aproximou-se e acariciou a cabeça de
pedra, que parecia ter se tornado insensível. Enquanto isso, em um
cemitério, chovendo, Simão realizava uma oração para si mesmo e
para Antenor, em frente a um túmulo onde uma inscrição dizia:
“Aqui jazem os restos mortais do nobre e corajoso Antenor, que
errou como todos nós erramos, sendo subjugado pelo Demônio,
porém libertado por seu irmão e certamente tendo seus pecados
perdoados e sendo admitido no Paraíso. Que os santos o protejam.”,
de fato ali se achavam partes do corpo daquele cruzado, que fora
possuído e agora se podia dizer liberto (para o Limbo ou para o
Paraíso? A lápide até era generosa), recolhidas por uma missão que
seguira à vinda de Charles. A cabeça estava inteira, e ao ser
recobrada dava a impressão de ter pertencido a um ser intermediário
entre um humano e um monstro. De alguma forma, certas feições
humanas lhe tinham sido restituídas após a morte.
Aquele era um cemitério reservado aos cruzados, onde teoricamente
estavam os corpos ou partes dos corpos de todos os guerreiros que
tinham partido para o outro mundo; um pouco de teoria porque em
alguns casos nada fora achado, restando a memória e a tristeza pela
impossibilidade da Ressurreição. Alguns diziam que, no caso de
guerreiros de especial modo virtuosos, suas carnes seriam
reconstituídas por Deus mesmo se tivessem sido incineradas ou
comidas por demônios ou dragões. “Ó Senhor, Deus de minha
salvação, dia e noite clamo diante de tua magnitude, sem cessar, sem
descansar. Chegue à tua presença a minha oração e que inclines os
teus ouvidos ao meu clamor, pois minha alma está cheia de
angústias, e minha vida se aproxima do crepúsculo, algo me diz. A
morte deste homem com o qual pouco falei, mas que admirava, não
foi um fruto do acaso. Já estou contado, tenho certeza disso, com os
que descem à cova; estou como homem sem forças, atirado entre os
finados, como os mortos que jazem na sepultura, dos quais já não te
lembras, e que são desamparados da tua mão. Puseste-me na cova
mais profunda, em lugares escuros, nas profundezas. Sobre mim pesa
a tua cólera; tu me esmagaste com todas as tuas ondas, apartaste de
mim os meus conhecidos, fizeste-me abominável para eles; estou
encerrado e não posso sair. Os meus olhos desfalecem por causa da
aflição. Clamo a ti todo dia, Senhor, estendendo-te as minhas mãos.
Mostrarás tu maravilhas aos mortos? Ou levantam-se os mortos para
louvar-te? Será anunciada a tua benignidade na sepultura, ou a tua
fidelidade no abandono? Serão conhecidas nas trevas as tuas
maravilhas e a tua justiça na terra do esquecimento? Eu, porém,
Senhor, clamo a ti; de madrugada a minha oração chega à tua
presença. Senhor, por que me rejeitas? Por que escondes de mim a
tua face? Estou aflito, e me sinto como se estivesse prestes a morrer
desde a minha mocidade; sofro os teus terrores, estou desamparado;
sobre mim tem passado a tua ardente indignação; os teus terrores
deram cabo de mim, como águas me rodeiam todo o dia; cercam-me
todos juntos. Distantes de mim meus familiares; os meus conhecidos
se acham nas trevas. As trevas se tornam águas espúrias. Rezo por
meu amigo Fernando, meu único amigo! Mas pouco o tenho visto. E
de alguma forma também o sinto distante; nada pode ser feito...”,
mesclando as palavras do salmo bíblico que julgava mais belo a uma
oração que queria própria, envolvendo nela seus conhecidos e seus
medos e pensamentos, fazendo suas as palavras das Escrituras, não
imaginava que a ação de Meridiana, que desconhecia, já estivesse
fazendo efeito: haviam se passado alguns dias desde que uma
horrenda fraqueza se apoderara de seu corpo, e não parecia existir
meio de removê-la; uma febre que nenhum médico de Roma ou do
Vaticano soubera explicar; pensara em procurar Pizarro, que julgava
distante, mas o próprio Simão que se distanciava, e não por culpa
sua, simplesmente não conseguindo visitar o amigo, que por sua vez
não se lembrava do bom jesuíta luso: artes de Meridiana, que
separara os dois e só lhes permitiria um reencontro nos momentos
finais, caso não ocorressem interferências.
À debilidade física e ao mal-estar somavam-se, em Rodrigues,
desânimo, tristeza e saudades da infância; a notícia da morte do
único cruzado que era seu compatriota, por fim, terminou sendo um
memento mori. Diante da tumba, sem se importar com a água da
chuva, segurava o crucifixo em seu pescoço e às vezes batia em seu
peito. Apegava-se à imagem de Antenor como se esta tivesse se
transformado num sinal de seu anjo da guarda. De súbito, ouviu
alguém cantarolar e se percebeu gélido:
“Vita brevis breviter in brevi finietur,
Mors venit velociter que neminem veretur,
Omnia mors perimit et nulli miseretur.
Ad mortem festinamus peccare desistamus.

Ni conversus fueris et sicut puer factus


Et vitam mutaveris in meliores actus,
Intrare non poteris regnum Dei beatus.
Ad mortem festinamus peccare desistamus.”

Reconheceu um trecho do Livro Vermelho de Montserrat, as


palavras pronunciadas por uma voz bela e insinuante, porém
sombria, não resistindo e repetindo por si mesmo aquele canto, sem
coragem de olhar na direção de sua origem.
O Inimigo que acabou vindo, recostando-se em uma tumba ao lado.
- Afaste-se...Demônio.- Gaguejou, ciente de qual era a natureza
sórdida daquela criatura; começou a tremer mesmo antes de vê-la.
- Por que me teme, Simão?- A figura era um misto de terror e
sedução, um belo rosto de donzela emoldurado por sucessivas
membranas, no alto uma crista pontiaguda, espigões nas costas, um
corpo que lembrava o de um lagarto bípede a despeito dos lábios
carnudos, do nariz delicado e dos olhos de esplendor oceânico;
quatro braços e duas pernas, cada membro com sete dedos
compridos, unhas femininas bem tratadas nas mãos e uma expressão
de falsa amistosidade completavam o conjunto. Era pouco mais alta
do que o sacerdote, interessada em seu olhar.
“O que está fazendo, Fernando? Você se distraiu...”, Pizarro estava
quase adormecendo em sua escrivaninha, enquanto fazia algumas
anotações, a pena mole entre seus dedos, quando ouviu o chamado
de uma voz suave e poderosa em sua mente; reconheceu-a de
imediato, perdendo o sono: tratava-se do querubim Sidael. “O que
está acontecendo? Perdão, santo anjo de Deus! Se algo relevante está
ocorrendo neste momento, não adquiri ainda consciência disso. As
atividades do dia me cansaram.”; “O cotidiano e as obrigações do dia
a dia, sua função no mundo e suas atividades, nunca devem servir de
desculpa para que se descuide e deixe de velar sobre si mesmo e com
relação ao seu próximo. Não se esqueça que a espada que porta agora
é uma responsabilidade, não um poder. Seu amigo Simão se encontra
em perigo.”; “Simão? Há dias que não o vejo. O que há com ele?”;
“Não é hora de perder tempo com perguntas e explicações. Vá até a
espada, cinja-a com firmeza e chegue a ele. Pense em ir a ele, não
precisa de mais nada.”; “Estou indo. Obrigado, mensageiro do
Senhor.”; “Vá ou será tarde demais.”, Pizarro se apressou, buscando
a espada do querubim; segurou com firmeza a empunhadura,
concentrou-se no jesuíta e num instante uma luz rubra o envolveu e
quando se deu conta, ao sair de um oceano de fogo, estava no
cemitério, onde parara de chover.
- Meridiana me disse que talvez você viria. Não chega a ser uma
surpresa.- Disse o demônio feminino; a seus pés, Simão agonizava,
com os olhos esbugalhados, sangue borbulhando de sua boca, sem
pernas ou mãos; uma lama negra e densa se formava em volta.
- Não...- Pizarro não ocultou seu choque e sua tristeza.
- Fernando...Como é bom revê-lo uma última vez. Mas peço que se
vá daqui. Não sei como chegou, mas fuja enquanto é tempo.-
Ofegante, o padre conseguiu balbuciar, tossindo entre golfadas de
sangue.- Ou chame os cruzados.
- Não vou fazer nem uma coisa e nem outra. Vou salvá-lo, meu
irmão.- Desembainhou a espada; faíscas vermelhas e douradas
pipocaram por todos os lados; a lâmina ficou em brasa.
- Venha, humano. Quero sentir esse ardor.- A criatura lançou seu
desafio.
- Quer dizer que está a serviço de Meridiana. Alessandro irá pagar
muito caro por isso.- Referia-se ao nome de batismo do papa.
- Se quer maldizer e odiar alguém, odeie e maldiga a si mesmo.- O
monstro se lançou ao ataque, o mago desenhando no solo, com a
ponta da arma, um pentagrama flamejante; cinco chamas se
acenderam em destaque, uma em cada extremidade, cada qual com
uma cor distinta: amarela, verde, azul, vermelha e violeta; a inimiga
foi detida por uma muralha mágica de tremenda potência e
segurança. Gritou de raiva, e nesse berro a garganta do pobre Simão
se rasgou e estourou, a intensidade daquelas ondas sonoras rachando
alguns túmulos. Ao testemunhar a morte de seu amigo, Pizarro
perdeu o equilíbrio emocional e assim sua defesa se enfraqueceu,
permitindo que a barreira fosse atravessada, quase que as mãos da
criatura atingindo seu pescoço, quando próximo do toque colocando
sua espada à frente e o demônio tocando a lâmina ao invés do colo.
No ato suas palmas e seus dedos queimaram; o jesuíta, cheio de
tristeza e ressentimento, atacou, porém a espada não conseguiu cortar
o pescoço daquela filha das sombras. “Caso se mova pelo ódio, não
será diferente dos demônios. Não conseguirá matá-la com sua maior
arma. Não entendeu ainda do que eles se alimentam?”, tornou a
escutar a voz de Sidael, enquanto as feridas no monstro se
reconstituíam e este retrocedia, tomando fôlego para um novo
ataque. Pizarro se aproveitou do momento para tentar recobrar sua
estabilidade interna, a princípio julgando que fosse impossível e que
acabaria sendo derrotado: “Não sou um golem. Não sou feito de
pedra ou gelo, mas de carne, sangue e ossos. De que modo posso
ficar indiferente à morte de um amigo, ainda mais diante de sua
assassina? Não posso amá-la, sequer perdoá-la. É impossível. Sinto
muito, anjo de Deus.”; “Não é impossível. O amor em seu coração
não tem fim, pois provém de uma fonte que não se esgota. Ele não é
seu, embora esteja em você: é o que precisa compreender. Se
conseguir ter acesso a essa força, que está disponível aos fracos,
compreenderá que não precisa se esforçar. A única força Real
provém da Verdade em seu interior, quando esta se abre.”; “Não sei
se sou capaz. O meu amor é mesmo muito pequeno.”; “Mas o amor
de Deus você sabe que não é. Já o sentiu.”; “Peço perdão.”; “Não se
culpe, não arraste pesos: ame. E não como cobrança que lhe digo,
mas como realidade.”, Pizarro respirou fundo, recuperando
gradativamente a concentração, e o pentagrama foi se reacendendo; o
demônio circulava por perto, buscando uma brecha para atingi-lo.
Suas membranas se eriçavam e seus olhos se insinuavam. Por alguns
instantes, Pizarro viu na criatura imagens inteiras de belas mulheres,
inclusive de uma jovem pela qual se apaixonara no início da
adolescência, filha de um senhor feudal já prometida ao filho de
outro, paixão que não se consumara, tendo sido por algum tempo,
após entrar para o sacerdócio, seu confessor, sem que ela jamais
desconfiasse de seus sentimentos e de seu desejo. Tomou a decisão
de expandir o signo mágico, queimando os fantasmas da
sensualidade e do passado e levando a aliada de Meridiana ao
desespero com tanta luz e tanto calor; esta principiou a se agitar
enquanto sua pele queimava.
- Você é o papa negro, não é? Como pode estar contra os homens,
contribuindo para as tramas dos anjos? Não sabe em que erro está
caindo. Quando a guerra for vencida, fique ciente que sua majestade
Beelzebú não irá perdoá-lo. Estará entre os homens condenados para
sempre!
- Não me interessam as maquinações de Beelzebú e de nenhum
outro demônio. Que a sua alma, sombra de ser, descanse deste e do
outro mundo, afundando de uma vez nas trevas sem distinção.- O
pentagrama se tornou negro, assim como suas chamas escureciam, ao
passo que uma rosa abria suas pétalas no peito do mago; o jesuíta
chorou enquanto via a alma de Simão partindo da carne massacrada
rumo ao alto, arrebatada por luzes e ventos, tornando a chover e
relâmpagos se manifestando proximamente. Uma cruz luminosa saiu
do núcleo da flor e se encravou na oponente, que urrou de desespero
e de dor por se sentir presa em uma teia de fogo. Seu corpo derreteu,
ao passo que sua alma era absorvida pela terra.- Adeus, meu irmão.-
Deu início à despedida do outro jesuíta. Os raios continuavam fortes
enquanto a chuva diminuía.- Que vá com Deus, com sua graça, estou
certo que para uma realidade mais harmoniosa do que esta na qual
nos achamos. Abençoado seja pela eternidade!
“Et fecit signa magna, ut etiam ignem faceret de caelo descendere
in terram in conspectu hominum...”, chegou a ouvir na voz de Simão
seu trecho preferido do Apocalipse; fez o sinal da cruz e o estrondo
do trovão que se seguiu ficaria por horas ecoando em seus ouvidos.
- Está feito. Pizarro venceu minha enviada, mas não conseguiu
salvar a vida do amigo.- Meridiana comunicou ao papa na manhã
seguinte, quando este realizou uma nova visita.
- Quer saber de uma coisa, Meridiana? Hoje estou um pouco
melancólico.
- Para ser sincera, não estou nada interessada nisso. É assim que
corresponde à vitória que obtivemos?
- Estive refletindo o quanto somos vulneráveis, como podemos ser
de uma forma ou de outra, a qualquer momento, solapados da
existência. Nunca me interessei por alquimia, mas acho que já
chegou a hora de começar a me dedicar a ela; sem prolongar a vida,
terminarei por ser mais uma entre as tantas almas que não passam de
joguetes na guerra entre os anjos e os demônios.
- Guarde as reflexões sobre a sua fragilidade para si mesmo; elas
não levam a nada. Mas tenha uma tranquilidade relativa que na
medida do possível, caso seu espírito venha para nossos domínios,
nós o protegeremos como fizemos com alguns de seus antecessores.
- É estranho pensar que demônios tenham palavra.
- É provável que tenhamos mais palavra do que a maior parte dos
humanos. E desde o princípio isso esteve no nosso acordo.
Esqueceu-se? Mas acho que poderemos ficar mais aliviados quanto a
Pizarro. O papa negro não vai se mover tão cedo. Talvez nunca mais
seja o mesmo.
- Tenho minhas dúvidas até de que ele irá permanecer na Igreja.
- Uma oposição solitária será sempre infrutífera e impotente. Não
vencemos a guerra ainda, mas nesta última batalha triunfamos.-
Contudo, a despeito das palavras de Meridiana, o papa estava não
apenas entristecido e preocupado como soturno. Em seus olhos
cristais fragilizados, com uma chama interna que às vezes ameaçava
se apagar, mas não se apagava; em uma vela de cera cansada, o fogo
tremulava.- Por que parece incomodado? O que há com você hoje?
Algo que nunca compreenderei são certas vãs nuances humanas.
- Já lhe disse o que me incomoda e você disse para guardar minhas
reflexões. Não vou mais tomar seu tempo hoje, Meridiana.
Agradeço-a por me tranquilizar quanto a Fernando. Ao menos ele
não é mais uma preocupação, e continuará sem sê-la por muito
tempo, talvez para sempre, é o que espero.
- Um rato pode tentar insistir em roer as roupas do rei, o que não
significa que será capaz de destronar o rei. Algo maior irá precisar da
nossa atenção agora. Asmodeus e Belial começaram a se mover
perigosamente. De braços cruzados é que não podemos ficar.-
“Como se você tivesse braços!”, Inocêncio ficou com vontade de
dizer.

OITAVO ATO

Cruzes e rosas

A escuridão da floresta naquela tarde nublada, entre os galhos e


folhas que pareciam em processo de enegrecimento a cada hora
transcorrida, causava impressões distintas nos quatro guerreiros: para
Miguel um indício de que as bruxas, praticantes de magia e portanto
próximas do Inferno (que costumava conceber mais como gelado do
que como quente, e no caso das chamas estas incapazes de emanar
luz), não deviam estar longe; na visão de Bruno, os demônios
estavam usando aquelas mulheres, preparavam uma armadilha e era
preciso redobrar a atenção; Masamune esvaziara sua mente e se
concentrava no que havia ao seu redor, sem especulações,
prevalecendo a exacerbação de sua inteligência prática e de seus
sentidos, feito um dragão alerta; Cavalcanti tentava afastar a
dispersão mental porém raciocinava, refletindo sobre como agiria
quando elas aparecessem, evitando usar a violência, seu plano
calcado na diplomacia e no diálogo. Contudo, apesar das armas
embainhadas, se achavam prontos para caso fosse necessário ceifar
até as pétalas das flores, cada qual à sua maneira; Miguel apostava
que Heráclio não estava vivo:
- Devem tê-lo atacado covardemente. Só que agora não terão pela
frente um solitário.
- Talvez o tenham feito prisioneiro. No caso, ele seria mais útil
inclusive para que possam nos chantagear.- Replicou Bruno.- Apesar
de não ser fácil manter um cruzado nessas condições.
- Pela magia, tudo é possível.- E olhou para Lorenzo com um ar
provocativo.
- Estão superestimando a magia frente aos poderes de Cristo. Vamos
esperar para ver, sem elucubrações.- Quando respondeu, o florentino
recebeu um olhar de discretíssima aprovação da parte do samurai
cristão.- Mas algo me diz que nosso companheiro está vivo.-
Caminhavam pela ilha havia alguns dias, explorando-a atentamente,
com paradas para momentos de refeição, oração e relaxamento, que
não eram demorados. De súbito, pela primeira vez em um bom
tempo, Cavalcanti parou por outro motivo:
- O que foi, está sentindo alguma coisa?- Indagou Miguel, que o
conhecia bastante bem.
- Alguém está se aproximando, ou melhor, algumas presenças.
- Talvez sejam bruxas. O que vamos fazer?
- Não é preciso atacar antes de saber quem são e o que querem.
Vamos apenas nos resguardar, sem agressividade.- Advertiu o seu
companheiro quando o cavaleiro dourado logo desembainhou sua
espada.
- Me desculpe, meu amigo, mas prefiro me precaver. Nunca
sabemos que estratégias elas podem usar. Não confiaria nem se visse
Heráclio, porque poderia ser uma miragem, alguma delas disfarçada
ou ele mesmo, só que com a mente sob domínio alheio. Esse é o meu
jeito de me resguardar, com a espada pronta.
- Entendo, mas por favor, não haja sem pensar.
- Alguém chegou.- Observou Masamune, e um indivíduo de
armadura cinza acabava de despontar; não tardaram a reconhecê-lo:
enfim, Heráclio; Bruno também preparou sua maça.
- Olá. Há um bom tempo que não nos vemos. Não precisam ter
receio. Que bom que não enviaram Charles, Malcolm ou Sigmund!
Com esses o diálogo seria muito mais difícil. Cavalcanti,
Masamune...Isso é um bom presságio!- Manifestou-se.
- Espere um pouco. Você pode até confiar em nós, o que não
significa que confiamos em você.- Disse Miguel, adiantando-se.
- Apesar da sua impulsividade, sempre ouvi dizer que tem um bom e
caloroso coração, guerreiro da espada do fogo do Espírito Santo.-
“Os pensamentos dele não emanam maldade. E não parecem falsos;
não deve estar sob o controle de ninguém.”, refletiu o guerreiro de
armadura dourada, enquanto à sua volta se espalhava um halo
luminoso que espantava a friagem.
- Está sozinho? Como sobreviveu aqui até hoje? Não me parece
estar na condição de prisioneiro.- Interveio Bruno.
- Porque não estou.
- Nós já nos conhecemos. É um prazer revê-lo, pelo menos da minha
parte.- Uma segunda voz interveio, parecendo familiar ao africano,
que no entanto não soube com quem identificá-la até ver Gabriela;
Miguel a encarou com desconfiança, ao passo que Masamune e
Cavalcanti analisavam o espírito daquela mulher.- Podem me
investigar à vontade. Vão perceber que o meu pneuma não tem nada
de impuro ou de demoníaco.- “Interessante. Ela percebeu que a
estávamos estudando por dentro.”, refletiu Lorenzo.
- Olá...Da outra vez eu a deixei viver.- Disse o etíope.
- E eu posso dizer a mesma coisa.
- De onde vocês se conhecem?- Indagou Miguel.
- Nós dois estávamos em missão, claro que cada um de um lado e
com objetivos diferentes.
- Não perguntei a você, bruxa.
- Seria melhor que abaixasse essa espada, apesar da sua aura ser
muito bonita.
- Suspenda a hostilidade, Miguel. Não há motivo para isso.-
Aconselhou Cavalcanti.- Vamos ouvir o que ele e elas têm a dizer.
- Elas? É melhor do que eu esperava. Quer dizer que percebeu as
minhas companheiras.
- Não foi muito difícil.- O cruzado abriu um sorriso ameno.- Uma
inclusive tem um espírito forte e flamejante demais.- Foi quando
Miriam saiu das sombras; ao seu lado, Raquel e Flora; a segunda
sorria, embora por dentro estivesse séria e desconfiada.
- Não entendo. Viemos para cumprir uma missão, que era libertar
Heráclio e exterminar as bruxas.- Miguel recolheu seu halo.- E agora
vamos só conversar com elas?
- Com elas e ele...- Seus olhos se fixaram nos da maga das chamas,
surgindo uma empatia mútua entre ambos; o guerreiro de armadura
dourada a achou muito bonita, embora o tipo de Flora fosse mais o
seu. No entanto, logo tratou de afastar de sua mente esse tipo de
pensamento, afinal já fora casado, conhecera o amor de uma mulher
e fizera uma promessa de castidade e não poderia quebrá-la nunca.
As bruxas deviam estar tentando sua mente, estimulando os seus
sentidos, sem que percebesse, embora não conseguisse captar
pensamentos maldosos, e Cavalcanti e Masamune também não eram
homens que se deixavam ludibriar com facilidade. Talvez a maldade
e a excitação da sensualidade estivessem dentro dele mesmo.
- Não vou negar que tinha preconceito com os cruzados, mas é como
vocês têm em relação a nós. Não achem que é diferente. O Heráclio
que mudou um pouco as coisas!- Raquel se aproximou do cruzado
que permanecera por todo aquele tempo na ilha de Magdala e, para a
surpresa dos outros quatro, visível até em Masamune, encostou seus
lábios nos dele e se deram um rápido beijo.
- Ah...Então agora as coisas estão ficando mais claras!- Miguel
bradou.- Vocês o seduziram e pretendem fazer o mesmo conosco!
- Calma, Miguel.- Dessa vez foi o samurai a intervir, segurando o
braço do companheiro.
- Me desculpe, Masamune. Mas não vou cair nas artimanhas delas!
- Fui eu que decidi abrir mão da minha castidade, por livre e
espontânea escolha, por livre arbítrio; não foi Raquel que me
seduziu, eu que aos poucos fiquei encantado com ela. Não vou negar,
tenho uma certa queda por bruxas, e no começo era ela quem me
rechaçava.- Explicou Heráclio.
- E como vamos acreditar no que diz?- Indagou Bruno, vez ou outra
seus olhos caindo sobre Gabriela; quanto às outras, não chamavam
sua atenção.
- Raquel não convenceu Heráclio de nada, e pouco precisamos das
palavras. Subestimam seu companheiro a esse ponto? Se é assim,
admitem que as bruxas são superiores aos cruzados.- Miriam falou
com firmeza e seriedade; Cavalcanti estudou suas palavras e o
movimento de seus lábios. Miguel quis encontrar ali ironia, mas não
conseguiu.- O que convenceu Heráclio foi outra coisa.
- E o que seria? Será que pode nos mostrar?- Indagou o cruzado da
espada dos anjos.
- Com toda a tranquilidade. Mas antes, Heráclio, gostaria que você
desse a eles as explicações preliminares.
- Não vão acreditar em uma palavra do que eu disser.- Falou o ex-
corsário.
- Não importa. O importante é que ouçam.
- Pode não haver agressividade em vocês, o que não significa que
não estejam usando algum feitiço. Sempre aprendi que bruxas são
extremamente traiçoeiras.- Disse Miguel.
- E nunca questionou o seu aprendizado? Devia olhar mais para a
vida, para a natureza, e dar menos importância aos dogmas e
imposições da sua Igreja.- Interferiu Flora.- Ou não tem inteligência
para ser algo além de uma ovelha?- Pelo sorriso e pelas palavras
dela, pensou que o agredia com sarcasmo; no entanto, estudando-a,
Cavalcanti sentiu nela uma severidade raivosa, que não tinha nada de
cínica, o que o intrigou.
- Fique calma, Flora. Não há razão para discutirmos. Eles vão
compreender. Não têm culpa de como vivem. Nós também temos
nossos condicionamentos.- Miriam tentou apaziguar os ânimos.
- Vamos conversando enquanto levo vocês até a cidade delas.-
Convidou Heráclio.
- Vai nos levar para o covil das bruxas...- Observou Bruno.
- Muito menos assustador do que imaginam. Como veem, essas, que
são as líderes, não têm narizes tortos e são bem jovens.
- E se você tiver se tornado um feiticeiro e estiver nos jogando em
uma armadilha?
- Vocês são livres para vir ou não. Mas o que acham, Masamune e
Cavalcanti? Eu me tornei um feiticeiro?
- Inclusive não aceitamos homens aqui como aprendizes de magia.-
Flora foi direta.
- E por que não?- Miguel questionou num tom um pouco áspero.
- É simples. Vocês não sabem entrar em harmonia com a natureza.
- Dispenso essa “harmonia” e esse tipo de aprendizado. Quem tem
Fé não precisa de magia.
- Esses dois...- Raquel meneou a cabeça para os lados.
- Não ouse...- Flora sorria, contrastando com o olhar de ameaça.-
Não sugira nada.
- Não me olhe desse jeito, sou só uma bruxinha inocente!
- Ahhh...- Miriam suspirou.
- Além do mais, se tivesse virado um feiticeiro, eu teria sido
“possuído”...- Masamune e Cavalcanti notaram a nuance na fala.- E
não emano uma presença tão sinistra assim. Ou acham que já virei
um demônio, Bruno e Miguel?
- Não. Ainda está longe de ser um.- Reconheceu o etíope.
- Mas será que é confiável levar quatro deles conosco? Podem não
ser como o Heráclio.- Flora expôs sua preocupação a Miriam.
- Não se preocupe, Flora.- O ex-pirata interveio.- Se estou levando
eles, é porque sei que os quatro têm uma boa índole. Alguns com
certeza eu não levaria...Ainda não confia em mim?
- Nada contra você hoje em dia, é que homens não têm um bom
sexto sentido.
- Vamos deixar as desconfianças de lado, por favor. Pelo menos por
um tempo.
- Estou de acordo com o Heráclio.- Gabriela tornou a falar após ficar
um bom período na observação.- Vamos suspender a descrença. Não
custa nada.- “As três exalam um poder considerável, mas nada que se
compare àquela...”, Cavalcanti analisava Miriam. “Me arrisco em
dizer que poderia derrotar qualquer um de nós. Se não nos ataca, é
porque não possui más intenções. Em cinco contra quatro, teriam
boas chances.”
- Está bem.- Miguel por fim cedeu; Masamune, o mais silencioso,
foi o primeiro a chegar mais próximo das feiticeiras; evidentemente
não desconfiava delas.
Seguiram adiante, Heráclio narrando aos quatro seu confronto
inicial contra Gabriela e Flora, a aparição de Miriam e Raquel, e
pensando em como tocaria no ponto do padre Caio. Precisava ser
cuidadoso para que a maça de Bruno e a espada do fogo do Espírito
Santo não se voltassem contra ele. Tentou introduzir o assunto da
seguinte maneira:
- Vocês nunca pensaram mais sobre as nossas naturezas, sobre o que
somos realmente? Nunca se questionaram mais a fundo sobre o que
cada um de nós é feito? Sabem que não somos simples humanos,
mas o sangue que corre em nossas veias nunca despertou em vocês
alguma desconfiança?
- Como desconfiar de Cristo? O que você está dizendo não faz o
menor sentido.- Respondeu Miguel; parecia tranquilo agora, com um
ar de amenidade que o ex-corsário não queria que fosse quebrado.
Pretendia ser direto sem esmagar os ovos debaixo dos seus pés, o que
sabia que seria impossível, ainda mais porque não era do seu feitio
falar fazendo rodeios e sendo sutil. Sob os olhares atentos de Miriam,
Gabriela e Flora, e restringindo os carinhos de Raquel, que a cada
aproximação era fitada com um certo inconformismo pelo cruzado
de armadura dourada, acabou por tomar a decisão de reter a língua
até que chegaram à prisão onde estava o padre Caio. Quando o viram
ali, cada um teve uma reação: Masamune sentiu suas costas arderem
e dores horríveis nos ossos, se segurando para não gritar; percebendo
presenças hostis ao redor, Cavalcanti chegou a pensar se fizera mal
em confiar nas bruxas e em Heráclio; Bruno arregalou os olhos
diante da batina vermelha; Miguel agitou a cabeça para os lados e
julgou que suas suspeitas estavam confirmadas:
- Malditas! Heráclio, você se vendeu...Então é o princípio das
monstruosidades da magia que queriam nos mostrar?!
- Não é nada disso, meu jovem; não seja precipitado.- Caio, entre
manchas e escuridão, se manifestou no instante em que o cruzado ia
desembainhar sua espada para atacar seu ex-companheiro; Heráclio
não se movera e parecia estar calmo, ainda que sério. Miguel se
deteve e se voltou na direção do sacerdote:
- O que fizeram ao senhor??
- Vamos ouvir o que ele tem a dizer.- Masamune, dominando o
sofrimento corporal, conseguiu se restabelecer e falar; Gabriela, com
segurança no semblante, Flora, com um sorriso torto, e Raquel,
depois de se despedir do ex-corsário com um beijo no rosto e um
abraço, se retiraram.
- O meu nome é Caio. E não se enfureça, pois esteja certo que até
hoje elas me fizeram mais bem do que mal.- Replicou o padre.- Se
agora você me “libertasse” desta cela, seria minha morte certa. A
liberdade às vezes não faz bem...Que o digam os anjos caídos!
- Existe uma grande diferença entre seres degenerados e aqueles que
supervisionam homens que carregam o sangue de Cristo em suas
veias.- Objetou Miguel.
- Eu não teria tanta certeza. De qualquer forma, somos todos apenas
seres humanos; e mesmo que haja algo de “especial” correndo dentro
de vocês, a queda pode ocorrer a qualquer momento, eu diria que
sendo ainda mais provável em relação aos outros seres justamente
por haver algo “diferente” em vocês; afora as consequências disso
serem desastrosas, quase que tanto quanto um anjo querer deixar de
ser mensageiro para tentar ser o Criador ou interferir na vida alheia.
- Sei bem o que são os possuídos e não subestimo esse risco, o que
por outro lado não me faz perder a fé nem me elimina a certeza que
posso superar qualquer obstáculo, derrotar qualquer demônio. Deixe-
me ajudá-lo portanto, reverendo.
- Você não sabe o que está dizendo. Nem elas, que mexem com
magia, conseguiram me livrar dos espíritos que me atormentam e me
forçam a permanecer aqui, onde estou protegido. É algo do qual não
posso mais escapar. E, mesmo que pudesse, acho que prefiro assim.
Tenho que pagar pelo que fiz, Deus está me punindo com justiça.
- Pare de dizer sandices. Põe mais fé na magia do que na espada dos
cruzados? Ou o senhor está degenerado, tendo sido seduzido por
essas mulheres, ou caiu num feitiço delas, que convocaram espíritos
infernais para prendê-lo e atormentá-lo, fazendo com que pensasse
que são frutos do seu pecado. Querem os seus conhecimentos!
Querem interferir na Santa Igreja!
- Não, meu filho...Não...Não sou tão ingênuo assim! A bem da
verdade, conheço esses seres de muito antes, eles me fizeram
diversos favores, eu não paguei, e agora estão me cobrando.
- Isso quer dizer portanto que se envolveu com magia?- Cavalcanti
interveio.
- Não só eu como todos os padres vermelhos. Todos eles, inclusive o
papa Inocêncio, são magos.
- Isso é absurdo...- Miguel deixou escapar de seus lábios.
- O seu coração é puro, Miguel. É você, não é? O guerreiro de
armadura dourada e da espada do fogo do Espírito Santo! Mas você
acredita demais nas pessoas; não foi esse um dos seus erros no
passado? Conheço sua história. Sobre o conde Henrique, sua esposa
Maria Cristina e seu escudeiro Diego. Não pense que os detalhes me
fogem.
- Como sabe de tudo isso?
- Todos os padres vermelhos têm os dados tanto dos cruzados em
atividade como os dos guerreiros de tempos idos, suas biografias,
suas preferências, seus vícios e virtudes, seus amores...Sabemos tudo
sobre vocês, mesmo no caso de nos verem pouco ou não saberem
quem somos. NÓS sabemos.
- Mas poderia nos provar que vocês são mesmo magos, que não é
uma artimanhas das bruxas, que poderiam ter gerado toda uma vida
ilusória em sua mente? De qualquer forma acho que não conseguirá
nos convencer, porque se você se corrompeu deve ter aprendido
magia aqui.- Interferiu Bruno.
- Se não se convence de nenhum modo, não posso fazer nada. Mas
complementando, saliento também que os padres vermelhos não são
magos a serviço de Cristo. Nunca foram e nunca serão.
- Nenhum mago está a serviço de Cristo.
- Está equivocado, meu bom etíope. Há magos a serviço da Luz, e
são numerosos; porém ao menos neste mundo menos numerosos do
que os magos das trevas, que se dividem em dois: os que seguem
Lúcifer e os que seguem Beelzebú.
- E qual a diferença? Não são apenas nomes distintos para Satanás?
- Há uma grande diferença. Beelzebú é um demônio de origem, o
antigo imperador do Inferno, destronado após a queda da falange de
anjos comandada por Lúcifer, que derrotou e subjugou os demônios.
Os grandes senhores das trevas do passado, os chamados príncipes
do Inferno, se submeteram e hoje são leais a Lúcifer, se é que se
pode falar entre eles de lealdade. Apenas Beelzebú e mais alguns
outros demônios, em sua maioria femininos, se mantiveram como
inimigos dos anjos caídos, porém a guerra no Inferno aparentemente
terminou.
- E qual a relação dos padres vermelhos com tudo isso?
- Vou chegar lá. Entre os demônios fiéis a Beelzebú, alguns, a maior
parte de baixa categoria, vivem em meio às hostes de Lúcifer, de
certa maneira como espiões. Há os que o imperador do Inferno sabe
o que são, mas não os teme, se considera muito seguro em seu posto
e até se ri dessa oposição. A outra parcela seguiu Beelzebú para um
exílio forçado na única área do mundo inferior que nunca interessou
aos anjos caídos: o Abismo, também conhecido como Sheol. Lá,
apesar das suas forças serem menores, o antigo imperador guarda
consigo seu maior trunfo: Abaddon, um anjo caído que despencou
durante a guerra contra os demônios, se diz que depois de derrotar
sozinho os seis príncipes e destruir tantos outros, por isso apelidado
de “anjo exterminador”, só sendo vencido após um ataque traiçoeiro
de Lúcifer, que o precipitou em definitivo. Esse anjo, ao contrário
dos outros, não manteve a sanidade ao descer ao Inferno, e por isso
atacava tanto seus antigos companheiros das hostes celestiais como
os demônios, Beelzebú sendo astuto o bastante para não agredi-lo de
frente. Seu poder, segundo se diz, supera o de Lúcifer, ambos irmãos,
príncipes serafins ligados a Metraton e Sandalphon, tendo sido os
líderes da rebelião dos anjos, com a diferença que Abaddon não
conseguiu preservar sua lucidez após ser derrotado por Micael. De
acordo com algumas fontes, teria absorvido parte da força do
príncipe dos arcanjos, já que seria um anjo capaz de compreender e
absorver os poderes alheios; no entanto, não possuía equilíbrio
interno para suportar a energia de Micael. Fato que quando o antigo
rei dos demônios foi para o Abismo, encontrou Abaddon ainda
inconsciente e o aprisionou com correntes mágicas produzidas por
seus auxiliares, que só poderiam ser cortadas por uma espada
celestial, estando a do serafim agora em posse de Beelzebú. Quando
Abaddon voltou a si, o imperador destronado lhe induziu memórias
falsas que agigantaram seu ódio por Lúcifer, aproveitando-se da
fragilidade de sua mente. Dessa forma, Beelzebú o mantém pronto
para quando as forças do inimigo diminuírem...Por enquanto, ele e
Abaddon seriam insuficientes contra anjos caídos como Lucifuge e
Lúcifer lutando em conjunto com Lilith e os príncipes do Inferno,
mas é justamente por isso que o imperador exilado se aliou a certos
homens: e estes são os padres vermelhos, que em troca de se
tornarem os futuros senhores da Terra usam os cruzados para
enfraquecerem as hordas de Lúcifer. Originalmente, os cruzados
foram criados como proteção à humanidade, de imediato após a
catástrofe do ano 1000, período de terror no qual parece que os
portais dos domínios inferiores se escancararam, logo contribuindo
para o enriquecimento da Igreja, unindo o necessário ao agradável;
contudo, num determinado momento os emissários de Beelzebú
apareceram e fizeram sua oferta. Afirmaram que não lutariam contra
os cruzados e que, quando a guerra estivesse terminada, deixariam a
Terra livre para os homens, os demônios permanecendo apenas no
Inferno, novamente sob o comando do antigo Imperador. Ao menos
era o que diziam! Atualmente, como os portais não estão assim tão
abertos como naquela época, são os próprios padres vermelhos que
com frequência evocam e materializam pela magia os demônios
aliados de Lúcifer, a fim de que os cruzados os combatam e os
eliminem, havendo vez ou outra um “acidente” e se manifestando um
príncipe do Inferno, o que também parece ocorrer quando a
humanidade se comporta de forma não muito louvável, abrindo desse
modo uma porta maior, não prevista pela Igreja e que pode preocupá-
la. Dois príncipes, por exemplo, não deveriam jamais estar na Terra
de uma vez; é demais até para os cruzados.
- Mas há algo que não se encaixa. Se temos o sangue de Cristo,
como Ele permitiria que fôssemos joguetes de seres infernais?-
Indagou Cavalcanti.
- É simples.- E ao escutar esse “simples”, Masamune sentiu um
calafrio e olhou para Heráclio, que manifestava um semblante
entristecido e abaixou seu olhar quando percebeu que estava sendo
fitado; Miriam, ali em silêncio, lamentava mentalmente por aqueles
cinco, que pareciam bons homens.- Não há uma única gota do
sangue de Cristo em seus corpos. Apenas o sangue de demônios...A
matéria prima para que vocês obtivessem poderes incríveis para
enfrentar outros demônios, isso sem se tornarem magos, o que
ameaçaria o controle dos padres vermelhos. Os “possuídos”, na
verdade, não são possuídos por nenhum demônio externo; o que
ocorre é que quando o cruzado perde o controle sobre si mesmo, seu
lado humano se enfraquece e o seu sangue demoníaco passa a
prevalecer. O papa do período do ano 1000 era um hábil e poderoso
mago negro, que colocou o sangue de demônios que sacrificara em
um cálice e o imantou com a sua intenção, fazendo com que depois
todos pensassem estar diante de um artefato e de uma bebida santos,
menos é claro seus discípulos, amigos e seguidores, que deram início
à Ordem dos padres vermelhos. Os demônios executados por vocês
são muito úteis quando sobram restos mortais aproveitáveis; e os
materializados a serviço de Beelzebú voluntariamente doam seu
sangue para formar cruzados e reparar suas armas e armaduras. Por
fim, alguns feiticeiros que seguem o antigo imperador, o velho
Diabo, entram para a Igreja apenas para se tornarem padres
vermelhos.
- Não pode ser...Isso é absurdo!- Enquanto Miguel se mostrava
indignado, Bruno não se movia e seu rosto perdera toda a expressão;
Cavalcanti enxugou algumas lágrimas que escorreram por seu rosto e
Masamune levou sua espada ao peito.- Não posso acreditar nisso!
Você só pode estar mentindo!
- Use a sua razão, não suas concepções. Pense que um dia confiou
no seu escudeiro como aprendeu a confiar nos padres vermelhos, que
lhe salvaram a vida. Pergunte a Heráclio se isso tudo é uma mentira.
- Heráclio...- Cavalcanti se voltou primeiro para o ex-corsário.- O
que tem a nos dizer agora?
- Investiguei o meu interior e verifiquei que ele não estava
mentindo. Vocês só irão comprovar e acreditar quando fizerem o
mesmo.- Foi a resposta.- Só tomem cuidado para não se deixarem
“possuir”.
Miguel, em meio à raiva e à ansiedade, que ferviam seu íntimo, foi
o primeiro: fechou os olhos; algo em seu interior não estava nada
bem. Começou por uma sensação de estômago embrulhado, como se
tivesse comido algo muito ruim, e foi piorando, como se aquele
alimento estivesse não só estragado e sim envenenado. Desenhou-se
uma paisagem de papoulas azuis, ficando entre estas, chacoalhadas
pelo vento frio, que ficava a cada instante mais forte; quando se deu
conta, estava nu, o céu vermelho escurecendo até se tornar violáceo e
por fim negro, sem estrelas. Não restava nenhum brilho em sua alma,
ainda que tivesse se acalmado por vias forçadas; procurou por
roupas, por sua espada, porém nada disso estava acessível. Seus
olhos queimaram quando de repente viu no céu uma luz, dourada, e
em cada lado duas asas brancas. “Só pode ser um sinal de esperança.
Um anjo, talvez. Ainda não consigo acreditar em nada do que ouvi.
Esse anjo, tenho certeza, vai desmascarar essas bruxas, desmentir
tudo o que veio delas e mostrar a verdade ao padre Caio e a Heráclio,
que foram ludibriados. Tem que ser assim!”, entrementes, na luz,
quando esta se aproximou. só conseguiu discernir um semblante
horrendo, maldoso e corrupto, um corpo dourado se formando aos
poucos e à primeira vista belo, porém pertencente a um espírito
maligno: os cabelos, para o espanto do cruzado, lembravam os seus
próprios; uma couraça majestosa e pêlos rebrilhantes recobriam a
criatura; sua cauda era feita de placas espelhadas que não só
refletiam como aperfeiçoavam as imagens recebidas; as asas eram
dignas de um querubim; o único problema, portanto, residia na face,
a mais assustadora e cínica que Miguel já contemplara, em alguns
aspectos lembrando até seu pérfido inimigo Henrique! Afora o medo
e a impressão de impotência, dores nos músculos e nos ossos, o peito
queimando; foi ficando de joelhos, desabando de uma vez quando
viu o rosto de sua falecida amada Maria Cristina em uma daquelas
escamas, clamando por justiça e socorro.
Cavalcanti foi parar em um vale rochoso onde os ventos produziam
uivos, no qual teve a percepção que ficou caminhando por horas e
horas, depois por dias, em absoluta solidão, a fome e a sede
atingindo-o mas não sendo mortais; seus pés ficaram doloridos,
vestido apenas com trapos. Nenhum ser vivo. Os arbustos, árvores e
frutos todos secos e mortos; apenas pedra, entre escarpas, abismos,
estalagmites e cavernas vazias. Conquanto não morresse, a fraqueza
crescia e o raciocínio se turvava com o passar do tempo: “Será que
caí em uma cilada? Quiçá Miguel estivesse certo. O padre e Heráclio
podem não ter passado de ilusões produzidas pelas bruxas. Acreditei
na magia, e não no meu amigo. O que posso fazer se sempre prefiro
confiar quando há evidências de honestidade? Deveria selecionar
com maior rigor quem é realmente de confiança. Apesar que o
melhor, isso meu irmão diria, é desconfiar. É verdade, eu nunca daria
um bom político, não nasci para administrar; e acabei sendo um mau
líder, já que de alguma forma, pelas características dos que estavam
comigo, assumi o controle da missão: Miguel é impulsivo, Bruno
reservado e Masamune calado demais; o que não esperava era ser
enganado com tamanha facilidade, se é que fui, se isso não é um
teste. Mas já está durando demais; se fui assassinado e nem me dei
conta, que por favor alguém me apareça e esclareça as coisas. Que de
qualquer modo alguém apareça! Não posso é continuar nessa
situação, sem saber onde estou e o que será de mim. Sinto sede, e
muita fome, então não devo estar morto, a menos que me encontre no
Inferno, onde os padecimentos físicos prosseguem pela eternidade ou
por um longo tempo, que é o que prefiro acreditar, porque o tormento
perene seria demais para um Deus que Jesus disse que é do amor.
Cristo, anjos de Deus, venham em meu socorro, eu imploro! Seja
como for, seja de onde for; não importam os meios, quero que isso
termine. Devo estar morto com certeza, afinal já se passou tempo
demais; só que não me conformo! Bastou olhar pra dentro, e me vi
nesse lugar desolado. É pior do que qualquer inferno imaginado,
porque não tem nenhuma companhia; mesmo um demônio seria
alguém. Esse silêncio, quebrado apenas pelos ventos, é perturbador e
incômodo. Parece não haver a menor possibilidade de mudança.
Talvez seja o Limbo e não o Inferno, por isso o tédio e o isolamento;
embora tenha sido um guerreiro, estou certo que não merecia ser
punido, pois salvei a vida de pessoas e só matei demônios, além do
que nunca encarei Deus dessa forma, como um Pai severo que
castiga. Será que estava errado? Se é assim, Deus me pareceria mais
monstruoso do que o Diabo, espionando nossos atos e punindo cada
descuido! Acho que Deus tem mais o que fazer. No entanto, estou
disposto a aceitar o que vier, e me parece realmente ser o Limbo, e as
coisas se encaixam: devo ter perdido o controle e me deixado
possuir. É isso. Mas então o padre Caio estava errado; nós somos
mesmo possuídos quando erramos demais, e nossas almas são
jogadas no esquecimento e no vazio enquanto nosso corpo é tomado
por um demônio. O demônio não é interno, o que não sei se me
alivia...”, num determinado momento, sentiu que estava sendo
rasgado por dentro, e não era pela fome; certas garras que não via,
que entretanto percebia e acompanhava, subiram por sua espinha e se
fincaram em seu cérebro; não suportou e gritou pela dor. Depois foi a
vez de outras garras subirem de seu abdômen até seu peito,
perfurando seu coração; uma fumaça negra começou a sair de seus
poros e ao se dar conta se viu envolto por uma enorme sombra
ofídica repleta de vultos que sabia ser sua, embora ampliada e
fortalecida por pensamentos negativos alheios e passando a ter
vontade própria. Entre as faces que enxergou, seu pai, sua mãe,
Miguel, Torquemada, Cesare e Miriam. O porquê desta última não
compreendeu; o que entendeu era que precisava lutar, pois, caso
saísse ainda mais daquele vapor escuro de seu corpo, que vinha se
tornando pegajoso e palpável ao aderir à sua sombra, as garras
acabariam pulando para fora, perfurando-o, não havendo mais nada
para impedi-las. De alguma forma, a fumaça era uma espécie de
proteção que bloqueava um destino que ele não queria conhecer; pôs-
se a orar, coisa que raramente fazia, e buscou resistir o quanto fosse
preciso, ao passo que Bruno se via de volta à magnífica Veneza, a
cidade no entanto entregue a um caos absoluto: barcos incendiados,
comerciantes em fuga e demônios livres pelas ruas, massacrando os
homens e violentando mulheres e crianças; se mexeu para lutar e
ajudar, só que, conquanto conservasse sua arma e sua armadura,
eram todos fantasmas, os espíritos infernais atravessados pelos seus
golpes quando tentava golpeá-los e, assim como os seres humanos,
passavam através dele como se não existisse. “Mas o que estou
fazendo? Que absurdo é esse? Estava com a bruxa, o padre e
Heráclio, e bastou fazer o que me pediram, verificar dentro de mim
se há mesmo um demônio, para vir parar aqui? Não me parece um
lugar real. É apenas um cenário, imaginação!”, e uma sequência de
visões teve início: numa primeira, uma virgem era arrastada até a
presença do doge por duas criaturas monstruosas, meio humanas e
meio caprinas, e o governante de Veneza por sua vez tinha cabeça de
bode, rabo comprido, patas de cavalo e olhos de serpente; sorria com
malícia e exigiu que a garota fosse despida à sua frente e comesse a
carne que se achava num altar com oferendas para Satanás; tudo isso
com a cidade ainda em chamas, gritos do lado de fora, e um círculo
mágico desenhado por toda a sala, ocupando-a sem admitir
precedentes. Junto com seus servos, o doge abominável deflorou a
moça; depois lhes ordenou que a jogassem em uma zona de
prostituição, onde praticariam nela os maiores excessos, com um ar
de deboche revoltante. Por um segundo o etíope viu o rosto de sua
querida Vanessa no lugar do da garota; poderia ser ela...Assim como
tantas outras mulheres vítimas de magos pérfidos. Uma segunda
visão ocorreu na sequência, com um demônio correndo sobre as
águas e gargalhando enquanto segurava a cabeça de uma velha:
pareceu-lhe a cabeça da senhora Gemma, preciosa recordação que
guardava com toda a ternura. Seus olhos foram parar no casarão de
uma família rica, onde uma mãe gritava: “Deus, onde o senhor
está??”; o pai acabara de violentar os próprios filhos e matá-los com
uma foice, preparado para fazer o mesmo com a esposa, oferecendo
suas vísceras e órgãos a Mammon. “E se for real? E se Veneza
estiver assim neste exato instante? Não posso mais perder tempo, não
tenho esse direito. Demônios odiosos! Irá pagar caro, Mammon!
Você e todos os que o evocam. Nunca irei perdoá-los, o Cristo que
me perdoe! Nunca poderei ser um santo, mas ao menos irei punir os
monstros.”, o africano correu e dessa vez, com golpes furiosos,
conseguiu atingir uma criatura maligna. Ao perceber seu êxito, deu
prosseguimento, repetindo com dezenas de outras e seu corpos
despencando com violência nos canais, que em pouco tempo ficaram
cheios de cadáveres monstruosos. Esqueceu-se das bruxas, de
Cavalcanti, de Masamune, de Heráclio, de Miguel; concentrou-se
exclusivamente na batalha, inclusive invadindo casas onde sabia
estarem magos e demônios; em algumas horas, Veneza inteira estava
banhada em sangue; este agora rivalizava em volume com as águas
da cidade ao menos na percepção de Bruno, que via rubro por todos
os lados, o sol se pondo no alto. Ficou exausto, apoiando-se em uma
das poucas paredes que não haviam cedido com os ataques de sua
maça enquanto combatia os inimigos; crianças se acercaram. Mesmo
sem forças para comemorar e não sendo de exaltações, esperou ser
saudado e que o agradecessem e o felicitassem. Nada disso
aconteceu: estava claro pelos olhares que não o viam como um herói.
Tinham medo de se aproximar, embora o fizessem; suas almas
tremiam e seus olhos estavam paralisados. Os adultos, por sua vez,
ao invés de se acercarem e, no caso dos padres que estavam por lá, o
abençoarem, nutriam um temor ainda maior do que o dos meninos e
meninas, preservando uma distância que julgavam segura. Mães
tomaram coragem e, ao ficarem próximas, puxaram seus filhos e os
levaram consigo.
“Quanta ingratidão. Quase morri para salvá-los e estão com medo
de mim? Não sou nenhum monstro!”, parou de pensar e apagou;
quando voltou a si, já era noite. Seu vigor parecia ter voltado, mas
antes de qualquer coisa, como a cidade dava a impressão de estar
deserta, o silêncio absoluto, encaminhou-se para as águas, onde
pretendia como que por impulso ver seu reflexo. Na hora levou um
susto: tornara-se uma criatura disforme, seu crânio repleto de
calombos, fios de sangue escorrendo dos olhos e beiços inchados;
olhou para os lados: uma multidão inesperada vinha, desta vez com
tochas e espadas, para caçá-lo; como não queria agredir seres
humanos e nem estava em condições morais e espirituais para tentar
se defender, não havia outra escolha que não fosse correr para fugir.
- Que dor de cabeça! Mas parece que consegui voltar.- Cavalcanti
disse ao se ver outra vez entre Heráclio e seus companheiros, Miriam
mais atrás.- Quanto tempo passou?
- Alguns segundos.- Replicou o ex-corsário.
- Impossível ter sido tão pouco; nesse tempo estive em Veneza,
enfrentei demônios por lá e anda tentei escapar de uma multidão.-
Bruno se manifestou, consciente ali outra vez assim como Miguel,
que porém parecia entregue a um estado de perturbação e revolta
silenciosas.
- O tempo da alma é um, o da Terra é outro. Masamune é o único
que ainda não voltou do transe.
- Ficamos assim, de pé o tempo todo?
- Ficaram. O que viu, Lorenzo?
- Como foi possível uma interiorização desse gênero?- Questionou
Cavalcanti, mais interessado em esclarecer suas dúvidas.- Ainda não
entendo.
- Uma junção de vontade e poder interno.- A resposta veio de
Miriam.
- Se então é isso mesmo o que somos...O que nos resta fazer?-
Indagou Miguel, enquanto engolia a seco; seu coração estava como
que envolvido por uma poeira áspera e agressiva.- Acho que o
melhor seria nos tornarmos mártires, nos sacrificarmos lutando
contra os que nos transformaram nisso. Ao menos será uma morte
honrada e o Cristo poderá nos redimir mesmo com esse sangue
maldito que corre dentro de nós.- Sua saliva, amarga e ácida, fazia
sua língua arder; sua raiva apontava diretamente para a Igreja e os
aliados de Beelzebú.
- Atenção com o ódio. Você deve ter visto o que pode virar se não
tomar cuidado.
- Eu vi, mulher, e como vi. Também posso sentir, e agora sei que não
é mentira ou feitiço; mas entenda que é complexo. Não posso de um
momento para o outro virar um cordeirinho. De qualquer jeito, sou
uma parte demônio...Sou pior do que qualquer bruxa!
- Com tudo o que aconteceu, ainda não se desfez do preconceito?
- Além de vontade e poder interno, complementando o que a Miriam
respondeu pra você, Cavalcanti, acho que tenho outra explicação
pelo fato de aqui conseguirmos enxergar melhor a verdade.- Heráclio
interferiu, cortando um possível princípio de discussão e se voltando
para Lorenzo, que, visivelmente desestabilizado e não conseguindo
parar de pensar, sequer prestava atenção no amigo de armadura
dourada e não poderia ajudá-lo naquele momento.- Poderíamos fazer
isso em qualquer lugar com a postura correta, mas aqui é mais fácil
por toda a magia do local.
- De tantas magas e bruxas que há neste lugar, de tanta energia que
corre, fenômenos como os que testemunhamos aqui são mais simples
de ocorrer e induzir. Compreendi.- O cruzado de Florença respondeu
quase que sem vitalidade, murcho; olhou para a sua sombra e ainda
enxergava alguns rastros de faces que não a sua.
- Testemunhei e participei de banhos de desespero e morte.-
Interveio Bruno, dolorido por dentro e por fora.- E acho que não vou
conseguir sair de lá tão cedo. Na água, pelo reflexo vi quem sou de
verdade.
- Você não viu. Mesmo que tenha visto um monstro, não é sua
essência real, que nunca foi contaminada pelos padres vermelhos.
Eles introduziram esse sangue em você. Ele não é seu.- As palavras
de Miriam, apesar de conterem sensatez, não consolaram o etíope.
- Queria contar um pouco do que vi e senti na minha experiência e
ouvir as de vocês em detalhes, mas agora que pensei que é melhor
esperar que o Masamune também desperte.- Opinou Heráclio.
- Por que será que ele está demorando tanto?- Questionou Miguel.
- Apesar do nosso amigo ser muito quieto, talvez o demônio dentro
dele seja o maior de todos. Nunca se sabe o que essas pessoas
caladas guardam.
- Um dos problemas delas pode ser guardar demais. Apesar que isso
todos nós fazemos um pouco.
- Espero que ele não esteja se deleitando com o que sente e vê. O
demoníaco com frequência não se apresenta como feio ou
desagradável. Uma vez tive uma visão de Cristo, pouco antes de me
tornar um cruzado, mas infelizmente deve ter sido falsa; tenho quase
certeza que aquele era Beelzebú ou algum outro da laia, isso sim.
- E por que acha isso?- Indagou Cavalcanti.
- Na verdade aquela experiência, apesar de intensa, nunca me
convenceu.
- Claro! Afinal o demônio do qual aquele “Jesus” o livrou, chamado
Choronzon, é um dos acólitos de Beelzebú.- O padre Caio tornou a
se manifestar.- Que ironia! Depois acabou caindo justamente nas
mãos de aliados de Beelzebú. Deve ter sido um teatro armado pelo
próprio, ou quiçá uma brincadeira de Lúcifer só para humilhar
Choronzon, sem se importar que você fosse se tornar um cruzado
depois. O senhor do Inferno gosta de se divertir.
- Você ainda está aí...- Miguel lhe dirigiu a palavra e o olhar com
evidente desprezo.
- Entendo o que sente, pois sou um dos que o deixaram na condição
atual. Mas peço que se lembre, cavaleiro da espada do Espírito
Santo...Como teria vencido Henrique sem a nossa ajuda? Hoje não
teria um dos seus braços e não manejaria a sua belíssima lâmina.
- É estranho. Sou grato a Torquemada e a vocês e ao mesmo tempo
os odeio.
- A Providência não deixa nada ao acaso, estou começando a
compreender isso. Se temos o sangue de demônios, isso tem que ser
usado contra os próprios demônios. E não da maneira como a Igreja
quer, e sim como Deus quer.- Opinou Cavalcanti.
- Estou com uma vontade danada, Lorenzo, de arrebentar essa
proteção e colocar esse desgraçado aqui fora, pra que os demônios o
trucidem. Seria um justo castigo.- As palavras do guerreiro dourado
fizeram com que Caio efetivamente receasse esse temível destino,
engolindo a saliva, que parecia inquieta e não parava de se avolumar;
olhou para Miriam, que não se movia, e se quisesse Miguel poderia,
em poucos segundos, derrubar aquelas grades e expô-lo aos espíritos
infernais.- Mas sei que não vale a pena. Não vai me trazer nada.
Deus que seja sábio e faça o que bem lhe aprouver com esse sujeito.
Talvez a pior punição pra ele seja ficar trancafiado pelo resto da
vida.- Após um silêncio nervoso, breve na passagem cronológica
porém interminável psicologicamente, o ex-padre vermelho pôde
respirar aliviado com estas palavras.
- Uma sábia decisão. Portou-se como um verdadeiro cavaleiro, dom
Miguel.- A maga comentou.
- Sou um cavaleiro? Deveria ser um monstro. Mas
independentemente do que eu deveria ser, agirei sempre como sou,
coerente comigo mesmo. E por favor sem títulos honoríficos.
- Está certo.- Miriam meneou a cabeça de cima para baixo em
concordância.
- Você deveria ter me incentivado a acabar com ele, afinal é uma
bruxa.
- Faço minhas as suas palavras anteriores, parafraseando-as: não sou
o que deveria ser para os cristãos. Espero que tenha me
compreendido.
- Agora que me lembrei: já ouvi falar de uma bruxa chamada
Miriam em Florença.- Interveio Cavalcanti.
- É a própria...Como acha que vim parar aqui?- Indagou Caio, para
em seguida narrar o que se passara entre os dois em maiores detalhes
enquanto Masamune se debatia com seu pesadelo: em suas mãos
novamente a espada do oni-dragão, ou melhor, de Baal, vendo-se
obrigado a lutar contra centenas, um atrás do outro, e a derramar
sangue sem cessar; as garras da arma tinham se cravado em suas
mãos, que ainda não sangravam; sentia que isso poderia acontecer a
qualquer momento, se perdesse a concentração, e era ao mesmo
tempo tentado a se entregar por inteiro ao prazer de matar, como se
ao ceder fosse entrar em êxtase, ter algo muito maior do que um
orgasmo; entre seus adversários, demônios e homens, estes últimos
salivando e cuspindo sangue, mais violentos do que qualquer animal,
armados ou desarmados, com lâminas ou com suas próprias unhas.
Ao fundo, um dragão monstruoso, inalcançável, abria suas asas,
estendendo-as por vinte metros de envergadura; seus olhos reluziam
em fogo brusco, tiniam de ódio e impaciência; espigões, chifres,
garras e arestas ósseas diversas, nos pés, braços, na cabeça e nas
costas, se estendiam rumo aos céus ou se encravavam no solo; com
uma pele azul-escura reluzente, exibia às vezes os dentes de fio
branco e ao urrar os corpos de seus servos se abriam, dando a
impressão que sorria com a desgraça. Não importava que morressem:
dos restos dos que tombavam, novos nasciam; eram todos
descartáveis, do seu ponto de vista. “Aquele deve ser Baal...”,
Masamune tentava raciocinar; sem conseguir alcançar o que devia
ser o verdadeiro inimigo, permaneceu pelo que na sua percepção
foram dias, a um certo ponto começando a sentir fraqueza e cansaço,
os ferimentos graves produzindo suas consequências: a visão ficou
embaçada; os joelhos queimavam, um com uma flecha encravada e o
outro que fora arrebentado por dentro com o ataque de uma maça, só
continuando de pé porque era um cruzado; o sangue escorria pela
testa atingida por um golpe de espada; ao respirar, só não tão
ofegante porque já praticara inúmeros exercícios de fôlego e
resistência aeróbica, com o ar entravam corpúsculos de uma poeira
afiada e ferida, que vinha manchada de vermelho; só começou a
entrar em desespero quando suas narinas entupiram.
Concomitantemente, apesar da morte parecer próxima e das agonias
experimentadas, a dor trazia consigo um prazer paradoxal, uma voz
tentando-o a ceder de uma vez aos impulsos e se entregar ao fim
aparente, pois o que iria surgir na sequência seria um espírito
vingador: “Não tenha medo, e pare de se segurar. Deixe de lado essa
mentalidade de padre! A continência não leva a lugar nenhum; você
pode entrar em êxtase enquanto o novo ser que surgirá combaterá em
seu lugar, fazendo com que o seu fim não seja em vão. Se morrer se
segurando, não será livre e tudo terá sido inútil; não é necessário
temer, afinal em breve deveremos ser um...”, não tinha forças para
responder e nem queria dar ouvidos àquele palavrório. Fazendo um
esforço que julgou que seria o último, atirou longe a espada do oni-
dragão e caiu, sofrendo de imediato com o avanço dos demônios
carniceiros que se acumularam à sua volta. Embora continuasse
consciente, não iria mais se defender. “Cumpri o meu papel. Pelo
menos não me tornei um demônio.”, refletiu, sem ver o último
sorriso daquele que provavelmente era Baal e que rumou com suas
asas para bem longe, levantando um ciclone que empurrou e
derrubou alguns daqueles abutres do Inferno, que mesmo assim não
desistiram; estava longe de terminar, inclusive para o samurai, que a
despeito de estar sendo mordido, picado, aberto e rasgado sentia de
forma simultânea estímulos sexuais pelo seu corpo, que se
transformava por inteiro em uma zona erógena. O martírio não
excluía a tentação. Percebeu que um monstro pior do que qualquer
outro, inclusive do seu ponto de vista mais assustador do que Baal,
espreitava em seu coração, aguardando a oportunidade de tomá-lo
para si; seria algo interior ou uma influência externa? Chegou à
conclusão que era seu próprio Mal, a força oposta à Criação que todo
ser humano precisa combater todos os dias dentro de si; decidiu-se a
orar: “Curas e milagres podem ser bloqueados em razão de barreiras
ocultas. São Paulo, em uma das epístolas aos Efésios, escreveu que a
nossa luta não é apenas contra as potências de carne e osso, mas
contra os espíritos que se rebelam à grandeza de Deus; adiciono que
essas criaturas surgem não só de onde não esperamos, mas de dentro
de nosso peito. Um dia as barras da cela da prisão se partem. O que
fazer? Lucas nos disse que o Senhor nos deu o poder para subjugar
as forças do mal, e faz-se necessário realizar isso com ousadia. Não
há tempo a perder. As bruxas estavam certas, conquanto quiçá tenha
sido a marca do oni-dragão, ainda não sanada, embora oculta, a
facilitar o despertar do monstro em meu interior. Pensei que tinha
escapado da maldição, só que pelo visto ela só demorou a chegar. A
fé é a única escapatória; espero que ainda seja possível confiar minha
vida à cruz de Jesus Cristo e me cobrir com seu sangue,
independentemente do tipo de sangue que tenho por dentro. Cerco
minha vida com Deus, e nada será capaz de impedir a obra milagrosa
do Senhor da Vida. Em nome de Cristo e dos anjos e santos de Deus,
que eu possa sobreviver. Em nome do Senhor dos Exércitos desfaço
e dissolvo todas as maldições, feitiços, encantamentos, sujeições,
quebrantos, ciladas e influências espirituais que estejam se opondo
ao meu livre arbítrio; desfaço e dissolvo todas as enfermidades da
mente e do espírito que estejam me enfraquecendo e me impedindo
de resistir; a verdadeira fé está além da Igreja, além dos padres,
acima do que julgamos que foi definido e controlado. Retomo agora,
em nome de Deus, qualquer parte de mim que tenha sido cedida ou
que eu mesmo tenha entregado sem perceber a Satanás. Adeus às
influências deletérias e aos espíritos ávidos de mortiça!”, notou que
aos poucos a escuridão em seu interior diminuía, a consciência
inimiga em seu peito se retraía, os demônios externos desapareciam,
seu vigor retornava, e quando se deu conta estava de volta ao corpo,
em frente à cela do padre Caio.
- Que demora! Será que ao contrário de nós encontrou um Paraíso
com centenas de virgens como pensavam os seguidores de Maomé?-
Indagou Heráclio, o único ali a sorrir naquele momento.
- O que vamos fazer agora?- Bruno pensou um pouco antes de
inquirir.
- Antes é necessário deixar o nosso amigo informado também.
Afinal ele precisará tomar sua própria decisão com calma e sem ter
nenhuma dúvida em mente.
- Ainda estou perplexo e me sinto um peixe fora d'água.- O samurai
cristão admitiu.- A risca que divide o mundo dos homens do mundo
dos demônios é mais tênue do que eu imaginava.- De relance se
lembrou também de Bernlak, o “cavaleiro verde” que fora possuído,
vencido por ele e por Lorenzo em Burgos, um dos que começara a
lhe infundir dúvidas sobre a Igreja e a natureza dos cruzados.
- Talvez seja tão tênue quanto a que nos divide dos anjos. Nós é que
somos cabeças-duras.
- Mas o fato é que para nós cruzados a linha que nos separa do
inferno possui o espessor máximo de um fio de cabelo. A sensação
de êxtase e poder pode ser grande, mas é sempre ilusória.
- Você perdeu boa parte do que conversamos, já que foi o último a
voltar. Seria bom nos dizer o que viu, e de resto pode deixar que
tento esclarecer o que sei. Estou ciente de que não é muito de falar,
só que agora é a sua vez; será necessário.
- Está bem...- E, após as informações serem colocadas em dia,
Miriam fez sua oferta:
- O quanto precisarem ficar nesta ilha, não tenham receios, serão
bem recebidos. E no futuro, se optarem por permanecer conosco,
poderemos colocar em prática um plano que eu, Heráclio e minhas
companheiras viemos elaborando recentemente.
- Acho que já imagino do que se trata. Pretendem destruir a Igreja?-
Indagou Miguel, com um certo deboche ressentido.- Mais previsível
do que a encomenda!
- Deixe-me terminar, Miguel.
- É deselegante interromper uma dama, meu irmão.- Heráclio
zombou.
- E você está fazendo o quê?- Questionou o cavaleiro da espada dos
anjos.
- Talvez ele não me considere uma dama.- Miriam sorriu muito
discretamente, apenas com um leve movimento dos lábios.- Mas
indo ao que interessa, vou ser clara: não, eu não pretendo destruir a
Igreja. Em si, o catolicismo não é negativo. Nenhuma religião é. As
palavras do Cristo contêm inúmeros preceitos valiosos. Não me
atreveria a destruir o que ele ergueu.
- O que pretende então?- Foi a pergunta de Cavalcanti, franzindo a
testa.
- Os seres humanos são diferentes e o caminho da bruxaria é para
alguns, o da magia para outros, o do cristianismo para terceiros, e
assim por diante; ainda que existam os que conseguem conciliar
ramos distintos, uma tendência sempre irá prevalecer, afora que
alguns não aceitam ou não querem ser universalistas. Temos que
respeitar cada um em sua particularidade. Os epicureus também
merecem seu espaço, assim como os judeus; cultos como o Islã e o
budismo podem retornar algum dia. Não causando mal ao próximo,
não trazendo infortúnios nem evocando demônios, dessa forma não
colocando a humanidade em risco, o indivíduo tem o direito de se
expressar em plenitude.
- Sua meta portanto é eliminar os padres vermelhos e manter a
Igreja?
- Devolver a Igreja aos fiéis: é isso o que acho que devemos fazer,
retirando-a das mãos dos magos negros e dos mundanos. Quem
quiser fazer parte da Igreja, que siga os princípios do Evangelho, que
sejam pessoas que realmente se identificam com a doutrina cristã;
caso contrário, que procurem outros caminhos. Que se diga adeus ao
luxo. Todos serão humildes apóstolos de Jesus.
- É estranho ouvir isso de uma pagã.- Observou Miguel.
- Você me classifica do jeito que preferir, só que enquanto me tiver
em sua mente fixa feito uma estátua, não vai compreender como sou
de verdade.
- Ah, certo...- O cruzado bufou.
- Sei que está distante o dia em que ninguém irá se importar
negativamente com a crença e a vida alheias; mas o que eu puder
fazer para, antes de morrer, deixar o mundo melhor do que era
quando nasci, estejam certos que vou fazer.
- Eu ainda vou pensar no que fazer. Preciso de um tempo. Só sei que
não vou voltar pra Igreja, pelo menos não como aliado.
- Apesar de concordar com tudo o que você disse, Miriam, e lhe dou
os meus parabéns por pensar assim, também preciso de um tempo
para refletir. Espero que entenda.- Interveio Lorenzo.
- Perfeitamente. E fiquem tranquilos; contarão com a nossa
hospitalidade.
- Obrigado...- O guerreiro agradeceu e foi se retirando.
- Aonde está indo?- Não demorou para que Heráclio perguntasse.
- Preciso respirar um pouco.- E Miguel desta vez não o
acompanhou.
Em relação a Masamune, quando se deram conta, não estava mais
ali...
- Acho que não preciso pensar muito mais. Vi e senti o suficiente.
Vou lutar contra esses malditos demônios...Estou com vocês.- Bruno
não foi tímido em sua resposta.
- Assim que se fala! E logo tenho certeza que Cavalcanti, Miguel e
Masamune farão o mesmo.- Heráclio replicou e encarou o guerreiro
da espada do Espírito Santo, que virou o rosto e saiu.
- Os rumos estão se definindo, e o cheiro de guerra piorando; as
rosas sendo colocadas nas espadas. Só eu que nunca vou poder sair
daqui.- Lamentou o padre Caio.
- Quando a guerra entre os demônios e os homens terminar, claro
que vai poder.
- Duvido que vou estar vivo até lá.
- Vaso ruim não quebra.- Heráclio se retirou e a maga, após um
último olhar, fez o mesmo; não havia o que apagar...Tudo já estava
escuro.

Um casal se aproximava das cruzes de madeira fincadas no terreno;


túmulos precários, porém dignos, sobre um solo que dava aos dois
idosos a impressão de ter ficado acinzentado. Alguns cadáveres
haviam sido cremados porque o espaço era limitado demais para que
muitos caixões grandes fossem colocados ali; seguiam com alguma
firmeza e, ao pararem, a senhora, de olhar macio e pacífico, apoiou
sua cabeça no peito do marido, ambos com os cabelos tão claros
quanto seus rostos graciosos nos quais as rugas e os vincos em
excesso mesmo para a idade eram a decorrência pelas experiências
sofridas. As mãos do homem, que devia ser um camponês, estavam
repletas de calos.
- Você acha realmente que apenas os que conservam seus corpos
conseguem a Ressurreição?- A mulher indagou.- Isso é tão
cruel...Que chance nossos filhos tiveram? E os nossos netos, tão
inocentes? Não viraram cinzas por querer.
- Não sou um herege, mas discordo da Igreja nesse ponto. O que
importa é a alma. Afinal, se desenterrarmos os corpos que foram
enterrados inteiros, só vamos encontrar ossos; nada de pele ou
órgãos. Que diferença faz entre ossos e cinzas? Na Ressurreição,
acho eu, Deus não se limita; se ele criou o ser humano do barro, o
que o impediria de devolver a vida a um punhado de cinzas?
- Concordo com você. O que não entendo é por que a Igreja não nos
socorre. Aliás, parece que ninguém mais é auxiliado; ouvi dizer que
os vilarejos todos da nossa região estão sendo devastados pelos
demônios. Não é só o nosso. Onde os cruzados foram parar?
Enviamos requisições, e nada. Será possível que nossos mensageiros
tenham sido todos mortos no caminho?
- Não sei o que está acontecendo. Só sei que preferia ter morrido eu,
que não tenho mais tanto tempo de vida, do que o Gabriele, que
ainda era forte, e o Gianmarco, que era tudo pra mim.
- A Donata também era tudo pra mim. Tinha ensinado ela a bordar,
costurar; ela tinha feito uma boneca, já sabia até cozinhar um pouco!
Fiquei com dó da Pina também.- Referia-se à esposa do filho
Gabriele; trazia consigo, bem tímida, encolhida em sua mão, uma
rosa.
- É mesmo uma pena. Só nos resta rezar por eles.- Ele estava com
outra, a mão que a segurava na base de sua coluna, inseguro e lento,
como se não soubesse a hora certa para levar a flor à frente.
Fizeram o sinal da cruz e oraram, para depois depositarem as rosas
nas bases das cruzes do filho e da nora, ao lado das quais ficavam
duas outras bem pequeninas, referentes ao neto e à neta; a avó
chorou, enquanto o avô ficou estático, com as mãos unidas e os olhos
fechados.
De súbito, um sibilo; e passos. Alguém hostil se aproximava. E para
o desespero de ambos, que demoraram a ouvir, sabiam de quem se
tratava: com os corações acelerados, encararam o demônio que
causara o caos na aldeia, matando quase todos, só deixando vivos os
velhos, talvez por terem uma carne menos saborosa. Só que agora, na
falta de alimento, não tinha muitas opções. Uma criatura infernal de
baixa categoria, mas que mesmo assim era perigosa demais para um
ser humano comum, ainda mais dois seres do campo, pacíficos e
desarmados.
- Fuja, Luciana. Ainda há como fugir.
- Não vou abandonar você.- Paralisada pelo medo, enquanto o
marido se postara à sua frente, aquela pobre senhora não o
abandonaria; nem fisicamente, nem mentalmente, e nesse segundo
ponto residia seu valor.
- Não seja teimosa. Vá logo!- Apesar do rompante de coragem, não
era um guerreiro e não se sentia pronto para a morte. Por mais que já
tivesse dito que preferiria morrer no lugar do filho ou dos netos, não
queria morrer. Não saía correndo tanto por frágeis princípios morais
como por não ter condições para isso, com as pernas fortes ainda
para andar, porém ao correr seus joelhos davam a impressão de que
iriam estourar. Engoliu uma grande quantidade de saliva.
- Não tenho como fugir. E nem quero.- Enquanto o monstro, com
um olhar famélico, quase dois metros de altura, dentes e garras
recurvos, o corpo escamoso sujo de lama, só não os atacara ainda
porque, apesar de seu baixo intelecto e de não conseguir articular um
discurso, se deleitava ao vê-los sofrendo; a carne de idosos talvez
fosse um pouco melhor se temperada com dor, tanto física como
psicológica. Raciocinava como uma criança cruel ainda incapaz de
falar. Em sua testa um chifre único, enquanto sua cauda tinha
prolongamentos que pareciam os braços de um bebê humano,
despido contudo de qualquer inocência. Compreendia as palavras,
não sabendo repeti-las.
Não tardou para um novo acontecimento inesperado: uma explosão
e fumaça, que por pouco não atingiram o casal, que acabou indo ao
chão; aquela “neblina” escura e malcheirosa foi se dissipando sob os
urros de dor do demônio e, quando a maior parcela se foi, este
reapareceu com a cauda estourada e uma aparência furiosa, buscando
pelo agressor.
- Mas o que aconteceu aqui??
- Deve ser magia!- Só que não era...O disparo viera de um cano de
metal numa das mãos de um indivíduo que acabara de surgir e que se
aproximara rapidamente da criatura monstruosa, portando na outra
mão uma espada; com esta, esse misterioso salvador, que devia ser
um homem pelo porte físico e pela armadura negra que usava, com
um capacete bem fechado com aberturas apenas para os olhos e o
nariz, golpeou o pescoço do inimigo. Só que não conseguiu cortar-
lhe a cabeça.
- Não é um cruzado. Se fosse já teria conseguido!
- Mas é um cavaleiro valoroso, isso sem dúvida!
- Morre...Você. Morre...- O demônio “disse” toscamente, porém em
sua cintura o guerreiro trazia consigo outro pequeno canhão e, após
puxar um gatilho, atirou novamente, para o espanto dos camponeses,
dessa vez abrindo um buraco no peito do monstro e finalizando-o. O
efeito mais desagradável era a fumaceira.
- Deve ser magia do fogo. Um bruxo!
- Seja o que for, temos que ser gratos a ele!
- Isso se não nos capturar para experiências.
- Não diga besteiras!
O homem tirou o capacete: sem olhar para os velhos, que
começavam a se levantar, queria só ver de perto o demônio morto,
contemplar seu triunfo; dera cabo de uma criatura que teoricamente
apenas magos e cruzados seriam capazes de abater. Tudo graças à sua
destreza e inteligência.
Passava de um e noventa de estatura, a face de um príncipe, com os
traços sutis, o nariz pequeno, a pele clara, lábios finos, longos
cabelos lisos e olhos negros; entrementes, havia algo de terrível
nessa delicadeza aparente. A profundidade de suas pupilas dava a
impressão de guardar segredos inconcebíveis. Seu jeito de andar,
rodeando o cadáver do ser infernal, era sem dúvida majestoso.
Nenhum traço de sorriso.
- Obrigado por ter salvo as nossas vidas! Não imagina o quanto
ficamos gratos!- O velho camponês se aproximou, mas só recebeu
um olhar indiferente, depois ficando com uma certa vergonha
daquele semblante severo; não obteve nenhuma resposta. Sua esposa
sentiu um pouco de medo.
Pouco depois, o desconhecido de preto deu as costas e se foi da
mesma forma que aparecera, como que envolvido em uma cortina de
fumaça; ficaram sem a menor ideia de quem poderia ser, pois o
marido não ousou perguntar nada.
- Bruxo ou não, vou rezar pela alma dele de hoje em diante.
- Inclusive acho que ele vai precisar...Impressão minha.
Aquele não seria o último povoado visitado pelo homem de
armadura negra; nos tempos seguintes foram vários outros, até que
por fim chamou a atenção da Igreja: em uma das aldeias, pouco
depois de acabar com mais um demônio, encontrou-se com o
cruzado Sigmund, que não viera pelo espírito infernal, outro
ordinário entre tantos esfomeados que se manifestavam em pequenas
comunidades:
- Finalmente algum de vocês apareceu. Não imagina o quanto
esperei por esse dia!- Tirando o elmo, falou pela primeira vez em
público, uma aglomeração (nos termos daquele vilarejo) se formando
na praça principal, em frente à igrejinha, próximos do corpo em
decomposição de um monstro tentacular.
- Quem é você? Apresente-se.- Sigmund tratou de se impor.
- Leonardo d'Aosta. Esse nome não lhe diz nada?
- Não nego que me é familiar. Lembro que já ouvi falar do duque
d'Aosta.
- E decerto de seu filho mais velho que abandonou tudo para se
tornar um caçador de demônios.
- Pensei que fosse apenas uma lenda. Quer dizer que é você?
- Exatamente. Pelo visto, por você ter demorado tanto, devem estar
com falta de pessoal.
- Um homem que sem ter o sangue de Cristo correndo em suas veias
extermina demônios, mesmo que sejam fracos, é digno de louvores e
de chamar nossa atenção. A menos que seja um mago...
- Garanto que não sou um mago.
- Falam de canos de metal que disparam e provocam explosões;
você os carrega consigo. Isso não seria magia?
- De forma nenhuma. Estive no Catai há algum tempo, e lá
“descobri” uma invenção por eles usada em festas, que gera fogos
artificiais, e em batalhas, em suas catapultas. Trata-se de uma mescla
de salitre, enxofre e carvão vegetal que proporciona explosões; nada
muito complicado. Apenas adaptei esse processo para que se tornasse
uma arma eficiente e fácil de usar.
- Mais do que para exterminar demônios, é justo que lhe revele que
estou nesta região para cumprir outra tarefa: levá-lo comigo a Roma,
tendo em vista que os padres vermelhos querem estudar o seu caso.
No entanto, sou ignorante no que me explicou e gostaria de verificar
de perto se não se trata de magia.
- Os padres entenderão. Mostrarei tudo com calma.
- Por acaso fez tudo isso de propósito, para atrair a atenção da Igreja
e se tornar um cruzado?
- Nunca pensei em entrar pelos meios tradicionais. Sempre me
pareceu simples e banal, patético até. Fiz questão de provar que
posso matar demônios sem o sangue de Cristo. Imagine portanto com
o mesmo sangue que escorre pelas suas veias.
- É bom ir com calma, não seja pretensioso. Não enfrentou nenhum
demônio de primeira categoria; os que têm aparecido nesta região
são todos “soldados rasos”, digamos assim.
- Tem tanta certeza disso? De todo modo, esses “soldados”
arrasaram muitos povoados.
- Claro que reconheço seu feito. Mesmo para um grupo de
cavaleiros é difícil abater um demônio fraco.
- O mecanismo das minhas armas é simples mesmo para um leigo!-
Resolveu se aproximar de Sigmund e mostrar de perto, explicando
rapidamente como funcionavam e concluindo da seguinte forma:-
Municiá-las porém requer um tempo, por isso sempre entro com duas
ou três já preparadas para a batalha.
- Parece convincente, embora nada disso garanta que poderá se
tornar um cruzado.
- Estou disponível para que me analisem.- E não disse mais nada,
Sigmund por algum tempo ainda observando aquelas armas de fogo,
uma novidade absoluta para ele, até que partiram. No caminho para
Roma, cada qual em seu cavalo (Leonardo nunca usava o seu em
lutas, apenas para locomoção), o cruzado disse o que não pudera
falar em público:
- Nos últimos tempos tivemos muitas deserções e mortes. Você
deduziu bem: estamos precisando de guerreiros. Temos só cinco em
atividade e, entre os aprendizes, nenhum está pronto.
- Estou certo que sou melhor do que qualquer um dos aprendizes em
questão.
- Já disse para evitar a pretensão. Não se esqueça que ser um
cruzado é também ser um sacerdote, não um duque.- Leonardo
silenciou e Sigmund, que já não era de falar muito, fez o mesmo;
ficaram assim por quase todo o resto da viagem.

- E você vai deixar que mais quatro deles fiquem entre nós? Têm
medo que os homens aprendam magia, mas colocam seres metade-
homens e metade-monstros para morar por perto. Um total
contrassenso.- Zaqueu estava trabalhando em uma nova espada
enquanto falava com Miriam.
- Nós precisamos deles. Além de conhecerem a Igreja de perto, seus
poderes serão úteis.
- Melhor seria tornar vários homens magos. Menos perigoso! Tudo
bem aquele que está com a Raquel, o tal de Heráclio, afinal é um só.
Mas eles já estão em cinco. E se estiverem dissimulando?
- É certo que não. Eles viram a verdadeira face dos padres
vermelhos e olharam para dentro de si mesmos, encarando a mais
violenta e perturbadora das realidades que um ser humano pode
enfrentar: e fique certo que não são só eles que têm um demônio em
seu próprio coração.
- Você perdeu os seus pais e tanta gente morreu por causa desses
monstros do Inferno. Está certo que todos nós temos aspectos ruins,
sentimos raiva, ganância, ciúmes, somos mesquinhos, egoístas; mas
não nos transformamos em demônios, pelo menos não aqui na Terra.
Com eles isso é possível, podem virar alguém como aquele. Não se
trata de metáfora ou lenda; será que agora entende por que estou
preocupado?
- Existe outra razão.
- É mesmo? E qual seria? Vocês bruxas sempre acham que sabem
tudo, interpretam tudo e são as donas da verdade, afinal leem auras e
pensamentos. O que você lê de mim?
- Zaqueu...- Havia uma certa tristeza na voz da maga.- Não preciso
usar nada de magia com você porque o conheço muito bem. E você
está sendo estúpido. É assim que me considera? Acha que fico o
tempo todo “estudando” você? Se me vê dessa forma, por que ainda
está comigo?
- Tudo bem, desculpa. Acho que exagerei.- Disse com uma certa má
vontade, não sendo um arrependimento lá muito sincero e sem olhar
nos olhos de sua mulher.
- Está pedindo desculpas da boca pra fora e dessas não faço questão.
Por isso também não falo mais nada. Até mais tarde.
- Aonde você vai?
- Não lhe devo satisfações.
- Não vai me dizer o que tinha pra falar?
- Você não vai ter maturidade pra ouvir. Estranho, parece que ao
invés de ficar mais adulto depois que nos casamos, você ficou mais
infantil e birrento.
- Desculpa então! Apesar que já pedi pra me desculpar! O que mais
tenho que fazer?! Me ajoelhar e beijar os seus pés???- Virou-se por
fim para a maga, com raiva, o semblante transtornado, o suor na testa
cada vez mais brilhante.
- Não consegue conversar; só ser grosso, estúpido. Não é com esse
homem que resolvi dividir a minha vida. Não quero bajulações,
apenas diálogo e carinho. Não tenho mais isso de você.
- Ontem você estava toda derretida comigo!
- Não estava a fim de aborrecimentos, tinha tido um dia puxado. Por
isso preferi fingir que estava tudo bem.
- Então você finge o tempo todo.
- É claro que não, Zaqueu! Mas não há amor que resista a certas
atitudes.
- Quer dizer que finge que me ama, que sente prazer comigo?
- Não finjo que gosto da sua voz, do seu toque, da sua pele, da sua
presença. Só que me tratando do jeito que tem me tratado, com quase
indiferença, como se eu fosse só uma boneca pra você desafogar,
esse relação puramente física, isso não me satisfaz!
- Eu também me canso. E você às vezes fica com um ar de
superioridade, e não me trata tão bem assim. Fico humilhado.
- Superioridade?? E quando que humilho você??- Era muito difícil
ver aquela maga tão abalada emocionalmente; sentia seu abdômen
trepidar.
- Chega, Miriam. Um cliente pode chegar e aqui é a minha oficina.
- Tudo bem. Se eu o incomodo, melhor que me retire.
- Aonde você vai?
- É só com isso que se preocupa...- E se retirou; Zaqueu bufou e
demorou alguns minutos para retomar seu trabalho, chegando a jogar
sua marreta no chão; só começou a se aliviar e a ficar menos quente
do que a forja com a chegada de um cliente.
“Ele está com ciúmes. Acha que por não ser um mago, e não ter
poderes ou uma força excepcional como os cruzados, pode me perder
para um deles. Mas que absurdo! Como se fosse isso o que
importasse. Ele não valoriza o próprio coração, ao ponto que este
começa a se deteriorar; o coração pelo qual me apaixonei um dia já
não existe mais. Por que a união estável às vezes destrói o amor que
existe entre duas pessoas? Cobranças; reconheço que também cobro,
que falho, que tenho ciúmes. Mas trato de trabalhar isso, enquanto
ele nunca vai admitir os defeitos que tem e os erros que comete. Só
pede desculpas da boca pra fora e isso não tem o menor valor. Não se
ama, não se compreende; é vítima da ação do demônio interno que
ele mesmo criou. O meu peito às vezes dói, essas coisas marcam. Por
que é tão difícil simplesmente amar?”
- Tomei a minha decisão.- Miriam tomou um susto quando ouviu
aquela voz, distraída entre as árvores, sentada sobre uma rocha;
reconheceu-a de imediato e tratou de rapidamente enxugar a umidade
do rosto com as mãos.- Vou ficar aqui com vocês. E vamos realizar o
que você propôs.
- Agradeço, Cavalcanti. Você é uma adição valiosa ao nosso grupo.-
Ela se voltou tímida e parcialmente na direção dele, sem querer
mostrar direito a face; o guerreiro florentino sorriu:
- Pode me chamar de Lorenzo. E não precisa ter vergonha do que
está sentindo. Magos, bruxos e cruzados também têm sentimentos.
Não vou condená-la por nada.
- Sei que não vai. Mas é uma besteira.
- Não é besteira. Não se subestime. Se dizemos que estamos
chorando por besteira, isso significa que ou estamos subestimando
nossa resistência emocional, afinal uma besteira nos afetou, ou que
mentimos para nós mesmos.- Ao que ela silenciou, não respondendo
e virando o rosto; ele resolveu se sentar ao seu lado.- Não sei mais se
é um dom, mas leio bastante bem emoções e estados psicológicos
alheios. E não posso ficar indiferente. Algo me instiga a ajudar.
Posso ser quase um demônio, mas ainda sou um sacerdote de Cristo.
Que contradição!
- Você não é um demônio, tem uma bela aura prateada. Não se
resigne com o mal que lhe impuseram de fora para dentro.
- Digo o mesmo a você.- E enquanto aqueles dois estavam ali,
Bruno treinava com Gabriela à beira de uma lagoa, Miguel na mesma
cena, porém à parte, observando e refletindo.
- Tem certeza que não quer treinar conosco? É bom aprendermos a
lidar contra magia.- O etíope convidou o companheiro.
- Não, Bruno. Obrigado. Ainda estou precisando de um tempo pra
mim, de um tempo de paz.
- Como preferir...- E, intensificando os ventos ao redor do africano,
Gabriela o impedia de avançar, sorrindo em sua direção, enquanto o
ex-cruzado fazia um tremendo esforço para ir adiante dentro do
pequeno mas violento furacão restrito aos arredores de seu corpo.
Quando Flora apareceu, o olhar de Miguel pareceu recuperar o
brilho. “Como ela é bonita, apesar de ser uma bruxa. Maldita
tentação...”, conseguiu rir de si mesmo por um instante. Com relação
a seu voto de castidade, fora feito a si próprio, a Deus ou à Igreja?
Não sabia responder. Ainda estava muito confuso.
- A Raquel me mandou aqui pra convidar vocês pra almoçar na casa
dela.- Interrompeu o treinamento dos dois; o cão-lobo Órion veio se
aproximando, farejando a terra, e só levantou a cabeça para encarar
Miguel. Nada agressivo; transmitia uma impressão amigável.
- E por que aquela mocreia não veio pessoalmente?- Questionou
Gabriela.
- Está ocupada preparando uma sopa de lentilhas. Já aviso que não
vou.
- E por que não? Virou moça de recados agora?
- Estou ocupada com outras coisas.- Ignorando os ex-cruzados,
olhando apenas para a amiga (ou ao menos dando essa impressão),
deu as costas e foi se retirando com um sorriso estranho, que
contrastava com suas palavras duras e seu conflituoso estado interno.
O guerreiro de armadura dourada chegou a captar um pensamento:
“Estávamos tão bem antes da chegada deles! Não vou dividir a mesa
com esses sujeitos, que além de serem homens têm almas
parcialmente demoníacas.”, ouvir aquilo produziu uma tremenda
raiva em Miguel, somada a uma tristeza visceral. Pensou em atacar a
bruxa. No entanto, só de cogitar isso, notou que Órion, antes pacato,
rosnava em sua direção.- Órion, o que foi? Vamos embora.- Ao
perceber que a agressividade era direcionada ao cavaleiro da espada
dos anjos, encarou-o fixamente e os ressentimentos de ambos
ficaram expostos, ainda que não trocassem palavras.
- Calma, calma...- Gabriela se aproximou do animal e, ao acariciá-
lo, este começou a se acalmar.- Flora, você também não ajuda. Livre-
se desse preconceito tolo; eles são seres humanos como nós.
- Você confia de verdade neles? Não acha que a qualquer momento
podem virar monstros? Ou talvez já sejam. O que o Órion fez foi
reagir ao que existe dentro deles; não fiz nada pra incitar isso.
- Acha mesmo que não? Posso sentir a sua indignação no seu
pneuma, e sei que os seus sorrisos nunca são de alegria.
- Os planos da Miriam são idealistas demais. Quem está acostumado
à guerra, nunca vai abraçar a paz; você tentaria argumentar com
Lúcifer? No caso deles, é a mesma coisa. Só que são seres humanos
caídos, ao invés de anjos. E sendo homens, pior ainda. As pessoas
são diferentes, mas a Igreja não é mais necessária ao mundo, já
causou males demais; por que não um mundo onde as pessoas vivam
em harmonia com a natureza, sem os mandamentos de um deus
severo e ciumento?
- Você que está sendo severa e ciumenta aqui. Dura ao nos julgar, e
com ciúmes deste lugar, com receios que este pequeno paraíso em
breve se perca.- Bruno interveio.- Mas entenda: os demônios nunca
destruíram o Paraíso, que foi deixado para trás pela humanidade.
- Mas e quanto à serpente?- Questionou a bruxa de cabelos
cacheados.- Está claro que não é por acaso que o veneno entra.
- Mas o pior veneno é o que temos dentro, e que nenhuma poção
medicinal pode eliminar, algo que você conhece bem, pra isso não
existindo a necessidade do sangue de um ser infernal; é o nosso
próprio espírito que está maculado, que nós tornamos impuro.-
Interferiu Gabriela.
- Ela é muito teimosa, do tipo que nunca aceita quando está errada.-
Miguel cogitara se retirar e de fato se afastara, depois pensando
melhor e chegando à conclusão que não podia ser omisso, que tinha
que demonstrar sua força interior e deixar claro que também possuía
uma personalidade forte; por isso retornara.- Apesar de tê-la visto
pouco, posso dizer que já a conheço bem.
- Pode ser mordido se chegar mais perto.- Apesar do tom
provocativo, Flora parecia séria e triste; Órion voltou a demonstrar
hostilidade.
- Fique calmo; sempre gostei muito de cachorros.- Miguel sorriu e
se acercou do animal.
- Cuidado! Ele vai morder você de verdade!- Gabriela quis segurá-
lo.
- E daí?- O cão ladrou com vigor, Bruno se limitava a observar, e
mordeu a mão do guerreiro; Gabriela arregalou os olhos, enquanto a
outra riu e bradou:
- Seu louco! O que está fazendo?! Vai acabar contaminando o Órion
com esse seu sangue.
- Não se compara com a mordida de um demônio faminto. É um
bom garoto.- Miguel provocou e a bruxa não queria demonstrar que
se importara, ordenando ao cachorro-lobo:
- Largue a mão dele, Órion! Vamos embora...Vamos!- O cão acabou
soltando, mas não porque ela ordenara, tanto que quando a dona
começou a se afastar, Órion não a seguiu, um tipo de desobediência
que era a primeira vez que ocorria, parando de rosnar ou latir agora
para lamber o sangue da mão do ex-cruzado, com uma certa ternura,
como se fosse um pedido de desculpas de alguém que fizera um
julgamento precipitado. Flora ficou perplexa.
- Apesar da saudação inicial ter sido meio tensa, parece que ele
gostou de você.- Gabriela comentou com o guerreiro da espada do
Espírito Santo, que se abaixara para ficar na mesma altura de Órion.
- Os animais sabem reconhecer alguém que é digno de respeito.-
Respondeu Miguel; a bruxa se retirou.
- Hoje prevejo encrenca pra você, rapaz, quando voltar pra casa...-
Gabriela passou a mão pelo dorso do cão; Bruno colocou sua mão
direita no ombro do companheiro, que se voltou em sua direção e
exibia um sorriso que ainda não manifestara ali.
Alguns dias se passaram e Miriam tomou a decisão de consultar a
velha Agar para decidir sobre o próximo passo: estava cogitando ir a
Roma com Raquel, Flora, Gabriela e os ex-cruzados.
- Não se precipite.- Sua avó, apesar da idade, continuava sendo ativa
e lúcida, só tendo que deitar por algumas horas à tarde a fim de repor
as energias.- Em primeiro lugar, precisa formar um grupo coeso, e
pelo que você me disse, Flora ainda não os aceita. Tem que fazer
com que de alguma forma todos se entendam. Não precisam se amar,
mas que ao menos se respeitem.
- E como vou fazer isso? É uma das razões pelas quais cogitei deixar
a Flora aqui.
- Qual seria a outra?
- Proteger o lugar. Não posso simplesmente abandonar a ilha.
- Acha que eu não seria garantia suficiente de proteção, minha cara?
Ou então que morrerei logo?- A experiente bruxa sorriu e liberou seu
sarcasmo.
- Sabe que não é isso, vovó.
- Sei também que já tive melhores dias. Por isso compreendo que
raciocine que eu sozinha não poderia fazer muito contra um ataque
de demônios ou algo do gênero.
- Por outro lado, sem levar a Flora, acho que nosso grupo ficará
desbalanceado, com apenas três mulheres; quero um equilíbrio entre
a energia masculina e a feminina.
- Então tenha paciência. Eu gostaria de tocar em mais outro ponto,
se me permite...
- Claro, a senhora é livre e seus conselhos são sempre preciosos.
- A respeito do Zaqueu. Se partir, sabe que será o fim do seu
casamento, de uma vez por todas.
- O meu casamento acabou há algum tempo. Eu que estou me
apegando a uma esperança vã.
- Ao mesmo tempo que tem sido muito vista com aquele cruzado,
Lorenzo Cavalcanti.
- Tem se revelado um bom amigo e é um homem culto, sensível,
gosta de artes, sabe falar e principalmente ouvir, além de
compartilhar do meu ponto de vista sobre a Igreja e de ter muitas
histórias para contar. Temos falado bastante a respeito dos padres
vermelhos e do Inquisidor Torquemada.
- Se ele é bom pra ouvir, significa que você também tem falado
muito.
- Não sei por que; mas a confiança que sinto nele só é menor do que
a que a senhora e a Gabriela me inspiram.
- Vá com calma, Miriam.
- Obrigada por me dizer isso, vovó. Sei que não quer que eu me
machuque outra vez. Farei o possível.- Deram-se as mãos, a idosa
beijou vagarosamente o rosto da jovem, abraçaram-se e
permaneceram assim por um bom tempo, uma sentindo a respiração
da outra.

Apesar da chuva, havia bastante agitação nas ruas em virtude da


quantidade de tavernas e cantinas no bairro; as residências eram
casas estreitas e simples, muitas vezes espremidas entre os
estabelecimentos comerciais, daí a dificuldade de se dormir para
aqueles aos quais a agitação noturna não era agradável. Em uma
destas, sob a luz fraca de uma modesta lâmpada a óleo, um homem
de costas para a janela, a agitação externa mantida de fora por
cortinas espessas (do mesmo modo que a tranquilidade interior não
saía), lia em sua escrivaninha um breve tratado hermético anônimo,
ao lado havendo espaço para um discreto laboratório, naquele
instante uma substância mantida em um ovo filosófico sem a
presença do fogo. Um alquimista, era evidente, pouco visível na
penumbra, e sua experiência não estava inativa ou estática, embora
parecesse. Onde descansava ali? Na falta de um leito, um lençol
estendido no chão. Mas não iria se deitar tão cedo, e nem precisava,
abstraindo-se do barulho não para dormir, porque seu corpo não tinha
certas necessidades pungentes. Assim começava o texto:

O SEGREDO DO ALKAEST (OU IGNIS AQUA)


Em forma de perguntas, da parte de um buscador, e respostas, por
parte de um filósofo

Pergunta: O que é o Alkaest? Até hoje muito ouvi falar dessa


substância ou essência, mas só o que obtive foram lendas e fábulas,
sem embasamento na realidade, ou é o que me parece.
Resposta: Toda lenda ou fábula tende a ter um fundo de verdade.
Trata-se de um mênstruo católico, podendo ser chamado uma Água
Ardente, uma essência simples e imortal, penetrante, que reduz todas
as coisas à sua substância líquida original e a cujo poder nada pode
resistir, posto que atua sem reação alguma da parte do paciente.
Não lhe falta absolutamente nada porque está equilibrado e por ele
se pode Subjugar, e sem dificuldades, depois de haver dissolvido
todas as demais coisas. Sua natureza original permanece inalterada
e depois de mil operações conservará idênticas virtudes em relação
às que possuía em princípio.
Pergunta: De que matéria é feito? Pode me dizer de forma clara?
Resposta: É um sal nobre corrente, preparado com preciosa arte e
apuro até satisfazer a inteligência do artista engenhoso. Está
formado de uma substância espiritual uniforme, volátil por um calor
suave, sem deixar nenhum resíduo. Assim pois, este espírito não é
acido nem alcalino, mas um sal, que fique claro.
Pergunta: Qual é seu igual? Possui um (buraco no manuscrito)?
Resposta: Se conhecer uma, poderá reconhecer sem dificuldades a
outra; busca portanto, porque os deuses fizeram das Artes a
recompensa da engenhosidade. Não desista.
Pergunta: Qual é a segunda substância ou matéria do Alkaest?
Resposta: Um fogo rodeou o sal, a água envolveu o fogo e sem
dificuldades o queimou, porque dessa maneira está feito o Fogo dos
filósofos: o vulgo queima com fogo, nós com a água, e esta é uma
distinção fundamental. Atenha-se a ela.
Pergunta: Qual é o (mancha no manuscrito) mais nobre? Existe
uma grande diferença entre os sais?
Resposta: Se deseja aprender isso, penetre no fundo de sua
Essência, desça para dentro de si mesmo, porque, como o sal a seu
Vulcano, você a traz consigo. Basta ser capaz de discerni-la (...)

E continuava, concluindo-se da seguinte forma:

BENDITO SEJA O NOME DO SENHOR, SANTO DEUS DAS


ALTURAS!
O alquimista reconheceu, por seus conhecimentos, que havia (afora
as manchas e falhas no manuscrito, estas últimas causadas pela
voracidade das traças) partes faltantes, incompletas e alteradas que
deviam resultar de erros e interferências dos sucessivos copistas, e
que depois precisariam ser compensadas por uma nova e empenhada
busca. Todavia, a frase final foi o que mais o tocou: “Impressionante
que sempre, ao final de seus escritos, os Adeptos manifestam sua
gratidão para com o Criador; nunca se esquecem desse detalhe. O
tesouro dos tesouros é realmente algo que gera uma profunda
gratidão, uma preciosidade inigualável, e nessa situação não se pode
ser ingrato a Deus. Talvez eu consiga, por meio Dele, eliminar esse
sangue intruso que corre em minhas veias...”, ali estava Saoshyant,
que ao retomar seus estudos de alquimia naquele recanto obscuro
tinha metas precisas em sua mente: chegar à Pedra dos Sábios,
auxiliando as pessoas que Deus lhe permitisse ajudar, quem sabe
sendo possível a ressurreição de indivíduos ou a materialização de
certos espíritos, algo que desejava fortemente mas que iria respeitar
se não fosse da Vontade do Criador; e através da medicina universal
retirar o sangue de demônio do seu corpo, voltando a ser um humano
puro, o que tinha certeza que Deus desejava. Estava bastante
amadurecido, sem o egoísmo e o sarcasmo de outros tempos. Graças
à magia, não precisava abusar das forças concedidas pelo sangue dos
seres infernais; ainda que estas o tornassem mais poderoso do que
um mago comum, preferia usar esse poder com parcimônia a fim de
não correr o risco de se tornar um monstro, ambicionando um dia se
livrar de uma vez por todas dessa dependência. Que alcançasse o
Poder por outras vias, no magnífico caminho rumo à qualidade de
Adepto. Recentemente, vinha experimentando com orvalho, vinagre
e em especial com urina, o que estava contemplado no tratado do
Alkaest, que embora fosse definido como um solvente “universal”
precisava ser contido por algo. Ainda não sabia precisamente pelo
que. Devia haver algum sentido alegórico que não estava
conseguindo decifrar. Adeptos não costumavam pregar peças sem
razão. “O mais impressionante de se observar é a ação do fogo; não é
à toa que Heráclito de Éfeso o defendia como a forma mais essencial
da mudança contínua, a única realidade certa do cosmo. Sem o
elemento ígneo, não há transmutação; o próprio universo deve ter
surgido através dele, como mostram as estrelas, faíscas do que foi
esse fogaréu primordial. O calor altera os átomos, torna-os mais
suscetíveis e maleáveis, derretendo a dureza gelada que parece reinar
entre eles, permitindo que até se fundam, eliminando quaisquer
separações, que na verdade são aparentes, já que a natureza original
da vida pressupõe a união, uma fonte primeira da qual toda a
existência saiu. O interessante é que, enquanto Deus espalhou a
matéria e a vida, o trabalho do alquimista está em condensá-las
novamente. O volátil não deve se esvair, assim como o fixo não pode
simplesmente permanecer estático. Trata-se de um labor duro, digno
de um Hércules, de uma arte da paciência.”
Saoshyant não obtinha seu sustento de forma muito usual. Todas as
noites orava para o anjo da Guarda e para Deus e, ainda antes disso,
conjurava os seres elementais da terra para que lhe trouxessem
qualquer tipo de objeto, não importava o valor, desde que fosse algo
abandonado ou sem dono. Assim, obtinha desde livros descartados a
pedras preciosas que só aquela espécie de espírito era capaz de
encontrar, vasculhando nas cavernas e debaixo do solo. Contudo,
admoestava-os quando se dava conta que haviam pego algo por
outros meios, o que conseguia sentir ao simplesmente tocar o que lhe
traziam:
- Isto foi roubado, Lor. Você entrou em uma grande mansão e achou
que podia pegar o que queria por lá, que seria mais fácil do que
cavar, mergulhar na terra ou ir em busca de coisas deixadas de lado.
Sempre a solução mais fácil! Mas embora você ache que um
determinado objeto possa não fazer falta a um rico, que ele já tem
demais enquanto outros, como eu, não têm nada, diferentemente do
que ocorre no mundo de vocês, em que tudo é dividido, fique bem
sabendo, meu amigo, que um dia esse homem próspero é capaz de
perder tudo e sua única salvação seria o pertence que você surrupiou.
Os ricos deveriam dividir por livre e espontânea vontade. Se não
fazem isso, não é você que deve fazer justiça, deixe isso ao tempo, a
Deus e aos homens que ficam apartados do ouro.- Dera esse sermão
a um ente de pele marrom terrosa; sem qualquer roupa, chegava
quase à sua altura, possuía olhos cujas veias aparecentes lembravam
raízes e apresentava uma barba de folhas. Um gnomo levado e
impudico, dos que mais tinha dificuldades para controlar; quando
não roubava nada de ninguém, o mago forçando-o a devolver
qualquer coisa que lhe chegasse em mãos por um furto, sumia atrás
de alguma elemental alegra e viçosa.
Prometo que não vou fazer de novo, senhor Saoshyant.- Acabava
fazendo, só que o ex-cruzado tinha a esperança que um dia isso
acabasse. O fundamental no trato com os espíritos dos elementos,
sabia bem, era sua própria postura. Portanto, precisava se manter
íntegro, não alimentar sentimentos de tristeza ou raiva, e controlar
suas paixões, como diziam os livros de magia. Quanto ao sexo, a
abstenção não eliminava o instinto, domado no entanto por sua
vontade e pela lembrança de Daniela.
Ao resolver descansar, depois de revisar seus estudos, deitou-se não
para dormir, e sim com a intenção de meditar, relaxando o corpo e a
mente, e desse modo quem sabe conseguir uma projeção astral.
Esvaziou a mente e pôs-se a respirar fundo, quando ouviu como se
fossem batidas em sua porta. Uma...Duas...Três; por volta de dez
segundos entre uma e outra.
“Mas o que será isso? Será mesmo alguém ou estou ouvindo algo
que não é deste plano?”, resolveu se levantar. Ao chegar próximo à
porta, ia se focar em perceber quem estava lá fora e quais suas
intenções, quando se deu conta que estava volitando. No plano astral,
um homem apareceu bem “atrás” de seu corpo, e sem precisar se
voltar conseguia enxergá-lo: a princípio, aquele indivíduo não
passaria nada de extraordinário, nem belo e nem feio, porte físico
mediano, cabelos loiros cacheados, isso se não se prestasse atenção
em seu olhar, a coloração das pupilas um castanho brilhante,
provocativo e desafiador, ainda que sem malícia. Vestia uma túnica
celeste longa e de mangas compridas, com alguns detalhes
simbólicos que Saoshyant não lograva discernir, e portava nas mãos
um espelho, cuja moldura aludia a um dragão circular. “Quem é
você?”, indagou o ex-cruzado. “Um amigo da verdade. Ou, como
alguns preferem, um amigo do esquecimento.”, respondeu o
desconhecido, com um sorriso enigmático. “E o que deseja de
mim?”; “Acho que é você quem deseja algo e não o contrário. Tanto
que estava lendo o meu tratado...”; “É muita coincidência. O que me
leva a duvidar. Por acaso pode me fornecer provas de que estou
diante do autor de O Segredo do Alkaest? O que tem a me mostrar?”;
“Isto...Speculum Veritatis.”, estendeu o espelho; o ex-cruzado pensou
em renegar o objeto, porém mal teve tempo de pensar e já o tinha em
mãos. “Agora posso ir embora...”, o desconhecido anunciou sua
partida. “Não, espere um pouco! O que eu faço com isso?”; “Nem
todo presente é explicado.”; “Se é um Adepto, não pode ser cruel e se
negar a responder a dúvida de um aprendiz.”; “Por meio desse
espelho, você saberá quando será necessário voltar a Roma.
Consulte-o todos os dias, com o foco em Deus. A cada ocasião,
receberá uma nova surpresa.”, ia expor mais dúvidas, só que de
súbito as formas fixas se desmancharam, tudo ao seu redor se tornou
uma névoa rósea, depois amarela e por fim azul incandescente; as
aparências do “amigo da verdade” seriam esquecidas, não seus
ensinamentos, transmitidos por meio de uma música sutil que não
precisava de uma ordem simples para ser reconhecida como uma
expressão sublime; um tolo veria ali o caos, enquanto o sábio se
observaria para aceitar o insólito. Uma única forma bem definida
surgiu no alto, acima de sua “cabeça”, que se diluía pelo espaço: uma
cruz com uma rosa em seu centro; e, após as pétalas se abrirem e
deixarem o núcleo de rubis exposto, o mago se sentiu cegar pela luz
rubra e como que caiu em sono profundo por um tempo
indeterminado, reabrindo os olhos em seu corpo físico, já pela
manhã. Os pensamentos estavam confusos. Com as mãos cruzadas
em seu peito, notou que não se achavam em contato direto com o
tórax, havendo algo frio e metálico se interpondo. “O espelho do
alquimista...”, ergueu-se e olhou para seu reflexo: parecia o
Saoshyant de sempre; mas não era.

Na aurora do dia, o nascimento; o nevoeiro sobre as águas, ao invés


de aliviá-las e deixar pairar os mistérios, tornava-as mais tensas e
revelava imensos desertos úmidos de espaços desconhecidos. O som
era absorvido ao ponto de abafar as palavras dos fantasmas, o ritmo
constante das ondas abrandado por um silêncio que nada tinha de
tranquilo. O ar espesso e esmaecido dava a impressão de uma
atmosfera de algodão cinzento e molhado, abaixo da qual borbulhava
uma escuma fria. Como era bom nascer ali, distante e ao mesmo
tempo próximo das trevas, fora de si e dentro do mundo! Um êxtase
sussurrado percorria como sangue veias duras e secas; uma volúpia
doce se espalhava pelo resplendor paradoxal de uma noite eterna,
que se entregava à lascívia mais desesperadora, à espera de um “sim”
ou de um mero “é possível”. Olhos orgulhosos e feridos, belos em
sua altivez cortante, seus fundos da cor do ouro, com pupilas da
intensidade de um carvão incandescente, foram adiante para fitar o
tempo e o espaço. Outra vez em uma dimensão regida pela lógica!
Ao menos aparente, visto que aquela criatura não apreciava e não
compreendia as leis do Criador. As suas eram outras, do seu ponto de
vista mais dinâmicas: a metade esquerda de seu corpo feminina, uma
verdadeira Afrodite negra, com esplêndidas asas de plumas brancas;
à direita um Marte vermelho-escuro e decidido, um par de asas de
dragão em sua espalda. O rosto dividido em dois poderia se tornar
uno quando quisesse, assim como seu corpo, passando de ninfa alada
a homem-dragão. Seus olhos, contudo, nunca mentiam a respeito de
sua identidade fracionada entre a luz e as trevas: naquele início de
Agosto, o príncipe Astaroth tornava a se manifestar no mundo, e não
estava sozinho.
Ao seu lado, o marquês Aamon, corpo de serpente, asas de águia e
cabeça repleta de calombos, sem boca, nariz ou orelhas, apenas um
olho em sua testa e outro na nuca, o barão Pruslas, com seu físico
espartano, nu e com absoluto vigor, apesar de seu rosto disforme e
vermelho, com chifres peludos que se entrelaçavam no meio de sua
cabeça, asas amplas e igualmente peludas em suas costas, e outro
marquês, Barbatos, um demônio com aparência de mendigo ancião,
em andrajos, enorme sua barba imunda e grisalha, a cabeça calva, as
asas pequenas, baixo e corcunda, em contraste com seus
companheiros, que superavam os três metros de altura, sem falar no
príncipe, que passava dos cinco. Ainda assim, não se sentiria
diminuído...
Embaixo, um chão de espuma endurecida que se estabilizara sobre
o oceano forneceu o apoio. “Está na hora de vingar Rasheverak.”,
disse Aamon. “Precisamos primeiro verificar se sua alteza não tem
outro objetivo em mente para ser executado antes. Não seria bom
contrariá-la...”, foi a vez de Barbatos; em virtude da indeterminação
do sexo de Astaroth, referiam-se a ele/ela tanto no masculino como
no feminino. “Minha vontade de acabar com as bruxas é enorme,
mas tem razão. Precisamos nos conter.”; “Antes, o ideal seria nos
divertirmos um pouco com elas, se sua alteza o permitir...”, Pruslas,
excitado, disse com um olhar cínico. “Calem-se. Não voltamos a este
mundo para cumprir um objetivo tão pequeno. Rasheverak foi apenas
mais um fraco, que se deixou abater. Não levaremos isso adiante por
vingança e sim porque elas representam um obstáculo a mais na
conquista do mundo dos homens, uma barreira que hoje deverá cair.
Vamos à ilha e iremos abatê-las todas, para depois tomarmos posse
do continente. Asmodeus e Belial têm sido lentos demais...”, por fim
o príncipe se manifestou; sua voz mental, assim como devia ser a
física, parecia um coro de vozes femininas e masculinas em igual
proporção. “Há cruzados também por lá. Posso sentir.”,
complementou. “Como é possível?? Estão lutando entre si
provavelmente.”, comentou Aamon. “Nada disso. São aliados.”;
“Impossível! Como podem cruzados e bruxas se aliarem??”; “Está
contestando sua alteza?”, inquiriu Barbatos. “Conheço o passado e o
futuro. Nunca vi e nem previ uma união entre feiticeiras e soldados
da Igreja.”; “Os tempos estão mudando, e com grande rapidez; nós
estamos ficando estáticos e os humanos têm se organizado. O mundo
se encaminha para uma grande transformação e isso nem a sua
retrovidência e nem a sua antecipação dos fatos poderiam calcular. É
possível dizer que a realidade está se tornando imprevisível.”,
replicou Astaroth. “Se é assim, meus poderes ficaram obsoletos.”;
“Só que sua força ainda me é útil. Não se rebaixe nem se entristeça,
Aamon. A mudança vem para todos, e algum dia você sentirá que o
diferente lhe fez bem, o ajudou crescer. Ouça e aprenda...”, o
príncipe infernal escancarou suas asas e de repente desapareceu do
lugar, voando em uma velocidade impressionante; deixou para trás
os ventos, sendo seguido de imediato por Pruslas. “Acho melhor
irmos...”, Barbatos disse ao perplexo Aamon. Quando o chão
artificial começou a se desfazer, o segundo foi atrás do “velho”,
ambos levantando voo em direção à ilha de Magdala.
- Algo imenso e terrível está vindo. É muito pior do que da outra
vez.- Lá, as bruxas haviam atendido a uma convocação emergencial
de Miriam e Gabriela, assim como os cruzados; todos tinham
deixado de lado seus afazeres de momento. Fora a maga do ar a
sentir Astaroth primeiro, e antes mesmo que este levantasse voo.
Quando isso ocorrera, seu corpo inteiro fora percorrido por uma
corrente de vento gélida e violenta, que quase a fizera perder os
sentidos. Bruno estava ao seu lado, e tocara seus braços e depois a
abraçara para aquecê-la.- Estou com medo que hoje ninguém
sobreviva.- Presa do terror e do frio, não conseguia parar de falar.
- Ei, pára com isso! Nunca vi você desse jeito, mulher.- Raquel tinha
a intenção de apaziguar a amiga e não queria demonstrar seu medo,
porém suas águas internas tremulavam com a passagem do ar
erguido pelo voo de Astaroth. “O que será essa coisa? É muito
perversa...”
- Não é mesmo nenhuma brincadeira. É um demônio de primeira
grandeza que está vindo direto pra cá.- Complementou Heráclio.
- Além dele, sinto outros três, e também não são nem um pouco
frágeis. Só que perto do maior até passam desapercebidos, como
filhotes de tigre quando só temos olhos para a ferocidade da mãe.-
Observou Cavalcanti.
- Muito cuidado. Tente relaxar.- Agar recomendou em voz à baixa à
sua neta, que estava com o semblante endurecido e tenso demais.-
Você é a líder.
- Obrigada. Mas não sou mais do que ninguém aqui.- Respondeu
também em voz baixa, sua veste e sua espada draconianas prontas
para o embate que se daria em breve.
- Não é o que você pensa.- A velha bruxa conhecia o coração de
Miriam.
- Não se amedrontem. A natureza está conosco.- Flora, com Órion
rosnando a seu lado, encabeçava um grupo de bruxas.
- Deus está conosco.- Próximo delas, Miguel interveio. Apesar do
medo ser inevitável, não podia negar a si mesmo que seu interior
estava dividido entre este e uma ansiedade positiva: “Não vejo a hora
de encarar esse monstro...”, ao passo que Masamune, silencioso
como de costume, fazia uma oração com a espada próxima a seu
peito como se fosse uma cruz. “Bem que poderia ser Mammon...”,
Bruno refletiu.
Mas não era: não confundiria jamais aquele príncipe do Inferno
com outro, e quando Astaroth pousou entre as bruxas e os guerreiros,
a primeira reação foi ficarem quase todos e todas paralisados, menos
Miriam, Miguel, Cavalcanti e Masamune, que atacaram de imediato:
a primeira com chamas que sua espada espalhava; no segundo
cresceu sua aura dourada, incandescendo sua lâmina e aumentando o
calor ao redor, o que ajudou a maga a intensificar seu fogo; o terceiro
e o quarto se juntaram aplicando golpes com suas armas em uma
velocidade que olhos comuns jamais poderiam enxergar. Astaroth, no
entanto, sumiu dali e reapareceu, ileso, bem à frente de Gabriela e
Bruno:
- O medo faz vítimas precoces.- Disse; contudo, seu braço pesado da
metade masculina foi travado pela maça do etíope, segurando-o por
tempo suficiente para que a maga despertasse e saísse de perto. No
momento em que o ex-cruzado também se afastou, o golpe abriu uma
grande cratera no chão.
Quando Flora e Raquel, junto com Agar e as demais bruxas, iam
tomar uma nova iniciativa contra o príncipe, Aamon, Pruslas e
Barbatos apareceram: do olho frontal do primeiro saíram setas
metálicas que foram acertando quase todas as mulheres, alguns
projéteis em áreas vitais, fazendo saltar o sangue das jugulares ou
perfurando corações; o segundo pulou diretamente para perto de
Flora, e o terceiro atacou Agar.
- Como você é linda! É a minha escolhida hoje.- Disse Pruslas.
- Nem morta!- Sorrindo, Flora bradou orgulhosamente e Órion veio
em seu socorro, assim como tentáculos vegetais nodosos e plantas
espinhosas que nasceram da terra e prenderam e machucaram aquele
demônio, que no entanto, ao invés de demonstrar dor, também sorriu:
- Você sorri...Por dentro, deve estar gostando de mim! De qualquer
forma, gosto de mulheres com auto-ironia. Caso algo não dê tão
certo, não se preocupe: estou acostumado a possuir cadáveres! É até
melhor porque gritam menos.- Sua aura de labaredas agressivas
queimou os vegetais, reconstituiu seus ferimentos e afastou o cão-
lobo; só não esperava a intervenção de Miguel, que atravessou o
fogo, pois estava acostumado ao calor, saltou, derrubou o demônio,
cravando-lhe a espada no crânio, e ainda o provocou:
- Se é assim, você se tornará o mais novo cadáver.- A aura ígnea,
contudo, não se apagou.
O cruzado deixou então sua lâmina incandescer e permitiu que
fosse ficando dourada dentro do cérebro do inimigo, enquanto ao seu
redor o vermelho violento era também aos poucos substituído pelo
ouro. Flora se afastara um pouco, mas não estava terminado:
- Ficou assim porque peguei a sua namorada? Humanos são mesmo
patéticos. Um macho de uma espécie superior deveria ter o direito a
todas as fêmeas humanas!- O barão se reergueu bruscamente,
acompanhado por uma explosão que jogou o guerreiro longe, junto
com sua espada, que tratou de segurar com firmeza; seu cérebro
devia ser muitas vezes mais resistente do que o de um ser humano e
mesmo em relação a demônios comuns. O crânio logo se
reconstituiu.
Flora sabia que não era hora para raciocinar a respeito de sua
preocupação com Miguel; e uma imensa flor de pétalas roxas, e
abaixadas como cortinas, crescera ao seu redor e cobrira-a junto com
seu lobo-cão.
- Acha que pode se esconder aí, ficar segura dentro de uma flor?
Não seja ridícula!- As garras nas mãos do demônio cresceram.- Uma
pena! Vou ter que rasgar você inteira, junto com a flor. Mas há outras
bem bonitas que estou vendo por aí; não preciso de você. A verdade é
que odeio mulheres orgulhosas! Se você fosse simples e humilde...-
Não se dera conta que o odor pútrido emitido por aquela planta, do
seu ponto de vista agradável, se transformava em um venenoso
perfume ao penetrar por suas narinas; ao rasgar a primeira pétala, deu
de cara com a face séria de Flora e, gargalhando, pretendia fazê-la
em pedaços quando sua mão foi paralisada. Um tremendo esforço
depois, e percebeu que todo seu corpo só conseguia agora tremer
quando empregava o máximo de suas energias.- O que você fez, sua
cadela?!- Logo se deu conta que era uma arte da feiticeira, que não
duraria pela eternidade, a flor secando e murchando à medida que o
monstro lutava consigo mesmo e tentava recuperar seus movimentos,
o que conseguiria, o veneno não sendo forte o bastante para matá-lo,
quando Miguel, voltando à cena, saltou com sua lâmina quente para
decapitá-lo. Ao menos aquela luta terminara?- Não pensem que
acabou, seus desgraçados!- Para o espanto dos dois e o olhar
intrigado e assustado de Órion, a cabeça, depois de separada, ainda
parecia consciente. A bruxa e o cavaleiro pensaram que não podiam
deixar o corpo inteiro e o destruíram com suas espadas, só não
contando que Pruslas não falava em se regenerar: seu olhar
materializou um incêndio brusco que foi tomando conta das casas e
fazendo as bruxas menos experientes pegarem fogo. Segundos
depois, sua vida finalmente se extinguiu, o crânio no chão esmagado
pela maça de Bruno.
- Abandonem suas casas e salvem o que importa! Fujam para a
floresta!- Bradou Gabriela, enquanto junto com Raquel, água e
vento, se pôs a trabalhar para apagar o incêndio, e Miguel, Flora e o
etíope não teriam descanso, pois dezenas de demônios de categoria
inferior, das tropas de Astaroth, tinham se materializado a partir do
fogo, entre soldados rasos e devoradores de crianças, que de pronto
atacaram os meninos e meninas do lugar. A maga do pneuma tratou
de ser rápida, se concentrando e impedindo-os de invadir os corpos
infantis ao bloquear seus movimentos e confundir suas mentes.
Estava se culpando pelo medo que sentira, “se eu não tivesse sido tão
fraca e tivesse me centrado logo, não teriam morrido tantas
companheiras...”, descontando sua indignação consigo mesma nos
seres infernais, que quando ficavam imóveis ou contemplando
miragens se tornavam presas fáceis para as armas e habilidades de
seus companheiros.
Heráclio, por sua vez, estava coberto de sangue, mas ainda assim
resistia a Aamon, aparando poucos projéteis porém conseguindo
seguir em frente e atingindo o demônio com seus punhos; um
combate violento, o marquês infernal impressionado com a
tenacidade daquele humano...Ou melhor: “Ele não é totalmente
humano. Isso explica toda essa resistência.”, com seus olhos,
começou a observar cenas do passado do adversário e buscava
compreendê-lo. Contudo, na tentativa de penetrar no futuro, foi como
se um raio tivesse atravessado sua cabeça. Após o choque, uma dor
insuportável; os braceletes do cruzado estavam brilhando e este se
atirava com toda a coragem contra o seu corpo. “Parece um ataque
suicida, só que não é!”, de fato, Heráclio exteriorizava naquele
momento uma quantidade considerável de sua energia vital, ao ponto
de sua massa muscular crescer ainda mais, partes de sua armadura
racharem, seu rosto se deformar e seu poder mental se tornar forte o
bastante para bloquear o acesso do adversário. Durante o tempo em
que estivera com as bruxas, com a ajuda em especial de Gabriela,
treinara o suficiente para controlar seu “fogo” interno até o ponto
certo, dessa forma liberando uma força notável sem se deixar
“possuir”, no limite entre um estado e outro (os demais cruzados, sob
sua incitação e inspiração, tinham dado início a um treinamento
semelhante, mas em comparação ainda engatinhavam). Só passaria
do ponto se houvesse envolvimento e não observação.
“Ele sabe o que é, sabe o que fizeram dele. Esse é o problema!”,
Aamon compreendera seu inimigo e tentou voar para fugir; no
entanto, Heráclio conseguiu saltar alto o bastante para se segurar nele
no ar e caíram juntos. No chão, o ex-cruzado começou a estrangular
o demônio, que aos poucos foi se apagando; quando a alma deste se
dissipou, o ex-corsário, com o corpo inteiro pulsando em fúria e
vermelhidão, seus músculos como se fossem estourar sua pele e seus
olhos brancos, sem pupilas, os dentes mais afiados do que de
costume, principiou a orar e a respirar fundo para voltar ao normal.
Se conseguira em treinamentos, tinha que conseguir agora! Algumas
lágrimas escorreram dos seus olhos. Se sentia como se estivesse
prestes a ejacular, só que não poderia. Foi quando sentiu a presença
de Raquel.
Não foi preciso que ela dissesse nada; bastou que ficasse ali por
perto e a aura demoníaca foi se apagando aos poucos. A bruxa só
precisou manter a calma, intentar pelo bem de seu companheiro e
não se deixar invadir pelo medo e pela preocupação enquanto o
protegia de perigos à volta. Gradativamente a musculatura e o corpo
inteiro foram voltando ao normal. Ao término de tudo, puderam se
abraçar.
- Quantas vezes ainda você vai precisar me pregar esse susto?- Ela
indagou.
- Não sei. Talvez até o fim dos tempos. Pelo menos dos meus
tempos...
- Cala a boca, seu desgraçado...- Continuou séria e estreitou o
contato, enquanto ele sorria, evidentemente sem condições de
continuar a lutar, ainda que seus ferimentos tivessem sido sanados
durante sua “semi-possessão”.
Muitas haviam caído; entrementes, algumas persistiam, com
esperanças tanto na natureza externa como em suas próprias: assim
Agar e seu grupo diante de Barbatos, tendo acabado de prender o
demônio em um pentagrama, cada uma em uma ponta representando
um elemento, e as linhas que as conectavam assumindo cores e
estilos diferentes, conquanto em harmonia: da terra, onde estava a
avó de Miriam (elemento no qual não era especializada, porém como
mais experiente precisava fornecer uma base firme às suas jovens
companheiras) à água, a conexão tinha início pedregosa e ia ficando
enlameada; da água ao ar, principiava como um pequeno córrego,
que ia evaporando; do ar ao fogo, adquiria incandescência; do fogo
ao éter, o elemento que tem em si todos os outros, constituinte dos
espaços entre-mundos, subiam chamas frias e de coloração violeta;
do éter à terra o espiritual se tornava material e uma luz dourada
subia rumo aos céus. Para o mais sutil dos elementos, na verdade a
matriz de todos eles, Agar escolhera uma jovem superdotada,
chamada Sônia, que não se mostrava abalada pelos vários corpos de
bruxas estendidos nas proximidades; não que fosse fria, pelo
contrário, tanto que tinha o costume de conversar com os pássaros e
ouvi-los, e sim porque sabia se focar, conseguindo nos momentos
necessários deixar as emoções em último plano. Seus grandes olhos
azuis, e dotada de uma testa larga, os cabelos loiros jogados para
trás, foram a última visão do velho monstro antes de ser partido em
pedaços pela junção dos elementos. Enquanto as outras ficaram de
joelhos, extenuadas ao fim do enfrentamento, Sônia e Agar não
mostravam o menor sinal de desgaste, mesmo que por dentro
estivessem. A mais experiente lançou seu olhar em direção à batalha
que realmente importava...
Nesta, Cavalcanti e Masamune davam a velocidade e Miriam o
fogo, sem que nada disso conseguisse efetivamente ferir Astaroth;
ainda assim, o retinham até que pudessem contar com os outros. A
vaidosa criatura não parecia preocupada, como que certa de que a
qualquer momento a vitória seria sua. Contudo, quando se deu conta
que seus subordinados haviam quase todos sido abatidos, resolveu
falar, ao passo que jogava Cavalcanti para um lado, Masamune para
o outro e absorvia as chamas da maga em seu peito, encarando-a:
- Até agora vocês foram muito bem. Uma pena, porque um dia tudo
tem que terminar.- Diante da provocação, sentindo que o príncipe
infernal iria saltar para longe, Miriam considerou que era hora: tendo
aprimorado em muito sua técnica desde a luta com Rasheverak,
deixou a eletricidade ascender por suas pernas e esta percorreu
rapidamente cada parte de seu corpo; gritou para que Masamune e
Cavalcanti se mantivessem afastados e disparou dois relâmpagos, um
da ponta de sua espada e outro que saiu da ponta do dedo indicador
de sua mão; Agar prestou atenção.
O poderoso demônio deteve os raios com suas mãos, mas isso ainda
não era razão para se apavorar: outros dois partiram e o acertaram em
cheio; Astaroth urrou, mas no instante seguinte, para o desespero de
Miriam, mostrou que não estava sentindo nenhuma dor ao abrir um
sorriso sarcástico.
- Pensou que eu fosse do mesmo nível de Rasheverak? Afora que
também sou um mago do fogo...Só que milênios mais experiente do
que você. Queria acabar comigo com esse elemento?- Inquiriu e
materializou esferas ígneas que só não a pulverizaram porque
Lorenzo correu para tirá-la dali e Masamune, auxiliado agora por
Miguel e Bruno, retornou ao combate.
- Quatro relâmpagos! Ela realmente se superou.- Comentou Agar.
- Mesmo assim, não foi o bastante.- Completou Sônia.
- Não devemos ser pessimistas.- A velha fechou o rosto.
No entanto, o cenário não era nada favorável: com Heráclio e
Miriam sem condições de luta, os outros teriam que redobrar seus
esforços; e Gabriela bem que tentou conter o pneuma de Astaroth:
- Não dá...A vontade dele, ou dela, sei lá o que é essa coisa, é forte
demais!- Acabou sendo a terceira a ficar em péssimas condições, seu
interior invadido pela mente do terrível adversário e quase perdendo
a consciência, vítima de um terrível mal-estar físico e psicológico.
- Você de novo...- E de repente veio em Bruno a lembrança, que se
achegou ao seu coração, e doeu, ao mesmo tempo que dava sentido a
tudo, fazendo-o ter certeza de que nada fora casual: a visão com os
cavalos em Veneza, e os três homens que vira sobre estes, certamente
Miguel, Masamune e Cavalcanti, antes mesmo de conhecê-los; suas
forças para lutar deram a impressão de crescer, só que para
desanimá-lo desceu um golpe com toda a força do demônio e a maça
do etíope enfim se partiu; o ímpeto assim detido gerou uma tremenda
desilusão consigo mesmo, que o fez murchar. Miguel tentou difundir
sua aura dourada, esta contudo deglutida pelas sombras vermelhas e
amassadas que constituíam o entorno psíquico do inimigo;
Masamune só fazia pequenos cortes, que logo se reconstituíam,
naquela pele resistente.
- A gente precisa bolar uma estratégia.- Raquel comentava com
Flora; nessa hora, o olhar do demônio caiu bem sobre as duas e sobre
o cão-lobo ao lado. A mais jovem das cinco grandes bruxas da ilha
engoliu a seco; Órion retrocedeu, sem ganir, latir ou grunhir.
- Ótima inspiração.- Inesperadamente para os que continuavam a
lutar, Bruno muito corajoso agora com as mãos nuas, o monstro
vomitou algo. E, banhado por aquelas substâncias repugnantes,
emanando um odor insuportável e uma aura pesada que afastou os
cruzados, correu um canídeo monstruoso, que em parte lembrava um
lobo, em parte uma hiena, só que das dimensões de um tigre ou até
um pouco maior; quando Flora se deu conta, o monstro já saltara ao
seu lado e fizera o pobre Órion em pedaços. Raquel, menos afetada
pelo golpe, conseguiu agir e formar um chicote de água para atingir a
criatura; ainda assim, não conseguiu não chorar, afinal gostava muito
daquele animal, estava acostumada a tê-lo sempre por perto, leal e
carinhoso. O baque na outra bruxa foi violento: pela primeira vez em
anos sua tristeza externa, estampada em sua face, correspondia à
interna; não podia rir ou sorrir, de forma nenhuma, e firmando os pés
no solo se aproveitou da magia das águas marcante na presença da
companheira para fazer crescer uma enorme quantidade de plantas
com espinhos venenosos, que prenderam a aberração parida das
entranhas de Astaroth e deram-lhe um fim rápido. Na sequência,
juntou-se aos ex-cruzados em confronto direto contra o príncipe.
- Não devemos ficar para trás. Vamos até lá.- Agar disse a Sônia
enquanto observava Raquel indo atrás de Flora.
- E quanto às outras do pentagrama?
- Não possuem mais condições. Mas nós temos que ir.- A velha sabia
que aquela jovem tinha uma tenacidade semelhante à sua e por isso
confiava nela; por outro lado, o que mais esperar daquele confronto?
“Esse monstro não veio aqui só para vingar o outro que Miriam
derrubou. Tem ambições maiores; pouco se importa com seus
companheiros.”
Quem se importava com cada um era Cavalcanti, que acabara de se
aproximar das duas, com Miriam em seus braços.
- Ainda posso continuar...- Com a voz muito fraca, a maga tentou se
opor.
- De jeito nenhum. Você vai ficar aqui agora.- Disse o florentino.
- Nós estávamos indo ajudar. Mas agora fiquei em dúvida. Talvez
seja melhor você ir sozinha, Sônia.- Comentou com a outra ao ver de
perto a condição de Miriam.- Você foi fantástica, mas insana! Quatro
raios em um único confronto!- Decidiu direcionar toda a sua atenção
para a neta quando aquele homem a pousou no chão.
- E o pior de tudo é que foi complemente inútil.- Lamentou a maga,
passando as mãos pelo rosto, sem forças para ficar de pé.
- Você precisa descansar e recuperar as forças. Vou trazer aqui
também Heráclio e Gabriela, para só depois voltar à luta. Será que
pode cuidar deles por mim, senhora Agar?
- Claro. Mas seja rápido. Talvez não aguentem mais se você não for
logo ajudar.- Replicou a velha bruxa.
- Comigo não precisa se dar ao trabalho. Senti a energia dos feridos
e vim pra cá.- Heráclio surgiu, andando com esforço, e por fim caiu
sentado no chão.
Cavalcanti respondeu positivamente com um aceno de cabeça e
partiu; Agar abraçou a neta, buscando consolá-la ainda que com seu
jeito típico. Antes que Lorenzo voltasse com Gabriela, Sônia já fora.
Flora tentava prender os pés de Astaroth com polvos vegetais, mas
este não demorava a se soltar; venenos resultaram ineficientes, ao
passo que, quando Raquel tentava congelar alguma parte do seu
corpo, o frio se esvaía em segundos. A força de Bruno era pequena
em comparação com a do demônio e as lâminas de Miguel e
Masamune nem pareciam poderosas ou afiadas; quando Sônia e
depois Cavalcanti se juntaram, o resultado da batalha ainda assim
parecia mera questão de tempo:
- Vocês são todos fracos demais.- Um dos braços do monstro se
transformou em uma espécie de broca e atravessou a nova e brilhante
pupila de Agar com facilidade; em seguida, o corpo da jovem foi
cindido ao meio. A avó de Miriam, com a neta em seus braços,
observando a cena de longe, já estava suando frio; a maga do fogo
então se sentia a mais fraca e impotente das criaturas.
“Por mais que eu seja rápido, pra ele sou muito lento...”, Cavalcanti
refletiu enquanto tornava a atacar; contudo, como seus
companheiros, foi derrubado por uma nova explosão da aura do
príncipe do Inferno. Flora e Raquel ficaram inconscientes.
- Vocês têm o azar de, apesar de fracos, terem muita resistência. Isso
só prolonga o sofrimento, como acontece com uma barata!- Em um
segundo surgiu diante de Agar.
“Será o fim?”, questionou a velha e, mesmo com toda a sua
experiência, não pôde fazer nada contra as garras de Astaroth, sendo
decapitada no ato.
- Você então...Me subestimou antes, agora terá o seu castigo.-
Miriam de igual modo não teria reagido, se alguém não terminasse se
colocando à sua frente, e não Heráclio e nem Gabriela:
- Zaqueu!- Exclamou diante do último gesto do marido, que nem
teve tempo de dar uma palavra final ou um derradeiro olhar, até o
momento apenas mais um entre os tantos homens obscuros e sem
voz naquele contexto aberrante, que não fora para a floresta como
tinham lhe aconselhado, insistindo em permanecer por perto para
demonstrar que não era inútil. Cavalcanti acompanhou aquela morte
à distância, impossível reconhecer alguma expressão na face
retalhada, semblante que Gabriela fora a última a enxergar, repleto de
tristeza e resignação, mas também de força e coragem, cumprindo
seu papel até o último momento.
- Que idiota! Perdeu sua vida em vão. Os seres humanos são
incompreensíveis.- Astaroth comentou enquanto lambia o sangue do
pobre ferreiro, ainda em suas unhas.- De nada adiantou. Só fez adiar
a sua morte por mais alguns segundos.- Tornou a encarar Miriam.
Parecia tudo acabado; com Bruno e Miguel exaustos, Lorenzo
parecia ser a última esperança. Mas onde estava Masamune?
Antes que Astaroth pudesse tocar em Miriam, algo rasgou o ar e
levou junto a mão esquerda do monstro, que não teve mais o que
lamber.
- Mas aquele não pode ser Masamune...- A princípio, Cavalcanti se
recusou a acreditar.
Um novo ser surgira: olhos de aparência antiga ainda que jovens,
contendo pupilas enferrujadas em um fundo polido; o coração
pulsava e pétalas frias de metal vermelho se soltavam ao lado sob
uma brisa ligeira, que desmanchava o crisântemo rubro; por fora,
para o espanto geral, dedos que eram lâminas de katana, tanto nas
mãos como nos pés, assim como uma se erguia na testa, a partir do
meio das sobrancelhas, a maior e mais brilhante; cabelos de cobre
esvoaçavam; o corpo inteiro, nu, era cortante, a terminar pela cauda
letal, de fios envenenados; dificultoso manter o raciocínio em um
novo mundo de premências, ânsias e variadas sensações agressivas
que não paravam de rugir e provocavam ardor naqueles nervos
explosivos. Seu olhar de luas afiadas encarou a fornalha dupla de
Astaroth, que se intensificou diante daquela visão; as veias do
pescoço do príncipe do Inferno entumesceram. Os dois tinham
aproximadamente o mesmo tamanho. “Eu vou conseguir. Se Raja
pôde, também posso. Só preciso me concentrar...”
- Não acredito...Aquele ali é o Masamune??- Inquiriu Miguel.
- Só pode ser ele.- Respondeu Bruno.
- Mas que idiota! Que diabo de estratégia foi essa?? Ele não era
estúpido pra ser simplesmente “possuído”! Alguma coisa passou pela
cabeça do desgraçado, e acho que sei o que é!
- Uma tentativa desesperada de preservar ao menos algumas vidas,
às custas de sua própria; um guerreiro acima da média tanto em
capacidades de combate como em honra, digno da tradição dos
samurais, que cometem suicídio quando falham ou em caso de
vergonha, lutando até o fim em qualquer situação de batalha.
- Pode ser isso também, mas ele não se arriscaria a perder a
consciência gratuitamente, colocando a todos nós em risco. Não se
trata apenas do que você disse...Ele quis fazer como Raja faz.
- Usando a força demoníaca em sua totalidade sem ser dominado por
ela?
- Exatamente. Só que pra isso uma concentração perfeita e uma
mente inabalável são necessárias. Apesar que estou certo que depois
daquele indiano, o Masamune é entre nós o que tem a melhor
disciplina mental.
- E vamos ficar só assistindo?
- Acho que não há muito o que possamos fazer, a menos que ele
peça.
- Vamos ficar atentos.- Cavalcanti recuperou a voz.- E caso ele não
volte a si, sabemos bem qual seria a vontade dele numa situação
dessas.
- A mesma de qualquer samurai honrado.- Respondeu Bruno.
- O problema vai ser concretizar isso, se for preciso...-
Complementou Miguel.
“Incrível! Enquanto eu sofro pra manipular uma quantidade de
energia demoníaca razoável sem me perder, ele está conseguindo
manter a lucidez com toda a energia demoníaca em uso, e isso com
relativamente pouco treinamento. Ao menos é o que parece, ou
poderia estar nos atacando. Fora que não emana nada de ruim.
Nenhuma faísca de crueldade. Ele só quer cumprir com o seu
dever.”, observou Heráclio, ao passo que Astaroth reconstituíra a
mão decepada e passara a travar um duelo intenso com o guerreiro
“possuído”, seu fogo contra metais que pareciam imunes a qualquer
calor.
- Miriam? Pra onde a Miriam foi??- De repente o ex-corsário
escutou Gabriela perguntar; de fato, a outra maga desaparecera.
- Ahn? A Miriam? Também não vejo ela faz algum tempo, e não
percebi quando ela sumiu.
- Droga, ela é muito teimosa!- Gabriela fez um esforço extra para
ficar de pé.- Não ia mesmo deixar as mortes do Zaqueu e da Agar
ficarem impunes.
- Deixa ela. Aonde você vai?
- Atrás dela, pra onde mais eu iria?
- Entendo a sua preocupação. Mas se eu fosse você, seguiria o meu
conselho: melhor ficar quieta aí. E deixo avisado: não vou conseguir
ficar em pé tão cedo.
- Homens são sempre mais fracos...- Gabriela se afastou, ignorando
os protestos de Heráclio, e se concentrou, na medida das forças que
lhe restavam, para encontrar sua companheira; nenhum resultado. A
maga das chamas ocultara sua presença.
Em luta também consigo mesmo, não só contra seu oponente,
Masamune investigava as razões da materialização de Astaroth e
algumas imagens lhe vieram à mente, como uma bela jovem nua
correndo nas bordas de uma lagoa e na sequência um carrasco
forçando a cabeça da mesma jovem para baixo, em direção aos
joelhos, e colocando uma das mãos entre suas nádegas; com aquela
mão, com o dedo indicador, começou a vasculhar-lhe o ânus fazendo
com que chorasse mais pela humilhação do que de dor. Não demorou
para separar com violência os joelhos cingidos firmemente e deslizar
dois dedos para dentro dela, pesquisando enquanto penetravam cada
vez mais fundo...Sem encontrar nada.
- Claro está que não é donzela.- Disse a um homem de vermelho.
- Isso não interessa. Achou algum amuleto?
- Nada.
- Já sei. Ela deve tê-lo engolido, ou talvez fê-lo desaparecer com sua
magia. Proceda à tortura para que confesse.- E aquele rosto e aquelas
palavras duras não lhe soavam estranhas: era Torquemada.
Compreendeu o que materializava um número cada vez maior de
demônios poderosos no mundo.
Miriam, por sua vez, sabia que raios e fogo de nada adiantariam
contra aquela criatura; por isso, oculta entre as sombras das
folhagens, tentando afastar de sua mente as de seu marido e sua avó,
focou-se, ainda que com pouquíssimas forças, em realizar uma
evocação distinta: com sua intenção, traçou um pentagrama luminoso
no solo; sobre este, um hexagrama dourado; colocou seus pés sobre
os dois e por fim fechou o círculo.
- Que o Tetragrammaton e Shekinah estejam comigo.- Deu início à
sua oração.
Cavalcanti, Miguel e Bruno, ainda que não saíssem do lugar, se
concentraram para enviar suas forças restantes para Masamune, o
que permitiu que pouco a pouco a velocidade e a força do amigo
aumentassem de forma exponencial. Contudo, ainda era insuficiente
para vencer Astaroth, que com um braço flamejante perfurou o
abdômen do adversário:
- Você já me cansou...- O demônio estava cheio de cortes, agora
verdadeiramente ferido, ainda que não fossem ferimentos letais,
enquanto Masamune principiava a derreter; a fúria do príncipe do
Inferno se espalhou quando este liberou mais poderes, expandindo
sua aura, e labaredas se difundiram para queimar os amigos do
samurai, que no entanto fez um esforço para absorvê-las em sua aura
e dessa maneira não chegaram a chamuscá-los, danificando plantas e
habitações. O efeito colateral para o honrado guerreiro era a
diminuição de sua resistência.
“O fogo do Inferno, por mais antigo que seja, jamais poderá contra
a Luz dos Céus...”, as orações de Miriam acabaram tendo resultado,
com a aparição, próxima do círculo, de alguém que dava a impressão
de ser um espírito realizado: um homem de barba e cabelos negros
compridos, pele clara, túnica cinza longa com um manto vermelho
sobre seus ombros; tinha em uma mão uma espada, de empunhadura
repleta de rubis, e na outra uma cruz. “Fico feliz e imensamente grata
que Deus tenha enviado alguém para atender o meu chamado e me
auxiliar...”, a maga ficou de joelhos; isso se deu não só por respeito e
devoção como por falta de forças. “Levante-se, mulher. Sou
Bartolomeu, e Astaroth me odeia desde os tempos que não cedi à sua
tentação; hoje ele não pode me ver, e nem me tocar; mas eu também
não posso fazer por você. É preciso que se erga para conduzir o fogo
do Espírito, que irei transmitir à sua alma, e não se preocupe, pois
Este lhe restituirá o ânimo; afora que quero que fique de pé porque
em nada é inferior a mim, somos ambos filhos de Deus.”; “Agradeço
mais uma vez, grande santo...”, levantou-se ao aceitar a mão daquele
iluminado, que a reergueu, e nessa hora suas pernas pareceram
recuperar as forças; “Posso ler a gratidão em seu coração, e foi o que
existe nele que me trouxe aqui; não precisa reduzir seu sentimento a
meras palavras.”, São Bartolomeu desapareceu tão rapidamente
quanto aparecera e uma enorme claridade dourada de contornos
rubros desceu num baque do alto, como se o sol despencasse, o que
não teve como não ser notado por Astaroth; a tristeza e o medo foram
expulsos do interior de Miriam, que se sentiu integrada à eternidade,
sem receios por seus entes queridos, ao seu lado para sempre, tanto
Agar e Zaqueu como Cavalcanti, Gabriela e outros; mentalizou sua
vitória e não tardou para que escutasse o canto de um anjo e uma
lança comprida, parecendo de aço espelhado, se formasse da luz e
transpassasse o corpo do demônio. Todos ali, menos a maga, ficaram
cegos por alguns segundos; quando tornaram a enxergar, o mundo
parecia ter voltado ao normal. Silêncio; isso antes do último grito do
príncipe infernal, que durou um minuto inteiro, antes que seus olhos
se apagassem e seu corpo fosse desfeito pelos ventos como que feito
de areia. Pena que Masamune estivesse no chão, sem pernas ou
braços, somente uma cabeça disforme e de expressão esmorecida em
uma poça de metal líquido; Bruno cobriu o rosto com as mãos.

A fogueira crepitava devagar, sem passos interagindo com as folhas;


quietude e pouco movimento. Miriam era a única a querer ficar
próxima das chamas, todos os outros afastados, menos Cavalcanti,
que fazia um esforço para ficar perto. Os olhos cerúleos da maga
estavam mais arregalados do que nunca, não ardendo nem um pouco
com o calor.
- Se preferir, posso lhe dar mais tempo para responder. Enquanto
isso, prosseguiremos com o treinamento normal. Compreendo que
ainda tenha um certo medo de nós, que fiquemos poderosos demais,
e tenho consciência das tradições deste lugar.- Lorenzo quebrou o
silêncio.
- Este lugar não existe mais...Praticamente.- De fato, ao combate
contra as forças de Astaroth, por volta de uma semana antes, haviam
sobrevivido, além dos quatro ex-cruzados e das quatro líderes,
pouquíssimos homens e mulheres jovens e maduros, uma maioria de
idosos e crianças, que também não eram tantos assim. Quase todas as
bruxas e magas estavam mortas.
- Nunca imaginei que Miguel fosse aceitar o que eu propus a você
de tão bom grado. Em outros tempos, seria inconcebível.
- Só que como vimos, hoje é uma questão de sobrevivência.
- Exato. Precisamos ficar cada vez mais fortes, em conjunto, ou não
teremos chances na guerra que está em curso e que vai se
intensificar.- Os restos de corpos e despojos dos falecidos haviam
sido cremados; Miriam orava todas as noites por Zaqueu e Agar, em
silêncio ou com palavras, enquanto os ex-cruzados tinham enterrado
a katana de Masamune e sobre esta colocado uma pedra de formato
curioso, que lembrava uma cabeça humana e remotamente parecia
revelar um rosto oriental. Ao menos Heráclio vira assim...
- Vocês estão certos. Mesmo que a morte promova renovação, que
não haja vida sem que a matéria em decomposição fertilize o solo, eu
não quero ver tantas pessoas morrerem outra vez tão cedo.
- Quer dizer que você aceita nos treinar, ser nossa instrutora de
magia?
- Vou dividir esse fardo com Gabriela, Flora e Raquel.- Abriu um
sorriso muito discreto.- Cada uma na sua especialidade, da mesma
forma que vocês têm habilidades diferentes, afinal somos únicos.
- Se eu pudesse, daria a minha agilidade e a minha resistência física
a você.
- Sei que tem boa vontade.
- Por outro lado, posso sim lhe dar algo, se me permitir...Ouviu a
minha segunda proposta, não ouviu?
- Com toda a atenção.
- Quer tempo para responder?
- Como no primeiro caso, acho que não temos tempo a perder. Só
uma coisa me preocupa...
- Votos de castidade são apenas questões formais.
- Então a palavra dada não vale nada?
- Não é isso.- Seu semblante pareceu ensombrecer.- Apenas não
tínhamos escolha.
- Eu sei, eu entendo...Mas é outra coisa que me atormenta.-
Aprofundou seu olhar no do guerreiro.
- Fale de uma vez então.
- Vocês cruzados não envelhecem. Como será o nosso futuro? Como
viver com um homem que nunca vai mudar de aparência?
- Cruzados não costumam viver muito, por razões que não morte
natural.
- Não fale assim. Nem começamos e está dizendo que vou perder
você logo.
- Eu poderia ser pessimista e dizer que nenhum de nós tem a
esperança de uma vida longa, que cedo ou tarde iremos cair, no meio
dessa guerra entre o Céu, o Inferno e a humanidade. Só que não vou
dizer isso.
- Já disse.
- Você ser tão alerta foi um dos aspectos que mais me atraiu. Só que
o que poucos sabem é que, se quiserem, os cruzados também podem
envelhecer na aparência, se tiverem essa vontade. Um colega meu,
Sigmund, disse que o mentor dele, chamado Leovigild, usava uma
aparência de velho pra demonstrar que não pecava pela vaidade. Só
lamento que, se tudo correr bem, não vou ter como morrer quando
você partir, já bem velhinha...
- Nesse caso o problema é seu.- E se aproximou dele para se
beijarem pela primeira vez. A noite seria longa e a paixão
consumada. Heráclio percebeu que Raquel observava os dois:
- Deixa de ser curiosa, é feio se meter na privacidade alheia!
- Fica no seu canto, ô espantalho!- Brincaram, ao passo que Miguel
parecia feliz ao testemunhar o sucesso do amigo com a “bruxa”. Não
pronunciava mais essa palavra com desdém. Ao observar o fogo à
distancia, pensou em quantas voltas sua vida já dera.
- Está com saudades de alguma coisa...- Ouviu a voz de Flora, que
se aproximava. Parecia triste e séria, e estava realmente triste e séria,
desde a morte de Órion sem mais inversões de nenhum tipo entre
expressão e emoções. Como um gago que corre para espalhar o
desaparecimento de sua gagueira, deveria estar com vontade de
comunicar a todos que agora podia chorar quando estava triste e
sorrir quando alegre, enfim livre de seu distúrbio, que por tanto
tempo parecera incurável. Mas, como não iria rir ou sorrir tão cedo,
melhor esperar por um momento mais agradável. Perceberiam sua
mudança naturalmente, acreditou.
- De muitas coisas, pra dizer a verdade. Da minha segurança,
principalmente; não tenho mais no que me segurar. Não sobrou
nenhum apoio.
- Perder o Órion pra mim foi terrível também. Perdi o meu melhor
amigo.
- Se quiser, pode ganhar outro.
- Se eu conseguir confiar nesse outro...O problema é que é um
macho humano.
- Não totalmente humano.
- No caso, pior ainda...- Decorreu um silêncio incômodo; ainda
havia algo a ser dito:- Me desculpe, acho que me expressei mal. Não
quis ofendê-lo.
- Pelo menos hoje não...- Miguel sorriu e a encarou.- Como você
tem saudades do Órion hoje, por muito tempo me senti vazio sem a
minha mulher.
- E hoje não sente mais nada? Imagino que para os homens seja mais
fácil.
- Esquecer uma esposa que amava do que uma mulher esquecer um
cachorro?- Completou.- Não é bem assim...É que passei a ter outras
obrigações, e isso me fez pensar menos nela.
- Então não deixou de pensar.
- Nunca.- E deu as costas à bruxa quando esta não esperava;
novamente o silêncio, e ela dessa vez saiu de cena. Um choro rápido
escorreu por sua face, logo tratando de enxugá-lo.
Já Bruno e Gabriela, abraçados sobre a relva, escutavam juntos uma
música lenta que ninguém mais podia ouvir; em ambos, pouco a
pouco, o passado se esvaía. Baruch, assim como as irmãs de Flora,
tinha sido vítima do calor demoníaco de Astaroth; famílias
despedaçadas e reflexos de um adeus partido...Era contudo preciso
seguir adiante. De forma similar, ele expulsava os fantasmas que
ainda rondavam sua Veneza...Que tinha vida própria em seu interior,
independente da cidade real.
Lorenzo e Miriam, em um breve ritual simbólico, de mãos dadas,
pegaram um pouco de terra com as mãos que estavam livres e
jogaram essa matéria no fogo; transmutação para os novos tempos.
Reformar suas armas e armaduras, usando seu próprio sangue, seria
um trabalho a mais para os ex-cruzados, Heráclio já tendo se
comprometido a aprender as artes da forja, assim como Miguel, com
os poucos ferreiros que haviam sobrevivido; o importante era seguir
vivendo e transformando a si mesmos, até que chegasse o dia de
transformar o mundo.

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