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A Rosa e a Cruz
A ROSA E A CRUZ
Volume 2
Você não pode criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta
obra sem a devida permissão do autor.
PRIMEIRO ATO
As bruxas
I – Fogo
II – Ar
III – Água
IV – Terra
SEGUNDO ATO
Da Árvore
TERCEIRO ATO
Adão e Eva
- Lamento, vossa senhoria. Mas a ida a Roma não nos revelou nada
além da resposta dada por carta por Vossa Eminência, o cardeal
Mazzarino. Inclusive conversei com alguns padres vermelhos, e
lamentaram profundamente a deserção de Saoshyant, desaparecido
durante todos estes meses, e o conseqüente sequestro da senhorita.
- Ele não pode ter morrido no confronto, já que o corpo de um bruxo
foi encontrado dividido em dois justamente no local onde ele lutou
para proteger a cidade. Depois de terminar o trabalho, tomado pela
luxúria, deve ter se esquecido de sua função sagrada e vindo aqui e
raptado a minha filha, apaixonado que estava...Eu que fui cego e não
percebi isso! Ela deve ter lutado, mas como iria resistir? Por outro
lado, pode ser que também tivesse se apaixonado, e por isso ninguém
ouviu nada, nenhum grito...É possível que tenham combinado uma
fuga. Ao mesmo tempo, ele pode tê-la golpeado sorrateira e
covardemente e carregado minha pobre menina inconsciente para
longe; não devo culpá-la...De qualquer forma, foi uma vítima. Não
entendo como alguém que possui o sangue de Cristo possa cair em
pecado e se tornar um delinqüente! Terá sido possuído, como
acontece com alguns cruzados que se entregam aos pecados e aos
prazeres segundo o que a Igreja diz, pois para eles o erro é punido
com muito maior severidade, todo o sangue de Cristo se esvaindo e
ficando totalmente vulnerável aos demônios, mais até do que as
pessoas comuns, tentado pelo poder? Nesse caso, Daniela pode ter
sido devorada por um monstro, nem deve estar mais viva. Deveria
ser grato a alguém que salvou a minha cidade, mas como se depois
me roubou o que tinha de mais precioso? Amanhã talvez abandone a
prefeitura...
- Vossa senhoria não pode estar falando sério...
- Não faz mais o menor sentido ficar aqui. Tudo neste lugar me
lembra Daniela. E como sei que seria impossível encontrá-los, a
menos que Deus queira, já decidi o que fazer: vou aceitar a tonsura e
me fazer monge.- O sofrido prefeito, falando com um de seus mais
fiéis empregados, que havia anos acumulava funções de paciente
ouvinte e mensageiro, estava decidido a deixar o mundo, pois nada
nele fazia mais sentido; a Fé seria sua única tábua de salvação para
que preservasse a sanidade, bem distante da santidade. Remoía-se em
decepções, mágoas, tristezas e especulações; enviara uma carta ao
Vaticano pedindo informações sobre o cruzado Saoshyant e se
tinham notícias de sua filha, desaparecida na mesma noite que ele, e
depois de pagar pelo extermínio do mago negro e dos demônios
(apesar dos pesares, o serviço fora feito) recebera como resposta o
misterioso desaparecimento, assumido como deserção, do guerreiro.-
Mas não se preocupe, meu bom Luigi. Vou deixar para você e os
outros o meu patrimônio, já que não tenho herdeiros.
- Seria demais para nós...Não merecemos.- Por dentro, o empregado
de meia-idade, que após trinta anos de serviço se afeiçoara ao patrão,
mas de todo modo não era de ferro, ficara saltitante, ainda mais certo
de que a maior parte da fortuna caberia a ele. Poderia enfim pagar o
dote da donzela pela qual se apaixonara!- Repense, meu senhor.
- Estou decidido. Você não tem uma filha, por isso não é capaz de
entender. Se é, deve concluir que estou certo. Não preciso de polidez
nem de piedade. Buscarei meu refúgio em Deus, pedindo a Ele, caso
algum mal tenha sido feito a ela, que o malfeitor seja castigado.-
Pensou que gostaria de matar Saoshyant com as próprias mãos, algo
no entanto impossível racionalmente, dada a disparidade de forças. E
se pagasse à Igreja para que outro cruzado partisse em busca do
desertor? Seria algo impraticável...Possuídos e fugitivos costumavam
se ocultar muito bem e a quantia gasta para manter constantemente
um cruzado a seu serviço seria enorme, acabando com suas posses.
Deus o recompensaria de alguma forma se fizesse a caridade de
deixar o que tinha aos seus empregados. Quiçá assim se
compadeceria de seu sofrimento e lhe permitisse ver Daniela pela
última vez antes de morrer...
Quando ficou sozinho, algumas horas depois, já era noite; não
acendera nenhuma tocha ou lâmpada em seus aposentos, limitando-
se à luz da lua; quis permanecer em silêncio, sem claridade, e sem
nenhuma companhia, ainda que Luigi tivesse se oferecido a servi-lo
até durante a madrugada se precisasse. Contudo, trancara a porta e
cerrara firmemente as janelas, deixando apenas as cortinas abertas;
não queria que nada e nem ninguém o perturbasse em sua meditação.
Animais, pessoas, suas sombras e ruídos; todos incômodos. No
fundo, esperava que sua filha surgisse de repente, nem que fosse
como fantasma. Caso estivesse morta, nesse sentido a probabilidade
de encontrá-la seria maior, porque acreditava sinceramente na
comunicação entre vivos e espíritos, conquanto não declarasse isso
de maneira explícita, pio católico que se mostrava, afinal Deus não
seria nada generoso se criasse uma barreira intransponível entre os
dois mundos. Só tinha medo que tivesse se tornado um espectro
errante, sem lugar no Paraíso (para o Inferno certamente não iria,
afinal era boa demais) ou no Purgatório, tendo que esperar o Juízo
Final para ser admitida por Deus, após ser assassinada pelo demônio
que possuíra o corpo do cruzado. Esse seria o destino dos que
morriam nas mãos de monstros, dissera-lhe uma vez uma
cartomante, se bem que não precisava acreditar nela, ainda que
aquela cigana tivesse previsto sua fortuna e sua eleição. A charlatã
podia muito bem ter se aproveitado de certas palavras suas durante a
conversa, lido certos olhares seus, agindo por intuição, astúcia e
indução, dizendo o que ele queria ouvir e que por acaso se
concretizara; sim, era uma impostora! Deus, infinitamente
misericordioso, nunca abandonaria uma alma inocente. Por isso
mesmo também era possível que ainda estivesse viva, e podia até
estar vivendo feliz com o guerreiro, apesar que a vida de um cruzado
desertor nunca seria fácil. Um pouco de ciúmes não deixou de sentir
ao levantar essa hipótese, ao mesmo tempo que desejava que fosse
feliz e se preocupava com seu destino, esperando que tivesse o
suficiente para viver. Apesar de sua simplicidade e ternura, ser
jogada longe do luxo e do conforto, mergulhar de repente na
realidade, poderia ser um choque forte demais para a sua alma.
- Mas o que foi isso?- De súbito, sentiu um vento gelado às suas
costas e não resistiu, perguntando ao ar; ao olhar para trás, a janela
fora aberta...
“Que estranho...Como pode ter abrido sozinha?? Que sensação
estranha...”, era uma janela bastante grande, pela qual um homem
alto poderia passar inteiro; com um medo confuso se levantou para
fechá-la, sofrendo com alguns arrepios por seu corpo que foram
aumentando em quantidade e intensidade; no entanto, depois que a
fechou, deu de cara com uma silhueta familiar, imóvel em um canto
sombrio. Engoliu a seco e um terrível calafrio percorreu sua espinha;
não precisou se mover mais: Saoshyant, saído da escuridão, entrou
na claridade lunar.
- Olá, prefeito. Espero que me desculpe a demora.- Exibia um
sorriso amargurado, que porém aos olhos daquele homem pareceu de
um sarcasmo diabólico.
- Maldito seja...Onde está a minha Daniela? Vou denunciá-lo à
Igreja e será perseguido.
- Fique calmo. Vossa excelência não precisa se exaltar.
- Você leva a minha filha e acha que as coisas podem ser resolvidas
de que maneira?- Apesar do ódio, o medo falava mais forte; seus
braços tremiam e falava mais baixo do que gostaria, temendo que um
escândalo fizesse o cruzado desertor se enfurecer e matá-lo.- Como
pôde fazer isso tendo o sangue de Cristo em suas veias? Ou já não é
mais com Saoshyant que falo e sim com um demônio que faz uso de
uma casca?
- Não se preocupe, prefeito. Não vou lhe fazer mal...E lhe garanto
que sou Saoshyant. Mas tinha uma dívida a ser paga com vossa
excelência...Só precisa me ouvir. Se eu fosse um demônio ou um
mal-intencionado, não teria corrido riscos vindo até aqui para lhe
falar sobre o que aconteceu com Daniela, deixando-o na espera por
ela eternamente...Ou pensando que sou um monstro.
- Ahh...Não estou me sentindo bem...
- Insisto para que relaxe...- Chegou mais perto e segurou o homem
quando percebeu que este iria cair; estava pálido. Sofrera uma brusca
queda de pressão.- Olhe bem nos meus olhos...- Suando frio e no
desespero para não perder a consciência, entre o pavor e o mal-estar
físico, encarou o ex-cruzado, mergulhou em suas pupilas e nesse
instante começou a se refazer, recobrando o vigor físico e uma
coloração saudável, voltando a sentir seus pés e suas pernas. Ainda
assim, foi levado pelo mago-guerreiro para a cama, onde ficou
sentado.- Agora acredita que não lhe quero mal?
- Pode estar agindo assim por culpa. Por algo que fez a Daniela.-
Levou a mão direta ao peito; sofria com um pouco de falta de ar.
- Como bom político, sabe analisar bem as atitudes e posturas
pessoais.- Seu semblante assumiu uma seriedade profunda, algo
lacônica, enquanto o político apresentava uma aparência agora
biliosa, tanto física como mental e espiritualmente.
- Me diga o que aconteceu. Quero saber de toda a verdade. Se for
sincero, não irei persegui-lo nem desejar o fim mais atroz para a sua
pessoa.
- Mesmo se lhe disser que matei Daniela?
- Sem ter sido possuído, por que faria isso?
- Porque os piores demônios estão dentro de nós...- E Saoshyant
cumpriu a vontade do pai de sua amada e lhe revelou tudo o que
ocorrera no confronto com o adâmico, não o poupando sequer do que
descobrira a respeito dos cruzados; quando terminou, o pobre homem
rico ficou sem palavras, estático, e permaneceram em silêncio por
alguns bons segundos, até o ex-cruzado emendar:- Se quiser me
odiar, me odeie, me queira ver morto...Mas infelizmente não vou
atender seu desejo nesse caso. Tenho que continuar vivo em nome de
algo muito maior. Para vingar Daniela e não só; para me vingar pelo
que me tornaram, vivendo no fio da espada o tempo todo.
- Quem me garante que você não seja um demônio me ludibriando e
caluniando a santa Igreja?- A mudez foi quebrada de forma abrupta,
com uma virulenta aceleração da fala.
- Não devo nada a ninguém. Afinal não tenho mais templo ou teto.
Por isso disse a verdade. Cabe a vossa excelência acreditar ou não.
Tem seu livre-arbítrio. Mas nunca me esquecerei do amor dela...
- Você devia ser casto...
- Acabou-se o tempo de seguir determinações. Só quero me livrar de
todo o sangue dentro de mim que não seja o meu.
- É difícil digerir a sua história. Mas ouvindo como fala, prestando
atenção, eu que já estudei muito oratória e fiz centenas e ouvi outras
centenas de discursos políticos, aprendi a ler e perceber mentiras e
verdades. Por mais que eu não queira acreditar, acho que está sendo
sincero.
- Como disse antes, vossa excelência é livre. Agora devo partir.
- Estava pensando em me tornar monge...Como farei isso se a Igreja
não passa de um antro de demônios e magos negros, caso você esteja
certo?
- O problema não é a Igreja e sim os homens que a comandam. É
contra eles que tentarei ser o braço da justiça de Deus, esmagando e
retalhando os que usam a Palavra sem o devido respeito. Há muitos
bons padres, bons monges e boas freiras; o problema está nos
monstros que estão na cabeça do corpo de Cristo. É vital um
processo de purgação; e neste homens como o senhor também serão
necessários. Teremos os que lutarão, como eu, e os que irão orar,
como o senhor, que ajudarão a reformar a Igreja de dentro para fora,
sendo os futuros papas e cardeais: de coração, não de pompa.
- Não sei se tenho realmente vocação para monge, se estou sendo
sincero nisso ou se o faço por desilusão. Às vezes penso que não
suportaria uma vida de reclusão e simplicidade.
- O senhor está confuso, e é natural. Aconselho que relaxe por
alguns dias, que pense bem, estude a doutrina cristã, leia, medite, e
chegue a um parecer. Daniela de qualquer forma ficará orgulhosa se
agir guiado por boas intenções para consigo mesmo e nossos
semelhantes.
- Como vou respeitar os cruzados de agora em diante, sabendo o que
são? Como lidarei com os padres vermelhos? Não posso mais ser
político.
- A decisão será sua, assim é a vida...- Ainda na cama, o prefeito
deixara Saoshyant se afastar, um de costas para o outro; quando o
vento frio se repetiu, deduziu que o mago se fora. Ao se voltar para a
janela, estava mais uma vez aberta; só que dessa vez se fechou
sozinha.
- Deus, me dê forças e me permita não ter tanto medo! Será sempre
o mesmo o destino de Adão desde que passou ao exílio na Terra?
Espero não viver tanto assim...- E deu início a uma longa prece, que
não demoraria a incluir mais o silêncio do que as palavras, ficando
acordado até o sol começar a nascer, emergindo do distante paraíso
perdido no horizonte.
QUARTO ATO
Nas catacumbas
QUINTO ATO
Os espinhos da Rosa
- Não pode ser ele. Por que viria? Por que não veio antes então?-
Questionou Honorius.
- Talvez tenha se cansado de apenas observar. Quiçá tenhamos
passado dos limites, o que não significa que não possamos enfrentá-
lo.- Mesmo naquela situação, Jonathan não removia seu sorriso.
- Não sei como pode ficar calmo numa situação como essa. Ele não
é previsível.
- Consultei Meridiana a respeito, e ela não soube me dar uma
resposta objetiva, pois o teme.- Interveio o papa.
- Não há razão para pânico. Ele não vai nos fazer mal, é incapaz de
causar sofrimento a outrem. Limitar-se-á a um protesto estéril.-
Jonathan persistiu em seu ponto de vista.
- Pode não fazer nada diretamente, mas o que aconteceu ao Império
Romano? O mesmo pode suceder a nós.- Disse Tharien.
- No que está pensando, Torquemada? Por que não se manifesta?
- Porque aqui isso talvez seja desnecessário. É onde ele está que sou
necessário hoje.- Respondeu o Inquisidor.- Irei cuidar disso.
- Sozinho? Não está sendo pretensioso?
- Ele não deixa de ser um herege.- A afirmação fez Jonathan soltar
uma gargalhada.- E não ria; os tempos são outros. Os hereges estão
relacionados à Igreja, não a ele; agora que resolve voltar, depois de
delegar os poderes a Pedro, e por consequência a nós? Não é assim
que o mundo funciona abaixo dos sete céus.
- Tem toda a razão, meu amigo!
- E bruxos hereges, que descumprem as regras da Igreja, têm todos o
mesmo tratamento: não haverá exceções; Raja e Fiódor virão
comigo.
- Está seguro de si. Isso significa segurança para todos nós.
- Se eu fracassar, ninguém mais poderá fazer nada. Só que isso não
vai acontecer.
- Num novo calvário, de qualquer forma se precisarem passar
séculos para que ele volte a triunfar, nós já não estaremos mais aqui
para sofrer as consequências.
- E, se estivermos, estaremos prontos para enfrentá-lo mais uma vez.
- Os alquimistas que atentem aos seus tesouros!- Naquela reunião,
nenhum cruzado, apenas padres vermelhos; por falar em cruzados:
- Só tome cuidado para não perder os dois. Aqueles quatro que
partiram ainda não voltaram da ilha das bruxas.- Honorius se impôs
diante de Torquemada.
- Sou da opinião que devemos começar a providenciar substitutos.-
Sugeriu Celius.
- Calma, muita calma. Há mil anos atrás, ninguém foi precipitado.
Tomemos o exemplo de nossos antecessores.- Opinou Jonathan, sob
os olhares tensos de seus companheiros.
- Para preservar o futuro é preciso ter os olhos bem fixos neste, e
não no passado.
- Será mesmo? O homem não aprende que o passado se repete.
- Melhor deixarmos as discussões de lado. Não levam a nada.-
Torquemada replicou com azedume; Jonathan, cínico, manteve seu
sorriso, em parte por saber que o Inquisidor mantinha um laboratório
onde realizava suas experiências alquímicas, visando encontrar o
tesouro dos tesouros. Em anos de experiências, já trabalhara com a
espagiria vegetal, tendo retirado o sal de folhas, conseguido torná-lo
branco e cristalino, e produzido uma Pedra Vegetal que intensificava
os efeitos medicinais de diversos remédios à milésima potência;
talvez por isso nunca se via aquele sacerdote adoentado, pelo
contrário, sempre ativo, dinâmico, saudável, impetuoso e terrível.
Também se dedicara à espagiria animal, destilando sangue e urina, e
à mineral, com seu forno de carvão, laborando com afinco nos
metais. Mais recentemente, tinha pego gosto pela preparação do
espírito do vinagre e experiências decorrentes do trato com este,
fundindo pequenas quantidades de chumbo neste espírito, atento, ao
lidar com certos compostos metálicos, às suas propriedades tóxicas.
Caso conseguisse algum dia a Pedra, iria dividi-la com seus
confrades?
Ali mesmo no Vaticano, mas em outro aposento, Fernando Pizarro,
General dos jesuítas, refletia a respeito de suas últimas visões e
experiências: “Só pode ser pela espada que fui atacado! Não há outra
razão para que eu, um humilde servo de Deus, me torne alvo de
demônios tão perigosos como o que senti que iria me matar. Porém o
mais incrível e surpreendente é que Cristo me protegeu! Só podia ser
ele. Depois daquele dia, não voltei a praticar nada, não tenho
chamado meu anjo da guarda e preferi me dedicar por algum tempo a
questões burocráticas da Companhia. No entanto, devo em breve
recuperar a coragem e retornar ao Círculo, clamando pela proteção e
bênção dos planos superiores.”, ensimesmado no gabinete interior de
sua alma, que estava dentro de seu corpo, por sua vez contido em seu
gabinete externo, não percebeu a entrada de seu companheiro Simão
Rodrigues, que o assustou ao abordá-lo, ainda que o comandante da
Companhia de Jesus não tenha demonstrado, simplesmente
encarando seu interlocutor com olhos indagadores:
- Perdão por interromper suas meditações, reverendo. Apenas me
agradaria conversar por alguns momentos com vossa excelência.
- Eu que me desculpo, Simão. Estava distraído...Mas estou
disponível. A que se deve a sua presença? Há um bom tempo que não
conversamos.
- De fato. Passei alguns meses em Lisboa e Oporto, cidades de
minha terra natal, onde era preciso evangelizar certas comunidades,
que estavam caindo no relaxamento dos costumes.
- Lembro-me que me tinha enviado o pedido para ir e o autorizei,
mas não nos vimos na ocasião, pois andávamos ambos por demais
atarefados. O relaxamento é cada vez mais comum, graças ao bom
Deus que solucionável. Os homens não necessitam mais da
destruição de suas cidades para que se recordem do Criador.
- Menos mal que assim seja, embora o melhor seria que nunca se
esquecessem. De todo modo, não vim aqui para falar da Lusitânia.
Soube de um homem que anda pelo mundo realizando milagres? Não
o vi ainda, porém sei que cura os enfermos, ressuscita os mortos,
apaga as fogueiras e converte pecadores inveterados. Há quem
acredite que seja o Cristo que voltou para o fim dos tempos.
- Não acredito em nada disso. O povo é muito crédulo.- Depois de
alguns segundos quieto, desta vez sem conseguir ocultar sua
surpresa, foi o que Pizarro logrou dizer, invocando o fantasma de sua
experiência mágica em sua mente; percorrido por um calafrio,
cogitou se a proteção do Filho de Deus naqueles instantes
assustadores poderia ter alguma relação com os boatos do populacho.
Quiçá tivessem um fundo verdadeiro. Vestiria por fora, contudo, um
manto de incredulidade.- Deve ser algum bruxo, algum impenitente
que está fazendo uso de sua magia à luz do sol, tentando convencer
ignorantes. Dizem que Simão, o mago, teve uma estátua erigida em
Roma por seus prodígios; não há nada pior do que milagreiros e
taumaturgos que fazem alarde dos seus poderes. Essa é a diferença
dos verdadeiros santos, que não se deixam notar.
- Mas é inegável que esse homem está fazendo o Bem. Alguns
disseram que se faz chamar por José.
- O nome não importa. Em uma era de demônios como a que
vivemos, você deveria estar ciente que o Mal se disfarça e que os
magos podem curar e realizar prodígios às vistas do vulgo. Nossos
olhos, no entanto, têm que ser espelhos limpos, que refletem apenas
a realidade.
- Isso é difícil, reverendo. Nossas crenças e interpretações sempre
interferem.
- Quer dizer que está acreditando que possa ser o Cristo?
- Com tanta perversidade espalhada na Terra, é possível que
estejamos sim no final dos tempos. A Besta cravou seu número até
mesmo na Santa Igreja, e o Cristo não deseja que seu corpo fique
imundo. Já se passaram dois mil anos desde que ele veio...Por que
mais espera? É chegada a hora de decidir entre os santos, os bons
fiéis e o Purgatório, quanto antes melhor para a vida.
- Caso se trate de um novo Simão, estamos em maus lençóis porque
não temos um Pedro para responder ao seu desafio. Algo lhe diz que
não se trata disso?
- O Santo Padre talvez poderia lhe fazer frente, embora vossa
excelência pense que ele seja mais alguém como Silvestre
II...Diferentemente, creio que nosso papa seja um homem honesto,
embora cercado por partidários do Anticristo, que em breve deverá se
manifestar de forma explícita, ainda que já esteja agindo no seio da
Igreja.
- Por meio dos cruzados?
- Ainda sente tanta adversidade por esses bravos guerreiros? Estou
certo que Antenor e outros poderiam provar ou desmascarar esse
pretenso Cristo.
- O problema não está neles, é capaz de você ter me ajudado a
perceber que não são tudo o de ruim que eu pensava, mas naqueles
que os comandam. Os padres vermelhos poderiam ser esses sectários
do Demônio...Ludibriando os cruzados.
- Vossa excelência se refere principalmente ao mestre inquisidor,
Torquemada. Não é?
- Chegamos a um ponto em comum. Pelo visto você leu os meus
pensamentos. Pois existem certos limites para a defesa da Fé.- O
papa negro, ficando repentinamente mais soturno, juntou os dedos
das mãos ao apoiar seus cotovelos sobre sua mesa.
- Tem razão. Afinal São Pedro não necessitou de torturas e carrascos
para derrotar Simão.- O luso estremeceu não só pela coincidência de
nomes, salientando para si mesmo as diferenças entre um bom
sacerdote e um mago, um apóstolo e um exibicionista das potências
infernais, a fim de afastar qualquer tentação, como com a aparência
do “papa negro”, que de súbito lhe pareceu sombrio e por demais
misterioso; isso ainda mais quando sorriu em sua direção com um
certo sarcasmo ao perceber que o jesuíta se perdera em reflexões
sobre a natureza de seu próprio nome e enrubescera. E se o General
da Companhia, que considerava não só como um superior como um
amigo, lhe escondesse amplas verdades? Era possível que este só o
considerasse um subordinado, não cultivando a humildade
evangélica? Uma estranha raiva cativou seu espírito; tratou de
suprimi-la, cogitando que o Demônio estivesse tecendo suas tramas
para jogá-los um contra o outro. Precisava tomar cuidado com suas
impressões. E se, ao Simão, o mago, aparecer na conversa, isso não
se tratasse de algo casual e o General fosse um velado simpatizante
da magia, crendo mais nesta do que na volta de Cristo? Talvez
desconfiasse dos cruzados e dos padres vermelhos por temê-los. Mas
não podia ser um bruxo! Era um homem justo e ponderado. Confuso,
seu embaralhamento foi notado pela sensibilidade de Pizarro, que
refletiu que deveria ser mais cauteloso ao confiar naquele padre de
bom coração, porém de mente vulnerável. “Seja o que for esse
milagreiro, se o mesmo Cristo que veio me salvar na outra noite ou
outro indivíduo, a dúvida será sanada em breve. O grande Inquisidor,
outro general da Igreja, não vai ficar de braços cruzados.”
Alguns dias se passaram e Torquemada chegou em Sevilha, onde o
suposto Jesus andava fazendo seus últimos milagres, com Fiódor e
Raja. O russo quase não falara durante a viagem, estava com o
pescoço cada vez mais endurecido, enquanto o indiano conversara
bastante com o padre, a carruagem parando diante da catedral, onde
iriam se hospedar e em frente à qual, por coincidência ou não, aquele
homem de trajes simples e sandálias velhas acabava de curar uma
vítima da peste: Fiódor não arregalou os olhos, mas por dentro
engoliu a seco e ficou impressionado ao ver bulbos que desinchavam
e retrocediam até desaparecerem por completo; Raja perguntou ao
Inquisidor Geral, enquanto mantinha a calma, e notava neste último
uma considerável ansiedade e tentava analisar o que o indivíduo
misterioso transmitia, nesse início de observação não conseguindo
decifrar nada, uma incógnita que não lhe pareceu mago, anacoreta,
yogue ou demônio:
- Pelo que já falamos, chegamos à conclusão que não se trata do
Cristo. Mas o que ele seria?
- O mais pretensioso de todos os magos que já encontramos.
Desçam e detenham-no.
- Não pode ser Lúcifer, que veio realizar prodígios na Terra para
impressionar os ignorantes?
- Espero que não seja, ou vocês nada poderão fazer. Se for ele, de
todo modo será um sinal do fim dos tempos. Lembrem-se que está na
Palavra que, antes do retorno de Cristo, o Anticristo que viria e
realizaria inúmeras façanhas.
- Então está nos mandando para morrer?- Questionou Fiódor.
- Acho que deveriam estar prontos para isso desde que aceitaram se
tornar cruzados.
- Mas por que Lúcifer teria se manifestado?
- Os pecados dos homens passaram dos limites, meu filho.- A
despeito da aparência carinhosa do tratamento, Torquemada, que já
não era nada afável, estava ainda mais ríspido do que de costume.-
Mas isso ainda não é certeza; portanto não temam. Talvez seja um
simples mago. É o mais provável, pois acredito que ainda irão se
passar mais mil anos, completando os três mil desde o nascimento de
nosso Salvador, para que os três aspectos de Deus tenham se
manifestado e ocorra, com a descida do Espírito Santo, o embate
final.
- E se a teoria de vossa excelência estiver errada?
- Então talvez seja mesmo Lúcifer. Mas quem está ao lado de Deus
não teme a morte. Se for o Inimigo, o meu destino não será diferente
do de vocês. E como mártires seremos bem recebidos no Paraíso.- O
Inquisidor estava temeroso. Sabia que, se fosse realmente o Cristo,
nenhum mal lhe ocorreria diretamente; ainda assim, não conseguia
mais conter o suor frio, um pouco por dúvida, um pouco por
vergonha. Como encarar o maior inimigo? Enxugou o rosto com um
lenço, o semblante menos pétreo e mais angustiado, enquanto os dois
cruzados desciam para prender aquele homem.
- Já sei porque vieram. Estou entregue.- Diante dos cruzados, ele
estendeu as mãos, ao que Fiódor permaneceu com os olhos imóveis,
desconfiado, afinal podia ser uma armadilha, e Raja o estudava dos
pés à cabeça, se aproximando mais do que o russo; quando as pupilas
de um encontraram as do outro, levou um choque elétrico, quase
caindo para trás e só mantendo a consciência graças ao seu potencial
psíquico. Fiódor então se moveu, acreditando que seu companheiro
fora agredido, e produziu um corte no peito daquele homem com sua
espada invisível. A roupa foi rasgada e o sangue jorrou, seguindo-se
um golpe no rosto com a outra mão por parte do cruzado de cabelos
loiros, o misterioso pregador indo ao chão, aparentemente
inconsciente, e Raja se recuperando devagar. Torquemada, olhando
da janela do coche, ainda se achava tenso.
- Você está bem?- Fiódor colocou suas mãos nos ombros do
companheiro.
- Não sei o que aconteceu, mas ele não me agrediu.- Por fim
conseguiu replicar.
- Como assim? Então por que aquela sua reação?
- Foi estranho. Mas senti como se o que houvesse de impuro em
minha alma tivesse reagido à pureza interna dele. Definitivamente,
não é um homem comum. O que não significa que seja maligno, pelo
contrário. Talvez estejamos diante de um santo.- E Fiódor se voltou
com o corpo inteiro para o indivíduo caído, espantando-se com seu
semblante sereno mesmo inconsciente, as pálpebras calmamente
pousadas sobre um sorriso pacífico. O indiano notou que a mente do
colega ficara turva, pesada, e resolveu tranquilizá-lo:- Não se
preocupe, você não agiu mal. Se ele for o que eu acho que é, não vai
julgá-lo por isso. Você agiu por um irmão.
- Com tão poucos homens de bem no mundo, espero que eu não
tenha contribuído a eliminar mais um. Vamos socorrê-lo.- Tomou-o
em seus braços; em volta, já se formara uma multidão: a maioria
estava perplexa, sem conseguir dizer nada ou avançar; alguns, ao
reconhecerem quem se achava nos braços do cruzado, se puseram a
chorar; o ex-doente atingido pela peste, curado pouco antes e não
tendo se afastado muito do lugar, retornara ao ouvir o tumulto:
- Mas o que está acontecendo?
- Pegaram ele...Pegaram o homem santo.
- Quem??
- Os caçadores de demônios. Os cruzados.
- Aquele não é um simples homem santo! É nosso Salvador que
retornou! Deus, vocês sabem o que fazem??!- Gritou e foi ouvido por
Fiódor, que não se voltou e entrou na carruagem.
- Fiquem calmos. Analisaremos de perto o que está acontecendo e
este homem ficará em observação. Não temam: se for um santo, será
em breve posto em liberdade.- Raja resolveu dar satisfações ao povo,
e principalmente à ex-vítima da peste, antes de entrar.- Sentimos pelo
modo como tivemos que proceder, mas era necessário. Não se
esqueçam das estratégias usadas pelos demônios, que muitas vezes
buscam nos cativar.
- Não acredito em vocês! Vão matá-lo, crucificá-lo novamente! A
Igreja está corrompida e ele me mostrou isso, curando-me enquanto
os padres me diziam para me resignar, afinal minha doença era
decorrência de meus pecados!
- Raja, não temos tempo. Não adianta argumentar com essa gente.
Entre logo.- Torquemada interrompeu o cruzado indiano, que se
preparava para dar uma resposta.
- Você se acalme. Não vê que eles fazem isso pelo nosso bem, por
precaução? Quantas vezes os cruzados salvaram as nossas vidas?
Não acuse a santa Igreja, cuja primeira pedra foi Cristo quem
colocou. Se for realmente quem esperamos, mal não lhe será feito.-
Uma mulher de cabelos brancos e rosto desgastado interveio.
- Como posso me acalmar?? Ele me curou e agora querem matá-lo!
- Ninguém vai matá-lo. Querem nos proteger.- Um velho também se
manifestou.
- São assassinos! Vão levá-lo para o Tribunal! Nunca fui atacado por
um demônio, enquanto a peste quase me matou.
- Deixe eles debaterem entre si. Vamos.- E dessa vez Raja, que
permanecera observando, sem mais falar e nem se mover, obedeceu a
ordem do Inquisidor, entrou e a sege partiu; algum tempo depois,
alguns homens bateriam à porta do sujeito que fora curado e o
levariam para que fosse julgado pelo tribunal da Inquisição como
defensor e colaborador de um bruxo...
SEXTO ATO
A imperatriz da morte
SÉTIMO ATO
Memento Mori
“1. As idades do homem são seis, nem mais nem menos se quisermos
ser precisos: infância. meninice, adolescência, juventude, maturidade
e velhice.
OITAVO ATO
Cruzes e rosas
- E você vai deixar que mais quatro deles fiquem entre nós? Têm
medo que os homens aprendam magia, mas colocam seres metade-
homens e metade-monstros para morar por perto. Um total
contrassenso.- Zaqueu estava trabalhando em uma nova espada
enquanto falava com Miriam.
- Nós precisamos deles. Além de conhecerem a Igreja de perto, seus
poderes serão úteis.
- Melhor seria tornar vários homens magos. Menos perigoso! Tudo
bem aquele que está com a Raquel, o tal de Heráclio, afinal é um só.
Mas eles já estão em cinco. E se estiverem dissimulando?
- É certo que não. Eles viram a verdadeira face dos padres
vermelhos e olharam para dentro de si mesmos, encarando a mais
violenta e perturbadora das realidades que um ser humano pode
enfrentar: e fique certo que não são só eles que têm um demônio em
seu próprio coração.
- Você perdeu os seus pais e tanta gente morreu por causa desses
monstros do Inferno. Está certo que todos nós temos aspectos ruins,
sentimos raiva, ganância, ciúmes, somos mesquinhos, egoístas; mas
não nos transformamos em demônios, pelo menos não aqui na Terra.
Com eles isso é possível, podem virar alguém como aquele. Não se
trata de metáfora ou lenda; será que agora entende por que estou
preocupado?
- Existe outra razão.
- É mesmo? E qual seria? Vocês bruxas sempre acham que sabem
tudo, interpretam tudo e são as donas da verdade, afinal leem auras e
pensamentos. O que você lê de mim?
- Zaqueu...- Havia uma certa tristeza na voz da maga.- Não preciso
usar nada de magia com você porque o conheço muito bem. E você
está sendo estúpido. É assim que me considera? Acha que fico o
tempo todo “estudando” você? Se me vê dessa forma, por que ainda
está comigo?
- Tudo bem, desculpa. Acho que exagerei.- Disse com uma certa má
vontade, não sendo um arrependimento lá muito sincero e sem olhar
nos olhos de sua mulher.
- Está pedindo desculpas da boca pra fora e dessas não faço questão.
Por isso também não falo mais nada. Até mais tarde.
- Aonde você vai?
- Não lhe devo satisfações.
- Não vai me dizer o que tinha pra falar?
- Você não vai ter maturidade pra ouvir. Estranho, parece que ao
invés de ficar mais adulto depois que nos casamos, você ficou mais
infantil e birrento.
- Desculpa então! Apesar que já pedi pra me desculpar! O que mais
tenho que fazer?! Me ajoelhar e beijar os seus pés???- Virou-se por
fim para a maga, com raiva, o semblante transtornado, o suor na testa
cada vez mais brilhante.
- Não consegue conversar; só ser grosso, estúpido. Não é com esse
homem que resolvi dividir a minha vida. Não quero bajulações,
apenas diálogo e carinho. Não tenho mais isso de você.
- Ontem você estava toda derretida comigo!
- Não estava a fim de aborrecimentos, tinha tido um dia puxado. Por
isso preferi fingir que estava tudo bem.
- Então você finge o tempo todo.
- É claro que não, Zaqueu! Mas não há amor que resista a certas
atitudes.
- Quer dizer que finge que me ama, que sente prazer comigo?
- Não finjo que gosto da sua voz, do seu toque, da sua pele, da sua
presença. Só que me tratando do jeito que tem me tratado, com quase
indiferença, como se eu fosse só uma boneca pra você desafogar,
esse relação puramente física, isso não me satisfaz!
- Eu também me canso. E você às vezes fica com um ar de
superioridade, e não me trata tão bem assim. Fico humilhado.
- Superioridade?? E quando que humilho você??- Era muito difícil
ver aquela maga tão abalada emocionalmente; sentia seu abdômen
trepidar.
- Chega, Miriam. Um cliente pode chegar e aqui é a minha oficina.
- Tudo bem. Se eu o incomodo, melhor que me retire.
- Aonde você vai?
- É só com isso que se preocupa...- E se retirou; Zaqueu bufou e
demorou alguns minutos para retomar seu trabalho, chegando a jogar
sua marreta no chão; só começou a se aliviar e a ficar menos quente
do que a forja com a chegada de um cliente.
“Ele está com ciúmes. Acha que por não ser um mago, e não ter
poderes ou uma força excepcional como os cruzados, pode me perder
para um deles. Mas que absurdo! Como se fosse isso o que
importasse. Ele não valoriza o próprio coração, ao ponto que este
começa a se deteriorar; o coração pelo qual me apaixonei um dia já
não existe mais. Por que a união estável às vezes destrói o amor que
existe entre duas pessoas? Cobranças; reconheço que também cobro,
que falho, que tenho ciúmes. Mas trato de trabalhar isso, enquanto
ele nunca vai admitir os defeitos que tem e os erros que comete. Só
pede desculpas da boca pra fora e isso não tem o menor valor. Não se
ama, não se compreende; é vítima da ação do demônio interno que
ele mesmo criou. O meu peito às vezes dói, essas coisas marcam. Por
que é tão difícil simplesmente amar?”
- Tomei a minha decisão.- Miriam tomou um susto quando ouviu
aquela voz, distraída entre as árvores, sentada sobre uma rocha;
reconheceu-a de imediato e tratou de rapidamente enxugar a umidade
do rosto com as mãos.- Vou ficar aqui com vocês. E vamos realizar o
que você propôs.
- Agradeço, Cavalcanti. Você é uma adição valiosa ao nosso grupo.-
Ela se voltou tímida e parcialmente na direção dele, sem querer
mostrar direito a face; o guerreiro florentino sorriu:
- Pode me chamar de Lorenzo. E não precisa ter vergonha do que
está sentindo. Magos, bruxos e cruzados também têm sentimentos.
Não vou condená-la por nada.
- Sei que não vai. Mas é uma besteira.
- Não é besteira. Não se subestime. Se dizemos que estamos
chorando por besteira, isso significa que ou estamos subestimando
nossa resistência emocional, afinal uma besteira nos afetou, ou que
mentimos para nós mesmos.- Ao que ela silenciou, não respondendo
e virando o rosto; ele resolveu se sentar ao seu lado.- Não sei mais se
é um dom, mas leio bastante bem emoções e estados psicológicos
alheios. E não posso ficar indiferente. Algo me instiga a ajudar.
Posso ser quase um demônio, mas ainda sou um sacerdote de Cristo.
Que contradição!
- Você não é um demônio, tem uma bela aura prateada. Não se
resigne com o mal que lhe impuseram de fora para dentro.
- Digo o mesmo a você.- E enquanto aqueles dois estavam ali,
Bruno treinava com Gabriela à beira de uma lagoa, Miguel na mesma
cena, porém à parte, observando e refletindo.
- Tem certeza que não quer treinar conosco? É bom aprendermos a
lidar contra magia.- O etíope convidou o companheiro.
- Não, Bruno. Obrigado. Ainda estou precisando de um tempo pra
mim, de um tempo de paz.
- Como preferir...- E, intensificando os ventos ao redor do africano,
Gabriela o impedia de avançar, sorrindo em sua direção, enquanto o
ex-cruzado fazia um tremendo esforço para ir adiante dentro do
pequeno mas violento furacão restrito aos arredores de seu corpo.
Quando Flora apareceu, o olhar de Miguel pareceu recuperar o
brilho. “Como ela é bonita, apesar de ser uma bruxa. Maldita
tentação...”, conseguiu rir de si mesmo por um instante. Com relação
a seu voto de castidade, fora feito a si próprio, a Deus ou à Igreja?
Não sabia responder. Ainda estava muito confuso.
- A Raquel me mandou aqui pra convidar vocês pra almoçar na casa
dela.- Interrompeu o treinamento dos dois; o cão-lobo Órion veio se
aproximando, farejando a terra, e só levantou a cabeça para encarar
Miguel. Nada agressivo; transmitia uma impressão amigável.
- E por que aquela mocreia não veio pessoalmente?- Questionou
Gabriela.
- Está ocupada preparando uma sopa de lentilhas. Já aviso que não
vou.
- E por que não? Virou moça de recados agora?
- Estou ocupada com outras coisas.- Ignorando os ex-cruzados,
olhando apenas para a amiga (ou ao menos dando essa impressão),
deu as costas e foi se retirando com um sorriso estranho, que
contrastava com suas palavras duras e seu conflituoso estado interno.
O guerreiro de armadura dourada chegou a captar um pensamento:
“Estávamos tão bem antes da chegada deles! Não vou dividir a mesa
com esses sujeitos, que além de serem homens têm almas
parcialmente demoníacas.”, ouvir aquilo produziu uma tremenda
raiva em Miguel, somada a uma tristeza visceral. Pensou em atacar a
bruxa. No entanto, só de cogitar isso, notou que Órion, antes pacato,
rosnava em sua direção.- Órion, o que foi? Vamos embora.- Ao
perceber que a agressividade era direcionada ao cavaleiro da espada
dos anjos, encarou-o fixamente e os ressentimentos de ambos
ficaram expostos, ainda que não trocassem palavras.
- Calma, calma...- Gabriela se aproximou do animal e, ao acariciá-
lo, este começou a se acalmar.- Flora, você também não ajuda. Livre-
se desse preconceito tolo; eles são seres humanos como nós.
- Você confia de verdade neles? Não acha que a qualquer momento
podem virar monstros? Ou talvez já sejam. O que o Órion fez foi
reagir ao que existe dentro deles; não fiz nada pra incitar isso.
- Acha mesmo que não? Posso sentir a sua indignação no seu
pneuma, e sei que os seus sorrisos nunca são de alegria.
- Os planos da Miriam são idealistas demais. Quem está acostumado
à guerra, nunca vai abraçar a paz; você tentaria argumentar com
Lúcifer? No caso deles, é a mesma coisa. Só que são seres humanos
caídos, ao invés de anjos. E sendo homens, pior ainda. As pessoas
são diferentes, mas a Igreja não é mais necessária ao mundo, já
causou males demais; por que não um mundo onde as pessoas vivam
em harmonia com a natureza, sem os mandamentos de um deus
severo e ciumento?
- Você que está sendo severa e ciumenta aqui. Dura ao nos julgar, e
com ciúmes deste lugar, com receios que este pequeno paraíso em
breve se perca.- Bruno interveio.- Mas entenda: os demônios nunca
destruíram o Paraíso, que foi deixado para trás pela humanidade.
- Mas e quanto à serpente?- Questionou a bruxa de cabelos
cacheados.- Está claro que não é por acaso que o veneno entra.
- Mas o pior veneno é o que temos dentro, e que nenhuma poção
medicinal pode eliminar, algo que você conhece bem, pra isso não
existindo a necessidade do sangue de um ser infernal; é o nosso
próprio espírito que está maculado, que nós tornamos impuro.-
Interferiu Gabriela.
- Ela é muito teimosa, do tipo que nunca aceita quando está errada.-
Miguel cogitara se retirar e de fato se afastara, depois pensando
melhor e chegando à conclusão que não podia ser omisso, que tinha
que demonstrar sua força interior e deixar claro que também possuía
uma personalidade forte; por isso retornara.- Apesar de tê-la visto
pouco, posso dizer que já a conheço bem.
- Pode ser mordido se chegar mais perto.- Apesar do tom
provocativo, Flora parecia séria e triste; Órion voltou a demonstrar
hostilidade.
- Fique calmo; sempre gostei muito de cachorros.- Miguel sorriu e
se acercou do animal.
- Cuidado! Ele vai morder você de verdade!- Gabriela quis segurá-
lo.
- E daí?- O cão ladrou com vigor, Bruno se limitava a observar, e
mordeu a mão do guerreiro; Gabriela arregalou os olhos, enquanto a
outra riu e bradou:
- Seu louco! O que está fazendo?! Vai acabar contaminando o Órion
com esse seu sangue.
- Não se compara com a mordida de um demônio faminto. É um
bom garoto.- Miguel provocou e a bruxa não queria demonstrar que
se importara, ordenando ao cachorro-lobo:
- Largue a mão dele, Órion! Vamos embora...Vamos!- O cão acabou
soltando, mas não porque ela ordenara, tanto que quando a dona
começou a se afastar, Órion não a seguiu, um tipo de desobediência
que era a primeira vez que ocorria, parando de rosnar ou latir agora
para lamber o sangue da mão do ex-cruzado, com uma certa ternura,
como se fosse um pedido de desculpas de alguém que fizera um
julgamento precipitado. Flora ficou perplexa.
- Apesar da saudação inicial ter sido meio tensa, parece que ele
gostou de você.- Gabriela comentou com o guerreiro da espada do
Espírito Santo, que se abaixara para ficar na mesma altura de Órion.
- Os animais sabem reconhecer alguém que é digno de respeito.-
Respondeu Miguel; a bruxa se retirou.
- Hoje prevejo encrenca pra você, rapaz, quando voltar pra casa...-
Gabriela passou a mão pelo dorso do cão; Bruno colocou sua mão
direita no ombro do companheiro, que se voltou em sua direção e
exibia um sorriso que ainda não manifestara ali.
Alguns dias se passaram e Miriam tomou a decisão de consultar a
velha Agar para decidir sobre o próximo passo: estava cogitando ir a
Roma com Raquel, Flora, Gabriela e os ex-cruzados.
- Não se precipite.- Sua avó, apesar da idade, continuava sendo ativa
e lúcida, só tendo que deitar por algumas horas à tarde a fim de repor
as energias.- Em primeiro lugar, precisa formar um grupo coeso, e
pelo que você me disse, Flora ainda não os aceita. Tem que fazer
com que de alguma forma todos se entendam. Não precisam se amar,
mas que ao menos se respeitem.
- E como vou fazer isso? É uma das razões pelas quais cogitei deixar
a Flora aqui.
- Qual seria a outra?
- Proteger o lugar. Não posso simplesmente abandonar a ilha.
- Acha que eu não seria garantia suficiente de proteção, minha cara?
Ou então que morrerei logo?- A experiente bruxa sorriu e liberou seu
sarcasmo.
- Sabe que não é isso, vovó.
- Sei também que já tive melhores dias. Por isso compreendo que
raciocine que eu sozinha não poderia fazer muito contra um ataque
de demônios ou algo do gênero.
- Por outro lado, sem levar a Flora, acho que nosso grupo ficará
desbalanceado, com apenas três mulheres; quero um equilíbrio entre
a energia masculina e a feminina.
- Então tenha paciência. Eu gostaria de tocar em mais outro ponto,
se me permite...
- Claro, a senhora é livre e seus conselhos são sempre preciosos.
- A respeito do Zaqueu. Se partir, sabe que será o fim do seu
casamento, de uma vez por todas.
- O meu casamento acabou há algum tempo. Eu que estou me
apegando a uma esperança vã.
- Ao mesmo tempo que tem sido muito vista com aquele cruzado,
Lorenzo Cavalcanti.
- Tem se revelado um bom amigo e é um homem culto, sensível,
gosta de artes, sabe falar e principalmente ouvir, além de
compartilhar do meu ponto de vista sobre a Igreja e de ter muitas
histórias para contar. Temos falado bastante a respeito dos padres
vermelhos e do Inquisidor Torquemada.
- Se ele é bom pra ouvir, significa que você também tem falado
muito.
- Não sei por que; mas a confiança que sinto nele só é menor do que
a que a senhora e a Gabriela me inspiram.
- Vá com calma, Miriam.
- Obrigada por me dizer isso, vovó. Sei que não quer que eu me
machuque outra vez. Farei o possível.- Deram-se as mãos, a idosa
beijou vagarosamente o rosto da jovem, abraçaram-se e
permaneceram assim por um bom tempo, uma sentindo a respiração
da outra.