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Conservadorismo moral e liberalismo econômico

marcam avanço religioso no Brasil, diz escritor,


pesquisador e antropólogo da Unicamp Ronaldo
Almeida ao ‘Nexo’

A religião sempre foi determinante na política, a tal ponto que a Igreja Católica e
as monarquias que governavam os países europeus se fundiram na mesma
estrutura durante séculos.

Ainda hoje, em muitos países muçulmanos, autoridades religiosas participam de


forma preponderante nas estruturas de governo, como no caso do Irã. E mesmo
em democracias consideradas sólidas, como os EUA, as referências a Deus estão
presentes em símbolos nacionais, em discursos oficiais e em rituais de investidura
de cargos públicos, incluindo o juramento com a mão sobre a Bíblia, que é feito
por todo presidente antes de assumir a Casa Branca.

Nos últimos anos, no Brasil, esse fenômeno assumiu características peculiares.


Desde a redemocratização, na década de 1980, uma corrente do cristianismo
chamada genericamente de “evangélica” cresce entre a população, disputando
espaço principalmente com o catolicismo e as religiões de matriz africana.

O professor de antropologia da Unicamp Ronaldo Almeida dedicou sua carreira


acadêmica a pesquisar esse fenômeno. No segundo turno das eleições
municipais, ele foi de São Paulo, onde vive, para o Rio de Janeiro, para estudar
de perto a campanha de Marcelo Crivella (PRB), bispo licenciado da Igreja
Universal do Reino de Deus, e sobrinho de Edir Macedo, que é fundador da igreja
e dono da emissora de televisão Record.

Ronaldo Almeida teve criação católica, frequentou igreja pentecostal como fiel e
teve experiências em religiões de matriz africana, mas hoje se diz um agnóstico
fascinado pela experiência religiosa, principalmente pela intersecção entre religião
e política.

Ele conversou com o Nexo sobre o crescimento evangélico, sobre sua influência
na política e sobre os críticos desse movimento que, segundo ele, muitas vezes
resvalam na mesma intolerância que pretendem condenar.

O que é exatamente ‘evangélico’? Esse nome esconde divisões internas ou


é um grupo único?

RONALDO ALMEIDA Os evangélicos compõem um universo bastante


abrangente e diferenciado. Seguindo a classificação do Censo Demográfico do
IBGE, em linhas gerais, eles se dividem entre os pentecostais e não pentecostais.
Os não pentecostais compreendem luteranos, metodistas, presbiterianos, batista
e outros. Os pentecostais se dividem entre o pentecostalismo clássico, que é
representado pela Assembleia de Deus, Congregação Cristã do Brasil, Igreja do
Evangelho Quadrangular, Deus é Amor e outros, e os neopentecostais, da Igreja
Universal, Sara Nossa Terra, Internacional da Graça de Deus, Mundial do Poder
de Deus e outras, surgidos no final dos anos 1970 e com forte ênfase na Teologia
da Prosperidade.

[O pastor e deputado federal pelo PSC de São Paulo] Marco Feliciano, [o pastor
Silas] Malafaia e [a presidente da Rede] Marina Silva são da Assembleia de Deus,
enquanto Edir Macedo e, seu sobrinho Marcelo Crivella são da Igreja Universal do
Reino de Deus.

Feliciano e Malafaia têm um perfil mais moralista enquanto Edir Macedo e a Igreja
Universal são mais flexíveis, embora com um forte discurso demonizador das
religiões afro-brasileiras. Os neopentecostais são muito aderentes. Por isso o
Crivella é um político tão aderente, que se adapta; ele desce bem, tem uma
plasticidade muito grande.

É importante ter clareza que toda esta imagem conservadora desses religiosos
não corresponde a todo o universo. O que está em destaque na política nacional
são pessoas que falam em nome dos evangélicos, representam a maior parte
deles, mas existem nesse meio também segmentos progressistas, que fazem
uma militância mais próxima da sociedade civil, como em algumas ONGs, por
exemplo, e investem menos na via eleitoral.

Em que medida o fato de Crivella ser ‘evangélico’ importa para a gestão da


política na capital carioca?

RONALDO ALMEIDA Assim como nem todos evangélicos são conservadores, é


preciso entender também que a pauta conservadora vai além da pauta dos
evangélicos conservadores. Dela participam também católicos e outras religiões.
Não por acaso ele recebeu neste segundo turno o apoio declarado de Dom Orani
Tempesta, arcebispo do Rio de Janeiro. Assim, o alinhamento de Crivella é com o
conservadorismo e isso é ainda mais determinante que o fato de ele ser
evangélico.

"Crivella aposta numa versão light de si mesmo, e isso é necessário, pois


mesmo que haja um número alto de evangélicos, o número de católicos é
alto também. Ele não pode nem sonhar em ter uma governança
fundamentalista"

A questão religiosa tem muita importância no processo eleitoral. Mas, passando


essa fase, o candidato eleito tem de fazer o jogo do sistema político, tem de
negociar com a Câmara de Vereadores e, ali, a Igreja Universal não tem uma
base forte. Crivella pode ter base eleitoral, mas a base política depende das
alianças com outros políticos, evangélicos ou não. Então ele vai governar com o
PMDB, vai continuar compondo com aqueles que governavam a cidade.

Certamente, é exagerado dizer que, com a eleição de Crivella, a Igreja Universal


vai governar o Rio. A sociedade é plural e a Universal é apenas um pedaço de
todo o setor evangélico. Boa parte dos evangélicos têm resistência à Universal.
Crivella sabe disso e, por essa razão, trabalhou o tempo inteiro para se distanciar
dessa marca, mesmo mantendo um discurso de fundo conectado com a
Universal. É algo muito sutil.

Ele se equilibra entre um passado de pregações demonizadoras, que estão


disponíveis na internet, e o marketing atual, que o apresenta como um candidato
de perfil ecumênico. Ele recebeu uma saraivada de críticas nas últimas semanas
por esse passado missionário, mas teve pouco efeito em aumentar sua rejeição.
Crivella aposta numa versão light de si mesmo, e isso é necessário, pois mesmo
que haja um número alto de evangélicos, o número de católicos é alto também.
Isso sem falar nas demais religiões. Ele não pode nem sonhar em ter uma
governança fundamentalista, mas certamente favorecerá os evangélicos em
detrimento de outros movimentos, como a valorização das religiões afro-
brasileiras.

O número de evangélicos está crescendo e a representatividade política dos


evangélicos também. Isso é uma sensação ou há dados que provam isso?

RONALDO ALMEIDA Esse crescimento vem desde os anos 1960, mas explode
nos anos 1980 e 1990, e segue crescendo. Hoje, quase ¼ dos brasileiros se
declaram evangélicos, sendo que a grande maioria é de pentecostais. O Rio de
Janeiro é o termômetro mais expressivo dessa mudança. O Rio e Rondônia já são
os dois Estados brasileiros nos quais os católicos são menos de 50% da
população, de acordo com dados do último Censo. E nas regiões periféricas da
cidade do Rio, há quase o mesmo número de católicos e de evangélicos. Logo,
não há nada de surpreendente na eleição para cargos majoritários de candidatos
que se identificam com essa população.

A entrada desse grupo na política institucional se inicia na eleição para a


Assembleia Constituinte, em 1986. Até então, prevalecia o discurso de que ‘crente
não participa da política’. Mas isso se inverte naquela eleição para o ‘irmão vota
em irmão’. Eles elegeram mais de 30 deputados federais em 1986 e hoje estão
com 3 senadores e mais de 70 deputados.
Essa população tem uma fidelidade grande, embora não total, ao votar. Segundo
o Datafolha, cerca 80% dos evangélicos declaram voto no Crivella. Entre os
pentecostais esse percentual chega a 90%. A transferência de votos entre
evangélicos é acentuadamente maior do que entre católicos. Mas muitos
evangélicos afirmam não votar pela questão religiosa.

Quais as consequências desse aumento?

RONALDO ALMEIDA A maior consequência é o aprofundamento da onda


conservadora que se vê no país. Do ponto de vista econômico, o que tem se
destacado é o discurso do empreendedorismo individualista, do Estado mínimo e
do ‘faça por você mesmo que deus te ajudará’. O segundo ponto é um
conservadorismo moral. Aí, muitos políticos evangélicos fazem o trabalho mais
pesado, uma espécie de blitz ou de tropa de choque. Como dito, esse
conservadorismo moral, no entanto, vai além dos evangélicos.
Essa mescla de conservadorismo moral com liberalismo econômico pode
produzir tanto um Crivella no Rio quanto um João Doria em São Paulo?

RONALDO ALMEIDA A eleição nestas duas capitais é expressiva do contexto


político atual no Brasil. A eleição de [Marcelo] Freixo [do PSOL] seria um desvio
desse movimento mais amplo.

Não é normal que a representatividade evangélica cresça à medida que o


número de seguidores dessa religião cresce também? Essas pessoas não
têm o direito de escolher candidatos que os representem?

RONALDO ALMEIDA Sim. Essa é a questão que se coloca para a democracia.


Não se trata de um tipo de representação ilegítima, ou de candidaturas ilegítimas.
Na verdade, há uma base social e isso era, portanto, esperado. Então a pergunta
é: ‘que tipo de crítica democrática pode ser feita a eles?’. Eu sou crítico, mas
reconheço que se trata de um movimento que tem base social concreta e legítima.
A crítica possível é, creio, a seguinte: eles têm elegido representantes pouco
afeitos à diversidade da sociedade brasileira e com pautas que pretendem regular
a moralidade pública a partir de convicções religiosas.

"A questão, para mim, é a seguinte: como ser democrático e aceitar as


diferenças quando se trata de lidar com religiosos que têm pouca abertura a
diferentes concepções de vida . Esse é o nó"

Um exemplo bom: [o ex-presidente da Câmara dos Deputados, afastado e preso


preventivamente na Lava Jato, Eduardo] Cunha foi questionado no ano passado,
no Roda Viva, sobre aborto. Ele respondeu o seguinte: ‘eu nem coloco o assunto
em discussão, porque a maioria não quer’. Ora, ele pode até ser contra o aborto,
mas, democraticamente, ele não pode impedir a discussão, sua publicidade, com
base nas suas próprias crenças ou nas da maioria. E o cinismo dessa postura é
que esses evangélicos sempre reivindicaram a liberdade de consciência frente a
uma maioria católica. Neste momento em que suas posições tendem a ser
hegemônicas, a postura é outra.

A questão, para mim, é a seguinte: como ser democrático e aceitar as diferenças


quando se trata de lidar com religiosos que têm pouca abertura a diferentes
concepções de vida. Esse é o nó. Se fugir disso, você acaba reproduzindo um
preconceito que não é mais do que o outro lado da mesma moeda.
Qual a diferença dessa penetração evangélica entre os mais pobres e o que
a Igreja Católica fez nos anos 1960 e 1970 com as Ligas Camponesas e a
Teologia da Libertação?

RONALDO ALMEIDA A Teologia da Libertação, em certo sentido, é o oposto dos


neopentecostais. Ela fazia a crítica da estrutura social que reproduz
desigualdades sociais. A transformação passava pela mudança dessas
estruturas. Do outro lado, os neopentecostais enfatizam as soluções individuais,
como o empreendedorismo. A estrutura social é injusta, eles admitem, mas cabe
a você crer e se esforçar para conseguir progredir na vida.

E já não é aquela ênfase no trabalho, que os protestantes clássicos pregavam. É


a questão de acreditar, de investir, de virar patrão. É um evangelismo muito
filtrado por valores de uma cultura de consumo e do empreendimento pessoal. Na
Universal há cultos dos empresários, mas não há culto do trabalhador. E, se você
vai lá ver, acaba encontrando desempregados, autônomos e empresários.

Esse é um movimento exclusivo da política brasileira ou também está


presente em outras partes do mundo?

RONALDO ALMEIDA O pentecostalismo é uma das religiões que mais crescem


no mundo, especialmente na América Latina e na África, sem contar os EUA,
onde nasceu. No Brasil, a Igreja Universal é a que leva mais a sério a ideia da
internacionalização.

Na Europa é possível encontrar muitas igrejas pentecostais, brasileiras ou não,


mas basicamente elas atendem à população imigrante que foi tentar a vida por lá.
Na Igreja Universal em Paris, onde também fiz uma curta pesquisa, a quase
totalidade dos frequentadores era negra, lusófona e francófona. Era quase
inexistente a presença de brancos franceses.

Quanto à presença na política institucional, o caso brasileiro é bastante


expressivo, mas isso é verificável também em países latino-americanos e
africanos. A política é um meio viabilizador da expansão da religião. Isso não vale
para todos os evangélicos, repito, mas para boa parte deles, sobretudo os
pentecostais. Por isso, é bom levar a sério a pregação de Crivella, em 2012, que
circulou nas redes sociais e nos grandes jornais, quando falou do desejo de ter
um presidente evangélico. Isso não foi um momento hiperbólico da sua pregação,
mas é projeto coletivo que dispõe de vários atores e uma forte base social.
Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2016/10/28/Qual-a-influ%C3%AAncia-das-igrejas-evang
%C3%A9licas-na-pol%C3%ADtica-brasileira © 2018 | Todos os direitos deste material são reservados ao NEXO JORNAL LTDA.,
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