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A constância da tradição pitagórica na História ocidental


A ideia de perfeição extra-humana, como concebida pelos filósofos, remonta a Pitágoras, que
disse que tudo é feito por números. Mas os números não existem na Natureza e nem aparecem
na experiência sensível. Também não podemos dizer que são apenas uma coisa da nossa mente,
porque sempre 2 + 2 vão ser igual a 4, por mais que refaçamos a conta e a apliquemos a
qualquer tipo de objecto material. Assim, os números funcionam da mesma maneira no sujeito e
no objecto e ligam os dois de uma forma quase mágica. Desde cedo que os números fascinaram
as pessoas, porque nas sociedades primitivas o mundo abstracto funciona como um refúgio
contra o caos do mundo físico. Isto ainda tem ressonância na filosofia pitagórica-platónica.
Se, atendendo a Pitágoras, tudo é feito de números, e sendo estes algo que dominamos
intelectualmente, então, o mundo afigura-se menos ameaçador, porque mediante cálculos
podemos de alguma forma manejar o conjunto. Claro que isto é uma ilusão que visa combater
uma sensação de terror-pânico, mas, ao mesmo tempo, transforma-se numa ambição de poder.
Em geral, as pessoas evitam meditar sobre o infinito, não confessando como Pascal que “a
solidão dos espaços infinitos me apavora”. Contudo, o infinito é a própria condição onde
vivemos. Sempre existiram duas tendências no homem. Por um lado, há a tendência de nos
abrirmos para o infinito e reconhecermos o nosso desamparo e que dependemos da 366
protecção de uma força que nos transcende, sendo esta tão incompreensível quanto o nosso
terror. Por outro lado, há a tendência de refúgio na abstracção e na ilusão de domínio.
Em Pitágoras aparece pela primeira vez com máxima clareza a busca de refúgio no abstracto.
Diz-se que o sujeito que descobriu os números irracionais foi executado pela escola pitagórica,
porque vinha destabilizar a ordem encontrada, dado ter voltado a inserir o mistério e o terror do
infinito de que se estava a tentar escapar em primeiro lugar. Os números irracionais ameaçavam
todo o universo matemático de ser tão indefinido e incontrolável como o universo físico. Mesmo
se a história não for verídica, ela é simbólica a respeito desta tensão em que vive o homem.
A perspectiva de dominar a realidade externa mediante o segredo dos números tornou este
segredo numa matriz de símbolos e rituais, existindo um simbolismo numérico em todas as
escolas iniciáticas, como acontece na maçonaria ou no sufismo. Mas como o símbolo tem
múltiplos significados, possuir conhecimento simbólico é possuir um problema. O
conhecimento simbólico dá a impressão de ser um conhecimento superior, mas ele vem tão
compactado e mesclado quanto a experiência sensível. O símbolo também tem uma função
hormonal, que não nos dá a satisfação mas o impulso, o desejo. Há milénios que se tornou numa
das constantes do espírito humano o impulso de alcançar, através de um simbolismo numérico,
um conhecimento mágico que torne o seu possuidor apto ao domínio da realidade exterior.
O símbolo necessita de uma explicação, e as sucessivas interpretações dele vão introduzindo
grandes margens de erro. Embora o sujeito que tenha acesso ao símbolo tenha um recurso a
mais do que o profano, esta “ajuda” também pode gerar interpretações erradas e fantasiosas,
como realmente aconteceu ao longo de milénios. E podemos constatar que as teorias científicas
e filosofias que têm um impulso de encontrar uma fórmula matemática da realidade ou do
universo são inspiradas no ideal pitagórico. Já dizia Arturo Reghini que a ordem maçónica não é
mais do que a ordem pitagórica. Todo este tipo de tradição que visa dar a explicação de um
problema “apenas” adicionou mais um problema.
A partir dos séculos XVI e XVII ocorreu o florescimento da ciência moderna, muito devido à
aplicação de princípios matemáticos. Ao mesmo tempo impôs-se a característica tipicamente
moderna de confiar mais nos números do que nos factos. Galileu inverteu os termos quando
disse que ia usar-se de demonstrações provantes e de experiências apenas sensatas,
subalternizando assim os factos. Facilmente percebemos que a melhor demonstração apenas
prova a sua própria exactidão, nada garantindo sobre o mundo exterior, para o qual apenas se
pode fazer a ligação através da experiência, pelo que esta é que tem que ser perfeitamente
exacta. Surgiram também nesta altura, ligadas ao advento da ciência moderna, teorias como o
heliocentrismo e a gravitação universal. Nestas, uma multidão de factos do mundo físico é
reduzida a uma fórmula que os explicam teoricamente. A experiência para mostrar que as duas
coisas estão ligadas mostrou que não era bem assim, que a teoria é apenas válida em certas
condições (caso da gravitação universal) ou só é válida enquanto considerada como mais um
ponto de vista, como no caso do heliocentrismo. Galileu ofereceu uma data de experiências
mentais para apoiar a teoria heliocêntrica, mas hoje sabemos que o examinador inquisidor, São
Roberto Belarmino, tinha razão quando disse que a teoria não batia com a experiência.
A física tal como vista por Newton, Galileu ou Einstein é sobretudo uma matematização da
física, onde a dedução puramente abstracta predomina sobre a experiência 367

e, por isso, é frequentemente considerada uma coisa superior. Já no séc. XX Husserl alertou, no
livro A Crise das Ciências Europeias, que a matematização da Natureza sobrepôs a esta um
outro ente que não sabemos o que é, e que Wolfgang Smith (O Enigma Quântico) diz que é, para
o campo da física quântica, a materia secunda, uma espécie de matéria virtual, algo que aponta
para o mundo das relações matemáticas que, supostamente, transcende, abrange, domina e
explica o mundo físico. Claramente, isto é um retomo a Pitágoras e é como estar a dizer que
“tudo é feito de números”. α100

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