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294.

Leituras formativas sobre o projecto socrático


A História Essencial da Filosofia, de Olavo de Carvalho, tem a ideia do projecto socrático como
fio condutor. Os diálogos de Platão fundamentais que nos dão uma ideia sobre este projecto e
uma imagem muito completa do filósofo são a Apologia de Sócrates e o 361
Fédon. Devemos ler estas obras antes de entrar na lista de leituras formativas indicada
anteriormente [289].
Sócrates nunca aparece nos diálogos como portador de uma doutrina, mas sempre mostra um
esforço de investigação, e no fim termina com uma dúvida. No Fédon, Sócrates evidencia uma
grande confiança na imortalidade da alma, mas também tem consciência de estar indo em
direcção a um grande ponto de interrogação. Sócrates não é um pregador de uma doutrina
pronta mas o inaugurador de um esforço de investigação a ser prosseguido por um prazo
indeterminado. Esta atitude interrogativa é o projecto socrático, e não é apenas algo próprio ao
filósofo mas aquilo que o define. Ao mesmo tempo, é uma atitude que expressa algo da condição
humana, situada por Platão entre o anjo e o animal, o ser que vive em perpétua tensão entre o
conhecimento e a ignorância.
A própria ignorância faz parte da estrutura do conhecimento. O mapa de ignorância [40, 165] é
um elemento fundante do conhecimento, é a delineação do que precisamos de saber para
entender certa coisa. O conhecimento é a resposta a uma pergunta e esta é a expressão de uma
ignorância que sabe que não pode ser totalmente vencida mas que também não se aceita como
tal.
Não é possível elucidar a estrutura última da realidade – o mistério do ser – através de uma
doutrina [293], que é apenas uma série de proposições a este respeito. A resposta é o próprio
acesso à dimensão de eternidade. Todos os relatos de experiências de morte clínica, dos santos,
profetas, do próprio Cristo, mostram que o encontro com a Verdade não se dá sob a forma de
um enunciado, mas há uma experiência de estar numa luz permanente, sem o véu a que somos
submetidos nesta vida. Isso não quer dizer que vamos saber tudo, porque isso seria abarcar toda
a dimensão da eternidade e ser transformado em Deus, o que nunca foi prometido ou relatado
nestas experiências. Mas existe o encontro com as três pessoas divinas, e isso mesmo é a
resposta final, que chega na forma de presenças humanas numa vivência que tem ainda uma
estrutura narrativa, embora muito mais acelerada do que aquelas que conhecemos. Esta é a
única resposta satisfatória que podemos ter, que já tem no seu acontecer a sua razão de ser, e a
doutrina só é válida como um símbolo preparatório para este tipo de explicação. A experiência
do amor humano dá-nos uma imagem da eternidade. O amor que temos por uma pessoa não
pode ter uma explicação acima dele mesmo, ou automaticamente se anula e seria a periferia de
outro acontecimento. O amor é auto-explicado; é um estado de satisfação existencial e
intelectual no qual não faz sentido a pergunta pela sua razão de ser. Já o ódio precisa de uma
explicação, a sua própria experiência não responde pela sua existência.
Conseguimos entender as doutrinas sobre a vida eterna porque temos acesso a um
conhecimento satisfatório desta, que nos é dado pela própria experiência de vivê-la. Mas se
tomamos a doutrina como um quadro explicativo final, estamos a inverter o cenário e a doutrina
torna-se numa fantasia hipnótica e macabra. Por isso, em Sócrates nunca vemos uma conclusão
doutrinal. Qualquer formulação doutrinal é sempre menos completa do que a pessoa que a
recebe e que passa a ser um elemento dentro desta. A verdadeira explicação não está na
doutrina mas na pessoa, servindo a doutrina como um espelho para a pessoa se reconhecer
como unidade vivente e portadora de um conhecimento potencial da eternidade, encerrando a
doutrina a sua função aí.
Indo de Sócrates para Platão e deste para Aristóteles, vemos que o modo de exposição filosófico
vai passando gradualmente do narrativo para o doutrinal. Contudo, a parte mais 362
importante da doutrina são as perguntas que sobram. A metafísica de Aristóteles repousa sobre
um conjunto de perguntas não respondidas e ele mesmo deixou um livro de questões como
legado. O conhecimento positivo, exposto em modo doutrinal, só ganha corpo quando visto
como um ponto de luz cercado de dúvidas e interrogações, que são possibilidades de
conhecimento. Vemos na Teoria dos Quatro Discursos que o universo de conhecimento vai se
afunilando à medida que se passa do discurso poético até chegar ao discurso lógico, passando
pelos discursos retórico e dialéctico. De tudo quanto existe só uma parte ínfima entra no mundo
da experiência, e desta só uma pequena parte entra na memória; daí, só uma parcela menor
pode ser objecto de discussão e escolha; e continua afunilando para aquilo que pode ser alvo de
investigação filosófica; e no fim só uma parte mínima pode ser objecto de certeza doutrinal. O
que resta e o que foi “perdido” pelo caminho continua numa tensão entre conhecimento e
ignorância, é o mundo da interrogação e, por isso, Eric Voegelin dizia que a estrutura da filosofia
é zetética (de zetesis, busca, interrogação). As conclusões doutrinais em filosofia só não são
falsas quando servem de símbolos iluminadores para criar uma antevisão de uma certeza final
que não chegará doutrinalmente.
Os pré-socráticos buscavam uma resposta definitiva sobre a lei fundamental que rege o
universo, cada um olhando numa direcção específica. Mas a filosofia toma consciência de si
mesma com Sócrates quando este percebe que não há uma resposta definitiva. A Apologia de
Sócrates e o Fédon devem ser lidos com estas coisas em mente.
O esforço filosófico está sempre, de algum modo, relacionado com a busca da verdade.
Ironicamente, Pilatos questionou “Quid est Veritas?” precisamente diante de Cristo, que é a
própria Verdade. Pilatos substituiu a Verdade efectiva, existencial, diante dele para substitui-la
por uma pergunta. Devemos sempre questionar se realmente buscamos a verdade ou se fugimos
dela e se já partimos em busca de uma formulação verbal, de um conjunto de proposições. A
ciência moderna quer nos vender a ideia de que as leis científicas são verdades sobre a Natureza,
mas na realidade são construções mentais que, no caso da física quântica, versam sobre a
materia secunda, uma faixa com existência virtual, intermediária entre o ser o não-ser (ver o
livro O Enigma Quântico, de Wolfgang Smith).
A tendência natural do ser humano é refugiar-se na sua inteligência limitada, buscando
protecção contra a complexidade dos objectos que a transcendem infinitamente. Isto é um
impulso que deriva do medo e não da vontade de buscar a verdade. Todo o adolescente busca
algum tipo de segurança intelectual contra a complexidade do real. Mas ele pode acalmar,
aceitar o seu estado de desprotecção e aí pode descobrir que existe algo chamado de realidade,
que não é um objecto de pensamento, é algo onde estamos. A maturidade intelectual é este
encontro com a realidade, já não é a busca de uma crença defensiva mas é um ajuste entre a
nossa inteligência e o nosso quadro real, aceitando a sua riqueza, a sua complexidade e
inabarcabilidade, e fazendo com que as nossas acções reflictam estas coisas.
A medida máxima da inteligência humana é a participação consciente e lúcida numa realidade
que ela não pode abarcar. Assim, passamos a prestar mais atenção aos acontecimentos do que às
nossas ideias. No fundo, a pergunta mais elevada que se pode colocar é esta: O que é que está
acontecendo? Podemos responder às questões genéricas apenas usando o raciocínio, mas
perceber o que está acontecendo implica mais do que raciocínio, envolve percepção, memória,
vontade, sentimento e uma disposição permanente de aceitar a realidade do que acontece. É por
isto que Aristóteles dizia que a vida contemplativa é a forma superior de vida, porque buscar
segurança é o que faz qualquer 363
bichinho, mas este não entende a situação, então, busca prazer e encontra dor e depois foge
desta e ainda encontra mais dor.
A atitude adequada fornece uma espécie de “tranquilidade superior”, que Sócrates mostrou ao
enfrentar a morte: ele não sabia exactamente o que era a morte mas tinha alguma ideia a
respeito que lhe permitia não temê-la. Isto é o início e a culminação da filosofia, porque
nenhuma das construções intelectuais da modernidade (mesmo as metafísicas de Leibniz ou
Descartes, ou o Iluminismo) pode substituir isto. Estas construções são frequentemente uma
fuga, o que ainda acaba por aumentar o temor, dado que, afinal das contas, temos mais um
edifício problemático para segurar, sempre com a preocupação de mostrar que aquela é a visão
de mundo correcta. Nenhuma das experiências de morte clínica colocou alguém dentro de uma
metafísica. Para Platão a filosofia era uma preparação para a morte, e a função máxima do
filósofo é recordar a vida eterna e compreender a transitoriedade da vida neste mundo. Tudo
isto está bastante compactado na Apologia e no Fédon. α99

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