A experiência de estar dentro de um universo, concebido como uma totalidade finita ou ilimitada, foi durante milénios traduzida sob a forma de narrativas míticas. Tratavam-se de histórias em que as personagens, mesmo que fossem deuses, heróis, anjos, demónios, fadas, duendes, etc., tinham essencialmente um comportamento humano (faziam escolhas, tinham preferências, não eram totalmente previsíveis, comiam, bebiam). Inclusivamente, o núcleo da mitologia grega, que faz a narração da criação e o conflito entre os deuses, é a descrição de acções que se podem dizer humanas. Depois ocorreu na Grécia uma mutação, e a expressão da realidade última já não foi cristalizada numa narrativa mas em afirmações sobre o ser. Passou-se do tempo passado, usado nas narrativas, para o tempo presente, mas o presente eterno. Quando Parménides diz que “o ser é, o não-ser não é” isto não se refere a um momento do tempo, é uma fórmula metafísica permanente e imutável; é o contrário do acontecer, porque aquilo que acontece começa e termina, mas o ser nunca cessa. Então, por trás das narrativas era agora vislumbrada uma realidade mais permanente, transcendendo tempo e espaço. Apareceram várias fórmulas metafísicas e nunca foi possível chegar a um consenso. A partir do século XVI deu-se outra mutação, como que cedendo à dificuldade em chegar a uma única formulação metafísica. Ao invés de tentar abranger toda a realidade, o foco incidiu só na parte da chamada Natureza física. Na realidade, nunca alguém provou que era possível descrever a Natureza física sem referência ao ser humano que a habita, ou seja, descrever a Natureza como uma coisa separada. Uma coisa é uma realidade que pode ser facilmente reduzida a uma fórmula que expresse o seu carácter repetitivo, e idealmente os elementos da Natureza expressam-se mediante fórmulas matemáticas. O fim último do cientista é chegar a uma descrição estática e fechada daquilo que ele chama de universo ou Natureza, sobre o qual tem total controlo intelectual. As fórmulas constantes permitem ter um controlo intelectual das coisas, o que abre a possibilidade de um controlo tecnológico, e assim parece que a natureza das coisas é estarem sob domínio dos seres humanos. Contudo, o que se acontece quando se passa das coisas para os entes vivos? Nunca confundimos uma pessoa com uma coisa. Podemos escrever um poema em que uma árvore fala mas sabemos que se trata de uma alegoria, ou então temos alguma patologia. Os animais são seres intermediários, com algo de coisa e algo de gente. E eles distribuem-se numa escala, havendo alguns mais parecidos com coisas e outros mais parecidos com os seres humanos, como os macacos e os cachorros. Contudo, já temos uma descrição genética de algumas espécies animais, que assim podem ser cruzadas e gerar novos seres. Então, passou também a ser próprio da natureza animal estar sob domínio humano, não apenas intelectual mas já tecnológico. A tendência dos últimos séculos de desviar o foco de atenção da realidade como um todo para a parte chamada Natureza veio acompanhada com outra tendência subtil de acreditar que a totalidade da realidade tem a natureza de coisa e não a de uma história humana, como se verificava na mitologia. Não há qualquer prova disto, mas é a base de que todo o cientista parte para o seu desígnio de chegar a uma explicação global da realidade. 360 O que o estudo das narrativas míticas nos diz é que o mito é o quadro supremo de todo o pensamento humano, incluindo o pensamento científico. O pensamento mítico não pode ser superado simplesmente porque não existe algum outro que seja mais amplo que ele. A ciência pode recuar até à origem da matéria, mas chega à conclusão que havia um conjunto de forças e não tem como lidar com isso, porque estas forças não são um nada. Então, temos de recuar e usar outros meios que não são os científicos. No final chegamos a um mundo mitológico e ao início da própria Bíblia, que diz que no início era o Logos. O pensamento mitológico conta tudo sob a forma de narrativas, que não se dão entre coisas mas entre forças dotas de identidade, liberdade de acção e consciência de si mesmas, ou seja, de forças que agem como seres humanos. Não há forma de superar a concepção antropomórfica do universo. A realidade não pode ser reduzida a fórmulas matemáticas ou metafísicas, nem sequer a leis, porque a realidade não é uma coisa. Deus transcende as suas próprias leis. Contar histórias é a actividade mental mais constante desde sempre. Em comparação, a actividade explicativa é quase nula. Mesmo a teoria do Big Bang é uma narrativa, não pode ser compreendida como uma constante. A cultura moderna criou a ilusão de vivermos dentro de uma coisa e não dentro de uma narrativa. Mas quando as narrativas antigas são removida, as pessoas vão criar novas narrativas, só que agora completamente falsas, como as mitologias grupais do marxismo ou do liberalismo materialista-ateísta [292]. Todas as narrativas pretendem simbolizar a narrativa da realidade, a diferença é que esta última foi escrita por Deus. As nossas narrativas são válidas quando nos abrem para a realidade, caso contrário tentam confundir-se com ela, encerrando-nos nos seus limites estreitos. Northrop Frye fazia a distinção entre mitos e fábulas. Os mitos são símbolos auto-conscientes dentro da narrativa divina, e as fábulas são histórias que acreditam em si mesmas, e tornam-se falsas quando pretendem passar por verdades literais. Quando a percepção da totalidade da realidade como narrativa desaparece, vão proliferar as fábulas de todo o género, literárias, científicas, cinematográficas, históricas, etc., mas agora o ser humano já não se vê como personagem mas como um narrador que pode controlar o conjunto como se fosse um demiurgo. Consideramos legítimo que um romancista faça uma narrativa como símbolo da narrativa divina, mas achamos que ele enlouqueceu quando se encerrou dentro da sua narrativa e não vê nada fora dela. Contudo, o cientista faz exactamente isto e não o chamamos de louco. Mas o cientista quer ainda impor aos outros a sua fábula como realidade. Daqui derivam as ideologias totalitárias, todas têm origem científica, assim como é a origem remota das mitologias grupais [292]. Mas nenhum filósofo sério cai neste erro, ele nunca vai levar a sua filosofia a sério até ao fim, sabe que tudo aquilo é simbólico e que está trabalhando dentro de uma estrutura mítica que o abrange e da qual ele apenas pode compreender uma parte. α98