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A busca da verdade
A primeira questão filosófica provavelmente prende-se com a identificação e busca da verdade.
Experiências neste sentido costumam ser decepcionantes e fazem as pessoas desistir, caindo no
cinismo ou em algum tipo de acomodação. O erro mais frequente é tentar logo encontrar a
verdade no seu sentido mais universal, mas toda a gente tem alguma experiência de busca da
verdade que pode servir de base ao método filosófico.
No seu sentido mais imediato, a verdade resume-se à sinceridade, à confissão dos nossos
verdadeiros intuitos. Não se trata de um auto-conhecimento no sentido de sabermos qual o
segredo da nossa vida, mas significa focarmo-nos em questões que estão ao nosso alcance e que
tenham importância existencial para nós. A primeira condição para a busca da verdade é
precisamente encontrarmos a nossa voz própria e termos a certeza de estarmos falando de algo
que conhecemos. Antes de pensarmos em encontrar a verdade, devemos garantir que não
traímos as verdades que já sabemos, o que nos remete ao método da confissão [7, 160]. Sócrates
partia da confissão de que ele mesmo não sabia a resposta às questões. É importante sabermos
como certas opiniões chegaram até nós. É necessário fazermos a nossa auto-biografia intelectual
contando a origem das nossas ideias, e para fazer isso é preciso reflectir a respeito. Então, a
primeiro condição de busca da verdade pode se resumir à sinceridade. Mas não é a sinceridade
de dizer o que nos passa pela cabeça naquele momento, que pode apenas uma acção teatral, tem
de ser uma sinceridade interior que implica recordar, reflectir e meditar, e implica saber que não
podemos mudar mais o que já decorreu.
Uma coisa má que fizemos, vergonhosa, pode ser importante para esta investigação, porque não
contamos aquilo a ninguém e, assim, somos o único critério de veracidade daquilo: ao mesmo
tempo somos o sujeito da acção, o sujeito da narrativa e aquele que está a meditar sobre o
ocorrido. Temos que distinguir o sucedido de interpretações a respeito e de acréscimos auto-
justificadores, que até podem ter sentido mas não podemos deixar que modifiquem a história. A
vergonha que temos deve ser apenas perante nós mesmos e perante Deus, por isso devemos
averiguar se não é uma vergonha que subentende um certo público imaginário que tem um
determinado critério. Isto é um demónio acusador que nos força a nos defendermos. Este
tribunal interior não busca a verdade, apenas a culpa e a inocência, e nunca termina, sempre
oscilando entre acusação e defesa, e ele mesmo é o caminho da falsidade. 357
Para contarmos a história com sinceridade temos de nos afastar deste tribunal interior e, sem
medo, confessarmo-nos perante Deus, que não está ali como um juiz mas mais na posição do
médico a quem contamos os nossos sintomas e, assim, Ele nos cura. A discussão moral interior
pode atrapalhar bastante a busca da verdade, mas temos de lembrar que o nosso ouvinte é justo,
bondoso e que nos compreende melhor do que nós mesmos. Perante Deus apenas temos uma
vergonha esperançosa, não é aquela vergonha perante uma plateia de escarneadores, porque
Deus realmente não nos julga, perdoa-nos e saímos limpos. Podemos verificar
experimentalmente que só conseguimos contar a história verdadeira se passarmos do tribunal
humano (os “pensamentos ociosos” de que fala a Bíblia) para o julgamento divino, porque sem
inspiração divina não conseguimos.
O mais importante que vamos descobrir sobre a verdade encontra-se neste processo de auto-
descoberta, em que passamos de um nível de discurso para outro nível de discurso. Nenhum
tratado de metodologia científica pode nos ensinar isto, e eles mesmos têm a sua validade
condicionada a esta verdade prévia, que envolve a sinceridade e a idoneidade do testemunho.
No fundo, trata-se do método da confissão descoberto por Santo Agostinho, mas que Sócrates já
usava a seu modo e que vemos que é ainda a base da fenomenologia de Husserl, que pretende
descrever um objecto tal qual ele se apresenta, sem os acréscimos e interpretações. Sem o
método da confissão a fenomenologia também não vai resultar.
No fundo, todos os grandes filósofos acabam por usar o método da confissão, a que dão os seus
próprios acréscimos. Só avançamos para saber o desconhecido tendo noção do que sabemos, e já
Aristóteles dizia que o conhecimento vai do mais conhecido para o menos conhecido. O sujeito
do conhecimento é como uma lente, que tem que ser limpa ou vão aparecer as suas manchas.
Esta limpeza corresponde à distinção que Husserl fazia entre o que aconteceu, o que é a nossa
realidade e quais são as nossas interpretações. Estas últimas até podem ser legítimas mas já é
uma deformidade confundi-las com o facto. O facto é aquilo que já não pode ser mudado, pelo
que alguma coisa que ainda está decorrendo e é modificável não é um facto ainda, é a sua
produção, que pode tomar várias direcções até ele ficar fechado. Temos também de meditar
sobre as situações que se fecham para sempre, não temos como voltar a elas mas fazem um
destino. Elas estão para nós como a natureza física, já não fazem mais parte do nosso processo
interior, materializaram-se e fazem parte do quadro imutável da nossa vida. Isto permite-nos ter
uma ideia do coeficiente de liberdade e de determinismo na nossa vida, e depois disso é leviano
discutir a questão apenas teoricamente. α97

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