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O Drama da Humanidade

por Eric Voegelin

traduzido por Mariano Henrique Rodrigues

I. A Situação Contemporânea

Senhoras e senhores, [deixem-me] chegar agora ao assunto em si, que está ligando
ao que tenho a dizer sobre o drama da humanidade na situação contemporânea. Agora, a
primeira coisa que talvez seja incomum, mesmo se usada como termo técnico, é falar de
um drama da humanidade e não de um drama do homem. Veremos aqui porque há uma
diferença importante.

Mas isso nos dá um ponto de partida; temos que ser claros sobre isso: Qual é a
concepção atual do homem em um sentido público? Você deve sempre distinguir entre
como alguns filósofos especialistas lidam com tais problemas e o que é geralmente aceito
e geralmente conhecido. Portanto, eu quero colocar primeiro, simplesmente enumerando-
os, os termos em que o homem moderno é popularmente caracterizado de uma forma
tópica geral. Então, em oposição, [quero] formular como as mesmas características devem
ser caracterizadas a partir de uma posição crítica. Poderão ver melhor, por meio de uma
clara enumeração de categorias, que existe uma grande lacuna entre a concepção
publicamente aceita e o que é feito hoje na filosofia.

Quando falamos do homem moderno e usamos a auto-caracterização dele na


sociedade em que todos nós vivemos como homens modernos, encontramos termos tais
como, primeiro, o homem moderno; então, frequentemente usado, é o peculiarmente
moderno de ser um homem secular; então, [tendo] entrado muito na moda, começando
especialmente com Toynbee, [há] a ideia de que o homem moderno está vivendo em uma
era pós-cristã e, portanto, é um homem pós-cristão. Se o assunto adquirir algum tipo de
polimento filosófico, o homem pós-cristão [será chamado] de homem imanentista ou de
homem imanente ao mundo. Estes são os termos mais usuais em que falamos sobre o
homem, se quisermos caracterizá-lo como um homem moderno. É claro que o homem
moderno está vivendo em uma “era” – tudo o que é elegante vive em uma Era, e assim
todos nós vivemos em uma era que é moderna ou algo assim, e vocês verão [em um
momento] o que isso significa. Estes são os termos da auto-caracterização.
Se usarmos agora um vocabulário empírico e filosófico crítico para caracterizar a
mesma situação, você teria que dizer que o homem moderno que é pretendido por esses
termos mais ou menos clichês é, em primeiro lugar, um fundamentalista, em segundo
lugar é analfabeto, em terceiro lugar ele está inflamado com fogo apocalíptico e, portanto,
está dividido entre estar assustado pelo mundo e cheio de expectativas de que algo
[melhor] virá. Essa atitude ambivalente, de estar amedrontado e expectante ao mesmo
tempo, é usualmente chamada de alienação, novamente um termo geral: alienação, um
“homem alienado”. Agora, deixe-me explicar em detalhes as características do
fundamentalismo, analfabetismo e apocalipse.

Frequentemente, [esses termos foram usados para caracterizar] um “composto”


peculiar, que o teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer (que se tornou vítima de Hitler)
chamou de “o homem chegou à maioridade” – esses três adjetivos. Agora deixe-me
elaborar sobre eles.

Disse que a primeira característica é o dogmatista, o fundamentalista. Por


fundamentalista entende-se uma peculiaridade da nossa civilização moderna, que já
começa no século XVI. Os grandes períodos de guerra do Ocidente desde o século XVI
são períodos de guerra intelectual – no sentido de guerras entre dogmas. Vamos chamá-
los brevemente de dogmatomaquias – “lutas entre dogmas”. No século XVI, essas eram
as lutas religiosas entre os vários tipos de teologias dogmáticas. No século XX, elas se
tornaram as grandes lutas entre várias ideologias dogmáticas.

Assim, temos uma série de dogmas cristalizando desde o século XVI,


aproximadamente os três que entraram na filosofia comteana da história. Começamos
com o dogma teológico; este é seguido pelo dogma metafísico; e o dogma metafísico, em
seguida, pelo dogma ideológico. Então, há uma série de três dogmas. Assim que você sai
de um, você cai no próximo. No presente, ainda estamos vivendo um dogma ideológico,
na medida em que dogmas teológicos ou dogmas metafísicos não são preservados. Agora,
quando falo de dogma, não me refiro ao que habitualmente se denomina ortodoxia, mas
ao tipo específico de literalismo ou fundamentalismo (e estes são de uma atitude religiosa
ou de uma atitude preocupada com a relação entre o homem e a divindade). Não resta
nada além da formulação literalista, que é o dogma, e não há a experiência original das
experiências que produziu o simbolismo [que foi dogmatizado], mas apenas o próprio
dogma é deixado. Assim, ao mesmo tempo que a situação chegou, em que apenas o
dogma é deixado, seja teológico ou metafísico ou ideológico, estamos na situação
fundamentalista. Esta situação fundamentalista (por isso mencionei a situação toda), você
deve perceber, já dura mais de quatrocentos anos. Se em algum lugar, no momento,
estamos no final dessa atitude fundamentalista e estamos agora recapturando experiências
de várias fontes. É isso que quero dizer com fundamentalismo. O fundamentalismo é uma
das características do homem moderno.

Paralelamente ao fundamentalismo permanentemente agravante do dogma, temos


as tentativas, novamente desde o século XVI, de recapturar [...] as experiências originais,
que voltarão novamente ao dogma, para a realidade das relações entre o homem e sua
realidade circundante [...] Tais tentativas foram empreendidas, por exemplo, no século
XVII por Descartes e muito energicamente por Hegel em sua Fenomenologia do Espírito
de 1807. A Introdução à Fenomenologia do Espírito de Hegel é um ensaio sobre a questão
de que, depois do dogmatismo do Iluminismo, temos de recorrer à experiência para
reconstituir a compreensão da relação do homem com a realidade circundante, incluindo
a realidade divina. Não se pode simplesmente continuar com um mero dogma, [cujas
origens não são compreendidas]. No século XX, paralelamente às guerras ideológicas,
também temos [...] os filósofos que tentaram recapturar a experiência. No início do
século, destaca-se um filósofo americano. Eu diria que o ensaio de William James de
1904, “Does Consciousness Exist?” tem talvez uma importância para o século XX
comparável às Meditações de Descartes no século XVI. Tentativas similares de recapturar
a experiência foram feitas por Bergson, especialmente em sua As duas fontes da moral e
da religião, e nos trabalhos metafísicos de Whitehead, começando em 1924. (Eu poderia
mencionar outros; por exemplo gosto muito do físico inglês Eddington, que fez uma boa
análise do problema da experiência representado pelo avanço das ciências naturais.)
Agora, este jogo duplo de um mergulho cada vez mais profundo no dogmatismo e
fundamentalismo, e nas tentativas mais ou menos desesperadas de recapturar a realidade,
a realidade da experiência, que durou quatrocentos anos, tem uma consequência muito
peculiar. E aqui chego à segunda característica, o que chamo de analfabetismo.

No nível do dogma, temos um alto grau de alfabetização. Em nenhum outro


momento tivemos um conhecimento tão perfeito de todos os tipos de religiões, religiões
comparadas, religiões de civilizações antigas, religiões de civilizações asiáticas
contemporâneas e assim por diante – mas não uma análise muito boa das experiências
nas quais elas repousam. Assim, a característica da instrução diz respeito à compreensão
das experiências e dos símbolos nos quais elas devem ser expressas. Por exemplo, há uma
cultura extremamente pouco ativa de meditação no [sentido] cristão ou filosófico, ou
qualquer outro sentido, dos símbolos que repousam na meditação. (Eu [falarei] sobre eles
na segunda palestra, amanhã.) Nesse sentido, temos um analfabetismo peculiar em
relação aos problemas mais essenciais da realidade humana, juntamente com uma enorme
instrução em relação aos problemas periféricos. Essa é uma das peculiaridades – e tem
efeitos particularmente desastrosos sob as condições ocidentais – que levam à terceira
característica, à característica apocalíptica.

E isso é, que toda a nossa civilização ocidental, distinta digamos, de uma civilização
grega ou civilização egípcia, é uma civilização que cresceu através da aculturação. Ela
não cresce na base original das antigas civilizações cósmicas e do mito cosmológico,
puxando para sua substância daquela fase mais antiga, mas começa no nível relativamente
primitivo das tribos germânicas que assumem uma civilização altamente desenvolvida,
uma civilização mediterrânea de aproximadamente do século IV, V e VI. Este processo
de aculturação está agora exposto a grandes perigos, porque se esses conceitos culturais
que foram adquiridos, mas não foram originalmente fundamentados pela civilização, se
perderem, não há nada em que se possa recuar. Distinguindo-se de uma civilização grega
ou civilização egípcia, não há arcaísmo, por exemplo, possível na civilização ocidental,
porque a civilização ocidental não tem um período arcaico. Não existe tal coisa na
civilização ocidental como, por exemplo, o final do período egípcio, em que se pode
recorrer à escultura e às formas de arte do terceiro milênio a.C. E não se pode recorrer
aos vikings; eles são muito [remotos] de qualquer civilização desenvolvida.

Assim, desde os primórdios até o presente, não há coerência interna na civilização


ocidental. Mas quando você tem um processo de aculturação desse tipo, o processo de
desculturação, com a desordem resultante, é consideravelmente mais perigoso do que os
períodos de desordem em outras civilizações que têm conexões com uma ordem mítica
original. Não temos nada a que possamos recorrer. Portanto, o fenômeno da alienação,
que, como você verá, por exemplo, encontramos amplamente [presente] por volta de 2000
a.C. na grande crise egípcia, tem uma particular agudeza na civilização ocidental em
nosso tempo; [torna-se] uma alienação radical, porque não há nada em que se possa
recuar. Se certos conceitos culturais são destruídos, tem que se [tentar] recapturá-los de
alguma forma.

Esse é um dos problemas do século XX. Essa é a razão pela qual tantas pessoas
hoje, uma vez que não temos um mito próprio em nossa civilização, voltaram-se agora à
arqueologia, à religião comparada, à literatura comparada e a assuntos similares, porque
esse é o lugar onde podem recapturar a substância que em nossa civilização aculturada e
agora desculturada está se perdendo. É por isso que as pessoas de repente se tornam zen-
budistas. Você tem que se tornar um zen-budista porque não há nada comparável na
civilização ocidental a qual você possa recuar, se um dogmatismo tiver acabado, como o
cristão tem na Era do Iluminismo. Portanto, nesse sentido, a partir do século XIX, temos
um desenvolvimento peculiar de construções históricas em que toda a história anterior é
descartada. Uma espécie de começo original é feito, sempre no presente, com o presente
estado de consciência, seja no sistema hegeliano, ou comteano, ou marxista, ou qualquer
um dos [outros] sistemas ideológicos do século XIX – uma espécie de construção
apocalíptica pela qual toda a história passada é descartada como mais ou menos
irrelevante, ou tendo sua relevância apenas como conduzindo ao seu ponto atual, [...] o
ponto moderno em que todos nós temos que viver. Vivendo em um ponto, jogando fora
toda a história passada, essa é talvez a característica do moderno humor apocalíptico.

Deve-se, no entanto, introduzir uma ligeira diferenciação (sobre a qual terei mais [a
dizer] na última palestra): os grandes pensadores apocalípticos do século XIX – acabei de
mencioná-los, homens como Hegel, Comte ou Marx – ainda baseiam sua visão
apocalíptica da história em um conhecimento muito minucioso de materiais históricos –
eles próprios são historiadores muito bons – enquanto hoje a posição apocalíptica
resultante geralmente é assumida, mas não assumida com todo o conhecimento histórico
que entrou em sua formação. Portanto, temos um peculiar apocalipse epigonal no século
XX que, por exemplo, resulta em uma atitude do que hoje na Rússia é chamada de
Comunismo Soviético, um tipo especial de comunismo que não é idêntico ao marxismo.
Os marxistas genuínos se opõem a esse tipo de comunismo. Há uma revolta interna, dos
marxistas contra os comunistas, que são o tipo epigonal do qual os burocratas são
recrutados. Os intelectuais voltariam a Hegel e Marx porque são onde se encontram as
origens, as origens existenciais desse apocalíptico. Assim, dessa maneira você tem um
dogmatismo epigonal peculiar que nem mesmo retém o conhecimento histórico mais
antigo que ainda estava presente nas décadas de 1830, 1840 e 1850. Foi-se tudo.

Deste modo, você tem, portanto, um processo de desculturação peculiar, resultando


em relegar a um reino de ignorância prática as áreas da realidade simbolizadas pelo mito,
pela filosofia, pelos símbolos da revelação e pelo misticismo. Estas são as quatro
principais simbolizações das experiências originais e, juntamente com as experiências
originais, são na sua maioria retiradas do discurso intelectual atual. Quando digo isso,
estou pensando em coisas bastante concretas. Por exemplo, na área de filosofia anglo-
americana, o movimento filosófico dominante ainda é, pode-se dizer, a análise britânica;
e sem criticar de modo algum a análise britânica, se você restringir seu conhecimento à
análise britânica, terá eliminado todas as áreas da realidade simbolizadas pelo mito,
filosofia, revelação e misticismo. Praticamente tudo o que é importante na vida é
removido se você se limitar a esse tipo de análise lógica, o que é bastante sólido em si
mesmo. Sou um grande adepto a esse respeito da análise britânica, mas ela está confinada
a um tipo de lógica que toma seu modelo do ato da percepção sensorial. E todas essas
outras áreas não são áreas da percepção sensorial; como tal, elas são completamente
diferentes.

Neste desenvolvimento que acabei de caracterizar, você tem alguns marcos


excepcionais. Você pode, por exemplo, ver o progresso desse processo de desculturação
na mudança do significado do termo imanência do século XIX para o XX. Quando você
olha para os autores na primeira metade do século XIX, digamos, em homens como De
Quincey ou Browning, ou Matthew Arnold, que já se preocupavam com o problema de
Deus desaparecendo deste mundo, a palavra imanência é sempre usada no sentido de que
Deus, de alguma forma, desaparece e deixa de ser imanente. (Que ele é transcendente de
qualquer maneira, e além disso deve ser imanente, é dado como certo). Mas de alguma
forma ele deixa de ser imanente. O termo imanência aparece nessa conexão. Hoje, se você
ler literatura contemporânea, descobrirá que a imanência não é caracterizada como uma
ausência de Deus, mas como uma presença do homem; isto é, o homem é o sujeito de
quem a imanência é predicada, o homem é muito imanente. Esse é o significado no qual
o termo é usado agora, enquanto Browning ou De Quincey ou Matthew Arnold diriam
que Deus deveria ser imanente e infelizmente não é imanente. Nessa mudança no
significado do termo imanência de uso comum na literatura, pode-se ver como a ênfase
mudou de uma medida de consciência onde o problema repousa – que algum pedaço da
realidade está se perdendo porque não é mais imanente – para, pode-se dizer, uma
aceitação inconsciente da perda e a afirmação de que “o homem é o sujeito da imanência”.
Você tem um homem imanentista agora, e não uma falta de um Deus imanentista.

Da posição que acabo de esboçar, temos que distinguir entre as construções


imanentistas da história: o homem é construído em função da história em tais filosofias
da história como as de Comte, Hegel e Marx, com um presente apocalíptico, isto é, um
presente em que toda a realidade passada é relegada a um passado morto e todo o presente
está concentrada neste presente empírico no tempo, carregado de expectativas de que algo
significativo virá desse presente. Essa é a característica da atitude apocalíptica,
projetando-se no futuro e esquecendo o passado: o passado morto e o futuro vivo. Com
relação a tal oposição de um passado morto ao futuro vivo, deve-se, por exemplo, estar
ciente de que essas ideias de um tempo que flui de um passado para o futuro em uma linha
simbolizada – apenas uma linha que passa pelo ponto atual – é uma concepção, eminente
da palavra futuro, que não se torna corrente antes de meados do século XVIII. Até meados
do século XVIII não temos prazo para o que hoje chamamos de “o futuro” – um futuro
melhor, um futuro mais pacífico ou sabe-se lá o que. Esse termo, [ou] significado de
futuro, não existia em nenhuma língua europeia antes de 1750 – mas um inteiramente
diferente ao qual retornarei atualmente.

Contra tais construções imanentistas da história, desenvolverei nessas palestras um


conceito diferente de história: a história como um campo aberto da existência. A diferença
entre as construções que acabamos de caracterizar e a que apresentarei aqui pode ser
formulada esquematicamente da seguinte maneira. Se você tem esse conceito de tempo
do final do século XVIII, teria que ter algo parecido com o tempo indo nessa direção. [A
partir de agora, nesta palestra, Voegelin escreve intermitentemente em um quadro negro.]

Se você tiver o problema do tempo aberto, você sempre terá que considerar que em
cada ponto de presença nesta linha [Voegelin traçou uma linha no quadro] nós não
estamos nos movendo somente nesta linha, mas na abertura para a realidade divina, de
modo que cada ponto de presença é, como T.S. Eliot formulou, um ponto de intersecção
do tempo com a eternidade. Esse é o ponto da presença. Assim, toda a série do tempo não
seria uma sequência em uma linha, mas uma série de pontos presentes nos quais nenhum
jamais é passado, mas apenas passado em relação ao seu presente, não realmente passado.
Ontologicamente, na verdade, é sempre em relação à presença, que é a mesma presença
que constitui o meu presente aqui e agora. Nesta concepção de uma presença divina, que
é a presença em cada ponto presente na linha, depende toda concepção de história que faz
sentido, todo sentido de história. Não haveria motivo algum para nos preocuparmos com
o que aconteceu há três mil anos, ou três minutos atrás, a menos que houvesse uma razão
talvez para relembrar, porque está ligado ao nosso ponto atual três minutos depois, porque
tem uma presença assim como o nosso ponto tem uma presença. Assim, uma formulação
diagramática adequada não seria a linha, mas você teria que fazer com que fosse algo
como um fluxo de presença, como eu a chamo, com uma direção na qual há
permanentemente uma tensão entre os polos imanentes e transcendentes. Isso seria um
bom diagrama de tempo, mas não uma linha reta.

Mas eu deveria dizer mais algumas palavras sobre isso, porque, como eu disse, esse
ponto de linha, esse diagrama de linhas de tempo, surgiu no século XVIII e Kant tinha já
seu problema com essa concepção de uma linha reta do tempo. Porque ele tinha que se
perguntar: se nós temos uma linha tão direta do tempo indo em uma direção e se
aproximando de um ponto de perfeição em algum lugar num futuro indefinido, em um
futuro indefinido você teria, então, por um lado, o “Indefinido” e, por outro lado, em letras
maiúsculas, a “PERFEIÇÃO”. Essa é a sua concepção de história, a história como uma
abordagem indefinida ao reino da perfeição. E então ele se perguntava: quão grande é a
nossa perfeição em qualquer tempo finito em que vivemos? – porque, afinal de contas,
não vivemos infinitamente, mas apenas por um período de tempo.

Agora, pegue um pedaço finito de tempo, um pequeno “t” (que pode representar
dez anos ou cinquenta anos ou um século ou uma vida humana), e então se pergunte:
Quão grande é o progresso dentro desse tempo finito? E então você teria que formular
que esse tempo finito é igual a grande “PERFEIÇÃO”, de modo que a pequena
“perfeição” esteja relacionada à perfeição completa como “t” para infinito, que lhe dá
então a equação, “t” é o maiúsculo “T” vezes “t” pelo infinito, que é igual a...que?
[Membro da audiência:] “Zero.” Se você tem essa concepção de uma linha de tempo em
perfeição indefinida, todo progresso finito no tempo é zero, então esse é um termo ilógico.

Eu estou operando com a concepção de um fluxo de presença. A propósito, na


terceira palestra, teremos que lidar mais com essas coisas, mas deixe-me continuar com
essa questão de tempo apenas mais um passo. Por exemplo, Merleau Ponty deu, em sua
Fenomenologia da percepção, outra analogia muito divertida do problema do tempo. O
tempo não é senão uma relação entre mim e o que imagino ser o tempo. Portanto, se eu
tenho essa linha aqui, agora, não posso falar sobre isso de forma abstrata, mas tenho que
me colocar em relação a ela. E se eu imagino que seja um fluxo, e eu permaneço como
uma pessoa aqui na fronteira daquele rio de tempo, ele passa por mim nessa direção, um
fluxo presumivelmente terminando em algum tipo de oceano. Portanto, todo o tempo
passado está aqui no futuro e todo o tempo futuro volta aqui de muito tarde no passado.
Esse é um conceito adorável! – que tem uma importância considerável na realidade,
porque esse tempo passado é o que tentamos recuperar de vez em quando. Por exemplo,
De Quincey tem essa simbolização em seu “Savannah-la-Mar”, que todo o tempo em sua
preocupação é o passado de sua vida, aparecendo como um subterrâneo ou submerso, e
tem que ser recapturado de alguma forma, iluminado talvez. É o tempo passado, e você
tem um problema semelhante na Em Busca do Tempo Perdido, de Proust, o tempo que se
perdeu, e esse é o tempo com o qual você está ocupado, se você operar com tal concepção
de uma linha.

Claro que você pode pegar outra situação. Você pode supor que você está no meio
do fluxo e você é infinito: então o fluxo passaria por você. Você seria uma constante em
algum momento, e então, de fato, você estaria na corrente fluindo com ela para o futuro
– o que tem outra consequência muito interessante que não posso entrar agora.

Mas vejam, só quero afrouxar um pouco a sua ideia sobre o tempo. Não é uma
questão fácil, mas você pode usar todo tipo de simbolismo. Você deve estar ciente de que
você usa simbolismos, porque você usa simbolismos, e que a pergunta “Qual é o
simbolismo adequado a ser usado?” só pode ser resolvida por uma análise da realidade, e
não apenas falando sobre o tempo. É preciso analisar a realidade. Aqui estou usando o
conceito do fluxo de presença, ao qual terei que voltar agora, em detalhes. Essa é a posição
geral da história que usarei aqui.

O título dessas palestras é “O Drama da Humanidade”. Eles não são sobre o homem,
mas sobre a nossa humanidade. Ora, por quê? Estamos acostumados, por exemplo, a falar
sobre a natureza do homem, e então você geralmente tem as grandes lutas entre os adeptos
da filosofia clássica, que lhe dirão que a natureza do homem é uma constante e os
intelectuais excitados apocalipticamente, que lhe dirão que a natureza do homem muda e
que mudará cada vez mais no futuro, [que] todas as nossas expectativas para o futuro e
para um novo reino na terra dependem de mudanças na natureza do homem. Agora,
obviamente, aqui [temos] novamente um problema lógico, porque se pela natureza de
qualquer coisa você quer dizer os recursos constantes, eles não podem mudar, porque
então eles não seriam constantes. Isso é logicamente impossível: por definição, uma
natureza não pode mudar.

Mas há um problema real, no entanto, e esse problema real já está presente no


momento em que a concepção da natureza do homem é formada na antiguidade, na
filosofia clássica. É aí que ela é formada, e surge a concepção de que o homem tem uma
natureza no sentido de algo como qualquer objeto da percepção sensorial – como uma
tabela que é desenvolvida de acordo com um plano ou como uma planta que obviamente
tem um plano de organismo em seu crescimento e assim por diante. Esse é o ponto
decisivo; vê-se que ainda estamos muito próximos – mesmo em nosso empirismo inglês
desde o século XVIII – à concepção aristotélica de que uma metafísica do homem precisa
ser formulada em termos de forma e matéria. Então, ou o artefato ou o organismo é o
modelo em que você filosofa, mas não é realmente o homem.

Se você transferir o modelo de uma forma e a matéria organizada por essa


determinada forma, para pessoas humanas ou para a sociedade, se terá dificuldades
porque a sociedade não é um artefato ou um organismo, mas algo totalmente diferente.
Ela está envolvida em algum tipo de processo que não é o mesmo que o modelo de um
artefato ou organismo. Portanto, se depara com o problema de que há um processo de
mudança em conflito com a forma assumida. Só é possível resolver esse problema
admitindo que há uma dificuldade aqui e correr o risco. Existem obviamente
características estáveis suficientes no homem para reconhecê-lo como um ser humano e,
obviamente, suficiente de processo nele para reconhecer que existe um processo
acontecendo nele, não apenas no nível orgânico, como um animal, mas também nos níveis
mental, intelectual e espiritual.

Tal processo da alma humana (ou o que quer que você queira chamá-la onde este
processo ocorre, porque não ocorre no organismo, mas é um processo mental ou
espiritual) produziu sua própria forma adequada de simbolização que é chamado
autobiografia. Onde quer que haja consciência do homem em processo, o problema da
autobiografia começa a se desenvolver como um assunto interessante. Caso contrário,
você teria apenas um tipo sólido, que nunca muda. Mas quando você se torna consciente
dessa mudança, da importância da mudança, os problemas autobiográficos começam a se
apresentar. Também na antiguidade, é aí que começa a autobiografia. Sempre temos o
problema de que, por um lado, existem características estáveis no homem, por outro lado,
há um processo em andamento, especialmente o processo de descobrir que o homem
possui características estáveis. Porque o homem como assunto a ser definido em qualquer
termos em tudo não é onipresente na história, mas surge na civilização grega com
definições específicas do homem como, por exemplo, o animal rationale (animal
racional), o zoon noun echon – em grego um animal que tem a mente ou nous ou razão –
e tal definição em si é um evento na história da humanidade.
Agora, uma característica deste evento, como aconteceu na filosofia grega, é que
resulta uma formulação da natureza do homem em termos estáveis. Tal definição como
“o homem é um animal racional”, animal rationale, é o resultado; mas não incluído nesta
observação [é o fato] de que a observação em si é um novo evento na história. Com isso,
você tem uma estrutura peculiar de toda filosofia clássica da ordem. Você tem uma visão
da estrutura pessoal do homem como uma estrutura estável em uma dada situação da polis
tardia.

Esse é, por exemplo, o conteúdo típico da ética aristotélica: a estrutura do homem


e a estrutura de seu comportamento, através do comportamento de acordo com sua
natureza na sociedade e no mundo. Ou você pode expandir a imagem do homem como a
perfeita estrutura estável em uma perfeita estrutura estável da sociedade como deveria
ser. Esse é o conteúdo do paradigma, ou melhor a constituição, na política aristotélica ou
na política platônica. Mas em nenhum lugar da série de Ética e Política, que são afinal os
dois volumes de uma filosofia da ordem, está um terceiro volume que teria que ser
chamado de Históricos, onde se entraria no problema: que tais características estáveis
como descrito na Ética e na Política são descobertas em um certo ponto da história, em
Platão e Aristóteles, e por que, e o que foi, antes e o que poderia vir depois. O personagem
do evento em si não se torna temático, apenas o resultado.

Se desdobrado, este elemento reflexivo – que é o elemento de processo na natureza


do homem – conteria o problema de que a natureza do homem, a qualquer momento,
embora tenha características estáveis, [também] contém [um] auto-entendimento
específico do homem em suas relações com todos os outros setores da realidade: o mundo,
Deus e sociedade. Assim, todas essas outras relações são concebidas de uma certa maneira
que não foram previstas antes, e de uma maneira em que não concebemos mais hoje. Esse
elemento de prever a natureza do homem [como] compreender a si mesmo, [e]
desenvolver essas imagens de auto-compreensão além do resultado, [ou a] imagem de
uma humanidade específica [é o que eu chamo de humanidade]; (isto é, não apenas o
reconhecimento da estrutura do homem, mas [o reconhecimento] da humanidade no
sentido de ser homem de uma certa maneira em relação a todos os outros elementos da
realidade). [A humanidade é] distinta de uma natureza estável do homem; é isso que
significa a humanidade.

Isso nos deixa com várias definições com as quais posso concluir esta seção. A
Humanidade significa o homem em um modo de compreender a si mesmo em sua relação
com Deus, mundo e sociedade, e esses modos mudam. A História seria o drama (se um
significado no qual pode ser descoberta) da humanidade, da auto-compreensão do
homem. Com isso quero deixar a parte introdutória, na esperança de que tenha cumprido
minhas obrigações a esse respeito e possa agora abordar o assunto das três palestras.

Aqui temos que lidar com o plano das três palestras. Desenvolverei apenas a
primeira palestra e mencionarei as outras. Os títulos das três palestras são “O Homem no
Cosmos”, “A Epifania do Homem” e “O Homem na Revolta”.

II. O Homem no Cosmos

Vou agora dar novamente apenas em forma de diagrama – porque às vezes é mais
persuasivo do que qualquer outra declaração elaborada – a relação desses três tópicos
entre si. Se você considerar o nível da experiência cósmica, um belo pudim como esse
[Voegelin desenha um diagrama no quadro], como incluindo todas as realidades, como
homem, Deus, céu, terra, sociedade, e Deus sabe mais o quê: com essa ordem dada, você
tem uma espécie de comunidade ordenada de parceiros em toda essa realidade global.
Quando, nessa realidade global, surge o elemento da consciência no homem até o nível
da autoconsciência, você receberá um pequeno globo neste sentido, representando a
consciência do homem em que ele está consciente de ser em relação ao fundamento divino
da existência. Essa é a constante real de consciência quando aparece. Agora, isso seria
um evento dentro da realidade cósmica, a diferenciação da consciência.

É possível, claro, isolar essa consciência contra o resto da realidade cósmica em


que ela surgiu. Então você teria um segundo globo contendo apenas essa parte aqui, com
essa tensão em que não há nada além de Deus como um polo transcendente e o homem
como um polo imanente, e todo o resto da realidade é esquecida. Essa é uma possibilidade
que realmente aconteceu. Então você pode continuar e esquecer, por exemplo, o polo
transcendente – o homem raramente se esquece de si mesmo. E então não resta nada além
de uma espécie de imanência decapitada, e essa é a situação na concepção contemporânea
do homem. Você tira um setor da realidade da realidade maior, isola-a contra toda a
realidade cósmica, chama isso de realidade da filosofia ou revelação, e então você corta
isso na metade, decapita a metade transcendente, e você fica com a parte inferior realidade
imanente.
Esta primeira parte, este primeiro diagrama, seria o homem no cosmos; a segunda
parte isoladamente, a epifania do homem, a diferenciação dessa consciência da realidade
geral do cosmos; e então a quebra em dois, o abandono desta tensão para o Fundamento
Divino, e o homem em revolta seria a terceira parte. Isso é, naturalmente, um rascunho
muito difícil, mas você verá que não está muito longe da verdade. Então é isso que eu
quero dizer sobre a organização dessas palestras.

A primeira palestra é sobre o homem no cosmos, e lá temos que lidar com a


experiência primária do cosmos representada pelo primeiro pudim redondo. Nessa
realidade, os locais históricos são as antigas civilizações, especialmente as civilizações
do Egito, Suméria e Babilônia. Agora vamos ser claros sobre a terminologia: cosmos [é
o termo] temos que nos referir a esse tipo de experiência. (Eu explicarei mais tarde. É um
termo grego tardio, não um termo que aparece nas antigas civilizações orientais.) Nas
civilizações cosmológicas originais, não existe um termo abrangente para o cosmos; aí
falamos apenas das realidades que concretamente temos lá, por exemplo, céu e terra.
(Mesmo quando você entra no período profético, o melhor que você pode prever é um
“novo céu” e uma “nova terra”. Você às vezes vê isso traduzido como “novo mundo” ou
“novo cosmos”, mas a realidade cosmológica original é um “céu” e uma “terra”, o céu e
a terra que você pode ver. Não há conteúdo especulativo ainda. Ou: os “deuses, o homem
e a sociedade”, ou dentro da sociedade: um “governante, o rei e o povo”. Esses são os
termos em que se fala da realidade nos textos literários das civilizações cosmológicas.
Um termo para o cosmos [em si] não aparece. Existe apenas um termo para a ordem desta
“comunidade de parceiros” em algum tipo de comunidade para o qual não temos termo,
exceto o termo grego cosmos.

Eu quero especialmente chamar sua atenção para o problema de que os deuses são
intra-cósmicos. Não existe tal coisa como um Deus transcendente ao mundo em qualquer
civilização cosmológica; e por um tempo muito longo, mesmo na revelação e na filosofia,
não há Deus transcendente ao mundo. Esse é um problema muito peculiar, como esse
problema surge. Mas nas civilizações cosmológicas, os deuses são intra-cósmicos, parte
do cosmos.

Com isso em mente, deixe-me dizer uma palavra sobre as formas expressivas, as
simbolizações, nas quais tal ideia, tal experiência, é expressa. Geralmente é chamada de
mito. E aqui a ciência prática ainda está em considerável dilema metodológico. Os
religiosos e mitólogos e arqueólogos comparados usualmente assinam as antigas
concepções de mito, que estão enraizadas na fenomenologia geral da religião. Isso é
[dizer] que eles são fundamentalistas: o fenômeno de um símbolo é aproveitado e não se
volta para a experiência que o produziu. Portanto, se você considerar o mito como o
fenômeno de um símbolo, chegará a tal definição do mito que encontra na obra Mito e
Realidade de Eliade. Deixe-me ler isso para você, porque assim você verá mais
facilmente qual é o novo problema. Eliade define o mito:

O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo
primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito narra como, graças
às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade
total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um
comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”:
ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser.

Contra essa definição muito aceita de mito, gostaria de fazer as seguintes exceções:

Em primeiro lugar, quando você vai empiricamente aos materiais, os documentos


literários babilônicos de uma civilização cosmológica, os egípcios, os sumérios, os
assírios, ou mesmo os hindus, apenas uma porcentagem muito pequena de todos os
materiais são histórias de qualquer coisa. Quando você tem que lidar, por exemplo, com
a tensão entre um Governante e os Deuses, ou um Governante e o Povo, ou com a invasão,
digamos, dos Hicsos, aquele exemplo complexo no Egito, nenhuma história dos deuses
dirá a você qualquer coisa. São formas de expressão bem diferentes das histórias.
Portanto, a formulação “Mito é sempre a narrativa de uma criação” está errada em face
dos fatos empíricos. Existem muitos [outros] tipos de mitos.

O segundo ponto é que os deuses são designados como “seres sobrenaturais”. Isso,
é claro, é inadmissível. O termo sobrenatural, em oposição ao natural, é a terminologia
escolástica muito usada por Tomás de Aquino. Do escolasticismo, como parte do dogma,
entrou no dogmatismo iluminista no século XVIII. Eliade é, ao contrário, um ideólogo do
Iluminismo a respeito dos escolásticos. Nesse contexto, falamos de sobrenatural em
oposição a natural. Como indiquei, nenhum homem que vive em uma civilização
cosmológica jamais soube que os deuses eram uma natureza suprema contra uma
natureza; havia o céu e a terra, os deuses e os homens e o rei, e tudo fazia parte dessa
parceria. Nada nele era mais natural do que qualquer outra coisa. Assim, os termos natural
e sobrenatural não fazem sentido quando usados anacronicamente em relação à
civilização cosmológica. Isso faz sentido no século XIII do escolasticismo, que faz
sentido no Iluminismo sob a influência das ciências naturais, mas não faz sentido quando
você lida com uma civilização antiga.

Por essa razão, não se pode aceitar essas definições nominalistas. Tem que se ter
uma definição realista, que é muito mais simples. Pode simplesmente dizer: o mito é
aquele corpo de símbolos que de fato foram encontrados adequados pelos membros de
tais civilizações para expressar suas experiências do cosmos em que viviam. Ninguém
pode objetar a isso – você simplesmente volta a fatos empíricos.

Agora deixe-me fazer bem que eu disse, que no mito você tem muitas coisas que
não são histórias. Por exemplo, listei nove tipos diferentes. Deixe-me apenas enumerá-
los; lidarei com dois deles como exemplos.

1. São simbolizações da ordem estabelecida do império. O império é uma analogia


do cosmos; você pode chamá-lo de um pequeno cosmo – um cosmion. Tais
formulações da analogia entre a estrutura do império e a estrutura cósmica são,
por exemplo, encontradas no famoso preâmbulo do Código de Hamurabi –
nenhuma história em absoluto; antes, estruturas paralelas entre o céu e a terra. O
império, o pequeno cosmion, é paralelo aos céus.
2. Então, um caso em que você tem história, mas uma história de um tipo muito
peculiar, um mito da fundação do império. No caso de um estabelecimento, o mito
é simbolizado pelo paralelo, a analogia, enquanto o mito da fundação deve ser
simbolizado por uma ação entre os deuses. A forma não é estritamente uma
história, mas um drama, como a Teologia de Mênfis, provavelmente de 3000 a.C.,
um drama que conta a história da fundação do Egito como um drama encenado
entre os deuses.
3. Então, nos períodos de crise, por exemplo, no Primeiro Período Intermediário –
cerca de 2200 a 2000 a.C. foi o auge da crise no Egito – você encontra discussões
altamente intrincadas sobre os argumentos céticos contemporâneos, com a análise
existencial das duas existências que levam a essa confusão. Voltaremos a isso.
4. Ou você tem canções literárias expressando o ceticismo dos deuses, não uma
história dos deuses, mas expressando ceticismo do homem em relação às histórias
contadas sobre os deuses; por exemplo, a “Canção do Harpista” – canções do
ceticismo.
5. Então, um corpo vasto é aproximadamente equivalente ao que você encontraria
no nível comum do senso comum, no século XVIII [significado dessa palavra], a
literatura da Sabedoria; nada sobre os deuses, apenas sobre o homem, mas neste
contexto de uma civilização cosmológica.
6. Então as grandes expressões de derrota, vitória e restauração do império;
nenhuma história, mas a relação entre o governante e os deuses. Esse é o
problema.
7. Então as renovações rituais da ordem nos Festivais de Ano Novo, o que Eliade
geralmente traz sob o “eterno retorno”. Não há “eterno retorno” em qualquer
civilização antiga; há apenas uma renovação rítmica e o ritmo não é uma
renovação eterna. Deixe-me explicar brevemente, porque ainda há muito mal-
entendido sobre isso. Quando você tem uma renovação rítmica, você tem algo
parecido com uma onda senoidal, como a primavera anual, o verão, o outono e o
inverno, o tempo indo e vindo. Mas então há algo como um retorno, um eterno
retorno do mesmo, e isso seria realmente um círculo de eventos. [Aristóteles toca
sobre esse] problema, quando ele faz a pergunta: “Se eu estou vivendo neste ponto
aqui, sendo esse o meu presente, e então eu tenho um evento histórico, como a
guerra contra Tróia, eu posso me fazer a pergunta: Qual o caminho que estou mais
perto da guerra contra Tróia, indo para trás, ou indo em frente?”. Isso seria o
eterno retorno. Mas tal retorno eterno em uma concepção histórica não é
encontrado antes do século VII a.C., no Hinduísmo e na Hélade. Nenhuma
civilização antiga tinha qualquer concepção de um eterno retorno, mas apenas de
renovação rítmica. Isso também não era uma história, mas a questão da renovação
ritual.
8. Então outra coisa, que não se encaixa apropriadamente no [termo] mito no sentido
de uma história dos deuses, é a construção da história unilinear, desde o começo
da criação do mundo, até o presente imperial, até o Império. Nós temos – isso
também é muito fácil de [averiguar] – uma história unilinear em civilizações
antigas, mas não temos história cíclica. Não há conceito de história cíclica nas
civilizações antigas dos impérios cosmológicos, mas há história unilinear.
Voltarei a isso na segunda palestra.
9. E aqui temos todos os tipos de sintomas de um avanço para além da experiência
cósmica na direção de um começo no tempo, [...] uma extrapolação para o passado
até o ponto de origem, ou [...] para a origem no transcendente. Temos
especulações ou extrapolações de uma longa história passada [...], extrapolando
[uma parte] de volta para o começo – isto é, uma maneira de colocá-lo – ou
orações dirigidas, sem o benefício de outras partes da realidade, a uma Deus
desconhecido, além de todos os deuses conhecidos. Assim, o problema do Deus
desconhecido já é um problema na civilização egípcia. O principal deus do
período posterior é Amon, e a palavra egípcia Amon significa “o oculto”. Assim,
o deus oculto, que se torna muito relevante no gnosticismo, já está presente nos
Hinos a Amon, no mais tardar no século VIII a.C.

Aqui temos todos os tipos de literatura e expressões simbólicas, que são sempre
agrupadas como mitos e das quais apenas uma pequena parte tem o caráter de uma
história. Como já vimos da enumeração, todos os problemas e situações humanos com os
quais estamos familiarizados [são também mitos]. A questão da perda da existência, as
questões da alienação, da crise, do império, da crise pessoal, e assim por diante, todas
essas questões são objeto de expressão em um meio peculiar, então [não há] apenas uma
concepção peculiar disso ou daquilo.

Agora eu quero lhe dar um ou dois exemplos do que parece em tempos de crise, e
que expressão no meio da civilização cosmológica realmente é, o que parece se não é uma
história. Quero dar dois exemplos: um – talvez eu ainda possa fazer isso hoje – do ponto
de vista do governante, e o outro exemplo do ponto de vista do cidadão comum.

Do ponto de vista do governante, há uma lacuna muito interessante no texto. Não


há termo para isso, uma declaração da única mulher faraó, a rainha Hatshepsut (1501-
1480 a.C.), por ocasião da restauração da ordem após a expulsão dos nômades invasores,
os hicsos. Deixe-me ler essa informação da rainha para as pessoas (Ancient Near Eastern
Texts Relating to the Old Testament, James B. Pritchard, 1969, p.231 ):

Ouça todas as pessoas e pessoas, por mais que sejam:


Eu fiz estas coisas através do conselho do meu coração.

Agora ela conta o que está fazendo:

Eu não dormi esquecida,


mas restaurei o que foi arruinado
Eu levantei o que tinha se despedaçado,
Quando os asiáticos estavam no meio de Avaris, no Reino do Norte,
e entre eles havia nômades, derrubando o que fora feito.
Eles governaram sem Rá [o deus egípcio] e Ele não
agiu através do comando divino até a minha majestade.

Essa foi a crise. Agora vem o resultado da restauração:

Eu estou estabelecida nos tronos de Rá


Eu fui predita pelos limites dos anos como aquela que nasceu para conquistar.
Eu venho como a serpente-uraeus de Hórus, flamejante contra o meu
inimigos.
Eu distanciei aqueles a quem os deuses abominam
E a terra levou suas pegadas.

Essa foi a restauração e agora a interpretação:

Este é o comando do Pai dos meus Pais


Quem vem em seus tempos determinados, de Rá [o deus do sol],
E não deve ocorrer dano ao que Amon ordenou.
Meu próprio comando dura como as montanhas.
O disco solar brilha
E espalha raios sobre os títulos da minha majestade,
E meu falcão é alto acima do meu nome comum
pela duração da eternidade.

Agora aqui você vê o que é uma expressão mítica. Aqui um governante fala depois
que os hicsos foram expulsos do país. E agora vem, em dois pares ordenados, primeiro, a
conquista da rainha. Ela restaurou o que havia sido arruinado, e a característica da ruína
é: esses invasores governaram sem o deus sol. Assim, há regra sem regra apropriada: “e
Deus não agiu por ordem divina até a minha majestade”. Essa é a ordem que é mediada
pelo faraó dos deuses. Deus não deixou a ordem fluir de si mesmo através do faraó para
o império das pessoas que viviam no império. Essa é uma definição de desordem. Agora,
quando é restabelecido, o faraó é novamente o mediador da ordem divina para o povo,
graças ao deus.

Então vem na segunda parte, novamente opostos um ao outro: “Este é o comando


do meu Pai” e “Meu próprio comando dura como as montanhas” – sempre o paralelo
entre o papel do rei e da ordem. O termo para a ordem no egípcio, a propósito, é ma'at.
Então isso vai através dos deuses. O ma'at é dispensado dos deuses através do faraó para
o império, os administradores do povo. Quando esse processo é interrompido, é claro que
há desordem. Você pode chamar isso de uma história. Não sei se você acha que é uma
questão, mas é uma descrição da dinâmica da ordem em termos das relações entre os
deuses, o rei, o povo e os invasores.

Aqui está o problema. Nesse tipo de problema, você também tem os plebeus
sofrendo amargamente. Na famosa “Disputa de um homem, que quer cometer suicídio,
com sua Alma”, [o assunto] não é o faraó, mas um plebeu. Ele quer cometer suicídio
[porque] há desordem; ele não quer viver nesse tipo de império. (Eu só quero dar alguns
exemplos da questão, não posso dar toda a análise porque o tempo já avançou muito. Mas
pelo menos alguns exemplos.) Ele descreve o mundo social desordenado em que vive.
Agora olhe para as formulações: Elas são dadas em tercetos em que a primeira linha é
repetida. Ele diz, por exemplo,

Para quem posso falar hoje?


Os companheiros são maus;
Os amigos de hoje não amam.

Se você traduz isso em filosofia clássica ou na terminologia cristã, isso significa


que a clássica philia politike, ou o amor entre os homens em comunidade, desapareceu, a
ordem que emana dos deuses se foi. Todos se tornaram um homem solitário e, portanto,
tornaram-se maus. Muito drasticamente, esta solidão e perda de caráter são descritas no
seguinte terceto:

Para quem posso falar hoje?


Faces desapareceram
Todo homem tem um rosto abatido com seus companheiros.

Como uma sociedade moderna urbanizada, você poderia dizer. Lonely Crowd de
Riesman e tais paralelos surgem imediatamente. Ou:

Para quem posso falar hoje?


Não há ninguém contente de coração.
O homem com quem se foi já não existe.
Assim, a dissolução da sociedade, a destruição, o desaparecimento do
contentamento, o fenômeno da alienação se faz sentir. Essa é a descrição da sociedade
quando há desordem, e como isso deve ser interpretado? Quando há tal desordem, o
homem se afasta de uma vida que se tornou sem sentido e contempla o suicídio. Deixe-
me dar-lhe pelo menos duas dessas frases suicidas:

A morte me enfrenta hoje


Como a recuperação de um homem doente
Como sair para o aberto após o confinamento.

A morte me enfrenta hoje


Como a saudade de um homem para ver sua casa novamente,
Depois de muitos anos, ele foi mantido em cativeiro.

E assim ele continua e continua com todas as metáforas da fuga desta realidade
como uma libertação de uma doença, uma libertação da prisão, uma libertação de uma
escuridão que faz você ver a luz, e assim por diante, e retornando a uma espécie de casa.
E o que deve resultar de tal fuga desta realidade sem sentido: uma espécie de julgamento
no Além. No último grupo de tercetos ele diz:

Por que certamente aquele que está lá


Será um deus vivo
Punindo o pecado daquele que o comete

Por que certamente aquele que está lá


Ficará na barca do sol,
Causando o mais seleto para ser dado aos templos.

Por que certamente aquele que está lá


Será uma sabedoria,
Não impedido de apelar para Rá quando ele fala.

[É a] concepção de um julgamento do Além, no qual o homem pode participar


porque é imortal, quando comete suicídio para escapar de um mundo em que está
completamente alienado, que se tornou estranho para ele; e contra o qual a morte é então
a vida real. Isso é muito semelhante, por exemplo, à formulação que você encontra no
Górgias de Platão.

Aqui você tem quase uma análise completa de uma existência deficiente na
sociedade quando o ma'at, a ordem, desapareceu, ou a recuperação da verdade da
existência, no sentido da ordem divina que é necessária. Mas nesta situação particular
[há] o desespero que através de qualquer tipo de ação social [recuperação] poderia ser
alcançada. Portanto, o único curso sensato e significativo de ação seria o suicídio. Isso
traria o homem para a imortalidade, na companhia do deus sol, e ali reforçaria seu poder
de ordenação – novamente para o mundo, para a restauração do império do Egito.

Esta é uma condição egípcia, é claro, mas uma concepção revolucionária, porque
sob a concepção do império apenas o faraó é o mediador da ordem divina. Um único
egípcio não pode fazer nada sobre isso; ele só pode criar desordem. Quando aqui aparece
o homem solteiro, que por meio de suicídio se torna um deus vivo como o faraó na barca
do deus sol, ele se coloca no lugar do faraó.

Assim, o centro da ordem é entendido como sendo o homem e não o governante, o


centro final da ordem. Essa percepção existencial de que a ordem é o homem – não apenas
a organização social, não apenas o faraó - está absolutamente presente aqui. Mas não pode
cristalizar – ainda que sob outras condições – um movimento revolucionário, ou um
profeta capaz de reunir um corpo a seu redor, ou um filósofo que poderia fundar uma
academia ou algo assim, porque tudo isso ainda é impossível sob as condições egípcias.
O império no sentido cosmológico é tão fortemente institucionalizado que, se você não
tem status no nível administrativo, ou no nível sacerdotal do templo, e assim por diante,
você não é ninguém com relação à ordem do império entre os vivos.

Você teria que se juntar aos mortos na barca do deus sol para contar algo, e é por
isso que o suicídio se torna um problema. Se as instituições do império não estão mais
tão vivas que são um bloqueio absoluto à atividade individual, então você [só] pode entrar
no problema da ação revolucionária através de novos movimentos espirituais intelectuais
ou outros, com o centro da personalidade, um profeta ou algo parecido. [Aqui] isso ainda
não é possível. Deixe-me concluir lá. Na próxima vez, chegaremos à “Epifania do
Homem”, quando tais coisas se tornarem possíveis, [quando] tudo o que puder ser feito.
Muito obrigado.
III. A Epifania do Homem

Há um período na história da humanidade que foi reconhecido como um período


peculiar por mais de cem anos, particularmente desde o Romantismo, quando mais e mais
materiais históricos se tornaram conhecidos. O que é peculiar sobre esse período, que se
estende aproximadamente do século VIII ao século III a.C., é que vários grandes homens
apareceram, representando avanços espirituais ou intelectuais, com um agrupamento
desses homens por volta de 500 a.C. Naquela época viviam como contemporâneos, no
Ocidente, Xenófanes, Heráclito e Parmênides; na Índia, o Buda; e na China, Confúcio.
Todos esses homens eram contemporâneos, e esse fato atraiu considerável atenção na
década de 1820. Karl Jaspers, em sua filosofia da história, chamou-a de era axial da
humanidade. Agora, esse era axial é um problema um pouco difícil. Não entrarei em
detalhes: Toynbee criticou-o fortemente por boas razões. Mas ainda assim, esse
agrupamento peculiar de grandes homens e avanços intelectuais e espirituais nesse
período é um fato. Refiro-me a esse período e ao fato desses avanços, como “A Epifania
do Homem”. Desse modo, quero dizer que o homem torna-se cônscio de si mesmo, como
distinto de sua existência no cosmos, onde você tem as duras realidades (como eu disse
ontem) do céu e da terra, da sociedade, do rei e do povo. Agora você tem a
autoconsciência do homem em sua imediação sob Deus. No entanto, no império egípcio,
como vimos ontem, o indivíduo solitário (o autor da “Disputa”) não tinha um centro de
significado como uma personalidade independente. Antes, o significado da existência era
mediado pelo império e seu representante, o faraó, que mediava a ordem dos deuses para
o império e para as pessoas que viviam no império.

Agora, porém, o indivíduo solitário, na forma de um homem sábio, um sábio como


Confúcio, ou uma pessoa iluminada como o Buda, ou um filósofo como Xenófanes ou
Parmênides, torna-se um centro da formação de comunidades nas quais a humanidade –
o caráter peculiar do homem em sua relação com todas as outras entidades no cosmos –
é entendida e pode formar uma comunidade rival para as instituições políticas existentes.
Isso ainda era impensável no contexto egípcio ou sumério. [Lá] só se podia substituir um
império por outro, um governante por outro, um império inteiro por um império
fracionado, e assim por diante, e então uma reunificação do império. Mas não se pode ter,
digamos, uma escola filosófica ou um profeta e seus seguidores e assim por diante. Isto é
novo no período sobre o qual eu quero falar hoje, e o ponto decisivo neste período é que
aqui o homem experimenta a si mesmo em sua imediaticidade sob Deus. O que lhe dá
autonomia é que ele está sob Deus sem mediação. Podemos dizer que a nova compreensão
do homem, sua nova visão de sua própria humanidade, é a de sua relação imediata com a
divindade.

Agora, os tipos de experiência em que essa nova compreensão se cristaliza em


simbolização podem ser classificados. Eu não quero ir longe demais na classificação aqui
e agora, mas teremos que detalhar mais tarde, porque assim que você começar a formar
conceitos de tipos e dar definições, você se deparará com a dificuldade que eu indiquei
ontem, porque os tipos, enquanto estáveis por um tempo, mudam permanentemente. O
homem está em movimento, e se você realmente entrar no assunto, você pode dissolver
todos os tipos estáveis nos tipos preparatório e sucessivo, de modo que você obtenha mais
tipos transicionais do que os tipos estáveis. Nós teremos que falar sobre o problema da
transição um pouco hoje. Mas com essa reserva, pode-se dizer que existem duas
experiências marcantes no Ocidente. (Eu não reflito agora a Índia ou a China, onde há
outros problemas.) No Ocidente, [onde] novas experiências deram nomes a si mesmas,
pode-se distinguir entre a filosofia e a revelação, [representadas respectivamente] pela
Hélade e por Israel. No caso da filosofia, você tem uma experiência que podemos chamar
de experiência “noética”, porque seu centro, a área na qual a imediação sob Deus é
experienciada, é a diferenciação do nous ou “razão”. No outro caso, da revelação, você
pode falar de uma experiência pneumática, porque o pneuma (em hebraico, o ruach) é
novamente a área na qual a imediação é experienciada. As diferenciações dos significados
darei mais tarde.

Agora temos dois tipos, o tipo noético e o pneumático, ou a filosofia e a revelação;


ou, se você refletir diretamente sobre a questão do nous (traduzido como “razão”), pode
chamar-lhe a distinção [entre] razão e revelação. Aqui estão dois tipos distintos.
Antecipando o que tenho de explicar em detalhes mais tarde, pode-se dizer que, no tipo
noético, no tipo filosóficose tem uma tendência em explorar a estrutura da experiência.
(Claro, você não pode explorar a estrutura sem ter a substância, a substância também deve
estar lá, mas a tendência está para explorar a estrutura da experiência.) No tipo
pneumático, ou tipo revelatório, você tem a substância tão fortemente predominante. que
uma análise de sua estrutura nunca é feita, pelo menos não no contexto israelita e judaico.
(A análise da estrutura é introduzida na experiência pneumática somente através do
cristianismo e do desenvolvimento da teologia, e a teologia é baseada na filosofia clássica
e estóica).
Estes são os dois tipos. Se queremos um vocabulário para expressar esses tipos de
experiência e o sítio onde elas ocorrem, temos uma escolha de termos. Não importa muito
quais termos se escolhe, mas sob condições modernas, alguns são preferíveis aos outros.
Na antiguidade, no contexto filosófico, o sítio de tal experiência foi definido como a
psique. Agora, o termo psique ocorre mais cedo do que os filósofos clássicos. Você já
encontra o termo psique em Homero, mas [lá] ainda significa a força vital no sentido
físico, que deixa um homem quando ele morre, por exemplo, em batalha, com o sangue
fluindo dele. Então o sangue é o sítio da psique como uma força vital, e quando isso o
deixa, permanece uma sombra que entra no submundo. Esse é exatamente o mesmo
significado de psique que você encontra em paralelo em hebraico no conceito de nephesh.
Tem o mesmo significado que a psique no sentido homérico. Começando
aproximadamente com Pitágoras, pode-se notar a transformação do significado do termo
psique no sítio em que essa experiência de imediação sob Deus, ou o fundamento divino
de sua própria existência, ocorre. Essa é a transformação do significado do termo psique.
Eu não me oponho ao termo psique, desde que não o objetive e o torne uma hipóstase,
mas apenas o aceite como um termo, uma alavanca conveniente, que é uma analogia com
outros órgãos do corpo humano, os pés ou as mãos ou assim por diante. Você não
experiencia a imediação sob Deus com os pés ou com as mãos, mas com o que você
experiencia? Se você quiser chamar essa parte do homem de psique, tudo bem, chame de
psique. Mas não precisamos do termo porque, no período moderno, quase foi
completamente substituído, para dar um exemplo, começando com o século XVII pelo
termo consciência. O homem tem consciência e consciência significa a experiência de
uma tensão na existência em direção ao fundamento da própria existência. Isso é
consciência. O termo consciência neste significado já aparece ocasionalmente na filosofia
clássica. Você encontra passagens, por exemplo, na Ética a Nicômaco de Aristóteles,
onde o termo aesthesis não é usado no sentido usual da percepção sensorial, mas no
sentido da consciência; isso já ocorre lá. O termo consciência talvez seja mais adequado
hoje do que o termo psique.

A consciência [...] é o sítio no qual a participação no fundamento da existência do


homem é experienciada. É o sítio da participação em si. Devemos agora distinguir entre
a participação real e a consciência da participação. Esse é um ponto muito importante
para a interpretação dos fenômenos históricos, porque a própria participação sempre
acontece quando há o homem. Certamente, toda experiência cosmológica incorpora a
participação do homem na realidade circundante, a realidade divina da natureza e todas
as outras partes da realidade cósmica geral; mas ainda não é temático, não se tornou
reflexiva. E quando você se torna consciente disso, você tem que distinguir entre a
consciência que sempre esteve lá como o sítio de participação, expressando-se em todos
os tipos de simbolismos além da filosofia, por exemplo, na oração, no mito ou na
“Disputa”.

Agora, com essa consciência, você teria que dizer que, quando se torna auto-
reflexiva, a consciência sempre tem um duplo sentido. Primeiro, é o sítio de participação
no fundamento divino. Segundo, é o sensorium pelo qual você se tornou consciente dessa
participação e a torna tópica e usa conceitos para descrevê-la. Assim, no nível filosófico
da experiência, a consciência é sempre o sítio e o sensorium. Portanto, quando [a
consciência] se torna consciente, [ela é] agora o centro de toda ordem. A ordem não está
mais lá simplesmente [como um dado]. Ainda existe essa ordem no cosmos, mas não é
em sua própria pessoa e na sociedade, a menos que você a produza em virtude da
compreensão de sua própria existência e de sua ordem na consciência. Portanto, você
encontra, por exemplo, na política clássica, que uma constituição paradigmática para a
sociedade pode ser desenvolvida com base em uma análise da consciência. A consciência
explodida na tela maior da sociedade entregará o tipo certo de constituição. Se você for
informado sobre a ordem correta de consciência, você pode descrever aproximadamente
qual seria a ordem correta para a sociedade. Nesse sentido, a consciência se torna o centro
de toda filosofia e especulação sobre problemas ou ordem.

Agora – [continuando com as características gerais] – essa vinda de consciência


para a autoconsciência tem, você poderia dizer, um efeito desastroso sobre a experiência
cosmológica anterior, sobre a experiência do cosmos no sentido primário. Você se lembra
do que eu disse ontem à noite sobre a experiência do cosmos: O cosmos é a realidade
dentro da qual você vive irrefletidamente e sem críticas, e nesse cosmos você encontra
todas as partes da realidade abraçadas. Existem os deuses e o homem, a sociedade, o rei
e o povo, o céu e a terra. Tudo está no cosmos, incluindo os deuses. Quando você agora
tem uma auto-reflexão em que o homem experiencia sua imediação sob Deus, Deus não
é mais uma das realidades dentro de um cosmos, mas uma realidade além de todas as
outras realidades, incluindo a sua própria. Todas as realidades do cosmos, incluindo as
suas, estão agora divididas em duas classes de realidade - aquela que não é Deus e a outra
que é Deus: Deus e as realidades de não-Deus. Nessa situação, você obtém a dissociação
do cosmos no mundo transcendente a Deus e ao mundo que não contém Deus. Os deuses
são expulsos e concentrados no único Deus transcendente. Você vê porque é preciso ter
cuidado com o vocabulário. Não temos um vocabulário muito grande. Por isso, usarei o
termo cosmos deliberadamente, apenas com o propósito de descrever essa comunidade
de parceiros ainda compactos na comunidade do ser. Isso é o que chamei de cosmos.

Quando o cosmos se dissocia, precisamos de outro vocabulário, porque então não


temos deuses intracósmicos, mas um Deus transcendente ao mundo, e o termo cosmos
deveria então ser substituído pelo termo mundo. Quando falamos do mundo neste
contexto técnico, refiro-me ao remanescente do cosmo que permanece quando os deuses
são expulsos do cosmos e se concentraram no único Deus transcendente ao mundo. O
mundo e o Deus transcendente ao mundo substituem o cosmos e os deuses intracósmicos.
Nós vemos aqui já um grave problema de re-simbolização. E uma vez que esses símbolos
não são todos desenvolvidos em um [tempo], assim que tal experiência aparece, você
encontrará nos textos consideráveis dificuldades de transição e confusão, porque os
termos mais antigos são usados no novo significado, ou quando um novo termo é
desenvolvido pode estar associado a um significado mais antigo. Por exemplo, o termo
psique, como acabo de explicar, passou por uma mudança como essa, de uma força vital
que deixa você com o sangue em batalha até a área em que você experimenta a
consciência do imediatismo sob Deus. É preciso distinguir com muito cuidado em que
contexto a palavra aparece. Você não pode chegar a lugar algum com essa questão com
definições, mas [tem que] fazer uma análise cuidadosa das fontes em cada caso, [ver] o
que as palavras significam.

Portanto, agora temos essa dissociação do cosmos no mundo e do fundamento


transcendente ao mundo. Estou falando do fundamento, e sei por experiência que algumas
pessoas acreditam que eu inventei o termo fundamento transcendente, ou pelo menos que
o tirei de Tillich, ou que Tillich inventou, ou algo assim. Agora você pode descansar
[assegurou] que a palavra fundamento é uma tradução do termo clássico aition, que é o
fundamento e a causa, e o fundamento último é chamado de arche. Isso é vocabulário
clássico em filosofia. O fundamento divino é chamado de fundamento; esse é o termo
técnico para isso.

Um outro par de conceitos que surgem em conexão com isso (eu usei isso até agora
sem explicá-lo mais) são os termos imanência e transcendência. O termo transcendência
provavelmente se origina com Platão, que o utilizou ocasionalmente na Politeia como a
epekeina, o Além. A Ideia, especialmente a ideia do Agathon, está além de todo o contexto
do mundo. Aqui você tem a ocasião em que surgem termos como imanência e
transcendência. Você pode falar do Deus que não é mais um deus intracósmico, como
um Deus transcendente ao mundo; ele é transcendente, e o mundo em relação àquele Deus
então se torna imanente. Nada é simplesmente transcendente e nada é simplesmente
imanente, mas imanência e transcendência são um par de correlativos que aparecem como
índices, ligados ao cosmos antigo, não tão diferenciado, e nunca devem ser usados
isoladamente.

Falar por exemplo (como expliquei no início da palestra de ontem) do homem


imanente, ou de um mundo imanente, ou de uma concepção imanentista do mundo, ou
algo parecido, é pura tolice. Não há nada que seja imanente; a imanência só é algo em
relação à transcendência. Se não há transcendência, nada é imanente; você simplesmente
confundiu filosofia. Deixe-nos ser claros sobre isso. Para deixar isso claro, tenho algumas
análises, que publiquei na minha obra Anamnese, que distingue símbolos de linguagem
como imanência e transcendência, ou o mundo e o Deus transcendente do mundo, de
conceitos de tipo que se referem a coisas imanentes ao mundo, e “índices linguísticos” ou
a experiência de participação.

Quando você tem uma experiência de participação e quer expressar seu conteúdo,
você desenvolve tais índices para os polos: um polo imanente do mundo e um polo
transcendente ao mundo, um Deus transcendente ao mundo e um conteúdo do mundo
imanente em relação àquele Deus, e assim por diante. Todas essas coisas não têm
significado, exceto no que diz respeito à experiência que as engendra. Se você os separar
da experiência que os engendra, eles se tornam letras mortas que não significam nada e
não se referem a nada. Vamos ser claros sobre isso. Há uma correlação entre os termos
consciência, transcendência, imanência, Deus transcendente, mundo imanente, e assim
por diante que não devem ser quebrados. Se você romper este triângulo da consciência
que engendra o símbolo da imanência e transcendência e falar de uma consciência sem
imanência ou transcendência, ou dizer que a consciência é imanente, ou se você fala de
uma realidade imanente sem uma realidade transcendente, ou de uma realidade
transcendente sem uma realidade imanente; se você quebrar de qualquer maneira e
objetificar esses símbolos linguísticos das experiências, você ficará irremediavelmente
em proposições sem sentido. Este triângulo nunca deve ser quebrado terminologicamente.
Agora isso é até onde a consciência se tornou o sítio de tal participação. Mas como
eu disse, há também um sensorium de tal participação, e você pode expressar o resultado
de tal dissociação do cosmos por (agora eu vou usar o termo em seu sentido técnico)
ideias, e nós podemos chamá-las as “ideias universais”. Você verá imediatamente por
quê. Porque quando esta consciência é reconhecida como o caráter específico humano –
o homem é a criatura que tem consciência de tal natureza que é auto-reflexiva e produz
tais símbolos linguísticos e assim por diante – e [você] diz, isso é especificamente
humano, você tem criou a ideia de homem que até agora não existia. É preciso estar ciente
disso. Não há ideia do homem antes dessa diferenciação filosófica. Há uma ideia do
homem e, se você levar o homem coletivamente ao longo da história, a ideia da
humanidade. A ideia do homem e da humanidade é uma ideia que surgiu concretamente,
por ocasião desse processo de diferenciação em que a consciência se torna autoconsciente
ou auto-reflexiva. Não há humanidade independente dessa experiência; caso contrário [o
termo] não faz sentido.

Isso tem implicações práticas. Quando a origem na experiência da transcendência,


da imediação de todos os homens sob Deus como a fonte da humanidade comum, é
destruída por uma razão ou outra – como é, por exemplo, nas ideologias modernas – você
tem a ideia universal do homem substituída por alguma outra ideia do homem. Por
exemplo, você tem a ideia de que o homem verdadeiro é o proletário, ou o adepto de uma
ideologia comunista, ou a pessoa que pertence a essa ou aquela raça, ou algo parecido.
Você tem ideias parciais que reivindicam ser universais, um tipo de processo que não era
possível antes que houvesse ideias universais. Uma vez que a ideia universal do homem
é desenvolvida, você pode ter ideias parciais do homem, ou ideias fragmentadas do
homem, e atribuir-lhes a qualidade de ser universal. Isso significa que você tem que matar
todos que não concordam com você porque ele não é um homem - uma das fontes
importantes da política contemporânea. É preciso ver a estrutura da universalidade. Antes
que a estrutura da universalidade se desenvolvesse, ninguém afirmava ser universalmente
homem. Mas uma vez desenvolvido, todo idiota [poderia] alegar que a idiotice é a
característica universal do homem. E assim que alguém não concorda [com ele, esse
alguém tem que ser morto]. Isso só é possível depois que a ideia do homem se
desenvolver.

Isso nos dá a ideia de humanidade universal, aquela que é universal. A segunda


ideia é igualmente importante: que, em contraste com a experiência primária do cosmo,
toda a divindade está concentrada numa divindade transcendente ao mundo. Existe apenas
uma divindade, a única divindade transcendente ao mundo, a ser encontrada em nenhum
lugar do mundo. Assim, você tem uma ideia da divindade universal correspondente à
universalidade do homem. Isso também é muito importante porque a ideia de uma
divindade universal é longa na criação, por milhares de anos antes de Cristo. Por exemplo,
nos primeiros egiptólogos – no estudo de Breasted sobre o problema do monoteísmo
egípcio – você já encontrou uma tentativa de [atribuir] o prestígio de ter desenvolvido a
ideia do monoteísmo pelo menos para Akhenaton, de modo que os egípcios são os
verdadeiros criadores do monoteísmo. monoteísmo. E de alguma forma hoje, um homem
como Albright ainda adere a essa posição e escreve um livro sobre a gênese do
monoteísmo. Agora, eu não acho que alguém possa fazer isso, porque o monoteísmo é
um dos “-ismos”, e os “-ismos” são um produto tipicamente do século XVIII. Não se pode
simplesmente jogar em torno desses “-ismos”, monoteísmo, politeísmo, ou seja lá o que
for.

O problema real [por trás disso é que há uma tendência, um impulso, para descobrir
nos textos egípcios] a ideia de uma divindade universal já reconhecível no terceiro
milênio antes de Cristo. Isso é verdade. A divindade universal chega a uma expressão
aproximadamente boa no cristianismo, mas apenas aproximadamente, porque até o
cristianismo ainda está sobrecarregado com a ideia de que a divindade universal é, por
assim dizer, um privilégio dos cristãos. Todos nascidos antes de Cristo são mais ou menos
relegados ao limbo, se não ao inferno, porque ainda não estavam sob a divindade
universal. Como um problema, a extensão da [divindade] universal para o resto da
humanidade antes de Cristo foi conscientemente formulada pela primeira vez, penso eu,
por Tomás na Idade Média, e [a noção] não foi muito eficaz. Uma verdadeira filosofia da
história baseada no problema da divindade universal, como estou tentando aqui, por
exemplo, nunca foi feita, até onde sei. É uma ideia muito lenta no desenvolvimento.
Temos uma pré-história de dois mil anos antes de Cristo e uma pós-história de dois mil
anos depois de Cristo, e ainda não é, você poderia dizer, geralmente aceita. Ainda se faz
exceções a essa divindade universal como o único fundamento divino de todo ser.

A terceira ideia universal que surge nesta ocasião é o mundo como o mundo comum
de todos, com uma estrutura autônoma. Ou seja, o mundo não é nem homem, nem Deus,
nem o cosmos em que o céu e a terra, e reis e pessoas, e deuses, e assim por diante, são
abraçados indiscriminadamente, mas existe uma estrutura do mundo. Você tem uma ideia
universal do mundo que também é muito lenta no desenvolvimento. Você pode dizer que
a ideia universal do mundo foi totalmente desenvolvida apenas a partir do século XVI,
com o surgimento da ciência moderna. [Mas] como um problema, ele já está presente em
Aristóteles e no desenvolvimento da astrofísica pós-aristotélica em sua própria escola.

Estas são as três ideias principais que surgem: humanidade universal, divindade
universal, mundo universal. Vou me referir brevemente a eles como "os universais" que
surgiram naquela ocasião. O que eu disse para o triângulo de consciência, imanência e
transcendência [também é válido para eles]: você obtém os três como uma unidade ou
não obtém nada. Se você entregar um ou outro, todo esse sistema, ou todo esse aparato
de ideia que é inerente à exegese de tal experiência, entrará em colapso. Tal colapso
(temos que lidar com isso na terceira palestra) é uma das características do período
moderno. No geral, pelo menos no Ocidente, as pessoas concordam que temos um mundo
universal, mas não que tenhamos um homem universal e um Deus universal. Assim, você
vê que a divindade não é universal, mas será apropriada a certas partes do conteúdo
mundial, por exemplo, ao proletariado, ou a uma nação, ou a uma raça, e assim por diante.
Quando você torna a divindade imanente ao mundo, coloca-o no mundo, e seleciona um
fragmento do conteúdo do mundo e o dota com a qualidade da divindade universal, você
destruiu a tensão na qual esses universais devem permanecer. [Assim, isso deve ser
evitado], a menos que você queira causar um estrago horrível e se tornar completamente
irracional – às vezes com a consequência de uma doença mental, se o triângulo entrar em
colapso. O colapso do triângulo, dessas três ideias, é uma das características da história
moderna.

Estas são as características gerais. Agora podemos entrar em alguns problemas


especiais. Eu falei sobre as experiências de participação e da imediação sob Deus e o
conteúdo de tais experiências. Isso soa muito abstrato, e acredito que se você entrar em
um pequeno detalhe com materiais, será muito mais fácil entender qual é o problema.

Quero dar alguns exemplos de tais experiências de participação, e eu vou usar o


mais simples possível. Pegarei do Upanishad, de um contexto hindu. Lá você tem a
situação de um homem sábio com o nome de Yajnavalkya questionado por uma pessoa
interessada, neste caso uma menina, sobre a realidade e o fundamento da realidade. As
perguntas e respostas são o conteúdo do Upanishad. Esse é um caso típico; há dezenas de
tais nos Upanishads. Eu faço uma breve para que se possa ver a estrutura. O nome da
menina é Gargi, e o ponto crítico em que temos que lidar com o assunto começa com as
seguintes linhas [Brihadaranyaka Upanishad III.6]:

Então Gargi perguntou:


“Yajnavalkya”, ela disse, “tudo aqui é tecido,
como urdidura e trama, na água. O que é então isso em
Que água é tecida, como urdidura e trama?”

Aqui ainda estamos na esfera cosmológica. Os elementos da água, fogo, terra e


assim por diante. O elemento básico é a água, tudo é tecido na água. Mas no que a água
é tecida? Qual é o fundamento disso?

“No ar, ó Gargi”, ele respondeu.


“Em que então o ar é tecido como urdidura e trama?”
“Nos mundos do céu, ó Gargi”, ele respondeu.

E isso continua então através do céu, o céu é tecido no mundo dos Gandharvas; os
Gandharvas nos mundos de Aditya (o sol), de Chandra (a lua), dos Nakshatras (as
estrelas), dos Devas (os deuses), de Indra (os deuses superiores), de Prajapati (deuses
ainda mais elevados) e finalmente os mundos de Brahman. O questionamento termina da
seguinte maneira, depois que Yajnavalkya explicou que tudo está tecido nos mundos de
Brahman.

“Em que então os mundos de Brahman são tecidos, como urdidura e trama?” (Essa garota
é persistente!)
Yajnavalkya disse: “Ó Gargi, não pergunte demais, para que sua cabeça não caia.
Você pergunta muito sobre uma divindade sobre a qual não devemos pedir muito. Não
pergunte muito, O Gargi”.
Depois disso, Gargi Vachaknavi manteve a paz.

Aqui você tem isso de uma forma muito simples. Você pode questionar através de
toda a hierarquia do ser. Não precisa estar na terminologia cosmológica. Você pode
questionar, como, digamos, Agostinho, através do mundo inorgânico, do mundo
orgânico, do vegetativo, do animal, do psicológico, até que você entre na esfera desse
ponto transcendente - da anima animada para Deus; você pode fazer isso dessa maneira
em uma descrição posterior da hierarquia do ser. Mas o problema está sempre
pressionando a pergunta: Qual é o fundamento e qual é o fundamento daquilo que você
determinou? até chegar ao [...] fundamento que não tem fundamento em si, o fundamento
sem [...] fundamento de todo ser. Isso é o que se chama Deus ou, neste caso, Brahman.
Se você quer uma definição de Deus, você pode dizer que, em tal processo de
questionamento, seria o ponto em que você esgotou todos os tipos conhecidos de
realidade e ainda não sabe o que é o fundamento; é o que é o fundamento, isso é Deus.
Essa seria a definição de Deus com base em tal questionamento, após o esgotamento de
todos os tipos conhecidos; o não típico, o que é o além. Esse é o caso indiano.

Agora, deixe-me dar outro exemplo, um que é muito mais elaborado e muito mais
bonito, chamado de Apocalipse de Abraão. O Apocalipse de Abraão é um documento dos
essênios, em algum lugar em torno do período de Cristo – apenas um pouco antes, apenas
um pouco depois, não se sabe exatamente. Ali o jovem Abraão relata seu tipo de
experiência pneumática. Eu gosto particularmente porque achei acidentalmente quando li
o romance de Thomas Mann, José e seus irmãos. O credo é o descrito por Thomas Mann.
Quando leio Thomas Mann, sempre me perguntei de onde ele tirou sua concepção
peculiar do credo e fé de Abraão, porque não está no Antigo Testamento. E quando eu li
o Apocalipse de Abraão [caps. 7–8] descobri que é de onde ele tirou, quase literalmente.

Não é um diálogo, mas um monólogo. Ele fala para si mesmo:

Mais venerável que todas as coisas é fogo


para muitas coisas sujeitas a ninguém cairão nisso...
Mais venerável mesmo é a água,
porque supera o fogo...
Ainda não chamo Deus
Pois está sujeito à terra...
Terra eu chamo mais venerável
pois supera a natureza da água.
Ainda não chamo Deus
como é secado pelo sol;
Mais venerável que a terra, eu chamarei o sol;
o universo que ele faz luz pelos seus raios
Mesmo ele eu não chamo Deus,
como seu curso é obscurecido pela luz e pelas nuvens.
Ainda a lua e as estrelas eu não chamo Deus
Porque eles em seu tempo diminuem sua luz à noite...
Ouça isso, Terah meu pai,
que eu te anuncio o Deus, o Criador de todos,
não aqueles que consideramos deuses!

Obviamente, a situação é de um ambiente politeísta muito considerável. Todos


esses itens enumerados podem ser considerados deuses, são encontrados em uma ou outra
das formulações politeístas, e nenhum deles é Deus. Agora vem a questão de onde ele
está? você vê que a técnica é a mesma que nos Upanishads, o esgotamento de todas as
possibilidades elementares, de todos os tipos de conteúdo do céu e da terra! Então vem a
grande pergunta:

Mas onde ele está?


E o que é Ele?
que avermelha o céu
quem doura o sol,
e ilumina a lua e as estrelas?
que seca a terra no meio de muitas águas,
Quem se colocou no mundo?
que me procurou na confusão da minha mente.

Agora vem a questão da consciência. Ele o desperta para o questionamento:

Que Deus se revele através de si mesmo! (ele continua)


Quando assim falei com Terah, meu pai,
no tribunal da minha casa,
A voz do forte caiu do céu
em uma nuvem de fogo e chamado,
Abraão! Abraão!
Eu disse: aqui estou eu!
E ele disse:
Você procura o Deus dos deuses,
o Criador,
na mente do seu coração.
Eu sou Ele!
Lá você tem a transição de uma concepção mais primitiva de um Deus criador para
um Deus que deve ser encontrado “na mente do seu coração”. Essa é uma frase em
aramaico para a parte mais interna da sua consciência: “do seu coração”. É muito
semelhante à anima animae de Agostinho, que pode estar ligada a ele. Depois que você
tem uma maneira negativa de esgotar a hierarquia de ser dentro do mundo, vem a questão
da causa: quem nos criou, quem enrubesce o céu, quem ouve o sol, e assim por diante.
[Mas] você não encontra em nenhum lugar; Deus tem que se revelar através de si mesmo.
E a revelação assume a forma de um chamado: “Abraão! Abraão! ” – e ele se sente
chamado. Então ele [responde] ao chamado: “Aqui estou eu”. E Ele diz: “Eu sou Ele”.
Isso é semelhante na simbolização verbal do episódio da Sarça ardente na revelação de
Moisés. Obviamente, há uma tradição.

Esse é um relato muito cuidadosamente construído de tal experiência. O problema


em si se torna perfeitamente claro. Também [ilustra] o ponto em que indiquei ontem:
Quando tais experiências ocorrem, elas são eventos importantes na vida da respectiva
pessoa e, portanto, tornam-se objeto de uma narrativa, de uma autobiografia. Você
poderia dizer, por ocasião de tal experiência, que é mais ou menos um relato
autobiográfico, como tudo isso aconteceu, tão cedo quanto um fenômeno como o episódio
da Sarça ardente no livro do Êxodo. O aparecimento de Deus na sarça ardente para Moisés
é um tipo minúsculo de autobiografia que pode se expandir para tipos mais complicados
de autobiografia. Quando algo importante muda o estado de consciência de um tipo de
auto-compreensão para outro, você tem um assunto que vale a pena registrar. É assim que
tudo começa, com o registro de um fenômeno da consciência.

Esses dois exemplos devem ser suficientes para [nosso propósito], isto é, para
entender, para que saibamos sobre o que estamos falando. Agora temos que voltar aos
detalhes técnicos. Existem todos os tipos de transições. Deixe-me referir a alguns deles.
Mesmo no ambiente cosmológico, você pode especular sobre o fundamento. Enquanto o
problema do fundamento como fundamento [...] aparece apenas como um termo técnico
em filosofia, o fundamento, a busca pelo fundamento sempre se passa na esfera
cosmológica [também]. Portanto, você sempre encontra construções especulativas do
tipo: Quem é responsável pelo mundo e seu fenômeno? Você pode atribuir a origem do
mundo ou a criação do mundo a um deus ou outro. Os deuses favoritos no Egito, por
exemplo, são sempre os deuses elementares, o deus do sol, o deus do vento, o deus da
terra e assim por diante vários elementos, deuses da água, o Nilo – especulação sobre o
fundamento ainda na forma politeísta. Tais explicações variadas, você pode dizer, são
pluralisticamente coexistentes como explicações de como o mundo veio a ser o que é, e
como você é, e assim por diante.

Quando você aborda o problema da consciência historicamente, você se torna


consciente de que os deuses no sentido intracósmico não podem ser a causa, porque
quando a consciência desperta, os deuses politeístas desaparecem. Mas essa especulação
de que um dos deuses está na origem ainda está presente na especulação inicial jônica, na
fase inicial da especulação pré-socrática. Lá os deuses são agora substituídos por
elementos: a água é a origem de todos os seres, o fogo é a origem de todos os seres, a
terra é a origem de todos os seres e assim por diante. Em vez dos deuses politeístas, como
no Egito, você encontra no início da especulação jônica, no século VII, os elementos
denominados, novamente um grupo inteiro de elementos. Heráclito preferia o fogo, a água
de Tales e assim por diante. Elementos são usados e substituem os deuses. Mas, uma vez
iniciado o processo, você entra no problema de que, se não um único deus politeísta pode
ser usado como o originador de todos os seres, qual é a origem de todo ser? Naquela
ocasião – novamente, é preciso estar ciente dessas coisas – o termo ser é introduzido.

Na história da criação, no ambiente mitológico, no ambiente cosmológico


propriamente dito, você sempre descobrirá que um deus cria os céus, ou um deus cria a
terra, ou um deus cria o homem, sempre concretamente falando. Mas agora temos que
entrar na questão de que todas essas várias realidades, que são concretamente nomeadas,
têm que receber um nome universal; são algo genérico, são todos seres, e o termo ser é
introduzido para todas essas realidades. Então a questão de qual deus cria isto ou aquilo
é transformada na questão: Qual é o fundamento do ser de todos os seres-coisas que
vemos lá, que também devem ser de alguma coisa-ser? Ser torna-se um termo genérico
para todos os tipos de realidade que ainda são nomes concretos no sentido cosmológico.
Assim, os nomes concretos são substituídos pelo termo genérico sendo, e, nesse contexto,
surge a pergunta: Qual é o fundamento de todo ser, a arche, a origem de tudo isso?

Quando se desenvolveu o vocabulário até aqui, surgem vários problemas de


construção, porque agora se está confrontado com todas as coisas que existem dentro do
mundo, e com outro tipo de ser [também] que é a causa, ou o fundamento originário de
todas as coisas que nós experienciamos no mundo. E agora, em experiências agudas de
transcendência, digamos do tipo de Parmênides, podemos chegar à ideia de que o ser real
é o ser transcendente que é o fundamento de todos os outros seres. Só isso é ser real, todo
o resto tem um caráter secundário de ser, um caráter ilusório. Portanto, Parmênides
distingue [entre] o ser real como aletheia, sendo, na verdade, a verdadeira realidade e o
ser secundário como doxa, a realidade ilusória, ou a realidade da opinião, realidade
secundária.

Uma vez que esta dissociação tenha ocorrido, nós entramos no problema do
descarrilamento, [para] você pode mudar o assunto. A experiência original foi: Há um ser
real, o ser eminente que é o ser divino no Além. Mas você pode dizer: eu só tenho
experiência de coisas no mundo. Essas coisas existentes – isso é realidade, isso é ser; e
tudo o mais que você quer me dizer é simplesmente um absurdo, não está lá, não existe
tal coisa. Agora, se você tomar essa posição e simplesmente disser: Não há um
fundamento de ser, o assunto chegou ao fim, porque você usou esses termos que são
baseados na experiência da transcendência, de uma participação em uma base do ser, e
que são válidos apenas quando o triângulo, do qual falei antes, está preservado. Você
pegou uma parte do [triângulo] e decapitou o resto. Mas então, o que você fala, a parte
que você deseja preservar, é um absurdo, porque não existe um ser imanente sem o ser
transcendente, ao qual ele está em correlação, a base da experiência.

Mas também se pode dizer legitimamente: quero [reservar o termo] sendo para
todos os seres-coisas que existem, e eu chamo de existente o que existe, por exemplo, no
tempo e no espaço, incluindo o homem. Então alguém teria que continuar e dizer que este
fundamento é algo como uma realidade inexistente. É real, mas é inexistente. A divindade
não tem o modo de existência no tempo e no espaço; pode-se dizer isso. Se você quiser
falar sobre isso e reconhecer que ele não existe no tempo e no espaço, você não pode
simplesmente atribuir a ele os atributos mitológicos mais antigos. Você tem que
desenvolver uma lógica específica, a analogia do ser, para falar dessa realidade
transcendente que não está no tempo e no espaço.

Este problema da analogia do ser já era um problema em 500 a.C., mas recebeu sua
designação e foi totalmente desenvolvido na Suma Teológica de Tomás de Aquino. Aqui
você tem novamente um longo processo de cerca de 1700 anos ou mais, até que surge a
questão de como falar de uma realidade inexistente (isto é, uma realidade que não existe
no tempo e no espaço) e em que terminologia. Aplicando termos a ela analogicamente,
[termos] que tomo da minha experiência mundana, posso dizer que Deus dura todo o
tempo, Ele é onipresente, Ele é todo justo, Ele é todo o Bem e assim por diante. Mas esses
termos só têm significado em nossas relações humanas no mundo, e quando são [usados
como] uma resposta para [questões relativas a] Deus, eles só podem ser usados
analogicamente e não univocamente ou equivocadamente. Esse é um desenvolvimento
técnico em filosofia que, a seu modo, não pode ser superado. Você pode renunciar a falar
sobre os atributos de Deus em geral, mas se você os usa, você está na analogia do ser.
Essas são algumas das dificuldades técnicas relacionadas a ele.

Quando você tem essa consciência, você entra no problema de como reconstruir o
mundo inteiro que você dissociou com sua experiência de consciência, porque o mundo
continua mesmo agora que a consciência é descoberta. Agora que você descobriu que
existe um Deus transcendente no mundo, você tem que reconstruí-lo dizendo que as
coisas no mundo, como por exemplo na concepção platônica, se tornam coisas se elas
participarem das ideias transcendentes do mundo. Essa é uma maneira de interpretar isso.
Ou você precisa construir o sentido peculiar da consciência – o que isso significa?
Significa que você é – pense no Apocalipse de Abraão – em busca de um fundamento do
ser e você é chamado ou movido por esse fundamento do ser. Há uma dinâmica
experienciada e existe um vocabulário para essa dinâmica. Temos termos definidos como
fé, esperança e caridade, já desenvolvidos por Heráclito. E temos termos desenvolvidos
por Aristóteles para descrever a parte questionante, a zetesis; isto é, buscando e sendo
movido para a busca, a kinesis vinda do outro lado, o lado divino (algo muito semelhante
ao que no cristianismo se chama graça). Todo um vocabulário surge agora para descrever
a operação interior dessa consciência, toda a linguagem da descrição espiritual e
intelectual e da auto-expressão.

Finalmente, quando a consciência é um sítio no qual o transcendente e o imanente


se encontram, então essa consciência, ou [que] o homem com relação à sua consciência,
não pertence nem a um nem ao outro, mas está naquela esfera do “entremeio”, entre o
atemporal ou eterno e o temporal do tempo imanente. [Assim, o vocabulário para
entremeio se desenvolve]. Platão tem sido muito [completo] no desenvolvimento deste
vocabulário; ele chamou de metaxy, o “entremeio”. Nós vivemos no entremeio. Vocês se
lembram da noite passada que eu expliquei que o “fluxo de presença” que não é nem o
tempo nem o atemporal, mas o fluxo em que o tempo e o atemporal se encontram. Essa é
o tempo em que nós existimos. Neste fluxo de presença, no entremeio, é onde todas as
[preocupações] do homem são realizadas.
Tenho que ser um pouco seletivo agora, mas alguns problemas são muito
importantes [porque revelam] onde os problemas posteriores se originam. Essa
consciência é chamada por Platão e, especialmente, por Aristóteles, de nous. Agora
existem várias traduções possíveis em vários contextos. Eu simplesmente uso a tradução
“razão” porque sob esse nome, em latim durante toda a Idade Média e o Iluminismo e
assim por diante, nas línguas ocidentais, estamos lidando com esse problema. Agora
temos que esclarecer sobre o problema da razão, porque a revolta do homem é uma revolta
contra a razão. Temos que saber exatamente o que a razão significa no sentido clássico.
Aqui nos deparamos com uma dificuldade técnica, em dificuldades que estão do lado
confuso. A dificuldade é que na filosofia clássica a razão é usada em pelo menos dez
significados diferentes, [nenhum] deles aleatórios [ou] acidentais, [e todos eles]
sistematicamente interconectados para descrever todo o complexo do que chamamos de
razão. Deixe-me apenas enumerá-los:

1. A razão é, em primeiro lugar, (sempre traduzindo o nous de Aristóteles e Platão)


a consciência de existir a partir de um fundamento da existência. Então a razão
tem um conteúdo que é extremamente importante, porque assim que você esvazia
a razão do conteúdo, a consciência de ter um fundamento, a razão se torna vazia
e um instrumento para lidar com as coisas imanentes do mundo. E desde que o
homem ainda é homem (eu devo lidar com isso na quinta-feira), a questão da
substituição [surge], porque você tem que preencher a substância que falta com
alguma outra substância. Existe toda uma série de possibilidades de substituir
outros conteúdos por este conteúdo. É por isso que o período moderno,
especialmente desde o século XVIII, é tão profundamente irracional, como você
já sabe. Então, a razão é a consciência de existir a partir de um fundamento.
2. Você vai para os polos dessa consciência e diz: a razão significa a transcendência
da existência humana em direção a seu fundamento, o movimento em direção a
ela, a dinâmica, a zetesis.
3. Ou você pode dizer: a razão, como o fundamento criativo da existência, atrai o
homem: essa é a kinesis de Aristóteles. Para Aristóteles, nous significa a faculdade
do homem de compreender o problema do fundamento e o fato de que o homem
é atraído por algo que ele chama de nous, o divino. Então, nós já temos três
[significados]: consciência como um todo; e como os polos, o polo imanente da
razão humana; e o polo divino da razão.
4. Razão como a faculdade do homem para entender a si mesmo como existente a
partir de um fundamento. Essa é a questão do sensorium e, portanto, a origem
dessas várias ideias universais. Ele entende a si mesmo como existente a partir de
um fundamento.
5. Razão como a faculdade do homem, intimamente conectada, para articular essa
compreensão através da formação de ideias. Consciência e as próprias ideias –
razão significa tudo isso.
6. Razão como uma perseverança em preocupação com a relação com o
fundamento. Você obtém uma espécie de virtude existencial – que às vezes recebe
um nome especial. Tanto Platão como Aristóteles chamavam a virtude existencial
de perseverar na busca de um fundamento através de uma phronesis vitalícia, a
virtude da sabedoria, de perseverar na busca.
7. Razão como o esforço para ordenar a existência pelo discernimento obtido. Isso
se torna uma grande operação intelectual uma vez que você tenha entendido a si
mesmo, [entendido] sua verdadeira natureza como [um ser] conscientemente
existindo a partir de um fundamento. Isso tem consequências para a formação de
hábitos em sua conduta diária em relação a outras pessoas, para então formar sua
vida de acordo com essa natureza compreendida de si mesmo. Por exemplo, todo
o sistema de ética é uma elaboração de tais problemas.
8. Razão como o esforço persuasivo para induzir a participação de outros homens
na razão. Platão deu especial importância a isso, à persuasão, ao peitho. Uma vez
que a razão é descoberta, ela é acompanhada, você pode dizer, da obrigação de
comunicar e persuadir outras pessoas do tipo peculiar de realidade que você
descobriu e de entrar na comunidade dessa realidade. Esse esforço persuasivo
também é razão.
9. Razão como a constituinte do homem através de sua participação na razão do
fundamento. O homem é constituído pela razão como uma forma. [Este é] um
problema muito especial em Aristóteles, assim como no escolasticismo. Então,
razão como a forma do homem.
10. E finalmente, a razão como um constituinte da sociedade através da participação
de todo homem no fundamento comum, no sentido da homonoia aristotélica. Essa
é uma categoria fundamental muito importante em todas as ciências sociais. A
ciência política clássica baseia-se na suposição de que há um nous comum para
todos os homens e, através da participação nesse nous comum, todo homem é
ordenado em direção a esse nous. Essa ordem na relação entre os homens constitui
a ordem da sociedade. Portanto, a razão comum, a razão comum, é a substância
que torna a sociedade mais ordenada quanto possível. Se você concorda com a
ordem em sua existência e sua relação com os outros pela razão, você tem a
sociedade. Essa substância da sociedade é chamada a semelhança de razão, a
homonoia; todos têm a semelhança da razão. Esse termo, cunhado por Aristóteles,
foi tomado por Alexandre, o Grande na criação de sua religião imperial: a
homonoia deveria unir todas as várias nações de sua conquista em uma irmandade.
E sobreviveu a Alexandre. Foi assumido por São Paulo para designar o nous
comum em todo o Corpo Místico de Cristo, com Cristo funcionando como o nous
comum. Naquela capacidade, passou pela história cristã até a forma secular atual
e adquirida. Por exemplo, se você tomar os antigos sociólogos seculares como
Giddings na virada do século, ele fala de uma consciência do tipo que mantém
todos os homens juntos na sociedade. “Consciência do tipo” é uma tradução de
homonoia. Ou Dewey, que é ainda mais puritano em seu secularismo do que
Giddings, fala de uma mentalidade parecida: essa é a versão da bíblia do Rei
James da homonoia! Assim, bem na sociologia contemporânea na forma
secularizada, ainda temos a homonoia de Aristóteles como a razão comum
presente em todos os homens. Com essa substância da razão comum em todos os
homens pode-se ter sociedade. Se alguém não tem isso, se o amor dentro da
comunidade não é baseado na divindade da razão no outro homem, você não tem
a philia politike. Para Aristóteles, o amor na sociedade, mantendo-o em comum
em razão, é a virtude fundamental de qualquer comunidade política. Philia, o amor
entre os homens de um para o outro, porque eles são todos iguais na razão divina,
é a base de toda a teoria política.

Nietzsche viu isso muito bem, porque se você se render àquela base clássica da
razão comum, não há razão particular para amar alguém. Você observa muito bem isso
empiricamente: não vejo razão para amar alguém, apenas olhar para esses [rostos], a
menos que eu os considere iguais no espírito divino. A divindade do espírito que está
presente em todos os outros [é o que] constitui o homem e a dignidade do homem e a
obrigação de ter respeito pelos outros homens. Esta divindade comum é formulada aqui
pela primeira vez. Como você vê no vocabulário cristão, o vocabulário filosófico foi
assumido; homonoia, a mentalidade semelhante e assim por diante isto é, o vocabulário
cristão: [Ele] foi tirado da “fé, esperança e caridade” de Heráclito; e aqui, do vocabulário
aristotélico.

Estes são os significados da razão, e quando todo este complexo é quebrado e você
escolhe isto ou aquilo e omite outra coisa, você entra novamente nas construções
desequilibradas, que constituem a característica da revolta. O que quero destacar aqui
especialmente hoje é que, com a Epifania do Homem, surgiu um sistema muito complexo
de símbolos, que [deve] ser mantido em equilíbrio adequado [e isso só pode ser feito
através de instituições e transmissão de ensino sobre tais assuntos. Você não pode
descobrir tudo por si mesmo. É preciso cultivar [os símbolos e mantê-los em equilíbrio];
isso tem que ser ensinado e transmitido em alguns processos educacionais e alguns
processos de ensino e assim por diante. Se esse equilíbrio for destruído pelo colapso das
instituições, no sentido de que essas [questões] não são mais ensinadas – pelas igrejas,
pelas escolas ou pelas universidades – então a sociedade não pode funcionar
adequadamente. Isso não significa que a sociedade irá quebrar imediatamente, porque
existe depois de toda a família e há tradições de costume e hábito que você aprende com
os pais e assim por diante, e a sociedade segue em frente por um tempo. Mas se
sistematicamente, ao longo de um século, o ensino em tais assuntos for interrompido,
então o conhecimento do problema [dos símbolos] se atrofiará e você terá esse problema
peculiar do analfabetismo ao qual me referi ontem. Você simplesmente não sabe mais do
que está falando. Então você vê porque esse método é tão perigoso. Você tem uma
construção racional realmente complicada, um corpo de símbolos a ser mantido em
equilíbrio, tão importante [para manter] a sociedade em equilíbrio como, por exemplo, a
continuação e tradição e ensino de rito e culto através de um sacerdócio organizado
sociedade cosmológica. Todas essas coisas também precisam ser transmitidas para
manter a sociedade em ordem. O que temos que fazer é manter essa estrutura intelectual
em ordem. Se todo um corpo, como a filosofia, é jogado fora ou distorcido,
inevitavelmente, as interpretações errôneas rastejam para dentro.

Bem, acho que talvez devesse concluir com isso hoje, porque qualquer outra coisa
levaria a problemas muito complicados. Deixe-me apenas [mencionar] um [assunto] que
eu tenho que lidar mais extensivamente amanhã. Isto é, essa busca pelo fundamento,
como eu disse, torna-se temática e é elaborada na ocasião do aparecimento da consciência,
no sentido auto-reflexivo, na filosofia. Mas a busca [do] fundamento e a construção de
simbolismos que incluem o fundamento e insistem no fundamento ocorrem antes da
filosofia. Terei que lidar com um desses [simbolismos] da próxima vez, com o
simbolismo da historiogênese; isto é, a construção unilinear da história [que decorre
continuamente] do terceiro milênio a.C. nas construções ideológicas mais recentes. É um
dos grandes simbolismos que vão desde as origens cosmológicas até o presente. É preciso
[entender] por que ele passa [até o presente] e por que ainda estamos preocupados com
exatamente os mesmos problemas na construção da história, como os sumérios e os
babilônios em 2000 a.C. Vou deixar isso para a próxima vez.

IV. A Revolta do Homem

Deixe-me [resumir] o curso do argumento das duas primeiras palestras, para que
possamos continuar com ela. Na primeira palestra, desenvolvi a posição do homem no
cosmos. O homem no cosmos tem um certo tipo de autocompreensão; esse tipo de
autocompreensão é o que eu chamo de humanidade. Quando esse cosmos dissocia-se sob
o impacto do despertar da consciência, a autocompreensão cósmica do homem é
substituída por uma nova autocompreensão à luz da consciência da participação do
homem no divino. Temos então um novo tipo de humanidade, um novo tipo de homem
compreendendo a si próprio.

[Na última palestra], tive que passar pelas consequências desse avanço em direção
a um novo autocompreensão. A consequência é que a estrutura da consciência se torna
clara como uma tensão do homem em direção ao fundamento de sua existência; esse é o
conteúdo da consciência. Ao mesmo tempo, isso é o que [os filósofos clássicos]
chamavam de razão: ter consciência do fundamento de si mesmo e de todas as coisas.
Todo raciocínio de um fundamento tem sua origem na estrutura de uma mente que tem
um fundamento e é consciente de um fundamento. A menos que você estivesse consciente
de um fundamento e tivesse problemas de um fundamento, não haveria nenhuma questão
de fundamento, e você não teria lógica nem argumento científico – não há critérios [para
eles]. Nesse contexto, o termo razão adquire vários significados, porque, na filosofia
clássica, a razão é, por um lado, a razão humana pela qual o homem se entende como
estando em tensão em relação à base da existência; [por outro] a razão também tinha o
significado do próprio fundamento. Então, a própria tensão é chamada razão e assim por
diante – na razão como constituinte do homem e da razão como constituinte da sociedade.
Além disso, quando esta dissociação do cosmos no mundo e numa divindade
transcendente ao mundo ocorreu, todo o conteúdo mundial deve ser reconstruído sob este
novo aspecto, e temos os problemas da Ideia Platônica e da questão que uma coisa tem
forma através da participação na forma transcendente e assim por diante. Todas as coisas
que [...] aparecem no contexto de uma experiência primária do cosmos são o que são sem
necessidade adicional de construção. O novo fator que surge quando a consciência se
diferencia é, por um lado, a necessidade de construir, por outro lado, a possibilidade de
construir. Dada a necessidade de construir e, ao mesmo tempo, a aparência da
possibilidade de construir, você pode facilmente imaginar que se pode entrar em muita
má interpretação. [De fato], uma das consequências dessa aparência das possibilidades de
construção é, na verdade, um grande número de interpretações errôneas. Um bom
negócio, de certo tipo, de tal interpretação equivocada é peculiar ao período moderno,
com o qual eu quero lidar agora sob o título de “A Revolta do Homem”.

Deixe-me explicar brevemente o que quero dizer com isso. Na última hora,
expliquei que você tem a diferenciação da consciência no sentido de uma consciência de
que o homem tem uma base de existência e vive existencialmente em tensão em direção
a ela. Vamos simbolizar isso por uma linha com dois polos: do homem e do divino, ou
Deus. Com isso é dado, desde que eu tenho consciência reflexiva, um número de ideias
universais, como expliquei, uma ideia universal do homem que é caracterizado por essa
tensão. Ele é aquele que tem consciência – outras coisas no mundo não têm consciência
nesse sentido. Então a ideia universal da humanidade aparece, o homem e a humanidade.
Então, no polo de transcendência, surge agora a ideia de uma divindade universal sob a
qual todos os homens vivem, tornando-se homem pela sua presença sob a divindade
universal. Então o resto do mundo, agora com exceção do homem e da divindade, é um
mundo comum a todos – nós temos uma ideia universal do mundo nesse sentido. Essas
três ideias universais devem ser mantidas em equilíbrio. Você não pode isolar um contra
o outro porque assim que você isola um ou outro, os outros dois ficam sem sentidos.
Somente os três juntos são uma descrição adequada da realidade que antes era
experienciada na forma primária da experiência cósmica, e agora, no nível da consciência,
se divide nesses três universais, que cobrem toda a realidade. No nível da consciência, a
integridade da tensão, o equilíbrio da tensão, você pode dizer, é a condição de [manter]
toda a realidade em um equilíbrio adequado.

Mas obviamente, o equilíbrio pode se perder. Quero primeiro definir a questão da


revolta em termos do tipo peculiar de perda de equilíbrio que está ligada à revolta do
homem – é claro que existem outras perdas de equilíbrio possíveis –, mas quero
caracterizar a do tipo moderna. Essas três ideias, como eu disse, são ideias e referem-se à
realidade, e elas se referem exatamente à mesma realidade que você também teve antes
de haver uma consciência diferenciada, e antes que houvesse alguma ideia. Nada mudou
na realidade, mas as ideias chegaram agora. Quando você hipostasia tal ideia e ergue-a
em um absoluto, como por exemplo a ideia universal do mundo, e tomá-lo como uma
realidade absoluta e exaustiva, [essas três ideias são deformadas e] você tem uma perda
de equilíbrio. O que acontece no período moderno é a construção da ideia do mundo em
um absoluto, como se o mundo existisse em si mesmo, o que não existe. Talvez esse seja
um problema difícil de entender porque estamos tão acostumados a falar do “mundo em
que vivemos”, ou do “mundo da física”, ou “o universo da física”, e assim por diante.
Nós tomamos como certo que existe tal coisa.

É absolutamente essencial para entender os problemas das ciências naturais, bem


como os problemas com os quais estamos preocupados aqui, que tal universo ou mundo
não existe. O que existe são as coisas únicas na existência espaço-temporal que nos
rodeiam. Os objetos que nos cercam, o prédio que nos rodeia, são coisas existentes no
tempo e no espaço. Mas o mundo não é uma coisa existente no tempo e no espaço. O
mundo, a expressão “mundo”, é uma ideia. O mundo não existe. Se você finge que o
mundo é um existente em qualquer sentido, você tem o ponto de partida para todo um
conjunto de novas construções, diferindo das construções originais, quando o cosmos se
dissociou no mundo e divindade transcendente sob o impacto de uma consciência
diferenciadora. Como eu disse ontem, [com] uma consciência diferenciada, você tem o
conceito de uma ideia de consciência como [constituindo] a natureza do homem. Você
tem uma ideia de um mundo imanente ao mundo e um Deus transcendente ao mundo, e
até agora está em equilíbrio. Se você ergue o mundo em um absoluto, um conjunto
inteiramente diferente de construções se estabelece. Você pode formulá-lo desta maneira:
se você tem o mundo como um absoluto, em vez das realidades anteriores, o homem se
torna uma função do mundo; Deus se torna uma função do homem.

Se, em vez da realidade original, uma parte da realidade for erigida em absoluto,
todas as outras partes devem ser interpretadas como uma função da realidade una e
absoluta, que [no fato real] é apenas uma parte da realidade. Porque a realidade, claro,
passa a existir como antes. Se você insiste que uma parte dessa realidade é “a” realidade,
o absoluto, você deve fazer algo sobre o resto da realidade que você não mais acredita ser
realidade; você tem que interpretar como dependente. Para esta construção como
dependente eu uso o termo uma função. Há certas construções favoritas para expressar
tal característica funcional.

Quando dizemos que o homem é uma função do mundo, podemos pensar


especificamente no papel que a teoria da evolução desempenhou para fazer do homem
uma função do mundo. Porque uma teoria da evolução [...] – não como uma teoria
científica, mas no sentido ideológico mais amplo, em que geralmente falamos de evolução
– reduz o homem à última consequência natural de uma evolução natural, começando de
alguns princípios e, através da cadeia do ser orgânico, culminando no homem. O homem
é uma função dessa natureza que está em evolução, o último produto dela.

Agora, por que não deveria ser assim? Não se pode usar essa construção pela
seguinte razão – deixe-me explicar isso imediatamente. No século XVIII, quase um
século antes de a teoria da evolução ser formulada na forma darwiniana, as pessoas já
falavam sobre o problema da evolução. Isso foi muito discutido pouco antes de 1750. Em
sua Crítica do Juízo [1790], Kant deu a razão pela qual uma teoria da evolução não pode
servir para fazer do homem uma função da natureza e deste mundo, o uso para o qual já
se destinava naquele tempo. Se você colocar o homem como o último item em uma cadeia
de evolução, você pode diagramaticamente [...] rastrear, de alguma forma, a vida em suas
formas mais simples, [...] orgânicas ou matéria animal. Você pode então demonstrar que
essa vida orgânica pode ter sua origem em uma cadeia de vida vegetativa ainda mais
avançada [no tempo]. Você pode então dizer que a vida vegetativa tem sua origem em
uma cadeia de várias formas de matéria inorgânica, até chegar ao último elemento da
física atômica, ou algo parecido. Isto é, você não tem um começo de homem. Você não
pode explicar o homem colocando arbitrariamente um começo em algum lugar dentro
dessa cadeia. Mas se você levar a evolução a sério, você sempre terá que voltar ainda
mais para o vegetativo, para a parte inorgânica, e assim por diante [até que] chegue à
questão da matriz de uma questão que potencialmente contém toda a evolução.

Mas você ainda se depara com a questão: de onde vem essa matéria, quem a
inventou e dotou-a do tipo de evolução que levou, no final, a culminar no homem? Não
remontar a um começo imaginário nos levará em torno da questão de que não há começo
no tempo. O começo é sempre um problema mítico ou metafísico. Ainda nos deparamos
com as famosas perguntas de Leibniz: Por que há algo? Por que não nada? e por que as
coisas são como são? Isso está no começo. Sem qualquer preconceito sobre o conteúdo
empírico de toda observação científica sobre evolução – eles estão perfeitamente corretos
– uma teoria da evolução não fornece uma explicação do homem, apenas empurra-o de
volta a um começo imaginário. Essa é uma possibilidade, e essa possibilidade já contém
um sério problema estrutural do pensamento moderno (ao qual teremos de voltar mais
tarde). Explicações, como a explicação do homem como uma função da natureza com
base em uma teoria da evolução, sempre se baseiam na suposição de que não há ninguém
presente na audiência que faça perguntas desagradáveis como Kant, [aquelas que] e
analisar [evolução] para os seus primórdios, levantando o problema do começo e origem
de tudo. Somente quando as premissas não são questionadas, o argumento da evolução
pode funcionar.

Aqui voltamos a um problema que eu [toquei] na primeira dessas palestras, a


questão do analfabetismo, especificamente no campo filosófico. Quando há um certo grau
de analfabetismo crescente na sociedade, é possível desenvolver todo tipo de teoria, como
uma teoria da evolução com essa intenção [ideológica], e ninguém a questionará, porque
ninguém sabe o suficiente sobre filosofia para fazer perguntas desagradáveis. Isso é
suficiente para essa pergunta: o homem como uma função do mundo.

O próximo ponto é que Deus é uma função do homem. Esse ponto [tornou-se
agudo] no século XIX com a “psicologia da projeção” de Feuerbach. Todas as ideias
religiosas, especialmente a ideia de Deus, foram concebidas por Feuerbach como uma
projeção de conteúdos da mente humana em um além. Hoje, a psicologia da projeção é
praticamente uma parte aceita da ciência da psicologia, especialmente em sua forma
psicanalítica. Lá foi desenvolvido em uma psicologia da religião como uma ilusão. Mas
começou com o colapso dos sistemas idealistas alemães depois de Hegel, quando, muito
[urgentemente], a pergunta tinha que ser feita: se alguém não consegue explicar essas
ideias na forma gnóstica específica de um sistema hegeliano que foi rejeitado, de onde
elas vêm? A psicologia da projeção de ideias religiosas tem seu começo crítico aqui. É
claro que sua pré-história remonta ao século XVII, mas eu não quero entrar nisso. A
explicação psicológica das ideias religiosas é o veículo pelo qual Deus e as ideias
religiosas são transformadas em funções da psique humana. Aqui você tem o primeiro
espectro de construções que são usadas quando o mundo é erguido em uma entidade
absoluta. Ou seja, a ideia do mundo é transformada em uma entidade, o que Whitehead
chamou de “a falácia da concretude equivocada”.
Se você atribui a uma ideia [a] concretude [de] uma entidade [...] se você tem tal
concepção do mundo como se "o mundo" fosse real, você pode deixar que essas outras
construções sigam. O homem é uma função deste mundo e Deus é uma função do homem;
e nisso depende toda uma riqueza de problemas adicionais. Desde que acabei de
mencionar Feuerbach, deixe-me mencionar também Marx. Feuerbach ainda deixava o
assunto no nível da psicologia das projeções, enquanto Marx dizia de maneira mais
consistente: “Por que deveríamos projetar? Vamos puxar essas projeções de volta para
nós mesmos onde começaram!” Isso significa: Vamos trazer a divindade de volta à nossa
humanidade e, assim, tornar-nos deuses, ou, se não, deuses, pelo menos, super-homens.
A expressão “super-homem” foi usada por Marx para designar o homem que puxou a
projeção de Deus de volta para si mesmo. O mesmo termo foi então usado por Nietzsche
para praticamente o mesmo propósito. Então, isso seria o fim de tudo: quando essas
funções são entendidas como funções e uma delas as traz de volta à realidade originária
do homem. Com isso, a revolta do homem se torna visível como uma revolta contra Deus.
Deus é tragado no homem e o homem divinizado se torna o centro de toda a realidade,
como foi feito nos séculos XIX e XX.

Esta é a primeira cadeia de tais construções que temos que seguir. Eu darei mais
duas construções principais nesta hora, e elas [seguirão] o problema que eu toquei na
primeira dessas palestras, a questão do tempo. Eu expliquei que se você pode imaginar o
tempo como uma linha, você teria que definir o ponto de presença como a interseção do
tempo com a dimensão da eternidade: onde esses dois se cruzam, seria o ponto de
presença. [Voegelin aponta para um diagrama.] Você sempre tem construções
especulativas, penetrando em uma ou outra dessas direções de tempo, até a origem, seja
no começo (no tempo) aqui, seja na origem no início transcendente (na eternidade), aqui.
Esses dois problemas de origem estão de acordo com as duas dimensões do tempo.

Descreverei agora algumas construções modernas que exemplificam essa revolta:


primeiro, passando pelo que acontece na dimensão vertical, em relação ao transcendente,
e então [passando pelo] que acontece na horizontal, o início do tempo de forma mítica.

O problema vertical, como você pode imaginar depois do que acabei de dizer em
relação à primeira construção geral, será muito peculiar. Se você primeiro construiu o
mundo como o absoluto, então o homem como uma função do mundo, então Deus como
uma função do homem, então obviamente a estrutura da consciência como uma tensão
em direção ao fundamento divino é destruída. Você não tem mais razão em sua forma
original, mas decapitou Deus, e o que resta é o polo humano da razão. Quando somente
o polo humano da razão é deixado, o conteúdo da razão, que é precisamente a tensão em
direção ao fundamento, a consciência do fundamento, é destruído. Uma vez que o homem
não pode viver, ou não vive, sem contar para si mesmo em termos de um fundamento,
Deus, o fundamento transcendente, deve ser substituído por motivos substitutos do ser.
Deixe-me enumerar algumas das instâncias.

Começa no século XVIII com a substituição de uma ordem divinamente concebida


de homem e sociedade pela ideia de ordem na sociedade através do equilíbrio das forças
econômicas e a lógica de um ótimo de produção de bens. A concepção da economia do
século XVIII é que, quando todos os homens lutam pela máxima satisfação de seus
desejos e trabalham o melhor que podem competindo uns com os outros por um aumento
na produção de bens, o resultado será uma ordem equilibrada da sociedade. pela
concorrência econômica.

Assim como a “razão” e a “razão imanente”, a competição econômica foi um dos


substitutos da razão que desapareceu. Em vez de ser orientado para Deus, o propósito da
ação [foi substituído] pela racionalidade econômica e pelos tipos de racionalidade
imanentes ao mundo.

Ou, também no século XVIII, a ideia parece que a sociedade, tanto internamente
quanto nas relações internacionais, pode ser mantida em equilíbrio através do equilíbrio
de poderes. A paz de Utrecht em 1713 já previa uma ordem mundial (na época uma ordem
europeia) com base no equilíbrio das grandes potências. Em vez de orientar a vida de uma
pessoa para com Deus, a lógica do poder, assim como a lógica da ação econômica, [era]
fornecer os propósitos pelos quais se esforçar.

Ou o fundamento do ser pode ser colocado estritamente no sentido geral, não no


esforço individual pelo lucro, mas nas condições sociais de trabalho. Marx fez isso em
sua concepção dos Produktionsverhältnisse. Então a luta de classes se torna uma situação
insatisfatória. E quando a luta de classes é superada pela vitória de outra classe sobre a
agora dominante, haverá novamente ordem. Se a ordem social fosse adaptada à ordem
econômica dos Produktionsverhältnisse, haveria ordem. Isto é para ser alcançado através
da revolução.

Ou, em vez de uma ordem divinamente orientada, pode-se ter evolução. A teoria da
evolução, que acabei de mencionar, era, em sua forma original darwinista, baseada em
grande parte no tipo de argumento utilitarista inglês da sociedade burguesa. Na sociedade
competitiva, os mais aptos sobreviveriam; novamente a sobrevivência do mais apto [era]
fornecer algum tipo de ordem. De lá, você teria que tomar medidas: se você derrotar o
outro homem na competição, competição política ou competição internacional, e assim
por diante isso provaria que você é o mais apto. Eu não vejo o que mais poderia provar,
[...], mas que algo poderia ser concebido como [uma] ordem [para substituir] uma ordem
ética.

Ou pode-se dizer que a base de toda ordem no mundo, de toda ordem inteligível,
está nas raças e na luta entre raças. Também encontramos isso no século XIX com Klemm
e Gobineau.

Ou pode-se dizer que a ordem da existência humana é determinada por algum tipo
de equilíbrio nos instintos ou impulsos naturais. Isso remonta à psicologia dos séculos
XVII e XVIII, à ideia da libido dominandi, do amour propre como princípio de ordenação
na vida de alguém. Permite a calculabilidade nas ações do homem: calcula-se que ele fará
o que satisfará suas paixões. Se isso é usado como regra, pode-se governar o homem
apelando para as paixões, [...] condicionando-as adequadamente. [Essa é a] concepção do
instinto como fator de equilíbrio, um fator determinante.

E assim por diante, é possível desenvolver filosofias complicadas da história sobre


as quais terei mais a dizer mais tarde. Você vê, pode-se percorrer toda a hierarquia do ser,
a partir do argumento racional utilitarista geral [que] você opera para obter lucro através
dos níveis biológicos da raça, ou [...] no nível psicológico, como as psicologias mais
antigas ou a psicanálise moderna. e sempre encontrar, em algum nível, [o fundamento
substituto do ser] para o fundamento do ser que se perdeu. Se você colocar isso em um
diagrama, você pode dizer: Se essa é a figura de um homem, e aqui está a relação vertical
com sua divindade transcendente, você pode cortar o psicológico, o fisiológico, o
orgânico, o inorgânico, o vegetativo, [o] animal – qualquer coisa fora da hierarquia do ser
e usá-lo como um fundamento ao invés do fundamento [real]. Atravessar os vários tipos
de fundamentos substitutos é de certa importância porque, como você vê, o homem
participa em todos os níveis da hierarquia do ser – ele também faz parte da matéria
inorgânica, parte da vida orgânica, da vida vegetativa, vida animal e vida psicológica. Se
você passar por todos esses níveis, eles podem esgotar-se, mais cedo ou mais tarde,
porque há um suprimento limitado de tais níveis. De fato, durante os últimos duzentos
anos, [a especulação esgotou] todos os níveis. Isso [fato] tem uma certa consequência:
você pode agora quase prever, na história das ideias, que quando todos estão exaustos,
dificilmente serão repetidos, porque não se cai duas vezes pela mesma fraude [...]!

De fato, não surgiram grandes ideologias no século XX. Todas as grandes


ideologias, como o marxismo ou o positivismo, pertencem ao século XIX e estão
praticamente esgotadas. Temos apenas as formas epigonais dos retardatários que, de
maneira burocrática ou institucional, exploram as ideologias criadas nos séculos XVIII e
XIX. Isso não significa que as ideologias vão morrer de repente. Uma vez que uma
ideologia é institucionalizada na forma de um regime, sua vida não depende de seu
esgotamento intelectual – já está intelectualmente exaurida – mas da vida de uma
burocracia, e isso dura muito mais que uma ideia! Do fato de que, digamos, o marxismo
foi criticado em partes já na primeira década de nosso século, por exemplo, pela análise
de Max Weber, não se seguiu que uma revolução comunista não pudesse ocorrer na
Rússia em 1918. Nem se segue que este regime comunista, agora estabelecido, não durará
mais uns duzentos anos, apesar do fato de que a ideologia marxista como tal tenha sido
criticada até a morte e de que não resta mais nada dela.

Isso vale para todas as ideologias assim que são institucionalizadas, seja na forma
de um grupo dominante ou de um grupo socialmente dominante em uma sociedade – ela
não pode simplesmente ser derrubada. Sua exaustão no nível intelectual não significa que
esteja exaurida como força social. É preciso ter em conta que estas interpretações erradas
são conhecidas como interpretações erradas. E claro, também sob regimes totalitários,
como o regime comunista, os homens não são comunistas, mas seres humanos e sabem
disso. Eu estava na Iugoslávia no outono passado, em Zagreb, e encontrei na faculdade
de ciência política (havia seis pessoas [...]), que todos insistiram que não eram
“comunistas”, mas “marxistas”, como eles chamavam isto. Quando você pergunta qual é
a diferença entre o comunismo e o marxismo, verifica-se que o marxismo são as ideias
do jovem Marx, especialmente do manuscrito econômico-filosófico de 1844. (Essas
pessoas estão muito perto do existencialismo do século XX, e eles estão muito
intimamente familiarizados com o existencialismo francês.) De qualquer forma, não é o
comunismo. O comunismo é para burocratas e outras pessoas estúpidas. Aqui está uma
estratificação social interna que é importante e que, tanto quanto sei, existe de uma forma
ou de outra em todas as sociedades comunistas. Você não pode dizer como esta resistência
interna sairá a longo prazo, mas nenhuma mudança inicial é esperada.
Esse é o terceiro desses grandes equívocos na direção do transcendente – que na
verdade não pode estar na direção do transcendente porque isso é cortado – que se
expressa na intervenção de fundamentos substitutos em vez do fundamento do ser. Esse
é um desses corpos de construção com os quais temos de lidar, “o homem revoltado”. É
claro que, a propósito, isso significa que todas as ideologias, sejam elas de uma ou de
outra variedade, são teoricamente, ou como ciência, todas erradas – [a esse respeito] não
temos que nos preocupar com eles. Nós podemos esquecê-las.

A outra direção para o começo é a horizontal; estas são as duas possibilidades. Mais
uma vez, começando com o final do século XVII e depois no século XVIII, temos a
filosofia da história; às vezes se esquece que isso é peculiar ao período moderno. A
filosofia da história é também uma forma moderna de simbolizar os problemas da história
– nem sempre temos uma filosofia da história. Podemos ter a substância do problema,
mas o termo filosofia da história é moderno. Começa no século XVIII, praticamente com
Voltaire. Nestas filosofias modernas da história, as [...] socialmente dominantes
[expressam] a situação do homem em revolta. Todos eles são construções unilineares da
história. Ou seja, eles constroem a história como algo que começa em algum lugar no
começo, muitos milhares de anos atrás, às vezes centenas de milhares de anos atrás, e leva
até o presente em uma linha reta de significado. A construção unilinear é o problema, e
nisso há uma história um pouco mais longa.

Deixe-me explicar isso brevemente. Já na primeira dessas palestras, expliquei que,


no que diz respeito às civilizações cosmológicas e aos problemas gerais da experiência
cósmica, ainda temos o equívoco amplamente difundido de que nas primeiras civilizações
sempre há uma concepção de tempo cíclico. Mencionei que nas primeiras civilizações
nunca há uma concepção de tempo cíclico; isso ocorre em nenhum lugar. Mas há outra
concepção de tempo além do tempo rítmico, e esse é o tempo linear. Deixe-me explicar
um pouco como o tempo linear funciona e como essas construções operam. As
construções da história no padrão linear aparecem pela primeira vez aproximadamente no
século XXII antes de Cristo, nas civilizações suméria e egípcia, e continuam até o
presente. Caracteristicamente elas aparecem em períodos de crise. Esse é um ponto
importante porque nossas [concepções] também aparecem em um período de crise. Eles
aparecem em um período de crise quando um império está em perigo, ou um regime fo i
derrubado – ou após um período de desordem [quando o regime] foi reconstruído, ou
durante um período de desordem, ou perigo, e assim por diante. De alguma forma, o
perigo para um império de ser derrubado ou de [um império] ter sido derrubado está
sempre envolvido. Essa é a situação em que tais construções aparecem.

Eu lhes darei agora o modelo da construção suméria da história, porque esse é o


padrão que é continuado diretamente nas construções contemporâneas. A Lista de Reis
Sumérios é feita da seguinte maneira (a análise foi feita por Thorkild Jacobsen,
anteriormente do Chicago Oriental Institute, agora na Harvard Divinity School). Havia
várias cidades-estados sumérias com histórias paralelas – nós pegaremos as mais
importantes. Deixe-me colocá-los assim [Voegelin faz um esboço]; há mais de duas
histórias paralelas de cidades-estados suméria. Em um ponto todas as cidades-estados
foram unificadas por uma dessas cidade-estado em um império sumério, e os
historiadores, ou talvez se devesse dizer neste caso, os teólogos, os teólogos da corte desse
império sumério, [construíram] uma história suméria. Essa história assumiu a seguinte
forma. Em primeiro lugar, há a parte das histórias da Lista de Reis Sumérios que correm
nesta parte paralela a esta. E então eles começam a extrapolar - tomando uma dessas
histórias da cidade após a outra e fingindo que estão em uma linha que precede o império
sumério, [e] seguindo um ao outro, não correndo [lado a lado].

[Mas] isso não foi suficiente, já que ainda havia uma grande parte das pessoas que
estavam bastante próximas das histórias das cidades-estados. Então eles os cortam em
pedaços. Eles não tomam toda a primeira parte em cada período, mas tiram uma parte
daqui, uma parte de lá, adicionam-nos e fazem uma colcha de retalhos de três ou quatro
dessas subseções desta história, empurrando-a cada vez mais para trás até a história das
cidades-estados suméria, com base nos registros, está esgotado. E então eles ainda não
estão felizes. Mas quando eles têm muito bem empurrado [na linha temporal] de volta
para os limites externos – extrapolando para o começo do mundo e a criação do mundo
pelos deuses com uma pré-história mítica – o registro histórico começa, organizado neste
peculiar estilo de retalhos, até chegar à história do Império Sumério. Dessa forma, você
faz de um tipo pluralista de história paralela uma história de uma linha chegando até o
presente que explica por que o atual império sumério é a única ordem legítima do mundo,
criada desde o princípio pelos deuses.

É assim que começou. A mesma técnica é seguida por todas as outras filosofias da
história e especialmente as modernas. Deixe-me dar um exemplo, por exemplo, a filosofia
da história de Hegel. Eu não quero entrar nos menores; lá você entra em outras coisas. Eu
vi uma vez, infelizmente eu esqueci o autor, mas era um americano, que fez uma história
unilinear do mundo dividida em três fases. A primeira fase foi do começo do mundo até
1798. A segunda fase foi de 1798 à Legislação Anti-Católica. E a terceira fase [foi] o
declínio da humanidade, começando com a Legislação Anti-Católica! Então você pode
fazer todo tipo de coisa e pegar as coisas mais engraçadas se entrar nos cantos e recantos.
Mas vamos nos ater aos grandes, como Hegel. O que ele faz? Sob o pretexto de uma
sequência cosmológica, ele tem uma sequência de impérios. Existem primeiro os
impérios asiáticos, os chineses, os indianos e os persas; então entramos no mundo romano
e no mundo greco-romano e, finalmente, no moderno mundo germânico e cristão.

Vamos nos ater ao tipo antigo. Acima de tudo, o interessante é o império persa.
Porque se você olhar para a cronologia (e a cronologia já era muito conhecida no tempo
de Hegel), você pensaria que o filósofo da história começaria seus materiais com as
civilizações mais antigas conhecidas. E eles seriam o Oriente Próximo, o Egípcio, o
Sumério e o Babilônico. Isso seria a coisa natural a fazer. Em vez disso, ele começa com
os chineses, que é posterior. E agora o persa tem uma função muito peculiar. Sob o
império persa, ele compreende (e explica por que ele faz assim) o império que vem no
final de toda uma civilização, neste caso até mesmo uma área multi-civilizacional. Com
o império persa, ele significa apenas todos os estados do reino único, ou seja, lá como
você queira chamá-los, que foi gradualmente absorvido ou conquistado pelo império
persa. Isso significa que sob o império persa aparecem os sumérios, os babilônios, os
assírios, os egípcios, os judeus e os sírios – tudo: todo o Oriente Próximo, que em um
tempo foi o império persa e foi, de fato, unificado no império persa.

Aqui você tem a mesma técnica que no caso sumério. Existem várias histórias
paralelas; há história egípcia, suméria, babilônica, assíria e judaica, os reinos da Síria e
Lídia, e Deus sabe o que mais. Tudo isso não lhe interessa. Todos são reunidos no último
ramo do império persa a fim de obter uma boa linha, porque se ele não fizesse a construção
dessa maneira, ele nunca poderia elaborar uma única linha da história. Ele obteria
histórias paralelas. [Se ele tivesse usado seus materiais] corretamente, ele teria, digamos,
a linha mais antiga, começando pelos antigos impérios do Oriente Próximo, como o Egito,
a Suméria e a Babilônia e descendo, digamos, para o Império Romano ou algo assim. E
você teria uma história chinesa paralela e uma história indiana funcionando
paralelamente, mas você nunca chegaria a uma linha porque há várias histórias paralelas.

Então ele deve fazer o mesmo trabalho de retalho e de mendicância que um


historiador da cidade e historiador do império sumério fez para produzir uma única linha
de história, que culmina em seu pleno significado no presente de Hegel. Se ele não fizesse
isso, o presente de Hegel se tornaria um pouco duvidoso. Isso é muito importante. Um
historiador mais objetivo, como Voltaire no século XVIII, já havia visto isso e falsificado
a história cristã de uma linha de Bossuet naquele terreno. O que significa, essa
maravilhosa história que remonta ao começo do mundo com base no Antigo Testamento,
subindo então através do cristianismo, do império romano e do império ocidental até o
presente? Existem paralelos que são muito mais importantes do que qualquer coisa: os
impérios islâmicos, os impérios chineses, existem outros continentes inteiros e assim por
diante. E onde está essa história de uma linha? Não há histórico de uma linha. Assim,
Voltaire tinha essa concepção, mas não estava mais na construção ideológica de Hegel.
Lá você tem a única linha da história; e esta obsessão de uma linha, se você quiser chamá-
la de uma espécie de construção obsessiva – a história deve ser uma linha – é seguida por
todas as construções ideológicas. Você tem a mesma construção de uma linha na
construção de Marx-Engels de um comunismo primitivo, depois o período do estado e a
guerra de classes, e depois o comunismo final. Mais uma vez, uma linha reta que atravessa
toda a humanidade.

Esse problema peculiar e seu significado tornam-se visíveis pela primeira vez, e
talvez tenham sido melhor formulados - conscientemente ou semi-conscientemente –
porque, se a arrogância tivesse sido bastante consciente, isso não teria sido feito por
Turgot no século XVIII. Turgot fez tal construção de uma linha, essencialmente já a
construção de uma linha que encontramos em Comte e outros exemplos de três fases. Ele
disse que estava ciente de que, obviamente, a humanidade não se encaixa em tal padrão.
Embora haja muitas pessoas que [assumem] que chegaram agora a um período de ciência
e iluminação positivistas, a vasta maioria da humanidade não sabe que está vivendo em
tal período de iluminação, porque a era do Iluminismo é confinada a um enclave muito
pequeno da humanidade na Europa Ocidental ou, em casos especiais, a intelectuais
parisienses. No entanto, para justificar a construção, Turgot supõe que a humanidade é
uma masse totale, uma massa total.

Você pode fazer julgamentos com relação a toda a humanidade referindo-se à sua
parte representativa, que presume que você que faz os julgamentos é a parte
representativa. Todos os intelectuais franceses no século XVIII estavam dispostos a dizer
que eles eram a parte representativa da humanidade. Turgot o fez, depois Condorcet, e
depois, é claro, tornou-se costume geral de todos os intelectuais serem a parte
representativa da humanidade e julgar toda a humanidade sob a suposição de que eles
mesmos são representantes da humanidade. Essa suposição da totalidade da massa [e de
seu ser] representada pelo respectivo especulador da história é o pressuposto das
modernas construções unilineares da história, seja de Condorcet, ou Comte, ou Hegel, ou
Marx, ou de qualquer [outra pessoa]. Cada um deles só é possível e só faz sentido sob a
suposição de que há de fato apenas uma linha da história, que é uma linha de crescente
significado, que seu significado chega ao seu mais alto desenvolvimento na pessoa do
respectivo pensador, que o que é representado por este pensador é representativo de toda
a humanidade, e [que] a construção é, portanto, válida para toda a humanidade; [apenas]
como a construção suméria, a história da humanidade é representada pelo império
sumério, e [isso é].

Isso é extremamente importante na política prática porque, com base nessa


suposição – que o credo desse respectivo intelectual é representativo de toda a
humanidade – repousa, é claro, a agressividade de todos os movimentos ideológicos,
intelectuais e totalitários. Ou seja, todos os movimentos intelectuais e ideológicos são
inerentemente totalitários porque o homem é feito em função da história e [as ideologias]
afirmam ser válidas para todos. Se alguém é ignorante o suficiente para não saber que ele
pertence àquela idade particular da humanidade representada pelos respectivos
intelectuais, isso é muito ruim para ele. Se ele resiste, ele deve ser morto ou colocado em
um campo de concentração ou algo assim. [Em qualquer caso,] ele tem que se submeter.

Portanto, temos aqui todo um conjunto de construções que são a base dos regimes
totalitários modernos e sua eficácia. Essa é a suposição de que há uma história unilinear,
que a história tem uma série de idades, que suas idades estão em uma linha ascendente, e
que a última, que é sempre o presente, é a mais alta dentro dela, para não ser superada por
qualquer outro. É o mais alto e o último. Nesta dupla qualidade do mais alto e último,
repousa a reivindicação de seus representantes, de que todos os que vivem têm que se
submeter a ela. Parte da eficácia de tal ideia repousa no fato de que a maioria das pessoas
que estão imediatamente interessadas tem, na melhor das hipóteses, uma variante de tal
afirmação absoluta e, portanto, já existencialmente deformada o suficiente para aceitar a
reivindicação do outro homem, se provar ser poderoso. Mas a concepção geral de que
estamos vivendo em uma “era” é uma concepção ideológica. A noção de que estamos
vivendo em uma “idade” e temos que nos comportar apropriadamente para sermos
membros dessa “era” tem suas origens nessas construções da história e é a base da
imposição terrorista totalitária em outras pessoas. Aqui você tem o problema da
horizontal, e isso remonta à sua forma mais antiga, aos primórdios sumérios e egípcios
da construção não-historiogênica da história. Uma dessas construções historiogenéticas
da história, a mais importante, é claro, é que no Antigo Testamento, desde a criação do
mundo até Israel.

Estes são dois tipos especulativos. Eu não quero ir mais longe neles; eles são muito
complicados. Mas vamos um pouco nas consequências. O que é construído em tais
construções – na direção de um substituto para o fundamento, na direção vertical ou em
construções históricas na direção do tempo horizontal – é o que hoje é frequentemente
chamado de segunda realidade. A realidade em que vivemos é substituída por uma
segunda realidade da construção humana. A imposição de segundas realidades é o
momento de perigo em nossa civilização contemporânea, porque essas segundas
realidades se tornaram tão socialmente dominantes, e a primeira realidade se atrofiou tão
fortemente (pelo menos no nível público de debate), que facilmente se submete a
segundas realidades. Então, se alguém propõe algo para você em termos de ciência,
digamos, “a ciência diz isto ou aquilo”, você já está chocado porque acredita que a ciência
tem algo a dizer. Você não está ciente de que “ciência” é uma figura alegórica e “ciência”
não diz nada, mas alguma pessoa específica diz algo que pode estar totalmente errado.
Você pode dizer que essas segundas realidades já possuem um valor de prestígio. Ora,
esses valores de prestígio só podem ser mantidos, é claro, se não forem feitas perguntas
sobre as evidências trazidas para tais construções de segundas realidades. (Eu já toquei
neste problema.) Mesmo no caso de um sistema filosófico – seja ele hegeliano ou marxista
– você não faz perguntas desagradáveis com relação à validade de suas premissas. Se
você admitir as premissas, tudo segue bem porque esses homens pensam mais ou menos
logicamente. Mas se você fizer perguntas sobre as instalações, todo o sistema se rompe.
Então, não fazer perguntas é muito importante. Ou, na esfera empírica, em detalhes com
o caso de Hegel, que eu apresentei, parece maravilhoso se você acabou de ler essa
filosofia da história e não fazer perguntas. Mas o que, por exemplo, se tornou do império
egípcio em todo esse assunto? Se for necessária evidência empírica, se você fizer
perguntas, essas coisas se quebram. Um fenômeno interessante do nosso tempo é que, em
primeiro lugar, as pessoas que fazem tais construções não são dissuadidas pela evidência
de fazê-las; segundo, [e] curiosamente, aqueles que são as supostas vítimas de tais
construções geralmente não fazem perguntas, mas acreditam no que lhes é dito.
Esse é um fenômeno peculiar. Nós estamos realmente vivendo em uma atmosfera
de segundas realidades, porque os construtores das segundas realidades não se fazem
perguntas sobre os sistemas e aqueles que são as vítimas também não fazem perguntas.
Como esse fenômeno, se não deve ser explicado, pelo menos, deve ser descrito?

Quero dar a descrição do fenômeno, com alguns comentários, que Sartre deu em
sua obra O Ser e o Nada. É o capítulo sobre má fé. Estamos na esfera da má fé se
construções obviamente em conflito com evidências são feitas e se questões relativas a
evidências não devem ser feitas e de fato não são feitas. Por que não se, apesar da
pergunta, todo mundo sabe que algo não está na melhor ordem? Deixe-me ler essa página
de Sartre com alguns comentários.

Má fé [diz ele] não mantém as normas e critérios da verdade, pois são aceitos pelo
pensamento crítico de boa fé.

Definição geral.

O que decide primeiro, na verdade, é a natureza da verdade.

É má fé que decide sobre a natureza da verdade.

Com má fé, uma verdade aparece, um método de pensar, um tipo de ser que é como o dos
objetos; a característica ontológica do mundo da má-fé com que o sujeito se envolve
subitamente é esta: que o ser aqui é o que não é e não é o que é.

Existe uma nova definição de verdade contida em todas as construções de má fé. E


essa nova definição de verdade é que o que é real não é verdadeiro e o que não é real é
verdadeiro. Todo mundo que já viu um regime totalitário em ação sabe como isso
funciona.

Consequentemente, um tipo peculiar de evidência aparece: evidência não persuasiva.

Por não-persuasivo entenda-se “evidência que não é real, mas que é aceita como
evidência mesmo que não seja”. Você veja! Todo o processo foi muito bem analisado por
Koestler em sua obra O Zero e o Infinito, a evidência não persuasiva.

A má fé apreende provas, mas resigna-se antecipadamente a não ser cumprida por esta
evidência...
A descrição moderna dessa fé.

Torna-se humilde e modesto; não é ignorante, diz, que fé é decisão e que após cada intuição,
ela deve decidir e querer o que é. Assim, a má fé em seu projeto primitivo e em sua vinda
ao mundo decide sobre a natureza exata de suas exigências.

Você imediatamente vê o que isso significa...A verdade é apenas intrasistêmica –


digamos, na interpretação do sistema hegeliano, como ensinado por um hegeliano.
Primeiro você deve aceitar as premissas e depois discutir seu conteúdo. Claro, então você
está afundado porque o erro está na premissa e não nos detalhes. Condições especiais para
argumento são definidas. Um deles é: nunca permita questionar as instalações. Como isso
é feito?

A má-fé se destaca na firme resolução de não exigir demais, de se considerar satisfeito


quando mal é persuadido, de se forçar nas decisões de aderir às verdades incertas.

Agora, o que está aqui discretamente formulado significa que você está disposto a
ser persuadido de evidências insuficientes se quiser acreditar em algo e simplesmente não
olhar para o restante da evidência. Para dar um exemplo concreto: pude observá-lo, por
exemplo – você pode observá-lo em qualquer situação totalitária – nos anos 1930, em
Viena, quando o regime nacional-socialista já estava em ação na Alemanha. Em Viena,
pode-se obter todos os jornais, não apenas os nacional-socialistas, mas todos os jornais
franceses, suíços, alemães e assim por diante. Mas um bom nacional-socialista
simplesmente não leria os melhores jornais, dizem os jornais suíços, porque lá ele
descobriria coisas sobre o nacional-socialismo que ele não gostaria de saber. Claro, ele
só podia fazer isso - recusar-se a lê-los porque já sabia o que encontraria neles. Caso
contrário, antes de lê-los, ele não poderia saber que havia coisas neles que ele não queria
ler. Então você vê, sempre a complicada estrutura da má fé. Não é simplesmente
ignorância; você tem que saber que certas coisas são verdadeiras para não querer saber
que elas são verdadeiras. É uma complicação de muitos andares. Então, não é exigir
muito.

Este projeto original de má fé é uma decisão de má fé sobre a natureza da fé.

Acreditar em evidências insuficientes é uma decisão; é um ato imoral de acreditar


com evidências insuficientes.
Vamos entender claramente que não há questão de uma decisão voluntária reflexiva, mas
de uma determinação espontânea de nosso ser.

Aqui chegamos agora ao ponto crucial, a determinação do nosso ser. Não é assim
que este homem diz, eu sei que é assim e eu não quero saber porque estou simplesmente
dizendo o contrário, ou algo assim. Ele não é um mentiroso. É um complicado processo
psicológico em que se sabe ao mesmo tempo que não se sabe. Por exemplo, Sartre, muito
excelentemente, dá um exemplo de tais problemas em casos patológicos, um conceito da
psicologia de Freud, o censor. O censor da psique é aquela função da psique assim
chamada por Freud, pela qual o conteúdo do subconsciente é impedido de chegar à
superfície. O que, é claro, o censor só pode fazer se ele sabe o que está lá e, portanto,
impede que ele chegue à superfície. Se ele não soubesse o que estava lá e por que não
deveria vir à superfície, não poderia ser impedido de vir à superfície. Assim, o
inconsciente não é inconsciente, mas é uma repressão consciente do que se sabe. Isso nos
dá um problema muito interessante. O conceito de inconsciente em si é insustentável,
porque, a menos que o inconsciente fosse mantido pelo censor, o que pressupõe que a
consciência saiba o que está no inconsciente, você não teria problema algum. Aqui, em
casos patológicos, você tem um bom exemplo disso. Ele continua:

Põe-se de má fé quando se vai dormir e se é de má fé como se sonha.

Então a comparação com um estado de dormir ou sonhar; estas são as comparações


que ele desenha. Não é uma ação voluntária, não uma mentira reta. Um mentiroso
contumaz é uma pessoa honesta em comparação com tal.

Uma vez que esse modo de ser tenha sido percebido, é tão difícil sair dele quanto despertar-
se...

Por isso estou dando uma descrição vívida: acho que é uma boa descrição; as
pessoas não podem sair disso.

Má fé é um tipo de ser no mundo, como acordar ou sonhar, o que por si só tende a se


perpetuar, embora sua estrutura seja altamente desequilibrada.

Ele chama isso de um tipo “metaestável”; isso significa, de um equilíbrio precário.


A má-fé é consciente de sua estrutura e tomou precauções ao decidir que a estrutura
[desequilibrada] metaestável é a estrutura do ser e que a não-persuasão é a estrutura de toda
convicção.

Então, se você entrar em discórdia com alguém e pressioná-lo no assunto, ele dirá:
“Toda fé é má fé” ou “Toda opinião é apenas opinião”, ou o que se pensa ser uma
ideologia, e “Nada é realmente verdade”, e assim por diante. Esse é o fim disso – nós não
pedimos. Ou o argumento continua:

Toda crença é uma crença que fica aquém; ninguém acredita totalmente no que acredita.

Caso contrário, alguém saberia com certeza.

Consequentemente, o projeto primitivo de má fé é apenas a utilização dessa autodestruição


do fato da consciência.

Que toda crença contém um elemento de não crença.

Se toda crença em boa fé é uma crença impossível, então há um lugar para toda crença
impossível.

Essa seria a estrutura interna da má fé. E ele continua explicando:

É muito verdade que a má-fé não consegue acreditar no que deseja acreditar. Mas é
precisamente a aceitação de não acreditar no que acredita ser má fé. A boa fé deseja fugir
do “não-crer no que acredita” encontrando refúgio no ser.

Agora vem a solução do problema. Pode-se sair da má fé a qualquer momento pelo


refúgio do ser, apelando para a realidade, tendo respeito pelas evidências. Se alguém não
tem que ele tem que duvidar de todas as crenças com antecedência, mas:

A má fé foge ao se refugiar em “não acreditar no que acredita”.

Então erigindo má fé na natureza geral da humanidade. Todas as opiniões são


opiniões e uma opinião é tão boa ou tão ruim quanto qualquer outra e, portanto, e assim
por diante. O que Sartre está perfeitamente ciente é a possibilidade de sair da má fé
encontrando contato com a realidade e aceitando evidências. Ele é perfeitamente claro
sobre isso. Agora essa é a descrição dele.

É uma descrição muito boa, mas toda essa passagem tem outra função muito
interessante, porque Sartre desenvolveu essa página com base em certas experiências
psicológicas na esfera privada, em relação a um amigo, a uma amante, a um expectador
em uma fé, e em breve. Ele nunca exemplifica esse problema no caso de uma ideologia,
um credo político, seja ele comunista ou outro. E se ele aplicasse sua descrição da má fé
à sua própria atitude em relação ao comunismo, por exemplo, sua atitude em relação ao
comunismo não seria possível. Se você aplicá-la nele, você tem no próprio Sartre a melhor
lição objetiva de um homem que pode até analisar o problema da má fé e ainda viver de
má-fé. [...] Portanto, essa passagem tem uma dupla importância, não apenas como uma
descrição, mas como uma lição objetiva em si mesma.

Deixe-me concluir com um ponto mais engraçado (não tem qualquer relação, mas
gostaria de chamar a sua atenção). Essa questão das segundas realidades, suas causas e
formas de aparência e assim por diante, atraiu a atenção durante todo o século XIX, e
recentemente encontrei na obra Paraísos Artificiais de Baudelaire com uma descrição
divertida do assunto. Os Paraísos Artificiais são sonhos induzidos por haxixe ou maconha
– drogas alucinógenas. Esse foi um grande problema na época de Baudelaire. O próprio
Baudelaire havia tomado haxixe e outros intelectuais ingleses antes dele como Coleridge,
De Quincey e assim por diante. Baudelaire estava realmente muito interessado no estudo
de De Quincey sobre o assunto, e ele faz os seguintes comentários sobre esse problema.
Ele diz que pelo uso de tais drogas pode-se induzir certos tipos de sonhos, e ele distingue
para esse propósito entre sonhos de paixão e sonhos de natureza hierofânica, como ele a
chama, preocupados com as relações com o divino. Ele acha que os sonhos de haxixe
estão principalmente preocupados com o sonho da paixão. Então ele faz um levantamento
das características dos homens que tomariam maconha com o propósito de ter tais visões.
Ele diz que seriam pessoas eticamente muito sensíveis, pessoas muito humanitárias,
pessoas que seriam tocadas por suas próprias boas intenções e, portanto, teriam uma
opinião muito boa sobre si mesmas, comparadas com outras que não têm tais boas
intenções, mesmo que tenham melhor ações; ou pessoas que são muito sensíveis ao curso
da história, e o peso dos problemas impostos pela história, e assim por diante. Então ele
vai um passo além e diz: “Aqui estou dando uma breve descrição de Jean Jacques
Rousseau. Lá você tem o homem que pode ter essas ideias sem usar drogas!”
Agora isso abre certas perspectivas. Esse problema das drogas como indução a
certos tipos de sonhos que, na época de Baudelaire, já eram identificados como sonhos
[do tipo] em que intelectuais do tipo de Jean Jacques Rousseau se entregavam, dá uma
ideia aproximada de onde esses problemas mentem. Há uma séria deformação mental que
se tornou virulenta desde o século XVIII [ou seja,] o colapso dos três universais – a
estrutura lógica que expliquei – e a redução dos universais à ideia universal do mundo.
Isso apela para um certo tipo de pessoas que chamamos de intelectuais ou para tipos
relacionados. Quando os sonhos dessa forma não podem ser ativamente cumpridos na
vida desperta da construção por um homem como Comte ou Marx, eles também podem
ser realizados e levar à mesma satisfação com sonhos de expansão pessoal e
engrandecimento, e assim por diante, tomando drogas. Você tem uma sequência muito
curiosa, que às vezes é formulada como: Marx considerava a religião como ópio para o
povo, depois, na formulação de Raymond Aron, o marxismo é ópio para o intelectual e
agora o povo toma o ópio diretamente!

Os problemas, penso eu, têm que ser tomados nesse nível. Há uma relação séria
entre esse tipo de pensamento no modo da revolta e a deformação patológica que também
pode ser fornecida pela ingestão de drogas. Tenho a impressão de que em nosso tempo
essas duas linhas convergem em movimentos contemporâneos de consumo de drogas e
assim por diante que têm o propósito de produzir no nível individual precisamente
experiências de expansão e engrandecimento como no nível intelectual um homem.
digamos, por exemplo, Comte, poderia experimentar sem tomar drogas e, como o
fundador da nova religião da humanidade, se expandir para o substituto de Cristo. Isso
também pode ser feito por meio de LSD ou algo parecido.

Com isso, quero agora fechar, não para sempre, não no sentido de que chegamos à
última palavra. Podemos analisar esses problemas hoje porque, com aproximadamente
duzentos anos, se não mais, [dessa] revolta moderna específica, as [formas] seguiram seu
curso e tornaram-se inteligíveis. E não apenas hoje; já há cem anos, como você vê em
casos como Paraísos Artificiais de Baudelaire, sabia-se qual era o problema com pessoas
desse tipo. Mas hoje sabemos muito melhor; e temos o que não há cem anos atrás, os
instrumentos intelectuais para analisar os estados que tentei explicar aqui. Se alguém
formulasse o problema, talvez fosse necessário falar – o que eu expliquei na primeira
palestra – a realidade plena, como está presente na experiência primária do cosmos.
Sempre que ocorre uma diferenciação, como a diferenciação da consciência, há o
perigo de que partes da realidade que não estão tanto no foco de interesse como a realidade
da consciência recém-diferenciada [seja] de alguma forma recuada para um pano de fundo
e não permaneçam no campo total da consciência. Quando as realidades são
negligenciadas, elas se tornam perigosas porque, fora da existência, elas emergirão em
alguma forma inconsciente ou em deformações no nível consciente. Quando, no nível da
consciência, a parte mais importante, a base, é obscurecida pelo tipo de construções que
expliquei hoje, praticamente toda a realidade relevante é movida para fora do horizonte
consciente da simbolização, e você [consegue] tudo tipos de distúrbios mentais, que eu
não posso entrar neste momento. Em parte, eles se expressam em tantas doenças quanto
foram analisadas, por exemplo, por Jung em sua versão da psicanálise. (As palestras de
Jung sobre religião, “As Conferências de Yale”, ou quaisquer outras obras de Jung, dão
exemplos interessantes do tipo de distúrbios causados pelo obscurecimento de setores da
realidade sob condições modernas).

Todos esses problemas são bastante conhecidos hoje em dia. Tudo tem a ver com a
estrutura da realidade. E o problema que enfrentamos hoje na ciência é a recuperação da
estrutura da realidade para saber que partes da realidade faltam em nossa imagem
contemporânea da realidade e como reintroduzi-las para sair dessa deformação mental
peculiar que, em alguns casos, pode assumir a mesma forma dos sonhos por meio de
intoxicação ou uso de drogas.

Muito obrigado a todos.

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