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As relações entre linguagem e realidade


A partir do momento em que Kant isolou os produtos do conhecimento e os explicou como
sendo criações do nosso aparato cognitivo, isto marcou a modernidade e a pós-modernidade,
que têm como um dos seu traços principais um abismo entre realidade e linguagem (ou
pensamento). Kant achava que do mundo exterior apenas tínhamos experiências sensíveis, mas
estas chegavam caóticas, sem forma alguma. Seria a nossa mente a ordenar aquilo, mas sem
garantias do resultado corresponder a algo do mundo exterior.
O hiato entre pensamento e realidade já vinha de Descartes, que com a sua dúvida sistemática
punha tudo em dúvida menos o eu que fazia tal operação. Assim, criava-se o abismo entre esse
eu e a realidade. David Hume foi mais além e disse mesmo que não encontrou forma de provar a
existência de um eu que se pensa, apesar de acreditar na sua existência. Ele levou a sério o eu
cartesiano mas percebeu que o eu que se pensa não prova, só por isso, a sua própria
substancialidade. Podem ser apenas estados momentâneos que estão aqui envolvidos. Então,
em Hume já é mais do que um hiato entre pensamento e realidade, é um fosso entre o homem
enquanto sujeito pensante e o homem enquanto sujeito existente. Mais tarde a psicanálise veio
dizer que a verdadeira substância é inconsciente, é o id. Mas tudo ainda ficou mais etéreo com a
linguística moderna, para a qual todos os pensamentos são como se fossem meras convenções
linguísticas que devem prevalecer sobre a percepção de realidade. A separação entre
pensamento e realidade ficou radicalmente afirmada no desconstrucionismo, que diz que aquilo
que pensamos saber não passa de uma combinação de palavras que montamos mentalmente e
que realmente só sabemos o que diz o dicionário e a gramática, sendo tudo o resto suposição ou
imaginação. 350
Toda esta linha de pensamento não apenas tem um evidente carácter patológico como devia
logo suscitar a questão de saber se todos estes filósofos acreditaram no que diziam ao ponto de
ajustarem em conformidade as suas acções na vida real.
Kant dizia que apenas temos conhecimento nos fenómenos e não da coisa em si, mas
percebemos que escreveu livros para compreendermos a sua filosofia em si e não apenas o seu
aspecto fenoménico.
David Hume dizia não ver uma causa quando uma bola de bilhar se move e embate noutra, via
apenas dois momentos. Na realidade, ele viu um facto único, mas depois seccionou
abstrativamente os pedaços, porque não é verdadeiramente possível dizer onde termina o
movimento da primeira bola e começa o da segunda. A continuidade do processo é o que
chamamos de causa, mas como Hume operou abstractivamente um corte, ele não conseguia ver
causa alguma. Obviamente que o que ele fez foi inverter a história do evento.
Vemos a linguística moderna afirmar que a estrutura da linguagem nada tem a ver com o mundo
exterior. Mas se observarmos com alguma atenção, vemos que quase todas as línguas ocidentais
têm uma estrutura de sujeito, verbo e objecto, e que corresponde precisamente à estrutura de
qualquer facto ocorrido, mesmo no caso de uma acção reflexiva, em que o mesmo indivíduo é
sujeito e objecto, embora sejam papéis distintos na acção (a diferença fica brutalmente
evidenciada no caso do suicídio). Para certos linguistas isto é apenas uma projecção, mas se não
conseguíssemos fazer uma distinção de sujeito, acção e verbo numa situação física também não
iríamos conseguir distinguir estes termos na gramática pura. E também sabemos distinguir
perfeitamente o que é fazer uma coisa do que é dizer fazer essa coisa. A linguagem só ganha
autonomia enquanto objecto depois de um grande esforço de abstracção, porque naturalmente
sempre esteve junta à realidade. Se percebemos algo da realidade é porque ao mesmo tempo já
percebemos ali implícita uma estrutura gramatical e lógica. Podemos também fazer uma
reflexão posterior sobre o que fizemos e considerar apenas os nossos actos mentais separados do
facto, mas é uma separação que não existe em si mesma. O que a linguística faz é inverter isto:
começa por considerar que a separação é real e depois conclui que a junção é uma projecção.
A estrutura da linguagem é a própria estrutura da realidade em “miniatura”. A adequação da
linguagem à realidade não pode ser completa, porque não podemos saber tudo, e do que
sabemos apenas conseguimos dizer uma pequena parte. Isto não é uma inadequação
fundamental mas apenas um coeficiente de erro derivado da incompletude, que não é tanto da
linguagem mas mais da nossa condição de seres mortais. Cada um de nós tem um conjunto de
experiências limitado e apenas pode falar uma parte do que sabe, mas isto não limita o que
outros podem saber e dizer e menos ainda limita o que Deus sabe.
O físico David Bohm, no livro Totalidade e Ordem Implícita, diz que o único tempo verbal
admissível seria o gerúndio, porque só vemos processos. Se assim fosse, não haveriam acções
terminadas. Tudo o que conhecemos tem uma estrutura temporal, e ela mesma exige uma
diferenciação entre substância e acção: o agente é uma substância que permanece a mesma
durante a acção. Esta diferenciação implica a necessidade de uma diferenciação gramatical de
sujeito e verbo. Então, as estruturas fundamentais da gramática e da lógica estão imbricadas na
própria estrutura da realidade.
O facto já tem na sua estrutura a possibilidade da sua própria percepção, ao menos teórica. Além
disso, qualquer acção que afecte um objecto introduz novas informações nele, 351
ou nada teria ocorrido. Sendo a percepção a recepção de uma informação, então, ela já é
inerente à estrutura da acção.
Dizia Heráclito que “tudo flui”, e isso implica que apenas podemos fazer afirmações literais
sobre a estrutura da realidade na forma de narrativas. Somente de forma analógica podemos
expressar dados constantes e permanentes. O sujeito tem uma certa permanência em relação à
acção ou nem conseguíamos perceber o que aconteceu. Numa frase, o sujeito é tomado como se
fosse permanente, mas é uma constância relativa, dado também ele estar continuamente se
transformando. Podemos, então, descrever o mundo de duas formas: pela narrativa, imitando a
estrutura temporal da acção; ou de maneira descritiva, em que todo o transcurso temporal é
colocado numa moldura eterna. Mas a moldura eterna não é invenção nossa, na realidade só
podemos ver as coisas pelo aspecto temporal porque as conseguimos ver na eternidade. Por
mais ampla que seja a narrativa, ela é sempre incompleta e apenas a sua visão na escala de
eternidade garante o seu encaixe na realidade, o que também dispensa as narrativas de terem de
ser completas. A eternidade é o “lugar” em comum que temos com outras pessoas e que
possibilita que elas confrontem a nossa narrativa com outras narrativas e com a escala de
eternidade.
A totalidade do acontecer é a narrativa divina, que engloba tanto a formação de galáxias como o
rolar de um minúsculo grão de areia monte baixo. Todas as nossas narrativas são incompletas e,
por isso, apenas parcialmente verdadeiras ou só verdadeiras analogicamente. Em qualquer
narrativa são omitidos incontáveis detalhes e acidentes que estiveram de estar presentar para
que se desse o facto concreto. Apesar de não podermos incluir todo este material na nossa
narrativa, se não estivermos abertos para ele vamos confundir o acontecimento com a narrativa
verbal. O que garante a realidade das nossas narrativas é a abertura para a narrativa divina,
onde toda a narrativa humana decorre e se pode completar. Ou a eternidade abrange tudo ou ela
não é eterna de forma alguma. Tudo está eternamente na eternidade, pelo que o abismo entre
tempo e eternidade só existe desde a perspectiva temporal. A nossa capacidade de fazer
previsões acertadas a partir de certos dados expressa esta abertura para a totalidade do
acontecer.
Deus não apenas faz esta narrativa total como também criou uma sua forma verbal com a
Revelação. Diz Cristo que os céus e as terras passarão mas as palavras d’Ele não. O guiamento
fundamental para compreender a realidade é o texto da Revelação, que é uma versão abreviada
da narrativa divina. O texto revelado é verdadeiro quando se prolonga em acontecimentos que
não estão no texto mas encontram-se na narrativa divina. Então, o que garante a veracidade do
texto não é a avaliação dos teólogos mas a acção divina no mundo observável. Se existe uma
sequência de milagres inteiramente coerentes com o texto da Revelação, isso atesta que esta veio
de Deus. O milagre não pode ser entendido como uma ruptura das leis naturais ou como um
acontecimento extraordinário. Ele tem uma coerência total com o texto da Revelação, e tem de
ser considerado na sua totalidade, sem deixar algum aspecto de fora. Logo, não tem sentido
isolar os aspectos correspondentes às várias ciências e estudá-los isoladamente, porque o
carácter miraculoso revela-se precisamente na conjunção inseparável dos vários aspectos. Sem o
senso do facto concreto não é possível compreender um milagre, que é uma conjunção de
factores essenciais e acidentais absolutamente inseparáveis.
A narrativa tradicional cristã foi substituída por outra narrativa na modernidade, que diz que os
factos de ordem material acontecem por si sem que exista alguma causa transcendente. Assim, o
mundo material à nossa volta já não tem mais nada a ver com o que 352
pensemos dele. Os produtos culturais (mitos, lendas, obras literárias, etc.) passam a ser vistos
apenas como processos interiores alheios à realidade do mundo externo. Só a ciência moderna,
através de Newton, teria dito pela primeira vez algo a respeito do mundo exterior. Obviamente
que esta narrativa moderna é falsa. Não teria sido possível aos seres humanos viverem durante
milénios se o pensamento deles não tivesse ligação nenhuma à Natureza e se esta nada
comunicasse.
Na realidade, a estrutura do pensamento e da linguagem humana tem uma ligação íntima e
profunda com o acontecer externo. Nada é totalmente externo ou interno, que são conceitos que
apenas reflectem uma diferença relacional e não são formas diferentes da substância, como
pensava Descartes, para o qual havia uma substância pensante e uma substância extensa. A
actividade mais constante do ser humano é perceber significados do mundo exterior, e é disso
que se constituem os sistemas mitológicos que aparecem em todas as culturas. Os sistemas
mitológicos são verdadeiros no sentido em que expressam algo da relação profunda entre a alma
humana e o mundo exterior. A narrativa cristã também é mitológica, dado que tem muitos
significados, mas ela ajusta-se à realidade mediante conteúdos factuais que continuam
ocorrendo. A concepção científica da Natureza também faz parte de um sistema mitológico,
apenas com a diferença de que este escondeu as suas origens e os seus fins, que visavam
substituir a narrativa cristã. α96

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