You are on page 1of 2

[Aula 96]

287. A poesia lírica e a transição do discurso poético para o discurso filosófico


O próprio da poesia lírica é expressar e fixar determinadas vivências da maneira mais fiel e
expressiva possível. Remete para certos momentos, dos quais em geral não é legítimo retirar
conclusões teológicas ou filosóficas. Cristo disse para nós arrancarmos o nosso olho direito
quando algo nos escandaliza, e podemos fazer uns versos sobre isto para expressar o como este
“preceito” é insuficiente para nós, mas sem que isso signifique que estamos realmente
discordando de Cristo. O olho direito significa tradicionalmente a inteligência, a consciência
reflectida, o pensamento lógico, assim, o que Cristo disse (que é um óbvia figura de linguagem)
pode ser entendido como um apelo para não ficar a racionalizar sobre determinadas coisas que
nos pareceram escandalosas. Mas Ele não disse que isso era fácil de fazer, nem que nos iria
alhear do foco problemático, que continua a entrar por outras vias. A poesia lírica pode exprimir
estas dificuldades e a Bíblia tem vários momentos líricos, como o 349
caso de Cristo na cruz perguntando ao Pai porque o tinha abandonado, ou o discurso de Jó
protestando contra Deus.
A literatura confina-se à expressão da experiência humana, e quando tenta ir além disso o
discurso muda, por exemplo, pode tornar-se filosófico. Mas a transição entre uma coisa e outra é
problemática e nunca directa. A filosofia não pode apenas abranger momentos tomados
isoladamente, vai ter que confrontar várias experiências contraditórias e tentar abrange-las
dentro de um esquema interpretativo geral. Não existe um número definido de elementos que é
necessário ter em conta numa investigação filosófica, por isso esta sempre prossegue – e mesmo
sem novos elementos, o filósofo prossegue numa meditação contínua sobre o material que já
tem em mãos, que pode ser sempre alvo de reflexão sobre novos ou mais vastos pontos de vista
–, ao contrário da obra literária que é caracterizada precisamente por ter uma forma acabada.
Hoje parece que a função do filósofo é produzir obra escrita, mas isso é uma exigência da
profissão filosófica quando enquadrada na universidade, em que o sujeito se vê obrigado a
mostrar resultados, tal como fazem os professores de física ou de biologia. Mas é sintomático
que Sócrates não tenha deixado nada escrito e que ainda no século XX o filósofo Petre Țuțea
também se tenha resumido quase inteiramente ao ensinamento oral. A própria realização de
livros é muito lenta, sendo a exposição oral muito mais rápida. Alguns dos trabalhos mais
importantes de Hegel, Husserl ou Bernard Lonergan têm por base transcrições de aulas. α96

You might also like