A perspectiva do filósofo face à perspectiva do agente político
No debate entre Olavo de Carvalho e Aleksandr Dugin estão em causa duas perspectivas muito distintas. Dugin tem um certo ponto de vista guenoniano, mas modifica-o para servir o seu plano essencial, que não é de natureza intelectual ou filosófica mas política. Uma obra filosófica tem de ter alguma chave que lhe dê unidade. No caso de Olavo de Carvalho, a sua preocupação fundamental é encontrar a condição fundamental para que a consciência humana individual possa alcançar a verdade e desfrutar do dom do conhecimento objectivo. Zubiri e Schuon insistem que o próprio da inteligência humana é a objectividade, e se não a buscamos estamos abaixo da condição humana. Um segundo interesse prende-se com a relação entre a consciência humana e a divindade, ou seja, a consciência perante o absoluto. Para René Guénon a consciência faz parte da Maya (ilusão que constitui o universo, existente mas espiritualmente irreal dado estar em constante mudança). Para o iniciado, a consciência pode se converter em conhecimento, este transforma-se no ser, que é depois absorvido no absoluto mediante o processo da divinização. Ora, a existência das almas imortais, que duram mais do que todos os cosmos existentes e possíveis, contradiz isso. Além disso, podemos lembrar o catecismo, que diz que Deus fez o mundo para o ser humano, logo, o homem está acima do cosmos e é, de certo modo, a chave de abóboda de toda a criação. O início de Génesis – com os conflitos de interesses entre Adão e Eva, depois entre Caim e Abel – já mostra que se trata ali do homem enquanto indivíduo, não do homem considerado abstratamente enquanto espécie. Daqui podemos concluir que a consciência humana ou a alma individual humana é um elemento estruturante do cosmos. Na hierarquia de realidade, o mundo das almas humanas obviamente que está abaixo de Deus, mas de certo modo encontra-se acima do mundo dos anjos, porque estes possuem conhecimento divino mas não liberdade divina, sendo o livre arbítrio humano expressão directa do poder divino. A consciência humana é geralmente tida em muito baixa conta, não só por seitas iniciáticas, que aspiram a estados “superiores”, mas também por materialistas e behavioristas, que dizem que a consciência nem sequer existe, é apenas uma ilusão nascida de mecanismos físico-químicos. Mas se a consciência humana é um quase nada, qual a razão de se terem feito tantos esforços no século XX para policia-la, controla-la, oprimi-la e neutraliza-la? Todas as perguntas políticas que Olavo de Carvalho fez originaram-se daqui, o que remete para as preocupações de primeira ordem de carácter eminentemente filosófico. Reflectindo a liberdade humana o poder do próprio Deus Pai, a consciência humana é imprevisível, criativa, não obedece a leis, logo, ela possibilita a desobediência e a rebelião, inclusive a possibilidade de nos revoltarmos contra Deus. 344 A ideia de liberdade metafísica humana ao longo dos tempos traduziu-se em liberdade política, que é uma liberdade de consciência. Na constituição americana manifestou pela primeira vez o princípio da liberdade política, baseado num princípio bíblico, traduzido em leis e instituições. Então, a liberdade de consciência, tal como integrada nesta constituição e nas suas instituições, não veio do iluminismo mas de fontes bíblicas. A Revolução Francesa já deve muito mais ao iluminismo, mas a consequência imediata dela foi a ditadura de Napoleão, seguida de golpes, revoluções e ditaduras por quase cem anos. O ponto de vista de Aleksandr Dugin é essencialmente geopolítico, vindo de uma escola de autores como Mackinder ou Houshofer. Para estes, existe um conflito perene entre “potências terrestres”, como a Rússia e a China, e as “potências marítimas”, que incluiriam os EUA e vários países ocidentais. As potências terrestres seriam autoritárias, centralizadoras, voltadas para a ordem tradicional e para objecivos supra-individuais. As potências marítimas usavam o poder naval para o comércio e para interferir em vários locais do mundo com o objectivo de espalhar as ideias de liberdade individual e de materialismo baseadas no iluminismo. Diz Dugin, no livro A Grande Guerra dos Continentes, que já na antiguidade se via esta clivagem, havendo uma “civilização marítima” encabeçada pela Fenícia e por Cartago, a que se opunha o império terrestre romano, tendo depois o embate chegado a um desfecho nas Guerras Púnicas. Na modernidade, a “civilização marítima” foi primeiro encabeçada pela Inglaterra, a “senhora dos mares”, e depois pela América. Daqui se teria originado um tipo particular de civilização de mercado capitalista-mercantil, fundada sobre interesses económicos e materiais e sobre os princípios do liberalismo económico. Para Dugin, o que carateriza a civilização marítima é sobretudo o primado do económico sobre o político. Roma, por seu lado, tinha uma “estrutura autoritária-guerreira fundada numa dominação administrativa e numa religião civil”, então, seria o primado do político sobre o económico. A sua colonização teria sido terrestre e feita com a assimilação dos povos submetidos, que depois teriam ficado “romanizados”. Na História moderna, as potências terrestres foram sobretudo os impérios russo, alemão e austro- húngaro. Acrescenta Dugin que Mackinder demonstrou que, nos últimos séculos, a “atitude marítima” equivale ao atlantismo, e as “potências marítimas” são sobretudo os países anglo- saxónicos. A atitude eurasiana é expressa, antes de tudo, pela Rússia e pela Alemanha, as mais fortes potências continentais, com preocupações geopolíticas, económicas e, acima de tudo, com uma visão de mundo completamente opostas às da Inglaterra e dos Estados Unidos da América. Para começar a analisar esta visão de Dugin, basta notar que a União Soviética teve a sua zona de influência em quase todos os continentes. Como pode ter tido uma potência terrestre uma influência tão grande na américa latina? A noção de “potência terrestre” não faz sentido nos termos em que é posta. Historicamente é também inegável que a concepção de liberdade económica é católica, mas concretamente ibérica, só não se tendo realizado nestas paragens em grande escala devido a várias contingências históricas, incluindo os conflitos com os ingleses. Isto antecedeu muito o iluminismo e as iniciativas anglo-saxónicas. Mas há logo uma outra confusão montada aqui em cima, porque a concepção da liberdade política não tem nada a ver com o individualismo, entendido como pura busca do interesse individual, é antes uma decorrência da própria letra dos evangelhos. Depois, onde está a inspiração divina dos governos autoritários da Rússia e da Alemanha e o que fizeram eles para cristianizar o mundo? Os primeiros povos a serem cristianizados foram ingleses e irlandeses e depois estes partiram para cristianizar o resto. A 345 Alemanha cristianizou-se tardiamente e logo explodiu na Reforma, sendo dela a pátria das doutrinas mais anti-cristãs que existem, as de Hegel, Marx ou Nietzsche. Também foi criação alemã a tentativa de dissolver o texto bíblico em considerações historiográficas, quase sempre imaginárias. Em contrapartida, a evangelização feita por seitas protestantes na américa trouxe ao mundo algo bem diferente do individualismo. Dugin diz, noutro escrito, que é preciso ler o livro A Sociedade Aberta e seus Inimigos, de Karl Popper, para compreender o conflito entre atlantismo e eurasianismo. Popper diz que a sociedade aberta é aquela na qual não há absolutos, assim, não há nenhuma verdade acima dos interesses e preferências dos indivíduos. A esta noção de sociedade aberta sem transcendência Dugin contrapõe a sociedade tradicional, que para ele é representada pela Rússia, pela Alemanha ou pela China. Na realidade, a ideia de sociedade aberta é algo que os globalistas deram importância e querem impor ao resto das pessoas contra vontade delas. Foram necessárias muitas décadas de campanhas de propaganda, de alteração de mentalidades e de destruição de consciências para fazer passar a ideia de que o Estado mais que laico deve ser anti- cristão, porque essa ideia não tem qualquer raiz na tradição americana, antes são os inimigos dos EUA que lhe querem impor tal coisa. O efeito foi sobretudo notório na política externa americana, que basicamente se limitou a trocar ditadores amigos por ditadores inimigos (Fulgência Batista por Fidel Castro, Shiang Kai-Sheck por Mao Tse Tung, Lon Nol por Pol Pot e assim por diante), além do esforço também exercido para quebrar o poder das potências colonias como a Inglaterra, França, Portugal ou a Espanha, entregando as antigas possessões a poderes comunistas. Toda a elite globalista tem feito esforços num sentido claramente anti- americano, favorecendo ao mesmo tempo o movimento comunista internacional, que faz parte do esquema eurasiano de Dugin. Os livros de Anthony Sutton mostram como os banqueiros americanos ajudaram bastante o comunismo e o nazismo. Portugal e Espanha foram as primeiras potências marítimas da era moderna, mas elas não fazem parte do esquema anglo- saxónico, antes foram destruídas por ele. As noções de “potências marítimas” e de “potências terrestres” podiam ser, em teoria, usadas como símbolos, servindo de instrumentos de interpretação da realidade. Mas para isso, os símbolos tinham de abranger os factos conhecidos e ainda dar-lhes um sentido, transcendendo- os. Mas neste caso tratam-se de noções que ignoram a quase totalidade dos factos, então, não são símbolos mas estereótipos usados para fins de propaganda. Na concepção de Dugin aparece também uma confusão entre o colectivo e o supra-individual. Como as ditas potências terrestres são centralizadoras, hierárquicas e autoritárias, Dugin faz equivaler estes atributos a um desígnio transcendente. Colectivo não é um conceito superior a individual e nem vice-versa, são dois lados da mesma coisa e o colectivo é-o de indivíduos. São conceitos de sentido quantitativo, mas quando falamos de supra-individual já falamos do espiritual, de algo que é supra quantitativo. A contraposição entre individual e colectivo não é, como quer Dugin fazer crer, uma contraposição entre imanente e transcendente. α94