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Sessão Temática 13

Sacrifício, xamanismo e prosperidade:


elementos para um marco interpretativo
do fenômeno (neo)pentecostal
Joe Marçal Gonçalves dos Santos *
Carlos Augusto de Azambuja Alves **
Jéferson Ferreira Rodrigues ***

Introdução

Desde a década de 1960, igrejas cristãs tidas como históricas, cuja


presença na América Latina está relacionada especialmente à colo-
nização – como é o caso do Catolicismo Romano – e à imigração – o
Protestantismo –, foram marcadas profundamente pela Teologia da
Libertação. Esta tomou da ideia de “opção pelo pobre” para expressar
diretrizes fundamentais de uma autocompreensão teológica que evi-
denciava uma revolução epistemológica ehermenêutica, desdobrando-
-senuma ética e práxis libertadora, e mesmo inspirando uma nova or-
ganização eclesial. A relação destas igrejas com a sociedade, no âmbito
das pastorais sociais e da diaconia, ainda hoje preserva motivações de
uma visão na qual os pobres deixam de ser objetos de ação caritativa, e
tornam-se sujeitos preferenciais de realização do Reino de Deus, isto é,

* Doutor em Teologia, Pós-doutorando (PDJ-CNPq) no Programa de Pós-Graduação


em Antropologia Social da UFRGS, Porto Alegre, RS. E-mail: jmgsantos@yahoo.com.br.
** Mestre em Teologia pela PUCRS, Porto Alegre, RS. E-mail: c_azambuja@yahoo.
com
*** Bacharel em Filosofia, Mestrando em Teologia no Programa de Pós-Graduação em
Teologia da PUCRS, Porto Alegre, RS. E-mail: jeferson.ferreira@acad.pucrs.br

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sujeitos históricos que protagonizam autodeterminadamente proces-


sos de transformação social, através de um empoderamento político.
Tal visão, por sua vez, repercute em várias esferas sociais da América
Latina, motivando releituras do sistema político e econômico valendo-
-se da ótica da libertação gestada no âmbito de movimentos sociais e
revolucionários, somando um princípio teológico à resistência e busca
de superação das relações de dependência econômica e cultural que se
mantêm desde o processo de colonização das Américas.
Neste mesmo período, por sua vez, a América Latina torna-se
contexto fértil para a gênese e surgimento de uma nova expressão
do Cristianismo, a saber, o fenômeno pentecostal e neopentecostal1
configurando-se como uma nova e desafiadora realidade eclesial. Este
fenômeno cresce expressivamente no decurso dessas décadas, conso-
lidando hoje o que, do ponto de vista da teologia e das ciências sociais
da religião, ganha a forma de um campo religioso específico, que se
desdobra do Cristianismo e dele difere em aspectos estruturais. Con-
forme os últimos sensos demonstram, ainda que haja uma incidência
importante deste desdobramento na classe média e alta, trata-se de
um discursoe um conjunto de práticas que têm uma aderência expres-
siva às camadas sociais mais empobrecidas. Um dos aspectos que mais
se destaca nesse processo são as formas pelas quais o discurso e as
práticas (neo)pentecostais transfiguram aspectos materiais e ideoló-
gicos da cultura contemporânea, através de uma economia simbólico-
-religiosa orientada à imanescência, e muito eficaz em torno principal-
mente da cura e da prosperidade como experiências de salvação.

1 Doravante, (neo)pentecostal, conforme nossa justificativa em 3.3, sobre a noção


de “prosperidade”.

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A ambiguidade entre estes dois processos podem ser evidencia-


dos em diferentes pontos. Embora sincrônicos, são gêneses que se
dão sintomaticamente de forma paralela, mantendo-se isoladas
senão conflitantes. A partir do momento em que a Teologia da Li-
bertação arrefece frente a uma situação cultural nova que lhe exige
repensar e adequar sua autocompreensão, no decorrer dos anos de
1990,2 igrejas históricas se voltam para a questão do pentecostalis-
mo sobretudo ao reconhecer em seu interior movimentos renovado-
res imbuídos pelo “carisma” pentecostal. Os efeitos disso em cada
instituição são diferentes. Mas uma vez instalados internamente, de
uma ou outra maneira esses movimentos fazem o (neo)pentecosta-
lismo deixar de ser um problema apenas apologético e ser também
uma questão política.
A questão que surge desde este viés institucional gira em torno,
principalmente, da eficácia que move o fenômeno. Por ocasião de uma
solicitação de consultoria por uma instituição internacional eclesiás-
tica de serviço e desenvolvimento no “terceiro mundo,” a pergunta
que nos fora feita revelava o custo financeiro e simbólico em vista de
uma série de experiências com projetos que de alguma forma sofreram
implicações do crescimento (neo)pentecostal das últimas décadas na
América Latina: Por que enquanto estivemos motivados pela Teologia da
Libertação, nós agimos optando pelo pobre, e este quando opta o faz pela
prosperidade e não pela libertação?

2 Um estudo profundo desse processo é tese de doutorado BOCK, Carlos Gil-


berto. Teologia em mosaico: o novo cenário teológico latino-americano nos
anos 90, rumo a um paradigma ecumênico crítico, Escola Superior de Teolo-
gia, 2002. Disponível na internet em http://tede.est.edu.br/tede/tde_busca/
arquivo.php?codArquivo=412, data de acesso: 22/09/2013.

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Tomando esta questão como motivação inicial de investigação logo


chegamos ao que se nos coloca como basicamente um problema antro-
pológico. A reflexão teológica desenvolvida sobre o fenômeno (neo)
pentecostal, parece privilegiar a análise do discurso e a crítica a sua
teologia, cuja uma das cristalizações foi a chamada “teologia da pros-
peridade”. Esta define especificamente a discursividade presente na
chamada terceira onda do pentecostalismo – o neopentecostalismo –,
quando, porém,o desdobramento do fenômeno efetivamente demarca
uma autonomia em sua dinâmica e forma em relação ao Cristianismo,
ampliando e exigindo unidades de análise mais significativas – consi-
derando pelo menos três aspectos:
a) A apropriação da tradição bíblica, nesse contexto, além de ser cen-
trada no Antigo Testamento, é feita especialmente numa dinâmica
de leitura e testemunho, transitando facilmente da escrita para a
oralidade – que implicações isto tem para a produtividade de inter-
pretação e subjetividade neste contexto?
b) As práticas e formas ritualísticas bebem numa matriz mítico-
-simbólica mais afeita ao universo afro-brasileiro e indígena que à
tradição cumulativa cristã – frente a isso, não se trata apenas de
analisar forma e estrutura dessa diferença, mas o que ela constitui
efetivamente de uma alteridade em termos de modo de existência,
pensamento, linguagem etc; e
c) A mundanizaçãoda economia de salvação, correlata à economia
capitalística e agenciadora de cura e prosperidade, tão criticada a
ponto de tornar toda essa expressão algo vexatório no discurso aca-
dêmico e eclesiástico, o que efetivamente nos sinaliza acerca deste
“mundo da vida”, a ponto de mobilizar tamanha atuação de sujeitos
e engajamentos?

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Assim, estas questões nos dão um horizonte de investigação, na me-


dida em que o problema motivador inicial põe-se à prova. Nossa intui-
ção foi então apostar numa abordagem que nos possibilitasse desviar
de reduzir a questão a uma proposição crítica ideológica e/ou dogmáti-
ca acerca do (neo)pentecostalismo para o fazer desde uma perspectiva
compreensiva da realidade social implicada. Isto, de imediato, instalou
nosso problema no horizonte de debates acerca da relação entre mo-
dernidade e tradição: traços modernizantes do (neo)pentecostalismo
– por exemplo, a produção e o consumo midiático gospel e a mediação
simbólica do valor monetário em suas práticas),  são assumidos desde
referentes tradicionais, isto e, afeitos a uma atitude pré-reflexiva, mais
apta à repetição ritual e à eficácia mítico-simbólica que a uma ação ra-
cional e racionalizante tal como prefigurado no paradigma econômico
de compreensão a partir do mercado.
ALGRANTI (2009, p.57s) aponta nesta direção ao fazer a critica da
prevalência de um paradigma modernizador nos estudos do pentecos-
talismo na América Latina, representado pela abordagem principal-
mente da racional choicea partir da metáfora de mercado religioso. O
limite dessa abordagem esta em reduzir a compreensão do conjunto de
práticasenvolvidas no processo social de aquisição de crenças, valores
e representações religiosas a uma disposição racional voluntarista, as-
sociada a uma consciência que avalia, descarta e aceita conforme parâ-
metros de uma economia moderna, e desconsidera a dimensão repeti-
tiva que converte práticas em costumes e costumes em crenças, numa
dinâmica própria ao que Bourdieu define como habitus. 
Resulta disso pelo menos dois problemas. Além de uma dificuldade
de compreensão desse processo social relativo a crenças, essa perspec-
tiva estaria refém de uma epistemologia ideologicamente orientada

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pelo paradigma modernizador, universalizando uma racionalidade


condicionada histórica e culturalmente, estendendo-a a diferentes se-
tores da vida e em quaisquer contextos sociais. O segundo problema
torna-se específico ao (neo)pentecostalismo. Os estudos sociais da re-
ligião sob esse paradigma pouco ou nada tem ajudado a compreender
os atores sociais que não apenas estão implicados numa discursividade
(a chamada teologia da prosperidade), mas dão o suporte e incorpo-
ram o próprio fenômeno. Daí que nosso foco se volta para a ação ou
opção destes sujeitos de crença: como agem, o que os move, sob que
eficácia consolidam suas práticas? Em outras palavras, mais que subs-
tancializar a questão em torno dos conceitos e doutrinas teológicas en-
volvidas, nos parece mais significativo investir na abordagem da ação e
no exercício da opção dos sujeitos-atores deste contexto.

2. Notas de diário de campo e considerações


metodológicas

Nesse projeto foi escolhida uma metodologia baseada na pesquisa


etnográfica, por ser a que mais se adequa à problemática a ser estuda-
da, pois privilegia a ação e práticas de sujeitos-atores. A ida a campo
tem como método a observação, a interação e a participação no coti-
diano de um grupo de catadores e ex-catadores de resíduos da comu-
nidade Santíssima Trindade, cujo olhar está orientado às influencias
da Teologia da Libertação e do Pentecostalismo junto à história dessas
pessoas. Uma temática socioambiental, focada na atividade dos cata-
dores as suas rotinas e descontinuidades nos bastidores desse espaço
de trabalho. A lógica das CEBS e a lógica da teologia da prosperidade,

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a influência de ambas na organização do trabalho e nas relações in-


ternas e externas ao espaço de trabalho. Busca-se um olhar de perto e
de dentro, destacando a questão urbana, no qual esse fenômeno esta
inserido, as relações na cidade, à contemporaneidade, conforme Mag-
nani(2002, p.3) “o método etnográfico não se confunde nem se reduz a
uma técnica, [...] pode usar ou servir-se de várias, conforme as circuns-
tancias de cada pesquisa”.
O fenômeno a ser aqui estudado está situado dentro dessa lógica
urbana do contexto cotidiano dos grandes centros urbanos. Nessa ida
a campo já se parte da constatação da forte participação do pentecos-
talismo junto às comunidades periféricas, nas mais variadas formas
de organização enquanto igrejas, essas com suas mensagens e inten-
cionalidades na busca de novos adeptos, usando nessa perspectiva vá-
rias técnicas de abordagens, convencimento e cooptação. Tem-se uma
perspectiva etnográfica enquanto via de organização dos fragmentos
das percepções, das descontinuidades, nas narrativas, nos diálogos
que já se estabeleceram e que vão se estabelecer.
Situando historicamente e geograficamente o local desta pesqui-
sa: a comunidade eclesial de base da Vila Santissima Trindade (a Vila
Santíssima ou Vila Dique) era e ainda é uma comunidade periférica no
entorno da cidade de Porto Alegre. Ali sempre houve sérias dificulda-
des na infraestrutura; localizava-se aos “fundos” do aeroporto Salgado
Filho, motivo pelo qual em novembro de 2011, os moradores ainda
estavam em processo de remoção para a região do Porto Seco, próximo
ao Sambódromo, zona norte de Porto Alegre. Essa referência de data
diz respeito a primeira visita ao “novo galpão de reciclagem”, situado
já no reassentamento das famílias removidas. Um dos motivos dessa
remoção ainda parcial era a duplicação da pista do aeroporto que, po-

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rém, hoje está suspenso em vista da possibilidade de mudança de local


do aeroporto, em detrimento de todo impacto social já provocado.
Nesse local, a rua pela qual circulavam inúmeros veículos de carga
e passeio era de difícil fluxo, cuja via cobre o dique construído para
contenção das cheias tanto do Rio Gravataí como do Rio Guaíba. Cabe
salientar que nessa comunidade sempre houveram muitos condutores
de veículos de tração animal (carroças) e os de tração humana (carri-
nhos). Uma das características que impressionavam e ainda impres-
sionam, porém em quantidade menor, em julho de 2013, da Vila San-
tissima Trindade/ Dique, é o volumede dejetos, detritos espalhados
ao longo da vila, em função do grande número de catadores sem locais
adequados para triagem, das criações clandestinas de animais, da pre-
cariedade da coleta de lixo realizada pela prefeitura, entre outras. São
milhares de toneladas de lixo produzidas diariamente em Porto Alegre
sem terem, boa parte, uma destinação adequada.
No início do trabalho de catação, e da organização desses mora-
dores em torno dessa atividade por parte da CEB local, o grupo reu-
nia aproximadamente vinte trabalhadores organizados juridicamente
numa associação, segundo relato Ir. AntonioCechin, um dos articula-
dores dessa organização e líder na CEB. Ao longo do tempo, a associa-
ção oscilou com o número entre 18 e 25 trabalhadores.
Uma questão importante a ser citada é que a origem de vários cata-
dores que trabalharam no Galpão da Vila santíssima Trindade é serem
eles procedentes do antigo Lixão da Av. Sertório, local onde eram le-
vadas toneladas de lixo diariamente até 1990sem haver qualquer tipo
de tratamento. As condições de trabalho eram as piores possíveis; as
pessoas ficavam expostas a todos os tipos de doenças e acidentes, in-
salubridade extrema.

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Cabe destacar, desse período, em relação a esse grupo de catado-


res que vêm a formar a associação, a família Fischer. Membros dessa
família trabalharam no lixão este mencionado acima, e depois foram
dos primeiros integrantes a participarem do início do Galpão de Reci-
clagem. Hoje, no atual Galpão localizado no local do reassentamento
das famílias, não há mais nenhum membro dessa família trabalhando,
embora residam alguns membros da família naquela vizinhança.
Em relação ao galpão, o espaço de trabalho de então, era rústico,
todo em madeira, com dimensões reduzidas, compactado entre a rua e
o arroio que passavapor detrás da construção. Arroio esse que, devido
ao acúmulo de lixo, era denominado de valão da Dique, acentuando a
compactação tão grande de resíduos que não era possível se ver a água.
Logo no início de seu funcionamento foi firmado uma parceria com o
Departamento Municipal de Limpeza Urbana(DMLU) para a entrega
das cargas proveniente da coleta seletiva de Porto Alegre.
Muitos fatos marcaram a existência desse espaço de trabalho e a
sua peculiar prática religiosa. Entre esses fatos esta o de ter sido uma
das primeiras referencias de um trabalho pastoral e uma organização
através da geração de renda das comunidades, essa prática na época,
em tratando-se de Porto Alegre, também aconteceu na região das Ilhas
de Porto Alegre e no bairro Rubem Berta, ambos com seus respectivos
galpões e formas de organização com semelhanças ao da Vila Santíssi-
ma Trindade. Uma questão que merece ser destacada é o da prioridade
enquanto posto de trabalho para as mulheres, uma vez que os maus
tratos e a discriminação eram extremos nessas comunidades. Esses lo-
cais eram uma espécie de refugio a essas trabalhadoras que buscavam
um local onde pudessem trabalhar dignamente e também buscar uma
proteção em relação a seus companheiros que em vários casos estavam

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envolvidos com o alcoolismo, drogadição e furtos.


Essa CEB teve como mentor e idealizador o irmão Marista Antônio
Cechin, conjuntamente com a sua irmã Matilde Cechine do leigo Jac-
ques Saldanha, foi criada no final dos anos 80, os idealizadores eram
todos militantes da Teologia da Libertação, nesse sentido a organiza-
ção era voltada para a aglutinação pastoral em torno da atividade da
catação-reciclagem de resíduos. A escolha da periferia da cidade para
esse e outros projetos semelhantes estava fundamentado na ida para
onde estava o pobre, o excluído, aquele que precisava ser libertado da
opressão, e a organização é o início desse processo junto às camadas
populares, tendo o método ver, julgar e agir como referência e media-
ção para reversão da problemática.
Em relação ao início e manutenção dessa comunidade eclesial, os
recursos eram oriundos do investimento pessoal do grupo, tendo na
sequência o aporte proveniente de instituições católicas, p.ex. Caritas
Internacional. Anos de investimentos tendo religiosos trabalhando di-
retamente no projeto. Outras organizações de pastorais estavam pró-
ximas em termos de atuação social e foram estruturadas junto a essa
associação, a partir do papel da Ir. Cristina (Carlista), cuja atuação teve
destaque na organização, articulação e gestão do trabalho junto ao gal-
pão de reciclagem da Vila Santíssima Trindade.
No auge do período em que a Igreja Católica estava atuando junto
ao Galpão haviam momentos de reflexões e orações quase todos os
dias, tendo uma celebração semanal na Capela Santíssima Trindade
que ficava ao lado do Galpão, nesse período sempre houve uma boa
afluência desses trabalhadores a Capela. Aproximadamente ao ano
de 2000, houve um incêndio no galpão, ocorreu uma destruição com-
pleta, inclusive dos equipamentos, nesse período foi organizada uma

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rede solidária entre poder público municipal, comunidade eclesial e


cooperação ecumênica – sendo que o maior aporte de recursos para a
reconstrução proveio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no
Brasil (IECLB). Na verdade, as relações ecumênicas foram um destaque
na organização e coordenação do projeto desde o seu início.
Outro fato que marcou esses anos de trabalho pastoral junto a Vila
Santíssima Trindade foi o afastamento da referência da organização,
tanto na questão do trabalho cotidiano da catação como na condução
pastoral da Ir. Cristina, que respondia como elo de coesão do grupo,
referência diária que estava junto ao povo no seu dia a dia, presen-
ciando e agindo na solução dos problemas de ordem organizacional e
espiritual.
Essa e outras lembranças trazem o ontem no hoje e dentro de um
resgate histórico essa perspectiva da memória, da busca na lembrança
dos fatos ocorridos e agora descritos estão certas “chaves” básicas para
as observações atuais. Nesse período pós-afastamento da Ir. Cristina,
começa uma transição significativa de pessoas do grupo para uma igre-
ja pentecostal avizinhada, onde a partir de 1 a 2 indivíduos participan-
tes do trabalho do galpão, vão influenciar o grupo e obter uma força
decisória na condução espiritual e política dos restantes. Estima-se que
em um determinado período 80% dos trabalhadores estariam ligados
a essa igreja. Esse é o aspecto central dessa pesquisa: a transiçãonesse
momento e as consequências no decorrer até o presente.
Com a remoção da comunidade, e a transferência do galpão para
ampliação da pista do aeroporto, nas novas instalações na região do
Porto Seco (Sambódromo), segundo informações de funcionários do
DMLU, não haveria mais nenhum trabalhador do grupo da Vila Santís-
sima no atual Galpão. Segundo Ir.AntonioCechin, contudo, em visita

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ao novo Galpão, em março de 2012, relatou que ainda há pelo menos


dois trabalhadores do antigo grupo lá. Em visita recente, em meados
de junho 2013, no novo galpão foi encontrada uma catadora remanes-
cente do grupo antigo, que trabalhava no galpão da Vila Santíssima
Trindade, inclusive sendo a mesma uma das participantes da Igreja
Pentecostal que atuava no antigo espaço. Essa associada tem se dispos-
to a relatar suas atividades no atual espaço de trabalho, bem como nar-
rar desdobramentos desde o antigo galpão; ela também tem ajudado
a reunir informações sobre outros associados que fazem parte desse
histórico e que residem no entorno do novo galpão, no Porto Seco.
O que se percebe nestas notasde diário de campo é a ênfase sin-
crônica de transições sofridas por essa comunidade que consiste do
público-alvo de um projeto de desenvolvimento e renda de uma antiga
CEB de Porto Alegre. É a percepção do pesquisador militante que ora
passa a figurar como um mediador e informante acerca desse proces-
so. O campo que temos hoje resulta desse histórico e já pudemos veri-
ficar que nele ainda esta bem presente uma memória desse processo,
mesmo porque a remoção dessa comunidade é algo que atravessa seu
cotidiano, pela maneira como nesse novo contexto se sofreuma adap-
tação – conforme relato de uma das trabalhadoras no atual galpão –,
com relação ao preconceito e violência que seus filhos sofrem na esco-
la, que se estende também a elas e familiares adultos – os “diqueiros”
do bairro...
Em nossa última visita ao campo, um relato nos foi dado particu-
larmente significativo. Disseram-nos que nem tudo é tão ruim assim,
porque no galpão anterior só conseguia trabalhar quem era “crente”.
Isso indica o que em algum momento se impôs no galpão  iniciado a
partir da CEB, que se fecha em torno de um grupo de outra pertença

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que a católica, e como nos foi dito, “tinha que ser crente de assem-
bléia”. Significativo é que no grupo, entre as líderes atuais da organi-
zação do trabalho no galpão, se encontra uma de nossas interlocuto-
ras principais, que se identificou como “sou da Assembléia mas estou
congregando na Deus é Amorporque não tem minha Assembléia aqui”. 
São dados que nos dizem muito pouco ou nada do que seja “pen-
tecostalismo” nesse contexto. Mas já nos apontam o caminho de um
afrouxamento de categorias que têm se sobreposto, de modo geral, nos
estudos correntes sobre o pentecostalismo no Brasil e na América Lati-
na. Estamos agora procurando nos valer de uma crítica e de referência
teóricos que permitam desviar desse obstáculo, rediscutindo a própria
questão motivadora da pesquisa e desconstruindo seus pressupostos,
nos questionando sobre a opção mesma que foi realizada nesse con-
texto, se é que foi, e o que teria efetivamente intencionado. Quer dizer,
o caminho que se nos abre é o de uma abordagem que delineie esse
contexto a partir de dentro, através de uma atitude etnográfica – to-
mando por base o que se tem chamado de um giro antropológico na
abordagem da religião na AL. 

3. Giro antropológico: parâmetros que nos indicam

O “giro antropológico em estudos sociais da religião” se define pela


proposição teórico-metodológica de ruptura com uma perspectiva
centrada na ação racional, privilegiando a abordagem de representa-
ções, práticas, símbolos e ritos religiosos através de metodologias e
técnicas próprias da fenomenologia e da linguística, fazendo com que
o dado empírico seja tomado desde uma perspectiva  realista simbóli-

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ca. (ALGRANTI, p.76). Através do procedimento etnográfico, se inves-


te numa aproximaçãoe não distanciamento dos atores que costuram
esse campo e cujas ações, tomadas como modos de engajamento no
mundo, são efetivamente os vetores do fenômeno em questão.
Considerando um conjunto de estudos realizados sob estes refe-
renciais, chegamos finalmente a três conceitos que nos ampliam o
horizonte interpretativo de elementos que nossa etnografia nos tem
convidado a pensar. Não se trata de tomar esses conceitos como deter-
minantes estruturais do campo, mas indicativos hermenêuticos que se
consolidam na interface com o campo.

3.1 Sacrifício
Na abordagem da ação, a estrutura e as performances em torno da
prática ritual em torno do dízimo ganha especial destaque desde a no-
ção de sacrifício.
Em “A violência da moeda”, AGLIETTA e ORLÉAN (1990, p. 54-
77) aplicam os passos da teoria do desejo mimético de René Girard à
história da economia monetária, a partir do que destacam três funções
da moeda:
a) Valor montante e quantitativo, numérico de um determinado pro-
duto ou coisa;
b) Valor de circulação e troca;
c) Valor de entesouramento, reserva.
Cada uma destas funções estaria correlacionada a um dos três ní-
veis ou passos da teoria mimética e sacrificial de Girard:
a) Surgimento de mimetismo, violência de modelo-rival;
b) Surgimento de unanimidade, canalização em torno do alto valor do
que se sacrifica e a quem se sacrifica;

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c) Valor de sacralidade estável do que foi sacrificado em uma nova or-


dem de reconhecimento e funcionamento social (no caso, inclusive,
no âmbito de uma Igreja, seus benfeitores por terem sido agracia-
dos com o sacrifício que fizeram...).
Essa correlação, e a noção do que fundaria a fides monetária, nos
ajuda a passar de uma compreensão de sociedades tradicionais, sem
moedas, para sociedades com moeda e supermonetarizadastal como
as modernas. Estamos, talvez, adentrando pela primeira geração de
indivíduos e de todo um aparato tecnológico social que depende uni-
camente da moeda e se aliena de quaisquer modos diretos de produção
de bens. Quem ainda, na cidade, conta com uma horta ou a horta do
vizinho para consumo de alimentos? Portanto, o que se tem de “bem”
é unicamente o dinheiro, a moeda, que representa bens e “víveres”, em
cuja prática do dízimo repercute a vida-valor de quem dá e sacrifica –
nas doações que se sacralizam.

3.2 Xamanismo
Por fim, o elemento xamânico ganha particular destaque pelo que
define de uma eficácia da ação religiosa no âmbito pentecostal deter-
minada por uma racionalidade e linguagem mítico-simbólica, deslo-
cando-se do registro de uma racionalização das práticas sob o paradig-
ma modernizante. 
Levi-Strauss, em seu clássico estudo A eficácia simbólica, analisa a
etnografia de um ritual xamânico de cura, do qual depreende as se-
guintes conclusões:
a) O xamã ministra uma “manipulação psicológica”. Não toca o corpo
da doente, mas põe em causa direta e explicitamente o estado pato-
lógico.

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b) Trata-se de um procedimento estilístico próprio de uma situação


determinada pela oralidade, cujo investimento nas estratégias de
narrar, repetir, gestualizar busca deslocar da realidade banal para
o âmbito do mito, do universo físico para o universo fisiológico as-
sumido num realismo simbólico, do mundo exterior ao corpo inte-
rior, onde exatamente o mito acontece.
c) Uma narrativa que visa reconstruir uma experiência real, onde o
mito substitui protagonistas, e a cura pretendida esta prefigura-
da nessa substituição em que a relação entre micróbios e doença (
causa e efeito) se torna uma relação entre monstros e doença que
acontece no espirito da doente como a relação imediata entre sím-
bolos e a coisa simbolizada.
d) Por fim, “o xamã fornece à sua doente uma linguagem, na qual se
podem exprimir imediatamente estados não-formulados, de outro
modo informuláveis” (LÉVI-STRAUSS, p.228) - nesta eficácia re-
pousaria a capacidade de combinações diversas de elementos tradi-
cionais e modernos do pentecostalismo.

3.3 Prosperidade
A experiência pentecostal no Brasil, em suas inúmeras denomi-
nações, é classificada por “ondas” que correspondem a determinadas
ênfases discursivas, simbólicas e rituais que marcam a identidade de
várias igrejas evangélicas considerando: na “primeira onda” a ênfase
na santidade; na “segunda onda”, o pentecostalismo centrado na cura
divina; e na “terceira onda”, a ênfase na prosperidade e na cura divina
(cf. CAMPOS, p. 18, 1997). Entretanto, o campo social nos exige, a
partir de uma abordagem antropológica, suspender essas categorias
sociológicas, privilegiando a ação e práticas de atores que, por sua vez,

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não se preocupam com estas determinantes sociológicas do fenôme-


no. Daí que recorremos ao uso de (neo)pentecostalismo para referir ao
campo religioso em questão, sem com isso querer resolver mas apenas
relativizar o rigor desta distinção a partir do que acontece no lugar
vivencial desta experiência.
Quanto à intencionalidade da ação como “prosperidade”, aqui nos
deparamos com algo para repensar nossos pressupostos. A distinção
entre um pentecostalismo de primeira a terceira onda, comum nos es-
tudos sociológicos do pentecostalismo, privilegia a discursividade e a
prática de determinadas igrejas, pouco considerando essa mudança do
ponto de vista de seus atores, isto é, como se dá a passagem entre estas
ondas, processo em que ações são centradas na busca de santidade, de
cura e então prosperidade desde o engajamento de seus sujeitos. De
todo modo, com o que temos nos deparado é que estas distinções se
mostram mais eficientes para demarcar o campo e menos para com-
preender seus atuantes e seus fluxos de ações.

Considerações finais

Este texto apresenta resultados parciais de uma pesquisa em anda-


mento, considerando, desde uma primeira interface com a pesquisa de
campo, algumas questões críticas teórico-metodológicas. Nesse sentido,
lida com certa desconstrução de pressupostos que exigem, por sua vez,
outros parâmetros teóricos – não no sentido de, novamente, fechar-se no
conceito em detrimento do campo, mas na busca por um quadro herme-
nêutico crítico que ofereça, ao mesmo tempo, uma via de compreensão
simpática ao tema do pentecostalismo, do ponto de vista antropológico.

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Referências

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Brasiliense, 1990.
ALGRANTI, Joaquín. Auge, decadência y “espectralidad” del para-
digma modernizador. Viejos e nuevos problemas enelestudiodel
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