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Principais itens da filosofia de Olavo de Carvalho


Não sendo conveniente fazer uma exposição sistemática ou tratadística de uma filosofia [271],
sendo melhor uma abordagem por problemas [74], isso não quer dizer que as filosofias não
sejam sistemáticas, já que isso é próprio do carácter próprio destas. Definindo a filosofia como a
busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa, esta busca é uma
hierarquização e um sistema. Assim, qualquer das partes só adquire sentido dentro do sistema.
Mas o sistema não nasce pronto e desenvolve-se à medida que os problemas surgem e que a
consciência do filósofo se forma, o que implica um caminho acidentado, com muitos erros e
fracassos. Isto mostra que não é possível haver um sistema filosófico bem arrumado como
supunham os filósofos da época clássica. O que existe é uma tendência sistemática e unificante,
que se identifica com a própria inspiração básica da filosofia, e que é um esforço contra as forças
dissolventes e entrópicas que existem não apenas à nossa volta mas também na nossa
consciência. O impulso filosófico existe em toda a gente, mas a maior parte das pessoas apenas
busca a unidade da sua consciência perante as exigências momentâneas da vida prática, é algo
motivado pelas situações de facto que se impõem e não se trata de um esforço constante a auto-
consciente.
A unidade de uma filosofia expressa-se de forma hierárquica, indo dos fundamentos para as
consequências, sendo o fundamento dos fundamentos aquele que Leibniz formulou na
pergunta: “porquê o Ser e não antes o nada?” Na realidade, trata-se de uma dupla pergunta
porque, por um lado, questiona sobre uma causa eficiente – porque existe o Ser? – e questiona
sobre o seu fundamento do Ser. A maior parte das pessoas, incluindo cientistas famosos, acha
que a pergunta sobre a existência do Ser versa sobre a origem da matéria. Daí nascem as teorias
que dizem que a matéria surgiu da combinação de forças pré-existentes sem necessidade de um
agente externo, mas isto não responde à pergunta sobre a origem do Ser e muito menos diz algo
sobre o seu fundamento.
Mas se a matéria teve origem nestas forças que pré-existiam ao universo, elas não são um nada,
já eram a presença do Ser. Também, se estas forças se encontraram e produziram um resultado
é porque estavam numa quantidade e proporção que as tornavam aptas a produzir o resultado
verificado, ou seja, obedeciam a uma fórmula matemática. Assim, para além das forças existia a
proporção matemática antecedendo a criação da matéria, e as leis da matemática também não
são um nada. Mas estando todas as leis matemáticas de alguma forma interligadas, todo o
conjunto já existia, possibilitando que viessem a se materializar as 333
propriedades dos elementos que constam da tabela periódica, o ADN e até as próprias
possibilidades da espécie humana. Tudo isto já estava contido inicialmente na forma de uma
lógica interna de possibilidades, inclusive a possibilidade de existirem uns seres que iriam
meditar sobre todo o caminho percorrido e pudessem ter consciência do processo. Por outras
palavras, na fórmula inicial já estava contida a possibilidade da visão auto-consciente do próprio
processo. Então, a fórmula inicial incluía absolutamente tudo, até a consciência de si mesma
Mas a fórmula inicial contém mais do que o universo efectivamente existente, contém também
as possibilidades que não se manifestaram e aquelas que jamais se manifestarão, ou seja, nela já
estavam contidos todos os universos possíveis. A moderna cosmologia estuda universos
meramente possíveis, a consciência destes também fazia parte da possibilidade inicial. Não se
trata aqui de possibilidades no sentido de possibilidades pensadas pelo ser humano, são mais
propriamente potências. O Logos ou Inteligência Divina é precisamente o conjunto de todas as
potências que compõem o universo efectivamente existente assim como todos os universos
possíveis, mesmo aqueles que nunca cheguem a se manifestar.
A conclusão que tiramos daqui é que “no princípio era o Verbo”, ou seja, o Logos. Este é o item
número um da filosofia de Olavo de Carvalho.
O segundo item está relacionado com a constituição do universo. Sendo este formado a partir de
um corpo de possibilidades, e existindo inúmeras possibilidades para além das efectivadas,
então, o universo, tal como existe, não pode ser completo em si mesmo. Para cada coisa
existente existem inúmeras outras possíveis que, de certo modo, a delimitam e marcam a sua
forma. Assim, para além das realidades existentes, o universo é também composto por uma
infinidade de potencialidades não realizadas que cercam cada ser existente. Isto corresponde ao
círculo de latência, que é aquilo que um ente poderia ser mas não é. As potencialidades
delimitam e distinguem o ente justamente por não se terem realizado. Por exemplo, todos temos
a possibilidade de morrer a qualquer momento e mesmo que essa possibilidade não se tenha
realizado, ela define e delimita a nossa presença enquanto criaturas mortais.
Podemos, então, dizer que o nosso universo nunca é completo, dado que tudo o que existe tem
um círculo de latência que se prolonga até não sabemos onde. Dizia Leibniz que cada ser traz em
si aquilo que o distingue de todos os outros, pelo que a descrição completa do círculo de latência
de um único ser abrangeria o universo inteiro. Um animal é distinto de todos os outros, mas ele
também é distinto de uma equação matemática ou de uma acção da bolsa de valores, sendo o
conjunto destas distinções aquilo que marca a sua forma específica. Acresce a isto que cada
espécie também possui em si o conjunto das diferenças que as separam de todas as outras
espécies, ou existiriam seres mistos pertencentes a mais do que uma espécie.
Como o universo nunca será completo, nunca iremos poder encontrar nele uma ordem total e
acabada, só podemos encontrar uma mistura de ordem e de caos. Embora a ordem predomine
até certo ponto, sempre haverá um certo coeficiente de caos, porque as possibilidades que se
realizaram não apenas excluem outras possibilidades como podem não ser as que melhor se
combinariam com a totalidade. Existe sempre uma série de relações complexas e ambíguas
entre qualquer ser e a totalidade. Cada ser insere-se na totalidade através das leis da Natureza,
da sua espécie, etc., mas existe sempre um coeficiente de absurdidade e de imprevisibilidade.
Nem mesmo as partículas subatómicas obedecem 334
completamente a uma ordem pré-existente, sempre há em tudo uma tensão entre ordem e caos.
O primeiro item da filosofia de Olavo de Carvalho diz respeito a uma metafísica, o segundo a
uma cosmologia, agora o terceiro versa sobre um a antropologia.
O homem é uma criatura dentro do universo que é definida essencialmente pela memória. Ele é
o único animal que age “hoje” em função do que fez “ontem”. Embora os animais possam
modificar o seu comportamento devido a uma influência exterior, rapidamente eles estabilizam
e passam a reagir de maneiras permanentes, ao passo de que o ser humano continuamente
ajeita a sua conduta em função do que lhe aconteceu no passado. Então, podemos dizer que a
continuidade da memória é o traço fundamental do ser humano. Isto relaciona-se com o que
Maurice Pradines chamava de consciência: a memória do passado preparada para as tarefas do
futuro. A memória é mais fundamental para o ser humano do que a fala, porque é aquilo que dá
a historicidade ao ser humano. Historicidade quer dizer que tudo o que fazemos hoje integra-se
de alguma forma no nosso passado, assim como o passado integra-se e amolda-se à situação
actual visando a preparação do futuro.
Para além da historicidade, o ser humano tem um segundo traço eminente, derivado do
primeiro, que está ligado ao princípio de autoria. Cada ser humano sabe que é o autor dos seus
actos e mais ninguém, e tal manifesta-se desde os primeiros dias de existência até ao resto da
vida, em condições normais. Quando o bebé examina o seu corpo, ele já está identificando
aquelas coisas como sendo dele e avalia como pode fazer certas coisas com elas. A memória das
primeiras acções vai integrar-se nas acções seguintes, ou seja, desde início há uma posse do
passado que se articula com o presente e com o futuro, e no processo o passado vai sendo
também trabalhado e integrado até ao dia em que o indivíduo pode dizer “eu” com
conhecimentos de causa. Não que esse eu só tenha passado a existir desde esse momento, mas
esta auto-identificação aumenta bastante as possibilidades de acção da entidade eu. Apenas o
ser humano pode mentir (os animais apenas podem camuflar a sua presença), apenas ele pode
negar o seu próprio passado, e só o faz porque tem algum domínio sobre ele.
Mas o indivíduo não podia ter esta relação com a sua memória se a sua unidade pessoal apenas
existisse fisicamente ou como um dado da consciência. Então, uma tese fundamental para Olavo
de Carvalho é a de que o “eu existe”, isto é, cada um de nós existe e persevera no tempo. E aquilo
que persevera não coincide com o que sabemos de nós ou com os nossos estados, que vão e vêm,
sendo algo que continua quando todas as células do corpo já foram trocadas. É um centro agente
que está por baixo de todos os estados, pensamentos e acções do sujeito, sendo a consciência e a
memória funções dele. Se os estados e pensamentos impermanentes, e se até as células do corpo
mudam o tempo todo, então, será o eu apenas um pensamento para coerir e dar unidade ao
conjunto? Mas o pensamento não pode fazer isto porque também ele passará. Assim, o eu não é
nem um produto da mente e nem uma criação cultural, é uma condição para que exista o
pensamento, os estados a memória e toda a cultura. Se vasculharmos na nossa memória, por
mais que recuemos não há nenhum momento em que não sejamos nós mesmos, por pior que
seja o estado mental associado à recordação ou nebulosa a memória. Além de que o nosso eu
está presente a outros eus, não imaginamos que as pessoas só existam apenas no estado
momentâneo em que as encontramos, sabemos sempre que elas são alguma coisa, ou seja, que
também têm um eu permanente e substantivo, e sem isto não há convivência humana possível.
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O eu tem uma certa existência paradoxal, é uma coisa permanente que está imersa no tempo.
Uma das constantes do ser humano é a tensão entre permanência e mudança, e apenas porque
existem estes dois aspectos em nós podemos entender o que é a eternidade e o que é o tempo.
O verdadeiro ser humano é invisível, inaudível, intocável. Por baixo da comunicação entre
consciências existe a comunicação entre os eus verdadeiros. Um ser humano pode ser conhecido
– ele trás consigo um conjunto de sentimentos, valores, evocações, etc. – mas não conseguimos
pensar uma pessoa como um conjunto, apenas podemos pensar detalhes dela, acontecimentos.
Em suma, um verdadeiro ser humano não é tocável, audível, visível, cheirável, nem sequer
pensável, mas ele é conhecível.
Dos pontos anteriores decorre o princípio da responsabilidade, que vem do verbo “responder”,
ou seja, quem fez responde por isso, porque apenas ele sabe a verdade em última análise. A
noção de responsabilidade baseia-se no princípio de autoria e na continuidade ontológica do eu.
Todas as relações humanas baseiam-se nesta continuidade e é uma irresponsabilidade negar
isto, ainda que se invoquem motivos muito eruditos ou elegantes. Na realidade, a existência do
eu é até mais contínua do que a do universo físico, que não é pleno, está cheio de intervalos e de
“não ser”. Claro que o universo tem zonas de vácuo em termos materiais, mas essas áreas estão
preenchidas em primeiro lugar por energia, depois e abaixo por potências e, ainda mais abaixo,
por possibilidades. Essas zonas não podem ser um nada ou delas nada poderia sair.
O quarto item da filosofia de Olavo de Carvalho tem a ver com a teoria do conhecimento e
generaliza alguns dos resultados prévios sobre o conhecimento do ser humano. Conhecer um
ente é ter consciência do seu círculo de latência, que é inabarcável. Dizia Aristóteles que quando
percebemos um ente apreendemos a sua forma inteligível, que é aquilo que se expressa num
conceito ou numa imagem mental. Mas a fórmula inteligível é a mesma para todos os entes da
espécie e permanece a mesma durante todo o tempo de existência do ente. Não é apenas isto que
percebemos, também apreendemos um conjunto de propriedades e de acidentes possíveis que
compõem o ente. A partir deste círculo de latência temos uma expectativa daquilo que o ente
pode ou não fazer.
Os actos de conhecimento entre seres humanos são efectivações momentâneas de contactos
entre círculos de latência inabarcáveis. Mas na tradição moderna, desde Descartes, a
compreensão do conhecimento humano visa apenas o sujeito. Já no século XX Husserl percebeu
que não bastava considerar os actos cognitivos e que o encontro real é a base do conhecimento.
Só podemos ser sujeitos se também formos objectos, ou nem poderíamos nos conhecer a nós
mesmos. Também os objectos não podem ser conhecidos por nós se não recebessem nenhuma
informação nossa, isto é, a nossa presença tem de os afectar de alguma forma, ao menos
espacialmente. A pedra que observamos já sofreu uma alteração espacial, embora ela não
apreenda isso de modo consciente, apenas de modo existencial, porque a situação real dela já se
alterou pela nossa presença. Os seres passam continuamente uns aos outros informações
fragmentárias, mas o ser humano apreende estes fragmentos como símbolos do círculo de
latência, que pressupõe a existência real dos seres envolvidos no processo cognitivo. O
conhecimento é “algo mais” que acontece aos seres que estão imersos numa imensa rede de
relações que os articulam no universo inteiro, assim, o conhecimento não tem prioridade em
relação ao ser, como queria Kant, dado ser apenas um modo de acção deste. Ao contrário da
pretensão kantiana, a verdadeira filosofia não pode começar com a teoria do conhecimento, tem
de começar com a teoria do ser. 336
A filosofia que está delineada nos itens acima só começou a ser esboçada por Olavo de Carvalho
a partir dos seus quarenta anos de idade. Antes disso, ele passou por um longo aprendizado, que
não consistiu apenas em ler livros de filosofia e no contacto com pessoas capacitadas. Houve
também uma busca de conhecimento através da experiência (religiosa, esotérica, política,
jornalística).
Apostila que faz um esboço do sistema filosófico de Olavo de Carvalho:
Esboço de um Sistema de Filosofia α92

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