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O impacto da ciência na sociedade (Bertrand Russel)


Veremos um texto de Bertrand Russel do livro O Impacto da Ciência na Sociedade. O fragmento
em causa é do primeiro capítulo, intitulado “Ciência e Tradição”:
«O homem existe há cerca de um milhão de anos. Ele possui a escrita há certa de seis mil anos,
agricultura há um pouco mais, mas talvez não muito mais tempo. A ciência, como um fator dominante
para determinar as crenças de homens educados, existe há cerca de trezentos anos. Como uma fonte de
técnica económica, há cerca de cento e cinquenta anos. Nesse breve período a ciência provou ser uma
forma revolucionária incrivelmente poderosa. Quando nós consideramos quão recentemente ela
ascendeu ao poder, nós nos achamos forçados a acreditar que estamos presentes ao começo mesmo de
seu trabalho de transformação da vida humana. Quais serão seus efeitos futuros, é um problema aberto
à conjectura, mas possivelmente um estudo dos seus efeitos até ao presente momento pode tornar essa
conjectura um pouco menos arriscada. Os efeitos da ciência são vários e de tipos muito diferentes. Há
efeitos intelectuais diretos, por exemplo a dissipação ou o banimento de muitas crenças tradicionais e a
adoção de outras crenças sugeridas pela adoção do método científico. Em seguida há efeitos na técnica
da indústria e da guerra. Em seguida, principalmente como conseqüência das novas técnicas, há
mudanças profundas na organização social que estão gradualmente produzindo mudanças políticas
correspondentes. Finalmente, como um resultado do novo controlo sobre o ambiente que o
conhecimento científico criou, uma nova filosofia está crescendo e se desenvolvendo, que envolve uma
concepção alterada do lugar do homem no universo. Eu vou tratar sucessivamente destes aspectos dos
efeitos da ciência na vida humana. Em primeiro lugar, vou contar seu efeito puramente intelectual,
como um dissolvente de crenças tradicionais sem fundamento, tais como a bruxaria. Em seguida vou
considerar a técnica científica especialmente a partir da revolução industrial. Finalmente, vou
apresentar a filosofia que é sugerida pelos triunfos da ciência, e vou argumentar que essa filosofia, se
não for restringida, pode inspirar uma forma de ignorância a partir da qual conseqüências desastrosas
podem resultar. 330
O estudo da antropologia nos tornou vividamente conscientes da massa de crenças infundadas que
influenciam as vidas de seres humanos não civilizados. A doença é atribuída a feitiçaria, o fracasso nas
colheitas a deuses raivosos ou a demónios malignos. Pensa-se que o sacrifício humano promove a
vitória na guerra e a fertilidade do solo. Acredita-se que eclipses e cometas pressagiam desastres. A vida
do selvagem é confinada por tabus, e pensa-se que as conseqüências de se infringir um tabu são
terríveis. Algumas partes desta perspectiva primitiva feneceram cedo nas regiões nas quais a civilização
começou. Há traços de sacrifício humano no Velho Testamento. Por exemplo, as histórias da filha de
Jefta e da história de Abraão e Isaac. Mas acerca do tempo em que os judeus se tornaram
completamente históricos, eles abandonaram a prática. Os gregos abandonaram-na acerca do sétimo
século antes de Cristo, mas o cartaginenses ainda a praticavam durante as guerras púnicas. A
decadência do sacrifício humano nos países mediterrâneos não é atribuível à ciência, mas
presumivelmente a sentimentos humanitários. Em outros aspectos, porém, a ciência tem sido a
principal causa em banir superstições primitivas. Os eclipses foram os primeiros fenômenos naturais a
escapar do campo da superstição e a entrar no campo das ciências. Os babilônios eram capazes de
predizê-los, embora, no que tange os eclipses solares, as suas predições nem sempre eram corretas. No
entanto, os sacerdotes mantinham secretos estes conhecimentos e usavam como meio de aumentar o
seu domínio sobre a população».
Qualquer leitura filosófica pode ser feita de duas formas: ou para entender a filosofia do sujeito
ou para verificar se o que ele diz é verdade. Neste último caso, temos que verificar cada frase, o
que cria uma tensão com o tipo de leitura destinada à absorção da filosofia, dado que esta, numa
primeira fase, requer que acompanhemos o raciocínio do autor sem interferir nele. Nas grandes
obras filosóficas esta tensão está reduzida ao mínimo, e podemos compreender a intenção geral
sem ter de engolir muitos erros ou inverdades. Noutros casos o desconforto criado pela leitura é
muito grande, o que é um forte indício de que o valor intelectual da obra é reduzido, embora ela
possa ter um forte impacto histórico. A sua leitura pode ser importante precisamente para
averiguar este impacto mas não se trata de uma leitura formativa. Neste caso, devemos ter
noção de que o autor pode estar a tentar enganar deliberadamente a plateia, havendo
normalmente duas formas de o fazer. Uma delas é através da camuflagem, que consiste em
construir um edifício racional, em que tudo é verdade excepto uma premissa falsa que está ali
escondida no meio. Outra forma é a intoxicação, em que o autor mente em cada linha de modo a
que o leitor não consiga acompanhar e acabe por engolir tudo. Bertrand Russel usa este segundo
método: cada parágrafo está cheio de erros; ele passa por cima de problemas fingindo que não
viu; tira conclusões peremptórias a partir de um material que apenas permite formular
interrogações; e assim por diante. Se aceitarmos isto, ao fim de poucas páginas já estaremos
intoxicados.
Russel diz que a ciência desempenha um papel de mudança revolucionária da sociedade,
nomeadamente ao dissipar crenças absurdas ou erradas de ordem tradicional, que vão sendo
substituídas pela versão científica dos acontecimentos. Mas ele também diz, quase ao mesmo
tempo, que está se formando uma espécie de anti-sabedoria a partir de uma nova filosofia
científica, que pode ter consequências desastrosas, e depois ainda adverte sobre os perigos do
pensamento científico. Os efeitos perversos da ciência parecem ter surgido meio
inesperadamente, depois de um começo tão auspicioso, mas devemos averiguar se as coisas
foram mesmo assim. 331
Supostamente, antigamente existia uma série de crenças infundadas, como aquelas que
relacionam a feitiçaria com doenças ou colheitas fracassadas, e teria vindo a ciência impugnar
tudo isto. Contudo, a ciência não estudou estes assuntos, logo, não poderia ter impugnado nada
a respeito. O que ela fez foi substituir uma certa visão de conjunto pela sua própria cosmovisão.
Mais tarde, foram feitas algumas averiguações científicas sobre fenómenos de magia, feitiçaria,
etc., e ficou evidente que alguma coisa ali se passava. Contudo, não havia uma explicação
científica para aquelas coisas, e tendo a ciência alcançado um certo prestígio social e se alçado
como autoridade para distinguir o verdadeiro do falso, a consequência foi ter-se formado o
hábito de rejeitar todos os factos sem explicação científica. Isto é um enorme absurdo porque só
pode haver ciência com a admissão preliminar do facto. Se no final das investigações alguns
factos permanecerem sem explicação, isso quer dizer ou que são necessárias mais investigações
para esclarecer o assunto ou que alguns factos podem permanecer misteriosos para sempre.
Contudo, para quase todas as pessoas, incluindo letrados, as prioridades foram invertidas e a
explicação está acima do facto, ou seja, a autoridade da ciência passou a ter a capacidade de
impugnar um facto apenas por não ter uma explicação para ele.
Russel dá o exemplo dos eclipses, sobre os quais apareceu uma descrição astronómica que teria
varrido as antigas descrições míticas mas, ao mesmo tempo, também jogou fora as previsões de
factos que eram feitos a partir do surgimento de eclipses. Mas uma descrição astronómica de um
facto celeste não pode impugnar uma conjecturação dos seus efeitos terrestres. Simplesmente
houve um desvio da atenção para a mecânica celeste, abolindo a conjecturação de causa e efeito,
mas este desvio, ao invés de ser uma impugnação lógica-científica de uma crença, é ele em si
mesmo uma crendice e mesmo uma das fundamentais da cultura contemporânea.
Ele fala dos sacrifícios humanos que eram comuns em civilizações primitivas, havendo até
traços disso no Antigo Testamento, mas depois teriam desaparecido devido ao humanismo e à
ciência. Na realidade, existe ainda hoje um número enorme de sacrifícios humanos em rituais
satânicos e nunca ninguém fez um estudo comparativo em que avalie se o número aumentou ou
diminuiu. Além disso, há muitas matanças modernas que tem um carácter sacrificial, como no
caso dos judeus na Alemanha nazi ou os gulags na União Soviética. E para isto eram dadas
explicações científicas, tal como hoje se dão para justificar o aborto. Há um pensamento mágico
moderno que faz acreditar que matanças em massa são justificadas em nome de salvar uns
poucos. Nunca houve nada chegando a este grau nas sociedades primitivas.
A visão que Russel tem da história da sociedade é totalmente mítica, mas ele vai contando as
coisas aparentemente de forma equilibrada e é fácil aceitar o que ele diz, mas em pouco tempo já
estaremos intoxicados com tanta mentira. Russel diz que quer advertir para uma filosofia
científica que pode gerar uma anti-sabedoria, mas ele mesmo já está a praticar essa anti-
sabedoria. Então, torna-se muito difícil de acompanhar a sua filosofia porque a cada página é
exigido um acto de fé, além de que nada legitima fazer uma filosofia em cima de informações
factuais falsas. Mas os leitores de autores como este já não querem saber disto, porque eles já
fazem parte de uma atmosfera cultural criada pela ciência, por isso já estão convencidos que as
coisas são de certa forma e nunca irão verificar.
Bertrand Russel apenas prossegue a ideia iluminista da existência de um progresso das luzes e
da razão que dissipam as trevas da ignorância e da superstição. Esta ideia em si é uma
superstição, que pressupõe que a História avança linearmente e que recusa aceitar 332

contradições, por exemplo, não admite que o aumento do conhecimento vem junto com o
aumento da ignorância. A ciência é um instrumento fundamental do progresso iluminista, mas
vemos que, tudo somado, ela causou mais prejuízos que benefícios, bastando pensar nas armas
químicas, nas armas biológicas, na bomba atómica, na burocracia estatal, nas técnicas de
manipulação de consciência e até no número assombroso de mortes causadas por actos
médicos. A ideia não é polemizar contra a ciência moderna, porque vamos mesmo ter que
prosseguir com ela, mas temos que assumir os seus efeitos reais e não varrer a porcaria para
debaixo do tapete. α9

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