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Os sistemas metafísicos encarados como símbolos


Olavo de Carvalho não deixou em lado algum uma exposição sistemática da sua filosofia, desde
logo por entender que tal coisa não deve ser feita. Para ele, a filosofia não consiste em chegar a
verdades gerais que se cristalizam em fórmulas doutrinais repetíveis, mas trata-se de uma
apreensão do sentido universal das situações particulares, sendo estas únicas, concretas e
vividas pelos seres humanos reais. Este tipo de tratamento é evidente na esfera moral, onde um
homem não é bom se sabe os mandamentos de cor mas se conseguir transmuta-los em decisões
e acções acertadas aplicadas às situações concretas da existência imediata, podendo as normas
gerais, nesse caso, até assumir um sentido aparentemente 326
paradoxal. Algo idêntico se passa na estética, cujos princípios gerais não podem dar conta de
todas as formas do belo, sendo antes o sentido estético a capacidade de apreender a unidade da
beleza por trás das formas, mesmo que possam elas estar camufladas do feio, do disforme e do
monstruoso.
A metafísica e a epistemologia, que são as disciplinas filosóficas mais altas e de índole
puramente teorética, poderão ajustar-se da mesma maneira? Qualquer sistema metafísico tem
alguma contradição interna ou um descompasso em relação à experiência. Mas os erros do
sistema também fornecem sugestões para a abordagem de problemas de ordem metafísica que
surgem da experiência real. Não havendo uma linguagem total literal e sem ambiguidades, é
sempre possível, nas obras filosóficas, interpretar simbolicamente algo que em sentido literal
está errado, sendo assim possível remontar à percepção originária de uma verdade que o filósofo
não conseguiu converter numa conclusão doutrinal explícita. Uma doutrina cristalizada é
apenas uma verdade filológica, quando não editorial, mas os filósofos criam as suas doutrinas
não apenas para os leitores as conhecerem mas para que estas sejam usadas para buscar a
verdade. O texto e a doutrina existem para serem conquistados e possuídos historicamente, mas
mesmo fazendo isto ainda estamos no mero domínio da cultura filosófica.
Pode acontecer que uma teoria inaceitável seja, ainda assim, válida como crítica a outra teoria,
ainda que involuntariamente. Hume negou a existência de qualquer “eu” (ou a possibilidade de
provar a sua existência), o que é inaceitável, mas se assumirmos a sua teoria como crítica ao
cartesianismo, ela é válida. Descartes pensou que a prova da existência do pensamento era
também a prova da existência de uma “substância pensante”, mas Hume viu que a experiência
aqui envolvida é instantânea e que não era possível deduzir a partir dela a permanência do “eu”.
Se tentarmos declarar verdades literais e universalmente válidas, iremos apenas chegar a um
símbolo, com alguma sorte. Mas podemos fazer o trajecto inverso, partindo voluntariamente de
um símbolo, sabendo que apenas podemos transfigurá-lo num outro símbolo mais claro e
inteligível, sem nunca chegar a uma verdade literal definitiva. O limite é dado pela nossa
exigência de compreensão, que pode ser determinada por factores pessoais, culturais e
históricos.
É comum a ideia que diz que a investigação filosófica mais elevada é a que se prende aos
problemas genéricos (fundamentos da moral, determinismo e livre arbítrio, materialismo e
idealismo, etc.) Estes problemas alimentam discussões sem fim, sem nunca chegar a conclusão
alguma. Contudo, todos estes problemas surgiram de experiências que suscitaram uma pergunta
inicial, e esta nunca aparece com a fórmula de conceitos claros e definitivos. Para chegar a uma
concepção de um “determinismo”, por exemplo, foi necessário analisar e depurar muitas
experiências, até perceber a existência de um elo de necessidade entre uma causa inicial e uma
série de efeitos que se seguem inapelavelmente. Mas depois, o termo condensa-se numa
definição, que passa a constar dos dicionários filosóficos, e é possível começar a raciocinar a
partir dele sem remeter às experiências que lhe estão subjacentes. Da mesma forma, é possível
conhecermos uma filosofia inteira sem nos questionarmos se aquilo está certo ou errado. Por
isso, tem sentido o conselho de Eric Voegelin para não estudarmos filosofias particulares e, sim,
estudarmos a realidade. Aristóteles não estudou a filosofia de Aristóteles, estudou a estrutura do
Estado, o conhecimento, a estrutura do ser e assim por diante. 327
Se queremos praticar filosofia e não apenas estudar filosofia no sentido escolar, temos de
encará-la como a busca da sabedoria e da verdade. Utilizamos outras filosofias precisamente
para buscar a verdade no sentido em que os seus autores a procuravam. Obviamente que com o
decorrer dos séculos acumulou-se uma enorme bibliografia sobre os assuntos, então, formou-se
uma disciplina secundária versando sobre o que se escreveu sobre um assunto mas sem nunca ir
ao assunto concretamente. Praticamente esta é a única coisa que se ensina nas faculdades de
filosofia, não apenas hoje, porque já Nietzsche vivia este estrangulamento que tornava o objecto
de estudo pesado e opaco e, em reacção, ele quis jogar fora toda a tradição filosófica, o que
também foi um exagero histérico.
O nosso ponto de partida em relação aos objectos da filosofia deve consistir em encará-los como
elementos da própria realidade. Tudo o que adquirimos como cultura filosófica deve ser
instrumento e não objecto de investigação. Na absorção dos elementos de cultura podemos
colocar temporariamente entre parenteses aquilo que sabemos a respeito dos objectos visados,
mas sabendo que depois iremos fazer uma confrontação entre uma coisa e outra. Temos o
exemplo de Eric Voegelin, que estudava direito com Hans Kelsen, assim como outras
disciplinas, mas depois aconteceram eventos reais relacionados com ideologias de massa, então,
ele tomou isso como objecto de estudo, ainda que não existisse nenhuma disciplina que
estudasse sistematicamente o assunto.
Olavo de Carvalho também encara as grandes doutrinas metafísicas do passado como símbolos
devido a uma tradição a que aderiu, que diz que tudo o que acontece no mundo físico é um
símbolo ou uma exteriorização de realidades de ordem metafísica. Entendemos aqui a
metafísica como o estudo da possibilidade e da impossibilidade, ou seja, o estudo dos limites
que a realidade inteira não pode transcender. Então, a metafísica não estuda propriamente o ser
mas aquilo que está para além do ser e o limita, sendo, por isso, um elemento constitutivo deste.
Todos os grandes edifícios metafísicos têm incoerências ou não batem totalmente certo com a
realidade tal como a conhecemos, mas, ainda assim, funcionam de algum modo, podendo
despertar intuições brilhantes, ou seja, funcionam como símbolos (matrizes de intelecções). A
verdade que as metafísicas pretendem transmitir transcende os seus discursos, pelo que nos
podem encaminhar a ela de algum modo. Outros discursos também podem despertar as mesmas
intelecções, por exemplo, uma peça de Shakespeare. Só podemos colocar as conclusões a que
chegarmos na forma de símbolos e nunca como expressões literais da verdade. O próprio
processo da história da filosofia é a condensação da experiência em símbolos, que depois são
analisados, elaborados e substituídos por outros símbolos mais claros, diferenciados e
satisfatórios intelectualmente, de preferência abrangendo os interiores. O processo não é linear
e se esperarmos que as filosofias sejam expressões cabais da verdade ou da falsidade, podemos
ficar com a impressão, já desde há muito registada, da história da filosofia ser uma sucessão de
doutrinas discordantes, cuja totalidade não faz o menor sentido, mas isso revela apenas
incompreensão do processo.
A filosofia já foi feita para ser um objecto de contemplação, abrangendo vários níveis, desde um
puramente estético até ao nível metafísico. O que São Tomás de Aquino escreveu serve para
insinuar realidades que vão muito além do discurso, algumas que jamais ele poderia ter posto
por palavras, por isso ele disse no fim da vida que tudo o que tinha escrito era palha. As sumas
de Aquino têm a estrutura de uma catedral gótica, que não é apenas um edifício utilitário mas
um objecto de contemplação, que começa por ser estética mas prossegue por patamares
sucessivos até levar a uma contemplação espiritual. 328

Não conseguimos pensar um ser humano, por mais próximo que este nos seja, apenas podemos
pensar aspectos dele. No entanto, conhecemos as pessoas, e isso acontece quando apreendemos
a sua unidade, que é uma unidade incompleta, com dimensões infinitas que não podemos
alcançar mas de alguma forma antecipamos nos sentimentos e reacções que temos em relação
aos outros. Obviamente que o universo inteiro também não é pensável. O pensamento e o
discurso não se destinam a dizer a realidade mas a evocar uma expectativa que não pode ser
realizada quantitativamente, que é a possibilidade que cada um tem de conhecer a realidade nas
suas dimensões finitas e infinitas. Um sistema metafísico errado pode estar simbolicamente
certo se o seu discurso despertar o espírito filosófico no leitor, encaminhando-o para certas
experiências. O erro está em tentar que estes sistemas expressem a realidade literalmente, por
isso Leibniz dizia que todo o sistema filosófico está certo no que afirma e errado no que nega.
Um sistema metafísico é negativo quando bloqueia certas experiências ou percepções. Por
exemplo, Kant disse que o espaço é uma forma a priori, o que sob certo aspecto é verdade,
estando o erro em considera-lo apenas isso e não também uma realidade externa que nos cerca e
nos determina fisicamente. Ao fechar a perspectiva, Kant torna-nos opacas inúmeras dimensões
da realidade. α91

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