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276.

A imposição da ciência como autoridade pública


Observando alguns dos terríveis efeitos que a ciência moderna teve na sociedade [275], podemos
supor que algo disto já estava embutido nos seus conceitos fundamentais. O nominalismo
deprimiu a confiança das pessoas na sua capacidade de apreender a essência dos entes na sua
forma substancial [272]. Partindo do princípio de que não existe forma substancial e de que
apenas conhecemos entes singulares – a noção universal de espécie seria apenas uma
construção mental –, o resultado é um estado de incerteza em relação ao nosso conhecimento.
Na perspectiva nominalista não podemos dizer que as conclusões gerais a respeito de alguma
coisa correspondem a alguma realidade externa ou se são apenas uma construção da mente.
A ciência moderna surgiu com o expediente da quantificação para tentar encontrar uma solução
para a descrença que havia em relação ao próprio conhecimento. Quantificação aparece como
sinónimo de objectividade e confiabilidade. Se medimos uma coisa e a conjugamos com a sua
estrutura matemática, o resultado pode ser verificado por qualquer pessoa que refaça o
processo. Assim, criava-se um novo padrão de confiabilidade e de objectividade, que a
quantificação/matematização parecia tornar possível. Em primeiro lugar, a quantificação
estabiliza as aparências, assim, o mundo “deixa de ser” o constante fluxo de Heráclito e “passa a
ser” um conjunto de equações que permanece estável e que outras pessoas podem estudar. Em
segundo lugar, a quantificação facilita a comparação, dado que é muito fácil comparar medidas
e fórmulas matemáticas. Em terceiro lugar, a quantificação contorna as imprecisões da
linguagem verbal, mais precisamente, a linguagem matemática não tem semântica, apenas tem
sintaxe e morfologia, é um conjunto de formas vazias onde não aparecem vários significados
como na linguagem normal. Em quarto lugar, a quantificação elimina o viés subjectivo
individual, então, todos têm de encarar as mesmas medidas e as mesmas fórmulas da mesma
maneira, operando tudo de formas padronizadas. Desta forma, o objecto da ciência torna-se de
posse colectiva. Por último mas talvez a razão mais fundamental, o carácter compulsivo dos
resultados matemáticos simula o fatalismo da Natureza, isto é, sempre que fizermos tal cálculo o
resultado fatalmente é o mesmo, o que ia de encontro à ideia de chegar às leis da Natureza que
pudessem comprometer o próprio Deus a uma certa estrutura matemática que nem Ele poderia
mudar.
Contudo, estas características da quantificação não garantem a objectividade do conhecimento,
apenas garantem a exactidão da sua estrutura interna. Para ver se esta tem algo a ver com a
natureza externa é preciso levar em conta outro elemento. Num primeiro momento, com
pessoas como Galileu ou Newton, a experimentação foi um elemento mínimo na formação das
ciências, e o que ocorreu foi sobretudo uma matematização do experimento. Por isso, este
período chamou-se de racionalismo, que teve o seu cume na filosofia de Descartes, cujo grande
problema é justamente a ligação entre os conhecimentos 320
obtidos por pura dedução racional e o mundo exterior. Uma certeza racional subjectiva, como a
do cogito cartesiano, não permite obter nenhuma certeza em relação ao mundo externo.
Do problema assim criado nasceu o empirismo, que é uma segunda vaga do pensamento
científico moderno, surgido com Bacon, Locke e outros. O experimento passou a ser a chave e a
base da confiança, mas Thomas Hobbes, num momento de rara lucidez, salientou que os
experimentos científicos são testemunhados apenas por um número ínfimo de pessoas,
envolvendo frequentemente equipamentos caros e sofisticados. Como é possível que algo que foi
testemunhado por uma elite tão reduzida tenha obtido uma autoridade pública tão grande? O
público não entra no mesmo processo, simplesmente é convencido pela retórica e pela
propaganda, e assim a autoridade científica conseguiu parecer muito mais confiável do que o
clero. Nenhum clero em qualquer parte do mundo obteve uma credibilidade cega como esta,
nem algum foi tão inacessível como a comunidade científica, que forma como que um munto à
parte, por vezes mesmo em termos físicos, em laboratórios a quilómetros de distâncias das
outras pessoas. Além disso, muitos experimentos dependem de uma técnica matemática que
não é apenas inacessível à maioria das pessoas mas também é opaca a outros cientistas que não
são daquela área específica. Mais ainda, podem estar envolvidos computadores que fazem
cálculos que nenhum ser humano terá alguma vez tempo de verificar. Então, o controlo – um
dos elementos principais do método científico moderno – não existe mais.
Em resumo, a autoridade da comunidade científica deriva de três factores: a) retórica e
propaganda, que faz dos cientistas uma espécie de enviados celestes possuidores dos segredos
do universo, e possuidores de virtudes excelsas enquanto parte de uma colectividade; b)
imposição da imagem atrás mencionada através da educação e da comunicação social; c) uso de
mecanismos de exclusão relativamente aos estudiosos que não aceitem os cânones da ciência
moderna, independentemente da veracidade do que afirmem.
Hobbes propunha a dedução matemática (que ele chamava geométrica) em oposição ao
empirismo, porque aquela era acessível a toda a gente. Mas isso era numa altura em que as
matemáticas eram rudimentares, porque depois avançaram tanto que levaria cerca de 200 anos
para ciências experimentais usarem todos os recursos matemáticos, segundo a estimativa de
Philip J. Davis (ver livro Sonho de Descartes).
Está intrinsecamente ligado à ciência todo um aparato material, social, económico, políticos,
cultural, mediático. Contudo, o habitual é olhar a ciência abstractivamente, como se fosse
apenas um mecanismo racional de observação, teste e controlo feito por umas poucas pessoas
supostamente actuando com a máxima seriedade. Seria o mesmo que avaliar a Igreja católica
apenas pelas virtudes dos santos, quando sabemos que existe uma estrutura de poder,
corporativismo e todos os pecados dos clérigos e fiéis.
A legitimação estatal foi importante na imposição da ciência como autoridade (faz parte dos
mecanismos de exclusão). O Estado tem o poder para decretar que só podem praticar certa
profissão pessoas que pensam de tal ou tal forma, podendo depois activar meios policiais e
judiciais para impor isto. Em termos de retórica a favor da ciência moderna, o argumento mais
usado diz que a ciência é validada pelos sucessos tecnológicos. O argumento é duplamente falso.
Por um lado, apesar da tecnologia moderna usar muita ciência, o fabrico de um qualquer
produto tecnológico envolve muitas linhas causais, nunca sendo tudo unificado por um mesmo
princípio científico que, por isso mesmo, nunca poderá ser validado desta forma. O sucesso
tecnológico apenas confirma a utilidade prática da 321
ciência. Por outro lado, dentro do âmbito da inegável contribuição da ciência para o sucesso de
tecnologia, é habitual considerarem-se apenas os resultados benéficos e atribuir os malefícios à
“pseudociência”. Contudo, foi a ciência efectiva que esteve por trás da bomba atómica, do gás
mostarda ou da engenharia social, e é por isso que estas coisas funcionam.
É também habitual tentar salvar a honra da ciência distinguindo esta das suas aplicações.
Roosevelt decidiu avançar para a construção da bomba atómica e Truman decidiu lança-la mas
eles não decidiram sozinhos, já que os cientistas tiveram que mostrar a viabilidade e
conveniência das decisões com bases científicas. α90

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