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FERNAND-LUCIEN MUELLER Professor

da Universidade de Genebra História da


PSICOLOGIA, Da Antigüidade aos dias de
hoje
29 edição, acrescida e revista
I IIIII I
N 1 56 1
Tradução de
ALMIR DE OLIVEIRA AGUIAR
J. B. DAMASCO PENNA
LÓLIO LOURENÇO DE OLIVEIRA
MARIA APARECIDA BLANDY
COMPANH1ÁT NACIONAL
Do original francês
Histoire de la psychologie
tome premier
De l'antiquité à Bergson
tome 2
La psychologie contemporaine
publicado na Bibliothê que Scient
editada por
PAYOT
(Paris, 1976)
A primeira edição deste livro foi publicada em co-edição com a
EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Direitos para a língua portuguesa adquiridos pela
COMPANHIA EDITORA NACIONAL
Rua dos Gusmões, 639
01212- São Paulo, SP
que se reserva a propriedade desta tradução
1978
Impresso no Brasil
TÁBUA DA MATÉRIA
Notas da Editora:
i. à segunda edição brasileira XI
ii. à primeira edição brasileira XI Prefácio
à segunda edição brasileira XIII Prefácio
à primeira edição brasileira XIV Prefácio
da quarta edição francesa XV
Prefácio da primeira edição francesa XVII
PRIMEIRA PARTE
A noção de alma entre os gregos
1 - A Grécia primitiva 3
1. O animismo
2. O mundo homérico 5
3. O culto de Dioniso 6
4. O mito órfico 7
II - O nascimento da exigência racional 9
1. Osprimeirosjônicos 9
2. Heráclito e o devir 10
3. Parmênides e o Ser imóvel 13
4. Alcmeão de Crotona 14
v
5. Os quatro elementos de Empédocles .
6. O Nou de Anaxágoras
7. Diógenes de Apolônia
III - A psicologia médica na Antigüidade 21
1. As origens da medicina hipocrática
2. As causas e a cura das doenças
3. A energia vital e o papel do cérebro
4. O homem no universo
5. A sabedoria hipocrática
6. Aspectos psicoterapêuticos
7. De Hipócrates a Galeno
IV - O ensinamento dos sofistas e o método socrático 29
1. A descoberta da subjetividade
2. O relativismo de Protágoras
3. Górgias e a linguagem
4. A pesquisa socrática
V - A psicologia de Platão 35
1. A espiritualidade da alma e seu destino
2. O processo do conhecimento
3. Uma psicofisiologia finalista
4. As perturbações psíquicas e os fatores inconscientes
VI - A psicologia de Aristóteles 41
1. Aristóteles e seus predecessores
2. A oposição a Platão
3. A alma como "forma" do corpo
4. O próprio do homem
5. O primado ontológico
6. O objeto da psicologia
7. As sensações e a percepção
8. A imaginação, a memória, os sonhos
9. O princípio de perfeição
VII - A psicologia do epicurismo e do estoicismo 52
1. A exigência imanentista
2. As condições históricas
3. Os átomos e o clinâmen
4. A materialidade da alma e o conhecimento
5. A "psicoterapia" epicuréia
6. O panteísmo estóico
7. O pnezima divino
8. O mundo, a alma, a liberdade
SEGUNDA PARTE
A crise do mundo mediterrâneo e a Idade cristã
VIII - A irrupção do pensamento hebraico 65
1. O sincretismo alexandrino
2. Filo e a tradição judia
3. A alma e o mundo exterior
4. A vida espiritual
5. A mudança de perspectiva
IX - O acme do "neoplatonismo": Plotino 71
1. Plotino e seu tempo
2. A alma universal
3. O domínio da psicologia
4. A imaterialidade da alma e opneiima
5. O organismo e as sensações
6. A imaginação, a memória, a consciência
7. A inspiração de Plotino
X - A psicologia cristã 79
1. A nova intuição do mundo
2. São Paulo
3. A psicologia dos apologistas
4. Tertuliano
5. Clemente de Alexandria
6. Orígenes
1. O contexto metafísico
2. O homem do pecado original
3. A evidência imediata da alma
4. Os graus e as funções da alma
5. Os sentidos, a razão, a memória
6. A influência do agostinismo
-
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XI - Santo Agostinho 88
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VI
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VI
XII - Santo Tomás de Aquino . 98
1. A orientação metafísica .
2. A alma e suas potências
3 Os sentidos externos
4. O senso comum
5. O papel das imagens
6. O papel do intelecto agente
7. O dualismo tomista
TERCEIRA PARTE
A idade moderna
X - A ruptura com a tradição e a constituição do mundo moderno 109
1. A grande crise do século XVI
2. A nova imagem do universo
3. A Reforma e a demonologia
4. O homem como objeto de pesquisas concretas
XIV - As idéias psicológicas no Renascimento 118
1. Leonardo da Vinci
2. Paracelso
3. Pietro Pomponazzi
4. Bernardino Telésio
5. Giordano Bruno
6. Michel de Montaigne
7. Francis Bacon
XV - O dualismo cartesiano 151
A revolução metodológica
O dogmatismo das duas substâncias
O espírito e o corpo
As imagens e a percepção
A psicologia concreta de Descartes
A psicoterapia cartesiana A nova problemática
XVJ - As reações a Descartes 163
A psicologia religiosa de Pascal e Malebranche
Spinoza ou o paralelismo de identidade
Locke ou a exigência empirista
Leibniz ou a descoberta do inconsciente
As pesquisas experimentais
XVII A psicologia no Século das Luzes 188
1. O progresso das ciências humanas e a sobrevivência do espírito mágico
2. A psicologia subjetiva de Berkeley
3. O mecanismo de La Mettrie
4. O homem dos enciclopedistas
5. A alma para Voltaire e Rousseau
6. A psicologia espiritualista de Condillac
7. O "sonho ousado" de Charles Bonnet
8. A psicofisiologia de Cabanis
9. A fenomenologia de Hume
10. A psicologia racional de Chrístian Wolff
XVJIJ - A psicologia no pensamento alemão do século XJX 240
1. A importância do pensamento germânico
2. As condições do conhecimento em Kant
3. A ilusão da psicologia racional
4. O caráter prático da psicologia
5. As dificuldades de uma psicologia como ciência
6. A intuição da alma como atividade
7. 1-legel e o universal-concreto
8. O inconsciente na filosofia alemã
XIX - De Maine de Biran a Bergson 251
1. O "fato primitivo" do eu e a primazia do esforço voluntário
2. A tarefa da psicologia
3. A liberdade e a vida afetiva
4. A exigência de uma psicologia espiritualista
5. O aparecimento do pensamento de Bergson
6. Os "dados imediatos" da consciência e o "eu profundo"
7. As duas memórias
8. A influência do bergsonismo
QUARTA PARTE
A "nova" psicologia
XX - A origem e o desenvolvimento da psicologia científica 267
1. O clima positivista
2. O empirismo inglês
3. A psicologia experimental na Alemanha
4. A obra de Théodule Ribot (1839-1916)
5. As ciências psicológicas em 1900
6. A reabilitação da introspecção
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276
278
V
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XXI - A formação de escolas no século XX.
1. A psicologia "das profundezas"
a) Origens da psicanálise b) O desenvolvimento do freudismo c) A "psicologia
individual" de Alfred Adler d) A "psicologia analítica" de C. G. Jung
2. A reflexologia e o behaviorismo
3. A "Gestalttheorie"
XXII - Os principais campos das pesquisas
O problema dos critérios
O uso dos testes e seus limites
A psicofisiologia
A psicologia animal
A psicologia genética
A caracterologia
XXIII - A psicologia social
1. Os primórdios da psicologia social
2. O "culturalismo" norte-americano
a) Etnologia e psicanálise
b) Os "novos caminhos" segundo Karen Horney c) O humanismo de Erich Fromm d) O
extremismo critico de Herbert Marcuse
3. A abordagem experimental
a) A "facilitação social" segundo Floyd H. Allport
b) A noção de "atitude" e sua extensão c) A pesquisa sexológica de Kinsey d) As
experiências de Sherif
e) A "dinâmica dos grupos" de Kurt Lewin f) Moreno e a "sociometria"
4. Psicologia social, ciência e filosofia
XXIV Fenomenologia e psicologia
1. Husserl e a psicologia
2. A influência da fenomenologia
3. A psicologia fenomenológica
a) na obra de Jean-Paul Sartre b) na obra de Maurice Merleau-Ponty
Conclusão
Bibliografia sumária
Indice onomástico
280
280
280
284
293
297
302
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1.
2.
3.
4.
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6.
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313
314
321
323
336
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362
362
364
364
370
372
375
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383
386
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407
419
427
433
435
x

NOTAS DA EDITORA
i. À SEGUNDA EDIÇÃO BRASILEIRA
Como se vê do prefácio do Autor para a quarta edição francesa de seu livro, base desta
edição que ora estamos a publicar, ocorreram alterações no texto, particularmente na
quarta parte. Toda a considerável porção assim acres cida ao original, bem como tudo
quanto nele veio a ser alterado, foi agora traduzido por Almir de Oliveira A guiar, a
quem por igual se devem algumas notas, marcadas com suas iniciais. O restante do
texto da primeira edição brasileira foi mantido, na conformidade da outra Nota da
Editora.
ii. À PRIMEIRA EDIÇÃO BRASILEIRA
Os primeiros quinze capítulos deste livro foram traduzidos pelo Professor Lálio
Lourenço de Oliveira; os demais, pela Professora Maria Aparecida Blandy. Com vistas
à desejável uni forrnidade da terminologia, todo o texto foi revisto pelo Professor J. B.
Damasco Penna, que também redigiu algumas notas, assinaladas com suas iniciais.
X

A GRÉCIA PRIMITIVA
1. O animismo
2. O mundo homérjco
3. Oculto de Dioniso
4. Omito órfico
A idéia de alma nasceu sem dúvida de experiências fundamentais:
nascimento e morte, sono e sonhos, síncopes, delírios, etc., inerentes a uma primeira e
obscura tomada de consciência, pelo homem, de sua própria reali dade no mundo. Se
hoje, com a bagagem de longo passado, ela se encontra dentro de um contexto teórico
de articulações precisas, o mesmo não se dava, evidentemente, quando as
representações das coisas se encontravam ainda confusas no espírito humano,
estreitamente submetidas ao jogo dos senti mentos e da imaginação, sem o cuidado
daquilo que veio a tornar-se a "obje tividade". Ingênuo seria, pois, pretender noções
claras e distintas naquelas eras remotas.
No pensamento primitivo, a alma aparece numa correlação mágica - variável segundo
os povos - com as forças da vida, e é atribuida ao animal e ao homem pelo fato de que
eles respiram e podem sangrar; pois morrer é visi velmente exalar o últjmo suspiro ou
dessangrar-se. Ora, esta alma misteriosa, habitante do corpo, no que se tornará ela
quando este não passar de cadáver? A esta pergunta as mentalidades primitivas
responderam com toda a espécie de representações imaginárias: reino dos espíritos,
migração das almas, fan tasmas de almas do outro mundo, etc.
Sabe-se, agora, que a Humanidade, onde quer que apareça, se mani festa, inicialmente,
por uma atitude animista. Parece que as primeiras socie dades humanas atribuíam seus
êxitos e seus malogros a misteriosas potências, onipresentes, capazes de modificar o
curso das coisas. Tal concepção provo-
CAPÍTULO 1
1. O animismo
3
2. O mundo homérico
cava o desejo de conciliar ou domesticar essas forças por meio de práticas religiosas ou
mágicas, as quais se encontram, assim, na própria origem da vida mental.
Os estudos modernos, tanto sobre a mentalidade infantil quanto sobre a mentalidade
primitiva, têm esclarecido de maneira satisfatória esse estado de espírito que consiste
em projetar no exterior desejos e temores, em conferir poderes ocultos aos seres e coisas
do mundo ambiente. Todos nós, adultos ocidentais, na primeira infância, acreditamos nos
contos de fada, e daquele mundo poético e miraculoso de então resta-nos muitas vezes
uma vaga nostal gia, sempre reavivada por ocasião das festividades do Natal.
A psicologia própria a essa mentalidade animista apresenta formas variadas e longe está
de ser tão simples quanto poderiamos crer à primeira vista. Por exemplo, não é fácil
saber em que medida a alma particular atri buída por certos povos africanos a partes do
corpo (olhos, sangue, coração, fígado...), representa, para eles, a sede de uma potência
vital experimentada como substancialmente una, ou se corresponde a um pluralismo
radical do homem. Este problema, aliás, não está inteiramente elucidado nem sequer para
o mundo homérico, no qual os indivíduos falam de si próprios dizendo:
"meu caro coração" ou "minha cara cabeça". De qualquer maneira, o agrupamento em
categorias das crenças manifestadas por certos povos primi tivos nos faz distinguir
diversas espécies de alma: uma alma-vida, que aban dona o corpo durante o sono,
vagueia e encontra, então, outras almas e após a morte procura outro corpo, e nele pode
originar doenças (cabe, então, ao feiticeiro, expulsá-la e mantê-la no mundo dos mortos);
uma alma-sombra, que acompanha o corpo no estado de vigília (para não
perdê-la, os negros da Africa Ocidental evitam expor-se ao sol do meio-dia); uma alma-
reflexo-do- corpo, que aparece nas águas e objetos brilhantes; e, por fim, outra espécie de
alma, que o indivíduo tem em comum com um animal, por exemplo, e que acarreta uma
identidade de destino e, até, de certas propriedades físicas e morais.
Os gregos primitivos concebiam também a atividade vital sob as diver sas formas de
sombra, de imagem, de simulacro, de espectros dos mortos, e depois deles os romanos
distinguirão ogenius, a umbra (que aparece em redor do tumulus), do spiritus (que astra
petit = sobe aos céus), e dos manes (que descem ao orco, reino subterrâneo das
sombras). Significa isso que sua idéia de alma, que já parece implícita nas mais antigas
concepções gregas do homem e seu destino, não difere fundamentalmente da que se
encontra entre os povos primitivos em geral, e que constitui o animismo em suas
diferentes formas. A idéia da alma semelhante ao corpo que ela ocupava, embora mais
esmaecida e tênue, acrescenta-se a da alma como um sopro exalado no instante da
morte. Freqüentemente, as decorações dos vasos gregos ilustram essa concepção pela
imagem de uma borboleta('), mosca, ou outro inseto alado, a escapar-se pela boca do
moribundo. Seria preciso lembrar que a vida do homem, na própria Bíblia, tem po r
origem um sopro de Jeová? (2)
(1) O mesmo termo (psyche) designa borboleta e alma.
(2) "E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em seus narizes o
fôlego da vida; e o liontem foi feito alma si, ente.'' (Gê,ss'ss.s , 11. 7.)
Não é fácil fazer idéia precisa do que tenha sido a fé religiosa na Grécia antiga, e
excelentes humanistas discutem ainda sobre isso. Razão por que é difícil ligar as
concepções presentes nos poemas homéricos às que se eviden ciam nos mistérios gregos,
pois o mundo homérico, onde prevalece o heroís mo, é regido por deuses cheios de vida.
E quase certo que a religião de Homero se afasta das tradições populares e é provável
também que não excluísse uma corrente mística bastante mais profunda, vinculada
especial mente ao culto de Deméter. Rohde julga que os poemas homéricos, prece didos
por longa elaboração de legendas poéticas, e que descrevem um estado social avançado,
manifestam antes um fim do que um começo. E pelo fato de nos apresentarem gregos
muito evoluídos e ricos de experiência, o desenrolar dos funerais de Pátroclo parece-lhe
sobrevivência de culto mais antigo. Tem- se observado freqüentemente que esses poemas
exprimem um sentimento muito vivo da realidade concreta, bem mais objeto de interesse
do que o desti no da alma separada do corpo:
"ser como um deus na terra é ter suficiente mente todas as riquezas e todas as fontes de
gozo material que faltam à maior parte dos homens( l)". Esse gosto pela vida, o homem o
experimenta enquanto é, ao mesmo tempo, alma e corpo e essa união preside as suas
atividades. "Se os homens da época homérica não falam expressamente da doçura e das
alegrias da vida, é porque ela se apresenta muito naturalmente sob cores riso nhas a um
povo vigoroso, em vias de desenvolver-se, dentro de condições sociais pouco
complicadas e onde os fortes encontram facilmente as condições da felicidade no prazer
e na ação. Pois, verdadeiramente, o mundo homérico não é feito senão para os fortes, os
hábeis, os poderosos(
Na Ilíada, os dois móveis essenciais da vida moral são o temor ao julga mento alheio e a
utilidade coletiva da coragem, que ganha todo seu valor nos combates. Não se trata de
recompensa ou de castigo no Além, nem mesmo de um poder - cuja noção surge na
Odisséia - capaz de proteger por vezes o justo neste mundo. Tanto quanto o corpo que
abandona, a psique não explica o mistério do homem como ser dotado concretamente de
sentimentos, de desejos, de vontade, de pensamento. Esse homem ativo e consciente
morre quando a alma, que é da natureza do vento, abandona o corpo pela boca, ou com
o sangue de um ferimento, para dirigir-se ao Hades lamentando seu destino. Quando
Pátroclo, ferido de morte por Heitor, morre predizendo que este também não viverá
muito tempo, suas últimas palavras são assim pon tuadas: "Ele diz: a morte que tudo
acaba já o envolve. A alma abandona seus membros e se vai, voando, para o Hades,
lamentando seu destino, deixando a força e ajuventude... (3)"
A sorte dos mortos não é invejável, ainda quando possamos imaginá-la privilegiada para
as grandes almas mortas. Quando Ulisses saúda a inigua lada felicidade de Aquiles, que
exerce agora - após ser honrado como um deus - seu poder sobre os mortos, o herói lhe
responde amargamente: "Oh! Não pintes a morte com cores agradáveis, nobre Ulisses!...
Antes preferia,
(1) Fernand ROBERT. h'omère, P.U.F., 1950, pág. 46.
(2) Erwin ROHDE, Psvché. edição francesa por Auguste Reymond, Paris. 1928. pág. 2.
(3) Iliade, XVI, 850. tradução de Paul MAZON, coleção Universités de France.
4
5
encarregado do cuidado dos bois, viver servindo a um pobre proprietário agrícola, nada
famoso por sua mesa, do que reinar sobre estes mortos, sobre todo este povo extinto!
(1)"
No reino de Hades e de Perséfone, para além do Oceano e do rio Aque ronte, a alma
desencarnada volta a encontrar seus semelhantes, as almas dos mortos, que se agitam
inconscientes nesse reino das sombras, impalpáveis, inconsistentes como o fumo, ou
como a imagem refletida pela água, livres das agítações dos vivos, embora esses
fantasmas conservem os mesmos traços daqueles. Quando Aquiles, ao cair da noite, se
encontra na presença da alma de Pátroclo que implora sepultura, identifica-a pela forma e
até pelo olhar. E essa alma, ela também, chora a vida perdida: "Sepulta-me logo, para
que eu passe as portas do Hades. Lá estão almas que me afastam, me expulsam, sombras
de defuntos. Não me permitem transpor o rio e a elas unir-me, e cis me a errar
em vão de um lado a outro das grandes portas da morada do Hades. Vai, dá-me tua mão,
peço-te chorando. Não sairei mais do Hades quando me tiveres dado uma parte de fogo.
Não mais nos reuniremos em conselho, vivos, sentados longe dos nossos: o odioso
trespasse me devorou. Aliás, tal era meu destino, desde o dia em que nasci... (2)"
Os poemas homéricos nada nos ensinam acerca da origem desse corpo invisível, duplo
do corpo visível, que a ele sobrevive como sua sombra; somen te sabemos que todo
retorno é defeso aos mortos, separados dos vivos pelo Oceano e pelo Aqueronte. Por
isso, os homens que vivem sobre a terra, nada têm que temer desses defuntos, nem se
preocupam em obter-lhes favores ou render-lhes culto.
3. O culto de Dioniso
Se o mundo homérico é um mundo heróico, para o qual a verdadeira vida é esta cá de
baixo, pouco mais tarde- quando já se exerce a especulação racional dos pensadores
jônicos - surge, ou ressurge, na Grécia, uma tendên cia religiosa e mística, fundada na
crença em profundo desacordo entre a alma, investida de valor sagrado, e o corpo. A
alma guarda nostalgia do Além, de onde procede, e o corpo lhe parece prisão ou túmulo.
E de duvidar que as impressões produzidas pelos sonhos, pelos acontecimentos graves da
exis tência, ou pelos fenômenos meteorológicos ou cósmicos, tenham bastado para
originar tal crença; as emoções ligadas às práticas de certos cultos, particular- mente o de
Dioniso, aí desempenharam, provavelmente, importante papel.
Parece que esse culto nasceu muito cedo; talvez já existisse na Trácia na época pré-
helênica. Sabe-se que seus adeptos, agrupados em associações secretas, em tíasos, o
celebravam à noite, nas montanhas. Danças frenéticas, à luz de tochas, acompanhadas de
gritos e ritmadas ao som de tambores e de flautas, suscitavam aquele delírio coletivo de
que, ainda hoje, podem dar idéia as cerimônias sagradas de certas tribos negras(
Tivessem tais cultos, como móvel original, um desejo de conciliar as misteriosas forças
da natureza,
(1) Odvssée, XI, 490, tradução de Victor BÉRARD.
(2) 1/jade, XXIII. 70, tradução de Paul MAZON.
(3) Elj}tIFlI)ES descreve esse euI em Li /,mrhu,,,o Á 'hr li r, Ii do por Mário Paris,
l'ayot. 1923.)
ou a celebração de mitos consagrados à memória dos avoengos, suscitavam eles uma
exaltação delirante, cuja lembrança devia permanecer intensa e duradoura. Essa
experiência pôde levar à convicção de que aquela misteriosa emoção de plenitude,
despertada pelo deus e com ele identificada, era muito superior à vida mesquinha e
quotidiana da terra e que, assim sendo, o corpo não possuía sentido senão como
invólucro dessa alma revelada a si mesma( 1). Pensa-se tenha cabido aos órficos, cuja
seita parece ter aparectdo na Grécia em meados do século VI antes de nossa era, dar ao
culto de Dioniso certa con sistência e disseminá-lo na Atica, na Sicília e no sul da Itália.
Sem que se possa estabelecer um contato absolutamente certo, revela-se espantosa seme
lhança entre essa vaga mística e as crenças então existentes na India(
4. O mito órfico
Sua doutrina, obra dos participantes da seita, era atribuída a Orfeu. Tinha por centro a
lenda de Dioniso, filho de Júpiter e de Perséfone, que procurava fugir aos cruéis Titâs por
meio de todo tipo de metamorfoses, e que, transformado em touro, foi por eles retalhado.
Os Titãs foram queima dos pelo raio de Zeus. E como houvessem absorvido a vida do
deus, ao devorá lo, o gênero humano, nascido de suas cinzas, traz dentro de si o duplo
princí pio do bem e do mal.
Nessa lenda, nascida para explicar o esquartejamento ritual do touro que representa o
deus, transparece um motivo metafísico: a pluralidade - isto é, o mundo - nasceu de um
crime cometido contra a unidade do deus, e o objetivo final é, portanto, o retorno à
unidade indevidamente quebrada. O corpo (elemento títanesco) é um túmulo para a alma
(elemento dionisiaco):
libertar-se dele torna-se o fim supremo. Mas como é possível essa libertação, uma vez
que a alma não deixa um corpo senão para introduzir-se em outro, segundo a dura lei de
Anánke, a dolorosa "roda dos nascimentos"? Pela purificação, pela ascese. E só quem se
submete aos preceitos da vida órfica e repudia os prazeres do corpo e as atrações da vida
terrena pode conhecer semelhante libertação. Após a morte, purificada, a alma participa
de um banquete em que se embriaga; depois, voa para os astros a fim de ai desfrutar
vida eterna.
Parece que o ensinamento dos pitagóricos terá devido muito ao dos órfi cos, mas que
deste se distingue por preocupações científico-racionais ligadas àquela ascese que deve
assegurar a purificação da alma. Sabe-se que o pitago rismo constituiu um movimento
tanto religioso, moral e político, quanto inte lectual. A documentação referente a isso é
duvidosa, e nela se encontra sem pre a lenda de mistura com uma história que nos foi
transmitida indireta mente. Essa história se refere a duas épocas diferentes. A primeira,
que vai da fundação da escola de Crotona (cerca de 530 a.C.) até a morte de Platão
(cerca de 350 a.C.); a segunda, neopitagórica, iniciada no primeiro século de
(1) DURKI-IEIM. em Les fomises llémentaires de/a eje reíigieuse, trata da reflexão que
se exerceu sobre as emoçães do culto. Sua interpretação sociotógica foi abundantemente
comentada e discutida. Qualquer que seja seu valor, não poderia, evidentemente, ser
decisiva quanto à própria natureza da alma humana, cnadora desses cultos
que os macacos antropóides ignoram... -
(2) Tem-se observado que. ao tempo de PITAGORAS. os delegados das cidades gregas
da Asia Menor puderam encontrar os das provincius ocidentais da India na corte do rei
dos persas, senhor de umas e de Outras.
1
6
7
nossa era. As doutrinas atribuídas aos pitagóricos do primeiro período, cujo
conhecimento exige freqüentemente a utilização de textos do neopitagorismo, são muita
vez contraditórias, e é impossível atribuí-las todas apenas a Pitá goras. Por outra parte, se
é considerável a bibliografia de obras e artigos con sagrados aos mistérios órficos, não é
menos certo que nada sabemos de seguro quanto a seu surgimento e organização; todas
as informações propaladas a este respeito são duvidosas. No que se refere aos mistérios
de Elêusis, dados mais sólidos não deixam nenhuma dúvida quanto à organização a eles
relacio nada, e nem por isso é menos difícil representarmos com certeza as cerimônias
que presidiam às iniciações. Parece, contudo, que nessa cidade,
onde as gran des famílias partilhavam as principais funções religiosas, os iniciados eram
mergulhados nas trevas, aterrorizados por visões de morte, depois subita mente inundados
de luz ofuscante; em suma, a cerimônia de iniciação com portava realmente o simbolismo
de um chamado a uma vida nova.
8
era. As doutrinas atribuidas aos pitagóricos do primeiro período, cujo cimento exige
freqüentemente a utilização de textos do neopitagorismo, auita vez contraditórias, e é
impossível atribuí-las todas apenas a Pitá Por outra parte, se é considerável a
bibliografia de obras e artigos con dos aos mistérios órficos, não é menos certo que nada
sabemos de seguro to a seu surgimento e organização; todas as informações propaladas
a espeito são duvidosas. No que se refere aos mistérios de Elêusis, dados sólidos não
deixam nenhuma dúvida quanto à organização a eles relacio e nem por isso é menos
difícil representarmos com certeza as cerimônias residiam às iniciaer P,"
- ae Iutclaçao com
- de uni chamado a urna vida nova
O NASCIMENTO n
1. °5Priznejj.
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No momento em que florescia na Grécia a corrente mística de nasceriam os mistérios
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originaji e Poder de espírito cati de novo o interesse dos filósof de Nietzsche a
Heidegger Em vez de p do problema da alma, cuja individualidade é misteriosamente
Postulada mito Ó de sua origem e de seu destino osjônicos indagam sobre om como
naturalistas. Com eles o problema da situação do homem no unive fl é abordado
exp!icitamet como irá acontecer quand o pensarne humano (já com os Søfistas) tomar
consciência por uma distância interior, complexidade do ato de conhecer Nessa época,
tudo se passa como se o es I do investig sobretudo impressionado pelos aspectos
variados universo o questi0n nele englob de imediato o ser humano
Parece deverse a Tales, o primeiro desses gran homens da Jônia, noção dephy no sentido
de um Princípio de Unidade que, sob o movimeni e a transformação das qualida diversas
do real, produz e faz envolver Coisas Pou importa assim, que Tales tenha assimilado
essa phys ess elemento fundament à água, talvez após refletir sobre as enchentes do Nilo
O essencial é que tenha enunciado pela primeira vez, a exigênc de u realidade natural
objetiva - existente independentemente do homem e tenha aberto assim caminho a toda
investigação científica Em Anaximan dro, autor de um tratadoD natureza do qual resta
um frag inte uma realidade origjn indeterminada e ilimitada o riao mundo por meio de
urna ptura
CA?
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CAPÍTULO 2

O NASCIMENTO DA EXIGÊNCIA RACIONAL


1. Os primeiros jônicos
2. Heráclito e o devir
3. Parmênides e o Ser imóvel
4. Alcmeão de Crotona
5. Os quatro elementos de Empédocles
6. O Nous de Anaxágoras
7. Diógenes de Apolônia
1. Os primeiros jônicos
No momento em que florescia na Grécia a corrente mística de que nasceriam os
mistérios, uma primeira forma de pensamento racional aparecia na Jônia, por obra de
homens cuja originalidade e poder de espírito cativam de novo o interesse dos filósofos,
de Nietzsche a Heidegger. Em vez de partir do problema da alma, cuja individualidade é
misteriosamente postulada no mito órfico, de sua origem e de seu destino, osjônicos
indagam sobre o mundo como naturalistas. Com eles o problema da situação do homem
no universo não é abordado explicitamente, como irá acontecer quando o pensamento
humano (já com os sofistas) tomar consciência, por uma distância interior, da
complexidade do ato de conhecer. Nessa época, tudo se passa como se o espí rito do
investigador, sobretudo impressionado pelos aspectos variados do universo, o
questionasse, nele englobando de imediato o ser humano.
Parece dever-se a Tales, o primeiro desses grandes homens da Jônia, a noção dephysis,
no sentido de um princípio de unidade que, sob o movimento e a transformação das
qualidades diversas do real, produz e faz envolver as coisas. Pouco importa, assim, que
Tales tenha assimilado essa physis, esse elemento fundamental, à água, talvez após
refletir sobre as enchentes do Nilo. O essencial é que tenha enunciado, pela primeira vez,
a exigência de uma realidade natural objetiva - existente independentemente do homem -
e tenha aberto, assim, caminho a toda investigação científica. Em Anaximan dro, autor de
um tratado Da natureza, do qual resta um fragmento, intervém uma realidade originária,
indeterminada e ilimitada, o dpeiron, de que provi- ria o mundo por meio de uma ruptura,
seguida de diferenciações progressivas.
9
Teve o pressentimento de uma evolução das espécies vivas, a partir do limo do mar; e
também a idéia - caberia ver nela a expressão filosófica das crenças órficas? - de uma
espécie de pecado ligado à ruptura da unidade original. Quanto a Anaxímenes, seu
discípulo, crê que o elemento essencial é o ar, entendido provavelmente num sentido que
engloba tanto os ventos, os vapores e as nuvens, quanto o espaço e o ar respirável.
Cronologicamente, sua teoria é a primeira de todas aquelas, singularmente florescentes na
Antigüidade, que atribuem papel privilegiado a esse elemento indispensável à vida. Dela
se originará a noção de pneuma, sopro criador da vida e animador dos organismos. Essas
primeiras filosofias são de admirar pelo cuidado novo de uma visão racional da
realidade, pela reivindicação audaciosa de uma verdadeira explicação desligada dos
mitos. Por esta razão, e provavelmente sem que isto fosse deliberado, transformaram
completamente a noção homérica da alma que, de simples duplo do corpo visível, apenas
capaz de contemplar as vicissi tudes da existência, se vê elevada à dignidade de princípio
cosmológico, fonte e motor do movimento e da vida.
Tal promoção implicava o abandono de sua individualidade após a morte, embora esta
conseqüência, a julgar por certos textos, tenha, provavel mente, escapado aos
pensadores jônicos. Pois, se a alma individual não é mais do que parcela da alma
universal aplicada a um corpo particular e de idêntica natureza, seu destino só pode ser
o de a ele retornar após a morte, como a vaga retorna ao mar.
2. Heráclito e o devir
A filosofia jônica atinge o ponto culminante com o pensamento de Heráclito. Dele
(morto talvez por volta de 480 a.C.) possuímos certo número de sentenças lapidares,
algumas das quais têm sua autenticidade posta em dúvida( 1). Esse pensador genial,
hoje considerado o pai do método dialético, teve uma intuição das coisas que dele faz
quase um moderno, tanto é verdade que nossa civilização, mutatis mutandis, se increve
sob o signo dessa mobili dade universal a que seu nome permanece ligado. A visão
heraclítica do mundo, e a de Parmênides, seu contemporâneo, constituem os dois pólos
entre os quais o pensamento ocidental oscilará constantemente. Pode-se dizer que suas
doutrinas antagônicas se nos apresentam, na perspectiva histórica em que nos achamos,
como as colunas de Hércules de toda a nossa tradição.
Para Heráclito, a mobilidade, inscrita no próprio coração do universo, engendra
incessantemente a multiplicidade de suas formas. A energia funda mental, animadora e
ordenadora desse eterno devir, tem sede num elemento quente e seco, concebível
unicamente em termos de movimento, a que se refe rem todos os processos orgânicos e
naturais, e que Heráclito chama de fogo. Chama de "caminho para o alto" e "caminho
para baixo" o que seriam as leis das transformações constantes do real. Admite-se que
por isso deve entender- se um processo de contração e de dilatação, a condensação
extrema do fogo a
(li A interpretação dos pré-socráticos suscita ittúmeros probletttas filológicos delicados
e. tnuifas vezes. controvertidos. Encontra.se a tradução integral dos fragtstentos originais
e doxografias referentes a 1-IERACLITO (e também a PARMÊNIDES e a
EMPEDOCLES). no volume de Yses BATTISTINI, Troitco,t e,oporaio,. col. Les
Essais, Galli,nard. 1955.
10
produzir a terra, que ela própria se dissolve em água, enquanto as exalações desta última
produzem o ar, donde novamente nascerá o fogo. Continuamen te, as mudanças da
temperatura acarretam mudanças de estado dos corpos orgânicos e fazem passar os
sólidos ao estado líquido ou gasoso. Parece, igual mente, que Heráclito, teria tido a idéia
do Eterno Retorno, presente nos estói cos e em Nietzsche ("O fogo, progredindo, tudo
julgará e arrastará"). Seus discípulos, pelo menos, lhe atribuíram a crença de que o
mundo, em datas regulares e fixadas pelo destino, é inteiramente absorvido pelo fogo de
que emana, para voltar a renascer, e isso eternamente.
E muito difícil fazer idéia do que poderia ser a "psicologia" de Herá dito, tão poeta
quanto filósofo. E bem verdade que existe, a esse respeito, significativo texto de Sexto
Empírico('), consagrado a uma exposição das idéias heraciticas por Enesidemo; não se
sabe, contudo, até que ponto este último acrescentou de si próprio. Atribui a Heráclito a
idéia de que "o que nos rodeia é dotado de consciência". Semelhante opinião parece
confirmada por outros fragmentos do próprio Heráclito, que designam o fogo universal
como o Logos. Registra, também, Enesidemo que a razão humana, segundo Herá dito, se
deve ao fato de que "aspiramos a razão divina pela respiração". Se nos esquecemos
durante o sono, para nos tornarmos de novo conscientes ao despertar, é porque "durante
o sono, quando se fecham as aberturas dos sentidos, o espírito que está em nós perde o
contato com o que nos circunda, e apenas conservamos nossa relação com o meio
através da respiração, como uma espécie de raiz". Ao despertar, esse espírito "olha pelas
aberturas dos sentidos como por janelas. e retoma, reunindo-se ao espírito que o circunda,
a faculdade da razão". Finda o fragmento por uma afirmação que testemunha a
indissolúvel solidariedade postulada por Heráclito, entre a alma universal e a alma
humana:
"Assim como o carvão que muda e se torna ardente quando o aproximamos do fogo, e
se extingue quando dele o afastamos, a parte do espírito circunjacente que reside em
nosso corpo perde a razão quando dele é desligada, e de igual maneira recu pera uma
natureza semelhante à do Todo, quando o contato se estabelece pelo maior número de
aberturas."
Como a existência da alma humana é atribuída a uma parte da reali dade universal, parece
realmente que os problemas a ela relacionados são, para Heráclito, os mesmos que ele se
propõe relativamente a toda a realidade. Se o homem é capaz de respirar, de sentir e de
raciocinar, é porque no universo existem ar, qualidades e razão. "O homem é
naturalmente privado de razão"; "O homem não possui razão. Apenas o ambiente é
provido dela". E como as qualidades estão em oposição constante, deve-se deduzir que a
oposição é requerida pela própria sensação, ligada a certo tipo de relação estabelecida
entre contrários. Quanto à passagem da sensação ao raciocínio, assinala-se, para ele, por
uma distinção entre a opinião e o conhecimento. ("A multidão não medita sobre nada do
que lhe acontece; e ainda, uma vez instruída, não o compreende; apenas se imagina a
respeito.")
O homem, esse microcosmo, combina em si os elementos que lutam no universo e,
como eles, está sujeito ao caminho para o alto" e ao "caminho
(1) Ade. math. (contra os que ensinam as ctênctas), VII.
11
Á
para baixo". As comparações heraclíticas entre a vida e o rio são por demais conhecidas
para que seja necessário insistir sobre elas:
Não podes descer duas vezes nos mesmos rios; pois novas águas correm sempre sobre
ti. Descemos e não descemos nos mesmos rios; somos e não somos.
Ser e não ser, eis o incessante devir; e, nesse fluxo universal, seres e coisas mudam de
lugar eternamente:
"E são em nós a mesma coisa o que é vivo e o que é morto, o que está desperto e o que
dorme, o que é jovem e o que é velho; aqueles são mudados de lugar e se tornam nestes,
e estes, por sua vez, são mudados de lugar e se tornam naqueles."
O corolário desta absoluta mobilidade é a relatividade universal:
"As coisas frias se tornam quentes e o que é quente se resfria, o que é úmido vem a
secar, o que secou se faz úmido. A água do mar é a mais pura e a mais impura. Os
peixes podem bebê-la, para eles é saudável; não pode ser bebida e é funesta para os
homens."
E como os contrários coexistem em toda parte, transformando-se uns nos outros; o
próprio homem é teatro de contradições permanentes:
"Não é bom para os homens obter tudo quanto desejam. A doença é que torna agradável
a saúde; mal, bem; fome, saciedade; fadiga, repouso."
O fogo e a água não podem equilibrar-se por muito tempo numa alma e, quando um dos
dois elementos aí adquire demasiada predominância, a morte sobrevéni:
"Para as almas é morte tornar-se água, e morte para a água é tornar-se terra. Mas a água
provém da terra e a alma, da água."
prazer:
A morte pela água espreita as almas que se deixam dominar pelo
"É prazer para as almas tornarem-se úmidas",
enquanto o fogo, manifestado pela tensão interior, lhes confere valor moral singular.
"A alma seca é a mais sábia e a' melhor."
Nem por isso é menos evidente que a excessiva predominância do fogo acarreta,
igualmente, a morte. Os fragmentos relativos a esse fim da alma são dos mais sibilinos e
mal permitem conhecer-lhe os caracteres específicos:
"Deuses e homens honram os que tombam na batalha. Os maiores mortos ganham as
maiores porções."
Do fato de a alma humana ser identificada com a força animadora do universo, veio a
idéia de inferir que seu destino é voltar ao principio, ordenador
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do universo e que o ser humano nada mais é quando o fogo, sabedoria do mundo que
lhe confere a razão, o deixou;
Mais vale jogar cadáveres que esterco."
Certos fragmentos, contudo, parecem infirmar essa conseqüência:
"Os mortos têm sensações no Hades. Após a morte, aguardam os homens coisas que
eles não esperam, nem mesmo imaginam."
Se a consciência da complexidade dos problemas envolvidos pelo que os modernos
chamarão "teoria do conhecimento" está forçosamente ausente em Heráclito, não se
poderia atribuir-lhe, sem risco de erro, unia visão do mundo obnubilada por materialismo
ingênuo, pois, se, para ele, tudo é matéria - embora fosse necessário saber exatamente o
que entende Heráclito por Logos (1) - trata-se de matéria em movimento, a tal ponto que
não dissocia os dois termos. E seu sentimento profundo, e até trágico, do mundo como
siste ma eterno de relações onde nada está em repouso levou-o, certamente, a pensar que
o que chamamos sensibilidade e razão, como produto de uma rela ção, não pertence
exclusivamente mais ao sujeito do que ao objeto - para dizer as coisas em linguagem
moderna. Não poderíamos, porém, estender-nos em conjeturas sem forçar as coisas. Por
outro lado, é lícito observar que a escolha do fogo como elemento primordial assinala
progresso relativamente às especulações anteriores, pois, a água e o ar não entram em
todas as mudanças da natureza.
Conhece-se a importância que a filosofia hegeliana e o materialismo dialético voltaram a
dar à visão heraclítica do mundo, com sua preocupação comum de ultrapassar os
limites, considerados por demais estreitos, das evidências fundadas numa rígida
aplicação do princípio de identidade. (*)
3. Parmênides e o Ser imóvel
Enquanto Heráclito fundara sua concepção do mundo na verificação
das mudanças qualitativas que nos oferece a percepção sensível, dissolvendo
F todas as formas do real no eterno devir, Parmênides é o autor de uma doutrina que
constitui a primeira reivindicação intransigente do pensamento racional, com a exigência
da identidade como único fundamento e critério da Verdade. Segundo ele, uma coisa é,
ou não é. Para salvaguardar a permanência, reque rida pelo exercício do pensamento
através das variações dos dados sensoriais, fez do devir pura aparência, sem consistência
possível nessa realidade una e idêntica a si mesma, tomada pela sua razão como evidência
lógica irrecusável. Pois um objeto, para mover-se, deve, ao mesmo tempo, estar e não
estar em
(1) Só enisle uma sabedoria conhecer o Pensamento que dirige todas as coisas por meio
de todas as coisas.
'As fronteiras da alma não poderás atingi-las, por mais longe que, por todos os
caminhos, te conduzam teus passos: tão profunda é a Palavra que a habita.
(*) V., a respeito da influência de HORACLITO: Fêticien CHALLAYF. Pequena história
das grandes /tIvsss/is trad. port. de Lut, DAMASCO PENNA ei, B. DAMASCO
FENNA, sol. 91 ,l "Atual Posta gôgtcas". São Pauto. 1966, pí,gs. 19-20. (1. tI. O. 1'.)
13
dado lugar. É impensável, porque é contraditório; e, uma vez que é contra ditório, é
falso. Como o pensamento exige isto: o que é (to eon), é absoluta mente, mister se faz
afirmar que não há senão uma só realidade, incriada e indestrutível, cuja unidade, plena e
indivisível, exclui todo movimento real, isto é, toda mudança real. Fora dessa verdade
absoluta, não pode haver senão aparências. opiniões sujeitas à ilusão e ao erro. Por isso,
não se pode admitir nem geração, nem destruição, nem devir.
A escassez das fontes e seu caráter duvidoso não permitem saber que destino essa
doutrina todo lógica reservava ao domínio da psicologia, necessa riamente colocada do
lado da ilusão própria àquela opinião que Parmênides subordina à verdade. Pensa ele
que o homem saiu do limo da terra e que a alma, enquanto princípio de vida, é um
composto de calor e de frio em equili brio. A proporção desses elementos num indivíduo
lhe determina o caráter do pensamento, e a velhice decorre de uma perda de calor. A
sensação, enquanto é, jamais pode desaparecer completamente; e o próprio cadáver
experimenta o frio, o silêncio e a obscuridade. Parmênides parece haver atribuído a diver
sidade das sensações a eflúvios que trazem aos poros as imagens dos objetos, e parece
ter admitido que o sujeito também é, de certo modo, ativo, conside rando que o olho, por
exemplo, emite raios que entram em contato com os objetos exteriores, O que parece
certo é que a alma, enquanto princípio motor, foi de po r Parmênides, de toda
consistência ontológica, em proveito da alma entendida como sujeito de conhecimento.
Pois sua dignidade não está na vida - que é movimento e não- ser - e sim no
pensamento, que coincide com a existência absoluta.
4. Alcmeão de Crotona
O motivo de inspiração em Pitágoras revestia duplo aspecto: místico e científico. Um
homem eminente, Alcmeão, desenvolveu de tal maneira o últi mo deles, que pode ser
saudado como fundador da psicofisiologia experimen tal. Ligado à escola médica de
Crotona - anterior, talvez, à confraria pitagó rica nessa cidade - e discípulo de Pitágoras,
era, a crer em Aristóteles, muito jovem ainda, quando o mestre atingia idade avançada.
Anatomista e fisio logista, dedicou-se à dissecaçãQ de inúmeros cadáveres de animais.
Permi tiram-lhe essas experiências descrever duas espécies de vasos no corpo hu mano: as
veias ph/éhes), que conduzem o sangue, e as artérias, que encon trou vazias de sangue.
Essa distinção se perdeu depois, e por muito tempo se confundiram todos os vasos.
Alcmeão se entregou, igualmente, a pesquisas sobre o funcionamento dos órgãos
sensoriais. Neste campo, parece ter-se dedicado a investigações sistemáticas, indagando,
principalmente, a propó sito da visão, qual o papel desempenhado pelo próprio olho e
pela imagem nele refletida; e, a propósito do ouvido, que papel se poderia atribuir ao ar.
Levaram-no seus trabalhos a descobrir certos canais ou "passagens" (os nervos ainda
não se consideravam como tais) que unem os diferentes órgãos ao cérebro, e a
reconhecer no cérebro uma função de primeira importância, quando ficou patente que,
por meio de lesões de certas "passagens", poderia impedir-se que certas sensações lhe
chegassem. Parece ter feito distinção -
não se sabe, porém, como - entre as sensações e o pensamento. Dc qualquer modo, teve
o mérito de ver que o cérebro desempenhava papel privilegiado, uma vez que. antes
dele, se admitia que o sensorium conimune era o coração. Hipócrates e Platão lhe
conservarão a importante descoberta, mas Empédo eles, Aristóteles e os estóicos
retornarão à idéia antiga.
Alcrneão, que realizou também pesquisas embriológicas. investigou a natureza do sono e
as condições que presidem à saúde. Alguns dos seuS pontos de vista parecem integrar as
doutrinas hipoeráticas. Pois consideras a que a Díke, a justiça, representa o estado normal
do mundo, que a saúde se deve ao equilíbrio das potências (isonomia) e às justas
proporções das qualidades (crase): úmido, seco, frio, quente, doce, salgado... Quando
algumas dessas qualidades predominam injustamente, instala-se o estado anormal, que
acarreta a doença.
A importância de Alcmeâo, pelo primado que estabelece da experimen tação sobre a
teoria, da antropologia sobre a cosmogonia, não poderia ser superestiniada: é provável
que sua influência tenha siclo considerável( ).
5. Os quatro elementos de Empédocles
Extraordinária figura é a de Empédocles, filósofo, poeta, médico e mago inspirado. Em
sua obra lírica - escrita em verso, a exemplo de Parmê nides - se reencontra a maior parte
dos elementos presentes nas doutrinas de seus predecessores: a água, de Tales, o ar, de
Anaxímenes, o fogo e o devir, de Heráclito, o Ser Absoluto de Parmênides, num contexto
de inspiração, por outro lado, estreitamente aparentada à da corrente órfico - pitagórica.
Pois. sua concepção de alma, onde reaparece a intuição órfica da vida, diverge da
concepção, inteiramente cosmológica, dos jônicos. Ele vê na alma uma reali dade decaída
de uma Idade de Ouro, e cuja essência, origem e destino são sobrenaturais. As almas,
"demônios imortais", foram expulsas da morada dos felizes em conseqüência de um erro
nascido do Odio. Precipitadas sobre a terra, entram no turbilhão dos elementos, obrigadas
a transmigrar de um corpo a outro, até a libertação final. Para renascer ao lado dos
deuses, libe rado da roda dos nascimentos, é preciso viver em pureza e ascetismo. Empé
docles acredita lembrar-se de suas existências anteriores: "Já fui, outrora, menino e
menina, moita e ave, mudo peixe do mar." (Frag. 117.) Estende a metempsicose também
às plantas, primeiras criaturas vivas surgidas cá embaixo, e invoca a lei da transmigração
das almas para condenar o sacrifício dos animais, quer para oferenda aos deuses, quer
para alimentação. Esta concepção mística da alma, convocada a tão alto destino, vem
acompanhada de visão muito naturalista do mundo, mistura de quatro elementos: o fogo,
o ar, a terra e a água. Esses elementos, "raízes" de todas as coisas, ao mesmo tempo
materiais e dotados de consciência, se agregam e se desagregam inces santemente, sob a
dupla ação do Amor e do Odío, e condicionam as quali dades fundamentais dos humores:
quente, frio,.seco, úmido. Há, pois, na
Ii Quan tu Se r,Ililrrttaç(Iee Sue urúfjeas e SiNt rúftc,te. ef. Jt,hrt RL'RNET, L 'aurore dr
Ia p/,,Io.vophu 'e utltçüu frattueea de Atttt. RLVMONe P.ttie, 'ueut. SUS. puxe. 225227.
14
15
origem, pluralidade de princípios imutáveis e específicos. Para conciliá-la com a
unidade, Empédocles faz intervir sua teoria da mistura, atribuindo a esses elementos
fundamentais - invariáveis em quantidade e em qualidade - o caráter de agrupar-se em
virtude de duas leis: a atração dos semelhantes pelos semelhantes e a repulsão dos
contrários. Essas leis são por ele invocadas em favor de uma forma de evolucionismo, a
qual não vemos muito bem como conciliar com seus pontos de vista místicos sobre a
alma: pois relaciona com os quatro elementos a vida e a forma dos corpos, e ao limo
elevado a certa temperatura, a capacidade de produzir animais. No início, a Terra era
povoada de monstros:
"Sobre a Terra nasceram jnúmeras cabeças sem pescoço, e braços vagavam nus e sem
espáduas. Olhos vagueavam, desprovidos de frontes." (Frag. 57.)
Ao acaso dos encontros, esses corpos incompletos tendiam a unir-se em virtude da lei
cIa afinidade, e muitas criaturas
nasceram com rostos e peitos voltados em direções diferentes; algumas geradas de touro
com face de homem; outras, ao contrário, geradas por homens com cabeças de touro, e
criaturas nas quais a natureza dos homens e das mulheres se mistu ravam, e providas de
partes estéreis." (Frag. 61.)
Entre esses primeiros seres, houve os que foram, casualmente, capazes de conservar a
vida e reproduzir-se. Inicialmente haste sólida e unida, a coluna vertebral fragmentou-se
em vértebras por desarranjos acidentais e fraturas, enquanto, através do corpo, no
decorrer de sua gênese, correntes de água criavam as cavidades abdominais, os intestinos,
o sistema urogenital, e uma corrente de ar centrífuga formava as narinas. Os órgãos da
respiração e da nutrição foram os primeiros em surgir nas primeiras formas animais;
vieram depois os órgãos sexuais, diferenciados segundo a quantidade de calor.
O papel deste último é essencial à vida; sua diminuição acarreta o sono; seu
esgotamento, a morte. Devem-se a Empédocles, que se dedicou à dissecção, as
primeiras noções positivas de embriologia. Descobriu que o embrião se nutre pela
placenta e, não, como cria Alcmeão, pelo corpo todo. Na matriz, o embrião está
envolvido numa membrana que contém também as águas, o âmnio (o nome foi
conservado). A alma se forma com o embrião e é insepa rável do sangue:
"Nutrido de altas vagas do sangue estridente, o coração traz aos homens o pensamento
nas espirais de seu fluxo. O sangue que banha o coração é pensamento." (Frag. 105.)
Como todas as partículas infimas das coisas, ela se move pelos canais denominados poros
(pómi). Admitindo ser o coração a sede das sensações, Empédocles representa um recuo
em relação a Alcmeão; o coração é também, para ele, por não distinguir entre sentir e
pensar, a sede da vida mental. A formação dos músculos resulta de uma mistura igual dos
quatro elementos. Uma superabundância de fogo e de terra produz os ligamentos (neíira),
e uma superabundância de água e de terra, os ossos. Quanto às unhas, são neüra que
receberam ar.
Existe um texto muito significativo de Empédocles (Frag. 100) a res peito do ar no
fenômeno da respiração. Viu muito bem que esta interessa a todo o organismo, por
intermédio dos poros disseminados na superfície da pele, e não apenas aos órgãos
incumbidos dessa função. Para explicar que o ar penetra pelos poros ao retirar-se o
sangue para o interior do corpo, e é expulso quando o sangue retorna à periferia, recorre
Empédocles à analogia com uma clepsidra mergulhada em água. Esta, quando o tubo
superior está fechado, não pode entrar pelos pequenos orificios de baixo, mercê da
presença do ar; mas, assim que o dedo obstrutor do tubo se ergue, a água penetra à
medida que o ar escapa. Desempenham os poros importante papel na concepção de
Empédocles. Pois, é por eles que se transmitem as partículas que se destacam dos objetos
para suscitar a percepção. Os órgãos sensoriais correspondem a esses objetos, em virtude
da afinidade que une seus elementos comuns. Pelos eflúvios emanados e captados, uma
porção da coisa percebida vem unir-se à mesma substância contida no sujeito percipiente.
Em outros termos, o conhe cimento é atribuído por Empédocles
(cujos fragmentos revelam um senso patético das "correspondências" entre tudo que
existe) a uma ação do semelhante sobre o semelhante:
"Pela terra, pela água, pelo ar em nós, conhecemos a terra, a água e o éter divino, e pelo
fogo, o fogo devorador, e o amor, pelo amor, o ódio, pelo ódio maldito." (Frag. 109)
É o produto de uma relação de simpatia entre as emanações e os órgãos receptivos. O
que é aparentado às partes constitutivas do indivíduo produz nele, ao mesmo tempo que
o conhecimento, um sentimento de prazer. O que lhe é oposto, origina a aversão. Essas
afinidades explicam, segundo ele, todas as percepções. No que respeita à visão, existe no
universo uma luz aderente a todo objeto sensível, cujos raios atingem o olho. Tais
emanações luminosas, formadas de partículas ínfimas, têm afinidade com a luz interna do
olho. Quando um raio toca o olho, as partículas do fogo interno deste saem ao encontro
das partículas do raio e se produz a imagem. De sua atribuição de partículas à luz, já
inferia Empédocles ser necessário um certo tempo para que ela se desloque dum ponto a
outro. No referente ao som, é ele captado pelo labirinto do ouvido e depende dos poros
ao longo dos quais se move. Empédocles descreve a cartilagem do caracol, a qual julga
ser, no ouvido interno, o próprio órgão da audição.
Como já observei, a dificuldade é conciliar, nesse pensador genial, a concepção mística
da alma e seus pontos de vista naturalistas. Pois não é muito de duvidar que o Amor e o
Odio, são, para ele, tão corpóreos quanto os demais componentes do universo: o fogo, o
ar, a terra e a água. O indivíduo é gerado pela união transitória de tais elementos, daí
resultando que a dosagem deles explica suas qualidades particulares. Pode-se ver nisso
como que o rudimento de uma caracterologia: a idéia de que o corpo, sua estrutura e seu
funcionamento influenciam a vida psíquica e mental.
A teoria de Empédocles, sob seu aspecto hiozoísta e alquimista, exerceu, por certo,
grande influência. No plano médico, voltamos a encontrá la na escola hipocrática, sob a
dupla forma do princípio homeopático: sitnilia similibus curantur, e da teoria dos quatro
temperamentos.
16
17
6. O Noõs de Anaxágoras
À idéia dos jônicos de que a matéria contém em si mesma a força que a anima, opõe
Anaxágoras( 1) uma concepção que preludia o idealismo platônico:
a de um princípio ordenador do universo, independente dos elementos que o compõ em e
do que ele contém. Este princípio é o Nous, isto é, a Inteligência ou o Espírito, embora
convenha, sem dúvida, não atribuir a este termo o sentido absolutamente imaterial que
reveste desde Platão. Pois se Anaxágoras pretende realmente significar com ele uma
espécie de razão ou de inteligência universal, um princípio de organização cósmica, é sob
a forma de um fluido universal.
Identifica esse Noíis à divindade, e sua cosmogonia atribui-lhe a forma ção de mundos
inumeráveis. E esse fluido cósmico, em ação por toda parte, que confere à matéria um
movimento giratório do centro para a periferia e anima tudo quanto vive: plantas, animais
e homens. Entre essas diferentes formas de vida, não vê Anaxágoras senso diferença de
grau. Parece admitir que as próprias plantas são providas de consciência, experimentam
prazer quando crescem e sofrem quando as folhas tombam( Vale dizer que não distingue,
aparentemente, a consciência das funções vitais e que a generali zação deve entender-se
ao nível do movimento e dessa atividade que hoje chamamos biológica. Parece não se ter
proposto o problema de urna consciêri cia própria ao ser humano como tal, origem de sua
ação especifica. Por isso, é difícil compreender como este princípio ordenador - a um
tempo espírito, sopro, alma, conhecimento - pode, simultaneamente, I separado do mundo
e explicar o movimento e a vida. Os seres vivos, originários do limo da terra, estão plenos
do espírito que toma consciência dos fenômenos mediante os órgãos imperfeitos dos
sentidos. Parece que o desenvolvimento maior ou menor do Noíis em suas manifestações
particulares deva ser atri buído à mistura dos elementos constitutivos dos organismos.
Porque. diz-nos Anaxágoras, se ele permanece separado das substâncias que a ele se
misturam sem cessar no universo,
'Todas as outras coisas participam em certa medida de cada coisa, enquanto o Noãs é
infinito e autônomo, e a nada se mistura, mas é só, e só ptr si." (Frag. 12.)
ele nem por isso deixa de estar ligado a esses organismos que variam em função dos
elementos que a ele se misturam. Assim, nele, como em Empé docles, aparece certa
noção da influência da vida orgânica sobre o psiquismo. A sensação decorreria de
modificações sobrevindas no organismo por contatos ou por impressões com elementos
diferentes. Pois Anaxágoras, em oposição à concepção empedóclia da percepção do
semelhante pelo semelhante, introduz a idéia de uma percepção do contrário pelo
contrário. Do princípio de que "em cada coisa há uma porção de cada coisa" (Frag. 11),
deduz que qualquer organismo contém todas as diferenças possíveis de qualidade e, por
conse guinte, elementos opostos aos de todo objeto possível de percepção. Assim., a
visão, por exemplo, é produto de uma imagem projetada sobre a parte da
(1) Nascido em Clazômena, talvez por volta de 460 a.C., ANAXÂGORAS foi o
primeiro filósofo que se fixou em Atenas. Daí veio a ser enpulso mais tarde, por
impiedade, por obra da instigação dos adversártos de PERICLES, de quem era mestre e
amigo (PLATAO, Phv 269 Médico, dedicou-se a pesquisas sobre os animais e as
plantas, muito provavelmente a dissecções.
(2) D,e Fragmente der Vorsokrat,ket. de Hermann DIELS. 2t ed., fragmentos 46 a 117,
Berltm, 1906.
pupila de cor oposta à do objeto percebido. Conhecemos o frio pelo quente, o fresco
pelo salgado, o doce pelo amargo, em virtude de contraste entre os elementos
coexistentes, em grau diverso, no sujeito e no objeto. Anaxágoras observa, a esse
propósito, que a percepção se torna dolorosa quando sua fonte é muito intensa, para
deduzir daí que "toda sensação implica sofrimento", atenuado pelo hábito(').
7. Diógenes de Apolônia
Segundo Diógenes de Apolônia( procedente da escola de Anaxí menes, o ar é o
princípio universal do cosmos, cuja coesão assegura; é, ainda, o sopro vital presente no
indivíduo como a fonte unificadora de suas funções fisiológicas e psíquicas.
Tão médico, quão filósofo, é na experiência imediata que Diógenes encontra as
"grandes provas" dessa supremacia do ar:
Os homens e os outros seres animados vivem do ar, respirando-o, e ali estão sua alma e
sua inteligência...; porque se lho retiramos, morrem, e sua inteligência se extingue."
(Frag. 4.)
Eternamente móvel, o princípio primeiro está na origem de todo movi mento. Por um
processo de rarefação e de condensação, produz a diversidade das coisas e dos mundos,
em número infinito. Suas múltiplas transformações bastam para explicar os fenômenos
variados do universo. Diógenes teve clara mente essa idéia, que Leibniz desenvolverá:
há sempre entre as coisas um elemento diferencial, por menor que seja, e sua semelhança
jamais constitui identidade perfeita:
não é possível às coisas... serem exatamente iguais umas às outras até o ponto de se
tornarem, uma vez mais, a mesma coisa." (Frag. 5.)
A alma dos viventes é composta de um ar mais quente que o da atmos fera ambiente,
mas muito mais frio do que o que envolve o sol,
esse calor não é o mesmo em quaisquer duas espécies de criaturas vivas, nem, por
conseguinte, em dois homens quaisquer; não difere muito, porém, na medida apenas em
que isso seja compatível com sua semelhança." (Frag. 5.)
Sob a provável influência de Anaxágoras, Diógenes de Apolônia atribui a esse "ar"
todos os caracteres do Noi E "algo que considera como um deus" (Frag. 5), ao mesmo
tempo "grande e poderoso, e eterno e imortal e de grande saber" (Frag. 8).
Parece que Diógenes terá reduzido todos os fenômenos fisiológicos e psíquicos a
condições do ar circulante com o sangue no organismo. Se
(1) Quanto à donografia sobre a percepção segundo ANAXÁGORAS, cf. John
BURNET. op. c
págs. 314-16. -
(2) Nascido por volta de 469 a.C., contemporâneo de ANAXAGORAS, DIOGENES de
Apolônta, que ensinou em Atenas, é autor de um tratado Da natureza, que comporta,
provavelmente. uma meleorologta e uma antropologia, e do qual restaram alguns
fragmentos.
18
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encontra obstáculos, se é comprimido no peito, o pensamento se torna mais difícil. As
percepções são tanto mais claras quanto mais seja o ar seco e puro, enquanto sua
umidade, que preside à embriaguez, ao sono, às pletoras, é prejudicial também ao
exercício do pensamento. Particularmente importante é o papel do ar que envolve o
cérebro e o coração, pois esses órgãos são sede de sua união com o sangue no sistema
vascular, e essa união preside às funções sensoriais. Diógenes ofereceu, dos vasos
sanguíneos, sobretudo das artérias, uma descrição que constitui importante documento
dos conhecimentos anatômicos da época( 1). Julgava que o exame da língua, situada no
entronca mento dos vasos, pode fornecer preciosas indicações sobre a maneira por que o
ar e o sangue se misturam no organismo. Uma mistura harmoniosa se lhe afigurava a
condição do bem-estar e da saúde, e o excesso de sangue, fonte de perturbações
patológicas.
É provável que a noção de pneilma, no sentido de fluido vital idêntico ao ar, já presente
na escola hipocrática de Cós, deva muito à obra de Dióge nes, ela própria uma retomada,
mais elaborada, da teoria de Anaxímenes. E provável também que as idéias de Diógenes
de Apolônia (por intermédio de Diocles de Caristo, contemporâneo de Zeno de Cítio)
irão influenciar o fundador do estoicismo, para quem a doutrina do pneüma adquire
impor tância essencial.
(1) ARISTÓTELES, IAs A,s., 1, 2, 311 b 30.
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CAPÍTULO III
A PSICOLOGIA MÉDICA NA ANTIGUIDADE
1. As origens da medicina hipocrática
2. As causas e a cura das doenças
3. A energia vital e o papel do cérebro
4. O homem no universo
5. A sabedoria hipocrática
6. Aspectos psicoterapêuticos
7. De Hipócrates a Galeno
1. As origens da medicina hipocrática
Embora não se trate, aqui, de história da medicina, não é muito fácil ignorar o
movimento ao qual permanece ligado o nome de Hipócrates e que encerra, a respeito do
homem, na época de Platão, conhecimento científico e psicológico em que se
descobrem elementos de psicoterapia, de caracterologia e, até, de fisiognomonia.
A medicina anterior na Grécia era sacerdotal. Píndaro relata que "o herói curador de
todas as doenças, nutrido por Quiron em seu antro de rochas", Asclépios (o Esculápio dos
latinos), cujo culto remonta, provavel mente, a uns dez séculos antes de nossa era, tratava
por meio "de doces feitiços", de "poções benfazejas", por aplicações ou pela cirurgia( Os
templos que lhe seriam mais tarde consagrados, em Cós, Trica, Cnido e Epidauro,
tornaram-se lugares de peregrinação e neles se encontraram an ,nas ou ex- votos dos
doentes curados. Liga-se o movimento hipocrático a essa medicina sacerdotal, mas dela
se distingue ao mesmo tempo, por uma preocu pação de racionalidade comparável à da
filosofia em relação ao mito. Não se duvida, aliás, de que tenha
sofrido, em suas origens, influência das escolas filosóficas, a dos jônicos e, com certeza,
dos pitagóricos, além das contribui ções orientais, difíceis de determinar, particularmente
do Egito e da India. Por outro lado, é bem evidente que a escola hipocrática incorpora as
aquisições de certa medicina clínica praticada desde muito tempo em Cós e Cnido,
embora envolta em magia.
(1) Terceira Neméiae Terceira Putica.
21
Mescla-se a lenda constantemente à história no que concerne à figura do próprio
Hipócrates('), e o problema histórico do "pai da medicina" suscitou numerosos
trabalhos. Não importa muito, porém, seja ou não ele próprio o autor dos perto de
setenta tratados do Corpus hippocraticum a nós retransmi tidos pela escola de Alexandria,
e cujas datas não é possível determinar, O essencial é que constitui documento
excepcional da vida médica e científica no século V a.C. Porque o Corpus, a despeito de
certos textos discordantes, apresenta constantes referentes à orientação da medicina e aos
tratamentos recomendados em certos casos.
2. As causas e a cura das doenças
A Medicina antiga, por exemplo, nos ensina como se formou a famosa teoria hipocrática
dos humores, exposta na Natureza do homem, que atribui ao ser humano - considerado
como um todo submetido ao ritmo quaternário que preside a todas as coisas( - quatro
humores: o sangue, a fleuma (chamada também linfa ou pituíta), a bílis amarela, a bílis
negra ou atrabílis, cada uma das quais relacionada a um órgão particular: o coração, o
cérebro, o fígado, o baço. Sabe-se que essa teoria serviu de fundamento à outra, caracte
rológica, dos quatro temperamentos: o sanguíneo, o linfático, o bilioso e o atrabiliário
(conforme predomine um dos quatro humores), considerados como o produto da reação
do organismo ao meio, algo como o ponto de junção entre o indivíduo e o universo. O
equilíbrio dos humores é a crase, e sua ruptura
(doença), a discrasia. O equilíbrio comprometido possui uma tendên cia natural para
restabelecer-se, por meio de uma operação de química orgânica que modifica, corrige,
"coze" os humores para expulsá-los (a cocção). Os humores cozidos são expelidos pelo
suor, as expectorações, a urina, as fezes, os vômitos.., e esta é a crise, que ocorre em
dias fixos, chamados dias críticos. Por falta disso, pode verificar-se um depósito em
alguma parte do organismo, que produz uma doença local, e esta, de certa forma,
resolve a doença geral do organismo (abscesso, articulação tumefacta, gangrena local...).
A harmonia é, assim, considerada como a condição da saúde, e a cura das doenças como
obra da natureza; o médico não pode senão ajudá-la em sua luta para restabelecer o
equilíbrio comprometido. Esse desequilibrio pode ter causas diversas: internas
(superabundância de humores, de preocupações ou estafa) e externas (súbita mudança
de clima, presença de miasmas no ar ou traumatismo acidental). Mas o hipocratismo
atribui papel essencial ao "terreno", muita vez considerado decisivo para a evolução de
uma doença. A escola atribui grande importância ao regime, que deve ser adaptado a
cada caso, levados em conta hábitos instalados no doente e condições particulares:
(1) É lícito admitir que HIPÓCRATES nasceu em 4é0 a.C. na pequena ilha de Cós (uma
das Espórades). onde seu pai, sacerdote de Asclépios, lhe ensinou a medicina; e que, no
decorrer de longa existência entrecortada de viagens de estudos ou de excursões de
conferências ao Egito, à Grécia e à Asia Menor., assegurou pelo seu gênio o triunfo da
escola de Cós sobre sua rival de Cnido. Teria aprendido retórica com GORGIAS,
repudiando-lhe o agnosticismo; e teria conhecido diretamente DEMOCRITO,
SOCRATES e EURIPIDES. Certos autores lhe atribuem a salvação de Atenas, por meio
da instalação de fogueiras nas ruas da cidade, quando da epidemia de peste em que
pereceu Péricles, em 429 a.C.
(2) Há quatro pontos cardeais, quatro estações, quatro idades na vida, quatro etemenlos
fundamentais no universo.
idade, sexo, temperamento, resistência, etc. A medicina hipocrática não ignorava
tampouco que certos indivíduos são "alérgicos", como dizemos hoje, a determinados
alimentos.
O tratado Regime das doenças agudas contém uma polêmica com a escola rival de
Cnido. Esta é criticada pela falta de amplitude e segurança no pensamento, o recurso a
remédios fáceis e uniformes (muitas purgações, leite e soro lácteo...), incapacidade de
elevar-se acima dos fatos imediatamente dados e de prever os sintomas do paciente.
Pois, a escola hipocrática se preocupa em estabelecer um diagnóstico da doença e tem
por melhor médico aquele que se mostra capaz de prever.
Em suma, o tratamento requer um saber empírico, fecundado pela observação e pela
reflexão. O adágio da escola é freqüentemente lembrado:
"Faz-se mister ligar a medicina à filosofia, pois o médico filósofo está em igualdade com
os deuses." Trata-se, no caso, de certa filosofia, imbuida de um simbolismo realista dos
números, que atribui importância essencial a certos ritmos, particularmente quaternários e
septenários, e que não separa o homem-microcosmo do Universo. O ser humano é
concebido como ligado ao cosmos por todas as fibras de seu ser físico e psíquico. O
Corpus quase não assinala essa ruptura com o mundo que caracteriza o surgimento da
consciên cia humana e que, naquela época, os sofistas foram os primeiros em pôr em
evidência.
3. A energia vital e o papel do cérebro
De maneira geral - ainda que inserida num contexto metafísico - uma modalidade de
empirismo é preconizada, atenta à influência exercida sobre o ser humano pelo clima, as
estações, a natureza do solo, e em geral por todos os elementos do mundo ambiente. O ar,
muito particularmente, é considerado como elemento essencial, e seu papel objeto de uma
obra, Os ventos. O motivo é análogo ao que existe em filosofia desde Anaxímenes: a
importância primeira do ar, que devemos respirar para viver.
Os organismos vivos são condicionados por três elementos: a nutrição, a bebida e uma
energia vital invisível (opneíima), cujo papel é primordial tanto no homem como no
universo. Enchendo "o intervalo imenso que separa a terra do céu", essa força vital
anima e faz moverem-se os corpos celestes, assegura a coesão e os movimentos de tudo
quanto existe. Alimento do fogo, ela está presente até na água do mar, que doutra forma
não poderia conter os animais aquáticos. O princípio fundamental é o ar fora do corpo e
o sopro vital dentro dele; ele dá vida aos homens e aos outros seres e organiza as defesas
naturais contra as doenças(').
A importância atribuída ao ar pela escola hipocrática está diretamente ligada ao papel
que, segundo ela, o cérebro desempenha no organismo. No tratado da Doença sagrada,
as teorias que localizam a inteligência no coração ou no diafragma são refutadas em
favor do cérebro, verdadeira sede da inteli
(1) Esse principio de "força vital" (que DESCARTES rejeitará, para atribuir todas as
funções do orga nismo a fatures mecânicos e físico-químicos) leva a admitir a
intervenção de "imponderáveis" puramente qualita tivos e, por conseguinte, não
mensuráveis.
22
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gência. Dele é que partem ramificações para todas as partes do corpo e é para ele,
igualmente, que convergem os diversos canais dos sentidos. Ele influencia os humores
do corpo; se ferido, a conseqüência é a paralisia ou a morte; se demasiado úmido, a
confusão dos sentidos acarreta a loucura. Ora, se o cérebro é investido de tão alta
dignidade pela escola hipocrática, isso se dá na medida em que o ar, por meio dele,
comunica sua natureza ao organismo, portanto na medida em que desempenha o papel
de intermediário. Basta substituir o ar pelo "impulso vital", por exemplo, para que a
concepção pareça mais profunda do que ingênua.
4. O homem no universo
No tratado das Carnes, o autor deduz, do esboço de uma espécie de cosinogonia, os
conhecimentos anatômicos e fisiológicos indispensáveis ao médico('). Trata-se, ali, do
fogo cósmico, do "fogo inato" que possui a inteli gência de tudo, que vê e ouve, que
conhece o presente e o futuro. Por ele se explicam o nascimento das diversas partes do
mundo, a formação dos seres vivos e também a natureza da saúde e da doença. Porque o
homem, já que é formado de partículas de elementos que compõem o universo, pode ser
encarado como um microcosmo. Ao fim da obra, uma teoria setenária se liga
estreitamente às espeçulações pitagóricas sobre os números: a resistência do homem
normal ao jejum é de 7 dias, as crianças possuem dentes ao cabo de 7 anos, etc. Dois
pequenos tratados: o Feto de sete meses e o Feto de Oito meses, confirmam a virtude
atribuída a esse número; igualmente o das Semanas, onde uma organização setenár ia
intervém na formação do mundo, no desenvolvimento do ano, na estrutura geográfica da
terra, na disposição do corpo humano.
O conhecimento da saúde e da doença se reduz ao das relações entre os elementos que
compõem o ser humano e entram em ação no comércio deste com o universo, uma vez
que a doença nasce de seu desequilíbrio; e é conside rando que a alimentação e o
exercício atuam sobre tais elementos, aumen tando ou diminuindo o poder de alguns
dentre eles, que a escola lhes atribui tamanha importância. Representam, a seus olhos,
fatores cuja influência é mais facilmente controlável que a de outros (climáticos ou
geográficos, por exemplo) cuja ação sobre o ser humano é igualmente admitida.
Numerosas anotações constituem como que o embrião de uma climatologia;
relacionam- se com a ação do clima que, regular e equilibrado, favorece a beleza física e
exerce influência feliz no caráter; com as estações que, quando nitidamente marcadas,
permitem a formação de maior variedade de tipos humanos, ao mesmo tempo que
reforçam a robustez do organismo, sua energia natural e a
(1) O cuidado de informação da escola hípocrática é surpreendente em amplitude, na
medtda em que se pode julgar por esta passagem das Epidemias: "No que concerne às
doenças, eis como as distinguimnos. Nosso conhecimento se apóia na natureza humana
universal e na natureza própria de cada pessoa: na doença. no doente. nas substãncias
administradas, em quem as administra e no que se pode daí concluir de bem ou de mal: na
consti tuição geral da atmosfera e nas constituições particulares, segundo as diversidades
de céu e de lugar: nos hábitos. regime de vida, ocupações, idade de cada um: nas
palavras, nas maneiras, nos silêncios, nos pensamentos, nos sonos, nas insônias, nas
qualidades e momentos dos sonhos: nos gestos desordenados das mãos, vos pruridos e
nas lágrintas; nos paroxismos, nas fezes, urina, escarros e vômitos: na natureza das
doenças que se sucedem umas às Outras e nos depósitos anunciadores de ruína ou de
crise: no suor. no resfriantenlo. no arrepio. na tosse. no espirro, no soluço, no arroto, nos
gases, sitenciosos ou ruidosos, nas hemorragias e nas hemorróides. Esses dados, e tudo
quanto permilens captar. devem ser examinados com cuidado"
acuidade de inteligência; com suas variações, que repercutem no processo de formação
dos indivíduos, diferente no inverno e no verão, durante as secas ou as chuvas; com as
diversas conseqüências de um clima uniformemente frio ou quente. Os fatores sociais
também não foram ignorados pela medicina hipo crática. Observa que o trabalho físico e
certos hábitos desempenham papel na saúde ou na doença; e, até, que as instituições e as
leis, segundo o valor do ideal que propõem, têm repercussões psicológicas. A este
respeito, apurou-se uma diferença entre habitantes de cidades gregas em terras asiáticas,
que se administram livremente, e os de Estados submetidos a autoridade despótica
(tratado Ares, águas, lugares).
5. A sabedoria hipocrática
Em suma, os tratados do Corpus consideram o homem solidário, sob o duplo aspecto
físico e moral, com seu meio natural e social. Pôde-se qualificar de humanismo médico a
doutrina daí resultante, uma vez que não comporta somente o enriquecimento de
conhecimentos particulares dentro de uma técnica, mas também um ideal do homem a
pron'over e uma verdadeira sabedoria humana a salvaguardar. O médico.da escola é
instado a jamais perder de vista o bem e a utilidade de seus semelhantes, a evitar
empreender o que quer que lhes possa ser nocivo. O autor dos Preceitos recomenda aos
médicos "não se entregarem ao fausto, desprezarem o supérfluo e a fortuna, assistirem
doentes às vezes gratuitamente, preferindo o prazer do reconheci mento ao de um luxo
frívôlo. Se tiverdes de socorrer um estranho ou um pobre, são estes os primeiros a quem
deveis ir. Não se pode amar a medicina sem amar os homens"( 1). Eis aí um ideal muito
alto de prática médica e, até, do que chamamos hoje "respeito à pessoa humana", como
bem testemunha o texto do famoso juramento(
O que tem primazia e orienta o comportamento médico é a fé numa ordem universal
benfazeja, o senso das limitações humanas. O médico hipo crático nada deve empreender
temerariamente. Preferirá abster-se em certos casos a causar prejuízo. Não prejudicar é o
primeiro de seus deveres. Pois, admite-se que o ser vivo, pela intervenção de uma razão
imanente ao instinto, segrega de algum modo defesas naturais regeneradoras. A phjsis, na
escola hipocrática, tanto designa a natureza individual (é então o que chamamos
constituição) quanto a natureza humana em geral, caracterizada pela ativi dade de um
agente desconhecido que cura as doenças( Se, porém, a
(1) Citado por Pierre GALIMARD, Hippoerate es/a mradilion pvthagtseicienne, Paris,
1939, pág. 62 (segundo a tradução de GARDEIL, 1, 455).
(2) "Juro que com todas as minhas torças e em plena consciência, manterei este
juramento: considerarei como pai aquele que me ensinou medicina e partilharei com ele
ludo de quanto tenha necessidade para viver, Terei seus filhos como irmãos. Prescreverei
aos doentes o regime que lhes convém, com todo o saber e discernimento de que sou
capaz e me absterei, em relação a eles, de qualquer intervenção malfazeja ou inimlil. Não
aconselharei jamais a ninguém o recurso ao veneno e o recusarei aos que mo peçam. Não
darei a mulher alguma remédios abortivus. Conservarei minha vida pura e santa, bem
corno minha arte... Ao visitar um doente, não pensarei senão em ser- lhe útil. cv latido
it,da otá ação toluntária e qualquer vootalo lavei iii coltt tttullieres ou tootetis, livres ou
escralos Tudo quanto veja ou ouça na sociedade, no exercício, ou até fora do evercicio de
minha profissão, e não deva ser divulgado. manterei em segredo, como coisa sagrada."
(3) "E a natureza que cura as doenças., Ela encontra, por si mesma, os caminhos
cunvenientes, sem
necessidade de ser dirigida por nossa inteligência. E ela que nos ensina a abrir e fechar
os olhos, a mover a língua e
outras coisas semelhantes, sem ajuda de um mestre. Ela se basta para uma multidão de
coisas necessárias." (Citado
pelo Dr. CARTON, L 'essermsiel dela doett'mne d'Hippsaerair, extrait de ves oeuvrrs,
Paris, 1933, pág. 53.)
24
25
natureza é a grande curadora, a utilidade da medicina está no concurso importante e, por
vezes, decisivo que lhe pode trazer. Em suma, a idéia de solidariedade entre as partes do
organismo, a preocupação com o todo como estrutura do ser vivo, e as condições
postuladas de seu equilíbrio e de seu desenvolvimento indicam a existência de leis
naturais a respeitar.
No tratamento das doenças, a preocupação com as condições gerais de higiene
(alimentação, banhos, passeios, exercícios...) desempenha papel preponderante. O
regime salutar trata disso e a Medicina antiga declara que a arte médica poderia ser
inteiramente redescoberta a partir da reflexão acerca da alimentação conveniente ao
homem são e ao homem doe'nte.
Semelhante respeito às atividades naturais se alia a grande discrição no que tange a
remédios; e a preocupação permanente do médico deve consistir em colocar o organismo
em condições de exercer, da melhor maneira, seu trabalho espontâneo('). Como tudo
quanto existe no universo, as doenças são, ao mesmo tempo, divinas e naturais. A
epilepsia não foge a esta regra; o tratado da Doença sagrada contesta seu caráter
excepcional e seu tratamento pela magia. Deus, que é fonte de pureza, não pode
contaminar o homem e é ímpio recorrer a tais práticas. A epilepsia tem por causa um
movimento inabitual da fleuma, impedindo que o ar - portador da inteligência - chegue
ao cérebro, órgão central da vida psíquica. Outra explicação dessa doença aparece no
tratado dos Ventos - onde se afirma o papel preponderante do sangue e da circulação
normal para o equilíbrio das funções intelectuais - mas explicação não menos natural:
tratar-se-ia duma perturbação da natureza do sangue e de sua marcha através do corpo.
6. Aspectos psicoterapêuticos
Existem na coleção hipocrática preocupações que constituem uma forma antecipada
dessa medicina hoje chamada "psicossomática". De fato, os médicos de Cós se
preocupavam com as interferências entre o organismo e o psiquismo. Os tratados das
Epidemias especialmente (onde se trata da alma que se desenvolve até a morte, da
consciência que se alegra ou se aflige, e que, até, por vezes, se mostra capaz de
autoscopia) são testemunho disso. Aí se fazem recomendações ao médico para não
melindrar inutilmente os doentes, vigiar a linguagem, o vestuário, o porte, até mesmo o
odor; para não regatear nenhuma dessas pequenas atenções capazes de criar um quadro
agradável.
Certos tratamentos, conquanto pareçam menos eficazes em si mesmos, podem ser
aconselhados de preferência, desde que mais bem aceitos pelo paciente (Aforismos).
Para estimular o organismo, recorrerá o médico, em certos casos, a verdadeira ação
psíquica, despertando no paciente sentimentos
(1) Encontram-se, no pensamento contemporâneo, certos aspectos que fazem lembrar
essa confiança dos hipocráticos na vida natural. Assim é que G. CANGUILHEM, em
seu Essai sue quelques problèmes concernant le normal ei Ir palhologique (Clermont -
Ferrand, 1943, pág. 143), escreve: 'Por deferéncia à polandade dinâmica da vida é que
se podem qualificar de normais certos tipos e funções. Se existem normas biológicas, é
porque a vida, sendo não apenas submissão ao meio, mas instituiçAo de seu meio
próprio, propõe, por isso mesmo, valores não somente no meio, mas também no
organismo. Eo que chamamos normatividade biológica."
Cf. Louis BOURGEY, Obse,vaiion ei experience chez les ,nédecins de la coilectio,,
hippocraiique. Vrin, Paris, 1953, pág. 256. (Bibliografia, págs. 277-282.)
capazes de aumentar-lhe a vitalidade. As Epidemias contêm até o registro de um caso em
que o médico apela para a auto-sugestão a fim de persuadir o doente, por engenhoso
estratagema, de que o pus está saindo de seu ouvido. Nos Humores, certas anotações
dizem respeito à força de caráter nas diversas circunstâncias da vida e à incapacidade para
dominar-se: gosto pelas bebidas fortes, jogos de dados, etc.; ou a diversos aspectos da
atividade psíquica: as pesquisas, as preocupações, as emoções, etc. Observa-se que o
pensamento é, por vezes, afetado por circunstâncias fortuitas que interessam à vista ou ao
ouvido, e que certos fatos exteriores: o esfregar de uma mó, a marcha ao longo de um
precipício, o aparecimento de uma serpente..., podem provocar reper cussões inesperadas;
que os sentimentos e as emoções exercem ação particular em partes do corpo
correspondentes: suores, palpitações...
Acerca do sono, o autor do Regime declara constituir ele o estado em que a alma
desfruta de plena atividade, o que subentende que a possui menor no estado de vigília,
quando trabalham mais os órgãos dos sentidos. Relativa mente aos sonhos, a escola
hipocrática distinguia duas espécies: aqueles cujo caráter divinatório atesta uma origem
sobrenatural, e aqueles cujas imagens podem fornecer ao médico indicações sobre as
preocupações do paciente ou, ainda, sobre as sutis mudanças sobrevindas em seu
organismo antes do verdadeiro aparecimento de uma doença(').
Elementos de fisiognomonia aparecem em certas observações, tais como "os louros de
nariz pontiagudo e olhos pequenos são, em geral, maus. Se o nariz é achatado e os olhos
grandes, são comumente bons", ou "uma cabeça volumosa, com olhos negros e grandes,
o nariz grande e esborrachado, são sinais de bondade"(
7. De Hipócrates a Galeno
A obra de Hipócrates exerceu influência incomparável na medicina da Antigüidade. Em
pouco tempo dogmatizada, foi objeto de meticulosos estu dos pela escola de
Alexandria, e ainda encontramos seus fundamentos essenciais no segundo século de
nossa era, em Galeno, cuja influência preva lece até o Renascimento.
Em Alexandria, o respeito de que é rodeado o Corpus hz'ppocraticum não impede as
pesquisas originais, favorecidas pelas condições proporciona das aos cientistas, que ali
dispõem de laboratórios e de autorização para a prática da dissecção. O médico latino
Celso chega a relatar que Herófio, o mais eminente prático daquela época, t ambém
grande ginecologista e parteiro, teria submetido à vivissecção criminosos que lhe cedia
Ptolomeu Soter. Nada, porém, menos seguro.
Seja como for, Hérófio, além de produzir trabalhos sobre os órgãos dos sentidos e a
estrutura do olho, descreveu o cérebro, que considera a sede principal das sensações.
Embora tenha confundido os ligamentos e os nervos,
(1) Cf. a tese de doutoramento em medicina de Raymond-Gaston BAISSETTE, Aux
sources de la ,xedkine, ,'ie ei docirine d'Hippoc Ubrairie Louis Arnelte, Paris, 1931;
refere o autor, longamente, uma cura a que HIPÓCRATES teria submetido o rei da
Macedônia, Perdicas II, na qual a interpretação dos sonhos teria desempenhado o papel
essencial,
(2) Cf. Dr. Paul CARTON, op. cii., pig. 59.
26
27
reconhece também a estes, em ligação com o cérebro e a medula espinal, importante
papel nos processos sensoriais. Admite que os seres vivos estão submetidos a quatro
forças: nutritiva (cuja sede é o fígado), aquecedora (cuja sede é o coração), sensível
(cuja sede se encontra nos nervos), pensante (cuja sede é o cérebro), e vê estreita relação
entre a respiração e as pulsações, admitindo para os pulmões uma sístole e uma diástole
análogas às pulsações cardíacas. Investigando os sonhos, atribui-lhes, segundo a natureza
particular deles, tripla origem: divina, orgânica ou psíquica.
Contemporâneo de Herófilo, Erasístrato (330-250), que se dedicou tam bém em
Alexandria a pesquisas anatômicas e fisiológicas, atribui ao sangue
papel privilegiado em relação ao dos outros humores do organismo.
Quanto a Galeno, seus pontos de vista se enquadram numa fisiologia finalista, pois vê no
homem uma alma que se serve de um corpo. Distingue o pneüma, por ele considerado a
essência das formas da vida, em pneüma psychicón, cuja sede é o cérebro, mas interessa
igualmente o sistema nervoso; o pneiïma zõricon (espírito vital), manifestado pelas
batidas do pulso, que mantém o calor do organismo; o pneüma physicón (espírito
natural), cuja sede é o fígado, que assegura a nutrição. Estes três pneumas presidem a
funções mais diferenciadas, aceitas como as faculdades naturais dos órgãos do corpo:
atrativa, alterante, retentora e expulsiva.
O papel da respiração é capital, já que assegura a continuidade da vida pela regeneração
contínua do pneuma vital, que os pulmões e os poros
cutâneos extraem do ar.
Volta a encontrar-se em Galeno, igualmente, a noção do homem como microcosmo. Aos
quatro elementos fundamentais do macrocosmo: fogo, ar, água e terra, correspondem o
quente, o frio, o úmido e o seco, bem como os principais humores do organismo: sangue,
fleuma, bílis amarela, bílis negra. A resultante da mistura humoral é o temperamento
(sanguíneo, fleumático, bilioso, atrabiiário).
Observador e até experimentador em fisiologia (praticou especialmente secções da
medula espinal em diferentes níveis, verificando as paralisias provocadas), nem por isso
Galeno deixa de ser espírito mais dogmático do que Hipócrates, talvez por viver numa
época menos tendente à tolerância que a de seu grande predecessor. Estabeleceu em
princípio o tratamento dos contrários pelos contrários, reservado por Hipócrates às
doenças cujas causas parecessem evidentes. Para as doenças consideradas endógenas,
recomendava a medicina hípocrática o tratamento pelos semelhantes; e é invocando a seu
favor maior fidelidade quanto a esta medicina que a escola homeopática afirmará o
princípio similia similibus curantur.
28

CAPÍTULO IV
O ENSINAMENTO DOS SOFISTAS E O MÉTODO SOCRÁTICO
1. A descoberta da subjetividade
2. O relativismo de Protágoras
3. Górgias e a linguagem
4. A pesquisa socrática
1. A descoberta da subjetiv,dade
Os escritos dos sofistas sobreviveram apenas mediante fragmentos de delicada
interpretação, e tiveram o infortúnio histórico de tornar-se conhe cidos, sobretudo, pelos
comentários críticos de Platão e de Aristóteles; foi, portanto, envolvidos em censuras
codificadas, mas de modo algum de vali dade incontestável, que passaram à
posteridade. Não é muito para duvidar que sua atitude desenvolta diante da religião os
tenha prejudicado no espírito público, e tenha influído na reprovação que geralmente
suscitam.
Submetendo a exame crítico toda a documentação que lhes diz respei to, o autor belga
Eugène Dupréel se empenhou em reabilitar-lhes a memó ria( Reconhece-lhes uma
sinceridade que o mais das vezes lhes é negada, e atribui unicamente a Górgias certos
traços caracteriais comumente imputados aos sofistas em geral: humor desenvolto e
gosto do paradoxo.
Como quer que se encare, porém, o aspecto moral de seu pensamento, reveste-se este de
singular valor do ponto de vista psicológico, pois foram os sofistas os primeiros em pôr
em relevo, com surpreendente perspicácia, o que hoje se chama a subjetividade humana.
Antes deles, pode-se duvidar de que tenham tido os homens, verdadeiramente,
consciência de um problema ine rente à realidade humana como tal, isto é, da realidade
humana enquanto implica a presença, no mundo, de um ser senciente, volente e pensante,
e cuja existência condiciona, a um tempo, perguntas e respostas. Graças à
ação dos
(1) L sophi Gorgi Prodic Hippi Neuchâte!. Édit. du Griffon. 1948.
29
sofistas, opera-se, a esse respeito, uma reviravolta das perspectivas abertas pelos seus
predecessores, cujo interesse se dirigia logo de início ao contexto da vida humana. Com
efeito, o ensinamento dos sofistas tinha por objeto o homem como tal, com suas
exigências próprias de inteligência e de morali dade. E quando, na mesma época,
Sócrates, que muito lhes deve, acentuou a importância do homem em geral, da
Humanidade que se esforça por extrair do indivíduo particular, parece que eles teriam
ficado impressionados pelas diferenças individuais, ao ponto de chegar (coisa que,
porém, não é absoluta mente certa) a uma forma de individualismo intransigente,
pragmático em Protágoras, mais teórico em Górgias.
2. O relativismo de Protágoras
A famosa sentença de Protágoras('): "O homem é a medida de todas as coisas, das que
são e das que não são"( deu lugar a interpretações diversas. Se se entender por "homem"
o ser humano em geral, estar-se-á em presença de uma profissão de fé humanista. Foi
assim que F. C. S. Schiller compreen deu as coisas, ao saudar Protágoras como o pai do
pragmatismo que preco nizou( Em Platão, ao contrário, a sentença é apresentada como
expressão de um relativismo puramente individual. O homem de Protágoras seria,
então, relembrado por certas personagens pirandélicas emparedadas em seus
conhecimentos instantâneos e transitórios. O ilustre sofista teria querido demonstrar não
apenas que os indivíduos, colocados embora da mesma maneira diante de um objeto,
percebem-no diferentemente por motivo da estrutura particular deles( mas que o mesmo
homem, colocado diante de um objeto que tenha percebido anteriormente, terá, desse
objeto, outra impressão, poiso próprio homem mudou(S).(*)
De qualquer maneira, o que importa é a afirmação de Protágoras de que o conhecimento é
impossível no sentido de uma apreensão das coisas em si mes mas e de que se situa,
forçosarnente, no nível daquilo que Kant irá chamar o mundo fenomênico. A vontade de
manter-se no plano do humano aparece nesta outra declaração, quase tão célebre quanto
aquela: "No que respeita aos deu ses, não sei se não existem, nem qual sua aparência.
Inórneras coisas impedem de sabê-lo, a obscuridade (da questão) e a brevidade da vida
humana(
À idéia de uma verdade inscrita na realidade como tal, opõe Protá goras a da verdade
extraída do contato com a realidade, da verdade como construção humana. Nisto, é
surpreendente o aspecto moderno de seu pensa mento. Pois, introduz a preocupação
primordial do homem em sociedade,
(1) Antigo de PERICLES e de EURIPIDES. PROTÂGORAS teve como
contemporáneos DEMÓCRITO, mainjosem (nascido por volta de 460).
ANAXAGORAS (nascido perto de 5 e EMPEDOCLES (nascido talsez no mesmo ano
que ele). Parece que o dilema proposto por HERACLITO e PARMENIDES lerá
const,tuido um dos fermentos essenciais de sua reflexão.
)2) PLATÃO, Tertcw, 152u.
(3) Human,sm, Ph Essas's, Londres, 1903.
(4) "Tais como me aparecem os objetos, assim existem para mim; tais como te
aparecem, assim existem para li... (PLATÃO, Cráti!o. 386 a.)
(5) PLATÃO. Teeteto, 154a.
() V.. a respeito da interpretação do pensamento de PROTAGORAS, Félicien
CHALLAYE. Pequena hovr,o s/as 6ruo t,/oo,/uss. rad, o oota'. te fruo DAMASCO
I'ENNA ci. B. DAMASCO PENNA. sol. 1313. destas 'Ar ualidades Pedartórticas'', São
Paulo, 11366, 27. cx 00 nora dos tradutores. (J. B. 1). P. 1
(6) DIELS, 80(74), B 4.
assinala a importância das convenções, exprime a exigência de um valor próprio à
comunidade humana, criadora da cultura. Protágoras mostrou claramente que a virtude,
no que implica em correção das tendências natu rais, é, em grande parte, problema de
educação. Sócrates retomará essa idéia em perspectiva inteiramente moral, insistindo na
identidade entre o bem e o conhecimento que dele se adquire.
Diógenes Laércio diz ter sido Protágoras o primeiro em declarar que. em todas as
coisas, há dois argumentos opostos. Nova prova de singular clarividência! Censura-se
haver ele ensinado, a esse propósito. que o argu mento mais fraco deveria, pela arte da
retórica, tornar-se o mais forte( I), Tratar-se-ia de demonstrar que o preto pode ser
branco, de transmudar em causa justa uma causa injusta. As zombarias de Aristófanes
prevaleceram no tocante ao sentido que se pode atribuir a essa função da eloqüência
filosófica. Mas Dupréel, também nesse ponto, se mostra céptico. O argumento "mais
fraco" não poderia ser aquele que, embora o melhor, tem contra si a opinião corrente e
vulgar?
Ainda não conhecendo muita coisa de fonte segura sobre Protágoras, não se pode
duvidar de que tenha insistido na importância decisiva da sensa ção para o
conhecimento. No dizer de Platão, seu cepticismo radical quanto ao conhecimento do
mundo exterior se fundava no papel exclusivo que atribuía aos sentidos. Revelou que o
ato perceptivo dependia de certa estru tura sensorial e o perigo era substancializar as
coisas nessa matéria; mostran do. por exemplo, que o que se chama de cor nasce do
encontro de um sujeito e de um objeto e que não existem, face a face, uma coisa que
seria a cor perce bida e outra que seria a visão dessa cor(
Apreendendo as coisas sob o signo da mobilidade, a exemplo de seu mestre Heráclito,
sustentou Protágoras que a experiência é inseparável de uma impressão produzida pela
relação estabelecida entre duas realidades, inicialmente independentes uma da outra, e
cujos movimentos influem reciprocamente. Em outros termos, pensou que a qualidade de
um objeto não constituía sua propriedade permanente, mas apenas um modo de seu movi
mento, ou uma fase de sua existência e que, assim, o conhecimento resulta dum contato
estabelecido entre algo de exterior e um organismo, um e outro modificados por obra
desse encontro no processo perceptivo.
Parece que Protágoras teria considerado que a memória nos reconduz sempre às
percepções originais, que deixam traço, com certa perda, porém, em relação a elas. Por
isso via nas idéias gerais uma espécie de ilusão nascida da crença na realidade das
palavras. Rigoroso nominalista por antecipação, considerava os conceitos como
etiquetas que recobrem um saber sempre constituído, na medida de sua validade, por
impressões individuais.
3. Górgias e a linguagem
Se, a despeito de sua aversão pela sofística, Platão algumas vezes louva Protágoras,
mostra-se, entretanto, particularmente severo para com Gór
(1) ARISTÓTELES, Rhétrrrique. B 24, 1402 a 23; 1)IELS, 80(74), A 21.
(2) Cf. Tezteto, 154 d.
30
31
gias( Deste, uma teoria se tornou célebre( e assim se resume: nada existe; ainda que
houvesse ser, seria incognoscível; ainda que houvesse e fosse cognoscível, seria
incomunicável a outrem.
Tese como essa, que sem dúvida visava à ontologia de Parmênides, mantém na
obscuridade todos os outros aspectos do pensamento de Górgias. Dela não se deixou de
inferir, contudo, que ele professava um niilismo radical, negava qualquer valor às noções
de verdade e conhecimento. Sem considerar aqui essa questão, de ordem essencialmente
metafísica, não parece que seja o caso de opor, do ponto de vista psicológico, a sua
concepção à de Protágoras. Aparenta-se com esta pela idéia de que o conhecimento é
produto de dois elementos que se mesclam: um, proveniente do exterior; outro, da ação
do próprio sujeito. O que parece constituir a verdadeira originalidade de Górgias é a
terceira proposição da tese que se lhe atribui, referente à
comuni cação. Ela demonstra, de sua parte, notável sagacidade. Com efeito, o sujeito
individual, quando conhece, não está nas mesmas condições daquele a quem se dirige.
Aquilo que ele quer transmitir implica uma experiência particular, incomunicável
diretamente, que o ouvinte, com base na própria experiência, só pode inferir. Todo o
problema da natureza e da função da linguagem parece, assim, posto em causa, bem
como o do valor da concordância que estabelece entre as percepções do autor do
discurso e as que alicerçam a experiência de seus ouvintes. Da idéia singularmente
avançada de que a linguagem é capaz apenas de simbolizar, por meio de sinais
arbitrários, as coisas que pretende exprimir, pode-se atribuir a Górgias um nominalismo
radical; não se pode, obrigatoriamente, inferir que o niilismo - se niilismo existe - tenha
sido, nele, absoluto e permanente.
É certo que a sofística preparou, em grande parte, o advento do cepti cismo na Grécia,
por obra de Pirro de Elida (365-275 a.C.), que irá demons trar total indiferença pelas
coisas exteriores, fundada na impossibilidade de conhecer-lhes a verdadeira essência e,
conseqüentemente, de estabelecer, sobre elas, qualquer juízo válido. Para Pirro e seus
discípulos, dos quais Diógenes Laércio oferece uma relação em seu Livro IX, a alma se
encontra relegada entre as noções incompreensíveis. Para uns, trata-se de decretá-la
inexistente; para outros, incognoscível. Adotando um cepticismo menos radical,
especialmente com Arcesilau e Carnéades, a Nova Academia parece ter admitido um
dualismo de alma e corpo. Ignoram-se, porém, os porme nores de sua doutrina
psicológica(
4. A pesquisa socrática
Como os sofistas, é pelo ser humano que Sócrates( se interessa e o faz de maneira
ardente; mas pelo ser humano considerado em perspectiva essen
(1) Siciliano como EMPÉDOCLES. GÕRGIAS. que adquirira grande nomeada como
orador, professor de retórica e homem político. intervém em PLATAO. no grande
diálogo que traz seu nome, bem como no Fedeo e no Banquete. Nesta última obra é que
Agatón parodia um de seus discursos e SOCRATES o qualifica de orador terrível
(2) Relatada especialmente por SEXTO EMPIRICO (Adt'. Math.. VII, 65, 599). DIELS,
82 (76). B 3.
(3) Quanto a PIRRO e sua posteridade, a volumosa obra de Victor BROCHARD
continua fundamental (Les sceptiques gs'ecs, lmpnmerie Nationale, Paris, 1887).
(4) A figura de SÓCRATES, nascido_em Atenas, por volta de 470 a.C., é quase
legendária. Como se sabe. conhecemo-lo essenciatmente mediante PLATAO e
XENOFONTE. que dele nos oferecem imagens algo diferentes.
32
j
cialmente moral. Bem mais do que o indivíduo, no sentido psicológico do termo, com
suas capacidades perceptivas e cognitivas e, como tal, objeto possível de estudo, é a
pessoa - como se diria hoje - que nele polariza esse interesse. A alma, como princípio de
movimento e de vida, posta em primeiro plano pelos jônicos, acrescenta, como valor
essencial, a razão e o caráter moral; nela vê a sede dessa personalidade espir itual que
seu método visa a instaurar e consolidar, para torná-la plenamente senhora do corpo que
anima. Seu objetivo é, por isso, buscar, nas flutuações da vida sensível, "invariantes"
capazes de sustentar esse papel da alma como sujeito racional do conheci mento e da
ação. Encontra-as em noções (justiça, verdade, virtude, felicidade, beleza...) que, a seus
olhos, exprimem a verdadeira natureza do homem, e procura definir em sua essência
idêntica e permanente. A identificação, que faz, da moral com a verdadeira ciência
postula que a ação humana pode e deve estar submetida a princípios válidos para o ser
humano em geral, na medida em que todo indivíduo possui uma natureza profunda,
preservada das vicissitudes temporais. O que é bom e verdadeiro para um, deve ser bom
e verdadeiro para os outros. Uma universalidade de direito está implícita na pesquisa
socrática, toda orientada para um aspecto da vida, por certo muito negligenciado em
nossos dias: o dos valores encarnados na existência do ser humano, e do sentido que ele
confere à vida. As convenções, aos preconceitos, às idéias recebidas sem controle, opõe
Sócrates a exigência de uma reflexão capaz de instaurar uma vida moral que se
determine com todo conhecimento de causa. A tentativa exprime consciência subjetiva
muito elevada; e coube observar que, com o "demônio" que invoca, fonte profunda de
sua inspi ração, aparece um como esboço da profissão de fé do vigário saboiano e do
imperativo categórico, de Kant. Antes do cristianismo, esse moralista convoca seus
contemporâneos a um incessante exame de consciência, ao esforço contí nuo para uma
tomada de consciência de si mesmo e em relação ao próximo, com vistas a um progresso
moral que considera a única coisa verdadeiramente importante; esforço que levará
adiante para com todos e contra todos, até a própria morte. Seu conhece-te a ti mesmo se
inscreve nessa mira essencial- mente ética. O "conhecimento" não versa
sobre a realidade da alma, que não põe em dúvida, mas sobre suas riquezas ocultas, que
cumpre descobrir para tornar-se melhor. Se exorta os atenienses a esse conhecimento de
si mesmo, é movido pela convicção profunda de que com isso ganharão em firmeza
moral e não mais se deixarão impressionar pelas sutilezas dos sofistas.
No tocante à natureza e ao destino da alma assim entendida, a dificul dade em distinguir
entre as idéias de Sócrates e as de Platão permite apenas conjeturas. Basta observar que a
concepção socrática implica em todo caso uma fé metafísica: a de uma racionalidade
imanente às profundezas da vida.
Em Sócrates, a psicologia se encontra inteiramente subordinada à ética, e a introspecção é
função do sentido que se trata de dar à conduta humana. O homem socrático é um ser que
pretende atingir a felicidade por uma tendência mais ou menos obscura postulada na
própria raiz de seus
Antes acanhado moralista em XENOFONTE. aparece em PLATÁO como o porta-voz do
próprio dealismo deste (na República, especialmente). Do ensino que lhe é atribuído,
surgiram escolas antagônicas, o que não laciltta o conhecimento de um homem que nada
escreveu. O mais cômodo, nestas condições, é atermo-nos ao testemunho de
ARISTÓTELES, que atribui a PLATÃO a transformação da mensagem ética de
SOCRATES numa verdadetra metafísica das idéias.
33
desejos. E este ser deve compreender que só o bem é capaz de satisfazer essa busca. A
habilidade dialética de Sócrates, contudo, não pode senão afirmar, sem demonstrá-la, a
identidade estabelecida entre os objetos do desejo e o bem, entre o desejável (no sentido
psicológico do termo) e o fim do homem (no sentido metafísico); finalmente, entre o bem,
o belo, a virtude e o útil. Seu "sei que nada sei" constitui um procedimento didático,
fundado, realmente, na convicção de que o contraste entre a busca do prazer ou do poder,
e a busca do soberano bem não passa de aparência, decorre de uma falta de
discernimenlo, de um conhecimento insuficiente do bem, único penhor da felicidade
humana. Ação justa é, pois, a que se orienta por um conhecimento claro, alicerçada numa
elucidação teórica, e é a essa ciência do bem que nos
pretende conduzir sua famosa maiêutica.
O liame entre a razão e as paixões se mantém na medida em que o homem esclarecido
(o qual, segundo Sócrates, age, então, forçosamente, bem) põe sua paixão nessa boa
ação. Nem por isso, contudo, todo o domínio verdadeiramente "psíquico", aquele, por
exemplo, dos conflitos entre as injunções da consciência moral (para nada dizer das
vicissitudes desta última) e as forças instintivas, está menos ausente de semelhante
concepção exclusiva- mente ética e, apesar das aparências, mais preocupada com a idéia
do humano do que com a idéia dos homens em sua diversidade concreta. Sócra tes parece
ter sido um ser de saúde física e moral excepcionais, animado de fé não menos rara no
poder dessa razão humana que experimentava em si mesmo. A aceitar o testemunho de
Platão('), a maior cegueira, ao ver de Sócrates, consiste em desconhecer que a maior
infelicidade, pior que a doença do corpo, é "unir-se com uma alma que, em lugar de estar
em boa saúde, está apodrecida pela injustiça e pela impiedade"
Em suma, a concepção socrática da alma é inseparável de uma filosofia da abedoria,
ciência por excelência, na medida em que engloba todas as demais virtudes particulares
(piedade, justiça, coragem, temperança); e sabedoria que se pode ensinar, pois é possível
agir sobre a alma de tal maneira que ela seja constrangida a exprimir a verdade de que
está prenhe.
(1) Górgi. 479b.
34

CAPÍTULO V
A PSICOLOGIA DE PLATÃO
1. A espiritualidade da alma e seu destino
2. O processo do conhecimento
3. Uma psicofisiologia finalista
4. As perturbações psíquicas e os fatores inconscientes
1. A espiritualidade da alma e seu destino
Admitida a distinção tradicionalmente estabelecida entre as doutrinas de Sócrates e de
Platão, a obra deste último aparece como tentativa de confe rir status ontológico à
intuição socrática da alma humana como essencial- mente moral. Constitui, assim, mais
propriamente do que uma psicologia no sentido moderno do termo, o que se poderia
chamar de metapsicologia, inscrita num contexto de poder e riqueza incomparáveis. "A
alma", declara, "é o que existe em nós de mais divino, como é o que possuímos de mais
particular". (Leis, V.)
Enquanto os pensadores precedentes, ainda quando sentiram - como Anaxágoras - a
necessidade de caracterizar a alma em oposição à vida natural, não a separaram
completamente de certa materialidade, embora fosse uma materialidade muito sutil, quer
demonstrar Platão que ela é absolu tamente incorpórea, e repudia todas as teorias
anteriores que, identificando a alma a um elemento ou a uma mistura de elementos, lhe
parecem compro meter irremediavelmente seu caráter espiritual e seu destino
sobrenatural ( I)
Em apoio de sua tese, recorre a vários argumentos: a alma possui desde sempre a
verdade; é o princípio de todo movimento; simples e indivisível, portanto não-
composta, escapa forçosamente à decomposição; é capaz de uma reminiscência que lhe
prova a existência anterior; participe da idéia de vida, acha-se investida de atividade
eterna, exclusiva da morte. A vida psíqui
(1) Cf. especialmente Fedo 7O 84b, 8óbd, 92b, 96b; A República, til, 386d.
35
ca é concebida assim, por Platão, como independente da vida do corpo, que ela governa,
como a alma universal (da qual é parte) preside aos movimentos do universo. Se se
encontra sobre a terra, mesclada à matéria e ao devir, é por ter sido aí lançada por uma
espécie de decadência; e desse corpo que habita cá embaixo aspira a livrar-se como de
uma prisão. Seu destino é regressar à pátria de origem, através de reencarnações
sucessivas; ora, tal fim está condi cionado à sua libertação do mundo material. Um
conflito ontológico se desen rola pois, na alma humana, dilacerada entre a obscura
nostalgia de uma eternidade divina e as seduções da vida terrena. Esta vida é para
sempre incapaz de mitigar a sede de absoluto que a possui; e ela deve compreender que
sua tarefa é elevar-se acima dos prazeres do corpo, vencer as tentações, fugir ao mundo e
a suas seduções, avivar sua reminiscência das idéias que conheceu na realidade supra-
sensível. A dialética, capaz de superar a multi plicidade dos dados sensoriais e de
dissipar a ilusão a eles presa, permite-lhe lançar-se por essa via de libertação; também o
amor, que nela desperta a lembrança da Idéia do Belo, refletida, em certa medida, pelas
coisas e pelos seres, e que a conduz à preocupação do Bem Absoluto, cujo magnífico
esplendor domina o mundo inteligível, o único verdadeiramente real. Aos olhos de quem
se orientou para a verdadeira realidade, aquela onde nada passa nem morre, o mundo
natural perde o poder de sedução. Assim se vence, já nesta vida, um passo decisivo e a
morte poderá constituir liberação para a alma, subtraída à roda dos nascimentos e que
voltará a encontrar seu verda deiro habitat. Relata Platão como foi a alma lançada na
matéria e no devir; enumera os castigos e as recompensas que a
esperam no Além, com a precau ção, porém, de precisar que se trata de símbolos. Assim
é que as almas não purificadas pela filosofia descem ao Hades para receber o salário a
que fizeram jus. Sofrimentos eternos no Tártaro atingirão as que se empederniram no
mal; as outras, após longa permanência no Hades, escolhem, elas mesmas, o corpo (de
ser humano ou de animal) que irão ocupar; e essa escolha é deter minada pelo ativo ou
passivo que tenham conseguido numa encarnação precedente.
2. O processo do conhecimento
A Protágoras, que fazia depender das sensações todo conhecimento, objeta Platão que a
ciência não é redutível a elas. Se assim fosse, o doente, que sente a moléstia, haveria de
conhecê-la melhor do que o médico. Na realidade, a ciência tem outros alicerces que não
as sensações sempre mutáveis, O que não impede que Platão, ainda nesse nível do
conhecimento, já corrija o mobilis mo radical que atribui a Protágoras. Distingue e ntre as
próprias sensações, segundo certo grau de objetividade que lhes é próprio. Pois qualquer
impressão não pode ser completamente desprovida de objetividade, ainda quando o
objeto se encontre modificado em certa medida, ainda quando ela própria esteja
perturbada por ele; e deixa sempre transparecer algo desse objeto. Se a cor, por exemplo,
não fosse uma espécie de fogo, se não perten cesse às espécies suscetíveis de agir sobre
o fogo ocular, não haveria percepção alguma de cor. Por outro lado, é excessivo
pretender que toda sensação é completamente original com relação às que a precederam,
sem nada que reconduza a uma experiência anterior. A observação comum prova o
contrá rio: um dedo parece à vista um dedo, quer pertença à extremidade ou ao meio
da mão, quer seja grande ou pequeno (Rep., V 523). Todo conhecimento implica certa
permanência e, se os objetos estivessem em perpétua transfor mação, o pensamento não
teria como captá-los (Crátilo, 439-40). Essa perma nência não é menos necessária de
parte do sujeito do conhecimento e eis porque o conhecimento não pode apoiar-se nas
sensações. Entra aí outro elemento, decisivo: a atividade racional, que coordena o
semelhante. Para Platão essa atividade é inseparável de sua concepção metafísica e o
famoso "mito da caverna" exprime o desligamento necessário da simples existência em
direção às idéias eternas. Também a reminiscência, lembrança latente de nossa origem
supraterrestre e das realidades que lá encontrou a alma, nos põe no caminho do
verdadeiro conhecimento, aberto apenas quando alguém se desliga do mundo sensível.
Quando Platão, no Menon, nos mostra Sócrates a interrogar um pequeno escravo de
maneira a conduzi-lo a descobrir, por si mesmo, a solução de um problema geométrico:
construir um quadrado cuja superfície seja o dobro da de um quadrado dado, tem em
vista provar-nos que aquele ser inculto trazia em si a solução; o que significa, segundo
Platão, que a conheceu em vida anterior. Instaura, assim, uma espécie de técnica das
reminiscências, para ultrapassar o estádio das crenças e das opiniões e atingir o
verdadeiro saber. Sob essa perspectiva inatista é que chega a evidenciar a atividade
própria do espírito, sua capacidade de julgar e raciocinar, distinta das sensações. Sabe- se
a importância que possui, a seus olhos, o pensamento matemático, graças ao qual - a
despeito das aparências variáveis, conforme a grandeza e a distância - o espírito chega a
tornar inteligíveis as proporções dos corpos e seus movimentos. Vê na matemática um
sistema de coordenação fundado em princípios cuja essência é bem definida: números
pares e ímpares, superfícies, ângulos... Como, porém, ela não pode justificar por si
mesma tais princípios, Platão a subordina à dialética, a qual nos introduz no domínio
onde a razão, em sua soberania, descobre o verdadeiro sentido de tudo quanto existe, e
onde os princípios que permitem o conhecimento do universo em sua estrutura profunda
aparecem a plena luz. Neste estádio, o conhecimento sensível fica completamente
eclipsado.
3. Uma psicofisiologia finalista
Qualquer que seja, porém, sua preocupação em reservar atividade tão independente
quanto possível à alma - que estaria no corpo como num navio que lhe incumbe conduzir
e governar - o problema do conhecimento e da ação leva Platão, forçosamente, ao ser
humano constituído de um organismo. Admite, aliás, que a alma sofre, no correr de suas
peregrinações, uma influên cia que entrava ou retarda o cumprimento de seu destino, e
que, por isso mesmo, mantém, obrigatoriamente, com o corpo, relações de certa ordem.
Mas de que ordem? A resposta não é fácil, independentemente das dificul dades
intrínsecas da doutrina, pelo fato de que as afirmações de Platão nessa matéria exprimem
a maneira de conduzir um pensamento que jamais repousa na satisfação de si mesmo.
NoFedro, Platão compara a alma a uma parelha de cavalos conduzidos por um cocheiro.
O cocheiro simboliza a razão; um dos corcéis, a energia
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moral; o outro, o desejo. Esta divisão tripartida volta a encontrar-se na
República:
Pois que existem na alma três funções, é evidente, para mim, que há também três
espécies de prazeres, cada um dos quais próprio a uma dessas funções; semelhan
temente, há três espécies de desejos e de princípios de ação.
Uma dessas funções, dizíamos, é aquela por meio da qual o homem adquire o
conhecimento; outra, aquela pela qual queima de ardor; quanto à terceira, mercê da
multiplicidade de seus aspectos, não conseguimos designá-la por um só nome, denomi
nando-a, porém, pelo que há nela de mais importante e de mais forte; nós a chamamos
desejante, em razão da intensidade dos desejos relativos à nutrição, à bebida, aos
prazeres do amor, e a tudo, enfim, quanto acompanha esses desejos; evidentemente,
amante também da riqueza, porque a riqueza é o meio principal de realizar essas
espécies de desejos." (Rep., IX, 581 d, e.
No diálogo Platão ainda precisa que a razão tem por sede a cabeça; a energia moral, o
peito; o desejo, o abdômen.
O mesmo modo de ver volta a encontrar-se no Timeu, essa obra de velhice, na qual
Platão nos conta como o arquiteto do universo, "criador dos seres divinos", encarregou
seus próprios filhos da gênese dos mortais (69 c).
Está-se aí diante de uma psicofisiologia finalista, a explicar "porque" as três partes da
alma ocupam tal lugar distinto no corpo. Se o "princípio divino" da alma tem sede na
cabeça, separada do peito pelo pescoço, é para que permaneça tanto quanto possível
protegida contra as impurezas que provêm da alma inferior; como esta contém "uma parte
naturalmente melhor, outra pior", a primeira se situa mais perto da cabeça, entre o diafrag
ma e o pescoço, para que possa contribuir, em concerto com a razão, para conter os
apetites; e estes têm sua sede o mais longe possível da alma delibe rante, "no espaço
intermediário entre o diafragma e as proximidades do umbigo" (Timeu, 69, 70, 71). A
medula é por ele considerada como o elo que une a alma ao corpo. O sangue se origina
no coração, encontro de todos os vasos, e se refresca nos pulmões. O ar, ou pnei penetra o
corpo humano através de vias definidas, desde a boca e os pulmões até o coração. Daí,
lançado em todo o organismo, preside à vida, ao equilíbrio das funções, aos
movimentos do pensamento.
Decorre da concepção platônica que apenas a parte superior da alma possui o privilégio
da imortalidade, imortalidade cujo caráter pessoal não parece duvidoso:
"Finalmente, quando os liames que ajustam entre si os triângulos da medula não podem
mais resistir, distendidos pela fadiga, fazem com que se relaxem por sua vez os liames da
alma, e esta, liberta segundo a corrente da natureza, alegremente se desprende. Tudo
que, de fato, contraria a ordem da natureza é doloroso, mas o que sucede segundo a
ordem natural é doce. A morte, assim, se ocorre em conseqüência de doenças ou pelo
efeito de ferimentos, é dolorosa e violenta: mas quando vem com a velhice e leva a um
fim natural é a menos penosa das mortes e antes se acompanha de alegria do que de
desgosto." (Timeu, 81, d, e.)
No Fedo,i também, Platão declara que a alma nutrida pela verdade divina não mais teme
"dispersar-se no momento de separar-se do corpo ou
espalhar-se ao sopro dos ventos, ou alçar vôo e, uma vez partida, nada mais
serempartealguma"(84a, b).
A afirmação da imortalidade pessoal constituirá um dos motivos impor tantes do
prestígio de que desfrutará Platão entre os apologistas cristãos, de Justino a Santo
Agostinho. Pode-se, contudo, indagar, como a propósito dos jônicos, se a conseqüência
lógica da teoria não seria o retorno da alma indivi dual à alma universal e cósmica. Por
outro lado, se o essencial da alma, se o elemento divino que nela está presente, é
unicamente a faculdade cognitiva ou a razão, torna-se manifesto que as afeições, os
apetites, os desejos, enquanto produtos de sua união com o corpo, não podem sobreviver
à destruição deste. A questão é, então, saber como e porque essa alma, puro
pensamento, pôde precipitar-se na prisão do corpo.
Tudo quanto Platão escreve, particularmente no Timeu, sobre as quali dades sensíveis, se
insere na perspectiva finalista que preside à sua concepção da alma tripartida, tal como
seus comentários sobre o fígado (espelho polido e brilhante, sede do vaticínio), sobre a
imaginação e sobre o baço (onde se depositam as impurezas, o que lhe explica a
inchação em caso de febre), sobre os intestinos (longos e sinuosos, a fim de que os
alimentos permaneçam durante bastante tempo no corpo, para que o homem esteja livre
de um perpétuo cuidado alimentar), sobre a medula, os músculos, os ossos, e tendões que
deles provêm; sobre a carne, a cabeça, a pele, os cabelos, as unhas, o aparelho
circulatório e o respiratório; sobre a digestão e a assimi lação, sobre o desequilíbrio dos
elementos, a degenerescência dos tecidos e a formação dos humores, sobre a bílis, a
pituita... (Timeu, 61-86).
4. As perturbações psíquicas e os fatores inconscientes
Particularmente curiosa é a atitude objetiva observada por Platão ao tratar das
perturbações psíquicas; nas descrições que delas oferece, o caracte rologista pretende
igualar o moralista. Se admite que as doenças têm, freqüentemente, causas externas:
abuso de alimentação, excessos sexuais, desproporção entre o dispêndio físico e a
alimentação, julga
que quase todos os erros que chamamos intemperança nos prazeres e que reprovamos...
nos maus, são outros tantos reproches injustificados"
pois ninguém é mau por sua própria vontade, mas antes pela inaptidão dos educadores
ou "por algum vício de constituição corporal" de que a alma padece com o corpo:
"Quando, de fato, acres ou salinas, as pituítas e tudo quanto existe de sucos amargos e
biliosos erram pelo corpo e não encontram saída, mas, rolando no interior, misturam
seus vapores ao movimento da alma e entre si se confundem, provocam então toda
espécie de moléstias da alma mais ou menos graves, mais ou menos numerosas;
afluindo às três sedes da alma, conforme a que seja atingida por suas espécies diversas,
aí introduzem todos os matizes das formas variadas da acrimônia e do abatimento, da
temeridade e da covardia, da fugacidade e da preguiça de espírito, enfim..."
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Se a isso se acrescenta a influência das más instituições politicas e da corrupção do
meio, que ninguém se preocupa em reformar, compreende-se a
existência do mal:
"Os que devem ser acusados são os autores do nascimento, sempre, mais do que as
crianças deles nascidas; depois, os que os educam, mais do que os próprios educan dos;
cada qual, no entanto, deve esforçar-se, o quanto possa, pelo seu regime moral, suas
práticas e estudos, por fugir ao vício e escolher o contrário." (Timeu, 86, 87.)
Quanto ao sistema de educação preconizado por Platão na República, não caberá dizer
que seja da alçada da psicologia, uma vez que consiste em orientar, e até em constranger
o indivíduo numa via traçada por Platão filó sofo. Essa pedagogia é rica, no entanto, de
observações penetrantes. Por exemplo, a propósito dos apetites e dos desejos que se
manifestam nos sonhos e nos quais se pode ver uma como presciência do papel do
inconsciente descrito pela psicanálise. Se pode ocorrer, diz ele, que esses desejos, "com o
concurso do raciocínio", sejam superados ou atenuados, pode também ocorrer que alguns
dentre eles "ganhem em força e número":
"São os (.. que despertam por ocasião do sono, sempre que dorme a parte da alma cujo
papel é raciocinar e comandar pela doçura a outra, enquanto a parte bestial e selvagem,
tendo-se fartado de alimento e bebida, tremula e, repelindo o sono, procura continuar e
saciar o pendor próprio. Sabes muito bem que, em tal circuns tância, não há audácia
diante da qual recue, como que desligada, desembaraçada de toda vergonha e de toda
reflexão: nem, com efeito, diante da idéia de querer unir-se à própria mãe, ou a qualquer
um, homem, Divindade, animal; ou de macular.se em qualquer assassínio; ou de não
abster-se de alimento algum. Numa palavra, em coisa alguma lhe faltam desatino ou
indiferença à vergonha." (Rep., IX, 571.)
Encontram-se em Platão até observações que se poderiam interpretar, hoje, no sentido
de certa plasticidade do "inconsciente", ouda repercussão favorável, neste, de uma vida
cuidadosa de equilíbrio. E desfrutado o repouso, diz ele:
toda vez.., que a pessoa tem.., saúde no íntimo e sábia moderação; que passa ao sono
após haver despertado o elemento de si mesma que raciocina e calcula; que realiza um
festim de discursos e de belas reflexões; que consegue concentrar-se em meditação
pessoal; que não abandona a função desejante nem às privações, nem à saciedade..."
e quando se procurou, pela reflexão, acalmar a efervescência dos sentimentos. Assim se
estará, também,
no mais alto grau em contato com a verdade; e será o menor possível o desregra mento
das visões que aparecem em nossos sonhos."
Pois a consideração destes torna evidente que
existe em cada um de nós uma espécie de desejo terrível, selvagem, desregrado; e, a
nosso ver, o mesmo se dá com certas pessoas que se mostram, entre nós, perfeitamente
comedidas." (Rep., IX, 572.)

1. Aristóteles e seus predecessores


CAPÍTULO VI
A PSICOLOGIA DE ARISTÓTELES
1. Aristóteles e seus predecessores
2. A oposição a Platão
3. A alma como "forma" do corpo
4. O próprio do homem
5. O primado ontológico
6. O objeto da psicologia
7. As sensações e a percepção
8. A imaginação, a memória, os sonhos
9. O princípio de perfeição
Como a psicologia de Platão a de Aristóteles é dominada por uma onto logia que atribui
ao Universo, pela intervenção de uma causa final e de um princípio de perfeição nas
coisas, uma arquitetura estável e harmoniosa, da qual cada parte é ordenada pelo
conjunto. Nela aparecem, porém, um sentido da observação objetiva, um gosto do
concreto, uma preocupação pelo indivi dual, que lhe conferem, em certa medida, apesar
do quadro dogmático, muitos traços de uma psicologia no sentido moderno do termo(').
Aristóteles se preocupou com as teorias de seus predecessores, freqüen temente para
criticá-los com superioridade. Os juízos que formula a respeito deles são ordenados com
método e constituem, para o conhecimento de seu pensamento, vias úteis de acesso.
Considera que os pitagóricos e os platônicos, com sua preocupação de afirmar o caráter
sobrenatural da alma, lhe negligen ciam as condições reais, físicas e orgânicas, da
existência. E aos pensadores materialistas, particularmente os atomistas, censura a
confusão entre o prin cípio vital e os elementos por esse princípio organizados.
Demócrito, por exemplo, não poderia explicar por meio de átomos o comportamento
dos seres vivos, o qual manifesta, seguramente, a intervenção de uma escolha, de um
pensamento. (De Anima, 1, 3,405 b 15-25.) Uma física assim não pode expli car a
natureza das sensações, muito diferente dos simulacros que se produzem no mundo
material. A água que reflete uma paisagem não vê a paisagem.
(1) Se se trata, por exemplo, de indagar sobre as imagens dos sonhos, começa por
declarar: "Com respeito ao vaticínio que ocorre no sono, e se diz provir dos sonhos, não
é fácil tratá-lo com leviandade, nem dar-lhe crédito
(ParcaNaturulia, 462b, trad. J, TRICOT.)
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3. A alma como "forma" do corpo
"Demócrito, ao pensar que a visão é uma imagem refletida, labora em erro. É estranho
que não lhe tenha ocorrido indagar porque apenas os olhos vêem, e não o faz nenhuma
das coisas nas quais se refletem os simulacros." (De Sensu, 11, 438 a 5-14.)
O aparecimento da vida não é redutível aos processos físico-químicos; estes são sua
condição necessária, não, porém, suficiente, e lhe devem a orien tação, O princípio vital
difere, portanto, dos elementos componentes do mundo físico. Absurdo representar-se a
alma como fogo; seria o mesmo que identificar ao carpinteiro ou à sua arte os
instrumentos de que se utiliza pelo fato de a obra resultar dessa colaboração. (De
Partibus Animalium, II, 7, 652h 7-15.)
2. A oposição a Platão
Foi Platão o primeiro em querer demonstrar o caráter imaterial da alma como garantia de
sua imortalidade. Sua tentativa, porém, pelo fato de atribuir à alma, como função
essencial, a de reintegrar-se numa realidade metafísica puramente ideal, levou a separá-
la do corpo, a excluir as sensações do domínio da verdade, apesar dos corretivos que se
podem encontrar em sua obra. Essa espécie de guerra civil que introduz no homem
repugna ao espírito positivo de Aristóteles, cuja oposição às idéias transcendentes de
seu mestre é conhecida. Segundo Aristóteles, concretamente observadas as coisas, o que
antes existe é união e colaboração entre a alma e o corpo. A unidade funcional deste
último, articulada em funções diversas, depende desse único princípio ativo que é a alma,
sem anterioridade real em relação aos elementos que ela unifica, coordena e governa. A
alma não pode subsistir sem um corpo que ela anime (De Anima, II, 2, 414 a). E
princípio de vida e de movimento, imanen te às funções biológicas e fisiológicas.
Enquanto causa primeira da vida, da sensibilidade e da inteligência, é ato, essência,
"forma": não de uma virtua lidade qualquer, mas determinada, isto é, de uma existência
capaz "em potência" de realizar-se naquela forma particular:
"Eis mais um absurdo peculiar a essa doutrina e à maior parte das teorias relativas à
alma: unem a alma ao corpo e ai a colocam sem precisar em nada a razão dessa união,
nem a disposição do corpo que isso comporta. Pareceria de fato que tal explicação é
indispensável: pois é em virtude das relações mútuas entre a alma e o corpo que uma
age e o outro sofre, que um é movido e a outra move; ora, nenhuma dessas relações
recíprocas pertence a coisas quaisquer. Contudo, esforçam-se esses pensadores apenas
em explicar a natureza da alma, mas, no referente ao corpo que deve recebê-la, não
acrescentam precisão alguma, como se fosse possível que, segundo os mitos
pitagóricos, qualquer alma revestisse qualquer corpo. Mas isso é inadmissível, pois
parece que cada corpo possui uma forma, uma figura que lhe é própria. Os parti dários
da metempsicose apresentam as coisas de modo semelhante ao de quem susten tasse que
a arte do carpinteiro pode exercer-se com flautas: isso é impossível, pois toda técnica
deve servir-se dos instrumentos próprios, e a alma, do corpo que lhe convém." (DeAn.,
1,3, 407h 13-26.)
Em suma, a alma não é aquela exilada de que fala Platão, encarcerada num corpo,
possuída pela nostalgia de livrar-se dele para sempre; ela é o que assegura a harmonia
das funções vitais.
Em outros termos, o ser humano não é constituído por uma alma e um corpo, como duas
entidades justapostas. Os dois termos exprimem os aspectos inseparáveis de sua unidade
vivente, estofo real de suas sensações, afeições, atividades. Aristóteles é levado assim, a
definir a alma como "a enteléquia primeira de um corpo natural, que possui a vida em
potência" (1), Princípio de movimento, de crescimento, de geração, ela unifica todas
essas funções, inclusive as operações da sensibilidade e do entendimento.
"Não cabe pesquisar se a alma e o corpo são uma só coisa, como não o fazemos quanto
à cera e o sinete, nem, de maneira geral, quanto à matéria de uma coisa qual quer e
aquilo de que ela é matéria." (De Anima. 1, 5, 411 a; também II, 1,412 b 5.)
A alma está para o corpo como o fio do ferro está para o machado, como a vista está
para o olho:
"Fosse o olho um ser vivo, e a visão seria sua alma: pois a visão é a essência do olho. O
olho, de sua parte, é a matéria da visão, e, faltando a visão, não há mais olho, senão por
homonímia, como um olho de pedra, ou um olho desenhado." (De An.. II, 1, 412b 20.) e
não é possível separar o órgão da função:
a alma é, no sentido primordial, aquilo por que vivemos, percebemos e pensamos... é
com razão que pensadores têm julgado que a alma não pode existir sem um corpo, nem
ser um corpo; pois não é um corpo, mas algo do corpo; e essa é a razão
porqueestáemumcorpo..."(DeAn.. 11,2, 414a 15-20.)
Como a alma é "causa e princípio do corpo vivo" (De An., II, 4, 415 b 10), a psicologia,
segundo Aristóteles, está ligada à biologia, até à botânica. Pois admite um modo de alma
na própria planta, na medida em que é capaz de alimentar-se, de reproduzir-se, de crescer
de acordo com o tipo de sua espécie. No animal, as funções vitais se apresentam em grau
superior, visto que lhe permitem discernir pela sensação as qualidades das coisas e,
ainda, deslocar-se por si mesmo segundo os desejos ou as aversões que nele suscitam. A
alma, neste nível, é sensitiva, apetitiva e motora. Aristóteles, que observou muito os
animais, persuadiu-se de que o comportamento deles, em muitos casos, apresenta
analogias com o do homem:
"Na maior parte dos outros seres vivos, há traços de qualidades físicas que se encontram
mais nitidamente diferenciadas no homem. Com efeito, como dissemos no caso dos
órgãos, observamos, em inúmeros animais, disposições à doçura e à selvageria, caráter
fácil e difícil, coragem e coiardia, temor e segurança, impetuosidade e velhaca ria, e até
certos traços que lembram os cálculos da inteligência humana." (Histoire des animaux,
VIII, 1,588 a, 18b 3.)
(1) De Anim,,, II, 1, 412 a 27-28. (Deve-se entender por enteléqiüa o desenvolvimento
de um ser cujas diferentes partes são solidárias e que possui a forma que é capaz de
revestir: e por ida em ,,vtéveia a disposição de órgãos próprios ao cumprimento de
certas funções vitais.)
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Discerne também que:
5. O primado ontológico
"Nalguns desses caracteres, a diferença entre o homem e o animal não é senão diferença
de grau; alguns são mais acentuados no homem, outros, nos animais"... "O que acabamos
de expor fica evidente quando se considera o que é peculiar à infân cia. Com efeito,
pode.se ver, na criança, como que o cunho e o germe das disposições que serão as suas
mais tarde, enquanto sua alma, por assim dizer, em nada difere, nessa idade, da
dos animais. E, portanto, bastante razoável sustentar que certos carac teres psíquicos são
os mesmos no homem e no animal, enquanto outros apresentam acentuada semelhança e
outros, ainda, não possuem entre si senão analogia." (Histoire desanimaux, VIII, 1,588a,
18b3.)
4. O próprio do homem
Do animal ao homem, o que caracteriza a passagem é uma espécie de aperfeiçoamento.
Aparece a mão, que testemunha admiravelmente o poder da inteligência; e, sobretudo, a
própria inteligência sob a forma racional, capaz de extrair, do mundo sensível,
invariantes, tipos; de atingir princípios universais, axiomas eternos (tal como aquele
sempre implícito no silogismo: o que é verdadeiro do todo é verdadeiro da parte). Essa
inteligência racional própria do homem é "impassível, imortal e eterna" (DeAn.,III, 5).
Ela é o Noüs introduzido por Anaxágoras, mas sem que este tivesse sabido, do ponto de
vista de Aristóteles, extrair-lhe a verdadeira essência. Acerca desse intelecto agente ou
ativo, como lhe chama, e do qual nos diz entrar no feto "pela porta" (De Gen. Anim., II,
3, 736 b 27), sucederam-se os comentários através dos séculos, tanto é ambíguo seu
próprio pensamento na matéria (1)• Reconhece, aliás, que nada se sabe de certo sobre
esse Noiis, exceto que se trata de outro gênero de alma (De An., II, 2, 413 b). Atribui-
lhe um pensamento que não é intermitente nem fragmentário como nosso pensamento
discursivo, mas pensamento em ato de todas as realidades inteligíveis. Esse Nozls é,
relativamente a nosso pensamento comum, "pen samento do pensamento". Na medida
em que possibilita a intuição inte lectual dos primeiros princípios, é o fundamento de
toda ciência (Met, XII, 7, 9, 33).
O problema consiste em unir dialeticamente a descrição empírica de Aristóteles a esse
intelecto universal, que deve individualizar-se, pois vive num corpo; compreender
verdadeiramente o papel atribuído à alma indi vidual - o de atualização progressiva,
relativamente àquela instância que é "ato eterno". A questão é, evidentemente, de ordem
metafísica e, não, psicológica. Diz ao problema da origem do pensamento racional do
homem e à dificuldade em considerá-lo o resultado da experiência sensível, problema que
dois milênios de pesquisas ainda não resolveram, se é que poderá ser resolvido algum dia.
(1) A dupla interpretação, averroista e tomista, polariza, de certa maneira, o problema do
Noi2s em ARISTOTELES. Sabe-se que a solução de AVERROIS, que tomara como
tarefa restituir o pensamento autêntico de ARI5TOTELES, é afirmar que o intelecto
agente é um só para todos os homens e que, assim, a ele se deve ludo quanto há de
eterno no individuo.
A doutrina de Aristóteles repousa numa distinção fundamental entre a ordem cronológica
e uma ordem ontológica mais profunda, que confere à vida um movimento cujo sentido é
atualizar virtualidades brotadas duma perfeição originária. Portanto, o imperfeito provém,
idealmente, do perfeito, tal como a criança supõe o adulto, embora seja adulto "em
potência". Aristóteles foi levado, assim, a postular Deus como primeiro motor imóvel, ser
absoluta mente imaterial, pura forma (Mel., XII, 7, 1072 b, 25, 30). A descrição dos seres
naturais em movimento e realizados na matéria pelo Aristóteles biólogo e psicólogo se
inscreve, portanto, no quadro de um sistema fechado. Refere-se a objetos cujo
desenvolvimento, em suas fases presentes e, até, futuras, é conhe cido pelo Aristóteles
metafísico. Nem por isso é menos certo que o interesse de sua teoria, no terreno da
psicologia como tal, reside na descrição do orga nismo concreto, real e expresso pela
coordenação harmoniosa de suas partes.
6. O objeto da psicologia
A classificação das almas em vegetativas, sensitivas e intelectivas, não implica, segundo
Aristóteles, diferenciações qualitativas de partes da alma no sentido platônico. Trata-se de
distinção estabelecida entre estruturas orgâ nicas mais ou menos complexas (De An., II,
2, 213 ah; II, 3, 414 b), em sentido muito aproximado do que, hoje em dia, ocorre quando
se comparam estruturas diversas com o comportamento que as caracteriza.
Desse ponto de vista, à luz da psicofisiologia moderna, sua maneira de ver nada tem de
perempto, apesar do contexto dogmático.
parece que todas as afecções da alma se dão com um corpo: a coragem, a
doçura, o temor, a compaixão, a audácia e, ainda, a alegria, tanto quanto o amor e o
ódio; pois, ao mesmo tempo que se produzem essas determinações, o corpo experi
menta uma modificação." (DeAn., 1, 1,402b, 15.)
Depois de ter assim enunciado sem ambigüidade aquilo que se apre senta como prelúdio
ao famoso paralelismo psicofisiológico, Aristóteles teste munha consciência muito nítida
da dualidade própria ao objeto da psicologia, dessa espécie de escolho interior- exterior
contra o qual, ainda hoje, esbarram as investigações:
"Disso resulta que, em suas definições, deve-se considerar esse estado de coisas:
definir-se-á, por exemplo, a cólera um movimento de tal corpo ou de tal parte, ou de tal
faculdade, produzido por tal causa, para tal fim. - E é por isso que o estudo da alma
compete ao físico, quer se trate de toda a alma, quer da alma como a descrevemos. O
físico e o dialético definiriam, assim, diferentemente cada uma dessas afecções, como,
por exemplo, a cólera: para o último, é o desejo de causar ofensa, ou qualquer coisa
desse gênero; para aquele é a ebulição do sangue que envolve o coração, ou ainda a
ebulição do quente. Um explica a matéria; o outro, a forma e a noção: pois a noção é a
forma da coisa, mas é necessário que ela se realize em tal matéria..." (De An., 1, 1,
402h, 30,403b.)
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De qualquer maneira, é a partir da consciência que o ser vivo toma de si próprio que um
conhecimento qualquer se elabora, e a sensação nos remete, forçosamente, não a um
exterior interpretado em termos de movimentos, mas a um sistema interno de qualidades e
de significados. Bem o compreendeu Aristóteles, que vê na sensação, essencialmente,
uma capacidade de discernir no mundo sensível das qualidades: o branco, o vermelho; o
doce, o amargo; o duro, o mole..., por um ato que aciona um elemento externo (o poder
de um objeto de afetar um ou vários órgãos dos sentidos) e um elemento interno (a
atividade desses próprios órgãos).
7. As sensações e a percepção
Se a presença da razão é necessária ao conhecimento das estruturas essenciais da
realidade, os materiais sobre os quais se exerce lhe são forne cidos pelos sentidos. Sem as
qualidades que estes nos revelam, a razão seria incapaz de tornar o mundo inteligível.
Como, porém, no-las revelam? Consi dera Aristóteles essencial o fato de que a alma
permanece interior no processo da sensação. Segundo ele, é erradamente que Heráclito -
nisto muito fiel mente seguido por Protágoras e até por Platão - pensou que a imagem
resul tasse de uma combinação de dois corpos e que a impressão sensível se devesse a
uma dupla contribuição da matéria. Na realidade, o homem que conhece faz existir de
certa maneira - intencionalmente, forn imaterial mente - o objeto conhecido em seu
intelecto: "Não é a pedra que está na alma, mas sua forma" (De An., 111,8, 431h, 25).
Assim, Aristóteles substitui a idéia de emanações materiais do objeto percebido para o
sujeito percipiente pela da apreensão, por este último, de uma "forma" que implica um
intermediário: a transparência, o diáfano. O olho se torna luminoso e colorido, enquanto a
córnea o protege contra as substâncias cuja luminosidade e cores reproduz. Portanto, é
apenas a forma que modifica os sentidos, um pouco à maneira pela qual um sinete
marca a cera com seu cunho, sem nada deixar de seu metal.
A luz foi assimilada ao fogo, porque não existe e não aparece senão quando há fogo.
Este, porém, não deve ser confundido com a luz que dele emana. O fogo é um corpo. A
luz é a manifestação visível dessa qualidade que é a transparência de certos corpos,
sobretudo do ar e da água (De An., II, 7, 418 b). Mas se essa transparência é condição
da luz, o fogo é outra. Onde ele falta, os objetos mais translúcidos "em potência"
permanecem opacos. O olho, no ato da visão, contém luz. E constituído de um corpo
transparente que é um liquido aquoso; prova disso é seu derramamento, conseqüente à
perfu ração do olho (De Sensu, II, 438 a, 13-19). A única exceção a essa junção
necessária da luz e do diáfano para que se dê a visão, é constituída pelos casos de
fosforescência que, aliás, excluem a percepção da cor própria do objeto (De An., II, 7,
419 a). O mesmo se dá com os outros sentidos, que Aristóteles analisa para mostrar que
sua função implica sempre um intermediário, local de encontro das qualidades e do
órgão que as percebe. No tacto, esse papel é desempenhado pela carne.
De modo geral, a psicologia de Aristóteles visa a reabilitar, em relação ao idealismo
platônico, a sensação como fonte de conhecimento, estabele
cendo que ela não poderia enganar quanto a seu objeto próprio. A visão do branco
equivale a extrair do mundo a qualidade, a essência do branco. O erro começa apenas
com o juízo, quando intervém uma afirmação a respeito do branco:
"A sensação dos sensíveis próprios é sempre verdadeira ou, pelo menos, sujeita
o menos possível ao erro. A percepção... vem em segundo lugar e, nessa altura, o erro
já pode insinuar-se: pois que o sensível seja branco, eis um ponto em que não é possível
o engano; mas que o branco seja esta ou aquela coisa determinada, nesse ponto é
possíveloerro." (DeAn., II, 428h, 15-20.)
"Cada sensação da mesm coisa tomada no mesmo momento jamais diz ao mesmo tempo
que ela possui e não possui tal qualidade. E até, tomada em momentos diferentes, não se
contradiz perante o estímulo. Por exemplo, o mesmo vinho, se mudou, ou se mudou o
organismo, pode parecer de início açucarado, em seguida não açucarado. O sabor do
açucarado, porém, tal como se apresenta no momento em que existe, nunca mudou: a
sensação é sempre verídica a esse respeito. E qualquer futuro sabor açucarado lhe é
necessariamente semelhante." (Met., 1, 5, 1010h, 18-26.)
A visão do pintor não é falseada pelas leis da perspectiva. Se uma visão a distância
parece inexata, isso se dá em comparação com uma visão aproxi mada, admitida como
fiel ao objeto e que serve de critério para a retificação. Sucede apenas que o conjunto,
por vezes, não permite mais discernir os pormenores, como é o caso da floresta que
impede de ver a árvore. Nem por isso, contudo, os pormenores são menos sentidos, e
basta que nos desliguemos da visão global para que se tornem manifestos. Quando se
olha um compri mento de diversos metros, não se distingue mais um metro como tal.
Algumas das observações de Aristóteles relativas à percepção dos conjuntos se acham
hoje revalorizadas pelos pontos de vista dos gestaltistas. Por outro lado, admite a
existência de indiscerníveis, que não são zeros; e pensa-se então nas "pequenas
percepções" de Leibniz.
"Quando uma coisa situada para além da sensação não é sensível em si mesma, também
não o é se tomada à parte. Pois é de maneira latente que ela se encontra inclusa numa
sensação mais distinta. E um sensível dessa espécie, separado, embora, tampouco será
sentido de maneira manifesta. Será sensível, não obstante, uma vez que já o é de
maneira latente e o será manifestamente uma vez acrescentado a outros." (De Sensu, VI,
446a, 11-26.)
Após haver tratado separadamente dos cinco sentidos, propôs-se Aristóteles o problema
da unificação das sensações em um sujeito percipiente " o ato do sensível e o ato do
senciente constituem um ato único..." (De An., III, 2, 426 a, 15). Verifica que o
processo sensorial constitui "uma unidade inseparável num tempo inseparável" (De An.,
III, 2, 426 b, 25) e é, assim, levado à noção de um sentido comum (isto é, "não -
particular"). Esse mediador entre os sentidos particulares, a que se deve a união de
sensações diferentes, é a sensação da sensação, um análogo do que hoje chamamos
consciência:
os diversos sentidos.., atuam, pois, não enquanto sentidos séparados, mas enquanto
formadores de um sentido único, quando se produz uma simultaneidade de sensações
relativamente ao mesmo objeto; é o que se dá quando percebemos que o fel é amargo e
amarelo: pois não cabe certamente a outro sentido proclamar que essas duas
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qualidades não formam senão uma coisa. Provém, daí, igualmente, que o senso comum
se engane: basta, por exemplo, seja uma coisa amarela para que creia seja fel." (De An.,
III, 1,425a, 30,425b.)
Essa sensitividade primária aparece, portanto, como suporte do mundo da experiência,
que é forçosamente uma experiência. Encontram-se em Aris tóteles, a respeito dessa
"alma" unificadora, concebida como uma espécie de fluido, certas explicações que
constituem sutil sobrevivência do animismo, mas que não se poderia pretender constitua
progresso em relação aos médicos hipocráticos, nem mesmo em relação a Platão . De
fato, é ao coração que atribui papel privilegiado, ao admitir ser esse órgão a sede do
pneüma psíquico, a saber, do princípio da vida donde parte o próprio movimento:
"... esse lugar de origem é, das três regiões determinadas do corpo, a que se situa na parte
intermediária entre a cabeça e o ventre. Nos animais sanguíneos, é a parte vizinha do
coração: pois todos os animais sanguíneos têm coração e o princípio do movimento e da
sensitividade parte de lá." (Pana Naturalia, 456 a, trad. J. Tricot.)
É o coração que recebe as sensações por intermédio das veias (Aristó teles parece ignorar
o papel dos nervos e dos músculos). Esse pneüma, esse sopro congênito, espécie de
natureza sutil disseminada pelo organismo, é o sujeito do calor vital, o substrato da vida
sensorial, o primeiro instrumento da alma. Exala-se constantemente do sangue, condição
de sua existência, sob a influência do calor natural do corpo. Esse calor é, por sua vez,
sustentado por um pneüma externo, físico: o ar que respiramos('). Pelos vasos do mesenté
rio, o alimento, cozido pelo calor e pelo pneüma, passa para dentro do cora ção, onde se
transforma em sangue. Este, carregado de alimento, ferve nos vasos, como testemunham
as pulsações. Não distingue Aristóteles as veias das artérias. Sob o nome depóroi, designa
indistintamente os nervos, os tendões, os ureteres e os ligamentos. Admite que o cérebro
humano é mais volumoso que o dos animais; contudo, não
contém sangue. E frio e compensa por cocção o calor que sobe do coração. Ao
contrário, a medula espinal e a medula dos ossos são quentes.
Apesar das dificuldades apresentadas pelo duplo aspecto, a um tempo substancialista e
instrumentalista, das observações de Aristóteles sobre o psiquismo humano, e de seus
pontos de vista obsoletos em fisiologia, sua concepção não deixa de constituir, em
relação aos que o precederam, nítido progresso no plano da teoria do conhecimento. Pois
atesta aprofundamento e descrição bem mais estruturada dos processos em jogo na
percepção.
Além disso, ele mostrou que a sensação, longe de constituir diminuição para o
pensamento, ia no sentido do desenvolvimento da vida. E nessa perspectiva que trata da
própria organização sensorial. Ainda que sejam o tato e o paladar os sentidos mais
importantes para a vida natural, o olfato, a visão e a audição já manifestam grau superior.
E a mesma progressão aparece no jogo das sensações. Não se sente calor se o calor de
um lugar em que se entra é igual ao que era sentido antes, e pelo qual o corpo já fora
modificado de algum modo. Se é inferior, tem-se sensação de frio. E preciso, pois, que
lhe
(1) Cf. W. JAEGER. Das Pneuma im Lvkeiun'. He,-mes, XVII (1913), e G. VERBEKE,
L s/uiu,,, de la doctrine da pneuma, Paris-Losaina, 1945.
seja superior para ser discernido (De An., 11, 424 a). Da mesma forma, quando se
percebe uma cor ou uma nota, fica-se cego ou surdo à sua repetição imediata, ou a
impressão delas é falsa, e a nova cor ou a nova nota aparecem como de mais fraca
intensidade. Dá-se, pois, que a sensação normal não pode nascer senão em ligação com
uma precedente, que seja, simultaneamente, de qualidade semelhante e de intensidade
inferior. Como, porém, isso é possível, uma vez que a sensação precedente já então terá
desaparecido do órgão? Deve-se ver nisso uma prova de que o conhecimento não se
funda unicamente em sensações, como cria Protágoras, nem tampouco vem apenas da
razão, como se despreende da filosofia de Platão. E uma atividade complexa onde o
inferior, que não se basta a si mesmo, encontra no superior sua ordem e seu sentido(
Eis porque não se poderia aprender nem compreender fosse o que fosse, na ausência de
qualquer sensação e, por outro lado, o próprio exercício do intelecto deve acompanhar-
se de uma imagem, pois as imagens são semelhantes a sensações, exceto em que são
imateriais. A imaginação, no entanto, é distinta da asserção e da negação, pois é preciso
uma combinação de noções para constituir o verdadeiro ou o falso." (De Ao., 111, 8.
432a, 5.)
8. A imaginação, a memória, os sonhos
Essa alusão de Aristóteles à imaginação como a uma realidade sui generis vem
acompanhada de observações penetrantes. De início, observa que a imagem. distinta da
sensação de que provém, é indispensável à atividade do pensamento, mas pode ser
verdadeira ou falsa:
'Que a imaginação não seja a sensação, é evidente... A sensação é, de fato, ou potência,
ou ato, por exemplo, vista ou visão; por outro lado, pode haver imagem na ausência de
uma ou de outra: tais são as imagens que se percebem durante o sono. Em seguida, a
sensação está sempre presente, enquanto a imaginação não está. Por outro lado, se a
imaginação e a sensação fossem idênticas em ato, todos os animais deveriam possuir
imaginação; mas parece que realmente não é assim, pelo próprio exemplo da formiga,
da abelha e do verme. Em seguida, as sensações são sempre verdadeiras, enquanto as
imagens são, no mais das vezes, falsas... Enfim, como dissemos anterior mente, imagens
visuais aparecem mesmo quando temos os olhos fechados." (De An..
111,3, 428a, 5.)
A imaginação, que não é a ciência ou a intelecção, também não é a opinião, pois "... a
opinião se acompanha de convicção . Ora, nenhum animal possui a convicção, enquanto
a imaginação é encontrada em muitos deles. Isto se deve a que a convicção vem
acompanhada de persuasão, e esta de razão; ora, dentre os animais, alguns bem que
possuem imaginação, não, contudo, razão. (De An., III, 3, 428 a, 15-20). Assim, a
imaginação se apresenta como faculdade intermediária entre a sensibilidade e a razão.
Está em ligação estreita com a memória. Quando os sentidos especiais estão inativos, a
vida psíquica não se detém por isto e sua atividade liga a função sensível à função
imaginativa (como nos sonhos) e à memória. Quando cessa
(1) Cf. Pierre SALZI, La genêse de la sensati,,n dons Les raj,ports o,'ec la théo r:e de la
co,,,, a chez Protagoras, Pioro,, e, Ar,srr,te, Alcan, Paris, 1934, págs. 31-48.
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de atuar um estímulo externo, os movimentos sensoriais se prolongam e, como essas
sensações retardadas são reforçadas pelo acréscimo de sensações seme lhantes, todo um
complexo de imagens se constitui. Distingue-se a imagina ção da memória na medida em
que esta implica a intervenção de um "sensível comum", o tempo, que nos reconduz a
uma continuidade vivida, a imagens- cópias de experiências anteriores. A confusão nesse
domínio é própria dos "desequilibrados", que tomam "suas imagens mentais pelas
realidades" (De Mem. et Rem., 1, in Parva Natura/ia, 451 a, trad. J. Tricot). Distingue-se
a memória igualmente da sensação e do ato cognitivo por essa implicação do tempo
sentido. Se interessasse unicamente à parte intelectual da alma, a memória não seria
encontrada senão no homem, quando a observação demonstra sua presença em
inúmeros animais. Aristóteles distingue, a esse respeito, a simples conservação do
passado e seu retorno espontâneo ao espí rito, da faculdade de evocação voluntária por
esforço intelectual que localiza a lembrança no tempo. Apenas essa memória voluntária é
função da inteli gência, desse Noiis próprio do homem.
"Quem se recorda, com efeito.., chega à conclusão de que, anteriormente, viu, ou ouviu,
ou passou por alguma experiência desse gênero, e esse processus é uma espécie de busca,
o que, por natureza, não ocorre senão nos seres dotados da faculdade deliberativa',..."
(DeMem. etRem., inParvaNaturalia, 453 a, 10, trad. J. Tricot,)
Esse "ato de reminiscência", porém, como diz Aristóteles, não nos reconduz a um saber
adquirido em existência anterior, como cria Platão; serve para reencontrar, com esforço
ou sem ele, uma lembrança desaparecida da consciência (isto é, no vocabulário de
Aristóteles, tornado simplesmente potencial). E esse ato é possível, porque os
movimentos deixados em nossos órgãos pelas percepções tendem a suceder-se segundo
certa ordem onde se exercem relações de continuidade, de semelhança ou de
contrariedade consti tutivas do hábito:
"Quando... rememoramos, somos movidos segundo o movimento após o qual o que
procuramos costuma produzir-se." (De Mem. et Rem., 451 b, 15.)
Essa tentativa de restabelecer a continuidade rompida da memória nem sempre é bem
sucedida:
Prova disso se encontra na perturbação sentida por certas pessoas quando não são
capazes de lembrar-se de uma coisa, a despeito de grande tensão do espírito,
perturbação que não deixa de persistir quando já tenham abandonado todo esforço de
rememoração." (DeMem. etReni., 453 a, 15.)
Pensa Aristóteles que os "temperamentos melancólicos" são particular- mente sujeitos a
esse desagradável estado interior, que consiste, aqui, num difícil restabelecimento dos
mecanismos desencadeados pelo esforço da rememoração.
A propósito dos sonhos, enuncia uma idéia que já encontramos em Hipócrates, a de que
podem anunciar as doenças. Pois estas, observa, são precedidas de movimentos insólitos
em nosso organismo, que escapam ao estado de vigília, por estarem, então, eclipsados
por impressões sensoriais mais intensas.
'No sono, verifica-se inteiramente o contrário, pois os pequenos movimentos nos dão,
então, a impressão de serem grandes (por força da inação dos órgãos senso- riais). Aquilo
que muitas vezes se passa no sono o demonstra com evidência: imagina- se, por exemplo,
que troveja ou relampeia, enquanto, na realidade, os ouvidos apenas percebem ruídos
fracos; ou, ainda, que se ingerem deliciosamente mel ou doces sabores, enquanto apenas
uma gota de fleuma escorre (pelo esôfago); ou que se anda através do fogo, quando
apenas um leve calor atinge certas partes do corpo. Uma vez acordados, tudo nos
aparecerá com seu verdadeiro aspecto (isto é, como sendo, na realidade, coisas
insignificantes). Como, porém, em todas as coisas, os começos são modestos, é evidente
que também modestos são os começos das doenças e outras afecções que ameaçam
produzir.se en? nosso corpo. Concluamos, portanto, ser mani festo que esses começos
devem, necessariamente, aparecer.nos com mais clareza no sono do que no estado de
vigília." (De Div. per Somnum, 1, trad. Tricot.)
9. O princípio de perfeição
Em virtude de sua ontologia, tudo se encadeia na concepção do Esta girita e, nela, a
psicologia se encontra ligada à moral. Vegetais, animais, seres humanos são encarados
sob a perspectiva de conquista incessante da matéria pela forma, pela atração de um Bem
Supremo, a perfeição divina, que faz a matéria passar por formas cada vez mais perfeitas.
Trata-se de uma espécie de evolução em círculo, se é que se pode falar de evolução a
propósito duma realidade já evolvida, ordenada hierarquicamente por espécies que
permane cem fixas, cuja forma persiste através dos indivíduos que a atualizam. Esse
princípio de perfeição, que aparece na esfera do pensamento como estimu lante à
pesquisa da beleza e da verdade, se manifesta ao nível do desejo pelo impulso ao prazer.
Ser, para um vivente, é crescer e reproduzir-se para a conservação da espécie. O "divino
na alma", para os seres inferiores, é esse impulso a gerar para que
sua espécie se perpetue simultaneamente no espaço e no tempo (De An., II, 4, 415 a,
22). E o desejo permanece ligado ao sentido, enquanto a vontade é a forma que ele
reveste sob o controle da razão. A moral aristotélica não tem por fim, como a de Platão,
um destino supraterrestre; seu desígnio é a felicidade sobre a terra. NaEtica a Nicôrnaco
(livro X), Aristóteles declara que o prazer remata a atividade, como uma espécie de fim
que a ela se acrescenta, tal como a beleza se acrescenta à juventude. Toda atividade é
fonte de prazer, desde que se exerça de conformidade com a natureza do ser que a
desenvolve. O homem, por sua natureza de ser racional, se inclina naturalmente ao
exercício do pensamento, principal fonte de felicidade. Uma vida humana conduzida de
acordo com a razão assegura a felicidade, idêntica à virtude. No mais alto grau, essa
virtude é a vida puramente contemplativa do sábio. Praticamente, felicidade e virtude se
unem numa moral do justo meio (a coragem vale mais que a covardia e a temeridade; a
generosidade é preferivel à avareza e à prodigalidade...).
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CAPÍTULO 7

A PSICOLOGIA DO EPICURISMO E DO ESTOICISMO

1. A exigência imanentista
2. As condições históricas
3. Os átomos e oclinámen
4. A materialidade da alma e o conhecimento
5. A 'psicoterapia" epicuréia
6. O panteismo estóico
7. Opneüma divino
8. O mundo, a alma, a liberdade
Na doutrina epicurista e na doutrina estóica, a exigência imanentista, presente em
Aristóteles, se radicaliza e se manifesta sob forma de monismo cuidoso de uma coerência
nova. Epicuro retorna a Demócrito, esse pensador criticado por Aristóteles, com a
disposição de atacar vivamente toda meta física espiritualista, com o propósito deliberado
de mostrar que uma teoria materialista da vida é não apenas possível, mas preferível(
Desprezando as crenças orfeo-pitagóricas, o epicurismo pretende demonstrar que os
homens apenas podem contar com a própria vida, seus próprios fins e sua razão pessoal, e
que a idéia de um universo sujeito a causas finais, por uma provi dência ou uma razão
universal, deve ser, por falaciosa, rejeitada. A única realidade é a dos átomos. Nada é
incorpóreo, exceto o vácuo, totalmente incapaz de sentir, agir ou pensar. Por isso, é
absurdo considerar a alma como incorpórea. Esta é, aos olhos de Epicuro, uma verdade
preciosa, por permitir afastar os tormentos originados do desejo, da esperança ou do
temor com respeito a uma vida além-túmulo, e alcançar, assim, aquela liberação interior
que condiciona a única verdadeira felicidade acessível ao homem.
>1) A influência cultural de EPICURO foi Intuito mais extensa da que a dos primeiros
atOmistaS )LEUCIPO e DEMOCRtTO); por isso é que, a despejos da intuição genial
destes Ciltimos, mantenho na obscuridade essa primeira manifestação da física
corpuscular. Flabitualmente. coloca-se UEMOCRITO ILEUCIPO nos é quase
desconhecido> entre os pré-socráticos. e John BURNET obsersa, a este respeito, que tat
costume obscurece a curso verdadeiro do desensoltimento histórico. Pois OEMOCR{TO.
contemporõneo e mais toco do que SOCRATES, é posterior a PROTAGORAS. e sua
teoria é condicionada tanto por unta interrogação sobre o problema do conheci inento.
quanto por preocupações morais (L 'aurore dela pkikoop/iie greeque. introdução).
CAPÍTULO V
A PSICOLOGIA DO EPICURISMO E DO ESTOICISMO
1. A exigência imanentista
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2. As condições históricas
Essa doutrina aparece quando agoniza a pólis grega, numa época em que a nostalgia de
salvação pessoal tende a prevalecer sobre o gosto da especu lação pela especulação.
Epicuro era adolescente quando Alexandre morreu (1), Sabe-se que se seguiu uma luta
encarniçada dos generais de Alexandre pela partilha da herança imperial e o
estraçalhamento da Grécia por lutas intes tinas. Período de sangue e assassínio s, do qual
nasceram monarquias militares, absolutistas e burocráticas. Período de decomposição em
que os atenienses, outrora tão orgulhosos de sua liberdade, erigem um altar, como a um
(teus salvador, a Demélrio Poliorcetes. esse extravagante gozador, a quem, na época em
que Epicuro abre sua escola na cidade, irão até o ponto de instalar no Partenon( Devia ser
grande a tentação, nessa época, para os melhores espíritos, de evadir-se da história, e o
epicurismo pode revestir o sentido de uma recusa oposta à estupidez e à crueldade por um
espírito lúcido e sem ilusões. A necessidade de compreender, de coordenar e de justificar
todas as formas da realidade, culminante em Aristóteles, cede o passo à preocupação de
uma vida liberta de perturbações, indiferente ou insensível aos acontecimentos políticos e
sociais. "Viver oculto", eis o preceito constante da escola. Surdos aos descaniinhos do
tempo, o "filósofo do jardim" e seus discípulos retomaram,
a seu modo, o facho da cultura grega; e seu papel é, então, análogo ao que
desempenharão os monges na Idade Média. Sabe-se a imensa veneração de que Epicuro
- tão denegrido, aliás - foi cercado quando vivo, e o culto que seus discípulos lhe
tributaram após a morte, a ponto de os centros epicureus permanecerem os mais
temíveis rivais do cris tianismo até que este recebesse a investidura da autoridade
imperial.
3. Os átomos e o clinâmen
Orientada no sentido da conquista de uma sabedoria libertadora, por sua vez fundada
numa física dogmática, a doutrina epicuréia não reserva à psicologia senão lugar
subordinado. A atitude moral é que lhe importa em primeiro lugar e a ciência da
natureza não deve servir senão para justificá-la racionalmente:
• 'Antes de mais nada, cumpre nos persuadamos de que o conhecimento dos fenômenos
celestes, quer encarados em si mesmos, quer em conexão com os outros fenômenos, não
tem outro fim em si senão a ataraxia e uma firme confiança: tal como é, igualmente, o
fim de todas as outras pesquisas." (Gw-ia a Pítocles.)
Ora, a ciência da natureza estabelece que, bem pesadas as coisas, nada
existe além de corpúsculos em movimento, átomos, como já dizia Demócrito,
(1) Nascido em 341 ou 342 a.C., EPICURO escreveu muito, mas sua obra desapareceu.
Não dispomos de mais do que três cartas a seus disciputos (a I-IERODOTO sobre a
física, a PITOCLE5 sobre a meteorologia, a MENECEU sobre a moral), de uma coleção
de pensamentos. do texto de um testamento, de alguns fragmentos. encontrados no século
XVIII, e de um tratado sobre a natureza. A essa pobre documentação, acrescentam-se fra
de outros epicuristas, o admirável poema de LUCRECIO, De Renim Natura, uma Vida
de Epouro. de DIOGENES LAERCIO, traduções e citações em autores de outras
tendências (CICERO, SENECA, PLUTARCO.
(21 "Esses pobres atenienses perderatn a tal ponto o espírito, que até deixais de ser
espirituais. Dá-se o
nome de I3t:MÍ 1 RIO a are dos meses, couro também ao último dia de cada mês. A
festa de Dioniso torna-se a lesta
dv tl ÍRIO." CC NORMAND. íírr,oirr' eri'cqro'. Paris, ACuo. 1503.)
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incriados e indestrutíveis, cuja única diferença se encontra em sua forma e tamanho,
embora este último jamais seja tal que possamos percebê-los. A teoria de Demócrito, o
epicurismo acrescenta a idéia de clinâmen, isto é, de um desvio dos átomos. Levados pelo
próprio peso e caindo como chuva, jamais teriam podido afastar-se de suas trajetórias
paralelas nem, portanto, encontrar-se e aglomerar-se para formar os mundos, sem certa
capacidade de desviar-se um pouco da linha reta. Ao atribuir ao átomo esse poder,
introduz Epicuro no domínio da natureza um princípio de indeterminação que lhe permite
evitar as conseqüências morais implicadas por um mecanismo rigo roso e, assim,
salvaguardar a liberdade humana. Pois vê nela um modo particular da espontaneidade que
subsiste no interior dos agregados formados pelos átomos. Nada provém de nada e a
vontade livre seria inconcebível num mundo sujeito a determinismo absoluto. Esse
elemento de contingência intro duzido na natureza foi, em geral, acolhido com frieza
pelos filósofos, de Cícero a Leibniz. Em compensação, Karl Marx, em sua tese de lena,
em 1841 (Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epícuro), rende- lhe
homenagem por essa intuição do átomo como centro de força,
como fonte de energia, que restitui à natureza e aos indivíduos uma vida que o
mecanismo de Demócrito não podia explicar.
4. A materialidade da alma e o conhecimento
Se os átomos em movimento constituem a única realidade, não poderia a alma constituir
exceção privilegiada. Ela não se distingue do corpo a não ser por uma maior sutileza dos
elementos componentes, por ser formada de partí culas redondas, muito tênues, infiltradas
entre as do corpo e, assim, dissemi nadas por todo o organismo. Essa difusão da alma pelo
organismo explica, segundo os epicureus, a solidariedade entre as diferentes partes de um
ser vivo. A esse corpo sutil que constitui a alma, atribuem a dupla função de difundir a
vida pelo organismo e permitir as atividades psíquicas, afetivas e intelectuais. Tais
atividades são condicionadas pela união entre alma e corpo e essa união prova, a seu ver,
a materialidade da alma. Se fosse de natureza diversa da do corpo, não poderia movê-lo,
nem com ele sofrer, O epicurismo conhece muito bem a interação entre as duas instâncias
(o declínio das forças vitais e intelectuais com o do corpo, as perturbações ou a cessação
aparente da consciência na embriaguez, em certas moléstias como a epilepsia, no des
maio...) e resolve a problemática daí decorrente pela afirmação de sua materialidade
comum. Nem por isso Epicuro deixa de pensar que as coisas são mais complicadas do
que pensava Demócrito, para quem os átomos da alma eram simplesmente ígneos;
considera que a vida orgânica (e, por mais forte razão, a função psíquica) implica a
presença de vários elementos na compo sição da alma. Além de um elemento ígneo (que
Lucrécio denomina calor ou vapor), e dois outros, análogos
a gases ou ao ar, mais um existe, sem nome (nominis expers), nascido de certa
combinação acidental de átomos geradora da sensibilidade, e cuja importância é
decisiva. De sutileza e mobilidade todo particulares, composto dos átomos menores e
mais tênues, é a sede das sensa ções, e a ele atribui a escola as atividades psíquicas. A
finura dos elementos que constituem o que Lucrécio chama "a alma da alma"('), ou o
animus em
(1) DeR 111.145.
relação à anima, permite entrar em contato com aspectos da realidade que escapam às
percepções sensoriais cujos materiais são mais grosseiros. Em linguagem moderna,
equivaleria a dizer que a alma é sensível a vibrações imperceptíveis aos sentidos, O
papel desse elemento é, evidentemente, condi cionado pela função que preside à vida
orgânica, pois a individualidade da pessoa, em semelhante teoria, é forçosamente de
ordem física. O corpo, composto de átomos mais pesados e menos móveis, serve de
abrigo e proteção aos que formam a alma; estes estão, destè modo, impedidos de
dispersar-se no ar, o que ocorre no momento da morte. Por ser material é que a alma
pode experimentar sensações ao contato das coisas. Todos os corpos emitem conti
nuamente emanações, eflúvios, outros tantos "simulacros", isto é, minúsculas imagens
deles mesmos:
" existem ...] imagens da mesma forma que os corpos sólidos, as quais, dada sua sutileza,
se encontram muito além daquilo que percebemos. Não é impossível, com efeito, nem
que tais emanações possam nascer no ambiente, nem que aí encontrem condições
favoráveis à construção de imagens em relevo ou planas, nem que os eflúvios assim
saídos dos corpos conservem, na mesma ordem, a posição e a colocação que possuíam
nos próprios sólidos. A tais imagens chamamos simulacros." (Carta a Heródoto.)
Infinitamente mais sutis que os objetos apanhados pelos sentidos, esses simulacros se
deslocam no espaço com rapidez inconcebível:
como o movimento que os transporta pelo vácuo não encontra nenhum obstáculo para
com ele chocar-se e levá-lo para trás, faz toda espécie de percurso imaginável em tempo
inconcebível pelo espírito. Pois o aspecto de lentidão ou de rapidez de um movi mento
resulta da resistência, ou da não-resistência, por ele encontrada." (Carta a Heró doto.) No
estado de vigília, tais simulacros penetram em nós pelos órgãos dos sentidos. Durante o
sono, introduzem-se pelos poros e suscitam os sonhos. Atribui-lhes até Epicuro, uma vez
que se combinem de determinado modo, a aparição em sonhos de objetos inexistentes em
parte alguma (a de um centau ro, por exemplo). Nega Epicuro que o ar possa
desempenhar o papel de inter mediário nas percepções visuais e
auditivas, pois ele próprio é composto de átomos. Através dos interstícios destes últimos é
que deslizam os das emana ções; e seu papel, portanto, antes se exerce no sentido de um
freio:
'A audição, igualmente, provém de certa corrente emanente do objeto que faz ouvir uma
voz, um som, um ruído, enfim daquilo que, de alguma maneira, determina impressão
auditiva. Essa corrente se difunde e se divide em partículas sólidas e homo gêneas, que
conservam ao mesmo tempo certa conformidade entre si e identidade de natureza com o
objeto particular que as emitiu: assim, determinam em nós, o mais das vezes, percepção
clara desse objeto; à falta disso, apenas nos revelam a existência, fora de nós, de um
objeto sonoro. Pois, sem certa emanação emitida pelo objeto e conforme a ele, a
percepção do som não poderia ocorrer como ocorre..." (Carta a Heródoto.)
A sensação, fonte única do conhecimento, constitui a evidência primei ra, afides prima,
segundo Lucrécio('). Todas as sensações se reduzem a certo
(1) LUCRÉC1O,D Nat., IV 505.
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contato com o que é exterior a nós porque o tacto, o tacto. ó deuses pode rosos, é o
sentido de nosso corpo inteiro"( 1), Se o erro existe, é que a atividade espontânea da
alma - reflexo, em nós, da contingência natural - pode con duzir a interpretações
fantasistas, O juízo, na medida em que provém, ele próprio, das sensações, não poderia
convencer de erro senão outros juízos e de modo algum a sensação como tal. Porque esta
é um estado do sujeito que nos reconduz, forçosamente, a uma realidade objetiva que o
produz, isto é, ao mundo dos objetos inseridos, eles próprios, num movimento total. Ao
contrá rio, as interpretações das sensações podem ser erradas - é o caso de certos juízos
ou de delirios - e sujeitas a retificação. E, para distinguir as interpre tações falsas
(contraditas ou não-confirmadas) das verdadeiras (confirmadas ou não-
contraditas), recorre o materialismo epicureu, no domínio do conheci mento, a uma
espécie de norma perceptiva na qual a repetição parece desem penhar o papel essencial.
5. A "psicoterapia" epicuréia
A atividade espontânea da alma lhe permite exercer sobre o corpo a ação que a técnica
moral dos epicureus supunha: o recurso tranqüilizador, nos momentos de sofrimento, às
lembranças de momentos felizes, e a pros crição dos pensamentos deprimentes, para
atingir a felicidade ainda quando a alma orgânica sofre com o corpo ao qual se encontra
mesclada. Na tranqüila firmeza demonstrada durante a doença que o levou à morte,
Epicuro ofere ceu, de sua teoria, uma espécie de demonstração experimental. Essa teoria
tem por fundamento o papel atribuído às idéias-imagens (quer digam respeito a um objeto
de desejo ou aversão, ou ainda ao sujeito em vias de exercer tal ação ou de comportar-se
de determinada maneira) de mover o animus; e o poder deste último de exercer, então,
por intermédio da anima, ação de estí mulo ou repressão sobre certos movimentos
corporais. Não é fácil represen tar-nos com clareza esses processos, tais como os
imaginava Epicuro, e grande é o risco de neles introduzir estruturas elaboradas pela
psicologia moderna. Parece certo, contudo, que ele se apercebeu de que um
controle da imaginação (distinta das sensações, na medida em que o animus pode ser
influenciado por átomos finos e móveis demais para serem perceptíveis aos órgãos
sensoriais) é a condição sine qua non da liberdade interior postulada por sua moral.
Como já lembrei, todas as elucidações de Epicuro têm por objeto muito menos o saber
em si mesmo do que uma técnica com vistas à salvação pessoal. O fim essencial é a
eliminação do sofrimento, a conquista dessa calma interior que é a ataraxia; implica a
liberação do temor aos deuses, aos castigos além- túmulo, como das preocupações
relativas a qualquer finalidade do universo. Em matéria de morte, enunciou Epicuro
pontos de vista penetrantes sobre esse fato indubitável de que nela pensamos,
forçosamente, com nossa cons ciência de vivos. Prolongando mentalmente nossa vida
neste mundo é que imaginamos uma existência post mortem capaz de experimentar
nossos desejos e nossos temores.
II) Ihid., 111,434.
Reduzindo embora a vida moral ao prazer, pensa Epicuro que não há verdadeiro prazer
senão o durável. Eis porque, longe de preconizar uma corrida aos prazeres fugidios,
aplica-se em elaborar uma espécie de economia nesse domínio, para não admitir senão
as necessidades indispensáveis à vida (beber, comer, dormir). Ainda estas, convém
satisfazê-las com moderação. Os outros desejos, sobretudo os ligados à vaidade e à
ambição, devem ser cuidadosamente postos de parte. Trata-se, em suma, de uma política
pessoal que implica uma atitude moral reduzida ao interesse judiciosamente enten dido. A
injustiça não compensa, pois pode ter conseqüências cujo temor enve nena a alma. Assim
também a amizade é um grande bem, porque nos traz um sentimento de segurança e
reconforto. No plano da vida politica e social, o "viver oculto" dos
epicureus exprime seu abstencionismo de princípio, que se não deve derrogar salvo se o
interesse da própria salvaguarda estiver em jogo.
Encontra-se em Lucrécio uma explicação naturalista das origens do homem e do
desenvolvimento da civilização. Assim, nada vê que deva levar- nos a atribuir aos
deuses, de perfeita indiferença, um méritõ atribuível unica mente ao trabalho e à
experiência dos humanos. Na doutrina epicuréia, se a razão pretende exercer-se
soberanamente no domínio moral, seu papel gnosiológico se reduz à capacidade de
utilizar materiais que resumem ou condensam dados sensíveis. Essa capacidade
constitui outra forma de evidên cia (acrescentada à evidência sensível): a de uma
espécie de pensamento universal, formada em nós pela rememoração de séries
constantes e que se traduz, especialmente, por antecipações e prenoções. E assim que os
concei tos, como, por exemplo, os de homem" ou de 'calor", revestem, para nós, sentido
imediato na medida em que evocam grande número de percepções anteriores. A
transformação das sensações particulares em noções é maqui na!, sem excluir, no
entanto, aquela reflexão que a atividade da alma torna possível e a que certas relações
presidem. Epicuro invocava especialmente o papel da concomitáncia, da analogia, da
similitude e da fusão (das imagens em quadros compósitos).
6. O panteísmo estóico
A longa história do estoicismo não é a história de uma simples retrans missão. Trata-se,
antes, de um motivo fundamental diversamente orques trado( 1) Passando para Roma, o
aspecto moral da teoria prevalece a ponto de deixar apenas lugar muito secundário à
especulação metafísica; e a doutrina se torna essencialmente uma técnica de disciplina
pessoal, de educa ção do caráter. No estoicismo romano, é de todo acentuada a vontade
humana como capacidade de negação, fundamento da liberdade interior, como poder de
dizer não aos impulsos, aos desejos, aos fantasmas da imaginação, a fim de desenvolver e
manter uma firmeza de alma teoricamente inabalável: é uma escola de domínio, de
vigilância constante, e, ao mesmo tempo, de submissão ao destino. Pois o panteísmo
que emoldura esse voluntarismo estóico postula
(1) Sabe-se que o estoicismo remonta a ZENO (de Cítio), o qual ensinou sob o Pó rttco
(stuÓ) de Atenas, proaeelnieote a partir de Mó) a.C.. e que, defendida, cor seguida, por
seu discípulo CLEAN 1 ES Ide Assos) e pelo aluno do discípulo, CRISIPO Ide Solos),
apelidado, em virtude da importância de sua obra, o "segundo fundador do Pórtico", a
doutrina passou depois a Roma, onde deveriam ilustrá-la os nomes de SENECA, de
EPICTETO e de MARCO AURELIO.
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que os acontecimentos se encadeiam rigorosamente numa ordem universal, a qual
constitui, para todos os seres individuais, a lei de seu destino.
7. Opneõma divino
Uma solidariedade fundamental une os elementos do real, na medida em que participam
todos dopneiima divino, eterno animador do mundo. Esse pneuma, princípio de coesão
no mundo inorgânico, age como vida organi zadora no mundo vegetal e cria, no mundo
humano, uma forma de vida onde a razão se explicita. Está-se, assim, em presença de
uma escala ascendente, de unia hierarquia devida a um desenvolvimento onde o superior,
como em Aris tóteles, envolve o inferior, embctra aqui se inscreva no contexto de uma
doutrina que pretende ser materialista. Tal como no epicurismo, com efeito, a ligação da
alma com o corpo, de cujas afecções partilha, é invocada por Cleantes como argumento
em favor de sua materialidade, pois, a seu ver, uma comunidade de natureza é a condição
necessária de tal união. Mas (contraria mente ao epicurismo) vê a doutrina estóica, nessa
comunidade da natureza, exatamente a prova de que a razão,
desenvolvida no homem, não poderia pertencer-lhe como privilégio exclusivo. Tem como
certa a existência de uma razão universal, fundamento da ordem cósmica, à qual o homem
não pode deixar de aderir tão completamente quanto possível. O viver de acordo com a
natureza de Zeno, como o naturam sequi de Cícero, exprimem esse duplo
aspecto, antropológico e ontológico, do comportamento racional, do qual dependem a
um tempo a felicidade e a virtude. Se o primeiro preceito da famosa máxima estóica:
suporta e abstém-te determina uma submissão ao destino num sentido que lembra, por
vezes, o A de Nietzsche: "ama o que te sucede e está ligado a teu destino"( 1), o
segundo assinala uma preocu pação em evitar a dispersão, em concentrar-se num fim
privilegiado: "é loucu ra fatigar-se a gente durante toda a vida, sem ter um fim ao qual
se relacionem todos os movimentos do coração e, em geral, todos os pensanientos"( 2).
No plano teórico, se a noção do pneüma ocupa lugar central na dou trina, observam-se
flutuações quanto à maneira de conceber a natureza e sua ação nas coisas e nos seres(
Zeno a ele recorre em sentido nitidamente materialista (a materialidade da alma é provada
por sua natureza de pneüma), reservando o nome de Lógos ao princípio universal que
preside ao desenvolvi mento necessário das coisas. Em Cleantes intervém o termo para
designar uma divindade material e imanente, idêntica à alma do mundo. Trata-se de um
sopro ígneo que, penetrando o Cosmos por inteiro, lhe assegura a coesão e a vida, e do
qual a alma humana é parcela. E uma constante na doutrina isso de que as diversas
realidades cósmicas, possuindo embora sua individualidade distinta do mundo ambiente,
constituem um ser único. E é fundamental, através de toda a história do estoicismo, a
idéia da solídariedade que une os seres humanos no mundo na medida em que são, no
grande todo, minúsculos órgãos, microcosmos. E certa a analogia entre a cosmogonia dos
estóicos e sua
(1) MARCO AURÉLIO, Pensome, livro VII, LVII.
(2) MARCO AURELIO, Pensame, cap. XX, §5.
(3) C L de ia docirine da pneüma da sto à Sainí.Augustin. por O. VERBEKE, Biblio
Ibêque de ('InstituI Supérieur de Philosophie. Universidade de Lovaina, Paris'Lovaina,
1945.
maneira de conceber o psiquismo humano, cujas atividades se explicam todas por
fluidos que atravessam o organismo corporal. Tais fluidos são sujeitos à hegemonia da
parcela da alma que tem sede no coração. Ora, pensam os estóicos que esse centro
hegemônico, para a alma cósmica, é o sol, foco das correntes ígneas que percorrem o
universo e dão origem à vida. Na medida em que esse pneüma divino ultrapassa as
realidades terrestres, não é inconcebível
que se lhe possam dirigir orações. O hino de Cleantes o testemunha. Sua teodi céia
mostra que o caráter imanente da doutrina estóica não pode ser afirmado sem reserva e
que a ruptura com o dualismo de Platão longe está de revest ir sempre o aspecto radical
que lhe confere Epicuro. Por outro lado, embora admita que a alma passiva é uma
parcela destacada dopneí2ma dos pais, julga Cleantes que ela se prende a um elemento
superior (oNoüs), preexístente à sua
união com o corpo e que, portanto, não desaparece com ele. Tal sobrevivên cia, segundo
Crisipo, está reservada às almas melhores. Seja como for, não poderia tratar-se de
imortalidade verdadeira, pois a doutrina admite que um incêndio universal,
periodicamente, reabsorve tudo quanto existe, inclusive as próprias almas. Não é fácil
compreender, aliás, porque as almas dos melhores
- aqueles que restauraram em sua alma a perfeita tensão do fogo divíno - não deveriam
ser absorvidas nele após a morte, à semelhança das dos insen satos, que se decompõens
e retornam aos elementos.
As preocupações de uma sobrevida pessoal passam, aliás, nitidamente para o segundo
plano nos estóicos do Império:
"A morte põe fim à rebelião dos sentidos, à violência das paixões, aos desvios do
pensamento, à servidão que a carne nos impõe" (Pensamentos de Marco Aurélio, livro
VI.)
"Tudo quanto é material cedo desaparece na massa da matéria universal; tudo quanto
age como causa particular logo é retomado pela razão primordial do universo; e a
lembrança de tudo é sepulta pelo tempo como num túmulo." (Livro VII.)
"O que tem medo da morte, tem medo de ser privado de todo sentimento, ou de tê-lo de
outro tipo. Mas, se ele não tem mais sentimento algum, não sentirá, conse qüentemente,
nenhum mal; e, se adquirir outra faculdade de sentir, será um ser de espécie diferente, e
não cessará de viver." (Livro VIII.)
8. O mundo, a alma, a liberdade
No domínio do conhecimento, o estoicismo não reconhece a distinção estabelecida por
Aristóteles entre a sensação e a intelecção, que atribui, a esta última, atividade específica.
Admite que a certeza está presente nos primeiros conteúdos do conhecimento, isto é, nas
representações; o fato de que são sensíveis ou intelectuais não o leva a atribuir-lhes grau
diferente de certeza. O objeto, presente na representação, é sua causa, ao mesmo tempo
que causa da impressão produzida na alma; e o papel desta se limita a um "assentimento"
necessário à compreensão. A certeza do conhecimento é garantida, assim, pela atividade
do objeto, que penetra a alma e a ilumina. Trata-se, em suma, de provar, embora ao preço
dè uma ajudazinha, que o espírito funciona sempre de acordo com a realidade, pois não
se trata de construir um mundo espiritual em ruptura, mas, antes, de fundamentar uma
sabedoria cujo essencial é, ao contrário, a aceitação do destino inscrito nas coisas. Pois, se
também os
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animais dispõem de representações, o homem é capaz de interpretá-las, para inseri-las,
com seu valor próprio, na realidade total. A percepção humana do objeto é
acompanhada de uma copercepção de si mesmo, que permite relacio nar-se com as
coisas apreendidas e apreciá-las.
Em resumo, a teoria estóica do conhecimento implica a compreensão
natural das coisas, fundada no postulado de uma harmonia necessária entre a
representação e o assentimento; vê sinal dessa harmonia na tendência à
autoconservação individual que apenas confirma uma lei natural. Assim, o
assentimento, ao mesmo tempo imposto e voluntário, não poderia ser
recusado.
Coube censurar a doutrina por firmar-se em duas atitudes fundamen tais aparentemente
pouco condiiáveis: por um lado, um individualismo que exalta a vida interior num sentido
forçosamente separatista; por outro lado, um panteismo que afirma a dependência total
das criaturas à ordem uni versal. De fato, se a teoria estóica do destino pressupõe as
representações como as causas do assentimento e, assim, de nossas tendências, a alma não
poderia delas depender sem comprometer irremediavelmente a liberdade. Por isso, por
uma espécie de deslocamento de perspectiva, veio a acentuar-se, mais tarde, a faculdade
humana de utilizar as coisas de certa maneira, a auto nomia do sábio que pode, depois de
examiná-la e criticá-la devidamente, rejeitar a representação. Esse aspecto assume
importância quase exclusiva em Epicteto e em Marco Aurélio, que insistem
freqüentemente nesse papel do sábio; e a faculdade de interpretar se torna, então,
verdadeiro poder de transformação:
'O que nos governa é essa faculdade da alma de excitar-se, dirigir-se, compor- se a si
mesma segundo sua vontade, de encarar tudo quanto sucede apenas do ponto de vista
que quer." (Pensamentos de Marco Aurélio, livro VI.)
"A respeito de tal ou qual assunto, é-me lícito nada presumir e, assim, evitar a
perturbação da alma; porque as coisas não têm, por si próprias, a virtude de nos impor
juízos." (Ibid.)
Quanto a Epicteto, é bem conhecida sua afirmação:
Assim, por profunda exigência moral, o estoicismo chega a opor drama ticamente a
alma ao corpo, a despeito do naturalismo que, teoricamente, afirma. A compreensão já
não é o que era na teoria primitiva, isto é, a conse qüência natural do assentimento,
voluntário mas necessário, concedido pelo sujeito à representação. Antes que ao objeto
em si, ela se aplica à aparência suscitada por ele e elaborada pelo sujeito; e é essa
subjetividade deformadora, e, não, o próprio real, que o sábio deve tomar como objeto
de estudo e subme ter à crítica. Daí uma análise depreciativa das coisas em Marco
Aurélio, para libertar-se da sugestão delas:
"Que vês no banho que tomas? Gordura, suor, impurezas, água suja, coisas todas
repugnantes: eis o que existe também em cada parte de tua vida e em tudo que se acha
sob teus olhos... Diante das deliciosas iguanas e de outros alimentos que me servem,
tenho o direito de dizer: este é um cadáver de peixe; aquele um cadáver de frango ou de
porco; ou ainda, este falerno é um pouco de suco de uva; esta roupa de púrpura, um
tecido de pêlos de ovelha, mergulhado na tintura do sangue extraída dum molusco..."
(Pensamentos, livros VI e VIII.)
Se se podem considerar artificiais os liames estabelecidos çntre seu aspecto
antropológico e sua ontologia dogmática, a psicologia moral dos estói cos conserva
singular valor pelo fato de pôr em evidência a liberdade interior, por sua vigorosa
afirmação - excessiva, embora - da energia humana como disciplina capaz de subtrair o
homem às servidões exteriores e assegurar-lhe o domínio de si. Sob esse aspecto, o
ensinamento dos estóicos apresenta analo gia com o de certas escolas orientais, que vão
mais longe ao atribuir ao psiquismo humano o poder de influenciar a própria vida
orgânica.
"O que perturba os homens, não são as coisas, mas as opiniões que delas fazem."
(Manual, V.)
Se, independentemente de nossa vontade, podemos tudo perder: saúde, situação,
honras..., somos senhores absolutos de nossa reação diante desses infortúnios. (Manual,
1.) Mal admite Marco Aurélio que a alma possa ser influenciada pela vida fisiológica:
"Que a parte essencial de tua alma, faculdade diretriz e soberana, não se deixe comover
pelas impressões doces ou rudes que a carne experimenta. Que, em lugar de amalgamar-
se com a carne, se feche em si mesma, e confine as afecções físicas em seu domínio
próprio. Se, por simpatia, cuja causa não depende dela, essas afecções se estendem ao
espírito, por causa de sua união com o corpo, não cabe então fazer esforço a fim de
repudiar uma sensação que está na ordem natural; mas que tua faculdade diretriz evite
tomá-la quer por um bem, quer por um mal." (Pensamentos, livro V.)
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CAPÍTULO VIII
A IRRuPçÃO DO PENSAMENTO HEBRAICO
1. O sincretismo alexandrino
2. Filo e a tradição judia
3. A alma e o mundo exterior
4. A vida espiritual
5. A mudança de perspectiva
1. O sincretismo alexandrino
Sabe-se a difusão que teve a cultura grega, na época chamada com justeza de helenística,
enquanto seu país de origem, após o desmembramento do império de Alexandre, havia
praticamente desaparecido da cena política. Os séculos seguintes são de profunda crise,
dominada por estranha necessi dade de evasão e caracterizada pela fusão entre o
pensamento grego e o orien tal, muito particularmente o hebraico. Se Roma devia
suplantar Atenas politi camente, a vida intelectual e moral teve centro, de início, na
Alexandria dos Ptolomeus, imenso cadinho de um mundo onde se mesclavam,
com as mais diversas populações, gregas, egípcias, judias, sírias..., numerosas tradições e
crenças, vagas e confusas aspirações. Embora o surto de Alexandria tenha comportado
iniciativas surpreendentes( esses séculos serão marcados por um decinio geral da
pesquisa e da demonstração rigorosa, por um pulular de teorias fantasistas, de práticas e
cultos extravagantes, de superstições curio sas. As preocupações com a alma individual,
seu destino após a morte, tornam-se obsessivas e orientam a curiosidade em certo sentido.
Assim é que se pretenderá ver, no orfismo, uma ciência revelada muito antiga; assim é
que se pesquisarão em Homero pretensas transcrições alegóricas de verdades ocultas; em
Platão, mitos por interpretar como textos sagrados... Assim é que
(1) Lembrei (fim do cap. II as pesquisas empreendidas em Alexandria. especialmente
anatômicas e fisiotógicas, favorecidas pela prática da dissecção. Os estudantes e os
cientistas que afluiam a cidade, aí encon travam também um jardim botânico e
zoológico, um laboratório de química e um observatório de astronomia. Seu famoso
museu compreendia uma biblioteca, cuja coleção se enriquecia sistematicamente com
manuscritos e cópias em número enorme.
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surgirá o sincretismo religioso atribuído a Hermes Trismegisto (o três vezes grande), e
que se difundirá, no século II, sobretudo entre os cristãos, a dou trina dos gnósticos,
nascida em Antioquia e que invocará a seu favor o testemunho de Zoroastro. Como o
gosto do maravilhoso que alimenta essa vaga de misticismo era o oposto da sabedoria
sem ilusões de Epicuro, de sua aceitação fria e serena da condição humana, este filósofo
e seus discípulos começam a ser objeto daquela reprovação e, até, daquela repulsa que
virão a conhecer da parte dos adeptos do cristianismo, nascido justamente nesses séculos
de intensa fermentação caótica.
2. Filo e a tradição judia
A figura de Filo emerge no seio da importante comunidade judia de Alexandria,
disseminada bem para além dos dois bairros da cidade a ela atribuídos. Sua obra, rica de
intuições desconexas, ilustra a junção do pensa mento grego com a tradição hebraica,
num momento em que os gregos esta vam como que cansados de tanto haver refletido
sobre si mesmos e em que os judeus se preocupavam em afirmar, nessa sociedade
helenizada, a excelência e a perenidade de seu próprio gênio. Filo entende provar a seus
compatriotas que sua tradição é superior à dos gregos, embora suas teorias muito devam
aos sistemas filosóficos desses últimos, que conhece muito bem. Se deles se serve
largamente, é, porém, na medida em que neles encontra elementos utilizáveis em favor da
concepção hebraica do homem, entendido como veículo de uma consciência supranatural,
e de Deus concebido como pessoal e transcendente. Assim, os motivos mais importantes
que deles extrai são, sobretudo, os pita góricos e platônicos.
Fora do espaço e do tempo, Deus não apenas é imaterial (contraria- mente à crença dos
estóicos) como não se confunde nem com o mundo, nem com a própria alma. E
estranho.a toda multiplicidade, a tudo quanto é com posto, mutável, dependente. Não se
pode, portanto, tirar das coisas visíveis imagem alguma a ele convinhável, nem utilizar, a
seu respeito, qualquer dos termos aplicáveis a perfeições relativas e criadas. Desse Deus
supremamente desconhecido, Filo nos revela, contudo, não pouca coisa: uno, simples,
imutá vel, eterno, imenso, é o modelo, criador e conservador exemplar e onipresente de
tudo quanto existe; se ninguém o vê, ele tudo vê, e sua atividade soberana se exerce sem
que, por isso, precise sair de si mesmo. O sol não ilumina o mundo sem vir até ele? E os
olhos não contemplam o céu sem abandonar o corpo? Capaz de mover todas as coisas
sem ir até elas; Deus pode, pois, da mesma forma, comunicar-se a um espírito humano,
sem de modo algum alienar sua pureza indivisível. Filo ainda lhe atribui a suprema
bondade e a generosidade criadora.
Preocupado com evitar o antropomorfismo, esforça-se por interpretar a Bíblia
simbolicamente; a alegoria, nele um processo constante, intervém para designar tanto
uma força da natureza como uma virtude moral, e de tal maneira que uma primeira
significação, vulgar, recobre outras, acessíveis apenas aos iniciados. Por outro lado, a
coerência não é a qualidade mestra desse pensador transbordante de inspiração mística.
Compreendemos, no entanto, que Deus não queira "sujar as mãos", como diria Sartre.
Sua trans-
cendência é tal que sua ação se exerce por intermediários: idéias, anjos, arcanjos; por
meio desses intendentes ou vigários é que ordena, recompensa, ou castiga. Filo os
descreve ora como forças abstratas, ora como divindades subalternas, como agentes da
Onipotência. Parece não distinguir nitidamente entre idéias ou modelos contidos no
espírito divino, e ministros ou mensa geiros de Deus, "subdiáconos"('). O conjunto
desses poderes forma um todo:
o Logos (Palavra, Verbo, Pensamento de Deus), anterior à criação do mundo material.
A propósito dele, Filo multiplica os epítetos e as metáforas (Homem de Deus, Imagem
de Deus, Princípio, Grande Sacerdote do Mundo, Intér prete de Deus, Sol Inteligível,
Profeta de Deus, Filho mais velho de Deus...).
É difícil, contudo, falar de anterioridade, pois o mundo, embora tenha começado, não foi
criado no tempo. Com efeito, pensa Filo que o tempo (idéia que reaparecerá em Santo
Agostinho) surge com o próprio mundo que, uma vez criado, nele se desenvolve.
O mundo e o homem inteligível estão contidos no Logos desde sempre com as razões de
tudo quanto existe. Esse mundo está submetido ao império de relações numéricas, em
virtude de um simbolismo matemático, já sustentado pelos pitagóricos, e que encontramos
também na medicina hipocrática, e do qual subsistem traços na assim chamada numero
logia contemporânea. Assim é que Filo, o qual faz do número 7 a expressão da Lei,
relaciona-o com o livro do Gênese. Crê que os astros são seres vivos cuja influência é
certa, mas considera a astrologia como ocupação perigosa; admite também que o ar está
cheio de espíritos, alguns dos quais se alojam nos corpos
humanos, enquanto outros servem a Deus em suas relações com os habitantes da terra.
3. A alma e o mundo exterior
Embora Filo julgue não podermos conhecer nossa alma e afirme, a esse respeito, um
cepticismo de princípio, parece, contudo, que o ser humano se compõe de dois
elementos heterogêneos: um, corporal e terrestre; inseparável do sangue; o outro, sopro
divino, sede da vontade e da inteligência, da liber dade, proveniente do Logos.
De sua interpretação do Gênese, atrás mencionada, depreende-se que Deus produziu,
inicialmente, um mundo inteligível e ideal, oLógos, antes de serem modelados os
elementos e os seres concretos e, depois, o homem visível. Pensa Filo que tudo quanto
existe manifesta certo poder. No nível mais baixo, a coesão é assegurada por um fluido
que percorre o mundo, e expresso pelas próprias coisas mediante uma tendência à
autoconservação; as plantas, num grau mais elevado, atestam um poder de crescimento; e
grau ainda superior é assinalado por um princípio de vida. Sob essa forma, a alma, cuja
essência é o sangue, é comum a todas as criaturas e transmite-se de uma geração a outra
pela semente. E o sinal da superioridade dos animais sobre as plantas, tal como o espírito
assinala a superioridade do homem sobre os demais habi tantes da terra.
O primado que Filo atribui à reflexão do espírito sobre si mesmo e à superioridade do
conhecimento adquirido por essa via mal permite compreen
(1) D Mo, livro II. 1.
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der o papel das sensações no conhecimento. Parece que os dados sensíveis devam ser
considerados neutros em si mesmos e tudo dependa do uso que deles se faz, da
orientação da conduta. Pois Filo admite que o desejo, a tris teza ou o temor servem de
aguilhão à alma. Por outro lado, se atribui à sensi bilidade a contribuição, para o espírito,
das noções exatas, as do branco e do preto, por exemplo, ou do quente e do frio, julga
errado crer serem nossas percepções idênticas aos objetos percebidos. Uma deformação
se produz, do gênero daquela a que os homens apaixonados submetem o objeto de seu
desejo, adornando-o com qualidades inexistentes. Tais observações demons tram que
Filo era consciente de certa influência exercida pela afetividade sobre o juízo. Estabelece
uma espécie de hierarquia entre os sentidos, consi derados como instrumentos de
conhecimento. O ouvido e, sobretudo, a vista ocupam nela lugar privilegiado
relativamente ao paladar, ao olfato e ao tacto. Pois os olhos, que refletem os movimentos
da alma, podem erguer-se ao céu para dele receber a luz, símbolo do espírito divino. A
impressão sensível põe em ação três elementos: o próprio objeto, a
sensibilidade e a inteligência que a recebe; ora os objetos exteriores impressionam por si
mesmos a alma, ora a inteligência vai por seu próprio movimento na direção dos
objetos, para captá los ou compreendê-los. Um movimento de atração ou de repulsão está
ligado à impressão sensível e parece que esta se inscreve numa zona da vida psíquica
onde reinam uma sensibilidade e uma imaginação passivas, involuntárias com relação à
atividade da inteligência. Filo admite, com efeito, certa indepen dência da sensibilidade
em face da inteligência. Seria em vão, observa ele, ordenar esta aos olhos que não vissem,
aos ouvidos que não ouvissem, às narinas que não sentissem. A sensibilidade é dada Com
o ser vivo. Mas, se escapa à vontade, a atividade sensorial se liga, no homem, a um senso
interior, por sua vez estreitamente ligado ao espírito. Sua intervenção assegura o controle
interior, permite distinguir as ações intencionais das que não o são, explicar a diferença
entre olhar ou, simplesmente, ver.
4. A vida espiritual
Enquanto o espírito é luz, unidade, concentração, os sentidos são obscuridade,
pluralidade, dissipação; passivos e inferiores, pertencem ao corpo e podem causar a ruína
da alma. Pois, esta se encontra como que aprisionada no corpo e dele libertar-se é o
preço de sua volta a Deus, garantia de feliz eternidade. Por isso a busca dos prazeres é
má em si. pois corrompe a alma e a agrilhoa ao perecível. A matéria aparece em Filo
como o não-ser, o devir, o mal, a morte, e, ao mesmo tempo, como o corpo e a extensão
em três dimensões. Não parece tenha indagado sobre a matéria, assim entendida, donde
Deus extraiu o mundo.
O homem é o único ser livre e racional sobre a terra, graças a seu espírito, devido ao
Logos divino. Sobre a natureza desse espírito humano, o NoíZs, Filo não nos ensina
grande coisa, a não ser que se situa na cabeça, onde se localizam os órgãos privilegiados
da visão. Filo não se preocupa muito com o problema suscitado pela passagem da simples
representação das coisas à captação das relações entre elas. Acontece-lhe, aliás,
contradizer-se quanto ao próprio valor que convém atribuir à inteligência. Pois, se
insiste em sua
origem divina, em sua anterioridade em relação às demais faculdades, em sua liberdade,
afirmando que dia virá em que há de abandonar a sensibilidade para retornar ao seio de
Deus que a emprestou ao homem, também lhe ocorre insistir em seus defeitos,
representá-la como faculdade falaciosa, instável, sujeita aos descaminhos e à loucura, tão
fraca que desaparece "no êxtase, na melancolia ou em conseqüência de longa velhice"
(1).
No que respeita à linguagem, distingue Filo o "que nossa voz produz exteriormente", de
uma linguagem inata, interior, que nos impulsiona aos atos dos quais depende nossa
vida moral; do Verbo divino, em suma, cujo caráter principal é a verdade. Da linguagem
humana, de origem divina, com preendeu a importância na formação e na formulação
do pensamento:
"A linguagem( diz ele, "é irmã da razão; pois o demiurgo dela fez como o órgão do
composto que somos, um ruído articulado. Essa linguagem exprime os pensa mentos;
vem ao encontro das concepções da inteligência. Quando o espírito elaborou algum
pensamento, quando tomou impulso, quer tenha sido movido por si mesmo, quer tenha
recebido impressões exteriores, a inteligência se torna prenhe dessas concepções; não as
pode gerar, contudo, até que a palavra, tendo-as recebido por inter médio da língua e
dos outros órgãos vocais, dê à luz essas idéias. A própria voz é o mais luminoso dos
pensamentos(
Enquanto a percepção nos mantém em contato com o exterior, a inte ligência é capaz de
voltar-se para dentro, como se dá na meditação. Algo de análogo se produz durante o
sono, favorável aos vaticínios, pelo fato de que o espírito, nesse estado também, está
então desligado da atividade sensorial. Longe de relacionar todos os sonhos com as
sensações, Filo insiste no elemento de liberação que o sono introduz relativamente à vida
dos sentidos, para fazer valer a idéia de um conhecimento atingível nesse est ado de
passividade senso rial. Decorre desse ponto de vista o reconhecimento de um primado
atribuído aos transes e às visões proféticas. Tal motivo místico não foi, por certo, igno
rado pelos gregos. Basta recordar, a esse propósito, as tradições dos Mistérios, a Pítia de
Delfos, e até o "demônio" de Sócrates. Em Filo, porém, ele inter vém sem contrapartida,
por assim dizer, num sentido que resolve a tensão subjacente à especulação grega
sacrificando um dos termos da antinomia: o do pensamento racional com suas exigências
particulares. Por meio deste é que os gregos se haviam livrado dos mitos inerentes à
experiência mística ou, quando menos, se haviam esforçado por substituí-los por
explicações lógicas. Sob esse aspecto, a época de Filo assinala um retorno aos
mitos. O esforço do pensamento não visa mais a um conhecimento objetivo da
realidade, mas essencialmente à identificação, no eleito, da alma individual com Deus,
num estado inexplicável, pois indescritível, no qual é o próprio Deus que vive, atua e
fala nela, como falou pela boca dos profetas e dos adivinhos(
(1) De Cherubim, 33, cf. Édouard HERRIOT, Phi/on le Jwj, essai sue I'éco/ejuire
d'Alecaadr Paris, Hachette. 1898, pág. 283.
(2) Quod dei erius pooori in,s,di solear, 34.
(3) Éd. HERRIOT, Philon leJuij, pág. 285.
(4) Com referência à profecia e ao êxtase em FILO, cl. Émile BRÉHIER, Les d
phrlosophrques ei relrgieuses de Philon dAlexarsdrie. part. livro III, págs. 179-205.
Pans, Vrin, 1950.
68
69
5. A mudança de perspectiva
A mudança de perspectiva implica uma atitude psicológica diferente, que substitui a
pesquisa puramente humana, fundada no ideal da razão, por uma submissão e uma
piedade incondicionais, mas queridas com fervor tendente a uma espiritualidade
militante. A obra de Filo é característica do motivo que se introduz no pensamento
ocidental: o de uma fé apaixonada num Deus criador, atingível apenas do interior, e,
pois, unida à aspiração a um contato íntimo com ele. Em seu sincretismo um tanto
desnorteante, de origens e direções variadas, seu misticismo anuncia, sob muitos
aspectos, a psicologia da era cristã, da qual contém, em germe, as doutrinas futuras da
alma e de sua união com Deus. Há até neste misticismo como um esboço da Trindade
em sua concepção do Logos, Verbo e Filho mais velho de Deus, que é, ao mesmo
tempo, a idéia do mundo sensível, esse filho mais novo de Deus. (Quod Deus sit
immuíabilis, 7.)
Aí também se encontrarão as contradições que virá a conhecer o pensa mento cristão no
decurso de seu desenvolvimento: essa espécie de oscilação entre o racionalismo herdado
dos gregos e uma concepção transcendente e revelada que a Igreja monopolizará; entre
a liberdade do homem responsável e a onisciência de Deus todo-poderoso; entre o
desejo de jugular o espírito crítico em proveito da fé e a preocupação de explicar para
convencer(').
"Com Filo, produz-se na história da filosofia um grande acontecimento, cujas
conseqüências se farão sentir durante séculos e cuja repercussão será infinita. A filoso fia
não é mais a livre pesquisa. Quaisquer que fossem, e-fosse qual fosse a sua verdade, os
filósofos gregos - e essa é sua maior honra diante da história - haviam buscado as
verdades primeiras livremente, sem qualquer coerção, sem outro controle além da livre
razão. Quanto a Filo, tem opinião formada desde o início, e não vai reformá Não discute
problemas; verifica axiomas, O trabalho que faz sobre a Bíblia, outros, mais tarde, o farão
sobre Aristóteles. Com Filo, é o reino da escolcís(ica que começa(
(1) É provável que FILO tenha nascido lá por 30 ou 40 a.C., haja desempenhado pape!
político em Atexandria e vivido até idade bem avançada. Dele nos ficou obra
considerável (cerca de duas mil páginas). Curiosa mente, nela não se encontra traço
algum do acontecimento em torno do qual iria nascer e cristalizar-se durante séculos
uma concepção nova do homem e de seu destino.
)2) Édouard HERRIOT, Philssv /einif págs. 348-9.
)*) Neste passo, parece conveniente transcrever, ao lado da tradução, a frase de
HERRIOT. muito expres visa e sem correspondència possível em português, como se
verá. É esta: "PHILON, ai, a von parti pris dès l'abord et "von siége (ai!"." A locução
vem de que o abade René Aubert de VER'IOT )lb55-l735(. historiador francês, autor de
estudos vários (sobre as revoluções ens Portugal, as revoluções na República Romana,
etc-), estando a trabalhar em sua JJjstónu da Orde,n de Ma/ta (ordem da qual era
historiógrafo). veio a conhecer um erudito que pretendia comunicar-lhe pormenores
interessantes do cerco de Malta--, como já houvesse redigido o relato do episódio,
retrucou o abade ao informante: "J'en suis fâché, mais non siége est fail". Cf. Maurice
RAT, Dictionnairm' dt's /ocul,vns françamses. Laronsse Parts. 1957. (1. B. O. P.)
70

CAPÍTULO IX
O ACME DO "NEOPLATONISMO": PLOTINO
1. Plotino e seu tempo
2. A alma universal
3. O domínio da psicologia
4. A imaterialidade da alma e opneürna
5. O organismo e as sensações
6. A imaginação, a memória, a consciência
7. A inspiração de Plotino
1. Plotino e seu tempo
Apresenta-se Plotino como a figura mais alta dessa época de crise e sua obra como o
auge depurado do que se convencionou chamar neoplatonismo. Em certa medida, trata-
se realmente de um retorno, para além do epicurismo e do estoicismo, a Platão e à
tradição pitagórica, menos afastada espiritual mente da tradição hebraica, mais apta a
fornecer uma resposta às aspirações confusas desse tempo, à vaga de misticismo e de
ocultismo desfraldada sobre o mundo mediterrâneo, que os diques postos pelos filósofos
gregos já não podiam conter. Pois o fim não é mais a sabedoria conquistada pelo
desdobra mento da razão soberana, mas a restituição, à alma, de uma riqueza que ela teria
perdido. Em lugar de um esforço para pôr em evidência, pelo pensa mento, as estruturas
julgadas fundamentais da realidade, para opor às vicissi tudes da existência e aos
descaminhos da imaginação urna quietude e uma constância adquiridas pela aceitação da
condição humana, trata-se de rompi mento das barreiras do "eu" individual, de evasão
dessa condição pelo recurso a uma ascese apropriada.
Todo o ensinamento de Plotino visa a subtrair o homem à realidade
concreta, abrindo-lhe uma via puramente contemplativa e mística, à qual
pouco importa a ação:
Vede os homens: quando a contemplação neles se enfraquece, passam à ação.
que é uma sombra da contemplação e da razão; incapazes de entregar-se à contem
plação em virtude da fraqueza de suas almas, não podem captar bem os objetos e
71
saciar-se da visão deles; desejam vê-los, contudo, e procuram, por meio da ação, ver
com os olhos aquilo que não podem ver com a inteligência,..." (Ennéudes, III, 4.)
Mas, se a admirável síntese plotínica se situa num contexto de eferves cência irracional e
mágica, e se oferece, ela também, resposta à necessidade geral de evasão, o gênio
próprio de seu autor é ter satisfeito essas exigências com vigor bastante para que seu
pensamento, por mais representativo que seja da época, a ultrapasse e adquira direito de
cidade no que se pode chamar de Panteão espiritual da humanidade.
2. A alma universal
Retoma Plotino, para dela tirar todas as conseqüências, a concepção órfica e platônica da
alma como essência precipitada dos remos felizes do Além sobre a terra. Conservando,
de suas origens, a lembrança e uma vaga nostalgia, encontra-se no corpo como num
túmulo. E Plotino crê que uma volta à idade de ouro lhe é possível, desde que ela
conheça os meios para isso. Pois, se a alma humana cedeu às seduções do mundo
material e ao orgulho de constituir um mundo para si própria, a alma universal não a
abandonou. Reintegrar-se nessa alma depende dela, com a condição de purificar- se, de
renunciar às atrações do corpo, de escapar à roda dos nascimentos pela ciência e pelo
ascetismo. A curta e sugestiva biografia que Porfírio consagra a seu mestre, principia
assim: "Plotino, o filósofo de nossos dias, parecia enver gonhar-se de estarem um
corpo".
Mas outra tradição desemboca, também, no plotinismo: a que se pode chamar
"animista", representada particularniente pelos estóicos, na qual a alma é encarada como
força organizadora. Daí um pampsiquismo associado a essa concepção da alma como
realidade sobrenatural. Para clareza das coisas, é impossível deixar de recordar que a
metafísica plotínica faz intervir três instâncias fundamentais: o Um, a Inteligência e a
Alma universal, encarada a primeira como a realidade suprema que ultrapassa toda
inteligência, toda existência e, pois. toda determinação e limitação. Como do Sol emana a
luz, é do Um que emanam o Logos ou Inteligência, sede das Idéias, e depois a Alma
universal. Esta, portanto, tem origem em princípio que lhe é superior; é a imagem, a
manifestação exterior da Inteligência, cujas formas eternas (que as coisas sensíveis
refletem imperfeitamente) são admitidas por Plotino como modos de atividade. A
Inteligência, reino da unidade, relativamente à multi plicidade do mundo sensível que ela
articula, só é acessível - e apenas em certa medida - por esforço de interiorização. Fazer
idéia disso só é possível isolando-se a gente do corpo e da alma sensitiva que lhe assegura
o fun cionamento:
"Cumpre que a alma esqueça de bom grado o que lhe vem de baixo.., poucas coisas cá
de baixo convêm a uma vida elevada." (Ennéades, IV, 3-32.)
Têm as almas a faculdade de permanecer unidas à Inteligência divina, libertando -se da
atração que sobre elas exercem as coisas exteriores; ou, ao contrário, de renegar a seus
laços com Deus, afastar-se d'Ele para escravizar- se ao contingente e perecível.
O entendimento humano, com sua função discursiva, é considerado por Plotino como
intermediário entre a inteligência e o mundo sensível: em seu esforço por compreender
as coisas exteriores é que ele se eleva em direção à inteligência e dela recebe a
iluminação. A imagem da inteligência se lhe revela, então, pela luz que ela dispensa,
como a região que envolve o Sol é iluminada pela luz que dele emana('). A própria
Inteligência, porém, na medida em que encerra o movimento e a diferença, o uno e o
múltiplo, ainda não é a unidade perfeita, pois não se pode exercer sem um objeto. Por
isso Plotino, que teve viva consciência da dualidade inerente ao exercício do pensa
mento, situa em nível ainda superior a unidade perfeita, manifestada, a seu ver, pela
necessidade de absoluto que habita certas almas. Esse Um "no interior e na
profundidade de todas as coisas" (Enn., VI, 18), causa absoluta de todas as coisas e de si
mesmo, liberdade e mistério insondáveis, somente se pode atingir pelo êxtase,
transporte que liberta a alma de toda limitação, e pela completa fusão da alma com esse
inefável, substância e fonte infinita da vida espiritual. E na pura atividade contemplativa,
quando se esforça por descobrir o Um e nele absorver-se, que a alma desfruta da mais
alta liberdade
- aquela liberdade que permite abdicar voluntariamente de toda determi nação pessoal e
fundir-se no objeto de seu amor. Cons em si mesma, a realidade da Alma universal é
indivisível, superior a tudo quanto existe no espaço e no tempo. E as almas individuais,
dela brotadas, participam por seu mais alto grau da mesma contemplação inteligível. Se
os homens desconhecem sua unidade, é por olharem fora do ser do qual dependem:
Todas as almas provêm de uma só; essas almas múltiplas, originárias de uma alma única
são como as inteligências; estão e não estão separadas." (Enn.,
IV, 3,5.)
Émile Bréhier resumiu com muita propriedade os traços essenciais desse "animismo"
plotínico:
"Essa física espiritualista está na mais radical oposição concebível a toda física de
espírito mecanista. Jamais encarar as partes como verdadeiros elementos do todo, mas
como produções do todo; considerar, por conseguinte, a idéia ou a produção do todo
como mais real que as próprias partes, tais são esses princípios. E estes levam a
estabelecer, entre as partes do universo, ligações de natureza puramente espiritual;
assim torna-se o mundo sensível transparente ao espírito, e as forças que o animam
podem reingressar na grande corrente da vida espiritual(
3. O domínio da psicologia
Ressalta, assim, dessa concepção, uma psicologia subordinada a uma dialética
procedente da absoluta simplicidade do Um para a multiplicidade das coisas, uma vez
que a ascensão da alma, encarada como retorno à fonte de seu ser, implica uma prévia
descensão; com a conseqüência de que as funções ordinárias da vida psíquica
(sensibilidade, memória, raciocínio) são consi deradas como nascidas de uma
decadência da vida espiritual. Pois, nos
(1) Ennéades, V, 3, 8, 9. Cl. Charles WERNER, La phik'sophie grecq Payot, Paris,
1938, pág. 246.
(2) La phiiosophie de Plotin, Boivin eI de, pág. 57.
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estados superiores desta última, o sentimento da personalidade desaparece. ao mesmo
tempo que a atenção às coisas exteriores e, até, a lembrança do eu. Noutros termos, as
funções normais do espírito não constituem, de modo algum, o centro do psiquismo para
Plotino, mas derivações, e mesmo limi tações da vida espiritual. Em semelhante
contexto, a alma percebe, na medida em que se volta para as afecções de sua parte
sensitiva ou irracional; reflete, na medida em que a cisão dos estados de consciência
entre um sujeito e um objeto lhe permite pensar e saber ao mesmo tempo que está a
pensar. E se a contemplação é o fim último, é que uma pura atividade espiritual, para
além desse dualismo sujeito-objeto, é não só possível como desejável. Por tanto, não há
mais nem antes nem depois, nem memória nem tempo, para a alma, que desfruta de
repouso absoluto e cessou de mover-se fora de si mesma:
"Resulta que na alma, no grau mais elevado de vida espiritual, não há memória, pois a
alma está fora do tempo, nem sensibilidade, pois a alma não tem relação com as coisas
sensíveis, nem raciocínio ou pensamento discursivo, pois não há raciocínio no eterno.
Entre as funções normais da consciência e a natureza íntima da alma, existe uma
contradição (1)."
4. A imaterialidade da alma e opneõma
À idéia estóica da materialidade da alma, objeta Plotino que tudo quanto é material é
divisível e corruptível, até o ar e o sopro; e que a alma, assegurando a unidade do
organismo e de suas percepções, não pode ser senão uma essência indestrutível:
"Tudo que, para existir, implica uma composição, decompõe-se naturalmente nos
elementos de que se compõe; a alma, porém, é natureza una, simples e existe toda
atualmente no fato de viver; portanto, não perecerá." (Enn., IV, 7, 12.)
À concepção estóica de uma conaturalidade perfeita entre o pneüma, incessantemente
alimentado pelos eflúvios do sangue, e o corpo, opõe Plotino o fato de a alma não poder
ser localizada, no organismo, à maneira de um corpo material que ocupa determinado
lugar no espaço. O contrário é que é verdadeiro:
"A alma não está no mundo; mas o mundo está nela; pois o corpo não é um lugar para a
alma. A alma está na inteligência; o corpo está na alma." (Enn., V, 5, 9.)
Os estóicos haviam concluído pela identidade entre o princípio de vida e o pneüma (esse
sopro quente que se exala constantemente do sangue) com base na experiência imediata: a
morte acarretada por interrupção da respi ração, por grande perda de sangue...
Contesta Plotino que tais fatos sejam decisivos, pois muitos outros elementos são
indispensáveis à vida, os quais nem por isso poderiam ser considerados como fonte
dela. Aliás, não exclui de sua psicologia o pneüma entendido como sopro material,
atribuindo-lhe, porém, natureza e papel diferentes. Não é mais, para ele, a alma propria
(1) É. BRÉHIER. op. d pág. 71.
mente dita (a alma é um princípio imaterial) mas um intermediário de sutil corporeidade,
tomado de empréstimo pela alma, quando de sua encarnação terrestre, às órbitas
planetárias. Opneüma desempenha, assim, segundo ele, como nos escrito s herméticos, o
papel de traço-de-união entre a alma e o corpo. E uma espécie de envoltório da alma
encarnada, cujo abandono, se ela permaneceu impura, não lhe é fácil no momento da
morte. Neste ponto, chegamos ao que se pode chamar o ocultismo de Plotino.
Pela mesma época, circulavam inúmeras teorias análogas, bem menos elaboradas que a
sua, as quais relatavam a descensão das almas, do céu à terra, como atravessavam a
esfera das estrelas fixas e, depois, os círculos dos planetas, e a influência que estes nelas
exerciam. É quase escusado lembrar que a astrologia e a quiromancia nos transmitiram
tais crenças, pelo menos no tocante a essa influência astral.
Acrescente-se que a alma imaterial é, segundo Plotino, o substrato das verdades eternas
(figuras geométricas e valores absolutos) que o homem pensa quando a si mesmo se
pensa.
Vale dizer que Plotino também não admite a solução aristotélica da alma como forma do
corpo, no que essa solução lhe parece comprometer a independência daquela em relação
à matéria, independência, a seu ver, comprovada pelo processo do conhecimento, uma
vez que se trata, segundo ele, de demonstrar que toda percepção é ativa, e que a
passividade aparen temente implicada na dependência da alma em relação aos objetos
que ela conhece se reduz, em última análise, a um concurso de formas inteligíveis na
alma receptiva ou sensitiva. Em suma, a alma utiliza o corpo como uma força ativa
utiliza seu instrumento natural, introduzindo-o no campo de sua irra diação psíquica
(Enn., IV, 3, 22); ela se caracteriza por sua unidade funda mental e só parece múltipla
quando a encaramos sob o ângulo de suas funções.
5. O organismo e as sensações
Essa unidade da alma é refletida pela do próprio organismo em sua diversidade
funcional.
No caso do tacto e do movimento, é inteiramente instrumento da alma. Mas, no
concernente à vista, ao ouvido, ao olfato, ao paladar, órgãos especiais entram em jogo e,
portanto, certa pluralidade de funções. Não há audição sem ouvido, nem visão sem olhos.
E a alma, se é efetivamente indivisível e está toda inteira em cada um de seus aspectos,
não pode entrar na posse do que espera dos órgãos sensoriais a não ser entrando em
relação com eles. Tal necessidade explica as distinções inerentes à própria pluralidade da
experiên cia sensível. O cérebro, ponto de intersecção da razão imaterial com a alma
sensitiva e o organismo, constitui região privilegiada, pois possibilita o enten dimento e
sua função discursiva, que desempenha papel de intermediário entre o mundo sensível e
a inteligência. Os nervos que daí partem são, também, instrumentos
da alma.
Os estreitos liames que Plotino reconhece haver entre a cabeça e a razão, entre o fígado
e o desejo, devem ser considerados como estabelecidos entre os instrumentos que a alma
utiliza para fins diversos, e lhe dizem respel
74
75
to apenas enquanto ela se volta para eles para obter determinados efeitos, O desejo, que se
localiza no fígado e dá origem ao instinto de conservação, surge como fenômeno
complexo, com diferentes níveis. Seu ponto de partida está no corpo vivo, "que não quer
ser um simples corpo", que tende a aumentar sua vitalidade.
Num primeiro estádio, o desejo é simples pendor, que depende do estado atual do corpo.
Num segundo, está na "natureza", isto é, na parte emanada da alma que conserva o
corpo vivo, ou ainda na alma, enquanto unida ao corpo; essa "natureza" acolhe dos
pendores do corpo apenas aqueles que servem à conservação do organismo. Num
terceiro estádio, enfim, o desejo penetra até a alma('):
"A sensação apresenta a imagem do objeto e, a partir dessa imagem, ou a alma, a quem
cabe esse papel, satisfaz o desejo, ou a ele resiste, suporta-o e não dá atenção nem ao
corpo em que o desejo começou, nem à natureza que em seguida desejou." (Enn., IV, 4,
20-21.)
Segundo Plotino, todas as emoções pertencem à unidade que constitui o organismo
vivo, a saber, o corpo e a alma sensitiva. A composição do sangue desempenha, no
concernente à alma sensitiva, importante papel, pois as funções vitais dela dependem.
No fenômeno da cólera, distingue Plotino o que vem do corpo, o efervescer da bílis e do
sangue, e o que vem da alma. De início, é a percepção ou a imagem do objeto que
causou essa revolução orgâ nica; em seguida, a disposição da alma a atacar e a
defender-se. Mas existe também uma "cólera que vem do alto", isto é, casos onde a
representação do objeto e a disposição moral são anteriores às modificações fisiológicas
(Enn., IV, 4, 28). De qualquer maneira, uma afecção, seja devida a um agente exte rior ou
a um movimento interno, aparece numa totalidade que implica sua localização no
organismo e uma alma cognitiva que a registra. O fenômeno comporta uma modificação
orgânica, sofrida pelo corpo, e uma percepção agradável ou dolorosa, conforme a
modificação aumente ou diminua a unidade do corpo e da alma sensitiva. Plotino
distingue, nesse processo, das sensações propriamente ditas, o que se pode chamar
simples impressões, pelo fato de a alma não experimentar a própria afecção, e de o estado
afetivo se acompanhar de um conhecimento decorrente desse estado (a
sensação). E o aparelho sensorial desempenha o papel intermediário entre a alma,
impassível por essência, e o objeto exterior, causa da impressão. A alma total tem,
portanto, a sensação da afecção produzida, sem experimentar a própria afecção:
"A sensação não é sofrimento, mas conhecimento do sofrimento"; ... "a alma localiza a
dor por estar, ao mesmo tempo, no local particular dessa dor e no corpo todo." (Enn.,
IV, 6, 2; IV, 4, 19 e s.)
Na medida em que o prazer e a dor interessam igualmente o corpo, Plotino os situa num
nível mais baixo que a memória. Julga que a aliança entre o corpo e a alma é "perigosa e
instável", pelo fato de o primeiro estar submetido a modificações mais ou menos
compatíveis com a presença da vida
(1) É. BREHIER, op. cii.. pág. 77.
que recebe da alma. Se um aumento de sua vitalidade suscita o prazer, a diminuição
dessa vitalidade origina a dor.
6. A imaginação, a memória, a consciência
Plotino atribui à imaginação, resultante das sensações e, ao mesmo tempo, função
racional, papel intermediário entre as atividades inferiores e superiores da alma. Quando a
alma se volta para o mundo material, utiliza imagens derivadas das impressões sensíveis.
Mas também lhe é lícita a flexão sobre si mesma, a volta para o interior e assim a
contemplação, como objetos, de seus próprios pensamentos, refletidos nessa espécie de
espelho que consti tui, então, para ela, a imaginação. A alma, quando a consideramos em
relação à sensação, é o agente que pode cumprir sua função sem o corpo, mas exerce
certa atividade até nesse nível.
Ora, a memória não pertence da mesma maneira à alma e ao corpo. Nasce assim que a
alma sai do inteligível e dele se quer distinguir, pois não há mais, então, assimilação
completa entre ela e seu objeto. E essa distância que a reduz a não possuir senão
imagens, provindas de uma penetração incom pleta do objeto, suficiente, entretanto,
para dispor a alma de conformidade com esse objeto. (Enn., IV, 4, 3.)
Nasce a memória quando a duração invisível perde algo de sua unidade e se fragmenta.
E depende, então, da atitude da alma que desperta o passado na medida em que tem
interesse nesse despertar. Se sensações diferentes, provocadas por objetos diferentes, não
a interessam, ela não as acolhe. Em suma, a memória apenas tem lugar numa vida
fragmentada, constantemente assaltada por impulsos novos e necessidades sempre
renascentes('). E compa rável a um tecelão, incapaz de trabalhar sem instrumentos, mas
que pode pensar em seu tecido na ausência dos instrumentos. Se as impressões deixas
sem atrás de si marcas análogas às do sinete na cera, constituiriam material indispensável
à alma para lembrar-se de alguma coisa, e a memória seria, assim, comparável a um
palimpsesto. Ora, justamente, só se pode utilizar um palimpsesto apagando
preliminarmente a escrita anterior e não seria possível compreender como a alma poderia
conservar, a um tempo, a impressão antiga e a nova.
Na realidade, o que permanece na ausência de qualquer objeto é o fato de ter agido de
determinada maneira e a memória não é, finalmente, senão a capacidade própria da
alma de conhecer suas atividades anteriores. A impres são na alma é uma "espécie de
intelecção", ainda quando se trata de coisas sensíveis. Se a memória se reduzisse a
simples acúmulo de impressões, impos sível seria que a lembrança pudesse ter por
objeto, não apenas sensações, mas pensamentos. Maior ainda seria a dificuldade nos
casos em que a lembrança versa sobre o que não se produziu, pois seria preciso então
admitir que a memória conserva os traços de objeto que nela não influiu.
A doutrina da memória ocupa, na psicologia de Plotino, lugar desta cado. Tende a
demonstrar que é impossível concebê-la como simples resul tante das sensações, e que
ela não é, em última análise, senão a consciência
(1) É. BRÉHIER. op. cii.. pág. 75.
76
77
em sua extensão. Se o fluxo das coisas nela se encontra como que suspenso, não é que
certas percepções tivessem encontrado como que um refúgio para subtrair-se a esse
fluxo; é, na realidade, porque a alma, "diferente das coisas que estão em perpétuo fluir",
se manifestou. Plotino vê no funcionamento da memória a prova de que a consciência
não se reduz a uma sensação mais complexa, a uma impressão tão transitória quanto a
relação à qual é devida.
Lembrei que sua intenção última era o acesso a um plano em que a própria consciência,
entendida como distinção entre um sujeito e um objeto, esteja ultrapassada, e que ele vê,
na supressão desse dualismo, a condição mais positiva para a alma, seu estado por
excelência. Não se pode duvidar de que esse estado de contemplação extática deve ser
chamado de "inconsciente", uma vez que apenas assim pode aparecer o próprio
supraconsciente em relação a nossa consciência original, ligada a uma personalidade de
que Ploti no não faz grande caso. De fato, observa que "pensar não é a primeira coisa,
nem pelo ser, nem pela dignidade", que é "uma ação de segunda ordem, pois vem após
o bem e desde sua concepção se move na direção dele" (Enn., V, 6). Chega até a
declarar que a consciência, longe de ser vantagem, é defeito e sinal de defeito, pois não
se tem consciência senão do anormal e da moléstia, e a saúde não desperta nenhum eco
(Enn., V, 8, 113). Razão por que a memó ria se vai eliminando à medida que a alma se
vai purificando.
7. A inspiração de Plotino
A obra de Plotino se apresenta, em certo sentido, um pouco como o canto do cisne do
helenismo, por sua preocupação em elaborar um sistema coerente que satisfaça as
exigências da razão; e um sistema impessoal, cuja estrutura integra e dissimula a angústia
caracteristica daquela época, inerente ao destino da alma individual e aos problemas do
Além. Vale dizer que esses novos motivos de inspiração encontram no plotinismo sorte
muito diferente da que lhe reserva o cristianismo nascente, mas, em compensação,
singular- mente próxima do pensamento religioso da India, tal como se exprime nos
Upanixades. Pois, se o homem de Plotino se liga, pela virtude e pela razão, aos
fundamentos mais profundos do ser, não é concebido "como impér io dentro dum
império"; a ação divina não se exerce apenas sobre ele, pois ele não possui o privilégio
exclusivo de um alma que Plotino atribui igualmente ao universo e aos astros. A essas
caracteristicas, pelas quais tal pensamento diverge da psicologia dos apologistas cristãos,
acrescenta-se uma atitude aristocrática à qual repugna implorar uma salvação que o
homem deve obter para si por meio da virtude fundada na ciência, única revelação divina.
Essa virtude é adquirida por esforço solitário, pelo poder de meditação, por contato com o
Um, que não implica Salvador, nem apelo a Deus. E pela própria
necessidade de sua natureza que o Um, como a luz, distribui seus benefícios; e a alma,
em conseqüência de sua identidade fundamental com ele, vai encon trá-lo no mais
profundo de seu ser, como o sujeito puro que a constitui como ser autônomo e
independente. Sob esse aspecto, o plotinismo, que desse modo assinala, em relação à
tradição clássica da Grécia, uma passagem rumo a uma interioridade mais exigente,
tendente a estabelecer o primado dos atos espiri tuais sobre todas as ciências objetivadas,
exerceu, mediante a cultura cristã, enorme influência no espiritualismo e no ide do
Ocidente.
78

CAPÍTULO X
A PSICOLOGIA CRISTÃ
1. A nova intuição do mundo
2. São Paulo
3. A psicologia dos apologistas
4. Tertuliano
5. Clemente de Alexandria
6. Orígenes
1. A nova intuição do mundo
Assinalei, a propósito de Filo e de Plotino, a crise profunda que atra vessa o mundo
mediterrâneo nos séculos em que nasce o cristianismo, quando uma espécie de febre e
nostalgia das almas inquietas se traduz por aspirações vagas, por uma sede de
purificação, de redenção e salvação, a que correspon dem todas as espécies de práticas
religiosas, teúrgicas, e até mágicas.
O que caracteriza o surgimento da intuição cristã nesse clima contur bado é a imensa
esperança ligada à boa nova, é o anúncio do fim dos tempos e a chegada do Reino de
Deus, o apelo a uma conversão radical, para uma plenitude de amor para com o Pai e
suas criaturas, na "fé, esperança e cari dade". Trata-se de coisa inteiramente diferente da
construção de sistemas explicativos a respeito do mundo desde então iluminado. Trata- se
de nma experiência de vida nova, acessível a todos, de uma comunhão fraternal no fervor
do desligamento do mundo e de suas servidões, para desde já ter acesso ao Reino de
Deus.
O racionalismo, já profundamente comprometido pelas especulações alexandrinas, dá
lugar a um espiritualismo exaltado; a exigência científica cede lugar à da fé transportada
nas asas da imaginação. Esse motivo inspi rador, despertar prodigioso da subjetividade
humana, embora seguido de 'ima história repleta de luta e de sangue, dá à humanidade
um sentido inédito da vida moral, a certeza vivida de um renascimento espiritual do
homem liberto do jugo das paixões terrenas.
79
O drama da história posterior é o da integração dessa nova intuição na estrutura social; é
o preço de seu triunfo sobre as outras religiões de mistérios apreciadas no Império, e
sobre o espírito crítico alimentado por longa tradição helênica. De início, na ambiência
passional que prevalece, essa tradição é negligenciada, e até desprezada. Pois cumpre não
esquecer que os homens viviam, então, na crença, inseparável naquela época das idéias
cristãs, da parusia, da segunda vinda de Cristo glorioso e do fim do mundo. Declarará
São Paulo que Cristo o havia enviado para anunciar o Evan gelho "não em sabedoria de
palavras, para que a cruz de Cristo se não faça vã". "Porque, como na sabedoria de Deus
o mundo não conheceu a Deus pela sabedoria, aprouve a Deus salvar os crentes pela
loucura da pregação. Porque os judeus pedem sinal e os gregos buscam
sabedoria; mas nós pregamos a Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus, e
loucura para os gregos. Porém para os que são chamados, tanto judeus como gregos,
lhes pregamos a Cristo, poder de Deus, e sabedoria de Deus!" (1 Cor., 1.)
Não cabe aqui nos determos longamente nos problemas ligados ao apa recimento e ao
primeiro desenvolvimento do cristianismo, para contar como e em que medida as
religiões de mistérios (celebrados especialmente em Tarso, cidade natal de São Paulo,
ligadas ao culto de Mitra, e das quais outras formas, mistérios de Atis e de Isis,
desfrutavam de grande favor no Império Romano na quela época) foram incorporadas à
nova religião; como a mensagem cristã origi nal, vivida no seio da primeira comunidade
cristã, engendrou um novo culto, em torno da morte e da ressurreição de Cristo. Basta
lembrar que o pensamento que sustém essa cristalização progressiva do cristianismo se
resolve, com tudo quanto tomou ao passado, numa efervescência onde abundam as
contradições entre as tendências judaízantes e helenísticas; e recordar que o paulinismo
exerceu incomparável influência nesse processo.
2. São Paulo
Encontra-se, no grande apóstolo, a fonte de todas as doutrinas relativas à alma do ponto
de vista da redenção cristã, as quais acentuam as questões da origem e do destino da
alma, as idéias de uma vida eterna, da vitória sobre o pecado pelas obras e pela Graça, e
da supremã dignidade da vida em Jesus Cristo. Breve exame de suas idéias é, por
conseguinte, rico de ensinamentos para todo o período patristico, onde se verifica um
esforço obstinado para sistematizar o que ele exprime sob a forma de fulgurantes
intuições. Filho de rico fariseu, aquele que súbita conversão iria transformar em ardente
apóstolo da nova fé, era judeu de caráter e formação. O elemento de ruptura, em relação
à tradição de que provinha, reside essencialmente na universalização da mensagem
proclamada pelo "Apóstolo do Gentio" e a superação da lei pela nova fé. "Antes que a fé
viesse, estávamos guardados debaixo da lei, e encerrados para aquela fé que se havia de
manifestar. De maneira que a lei nos serviu de aio para nos conduzir a Cristo, para que
pela fé fossemos justi ficados. Mas, depois que a fé veio, já não estamos debaixo de aio.
Porque todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus. Porque todos quantos fostes
batizados em Cristojá vos revestistes de Cristo. Nisto não há judeu nem grego; não há
servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque todos vós sois um em Cristo Jesus."
(Gol., 3.)
A espera do Messias pelo povo eleito é recusada pela afirmação triun fante: o Messias
chegou e é o filho de Deus. Ele se encarnou entre os homens e foi crucificado, para que
em sua vestimenta de carne todo o pecado dos homens seja crucificado e resgatado; e
todos foram resgatados por seu sacri fício, os gentios como os filhos da promessa. Para
Paulo, que não conheceu Jesus vivo, a morte de Cristo constitui o fundamento essencial
da salvação que ele anuncia aos homens: "Se não há ressurreição de mortos, também
Cristo não ressuscitou; [ logo, é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé". (1 Cor.,
15.) E sua pregação do evento tem um odor gnóstíco:
" falamos a sabedoria de Deus, oculta em mistério, a qual Deus ordenou antes dos
séculos para nossa glória [ (1 Cor., 2.)
Para iniciar os ouvintes na "sabedoria", Paulo adapta o ensino ao grau do
desenvolvimento espiritual desses ouvintes. Aos menos avançados, aos fracos pela carne,
os que chama "crianças em Cristo", dispensa um ensino elementar, por ele comparado ao
leite, mais assimilável por essas naturezas frágeis do que uma nutrição mais sólida que
não poderiam suportar, e reser vada por ele aos "homens espirituais". (1
Cor., 3.) Trata-se de adquirir, por um grande combate interior, essa inteligência
requerida "para conhecimento do mistério do Deus e Pai, e do Cristo, no qual estão
escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência". (Co!., 2.) "Conhecer Cristo",
no sentido de uma realidade que faz recordar estranhamente o Lógos de Filo:
"O qual é imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criatura; porque por ele
foram criadas todas as coisas que há nos céus e na terra, visíveis e invisíveis, sejam
tronos, sejam dominações, sejam principados, sejam potestades: todas as coisas foram
criadas por ele e para ele. E ele é antes de todas as coisas e todas as coisas subsistem por
ele. é o principio e o primogênito dentre os mortos, para que entre todos tenha a
preeminência. Porque foi do agrado do Pai que toda a plenitude nele habitasse, e que,
liaven do por ele feito a paz pelo sangue da sua cruz, por ele reconciliasse consigo
mesmo todas as coisas, tanto as que estão na terra como as que estão nos céus." (Co!.,
1.)
Paulo admite, aliás, um conhecimento de Deus pelas suas obras: "Por que as suas coisas
Ede Deus] invisíveis, desde a criação do mundo, tanto o seu eterno poder como a sua
divindade se entendem, e claramente se vêem, pelas coisas que estão criadas" (Rom., 1).
e os homens são tanto mais inescusáveis porque se afastaram dele. Sendo assim, o
sacrifício de Cristo é o aconteci mento capital que subverte todos os dados da questão.
Pois a morte, no suplício por ele sofrido, não atingiu senão a vestimenta de carne que
ele havia assumido, "carne semelhante à nossa carne de pecado" (Rom., 8), e o pecado
foi pregado com a carne sobre a cruz "a fim de que a justiça prescrita pela lei fosse
cumprida..." (Rom., 8). "Aquele que não conheceu pecado, fé-lo peca do por nós, para
que nele fôssemos feitos justiça de Deus." (II Cor., 5.) Tudo, por isso, mudou: "Nosso
homem velho foi com ele crucificado" (Rom., 6). E "se alguém está em Cristo, nova
criatura é: as coisas velhas já passaram; eis que tudo está feito novo" (11 Cor., 5). Nova
criatura "em quem habita o espí rito de Deus que ressuscitou Jesus" (Rom., 8), liberta
desse "corpo de
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81
3. A psicologia dos apologistas
morte", dessas "obras da carne", que são a impudicícia, a impureza, o desre gramento,
as querelas, os ciúmes, as animosidades, as disputas, as divisões, as seitas, a
embriaguez, a inveja... (Rom., 7; Gal., 5.) Agora, "libertados do pecado, e feitos servos
de Deus, tendes o vosso fruto para santificação, e, por fim, a vida eterna. Porque o
salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna, por Cristo
Jesus nosso Senhor" (Rom., 6).
Por isso, a pregação paulina é um constante apelo ao Espírito, dispen sador da graça
divina e de todos os &ins que podem ser outorgados à alma crente. "Deus nos fez
capazes de ser ministros do novo testamento, não da letra, m do espírito; porque a lçtra
mata, e o espírito vivifica." (II Cor., 3.) É preciso tornar-se "a morada de Deus em
Espírito" (Ef., 2), estar "plenos do Espírito" (Ef., 5), "andar em Espírito" (Gal., 5),
preparar-se interiormente para a intervenção do Espírito; "A graça do Senhor Jesus
Cristo, e o amor a Deus, e a comunhão do Espírito Santo sejam com todos vós" (II Cor.,
13). Se a alma, no sentido de princípio vital, é comum aos homens e aos animais; se o
homem natural, o homem de "carne", com seus pensamentos, seus desejos, sua vontade
e, até, sua razão, é uma criatura psíquica mortal, o espírito é a instância mais alta, que nos
permite aproximar-nos de Deus. "E o mesmo Deus de paz vos santifique em tudo; e todo
o vosso sincero espírito, e alma, e corpo, sejam conservados irrepreensíveis para a vinda
de Nosso Senhor Jesus Cristo." (1 Tess 5.) Com Cristo, o homem tem acesso ao
"espírito vivif i cante". "Por isso está escrito: "O primeiro homem, Adão, foi feito em
alma vivente." O último Adão em espírito vivificante. Mas não é primeiro o espiri tual,
senão o animal; depois, o espiritual. O primeiro homem, da terra, é terreno; o segundo
homem, o Senhor, é do céu. Qual o terreno, tais são também os terrenos; e, qual o
celestial, tais também os celestiais. E, assim como trouxemos a imagem do terreno, assim
traremos também a imagem do celestial." (1 Cor., 15.) E desde então, o destino do
homem está todo inscrito na curva que vai de Adão a Jesus, do pecado original a seu
resgate e à redenção, e apenas 'conta a alta vocação que lhe vale sua essência moral resga
tada: "Quanto a nós, não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito que provem de
Deus, para que pudéssemos conhecer as coisas que Deus nos deu por sua graça. E delas
não falamos com as palavras de sabedoria humana, mas com as que o Espírito Santo
ensina, empregando linguagem espiritual para as coisas espirituais. Mas o homem natural
não compreende as coisas do Espírito de Deus, pois lhe parecem loucura, e não pode
entendê-las, pois é espiritualmente que delas se julga." (1 Cor., 2.) Apreende-se, assim, a
alma humana, como sede de uma experiência inefável: experiência da fé que ultrapassa
todo conhecimento fundado no critério grego da evidência racional. Tal como o espírito
do primeiro homem veio de Deus, o segundo nascimento do espírito resulta de um
influxo do Espí rito Santo que a fé implora. O que não se pode atingir pelo intelecto, nem
pela vontade entregue a si mesma, o coração puro recebe pela graça de Deus. A
introspecção e a prece, a exaltação da vida interior substituem, assim, intei ramente, a
observação e a análise. Introspecção fixada sobre a exigência de uma conduta em relação
com o destino eminente do homem resgatado, em busca de iluminação, impregnada de
uma ética na qual o impulso de amor é superior a todos os decretos, emanem eles de
especulação racional ou de moralismo abstrato.
A psicologia, num contexto como esse, está inteiramente subordinada a preocupações
teológicas. Em seu aspecto concreto, é inseparável de uma experiência religiosa, e o
inconveniente é não apenas empobrecê-la - o que é inevitável - mas desnaturá-la se
estudada abstratamente, sem referência permanente a esse caráter essencial. Pois todas as
elucidações que se podem encontrar nessa época, nos defensores da nova fé, servem para
justificar suas crenças quanto à origem e ao destino da alma. E isso na convicção de que
as doutrinas dos filósofos, neste ponto como nos outros, são errôneas - para os inclinados
a considerar suas teorias com o máximo de indulgência - já pelo simples fato de que eles
não se beneficiaram da luz dispensada pela Reve lação. De maneira geral, com respeito
ao pensamento antigo, trata-se de refutar sobretudo a idéia da preexistência da alma e de
sua eternidade, de opor-se, por exemplo (eliminando-se desde logo Epicuro), à idéia -
platônica e estóica - de uma alma cósmica da qual a alma individual seria apenas parcela,
para afirmar que esta última, nascida de ato divino, é livre e, pois, responsável; e que,
sendo livre e responsável, é justo que espere
recompensa ou punição de Deus. E assim que a imortalidade individual, fonte de alegria
para os que afrontam as perseguições contra o cristianismo, vem a tornar-se a viga mestra
das teorias que ele engendra.
4. Tertuliano
Dentre as obras dos primeiros apologistas cristãos, a de Tertuliano, que trata da alma em
função do que ele compreende da Revelação cristã, é típica das novas condições culturais
e das dificuldades de uma nova síntese. Ela visa a refutar as heresias gnósticas e
platônicas, e isso de modo um pouco descon certante, pois as novas "idéias-forças"
por conciliar (criação, pecado original, liberdade, imortalidade) nela se avizinham das
teorias filosóficas herdadas dos gregos, em particular dos estóicos, para a elas justapor-
se mais do que integrar-Se.
Seu tratado De Anima (1), escrito após 203, composto de 58 capítulos, é dos mais
notáveis da literatura cristã de expressão latina. Nele, o autor discute tudo: os erros dos
sentidos, as diversas dificuldades da alma, e invoca a seu favor, ao lado do testemunho
dos filósofos e das Santas Escrituras, o da competência particular de inúmeros médicos:
Hipócrates e seu discípulo Diocles de Caristo, os anatomistas alexandrinos Herófio e
Erasístrato e, muito particularmente, Sorano de Efeso, contemporâneo de Adriano. Em
um prólogo, afirma Tertuliano a necessidade de combater as opiniões, sobre a alma, dos
filósofos pagãos, esses "patriarcas de todos os heréticos". Se ele próprio filosofa, é a
contragosto, pois apenas tem valor, a seus olhos, a fé cristã, que deve ser aceita em bloco.
Atribui-se-lhe, geralmente, a profissão de fé: Credo quia absurdum, para aí ver, em
comparação com a sentença de Santo Anselmo: Creio a fim de compreender, como que
o símbolo de uma das duas atitudes fundamentais
(1) EdiçãoJ. H. WASZINK, Amsterdã, 1947.
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dos pensadores da Idade Média. Embora Tertuliano jamais tenha pronun ciado
semelhante fórmula, ela exprime bem a tendência do ardente sermo nário que
efetivamente declarou: "O. filho de Deus foi crucificado e disso não me envergonho,
porque disso deve-se ter vergonha. E que o filho de Deus esteja morto, é perfeitamente
crível, pois é inepto. E que, uma vez enterrado, tenha ressuscitado, eis o que é certo,
pois é impossível (1)",
Contra a teoria platônica da eternidade da alma, invoca Tertuliano a autoridade da Bíblia
para afirmar que ela teve um começo. Sopro de Deus, Ele a criou à sua imagem, flatus
factus ex spiritu Dei (De An., op. cit., pág. 15, 1-10). Deve-se, por isso, ver nela um
princípio ativo, de origem divina; e não duvidar de que será julgada por seus atos, pois é
plenamente responsável( 2). Como é, a um tempo, princípio vital e princípio espiritual,
sua natureza se apresenta dúplice; não se sabe bem, contudo, como co ncebê- la, pois as
idéias de Tertuliano acabam, em suma, por declarar que é, e não é, material. Ela é esse
homem interior de que fala São Paulo, envolta no homem exterior que é o corpo.
Constituída de um elemento muito sutil, tênue, volátil, tão brilhante que sua luz viva no-
lo torna invisível, sua corporeidade é prova da pela interação entre ela e o corpo,
especialmente pelo fato de que a sabe doria não lhe bastaria à vida terrestre e um
alimento mais tangível lhe é indis pensável para isso. Por outro lado, a própria Bíblia
incita-nos a admiti-lo, tal como o testemunha, por exemplo, a história de Lázaro. Além
disso, há as visões dos inspirados. Não viram eles a alma com os olhos do espírito como
forma etérea? E o caso daquela irmã montanista, favorecida por uma visão durante o
santo sacrifício, a quem a alma apareceu "não desprovida de consis tência e de forma,
mas aparentemente suscetível de ser tocada, delicada, luminosa, de cor azul e em tudo
semelhante, exteriormente, ao corpo huma no" (DeAn., IX).
Em suma, deve-se ver na alma como que um sopro (flatus), cuja sede é o coração, sopro
disseminado por todo o organismo, a formar um ser consti tuído, com seus órgãos,
tendo o próprio intelecto por instrumento. Desde Adão ela é transmitida pelo sêmen no
ato da geração, momento em que lhe é atribuído um sexo. O fato de assim destacar-se da
alma paterna explica, ainda, a hereditariedade de seus caracteres. Segundo Tertuliano,
que descre ve as fases desse processo, anjos zelam pela formação do embrião no seio
materno. Se o pecado original é assim transmitido pelos pais, o pecado indi vidual se liga
ao desenvolvimento da alma enquanto agente livre. Diferente do corpo, ela permanece
ativa durante o sono, continuando a vida que lhe é própria. Tertuliano compara o sono à
morte e o despertar, à ressurreição. Durante o sono, a alma desfruta de liberdade
temporária, que conhecerá como definitiva ao abandonar o corpo. No entanto, Tertuliano
declara tam bém que, após a morte, as almas, com exceção das dos mártires, devem
esperar no inferno a ressurreição dos corpos. Para explicar a natureza dos sonhos, faz
intervir o ato de Deus, uma intervenção de demônios ou uma
intensa concentração do espírito, e pensa que a alma, no êxtase, é como que projetada
para fora de si mesma.
(1) De C Christi. cap. V, citado por É. GILSON. La philosophie au Moyen Áge, Payot,
Paris. 1947.
(2) Também emAdc. Marcio,,em, 11,5; P. L. iii 340.
5. Clemente de Alexandria
Em Clemente de Alexandria, o problema de conciliação entre as teorias filosóficas dos
pagãos e as idéias fundamentais da nova fé parece essencial, encarado, porém, com
espírito inteiramente diferente do de Tertuliano. Seu esforço dá início, verdadeiramente, à
integração progressiva da filosofia grega e do Antigo Testamento; da primeira, como
fruto da razão natural antes da Revelação; do segundo, na medida em que prepara o
Novo Testamento. Clemente era homem de grande cultura, dado ao ecletismo, e sua obra,
espe cialmente os Stromata (Miscelâneas) abunda em referências de toda espécie: conta-
se que teria citado não menos de seiscentos autores. Para ele, também, de acordo com a
doutrina bíblica, a alma é encarada como unidade, de origem dupla: pois é, em parte,
racional ou celeste, em parte, irracional ou terrestre.
No primeiro homem, Adão, o ato de Deus criou uma alma com dupla natureza. Ela foi
"soprada do alto no rosto do homem" (5 str., § 94, 3). A alma irracional ou terrestre se
aparenta ao princípio vital que os animais tam bém possuem, e se transmite de pais a
filhos. Como fusão dos elementos do mundo material, é inseparável do sangue e do
sêmen. Com sede no corpo, ela arbitra a alma racional. Esta tem por caráter essencial
uma razão intima- mente aparentada com a razão divina, que constitui o fundamento e a
possi bilidade da ascensão do homem a Deus.
Essa psicologia de Clemente se insere, evidentemente, numa concepção ética, cujo
aspecto filosófico muito deve a Platão, aos estóicos e a Filo. Nela, a Sabedoria
desempenha papel de primeiro motor, fonte do movimento da alma. E idêntica ao Logos,
à Razão, ao Verbo, a Cristo encarnado, e Clemen te a denomina, em seu Discurso de
exortação aos gregos, "o Logos de verdade e de imortalidade, regenerador do homem...
destruidor da corrupção". No homem, o Logos é sabedoria derivada, O progresso da alma
humana dá-se no sentido de uma preparação para receber a comunicação dessa divina
Sabe doria, do espírito divino, fonte única de verdade absoluta e de conhecimento. Por
ela é que a alma recebe a semente do espírito e se torna de natureza espiritual. O Verbo, o
Logos, Filho de Deus, potência do Pai, é eterno como Ele. Possui o hdmem, assim, por
essa sabedoria, a semente da natureza divina e é capaz de elevar-se à semelhança de
Deus, O processo da vida moral é, pois, uma purificação da alma com vistas a seu
retorno a Deus. Clemente não pensa que a carne deva ser mortificada, pois considera a
união entre alma e corpo como natural em si, querida por Deus. Trata-se antes, para o
homem, de discipliná-la, por esforço de harmonização, de santificar sua vida, seu espírito
e seu corpo. A procriação é instituição necessária à mantença da criação, lei essencial da
natureza (3 str., § 103, 1).
A harmonia, esse valor mais alto segundo Clemente, implica desen volvimento completo
da alma, que organiza a vontade, o conhecimento e a ação em perfeita unidade. Sob a
influência simultânea do platonismo e do estoicismo, a alma irracional é concebida por
ele como intermediária entre os objetos dos sentidos e a razão. Por esta última, que o
distingue do animal, o ho mem é dotado de uma espécie de impulso para o
conhecimento, de uma capaci dade de discriminação, por meio da qual pode livrar-se da
servidão dos sentidos e das imagens, e assim de uma predisposição à virtude (6 str., §
95, 5).
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Em oposição às idéias dos gnósticos, Clemente não considera, portanto, o desejo mau em
si; antes, à maneira de Filo, entende que é moralmente neutro; o essencial parece-lhe ser a
orientação que a vontade dá ao comporta mento. No assentimento dado ou recusado por
esta vontade é que reside sua liberdade, e ela é que pode conduzir o homem ao pecado.
Clemente assinala o descaminho da vontade mercê de imagens perigosas, as seduções das
potên cias do mal, e insiste muito menos no pecado original do que no pecado como
triunfo da obscuridade sobre a luz, da ignorância sobre o conhecimento. A ignorância do
indivíduo é, no início da vida, quase completa, colocado como está num mundo de
desejos e de imaginações, sem o recurso 'da razão. O progresso do conhecimento é, aliás,
limitado, e certo grau de certeza prática deve ser aceito. Percebeu Clemente muito bem
que todo ato do espírito impli ca certa crença, manifestada já na percepção, e que nossa
vida mental tem como ponto de partida um assentimento à verdade. Cumpre, necessaria
mente, aceitar algo; a própria liberação da dúvida é uma vontade de crer. Por ela afirma o
homem sua crença em alguma coisa e, assim, na própria verdade, e, depois, em Deus, O
exercício da fé apresenta-se, assim, de certa maneira, como substituto do conhecimento, e
a vida perfeita em Deus como a fé torna da perfeita na contemplação da verdade eterna.
Tem-se observado que Clemente, por algumas de suas observações sobre o
conhecimento, antecipa Agostinho e
Descartes.
Certos homens permanecem na fé. Outros se preocupam em compreen der plenamente o
que ela implica. Atingem assim a Gnosis, a perfeição do caráter humano. A alma não é
incorruptível por natureza. Pela fé, pela justiça; pelo conhecimento e pela graça de Deus é
que adquire a imortalidade.
6. Origenes
Embora sua doutrina tenha sido finalmente condenada, Orígenes, discípulo de Clemente
de Alexandria e polemista apaixonado, morto em 253, foi dos mais ardentes defensores
da nova fé. Utilizou, para isso, argumentação tomada sobretudo ao legado platônico, com
uma espécie de culto da razão, entendendo embora a razão de maneira mítica. Mal
caberia duvidar de que sua obra tenha dado ao pensamento cristão, no início do século II
impulso vigoroso e decisivo. A psicologia que se pode extrair de seu tratado Dos Prin
ct'pios( é antes ambígua, pelo fato de referir-se ora à alma como princípio de vida,
inseparável do sangue, ora como razão degradada, incorpórea e eterna, inteiramente
distinta do corpo( e cuja imaterialidade é provada por sua capacidade de conhecer
aquilo que é imaterial.
O mundo foi criado do nada pelo Verbo de Deus, em quem se encontram as formas
eternas de tudo quanto existe. Do Verbo, que é o Filho de Deus, outros verbos se
originaram: criaturas espirituais livres. Houve, então, uma primeira Queda. Po is, certos
espíritos permaneceram fiéis a Deus, enquanto outros d'Ele se desviaram. Dessa atitude
diferente das criaturas de Deus
(1) DePrincipiis, part. secção 11.8,5.
(2) Contra CeLtum, VII, 32. (Sabe-se que esta obra é um requisitório contra o Discurso
cerdadeiro do filósofo CELSO, de extrema importância para a história das idéias, pelo
que revela da repulsa que experimenla um homem, seguramente um dos mais cultos de
seu tempo, arraigado na tradição grega, pelos conteúdos ideológicos implicados na
Revelação judia e na cristã, que lhe parecem ridículas fábulas.)
decorre uma hierarquia dos espíritos; já no mundo dos Anjos, distribuídos por essa
hierarquia segundo seu grau de elevação; vêm, a seguir, os homens, espí ritos
encerrados em corpos; finalmente, os espíritos obstinados no mal, tornados demônios.
Os espíritos humanos não estavam, pois, primitivamente, destinados a animar corpos.
Permanecem capazes de resgatar-se, de salvar-se, por um ciclo de reencarnações
purificadoras.
Pensa Orígenes que a história desses espíritos é a de seus esforços para reencontrar a luz
primitiva, fonte de calor; pois, para ele, o fogo intervém como o foco de que as almas se
destacaram e. assim, se degradaram e resfria ram. A alma de Deus é fogo. O que dele se
afasta torna-se frio, materializa-se. Orígenes tem do fogo uma concepção mística, pois
nole vê o que tudo destrói, exceto o que é puro. A alma sensível se apresenta, assim, para
ele, como uma espécie de meio-termo entre a matéria e o espírito puro. Sobre a origem da
alma, hesita em pronunciar-se entre a transmissão pelos pais ou a vinda de fora.
Considerada como princípio de vida, parece que começa com o corpo; e seria, assim,
como que um modo transitório de ser, enquanto a alma superior ou espiritual viria de
fora. Para a liberação que constitui o caminho de sua salvação, deve a alma elevar-se, de
início, pela dialética, do conhecimento das coisas sensíveis ao das
verdades intelectuais e morais.
Para essa elevação, o livre arbítrio é essencial. Admitindo embora que certos animais são
movidos de dentro para fora, por sensações e imagens, atribui-lhes Orígenes essa
capacidade numa direção determinada. O homem, ao contrário, pela razão, se livra da
imaginação e dos desejos, e é capaz de escolher. Pode submeter a controle suas
experiências sensíveis, dar ou recusar o assentimento conforme a direção que queira
atribuir à conduta. Essa liber dade fundamenta a vida moral. As condições exteriores por
si sós nada podem. E a adesão do espírito que as transforma em móveis de ação. Se a
tentação é fruto das circunstâncias, o pecado é o ato de usar a ocasião. Como aí não
existe coerção, o vício e a virtude são livres, mas Deus assiste os homens em seu esforço
de liberação. Com Orígenes, o homem interior aparece sob a forma de razão, cujo
esforço no sentido da verdade conduz a uma fonte de inspiração. Ele encara esse
resultado antes como um estado de extrema con centração do que de êxtase, como uma
espécie de voz interior ou, ainda, de comunhão estabelecida entre a razão divina e a
razão humana, quando esta se recolhe dentro de si mesma. Orígenes considera que todo
homem pode per suadir-se. por experiência, de que é o autor responsável da adesão ou
da recusa que dá ao que lhe trazem os sentidos e a imaginação. O que admira em
Sócrates (que conhece pelas Memoráveis, a Apologia e o Criton) é essencial- mente o
caráter excepcionalmente temperado, a nobreza moral.
Origenes opõe opneürna às realidades corporais. Parece admiti-lo como sustentáculo
material de que a alma humana situada a meio caminho na hierarquia dos seres, entre o
divino e os existentes temporais - tem necessi dade após a morte para subsistir; e isso
com a preocupação de melhor assina lar a transcendência de Deus, que existe sem
suporte material.
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CAPÍTULO XI
SANTO AGOSTINHO
1. O contexto metafísico
2. O homem do pecado original
3. A evidência imediata da alma
4. Os graus e as funções da alma
5. Os sentidos, a razão, a memória
6. A influência do agostinismo
Toda a reflexão de Santo Agostinho, cuidosa de esclarecer tanto quanto possível as
verdades reveladas, se volta para Deus, ou para a alma com vistas a seu acesso a Deus( e
sua psicologia emerge constantemente do âmago de uma metafísica intensamente vivida.
Metafísica inspirada sobretudo em Ploti no, mas um Plotino evidenteme nte corrigido
pelos dogmas da nova fé. Essa correção exige especialmente a rejeição da alma como
Alma do mundo e do ciclo das reencarnações. Todo-poderoso, onisciente, Deus tudo
criou pelo seu Verbo, ex nihilo; a própria matéria e o tempo em que se desenvolve sua
obra. Infinitamente justo e bom, o mal não lhe poderia ser imputado, e deve-se atribuir
sua existência à desobediência inicial do gênero humano. O pecado original é admitido
por Santo Agostinho com trágica seriedade e sua psicolo gia deve ser entendida em
constante referência, explícita ou implícita, a esse evento que interessa, como o dogma
trinitário, a todos os passos de seu pensa mento, quando trata do psiquismo humano. Se
sua atitude a respeito desse pecado original sofre flutuações, não se pode duvidar de que
tenha chegado finalmente, no ardor de sua reação ao pelagisrno, a reduzir em teoria até o
paradoxo o papel da cooperação humana com a obra da salvação, para acentuar sempre
mais o da Graça, dom gratuito de Deus, socorro ao qual o homem deveria até a fé que o
anima e o amor do qual se mostra capaz. Entre gue a si mesmo, o ser humano não
poderia, portanto, encontrar salvação, pois
(1) Após a fervorosa prece pela qual começam os Soliloquiov, sua rasdo lhe pergunta o
que ele deseja saber:
- Tudo quanto pedi em minha prece. - Resuma-o em poucas palavras. -. Conhecer Deus
e a alma, eis o que desejo. -- h nada mais? - Absolutamente nada mais.
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nem a Redenção nascida do sacrifício de Cristo seria capaz de assegurá-la. Agostinho,
como Pascal mais tarde, condena severamente, nesse ponto, o orgulho dos estóicos. Que
suas idéias sobre a Graça possam conciliar-se com as que enuncia sobre o livre arbítrio, é
questão que aqui não cabe examinar('). Trata-se apenas de recordar esses aspectos
metafísicos do pensamento agosti niano, que constituem o quadro permanente de sua
psicologia.
Uma página das Confissões, em que Agostinho evoca seu descobri mento do
neoplatonismo, antes da conversão, é significativa da maneira pela qual aborda o
problema da alma; num momento de entusiasmo, inquirindo- se sobre a faculdade
própria do homem "de apreciar a beleza dos corpos, quer celestes, quer terrestres", foi
levado a descobrir "por sobre seu espírito mutá vel", a eternidade "imutável e
verdadeira":
por graus, elevei-me dos corpos à alma que sente por intermédio dos órgãos; e, daí, a
essa força interna que os órgãos dos sentidos informam das coisas e da qual os animais
são também capazes; e daí, ainda, a esse poder raciocinante que se submete e julga as
percepções dos órgãos sensoriais. Mas esse poder, por sua vez, reconhecendo- se em
mim sujeito a mudança, elevou-se à inteligência de si próprio.., arrancou meu
pensamento dos liames do hábito, separou-se da multidão de fantasmas contraditórios,
para descobrir que luz a inundava quando gritava.., que se deve preferir o que não pode
mudar ao que é sujeito a mudança, e donde ela tirava o conhecimento do próprio
imutável, pois se dele não tivesse tido alguma noção, não o teria, por certo, de maneira
alguma, preferido ao mutável. E assim chegou, com o bater de olhos frementes, até ao
próprio Ser. Foi então que "vossas perfeições invisíveis se manifestaram à minha inte
ligência mediante vossas obras"; nelas, porém, não pude fixar os olhos; minha fraque za
recuou e fui devolvido a meus hábitos. Desse instante, não trouxe comigo mais do que
amorosa memória que, por assim dizer, lastimava o perfume dos manjares que ainda
não era capaz de comer." (Conf., VI 17.)
2. O homem do pecado original
Vê-se que a seqüência de passos aqui evocada retoma, em substância, a tradição
platônica. Trata-se de desprender-se da sedução exercida pelas aparências sensíveis, de
remontar da simples existência ao inteligível, do conhecimento do mundo ao das idéias
contidas no espírito de Deus. Mas esse retorno, em Agostinho, se torna ainda mais
difícil por obra do pecado origi nal. Pois, o homem, desde então, lhe carrega os traços,
que conservam nele uma espécie de inclinação habitual para o pecado. Para o pecado,
isto é, essencialmente para a concupiscência que nos arrasta às coisas e aos seres num
movimento egoísta, por um desejo de posse e de prazer, em lugar de amá-los nesse
Deus que os criou. Essa avidez aparece desde o nascimento, na criancinha que se lança
gulosamente ao seio nutriente, ou visa a dominar com caprichos os que a rodeiam. A
alma infantil não é, portanto, inocente:
"Vi e observei uma criança ciumenta: ainda não falava, e olhava, pálida e com
maus olhos, seu irmão de leite. Quem ignora esse fato? Pretendem as mães e as amas
conjurar essa inveja por não sei que encantos. Dir-se-á ser inocência, quando a fonte de
(1) Deve-se notar que o De Libero Arbilrio de AGOSTINHO, onde a necessidade da
Graça mal aparece. foi terminado ali por 395, e que a doutrina pelágica se disseminou
na Africa apenas em 410. uma quinzena de anos
mais tarde, portanto.
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leite corre superabundantemente, não admitir partilha com um irmão desprovido de tudo e
que não pode sustentar-se a não ser por meio desse alimento?" (Conf., 1, 7.)
Antes do pecado, quando não existiam nem a dor nem a morte, a alma racional exercia
sobre as paixões perfeito domínio. Mas, desde então, surda resistência torna difícil esse
domínio, pois nossa inteligência se obscureceu, nossa vontade foi enfraquecida.
No meio das tormentas antecedentes à sua conversão, Agostinho, que experimentou em
si mesmo a resistência dos instintos aos decretos da vontade, reconhecidos como justos,
interroga-se ansiosamente sobre 'os obscuros castigos infligidos aos homens e as
tenebrosas misérias dos filhos de Adão":
"A alma dá ordens ao corpo e é obedecida imediatamente. A alma dá ordens a si mesma e
encontra resistências. A alma dá ordem à mão para mover-se e é uma opera ção tão fácil
que mal distinguimos entre ordem e execução. No entanto, a alma é alma e a mão é
corpo. A alma dá à alma a ordem de querer; uma não se distingue da outra e, contudo, ela
não age. Donde provém esse prodígio? Qual sua causa? Ela lhe dá a ordem, digo eu, de
querer; não a daria se não o quisesse, e o que ela ordena não se faz."
Se a vontade estivesse em sua plenitude, conclui,
"ela não se ordenaria que fosse, ela já seria." Existe aí "uma doença da alma.., elevada
pela verdade, mas arrastada pelo peso do hábito." (Conf., Vil!, 9.)
Não é, pois, o mundo exterior como tal que constitui para a alma objeto de perdição,
uma vez que foi criado por Deus. Agostinho, ao contrário, louva-lhe a ordenação
harmoniosa, as perfeições visíveis e invisíveis, a bela hierarquia que demonstra, e
admite que as criaturas humanas, por mais culpadas e decaídas que sejam, constituem
nele a mais alta dignidade. Existirá algo de mais nobre, do ponto de vista das coisas
criadas, pergunta ele, do que um corpo de carne vivente, animado por uma alma
racional? (De Libero Arbitrio, III, 27.) A alma, enquanto alma, está investida de uma
dignidade que ultrapassa a dos corpos. Isso desde seu nascimento e seu começo:
"Com efeito, não é um bem de valor medíocre não apenas ser alma cuja natu reza já
ultrapassa todos os corpos, mas também ser capaz, com a ajuda do Criador, de cultivar-
se a si mesmo e, por um zelo piedoso, poder adquirir e possuir as virtudes por meio das
quais se fica livre dos tormentos da dificuldade e da cegueira do erro.
Se assim é, a ignorância e a dificuldade para essas almas, no momento de nascer, não
são mais o castigo do pecado, mas convite ao progresso e início de perfei ção. Pois não
é pouca coisa haver recebido, antes de qualquer boa ação meritória, um juízo natural por
meio do qual se prefere a sabedoria ao erro, o repouso à dificuldade, de modo a chegar a
eles não desde a nascença, mas mediante trabalho." (De Libero Arbítrio, 111, XX, 56.)
3. A evidência imediata da alma
A alma apanhada em sua estrutura essencial, apta a elevar-se, pelo menos em certos
pontos, às certezas invariáveis da razão, da moral e da
ciência, é para Agostinho a realidade primeira (Solilóquios, De Quantirate Anirnae).
Quando se abalança a descrevê-la, observa que as diversas teorias enunciadas rio
passado, quanto à sua natureza, são matéria de pura hipótese, mas uma experiência
direta e fundamental de sua realidade não poderia ser contestada, pois tem por objeto
exatamente as operações que condicionam até a própria dúvida:
"... Tem o ar o poder de viver, de recordar-se, de compreender, de querer, de pensar, de
saber, de julgar? Tem o fogo esse poder, ou o cérebro, ou o sangue, ou os átomos, ou
não sei qual quinto corpo, além dos quatro elementos clássicos, ou a coesão e o
equilíbrio de nosso corpo? Os homens têm tido dúvidas a esse respeito: uns se têm
esforçado por afirmar isto, outros aquilo, Ao contrário, ninguém duvida de que se
lembre, de que compreenda, de que queira, de que pense, de que saiba, de que julgue.
Pois, ainda quando duvida, vive; se duvida de onde provém sua dúvida, lembra-se; se
duvida, compreende que duvida; se duvida, quer chegar à certeza; se duvida, pensa; se
duvida, sabe que não sabe; se duvida, sabe que não deve dar seu assentimento leviana
mente. Pode-se, pois, duvidar do resto, mas de todos esses atos do espírito não se deve
duvidar; se não houvesse esses atos, seria impossível duvidar do que quer que fosse
(1)."
Existe aí, sem dúvida, mais do que um esboço do cogito cartesiano, algo como o
equivalente deste cogito. A diferença reside, essencialmente, em que Descartes, com
base na dúvida radical tomada como princípio a respeito dos conhecimentos tradicionais,
partirá dessa evidência imediata e irrecusável para construir uma nova interpretação do
mundo; enquanto que ela se inscre ve, com Agostinho, num contexto teológico admitido
logo à primeira e que confere a essa descoberta, como a todas as outras do filósofo, o
caráter de uma via de acesso direto ao conhecimento de Deus. Estranho, quanto a isso, a
qualquer dúvida, embora inteiramente didática e teórica, está persuadido de que a alma,
no mais profundo de si mesma, deve a existência à de Deus:
"Eu não existiria, meu Deus, de modo algum existiria, se vós não estivésseis em mim.
Ou, melhor, eu não existiria, se não estivesse em vós, de quem, por quem e em quem
todas as coisas têm o ser." (Conf., 1, 2.)
e está persuadido, também, de que essa presença divina - cuja própria natu reza nos
escapa - é atestada especialmente por todo juízo verdadeiro em qualquer domínio
(científico, estético, moral). "Deus é a luz de nossa alma, à qual tudo vemos" (De
Genesi ad litteram, 1, XII). Somos, assim, recondu zidos a uma espécie de "apercepção"
fundamental, como se dirá mais tarde, que constitui um saber imediato de si por si
mesmo, no qual a alma encontra uma certeza inabalável: a de que é ela que se figura e
que compreende:
ninguém duvide de que, para compreender, é preciso viver; de que, para viver, é preciso
ser; de que, conseqüentemente, o ser que compreende é e vive, mas seu ser não é como o
do cadáver, que não vive, nem sua vida como a da alma animal, que não compreende;
que esse ser, portanto, é e vive de maneira que lhe é própria, e é bem superior. Do
mesmo modo, toda alma sabe que ela quer; sabe, igualmente, que para querer, é preciso
ser, é preciso viver..." (De Trin.. X, 13.)
(1) De Triniuee, X. 4, trad. P. AGA S. 1. (Os golos são nossos.)
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Se é o objeto visível que origina a visão, "é preciso, além disso, um vidente (De Trin.,
XI, 3). E a contribuição do "vidente" está "tanto no sentido da visão, como na atenção
que faz olhar e ver"('). Em De Quantitate Animae pretende Agostinho provar a
espiritualidade da alma na medida em que ela é estranha à espacialidade. Empenha-se
em tornar sensível a infinita variedade de objetos que podem ser condensados ou
refletir-se no espaço mais estreito possível. Embora provida de olhos mais estreitos do
que os nossos, a águia, quando "voa tão alto que, ainda com luz intensa, temos
dificuldade em percebê-la, descobre.., um lebracho oculto sob uma moita, um peixe sob
as ondas" (De Quant. An., XIV, 24). A alma, podendo embora formar para si imagem de
uma grandeza corporal qualquer, é, ela própria, desprovida de tamanho, O termo
"grandeza" não lhe convém senão metaforicamente, para significar energia, dinamismo,
aptidão singular para o conhecimento, a virtude, a contemplação.
"Dentre as virtudes, a que chamamos "grandeza de alma" não se compreende senão
relacionada, não a uma idéia de espaço, mas a uma força, a um poder, a uma potência da
alma..." (De Quant. An., XV 30.)
Preludiando as objeções que encontrará a psicologia científica e, parti cularmente, a
psicofísica, acredita Agostinho ser "vão labor buscar a medida da alma" (De Quant. An.,
XIV, 23).
4. Os graus e as funções da alma
As idéias de Agostinho acerca dos diferentes graus e das diferentes funções da alma
fazem lembrar distinções que encontramos nos gregos, espe cialmente em Plotino. Na
Terra, a alma é, inicialmente, o princípio vital que vivifica o corpo, confere-lhe unidade,
mantém-lhe a harmonia e a proporção no crescimento e na geração (De Quant. Ao.,
XXXIII, 70). Esse princípio vital é reservado até às próprias plantas. Num segundo
grau, a vida sensitiva, com suas múltiplas ressonâncias, assinala o surgimento da anima,
que perten ce aos animais como ao homem, capaz de velar pela boa adaptação do corpo
que anima:
"... ela chama e procura o que está conforme a natureza do seu corpo; rejeita e evita o que
lhe é contrário. A intervalo regulares, retira-se (do exercício dos sentidos); repara- lhe a
atividade, como se tomasse férias; combina as imagens múltiplas, inumeráveis, de que fez
provisão por seu intermédio: tudo isso é o sono, o sonho. Muitas vezes, também,
movimentos desembaraçados, inspirados pela alegria, as corridas sem desígnio, atraem-
na e, sem maltratar-se, coordena a harmonia dos membros... Cons pira na produção de
renovos e em assegurar-lhes ternura, proteção, alimento. Liga-se, pelo hábito, às coisas
por entre as quais vive o corpo, e pelas quais ela o sustenta; e delas apenas se separa
dificilmente, como se fossem seus membros. Essa força do hábito, nem o afastamento das
próprias coisas, nem o tempo a quebrantam: chama-se a isso memória." (De Quarit. Ao.,
XXXIII, 71.)
(1) Assinale-se que, para AGOSTINHO, o sentido da sisão, á semelhança de certa
psicofisiologia que já encontramos freqüentemente nos gregos, supôe a emanação de
raios luminosos do olho para o objeto, (De Trin. II. XI;D G asi liii., IV, 34-54; XII, 1h-
32.
As funções da anima se relacionam com os sentidos externos, em comu nicação com o
exterior por via dos órgãos corporais, e a um poder de coorde nação que Agostinho
chama senso interno (De Lib. Arb., 1, II), inseparável de uma memória sensível
correspondente à que hoje qualificamos de sensori motora. Na ordem afetiva, a cupidez
está ligada às funções da anima. O terceiro grau é o do ani,nus, da alma pensante e
raciocinante, própria do homem. Nesse grau, a memória não mais se funda apenas no
"hábito das coisas correntes", e sim na observação, nos "sinais de inúmeros fatos postos
de parte e retidos". Agostinho desenvolve, a seu respeito, considerações sobre as diversas
formas de vida cultural, para acabar apurando que "tudo isso é grande e especificamente
humano", mas que a arte corno a ciência, a política como a literatura podem ser próprias
dos bons ou dos maus (De Quant. An., XXXIII, 72). O essencial, a seu ver, é o
aprofundamento da vida espiritual e, não, o que lhe parece vã erudição: julgar os
manjares apenas pelo odor e o sabor, poder dizer em que lago foi apa nhado tal peixe, de
que ano é tal vinho, eis uma lastimável competência. Quando obtém de semelhantes
habilidades seu aparente engrandecimento e, sem importar-se com a inteligência, deriva
para os sentidos, a alma então deve ser considerada intu. mescida, diria até minada pela
doença." (De Quani. Ao., XIX, 33.)
Por isso distingue a atividade racional em razão inferior, entregue ao estudo das coisas
sensíveis, reflexos mutáveis das idéias, e razão superior, cujo alvo é um esforço de
liberação quanto ao imediatamente dado, uma elevação progressiva em direção à
contemplação das idéias eternas. Este último passo implica o funcionamento da parte
mais espiritual da alma (mens), sede da sabedoria (sapientia), que é o conhecimento
intuitivo do puro inteligível. Passando pela razão - faculdade discursiva, criadora
especialmente da linguagem - é que o homem se eleva a esse estádio superior: o da mens
ou inteligência. A essa "sabedoria", a que corresponde na vida prática o exercí cio da
vontade, atribui Agostinho a capacidade de participar por "ilumina ção" das verdades
intemporais e delas recordar-se. A memória é, então, a de um eterno presente. Essa teoria
agostiniana pretende substituir a da reminis cência segundo Platão. Se pessoas sem
instrução podem, como o jovem escravo do Menon, dar respostas justas, é porque a luz
da Razão eterna nelas está presente em certa medida e nessa Razão elas vêem essas
verdades imutá veis. Não cabe, portanto, invocar um conhecimento adquirido em
existência anterior. Em outros termos, a mens traz em si aquelas verdades como que
prefiguradas, e, quando as conhece com a ajuda de Deus (a iluminação), apercebe-se do
que já sabia virtualmente. Apenas nesse sentido é que ela se "lembra".
De qualquer maneira, admite Agostinho qu a alma humana participa, assim, não apenas
do universo sensível, mas da imutável perfeição da ver dade. E a fonte das razões
eternas, objetos da sabedoria, não poderia ser a alma humana, sujeita às flutuações da
ignorância e da dúvida; é uma "ver dade subsistente", de que a alma pode participar, e
isso a torna capaz de pronunciar juízos verdadeiros de caráter universal. Distingue
Agostinho diver sas fases do itinerário interior que atribui à alma como tarefa mais alta.
Conduzida a um estádio superior onde ganha em bondade, ela se desprende das seduções
do mundo, preocupa-se com Deus, a morte, a Providência, aspira a purificar- se:
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"Dá grande valor à sociedade humana e não admite que suceda a outrem o que ela
própria não quereria sofrer." (De Quani. An., XXXIII, 73.)
Limpa das máculas, dirige-se a Deus, à contemplação da verdade absoluta, "com imensa,
incrível confiança", para atingir a mais alta visão do bem supremo; trata-se aqui de um
"sétimo grau", que é como que a reali zação terrestre de sua marcha para Deus.
Agostinho, se considera imortal a alma humana (na medida em que é o habitáculo da
Verdade Eterna, ela participa dessa eternidade), confessa ignorância quanto às
modalidades da origem divina da alma. Tinha dificuldade, especialmente, em
compreender, conforme confidencia a São Jerônimo, como as almas de cada um dos que
nascem hoje pecam nas crianças, as quais devem receber o batismo para remissão do
pecado. O problema da origem atribuível às almas dos descen dentes de Adão é dos que
o preocuparam até o fim. No tocante à natureza dessa alma, cujas funções em seu retorno
ascensional a Deus já assinalamos, Agostinho parece admitir que é idêntica às suas
faculdades e é captada em sua realidade total e simples pelos olhos interiores da
consciência. A dificuldade antes se desloca do que se resolve pela analogia estabelecida
com a Santíssima Trindade, a qual lhe permite considerar que, no homem - criado à
imagem de Deus - as faculdades da memória, da inteligência e da vontade são
consubstanciais e constituem uma alma única, embora não possam ser trata das senão
separadamente.
5. Os sentidos, a razão, a memória
Nos fenômenos sensíveis, se o objeto for de ordem corporal, a índole da percepção é de
essência psíquica. A exemplo de Plotino, pensa Agostinho que o ser humano é uma alma
que utiliza um corpo, que sente pelo corpo. Quando este é modificado pela ação dos
objetos exteriores nos órgãos sensoriais, a alma tira de sua própria substância uma
imagem conforme ao objeto. Como a sensação é, assim, uma impressão sofrida pelo
corpo (passio corporis), a ação percebida, pela alma, de um objeto sobre um órgão
sensível, o que o corpo experimenta é bastante para explicá-la, sem intermediário, isto é,
sem outra operação intelectual (De Quant. An., XXV, 48). Para definir o modo de
presença da alma no corpo, Agostinho (De Gen. ad litt., VII, 17-18, 23-24) fala de
atenção vital (vitalis intentio), assinalando o papel eficaz de certos órgãos do corpo,
sobretudo do cérebro, por onde se exerce a atividade da alma. Certas sensações nos
informam apenas sobre o estado e as necessidades de nosso corpo; outras, sobre os
objetos que o rodeiam. Caracterizam-se os objetos pela instabilidade. Embora durem no
tempo, aparecem e desaparecem, apagam-se ou substituem-se uns pelos outros, sem que
jamais os possamos verdadeiramente captar. Esse é um sinal de falta de ser verdadeiro,
segundo Agostinho, que os exclui de todo conhecimento propriamente dito. Conhecer é,
com efeito, apreender pelo pensamento um objeto que não muda, cuja estabilidade
permite mantê-lo sob o olhar do espírito. Ora, a alma encontra em si mesma
conhecimentos que versam sobre objetos desse gênero, pois a verdade é inteiramente
diferente da constatação empírica de um fato: a desco berta de uma regra pelo
pensamento, que a ela se submete.
de um para dois é absolutamente verdadeiro que a relação é a mesma que de dois para
quatro, e essa relação não era mais verdadeira ontem do que hoje, nem será mais
verdadeira amanhã, ou daqui a um ano, e quando o mundo todo se esfacelasse, seria
impossível que essa relação deixasse de existir. Pois, é sempre a mesma." (De Ordine,
50.)
A crença em que 2 + 2 = 4, ou em que se deve fazer o bem e evitar o mal, diz respeito a
realidades não sensíveis, puramente inteligíveis, cujo caráter fundamental é a necessidade.
Realidades imutáveis, enquanto neces sárias e eternas, enquanto imutáveis. O que vale
dizer que são verdadeiras, pois só é verdadeiro o que é verdadeiramente (1) Como,
porém, explicar a presença, na alma, de conhecimentos verdadeiros, se todos os nossos
conheci mentos, em certo sentido, derivam das sensações? Os únicos objetos que
podemos conceber são os que vimos, ou podemos imaginar segundo aqueles que vimos.
Distingue Agostinho, a esse propósito, a phantasia, imagem de objeto percebido, retido
pela memória, do phantasma, ou representação oriunda das operações da imaginação
criadora, a partir dos elementos conti dos na memória (De Musica, VI, 11, 32). Ora,
nenhum objeto sensível é necessário, imutável ou eterno. Ao contrário, são todos
mutáveis, contingen tes, passageiros. Acumulem-se tantas experiências sensíveis
quantas se quei ram, e nunca se extrairá daí uma regra necessária. Não se poderia, pois,
encontrar nos objetos sensíveis a razão das verdades que lhes dizem respeito, como se
dá com o 2 X 2. Caberá, então, procurar em si mesmo a fonte desses conhecimentos
verdadeiros? Mas o indivíduo humano é tão contingente e mutá vel quanto as coisas, e é
justamente por isso que seu pensamento se curva diante da verdade que o domina. A
necessidade do verdadeiro para a razão é o sinal de sua transcendência em relação a ela.
Cumpre, pois, admitir no homem algo que o ultrapassa. E esse algo é a verdade, ou seja,
uma instância pura mente inteligível, necessária, imutável, eterna, "vida de nossa vida",
como quer que a denominemos(
A alma conhece, pois, certas coisas sem passar pelos sentidos. De inf i nita riqueza de
virtualidades, ela é capaz de intuições que a põem em contato com as coisas eternas, em
presença da realidade espiritual de Deus. E de toda maneira, na medida em que é
inteligência, seus conhecimentos lhe vêm à luz de Deus, pois apenas o Verdadeiro é
objeto de conhecimento. Essa aliança da alma com Deus, que o próprio pecado não
poderia destruir - ela se confirma cada vez que o espírito participa da verdade - encontra
o acabamento na prece e na adoração, e sobretudo no êxtase.
Agostinho acentuou muito bem o papel da consciência refletida, com observar que o
conhecimento de si mesmo é inerente ao conhecimento de um objeto, mas de modo
diferente. Conhecer um objeto é conhecer que se conhece. Ora, o saber do que é o
conhecer não vem do exterior; é saber da alma, atingida numa "apercepção" imediata. O
conhecimento do sujeito por si mesmo está, portanto, envolvido no ato de conhecer, e a
alma que se procura conhece-se sobretudo como sujeito que procura.
(1) Étienne GILSON, La philosophie a, Moyen Age, Des origines patristiques à la fio de
xlVe siècle, Payot, Paris, 1944, 2' ed., pág. 129.
(2) Étienne GIL5ON, ibid.
94
95
1
A obra de Agostinho é abundante em observações psicológicas pene trantes('). Sobre a
memória, em particular, de que tratou extensamente (Ep., VII; De Trinitate, XI, 11-18;
XIV, 13-16; XV, 39-40; De Musica, VI, 4-6: De Quant. An., V, 8; Contra Epistulam
quam vocant Fundamenti, XVII), escreveu páginas comoventes:
"Grande é esse poder da memória, prodigiosamente grande, ó meu Deus! É um santuário
de infinita amplidão. Quem lhe terá tocado o fundo? Não passa, no entanto, de um poder
de meu espírito, decorrente de minha natureza: não posso, contudo,
compreender inteiramente o que sou. E então o espírito estreito demais para estreitar a si
mesmo? E onde passa então o que não pode compreender de si próprio? Seria fora dele e,
não, nele? Como, porém, não o compreende? Essa idéia me enche de espanto e sinto - me
chocado pelo assombro."
E mais isto, que tem relação com "os vastos palácios da memória, onde se encontram os
tesouros de inúmeras imagens veiculadas pelas percepções de toda espécie":
"Quando lá estou, faço comparecer todas as lembranças que quero. Algumas chegam
logo; outras, após uma busca mais longa; é preciso, por assim dizer, arrancá las de
esconderijos mais obscuros; e há as que acorrem em massa, quando se queria e
procurava outra coisa: surgem como se dissessem: "Não seremos nós...?" Afasto-as...
até que aquela que quero afaste a névoa e, do fundo de seu reduto, apareça a meus
olhos. Outras, enfim, se apresentam sem dificuldade, em colunas regulares, à medida
que as chamo; as primeiras se dissolvem diante das seguintes e, assim, desaparecem
para reaparecer quando eu quiser. E exatamente o que se passa quando conto alguma
coisa de memória."
Agostinho não acaba nunca de extasiar-se diante da infinita amplidão da memória:
"É em mim mesmo que tudo isso se dá, no imenso palácio da memória. Lá é que tenho
às minhas ordens o céu, a terra, o mar e todas as sensações que deles tenho podido
experimentar, salvo as que esqueci; e é lá que me encontro a mim mesmo, que me
lembro de mim mesmo, do que fiz, do momento e do local em que o fiz, das minhas
disposições afetivas ao fazê-lo; lá é que ficam todas as minhas lembranças, as que se
fundam em minha experiência, ou as que se originam de minha crença em outrem."
(Conf., X.)
6. A influência do agostinismo
Não se poderia esperar de Santo Agostinho - dada a posição que adota diante da fé cristã
e que o induz a refugiar-se no mistério toda vez que seu pensamento se defronta com
alguma aporia - uma teoria psicológica de articulações muito precisas. O tormento de seu
grande espírito esclarece as contradições que não cessaram de trabalhar o pensamento
cristão; em parti cular aquela que nasce do surgimento e da afirmação da criatura humana
(1) Cf. especialmente no De Tri,sitale, o que diz da origem das imagens (livro VIII), dos
pontos de referéncia de nossos conceitos morais e abstratos (livro IX). da gênese de
nossas antec(pações afetivas: "pode-se amar o que jamais se viu" (livro X), das sensações
e impressões físicas (livro XI(. das emoções dos sentidos (livro XII).
96
como pessoa, como vontade livre, em face da vontade e da liberdade divinas, às quais
deve, no entanto, todo o seu ser. E certo que sua obra representa o ponto culminante da
especulação na idade patrística. Domina os séculos seguintes, até a difusão dos escritos
de Aristóteles, no século XIII, e a inte gração da doutrina do Estagirita nas Sumas de
Santo Tomás de Aquino. Nem por isso desapareceu sua influência. Pois o agostinismo
não deixou de exercer singular atração sobre os espíritos tendentes a um misticismo
intelectual, pelo senso fremente da interioridade espiritual que dele se desprende, e cujo
melhor motivo de inspiração é o sentimento de Amor que o alça, para além das
controvérsias doutrinárias, no rumo da certeza vivida de que nada ultra passa em
excelência as três virtudes teologais: a Fé, a Esperança e a Caridade.
97
-J

CAPÍTULO XIi
SANTO TOMÁS DE AQUINO
1. A orientação metafísica
2. A alma e suas potências
3. Os sentidos externos
4. Osenso comum
5. O papel das imagens
6. O papel do intelecto agente
7. O dualismo tomista
1. A orientaçào metafisica
Aceitando do agostinismo o testemunho imediato da consciência, a evidência dessa
apreensão de si por si mesmo que Kant denominará aper cepção, o pensamento de Santo
Tomás não procede no sentido da interiori dade; orienta-se deliberadamente para o
mundo natural, criação de Deus, como intermediário necessário para elevar-se a Ele.
Admitindo embora que o intelecto humano - é essa, até, sua mais alta dignidade - é capaz
de formar princípios primeiros que virtualmente contém, considera que sua fraqueza - em
relação à pura inteligência dos anjos, capazes de uma ciência intuitiva
imediata - é não poder formá-los senão a partir das espécies abstraídas das coisas
sensíveis. Não há conhecimento direto do imaterial (Summ. Theol., 78, II).
Não cabe aqui insistir nos aspectos metafísicos do tomismo, fundado na convicção de
um acordo possível entre a Revelação, de origem divina, e a razão humana retamente
conduzida, e onde a noção do pecado original aparece sob forma muito atenuada em
relação ao agostinismo. Sabe-se que Santo Tomás de Aquino se tornou o filósofo por
excelência da Igreja; que sua obra constitui, no século XIII, o ponto culminante do
pensamento escolástico cuja desagregação se verifica a seguir; e também que
representa, depois da de seu mestre Alberto, o Grande, mas com mais originalidade,
soberbo esforço para moldar a intuição cristã do mundo numa estrutura que toma a
Aristó teles suas formas essenciais, para atingir a nova e prodigiosa síntese.
Voltamos a encontrar a concepção piramidal dos seres terrestres: mine ral, vegetal,
animal, até o homem, com o pensamento, que lhe é próprio.
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Todos os existentes foram criados pela realização tão completa quanto possível de sua
essência em sua perfeição relativa, e o conjunto das coisas se orienta para Deus, perfeição
suprema. Por toda parte, no universo tomista, reinam as causas finais; os olhos são feitos
para ver; os sentidos, para dar matéria ao trabalho do intelecto; os minerais, as plantas e
os animais, para servir ao homem, espírito encarnado. Quanto ao próprio
Deus, está além de nosso entendimento e seu acesso só é possível a partir das criaturas.
A incli nação de todos os existentes para o Bem Supremo varia, assim, em função de
seu lugar na hierarquia dos seres. Nas plantas, desprovidas de sensibilidade, trata-se
apenas de simples tendência inconsciente a conservar-se e a realizar a espécie (appetitus
naturalis). Nos animais, torna-se uma espécie de orientação instintiva e passional
(appetitus sensitivus). No homem, dotado de intelecto, capaz de reflexão e de livre-
arbítrio, aparece a vontade (appetitus intellec tivus) com sua aspiração consciente para
Deus. O objeto próprio da vontade é o bem como tal; como, porém, é recusada ao
homem a imutável adesão ao soberano bem, ela é forçada a escolher entre bens
particulares, que pode sempre querer, ou não querer.
Em virtude da orientação positiva que o aparenta ao Estagirita, Tomás rejeita a
reminiscência platônica, fundada na crença de que a alma pode conhecer
independentemente do corpo e, até, apesar do corpo. Se as razões inteligíveis dos
existentes fossem inatas e atingíveis por uma percepção imediata e direta, já não se
compreenderia o papel dos órgãos sensoriais. Ora, a experiência mostra que o saber
humano deles depende, e que a visão, por exemplo, condiciona nosso conhecimento das
cores. Por isso, Tomás também não admite o platonismo corrigido de Agostinho: as
Idéias encaradas como essências contidas no espírito divino, com as quais estariam
relacionadas, a um tempo, a existência das coisas e nossa possibilidade de conhecê-las.
De início, existe apenas o intelecto com o qual o homem é agraciado por Deus e que
pode ser sobrelevado pela graça, dotado de luz suficiente para adquirir, por abstração,
com base no mundo sensível, o conhecimento dos inteligíveis:
dotado, em suma, de aptidão e disposição natural (habitus naturalis) para formar e
perceber os princípios e as definições de tipos gerais que são a origem primeira (e, ao
mesmo tempo, a garantia) do saber humano. Indagar da psicologia de Tomás,
inseparável de sua teoria do conhecimento, é o mesmo que indagar da natureza da alma
e do papel atribuído respectivamente às coisas materiais, às sensações, à sensibilidade e
ao entendimento.
2. A alma e suas potências
No sentido mais amplo, a alma se caracteriza pela espontaneidade da vida. Se os
vegetais, em oposição aos corpos inertes, germinam e crescem, é que possuem uma
alma vegetativa. Se os animais nascem, sentem e se deslo cam, é em virtude da energia
interna que lhes confere a alma sensitiva. Todas essas almas são de natureza inferior.
São corruptíveis e morrem com o corpo ao qual estão unidas. A alma humana é de
natureza diversa. Não é corpo, mas "o ato de um corpo", o princípio de que dependem
seus movimentos e suas ações. Como esse princípio é, a um tempo, incorporal e
substancial, ela está segura de não se dissolver com o organismo; e o desejo de
imortalidade sentido pelo homem se justifica ontologicamente. Situada a meio caminho
entre o
99
mundo dos corpos e o dos espíritos, a alma humana não está excluída da série dos seres
imateriais; não faz parte dela, porém, ao mesmo título que a alma dos anjos, sobre as
quais sabe Tomás muita coisa, especialmente que são puras inteligências sem matéria.
Pertence-lhe na medida em que, além das potências da alma próprias do mundo dos
corpos - vegetativa (capaz de agir unicamente sobre o corpo a que está unida) e sensitiva
(que se exerce sobre a totalidade dos corpos) -, possui a potência intelectiva, cujo objeto
é o ser universal (Summ. Theol., 1, 78, 1, ad Resp.); em resumo, pertence- lhe na
medida em que pode elevar-se ao conhecimento de certos inteligíveis.
Essa alma imaterial, unida ao corpo sem intermediário, preside no homem à vida
vegetativa, sensitiva e intelectual. Indivisível, está presente no corpo inteiro com a
perfeição de sua essência, mas com poderes ligados a sentidos com funções
particularizadas. Se as potências sensitivas da alma são da mesma natureza nos animais,
revestem, no homem, maior eficácia, em virtude do intelecto. Pois a atividade deste
último reflui, de certa forma, sobre elas, que lhe servem, então, de instrumentos; em
outros termos, o superior realça a qualidade das operações inferiores da alma humana,
embora crono logicamente anteriores, pois as potências nutritivas se manifestam em
primei ro lugar, depois as potências sensitivas e em último lugar as potências inte
lectuais.
Para explicar a passividade inicial da parte do sujeito cognoscente, Tomás introduz a
noção de um intelecto humano simplesmente "possível" (passivo), em relação ao
intelecto "agente" (ativo). E, para salvaguardar a imortalidade pessoal da alma,
interpreta o problema desse intelecto (o Noíis aristotélico) no sentido da individuação.
A intervenção de uma inteli gência universal, opõe a de intelectos agentes, capazes de
abstrair o inte ligível em potência nas coisas sensíveis, tão numerosos quanto os
indivíduos humanos.
3. Os sentidos externos
Para elevar-se até o conhecimento, dispõe o homem de materiais de dupla origem: os
sentidos externos e os sentidos internos. No nível mais baixo, a alma realiza operações
de ordem natural no corpo ao qual está unida; a seguir, por meio de órgãos corporais,
operações de ordem sensível, e já imate riais; e, enfim, sem órgão corporal, operações
de ordem inteligível. O grau mais eminente de imaterialidade pertence ao intelecto que
recebe, sem órgão corporal, espécies despojadas ao mesmo tempo de matéria e das
condições de individualidade.
Como, porém, explicar essa espécie de assimilação que constitui a presença do objeto no
sujeito cognoscente? Presença de caráter particular, pois o sujeito não deixa de ser ele
mesmo, nem perde sua disponibilidade para tornar-se outra coisa. Tomás introduz, a esse
propósito, a noção de espécie (species sensibilis), destinada a explicar o fato de a coisa
conhecida não invadir o pensamento, e de ser conhecida justamente pela presença de sua
species neste pensamento. Tal intermediário, observa E. Gilson, não é repre sentavel e o
propno obJe e na eficacia que exerce
L.t 1
sobre o sujeito"( o por que o pensamento conhece as coisas. A impressão sofrida pelo
sujeito (species impressa) não é, pois, a coisa percebida, nem espelho ou imagem
intermediários; é o meio necessário para reunir imediata mente, num ato único, o objeto
material e o sujeito sensível e, as tornar possível a percepção: idéia-imagem ou
representação sensível (species expressa), retida pela lembrança e susceptível de ser
elaborada, mais tarde, pelas faculdades superiores. As cores, por exemplo, têm o mesmo
modo de existência na medida em que estão, simultaneamente, na matéria de um corpo
individual e na potência visual da alma sensível e se acham, pois, natu ralmente aptas a
imprimir, por si mesmas, sua semelhança no órgão da visão. E as representações daí
decorrentes (se assim se podem chamar os phantas mata de Tomás), conservadas na
imaginação, não passam de materiais do conhecimento intelectual (De Veritate, X, 6). No
ato de intelecção, a árvore, por exemplo, é conhecida na natureza que realiza, apenas por
sua forma, segundo um modo de ser considerado por Tomás como universal e espiritual.
Chama ser intencional a esse modo de ser das coisas no pensamento que as assimila, para
acentuar que as species não são recebidas pelos sentidos sob forma material, O ouvido
permanece distinto do som, os olhos, da cor. Já dizia Aristóteles que não é a pedra que
está na alma que a conhece, mas a forma de pedra. Ora, segundo Tomás, o exame do
processo do conhecimento mostra que uma hierarquia preside às ações da alma e das
potências a elas correspondentes.
Certas sensações são acompanhadas de modificações orgânicas muito acentuadas, pois
as espécies de certos sensíveis modificam materialmente quem as experimenta. Assim
se dá com as qualidades ligadas às transmuta ções das próprias coisas materiais: o
quente, o frio, o seco, o úmido... Tais "sensíveis" produzem impressões materiais que
supõem contato. Chama-se precisamente de tacto a potência sensitiva que aí
desempenha papel essencial. No caso do paladar, o sabor não modifica o órgão que o
percebe a ponto de torná-lo, a ele próprio, doce ou amargo; não obstante, produz-se uma
modifi cação do objeto saboroso e do órgão do paladar: a umectação, por exemplo, da
lingua e do objeto.
Trata-se, nesse caso, apenas de transmutação material, que não consti tui a percepção
sensível, mas a condiciona. No caso das percepções olfativas, a transmutação material,
associada à sensação, não afeta senão a qualidade sensível e, no das percepções
auditivas, senão um movimento local. Noutros termos, o olfato e a audição percebem a
distância, através do meio exterior, as modificações materiais pelas quais o "sensível" é
afetado. Finalmente, sensíveis há que atuam sobre os sentidos sem que qualquer
modificação corporal lhes acompanhe a ação: é o caso da cor e da luz. O processo pelo
qual essas espécies emanam do objeto para atuar sobre nós já é, segundo Tomás, de
natureza espiritual. E com o sentido da visão, o mais nobre e universal dos sentidos,
chegamos a uma operação análoga às operações intelectuais propria mente ditas. Por
isso, são freqüentes, em Tomás, as comparações entre o conhecimento intelectual e a
visão, entre os olhos da alma e os lo corpo( A essa hierarquia das potências sensitivas
externas da alma acrescentam-se
(1) Le!homi Vrin, Paris, 1942, pág. 315. (2) Cf. GILSON, op. di. pág. 282.
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quatro potências sensitivas internas: o senso comum, a imaginação, a estima tiva e a
memória.
4. O senso comum
Os sentidos externos, potências do senso próprio, são capazes de certo discernimento. A
visão, por exemplo, é capaz de discernir uma cor de outra, e de certa forma se basta a si
mesma no domínio que lhe é próprio. Ao contrário, não pode distinguir uma cor de um
sabor, ou de um cheiro, que não dependem dela mas de outras potências do senso
próprio. A unificação neces sária das atividades sensoriais implica, por conseguinte, a
admissão de um senso comum, ao qual se relacionam as apreensões dos sentidos. O
papel desse senso comum é considerado por Tomás como indispensável ao que hoje em
dia chamamos de "tomada de consciência". Pois, tem por objeto as pró prias operações
sensitivas, enquanto o senso próprio conhece apenas a forma sensível que nele influi.
Quando a modificação que dela recebe determina a visão, por exemplo, a sensação visual
imprime, por sua vez, outra modificação no senso comum, o qual percebe, então, a
própria visão. O senso comum é como a fonte de onde se difunde, mediante os órgãos
dos cinco sentidos, a faculdade de sentir; seu órgão próprio localiza-se na própria raiz do
sentido do tacto, aquele entre os sentidos que se encontra disseminado por todo o corpo.
5. O papel das imagens
A simples apreensão dos "sensíveis" presentes não bastaria para a realização completa da
vida animal. Pois, o comportamento do animal é determinado pelos objetos que apreende,
e cumpre admitir que possui o poder de representar-se tais objetos na ausência deles. A
alma sensitiva do animal deve, portanto, ser capaz não apenas de receber as espécies
sensíveis, mas, ainda, de conservá-las em si. Essa potência de conservação é a fantasia ou
imaginação (1)
Por outro lado, o animal, embora desprovido de razão, deve apreender imediatamente,
nos objetos, o que apresentam de útil ou de nocivo, posto não se trate, nesse caso, de
qualidades sensíveis propriamente ditas. Portanto, uma nova potência sensitiva lhe é
necessária, que permita discernir certas propriedades das coisas que o sentido, por si só,
não poderia apreender. A ovelha, por exemplo, sabe que deve fugir diante do lobo, tal
como o pássaro é levado a recolher palhinhas. Tal comportamento não é ditado pela
forma ou pela cor desses objetos; intervém por força de uma percepção direta que incita
o animal a escapar-lhes ou a procurá-los, na medida em que concordam ou se opõem a
sua natureza. Essa potência da alma, chamada por Tomás estima tiva, torna possível
outra potência sensitiva interna: a memória. Pois o ser vivo deve, de fato, ser capaz de
recordar-se, para sua vida atual, das espécies ante riormente apreendidas pelo sentido e
interiormente conservadas pela imagi nação. Enquanto na imaginação o movimento vai
das coisas à alma (os objetos
(1) Quanto aos problemas relativos à fansasi e à descrição tomista da estimativa, cl.
referëncias em GILSON, op. cit. págs. 283-284.
imprimem suas espécies no senso próprio, depois no senso comum, para que a fantasia
os conserve), é inverso no respeitante à memória. E da alma que parte para as espécies
que evoca.
Nos animais, a lembrança do útil ou do nocivo pode fazer surgir a representação dos
objetos precedentemente percebidos. Trata-se, então, de restituição espontânea das
espécies sensíveis, dependente da memória pro priamente dita. No homem, é necessário
um esforço de pesquisa para que as espécies conservadas pela imaginação voltem a
tornar-se objeto de considera ção atual, e é a isso que Tomás chama de reminiscência.
Num e noutro caso, os objetos são representados com o caráter do passado, qualidade
particular que não se pode atribuir ao "senso próprio" como tal (Summ. Theol., 1, 78, 4 ad
Resp.). Deve-se a superioridade da memória humana à circunstância de ela estar em
contato com o intelecto próprio do homem, e cuja atividade de certo modo ela repercute.
O exame das mais altas potências sensitivas da alma conduz, assim, ao limiar da atividade
intelectual. A estimativa, pela qual os animais apreendem o nocivo e o útil, corresponde
no homem a razão particular, por vezes também denominada intelecto passivo. Este, na
medida em que recolhe apenas conhe cimentos particulares, permanece potência da ordem
sensível, enquanto o "intelecto agente" se caracteriza pela faculdade
de apreender o universal. Trata-se, em suma, de uma capacidade de comparar entre si
esses conheci mentos particulares, de raciocinar a respeit deles, de tal maneira que neles
se possa distinguir o útil e o nocivo. A reminiscência (humana) difere, ainda, da
ressurreição espontânea das lembranças (animal) pela presença de uma dialé tica
silogística, que permite ao espírito mover-se de uma lembrança para outra, até encontrar a
lembrança conveniente. Mas também aí, pelo fato de essa pesquisa ter por objeto
representações particulares, falta a universalidade requerida pelo conhecimento
intelectual.
6. O papel do intelecto agente
A alma racional, segundo Tomás, está em potência com relação às espé cies das coisas
sensíveis. Essas espécies lhe são fornecidas pelos órgãos dos senti dos, onde representam
as coisas com suas propriedades particulares e indivi duais. São, portanto, inteligíveis
apenas em potência, e essa aptidão passiva da alma humana a receber as espécies
sensíveis com suas determinações particula res é conhecida como "intelecto possível".
Inversamente, porém, existe na alma racional uma faculdade ativa capaz de tornar as
espécies sensíveis atualmente inteligíveis: é o "intelecto agente" (lumen inteliectuale),
mais ou menos pene trante conforme os indivíduos. Quando se volta para as espécies
sensíveis e nelas projeta seu feixe luminoso, esse intelecto de certo modo as transfigura.
Na medida em que ele próprio participa da natureza inteligível, encontra nas formas
naturais, e delas abstrai, o que ainda têm de inteligível e de universal. Vale dizer que,
quando um corpo sensível imprimiu sua imagem (fantasma) no senso comum,
continuamos sempre no domínio do sensível e apenas foi fornecida a matéria do
conhecimento intelectual (Summ. Theol., 1, 84, 6 ad Resp.). Para que a espécie sensível
da coisa se torne forma inteligível, cumpre que o intelecto agente se volte em sua direção
e a ilumine. Tal é, segundo
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Tomás, a essência da abstração, que extrai das espécies o que contêm de inteligível e
engendra, no intelecto possível, o conhecimento daquilo que os fantasmas contêm em si
de específico e universal.
Um primeiro intermediário entre as potências sensitivas e intelectuais da alma é
ministrado pelo próprio sensível, que é a união de uma forma (por conseguinte, de um
inteligível) com determinada matéria. A teoria tomista implica, assim, que o inteligível
em ato no homem (seu intelecto) carece de determinação e esta é devida aos fantasmas,
privados, eles próprios, de inteli gibilidade. Noutros termos, a alma é "intelecto agente",
enquanto confere inteligibilidade aos fantasmas, e "intelecto possível", enquanto deles
recebe a determinação. Desta perspectiva é que Tomás explica o aparecimento do
conceito, esse análogo do objeto, engendrado pelo intelecto sob a ação da species, para
suas necessidades de identificar, distinguir e ordenar. Enquanto verdadeiro substituto do
objeto, o conceito se distingue, ao mesmo tempo, do intelecto cognoscente e da coisa
conhecida, como ser intencional que não pode subsistir fora do pensamento (1).
De acordo com Gaston Rabeau, que dedicou sua tese de doutorado em Letras à
atividade intelectual elementar segundo Santo Tomás( toda species é princípio de
relações com outras e esse sistema de relações permite a comunicação das essências,
"não no sentido de uma construção unitária a priori do real, mas como um pluralismo
ordenado em relação a Deus"; tal como a estrutura da species supõe, em profundidade,
condições que não aparecem logo de início, mas a análise reflexiva permite pôr em
evidência. "Uma só species permite proferir múltiplos verbos: a propósito de qualquer
conhecimento fragmentário, posso conhecer meu ato, meu intelecto, conhecer o
verdadeiro, o bem, o ato de querer, etc., e exprimir tudo isso em verbos distintos. E
sabemos que o verbo não exprime integralmente a estrutura da forma inteligível: ele a
pormenoriza(
7. O dualismo tom ista
Santo Tomás, o Aristóteles escolástico, possui, como seu mestre de filo sofia, acrescida,
porém, de certo pedantismo, a preocupação constante da demonstração peremptória.
Enumera sempre incansável, as questões e as objeções que prevê e as respostas a dar-
lhes: em presença dos "digo e respon do" que se acumulam, cumpre nos abstenhamos,
hoje, de uma ponta de irritação. Ainda quando se possa admitir que não há outra
"explicação" dos existentes fundada racionalmente, a mentalidade moderna - para sua
felici dade ou infelicidade, bastante distanciada de semelhante preocupação onto lógica
- experimenta um sentimento de estranheza ao enunciado dessas "potências" que tudo
justificam: sentir o animal porque possui alma sensi tiva, crescer o vegetal por ser
provido de alma vegetativa.. Recordamo-nos, então, com certo alívio, do "Eis aí
justamente o que faz que vossa filha seja
(1) Cf. GILSON, op. n pág. 318.
(2) "Specics', "Verbum"... se/unS. Thomusd'Aquin, Paris, 1937, xxx.
(3) Ibid.. pág. 214.
muda", de Molière(*), ou da quadra que Voltaire atribui maliciosamente ao "Doctor
Angelicus", convidado pelo Padre Eterno a dizer-lhe o que pensa d'Ele:
"Vous êtes, lui dit-il, l'existence et l'essence, Simple avec atributs, acte pur et substance,
Dans le Temps, hors du Temps, fin, principe et mi/ieu, Toujoursprésentpartout, sans être
en aucun lieu. "(Les systèmes.)
Seria preciso aduzir que a caricatura em nada diminui a grandeza da construção tomista?
Apenas assinala, como se dará mais tarde, em relação à síntese hegeliana, a
ambivalência da acolhida que encontrou entre os homens. Independentemente, porém,
da admiração que, por outros aspectos, pode despertar o majestoso edifício, o problema
está em saber, no terreno da pura psicologia, como se articulam verdadeiramente os
poderes dos sentidos e da imaginação, dependentes da alma sensitiva, com os poderes
intelectuais dela independentes; e, também, como se articulam as duas formas da
memória, pois a lembrança das coisas sensíveis está ligada à parte sensitiva da alma e
com ela perece, enquanto que sobreviverá a das coisas inteligíveis, situada na parte
superior do intelecto.
A descrição tomista visa a refutar a idéia de que a matéria corporal possa imprimir sua
marca numa substância incorporal como é o intelecto e modificá-la; e a negar, assim, que
a simples impressão dos corpos sensíveis possa produzir o conhecimento intelectual e
explicá-lo. Nela existe uma como refutação antecipada do empirismo puro: o sentido não
se pode tornar inte lecto, pois a diferença entre eles é de natureza e, não, apenas de grau.
E, como em todo pensamento autêntico existe um fermento de progresso, é lícito ver no
tomismo, dada sua afirmação de não poder haver sensação sem objeto, nem pensamento
sem conteúdo, um como esboço da demonstração que Kant desenvolverá em contexto
inteiramente diverso. Em Tomás, também, o dualismo (que se manifestará em Descartes)
apenas é superado pela fé, asse gurada a unidade fundamental pelo poder de Deus,
criador de todas as coisas, que estabelece, para conveniência recíproca, o intelecto e as
essências inte ligíveis.
(*) Alude o texto a uma passagem do Médecin ma/gré lui (li, IV), na qual Sganarelle,
para explicar a
mudez, aliás fingida, de Lucinde, filha de Géronte, apresenta, com muita graça, uma
enfiada de considerações
perfeitamente vazias, que desfecham no quase proverbial "Voilà justement cc qui fait
que votre filie est mueite". A
expressão ficou para designar as explicações pedantescas e obscuras que, ao cabo, nada
explicam. (i. E. D. P.)
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CAPÍTULO XIII
A RUPTURA COM A TRADIÇÃO
E A CONSTITUIÇÃO DO MUNDO MODERNO
1. A grande crise do século XVI
2. A nova imagem do universo
3. A Reforma e a demonologia
4. O homem como objeto de pesquisas concretas
1. A grande crise do século XVI
Para assinalar, logo de início, o caráter revolucionário do século XVI, cujas aspirações
novas encontrarão um status mais elaborado nos espíritos inovadores que o honram:
Francis Bacon, Galileu Galilei e René Descartes, basta lembrar que Cristóvão Colombo
morreu em 1506, Leonardo da Vinci em 1519, Maquiavel em 1527, Erasmo em 1536,
Pomponazzi em 1525, Paracelso em 1541, Copérnico em 1543, Lutero em 1546,
Rabelais em 1553, Calvino, Miguel Angelo e Vesálio em 1564, Telésio em 1588,
Montaigne em 1592, Giordano Bruno em 1600. Essa recordação mostra, ao mesmo
tempo, que vários desses grandes homens nasceram no século XV, ao qual um Lourenço
Valia, um Nicolau de Cusa e um Pico della Mirandola pertencem exclusiva- mente. Não
se pode, portanto, realçar o século XVI senão em sentido algo metafórico, e tanto mais
quanto seria especioso reduzir os séculos anteriores à escolástica ilustrada por Santo
Tomás, por serem numerosos, desde o séculb XIV, os motivos de transição. Pois, já
então, alimentada às vezes por lutas de influência - como a rivalidade entre franciscanos
e dominicanos - desenvol ve-se uma espécie de crítica interna da ontologia cristã, como o
demonstraram principalmente os trabalhos de Etienne Gilson.
Assim é que o voluntarismo de Duns Escoto conduz ao nominalismo de Guilherme de
Occam, negação deliberada e radical do universal racional. Semelhante desvalorização
da especulação ontológica cria üma situação precária para a fé, a qual, privada dos
recursos do raciocínio, já não dispõe de apoio senão na autoridade da Igreja e das
Escrituras. E o pensamento lógico, expulso do domínio teológico-metafísico, não devia
depor completamente as
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armas, mas acantonar-se em outros terrenos, à espera de novas condições que lhe
permitissem uma recrudescência de ambição e, dessa vez, a serviço de outros ideais. Não
se deve esquecer, tampouco, que o século XVI é o de renovação cultural na Itália, onde
um homem como Petrarca já era movido pelo desejo de opor ao saber cultivado nas
escolas medievais uma ciência nova, inspirada em melhor conhecimento da cultura
antiga, desígnio que supõe nele, forçosamente, a despeito de real apego ao catolicismo,
certa distância interior relativamente à sua tradição religiosa, moral e política. Finalmente,
à observação de que tudo quanto se refere à experiência e à preocupação de objetividade
- no sentido moderno do termo - é singular- mente deficiente na Idade Média, é licito
opor a existência daquele que Humboldt considerava o fenômeno mais importante do
século XIII: Roger Bacon, teólogo, filósofo, matemático, físico, alquimista, a quem se
deve a própria expressão "ciência experimental". Esse argumento, porém, tem apenas
valor de paradoxo, pois essa estranha figura antes aparece como a exceção que confirma
a regra. Em resumo, com algumas reservas quanto à distinção
cabível entre Humanismo e Renascimento, e aos sinais precursores da grande mudança
que se opera, nem por isso é menos verdadeiro que, no século XVI, manifesta-se de
súbito uma crise profunda de ruptura com a tradição cristã, traduzida por uma
revalorização do homem concreto, por uma tomada de consciência, por vezes explosiva,
de suas próprias energias; com o corolário de uma atitude nova em face da natureza,
considerada como realidade cujo conhecimento é essencial para o do próprio homem; e
isso numa perspectiva ativista que, levando-o a ver nela uma fonte de poder e de riquezas
a explorar, se exercerá em detrimento da pura interioridade. A busca de salvação pessoal,
fundada na recusa do mundo sensível como tal, é substi tuída pelo desejo e pela vontade
de conhecê-lo, e com isso a própria concepç que o homem faz de si mesmo, de seu
sentido e de seu destino, ver-se-á trans formada. Para nossos propósitos, esse processo
psíquico importa, em si mesmo, mais do que os acontecimentos e os grandes
descobrimentos que rompem com as condições até então reinantes no mundo
mediterrâneo, embora se trate de processo cujos elementos se encadeiam. Basta lembrar
que, no momento em que o poder da Igreja - estabelecido sobre uma socie dade
essencialmente agrária - se enfraquece por causas várias, as cidades da Itália, constituídas
como Estados independentes de Roma, oferecem as condi ções de imensa renovação
cultural numa ambiência social mais refinada.
Todos os aspectos da vida humana são, nessa época, postos de novo em discussão, e
nascem as mais diversas pesquisas, que coexistem na medida do possível: teologia,
metafísica, física, medicina, anatomia, ocultismo, em preendidas muita vez por homens
inclinados a essa universalidade da qual Leonardo da Vinci se apresenta como protótipo.
Marcílio Ficino, médico de Lourenço, o Magnífico, já o atesta em certa medida, pois à
frente daquela Academia platônica de Florença, fundada por Cosmo de Médicis, se
ilustra por suas traduções e comentários de Platão e de Plotino. Essas novas pesqui sas
freqüentemente mantêm relações de compromisso com a cultura tradicio nal.
Assim é que, em Florença, na época de Marcílio Ficino, ainda se crê na possibilidade de
harmonizar as idéias de Platão com o pensamento cristão; que Nicolau de Cusa, mestre
de Bruno e precursor de Schelling e de Hegel, é cardeal; que Leão X e seu secretário
Pietro Bembo são ardorosos humanistas.
Essas relações, porém, podem, igualmente, resultar em oposição trágica, como atestam
especialmente os destinos de Giordano Bruno, de Tommaso Campaneila e de Miguel
Servet. Em suma, nesse momento da história em que a vida parece, de maneira muito
especial, corresponder à definição bergso niana (movimento que se faz num movimento
que se desfaz), são múltiplas as imbricações entre as tendências que nascem, se
transformam, ou morrem; e os caracteres inconciliáveis nem sempre são sentidos como
tais. E conhecido o papel de mediador que a arte, particularmente, se mostra capaz de
desem penhar, integrando em seu impulso criador as mais graves contradições; pois, se
reabilita a vida terrestre mediante imagens mais estruturadas e sensuais, nem por isso
deixa de enaltecer, muita vez, o mundo cristão transcendente.
Dentre as mudanças intervenientes a um tempo na mentalidade e nos fatos, é de
importância singular o aparecimento do Estado no sentido moder no, com fins terrestres e
pretensão de regular, doravante, as relações sociais. Pois assinala a rejeição, pela vida
política, das relações invisíveis que, até então, a envolviam; e a supremacia adquirida pela
nova tendência à eficácia e ao êxito sobre os impulsos místicos no sentido de uru céu que,
desde então, provocará mais curiosidade que fascinação. Nas mãos de fortes individuali
dades, ou de aristocracias fechadas, tornam-se esses Estados instrumentos de vontades e
de apetites voltados para as coisas da terra. Um mundo compósito surge nesse novo
contexto social, onde o melhor vizinha com o pior, pois as individualidades liberadas pela
ruptura dos freios tradicionais nem todas são, forçosamente, da melhor
massa. Sob o novo impulso vital, os juízos morais de tipo antigo depreciam-se em
proveito de uma virtude ativa, fundada na adaptação dos meios a um fim determinado.
Ao enunciar com o seu Príncipe a teoria da razão própria ao novo Estado, inaugura
Maquiavel, para os séculos futuros, uma controvérsia interminável. Daí ficará a idéia de
que as garantias eficazes únicas dos valores culturais são a vida e a liberdade de uma
comunidade nacional, organizada política e militarmente. Com Maquiavel, a política se
torna a ciência realista do possível, justificada por sua própria lógica interna; e a obra de
Maquiavel é significativa por excelência das aspira ções novas manifestas concretamente
na Itália sob formas diversas, em particular em Veneza e em Florença.
2. A nova imagem do universo
A "restauração" da Antigüidade, atribuida aos homens do Renasci mento, não poderia
constituir simples retorno àquela, pelo fato de que a experiência cristã, ainda
enfraquecida em sua estrutura teológica, permanece gravada em suas fibras profundas.
Assim é que a mentalidade moderna, oriunda dessa profunda crise da tradição, possui
caracteres próprios, distin tos, ao mesmo tempo, do homem da Idade Média e do da
AntigUidade. Não resta dúvida de que, em geral, o espírito contemplativo, nos gregos, se
elevou a ideal de vida. Na prática, não se lhes pode, por certo, negar certo ativismo,
ilustrado, por exemplo, por sua atividade colonizadora. Mas o motivo ético insp irador
que neles prevalece é o de uma purificação, de um desprendi mento, de uma ascese, com
vistas a uma finalidade humana decorrente de uma ordem cósmica preestabelecida,
ordem eterna que não se trata de modi ficar, e sim de conhecer, para nela integrar-se.
Esses motivos gregos de puri
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ficação ou de renúncia são retomados como próprios pelo cristianismo, mas com espírito
diferente, pois sua pregação da fé e da esperança postula verda deira metamorfose do
real. Nesse sentido, comporta um elemento revolucio nário de extrema importância, na
medida em que subordina a objetividade cósmica a uma visão histórica das coisas, a um
dever-ser ligado a uma escato logia que prevalece sobre a descrição ontológica. E, no
século XVI, essa subje tividade liberada pela intuição cristã libera-se, por sua vez, do
esquema no qual se havia encerrado, a fim de orientar-se resolutamente no rumo do
universo sensível, numa perspectiva ativista que lhe abre horizontes e tarefas ilimitadas.
Em outros termos, o homem, tornado sujeito espiritual na intuição cristã, assim
permanece quando toma consciência de suas próprias forças criadoras. Essa, a razão pela
qual o motivo essencial do cristianismo - revolução interior no sentido de uma
exacerbação da vida subjetiva - não poderia permanecer estagnado na negação ascética
do mundo a que geral mente viera dar, nem tampouco numa sistematização do real em
hierarquia fechada do tipo tomista.
A idade cristã era dominada pela concepção de Deus como ser perfeito, existente antes do
homem e independentemente dele; como perfeição absoluta da qual o homem se afastara
de modo misterioso. Esse afastamento o pecado original devia explicar por uma revolta
do homem contra o Criador, numa concepção que faz desse retorno à felicidade perdida o
sentido da vida. Quando essa submissão exclusiva desaparece - já Maquiavel ridiculiza o
homem ajoelhado que apenas conta com Deus para salvaguarda - acarreta uma subversão
nas relações entre o homem e o mundo. Quando a natureza se impunha com todo o peso
de dado maciço, as pesquisas das quais é objeto trarão aos homens uma certeza exaltante:
a de que as forças misteriosas e hostis que a povoam podem ser domesticadas para a
realização de seus fins. Subtraído aparentemente à fatalidade natural, o ser humano
aparecerá a si mesmo corno uma espécie de criador na segunda potência, que opõe e
sobre- põe, pouco a pouco, à natureza ingênua, uma natureza
revista e corrigida por ele, artificial, transparente a seu espírito que a produz. Desde a
origem dos tempos modernos o individualismo e o senso de liberdade são muita vez
acom panhados da crença de que pesquisas científicas bem conduzidas garantirão
progresso ilimitado à humanidade. Esses motivos nascentes se acham ilustra dos, de
maneiras diversas, é claro, pelos grandes homens do Renascimento. Enquanto um
Leonardo da Vinci, por exemplo, se orienta nitidamente para a natureza no sentido
derivado, um Montaigne permanece preso à primeira. Se a "segunda" natureza provoca,
pouco mais tarde, o entusiasmo de um Galileu, de um Bacon, de um Descartes, o drama
de Pascal, diante do que experimenta como os limites da insuficiência radical da ciência,
ilustra o tormento produzido num grande espírito pela agonia de um mundo. Parece,
assim, que o homem moderno, conservando em si a intuição cristã do mundo, mas
tendendo a despojá-la de seu invólucro teológico, chega a uma nova experiência da alma,
sentida essencialmente como exigência de superação. Experiência inseparável da ação,
na medida em que o dado como tal não passa de condição necessária a essa
superação. Para assinalar o prolongamento desses motivos essenciais, basta lembrar que a
grande filosofia alemã, no início do século XIX, está sempre na perspectiva brotada
nesse momento da história e da qual não passa de acentuação. Substituindo a sabe doria
pelo heroísmo, e a contemplação pelo ativismo, Fichte tenderá a reduzir
112
í
a vida religiosa a um estilo de vida consciente e enérgico. Hegel instaurará
uma metafísica dinâmica, chamada a conciliar, no desenvolvimento histórico,
a identidade e a mudança, a permanência e o devir, a eternidade e o tempo. E
o próprio Goethe, embora se mova fora dos quadros do idealismo transcen dental de
Kant, exprimirá a concepção de uma vontade absoluta manifesta
em criações sempre novas; a tal ponto que Oswald Spengler caracterizará o
homem moderno pelo epíteto de "faustiano".
3. A Reforma e a demonologia
Tem-se observado, muitas vezes, que o Humanismo e a Reforma provêm de movimento
análogo. Isso é verdadeiro no respeitante a seu aspecto negativo, já que sua pretensão
comum é remontar a fontes consideradas mais autênticas e válidas do que as glosas
acumuladas sob a égide da autoridade; e já que o mesmo zelo pela verdade anima o
desejo de conhecer o verdadeiro pensamento dos Antigos e o de reencontrar a pureza das
Escrituras. Por outro lado, a Reforma caminha no sentido daquela liberação característica
do nasci mento do mundo moderno, na medida em que pretende restituir ao indivíduo,
investido de valor insubstituível, o livre exame de sua verdade religiosa. Mas o indivíduo,
assim restabelecido em sua subjetividade imediata e abstrata, não é reduzido apenas a
suas próprias forças para a luta que deve travar com vistas a novo destino, e sim
novamente entregue ao poder de uma realidade trans cendente. A desconfiança do
pensamento reformado acerca da energia humana como tal, muito bem expressa pela
doutrina do Servo arbitrio, faz que realce essa graça que já Agostinho considerava
inseparável de uma verda deira humanidade. Portanto, a inspiração protestante está, nessa
matéria, muito distanciada da do individualismo humanista; e
mal e mal surpreende que os defensores deste último, pai do racionalismo moderno,
tenham sido freqüentemente mais hostis ao protestantismo do que à antiga Igreja, por
eles geral e passivamente admitida. Pois, os homens do Renascimento, quando se
propõem deliberadamente o problema religioso, não tendem mais a renegar- se em
proveito de uma realidade transcendente, e sim a participar do divino. Nos mais nobres
deles, a aspiração a uma visão do mundo mais ampla e desin teressada os conduz a
elevar a vida do indivíduo ao nível da do universo. Giordano Bruno, depois de Nicolau
de Cusa, aparece como o representante mais ilustre da tendência a essa especulação
cósmica, ultrapassando o natura lismo professado por outros em sentido mais empírico.
Em nível menos elevado, as transições se manifestam com ritmos muito desiguais. De
maneira geral, a desafeição pelas práticas da Igreja na classe superior e na classe média é
acompanhada de grande condescendência para com os poderes eclesiásticos e as práticas
religiosas. Quanto ao povo, permanece, no mais das vezes, mergulhado nas superstições,
com o interesse sempre conquistado pelos elementos mágicos da religião. Ainda uma
vez, portanto, a nova disposição do espírito, orientada para o mundo e as coisas deste
mundo, pactua com as crenças antigas; e como o homem continua, forçosamente, a
debater-se sob os golpes do destino, é fre qüente recorrer à astrologia, e até à magia, para
desvendar o futuro e influen ciar favoravelmente os acontecimentos. No início do século
XVI, estranhas figuras - a de Paracelso é a mais típica dentre elas - surgem no mundo
113
médico, ilustradas pela lenda do doutor Fausto. É curioso notar que nunca o diabo esteve
tão difundido como no momento em que se afirmam as novas exigências racionais.
Atribui-se-lhe, muito geralmente, uma seita, por volta de 1460, e por toda parte se vêem
feiticeiros e feiticeiras, cuja perseguição é feita em larga escala, enquanto
os livros de demonologia se multiplicam até o primeiro terço do século XVII. Sucedem-
se, por toda parte, os grandes processos de feitiçaria, apoiados pela tortura; e incrível
sugestão parece exercer-se sob o império do terror inspirado pela opinião e pelos juizes.
4. O homem como objeto de pesquisas concretas
Raros são, no mundo médico, os que ousam diminuir, ou contestar, a parte do diabo nas
manifestações delirantes, para invocar causas naturais. E certo que tal preconceito
paralisou o progresso da psicopatologia dentro da imensa renovação cultural da época.
Encontram-se, contudo, homens que opuseram pontos de vista racionais às superstições
gerais, sobretudo em presença de perturbações que não pareciam diretamente devidas à
influência do diabo. Assim é que Giovanni Battista de Monte, de Pádua (1498-1552),
procura combater a melancolia por meio de banhos e sangrias; que Gerolamo Mercuriale,
de Forli (que atribui aos excessos da época a freqüência dessa afecção), trata a "mania
sanguínea" com sangrias, a "mania biliosa", com colagogos, a "ma nia estrabiliosa" pelos
purgativos e pelos cautérios. Em seu ensaio de classificação das psicoses, Felix Plattner
(1536-1614), embora admi tindo-lhes ainda a origem sobrenatural, classifica-as em
quatro categorias:
mentis imbecil/itas (debilidade de espírito); mentis consternatio (perda da consciência na
epilepsia, na catalepsia e no coma apoplético); mentis alienatio (diversas alienações) e
mentis defatiga tio (a excitação).
Quanto a Jerônimo Cardano (1501-1576), médico, naturalista, astró logo e matemático,
sua obra('), e particularmente seu De utilitate ex adversis capienda (1561), é de real
interesse para a história da psiquiatria. Muito característica das novas tendências da
época, exprime, com singular liberdade de procedimento, as vicissitudes de um espírito
movido por incoercível exigên cia de liberação, mas obsedado por toda espécie de
temores, e para o qual o ocultismo pode aparecer, a um tempo, como sucedâneo do
sobrenatural cató lico, em vias de esboroar-se, e como campo aberto à investigação
científica. Pois, embora não destituído de preconceitos e superstições, Cardano coloca
em primeiro plano a razão e a experiência. Sem deixar de estimar Galeno, cujas obras
estudou, zomba daqueles cuja fidelidade ao grande médico é tal que prefeririam ver
mortos seus doentes a afastar-se dele (Ars curandiparva). E, embora interprete seus
sonhos e os de seus pacientes com a preocupação de neles buscar revelações proféticas,
descobre neles outros sinais. Por exemplo, uma associação de imagens em função da
linguagem:
"Conta Matteo Ferrari Gradi que um cavaleiro, ao sonhar que comia, sentia dores de
cálculo. E, se lhe parecia comer alimentos de difícil digestão, suas dores se
prolongavam por vários dias. Eis a razão: o verbo "degustare" se aplica tanto às dores
como aos alimentos." (Synesiorum somniorum.)
(1) Editada em Lyon por Charles Spon. em 1663 (Opera Oninia. Lugduni cura Carr,li
Spv,,ii surnphibus, J. A. Haguetan e M. A. Ravaud).
Assim, também, sua crença nas influências benéficas ou maléficas dos astros não o
impede de encarar objetivamente fenômenos o mais das vezes atribuídos ao demônio. E
assim que vê nas alucinações (das quais ele próprio sofria) simples desordens mentais; e,
no êxtase, um fenômeno intermediário entre o sono e a vigília, no qual a alma é
impressionada por imagens sensoriais a ponto de admitir a presença real de seus objetos
(De subtilitate, Synesiorum somniorum). A esse propósito, insiste no enfraquecimento do
espírito, produ zido - particularmente nos eremitas - pelas práticas ascéticas e pelos
jejuns. Seu De propria vita, que causou escândalo e lhe valeu reputação de cínico,
constitui verdadeiro documento de psicologia introspectiva. Complacente- mente, mas
sem complacência, se assim se pode dizer, aí se analisa com minúcia, quanto ao físico e
ao moral('), descreve sua maneira de viver, informa seu leitor sobre o que come, fala de
seus amigos e inimigos. Ao ler o retrato que faz de si mesmo, manifesta-se que os
contrastes de seus escritos lhe refletem realmente os contrastes da personalidade:
Conheço bem meu cará.ter: sou veemente, ingênuo e sensual; desses traças principais
decorrem a crueldade, a obstinação nas disputas, a rudeza, a imprudência, a cólera, o
desejo e a vontade de vingar-me além de minhas forças.
E, no entanto, sou sincero, fiel às mercês, apaixonado pela justiça, dedicado aos meus,
desdenhoso do dinheiro. Cultivo a glória do além-túmulo."
As preocupações de Cardano a respeito das relações entre a alma e o corpo, o qual se
apresenta, para ele, como espelho da vida interior, incitam- no a observações que
caminham no sentido de uma verdadeira caracterologia, e até de uma fisiognomonia.
Distinguem essas observações, com agudeza, as propriedades morfológicas
correspondentes aos diferentes vícios humanos e constituem outros tantos minuciosos
retratos físicos do dissimulador, do ladrão, do assassino... (De utilitate...) Indagando -se
sobre os efeitos orgâni cos das paixões, atribui-lhes o poder de abreviar a vida,
observando que a própria alegria pode provocar morte súbita. A seu ver, a mais letífera
das paixões é o medo, que produz a tristeza. Por isso, considera, como fonte essencial de
prazer, a saúde do corpo, inseparável de certo equilíbrio psíquico do qual os estóicos
apontaram o caminho.
Em suma, de maneira mais geral, são marcantes no plano psicológico as incidências da
nova atitude. Consistem no senso e no gosto das diferen ciações da vida concreta, tal
como atesta especialmente a arte do retrato. Tudo quanto se refere a ele mesmo interessa
ao homem no mais alto grau:
suas características individuais e coletivas, seu rosto, seus membros, sua anatomia, suas
disposições interiores e a expressão delas, sua vida quotidiana. Esse gosto pelo concreto
se manifesta também por um sem-número de investi gações médicas, anatômicas e
fisiológicas. Todo um conjunto de pesquisas, empreendidas bem mais com a preocupação
de observação objetiva do que em função de preocupações morais, vem, assim,
enriquecer grandemente o patri mônio da psicologia individual e social. Sabe-se que o
imenso interesse susci tado pelo corpo humano também é demonstrado pela arte, onde
reaparece o nu; e que as preocupações científicas e artísticas coexistem freqüentemente
(1) "Esquecia-me: na parte inferior da garganta, tenho um tumor em forma de pequena
bola dura, mal e mal visível, que provém da família de minha màe..."
114
115
nos mesmos indivíduos, como é atestado especialmente pelas obras de Leonar do e de
Rabelais.
É fora de dúvida que mal havia a preocupação de tais pesquisas na Idade Média, quando
a vida médica, por exemplo, estava estagnada nos limites de uma prática que devia quase
tudo à erudição e à rotina. Com a nova mentalidade - favorecida ou entravada pelas
condições locais - grande corrente de ar fresco as vivifica, particularmente na
Itália, onde florescem nos centros, célebres desde então, de Pádua e de Bolonha; noutros
países, espe cialmente nos de Basiléia, de Heidelberg e de Montpellier e, mais tarde, de
Paris. A anatomia, a fisiologia e a história natural destronam a teologia e tendem a
assumir lugar preponderante na instrução superior. Como a dissecção se mostra o único
meio de conhecer verdadeiramente o organismo humano, passa a despertar verdadeiro
entusiasmo. Assim é que Gabriel Fallopio (1523-1562), cônego da catedral de Módena,
favorecido pelo Estado veneziano, do qual dependia o célebre Siudio de Pádua, que lhe
cedeu conde nados à morte para experimentos, renuncia a seu benefício para dedicar-se a
estudos anatômicos. A única obra publicada durante sua vida, Observationes anatomicae
(Veneza, 1561), marca data importante na história da anatomia. Mas o papel essencial
neste domínio foi desempenhado por André Vesálio (1514-1564), em quem a exigência
experimental se exprimia por violenta oposição à autoridade dos antigos e
cuja paixão pela nova ciência se tornou legendária. Vesálio é considerado o pai da
anatomia moderna, o que só se poderia contestar se os trabalhos de Leonardo não
tivessem caído no olvido durante séculos. Sua obra capital, publicada em Basiléia, em
1543, com estampas de Stefano Calcar, discípulo de Ticiano, sob o título de De
Corporis Humani Fabrica, oferecia, pela primeira vez, uma descrição completa do corpo
humano. Por outro lado, deve-se a um discípulo de Fallopio, que con tinuará a tradição
anatomista de Pádua - Fabrício d'Aquapendente (cirur gião, anatomista e fisiólogo) -
pesquisas sobre as emissões da voz, sobre a articulação da linguagem, o mecanismo da
respiração e os movimentos da pupila em relação com a intensidade da luz. Em todos
esses trabalhos, apenas faltava uma descrição completa da circulação do sangue. Esta se
deverá, parcialmente, a Miguel Servet que, incidentemente, em sua obra teológica
Christianismi restitutio (1553), descreve exatamente a pequena circulação ou circulação
pulmonar, prelúdio à teoria completa que Harvey exporá em seu Exercitatio anatomica de
motu cordis et sanguinis in animalibus (1628).
Deveríamos mencionar muitos outros autores, cujos trabalhos, afinal, interessam mais à
fisiologia do que à psicologia: Realdo Colombo de Cremo na, por exemplo, discípulo de
Vesálio; seu próprio discípulo Andrea Cesal pino, filósofo, naturalista, botânico, médico;
outro grande anatomista, adver sário de Vesálio, Bartolomeo Eustacchio, médico dos
cardeais Carlos Borro- meu e Júlio de la Rovera, e cujo nome sobreviveu graças à
descrição, que deu, do canal de comunicação entre o ouvido e as fossas nasais
(trompa de Eustá quio). A cirurgia se beneficia com essas pesquisas e, por conseguinte,
também progride. Sabe-se que a obra de Ambroise Paré (1517-1592), o qual traduziu
Vesálio para o francês, contribuiu essencialmente para isso.
O capítulo seguinte é dedicado às idéias psicológicas de alguns autores que ilustram
essa época de grande fermentação. O quadro aí composto não
poderia ser completo e deixa forçosamente na sombra obras que mereceriam ser
estudadas por mais de um título. E especialmente o caso do tratado De anima et vita
(1538) do humanista espanhol Juan Luis Vives (1492-1540), no qual as paixões e as
representações, muito antes de Descartes e de Spinoza, são submetidas a exame
sistemático (livro III), com o fim de estabelecer que a tendência fundamental do
sentimento, contrariamente à opinião dos estóicos, é sempre diferenciada e se caracteriza,
quando negativa, pelo ressentimento (animi offensio). Por o utro lado, Vives se apresenta
como um dos precursores da psicologia como ciência autônoma, na medida em que
preconiza o estudo das funções da alma de preferência ao estudo de sua natureza e de seu
destino. (*)
() A propósito de VIVES como psicólogo, o. Noemy da Silveira RUDOLFER,
Introdução ps educacional. vol. 30 destas Atualidades Pedagógicas". São Paulo, 3' cd.,
1965, págs. 6-10. (3. B. O. P.)
116
117

CAPÍTULO XIV
AS IDÉIAS PSICOLÓGICAS NO RENASCIMENTO
1. LeonardodaVinci
2. Paracelso
3. Pietro Pomponazzi
4. Bernardino Telésio
5. Giordano Bruno
6. Michel de Montaigne
7. Francis Bacon
1. Leonardo da Vinci
Leonardo da Vinci (1452-1519), arquiteto, pintor, pensador. escritor, matemático, físico,
anatomista e que também se ocupou de mecânica, hidráu lica e estratégia, é
representativo por excelência das novas tendências cultu rais do Renascimento. E
conhecido o entusiasmo de Paul Valéry por essa "obra-prima de existência harmônica e
de plenitude das potencialidades humanas", a mover-se "em todo o espaço do poder do
espírito"; e por aquele que
"semelhante aos príncipes da terra, que perseguiam suas presas através dos domínios,
sem cuidar de cercas e limites, perseguia como soberano senhor do intelecto o prazer de
compreender e forçar o mistério das coisas, sem respeito às categorias que convêm às
escolas e ao comum dos espíritos( 1)",
Em face de tal louvor, "o comum dos espíritos" quase se envergonha de confessar que
essa falta de "respeito às categorias" lhe impede uma esquema tização satisfatória dessa
obra. Pois sua parte escrita, contida essencialmente em fragmentos e notações
incompletas, pulula em intuições geniais, mas con traditórias, já no concernente à
concepção fundamental da natureza, que nele oscila entre um determinismo acessível à
redução físico-matemática e um naturalismo animista e místico, de tal modo que pode
aparecer, ora como precursor de Galileu e de Descartes, ora - quando invoca a
misteriosaforza
- como precursor de Bruno e Campanelia.
(1> Prefácio aos Carneu de L de Vinc lrad. de Louise SERVIGEN, 2 vols., Gailimard,
1942.
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Sobretudo no início, impressiona-se com as analogias que descobre entre o corpo humano
e as estruturas do Cosmos, provavelmente sob a influência do Timeu platônico; então é a
idéia do microcosmo que pre domina:
Pois se o homem é composto de água, ar e fogo, o mesmo se dá com o corpo da terra; se
o homem tem em si uma armadura de ossos para a carne, o mundo tem seus rochedos,
suportes da terra; se o homem contém um lago de sangue, onde os pulmões, quando ele
respira, se dilatam e se contraem, o corpo terrestre tem o oceano, que cresce e decresce
a cada seis horas, com a respiração do universo; se desse lago de sangue partem as veias
que se ramificam pelo corpo humano, o oceano enche o corpo da terra com uma
infinidade de veias aquosas... (1)"
A força criadora da natureza suscita-lhe a admiração:
Ela não precisa de contrapeso para criar, no corpo dos animais, os membros próprios para
o movimento. Coloca neles a alma do corpo que os cria, isto é, da mãe, que começa por
construir na matriz a forma do homem e, no tempo desejado, desperta a alma destinada a
habitá-lo. Pois esta, de início, permanece adormecida, sob a tutela da alma maternal que a
alimenta e lhe dá vida por meio da veia umbilical, com todos os seus órgãos espirituais.
Assim ocorre até que o cordão umbilical se lhe una pelas secundinas
e pelos cotílédones que prendem a criança à mãe. Eis por que a criança sente todo
desejo intenso, todo terror, ou outro sofrimento moral de sua mãe, com mais força do
que ela própria, a ponto de, em muitos casos, morrer por isso(2)."
Quase não é preciso observar que essa espécie de divinização da natu reza está em
completa ruptura com o dualismo medieval; antes lembra
Heráclito:
"O movimento é o princípio de toda vida(
"O ferro se enferruja por falta de uso, a água estagnada perde a pureza e gela
com o frio; assim também a inação mina o vigor do espírito." (Códice Atlântico, 289 v.
c.)
Alguns traços à Nostradamus, frutos de imaginação que se compraz numa espécie de
visão apocalíptica, soam estranhamente nas conjunturas contemporâneas, e parecem
confirmar o pessimismo às vezes atribuído a Leonardo. Este, muito particularmente, de
singular aspereza, sobre a cruel dade do homem:
"Ver-se-ão sobre a terra criaturas a combater-se sem tréguas, com grandes perdas e
mortes freqüentes de ambos os lados. Sua malícia não conhecerá fronteiras; nas imensas
florestas do mundo, seus membros selvagens abaterão ao solo considerável número de
árvores. Uma vez fartos de alimento, quererão saciar seu desejo de infligir a morte, a
aflição, o tormento, o terror e o desterro de toda coisa viva. Por força de sua soberba, hão
de querer elevar-se ao céu, mas o peso excessivo de seus membros os reterá embaixo.
Nada subsistirá sobre a terra, sob a terra, ou nas águas, que não seja perseguido, ou
molestado, ou destruído; e o que está num país será carregado para
outro; e seus próprios corpos se tornarão a sepultura e o conduto de todos os corpos
(1) V& op. ci vol. II, pág. 17.
(2) Ibid., vol. 1, pág. lt
(3) lbid., vol. 1, pág. 71.
119
•1
vivos que mataram. Ó Terra! como tardas a abrir-te e a tragá-los nas aberturas profun
das de teus grandes abismos e de tuas cavernas, e a não mais mostrar à face dos céus
monstro tão selvagem e tão implacável?(l)"
Parece que em Leonardo a tonalidade pessimista brota sobretudo de uma decepção
diante do contraste entre seu ideal do homem e o homem real, pois é grande seu
entusiasmo pelo poder humano de continuar, em novo plano, a ação criadora da
natureza. E sua aspiração em libertar a inteligência de todas as golilhas do espírito de
abstração, dos preconceitos e da submissão ao princípio de autoridade, implica
forçosamente uma fé no homem e no valor das pesquisas fundadas na experiência,
experiência cujas condições não são, nele, submetidas a verdadeiro exame crítico, mas
que, em todo caso, não se reduz a um empirismo radical; ao contrário, orienta-se para
uma espécie de racionalismo que reserva às matemáticas papel preponderante:
'As coisas do espírito que não passaram pelos sent idos são vãs... (2)"
'As verdadeiras ciências são aquelas que a experiência fez penetrar pelos senti dos e
impõem silêncio à língua dos argumentadores... (3)"
'Nenhuma investigação humana poderá intitular-se verdadeira ciência, se não passar
pela demonstração matemática(
Certas passagens fazem pensar na afirmação kantiana sobre a vacui dade do conceito
sem a matéria trazida pelos sentidos:
Se duvidamos de cada coisa que passa pelos sentidos, quão mais ainda deve ríamos
duvidar das coisas rebeldes a esses sentidos, como a essência de Deus, a alma e outras
questões similares, em torno das quais sempre se argumenta pró e contra e se batalha. E
realmente é sempre preciso, onde falta a razão, que a dissertação lhe faça as vezes, o que
não se dá com as coisas certas. Diremos, portanto, que quando se epiloga sem fim, não
há ciência verdadeira... (5)"
"Fuja aos preceitos desses especuladores cujas razões não são confirmadas pela
experiência(
Vale dizer que Leonardo rejeita com altivez toda definição da alma pelo simples
raciocínio:
deixo o cuidado disso aos monges, esses pais do povo, os quais, por revela ção, sabem
todos os mistérios."
Afirmação cuja ironia parece não ser corrigida senão formalmente pela que se segue:
"Não falo absolutamente contra os Livros Sagrados, pois são a suprema ver dade(
(1) Prophét em Les carneis deLéoxa, Vinci. op. cii., vol. 11, pág. 409.
(2) Lésva,d de Vim, par I textos escolhidos. traduzidos e anotados por André
CHASTEL, Nagel, 1952. pá 123.
(3) Tca de la pe,nlare. 1, 7. trad. PÉLADAN, Delagrave. 1910.
(4) llsid. 1. 35.
(5) Ibid., 1. 7.
6) T,aii de ia pei, 1, II
(7) Les cw'xeis de Léonard de Vixc,, op. cii., vol. 1. pág. 166.
Mas, se a experiência é investida, por Leonardo, de soberana autori dade, implica, a seu
ver, a intervenção da intelígência, que faz "descobrir
alei"(').
Os que se limitam à prática são
como marinheiros que sobem num navio sem timão, nem bússola, e não sabem nunca
com certeza aonde vào(
A experiência assim entendida, colaboração entre os sentidos e o inte lecto, deve ser
conduzida em plena liberdade e repugna todo princípio de autoridade:
"Pobre discípulo, o que não ultrapassa seu mestre(
O que o apaixona é o homem "total", no pleno exercício de seus poderes. O homem
como ser natural, sim, mas capaz de criar, por seu espí rito, um mundo especificamente
humano e que, assim, ultrapassa a natureza de onde emerge.
Seus estudos anatômicos atestam seu interesse pela existência humana concretamente
entendida e a reabilitação do corpo que o caracteriza com relação ao ascetismo
medieval. Sabe-se que andou dissecando uns trinta cérebros de homens e de mulheres
de todas as idades, e que preparava um grande tratado de anatomia, fisiologia e
anatomia comparada( Esses estu dos, considerados admiráveis pelos especialistas, são
bem anteriores aos de Vesálio, criança ainda quando da morte de Leonardo. Neles, os
ossos e os músculos, o coração, os vasos e as válvulas, os nervos cranianos são objeto
de minuciosa descrição.
Leonardo ensaia uma explicação do papel dos nervos por um fluido contido nos
ventrículos do cérebro e transportado por nervos ocos de calibre extremamente reduzido.
Por isso atribuía bastante importância ao estudo dos ventrículos, de sua forma e do fluido
neles contido. Artesão hábil em fundir figuras de bronze, tentou resolver
experimentalmente o problema proposto pela presença desses espaços no interior do
cérebro, de consistência mole, utilizando cera quente para enchê-los por meio de uma
palha oca, enquanto o fluido ventricular se escapava por outro orifício. O processo lhe
deu imagem muito fiel dos ventrículos do cérebro de boi, por felicidade muito
semelhante ao dos mesmos espaços no cérebro humano. Do descobrim de que o nervo
vago tinha origem no soalho do terceiro ventrículo, e a extremidade do vago esquerdo se
ligava ao coração concluiu que essa região do soalho do terceiro ventrículo controlava o
coração e era, assim - mais do que esse próprio órgão
- a verdadeira sede da alma(s). A conexão dos órgãos dos sentidos específicos
(1) Teaii de ia peinture, op. cii.. 1, 20.
(2) Ibid.. 1,28.
(3) Les carn eis de Léo,,ard de Vinci, op. cii., vol. 1, pág. 90.
(4) Esse trabalho, cuja maior parte foi encontrada na Biblioteca Real de Windsor,
permaneceu desco nhecido por vários séculos. Uma primeira coleção de fiO cadernos
manuscritos e de 500 desenhos apareceu em duas vezes (Paris, 1898; Turim, 1901).
Depois, 120 cadernos e mais de 1.000 desenhos foram publicados, de 1901 a 1907, sob
os cuidados da Universidade de Cristiana.
(5) Elmer BELT, "Les disseclions analomiques de Léonard de Vinci", ii Léonard de
Vi,sc, ei 1 expéi'ieace scie aa seiziéme sièc!e, P.U.F., 1953, pág. 207.
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121
com o sistema nervoso central parece-lhe demonstrada pelo exame da visão, da audição,
do olfato, do tacto. Pois esses sentidos específicos seriam inexpli cáveis sem a
admirável ramificação dos nervos e dos músculos que afluem todos ao senso comum,
servidor da alma.
Mas é o sentido que traz algo à alma e, não, o inverso; os casos do mudo e do cego de
nascença provam que ela não poderia, por si só, conhecer o papel dos sentidos (De
Anat., B, 21). Sucede até que os nervos trabalhem por si mesmos:
"Isso aparece com evidência, pois verás os paralíticos, ou aqueles a quem o frio faz
tremer ou entorpece, mover seus membros trêmulos, cabeça ou mãos, sem permis são de
sua alma que, malgrado todo o poder, não poderia impedir esses membros de agitar-se.
Observa-se também esse fenômeno nos casos de epilepsia ou de membros cortados, como
a cauda do lagarto(')."
Iniciador, igualmente, no domínio da psicologia animal, entregou-se a experimentos
sobre a medula espinal e os intestinos da rã. Tendo verificado que esta vive algumas
horas após ablação da cabeça, do coração e dos intes tinos, mas morre se lhe cortamos a
medula espinal, inclinou-se a pensar que aí se encontra a fonte do movimento e da vida.
(Quaderni, V, 21 r.)
Todas as pesquisas de Leonar$o têm por fundamento o interesse que devota ao homem,
encarado em perspectiva concreta e unitária. Pensa que o ser humano, nascido na
natureza, está forçosamente sujeito a suas leis:
"A natureza, caprichosa e comprazendo-se em criar e produzir contínua suces são de
vidas e de formas, as quais, sabe ela, concorrem para o acrescentamento de sua
substância terrestre, está mais decidida e prestes a criar do que o tempo a destruir; eis
porque prescreveu que muitos animais sirvam de alimento uns aos outros; e, não
bastando isso para satisfazê-la, sopra freqüentemente certos vapores nocivos e pesti
lenciais (e contínuas pestes) sobre as vastas aglomerações e tropas de animais, em
particular dos homens, que se multiplicam muito rapidamente, porque os outros animais
não se alimentam deles; e suprimidas as causas, cessarão os efeitos(
Há constantemente vida e morte dos corpos e o do homem se desagrega e putrefaz como
os dos animais. Mas, que é feito da alma humana? Parece com efeito que Leonardo
tenha chegado a pensar que seus liames com o organismo são íntimos demais para que
se lhe possa atribuir o privilégio de sobreviver à destruição deste último:
"A alma deseja ficar com o corpo, pois sem os membros desse corpo ela não pode agir
nem sentir." (Cód. Ati., 59 r. b.)
A faculdade visual aparece, mais de uma vez, para Leonardo, como idêntica à atividade
psíquica( o entusiasmo que lhe inspira é tal que a ela atribui, metaforicamente, todas as
aquisições da razão( Se é certo que o
(1) Les camela deLéonard de Vinci, op. cii.. vol. 1, pág. 107.
(2) Ibid., pág. 74.
(3) I'or ex. no Traité de iapei,.fure, op. cii.. II, 52.
(4) Ibid., III, 57.
sentido da visão desempenha importante papel na atividade racional, é curioso ver
Leonardo atribuir aos olhos o que pertence à consciência em suas relações com o olhar:
"Como os olhos são a janela da alma, esta tem sempre medo de perdê-los; de sorte que,
na presença de algo que lhe causa inesperado susto, o homem protege com as mãos, não
o coração, fonte da vida, nem a cabeça, habitáculo do senhor dos sentidos, nem o ouvido,
nem o olfato, ou o sentido do gosto, mas antes, imediatamente, o sentido amedrontado; e
não contente com fechar os olhos, cerrando as pálpebras com a maior força possível,
volta-se para o lado oposto; e, não se sentindo ainda assim garantido, o homem leva a
eles uma das mãos, estendendo a outra como anteparo contra o objeto do terror(i)."
Repugnando-lhe falar da alma como entidade que não teria necessi dade dos órgãos dos
sentidos para manifestar-se, mostra-se Leonardo severo para com os devaneios dos
necromantes e dos alquimistas( Se a alma fosse incorpórea, seria inexistente, pois
representaria um vácuo que, não existente na natureza, seria imediatamente preenchido
pelo elemento onde e engendra. E se alma fosse, por exemplo, um corpo aeriforme,
ficaria esparsa no ar. Em suma, é manifesto que a alma e a vida não são, para ele,
realidades julgáveis independentemente da experiência, única capaz de fazer-nos chegar,
nesse domínio, a algum conhecimento válido. Tal atitude resolve, de certa maneira, o
conflito entre a ciência e a fé; não poderia, contudo, apaziguar o desejo de compreender-
lhes verdadeiramente a natureza e o respectivo papel. Daí se tira apenas a idéia válida de
que a ciência, como tal, é estranha e indiferente à reli gião. Por outro lado, Leonardo
atribui importância essencial à capacidade humana de julgar, pois, se os sentidos
fundamentam, a seu ver, todo conheci mento verdadeiro, vimos que é a inteligência que
lhe confere significação e alcance.
Seria algo artificial insistir demais na analogia de semelhante concep ção com a filosofia
transcendental de Kant, dado o caráter tão pouco sistemá tico de Leonardo nessa matéria
e dado, sobretudo, o número de problemas que virá, mais tarde, alimentar a reflexão do
filósofo alemão. Igualmente artificial seria considerar Leonardo precursor de Copérnico
por haver escrito que "o sol é imóvel", ou de Newton, por haver enunciado que "todo
peso tende a precipitar-se para o centro pelo caminho mais curto".
Resta, porém, que o conhecimento é efetivamente, segundo ele, produto de colaboração
entre os dados dos sentidos e o juízo, cuja importância percebeu perfei tamente.
É certo que Leonardo faz, do homem, idéia muito elevada, como ser cujas qualidades e
poderes, por pouco que se liberte de todas as golilhas oriundas do espírito de abstração e
da submissão passiva à autoridade, podem assegurar-lhe destino excepcional; como ser
capaz de criar, pelo poder do espírito, uma segunda natureza a partir da natureza eterna
e infinita, origem das coisas, por ele encontrada como dado.
(1) Les camnets de Léonard de Vinci, vol. 1, pág. 213.
(2) Cf. Giuseppe SAITTA, I pensiemo italiano ,aell e sei rtnasctmento, Bolonha, 1950,
2? vol., págs. 28-29. O 3? volume contém importante bibliografia do Humanismo e do
Renascimento na Itália, págs. 539-576.
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2. Paracelso
Como outras nascidas em países germânicos, e antes da de Jakob Boehme (1575-1624),
a obra do suíço Philippus Aureolus Bompast von Hohenheim, aliás Teofrasto Paracelso
(1493-1541), é característica do novo surto do pensamento nessas regiões da Europa
onde, menos provido dos recursos oferecidos, nos países latinos, pelo legado greco-
romano, esse pensa mento atesta originalidade mais inopinada. Nessa obra densa e de
termino logia muita vez imprecisa (1), os elementos passadistas e os do futuro se
chocam, a ponto de quase não ser possível levar em conta o que lhe é contin gente, nem
mesmo falar dela resumidamente, com o sentimento de fazer-lhe justiça. Foi sempre
controvertida ainda durante a vida do autor, após sua morte e até os dias de hoje.
Não se ignora que o aoutor René Allendy, por exemplo, nela encontrava um pábulo para
seu gosto pelo ocultismo. No decorrer da moléstia que rapida mente deveria levá-lo, seu
pensamento volta àquele que tanto praticara, àquele mestre que saúda como o
"infatigável campeão das causas desconhe cidas":
"Paracelso é toda a alquimia, todo o ocultismo, para os quais me voltei ao sair da
infância, a nova fé que tentei reconstruir após minhas decepções religiosas; mas
também, em medicina, a porta aberta para horizontes mais sutis, a visão hipocrática da
unidade misteriosa a regrar o indivíduo sobre o mundo e a concordância total de todos
os seus constituintes(
Também seu compatriota C. G. Jung, cujo interesse pelos alquimistas é conhecido,
pensa que a medicina - cada vez mais coagida a admitir um "fator psíquico" - deve
"retornar, de alguma forma, à concepção paracélsica de uma matéria psiquicamente
animada", e que Paracelso se torna, assim, como que o "símbolo de uma transformação
radical na maneira de entender a doença e a própria essência da vida"( A tais
julgamentos é licito contrapor outros, bem menos positivos e, até, francamente
negativos, provenientes de espíritos mais "oficiais"; como o seguinte, de um professor
de parasitologia e de história da medicina:
"Para muitos autores, a medicina do Renascimento se resume na obra de Para celso
(1493-1541), de quem os alemães fazem o promotor da medicina moderna, quan do na
realidade sua obra quase não interessa à medicina. Foi, de fato, um vagabundo
melômano, a mascatear bíblias de cidade em cidade, e com elas suas brochuras e retratos;
um empirista grosseiro e supersticioso, alquimista e astrólogo de praça pública, a buscar
exaltação no alcoolismo e na loucura(
Como quer que se encarem essas divergências entre os comentadores que, o mais das
vezes, assimilam ou repudiam a obra de Paracelso em função de seus próprios interesses
mentais, é evidente que nela não se poderia encon trar uma psicologia no sentido em
que hoje a entendemos, pelo fato de a concepção do homem ser, em Paracelso,
inseparável desse ocultismo que
(1) Th. PARACELSUS, Gesamme/te Werke. ed. por K. Sudhof, Munique, 1920-31.
(2) Journal d'un ,nédecin ,nalade. Denoêl, Paris, 1944, pág. 117.
(3) "Paracelse le Précurseur", em Formes es Couleurs, Lausanne, n? 1, 1941.
(4) Jules GUIART, Histoire dela médecinefrançai.çe, Paris, 1947, pág. 121.
seduzia Allendy; de a natureza e os poderes do ser humano serem explicados por
conhecimentos da alçada da filosofia, da alquimia e de certa forma de astrologia; e de a
prática da medicina, a seu ver, implicar uma atitude reli giosa do profissional
(Paragranum).
Embora permanecesse fiel à religião católica, por motivos difíceis de determinar com
certeza, as vicissitudes de sua vida errante, suas diatribes contra o que julga abuso e
rotina, sua própria orgulhosa divisa (Alterius non sit qui suus esse potest), atestam o
desejo de liberação próprio de seu tempo. Como seus grandes contemporâneos,
Paracelso está, por certo, animado de um sentimento profundo da natureza, sentida
como imensa força criadora; também não se poderia duvidar de que tivesse visto, no
estudo da natureza, a fonte de todo conhecimento positivo, nem que recorresse à
experiência para a constituição de um saber eficaz. E, muito embora sua "natureza"
esteja ainda plena de íncubos e súcubos, de sílfides e de ondinas, não admitia, como
igual mente o fizera Jerônimo Cardano, a origem diabólica das afecções nervosas ou
mentais. Suas crenças ocultistas, porém, conferem, a essas noções de natu reza e de
experiência, um sentido particular. A experiência, se a entende real mente como
interrogação da natureza, está ligada, segundo ele, a uma espécie de privilégio do
iniciado, apto a extrair da sabedoria eterna de Deus o poder de descobrir as relações
ocultas da verdadeira realidade.
Não tentarei expor aqui a cosmogonia de Paracelso, na qual intervém um princípio
supremo que denomina por vezes Yliaster, ou ainda Mysteriurn Magnun. Trata-se,
provavelmente, de uma espécie de germe do universo, e ao mesmo tempo do poder
ativo que lhe dirige a evolução; e donde provêm, por diferenciações cada vez mais
materiais, as formas do real - estas, também, extremamente diferenciadas - das mais
sutis às mais opacas.
O elemento de espiritualidade está presente sob a forma de uma anima mundz emanação,
segundo parece, do Yliaster, a qual desempenha, no universo, papel análogo ao da alma
no corpo. Essa alma do mundo (A st rum ou Gestirn) exprime-se pela
posição dos astros, como a do ser humano se exprime por intermédio do corpo. Segundo
Paracelso, o magnetismo animal (que estudou antes de Mesmer) é alimentado pelo dos
astros. Admite ainda Paracelso, no mundo, uma força de "separação", o Archeus ou o
Separator, encarregado de manter os caracteres individuais e da espécie. Atribui-lhe
principalmente, no reino animal, a lei da cristalização que lhe faz reparar as fraturas e, no
homem, a direção, independentemente de sua vontade, de todas as funções hoje chamadas
neurovegetativas. A idéia central da concep ção paracélsica é a das correspondências
ocultas entre o universo (o macro cosmo) e o homem (o microcosmo). E na medida em
que ele próprio é fogo, ar, água e terra, que o homem necessita calor, e deve respirar,
beber e alimen tar-se. Quando alguma solução de continuidade intervém nessas relações
ínti mas entre ele e o universo, aparecem as doenças, correspondentes a um ou outro
elemento. As doenças são encaradas, assim, como constituintes naturais da vida, e a elas
corresponde, na natureza, um arcano, planta ou mineral, seu remédio específico. Por isso
Paracelso as designa segundo seu remédio espe cífico, e chama de tartáricas, por
exemplo, as doenças cujo arcano específico é o tártaro.
Assim, não é de admirar que, em sua opinião, a alquimia - fundada sobre a noção de
trocas constantes entre as coisas da terra e do céu, e cujo
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sentido é o de aperfeiçoamento, pelo homem, daquilo que a natureza lhe entrega
imperfeito, de separação entre o puro e o impuro - constitua um dos fundamentos da
medicina, encarado o organismo humano como um labora tório onde as matérias
orgânicas tomam vida, e as forças em presença atuam ao mesmo tempo na alma e no
corpo. Vale dizer que a alquimia, assim enten dida, já se exerce no nível da digestão, que
elimina o veneno dos alimentos. Cumpre, basicamente, ao médico, conhecer a relação
entre a doença e o elemento, e restabelecer a saúde por meio de novo equilíbrio com o
universo, como já o queria HipócratesÇ Paracelso admite, como causa das doenças, as
perturbações dos humores, os traumatismos e as influências do céu. Embora tenha
combatido a astrologia judiciária, atribui às perturbações astrais grande influência na
saúde dos homens. Pois o microcosmo é provido de astros e de planetas em
correspondência com as constelações celestes, os quais desempenham no universo o
papel dos órgãos internos no organismo. O fígado, por exemplo, corresponde a Júpiter; os
pulmões, a Mercúrio; os rins, a Vênus; os órgãos genitais, a Marte; o coração, ao Sol; o
cérebro, à Lua... (Paramirum, De Ente naturali). Por meio da observação dos astros, o
médico- astrólogo descobre o remédio correspondente ao órgão doente e pode devolver o
vigor à aura do paciente. No homem - cuja alma consciente é a mais per feita e total
expressão do universo - o corpo material é perecível, enquanto a alma sobrevive em seu
corpo astral, O próprio corpo físico não se dissolve de uma só vez. Sobrevive certo
tempo, sob forma de sombra inconsciente, de larva desprovida de vontade e de
consciência, apenas capaz de prosseguir, por um como automatismo adquirido, em certos
gestos antes realizados pela pessoa viva (assombrar certos lugares, retornar a um tesouro
que havia escon dido...). Inteiramente diversa é a sobrevivência da alma provida de seu
corpo astral, do evestrum, que permanece centro de ação e pensamento, e que tanto pode
vencer a toda velocidade grandes distâncias, quanto agir diretamente nas almas. E ao
evestrum que Paracelso atribui certas revelações bem como a comunicação dos magos
entre si.
Por sua vontade, fé e imaginação, a alma humana é criadora e produ tora. Acredita
Paracelso que uma alma provida de imaginação bastante forte poderia modificar o
aspecto e a forma exterior de seu corpo, como mudam constantemente a expressão e o
aspectQ de um rosto. Produto natural do corpo astral da alma, a imagem é, ela própria,
um corpo onde se encarnam o pensamento e a vontade que lhe deram origem; é, assim,
dotada de um ser particular, de uma existência mágica, em certa medida independente
de sua origem.
Isso significa que as próprias idéias e imagens produzidas pela alma se tornam, no
Astrum, centros de força, pequenos seres mágicos capazes, por sua vez, de influenciar.
Seu poder é tanto maior quanto mais fortes a imagi nação e a vontade que as criaram. A
esse dinamismo da vida psíquica assim concebido, atribui Paracelso a ação de uma
vontade em outra, os fenômenos de telepatia, como também certas doenças, o
nascimento de monstros e as
(1) Sabe-se que PARACELSO, que retomou do grande médico grego o princípio dos
semelhantes, ao qual GALENO opôs o dos contrários, e que preconizou em certos casos
o emprego de doses extremamente diluídas (Paragranam), é reisindicado pelos
homeopatas como pai de sua doutrina, mais tarde codificada por HAHNEMANN:
- Os semelhantes curam os semelhantes, o escorpião cura o escorpião. o mercúrio, o
mercúrio... Ensi namos que o que cura o homem pode também feri-lo e o que o feriu
pode curá-lo." (René ALLENDY, Parece/se, Ir médecix ,naadii.
semelhanças sem laços de parentesco. A esse propósito, estabelece distinção entre a
imaginação e a fantasia, cujos produtos flutuam sem raiz profunda, simples jogo do
pensamento, mas suscetível, se o levarmos a sério, de provocar o erro e até a loucura.
Não se poderia, aqui, levar mais longe o exame de uma obra que inte ressa
essencialmente à história do ocultismo, da teosof ia e, em certa medida (pelo papel que
atribui à imaginação) do romantismo; e cujos aspectos diversos interessam pelo menos
tanto à história da medicina e farmacolo gia( quanto à da psicologia(
3. Pietro Pomponazzi
Encontra-se, mais uma vez, na obra de Pietro Pomponazzi (1462- 1525)( a tendência
naturalista da época, nele orientada em sentido nitida mente antropológico que visa a
reconhecer, ao homem, papel autônomo no universo. De espírito essencialmente
especulativo, ao contrário de Leonardo, sua maior preocupação consiste em elabo rar
uma doutrina satisfatória para a razão. Seu pensamento deve ainda bastante aos
esquemas gregos, de Platão e principalmente de Aristóteles, e a inspiração estóica nele
prevalece, tempe rada, porém, por um senso critico muito sutil. Suas pesquisas
psicológicas têm por eixo o problema, então muito atual e controvertido: sobrevive a
alma ao corpo? E, embora declare, entrincheirado na "dupla verdade", crer na
imortalidade da alma por crer na autoridade da Igreja, suas elucidações tendem a
estabelecer que ela não se funda, de modo algum, na razão (na medida em que todas as
funções da alma põem em jogo os órgãos do corpo) e nem é, até, de modo algum,
indispensável à moral bem entendida( Está convencido de que as preocupações de
ordem social desempenham, nessa matéria, papel considerável. Pois, são muito
numerosos os homens para quem as coisas materiais importam mais do que os bens da
alma. Desconhecendo a verdadeira natureza da virtude, a qual contém em si mesma a
recompensa (é fonte de alegria, enquanto o vício dá origem a mal-estar interior), é-lhes
necessário crer, para se comportarem como homens de bem, nas recompensas e nos
sofrimentos de além-túmulo:
A recompensa essencial da virtude é a própria virtude, que torna o homem virtuoso; o
castigo do vício é o próprio vício... Quando acidentalmente o bem é recom pensado, sua
perfeição fica diminuída," (De Imm. An., cap. XIV.)
Como tais pessoas, para o verdadeiro filósofo, são comparáveis ao doente em relação ao
médico, ou às crianças em relação à ama, é de presumir tenham muitos autores afirmado
a imortalidade da alma sem estar verdadei
(1) PARACELSO foi o primeiro em ter a idéia de tratar a sífilis com mercúrio.
(2) Para informação mais ampla. cl. especialmente o notável estudo de Alexandre
KOYRE, Mysiiqacs, spirituels, alchimisies da XVP siàcle aI!emaxd. Paris, CoIm, 1955.
(3) Nascido em Mântua, fez seus estudos de medicina e ensinou filosofia em Pádua e,
depois, em Bolonha.
(4) Seu De !mn Aaimae, publicado em 1516, foi, de inicio, multo controvertido e lhe
valeu a acusação de impiedade. POMPONAZZI - protegido por Pietro BEMBO e pelos
magistrados bolonheses - respon deu dois anos depois a seus detratores por uma
Apologia, que reacendeu a polêmica. Compôs, mais tarde, duas obras, publicadas após
sua morte: Dc lncantati&,vibus e Di' ta libero arh,,rwi'/ 1 ciii'.
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ramente convencidos disso (De Imm. An., cap. XIV). Nesse domínio, Pom ponazzi
atribui lugar importante à imaginação, cujo poder, quando secun dado pela credulidade,
lhe parece fundamentar todas as "provas" alegadas em favor dessa crença: aparição dos
mortos, ressurreições, almas do outro mundo. Observa que muitas relíquias seriam
eficazes, ainda quando não fossem senão ossos de cães (De Incant., XII). E também que
os milagres florescem de preferência nos países onde a razão é mais fraca, como é o
caso, especialmente, do Egito ou da Judéia; pois intervêm, então, tal como as profe cias, a
modo de regra de justiça. Embora admita, graças à "dupla verdade", os milagres de
Moisés e de Jesus, declara, por outro lado, ser contrário à razão acreditar que a ordem
das coisas possa um dia ser suspensa, e que as próprias orações não poderiam modificar
as leis imutáveis da natureza (De Incant., XII). Como os homens, em geral, vivem fora
da razão crítica, os filósofos sempre correm o risco de ser acusados de impiedade,
conforme testemunham os destinos de Anaxágoras, de Pitágoras ou de Sócrates (De
Incant., X). A exemplo de Platão, Pomponazzi classifica os homens em três grupos,
segundo a forma de inteligência neles prevalecente (especulativa, "operativa" ou
industriosa), considerando, porém, ser a segunda, nisso que implica apenas certa atitude
moral, a mais disseminada; pois, se nem a toda gente é dado ser filósofo ou pedreiro,
cada qual possui certo sentido dos "valores", como diría mos hoje em dia. Tem, em suma,
da filosofia e de suas exigências, uma concepção aristocrática:
"Como filósofo, não me compete ocupar-me da utilidade prática de tal ou qual crença;
não me ocupo senão do grau de verdade ou, quando menos, de verossimilhança de cada
doutrina. Reconheço, ademais, que uma crença pode servir (embora repouse em bases
frágeis) como móvel educativo, ou como freio social. E tarefa do legislador, se o
considerar oportuno, classificar a fé na imortalidade entre os motivos, ou os móveis, que
têm possibilidade de tornar o homem mais honesto: e que, a esse título, lhe favoreça,
então, a duração e a difusão! O pensador se liberta dessas considerações algo secundárias
e vulgares(
A obra de Pomponazzi atesta, portanto, uma preocupação pela ver dade, que repudia
deliberadamente todo utilitarismo e coloca "entre parên teses" a Revelação, para
unicamente invocar em seu favor a garantia da razão em seus limites naturais. E isso, não
para negar o divino no homem, que considera, também, um microcosmo, mas para
determinar, ao mesmo tempo, o valor e os limites da experiência humana. A que
conhecimentos conduz tal investigação? Inicialmente, a este: o homem é uma espécie de
mediador entre o natural e o espiritual. Pois, se está indissoluvelmente ligado à sua
natureza sensitiva e vegetativa - como demonstram suas atividades sensoriais - seu
intelecto apresenta, em comparação com essas atividades, caracteres sui generis.' a
capacidade de flectir-se sobre si mesmo e de compreender univer salmente, o que
demonstra claramente sua independência com relação ao organismo. Dessa natureza
ambígua do ser humano decorre que as operações de seu intelecto jamais podem ser
totalmente universais, nem totalmente
(1) De Immort., cap. XIV, citado por J.-Roger CHARBONNEL em sua obra notável La
pensée i(alienne au XVfl siêcle et le courant libertin, Paris, Champion, 1917, pág. 257.
particulares; jamais podem ser totalmente sujeitas ao tempo, nem totalmente a ele
subtraídas. (De Imm. An., IX.)
Pomponazzi distingue três modos de conhecimentos: divino, humano e animal. Apenas o
segundo lhe interessa verdadeiramente, como próprio do homem concreto e real. Feita
abstração das inteligências puras (se é que existem) e da dos animais, ligada ao
particular, a alma humana se apresenta tal qual queria Aristóteles, como forma que
começa e acaba com o corpo (De Imm. An., IX). Pois, o intelecto não pode funcionar
sem as imagens que recebe da vida sensível. Até suas operações mais elevadas, as que
lhe permi tem atingir o universal, implicam sua união ao particular, no conhecimento.
Contrariamente, porém, ao ensinamento de Aristóteles, Pomponazzi pensa que a species
do objeto não é a causa real da sensação, apenas condi cionada pela presença dos objetos.
O ato de conhecer, segundo ele, implica apenas uma relação íntima entre a alma e o
corpo, por um lado, e entre o psiquismo e os objetos, por outro. A natureza, que se
individualiza contínua e diversamente, e da qual a vida é a característica essencial,
aparece-lhe como a única criadora. O organismo é a sua forma perfeitamente
individualizada, desenvolvida e potencializada pela alma. Ato do corpo, essa alma
forçosa- mente se transforma com o corpo. Sua identidade é apenas estrutural, a modo de
um rio que continua rio, embora as águas mudem constantemente; e de um povo que
continua povo, embora composto de seres sempre diferentes. Tudo quanto existe nasce,
cresce e decai - Estados, religiões e indivíduos, arras tados num processo único e
irreversível. No respeitante ao ser humano, cres cente por alimentação, a permanência e a
identidade são, portanto, insepa ráveis da corporeidade, e o crescimento, tanto quanto
o perecimento, lhe inte-, ressam à forma (De Nutritione, VI). As sensações são
modificações orgânicas. Mostra-se Pomponazzi impressionado com as
correspondências entre a vida psíquica e a orgânica, com as verificadas, por exemplo,
entre os movimentos criados pelos objetos ao nível do prazer e da dor, e qualidades
como o frio e o calor, invocados para exprimir a intensidade das paixões. Observa que
os movimentos psíquicos, como as audácias, os temores ou os desejos sexuais, estão
relacionados com o calor ou a frialdade de todo o organismo, ou de parte dele; e que a
imaginação, aliada à memória, desempenha papel considerável enquanto fator causal
capaz de modificar a vida orgânica. Crê que o império exercido pela alma sobre o corpo
é tal que a vida orgânica pode ser influen ciada no sentido da saúde ou da doença, e até
da morte, sob o impulso da imaginação ou do desejo (De Incant., III). Por isso, sem
negar o papel desem penhado pelas causalidades externas, acentua privilegiadamente a
causali dade interior. Indagando-se, a esse propósito, como poderia a liberdade do
homem conciliar-se com a presciência divina, conclui que a teologia cristã é muito
vulnerável neste aspecto e que os estóicos se furtam melhor às objeções (De Fato..., II).
Também ele, evidentemente, não resolve esse terrível proble ma. A exigência
espiritualista - nascida no húmus cristão - que desenvolve no sentido da liberdade e da
razão deliberante, nele se acompanha de motivos naturalistas de cepa mais antiga e de
outra inspiração; incitando-o a crer, especialmente, que os astros, permit indo classificar
tipologicamente os seres humanos em jupiterianos, mercurianos, etc., neles influem a
ponto de fazê-los inclinar-se naturalmente, por disposição caracterológica, a tal vício ou a
tal virtude.
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4. Bernardino Telésio
A obra de Bernardino Telésio('), em tom mais sereno, visa igualmente a fundar um
naturalismo capaz de melhor determinar a situação do homem num mundo libertado dos
esquemas teológicos.
No proêmio de sua obra De rerum natura, denuncia Telésio os male fícios da presunção
em matéria de conhecimento. Embora as intenções sejam diferentes, encontram-se nele
notações prenunciadoras de Francis Bacon, quando, por exemplo, observa que os
filósofos tendem a conceber o mundo ao sabor de suas preferências, atribuindo -lhe
caracteres sem outro fundamento se não os decretos de sua própria razão. Mesmo
admirando Aristóteles, na medida em que o Estagirita foi um pesquisador no domínio das
ciências naturais, cri tica a ontologia do sistema; pois sua exigência empírica o impede de
admitir que a natureza do homem e a do mundo físico possam ser conhecidas a partir de
uma definição metafísica da substância. Com base na experiência é que
preten de determinar o que é o homem e a natureza; experiência cujas condições não
submete a exame crítico, admite-a como suscetível de nos fazer conhecer as coisas em
si mesmas e, prudentemente, a decreta incapaz de abalar a autori dade soberana das
escrituras sagradas e da Igreja (De rer. nat., livro 1, cap. 1).
Entre as forças ativas que se manifestam no domínio da natureza, duas lhe parecem
fundamentais: o calor, força de dilatação, cuja fonte é o sol; e uma força de contração,
que chama de frio. A ação dessas duas naturezas agentes em conflito, como atesta a vida
na terra, se exerce sobre uma massa corporal inerte, obscura e impotente por si mesma.
Em vez de insistir na cosmogonia de Telésio, convém observar que, ao invocar a seu
favor a garantia da natureza apreendida em sua autonomia e em sua objetividade, não
rompe ele com o animismo. Pois, para ele, trata-se de uma natureza que encerra em si,
além do movimento e da vida, os próprios poderes psíquicos. De uma natureza,
portanto, que não é a de Galileu ou de Descartes, mas, antes, a que será desenvolvida
metafisicamente por Bruno e Campanella. Para Telésio, todos os seres que sofrem uma
ação, sofrem-na na medida em que são dotados de sensibilidade. Poderiam temer e evitar
forças que não sentissem? E como o quente e o frio atuam um sobre o outro, e um con tra
o outro, não são desprovidos de sensibilidade. O "quente", mediante o de senvolvimento
de toda a natureza, é princípio de todas as formas de vida, até às mais altas manifestações
humanas, com exceção, no entanto, daquelas que in dicam a presença, no homem, de
preocupações sobrenaturais, e implicam a pre sença, nele, de uma alma de origem divina
(De rer. nat., liv. V, cap. II).
Sobre tais fundações é que empreende Telésio a explicação do homem sem lhe negar fins
e faculdades transcendentes. E, como semelhante redução naturalista não é possível
senão quando todos os princípios científicos tenham origem sensível, não hesita em
considerar a sensibilidade como poder ativo, em atribuir-lhe a capacidade de ampliar, por
processo analógico, os dados de sua experiência. Na própria geometria, que considera a
ciência mais perfeita, essa capacidade permite, ao homem, atribuir às figuras as
propriedades que
(1) Bernardino 1'ELÉSIo, autor de De hrs quae in aerefiunt ei de terrae motibus e De
rerum natura furta prnpria principia..., nasceu e morreu em Cosenza, perto de Nápoles
(1509-1588).
os sentidos nelas percebem (Ibid., liv. VIII, cap. IV). Atribui Telésio, assim, à
sensibilidade, o poder de ultrapassar as sensações atuais, compará-las entre si e com as já
experimentadas. Se o sentido (como já pretendia Aristóteles) conserva a memória das
coisas por ele percebidas, por que haveríamos de recusar-lhe a capacidade de um juízo
sobre essas coisas? Da percepção sensí vel, a mostrar que todos os homens presentes
são bípedes, ele é perfeitamente capaz de inferir que todos os homens ausentes são
igualmente bípedes (De rer. nat., VIII, XII). Portanto, Telésio admite o conceito como
resultado da atividade sensível, na qual vê uma manifestação da alma produzida pelo
sêmen (spiritus e sem me eductus) e que o homem possui em comum com os outro s
animais. Apenas por ser, nestes, menos pura e ativa, é que eles parecem inteiramente
desprovidos dela. Chama de estimativa e comemorativa essa alma "produzida pelo
sêmen", enquanto sua operação consiste em comparar e memorizar as sensações (Ibid.,
XIII, XV). Presidindo às funções orgânicas e psíquicas, nos animais e no homem, ela
tem sede no cérebro e se difunde por todo o sistema nervoso. Sem explicar
verdadeiramente como o sistema nervoso produz o movimento, pretende Telésio
mostrar que o espírito, embora encerrado no corpo, o sustém e o movimenta em todas as
suas partes (Ibid., V, XXVII). Se a alma fosse a forma do corpo, no sentido aristotélico,
deveria o organismo dissolver-se imediatamente, quando privado dela; ora, ele se
mostra capaz, por vezes, de subsistir por muito tempo depois de despro vido de vida e
movimento. Por outro lado se Aristóteles teve razão ao assinalar que um aperfeiçoamento
da alma lhe é inerente à atividade sensorial, não cabe admitir, por isso, que a alma assuma
as formas das coisas percebidas - o que antes lhe acarretaria a corrupção e a destruição -
mas apenas que ela é assim conduzida à sua operação própria. A alma não precisa
transformar-se em substância das coisas para percebê-las; basta-lhe ter sido aquecida e
dilatada pelo fogo, para compreender que ele tem a propriedade de aquecer e dilatar.
Julga Telésio que, assim, se pode compreender porque a faculdade de raciocinar varia de
um ser para outro e porque a alma racional pode ser modificada pela decadência do
corpo, ou enfraquecida por impulsos, como a cólera. Pois, todas as sensações têm por
condição o espírito material e móvel disseminado pelo corpo, e apenas enquanto ele
proprio é transformado e movido por elas é que as coisas, e a ação das coisas, são
percebidas. Isto é:
embora admita que todo movimento é material, pelo fato de não diferir daqueles que a
natureza é palco (dilatação e contração), Telésio não reduz a sensação à marca material
das coisas na alma, mas a identifica à percepção de um movimento da própria alma. Sua
redução naturalista mostra aqui seus limites, pois tem por objeto exclusivamente a alma
"produzida pelo sêmen", reconhecendo embora, como parte integrante do psiquismo
humano, uma alma de origem divina e incorpórea; a explicação chega, assim, a um
abrupto dualismo.
Contrariamente a Pomponazzi, recorre Telésio a argumentos morais para provar que o
homem possui um alma incorpórea. Observa que não se poderia negar a existência dessa
alma, sem arruinar ojuízo moral que nos leva a considerar feliz o homem virtuoso, ainda
quando tenha sido infeliz aqui embaixo, e a lamentar o mau, ainda quando tenham sido
satisfeitos todos os seus desejos nesta terra. A essa alma imaterial atribui Telésio a
capacidade de raciocinar, mostrando, porém, ser indispensável o concurso do "espírito
produzido pelo sêmen"; pois este é o único capaz de fazê-la conhecer, por
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131
intermédio dos sentidos, os movimentos das coisas percebidas e, por conse guinte, a
natureza das coisas. As especulações metafísicas de Bruno e de Campanella irão além,
filosoficamente, pois tenderão a identificar a verda deira humanidade com essa
aspiração infinita que une, no homem, a natureza ao mundo espiritual.
5. Giordano Bruno
Bruno (1548-1600), em certa medida, segue aquele a quem chamava o "divino" Nico lau
de Cusa, por ele freqüentemente citado e parafraseado. Sua obra, porém, se prolonga a do
famoso cardeal, vai além dela, por atribuir ao próprio universo as propriedades que, na
obra do antecessor, são reservadas a Deus: a infinidade e a coincidência dos contrários. A
noção de verdade acha- se, por isso, humanizada, e a obra de Giordano Bruno é mais
característica da grande mudança esboçada no capítulo precedente: a de uma passagem
da transcendência de Deus a sua manifestação no mundo, e da aceitação maciça de um
dogma autoritário a uma forma deliberada de ativismo. Nesse grande inovador, inflamado
por ardente paixão pela verdade, o misticismo se une a um pensamento crítico
singularmente audacioso, a uma aguda consciência de estar encarnando uma nova forma
de cultura. Refratário à teologia de um Deus transcendente, às vontades monopolizadas
pelos poderes eclesiásticos, trata de impostores os que lhe parecem haver falsificado a
vida espiritual, ridiculiza a asnice representada, a seu ver, pela cega submissão aos
decretos destes últimos. Embora tenha, paradoxalmente, quase sempre sonhado com um
retorno ao seio da Igreja Católica e tenha admitido o valor do ensinamento cristão como
fator de coesão social, é fora de dúvida que o resultado de sua obra é uma distinção entre
a filosofia e a teologia, em benefício daquela, pois a filosofia
se alça a noções racionalmente elaboradas, enquanto a teologia deve recorrer a mitos
acessíveis ao vulgo.
No Spaccio de la bestia trionfante (1), essa comédia alegórica na qual se assiste ao
destronamento dos antigos deuses, Minerva declara a seu pai Júpiter que uma lei não é
verdadeira nem boa "se não tiver por mãe a sophia e por pai o intelecto racional"(
Mas se Giordano Bruno tudo julga segundo o critério de sua própria razão, é inegável
que sua filosofia ainda contém inúmeros elementos tomados à tradição, elementos que
podem, formalmente, enfraquecer-lhe e até dissi mular-lhe a verdadeira originalidade.
Não é, pois, de admirar que os comen tários divirjam a seu respeito. Assim é que Emile
Namer, tradutor e comenta dor do diálogo De la Causa, Principio e Uno (3), opta
resolutamente por um Bruno monista e panteísta, enquanto Paul-Henri Michel, que
apresentou em francês o diálogo De gl'eroici Furori( estima que o reconhecimento do
transcendente "longe de ser em Giordano Bruno, precaução, dado
(1) A expulsão da besta triunfante. O segundo diálogo do Spaccio foi traduzido por J.-
Roger CHAR BONNEL, L'éthique de Giordano Bruno et le deuxième dialogue du
Spaccio, com notas e comentários. Champion. Paris, 1919.
(2) Spaccio de la bestia trionfante, in Opere di Giordano Bruno et di Tommaso
Campanella, a cura di Augusto GUZZO cdi Romano ALMEIRIO. Rkardo Ricciardi.
Milão.Nápoles. t95h. páe. 500.
(3) Cause, Principe et Unité, Alcan, 1930.
(4) Deu fureuru héroiques. "Les Belies Lettres". 1954.
"residual", ou faceta descurável de sua doutrina, é, ao contrário, elemento essencial dela".
Nem por isso é menos certo que o fermento desse pensamento não poderia ater-se ao que
reproduz de conceitos antigos. Pois, então, já não se compreenderia a fogueira acesa no
Campo dei Fiori a 17 de fevereiro de 1600; nem o parentesco mental de Bruno com
homens como Spinoza e Leibniz; nem o prestígio que desfrutará mais tarde junto
ao grande pensa mento alemão. Em suma, não se pode duvidar de que a sua novidade
provém desse motivo prenhe de futuro: uma revalorização do mundo celebrado em sua
essência divina, eterna e infinita.
Embora Bruno admire Copérnico, e a nova cosmografia entre em sua inspiração filosófica
e religiosa como fermento essencial, também não admite o heliocentrismo em lugar do
geocentrismo. Pois o universo, cuja idéia o exalta, é um universo sem limites, em cuja
infinidade se dissolvem todas as representações de um mundo sobrenatural desdobrado
por fora da esfera das estrelas fixas; universo que o alegra por ter tido quebradas suas
"fantásticas muralhas" (1). No longo diálogo intitulado Do infinito, do universo e dos
mundos (2), refuta a concepção aristotélica de um universo finito, invocando
especialmente um argumento de singular modernidade: a impossibilidade, para o
pensamento, de pôr um limite, sem, ao mesmo tempo, pôr um além- limite. Se Bruno não
chega a conceber um universo limitado, nem por isso deixa de recusar-se a imaginá-lo
perdido num vácuo infinito; pois não seria então, por maior que fosse, mais do que um
ponto sem medida comum com a causa da qual é efeito. O efeito de uma causa infinita
não pode ser finito e, se o mundo está para Deus como efeito para causa, sua infinitude
resulta da própria infinitude de Deus, O panteismo de Bruno se alia a uma teoria
atomista; e muito se tem discutido sobre a possibilidade de conciliar esses dois aspectos
de seu pensamento. Namer talvez tenha razão ao conjeturar que o átomo constitui, em
Bruno, a primeira expressão física da matéria; que os quatro elementos são uma
expressão do átomo e os corpos sensíveis, final mente, uma expressão dos quatro
elementos( Quaisquer que sejam esses fundamentos metafísicos, determinantes, em
última análise, da estrutura dos seres individuais em relação a um universal que Bruno
designa, por vezes, pelo nome de intelecto agente, não se poderia duvidar de que a fonte
profunda e única de toda atividade é, para ele, a Alma universal, princípio de todas as
almas individuais; alma infinita, desdobrada num universo igualmente infi nito, e só
parece múltipla enquanto nos escapa sua profunda unidade. A terra, portanto, como todos
os corpos celestes, como todos os mundos que se sucedem, é animada; como animados
são todos os indivíduos que a habitam, plantas e minerais, animais e seres dotados de
razão. No homem, concebido como microcosmo, a alma é a causa inteligente que preside
à economia dos elementos materiais do organismo. Longe de ser o lugar da alma, o corpo
está na alma, e a alma no espírito. Deste, Bruno declara que é Deus "ou, como diz
Plotino, está em Deus". Por isso, "pela operação do intelecto e pela vontade consecutiva a
essa operação", pertence o espírito à luz divina e a seu "beatí fico objeto".
(Desfureurs h trad. Michel, pág. 190.)
pág. 23.
(1) La cena deile ceneri, in Opere italiane di G. B., com notas de Giovanni Gentile,
Laterza, Bari, 1907, 1,
(2) C De l'infinito. unicerso e mondi, in Opere italiane dt G. B., 1, págs. 2ó1-414.
(3) NAMER, Cause, Principe et Uniti, op. cit., ntrod.. págs. lO e 2!.
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O espírito eleva as almas às coisas sublimes, enquanto a imaginação as rebaixa às
inferiores; aquele as mantém no estável e no idêntico; a imagina ção, no móvel e no
diverso; ele tende continuamente à unidade, enquanto a imaginação está sempre a fotiar
imagens novas. "Entre ambos está a facul dade racional, que tudo reúne em seu
composto: nela o uno concorre com o múltiplo, o idêntico com o diverso, o movimento
com a estabilidade, o inferior com o superior." (Dez fureurs héroiques, trad. Michel, pág.
196). Distingue se o homem dos animais pela vontade consciente e livre, capaz de
dominar a vida instintiva, de refrear e controlar a imaginação, de resistir às atrações
reprovadas pelo juízo. Mas se essa vontade, em Bruno, se aproxima, em certos traços, da
dos estóicos, tem, a mais, um aspecto positivo manifesto numa reabilitação da
atividade humana. Essa atividade, no diálogo do Spaccio, é celebrada como lei universal
e fonte de alegria, e a Fortuna comparece para protestar sua total indiferença e declarar
que à sua cegueira "escapam mitras, togas, coroas, artes e talentos individuais":
Quando agito a urna donde vou retirar os números, não tenho mais consi deração por este
ou por aquele candidato! Abstenho-me, portanto, de designá-lo de preferência a outro
para desfrutar a soberania ou a riqueza (embora, em suma, seja realmente preciso existir
um dentre eles que, por fim, saia da urna)! Ao contrário, vós que fazeis distinções com a
ajuda de vossos olhos, outorgando mais a este e menos àquele, demais a um, nada a outro,
vós sois os responsáveis por se ter o homem tornado um exemplar acabado de covardia e
patifaria..." (Spaccio..., trad. Charbonnel, págs. 140-141.)
A esse propósito, convém assinalar que a atividade livre do homem se identifica, segundo
Bruno, a uma profunda necessidade cósmica. Em certo sentido, as idéias são, para ele,
entidades metafísicas e suas sombras ideais constituem como que o estofo de nosso
conhecimento; são indispensáveis ao nascimento da verdade humana, reflexo, nos
espíritos finitos, de uma suprema Verdade inapreensível. A sabedoria existe, assim, em
função de uma Verdade absoluta, e as leis terrestres nos remetem a uma Lei eterna. Há
nisso, portanto, um elemento platônico e plotinico integrado, porém, numa intuição em
que a atividade espontânea do sujeito humano entra como fator essencial, e que
introduz, ao preço embora de certa ambigüidade, uma antropologia de tonalidade muito
moderna. Pois daí resulta uma imanência das idéias e seu aparecimento, no plano
humano, como produto de uma atividade que põe em ação todo o psiquismo,
sensibilidade e intelecto, num sentido a um tempo positivo e dinâmico. Assim, a
verdade, mais do que apreensão de species no sentido aristotélico, se torna
essencialmente uma pesquisa ardente, uma conquista fundada na liberdade. A tal ponto
que aparece em Bruno a idéia de um progresso inerente à atividade do espírito humano.
Na Ceia das cinzas observa seu porta-voz (Teófilo) que "somos mais velhos" que os
Antigos, e assim introduz na reflexão ocidental a noção de uma historicidade, que
voltaremos a encontrar especialmente em Bacon e em Pascal( Progresso sem fim, pois
um aguilhão estimula o espírito "a sempre querer além do que já possui" (Desfureurs
héroi trad. Michel, pág. 212). E vão pretender a "obtenção do imenso", querer
"constituir um fim onde não
(1) Ci. Ventas filia temponis, postilla bru,,iaoa, i,s Giovanni GENTILE, G. B. 1
pens,ero dei mento, ap. eiS., págS. 87-110.
existe fim" (Ibid., pág. 196). Em tal contexto, o problema da existência de um Deus
exterior e superior ao mundo criado conduz à ambigüidade e à dupla interpretação que
assinalei de início, dadas as contradições e a incerteza dos textos. Giovanni Gentile, que
interpreta Bruno em sentido modernista, não hesita em observar que o Deus dos católicos
é para ele algo como o nijmeno kantiano: um conceito-limite, na medida em que se
encontra para além do Deus que Bruno, filósofo, adora ao contemplá-lo na natureza viva,
eterna e infinita( De fato, Bruno insiste sempre na busca contínua de um infinito que
jamais pode tornar-se objeto de uma posse total e perfeita - precisa mente porque infinito.
Sob a atração da unidade fundamental, existe, no sentido e no intelecto, um apetite do
sensível, um impulso para o sensível em geral... Daí provém desejarmos ver tanto coisas
ignoradas e jamais vistas, quanto coisas conhecidas e vistas.''
Ignoradas apenas em certa medida, pois tais coisas não estão ocultas quanto ao ser em
geral, mas apenas quanto ao ser em particular (Desfureurs héroi'ques). Uma espécie de
acicate da totalidade impulsiona assim a alma a transcender-se sempre - para dizer as
coisas em linguagem moderna - nessa busca dos valores. Pois ela vê:
que tudo quanto possui é coisa medida e não pode, portanto, ser suficiente por si só, boa
por si só, bela por si só; por isso que ela não é o universo e não é o ser absoluto.,," (Dez
fureurs héroïques.)
A vida mental é, por isso, alimentada pela inquietude:
o poder intelectivo jamais repousa, jamais se sacia com uma verdade compreen dida,
mas vai incessanteinente para além, na direção da verdade incompreensiva.
Semelhantemente, vemos que a vontade que segue a apreensão jamais encontra a paz
numa coisa finita." (Desfureurs héroiques.)
O novo conceito da alma veio à luz, assim, em completa ruptura com a tradição. Já não
se trata de uma realidade decaída em um corpo e empobre cida por esse exílio, mas de
uma tensão entre os dois termos antinômicos do corporal e do incorporal. E a natureza,
potência efetiva e realizadora, que se humaniza exaltando a divindade do homem(
Ao que considera as ilusões do ascetismo e à crença numa liberação obtida pela
mortificação da carne, opõe Bruno um processo circular que inte ressa toda a vida do
espírito:
a alma, que está no horizonte da natureza, corre do corporal para o incorporal, eleva-se
às coisas superiores, inclina-se para as inferiores. E podes ver que isso não advém por
ordem e razão de movimento no espaço, mas apenas pelo exercício de tal ou qual
potência ou faculdade: como, por exemplo, quando o sentido se eleva à imagi nação, a
imaginação à razão, a razão ao intelecto, o intelecto ao espírito, quando então
)1) Giovanni GENTILE, G. B. e ii pensiero dei rinascin,ento, Vaiiecchi, Florença. 1920,
págs. 54.55.
(2) Cf. Giovanni GENTILE, G. 8. e íipensieno dei ninasci,neato, op. eis., pág. 266: e, do
mesmo autor, o opúsculoBer,sardino Telesio, Laterza, Bar), 1911, págs. 75-77.
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a alma se converte toda inteira a Deus e habita o mundo inteligível, donde, por conver
são contrária, desce para o mundo sensível pelos graus do intelecto, da razão, da
imaginação, da faculdade sensitiva e da vegetativa." (Desfureurs héroiques.)
Além de sua função de formar e de organizar o corpo do interior, a alma deve manter no
indivíduo qualidades discordantes, pois coisa alguma é pura e simples:
"... todas as coisas são feitas de contrários; razão para não podermos jamais
experimentar prazer que não seja mesclado de amargura."
Daí decorre constante relatividade no domínio psíquico:
"Diria até que, se a amargura não estivesse nas coisas, o prazer também não estaria, pois
é a fadiga que nos faz experimentar prazer no repouso, e a separação, prazer na união..."
(De gl'eroici Furori, ed. Gentile, op. cit.. II, pág. 323.)
Bruno, que a esse propósito tem seu lugar bem marcado entre Heráclito e Hegel, afirma
que os contrários se encontram por toda parte:
"... e lá onde existe contradição, existem ação e reação, movimento, diversi dade,
multiplicidade, ordem, graus, sucessão, mudança." (Spaccio. . -' ed. Gentile, op. cit., II,
págs. 22-23.)
O prazer, portanto, é movimento. Não é a fome, como tal, que sabo reamos, nem a
saciedade em si mesma, mas a passagem de uma a outra. Assim se dá com todos os
prazeres. Por isso, nossa vida psíquica apresenta perpétuas transições entre estados
opostos e essa luta dos contrários a enche de sombras e luzes:
não há, para nós, reconfortos que não se acompanhem de dissabores, tanto maiores estes
quão magníficos aqueles: maior é o temor de um rei ao risco de perder seu reino, do que
o de um mendigo que arrisca perder dez ceitis; preocupação mais urgente dá ao príncipe
o estado que governa, do que ao camponês, seu rebanho de porcos; sem dúvida, porém,
são maiores os prazeres e as delicias de uns do que de outros. Amar e aspirar mais alto
acompanha-se, com efeito, de maior glória e majestade, como também de maior
preocupação, tristeza e dor - quero dizer neste estado presente, em que o contrário
sempre se junta ao contrário, manifestando-se a contrariedade maior sempre dentro do
mesmo gênero e, por conseguinte, relativamente ao mesmo sujeito..." (Desfureur.s
héroiques, trad. Michel, pág. 310.)
As verificações psicológicas de Bruno são acompanhadas de uma moral positiva, que
subordina as preocupações de salvação pessoal a um cuidado do bem coletivo. Para ele,
os atos importam mais do que as intenções subjetivas. O único valor absoluto, a seu ver,
é uma veracidade que considera insubsti tuível. Não há circunstância que, a seu juízo,
possa justificar a mentira e a traição. A razão de Estado é estranha ao pensamento de
Bruno e, no capí tulo da honestidade e da retidão, Kant não será mais exigente do que
ele.
Em Bruno, o sopro libertador dos preconceitos e dos tabus atua em todos os domínios.
No da vida sexual, por exemplo, considera a continência um hábito que varia segundo a
raça, o clima, etc., e não comporta, por si
mesmo, nenhum mérito especial. Para não ser um vão desafio à ordem das coisas, mas
tornar-se a componente de uma plenitude interior, deve ela estar a serviço de uma vida
que se eleva acima da mediocridade corrente. Por outro lado, Bruno não se arreceia de
pensar que a poligamia é mais favorável à propagação da espécie e deplora o opróbrio
que pesa sobre as mães-solteiras, próprio ao encorajamento de práticas abortivas que,
talvez, privem de heróis a humanidade(
Os juízos de Bruno sobre os protestantes são de excessiva severidade; é certo que foram
influenciados pelos desagradáveis incidentes que lhe valeram, no seio das novas
comunidades, sua independência hostil e seu caráter susceptí vel. Mas também é quase
certo que seu demônio libertador não podia acomo dar-se com o moralismo estreito e
dogmático daqueles. Ele qualifica os que se pretendem "ministros de um deus que
ressuscita os mortos e cura os enfer mos" de "gramáticos", de "pedantes" entre o s quais
não existe um só "que não tenha concebido, se não publicado, seu pequeno catecismo
pessoal, ou não se prepare para lançá-lo, desaprovando qualquer orientação exceto a sua,
e não colhendo, em todos os outros, senão pormenores a condenar, a rejeitar, a pôr em
dúvida"( Sua fé na eficácia da ação humak's, nos resultados posi tivos dela decorrentes,
coloca-o forçosamente em oposição ao princípio da simples "justificação pela fé" do
pensamento reformado. Via nisso uma hipo crisia por parte de pessoas que, fingindo
embora renunciar a "obras", lhe pareciam não negligenciar absolutamente os bens
temporais. Mas a moral positiva do "justo meio" preconizada por Bruno, que lhe parece
válida para a grande maioria, não esgota, a seu juízo, a atitude humana. Em níve l
superior, a ética de que faz apologia em Des fureurs héroïques, um de seus mais belos
diálogos, é a atitude do homem impulsionado por um tormento interior no caminho de
uma grandeza heróica, movido ao mesmo tempo por impulso voluntário e exaltação
sagrada. O amor, no qual não vê Bruno uma força irra cional, mas o desejo do belo, do
verdadeiro, do grande, e que é simbolizado pelo fogo, é inseparável daquele caminho que
conduz à imersão no ser cós mico. Esse "amor heróico" tem por objeto o Uno divino. E
clarividente, ativo e propõe-se um fim inacessível sem ser desviado pela certeza do
malogro. Ama o sofrimento e aspira à morte, morte não igualada por nenhuma vida, e
promessa de vida superior( Como representar-se essa vida? E quase impos sível sabê-lo.
Pois Bruno acentua de todo a atividade da pessoa como instru mento consciente da
divindade, e esse estilo de vida, que o exalta, não deixa espaço às preocupações de
sobrevivência individual. Essa tensão do indivíduo em direção ao infinito, que preconiza
como a mais alta moralidade, é incom patível com a humildade e a contrição de uma
alma voltada para o juízo que a aguarda. Bruno antes prenuncia a Spinoza (a sabedoria
como meditação da vida e, não, da morte) e Hegel (a vida do espírito suporta e mantém a
morte).
Bruno bem viu que a personalidade humana não poderia subsistir com suas faculdades
morais e intelectuais, como se a morte fosse o prolongamento da vida terrestre; que a
lembrança, especialmente, está ligada a determinadas condições de percepção. Certos
textos (na Causa, no Spaccio, em De gl'eroici
(1) Sp de k besti teionf i, Giovanni GENTILE, Opere italiane di O. B. op. eu., Laterza.
Bari, 1908. II, pág. 29.
(2) C Spaccio.... trad. CHARBONNEL, op. cit., págs. 94-102.
(3) Cl. Paul-Henri MICHEL. Desfureurs héroiqaes, op. rir, introdução, págs. 42-43.
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Furori, no De animo) retomam a antiga idéia de transmigração das almas, despojada,
porém, da mitologia com que a envolvia a tradição órfico-pitagó rica; antes, como uma
espécie de lei natural, como uma lei paralela àquela que, no plano material, mostra que,
se a substância corporal se decompõe após a morte, é para tornar-se matéria de novas
formas.
6. Michel de Montaigne
Sabe-se quanto Gide queria o autor dos Essais: "... a tal ponto o faço meu... parece-me
que sou eu próprio"('). Embora a identificação, por certo, não pudesse ser tão completa,
há, efetivamente, de comum entre Montaigne e Gide, uma disponibilidade interior, um
senso da liberdade experimentada como um "descompromisso" perpétuo, uma redução
dos valores ao momento presente. E esse parentesco basta para assinalar que nos
encontramos num clima cultural inteiramente diverso do clima do Rinascimento. Quase
se pode ria dizer que Montaigne (1533-1592) representa a contrapartida critica dos novos
ideais, seu reverso céptico, e até negativo. Em lugar da admiração pelo movimento
científico da época, nele encontramos permanente desconfiança; seus comentários sobre
a medicina, por exemplo, que prenunciam Molière, exprimem sua reticência a respeito
do homem do artifício, da ciência, sobre posto à boa "natureza":
"Há quanto tempo existe a medicina? Afirma-se, entretanto, que um inovador chamado
Paracelso modifica e destrói as regras antigas e sustenta que até hoje só servi ram para
matar. Creio que provará facilmente suas afirmações; mas confiar-lhe minha vida para
que ateste a superioridade de seus métodos seria grande estupidez(
Embora Montaigne encare os múltiplos aspectos da vida de uma pers pectiva interior que
o libera: "A natureza pôs-nos no mundo livres e desli gados", sua atitude prática é
conservadora. A seu ver, o que faz o valor de uma lei não é a exigência racional que
exprime, mas sua consagração pelo costume. Tal atitude, no domínio religioso, não podia
deixar de ser favorável ao catolicismo: "Somos cristãos como somos perigordinos ou
alemães(
Admitindo assim, porém, que a forma religiosa nos vem do exterior, não tira daí
argumento em favor do relativismo ou do cepticismo que professa a respeito de tudo
mais. Se seu cristianismo pode deixar dúvidas, muito parti cularmente sua crença na
imortalidade da alma, resta em todo caso o fato de que o catolicismo apresenta, em sua
opinião, a insubstituível vantagem de ser consagrado por longa tradição, e lhe parece
mais pitoresco, menos moralista, menos abstrato do que a confissão reformada. Os
abusos e as corrupções que os protestantes censuram na Igreja se lhe afiguram bem
menos repreensíveis e perigosos do que uma revc usurpadora de direitos conferidos ao
catolicismo pelo costume. Esses traços dão ao pensamento de Montaigne um aspecto
particular; é a expressão de um indivíduo "privado", exteriormente submeti-
(1> Essaisur Montaigne.
(2) Livro 11. cap. xii (Apologie de Raimond Sebond). As citações são feitas de acordo
com a cd. da P1v estabelecida e anotada por Albert THIBAUDET.
(3) Ibid. pág. 424.
do às regras sociais, mas que examina com total liberdade de julgamento todas as
formas e manifestações da vida. O mundo interior, o dos sentimentos e dos
pensamentos, é o único que verdadeiramente conta para ele, e seus Essais constituem
perpétuo diálogo que visa a captar, de dentro para fora, a si mesmo e aos outros.
É comum demais associar a seu nome o cepticismo e o probabilismo, para que seja
necessário insistir nesse motivo de inspiração; uma coisa repi sada, pode, porém, ser
verdadeira e não é de duvidar que Montaigne tenha encontrado no pirronismo a
justificação de seu antidogmatismo fundamental, ao mesmo tempo que a de sua aversão
por tudo quanto lhe parece, de qual quer maneira, provir do orgulho humano. Debruçado
sobre si mesmo, à escuta dos movimentos e das modificações de seu mundo interior,
mostra-se muito consciente do esforço que constitui esse ensimesmamento, das
dificul dades e dos escolhos implicados em seu esforço deliberado de introspecção. Essa
tentativa psicológica, fruto de vocação tardia, nascida por sua vez das circunstâncias que
o constrangeram ao isolamento, faz lembrar, muita vez, a intuição bergsoniana, no
duplo sentido que ela reveste em seu autor: "o instilitu a tomar consciência de si mesmo,
capaz de refletir sobre seu objeto e ampliá-lo indefinidamente", ou "essa espécie de
simpatia intelectual pela qual alguém se transporta para o interior de um objeto para
com ele coinci dir". Existe no pensamento do autor dos Essais uma conio transpo sição
para o plano psicológico da intuição heracitica do mundo, um sentimento constante da
vida como perpétua fuga, cuja expressão não deixa de recordar a famosa duração
bergsoniana:
não somente, como dizia Heráclito, a morte do fogo é geração do ar, e a morte do ar
geração da água, porém nós mais manifestamente o podemos ver em nós mesmos. A
flor da idade morre e passa quando sobrevém a velhice, e a mocidade termina em flor da
idade de homem feito, a infância na mocidade, e a primeira idade morre na infância, e o
dia de ontem morre no de hoje, e o de hoje morrerá no de amanhã; nem há nada que
permaneça e que seja sempre um mesmo(')."
"Em tudo e por toda a parte a morte se mistura à vida; o declínio lembra a hora fatal e
acentua-se na medida em que o fim se aproxima. Possuo retratos com as idades de vinte e
cinco e trinta e cinco anos. Ocorre-me compará-los aos de hoje; por certo não mostram a
mesma pessoa, minha fisionomia atual difere muito mais das precedentes do que da que
terei ao morrer! (2)"
Experimenta a seu modo a luta dos contrários, a 'volubilidade e discor dância" que tais
oposições suscitam nele:
"Dou à minha alma ora um aspecto, ora outro, segundo o lado para o qual me volto. Se
falo de mim de diversas maneiras é porque me olho de diferentes modos. Todas as
contradições em mim se deparam, no fundo como na forma. Envergonhado, insolente,
casto, libidinoso, tagarela, taciturno, trabalhador, requintado, engenhoso, tolo, aborrecido,
complacente, mentiroso, sincero, sábio, ignorante, liberal e avarento, e pródigo, assim me
vejo de acordo com cada mudança que se opera em mim. E quem quer que se estude
atentamente reconhecerá igualmente em si, e até em seu julga mento, essa mesma
volubilidade, essa mesma discordância. Não posso aplicar a mim
(1) Livro II. cap. XII, op. cit., pág. 590.
(2) Livro III, cap. xiii, op. cit.. pág. 1.073.
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mesmo um juízo completo, simples, sólido, sem confusão nem mistura, nem o exprimir
com uma só palavra. "Distingo" é o termo mais encontradiço em meu racioc ínio(')."
Nas considerações por ele intituladas "Da inconstância de nossas ações", compraz-se em
realçar o ilogismo que preside tanta vez ao comporta mento humano, e observa, a
propósito das biografias, que "até os bons autores erram em obstinar-se a dar de alguém
uma constante e sólida contex tura" (2). As notações sobre a instabilidade da vida
psíquica, que não o impres siona menos do que a perpétua mudança das coisas, voltam
como um leit ,notiv:
"De nosso feitio ordinário, é irmos atrás das inclinações dos nossos desejos, à esquerda, à
direita, a montante, a jusante, segundo nos leva o vento das ocasiões. Nunca pensamos no
que queremos, a não ser no mesmo instante em que o queremos, e logo nos mudamos,
como esse animal que toma a cor do lugar onde pousa. Aquilo que agora nos
propusemos, logo mais o mudamos, e logo depois volvemos sobre nossos passos: não
há mais que impulso e inconstância: Ducimur ut nervis alienis mobile lignum (3)."
A razão na conduta é, em sua opinião, tão duvidosa e contrária à "natureza" que
Sócrates lhe parece a exceção a confirmar a regra:
"Todos nós somos feitos de retalhos, e de uma contextura tão informe e variável, que
cada pedaço, cada momento, faz seu ofício. E tanta diferença vai de nós para nós
mesmos, quanta de nós para outrem(
Será que eçses "retalhos" obedecem a leis? Sem excluir essa possibili dade, Montaigne
desconfia das opiniões por demais simplistas e superficiais na matéria; e pensa que, de
qualquer modo, a interferência da razão afasta o homem dessas leis eventuais:
"Pode-se crer que haja leis naturais, como as vemos nas outras criaturas; mas elas entre
nós estão perdidas, desde que esta bela razão humana em toda parte se meteu a mandar e
dominar, embrulhando e confundindo o aspecto das coisas segundo a sua vaidade e a
sua inconstância(
Do primado que atribui à interioridade, de sua desconfiança a respeito da memória
adquirida, decorre, contudo, que admite um fundo estável no indivíduo e esse aspecto
de seu pensamento o distingue de uma concepção fenomenista à Hume. Ainda aqui,
antes se pensaria em Bergson e em sua teoria do "eu profundo". Pois Montaigne
reconhece, em si, por uma experiên cia interior cuja validade lhe parece extensível a
outrem, aquilo a que chama de uma "forma soberana", graças à qual mantém sempre o
"equilíbrio" na queda.
(1) Livro 11, cap. 1, op. cü., págs. 322-323.
(2) Livro II. cap. 1, op. cit., pág. 319.
(3) Somos dirigidos. como títeres, por cordéis alheios.' (HORACIO, Sdtir II. VII. 92),
livro 11. cap. 1, op. ciS., pág. 320.
(4) Livro II, cap. 1, op. ci pág. 325.
(5) Livro II, cap. XII. op. cii., pág. 567.
"Olhe-se um pouco como vai indo com isso a nossa experiência: não há ninguém que não
descubra em si, quando se perscruta, uma forma sua própria, uma forma soberana, que
luta contra a educação, e contra a tempestade das paixões que lhe são contrárias. Quanto
a mim, pouco me sinto agitar por solavanco, acho-me quase sempre no meu lugar, como
fazem os corpos massudos e pesados. Quando não estou em casa, ando sempre por bem
perto. Minhas orgias não me levam para muito longe, e nada têm de extremado nem de
estranho, e tenho, contudo, reconsiderações sadias e vigorosas(')." Cumpre admitir que
esse autêntico "si" está situado aquém do juízo, pois Montaigne insiste, várias vezes, na
impossibilidade, para este, de apanhar as estruturas da "pessoa"; seria o mesmo que
pretender "pegar a agua
"Finalmente, não há nenhuma existência permanente, nem do nosso ser, nem do ser dos
objetos. Nós, o nosso juízo e todas as coisas mortais, tudo vai fluindo e rolando sem
cessar. Assim, nada de certo se pode estabelecer de uma a outra parte, desde que
julgador e julgado estão em contínua mutação e movimento.
Nós não temos comunicação alguma com o ser, por isso que toda a natureza humana
está sempre no meio entre o nascer e o morrer, não dando mais de si que uma obscura
aparência e sombra e uma incerta e débil opinião. Se, porventura, se bota o pensamento
a querer assegurar-se do seu ser, será isso nem mais nem menos que se se quisesse
segurar a água: pois quanto mais agarrar e apertar aquilo que por sua natu reza escorre
por toda a parte, tanto mais perderá o que queria pegar e apanhar. Sendo, assim, todas as
coisas sujeitas a passar de uma mudança para outra, a razão, que nelas procura uma
subsistência real, acha-se iludida por não poder apreender nada de subsistente e
permanente, pois que tudo, ou vem a ser e ainda não é completamente, ou começa a
morrer antes de ter nascido(
As considerações que lhe inspira o "demônio de Sócrates" corroboram essa preocupação
de apreender a vida na fonte mais profunda, no desabrochar de uma impulsão vital que se
afigure mais verdadeira que os decretos da vontade consciente:
"O demônio familiar de Sócrates consistia provavelmente em certas inspirações que se
apresentavam a ele sem passar pela razão. Em alma tão pura como a sua, feita por
inteiro de sabedoria e virtude, é de crer-se que, embora ousadas e inadmissíveis, tais
inspirações eram sempre importantes e dignas de se ouvirem. Não há quem não sinta em
si mesmo por vezes semelhante obsessão de uma idéia brusca, veemente e fortuita. Cabe
a cada um de nós dar-lhe ou não certa consistência, a despeito do que manda a
prudência à qual fazemos ouvidos moucos. Tive-as eu próprio, carecedoras de razão
mas violentamente persuasivas, ou ao contrário (como era o caso de Sócrates), e a elas
me abandonei com tamanha felicidade que quase poderia atribuir-lhes uma origem
divina(
Esse eu autêntico aflora no instante da morte, quando cai a máscara, quando (dir-se-ia
em linguagem bergsoniana) o "eu social" estala:
"Mas, nesse último papel, nosso e da morte, não há mais que fingir, é preciso falar às
claras, é preciso mostrar o que se tem de bom e de limpo no fundo do pote. 1...]
(1) Livro III, cap. II, op. cii.. pág. 785.
(2) Livro II, cap. XII. op. cii., pág. 589.
(3) Livro 1. cap. XI. op. cii., pág. 60.
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É o dia capital, o dia que julga todos os outros. É o dia, diz um antigo, que deve julgar
todos os meus anos passados. Confio à morte o ensaio do fruto dos meus estudos: aí
veremos se os meus discursos brotam da boca ou do coração (1)."
Esse irracionalismo distingue, é óbvio, os passos introspectivos de Montaigne dos de
Sócrates. Quase não se trata, para Montaigne, de extrair, com base no indivíduo, valores
que se imporiam ao ser humano como tal, porque ele Montaigne é sensível sobretudo às
diferenças individuais, às contradições no homem e no domínio da natureza, à
originalidade como tal, e a razão não se lhe afigura capaz de apreender essências
eternas, O capital, em sua opinião, é viver de certa forma; de tomar em si consciência da
vida naquilo que a vida tem de mais real, isto é, no momento vivido. Eis porque se diz,
de bom grado, desprovido de memória e de imaginação, da primeira porque é inseparável
de experiências passadas das quais não quer ser escravo (rejeição do arrependimento) e, -
da segunda, porque produz antecipações nocivas à apreensão desinteressada do momento
atual da vida. Não é, pois, de admirar que tenda a
considerar a vida e suas energias como superiores aos raciocínios; e isso ao ponto de
desconfiar das idéias inspiradas pela velhice, temeroso de uma austeridade fundada na
impotência, de uma virtude "frouxa e catarrosa":
"Os anos, todos os dias, me dão lições de frieza e de temperança(
"Este corpo foge do desregramento e o teme. Chegou-lhe a vez de guiar o espí rito na via
da reformação: agora, por sua vez, ele manda, e mais rudemente e imperio samente( Esse
cuidado inclina Montaigne a aceitar-se tal como é, sem indignar-se com os excessos de
sua juventude, aos quais entende haver conduzido "com ordem". Está perfeitamente
consciente de que toda espécie de condiciona mentos nos envolve:
"Coisa certa é que a nossa apreensibilidade, o nosso juízo e as faculdades em geral da
nossa alma sofrem segundo os movimentos e alterações do corpo, as quais alterações
são contínuas. Não temos, com efeito, mais desperto o espírito, mais pronta a memória,
mais vivo o raciocínio, em saúde que numa doença?(
Observa que a alegria e a satisfação influem em nossas impressões, tal como a tristeza e
a melancolia, tal como as doenças, as paixões da alma e até as condições meteorológicas.
A importância que atribui ao corpo se manifes ta, por vezes, ao ensejo de confidências
ditadas pela preocupação de total veracidade:
"Eu, afinal, me determinei ousar dizer tudo o que eu ouso fazer, e aborreço até
pensamentos impublicáveis. A pior das minhas ações ou condições não me parece tão
feia como eu acho feio e covarde não ousar confessá-la(
(1) Livro 1, cap. XIX, op. cii., págs. 91-92.
(2) Livro I cap. V, op. cii.. pág. 813.
(3) Ibid.. pág. 814.
(4) Livro II, cap. XII, op. cii., pág. 550.
(5) Livro III, cap. V, op. cii., pág. 818.
"Que terá feito aos homens o ato genital, tão natural, tão necessário, tão justo, para nele
não se ousar falar sem vergonha e para ser excluído das conversas sérias e regulares?
Desabusadamente nós pronunciamos: matar, furtar, trair; e aquilo não ousariamos senão
entredentes? Quererá isso dizer que quanto menos o exalamos em palavras, mais direito
temos de lhe engrandecer o pensamento?(' )"
É assim levado a observações muito penetrantes sobre as interações do físico com o
moral. O verdadeiro "eu", segundo Montaigne, é o eu profundo, sentido no corpo e na
alma. Tem idéia muito nítida do que nele há de irredu tível ao exterior. Sua desconfiança
das determinações conscientes o leva a aprovar aqueles que compararam a vida a um
sonho, pois é sensível às grada ções infinitas da consciência, nele mergulhadas num
como claro-escuro:
"Enquanto sonhamos, nossa alma vive, opera, exerce todas as suas faculdades, nem
mais nem menos que durante a vigília, apenas, contudo, mais molemente e obscu
ramente; com toda a certeza não tanto que a diferença venha a ser como a da noite para
uma viva claridade, porém sim como a da noite para a sombra: no sonho ela dorme, na
vigília toscaneja, mais ou menos. Há sempre trevas, e trevas cimerianas.
Nós velamos dormindo; e dormimos velando. No sono, eu não vejo tão clara mente;
mas, quanto ao velar, jamais o acho bastante puro e desanuviado. Ainda assim o sono,
às vezes, na sua profundidade, adormece os sonhos; mas o nosso velar não é jamais tão
desperto que purgue e dissipe os devaneios, que são os sonhos dos acorda dos, e piores
que sonhos.
Desde que a nossa razão e a nossa alma aceitam as idéias e opiniões nascidas quando
dormimos, e autorizam as ações dos nossos sonhos pela mesma aprovação com que
autorizam as da vigília, por que não pomos em dúvida se os nossos pensamentos, as
nossas obras, não são um outro sonho, e o nosso velar alguma espécie de dormir? (2)"
Uma das originalidades de Montaigne está ainda em haver-se interes sado pelo
comportamento dos animais, atribuindo à presunção o desinteresse que os filósofos
mostram, em geral, pela matéria. Pretende mostrar, parado xalmente, que o homem não é
superior aos animais, pois as abelhas, por exemplo, com sua policia e suas leis, são
organizadas numa sociedade mais ordenada e mais disciplinada... Inteligência? As aves
não são desprovidas dela, pois escolhem acertadamente o lugar do ninho. Linguagem?
Os animais têm a sua, que ignoramos, como ignoram a nossa. Falaremos de instinto
cego? Quando a raposa, antes de arriscar-se numa ribeira gelada, chega a orelha ao gelo
para avaliar a profundez pelo murmúrio da água, não estará a raciocinar como faríamos
em seu lugar? O que pretende mostrar, por exemplos colhidos em autores latinos, é que a
natureza, se se põem de lado hierarquias estabelecidas pelo homem, é a mesma para
todos. No comporta mento das aves e das abelhas, por exemplo, vê uma verdadeira
"indústria natural". E, mediante um raciocínio analógico, atribui ao animal a capaci
dade de agir "à nossa maneira" (3). Seus modos de ver antropomórficos não poderiam,
evidentemente, constituir uma verdadeira psicologia animal, mas mostram, em todo
caso, um pensamento (Montaigne se interessou também pelos outros povos e pelas
crianças) a desbordar singularmente desses quadros
(1) ibid.. pág. 820.
(2) Livro II, cap. XII, op. cii., pág. 584.
(3) Ibid.. pág. 507.
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estreitos do homem branco, adulto e civilizado, que Ribot criticará na psico logia
tradicional.
Certos autores consideraram Montaigne como "racionalista". É que as palavras são
sempre ambíguas. Irracionalista no sentido filosófico do termo, nisso de não crer que se
possa basear no raciocínio uma concepção do mundo e de preferir invocar a seu favor o
testemunho do costume em tudo quanto se prende aos próprios fundamentos dessa
concepção, pode ser chamado de "racionalista" se tomarmos o termo em acepção mais
ampla, designativa de uma liberdade critica que não reconhece nenhum tabu.
Seu humanismo se reduz, em última análise, a uma busca de equilíbrio baseado na
tolerância e na humildade, num senso dos limites humanos e de seu reconhecimento
com toda lealdade:
"As mais belas vidas são, penso, as que se adaptam ao modelo geral da existên cia
humana, as mais bem ordenadas e de que se excluem o milagre e a extrava gância(l)."
Nada mais absurdo, a seus olhos, do que a ambição de aparecer:
"Saber lealmente gozar do próprio ser, eis a perfeição absoluta e divina. Nós só
desejamos condições diferentes das nossas porque não sabemos tirar partido daquelas em
que nos achamos. Saímos de nós mesmos porque ignoramos o que nos compete fazer.
Embora usemos pernas de pau, temos de mexer as do corpo para andar, e é com o
traseiro que nos sentamos no mais alto trono do mundo(
Na medida em que hoje se considera que o homem, mais do que ser coincidente consigo
e provido de um conjunto de faculdades a exercer-se ao nível da consciência clara, é um
ser cuja complexidade e incoerência de comportamento se explicam pela diversidade das
tendências e pela força dos instintos, nessa medida é impossível não reconhecer, na
psicologia de Montaigne, tonalidade muito moderna, ainda quando se observe, ao mesmo
tempo, que já é bem menos moderna com respeito à importância assumida, em
detrimento dessa pura interioridade que a çaracteriza, pelas preocupações sociológicas e
estatísticas(*).
7. Francis Bacon
A obra de Francis Bacon (1561-1626), homem do Renascimento por excelência,
animado por intenso desejo de viver e de conhecer, tende a desen volver no homem a
integridade de seus poderes sensíveis e intelectuais, e isso na perspectiva ativista
surgida naquela época. Considera que, em todas as coisas,
(1) Livro III, cap. XIII, op. cri.. pág. 1.088.
(2) Ibidem.
(*) Para reproduzir as passagens de MONTAIGNE citadas pelo Autor valemo-nos,
salvo uma ou outra exceção (um ou outro retalho de frase), de duas versões dos Essai.,.
a edição integral, na tradução de Sérgio MILLIET, publicada na 'Biblioteca dos
Séculos" (sois. 50, 51 e 52) da Editora Globo, Porto Alegre, 1961-1962; e a edição
parcial, aSelega dos Ensinos de Montaigne, na tradução dei. M. TOLEDO MALTA,
"Coleção Rubáyát", José Oiympto, Rio, 1961, 3 sois. Foram tomadas à primeira dessas
versões as seguintes passagens: liv. 11, cap. XII; liv. III, cap. XIII; lis. 1, cap. Xl; liv.
III. cap. XIII. Todas as outras são da tradução de TOLEI)O MALTA, em geral mao
próxima, em sua forma portuguesa de tamanho sabor clássico, do torneio de
MONTAIGNE. (J. B. D. P.)
os filósofos se esforçaram por tornar a alma por demais uniforme e por demais
harmônica, e nada fizeram para acostumá-la aos movimentos contrários e aos
extremos",
e atribui esse erro à circunstância de terem eles vivido fora demais da vida real, com
suas lutas e seus contrastes, que pretende, de sua parte, reabilitar. (De dignitate et
augmentis scientiarum, VII, 2.)
Por isso, a vida moral, como a concebe, não se opõe a certa política do êxito social
inspirada no ensinamento de Maquiavel, a quem admira e louva por ter dito
"abertamente e sem rodeios" antes "o que os homens fazem ordi nariamente" do que o
que deveriam fazer (ibid.).
O papel de Bacon, como promotor da nova mentalidade, é típico. Se a voz do grande
Lord Chanceler não está isolada, se sabemos que faz eco às do Renascimento italiano, soa
particularmente nítida e imperiosa. Os que tomaram por tarefa elaborar uma nova doutrina
do homem não se enganaram nessa matéria. Basta recordar que a Grande Enciclopédia é
dedicada àquele que d'Alembert denomina "o maior, o mais universal e o mais eloqüente
dos filósofos" e cujas obras a Convenção publicará a expensas do Estado. O essencial da
contribuição de Bacon, mais do que soluções propriamente ditas, é o impulso e a
justificação que traz à renovação das ciências, nos desiderata que multiplica para
constituí-las num vasto programa de pesquisas:
"... pois não se trata aqui de simples felicidade contemplativa, mas do que concerne ao
gênero humano, à sua sorte, a todo esse poder que pode adquirir através da ciência
positiva." (De dignitate.... distribuição da obra.)
A ambição que o anima - de singular atualidade no momento em que os homens
conquistam os espaços interplanetários - é "estender o império e o poder do gênero
humano todo sobre a imensidade das coisas". (Novum Organum, 1, 129.) Essa visão
prometeica lhe orienta a reflexão:
"Compõe-se a ciência do homem principalmente de duas coisas: a contem plação das
misérias do gênero humano e a de suas prerrogativas ou de sua superiori dade. Ora, a
parte que consiste em deplorar as calamidades humanas é assunto tratado com tanta
elegância quanta fecundidade por grande número de escritores, tanto filó sofos, quanto
teólogos; gênero de obras ao mesmo tempo agradável e salutar.
Mas a que trata das prerrogativas pareceu-nos merecer figurar entre as coisas
porcriar."(Dedignitate..., IV, 1.)
Como Bruno, como o próprio Pascal, considera Bacon que os verda deiros "Antigos"
são os homens de seu tempo, e muito espera de um mundo adulto e enriquecido por
todas as observações e experiências de seu passado. A tarefa que chama a si é fixar as
coordenadas para "encontrar o melhor caminho", a fim de permitir aos séculos
vindouros "avançar a passos largos". Trata-se, segundo ele, de fundar um novo método
de investigação, puramente indutivo:
para poder atingir as partes mais afastadas e mais ocultas da natureza, é absolu tamente
necessário descobrir e adotar uma maneira mais segura e mais perfeita de pôr em ação o
entendimento humano" (op. cit., prefácio),
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e de favorecer-lhe a aplicação, desembarançando o espírito humano dos entraves que o
paralisam. Bacon estabelece verdadeiro catálogo dos "idolos" que devem ser
combatidos: os idola tribus (da tribo), que incitam os homens a ter como verdadeiro o
que lhes agrada a imaginação, o que lhes satisfaz os desejos; os idola specus (da
caverna), próprios ao indivíduo como tal, prove nientes do caráter ou da educação, de
certas disposições afetivas nocivas à objetividade; os ido/a fori (do mercado),
decorrentes sobretudo das armadilhas constituídas pela linguagem associada ao espírito
de abstração, à ilusão das palavras vazias; e, finalmente, os idola theatri (do teatro),
fabulações arvora das em sistemas de explicação e que mais nos informam acerca de
seus autores do que sobre o próprio mundo (Novum Organum, 1).
Não cabe aqui examinar as múltiplas sugestões de Bacon para todas as pesquisas que
pretende promover; nem indagarmos o que há de vivo e de morto nos processos de seu
método indutivo que enumera; nem até considerar seu realismo pouco critico no domínio
do conhecimento, Condiz mais com nosso propósito assinalar o que se relaciona com um
melhor conhecimento do homem; recordar os desiderata que formula nesse domínio e
cuja fecundidade o porvir confirmou.
Como o conhecimento que ambiciona está colocado sob o signo da eficiência, atribui
grande importância à arte médica e faz votos por sua reno vação. Pois quer uma medicina
capaz de cumprir dignamente esta tríplice tarefa: curar as doenças, conservar a saúde,
prolongar a vida.
Nesse domínio, como nos demais, demonstra Bacon espírito positivo:
"... não vamos por isso extravagar, com Paracelso e os alquimistas, a ponto de crer que
no corpo humano se encontram coisas correspondentes às diversas espécies dissemina
das na imensidade das coisas, por exemplo nas estrelas e nos minerais, como eles
imaginaram, traduzindo grosseiramente aquela expressão emblemática dos antigos, de
que o homem é um microcosmo ou uma súmula do mundo inteiro, e ajustando -a à sua
opinião quimérica." (De dignitate..., LV, 2.)
Apenas retém dessa "opinião quimérica" que o corpo humano é, de todos, "o mais
composto e mesclado", e os estudos médicos são difíceis e deli cados. Seu progressismo
não o impede de reconhecer certas aquisições do passado:
"A primeira omissão é não ter continuado o trabalho tão útil e tão exato de Hipócrates,
que tjnha o cuidado de escrever um relato circunstanciado de tudo quanto acontecia aos
doentes, especificando a natureza da doença, o tratamento, o resultado." (Ibid.)
Bacon deplora muito especialmente o empirismo vago que preside aos tratamentos das
doenças, e sua insuficiente diferenciação. Insurge-se contra a farmacopéia de seu tempo,
com seus medicamentos "antes apropriados a finalidades gerais do que às curas
particulares", e explica o êxito por vezes maior dos empíricos e das velhas curiosas
"pelo próprio fato de se haverem dedicado com maior escrúpulo e fidelidade à
composição de remédios bem provados". (Ibid.) Conta, por isso, nesse domínio, com o
progresso que os químicos poderão realizar, se aplicarem corretamente os novos
métodos. De
maneira geral, pretende que as pesquisas passem doravante a ser empreen didas sem
preconceitos quanto a processos e a objetos:
"... pois tudo quanto é digno da existência é também digno da ciência, imagem da
realidade. Ora, os objetos mais vis existem tão realmente quanto os mais nobres." (Nov.
Org., 1, 120.)
Quanto às doenças, inúmeras são as que os médicos declaram incu ráveis, o que lhe
parece "sancionar, por uma espécie de lei, a negligência e a incúria" (De dignitate..., IV,
2). Em compensação, quando o médico se encontra diante de doente cujo fim é
irremissível e está a sofrer, é dever do profissional proporcionar-lhe "morte doce e
calma".
essa pesquisa, qualificamo-la de pesquisa sobre a eutanásia externa, que distin guimos
daquela outra eutanásia que tem por objeto a preparação da alma, e colocamo la entre os
desiderata. "(De dignitate..., IV, 2.)
Finalmente, Bacon atribui grande importância aos progressos da medicina como meio
de prolongar a vida, "parte inteiramente nova e que nos falta de maneira completa", a
qual fará dos médicos verdadeiros benfeitores da humanidade, pois:
"... se bem que, ao vejdo homem verdadeiramente cristão sempre a suspirar pela terra
prometida, este mundo seja como um deserto, se se pudesse fazer que os que viajam por
esse deserto usassem n suas roupas e seus calçados (quero dizer, o corpo, que é como o
vestido e os sapatos da alma)... isso poderia ser encarado como um dom da graça divina."
(De dignitate..., IV, 2.)
As pesquisas anatômicas parecem-lhe deficientes em tudo quanto respeita às diferenças
entre os organismos:
"Assim, ao mesmo tempo que afirmamos que a anatomia simples tem sido amplamente
tratada, concluímos que a anatomia comparada está por ser criada." (De dignitate..., IV,
2.)
Ainda aqui, muitos preconceitos devem ser banidos e as pesquisas se aplicarão a
observações exatas:
- - tanto sobre os humores de toda espécie, como sobre os traços e as impressões
deixadas pelas doenças nos diversos corpos submetidos às dissecções; pois nos objetos
anatômicos se deixam de lado esses humores, encarando-os como espécies de imundí
cies, como objetos de repugnância." (De dignitate.... IV, 2.)
Bacon deseja que todas as observações nesse domínio sejam consig nadas de maneira
que formem um único corpo. E como a dissecção não pode ria substituir a
experimentação no organismo vivo, deverão as pesquisas comportar igualmente a
vivisecção de animais (ibid.).
No domínio psicológico, atém-se Bacon, quanto ao essencial, às eluci dações de
Bernardino Telésio, pensador que tem em grande estima. Admite a distinção
estabelecida pelo filósofo de Cosenza entre uma alma espiritual, de origem divina, e a
alma sensível e material que o homem possui em comum
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com o animal, deixando aos teólogos o cuidado de "resolver e decidir" as questões
relativas à primeira, de saber se é "nativa ou adventícia, separável ou inseparável,
mortal ou imortal, até que ponto está presa às leis da matéria, e até que ponto delas
liberta, e outras questões semelhantes", pois tal conheci mento deve ser obtido "da
própria inspiração divina donde emana a substân cia da alma".
Quanto à alma sensível, a ciência que a ela se relaciona lhe parece igualmente "quase
um desideratum
"Pois, finalmente, que importam à ciência da substância da alma o ato último, a forma do
corpo e outras tolices lógicas, uma vez que a alma sensitiva, ou a dos animais, deve ser
encarada como substância inteiramente corporal; substância ate nuada pelo calor e
tornada invisível por essa atenuação; pois que é, digo, um fluido com a natureza do ar e
a da chama, dotado da maleabilidade do ar para receber impressões e da atividade do
fogo para dardejar a ação; nutrida em parte de substâncias oleosas, em parte de
substâncias aquosas; oculta sob o invólucro do corpo; tendo, nos animais perfeitos, sua
sede principal na cabeça, percorrendo os nervos e reparando suas perdas com o auxílio
de sangue espirituoso fornecido pelas artérias?" (De dignitate..., IV, 3.)
Quanto à alma própria do homem, gostaria de que fosse chamada de preferência
espírito, para evitar confusões desagradáveis (ibid.). O problema da percepção parece-
lhe daqueles que muito se negligenciaram e convém estudar, para saber o que a
distingue da atração ou da simples sensação. Enumera, no tocante ao homem,
numerosos fenômenos orgânicos desprovi dos de consciência e não acompanhados
sequer de uma sensação de prazer ou de dor, e estima que a ignorância dos processos
em jogo para que se produza a percepção
"... teve influência suficiente em alguns antigos filósofos para levá-los a crer que todos
os corpos, sem distinção, eram dotados de alma. Não concebiam como um movimento
com escolha podia dar-se sem o sentimento, nem como o sentimento podia verificar-se
sem uma alma." (De dignitate. ., IV, 3.)
Considera que se foi longe demais atribuindo uma espécie de sensibili dade a todos os
corpos, a ponto de ser algo como um sacrilégio "arrancar um galho de árvore e expor-se
a gente a ouvi-la emitir gemidos, como a de Poli doro". (De dignitate..., IV, 3.) No que
concerne à interação entre a alma e o corpo, formula a si mesmo inúmeros problemas,
por exemplo, o das loca lizações:
dentre as doutrinas da aliança ou da ação recíproca do corpo e da alma, nenhuma existe
que possa ser mais necessária do que aquela que tem por objeto a determinação das
sedes ou domicílios atribuídos às diversas faculdades da alma no corpo e seus órgãos.
Esseg de ciência houve muitos escritores que o cultivaram; mas o que disseram sobre o
assunto é contestável, ou carece de profundidade. Assim, essa pesquisa exig iria mais
aplicação e sagacidade..." (De dignitate..., IV. 1.)
ou o da influência que pode exercer a imaginação na vida orgânica. O que se refere aos
movimentos voluntários também não lhe parece ter sido objeto de estudos suficientes:
"... indaga-se de como as compressões, as dilatações e as agitações do espírito, o qual é,
sem discussão, o princípio do movimento, podem fletir, excitar e deslocar massa tão
grosseira quanto a do corpo humano: eis um assunto no qual ainda não se fizeram
pesquisas bastante exatas e ainda não foi suficientemente trabalhado. E deve-se admirar
disso quando se vê que a própria alma sensível tem sido encarada, até aqui, antes como
uma enteléquia, como uma espécie de função do que como verdadeira substância? Mas
quando já se se tivesse assegurado de que se trata de substância verda deiramente
corpórea, verdadeira matéria, ainda assim faltaria saber por que espécie de força vapor
tão tênue, e em tão pequena quantidade, pode pôr em movimento massa de tamanha
consistência e tamanho volume; assim, pois, essa parte está para ser criada e deve-se
fazer dela o objeto de uma pesquisa particular." (De dignitate.... IV, 3.)
Quereria que o esforço de investigação tivesse por objeto as "causas em nosso poder e
que atuam sobre a alma, que influem no apetite e na vontade e a manipulam à sua
fantasia":
"... os filósofos não deveriam ter negligenciado nenhuma pesquisa para conhecer as
forças e a energia do costume, do exercício, do hábito, da educação, da imitação, da
emulação, da freqüentação, da amizade, do louvor, da censura, da exortação, da repu
tação, das leis, dos livros e dos estudos; e de outras causas semelhantes, se outras há; pois
aí está o reinante em moral; são esses agentes que trabalham a alma e lhe dão todas as
espécies de disposições", (De dignitate.... VII, 3.)
Em seu vasto inventário dos domínios nos quais as pesquisas poderiam aplicar-se,
figura a exigência de uma caracterologia:
"Não queremos que esses caracteres, que devem fazer parte da moral, sejam retratos
acabados, como os que se encontram nos historiadores ou poetas, ou nas palestras
comuns; mas que se ofereçam, apenas, as linhas de tais retratos, seus contor nos mais
simples, linhas que, misturadas e combinadas entre si, constituam a totali dade de cada
efígie. Que nos digam, inicialmente, quais são essas linhas, determi nando-lhes, também,
o número; depois, como estão ligadas e subordinadas umas às outras, a fim de que se
possa fazer uma erudita e exata anatomia dos naturais e das almas; enfim, que o que
existe de mais secreto e de mais oculto nas disposições dos homens seja posto à mais
clara luz e desse conhecimento se possam tirar melhores preceitos para cura das almas."
(De dignitate.... VII, 3.)
Por outro lado, sem negar a existência de certos fenômenos supra- normais, tal como o da
adivinhação, espontânea ou provocada, e admitindo embora haver momentos em que a
alma se acha como que recolhida e concen trada em si mesma, por exemplo "nos sonhos,
nos êxtases, nas proximidades da morte", pensa que se deveria, aí também, efetuar
pesquisas que constitui rão, efetivamente, aquilo que, no século XIX, se chamará de
metapsíquica, isto é, o estudo científico dos fenômenos antes da alçada do ocultismo:
"... pois, por mais que os fatos dessa espécie estejam como que abafados pela massa
enorme das fábulas e das mentiras a eles misturadas, é bom, contudo, examiná-los, a
fim de ver se, nessa imensidade de pretensos milagres, não se encontraria alguma
operação verdadeiramente natural; por exemplo, no que dizem acerca dos meios de
fascinar ou de fortalecer a imaginação, sobre a correlação e a ação recíproca de certos
indivíduos a distâncias muito grandes; sobre a transmissão que, segundo eles, não
ocorre menos de espírito a espírito, que de corpo a corpo, e outros efeitos dessa
natureza." (Nov. Org.. II, 31.)
148
149
Tão vasta é a obra desse grande homem que não se poderia pretender abordar-lhe todos
os aspectos. Preferi pôr em evidência suas sugestões rela tivas aos estudos que se devem
empreender no domínio das ciências psicoló gicas, de preferência a relatar algumas das
soluções que propõe da atividade psíquica do homem, por ele distinguida
essencialmente em memória, imagi nação e razão, faculdades às quais atribui
respectivamente a criação da histó ria, da poesia e da filosofia.
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CAPÍTULO XV
O DUALISMO CARTESIANO
1. A revolução metodológica
2. O dogmatismo das duas substâncias
3. Oespíritoeocorpo
4. As imagens e a percepção
5. A psicologia concreta de Descartes
6. A psicoterapia cartesiana
7. A nova problemática
1. A revolução metodológica
A obra de René Descartes, verdadeira Suma da mentalidade nova,
constitui ponto de referência incomparável, na medida em que introduz o
problema do psiquismo humano no próprio centro das preocupações.
Se Hegel, em sua História da filosofia, pôde escrever que o autor do Discurso do
método (1637) foi o verdadeiro iniciador da filosofia moderna, é certo que o papel de
Descartes não foi menos considerável nos outros domí nios da vida cultural, e a
psicologia, especialmente, recebeu do cartesianismo, embora muitas vezes por via de
reação, extraordinário impulso. Sabe-se que ele manifesta a exigência de um novo
racionalismo, baseado na apreensão direta do sujeitQ nte por si mesmo Racionalismo
cuja inspiração é bem de seu tempo, nisso de que nele a atividade passa à frente da
contemplação, e que Descartes, a exemplo de Bacon, pretende promover uma filosofia
suscetí vel de "tornar-nos como que senhores e donos da natureza" (Discours..., VI
parte).
É muito acentuado em Descartes o duplo aspecto do metafísico e do homem voltado
para as ciências de observação, que se felicita por haver aberto o caminho a
investigações positivas, próprias a modificar a situação terrestre do homem. Pois, não
espera delas "a invenção de uma infinidade de artifícios, que fariam que se gozassem,
sem sofrimento algum, os frutos da terra e todas as comodidades que nela se
encontram", os meios de tornar "os homens comumente mais sábios e mais hábeis",
além daqueles pelos quais "nos poderíamos isentar de uma infinidade de doenças tanto
do corpo quanto
151
do espírito e, talvez, até da debilitação da velhice..."? (Discours..., VI parte.) Sem
dúvida, como Aristóteles, cujo ensinamento combatia (e que também havia observado
muito), mostrou-se por demais apressado em sistematizar as pesquisas de seu tempo,
que conhecia e para as quais contribuiu pessoal- mente. Mas o próprio rigor de seu
pensamento, dando aos problemas arti culações precisas, embora artificiais, foi salutar
ao progresso da nova tomada de consciência.
Quase não é preciso recordar a novidade da perspectiva aberta pelo método cartesiano.
Enquanto a tradição admitia como evidente a existência do corpo humano e do mundo
para inferir daí a da alma e de Deus, pretende Descartes estabelecer que se pode duvidar
do corpo e do mundo, não, porém, do pensamento, evidência primeira e irrefragável.
Desacreditados os conheci mentos sensíveis pelos argumentos do cepticismo, certas
realidades permane cem inabaláveis: por um lado, a figura, a grandeza e o número das
coisas extensas (ainda supondo que essas coisas não existam, dois e três sempre serão
cinco e o quadrado jamais terá mais de quatro lados); por outro lado, da parte do sujeito,
a evidência irrecusável do cogito, tal que poder nenhum poderá impedir que eu exista,
quando penso:
"De modo que, após muito haver pensado e ter cuidadosamente examinado todas as
coisas, cumpre finalmente concluir e ter como constante que esta proposição:
eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira sempre que a enuncio ou a concebo no
espírito." (Deuxiême méditation.)
2. O dogmatismo das duas substâncias
É assim que o cartesianismo põe sob luz não atenuada o dualismo do espírito e da
matéria; e a dualidade do homem, na medida em que é, a um tempo, corpo e espírito;
sujeito apenas o primeiro à necessidade e à destrui ção. A interpretação mecanicista da
ação do corpo em Descartes decorre logicamente de sua concepção dos processos
naturais, tão racionais - como totalidade e em todas as suas partes - quanto as verdades
matemáticas. Inúmeras controvérsias e inúmeros comentários foram suscitados pela
questão de saber como essas duas substâncias heterogêneas - o pensamento e a extensão
- podiam unir-se para formar juntas o homem concreto. E isso já durante a vida de
Descartes. E sua maneira de refutar as objeções lhe atesta o dogmatismo metafísico,
fundado nas "idéias claras e distintas" investidas de valor ontológico. Que a própria
experiência deva inclinar-se diante da garan tia da evidência racional, afirma-o
Descartes em seus Principes de philoso phie, onde expõe as leis do choque:
"E as demonstrações de tudo isto são tão certas que, embora a experiência nos parecesse
fazer ver o contrário, seríamos, contudo, obrigados a dar mais crédito a nossa
razão do que a nossos sentidos."
Não é sem razão que G. B. Vico censurará ao cartesianismo sob essa forma
(longe de esgotar a riqueza mental de seu autor) o não ter liberado o
espírito do racionalismo dedutivo herdado de Aristóteles, senão para escravi zá-lo ao
método geométrico. Esse novo dogmatismo permíte muita vez a
152
Descartes rejeitar com arrogância, como outros tantos preconceitos e lugares- comuns,
objeções fundadas na experiência e naquele "bom senso" que lhe parece, contudo, a
"coisa do mundo mais bem repartida". Assim é que às segundas Objeções "recolhidas
pelo R. P. Mersenne da boca de diversos Teólogos e Filósofos contra as 11, III, IV, V e
VI Meditações", em que é perguntado a Descartes especialmente:
"... como provais que um corpo não pode pensar, ou que os movimentos corporais não
são o próprio pensamento? E por que todo o sistema de vosso corpo, que credes haver
refutado, ou algumas partes deste, por exemplo, as do cérebro, não poderiam co ntri buir
para formar essas espécies de movimentos que chamamos de pensamento? Eu sou,
dizeis, uma coisa que pensa; mas como sabeis vós se não sois também um movimento
corporal ou um corpo movido?
responde ele invocando o novo dogma das idéias claras e distintas:
'... uma vez que o corpo e o espírito são realmente distintos, nenhum corpo é espírito,
e, portanto, nenhum corpo pode pensar",
e convida seus contraditores a observar:
que a sua opinião, de que as partes do cérebro concorrem com o espírito para fo rmar
nossos pensamentos, não se funda em nenhuma razão positiva, mas apenas no fato de
que jamais experimentaram ter estado sem corpo; .." (Réponses aux deu xièmes
objections.)
Esse dogmatismo de Descartes ainda mais evidente se mostra quando se dirige a
Gassendi, o qual opunha, com humor, argumentos sensualistas àquele a quem chama "ó
alma", "ó espírito": o papel desempenhado pela imaginação e pelos sentidos na formação
das idéias, as analogias entre o comportamento dos animais e o dos homens, as relações
entre o pensamento e o cérebro; e que lhe perguntava que pensamentos pode haver no
sono letárgico ou no feto em gestação. Com impaciência dificilmente contida,
responde-lhe Descartes, chamando-lhe por sua vez "ó carne", "ó muito boa carne", que a
alma pensa sempre, pois é uma substância que pensa, mas esquece:
"Mas, dizeis, sentis dificuldade em saber se "não considero que a alma pensa sempre".
Mas por que não pensaria sempre, já que é uma substância que pensa? E que de
maravilhoso existe em não nos lembrarmos dos pensamentos que tivemos no ventre de
nossas mães, ou durante uma letargia, etc., uma vez que não nos lembramos nem
mesmo de muitos pensamentos, que sabemos muito bem termos tido quando adultos,
sãos e despertos, o que se deve à circunstância de que, para lembrar-se dos pensa
mentos que o espírito tenha uma vez concebido enquanto unido ao corpo, é necessário
que deles reste algum vestígio impresso no cérebro, pois, voltando-se o espírito para
esses vestígios e aplicando-lhes seu pensamento, ele se relembra; e o que há de mara
vilhoso em que o cérebro de uma criança ou de um letárgico não seja apropriado a
receber tais impressões?" (Réponses aux cinquiêmes objections.)
Essa resposta a Gassendi vem precedida de interessante precisão sobre a noção de alma.
Observa Descartes que o mesmo termo serve abusivamente para designar as funções
animais e as operações específicas do espírito humano:
153
"Eu, porém, notando que o princípio pelo qual somos alimentados é inteira mente
distinto daquele pelo qual pensamos, disse que o nome de alma, quando tomado
conjuntamente para um e para outro, é equívoco e que, para considerá-lo precisamente
como esse ato primeiro ou essa forma principal do homem deveria tão-somente ser
entendido enquanto princípio pelo qual nós pensamos; por issc o mais das vezes o
chamei de espírito, para evitar equívoco e ambigüidade. Pois não considero o espírito
parte da alma, mas como essa alma toda inteira que pensa."
Depreende-se da resposta a Gassendi que o homem todo não está na consciência clara
que se exerce a partir do cogito, e que o ser humano tem a faculdade de pensar desde a
procriação. Mas que espécie de "pensamento" é esse, então? Descartes fala de "vestígios
impressos no cérebro", isto é, da memória, como de um fenômeno que põe em jo go a
alma e o corpo. Veremos, aliás, que tudo quanto hoje chamamos de afetividade se situa,
para ele, ao nível dos pensamentos dependentes em grande parte do corpo, e que Descar
tes lhe atribui processos que interessam às duas substâncias.
Sem insistir na distinção que estabelece entre as idéias adventícias (oriundas do
conhecimento sensível), factícias (produzidas pela nossa facul dade combinatória) e
inatas (depostas em nós por Deus e constitutivas de nosso entendimento), convém
observar que a lógica do sistema leva a reco nhecer à alma sem o corpo a concepção das
únicas idéias puras de substância, de pensamento, de espaço, de infinito. . -,
absolutamente independentes das sensações. Mas a dificuldade encontrada em Aristóteles,
a de compreender como a atualização progressiva da alma individual se articula com o
Noíit, ato eterno que lhe vem do exterior, encontra-se aqui, agravada pelo hiato intro
duzido por Descartes entre a res cogitans, privilégio exclusivo do homem, e a res extensa.
Enquanto o cogito implica a presença no mundo de um ser de múltiplos
condicionamentos, Descartes o isola para atribuí-lo a uma substân cia em si:
"A noção de substância é tal que a concebemos como uma coisa capaz de existir por si
mesma, isto é, sem recurso a nenhuma outra substância; e jamais houve alguém que
tenha concebido duas substâncias por dois diferentes conceitos, que não tenha julgado
serem elas realmente distintas." (Réponses aux quatrièmes objections.)
e para excluir qualquer dependência do espírito em relação ao corpo:
do fato de que a faculdade de pensar está adormecida nas crianças e que, nos loucos,
está, não propriamente "extinta", mas perturbada, não se deve concluir que esteja de tal
modo presa aos órgãos corporais que não possa existir sem eles; pois, do fato de a
vermos freqüentemente impedida por esses órgãos, não decorre, de modo algum, que
seja produzida por eles; e disso não é possível dar nenhuma razão, por mais ligeira que
pudesse ser." (Réponses aux quatriémes objections.)
Essa distinção radical que Descartes estabelece entre as duas substân cias não o impede,
nessas mesmas Réponses, afirmar-lhes a união "subs tancial":
"Pois, ainda nessa sexta Meditação, onde falei da distinção entre o espírito e o corpo,
mostrei também que aquele está substancialmente unido a este-,..."
Devemos renunciar a fazer uma idéia clara dessas duas substâncias distintas e
"substancialmente unidas"; dupla afirmação que apenas prova que Descartes deve
contar com a experiência do homem concretamente encarado, experiência que implica, a
um só tempo, o pensamento, a sensibi lidade, a imaginação e a memória.
3. O esphito e o corpo
Aqui é que aparece outro aspecto de Descartes: o do homem ardente mente voltado para
a experiência e as ciências de observação; e isso, não apenas sob a pressão das objeções a
ele endereçadas, mas também porque o método por ele implantado tem por fim favorecer
o desenvolvimento das pesquisas particulares. Sabe-se que, nele, o gênio matemático se
aliava a um conhecimento aprofundado da medicina, da fisiologia, da química, da anato
mia; a um conhecimento prático, também, pois ele próprio fez dissecções; em suma, que
nada ignorava do que na época se podia saber sobre o organismo humano e seu
funcionamento. Dados seus postulados metafísicos, estuda os seres vivos numa
perspectiva físico-química, para estabelecer que todos os fenômenos que aí se encontram,
fora da alma própria do homem, são de ordem física. Observou muito bem as reações do
organismo de que não parti cipa a vontade. Por exemplo: quando descreve o recuo de um
membro exci tado pela aproximação do fogo (Traité de l'homme). O esquema por ele
traça do do ato reflexo permanece grosso modo válido, e suas pesquisas sobre os
mecanismos fisiológicos, pelo esforço que atestam no sentido
de reduzir o organismo a puro mecanismo, fazem dele o precursor de todas as escolas
organicistas. Inegavelmente os trabalhos de Pavlov, por exemplo, provarão que se pode
efetivamente submeter a investigação científica fenômenos que, durante muito tempo, se
acreditou estarem reservados à psicologia introspec tiva. Mas o espírito dogmático,
quando prevalece em Descartes, incita-o a conclusões imperativas muito apressadas,
fundadas em observações das quais tira conseqüências lógicas, mas errôneas. E o caso
de sua explicação dos fenô menos nervosos pelos movimentos dos "espíritos animais"
nos nervos admiti dos como vasos. Ou quando decreta que o coração é o mais quente
dos órgãos e esse foco de calor aquece e dilata o sangue que o atravessa. Por isso, não
cabe insistir muito nessa teoria dos "espíritos animais", cuja ação e movi mento são
parcialmente causados pela ação da alma sobre eles, e que influen ciam, por sua vez, as
experiências da alma por intermédio da glândula pineal. Considerados as partes mais
sutis do sangue, passam para as cavidades do cérebro, de alguns de cujos poros podem
descer para os músculos pelos canais dos nervos:
- - até em nós não é o espírito ou a alma que move imediatamente os membros exte
riores, mas apenas ele pode determinar o curso desse líquido muito sutil que se chama de
espíritos animais, o qual, correndo continuameute do coração pelo cérebro até os
músculos, é a causa de todos os movimentos de nossos membros e freqüentemente pode
causá-los, vários e diferentes, uns e outros com igual facilidade." (Réponses aux
quatrièmes objections.)
Segundo Descartes, muitos desses mecanismos se produzem sem a intervenção da alma.
Muitas vezes até, ela não pode impedi-los. E bastam
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para explicar o comportamento animal, pois todo psiquismo é recusado aos animais: ver-
se-á facilmente que todas as ações dos animais são apenas semelhantes àquelas que
praticamos sem que nosso espírito para isso contribua." (Ibid.)
É quase escusado observar que esse modo de ver, ainda quando consi derado como
exato, não implica seja o animal puro autômato, simples máquina (perfeita embora, pois
nascida da mão de Deus) desprovida de toda consciência sensível('); não implica que não
tenha outra natureza senão "aquela que aquece o feno quando o guardamos antes de
seco, ou faz ferver os vinhos novos quando os deixamos cozer sobre o bagaço..."
(Discours.
V parte.)
Como quer que seja o psiquismo animal, aparecem no ser humano movimentos
voluntários, que cumpre explicar e dos quais Descartes trata particularmente em seus
Principes de philosophie e em suas Passions de l'âme. Embora o espírito sistemático
prepondere em geral sobre a apreensão do vivido, atestam suas descrições um senso
psicológico muito avisado e seu alcance ultrapassa o esquema que pretende explicá-las,
pois elas postulam uma interação constante entre o espírito e o corpo, imposta como um
fato a Descartes, mas cuja explicação se choca formalmente com a dificuldade já
assinalada: a de ligar o mecanismo do mundo espacial, pura extensão, com a ação que o
espírito pode exercer sobre o corpo, ação que Descartes observador longe está de
minimizar. A solução é pouco convincente, pois consiste em afirmar uma junção entre o
espírito inextenso e o corpo em uma parte deste:
parece-me haver evidentemente reconhecido que a parte do corpo onde a alma exerce
imediatamente suas funções não é, de modo algum, o coração, nem também todo o
cérebro, mas apenas a mais interior de suas partes, certa glândula extrema mente
pequena, situada no meio de sua substância, e de tal modo suspensa por sobre o conduto
pelo qual os espíritos de suas cavidades anteriores têm comunicação com os da posterior,
que os menores movimentos que ocorrem nela podem muito para alterar o curso desses
espíritos e, reciprocamente, as menores mudanças verificadas no curso dos espíritos
podem muito para mudar os movimentos dessa glândula." (Les passions de l'âme, art.31.)
4. As imagens e a percepção
Para fundamentar o conhecimento, os próprios princípios de sua doutrina, apoiados por
todos os exemplos de ilusões dos sentidos que invoca com admirável perspicácia, não
lhe permitem qualquer recurso a essa evidên cia sensível que os epicuristas
consideravam a fides prima. Como, então,
(1) Sabemos por FONTAINE que a teoria dos animais-máquinas tinha muita voga em
Port.Royal: 'Quase não havia solitário que não falasse em autômato. Não se tinha
escrúpulo em bater num cão", ou dissecá-lo vivo para verificar a circulação do sangue, e
"zombava-se dos que lamentavam esses animais como se eles tivessem sentido dor.
Dizia-se que eram relógios: os gritos que emitiam.., não eram mais do que o ruido de
uma pequena mola que fora movida, mas tudo aquilo era sem sentimento". Mda,oires
poi servir à l'hiuto,re de Port-Royal Utrecht, 1736, 2 vois., t. II, págs. 52-53; citado por
Ed. BENZECRI, L'esprü h, seloa Pascal, Alcan, P.U.F., 1939, pág. 35.
explicar a experiência sensível? Convém observar, a esse propósito, que, sob o nome de
"percepção", Descartes designa coisas muito diferentes. Distingue percepções das quais
a alma é a causa e que se relacionam com nossa atividade voluntária ou imaginária
(percebemos que queremos, imaginamos um palácio encantado, uma quimera, etc.);
aquelas cuja causa é o corpo, devidas à agitação dos espíritos animais e às quais se
relacionam os sonhos e as alucinações. A seguir, há as percepções que chegam à alma
por intermédio dos nervos, das quais umas se relacionam a objetos exteriores que nos
impres sionam os sentidos, outras a nosso próprio corpo (a sensação de fome, de sede,
etc.). Enfim, as percepções relacionadas com a alma (a alegria, a cólera, etc.) e que são
suas verdadeiras "paixões". (Ibid., arts. 19-26.)
Cabe determo-nos por um instante nas percepções relacionadas com objetos exteriores
que, "excitando alguns movimentos nos órgãos dos sentidos exteriores", "também os
excitam, por intermédio dos nervos, no cérebro, os quais fazem que a alma os sinta".
Descartes pretende provar a possibilidade de explicar todos os fenômenos naturais sem
admitir as qualidades reais da matéria, cuja realidade sabemos que reduz à extensão e ao
movimento. Trata- se, em sua opinião, de demonstrar que as sensações resultam de
vibrações de intensidade variável:
"Assim, quando vemos a luz de uma tocha e ouvimos o som de um sino, esse som e essa
luz são duas ações diversas que, pelo simples motivo de que excitam dois movimentos
diversos em alguns de nossos nervos, e por meio deles no cérebro, dão à alma dois
sentimentos diferentes, os quais relacionamos de tal maneira aos sujeitos que supomos
sejam suas causas, que julgamos ver a tocha e ouvir o sino, e não apenas sentir os
movimentos que deles provêm." (Les passions de l'âme, art. 23.)
E rejeita com desdém a antiga hipótese de uma transferência aos órgãos sensoriais de
imagens oriundas dos objetos e a eles semelhantes. As imagens não são para ele,
definitivamente, senão meros sinais das realidades exterio res, correspondentes a
movimentos percebidos pela alma('). Insiste Descartes na dessemelhança entre as idéias
que a alma percebe e os movimentos que as causam. Prova disso, observa, está em que a
palavra evoca imediatamente o sentido, conquanto não atentemos aos sons articulados; e
em que retemos o sentido de um discurso sem conservar a lembrança das palavras.
Impossível considerar de maneira aprofundada tudo que em sua obra se pode encontrar
referente ao mecanismo da percepção, particularmente em Les dioptriques e em Le
monde, e que se relaciona com uma física hoje caduca, que identifica a
matéria ao espaço e as leis da física às da geometria( Quando inquire, por exemplo,
sobre o fenômeno da visão em relação ao da luz (cujo estudo fora preconizado pelo
chanceler Bacon), pretende estabelecer que a luz se propaga instantaneamente, que o
tempo não tem papel algum nesse domínio, e a idéia que dela fazemos surge cada vez
que toca nossos olhos a ação que a significa.
(1) Para estudo mais aprofundado dessa questão, cl. Jean PUCELLE, "La théorie de la
perception extérieure chez Descartes", Rerue d'histoire dela philosophie ei
d'histoiregénérale dela cjejlisation, 3 LiUe, 1935 (publicada pela Faculdade de Letras da
Universidade de Lille), págs. 297
(2( As descobertas de NEWTON (1642-1727) contribuirão por sua vez para a dissolução
do sistema carte' siano. Se os corpos se atraem na razão direta de suas massas e em razão
inversa do quadrado das distâncias, é falsa a fisica de DESCARTES, para a qual não
existe o vácuo, nem ação a distância, pois as transmissões de movimentos supõem
sempre contatos.
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Isso, porém, em nada diminui o imenso mérito que teve ao assinalar com tanto vigor
quanta sagacidade a importância essencial do juízo nas percepções, com observar que
muitas vezes se crê ver aquilo que, na reali dade, se julga existir. Na Deuxième
méditation, após a famosa análise das metamorfoses do pedaço de cera, metamorfoses tais
que sua identidade, no instante da percepção, se baseia no juízo de que tem a cera a
mesma cor e a mesma figura, Descartes se interroga sobre a correspondência entre o que
chama "inspeção do espírito" e "visão dos olhos":
donde gostaria quase de concluir que conhecemos a cera pela visão dos olhos e, não, pela
simples inspeção do espírito, se por acaso, olhando por uma janela, não visse homens
passando na rua, a cuja vista não deixo de dizer que vejo homens, tal como digo ver a
cera; e, contudo, que vejo eu pela janela? Nada mais que chapéus e casacos que poderiam
cobrir máquinas artificiais apenas movidas por molas. Mas julgo que são homens, e assim
compreendo, pelo simples poder de julgar que reside em meu espírito, aquilo que
acreditava ver com meus olhos."
Para ilustrar o fato da diferenciação entre os objetos e as idéias, recorre Descartes a um
exemplo que interessa àquele de nossos sentidos "que parece o menos enganoso e o
mais seguro", o tacto, para observar que se se passa leve mente uma pluma sobre os
lábios de uma criança que adormece, ela retém dessa cócega uma idéia que em nada se
assemelha a "alguma coisa do que seja aquela pluma" (Le monde, XI). Tal como um
soldado, a voltar do combate, se crê ferido, enquanto se trata apenas de uma fivela ou
correia que o incomoda,..
"... pode-se também provar, muito facilmente, que nossa alma é de tal natureza que os
simples movimentos do corpo bastam para provocar-lhe toda espécie de pensamentos,
sem que seja preciso haver neles alguma coisa que se assemelhe ao que lhe fazem
conceber e, particularmente, que possam excitar nela esses pensamentos confusos que
se chamam sentimentos." (Principes.... 4e part., § 197.)
Restaria examinar como se deve compreender, em Descartes, o papel da imaginação,
capacidade do espírito de forjar e utilizar imagens, isto é, elementos relacionados com a
sensibilidade. Mas a empresa, dado o caráter de informação que com ela se relaciona -
difusa em sua obra e criadora de sérios problemas de concordância - não pode entrar nos
limites deste estudo( 1)
5. A psicologia concreta de Descartes
Já observei que a riqueza do pensamento de Descartes excede os limites do esquema de
sua metafísica dogmática. O novo racionalismo que afirma como lógico impenitente nele
encontra muito corretivo e muita atenuação. Assim é que se poderia ser tentado a crer,
com base no sistema, que ele reduz a atividade espiritual do homem à sua vida
intelectual. Ora, em certo momento de sua vida, numa carta a Chanut, de 6 de junho de
1647, e que
(1) Cf. Jean-H. ROY, Limugination selon De.,cartes, Gallimard(La Jeune Philosophie),
1944.
Malebranche recorda em sua Recherche de la vérité, vemo-lo reconhecer a existência e,
até, o papel do que hoje chamamos de inconsciente psíquico:
"Quando eu era criança, gostava de uma menina de minha idade, que era um pouco
estrábica; de tal modo a impressão que se produzia pela vista em meu cérebro, ao ver
seus olhos esgazeados, se juntava tanto à que também se produzia para despertar em
mim a paixão amorosa, que, muito tempo após, ao ver pessoas vesgas, eu me sentia
mais inclinado a gostar delas do que a gostar de outras, pela simples razão de possuí
rem esse defeito; não obstante, não sabia que fosse por isso. Ao contrário, desde que
refleti e reconheci tratar-se de defeito, deixei de emocionar-me."
O "não obstante, não sabia que fosse por isso" comprova bem a admis são, por
Descartes, de fatores inconscientes no comportamento, e estamos aí, para dizê-lo em
linguagem psicanalitica, em face do reconhecimento de um "complexo" infantil
sobrepujado por uma tomada de consciência. Podem-se encontrar outros exemplos em
Descartes( Não menos curioso é observar que ele tivera a previsão muito nítida do
mecanismo dos "reflexos condi cionados", cuja descoberta haveria de constituir um
importante capítulo da psicologia científica; atesta-o esta passagem de uma carta escrita
em 18 de março de 1630 a Mersenne:
"Em segundo lugar, aquilo mesmo que para alguns dá vontade de dançar, para outros dá
vontade de chorar. Isto provém unicamente do despertar das idéias guar dadas na
memória: por exemplo, os que outrora gostavam de dançar quando era executada
determinada melodia, logo que ouvem uma semelhante, volta-lhes o desejo de dançar; ao
contrário, se alguém nunca tivesse ouvido tocarem a galharda sem sentir ao mesmo
tempo sobrevir-lhe alguma aflição, infalivelmente se entristeceria ao ouvi-la de novo. Isto
é tão certo que eu julgo que se, ao som de um violino, se açoitasse bastante um cão por
cinco ou seis vezes, este, logo que ouvisse de novo a mesma música, começaria a uivar e
a fugir(
De modo geral, feita abstração do dogmatismo que fundamenta teori camente a união da
alma e do corpo por intermédio da glândula pineal, a psicologia de Descartes,
particularmente em Les passions de l'âme, constitui admirável antropologia concreta,
verdadeiro tratado de psicofisiologia, cuja influência foi considerável, e mereceria exame
aprofundado. Pois é quase impossível resumir essa obra, em que Descartes apresenta, de
início, uma espécie de fisiologia das paixões, sob a dependência dos movimentos pelos
quais o organismo humano cresce e se conserva; depois, uma psicologia das paixões da
alma; finalmente, uma teoria do livre arbítrio e de seu papel como moderador e regulador
das paixões, orientado o conjunto pela mira de uma sabedoria que é desenvolvimento
racional da personalidade humana. Distin gue seis paixões fundamentais ou primitivas: a
admiração, no sentido etimo lógico de espanto,
de surpresa que excita a atenção; o amor feito de atração; o
(1 é fácil pensar que as estranhas aversiles de algumas pessoas, e que não lhes permitem
suportar o perfume das rosas, ou a presença de um gato, ou coisas semelhantes, provêm
apenas de que, no início de sua vida. ficaram profundamente chocadas por coisas
semelhantes (...] E o perfume das rosas pode ter causado grande dor de cabeça a uma
criança, ainda no berço, ou um gato pode tê-la assustado muito, sem que ninguém o tenha
aperce bido, nem tenha, ela própria, guardado qualquer lembrança do episódio..."
(Les passions de láme, § 136.)
(2) Ocu de Descartes, publicadas por Charles ADAM e Paul TANNERY, Paris,
Lóopold Cerf, nlprt meur-éditeur. 1897, 1. 1. págs. 133-134.
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ódio feito de repulsão; o desejo orientado para o futuro; a alegria oriunda da satisfação
do desejo e a tristeza oriunda de sua não-satisfação; depois, as paixões particulares
derivadas destas. Uma psicologia como essa tem como fundamento aquela interação da
alma e do corpo que, teoricamente, constitui problema no sistema de Descartes. Pois, se
pretende que os músculos não são influenciados diretamente pela alma, mas pelos
"espíritos animais" - consi derados como corpos materiais - nem por isso deixa de ser
levado a admitir que o movimento e a direção dos espíritos animais são, pelo menos em
parte, causados pela ação da alma sobre eles e que, por sua vez, exercem efeito direto nas
experiências da alma. E precisamente essa interação que Descartes observa
penetrantemente ao descrever, por exemplo, os concomitantes fisio lógicos da paixão do
amor: "o batimento do pulso é regular e bastante maior e mais forte que de costume";
sente-se "um doce calor no peito" e "a digestão das carnes faz-se rapidamente no
estômago". Ou os do ódio: além do pulso desigual e mais lento, sente-se "não sei que
calor áspero e cáustico no peito", o estômago pára de funcionar e "tende a expulsar e
recusar as carnes ingeri das ou, pelo menos, a corrompê-las e convertê-las em maus
humores". Ou, ainda, os da alegria e da tristeza (Les passions de l'âme, ile part., arts.
97-100.)
6. A psicoterapia cartesiana
De maneira geral, a psicoterapia racional do tratado Les passions de l'âme (que muito
deve aos ensinamentos dos estóicos) tende,a demonstrar que o pensamento e a vontade
podem assegurar a libertação interior do homem, cuja capacidade de formar juízos
constitui o mais alto sinal de liberdade. E exercê-la é, para o homem, segundo Descartes,
ao mesmo tempo dever e sabedoria. Ele a emprega a uma espécie de casuística, de
técnica variável segundo as circunstâncias, para tirar o melhor partido das paixões, repri
mindo-lhes as perversões, os erros e os abusos. Pretende mostrar que essa capacidade
pode ser exercida tanto para atenuar a causa de uma paixão fraca, distraindo a atenção,
quanto o efeito de uma paixão forte pela repressão do movimento que ela reclama, ou
pela representação de coisas que suscitem uma paixão contrária (arts. 45 e
46). Assim é que nele intervém a eficácia que atribui a associações "retificadoras":
"... quando somos inopinadamente atacados por algum inimigo, a ocasião não concede
tempo algum para deliberação. Mas o que me parece que sempre podem fazer as
pessoas acostumadas a refletir sobre as próprias ações é, quando possuidas pelo medo,
tratar de desviar o pensamento da consideração do perigo, representando-se as razões
pelas quais existe muito maior segurança e honra na resistência do que na fuga..." (Art.
211.)
Levada em conta a diferença de vocabulário, demonstram algumas de suas observações
extraordinária sagacidade no domínio hoje bem conhecido dos condicionamentos. Se os
movimentos da glândula e "dos espíritos do cérebro que representam para a alma certos
objetos", observa, estão natural mente juntos com os que nela excitam certas paixões,
podem também ser separados deles e unidos a outros muito diferentes, pelo hábito.
Chega até a dar-se, anota a esse propósito, que um hábito seja adquirido subitamente:
"Assim, ao encontrar inopinadamente algo de muito sujo numa carne que se come com
apetite, a surpresa desse achado pode mudar de tal maneira a disposição do cérebro que,
após isso, não mais se poderá ver essa vianda senão com horror, ao passo que antes ela
era comida com prazer." (Art. 50.)
Desse modo, o homem é capaz, por sua liberdade, de introduzir, no próprio coração da
paixão, juízos que retificam aqueles que ela deforma; e a sabedoria pode preservá-lo da
má utilização e dos excessos das paixões, "todas boas pela própria natureza". E o
"remédio mais geral e mais fácil de empregar contra todos os excessos das paixões", que
permite da melhor maneira "corrigir os defeitos de sua natureza", é exercitar-se em
"separar, em si mesmo, os movimentos do sangue e dos espíritos, dos pensamentos a
que costumam estar unidos" (art. 211), isto é, romper a associação do juízo com o
sentimento. Trata-se, sempre, segundo Descartes, de restabelecer a verda deira
hierarquia, por meio de um esforço tendente a pôr no lugar do domínio do pensamento
pela paixão a "direção" da paixão pelo pensamento (art. 48).
A ação do espírito sobre o corpo, segundo Descartes, é assunto também de sua
correspondência com a princesa Elizabeth da Boêmia. Reconhece-lhe toda a influência
na evolução de uma doença, ao passo que demonstra certa desconfiança com respeito à
quimioterapia; e, se aprova os remédios utili zados pela ilustre dama que o consulta,
apenas o faz precisando serem "os melhores de todos, após os da alma".
7. A nova problemática
É Deus, ao cabo, que fundamenta teoricamente, em Descartes, essas interações
psicofisiológicas admitidas por ele, sem que possua os meios de verdadeiramente
explicá-las; Deus que "causa" em nós, dirá Malebranche, sentimentos por ocasião dos
movimentos corporais. A julgar por certas decla rações de Descartes, o ocasionalismo de
Malebranche e de Geulincx bem poderia constituir o ponto de chegada lógico, embora
extravagante, de sua própria posição; quando fala, por exemplo, que sentimentos e
percepções dos sentidos nele foram postos "para significar a seu espírito que coisas são
conve nientes ou nocivas ao composto de que é parte" (Sixième m Se se considera que
essa solução não é solução, só resta constatar a ambigüidade do cartesianismo, oscilante
entre um mecanismo universal que significa que o corpo humano, como parte desse
mecanismo, deveria ser suscetível de expli cação por causas
puramente físicas; e uma teoria da interação, fundada no fato de experiência de que uma
influência recíproca se exerce entre a alma e o corpo nos fenômenos de percepção, de
volição e de comportamento.
A questão que o cartesianismo não resolve verdadeiramente: a de como o espírito -
substância pensante - pode agir sobre movimentos puramente corporais e ser, ele próprio,
influenciado, por esses movimentos, instaura uma nova problemática até Hume e Kant,
enquanto as arestas do sistema e o papel atribuído por Descartes à glândula pineal
marcarão as pesquisas fisiológicas, orientando-as para o problema da localização
dosensorium commune.
Em Malebranche, a idéia clara e distinta da alma segundo Descartes torna-se
essencialmente a consciência de sua existência, integrada pelos
160
161
dogmas da Fé. Enquanto Berkeley levará o idealismo do sistema às últimas
conseqüências; por seu lado, Spinoza e Leibniz proporão para o paralelismo
psicofisiológico uma nova explicação metafísica. Outros, enfim, e já Thomas Hobbes
(1588-1679), afastando as preocupações inerentes ao cogito, apenas verão a matéria para
chegar ao Homem-máquina de La Mettrie, num sentido de que o behaviorismo de
Watson constitui, hoje em dia, o prolongamento. Como é natural, muitos procurarão
caminhos de conciliação e introduxirão de novo, sob nomes diversos (animismo,
vitalismo...), maneiras mais antigas de ver, como atestam especialmente os trabalhos de
Georg Ernst Stahl.
Os documentos que dependem da psicologia introspectiva e de obser vação, fornecidos
pela literatura, pelas memórias, pelas obras dos moralistas, de La Rochefoucauld a
Chamfort, são por demais numerosos e discordantes para serem estudados aqui. Neles
se encontra, é certo, uma fonte importante para a psicologia no mais amplo sentido; e
um livro como La Princesse de Clêves (1678) - e esse é apenas um exemplo - contribuiu
muito para apurar o sentido e o gosto da análise interior em França. Mas é forçoso que
nos limitemos.
Portanto, ainda é para o lado dos grandes filósofos que convém olhar de preferência;
neles se encontram as mais coerentes iniciativas diante do dualismo cartesiano;
iniciativas que apresentam a dupla vantagem de remontar aos critérios explicativos e de
- abrindo novos caminhos ao pensa mento - promover, por sua vez, novas pesquisas.
Estas em geral atestarão o conflito entre aqueles que, embora criticando a Descartes,
estarão animados de uma mesma fé na razão, e aqueles que se aplicarão em apontar as
insufi ciências e os limites desta crença.
162

CAPÍTULO XVI
AS REAÇÕES A DESCARTES
1. A psicologia religiosa de Pascal e Malebranche
2. Spinoza ou o paralelismo da identidade
3. Locke ou a exigência empirista
4. Leibniz ou a descoberta do inconsciente
5. As pesquisas experimentais
1. A psicologia religiosa de Pascal e Malebranche
Certas filosofias, ditas "da existência", voltaram a dar muita atuali dade a Blaise Pascal
(1623-1662), para quem "o coração tem suas razões, que a razão desconhece..."
(Pensées, sec. IV, art. 277)(1), que opõe à nova mentalidade científica e à busca de um
saber que lhe parece insignificante, apaixonada reivindicação de um destino humano
sobrenatural. Com agudo senso da complexidade do homem e das profundezas da vida
psíquica - "O que se passa no mais íntimo do homem.., o próprio homem quase nunca
sabe" (De I'esprit géomótrique) - e a nostalgia da salvação pela fé cristã, Pascal busca
obstinadamente, ao nível das vivências, todos os sinais de uma dualidade tragicamente
experimentada. O homem de Pascal, corrompido pelo pecado e cuja condição é
"inconstância, tédio, inquietude" (Pensées, sec. II, art. 125), é um ser dilacerado na luta
entre a grandeza de suas aspi rações e a miséria das satisfações terrenas. Assim, a
psicologia desempenha aqui apenas o papel de instrumento, de propedêutica para a vida
religiosa.
Como se sabe, ao espírito geométrico de Descartes, opõe Pascal o espí rito de finura, o
sentimento, a inspiração, o coração, o instinto, termos que, para ele, designam, em
oposição ao pensamento discursivo e racional, uma imediata apreensão da realidade
vivida, pois, através dela conhecemos os próprios princípios básicos de nosso
conhecimento do mundo: espaço, tempo, movimento, número. Semelhante intuição vital
não deixa de lembrar, às
/i) EdiçSo Brunschvicg, Paris, Hachette, 1907.
163
vezes, a de Bergson: "Cumpre ver, de uma única vez, a coisa num só olhar e não por
progresso de raciocínio, ao menos até certo grau." (Pensées, sec. 1, art. 1.)
Se desaprova por pretensiosa a tentativa cartesiana de construir um sis tema universal a
partir de princípios admitidos como absolutamente primeiros, Pascal muito deve à
psicofisiologia do Trait des passions, particularmente suas observações sobre o
automatismo psíquico. Contudo, encara as coisas menos abstratamente que Descartes e,
conquanto veja também no pensamento o sinal da incontestável superioridade do homem
(não obstante sua fragilidade física) sobre a natureza (que o devora "como um ponto",
mas que ele compreende), Pascal daí não deduz que o animal seja uma máquina
completamente desprovida de consciência sensível. Atenua-se, pois, a nítida fronteira
estabelecida por Descartes entre o espírito e a matéria, já que, para Pascal, o espírito não
se reduz apenas ao pensamento; contenta-se com obser var que o homem é capaz de
tirar proveito da experiência e, portanto, de progredir:
"Encontra-se na ignorância na primeira idade da vida; mas instrui-se, sem cessar, em
seu progresso, pois tira vantagens não só de sua própria experiência, como também
daquela de seus predecessores." (Fragmento de prefácio a um Traité du vide.)
enquanto o instinto animal se manifesta ao sabor de uma atividade de certa maneira
estereotipada:
os efeitos do raciocínio aumentam sem cessar, ao passo que o instinto permanece sempre
no mesmo estádio. As colmeias eram tão bem medidas há mil anos como hoje e
cada uma delas forma esse hexágono com a mesma exatidão, tanto na primeira, como na
última vez. O mesmo se dá com tudo que os animais produzem por intermédio deste
movimento oculto. A natureza 1...] lhes inspira essa ciência necessária, sempre igual,
temerosa de que pereçam e não permite que nada lhe seja por eles acrescentado [ Tal
não se dá com o homem, produzido apenas para a infinidade." (Ibid.)
A psicologia pascalina que, malgrado seu, muito deve aos Essais de Montaigne, tem por
objeto tanto o individual como o social. Tende, princi palmente, a demonstrar até que
ponto a razão, "flexível em todos os sen tidos", pode ser eclipsada ou ofuscada pelo
costume, a sugestão, a imagi nação, a paixão... (embora estes termos estejam em Pascal
menos estrutu rados que hoje) ou deformada pelo interesse, o amor-próprio, a simpatia ou
a antipatia..., ou, ainda, modificada por esses automatismos de comporta mento que ele
procura colocar a serviço da religião quando, por exemplo, aconselha todo aquele que
aspira a "chegar à fé", mas lhe "ignora o caminho", a tomar água benta e mandar rezar
missas (Pensées, sec. III, § 233). Muito se comentou a famosa frase subseqüente:
"Naturalmente, até isso vos fará crer e vos embrutecerá". Esta última palavra, que irá
escandalizar Victor Cousin, fora suprimida na primeira edição dos Pensées, publicada
por Port-Royal. Convêm, muito provavelmente, entendê-la à luz da psicologia cartesiana,
no sentido de uma ação indireta exercida sobre a alma quando se substituem os
movimentos ligados a tendências contrárias por aqueles que compõem a atitude do
crente. São inúmeros os testemunhos da sagacidade de Pascal ao observar a intromissão
de fatores irracionais no comportamento humano:
164
"Não se diria que este magistrado, cuja idade veneranda impõe respeito a um povo
inteiro, se deixa governar por uma razão pura e sublime e julga as coisas em sua
natureza, sem deter-se nas vãs circunstâncias que ferem apenas a imaginação dos
fracos? Vejam-no entrar para assistir a um sermão, trazendo um zelo devoto, refor
çando a solidez da razão com o ardor da caridade. Ei-lo pronto a ouvir com respeito
exemplar. Apareça, entretanto, o pregador: se a natureza lhe deu uma voz rouquenha e
um rosto de conformação estranha, se o barbeiro o barbeou mal, se, além de tudo, algum
acidente o tenha enlambuzado, por maiores que sejam as verdades que anuncia, aposto
que nosso senador perderá toda a gravidade." (Pensées, sec. II, § 82.)
ou a influência que o interesse exerce, inconscientemente, no pensamento:
como un advogado adiantadamente bem pago acha mais justa a causa que defende!"
(Ibid.)
ou o papel das imagens obsessivas:
"Quem ignora que a simples visão de gatos ou ratos, o esmagamento de um carvão,
põem a razão fora dos eixos?" (Ibid.)
Não lhe escaparam igualmente à observação determinadas ligações afetivas, verdadeiros
reflexos condicionados. Nota, assim, a propósito dos reis, que do costume de vê-los
"acompanhados de guardas, tambores, oficiais e tudo o mais que faz curvar a máquina
no sentido do respeito e do terror resulta que seus rostos, ainda quando estão sós, sem
esses acompanhamen tos( impõem aos súditos o respeito e o terror..." (Pensées, sec. V,
art. 308).
Acrescenta Pascal ainda nessa matéria: "E o mundo, ignorando que um tal efeito provém
desse costume, acredita que ele emana de uma força natural, o que dá origem a
expressões como esta: "o caráter da Divindade está impresso em seu rosto, etc."." (Ibid)
A importância da sugestão foi, igual mente, por ele muito bem observada: "O homem é
feito de tal maneira que, à força de lhe dizerem que é um tolo, ele o acredita; . (Pensées,
sec. VII, art. 536) e até a da auto-sugestão: "... e, à força de dizê-lo a si mesmo, conven
ce-se de que o é." (Ibid.)
Não tem ilusões quanto ao impressionante aparato de que se cercam magistrados e
médicos, e denuncia, implacavelmente, esses meios destinados a "impressionar a
imaginação", essa parte enganadora do homem, "senhora de erro e falsidade e tanto
mais velhaca quanto não o é sempre-, ..." (Pensées, sec. II, §82).
suas togas vermelhas, seus arminhos, em que se enfaixam como gatos peludos, os
palácios onde julgam, as flores-de-lis, todo esse augusto aparato era muito necessário; e
se os médicos não possuíssem sotainas e galochas, se os doutores não usassem borla e
capelo e túnicas muito amplas de quatro partes, jamais teriam conseguido iludir o
mundo, incapaz de resistir a exibição tão autêntica. Estivessem eles de posse da verda
deira justiça e os médicos, da verdadeira arte de curar, não precisariam da borla e do
capelo; a majestade de tais ciências seria, por si mesma, bastante venerável. Não
possuindo, porém, mais que ciências imaginárias, lançam mão desses vãos instru
(1) Somos nós quem grifa.
165
(li
mentos que impressionam a imaginação a que se dirigem; e, efetivamente, por inter
médio deles atraem o respeito." (Pensées, sec. II, § 82.)
Quanto à influência das paixões, basta lembrar sua famosa observação sobre o nariz de
Cleópatra que, "se fosse mais curto, teria mudado toda a face da terra". (Pensées, séc. II,
art. 162.) Ainda uma vez, esta psicologia de Pascal, fértil em observações concretas de
singular penetração, serve-lhe apenas para desvalorizar as atividades humanas, quando
pretendem realizar- se para si mesmas e por si mesmas, desligadas da preocupação -
essencial aos olhos do filósofo - com a vida religiosa.
Já em Nicolas de Malebranche (1638-1715), agostiniano do Oratório e padre, cujo
encontro com o pensamento cartesiano constituiu o grande• acontecimento de sua vida
mental, a psicologia se acha inserida, ao contrário, numa doutrina que visa a reconciliar,
por uma síntese ao mesmo tempo audaciosa e equilibrada, as exigências da fé cristã com
a nova maneira de filosofar.
Quanto ao psiquismo animal, Malebranche não se formula qualquer problema, tão
persuadido está de que o mecanicismo cartesiano basta para explicá-lo. Crer que exista
nos animais, além do sangue e dos órgãos, uma alma necessária à realização de suas
funções, é pôr em dúvida a inteligência divina e sua capacidade de "fazer essas coisas
admiráveis apenas com a extensão". (Dela recherche dela vérité, III, 2, 6.)
Em compensação, o homem é composto de duas substâncias. Possui uma alma
pensante, de origem divina, maculada pelo pecado original, porém imortal. A respeito
dela, as dificuldades da solução cartesiana conduzem Malebranche à sua teoria das
causas naturais como simplesmente ocasionais, teoria que remete, quanto ao essencial, à
Causa por excelência, a fim de explicar a aparente interação entre a alma e o corpo por
uma correspondencia decorrente das "vontades constantes e sempre eficazes" de Deus.
Male branche chega até a negar a relação de causalidade de um espírito para outro, de
um corpo para outro. (Entretiens sur la métaphysique et sur la religion, IV, 11.)
Deus age com ordem e simplicidade, segundo leis imutáveis e, de conformidade com
esta ordem, a alma tem conhecimento dos fatos corporais. Com base nesse fundamento
teológico, encontram-se, em Malebranche, considerações que justificam, à sua maneira, a
existência de uma psicologia empírica e, não, abstrata. Pois, sua afirmação de que o
verdadeiro conheci mento só pode ter por objeto relações de idéias correspondentes a
relações de grandeza - únicas suscetíveis de serem verdadeiramente demonstradas - ex
clui a possibilidade de uma psicologia racional. Como a alma humana não pos sui
extensão, o que lhe diz respeito escapa a qualquer demonstração; o que nos é lícito é
unicamente conhecer-lhe as manifestações concretas, isto é, os fenô menos psíquicos.
"Não sabemos de nossa alma senão aquilo que sentimos ocorrer em nós." (De la
recherche..., III, II cap. VII.)
"Se jamais houvéssemos experimentado dor, calor, luz, etc., não poderíamos saber se
nossa alma seria capaz de senti-los, pois não a conhecemos, absolutamente, por sua
idéia..." (Ibid.)
Se é impossível duvidarmos, "pela consciência ou pelo sentimento inte rior que temos
de nós mesmos", de que nossa alma é "algo de grande", nada podemos saber quanto à
sua essência, nem deduzir-lhe as propriedades. E, sendo finita, menos ainda lhe é
facultado conhecer os atributos do infinito. Eis porque Malebranche declara desejar
"construir sobre os dogmas da fé o que com ela se relacione". A sua é, pois, uma
psicologia introspectiva, baseada numa experiência interior e distinta do conhecimento
racional, o qual implica a extensão.
À apreensão direta da realidade da alma, acrescenta-se, em Male branche, a noção de
uma correspondência exata entre suas manifestações e as da extensão, pois, ao nível das
"causas ocasionais", todas as nossas sensações, em si mesmas puras qualidades, se
inscrevem, necessariamente, na ordem inteligível da extensão. O cérebro é o órgão
portador da "correspondência natural e mútua" entre os fenômenos psíquicos e os
fenômenos orgânicos; e seus "traços", à maneira dos "movimentos dos espíritos
animais", permitem medir, ao nível da vida biológica, aquilo que se apresenta
qualitativamente como fenômeno psíquico. Essa possibilidade, reconhecida por
Malebranche, de coordenar um quantitativo a um qualitativo (que a consciência é capaz
de distinguir, mas a razão é impotente para determinar) e as observações que ela lhe
sugeriu, levaram alguns autores a atribuir-lhe o esboço de uma verdadeira psicofisiologia
científica(
2. Spinoza ou o paralelismo de identidade
Segundo Spinoza, a realidade acessível ao homem reveste-se sempre de duplo aspecto,
enquanto pode ser encarada de dentro ou de fora. Baseia-se seu panteísmo numa forma
de racionalismo intransigente e iconoclasta:
"Ninguém [ poderá perceber corretamente o que quero dizer se não tiver cuidado para
não confundir o poder de Deus com o poder ou o direito dos Reis." (Etica, II parte, prop.
III, escólio). Ordem eterna das coisas, consti tuinte, também, de todas as manifestações do
real, a natura naturans de Spinoza não é um Deus pessoal, mas o Ser absoluto, que inclui
toda realidade e todo valor(
O autor da Ética não tem, quanto aos problemas da fé religiosa, a reserva de Descartes,
cuja filosofia lhe parece "muito afastada do conheci mento da primeira causa e da origem
de todas as coisas", deixando, assim, de reconhecer "a verdadeira natureza do espírito
humano" (Carta a Oldenburg, 1661); o que leva Spinoza a indagar que idéia clara e
distinta poderia ter "esse homem muito célebre" de um pensamento ligado a uma
pequena porção da extensão corporal( 3).
(1) No número da Rio Phi/osophiqxe (março-abri! de 1938) consagrado a
MALEBRANCHE. e). espe cialmente os artigos de H. POLLNOW, "Réflexions sur les
fondements de la psychologie chez Malebranche", e de P. SCHRECKER, "Le
parallélisme théologico'mathématique chez Malebranche".
(2) Admitir que Deus age tendo em vista um fim" é admitir que ele "deseja algo de que
está pnvado, em suma, é admitir que o Bem está situado fora dele". (Etica, apéndice do
livro 1.)
(3) "Em verdade, nunca me admirarei o bastante de que um filósofo, após haver
firmemente resolvido
nada deduzir senão de princípios conhecidos por si mesmos, a nada afirmar que não
perceba clara e distintamente e
que tantas vezes censurou aos Escotásticos o desejo de explicar as coisas obscuras por
meio de quatidades ocultas,
admita uma hipótese ainda mais oculta que todas as qualidades ocultas." (Etica, V,
prefácio.)
166
167
A rigorosa preocupação de imanência conduz Spinoza a um parale lismo que aspira a
explicar a vida concreta do homem sem a intervenção de um Deus ex machina,
paralelismo baseado na identidade dessa dupla mani festação constituída pela alma e pelo
corpo. Como a extensão é, igualmente, atributo da substância divina, o objeto da alma
humana é o corpo, cuja vida é, ao mesmo tempo, a consciência da alma. E, se a sensação
é um fenômeno orgânico, privilégio dos corpos que atingiram um grau de organização
supe rior, a percepção é um fato mental, que consiste na capacidade própria da alma de
formar uma imagem ou uma idéia correspondente às sensações. O paralelismo ocorre,
pois, entre o desenvolvimento físico e o desenvolvimento do espírito: quanto mais
estruturado se encontra um corpo fisiologicamente, mais o espírito se torna apto para
perceber. (Etica, livro II, prop. XIV.)
quanto mais um corpo está apto, comparativamente aos outros, a perceber várias coisas
ao mesmo tempo; [ e quanto mais as ações de um corpo dependem apenas dele e quanto
menos corpos diferentes com ele concorrem na ação, tanto mais o espírito desse corpo
estará apto a conhecer distintamente." (II, XIII, escólio.)
Se, entretanto, para Spinoza, existe paralelismo entre a vida psíquica e a vida
fisiológica, parece evidente que não se lhe pode atribuir um paralelismo psicofísico no
sentido em que o quererá instituir Fechner:
"Homens diversos podem ser influenciados de vária forma por um único e mesmo objeto
e um único e mesmo homem pode ser influenciado por um único e mesmo objeto de
diversas maneiras em diferentes ocasiões." (Etica, III, prop. LI.)
O espírito humano (mens humana) não conhece seu corpo e não sabe de sua existência
senão pelas idéias das afecções que o tocam (II, prop. XIX). O primum que constitui seu
ser atual é a idéia de uma coisa particular, existente em ato.
"Donde se conclui que o espírito humano é uma parte da inteligência infinita de Deus.
Assim, dizermos que o espírito humano percebe isto ou aquilo é o mesmo que dizermos
que Deus, não enquanto infinito, mas enquanto se exprime pela natureza do espírito
humano, ou, seja, enquanto constitui a essência do espírito humano, tem esta ou aquela
idéia..." (Etica, II, prop. XI e corolário.)
Portanto, se considerarmos que o espírito, na mais ampla acepção do termo, é tido como
correspondente ao organismo em sua complexidade, cumpre admitir que a toda mudança
no corpo corresponde uma mudança correlativa no espírito, como no corpo se encadeiam
e se ordenam suas modif i cações (Etica, V, 1.) O que Spinoza nos diz do
corpo e do livre arbítrio demonstra que o filósofo discerniu claramente certas
manifestações, hoje em dia, em geral, atribuidas ao psiquismo "inconsciente".
"Ninguém [ determinou até agora o que pode o corpo, isto é, a experiência ainda não
ensinou a ninguém aquilo que, por meio unicamente das leis da natureza (considerada
apenas como corporal), o corpo pode ou não pode fazer, a não ser que determinado pelo
espírito. Ninguém, efetivamente, conhece tão exatamente a estrutura do corpo, que possa
explicar-lhe todas as funções, e isso sem mencionar aqui o que tantas vezes se observa
entre os animais e ultrapassa largamente a sagacidade humana ou o caso dos sonâmbulos
que fazem muito freqüentemente, durante o sono, o que não
ousariam fazer em estado de vigília. Demonstra isso suficientemente que o corpo,
seguindo apenas as leis de sua natureza, é capaz de muitas coisas que causam espanto ao
seu espírito. Além do mais, ninguém sabe em que condições ou por que meios o espírito
move o corpo, nem quantos graus de movimento pode imprimir-lhe, nem com que
velocidade pode movê-lo. Donde se conclui que os homens, quando afirmam que esta
ou aquela ação do corpo vem do espírito (que impera sobre o corpo), não sabem o que
dizem, mas apenas confessam, em linguagem especiosa, sua iguorância da verda deira
causa de uma ação que não lhes desperta o assombro." (Etica. III, prop. II, escólio.)
"Dir-se-á que é impossível tirar unicamente das leis da natureza (considerada apenas em
seu aspecto corporal) as causas dos edifícios, das pinturas e das coisas dessa espécie
executadas tão-somente pela arte do homem; e que o corpo humano, se não fosse
determinado e conduzido pelo espírito, não teria o poder de edificar um templo? Já
mostrei que se ignora aquilo de que o corpo é capaz ou aquilo que se pode inferir,
considerando apenas sua natureza própria, pois a experiência obriga a reconhecer que,
muito freqüentemente, as leis da natureza podem fazer o que jamais se teria acreditado
possível sem a direção do espírito; tais são as ações dos sonâmbulos durante o sono, que a
eles mesmos espantam quando acordados. Acrescento a este exemplo o da própria
estrutura do corpo humano, que ultrapassa largamente, em artifício, tudo quanto a arte
humana possa construir..." (Ibid.)
Spinoza acrescenta ainda este trecho, que vai longe:
"Desejaria que se observasse particularmente o seguinte: nada podemos fazer, por
decreto do espírito, de que não tenhamos primeiro a lembrança. Por exemplo, não
podemos dizer uma palavra, a menos que dela nos lembremos. Por outro lado, não é do
livre poder do espírito lembrar-se de uma coisa ou esquecê-la." (Ibid.)
Como, a seus olhos, a missão humana por excelência é o esforço de compreender,
Spinoza pensa que a psicologia humana pode e deve ser estu dada more geometrico. No
capítulo da necessária objetividade os psicólogos mais "científicos" de nosso tempo não
poderiam mostrar-se mais exigentes:
"Escreverei sobre os seres humanos como se eu me ocupasse de linhas, planos e sólidos
[ Apliquei-me escrupulosamente, não em zombar, deplorar ou maldizer, mas em
compreender as ações humanas; por isso, considerei as paixões [ não como os vícios da
natureza humana, porém como propriedades que lhe convêm, tanto quanto o calor, o
frio, a tempestade, o trovão, etc., convêm à natureza da atmosfera." (Tracta tus
theologico-politicus. introd. e cap. 1.)
Essa racionalidade intransigente lhe permite depurar singularmente, e mesmo com
exagero, a problemática humana, quando rejeita, como ilusões e falsos problemas,
numerosas questões controversas que, em sua opinião, demonstram a projeção dos
desejos, das preferências e dos preconceitos humanos no universo objetivo. Seu
rigorismo lógico condu-lo a pôr de lado (além das considerações sobre as "causas
finais", como já tivemos ocasião de lembrar), a liberdade, no sentido de livre arbítrio(
(1) Quando E...] sonhamos que estamos falando, acreditamos falar, unicamente, por
decreto do espírito; contudo, não falamos, ou, se o fazemos, isso se dá por um movimento
espontâneo do corpo. Sonhamos também que ocultamos aos homens certas coisas, isso
pelo mesmo decreto do espírito em virtude do qual durante a vigília calamos aquilo que
sabemos. Sonhamos, enfim, que fazemos, por um decreto do espírito, aquilo que, durante
a vigília, não ousamos fazer. Gostaria de saber, em conseqüência, se acaso existiriam, no
espírito, duas espécies de decretos: os imaginários e os livres?" (Etica. III parte, prop. II,
rscóíio.)
168
169
os homens se imaginam livres porque têm consciência de suas volições e de seus
desejos" (appetitus);
quando são completamente ignorantes
"Quanto às causas que os levam a desejar e a querer,..." (Ética, livro 1, apêndice.) Afasta,
igualmente, as questões lancinantes acerca do "problema do mal", pois a razão permite
estabelecer que todos os "valores" são relativos ao homem, a seus gostos, a seus fins e a
sua natureza especial, sem "nada de positivo nas coisas", as quais podem ser,
simultaneamente, boas, más ou indi ferentes. E afasta, ainda, as questões concernentes à
localização da alma, desprovidas de sentido, pois o homem (em seu duplo aspecto de
espírito e corpo) não passa de um modo desses atributos da substância que são o pensa
mento e a extensão:
"... todos ignoram o q'ie pode ser a vontade e como pode mover o corpo; quanto àqueles,
mais pretensiosos, que imaginam uma sede ou domicílios para a alma (anirnae sedes et
habiraculafingunt), provocam o riso ou a náusea." (Etica, II, XXXV, escólio.) O
problema da identidade da alma pessoal depois da morte é eliminado pelo próprio
fato de sua negação como substância. Semelhante identidade parece duvidosa a Spinoza
ainda durante a união da alma com o corpo:
"Nenhuma razão me obriga a admitir que um corpo não morre senão quando se torna
cadáver; a própria experiência parece persuadir do contrário. Muitas vezes, com efeito,
um homem sofre tais transformações que dificilmente se poderia dizer que é o mesmo ; é
assim que ouvi falar de certo poeta espanhol, o qual, embora recuperado de uma
enfermidade, esqueceu de tal forma sua vida passada, a ponto de não crer fossem suas
as comédias e tragédias que escrevera; poderia ser considerado uma criança adulta se
também houvesse esquecido a lingua materna. E se este fato parece incrível, que dizer
das crianças? A um homem de idade mais avançada a natureza da criança se afigura tão
diferente da sua que deve, de certa forma, conjeturar, segundo os outros, que ele próprio
já foi criança. Porém, para não fornecer aos supersticiosos material para novas questões,
prefiro deixar este assunto." (Etica, IV parte, prop. XXXIX, escólio.)
Se o rigor lógico é, para Spinoza, uma arma que lhe permite depurar a reflexão filosófica
de numerosos problemas decretados antropomórficos, o nominalismo, corolário desse
rigor, lhe permite mondar, igualmente, o terre no da psicologia, rejeitando como ilusórias
as "faculdades" da alma, consi deradas como entidades que se tornam sujeitos de várias
proposições: a inteli gência, a vontade, a imaginação, a memória... Na medida em que se
preo cupa, essencialmente, com um conhecimento intemporal, a memória não lhe
desperta grande interesse. Nele, a memória aparece, em dado sentido, como "certo
encadeamento de idéias que envolvem a natureza das coisas
exteriores ao corpo humano, que se faz segundo a ordem e o encadeamento das afecções
desse corpo" (Etica, II, prop. XVIII, escólio). Pretende Spinoza explicar, assim, como a
alma "passa imediatamente" do pensamento de uma coisa ao pensamento de outra,
embora nenhuma semelhança, não importa qual, exista entre elas:
como, por exemplo, um romano, do pensamento da palavra pomum. passará
imediatamente ao pensamento de um fruto que não tem qualquer semelhança com este
som articulado, nada havendo em comum entre essas coisas além do fato de que o corpo
desse romano foi, freqüentemente, influenciado por ambos, isto é, o mesmo homem
ouviu muitas vezes a palavra pomum enquanto via o fruto; e assim cada um passará de
um pensamento a outro, conforme o hábito em cada um ordenou no corpo as imagens das
coisas. Por exemplo, um soldado, ao ver na areia sinais de patas de cavalo, passará logo
do pensamento de um cavalo ao de um cavaleiro e daí, ao pensa mento da guerra, etc.
Um camponês, ao contrário, passará do pensamento de um cavalo ao de uma charrua, de
um campo, etc. Desta forma, cada um, segundo esteja habituado a unir as imagens das
coisas desta ou daquela maneira, passará do mesmo pensamento a este ou àquele outro."
(Ética, II, prop. XVIII, escólio.)
Alhures Spinoza trata rapidamente da memória sob outra forma, mais ativa, como
propriedade não mais do corpo, explicável mecanicamente, mas de um espírito a cuja
natureza convém de estar unido a um corpo (De la réforme de l'entendement, § 15 e 44).
Dessa memória são testemunhos o reconhecimento e a localização de uma lembrança.
Spinoza observa, a esse respeito, que as coisas singulares influem mais na imaginação
(por ele identi ficada com o sensus quem vocant communem ou, seja, possivelmente,
com aquilo a que se chamava de sensorium). Aquele que leu apenas uma comédia de
amor - observa o filósofo - com toda a certeza a conservará por mais tempo na memória
do que se houvesse lido muitas. Além disso, retemos mais aquilo que é mais cognoscível.
Sob este aspecto, a memória "não passa da sensação das marcas existentes no cérebro,
junta a um pensamento relativo a uma duração determinada desta sensação, conforme o
demonstra a reminis cência". Esclarece ainda que esse "pensamento", enquanto não é a
própria duração da sensação, não é a memória propriamente dita e,
"em relação ao entendimento, considerado em si mesmo, não há memória nem esqueci
mento". Quanto às noções de intelecto (inteilectus) e de vontade, são simples sinais que
designam ou uma série de idéias ou uma série de volições. "Com esta idéia ou esta
volição, tais termos abstratos mantêm L. . a mesma relação que a pedrice(*) tem com
esta ou aquela pedra e o homem, com Pedro e Paulo" (Etica, II, XLVIII, escólio).
Spinoza chega até a identificar a que esses dois termos correspondem:
"A vontade e a inteligência são uma só e mesma coisa." (Ética, II, prop. XLIX,
corolário.)
considerando que uma volição não passa de uma idéia que, pela riqueza de associações
ou pela ausência de idéias contrárias, permaneceu durante tempo suficiente na
consciência para transformar-se em ação. Quanto ao impulso que determina a força de
uma idéia na consciência, identifica-se com o desejo (cupiditas), "essência do homem"
(Etica, LX, prop. XVIII, demonstração), cuja raiz é um vago esforço de preservação
pessoal. Este aspecto do pensa mento de Spinoza tempera singularmente a oposição
(que podemos ser tenta
( No original está pierrité, traduzido por pedrice, um e outro termos forjados, por
indispensáveis à compreensão da idéia. Em sua clássica tradução francesa da Ethica
(Etkique. Classiques Garnier", Pans, Garnier, várias edições), Charles APPUHN usa
pierréité, tão forjada quanto a forma latina iapideit au. empregada por SPINOZA na
passagem citada, que assim se tõ: "... ac lapideitas ad hunc et illum lapidem (págs. 220-
221 do vol. Ida edição referida). (J. B. D. P.)
170
171
dos a considerar irredutível) entre o seu "racionalismo" e o "irracionalismo" de um
Schopenhauer ou de um Nietzsche. O prazer e a dor - transições e, não, estados - ligam-
se a uma satisfação das forças instintivas ou a um obstáculo a elas. As sensações
corporais, de início vagas e imprecísas, corres pondem as idéias confusas e inadequadas
da imaginação, tributárias dos preconceitos, das ilusões e dos erros. Enquanto a
imaginação pretende fazer do homem o centro do mundo, a razão, elevando-se acima do
eu finito, atinge um "conhecimento adequado da essência eterna e infinita de Deus"
(Etica, II, prop. XLVII e escólio), único eterno. Concebe, nesse caso, idéias adequa das
e totais, ou seja, idéias que abrangem ao mesmo tempo o objeto e suas causas, pois o
critério da verdade não está fora dela:
como a luz se faz conhecer a si própria e faz conhecer as trevas, a verdade é norma
de si mesma e do falso." (Etica. II, prop. XLIII, escólio.)
Transposto em linguagem moderna, o "formar-se idéias adequadas" significa "tomar
consciência do desejo e de suas causas reais". Quando incita a encarar as coisas suh
specie aeternitatis, refere-se Spinoza indubitavelmente tanto à percepção como à ação
(que jamais devem perder de vista a totali dade), sendo a virtude, segundo ele,
inseparável do poder. Ao contrário dos estóicos, considera que a razão, sem paixão, é
inerte:
uma afecção pela qual sofremos não pode ser reduzida nem suprimida senão por uma
afecção mais forte que ela e contrária a ela 1...) isto é 1...] pela idéia de uma afecção do
corpo mais forte do que aquela que nos faz sofrer e contrária a ela." (Etica, IV, prop.
VII, corolário.)
mas admite que a paixão é de certa maneira "sublimada", na medida em que dela temos
idéia clara (Etica, V, prop. III). A afetividade, a seus olhos,, só se torna boa ou má na
medida em que exalta ou diminui nosso poder:
"Por afecções (affectus) entendo as afecções do corpo pelas quais o poder de
ação desse corpo é aumentado ou diminuído, favorecido ou obstruído; e, ao mesmo
tempo, as idéias dessas afecções." (Etica, III, 3 def.)
Como não ver ai uma notável e sempre válida definição da emoção?
Essa positividade, característica da moral de Spinoza, afasta-o da humildade cristã, não
para favorecer o orgulho, mas, bem ao contrário, a modéstia, à maneira aristotélica. Fora
necessário o vagar para relatar suas penetrantes observações sobre as afecções humanas,
objeto da terceira e quarta partes da Etica. Moral de grande elevação, tendente a mostrar
como o amor atrai o amor, como o ódio engendra o ódio e ainda porque a ma dade é o
meio mais seguro de fazer a conciliação entre as almas (Etica, V, prop. X, escólio.)
O sistema de Spinoza, de extraordinária coerência formal, apresenta, enfim, certa
ambigüidade. A vida do espírito e a da natureza são por ele consi deradas como operando
paralelas e em perfeito equilíbrio, mas a primeira parte da Etica subordina, de fato, o
espírito à natureza; e a segunda (bem como a conclusão), subordina a natureza ao espírito.
Parece, à primeira vista, que as leis da natureza, que regem os processos materiais do
organismo ou
172
suas modificações a que corresponde o encadeamento dos atos psíquicos, a tal ponto
condicionam o espírito humano que ele passa a não ser mais que o reflexo consciente do
devir cósmico. Se o spinozismo vem a ser, por essa forma, inclinado no sentido de uma
forma de naturalismo materialista, toda a "psicoterapia" a ele relacionada consiste, çm
compensação, em mostrar que os sentimentos confusos podem ser iluminados por idéias
claras e distintas, diminuído, assim, o elemento de passividade existente no homem.
o melhor [ que podemos fazer, enquánto não temos conhecimento perfeito de nos sas
afecções, é conceber uma conduta reta para a vida ou, seja, princípios certos de con
duta, imprimi-los em nossa memória e aplicá-los sem cessar às coisas particulares que
se encontram freqüentemente na vida, de modo que nossa imaginação seja por eles
ampla mente influenciada e nós os tenhamos sempre presentes..." (Etica, V, prop. X,
escólio.)
Difícil imaginar as coisas sem uma decisão e uma escolha por parte daquele que busca
esse amor intel/ectualis dei, tido por Spinoza como o mais alto grau da sabedoria
humana; que se eleva a uma perspectiva de onde a natureza já não se apresenta com
outra aparência que a de eterna substância. E a orientação do spinozismo é, então, a de
um idealismo, O problema é importante no plano filosófico. No plano da psicologia
como tal, a admissão do paralelismo como hipótese de trabalho não exclui a de uma
interação recí proca e, indubitavelmente, sob este aspecto, a psicofisiologia
contemporânea pode considerar Spinoza como ilustre precursor.
Com relação aos ideais do Renascimento, sua obra lembra que não é tão fácil liberarmo-
nos do objeto no plano moral e que, ainda quando o Deus antropomórfico não convenha
mais às novas exigências da razão, o homem deve contar com uma necessidade natural,
com um destino; que não lhe é lícito simplesmente dominar a natureza para escravizá-la a
seus desejos, que lhe cabe, ao contrário, aliar à sua necessidade de grandeza uma
transforma ção interior; em suma, que a sabedoria permanece como valor imprescritível.
O que distingue, pois, o naturalismo de Spinoza - na medida em que merece esse nome -
é a restauração do senso da objetividade e dos limites humanos e, ao mesmo tempo, um
aprofundamento dos problemas da liberdade. Moderno, ele oé, sem dúvida, na rejeição de
toda transcendência objetiva, na dissolução dos mitos, no profundo senso de totalidade.
Sem levar em conta aqui as múltiplas interpretações propostas para uma obra sublime, por
tanto tempo injuriada ou elevada às nuvens, convém lembrar a imensa influência que
exerceu, particularmente no pensamento alemão. Goethe e Hegel (para citar apenas estes
dois) devem muito àquele que teve, talvez (dizia Renan, em 1882, ao inaugurar, em Haia,
o monumento comemorativo do segundo cente nário da morte de Spinoza) "a visão mais
verídica que alguém já teve de Deus". Visão aristocrática,
porém, demasiado lúcida e desabusada para a maioria dos homens.
3. Locke ou a exigência empirista
John Locke (1632-1704), formado por estudos de filosofia e de medicina, que sofreu
com as lutas travadas em seu país pela conquista das
liberdades políticas e religiosas (conquista para a qual sua obra grandemente
o
o
173
contribuirá), rompe deliberadamente com as preocupações ontológicas. Cuidoso de um
saber concreto e eficaz, propõe-se estudar a vida mental como tal, invertendo a rota
clássica da metafísica para a psicologia. Por isso, sua grande obra An essay concerning
human understanding (1690), oficialmente condenada pelas autoridades de Oxford,
pode ser considerada como primeira tentativa de fundar, por método analítico e
descritivo, uma psicologia inde pendente( 1)
Tem-se muita vez aproximado Locke de Francis Bacon, na medida em que ele também
considera a experiência e a razão como as condições necessá rias e suficientes do
conhecimento; a analogia, porém, é superficial, pois ambos encaram diferentemente os
fatos. O empirismo de Locke assume, com efeito, o aspecto de uma psicologia genética
das idéias gerais, psicologia, aliás, exclusiva de toda a evolução temporal, que identifica
o homem de seu tempo com o ser humano em geral. Para ele, a questão fundamental é
saber quais os produtos da capacidade cognitiva do homem.
"Como todo homem está convencido, em seu íntimo, de que pensa e como
aquilo que se encontra em seu espírito, quando pensa, são idéias que o ocupam no
JJ momento, é indubitável que os homens têm várias idéias no espírito, como
aquelas que
são expressas pelas palavras: brancura, dureza, doçura, pensamento, movimento,
homem, elefante, exército, assassínio e várias outras.
Isto posto, a primeira coisa por examinar é como chega o homem a ter todas
essasidéias?"(Essai.., liv. II, cap. 1, § 1.) Ç' - C€& )vsç .
)\.L s
Prudente reserva o distingue ainda não só de seu ilustre compatriota, como de
Descartes, cujo sistema estudou. Não é sua finalidade atingir o saber universal, mas
apenas apreciar o alcance e os limites do conhecimento, mira que faz antes pensar em
Kant, com maior senso prático e muito menor i igor conceptual. A tarefa que Locke se
prop ddç a
manei intelecto chega a um saber verdadeiro, distinto cjj e da suficiente para os
negócios e para a conduta humana, mas incapaz de penetrar a essência das coisas: desde
que o espírito quer lançar suas vistas para além dessas idéias originais, decorrentes da
sensação e da reflexão, a fim de penetrar em suas causas e na maneira pela qual são
produzidas, achamos que semelhante busca servirá apenas para nos fazer sentir quão
limitadas são nossas luzes." (Essai..., liv. II, cap. XXIII, § 28.)
Sem enfrentar teoricamente o problema da união da alma com o corpo, a exemplo do s
filósofos pós-cartesianos (por que, observa ele, não teria Deus concedido à matéria a
faculdade de pensar?), Locke atém-se deliberadamente às "idéias", enquanto conteúdo
da consciência humana admitido como fato da experiência; o termo idéia se reveste,
para ele, de sentido extremamente amplo, para não dizer vago.
(1) OEssay foi traduzido para o francês por Pierre COSTE, já em 1697, sob a direção de
LOCKE e de seu amigo THOYNARD: em 1700 apareceu em Amsterdd sob o lilulo
"Essai philosop/vç c 1 'enlr,,dcrn. hun - ou 'ou montre quelle es! l'étendue de nos
000naissances certames et la manière doo! nous y parve000s". Essa versão francesa
contribuiu enormemente para a difusão das idéias de LOCKE no continente,
particularinente em França, durante toda a primeira metade do século XVIII. Nossat
citações são tomadas à edição de Paris, Didot, 1821.
174
'Como este termo me parece o mais apropriado para designar tudo quanto é o objeto de
nosso entendimento quando pensamos, dele me servi para exprimir tudo que se entende
por imagem, noção, espécie ou o que quer que ocupe nosso espírito quando pensa..."
(Essai.., introd., §8.)
A primeira fonte das idéias é a sensação, que nos fornece o que Locke denomina idéias
simples ou, seja, as impressões produzidas em nós pelos objetos mediante os órgãos
sensoriais: essas as qualidades sensíveis que chamamos de branco, amarelo, frio, duro,
mole, doce, etc. A este respeito Locke distingue qualidades primeiras (solidez, extensão,
forma, número, etc.), por ele atribuídas aos próprios objetos, e qualidades segundas
(cores, odores, sons, gostos, etc.), por ele consideradas como relativas aos nossos
sentidos em contato com as coisas:
"Nossos sentidos [ fazem entrar todas essas idéias em nossa alma, pelo que
entendo fazem passar objetos exteriores para a alma; o que produz essas espécies de
percepções. "(Essai..., liv. II, cap. 1, § 3.)
Como se dá essa passagem? Tal como Descartes, recorre Locke à inter venção dos
espíritos animais, nessa visão aproximada daquilo que hoje se entende por influxo
nervoso, afirmando que "... toda sensação se produz em nós somente em graus
diferentes e por diferentes determinações de movi mentos em nossos espíritos animais,
diversamente agitados pelos objetos exteriores..." (liv. II, cap. VIII, § 4). No que diz
respeito à recepção das idéias simples, o entendimento é passivo:
as idéias particulares dos objetos dos sentidos se introduzem na alma, segundo ou não a
nossa vontade; [ o entendimento não tem o poder de recusá-las, ou de alterá las quando
fizeram sua impressão, de apagá-las ou produzir outras em si mesmo, tal como um
espelho não pode recusar, alterar ou apagar as imagens que os objetos produ zem no
vidro diante do qual são colocados." (Liv. li, cap. 1, § 25.)
A segunda fonte das idéias é uma espécie de reação do espírito, à qual "não ficaria mal
o nome de senso interior" (liv. II, cap. 1, § 4), mas Locke prefere chamar de reflexão.
Trata-se de uma "percepção das operações de nossa alma, aplicada às idéias por ela
recebidas mediante os sentidos", as quais, objetivadas, "produzem no entendimento
outra espécie de idéias que os objetos exteriores não teriam podido fornecer-lhe; tais são
as idéias do que chamamos perceber, pensar, duvidar, crer, raciocinar, conhecer,
querer..." (Liv. II, cap. 1, § 4.)
entendo como reflexão o conhecimento que a alma tem de suas diferentes opera ções,
graças ao qual o entendimento vem a formar idéias." (EssaL.., liv. II, cap. 1, § 4.)
Inexato será, portanto, atribuir a Locke a etiqueta desensualista, tanto
mais que admite, além desta auto-apreensão que chama de reflexão, a razão
como privilégio do homem.
Como razão, entendo aqui uma faculdade pela qual se supõe que o homem se distingue
dos animais e na qual, evidentemente, ele os ultrapassa largamente." (Essai..., liv. IV,
cap. XVII, § 1.) E a razão que "busca e aplica convenientemente os meios necessários
para descobrir a certeza (...j e a probabilidade", que "apercebe a
175
conexão necessária e indubitável entre todas as idéias ou provas, em cada fase de uma
demonstração que produz o conhecimento..." (Essai..., liv. IV, cap. XVII, § 2.)
Há apenas, em Locke, a afirmação de que a razão, encarada como realidade vazia, pode
unicamente dividir, reunir e simplificar os dados senso- riais a fim de compor, com as
idéias simples, idéias complexas, afirmação essa que tem por corolário a ausência de
toda e qualquer distinção - prevenção deliberada ou falta de penetração filosófica? -
entre verdades axiomáticas (isto é, conhecidas quando são conhecidos os termos que as
compõem) e verdades demonstradas (deduzidas de outras proposições reconhecidas
como verdadeiras).
Locke procura essencialmente estabelecer que é falso o inatismo das idéias, tanto de
Descartes, como dos neoplatônicos de Cambridge, pois, se a verdade fosse inerente a
nosso espírito e adquirida do interior, não se com preenderia a fecundidade da
observação e das pesquisas experimentais. Por outro lado, se existissem,
verdadeiramente, idéias inatas, haveriamos de notá lo, e, muito particularmente, nos
seres mais próximos do estado de natureza ou, seja, crianças, a selvagens; o que
absolutamente não acon tece(').
A critica lockista ao inatismo incide, igualmente, nos princípios de moralidade, num
sentido que confirma seu gosto pela observação dos fatos. A argumentação abstrata
prefere a experiência direta; no caso, serve-se de narrativas de viagens para provar que
se podem cometer ações "enormes" sem qualquer escrúpulo de consciência:
"É comum entre os habitantes da Mingrélia, que professam o cristianismo, enterrar vivos
seus filhos sem nenhum escrúpulo. Em outras regiões, os pais comem os próprios filhos.
Os caraíbas têm o costume de castrá-los para cevá-los e comê-los." (Essai..., liv.
1, cap. II, §9.)
No fato de todas as verdades serem adquiridas, Locke reconhece ainda imensa
vantagem para a educação. O espírito da criança recebe as impressões que lhe são
fornecidas e é exclusivamente por serem desconhecidas as primei ras fontes que se
atribuem à natureza ou a Deus todas as espécies de ensina mentos. E bem conhecido o
interesse do filósofo pelo problema educacional, ao qual consagrou um tratado: Da
educação das crianças, de influência consi derável no século XVIII, mormente em
Rousseau. A propósito das idéias espontaneamente adquiridas, Locke lembra uma
observação de William Molyneux, cientista que tinha em grande conta e com quem
manteve impor tante correspondência. Escreveu-lhe, um dia, Molyneux: suponha que
um cego de nascença aprendeu a distinguir, pelo tacto, um cubo de uma esfera do
mesmo tamanho e do mesmo material; supondo que esse cego começasse,
(1) A questão do natis,no é fértil em mal-entendidos. Seus partidários não pretendem de
modo algum que as idétas "Inatas" se apresentem, de início, explícitas e atuais; nem
mesmo PLATAO, conforme o atesta o interro gatórro do Ménon. Trata-se, antes, de um
disposição, de uma rir-tua/idade. O reconhecimento de uma estrutura que condictona a
enperiêncta permite fazer Justiça, tanto aos adeptos como aos opositores do mutismo. O
próprio comportamento dos antmats nos garante que certas disposições lhes são inatas.
No que diz respeito ao ser humano, o verdadetro problema é o do valor ontológico das
idéias. Finalmente LOCKE. em certo sentido, concede inesperada vantagem ao tnattsmo
ao admtttr, no homem, a apercepção e a razão como funções originárias e até.
contrariando suas premissas empíricas, uma espécie de imperativo moral. repentinamente,
a ver, se se lhe pedisse que distinguisse, sem tocar, os dois sóli dos, não o conseguiria.
Pois, se aprendeu, por experiência, de que maneira a es fera e o cubo lhe afetam o tacto,
ignora ainda como devem afetar-lhe a vista as impressões que lhe dão, tactilmente, a
redondeza da esfera e as arestas do cubo:
"Estou inteiramente de acordo com este homem hábil [ Creio que o cego não seria capaz
de dizer, à primeira vista, com certeza, qual seria o globo e qual o cubo, se se contentasse
com olhá-los, embora, tocando-os, pudesse nomeá-los e distingui-los seguramente pela
diferença de suas figuras, que perceberia pelo tacto." (Essai..., liv. II, cap. IX, § 8.)
As idéias simples provêm ou de um único sentido, como é o caso da luz, ou de vários,
como é o caso da extensão. Podem ainda originar-se da "refle xão", como o ato
voluntário, por exemplo. A idéia de espaço nasce da sensa ção daquilo que é exterior a
nós; a de tempo, da reflexão sobre nossos estados sucessivos; a de causa, de nossa
atividade interna e de nossas impressões em contato com as coisas.
tendo a experiência de que a substância a que chamamos lenha, que é certa coleção de
idéias simples à qual se dá esse nome, fica reduzida, por meio do fogo, a outra substância
denominada cinza (outra idéia complexa que consiste numa coleção de idéias simples,
inteiramente diferente dessa idéia complexa a que chamamos lenha) consideramos o fogo,
em relação às cinzas, como uma causa e as cinzas, como um efeito." (Estai..., liv. II, cap.
XXVI, § 1.)
As idéias complexas que o espírito humano pode compor, indefinida mente, com as idéias
simples, recebidas por meio da sensação e da "reflexão", são de três tipos: modos,
substâncias e relações. Nesta elaboração entram em jogo: a percepção, "primeira
operação dentre todas as nossas faculdades intelectuais", que "dá entrada em nosso
espírito a todos os conhecimentos que ele pode adquirir" (liv. II, cap. IX, § 15); a
retenção, que conserva no espírito as idéias recebidas (contemplação), e a ele chama
aquelas que haviam desaparecido (memória); o discernimento, que faz a distinção entre
as idéias; a comparação, operação da qual "depende esse grande número de idéias
compreendidas sob o nome de relação" (liv. II, cap. XI, § 6); e a abstração, privilégio do
espírito humano, capaz de formar idéias universais, agrupando os elementos comuns das
idéias particulares:
"Assim, observando hoje, no giz ou na neve, a mesma cor que o leite excitou ontem em
meu espírito, considero esta idéia única, encaro-a como uma representação de todas as
outras desta espécie e, tendo-lhe dado o nome de brancura, exprimo, por esse som, a
mesma qualidade, em qualquer parte em que possa imaginá-la ou encon trá-la; e é assim
que se formam as idéias universais e os termos empregados para designá-las." (Liv. II,
cap. XI, § 9.)
Por obra de um nominalismo com pretensões a integral, Locke refuta, em teoria, a
explicação por "faculdades" do espírito, entendido como uma espécie de agência, e fala,
em geral, de "potências". Acontece-lhe, porém, com freqüência, recair, por descrições
puramente verbais, naquilo que acredita estar a combater. Assim é que a memória,
"como que o reservatório de todas as nossas idéias", embora "essas idéias,
propriamente, não se encon trem em parte alguma", se reduziria ao seguinte:
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a alma tem, em várias oportunidades, o poder de despertar as percepçôes já experi
mentadas, com um sentimento que, no momento, a convence de que já teve anterior
mente essas espécies de percepções." (Liv. II, cap. X, § 2.)
o que nada explica. Tentemos, não obstante, compreender de que maneira se alimenta
esta "memória". Se, diz o filósofo, "a atenção e a reflexão são de grande utilidade para
fixar as idéias na memória", as idéias que produzem as impressões mais profundas e
duradouras "são aquelas acompanhadas de sensações de prazer ou de dor":
"Como o fim principal dos sentidos consiste em nos dar a conhecer o que faz bem ou mal
ao nosso corpo, a natureza, sabiamente, estabeleceu [ que a dor acom panhasse a
impressão de certas idéias; pois, fazendo às vezes do raciocínio nas crianças e agindo,
nos homens feitos, de maneira bem mais pronta que o raciocínio, obriga jovens e velhos a
afastar-se dos objetos nocivos, com toda a prontidão necessária à sua preservação; e, por
intermédio da memória, inspira-lhes a precaução para o futuro." (Liv. II, cap. X,
§3.)
É assim que Locke nos mostra a vida mental, às vezes, como depen dente das coisas
pensadas, na medida em que as idéias são episódios da vida interior do espírito; e, às
vezes, como objetos de operações executadas por um espírito que estaria como que
desligado delas. Reflexos dessa ambigüidade podem ser encontrados em suas
observações acerca da associação das idéias, embora nessa matéria nos diga muita coisa
digna de interesse em suas relações com o comportamento humano.
Pondo de lado o indivíduo arrastado por forte paixão - observa o filó sofo -' não há quem
não manifeste "em suas opiniões, raciocínios ou ações, algo de extravagante, algum grau
de loucura" (liv. II, cap. XXXIII, § 1 e 4), que nem o amor-próprio, a educação ou a
força dos preconceitos bastam nara explicar (ibid., § 2 e 3), pois o fato se deve mais a
uma "ligação defeituosa das idéias" (ibid., § 5). Efetivamente, se algumas idéias estão
ligadas por uma "correspondência e uma ligação natural" (ibid., § 5), outra espécie de
asso ciação "depende exclusivamente do acaso e do costume", e é dificílimo rompê-la.
"Essa forte ligação de idéias, não cimentada pela natureza, o espí rito a forma em si
próprio, seja voluntariamente, seja por acaso; e isso explica o ser muito diferente em
diferentes pessoas..." (ibid., § 6).
Às ligações produzidas pelo costume:
"O costume forma no entendimento hábitos de pensar de certa maneira, do mesmo
modo que produz certas determinações na vontade e certos movimentos no corpo.
Todas essas coisas parecem ser apenas certos movimentos continuados nos espíritos
animais que, uma vez encaminhados em determinada direção, acompanham o mesmo
traçado que costumam seguir; com a freqüente movimentação dos espíritos animais,
esses traçados se transformam em outros tantos caminhos batidos, de tal modo que o
movimento se torna fácil e, por assim dizer, natural. Na medida em que somos capazes
de compreender o que é pensar, parece-me que assim se produzem as idéias em nosso
espírito." (Liv. II, cap. XXXIII, § 6.)
pode-se atribuir grande parte das simpatias e antipatias; não todas, pois Locke - sem
insistir muito - admite algumas como congênitas, contentando- se em observar que
muitas que têm origem na infância são chamadas naturais:
Um homem feito, indisposto por haver comido mel em excesso, mal pode ouvir essa
palavra que sua imaginação lhe causa náuseas, pois, não lhe suporta nem mesmo a idéia.
Sobrevêm, imediatamente, outras idéias de enjôo e náuseas, acompa nhadas de vômitos, e
seu estômago fica em completa desordem." (Liv. II, cap. XXXIII, § 7.)
O educador deve tomar todas as precauções para evitar essas ligações irregulares, pois
"é a época em que se é mais suscetível de formar impressões duradouras" (ibid., § 8). E
isso não apenas mediante preocupação com o corpo e com a saúde - como fazem, em
geral, as pessoas sensatas - mas cuidando, igualmente, das ligações "que se relacionam
mais particularmente com a alma e terminam no entendimento ou nas paixões" (ibid., §
8):
"As idéias dos espíritos e dos fantasmas, na realidade, não têm mais relação com as trevas
do que com a luz. Se porém, uma criada estouvada começa a inculcar com freqüência
essas diferentes idéias no espírito de uma criança, e a excitá-las juntas, talvez essa criança
jamais consiga separá-las durante o resto da vida..." (Ibid., § 10-)
Aos olhos de Locke, essas ligações explicam muitas atitudes sectárias:
"Que o hábito contraído na primeira infância tenha um dia ligado uma forma e uma
figura à idéia de Deus, e a que absurdos tal pensamento não nos poderá conduzir com
relação à divindade!" (Ibid., § 17.)
Seria, certamente, artificial comparar os "caminhos batidos" dos espíritos animais às
mudanças de via nervosa da reflexologia contemporânea. E certo, não obstante, que
Locke observa a presença daquilo a que chamamos hoje de condicionamentos, os quais
atribui a uma "ligação defeituosa das idéias" (ibid., §5):
"Um homem sofreu dor ou ficou doente em determinado local; viu morrer um amigo em
certo quarto. Embora tais fatos não tenham naturalmente qualquer relação entre si, uma
vez estabelecida a impressão, quando a idéia daquele local se apresenta a seu espírito traz
consigo uma idéia de dor e de desagrado; ele as confunde num único todo, e pode
suportar igualmente mal uma e outra." (Liv. II, cap. XXXIII, § 12.)
Admite Locke ainda que muita vez o tempo consegue dissipar essas "afecções", quando
a razão seria incapaz de vencê-las; e, conquanto situe os problemas ao nível da
consciência clara, não ignora, pois, a afetividade nem o magro auxílio do raciocínio em
determinados casos, como, por exemplo, no da mãe que acaba de perder o filho:
"Empregai, para consolá-la, as melhores razões do mundo e conseguireis tanto quanto
se exortásseis um condenado ao suplício da roda a permanecer tranqüilo; tanto quanto
se pretendêsseis suavizar, com belos discursos, a dor que lhe causa a deslocação de seus
membros." (Ibid., § 14.)
A obra de Locke suscitou numerosos comentários, muita vez diametral mente opostos
quanto a seu lugar exato na história do pensamento. Basta observar aqui, entretanto, que
essa obra é moderna, em todo caso, pela critica ao inatismo, a qual desfere grande golpe
na noção de substância. Esta noção é posta em discussão como realidade positiva, para
tornar-se a suposição de um quid como substrato de nossas idéias, cujas únicas fontes são
a sensação e a
178
179
reflexão. Sobre esta base, levanta Locke dúvidas quanto às afirmações da identidade
humana por fundadas em algo diferente da consciência, "opinião que nós próprios temos
daquilo que fazemos" (Essai..., liv. 1, cap. VIII). E "a consciência que faz a mesma
pessoa" (II, cap. XXVII, § 16 e 26).
É necessário:
renunciar à noção comum de espécies e essências, se quisermos penetrar verdadei.
ramente na própria natureza das coisas e examiná-las através do que nossas faculdades
nelas possam levar-nos a descobrir, considerando-as tais como existem e não mediante
vàs fantasias em que se se obstinou a seu respeito sem nenhum fundamento." (Essai. liv.
IV, cap. IV, § 16.)
"Um imbecil bem constituído é um homem, possui uma alma racional, embora não
revele o menor indício; quanto a isso não há dúvida, direis. Façam-lhe, porém, as
orelhas um pouco mais longas e mais pontudas, o nariz um pouco mais chato que o
comum e começareis a hesitar. Façam-lhe o rosto mais estreito, mais chato e mais
longo: eis-vos completamente perpiexos. Dêem-lhe, ainda, mais semelhança com um
irracional até o ponto de que a cabeça seja perfeitamente igual à de qualquer outro
animal e pronto: aí temos um monstro; e isso bastará como demonstração de que ele não
tem alma e deve ser destruído. Pergunto-vos agora: onde encontrar ajusta medida e as
últimas fronteiras da figura que traz consigo uma alma racional?" (Ibid.)
Pelo fato de que a idéia constitui, em Locke, o ponto de partida e o de chegada do
processo cognitivo, sua teoria oscila entre certo realismo gnoseo lógico (as qualidades
primeiras - extensão, forma, número, situação, repouso, movimento, solidez -
consideradas como inseparáveis dos objetos percebidos e imutáveis, quaisquer que sejam
as modificações verificadas nos corpos que, sem elas, desapareceriam) e
umfenomenismo, tendente a volatili zar a objetividade, pois as idéias das coisas, antes
que as próprias coisas, é que constituem os verdadeiros objetos do conhecimento. Este
último motivo será desenvolvido por Hume até as derradeiras conseqüências. Por outro
lado, pretende Locke conciliar a afirmação de que a vida tira seu conteúdo exclusi
vamente da experiência com a afirmação de uma razão independente e, por isso mesmo,
superior a toda experiência, o que o leva, finalmente, a pensar que a dignidade do homem
está em seu poder de resistir às inclinações infe riores, opor-se a seus desejos e
tendências, para seguir, unicamente, as prescrições da razão. Semelhante exigência
reclama fundamento inteiramente diferente do empirismo.
4. Leibniz ou a descoberta do inconsciente
Na prodigiosa síntese de Gottfried-Wilhelm Leibniz (1646-1716) vamos encontrar,
pacificados e reconciliados, os elementos contraditórios da tradição e de sua ruptura.
Criador do cálculo diferencial e integral, teórico do princípio de razão suficiente, do
princípio dos indiscerníveis e do princípio de continuida de, precursor da dialética
moderna, por sua idéia de uma perennis philosophia enriquecida por tudo quanto os
sistemas particulares oferecem de válido( l),
(1) DESCARTES queria que se acreditasse que ele quase não havia lido. Isso era um
tanto excessivo
Desejaria que os autores nos dessem a história de suas descobertas e os progressos por
meio dos quais chegaram a elas. Quando não o fazem, cumpre tentar adivinhá-los." (A
Boiirgiiet, carta III, 1714.)
precursor também da teoria evolucionista( l), Leibniz enunciou muitas idéias geniais
que fecundaram o pensamento moderno. Teologia, metafísica, lógica, matemática,
física, química, paleontologia, biologia, história, jurisprudência, lingüística..., nada
permaneceu estranho a esse espírito, de penetração e amplitude excepcionais.
Ao dualismo radical de Descartes, que o filósofo considera um dos grandes homens de
seu século, censura a incapacidade de explicar verdadeira mente a percepção. Longe de
reduzir-se às figuras e ao movimento, a natureza está "cheia de vida". A Locke, cujo
Essay Concerning Human Understanding (1690) está na origem dos seus Nouveaux
essais sur l'entendement humain (1714), objeta que a vida da alma nem sempre implica a
apercepção, que há em nós, a todo momento, "uma infinidade de percepções":
das quais não nos apercebemos, pois essas impressões ou são muito pequenas e
numerosíssimas, ou estão excessivamente unidas..." (Nouveaux essais..., prefácio.)
e que seu empirismo radical, por outro lado, não pode explicar a experiência humana,
condicionada por certas disposições ou virtualidades inatas. Quanto a Spinoza, dar-lhe-
ia razão "Se flão existissem as Mônadas"( pois tudo, então, - exceto Deus - "seria
passageiro e se ceria em simples acidentes ou modificações" (A Bourguet, carta II).
Essas mônadas, fontes das ações e princípios absolutos da composição das coisas,
unidades reais, e sem partes, as quais Leibniz chama, às vezes, de almas, enteléquias ou
forças, distinguem-se dos pontos físicos na medida em que não possuem extensão e dos
pontos matemáticos, na medida em que são realidades objetivas. São "átomos de
substância", indestrutíveis por natureza, pois, uma vez destruído o tegumento espesso
(crassum tegumentum) de uma máquina da natureza, subsiste sempre uma máquina
menor (manichula), como ocorre com as "roupagens de um Arlequim cômico a quem se
tirassem muitas túnicas e sempre conserva uma nova" (Espistola ad Wagnerum de vi
activa corporis, de anima, de anima brutorum, III, 1710).
A atividade racional traz consigo, em certo sentido, um elemento de descontinuidade,
pois a alma humana é capaz de construir, por suas próprias forças, um sistema coerente
da realidade, como também, segundo Leibniz (cuja idéia de progresso contínuo se
baseia tanto na natureza do espírito, como nas leis do universo), de verificar que, em
todas as coisas, é possível encontrar um princípio de aperfeiçoamento. Entretanto, a
continuidade da hierarquia das mônadas é salvaguardada sob o aspecto da percepção,
pois a razão não exclui um resíduo de percepções confusas. Seria desarrazoado
"promover um divórcio entre o aperceptível e a verdade que se conserva pelas
percepções insensíveis" porque "as percepções insensíveis do presente podem
desenvolver-se um dia [ e a eternidade dá um grande campo às transfor mações".
(Nouveaux essais..., liv. II, cap. XXVII, § 18.) Por isso, o ser
(1) "Talvez, em determinadas épocas ou determinado lugar do universo, as espécies
animais sejam, foram, ou venham a ser mais sujeitas a mudanças do que presentemente,
entre nós; e diversos animais que tém alguma semelhança com o gaio, como o leão, o
tigre ou o lince, poderiam ter pertencido a uma mesma raça e poderão ser agora como
que subdivisões novas da antiga espécie dos gatos." (Nouveaux essais sur l'entendement
humain, liv. III. § 23; cf. também § 12 e 36.)
(2) InsPira-se LEIBNIZ, sem dúvida, em Giordano BRUNO, autor, principalmente, de
De moiiade, numero etfigura, 1591.
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humano recebe uma multidão de impressões que lhe desbordam da consciên cia clara:
quando ele se reduz a um estado em que permanece como que numa letargia e quase
sem sentimento, a reflexão e a apercepção cessam e não se pensa em verdades
universais. Contudo, as faculdades e as disposições inatas e adquiridas e até as impres
sões recebidas durante esse estado de confusão, não cessam por isso e, embora as
esqueçamos, não se apagam; chegará mesmo sua vez de contribuir um dia para algum
efeito notável, pois nada é inútil na natureza..." (Nouveaux essais..., liv. II, cap. IX, §
14.)
Eis porque Leibniz, muito moderno nessa matéria, vê no homem um ser naturalmente
inquieto, sempre assaltado por inumeráveis e imperceptíveis solicitações:
"A inquietude é o aguilhão principal, para não dizer o único, que excita a indústria e a
atividade dos homens." (Nouveaux essais.., liv. II, cap. XX, § 6.)
Considera-o ainda um ser cujo comportamento é, assim, muita vez determinado por
fatores inconscientes:
são essas pequenas percepções que nos determinam em muitas oportunidades, sem que
pensemos nisso, e iludem o vulgo com a aparência de uma indiferença de equilí brio,
como se nos fosse indiferente, por exemplo, virar para a direita ou para a esquerda."
(Nouveaux essais. .. prefácio.)
Como a mônada é, por natureza, apetição e percepção, o homem, segundo Leibniz
(embora o privilégio da apercepção e da razão o torne capaz de transformar o desejo em
vontade consciente) jamais poderia desinteressar- se de si mesmo. Cumpre contar com
um certo amor de si congênito, susc'tível de expandir-se num sentido que lembra o
famoso "amor oblativo" dos psicó logos contemporâneos:
'O primeiro nos faz ter em vista o nosso prazer e o segundo, o prazer alheio, porém de
maneira que faça, ou antes, constitua o nosso, pois, se não se refletisse, de certa forma,
sobre nós, não nos poderia interessar, já que, embora se afirme o contrá rio, é-nos
impossível desligar-nos do bem próprio. Eis como se deve entender o amor
desinteressado, ou não-mercenário, para bem conceber-lhe a nobreza e não cair, no
entanto, no quimérico." (Nouveauxessais..., liv. II, cap. XX, §5.)(l).
Não cabe insistir demais nos fundamentos do paralelismo psicofisio lógico em Leibniz,
em sua noção de uma "harmonia preestabelecida" que substitui a intervenção perpétua
de Deus, postulada pelo ocasionalismo, por uma espécie de milagre realizado de uma
vez por todas, pois se trata de uma questão essencialmente metafísica:
"Examinei, cuidadosamente, este assunto e mostrei que, verdadeiramente, existem na
alma alguns materiais de pensamento ou objetos do entendimento que os
(1) "É pena que PASCAL, espírito ao mesmo tempo muito matemático e multo
metafisico, se tenha enfraquecido tão cedo 1. .1 Aliás, entregou-se a austeridades que
não podiam ser favoráveis às meditações elevadas e ainda menos à sua saúde." (A
Remond de Montfort. carta I 1714.)
sentidos exteriores não fornecem, a saber, a própria alma e suas funções (nihil est in
inte/lectu quod non fuerit in sensu. nisi ipse inteilectus),' e os que são pelo espírito
universal concordarão facilmente comigo, pois o distinguem da matéria. Julgo, contudo,
que não existe nunca pensamento abstrato que não seja acompanhado de algumas
imagens ou traços materiais, e estabeleci um paralelismo perfeito entre aquilo que se
passa na alma e aquilo que ocorre na matéria, tendo mostrado que a alma, com suas
funções, é algo de distinto da matéria, porém está sempre acompanhada pelos órgãos que
lhe devem responder e que isto é recíproco e o será sempre." (Considéra tions sur la
doctrine d'un esprit universel, 1702.)
O próprio Leibniz atribuía a maior importância a esta "harmonia preestabelecida" que,
segundo ele, aparece para dar razão do ser-no-mundo
- como hoje se diz - para explicar esse fato espantoso de que cada mônada, encerrada em
si mesma, seja capaz de produzir no seu desenvolvimento interior, e de representar- se
exatamente o que se passa fora dela; que seja capaz de explicitar, espontaneamente, seu
ser e, ao mesmo tempo, de fazer o mundo exterior presente em si mesma, de tornar- se o
espelho do todo. Expediente, antes que explicação, e isso não escapou à sagacidade
irônica de Voltaire( 1)
De grande importância psicológica, em compensação, é o papel do inconsciente na
teoria leibniziana. Convém, portanto, precisar onde e como ele aparece. De modo geral
o filósofo o investe de valor ontológico, no sentido de que o homem é um microcosmo e
de que tudo quanto se produz no uni verso repercute em nosso organismo para nele
suscitar (graças à harmonia existente entre a alma e o corpo) alguma percepção. O
murmúrio do mar - exemplo ao qual Leibniz gosta de recorrer - é causado pela
multiplicação dos ruídos de cada vaga, ruídos esses que constituem outras tantas
"pequenas percepções" que em nós influem sem que o saibamos e que percebemos
apenas quando se produz um som de certa intensidade:
é preciso que [ se tenha alguma percepção de cada um desses ruídos, por pequenos que
sejam, ou, do contrário, não se teria a de cem mil vagas, pois cem mil nadas não
conseguiriam fazer algo. Nunca se dorme tão profundamente que não se tenha algum
sentimento fraco e confuso; e jamais se teria sido despertado pelo maior ruído do mundo
se não se tivesse tido alguma percepção de seu começo, que é peque no..."
(Nouveaux essais..., prefácio.)
"Acho até que algo se passa na alma que corresponde à circulação do sangue e a todos os
movimentos internos das vísceras, de que, entretanto, não nos apercebemos..." (Ibid., liv.
II, cap. 1, § 14.)
Em Leibniz o inconsciente está, igualmente, presente, na própria perspectiva da
atividade mental, que só pode abranger, no presente, um campo limitado:
Não é possível refletir sempre, expressamente, sobre todos os nossos pensamentos; do
contrário, o espírito faria reflexões sobre reflexões até o infinito, sem jamais poder
(1) "Existe harmonia preestabelecida entre a mônada de vossa alma e t_as as mônadas
de vosso corpo, de modo que quando a vossa alma 1cm uma idéia, vosso corpo tem uma
ação, sem que uma seja a resultante da outra. São dois pêndulos que trabalham juntos; ou,
se quiserdes, isto se assemelha a um homem que prega enquanto o outro faz os gostos.
Facilmente concebeis que é necessário que assim seja no melhor dos mundos."
(Le philoso pheignoi-ant, l Oeu,',-e.i co Paris. P. Dupont, Iibraire-éditear. 1824, t. 1.
págs. 118-119.)
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passar a um pensamento novo. Por exemplo, percebendo um sentimento presente, deveria
sempre pensar que estou pensando nele e pensar ainda que penso estar pensan do nele e,
assim, ao infinito. E preciso, porém, que eu deixe de refletir sobre todas essas reflexões e
haja, enfim, algum pensamento que deixemos passar sem nele pensar; do contráno,
permaneceríamos sempre na mesma coisa." (Nouveaux essais..., liv. II, cap. 1,
§ 19.)
se reparássemos em tudo, seria necessário pensar com atenção, ao mesmo tempo, numa
infinidade de coisas que sentimos todas e nos impressionam os sentidos" (ibid.. liv. II,
cap. 1, § 11),
e a focalização desta atividade constitui, por excelência, o estado de vigília:
temos sempre objetos que nos impressionam os olhos ou os ouvidos e, conseqüente
mente, atingem também a alma, sem que o percebamos, porque nossa atenção está presa
a outros objetos, até que o objeto se torne bastante forte para atraí-la, seja redo brando a
ação, seja por qualquer outro motivo; era uma espécie de sono particular, em relação
àquele objeto e esse sono se torna geral quando nossa atenção cessa com relação a todos
os objetos. Um meio de dormir é dividir a atenção para enfraquecê-la." (Ibid., liv. II, cap.
1, § 14.)
O inconsciente aparece ainda, em Leibniz, sob a forma de hábitos, na medida em que
constituídos por uma degradação da ação e da percepção:
é assim que o hábito de acostumar-nos com as coisas faz que não reparemos no
movimento de um moinho ou de uma queda de água após termos morado pertinho
durante certo tempo." (Ibid., prefácio.)
Da concepção leibniziana resulta que nossos juízos e raciocínios têm profundas raízes
no inconsciente, pois, se a vontade humana é uma conse qüência da aprovação de uma
tendência admitida, há ainda:
esforços resultantes das percepções insensíveis, que não são percebidos e aos quais
prefiro chamar de apetições a chamar de volições (embora existam também apetições
aperceptíveis) pois não se chamam ações voluntárias senão as de que a gente pode se
aperceber e sobre as quais é possível recair nossa reflexão quando seguem a conside
ração do bem e do mal." (Ibid., liv. II, cap. XXI, § 5.)
A "apercepção", inseparável da atividade racional, que permite ao ser humano a
reflexão sobre si mesmo e sobre o mundo, constitui a identidade da pessoa, segundo
Leibniz. Suas observações nesse terreno demonstram que ele não subestima os dados da
experiência, admitindo como condição suficiente:
que exista uma ligação média de conscienciosidade de um estado vizinho, ou até um
pouco afastado, para outro, quando a ele se acrescenta um salto ou intervalo esquecido.
Assim, se uma doença determinou uma interrupção da continuidade da ligação de
conscienciosidade, de tal forma que eu não soubesse como ficaria no estado presente,
embora me recordasse de fatos mais afastados, o testemunho de outras pessoas poderia
preencher as lacunas de minha reminiscência. Baseados nesse teste munho, poderiam até
punir-me se eu viesse a cometer deliberadamente uma ação má num intervalo e a
esquecesse pouco depois, por causa dessa moléstia. E se chegasse a esquecer todas as
coisas passadas, e fosse obrigado a deixar que me ensinassem de novo até o nome, ou,
ainda, a ler e escrever, sempre poderia ficar sabendo, através de outros, da minha vida
passada em meu estado precedente..." (Ibid., liv. II, cap. XXVII, § 10.)
Seja como for nesse problema delicado e controverso, particularmente em suas relações
com o da responsabilidade, Leibniz não deixou de estabele cer bem nitidamente as
diferenças entre o psiquismo humano e o psiquismo animal, e suas opiniões na matéria se
aproximam bem mais de nossos conheci mentos atuais que o dualismo abstrato de
Descartes. Está persuadido de que os animais não são destituídos de sensibilidade e
raciocinam, mas de certa forma:
"Eles conhecem aparentemente a brancura, observando-a, tanto no giz como na neve; não
se trata ainda, porém, de abstração, pois esta exige uma consideração do comum,
separado do particular e, conseqüentemente, aí está presente o conhecimento das
verdades universais, que não é facultado aos animais. Pode-se observar também que os
animais que falam não se servem de palavras para exprimir as Idéias gerais e os homens
privados da fala ou das palavras não deixam de fazer para si outros sinais gerais." (Ibid..
§ 10.)
A "sombra de razão" que aparece nos animais é apenas a expectativa de um
acontecimento análogo a outro já ocorrido. "Até os homens não agem de outra forma
nos casos em que são somente empíricos. Elevam-se, porém, acima dos animais na
medida em que percebem as ligações entre as verda des;..." (Ibid., liv. IV, cap. XVII, §
1):
"A memória fornece às almas uma espécie de consecução que imita a razão, mas dela
deve ser distinguida. E que vemos que os animais, tendo a percepção de alguma coisa
que os impressiona e da qual já tiveram, anteriormente, percepção seme lhante,
esperam, pela representação de sua memória, por aquilo que esteve ligado nessa
percepção precedente e são levados a sentimentos semelhantes àqueles que experimen
taram então. Por exemplo, quando mostramos um pau aos cães, lembram-se da dor que
já lhes causou, uivam e fogem." (Monadologie, 26.)
Também não lhe escapou o fato de que, de uma única impressão parti cularmente viva,
pode resultar um "condicionamento":
"E a imaginação forte que os impressiona e comove, pode vir tanto das propor ções
como da quantidade das percepções precedentes. Pois, freqüentemente, uma impressão
forte produz, de uma só vez, o efeito de um longo hábito, ou de muitas percepções
medíocres reiteradas." (Monadologie, 27.)
Assim, os animais passam de uma imagem a outra por uma ligação efetiva:
por exemplo, quando o dono toma um pau, o cão teme que lhe vá bater. E, em mui tas
ocasiões, crianças, tal como homens, procedem de maneira idêntica em suas passa gens
de pensamento a pensamento." (Nouveaux essais..., liv. II, cap. XI, § 11.)
Na opinião de Leibniz, o que lhes falta é uma razão destas associações que, assim,
permanecem ao nível das sensações (ibid.). No capítulo Xl dos Nouveaux essais... (Da
faculdade de distinguir as Idéias), o filósofo assinala os caracteres do conhecimento
racional, baseado nas abstrações que os animais não são capazes de formar ( 10), e
observa ainda que o "amor dos animais provém de um simples prazer aumentado pelo
hábito de acostu mar-se com as coisas" (ibid., § 7):
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"Uma cadela alimentará filhotes de raposa, brincará com eles e lhes manifes tará a
mesma paixão que pelos seus próprios, se for possível fazer que os filhotes de raposa
mamem o necessário para que o leite se espalhe por todos os seus corpos. E não parece
que os animais que têm grande quantidade de filhotes, ao mesmo tempo, possuam
qualquer conhecimento do número deles." (Ibid, liv. II, cap. Xl, § 7.)
Resulta, assim, da descrição de Leibniz, que o conhecimento dos animais permanece
prisioneiro do instante, encerrado em seu ponto de vista particular:
é exclusivamente sobre as Idéias particulares que eles raciocinam, de acordo com a
representação fornecida pelos seus sentidos." (Ibid., liv. II, cap. XI, § 11.)
E, se o descobrimento dos "reflexos condicionados" veio esclarecer o mecanismo destas
ligações afetivas que ele leva em conta, é hoje, geralmente, admitido, que o homem pode
utilizar - e, portanto, dominar, quando neces sário - tais reflexos por meio de sua
atividade racional, inseparável da linguagem, que lhe permite elaborar, a partir de
indicações às quais o animal reage, um sistema de sinais abstratos, capazes de reagir
sobre os primeiros, coisas todas que o gênio de Leibniz fez mais do que entrever.
5. As pesquisas experimentais
Quando se pensa na ciência do século XVII, pensa-se, infalivelmente, em Molière e no
"clysterium donare, postea seignare, ensuitta purgare" do candidato médico que, no
Malade imaginaire, conhece sua lição ao ponto de ser considerado "dignus, dignus est
entrare in nostro docto corpore"... Esse espírito de rotina existia sem dúvida, e mais na
França, talvez, do que alhures. Não deve fazer esquecer, entretanto, o magnífico
progress da ciência neste século que, se ilustrado na filosofia e nas artes, é também o
século de Newton e de William Harvey( 1). Longa seria a lista de trabalhos que, na
maioria dos países, contribuíram para o impulso do saber positivo. Na Itália, o
magnífico despertar do Renascimento prosseguiu com a obra genial de Galileu Galilei
(1564-1642) e com os trabalhos de Evangelista Torricelli (1608-1647), autor de um
Trattato dei moto, inventor do barômetro, aperfei çoador do microscópio e da luneta;
com os de Giovanni Alfonso Borelli (1608- 1679), autor de De motu animalium,
favorável à aplicação das matemáticas e da física à fisiologia, fundador da escola iatro -
mecânica; com os de Marcello Malpighi (1628-1694), que utiliza o microscópio para
estudar a estrutura dos órgãos e aparece, assim, como o criador da histologia. Na
Bélgica, Jan Baptiste van Helmont (1577-1644), precursor de Stahl, cria o termo gás
para designar os corpos aeriformes, toma a Paracelso a noção de arqueu para designar
um princípio vital e seminal que preside aos "fermentos" espalhados no organismo.
Na Inglaterra, onde a fisiologia e a neurologia progridem consideravel mente, Thomas
Willis (1621-1675) publica o resultado de importantes pesqui sas sobre os nervos e o
cérebro (Cerebri anatome, cui accessit nervorum
(1) É em sua obra Eve,c,tat,o irnatomica de motii cordis e! sangeinis in animalibns
(1628) que o grande médico e biologista inglês fornece a prova decisiva da circulação
do sangue.
descriptio et usus; Pathologia cerebri et nervosi generis, in qua agitur de morbis
convulsivis et de scorbuto, etc.), e William Cowper (1666-1709), uma Gianduiarum
descriptio. A obra considerável de Thomas Willis interessa tanto à história da
psiquiatria como à da neurologia; obra de clínico e de teórico, rica de experiências
efetuadas tanto em animais quanto no cadáver humano, para verificar certas lesões, num
âmbito que abrange tanto o normal quanto o patológico, Willis descreveu o polígono
arterial (que lhe conserva o nome) e igualmente as saliências encontradas à altura da
medula alongada, às quais denomina pirâmides; descreveu o simpático cardíaco e os
plexos abdo minais; estudou o liquido cefalorraquiano. Sua classificação dos dez pares de
nervos cranianos veio substituir a de Galeno. Separou definitivamente o simpático do
vago, a cujas perturbações atribuiu, principalmente, o enjôo. Distinguiu a substância
cinzenta do córtex, onde nascem os "espíritos animais", da substância medular branca,
onde se distribuem. A dualidade entre o cérebro e o cerebelo, ao qual atribui as funções
bulbares, corresponde, para ele, à dualidade entre a alma racional (vida consciente) e a
alma vegeta tiva (vida automática). Tentou, igualmente, localizar certas funções e certas
perturbações. E assim que considera o córtex como a sede da memória e com ele
relaciona a letargia; liga a apoplexia e a epilepsia à substância branca e ao corpo caloso
e os diversos tipos de paralisia aos corpos estriados, à medula alongada e aos nervos. O
terreno, o patrimônio hereditário lhe parecem representar papel fundamental na origem
das enfermidades mentais e da epilepsia. Na Dinamarca, o anatomista Nicolas Stenon
(1638-1687) publica um Discurso sobre a anatomia do ce e, na Holanda, Nicolas
Turpius (médico imortalizado pela famosa "lição de anatomia" de Rembrandt), umas
Observationes medicae. Em Genebra, Théophile Bonet relata três mil autópsias
realizadas com a preocupação de estabelecer correlação entre as lesões descobertas e as
perturbações ocorridas durante a vida( 1).
Diversos outros nomes mereceriam ser lembrados ainda nesse século onde, não obstante
o espírito rotineiro, ironizado por Molière, se efetuaram numerosas pesquisas, cujas
repercussões interessam à história da psicologia em suas relações com a fisiologia, a
neurologia e a psiquiatria.
(1) Precursor de MORGAGNI, Th. BONET funda a anatomia patológica com a obra
Sepalchrefe.m sire am prac:ica (1679).
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CAPÍTULO XVII
A PSICOLOGIA NO SÉCULO DAS LUZES
1. O progresso das ciências humanas e a sobrevivência do espírito mâgico
2. A psicologia subjetiva de Berkeley
3. O mecanismo de La Mettrie
4. O homem dos enciclopedistas
5. A alma para Voltaire e Rousseau
6. A psicologia espiritualista de Condillac
7. O "sonho ousado" de Charles Bonnet
8. A psicofisiologia de Cabanis
9. A fenomenologia de Hume
10. A psicologia racional de Christian Wolff
1. O progresso das ciências humanas
e a sobrevivência do espírito mágico
O declínio do sistema cartesiano faz pensar no de Hegel, no século XIX, pois em ambos
os casos o método se volta contra o sistema. Quando a física de Newton destronar a de
Descartes, deste se conservarão apenas o livre exame e o critério das idéias claras e
distintas como fundamento da supremacia da razão individual; exatamente como se
conservará do hegelianismo a dialética da razão, voltada, entretanto, contra ele enquanto
considerado como teoria pretensamente definitiva da natureza e do Estado.
Assim é que a crítica, à moda cartesiana, direta ou velada, se exerce, desde os fins do
século XVII, sobre todos os temas até então respeitados:
crenças religiosas ou problemas políticos e sociais, com espírito de descon fiança em
relação aos sistemas por demais ambiciosos e com o de interesse crescente pelas
pesquisas concretas.
Caracteriza-se o século XVIII, por isso, por um alargamento da curiosi dade nos mais
diversos domínios e por uma extensão do espírito positivo que, de certa forma, o grande
nome de Lavoisier (1743-1794) irá simbolizar. Curio sidade quanto ao passado (gosto
nascente pela história: Voltaire, Hume), como em relação ao presente afastado (as
descrições dos viajantes e missio nários passam a ter grande importância). Espírito
positivo testemunhado pelo impulso que toma a história natural do homem, em
detrimento da condição privilegiada que lhe conferia a visão teológica do mundo
(descrições das espé 188
cies, por Buffon (1707.1788) e Louis Daubenton (1716-1800), e sua classif i cação por
Lineu (1707-1778)).
Devem-se assinalar ainda numerosos trabalhos de inspiração análoga, tendentes a um
conhecimento experimental dos fenômenos da vida. Dentre eles, lembramos,
principalmente, os dos genebrinos Abraham Trembley (1700-1784) e Charles Bonnet
(1720-1793), o primeiro, a inaugurar o estudo dos microrganismos (Mémoires pour
servir à lhistoire d'un genre de polypes d'eau douce à bras enforme de comes, 1744); o
segundo, a enxertar,em suas pesquisas de naturalista (Traité d 'insectologie, e
Considérations sur les corps organisés), preocupações de ordem psicológica( 1); os
trabalhos do italiano Giambattista Morgagni (1682-1771), cujas pesquisas anatômicas se
inscre vem na ilustre tradição da escola de Pádua e que observa, entre inúme ros outros
fatos, as lesões de certas regiões do cérebro e o freqüente endureci mento da substância
medular entre os alienados; os de Xavier Bichat (1771- 1802), autor de uma extensa
Anatomie générale, em que, contribuindo ao desenvolvimento da histologia, estuda
igualmente a patologia dos tecidos orgânicos.
Quanto à medicina, inscreve-se, no começo do século, nos limites suge ridos por
determinada idéia do homem; certas escolas são muito famosas,
em especial as de Leyde e Haile. A primeira, de tendência mecanicista, tem por chefe o
holandês Hermann Boerhaave (1668-1738), homem de grande cultura e que, antes de
especializar-se em medicina, estudara filosofia, mate mática e até teologia. Segundo ele, a
patologia se baseia na idéia de um organismo humano submetido às leis da mecânica,
constituído, essencial- mente, de sólidos ou continentes (os órgãos) e fluidos ou
conteúdos (sangue, linfa, urina, etc.); admitidas enfermidades do continente, por lesão
material, atonia, espasmo, etc., e do conteúdo, por acidez ou viscosidade dos humores.
Essa escola atribuía ao sistema nervoso uma ação, por intermédio dos "espíri tos
animais", que fluem incessantemente através da substância cervical dos centros
cefalorraquianos e, uma vez realizada sua função nos nervos, voltam ao coração e ao
sangue pelos canais linfáticos. Boerhaave, que localizava o sensorium commune sob o
córtex cerebral, precisou sobretudo certos indícios físicos da melancolia, como
hipotermia, retardamento da respiração, do pulso, das secreções, da nutrição... Seus
trabalhos serão conhecidos na França através das traduções de La Mettrie, seu aluno em
Leyde. Quanto à escola de Halie, representada principalmente por Friedrich Hoffmann
(1660-1742) e Georg Ernst Stahl (1660-1734), caracterizava-se pela importância atribuida
à ação de uma alma sensitiva. Hoffmann, grande clínico, considerado o criador da
patologia nervosa na Alemanha, acentuava a importância das variações do tono e das
perturbações digestivas. Stahl, autor da Verdadeira teoria médica (1708), pensava, por
sua vez, que os atos vitais dependem, por um lado, da textura dos órgãos e dos
processos físico-químicos, mas que é a alma sensitiva
- princípio imaterial - que lhes constitui o princípio regulador que os coor dena, modera
ou ativa. Postula, assim, uma ação constante da alma sobre o organismo, ação essa que a
medicina tem por finalidade secundar ou favore cer. Profundamente impregnada de
metafísica, a escola de Stahl dava grande importância à higiene mental e à vida moral,
atribuindo aos desvios neste
(1) A respeito de Charles BONNET. ef. o § 7 do presente capítulo.
189
campo um enfraquecimento da ação do princípio regulador, suscetível, nas últimas
conseqüências, de acarretar a loucura.
Convém lembrar ainda a obra de Albrecht von Haller (1708-1777), poeta e médico, autor
de Elementa physiologiae corporis humani (1757), professor de anatomia, cirurgia e
botânica em Gi Hanover e em sua cidade natal, Berna. Halier, que chama de vis nervosa
o poder dos nervos de excitar a ação dos músculos, reduziu consideravelmente
a função dos "espíri tos animais"; rejeitou a teoria que atribuía ao córtex a sede das
sensações e, ao invés de considerá-lo o único gerador dos "espíritos" e do movimento,
afirmou que toda a matéria cerebral, inclusive o cerebelo, concorria para o sensorium
com mune e, com isso, instaurou nova problemática das localizações cerebrais. Haller
praticou largamente a vivissecção e contribuiu para o progresso da anatomia
comparada; é conhecido, principalmente, por sua teoria da irrita biidade e da
sensibilidade, propriedades sui generis, a seu ver, da matéria viva. Na mesma época
(1759) o médico genebrino Théodore Tronchin - "O célebre Monsieur Tronchin, que
cura toda gente, menos eu..." (Voltaire a d'Alembert, em 9 de dezembro de 1755) - a
quem se deve em grande parte a moda nascente da vida ao ar livre e dos exercícios
físicos, publica na Encyclo p um extenso artigo sobre a "Inoculação", onde invoca trinta
anos de experiência para solicitar a intervenção dos poderes públicos e do mundo culto a
favor deste método novo, capaz de conjurar o flagelo da varíola. Para deixar menos
incompleto este esboço das pesquisas científicas no século XVIII, é mister mencionar
ainda a criação da homeopatia por Friedrich Hahnemann (1755-1843), nova terapêutica
médica que a seu favor invoca exclusivamente a garantia do princípio hipocrático similia
similibus curantur, e as tentativas do suíço Lavater (1741-1801) e do alemão Franz
Joseph Gali (1758-1828) de fundar cientificamente, o primeiro, uma fisiognomonia, e o
segundo, uma frenologia.
Mas neste século, em que as figuras de Rousseau e Voltaire dividem simetricamente as
atenções, as pesquisas positivas não polarizam todo o inte resse, e o espírito critico
longe está de predominar em toda a parte. A mentali dade mágica, cuja permanência
através de toda a história do Ocidente seria permitido fazer ver, não capitula, tal como o
atestarão em especial o prestígio de que gozarão na corte e entre os nobres, tanto sob Luís
XV como sob Luís XVI, o enigmático "conde de Saint-Germain" e o famoso aventureiro
"conde de Cagliostro", e a excessiva admiração, mais geral ainda, provocada pelo alemão
Franz Anton Mesmer, refugiado numa Paris que abrigava naquela época inúmeros
pretensos alquimistas, rosa-cruzes e iniciados de toda a casta. Homem de excepcional
cultura (músico, doutor em filosofia, studiosus emer itus em teologia, doutor em medicina
com uma tese, na esteira do êxito de Paracelso, a respeito da influência dos astros na
saúde humana), suas práticas médicas lhe conquistaram em Viena uma retumbante
reputação, mas as querelas com a ciência oficial obrigaram-no a buscar asilo alhures. Em
Paris, torna a encontrar o seu prestígio, mas também novas dificuldades em suas relações
com a Academia das Ciências e a recente Faculdade de Medici na; vê-se obrigado a
deixar a capital para a ela voltar em breve, sob rogos e festas. Durante cerca de cinco
anos, no seu hotel da Rua Montmartre, trans formado em clínica, recebe inúmeros
pacientes de todas as classes sociais, e submete-os a um tratamento que se desenrola à
maneira de um cerimonial
mágico. No claro-escuro de uma peça com janelas veladas por cortinas e ornada de signos
simbólicos, os enfermos se achegam em silêncio a uma espécie de recipiente- fonte,
chamado cuba de saúde; de uma peça vizinha vêm os acordes de um cravo ou gaita
executados pelo próprio Mesmer; em seguida, o mestre, a passos lentos, penetra na sala,
revestido, como um mago hindu, de uma longa veste de seda lilás, e na mão uma varinha.
Com vo abafada, dirige aos pacientes perguntas a respeito do mal que os aflige, passa-
lhes sobre os corpos a varinha e mergulha seus olhos nos do interlocutor, antes de dar o
sinal para que se forme a "cadeia" (os espíritas retomarão este uso). Para que a
"corrente magnética" se intensifique e atravesse todo o grupo, cada um dos participantes
deve tocar com os seus os dedos do vizinho. As vezes se desenrolam cenas
extraordinárias: enfermos rompem a cadeia, bra dando a sua cura; outros arrojam-se aos
pés do mestre, beijando-lhe as mãos; outros lhe rogam que aumente a corrente ou lhes
faça novos passes. As vezes também irrompem delírios coletivos; enfermos rodam no
solo, os olhos em revulsão; há os que riem, soluçam, gemem, põem-se a dançar ou, ao
contrá rio, como que mergulham num sono letárgico... Aqueles cuja fase critica atinge um
paroxismo intolerável, são transportados para uma peça contígua, de paredes
acolchoadas, a chamada "sala da crise" - prevista pela teoria.
Muito pouco se sabe em que medida Mesmer começou a tomar gosto por este papel de
mago e pela auréola de salvador que granjeou com suas práticas de inegável sucesso. Foi,
parece, um médico sério, persuadido de ter descoberto no "magnetismo animal" o meio
eficaz para curar, mas a quem, de certo modo, suplantaram os acontecimentos. Seja como
for, a "mesmero mania" ganha a capital, e os parisienses, a exemplo do s vienenses,
querem "magnetizar" tudo. Em Lião, um cavalo velho é objeto de uma experiência
'magnética", que conta com a presença de magistrados e de médicos. Num dado
momento, a exaltação reinante entre os partidários e os adversários de Mesmer é tal que
Luís XVI ordena à Academia das Ciências e à Faculdade de Medicina estudarem a
questão e pronunciarem-se sobre as conseqüências de suas práticas. Forma-se então uma
comissão de cientistas, entre os quais alguns dos mais conceituados: o físico Benjamin
Franklin, o botânico A. -L. Jussieu, o astrônomo J. -S. Bailly, o químico Lavoisier (os
dois últimos serão, em breve, vítimas da sinistra máquina preconizada
pelo médico J.-I. Guillo tin, também membro da comissão). A tarefa é precisa. A
comissão não se encarrega de estabelecer se Mesmer é na verdade um curador eficaz,
mas se é autêntico o fundamento teórico de suas práticas. Ora, como tal fundamento é o
que Mesmer chama de "magnetismo animal", e ele se gaba de o ter desco berto
enquanto fluido que permite a comunicação direta entre os indivíduos, os cientistas se
esmeram em encontrar essa realidade. Constatam que não podem vê-lo, senti-lo ou tocá-
lo, nem com a ajuda do microscópio, e que, quanto a eles, não lhe sentem efeito algum. A
partir daí, os dados estão lançados. Com exceção unicamente de Jussieu, que exprime
reservas e deixa de solidarizar-se com a comissão, esta conclui da sua investigação que
o fluido é inexistente. Seu relato público, em 10 de agosto de 1784, ia assim pôr fim a
este cometimento de medicina psíquica, ao confinar os continuadores de Mesmer na
casta dos "curandeiros" marginais e ao bloquear a via aberta por ele. Atribuindo à
imaginação os sucessos de Mesmer, os autores da relação provavam como o espírito
científico estava longe de compreender os fenô menos (histeria, hipnose, sugestão) cujo
estudo faria a glória científica de
190
191
Charcot em Paris, de Bernheim e de Liébault em Nancy, antes de vir a dar na revolução
psicanalítica( 1)
2: A psicologia subjetiva de Berkeley
Após a obra de Locke, que alimenta muita discussão sobre a natureza e o destino da
alma humana, os trabalhos de George Berkeley (168.5-1753) e David Hume (1711-
1776) trazem para o pensamento ocidental uma contri buição de primeira ordem. E
cômoda a aproximação desses três pensadores; não deve, entretanto, eclipsar uma
notável diferença de inspiração. Pois, se Locke é o promotor de um empirismo que
pretende poupar os princípios cristãos, o bispo irlandês Berkeley deseja opor à maré
montante das tendên cias materialistas uma doutrina irrefutável, para a maior glória da
religião anglicana, e Hume, por sua vez, alia a um penetrante senso critico um altivo
agnosticismo em relação às formas da vida religiosa. Por isso pôde ser suspeito de
ateísmo. Sabe-se que os enciclopedistas, por ocasião de sua volta à França, em 1763, o
saudaram como eminente irmão de armas. Nem por isso é menos verdade que,
encarando-se do ponto de vista da psicologia as suas doutrinas, esses pensadores
apresentam em comum uma preocupação com a experiência concreta e até, em certo
sentido (Berkeley e Hume, principal mente), com a experiência vivida; e recorrem, para
fundar o conhecimento do homem, a dados imediatos no sujeito humano, por uma
exigência que é prelú dio às Críticas de Kant.
A doutrina de Berkeley, embora o autor se revele autêntico represen tante de seu tempo,
por certos motivos conformes com a inspiração das Luzes (2), aparece como isolada,
tanto pela preocupação metafísica preponde rante, como pela própria orientação dessa
metafísica. E seu objetivo estabe lecer que a espiritualidade e a imortalidade da alma,
longe de serem concep ções de uma época ultrapassada, exprimem a mais profunda
verdade filosó fica. Contra aqueles que sustentam, a exemplo do Dr. Willis, que "a alma
humana não passa de uma chama débil (a thin vital flame) ou de um sistema de espíritos
animais", Berkeley deseja provar que ela é indivisível, inextensa, e, por isso mesmo,
incorruptível:
"Os movimentos, transformações, decréscimos e dissoluções que vemos conti nuamente
ocorrerem nos corpos naturais (o que entendemos por curso da natureza) não podem
afetar uma substância ativa, simples, não composta; nada pode ser mais claro: um tal ser
não pode, portanto, dissolver-se pela força da natureza; o que equivale a dizer que a alma
humana é naturalmente imortal." (Traité sur les príncipes de la connaissanc,e humaine, §
141.)
Vê-se, assim, ressurgir uma argumentação de colorido platônico. O feitio ativista,
contudo, que o pensamento ocidental assumiu desde o Renas-
(1) Os escritos dispersos de MESME}t s5o hoje acessíveis ao leitor francês graças ao
Sr. Robert AMADOU (Lemagnetismeanimol, Paris, Payot, 1971).
(2) Provam-no seu Ensaio para prevenir a rmna da G. que se seguiu (172 à falência da
Companhia dos Mares do Sul, no qual desenvolve todo um programa de reformas, e seu
grande "projeto" para as Bermudas: Projeto para melhor sustentar as igrejas de nossas
plantações no estrangeiro e para converter os selvagens da Amftica ao cristianismo pela
fundaçào de um coisgio nas ilhas Summer, ainda chamadas ilhas das Bermudas. cimento
confere-lhe tonalidade completamente nova, e seu ponto de partida é experimental e
subjetivo.
Semelhante perspectiva fora aberta por Descartes e Locke, com a afirmação de que as
qualidades segundas (cores, sons, sabores, odores, tem peratura...) dependem da
sensibilidade. Em compensação, admitiam, contudo, que as qualidades primárias
(extensão, forma, movimento) existem fora do sujeito percipiente e interessam uma
substância distinta do espírito. E pela supressão dessa distinção entre dois tipos de
qualidades, em favor de total espiritualidade do real, que a obra de Berkeley constitui
um marco na história do pensamento. Em sua opinião, compreender-se-á a verdade
dessa posição de pensamento se se desconfiar das ilusões resultantes da linguagem e se
se ficar liberto da crença na realidade da idéia geral. A idéia abstrata de existência é,
muito particularmente, perigosa; devemos exorcizar-lhe o fantas ma, procurando
compreender que só se conhecem existências concretas:
'Não se pode pensar a existência à parte da percepção ou da volição, das quais ela não se
distingue." (Cahier des notes, § 663.)
"A opinião de que a existência é distinta da percepção é de funesta conse qüência (lbid.,
§ 817.)
Que é, pois, a alma, ou o espírito, para Berkeley? Essencialmente, uma atividade livre,
da qual o homem tem conhecimento direto, intuitivo, distinto do conhecimento das
idéias. Enquanto percebe as idéias, o espírito é intelecto; enquanto produz, ou age de
alguma forma sobre elas, é vontade:
"A substância de um espírito é aquilo que age, produz, quer, opera ou, se quiserdes
(para evitar possível equívoco quanto à palavra "aquilo"), é agir, produzir, querer,
operar. Sua substância não é cognoscível, pois não é uma idéia." (Ca/jier de notes.
§847.)
Para tornar sensível essa pura atividade espiritual, empenha-se Berke ley em expurgar o
conhecimento de toda construção abstrata, quer se trate das ilusões provenientes da
linguagem, quer daquelas, mais sutis, oriundas dos processos científicos; e isso para
estabelecer, com relação aos objetos, que toda a sua realidade está em ser percebido e
que a idéia de uma substância material (suporte de qualidades e existente por si) é
desprovida de sentido. O conhecimento só pode referir-se aos espíritos e às idéias, e ao
conhecimento de suas relações estudadas pelas ciências. Conforme veremos a propósito
de sua "nova teoria da visão", pretende demonstrar que o espaço não poderia existir fora
do espírito; e tampouco, aliás, o tempo, encadeamento de nossas idéias e de nossas
volições:
"Dizeis: assim considerando, tudo não passa de idéia, uma pura ilusão. E eu respondo:
tudo é tão real corno sempre. Espero que o fato de chamar idéia a uma coisa nada lhe
tire de sua realidade.,." (Cahiers de notes, § 825.)
É assim que Berkeley refuta, de antemão, as objeções e mal-entendidos que o aspecto
paradoxal de sua teoria deveria suscitar. Se emprega o termo idéia para designar o que
comumente chamamos de coisas, é, principalmente, para deixar bem clara sua recusa
em conceder-lhes, a estas, uma realidade
192
193
independente de sua percepção por uma inteligência. O termo idéia reveste, pois, para
ele, o sentido de "coisa percebida".
A substância do corpo ou de qualquer outra coisa é mais que a coleção das idéias inclusas
nessa coisa? Assim, a distância de um corpo particular é a extensão, a solidez, a forma.
Do corpo geral, não há idéia." (Cahier de notes, § 524.)
É, pois, enquanto perceptíveis que os objetos exteriores se tornam, para Berkeley,
"idéias". E estas nos conduzem ao espírito que as produz, perce bendo-as. Reconhece o
filósofo, no entanto, forçosamente, que os objetos que percebemos nem sempre
dependem de nós; existem até aqueles que não dependem absolutamente.
"As árvores estão no parque, isto é, quer eu queira quer não queira: e seja o que for que
eu imagine a seu respeito, ou deixe de imaginar. Se eu for até lá e, em pleno dia, abrir os
olhos, não poderei evitar vê.las." (Cahier de notes, § 99.)
Esse reconhecimento, contudo, do fato de as idéias sensíveis se impo rem a nós pelo
momento, pela ordem de sua apresentação, como pelo conteú do qualitativo, longe de
desencorajá-lo, convence-o de que devemos admitir a ação de outro espírito, a produzi-
las: a do Espírito criador, do qual os espí ritos criados estão a sofrer, constantemente, a
influência, O imaterialismo de Berkeley nos introduz, assim, num mundo inter-subjetivo
essencialmente espiritual, mundo cuja realidade, constituída pelas maneiras de ser das
pessoas, corresponde a seus inúmeros pontos de interferência( 1), As outras almas, as
outras vontades são descobertas por analogia com a experiência do nosso eu:
"Não pode representar-se cada um inteligências distintas da sua própria, senão como
outros tantos eus. Cada qual se imagina a si mesmo agitado por tais pensamentos ou
tocado por esta ou aquela sensação." (Ibid., § 772.)
Embora de essência metafísica, o caráter experimental da doutrina de Berkeley lhe
confere grande interesse psicológico. "Experimental", dizemos, no sentido de uma
psicologia introspectiva, tendente a destacar aquilo que Bergson irá chamar de "dados
imediatos da consciência". E o caso, particu larmente, do Ensaio de uma nova teoria da
visão (1709), onde Berkeley, toma da como base a experiência mais concreta, propõe-se
demonstrar que a expli cação geométrica é errônea e que o visual (como o representado,
em geral) existe apenas no espírito, enquanto os ângulos e as linhas dos geômetras são
produtos da abstração. E, entretanto, à realidade espacial assim suposta que os físicos
atribuem o poder de produzir, necessariamente, em nós, os estados de consciência que
constituem nossas representações visuais. Ora, em virtude de seu famoso princípio Existir
é perceber ou ser percebido, considera Berke ley ilusória a explicação de um fato
puramente mental por meio de uma reali dade distinta do espírito e exterior a ele. Como o
mundo só existe na medida em que é percebido, a visão é um fato de consciência que
cumpre explicar em termos de consciência. Se podemos, em óptica, fazer bom uso do
cálculo por linhas e ângulos, é graças a uma relação contingente entre estados de cons
(1) Cf. Andrê LEROY, traduçáo das Oeucres choisies de Berkeley, Aubier, 1944, t. 1.
prefácio, pág. 14.
ciência (que ocasionam a percepção da distância, do tamanho e da situação do s objetos)
e as linhas e os ângulos concebidos como generalizações da expe riência. A experiência
concreta é, porém, completamente diferente. Os dados próprios e imediatos da visão
são, unicamente, a luz e as cores, com sua diver sidade de matizes e sombras, seus graus
de nitidez e clareza, de intensidade ou fraqueza, sem qualquer noção de distância. Esta,
assim como o tamanho e a posição dos objetos, é percebida pelo tacto e, não, pela vista,
da qual não são, portanto, os dados imediatos. Por outro lado, nada em comum existe
entre a extensão visual e a extensão táctil; a primeira é um dado imediato da vista e, a
segunda, um dado imediato do tacto. Cabe, pois, afirmar uma heterogeneidade radical
entre as sensações da vista e as do tacto. E, no entan to, não cremos perceber, apenas pela
vista, a distância, o tamanho e a situação dos objetos? Berkeley dá ao que considera
ilusão uma explicação puramente psicológica: quando idéias coexistem constantemente,
formam grupos inseparáveis, a ponto de as tomarmos por intuições(').
Porque reduz toda realidade à atividade espiritual, Berkeley atribui mui naturalmente à
alma o poder causal de mover o corpo. Nisso, distancia-se de Malebranche (a quem se
aparenta sob outros aspectos de seu pensamento) que recusava esse poder tanto às almas
como aos corpos. Contrariamente ainda ao pensador francês e à sua teoria da visão das
idéias em Deus, convida os homens a decifrar a linguagem visível da natureza,
simbolismo desejado por Deus, expresso através das relações de sucessão e analogia
que a ciência descobre entre os fenômenos.
A teoria de Berkeley deixa muitas dúvidas no tocante a determinados problemas, tais
como: Que sucede aos seres não-humanos no mundo? Como imaginar a pluralidade das
consciências num espaço puramente espiritual? De que maneira o Espírito criador produz
em nós idéias sensíveis? Inspira, entretanto, admiração pelo rigor e pela originalidade de
sua visão das fontes da experiência vivida; assinala com audácia a atividade do espírito;
e o pensa mento ocidental lhe deve, sob este aspecto (que, em certo sentido, prolonga o
cogito cartesiano) o impulso que haverá de levá-lo, mediante Hume, à revolu ção de
Kant e ao idealismo alemão.
3. O mecanicismo de La Mettrie
Julien Offroy de La Mettrie (1709-1751), médica, biólogo, fisiologista, filósofo,
panfletário, fora destinado pelo pai a abraçar a carreira eclesiástica. Entusiasmando -se,
quando adolescente, com o jansenismo, tornou-se, mais tarde, na Holanda, aluno de
Boerhaave, cujas obras traduziu. De inteligência viva e precoce, muito informado sobre
a história das idéias, conforme demons tra, principalmente, o Abregé des systèmes,
escrito para "facilitar a inteli gência" de seu Traité de l'âme (2), chega a pensar que o
materialismo só tem por adversário válido a força dos preconceitos, força tal que ele se
recusa a considerar o ateísmo - para o qual se sente inclinado - como um perigo social,
pois jamais conseguiria tornar-se popular:
(1) Cl. André JOUSSAIN. Exposé critique de la phikivop/iie de Berkelev, Paris. Botem,
1920, págs. 72-98.
(2) Oeueres philosopkiques de LA METTRIE. Nouvejie édition précédée de son éloge,
par Frédéric II, Roi de Prusse. Berlim e Paris (Charles Tutot, imprimeur), 1796. As
referências a esta edição fazemo-las com a indicação til,. ci
194
195
"Em vão se esforçam os materialistas para provar que o homem é apenas máquina; o
povo jamais acreditará. O mesmo instinto que o prende à vida dá-lhe bastante vaidade
para crer sua alma imortal e é excessivamente tolo e ignorante para jamais desprezar
essa verdade." (Discourspréliminaire, op. cit., pág. 18.)
Com relação aos enciclopedistas, as datas falam em favor de sua origi nalidade, O Traitó
de l'âme, onde aborda inúmeros problemas que seriam hoje do domínio da psicologia
experimental e da psicopatologia (órgãos senso- riais, sensações, associação de idéias,
memória, amnésias resultantes de lesões traumáticas, alucinações, obsessões), é de 1745,
e, portanto, anterior aos trabalhos de Diderot, Helvétius e Holbach e um ano precedente
ao Essai sur les origines des conflaissances humaines, de Condillac. Mal caberia duvidar
de que tenha exercido real influência nos enciclopedistas que,
entretanto, não o citam, excessivamente comprometidos, sem dúvida, para invocar a seu
favor o testemunho de um homem que, pela audácia de suas idéias antiteológicas e por
seus trabalhos que ridiculizavam todas as celebridades médicas de Paris, atraíra
reprovação que lhe pusera em risco a própria vida. La Mettrie trará paz no fim de sua
curta vida, junto de Frederico II, de quem se tornou íntimo, O rei da Prússia escreverá
um Elogio de seu protegido, onde, lem brando que ele "sofrera horrível perseguição",
faz bela reivindicação da auto nomia das pesquisas particulares( 1):
"A maioria dos padres examina todas as obras t. ..J como se fossem tratados de teologia;
1...] daí provêm tantos julgamentos falsos e tantas acusações, na maior parte fora de
propósito, contra os autores. Um livro de fisica deve ser lido com o espírito de um fisico;
a natureza, a verdade é seu juiz; ela é que deve absolvê-lo ou condená-lo; um livro de
astronomia requer s lido no mesmo sentido. Se um pobre médico prova que uma forte
paulada no crânio perturba o espírito ou que, a certo grau de calor a razão se extra- via,
deve-se ou provar-lhe o contrário ou ficar quieto. Se um hábil astrônomo demonstra,
apesar de Josué, que a terra e todos os globos celestes giram em tomo do Sol, deve-se ou
calcular melhor que ele, ou tolerar que a terra gire." (Op. cit., págs. IV e V.)
Do médico-filósofo (a quem a reflexão sobre a morte é familiar) não se poderia dizer
que suprimisse a dimensão metafísica; corta-lhe, antes, as asas por um materialismo
deliberado:
"A morte é o fim de tudo; depois dela - repito - é o abismo, o nada eterno; tudo está
dito, tudo está feito; a soma dos bens e a soma dos males é igual; não mais
preocupações, não mais dificuldades, não mais representação de personagens; acabou-
se afarsa. "(*) (Système d'Epicure, op. cii., 1. li, pág. 36.)
Se abomina os teólogos, a seus olhos "espíritos turbulentos que fazem a guerra para
servir um Deus de paz" (Discours préliminaire), as explicações filosóficas lhe parecem
excessivamente ambiciosas e o espírito sistemático "o mais perigoso dos espíritos":
"Não serão nem Aristóteles nem Platão nem Descartes nem Malebranche que vos
haverão de ensinar o que é vossa alma 1...] A essência da alma do homem e dos animais
é e será sempre tão desconhecida como a essência da matéria e dos corpos; digo
(1 OElog,o loi Udo em sessão pública da Academia de Berlim, a 19 dejaneiro de 1752.
() Alugo à frase Tn-ez le rídeau, la farce estjoaée, atribuida a RABELAIS moribundo.
(Nota de Maria Aparecida Blandy.)
maís: a alma desligada do corpo por abstração, assemelha-se à matéria sem nenhumas
formas; não podemos concebê-la," (Traité de l'âme, op. cii cap. 1, pág. 65.)
O filósofo pretende, por isso, seguir "passo a passo a natureza, a obser vação e a
experiência", e só conceder seu sufrágio "aos maiores graus de probábilidade e
verossimilhança" (ibid.).
Se, porém, a essência da alma nos escapa, tal como as causas primeiras, é possível
conhecer-lhe as propriedades manifestas no organismo do qual essa alma é o "princípio
ativo", Se há nos corpos um "princípio motor", e dado que se possa estabelecer que ele
não só faz bater o coração como também sentirem os nervos e pensar o cérebro, seguir-
se-á claramente que este princí pio é o que se chama de alma (Traité de l'âme, op. cit.,
pág. 67). Para La Mettrie, esse princípio "chama-se percepção e nasce da sensação
produzida no cérebro" (Les animauxplus que machines, op. cit., t. II, pág. 101). Unidade,
pois, da matéria viva, somada à idéia (Le système d'Epicure) de uma formação das coisas
e dos seres a partir do barro original, mediante toda espécie de tentativas infrutíferas, de
uma espécie de concorrência vital; em suma, uma visão do mundo precursora do
transformismo, visão que per manece, forçosamente, intuitiva, pois a anatomia comparada
estava ainda à espera de Buffon e a embriologia, malgrado os progressos do microscópio,
em rigor ainda não existia.
Fisiologista que era, La Mettrie descreve minuciosamente os órgãos da visão, olfato,
tacto, e se interessa muito particularmente pelo sistema nervoso, que lhe parece
desempenhar papel fundamental; descreve-lhe abundante mente a estrutura: cérebro,
,medula, nervos motores e nervos sensitivos, bem como suas terminações (Les
animauxplus que machines), e observa, a propó sito da visão, que as enfermidades do
nervo óptico paralisam a matéria ou o movímento que se propagaria para o cérebro. Está
persuadido de que "os diversos estados da alma são sempre correlativos dos estados do
corpo" (L'homme machine) e só se pode conhecer a natureza humana, encarando-a do
ângulo dessa correlação que, para ele, se inclina a favor do corpo:
nada tão limitado como o império da alma sobre o corpo e nada tão extenso como o
império do corpo sobre a alma. Não só a alma desconhece os músculos que lhe obede
cem e seu poder voluntário sobre os órgãos vitais, como também não o exerce, jamais,
arbitrariamente, sobre esses mesmos órgãos. Que digo eu! Ela ignora até se a vontade é
a causa eficiente das ações musculares ou, simplesmente, causa ocasional, posta em jogo
por certas disposições internas do cérebro, que agem sobre a vontade, a movimen
tam secretamente e a determinam, seja lá como for." (Traité de l'âme, op. cii., pág. 159.)
Observa La Mettrie que, em geral, "a forma e a composição do cérebro dos quadrúpedes
são muito semelhantes às do homem":
"A mesma figura, a mesma disposição para tudo, com esta diferença essencial:
o homem é, de todos os animais, aquele que tem mais cérebro..."
Se o cérebro do homem é maior, é, também, "o mais tortuoso":
"Se ao imbecil não falta cérebro (como, ordinariamente, se observa), esta víscera pecará
por má consistência, por excesso de flacidez, por exemplo. O mesmo se
196
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dá com os loucos. Os vícios de seu cérebro nem sempre se subtraem às nossas investi
gações, porém, se as causas da imbecilidade ou da loucura não são sensíveis, onde
procurar as causas da variedade de todos os espíritos? Escapam aos olhos de lince e aos
dos argos. Um nada, uma pequena fibra, algo que a mais sutil anatomia não consegue
descobrir, poderia ter feito, de Erasmo ou Fontenelie, dois idiotas, conforme observa o
próprio Fonteneile num de seus melhores diálogos. (L 'homme-machine, op. cl., t. III,
págs. 129 e 131.)
Durante sua permanência como médico da guarda do duque de Gram mont até a batalha
de Fontenoy, onde seu protetor pereceu - foi acometido de uma "febre ardente", que
desempenhou papel decisivo em sua vida. Frede rico II se refere a isso, no Elogio.'
ele acreditou aperceber-se de que a faculdade de pensar era apenas uma conse qüência da
organização da máquina e que o desarranjo das molas influia consideravel mente nessa
parte de nós mesmos a que os metafísicos chamam alma. Imbuido dessas idéias durante a
convalescença, abriu caminho, ousadamente, munido do archote da experiência, por entre
as trevas da metafísica; tentou explicar, com auxílio da anato mia, a fina contextura do
entendimento e só encontrou a mecânica onde outros haviam suposto uma essência
superior à matéria." (Op. cit., pág. IV.)
Tal a origem do Traitó de l'âme( do qual Frederico II diz ainda que "o capelão do
regimento fez tocar o sino a rebate e a princípio todos os devotos gritaram".
Segundo La Mettrie, que atribui importância capital às sensações transmitidas pelo que
chama de "fluido nervoso", não se poderia negar à alma certa extensão. Os nervos
levam à medula (sem nomeá-lo, parece ter com preendido claramente o a-co reflexo), ou
ao cérebro:
pode dar-se que haja algo de verdadeiro em todas as opiniões dos autores nesta
matéria, por mais opostas que pareçam; e, já que as moléstias cerebrais, conforme a
região atacada, suprimem, ora um sentido, ora outro, estarão aqueles que colocam a
sede da alma nas nates, ou nos testes, mais errados do que aqueles que desejariam
alojá-la flO Centro oval, no corpo caloso, ou até na glândula pineal?" (Traite de l'âme,
op. cl., págs. 118-119.)
Admite, por isso, que toda a substância cerebral participa das mani festações da vida
psíquica:
onde está vossa alma qu vosso olfato lhe comunica odores que lhe agradam ou
desagradam senão nessas camas de onde os nervos olfativos se originam? Onde está ela
quando contempla com prazer um belo céu, uma bela perspectiva, senão nas camas
ópticas? Para ouvir, é preciso que ela esteja colocada na origem do nervo auditivo e assim
por diante. Tudo prova, portanto, que esse sinete ao qual comparamos a alma para dela
dar idéia sensível, está em várias regiões do cérebro, já que, na realidade, está impresso
em muitas portas. Não pretendo dizer com isso, entretanto, que existam muitas almas;
uma única é suficiente, sem dúvida, com a extensão desta sede medular que fomos
forçados pela experiência a atribuir-lhe; é suficiente para agir, sentir e pensar, na medida
em que os órgãos lhe permitem." (Traité de l'âme, op. cit., págs. 119-120.)
(1) A obra apareceu primeiramente com o título de Hiatoi,-e , de ldrne, em Haia (1745).
Foi apresentada como traduzida do original inglês de CFIARP pelo finado M. H.. da
Academia das Ciências (a maioria das obras de LA METrRIE foi pabticada sem o nome
do autor).
Se a atividade e a sensibilidade são propriedades pernianentes da alma,
o pensamento é acidental nela; inútil, portanto, recorrer a qualquer entidade, à
mônada espiritual ou a uma forma subsistente, como dizem "os avisados e
prudentes escolâsticos":
por que desejais que eu a imagine (a alma) dotada de uma natureza absolutamente
distinta do corpo, quando vejo claramente que é a própria organização da medula em
suas primeiras origens (isto é, no fim do córtex) que exerce tão livremente, no estado
normal, todas essas propriedades? Pois, é uma quantidade de observações e experiên cias
certas que me provam o que estou afirmando; enquanto aqueles que dizem o contrário
podem exibir diante de nós muita metafísica sem, contudo, dar-nos uma única idéia."
(Traité de l'âme, op. cit., págs. 120-121.)
La Mettrie tem certa consciência do obstáculo: a passagem dos movi mentos materiais
às significações que caracterizam a vida do espírito. O problema lhe fornece, porém,
nova oportunidade para ironizar o ponto de vista criacionista:
"Seria, pois, a alma constituída de fibras medulares? Como conceber que a matéria possa
sentir e pensar? Confesso que não o concebo; porém, além de ser ímpio limitar a
onipotência do criador, afirmando que ele não pôde fazer pensar a matéria, ele que, com
uma só palavra, fez a luz, devo eu despojar um ser de propriedades que me ferem os
sentidos porque a essência desse ser me é desconhecida? Não vejo no cérebro senão
matéria; extensão . - .J em sua parte sensitiva; viva, sã, bem organizada, essa víscera
contém, na origem dos nervos, um princípio ativo difundido na substância medular;
vejo esse princípio que sente e pensa, perturbar-se, adormecer, extinguir-se com o corpo.
Que digo eu!? a alma é a primeira em adormecer; seu fogo se extingue à medida que as
fibras das quais parece feita se enfraquecem e caem umas sobre as outras. Se tudo se
explica por meio daquilo que a anatomia e a fisiologia me descobrem na medula, que
necessidade tenho eu de foqar um ser ideal? Se confundo a alma com os órgãos
corporais é, portanto, que todos os fenômenos me levam a isso e, aliás, deus não deu à
minha alma nenhuma idéia de si mesma, mas apenas discernimento e boa fé bastantes a
reconhecer-se em qualquer espelho e não enrubescer por haver nascido na lama." (Traité
de ('áme, op. cit., págs. 121-122.)
Essa é a perspectiva na qual La Mettrie trata de todas as formas de vida psíquica.
Primeiramente, as sensações, cujo mecanismo descreve, insistindo na especificidade dos
órgãos sensoriais, assinalando como condição necessária uma intensidade que não seja
nem muito fraca nem muito forte. Procura estabelecer leis: quanto mais distintamente um
objeto agir sobre o sensorium, tanto mais nítida e distinta será a idéia resultante; quanto
mais vivamente agir sobre a mesma parte material do cérebro, tanto mais clara será a
idéia; a mesma clareza resulta da impressão dos objetos freqüentemente renovada;
quanto mais forte for a ação do objeto, quanto mais ela for "diferente de qual
quer outra, ou extraordinária", tanto mais "viva e impressionante" será a idéia. (Traité de
l'âme, op. cit., págs. 106-108.)
O juízo implica uma comparação, e a memória (muito depreciada na opinião de La
Mettrie) desempenha aqui papel primordial. Ora, a memória é suscetível de explicação
mecânica:
ela parece depender do fato de as impressões corporais do cérebro - os traços de idéias
sucessivas - serem vizinhas; e a alma não pode fazer a descoberta de um traço
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ou de uma idéia sem lembrar as outras que tinham o costume de estar juntas." (Trait de
l'âme, op. cii., págs. 123-124.)
Do exame a que submete a memória e suas perturbações, à lux de suas concepções
neurofisiológicas e de fatos coligidos em diversas fontes, La Mettrie conclui que ela é:
uma faculdade da alma que consiste nas modificações permanentes do movimento dos
espíritos animais, excitados pelas impressões dos objetos que agiram vivamente, ou com
muita freqüência, sobre os sentidos; de sorte que essas modificações lembram à alma as
mesmas sensações, com as mesmas circunstâncias de lugar, tempo, etc., que as
acompanharam no momento em que ela as recebeu pelos órgâos que
sentens."(Traitédel'âme, op. cit., pág. 126.)
A imaginação se lhe afigura a função essencial do psiquismo humano; é ela que preside
às próprias criações científicas, e suas diversas formas nos reconduzem, como é natural
num tal contexto, ao domínio das sensações (Traik de I'âme, cap. X, § XI).Quanto às
paixões, o amor e o ódio parecem- lhe as afecções da alma de que as demais
representam graus, exce tuados os estados de indiferença ( Traité de l'âme, op. cii., pág.
134). Acredita que os nervos desempenham, nos processos relacionados às paixões,
papel fundamental e empenha-se em descrever delas os concomitantes orgânicos:
"A cólera aumenta todos os movimentos e, conseqüentemente, a circulação do sangue;
isso faz o corpo tornar-se quente, vermelho, trêmulo, subitamente pronto a liberar
algumas secreções que o irritam e sujeito a hemorragias; donde, essas freqüen tes
apoplexias, essas diarréias, essas cicatrizes reabertas, essas inflamações, essas icterícias,
esse aumento da transpiração." (Traité de l'âme, op. ci pág. 136.)
Em sua opinião, o terror parece suscitar efeitos análogos, pois "abre as artérias, cura, às
vezes, subitamente, as paralisias, a letargia, a gota, arranca doentes às portas da morte,
produz apoplexia, morte súbita...", enquanto o medo "diminui todos os movimentos,
produz frio, suspende a transpiração, dispõe o corpo a receber miasmas contagiosos,
produz palidez, horror, fraqueza, relaxamento dos esfincteres, etc ; quanto à tristeza,
"retarda todos os movimentos vitais e animais". Julga La Mettrie que tais perturbações
obrigam a reconhecer uma ação dos nervos sobre o sangue arterial, cujo curso é
acelerado ou retardado pelo curso dos espíritos animais, e conclui que "os nervos são a
mola principal das paixões", em correlação com a imaginação:
a imaginação, influenciada por uma idéia forte ou uma violenta paixão, influi no corpo e
no temperamento; reciprocamente, as doenças do corpo atacam a imaginação e o espírito.
A melancolia entendida no sentido dos médicos, uma vez formada, e trans formada em
atrabiliária no corpo da pessoa mais alegre, torná-la-á, pois, necessaria
mente, das mais tristes; e, ao invés desses prazeres tão amados, só teremos gosto na
solidão." ( Traité de l'âme, op. cit., pág. 139.)
A segunda parte do Traitó é consagrada às atividades psíquicas supe riores, tais como a
reflexão, a liberdade, a meditação, o juízo, etc., encaradas na perspectiva sensualista que
o autor deseja manter a todo custo e proclama, à guisa de conclusão:
"Sem os sentidos, não existem idéias.
Quanto menos sentjdos, menos idéias.
Pouca educação, poucas idéias.
Sem sensações recebidas, não há idéias.
Estes princípios são as conseqüências necessárias de todas as observações e
experiências, base inabalável desta obra. A alma depende, pois, essencialmente, dos
órgãos do corpo, com os quais se forma, cresce e decresce. Ergo participem leti quoque
conveni! esse(l)."
Assim, pois, para La Mettrie, a vida do espírito, em sua totalidade, se explica, em última
análise, pelo volume e pela estrutura particular do cérebro humano:
quando lançamos os olhos sobre a massa do cérebro do homem, é evidente que essa
víscera pode conter uma multidão prodigiosa de idéias e, conseqüentemente, exige,
para exprimi-las, mais sinais que os animais. Nisso, precisamente, consiste toda a
superioridade do homem." (Traité de l'time, op. cii., pág. 149.)
Num de seus últimos trabalhos, es animaux plus que machines. onde o filósofo comenta
ironicamente as opiniões dos leibnizianos e dos wolffianos, figura este "apólogo" sobre
as relações entre a alma e o corpo:
"Por mais agradável que ela seja, será ainda mais agradável contemplar o maravilhoso
concerto do corpo e da alma na mútua geração de seus gostos e de suas idéias; e é um
original apólogo de não sei que autor jocoso que nos vai dar esse pequeno divertimento
filosófico. O cérebro fala primeiro, a alma responde.
P. Como achais o açúcar?
R. Como vós: doce.
P. Osucodelimão?
R. Ácido.
P. O espírito de vitríolo? R. Muito mais ácido.
P. A quina? R. Amarga.
P. O sal, etc....
R. Que perguntas tolas! Como vós, mais uma vez, e sempre como vós. Desde que perdi
as id inatas e as belas prerrogativas que Descartes e Stahl tão generosa mente me
concederam, sabei que nada recebo senão de vós e nada recebeis senão de mim; que só
me governo por vossas vontades, como vós não vos regulais, senão pelas minhas. Nada,
pois, de disputas e grande silêncio; somos feitos para estar sempre de acordo..." (Les
animauxplus que machines, op. cit.. t. II, págs. 105-106.)
Em L 'ho,nnze machine (2), La Mettrie volta mais rapidamente ao estudo dos sentidos e
às alterações que podem sofrer em conseqüência de
(1) LUCRECIO, De Rerum Natura.
(2) A obra surgiu anônima, editada por Élie Luzac em Leyde (1747), suscitando um
veemente brado de indignação contra o autor especialmente nos meios eclesiásticos, tanto
protestantes como católicos. Apareceu com longa dedicatória irônica: 'A Monsieur
HalIer. professor de medicina em Gtsttingen", o que ofendeu profunda mente o cientista
em questão. LA METFRIE se explicará mais tarde, numa nota de seu D préhminaire.
sobre etsa farsa, servindo-se da nova oportunidade para ironizar o espiritualismo do
itustre módico suiço: Foi a neces sidade de esconder-me que me fez imaginar a
dedicatória a M. HALLER. Sinto ser uma dupla extravagãncm dedicar amistosamente
um livro ousado como L homme machine a um cientista que jamais vi e que cinqüenta
anos
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certas lesões. Insiste na influência dos temperamentos, determinados pela diferente
combinação dos humores; nas faculdades psíquicas aguçadas, diminuídas ou extintas
pela doença; nas perturbações patológicas da percep ção, nos delírios, no sono natural
ou provocado por certas drogas (ópio); no efeito da alimentação e das bebidas
generosas; nas relações d.a fisionomia com o caráter; na influência do clima, etc., etc.
(op. cit., págs. 117-128). Invoca experiências que, a seu ver, estabelecem nitidamente
que o movimento não
• concerne à alma em particular: a palpitação das carnes dos animais após a morte; a
reanimação do coração e dos músculos por simples injeção de água quente; o fato de
que o coração da rã, "principalmente quando exposto ao sol ou, melhor ainda, sobre
uma mesa ou prato aquecido", "se movimenta durante uma hora, ou mais, depois de
arrancado ao corpo" (L'homme machine, op. cit., págs. 169-174). Em suma, La Mettrie
conheceu, sem dúvida, essa irritabiidade muscular cuja paternidade se atribui a Haller.
Em L'homme machine, a hipótese materialista de La Mettrie tende a arvorar-se em
sistema, e nele se encontram afirmações maciças que prefigu ram as de Watson:
Ser máquina, sentir, pensar, saber distinguir o bem do mal, como o azul do amarelo,
numa palavra, nascer com inteligência e um instinto seguro de moral e não ser senão um
animal, são, pois, coisas que não são mais contraditórias do que ser um macaco ou um
papagaio e saber procurar o prazer; pois, já que se me apresenta ocasião de dizê-lo, quem
teria jamais suposto a priori que uma gota do licor lançada durante o ato carnal fizesse
experimentar prazeres divinos e daí viesse a nascer uma pequena criatura que poderia um
dia, postas certas leis, fruir as mesmas delicias! Julgo o pensa mento tão pouco
incompatível com a matéria organizada que, para mim, ele parece ser uma das
propriedades dessa matéria, como a eletricidade, a faculdade motora, a impenetrabilidade,
a extensão, etc." (L'homme,nachine, op. cii., pág. 189.)
No que diz respeito ao comportamento humano, estes fundamentos têm como corolário
uma moral hedonística, à qual, aliás, La Mettrie se sentia inclinado, por temperamento.
A seus olhos, o valor essencial é uma felicidade terrena, inseparável da vida dos
sentidos.
De sua convicção de que forças orgânicas podem, em determinadas condições,
transformar-se em impulsos irresistíveis, tira conseqüências muito audaciosas num
domínio em que os preconceitos são fortes: o da responsabili dade humana em suas
relações com o direito. Após relatar uma série de atos monstruosos, cometidos
principalmente por mulheres grávidas, manifesta o desejo de que o moralismo abstrato
ceda lugar a uma concepção mais objetiva e mais humana a um tempo:
"Entre as mulheres de quem falo, uma foi rodada e queimada, a outra, enter rada viva.
Sinto tudo que demanda o interesse da sociedade. Seria, contudo, indiscuti velmente
desejável que não houvesse juízes que não fossem excelentes médicos. Só eles poderiam
distinguir o criminoso inocente, do culpado. Se a razão é escrava de sentidos
depravados, ou em fúria, como poderá governá-los?" (L'hornme machine, op. Cii., pág.
157.)
não conseguiram libertar de todos os preconceitos da infância; não acreditava, porém,
que meu estilo me traisse. Talvez devesse destruir um trabalho que lauto fez gritar,
gemer e blasfemar aquele a quem é dirigido; entretanto, tamanhos elogios públicos
recebeu de escritores cujo aplauso é infinitamente lisonjeiro, que me faltou essa
coragem..." (Op. i'it., pág. 60.)
Esse voto de La Mettrie encontrará um começo de realização cinqüenta anos mais tarde,
ao menos quanto ao tratamento dos alienados, graças a um homem que efetivamente
ousou encará-los como doentes e, não, como crimi nosos: Phiippe Pinel (1745-1826).
Esse psiquiatra freqüentara o salão de M Helvétius, onde se ligara aos "ideólogos"
Cabanis e Destutt de Tracy; foi nomeado, em 1793, por decreto da Convenção, médico -
chefe das Enfermarias de Bicêtre, obteve da Comuna de Paris autorização para libertar os
alienados de suas cadeias, revolução que honra a Revolução. A obra de Pinel, conti nuada
por Esquirol (1772- 1840), interessa grandemente à história da psiquia tria. Está
condensada num Traité de la manie que, revisto e aumentado, se tornou em 1809 um
Traité m sur l'aliénation rnentale. As perturbações mentais, em cujas origens Pinel dá
lugar à hereditariedade, à educação, ao gênero de vida, ao alcoolismo, às paixões e aos
fatores físicos, são nessa obra classificadas em quatro grupos fundamentais: mania, melan
colia, demência e idiotismo.
4. O homem dos enciclopedistas
Sabe-se que a grande publicação, cujo primeiro volume apareceu a 1? de julho de 1751,
com um Discoursprdiminaire de d'Alembert, seu co-diretor até 1759, propõe-se como
objetivo um inventário completo do saber da época:
ciências humanas, matemática, física, química, botânica, mineralogia, astro nomia,
biologia... E isso num espírito positivo e progressivo( l) orientado por mira comum, não
obstante discordâncias e compromissos tornados inevitáveis pelos interesses, intrigas e
conflitos de influência desencadeados por essa obra coletiva, publicada por subscrição e
com privilégio real sempre ameaçado. Uma mira que visava a substituir as opiniões
tradicionais da teologia e da metafísica por uma nova religião da humanidade, por uma
doutrina do homem reabilitado como ser carnal, liberto das interdições religiosas, do
pecado original e da sujeição monárquica. Numa palavra, uma obra imensa, realizada não
apenas com objetivos de simples erudição, mas dentro de um espírito de renovação
social, com vistas a um futuro cujas esperanças (2) seus promotores (dentre os quais se
destaca Diderot, alma do movimento) estavam certos de encarnar. Esperanças e também
indignações, na medida em que suas criticas tinham por objeto os abusos reais da época
(impostos mal distri buídos, dureza no regime das corvéias e do dízimo, abuso de
privilégios diver sos, miséria e ignorância do povo e falta de humanidade do direito
penal). Se se deu a essa mentalidade reformista o nome de Filosofia das Luzes, foi,
muita vez, por atribuir-se aos enciclopedistas, um culto quase exclusivo e, por isso,
acanhado, da razão abstrata; o que seria simplificar extremamente as coisas. Helvétius
que, ao lado de d'Holbach, foi o filósofo mais sistemático do
(1) Observei que essa mentalidade progressista existe, em germe, na intuição cnstã do
muodo, porém orientada para uma transcendência, enquanto no Renascimento tende a
imanenlizar-se, Desse ponto de vista, pode' se dizer que os enciclopedistas, em última
análise. procuram apenas deduzir-lhe as conseqüências no plano social, Convém notar,
entretanto, que, nessa época. o termoprogresso está longe de encerrar o sentido um tanto
mágico de que o investirão, mais tarde, CONDORCET. SAINT-5IMON, Augusto
COMTE. SPENCER. HEGEL... Na época de DIDEROT, significa ainda simptesmente
uma melhoria algo vaga das condições da vida humana.
(2) Sabe-se que de seu retiro, nas Délices, VOLTAIRE nela colaborava, encorajando o
"intrépido d'ALEMBERT" e o "bravo DIDEROT". "Enquanto tiver um sopro de vida,
estarei com os ilustres autores da Eis cyckspédi -, (A d'ALEMBERT, 9 de dezembro de
1755); desejaria dedicar o resto de minha vida a ser vosso obreiro enciclopedista.'" Uni,
tanto quanto puderdes, iodos os filósofos contra os fanáticos." (Ao mesmo, 29 de
novembro de 1756 e 4 de fevereiro de 1757).
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grupo( 1), define o espírito como "a aptidão para ver as semelhanças e diferen ças, as
conveniências e desconveniências que os vários objetos apresentam entre si". (De
l'homme, sec. II, cap. XV.) E já em seu Discours préliminaire, o matemático d'Alembert
insiste na experiência e na observação como fontes do conhecimento positivo( Quanto a
Diderot, achava-se imbuido das ciências biológicas e médicas de seu tempo.
Sob esse aspecto, são significativos os artigos Abstrait e Hypothêse; revela este a
fecundidade da hipótese nas investigações, desde que não se cristalize em verdade(
Lembrando os desiderata de Francis Bacon, não é de admirar que os enciclopedistas
tenham posto seu empreendimento sob a égide do grande chanceler. Locke é seu outro
mestre; dele adotam a desconfiança em relação aos sistemas metafísicos e a exigência
de recorrer à experiência. De maneira geral, aliás, é para a Inglaterra que seus olhos se
voltam, não apenas por ser a pátria de Bacon, de Locke e de Newton, mas por se lhes
afigurar também a nação liberal e tolerante. Em Descartes, admiram o matemático e o
autor do Discours de la méthode; desconfiam, entretanto, do cosmólogo e do metafísico.
O cepticismo de d'Alembert não é muito mais duvidoso que o ateísmo de Diderot( porém
os diretores da Encyclopédie acham-se de pleno acordo num ponto: constitui ofensa à
dignidade do homem procurar impor-lhe a submissão, não apenas aos dogmas
e aos mistérios da fé, como a todas as opiniões particulares que a invocam em benefício
de uma pretensa autoridade em matéria social. Foram, igualmente, acusados de instaurar
nova forma de intolerância; mas a acusação foi feita em demasiado esquecimento do
que fora a intolerância antiga. Basta lembrar alguns decretos contemporâneos da
Encyclopédie.' a prescrição da pena de morte para os autores e impressores de livros não
autorizados (1757); a proibição de escrever sobre a administração das finanças (1764) e
sobre as questões religiosas (1767)... (5)
Pode-se lá censurar os enciclopedistas por, em semelhante conjuntura, se verem
obrigados a certas "trapaças"?( Já na publicação do primeiro volume, o artigo âme
causara alarme em determinados círculos, particular- mente entre os jesuítas. Após
passar revista aos principais sistemas filosóficos
(1) A publicação de sua primeira grande obra, a 16 de julho de 1758, e as sucessivas
medidas que acarre tou, vieram agravar extremamente a situação da Encvciopédie. A 8
de março o Conselho do Rei pronunciou uma sentença que lhe revogava o privilégio e
interditava a venda e a difusão dos volumes já publicados, seguiu-se a conde nação de
Roma, a 3 de setembro de 1759: Damnatio et prohibitio vpe,'is itt piares tomou
distributi cujas est intitulas. Encyc/opódie.
(2) O artigo Observação recomenda as observações analÕmicas, sugerindo até praticá-
las em condenados à morte, que poderiam, assim, ter esperanças de escapar.
(3) No pós.escrllo da declaração preliminar de sua De l'intecprétativn de /a nature
(1753) lembra DIDEROT que "uma htpdtese não é um lato".
(4) "Meu caro mestre, quereis saber o que penso do Svstime de ia nature? Como vós,
julgo que nele há prolixidade, repetições, etc., porém é um livro terrivel. Confesso -vos,
contudo, que, quanto à esistência de Deus, o autor me parece excessivamente categórico e
dogmático e, neste terreno, só considero razoável o cepticismo. Que sabemos nós,
segundo penso, é a resposta para quase todas as questões metafisicas, e a ela devemos
acrescentar a reliesão de que, uma vez que nada sabemos, também não nos importa, sem
dósida. saber mais..." (c1'ALEMSERT a VOLTAIRE, 25 de julho de 1770).
(5) Cl. o artigo de Manime LEROY, "L'Encyclopédie et les Encyclopédistes", Recue de
Svnthise, janeiro. junho. 1951. Paris, Alhin Michel, pág. 19.
(6) "Continuará o ljicto,nnairc e que? será desfigurado e aviltado por covardes
coniplacéncias com os fanáticos? ou ser-se-á então bastante ousado para dizer verdades
perigosas? será certo que dessa obra imensa, e de doze anos de trabalho, caberão vint e e
cinco mil francos a DIDEROT, enquanto os fornecedores de pão para os nossos exércitos
ganham vinte mil francos por dia? (VOLTAIRE a d'ALEMBERT, a 25 de abril de
1760).
referentes à natureza da alma e sua imortalidade (que considera indemons trável), o autor
observa que as funções da alma estão intimamente ligadas às do corpo, e remete o leitor
aos artigos cerveau, cervelet, moeile. O artigo dme é seguido de outro, âme des bêtes,
onde se procura mostrar que não é comple tamente absurdo atribuir alma semi- espiritual
aos animais.
Referindo-se longamente a Buffon, de quem lera a Histoire natureile, Diderot, no artigo
animal, tende igualmente a diminuir a distância entre animal e homem.
Contra o dualismo cartesiano e declarando embora lamentar que os teólogos misturem a
religião com a questão do automatismo animal, Diderot insinua que o homem é
simplesmente um ser mais evolvido. Os animais sentem prazer e dor, são dotados de
memória e não desprovidos de atenção; conseguem formar um encadeamento de hábitos
e até certo sistema de conhe cimentos.
Não é menos significativo o artigo raison. Aqui o autor não é absoluto nos juízos,
distingue entre a evidência racional e o artigo de fé, num sentido que prolonga a famosa
doutrina da dupla verdade. Deixa ainda transparecer sua impaciência de retornar a um
pensamento liberado da teologia revelada.
"Conseqüentemente, em todas as coisas de que temos uma idéia nítida e distinta, a razão é
o verdadeiro juiz competente; e, embora a revelação, concordando com ela, possa
confirmar-lhe as decisões, não teria o poder, em tais casos, de invalidar- lhe os decretos;
onde quer que deparemos uma decisão clara e evidente da razão, não podemos ser
obrigados a renunciar a ela para aceitar a opinião contrária sob pretexto de que é matéria
de fé. E isso porque somos homens antes de ser cristãos."
Essa "razão", porém (e, repetimos, menos abstrata do que, em geral, se pretende) concilia
perfeitamente tendências admitidas - ainda quando lhes atribuamos fundamento biológico
e sociológico - como doravante inatas. Por exemplo, um senso comunitário que impele os
indivíduos a inte ressar-se pela sorte dos demais (artigos homme, humanité). O homem
dos enciclopedistas aparece, assim como um ser sensível, tanto quanto racional. O artigo
passion reconhece nas paixões uma "espécie de doçura" que as justi fica. Helvétius
considera hipócritas os moralistas que as condenam e, se atribui a todos os homens "uma
idêntica aptidão para o espírito", é por insistir no fato de que essa aptidão seria uma
"potência morta" sem as paixões que a vivificam. (De l'homme, sec. IV, cap. XXII.)
Para d'Holbach, como as paixões constituem "os verdadeiros contra- venenos das
paixões", cumpre tratar de dirigi-las e, não, de destruí-las. "A razão, fruto da
experiência, não é senão a arte de escolher as paixões que devemos escutar para nossa
própria felicidade." (Système de la nature, 1). Quanto a Diderot, sabe-se que o homem
não é para ele "nem bom nem mau".
No extenso artigo enthousiasme parece evidente que o primado da razão é afirmado
principalmente para prevenir uma interpretação mística do espírito criador; trata-se,
num sentido muito amplo, de "uma operação da razão tão pronta quão sublime".
No artigo consagrado à palavra génie, 'este é caracterizado por uma excepcional
capacidade imaginativa que o autoriza a romper as regras e leis do gosto para atingir o
sublime e o patético. Curioso observar em Diderot um
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motivo pré-romântico, de uma tonalidade que não é a de Rousseau, por certo, mas é real.
Homem de curiosidade universal, dons múltiplos e imensa cultura, mergulhado, porém,
numa tarefa absorvente, e amante da vida sob todas as formas, Diderot não tinha nem o
lazer nem o desejo de elaborar um sistema. A posteridade mesmo não é unânime em
outorgar-lhe a qualificação de filó sofo, o que é injusto, pois ele o foi, certamente, à sua
maneira, na medida em que formulava incessantemente questões essenciais, e em muitos
de seus trabalhos, precisamente filosóficos, são férteis em reflexões sagazes, enun ciadas
com singular liberdade de espírito.
Em seus escritos pessoais, cuja maioria foi publicada postumamente (Pensées
philosophiques, De l'interpr de la nature, de 1746 a 1754; Le Rêve de d'Alembert, de
1764; Entretien d'un philosophe avec la maréchale de***, de 1774), para não mencionar
outros sobre estética e obras de ficção (seu romance La réligieuse é de extraordinária
psicologia), Diderot demonstra um pensamento nitidamente orientado no sentido de uma
forma de materia lismo renovador da intuição dos jônicos:
"Todos os seres circulam uns nos outros 1.. .1 Tudo está em fluxo perpétuo [ Todo
animal é mais ou menos homem; todo mineral é mais ou menos planta; toda planta é
mais ou menos animal [ Não há senão um indivíduo, é o todo. Nascer, viver e passar é
mudar de forma." (Le Rêve de d'Alembert.)
Depois de La Mettrie (e, muito provavelmente, por ele influenciado, tanto quanto por
Buffon) seu pensamento é um prelúdio das teorias trans formistas:
"Assim como no reino animal e vegetal um indivíduo começa ...], cresce, dura, perece e
passa, não poderia o mesmo acontecer com espécies inteiras? E...] O embrião passou por
uma infinidade de organizações e desenvolvimentos f... Poderá, talvez, sofrer ainda
outras transformações ou assumir outras formas de acréscimo que nos são
desconhecidas." (De 1 'interprétation de la nature.)
Ainda como La Mettrie, tende a pensar que a sensibilidade é uma "propriedade
universal da matéria" (carta de 10 de outubro de 1765 a Duclos) e parece haver
pressentido o que seria a teoria eletrônica da matéria:
"Não sei em que sentido os filósofos supuseram que a matéria fosse indiferente ao
movimento e ao repouso. O que existe com certeza é que todos os corpos gravitam uns
em torno dos outros; é que todas as partículas dos corpos gravitam umas sobre as
outras;..." (Principes philosophiques sur la matière et le mouvement.)
Semelhante intuição da matéria e da unidade fundamental leva-o a repudiar um deísmo
à moda voltairiana, em favor de uma hipótese materia lista que, a seu ver, condiciona o
progresso das ciências da vida.
Se não existe uma ruptura decisiva entre a matéria dita inorgânica e o ser vivo, cumpre
explicar o homem por um processo que vai da vibração orgânica à sensação e, em
seguida, ao pensamento, e é realmente nesse sentido que se orienta a reflexão de
Diderot. Em La Rêve de d'Alembert e, principalmente, em seus Eléments de
physiologie, visa a estabelecer ligação necessária entre os fenômenos naturais e as
idéias, esboçando uma teoria
genética do entendimento. É fácil verificar, porém, que nenhuma explicação o deixa
completamente convencido quanto a esse processo necessário, como o demonstra muito
particularmente sua Réfutation suivie de l'ouvrage d'Helvétius intitulé l'Homme.
Persuadido embora de que o postulado mate rialista é o único fecundo para o progresso
das ciências biológicas e médicas, repugna-lhe encerrar-se num mecanicismo dogmático;
em última análise, o homem de Helvétius não lhe parece muito mais real que o de
Descartes. Homem cheio de contradições, Diderot não consegue vencer aquela que brota
(e da qual está consciente) entre um rigoroso determinismo físico e uma evolu
ção que, no mundo da vida, lhe parece implicar certa finalidade. E não se pode contentar
com soluções apressadas e peremptórias.
Do ponto de vista psicológico, o que parece admitir é que a alma racional, em relação ao
sensorium commune ou alma sensitiva, não apresenta senão uma diferença de
organização. Sob a provável influência de Bordeu (*), considera que o diafragma
desempenha papel essencial na afetividade: "existe acentuada simpatia entre o
diafragma e o cérebro [ Quando o diafragma se crispa violentamente, o homem sofre e se
entristece. Quando o homem sofre e se entristece, o diafragma se crispa violentamente".
(Eléments de physio logie). E manifesto ainda que Diderot se recusa a fazer distinção
entre a "alma" e a "consciência" da unidade orgânica do ser vivo. No Salon de 1 767,
trata-se da aranha cujo corpo se acha em ligação orgânica com a teia. Em Le Rêve de
d'Alembert o diálogo entre Diderot e d'Alembert contribui para esta belecer que a
existência, num ser senciente, tem por fundamento "a cons ciência de ter sido ele próprio
desde o primeiro instante de sua reflexão até o momento presente"; que essa própria
consciência se baseia na memória das ações realizadas, sem a qual não poderia haver
história alguma de uma vida; que a própria memória provém "de certa organização que
cresce, se enfra quece e, às vezes, se perde inteiramente", indispensável à consciência de
si mesmo e ao pensamento. Entretanto, repetimos, Diderot não é homem para satisfazer-
se com explicações simplistas quanto às origens do
conhecimento e pretende, principalmente, assinalar-lhe as condições orgânicas:
"Sem a memória, a cada sensação, o ser sensível passaria do sono para o desper tar, e do
despertar para o sono, e mal teria tempo de reconhecer-se como existente. A cada
sensação só experimentaria uma surpresa momentânea; sairia do nada e nele recairia." E a
memória é "uma lei de continuidade de estado, própria do ser sensível, vivo e
organizado." (Eléments dephysiologie.)
Em sua Lettre sur les aveugles à l'usage de ceux qui voient, dirigida a M de Puisieux e
publicada em 1749, é pelo aspecto da experimentação possível que trata da passagem da
sensação ao juízo. Inspiram-se suas consi derações nas observações publicadas nas
Philosophical Transactions pelo oculista Cheselden, que operara um cego nato,
observações que confirmavam as suposições enunciadas por Locke e seu amigo William
Molyneux( 1). Sem insistir neste escrito rico de múltiplas sugestões (e onde o autor
observa princi palmente, a propósito do argumento das causas finais, que o fato de o cego
() Théophile de BORDEU (1722-1776), médico francás de boa reputação. colaborador
da E e autor de estudos sobre águas minerais. (2. B. D. P.)
(1) C págs. 176-177.
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não ver a verdade do mundo deveria incitar aqueles que vêem a examinar um argumento
válido apenas para eles videntes), dele reterei estas linhat, onde a clarividência de Diderot
se exerce num sentido que irá influenciar o pensa mento de Condillac, levando - o a
convergir sua atenção para o problema da objetividade:
"Chamam-se idealistas esses filósofos que, não tendo consciência senão de sua
existência e das sensações que se sucedem no interior de si mesmos, nada mais admitem:
sistema extravagante que, parece-me, não poderia dever sua origem senão a cegos;
sistema que, para vergonha do espírito humano e da filosofia, é o mais difícil de
combater, embora o mais absurdo de todos. E exposto com tanta franqueza quanta
clareza em três diálogos do doutor Berkeley, bispo de Cloyne: caberia convidar o autor
do Essai sobre nossos conhecimentos a examinar esta obra, onde encontraria matéria
para observações úteis, agradáveis, finas, em suma, tal como sabe fazê-las. O idealismo
bem que merece ser-lhe denunciado; e essa hipótese tem com que irritá-lo, menos ainda
por sua singularidade do que pela dificuldade de refutá-la em seus princípios, pois são
precisamente os mesmos de Berkeley. Segundo um e outro e segundo a razão, os termos
essência, matéria, substância, suposto, etc., em si mesmos quase não trazem luzes para o
nosso espírito; aliás, observa judiciosamente o autor do Essai sur lorigíne des
connaissances humaines, quer nos elevemos aos céus: quer desçamos aos abismos, jamais
saímos de nós mesmos; e não é senão nosso próprio pensamento que perce bemos: ora,
esse é o resultado do primeiro diálogo de Berkeley e o fundamento de todo o seu sistema.
Não estaríeis, pois, curiosa por ver engalfinhar-se dois inimigos cujas armas se
assemelham tanto? Tivesse a vitória de pertencer a um deles e só poderia ser àquele que
melhor as utilizasse; o autor, porém, do Essai sur 1 origine des connaissan ces hurnaines
acaba de dar, num Traité des systêmes, novas provas da habilidade com que sabe manejar
as suas e demonstrar o quanto é temível para os sistemáticos (1)." Contrariamente a
Diderot, em quem predomina o senso da complexi dade do mundo, seus amigos Claude-
Adrien Helvétius e o barão Paul-Henri d'Holbach buscaram sistematizar sua concepção
do homem. Mal se pode duvidar de que Helvétius
(considerado o chefe do materialismo francês e de quem Stendhal escreverá, em seu
Journal, que "lhe abriu de par em par as portas do homem"), filho que era de um médico
ilustre, tenha conhecido os trabalhos de La Mettrie. Se sua primeira grande obra, De
l'esprit, teve a sorte que referi, as posições que ocupava (recebedor de impostos, depois
mordomo da rainha) e suas altas relações (sabe-se que MmeHelvétius mantinha um salão
dos mais reputados) valeram-lhe, no conjunto, uma indulgência recusada ao protegido de
Frederico II, embora as idéias de ambos fossem muito próximas. Também pretende
Helvétius fundar uma psicologia e uma moral experimen tais, baseadas no postulado de
um determinismo provado pela ordem reinante no mundo físico, Embora aparente
respeitar os ensinamentos da Igreja que "a esse respeito, fixou nossa fé", elimina de suas
pesquisas toda consideração sobre uma alma espiritual, com cingir-se à observação
positiva, na medida em que, a seu ver, condiciona o progresso dos conhecimentos. Sua
tendência é subordinar a vida prática e teórica do homem às modificações orgânicas, atri
buindo especial importância à atenção, que segundo pensa, orientada pelo interesse,
condicionaria o desenvolvimento do pensamento humano. Um inte resse que impele os
seres vivos a procurar o prazer e a fugir à dor. (De l'esprit, disc. II, cap. 1, 2).
(1) Alusão às críticas dirigidas por CONDILLAC a I3ESCARTES,
MALEBRANCFIEI, LEIBNIZ, SPINOZA e ao P. BOURSIER no T,'aité de stivié,,icv
(1749).
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L
Em sua outra grande obra, De l'hom,ne, de ses facu1tt inie//ectueiles ei de son éducation
(l), escrita pouco antes da morte e publicada postuma mente, desenvolve Helvétius as
teses já apresentadas na primeira.
O interesse, a necessidade presidem ao comportamento dos seres vivos:
"É a fome, e a dificuldade de prover a essa necessidade que, na floresta, dá aos animais
carnívoros tanta superioridade de espírito sobre o animal herbívoro. E a fome
que fornece, aos primeiros, mil meios engenhosos de atacar, de surpreender a caça; é a
fome que, retendo durante seis meses inteiros o Selvagem junto aos lagos e nos
bosques,
o ensina a curvar o arco, trançar redes, preparar armadilhas para a presa. E ainda a
fome que, entre os povos civilizados, põe em ação todos os cidadãos, fá-los cultivar a
terra, aprender um ofício e exercer um cargo. Nas funções desse cargo, porém, cada
qual esquece o motivo que o fez exercê-lo; é que nosso espírito se ocupa não com a
necessidade, mas com os meios de satisfazê-la. O difícil não é comer; é preparar a
refeição." (De/'ho,nme, sec. 11, cap. X.)
Tudo no homem é sensação. Sua alma não passa de sua aptidão para sentir, e daí deriva
o espírito. Helvétius pretende, pois, provar que:
a sensibilidade física é ...l o princípio de suas necessidades, de suas idéias, de seus
juízos. de suas vontades, de suas ações... (2)"
e que:
"O homem é uma máquina que, posta em movimento pela sensibilidade física, deve
fazer tudo que ela executa." (De l'homme, sec. II, cap. X.)
Por isso, a moral é de origem social. E, para explicar o que se apresenta como paradoxo
ou, seja, a preocupação com o interesse geral, o devotamento a ideais manifestado por
um ser que, entretanto, é, essencialmente, "sensibi lidade física", Helvétius divide as
sensações de prazer ou de dor em duas categorias: atuais e "de previdência".
"Morro de fome; sinto uma dor atual. Prevejo que logo morrerei de fome: sinto uma dor
de previdência..."
"Gosta um homem de belas escravas e de belos quadros? se descobrir um tesouro fica
arrebatado. Entretanto - diriam - não experimenta ainda nenhum prazer físico.
Concordo. Adquire, porém, nesse movimento os meios de conseguir os
(1) "Tendes, sem dúvida, o livro póstumo de f-IELVÉTIUS. que o Príncipe Gallitzin
acaba de fazer imprimir na Holanda. Isso se assemelha um pouco ao Testunieni de Jeun
Meslier, que principia por declarar, inge. nuamente, só desejar ser queimado depois da
morte. Esse livro pareceu.me confuso e me irritou muito. E preciso um grande esforço
para ló-lo, mas contém belos lampejos. Que vos diria eu? Pareceu-me audacioso, curioso
em ceNas passagens. e, em geral, enfadonho. Eis ai, talvez, o maior golpe já desferido
contra a filosofia. Se pessoas qáe ocupam posios importantes tiverem tempo e paciência
para ler esta obra, jamais nos perdoarão. Somos com lis apóstolos: segaidos pela minoria
e perseguidos pela maioria. Vedes que se pode ctiegar ao mesmo fim por cautinhos
ilpostos." (VOLTAIRE a d'ALEMBERT. 16 de junho de 1773.) (O
"ieslamenlo do Cura Meslier" tora publicado anonimamente por d'HOLBACH, conio
apêndice à sua obra Li' ho,, um, j,siné duns la ,iaturi'. dirigido Contra aquetes a quem o
autor chama de "crislicolas': ludo que vos obrigam a crer por fé divina é indion., até de
amima fé humana'. (Fim do prefácio atribuído a Jean MESLIER).
12) "Um princípio de vida anima o homem. Esse princípio é a sensibilidade física. Que
produz nele essa
sensibilidade? Um sentimento de amor ao prazer e de ódio à dor: é desses dois
sentimentos. reunidos no homem e
sempre presentes em seu espírito, que se forma o que se chama, nele, o sentimento de
amor a si mesmo. Esse amor a
si mesmo gera o desejo da felicidade; o desejo de felicidade gera o desejo de poder; e
este. por sua vez, dá origem à
inveja, à avareza, à ambição e, em geral. a todas as paisões lactíctas que, sob nomes
diversos. não passam. em nós.
de aro amor ao poder. disfarçado e aplicado aos diversos meios deohtê'lo."
(De/'hmsnumie', sóc. IV. cap. X
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objetos de seus desejos. Ora, essa previsão de um prazer próximo já é um prazer." (De
/'homme, sec. II, cap. VII.)
Previdência devida à memória, cujo órgão é físico e cuja função consiste em nos tornar
presentes as impressões passadas, provocando em nós sensações reais. Se um indivíduo
prevê que a falta de alimento lhe causará sofrimento é porque já o experimentou. O
caráter original da memória consiste em pôr o organismo, até certo ponto, no estado em
que o colocariam certas sensações.
"Torna-se, pois, evidente, que todos os sofrimentos e prazeres considerados como
interiores são outras tantas sensações físicas e, por essas palavras interior e exte rior só
podem ser entendidas as impressões executadas ou pela memória ou pela própria
presença dos objetos." (Ibid.. em nota.)
Opinião semelhante é admitida quanto às paixões (glória, poder, rique zas), aspecto,
aliás, acentuado por Helvétius:
o furor da inveja, o desejo de riquezas e talentos, o amor à consideração, à glória e à
verdade, não são, jamais, no homem, senão o amor à força e ao poder, disfarçado sob
esses nomes diferentes." (De l sec. IV, cap. VI.)
Mas, se o indivíduo, por amor à verdade, arrisca a vida? Se até a sacri fica em seu nome
ou em nome de outro valor ideal? Nesse caso, trata-se, na opinião de Helvétius, de um
recurso à esperança de uma recompensa futura. O avarento se priva do necessário tendo
em vista uma espécie de poder. A explicação é válida igualmente para a ambição, capaz
de gerar várias prova ções no presente, na esperança de encontrar futuramente um saber
ou uma arte dificilmente conseguidos. Resta ainda o caso em que o indivíduo sacrifica
deliberadamente a vida. Esperança de recompensa? Sim, quando ele crê em recompensas
extraterrenas. E se não crê? Que permanece então como recom pensa futura? Uma glória
póstuma aleatória? Tudo isso, decididamente, nos leva bem longe da
"sensibilidade física".
Helvétius, aliás, não nega que pessoas desdenhem os êxitos imediatos e se recusem a
lisonjear o gosto do século e das pessoas bem colocadas na vida:
São aqueles que, transportados em espírito, para o futuro, e fruindo de antemão, os
elogios da consideração da posteridade, receiam sobreviver à sua reputação. Esse único
motivo os leva a sacrificar a glória e a consideração do momento à esperança, às vezes
remota, de glória e consideração maiores. Tais homens são raros. Só desejam a estima
dos cidadãos estimáveis." (De lhomme, sec. IV, cap. VI.)
Helvétius acredita que a associação de idéias resolve uma infinidade de problemas de
outra forma insolúveis (De l'homme, sec. VIII, cap. IV), e dá desses fatos explicação
bastante. E, como tantos outros contemporâneos seus, está animado de uma confiança
total e algo ingênua na educação.
"Aprende-se a amar, a ser humano ou desumano, virtuoso ou vicioso. O homem moral é
todo educação e imitação." (Ibid., sec. IV, cap. XXII, nota.)
A melhor educação é aquela que consegue ligar na memória as idéias de justiça, poder e
felicidade. Uma vez adquirido o hábito de lembrá-las juntas,
"é uma questão de orgulho mostrar-se sempre justo e virtuoso; e não há nada, então, que
não se sacrifique a esse nobre orgulho" (ibid., sec. IV, cap. IX, nota).
Já tive ocasião de aludir aqui, páginas atrás, à Réfutation de Diderot a opiniões de
Helvétius, que lhe parecem inquinadas de excessivo dogmatismo:
"Passar subitamente da sensibilidade física (e isso significa que não sou planta, pedra ou
metal) ao amor à felicidade; do amor à felicidade ao interesse, do interesse à atenção; da
atenção à comparação das idéias, eu não conseguiria satisfazer-me com tais
generalidades. Sou homem e necessito de causas próprias do homem. Se, partindo do só
fenômeno da sensibilidade física, propriedade geral da matéria ou resultado da
organização, Flelvétius dele tivesse deduzido com clareza todas as operações do enten
dimento, então teria feito coisa nova, difícil e bela."
Julga Diderot haver "sempre algo que aprender nas obras dos homens de paradoxo,
como Helvétius e Rousseau", e prefere "sua desrazão que faz pensar, às verdades
comuns que não interessam". Por seu lado, porém, procura corrigir o "paradoxo", que,
em Helvétius consistiria, a seu ver, em deduzir conseqüências errôneas de premissas
penetrantes e sagazes. Por isso, dispõe-se a retificar as primeiras, e a substituir uma
indução que considera excessivamente geral e absoluta, pela conclusão que lhe parece
legítima. Eis alguns exemplos dessas retificações propostas por Diderot, nuns cinqüenta
Diz ele.. - Dizei...:
"Diz ele: A educação faz tudo. Dizei: A educação faz muito.
Diz ele: Nossos sofrimentos e nossos prazeres se resolvem sempre em sofrimentos e
prazeres sensuais. Dizei: Muito freqüentemente.
Diz ele: A influência do clima sobre os espíritos é nula. Dize,: Costuma-se dar-lhe
importância exagerada.
Diz ele: A legislação e o governo é que tornam um povo estúpido ou esclarecido. Dizei:
De acordo quanto à massa; mas já houve um Saadi e grandes médicos sob os
califas.
Diz ele: Tudo que emana do homem se reduz, em última análise, à sensibilidade física.
Dizei: Como condição, não, porém, como motivo.
Diz ele: A natureza do espírito consiste em observar relações. Acrescentai: De acordo.
Mas, são os ouvidos que observam e comparam relações? Não. Eles recebem impressões,
mas a comparação se faz alhures. Essa operação não é atributo de nenhum dos sentidos; a
quem pertence então? Ao cérebro, creio eu. De que serve criticar os sentidos se não
demonstrais que tudo se pode com um cérebro comumente bem organizado? Mas quê?
Um vaso da cabeça um pouco mais ou um pouco menos dilatado, um de seus ossos um
pouco mais ou um pouco menos enterrado, a menor perturbação
de circulação no cerebelo, um fluido um pouco fluido demais, ou não bastantemente
fluido, uma picadazinha na pia-máter, tornam um homem estúpido; e a conformação
total da caixa óssea e do queijo mole que encerra, e dos nervos aí implantados nada
terão que ver com as opera ções do espírito! Receio que tenhais negligenciado, em
vossos cálculos, as duas principais molas da máquina, o cérebro e o diafragma."
(Réfutation suivie de louvrage d'Helvétius intitulé l'Homme, VII, Réfutation générale.)
Quanto ao barão Paul-Henri d'Holbach, alemão de origem, porém francês de cultura e
adoção, sua obra revela idêntica preocupação com uma sistematização não menos
dogmática. Se admite não ser o homem capaz de
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penetrar a essência das coisas, nem os primeiros princípios, atribui-lhe a possibilidade
de reconhecer leis naturais, gerais e imutáveis, cuja existência é incompatível com o
ensinamento teológico. Deus " é um Deus surdo que em nada pode alterar leis às quais
ele próprio está sujeito"( l), Um Deus que, para d'Holbach, parece realmente ser apenas
outra denominação da Natu reza(
A moral é pois, essencialmente, matéria social e a virtude mais emi nente, para
d'Holbach, é a da humanidade, onde entram o amor, a benefi cência, a liberalidade, a
indulgência, a piedade pelo próxiino( A existência de uma "natureza humana" sensível,
inteligente e racional, parece-lhe sufi ciente para explicar os deveres mútuos entre os
homens. Essa "natureza humana" é, porém, segundo ele, um tanto ambígua. Designa
uma entidade humana que desenvolve todas as suas faculdades intelectuais a partir de
uma faculdade de sentir inata, porém dentro do contexto de um mundo físico sujeito a
leis imutáveis e que exclui uma verdadeira evolução das espécies. Assim, a psicologia
se reduz, para ele, à fisiologia:
"Estaria bastante tentado a crer que aquilo que os Médicos chamam deJluido nervoso,
ou essa matéria tão móvel que tão prontamente adverte o cérebro de tudo que se passa
em nós, é apenas matéria elétrica e é a diferença de suas doses ou proporções uma das
principais causas da diversidade entre os homens e suas faculdades(
Por outro lado, semelhante declaração prefigura de maneira surpreen dente a definição de
psicologia atualmente dada pelos behavioristas, que a consideram como uma "ciência do
comportamento":
"Vem-se abusando, visivelmente, da distinção feita tanta vez entre o homem
físico e o homem moral. O homem é um ser puramente físico; o homem moral não é
senão esse ser físico considerado de determinado ponto de vista, isto é, relativamente a
algumas de suas maneiras de agir, devidas à sua organização particular(
Se compete, pois, à fisiologia esclarecer, ao mesmo tempo, a alma mdi viduãl e a
sociedade humana, d'Holbach parece admitir, entretanto, uma
(1) Le boa seus pussé dans Ia ,iature, SaI da (IS! ,,, dx firO Meslu'r, Paris. chez
Bouqueton, Libraire. ano 1 da República (sem nome de autor).
(2) Várias cartas de VOLTAIRE a d'ALEMBEI latam do S de Ia ,ia(are quando da
publicação:
Meu caríssimo filósofo, peço-lhe o favor de dizer-me o que pensais do Scstê,ne de Ia
,aature. Parece-me conter coisas encelenles, uma razão forte, e eloqüéncia máscula e.
conseqüentemente, fará um mal terrível à filosofia. Pareceu-me que nele havia
prolixidade, repetições e alguroas inconseqüõncias: nas há muita coisa boa para que não
se manifeste um vivo furor contra este livro. Se guardareoi silêncio, será uma prosa do
prodigioso progresso que a tolerãnciavem fazendo dia a dia. Disputa.scestelisroenl toda a
Europa." (1h dejulhode 1770.)
"Tendes, sem dúvida, o trabalho escrito pelo rei da Prússia contra o Srs&me de/a ,iature;
notais que toma sempre o partido de sua má companhia e se irrita colo o fato de que os
filósofos não formem ao lado da realeza. Não considero hábeis esses senhores: atacam. ao
nesolo teropo. Deus e o diabo, os grandes e os padres. Que lhes restará? O Système dela
,ialure é excessivamente longo. ua o juba opinião ...] E aparentemente para não parecer
discípulo de SPINOZA e ESTRATÃO otue não admite um,! inteligência eterna,
difundida não sei como pelo mundo. Parece' me absurdo fazer nascerem seres inteligentes
do tnovirnenlo e da matéria, que não o são (27 de julho de 1770).
"Um grande mal moral, que poderá ci,n,erter-se até em mal físico, é a publicação
doScstême de/a r,alure. Este livro tornou execráveis todos os filósofos aos olhos do rei e
de toda a corte 1.. .JO editor desta obra fatal arrasou para sempre a filosofia no espirito de
lodos os tnagistrados e pais de família, que sentem como o ateísmo pode ser perigoso
para a sociedade." (2 de novetttbro de 1770.)
(3) La Ps/itique ,,arurel/e ou D,scsurs sue (es reais principes du gouvernemen!. Par un
anclen magistral
(d'HOLBACH), 1773.
(4) Scs ènte de Ia ,iature ou Les luis du ,nonde plt vüque et da monde moral. Par M.
MIRABAUD, Secré taire Perpétuel, et lux des Quarante de l'Acudémie Française
)d'HOLBACH): Londres, 1770, pág. 124.
(5) Ibid., prefácio.
historicidade que modifica a orientação do seu sistema no sentido de uma forma de
materialismo "histórico", avant la lettre.'
"O Homem começa por comer a bolota de carvalho, por disputar o alimento aos animais e
acaba por medir os céus. Após haver lavrado e semeado, inventa a geometria. Para
resguardar-se do frio, cobre-se primeiro com a pele dos animais que abateu; e, ao fim de
alguns séculos, o vedes juntar o ouro à seda, Uma caverna, um tronco de árvore são suas
primeiras moradias e, afinal, ele se torna arquiteto e edifica palácios. Suas necessidades,
multiplicando-se, lhe aumentam a indústria, é forçado a pôr a trabalhar o espírito e, pela
cadeia que liga os conhecimentos humanos, descobre, pouco a pouco, todas as ciências
e todas as artes; o que não é útil às suas necessidades, serve, ao menos, para satisfazer-
lhe a curiosidade, necessidade sempre renascente e que nada consegue saciar
completamente ( t)."
Para d'Holbach, trata-se, principalmente, de assinalar, em oposição a Rousseau. sua
repulsa por "uma filosofia desencorajada que nos convida a fugir da Sociedade" (ibid.,
cap. XVI).
"A Vida Selvagem ou o Estado de natureza, ao qual especuladores sombrios quiseram
reconduzir os homens, a idade de ouro tão decantada pelos poetas, não passam, em
verdade, de estados de miséria, de imbecilidade, de desrazão...
"A razão humana que, para formar-se e exercer-se, demanda experiência e reflexões
múltiplas e reiteradas, não podo ser efeito senão da Vida Social." (Ibid., págs. 192-193.)
Também segundo d'Holbach o interesse é o fundamento do comporta mento humano.
Toma o termo numa acepção extremamente vasta (em con traste com outras afirmações
nada sutis: o interesse do avarento é juntar dinheiro; o do pródigo, dissipá-lo; o interesse
do ambicioso é obter poder, títulos e honrarias; o do sábio, gozar tranqüilidade...). Em
suma, num sentido que não se pode deixar de subscrever, pois todos os objetivos
humanos são, incontestavelmente, "interessados":
"Assim, quando afirmamos que o interesse é o único móvel das ações humanas,
queremos indicar, com isso, que cada homem trabalha à sua maneira, pela sua própria
felicidade, por ele colocada em algum objeto, seja visível, oculto, real ou imaginário, e
que todo o sistema de sua conduta tende a obter." (Systême de la nature, op. cit., pág.
309.)
Sabe-se que essa noção de interesse realçada pelos filósofos enciclope distas, predomina
igualmente em certos psicólogos contemporâneos. Sirva de prova, por exemplo, a
"psicologia funcional", de Edouard Claparède:
"O ponto de vista funcional vivifica toda a educação. A educação funcional é aquela que
considera a necessidãde da criança, seu interesse por atingir um fim, como alavanca da
atividade que nela se deseja suscitar. Só quando se liga aquilo que se deseja que a criança
execute a uma necessidade, a um desejo, é que se obtém a energia necessária a toda
ação." ("La Psychologie fonctionnelle", Recue Philosophique de la France e/de I'étranger,
janeiro.fevereiro de 1933.)
(li Scstême social ou Principes nature/I de la mora/e ei de la pO)Il!qUe alce ao exames
de / o,jlu e da gr,ucernemesl sur (es ml,eurs. Par t'uuleur do Scstême de/a ,Iature, t. 1,
cap. XVI, Londres. 17'4, págs. l9Oiql.
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5. A alma para Voltaire e Rousseau
O deismo de Voltaire - proclamado pelo Deo erexit Voltaire da igreja que edificou em
Ferney - escapa a toda formulação demasiado precisa. De tonalidade bem diferente da
de Rousseau, designa mais o ordenador das coisas do que uma instância experimentada
pela interioridade mais profunda. No tocante à doutrina cristã, encontram-se no
"patriarca de Ferney" flutua ções, certa ambigüidade, devidas às circunstâncias e talvez
também a uma incerteza de seu pensamento. Não é de duvidar, porém, que seu Deus
exclua a graça:
"Por que capricho mudaria ele qualquer coisa no coração de um curlandês ou de um
biscainho, quando não muda em nada as leis que impôs aos astros?" (Diction
nairephilosophique, artigogrâce.)
e os milagres:
"Deus nada pode fazer sem razão; ora, que razão levaria a desfigurar por algum tempo
sua própria obra?" (Artigo miracles.
Mas, ao mesmo tempo em que encoraja os enciclopedistas a esmagar a infame:
"Faço como Catão: termino sempre minha arenga dizendo Deleatur Carthago 1.. . Bastam
cinco ou seis filósofos que se entendam para derrubar o colosso. Não se trata de impedir
nossos lacaios de ir à missa ou de assistir à prédica; trata-se de arre batar os pais de
família à tirania dos impostores e inspirar o espírito de tolerância. Essa grande
missão já teve felizes êxitos. A vinha da verdade é bem cultivada pelos d'Alembert, os
Diderot, os Bolingbroke, os Hume..." (A d'Alembert, 6 de dezembro de 1757.)
mostra-se, entretanto, inquieto quanto às conseqüências sociais da irreligião. Sob esse
aspecto, a resposta desse sacerdote a um "bom e honesto ministro huguenote",
pretendendo que um erro de um momento não pode merecer castigo infinito, é
paradoxalmente menos antivoltairiana do que se poderia crer:
"Meu amigo, não acredito no inferno eterno mais do que vós; é bom, porém, que vosso
criado, vosso alfaiate e até vosso procurador acreditem." (Artigo enfer.)
Adrega-lhe afirmar possível um acordo entre as doutrinas da Encyclo pédie e as
verdades reveladas, principalmente no que se refere à imortalidade da alma:
"... A razão humana é tão pouco capaz de demonstrar por si mesma a imortali dade da
alma que a Religião foi obrigada a no-la revelar. O bem comum de todos os homens
exige que acreditemos na alma imortal, a fé o ordena, nada mais é preciso, e as coisas
estão decididas... (1).
(1) Letf Edição critica de Gustave LANSON. Cornély et de, Paris. 1909, t. 1, pág. 171.
As coisas estão longe, porém, de decididas... Não o estão mormente quando a verve
satírica e o gênio irreverente arrebatam o pensamento de Voltaire, como acontece, por
exemplo, no artigo âme do Dictionnaire philoso phique, onde ridiculiza os "belos
sistemas" que a filosofia forjou acerca da alma:
"Não se fizeram menos sistemas sobre como sentirá a alma quando tiver deixado o corpo
com o qual sentia; como ouvirá sem ouvidos, farejará sem nariz e tocará sem mãos; sobre
a que corpo, em seguida, retornará, o que tinha aos dois anos ou aos oitenta; sobre como
o eu, a identidade da mesma pessoa, subsistirá; sobre como a alma de um homem que
ficou imbecil aos quinze anos e morreu imbecil aos setenta, reatará o fio das idéias que
tinha na época da puberdade; sobre de que jeito uma alma cuja perna tenha sido cortada
na Europa ou que tenha perdido um braço na América reencontrará essa perna e esse
braço, os quais, tendo sido transfo7mados em legumes, terão passado para o sangue de
algum outro animal. Seria um i acabar se se quisesse explicar todas as extravagâncias
que essa pobre alma humana já imaginou sobre si mesma."
Sua ironia lembra, às vezes, a de Tertuliano:
"Nasceste, vives, ages, pensas, velas, dormes, sem saber como. Deus te deu a faculdade
de pensar, como te deu todo o resto; e, se não te viesse ensinar, na época designada por
sua providência, que tens uma alma imaterial e imortal, disso não terias prova alguma."
Mas Voltaire é Voltaire e é óbvio que, nele, a razão não poderia abdicar diante do
"absurdo" da fé:
"Se tiverdes um momento de lazer, comunicai-me como passam os órgãos pensantes de
Rousseau e se ele ainda sofre da glândula pineal. Se prova existe contra a imaterialidade
da alma, é esta enfermidade cerebral. Temos uma fluxão na alma como nos dentes.
Somos pobres máquinas. Adeus; vós e M. Diderot sois belos relógios de repetição e eu
não passo de um velho mecanismo de virar espeto..." (A d'Alembert, 29 de agosto de
1757.)
A ironia visa não só às teorias do destino da alma, como também às referentes à
natureza dela:
"Um diz que a alma é parte da substância do próprio Deus; outro, que é parte do grande
todo; um terceiro, que está criada desde sempre; um quarto, que é feita e, não, criada;
outros asseguram que Deus as forma, na medida em que delas se têm necessidade, e
chegam no instante da cópula; alojam-se nos animálculos seminais, grita este; não, diz
aquele, vão habitar as trompas de Falópio. Estais todos errados, diz o que chega de
improviso, a alma aguarda por seis semanas que o feto esteja formado e apodera-se,
então, da glândula pineal; porém, se encontra um falso germe, volta e fica à espera de
melhor oportunidade. A última opinião é que tem sua moradia no corpo caloso; é este o
posto que lhe confere La Peyronie; só mesmo o primeiro cirurgião do rei de França
poderia dispor assim do alojamento da alma. Entretanto, tal corpo caloso não fez tanta
fortuna quanto este cirurgião." (Dictionnairephilosophique, art. âme.)
A exemplo dos enciclopedistas, Voltaire é de opinião que Descartes errou quando negou
aos animais uma vida psíquica. Possuem eles os mesmos órgãos dos sentidos que nós;
ora, Deus não faz obra inútil, logo, eles sentem...
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Tudo quanto esse jovem via após a operação:
"Pelo fato de se presumir terem os homens tido sempre idéias, percepções, concepções,
resultava naturalmente que os animais também as tinham sempre, por quanto é
incontestável que um cão de caça tem a idéia de seu dono, a quem obedece, e da caça,
que para o dono apanha. E evidente que o cão possui memória e combina certas idéias.
Assim, pois, se o pensamento do homem fosse a essência da alma, o pensamento do cão
também seria a essência da sua própria alma, e se o homem sempre tivesse idéias, bem
necessário seria que os animais as possuíssem sempre. Resolvendo de pronto a
dificuldade, o inventor dos turbilhões e da matéria acanelada ousou dizer que os animais
eram puras máquinas que tentavam comer sem fome, tinham sempre órgãos do
sentimento para não sentir nunca a menor sensação, davam gritos sem dor, mostravam
prazer sem alegria, possuíam cérebro para nele não receber a mais ligeira idéia, e eram
assim uma contradição perpétua da natureza( 1),"
Desconfiando, assim, das explicações racionais no domínio metafísico, não é de admirar
tenha Voltaire predileção por Locke, na sua opinião o espírito sábio e metódico por
excelência:
"Antes dele, grandes Filósofos haviam decidido positivamente o que é a alma do
homem; porém, como nada sabiam disso, é bem justo que tivessem todos opiniões
diferentes." (Letires p/zilosop/ziques.) (2)
"Tendo tantos arrazoadores feito o romance da alma, um sábio veio que lhe fez
modestamente a história; Locke expôs ao homem a razão humana, tal como um exce lente
anatomista explica as molas do corpo humano. Sempre iluminado pelo facho da Física,
ousa, às vezes, falar afirmativamente, porém, ousa, igualmente, duvidar; ao invés de
definir, de imediato, o que não conhecemos, examina gradativamente o que desejamos
conhecer, Toma uma criança no momento de seu nascimento, segue-lhe, passo a passo,
os progressos do entendimento; observa o que tem em comum com os animais e o que
tem acima deles; consulta, a propósito de tudo, sem próprio testemu
nho, a eensciência de seu pensamento." (Ihid., pág. 169.)
Depois, Locke não se arreceou de observar que negar a Deus o poder de fazer a matéria
pensar é limitar-lhe singularmente os poderes. Essa idéia agrada Voltaire, que gosta de
voltar a ela.
Em sua obra imensa não faltam os elementos referentes à psicologia, pois ele se
interessava por tudo, O feitio especial de seu espírito leva-o, porém. nesse terreno, majs a
vulgarizar certas idéias do que a forjar idéias originais.
Como já tivemos a ocasião de lembrar aqui o que Diderot pensava de Berkeley,
lembraremos, igualmente, a interpretação de Voltaire acerca do mesmo filósofo.
A partir de 1738 consagrou diversos capítulos dos seus Élt de la philosophie de Newton à
teoria de Berkeley, resumindo, em matéria de per cepção da distância, as análises e os
exemplos desenvolvidos rio Ensaio de uma nova i da visão. Lembra, a esse respeit o, que
as observações do cirurgião inglês Cheselden( pareciam confirmar a um tempo a teoria de
Berkeley sobre o papel essencial das sensações tácteis na percepção da distância e as
conjeturas de Locke e de Molyneux(
(II Le phiIosoph ignorant, 1766, in Oeurres oomp/êu's. Paris, P. Dupont. ibra,rc-édtteur.
1824. É. págs. 83-84.
(2) Ediçào critica dr Gustase LANSON. Paris, Cornély et 1906. t. 1, pág. 166.
(3) \. pác. 20
(4) V. pic t's- l
- - parecia-lhe, a princípio, estar sobre seus olhos e tocá-los como os objetos do tacto
tocam a pele. Não conseguia distinguir o que julgara redondo com o auxílio das mãos,
do que julgara anguloso, nem discernir com os olhos se aquilo que suas mãos haviam
sentido estar no alto ou embaixo estava, de fato, no alto ou embaixo," (Eléments. - -,
parte II, cap. VII,)
Ao expor, porém, as idéias de Berkeley, modifica-as Voltaire num sentido que rompe
com o imaterialismo do filósofo irlandês: o tacto nos põe efetivamente em contato com
uma realidade exterior. Cabe perfeitamente pensar que tais observações de Voltaire
sobre Berkeley, como as de Diderot, levarão Condillac a também propor-se o problema
da objetividade (Traité des sensations.)
Mais tarde, em 1764, na primeira versão do Dictionnaire philoso phique, Voltaire volta
a tratar da doutrina do bispo irlandês, num comentário (artigo corps) que bern revela a
preocupação, característica do século dezoito francês, de manter a "solidez" do mundo:
"O bispo de Cloyne, Berkeley, foi o último que, por meio de cem sofismas capciosos,
pretendeu provar que os corpos não existem. Os corpos - afirma ele - não têm nem cor,
nem odor, nem calor; essas modalidades estão em vossas sensações e, não, nos objetos.
Bem podia ele haver-se poupado o trabalho de provar esta verdade: já era bastante
conhecida, Porém, daí passa à extensão, à solidez, que são essências do corpo, e acredita
provar que não existe extensão num pedaço de pano verde porque esse pano, na
realidade, não é verde; essa sensação de verde não está senão em vós: logo, essa sensação
de extensão, igualmente, só se encontra em vós, E, após haver destruído também a
extensão, conclui que a solidez a ela relacionada cai por si mesma e, assim,
no mundo, só existem nossas idéias. De sorte que, segundo esse doutor, dez mil homens
mortos por dez mil tiros de canhão não passam, ao cabo, de dez mil apreensões de nossa
alma."
"É bom saber o que o arrastou a semelhante paradoxo. Há tempos, mantive algumas
palestras com ele; disse-me que a origem de suas opiniões provinha do fato de que não
podemos conceber o que é esse sujeito que recebe a extensão. E, com efeito, triunfa em
seu livro quando pergunta a Hylas o que é esse sujeito, esse substratu,n, essa substância.
"E o corpo extenso", responde Hylas. Então, o bispo, sob o nome de Philo nous, zomba
dele; e o pobre Hylas, percebendo que disse ser a extensão o sujeito da extensão e,
portanto, disse uma tolice, torna-se completamente confuso e confessa que nada
compreende, não existe corpo, o mundo material não existe e não há senão um mundo
intelectual."
Nem por isso Voltaire deixa de pensar que não conhecemos melhor a essência dos
corpos que a dos sujeitos sencientes, pensantes e volentes. Somos como a maioria das
damas de Paris - observa ele - que passam bem sem saber o que entra nas iguanas:
desfrutamos os corpos sem saber o que os compõe. De que são feitos? De partes que,
por sua vez, se reduzem a outras partes. E que são estas últimas partes? Sempre corpos.
"Vós dividis sem cessar e jamais progredis." Sob esse aspecto, o sistema de Leibniz que
- posto de parte seu "melhor dos mundos"... - é o de um "sutil filósofo", parece-lhe valer
tanto quanto o da declinação dos átomos ou das formas substanciais.
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Inspiração completamente diversa anima a obra de Jean-Jacques Rousseau, em quem a
preocupação com uma reforma social, tão característica da Epoca das Luzes, se alia à
exigência de uma ardente espiritualidade que, antes de tudo, procura renovar, pela "luz
interior", a própria vida religiosa.
Rousseau vê "Deus por toda parte, em suas obras"; a harmonia univer sal parece-lhe
prova evidente da ação divina e as 'absurdas superstições" dos materialistas não lhes
provam senão a surdez mental:
façam o que fizerem, para mim é impossível conceber um sistema de seres tão cons
tantemente ordenados sem conceber uma inteligência que os ordene. Não depende de
mim crer que a matéria passiva e morta pôde produzir seres viventes e sencientes, que
uma fatalidade cega pôde produzir seres que pensam.' (Enule, IV, págs. 573
Bem afastada da intuição hilozoista dos enciclopedistas, essa idéia da matéria "passiva e
morta", da matéria "naturalmente inerte", cujo "estado natural é ficar em repouso", que
não tem "por si mesma nenhuma força para agir" (op. cii., pág. 571). leva Rousseau a um
dualismo exaltador da persona lidade humana:
"Uma máquina não pensa, não há movimento nem figura quc produza a refle xão:
qualquer coisa em ti procura romper os elos que te comprimem: o espaço não é tua
medida, o universo inteiro não é suficientemente grande para ti: teus sentimentos, teus
desejos, tua inquietude, teu próprio orgulho têm um princípio diferente deste corpo
estreito ao qual te sentes encadeado." (Op. cii., pág. 576.)
Se a sensibilidade é anterior à inteligência, o pensamento consciente, a vontade livre é
outra coisa, e essa outra coisa faz a dignidade do hometn:
"Dêem este ou aquele nome a essa força de meu espírito que aproxima e compara minhas
sensações; chamem-lhe atenção, meditação, reflexão, ou como quise rem; sempre é
verdade que está em mim e não nas coisas, que sou eu só que produzo, embora só a
produza quando os objetos fazem impressão em mim. Sem ser senhor de sentir, ou de não
sentir, eu o sou, entretanto, de examinar mais, ou menos, aquilo que sinto." (Op. cii., pág.
570.)
"Não sou, pois, simplesmente, um ser sensível e passivo, mas um ser ativo e inteligente;
e, diga o que disser a filosofia, ousarei aspirar à honra de pensar." (Op. cii., pág. 570.)
Segundo Rousseau, no sentimento profundo da existência se encontra uma evidência bem
superior a todas aquelas que as especulações filosóficas pretendem estabelecer:
"Não são os filósofos que conhecem melhor os homens; eles só os vêem através dos
preconceitos da filosofia; e não conheço outro domínio que os tenha tantos. Um
selvagem nos julga mais sadiamente que um filósofo," (Op. cii., pág. 550.)
que são frutos da vaidade:
"Cada qual bem sabe que seu sistema não tem mais fundamento que os outros; sustenta-
o, porém, porque é seu. Não existe um só que, chegando a conhecer o verda
1) C segu as Oes csssssplèles, Pans. Didot ei C iJ
deiro e o falso, não prefira a mentira que encontrou à verdade descoberta por outrem."
(Op. cii., pág. 568.)
Para isso, porém, cumpre afastar as preocupações mundanas, pois:
"O homem mundano está todo inteiro em sua máscara. Como não está, qua se nunca,
em si mesmo, é sempre estranho e se sente mal quando se vê forçado a
entrar em si. O que ele é nada lhe significa; o que parece. para ele, é tudo." (Op. cii..
pág. 539.)
Em suma, só a "luz interior" pode fornecer para a vida teórica e prática um critério que
os filósofos perdem, à força de sutilezas vãs:
"Tomei, pois, outro guia; e eu me disse: Consultemos a luz interior, ela me extraviará
menos do meu caminho do que eles ou, ao menos, meu erro será meu e me depravarei
menos seguindo minhas próprias ilusões do que me entregando às suas mentiras." (Op.
cii., pág. 568.)
O mesmo se dá em matéria de liberdade; o sentimento íntimo basta para provar-nos sua
existência:
"Como pode a vontade produzir uma ação física e corporal? Ignoro, porém sinto em mim
que a produz. Quero agir e ajo; quero mover meu corpo e meu corpo se move; mas que
um corpo inanimado e em repouso venha a mover-se por si mesmo ou produza o
nsovimento, eis o que é incompreensível e sem exemplo. A vontade me é dada a
conhecer por seus atos, não por sua natureza. Conheço essa vontade como causa motriz;
conceber, porém, a matéria produtora do movimento é claramente conceber um efeito
sem causa, é não conceber absolutamente nada." (Op. cii,, pág. 571.)
A alma humana é imaterial, portanto, imortal. Para afirmá-lo, invoca
Jean-Jacques argumentos morais e não foi sem razão que se pôde aproximar a
Profession de foi du vicaire .savoyard da Crítica da razão prática. Pois, é a
mesma argumentação ética:
"Quando eu não tivesse outra prova da imaterialidade da alma a não ser o triunfo do mau
e a opressão do justo neste mundo, só isso me impediria de duvidar dela." (Op. cii.. pág.
578.)
Também aqui, as altas especulações metafísicas ou teológicas devem ceder o passo a uma
exigência moral. Uma exigência que não se poderia impunemente "recalcar", como hoje
se diria. Pouco importa, por isso, saber se os maus serão, ou não, condenados a tormentos
sem fim. "Para que ir procurar o inferno noutra vida? Ele já existe aqui mesmo, no
coração dos maus." (Op. cii., pág. 579.)
"Fala-se do brado dos remorsos, que pune em segredo crimes ocultos e os põe tanta vez
em evidência, Ai! Quem de nós não ouviu um dia essa voz importuna? Fala-se por
experiência; e haveria quem quisesse sufocar esse sentimento tirânico que nos dá tantos
tormentos ,. .j O mau se teme e foge; distrai-se, lançando-se para fora de si mesmo; atira,
à sua volta, olhares inquietos e procura objeto que o divirta; sem a sátira amarga, sem a
zombaria insultuosa, estaria sempre triste; o riso escarninho é seu único prazer."
(Op. cii., pág. 582.)
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Só o que importa é o princípio inato de justiça e de virtude no fundo das
almas:
"A consciência é a voz da alma, as paixões, a voz do corpo." (Ibid., pág. 581.) Contra
a doutrina do interesse como móvel das ações humanas, susten tada pelos
enciclopedistas, Rousseau observa com vigor que o justo pode concorrer para o bem
público, em detrimento de seus próprios interesses:
"Que é procurar a morte para seu interesse?" E o famoso hino de Rousseau à
consciência aparece, assim, como o correspondente lirico do imperativo categórico de
Kant:
"Consciência! Consciência! instinto divino, voz imortal e celeste; guia seguro de um ser
ignorante e limitado, mas inteligente e livre; juiz infalível do bem e do mal, que tornas o
homem semelhante a Deus! és tu que fazes a excelência de sua natureza e a moralidade
de suas ações; sem ti, nada sinto em mim que me eleve acima dos animais, nada além
do triste privilégio de perder-me de erro em erro guiado por um entendi mento sem
regra e uma razão sem princípio." (Op. cii., pág. 584.)
Convém lembrar o extraordinário impulso dado pelo cidadão de Gene bra ao que deverá
constituir, mais tarde, o domínio da pedagogia e da psico logia da criança. Fora
impossível exagerar a força explosiva do Emile a esse respeito, ou a eficácia de sua
apaixonada reivindicação em favor da humani dade e de seus direitos à plena liberdáde
de desenvolvimento espiritual e, ao mesmo tempo, em favor da própria infância, em sua
realidade diferente da realidade do adulto e com suas exigências próprias. E a eficácia do
grandioso protesto de Rousseau contra tudo quanto pareça, para esse livre desenvol
vimento do ser humano, um entrave ou uma mortificação.
Rousseau concebe a educação como a própria formação da vida espi ritual, inseparável
de uma liberdade que não poderia admitir nenhuma inge rência extrínseca. Esse modo
de ver implica, como em Sócrates, a inerência dos valores no espírito humano, uma fé
robusta em seu desenvolvimento espontâneo. Não é que se vá reencontrar, em Jean-
Jacques, o inatismo platô nico. Seguindo a escola de Locke, ele está convencido, ao
contrário, de que tudo nos vem da experiência. Tudo, excetuada a natureza livre e
perfectível do homem, constitutiva de sua essência autêntica e que o indivíduo está em
condições de experimentar em si mesmo, uma vez colocado sob condições favoráveis a
esse desabrochar. E assim que Rousseau distingue entre educação positiva e educa çlo
negativa:
"Se o homem é bom por natureza, como creio haver demonstrado, segue-se que ele
assim permanece enquanto nada de estranho a ele o altera; e se os homens são maus,
como tiveram o trabalho de ensinar-me, segue-se que sua maldade vem de algures;
fechai, pois, a porta ao vício e o coração humano será sempre bom. Com base neste
princípio, estabeleço a educação negativa como a melhor ou, antes, a única boa; faço ver
como toda educação positiva segue, como quer que se proceda, uma rota, oposta a seu
fim; e mostro como se tende para o mesmo fim e como a ele se chega pelo caminho que
tracei." (Letire a Christophe de Beautnoni.)
Semelhante distinção reaparecerá muito mais tarde, subjacente àquela que psicólogos da
infância (como Edouard Claparède, fundador em Genebra,
em 1912, do Institut Jean-Jacques Rousseau, tornado Instut des Sciences de l'Education)
estabelecerão entre escola ativa e escola passiva, atribuida à primeira a virtude de
favorecer o livre desenvolvimento da personalidade na criança e atribuído, à segunda, o
defeito de exigir, de parte da criança, simples coerção. De modo geral, a psicopedagogia
deve a Rousseau a preocu pação de considerar a criança em si mesma e, não, como
adulto imperfeito.
Com a psicologia da criança ocorre o mesmo que com a psicologia sem mais: implica
muita vez toda uma concepção do homem. Em Rousseau, a sistematização nesse
domínio se ressente da ambigüidade de que se reveste, para ele, a expressão "boa
natureza". Na medida em que seu pessimismo histórico o leva a ver na civilização uma
realidade fortuita, sem fundamento natural no homem primitivo, trata-se,
essencialmente, de preservar a criança, que deve, de certo modo, assumir o conflito
instaurado por Jean-Jacques entre indivíduo e sociedade:
"A educação negativa"... "não dá as virtudes mas conjura os vícios; não ensina a
verdade, mas preserva do erro; dispõe a criança a tudo que pode levá-la ao verdadeiro
quando se acha em estado de entendê-lo, e ao bem, quando se encontra em estado de
amá-lo." (Ibid.)
Reside a dificuldade na própria tentativa de normalizar essa educação negativa.
Arbitrariamente subtraido à influência da sociedade, o jovem Emílio evolve por fases de
um desenvolvimento artificial; e isso lembra, então, menos o ensino vivo de Sócrates do
que as concepções abstratas de Platão na República.
6. A psicologia espiritualista de Condillac
O abade Etienne Bonnot de Condillac (1715-1780), se jamais exerceu função sacerdotal,
se, em certo sentido, revela inspiração semelhante àquela que caracteriza a das Luzes, se
invoca, enfim, a seu favor a garantia da obser vação e da experiência como fundamento
de uma ciência psicológica, procura salvaguardar os dogmas cristãos e, se põe em relevo
a significação primária e única das sensações, é com esta reserva metafísica: os sentidos
não são senão ocasionalmente a fonte do conhecimento humano, e a alma, antes do
pecado original, podia conhecer sem a mediação deles. Quanto à imortalidade da alma,
que parece comprometida por uma psicologia puramente sensualista, Condillac deseja
preservá-la, supondo que Deus, após a morte, substitui os sentidos desaparecidos por
meios que escapam ao nosso entendimento.
Ao afirmar, porém, em oposição ao materialismo, o essencial da fé cristã, Condillac se
propõe, como objeto único de estudo, a alma em sua união com o corpo, considerando
que a experiência só consegue alcançar esse estado. Discípulo de Locke, entende
manter-se no terreno da descrição e da análise, para nele dedicar-se a uma pesquisa
influenciada (como a de Hume) pela física newtoniana, pois se esforça por descobrir,
para o espírito, um equivalente da lei de gravitação no mundo físico. Em sua primeira
grande obra, Essai sur l'origine des connaissances humaines (1746), o problema central
é o da linguagem em relação com o pensamento. Suas obras póstumas, aLogique (1780)
e aLangue des calcuis (1798), acentuam sua exigência lógica
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de uma radical inteligibilidade; e tanto que seu pensamento se caracteriza, ao cabo, por
um formalismo lógico que exclui implicitamente todo irracional ou inconsciente. Já noEs
as "operações da alma" assumem o sentido de uni dades matemáticas. Trata-se de mostrar
como as faculdades da alma nascem sucessivamente da sensação. E a análise do processo
cognitivo, que tende a esclarecer a passagem das faculdades elementares - vindas
diretamente dos dados sensíveis - para aquelas que distinguem o homem do animal, é
uma adição das operações intelectuais (memória, imaginação, comparação, reflexão,
etc.).
Se Condillac pretende, na esteira de Locke, remontar à origem de nossas idéias, seguir-
lhes a geração, o progresso e a ligação crescente, preten de, ao mesmo tempo,
demonstrar, contra a hipótese lockista de uma miste riosa atividade do entendimento
presidente a toda reflexão consciente, que a formação da linguagem é condição
necessária e suficiente para a ascensão progressiva da sensação à reflexão. A linguagem
implica o pensamento refle xivo e vice-versa:
"Procurei fazer aquilo que o filósofo havia esquecido; remontei à primeira operação da
alma e, parece-me, não só apresentei uma análise completa do entendi mento, como
ainda descobri a absoluta necessidade dos sinais e o princípio da ligação das idéias."
(Essai sur l'origine dei connaissances humaines, parte 11, sec. 11, cap. II 1, § 39.)
No Traité des sensations (1754), sem dúvida pressionado por certas observações críticas
de seus contemporâneos, dentre as quais as de Voltaire e de Diderot( 1), enfrenta novo
problema: o do mundo exterior, da objetivação de impressões que - conquanto
experimentadas como maneiras de ser - não dependem do sujeito cognoscente. Como se
descobre ao espírito a realidade dos corpos? Como pode o sujeito construir uma
representação completa do mundo?
Cuidoso de distinguir sua doutrina da de Berkeley, procura Condilac demonstrar como o
espírito é levado, da impressão interior experimentada pela consciência, à percepção de
uma realidade exterior. E nesse processo atribui papel preponderante ao tacto, na
medida em que representa o funda mento da idéia de exterioridade, completados pelos
outros sentidos, os dados tácteis, a fim de concorrer para o conhecimento. Trata-se de
mostrar que o sentimento de objetividade se foi-ma gradualmente, a partir de dados
sensíveis inteiramente subjetivos e que a continuidade preside a uma progressão na qual
todas as formas da vida psíquica estão envolvidas. No Essai, tanto como no Traité, não se
trata apenas de progressão regular, mas de verdadeira iden tidade entre todas as
faculdades do espírito, concebidas como assimiláveis umas às outras. Assim é que o
Essai reduz a formação das idéias complexas à invenção da linguagem, por meio da
reflexão; e reduz a invenção da lingua gem, por meio da imaginação e da atenção, a
simples dados sensíveis.
Noutra perspectiva, o mesmo é sugerido no Traité, onde o estudo do juízo de
exterioridade visa a demonstrar uma identidade, explicados os conhecimentos humanos
pela objetivação das impressões recolhidas pelos
(1) V.págs
sentidos; e a objetivação, por maneiras de ser puramente subjetivas. Trata-se sempre de
demonstrar que uma operação psíquica, por complexa que seja, é sempre assimilável a
uma operação mais simples, e esta a outra ainda mais simples, ao ponto de que, no
entendimento, não se encontra, em última análise, senão uma realidade: a sensação pura,
apreendida pela consciência. A consciência nos dá a conhecer nossas percepções "como
influentes, malgrado a variedade e a sucessão, num ser que é constantemente o mesmo
nós". (Estai, parte 1, sec. II, cap. 1.)
Condilac julga que a sensação, elemento originário das faculdades mentais, nos situa,
logo à primeira, na ordem do espírito, de natureza dife rente da ordem material. A
solução consistente em assimilar o ser vivo à matéria parece-lhe levar diretamente ao
materialismo. E o psiquismo animal? Segundo Condilac, já pertence à ordem do espírito.
A experiência lhe parece demonstrar suficientemente que não se poderia negar aos
animais a capaci dade de sentir (Traité des animaux, parte 1, cap. II). Os animais
recebem impressões sensíveis dos objetos e daí experimentam sentimentos agradáveis ou
desagradáveis. Disso lhes nascem necessidades que, por sua vez, suscitam hábitos e
conhecimentos, ao sabor de tateios, a princípio e, depois, sob a forma de conduta mais
adaptada. Ora, o mecanicismo não seria capaz de explicar essa coordenação de atos
encontrada nos animais e cumpre reconhe cer-lhes a memória e juízos sumários. Se a
vida psíquica animal, cuja obser vação pode ser muito útil para melhor conhecimento do
homem, é muito limitada, ultrapassa as fronteiras da matéria; tal como a vida humana,
com a aparição da linguagem, se torna capaz de elevar-se até Deus. Existe realmente
entre os animais certo tipo de linguagem, embora rudimentar e limitada a necessidades
restritas. E com o homem que aparece a linguagem superior, que forma um todo com o
pensamento reflexivo. Condillac, porém, não é de opinião que, por isso, exista radical
heterogeneidade entre o instinto animal e a razão humana e que essa aparição do
pensamento abstrato signifique ruptura de continuidade. Trata-se, a seu ver, de diferença
de grau, e a reflexão vem romper o jogo dos automatismos quando se faz necessária
uma conduta nova.
Com isso, Condillac está mais perto de Aristóteles que de Descartes. Observa,
igualmente, que a faculdade de abstrair é própria do homem; é ela que lhe permite entrar
em si mesmo e sair de si mesmo; é por ela que ele pode tornar-se, como a natureza,
objeto de suas próprias observações (Traité des ani,naux, parte II, cap. V). E então que a
vida humana produz a arte, a ciência, a moral, a religião; que se torna capaz de elevar-se
até a idéia de Deus para reconhecer nele o primeiro princípio, a causa de nossas maneiras
de ser e até de nossa existência (Traité des animaux, parte II, cap. VI). A exemplo de
Rousseau, insiste Condillac na vontade livre do homem, em sua capacidade de julgar as
circunstâncias nas quais se acha, para submeter-se, ou não, a elas. Encontram-se, em sua
obra, igualmente, elementos de psicologia patológica (o alienado é escravo de sua
imaginação; a loucura reside, principalmente, na perturbação da associação das idéias, a
imbecilidade na deficiência dela; a ilusão, como os sonhos, provém de uma projeção da
impressão cerebral sobre o órgão sensorial...). A todos esses elementos dava Pinel grande
importância, julgando-os indispensáveis para conhecer as alterações e perversões das
funções do espírito.
222
223
É fácil observar que sua teoria apresenta certa ambigüidade quanto à natureza do eu. E
famoso seu artifício da estátua que é pura sensação de odor, comparada à alma
desprovida de seus hábitos e reduzida ao estado de um eu orgânico, dotado apenas de
sensações e necessidades. Mas, dando assim total relevo à sensação em suas relações
com os objetos, Condillac não explica essa capacidade de refletir e voltar sobre si
mesmo que Maine de Biran se esforçará por destacar em sua autonomia em relação às
condições fisiológicas, e que já constitui uma preocupação para o contemporâneo
Charles Bonnet.
7. O "sonho ousado" de Charles Bonnet
A obra considerável do naturalista genebrino Charles Bonnet (1720- 1793), a quem
tiveram o mérito de entusiasmar as Mémoires sur les insectes de seu mestre Réaumur,
ocupa um lugar assinalado na história da biologia, da botânica, da fisiologia, da
zoologia( 1); interessa, porém, igualmente à história da psicologia, pois Bonnet é o autor
de um Essai de psychologie (2) que se prolonga em.outras publicações da mesma
ordem(
Bonnet era consciente da inovação constituída por sua tentativa de fundar a psicologia
na fisiologia(
Seu vocabulário, em pleno século XVIII, só por si atesta a originalidade que aprouve a
Edouard Claparède salientar:
"Psicologia experimental, psicofísica, psicómetro... eis expressões bem modernas; um
século, entretanto, antes de Fechner, que mantém o título de fundador da psicometria,
estes neologismos tinham sido pronunciados e impressos por um naturalista de Genebra,
Charles Bonnet, que já acalentava o sonho ousado de ver a psicologia fundada não só na
experiência, mas até na experimentação e na medida(
Mas Claparède, embora considerando que seu compatriota deveria ser reconhecido
comó o primeiro autor da teoria da "energia específica dos nervos", fala com razão de
um "sonho ousado". Isto porque a realização o foi menos.
Seria para admirar, numa época em que as controvérsias fomentadas pela solução
cartesiana das duas substâncias não se tinham aplacado e em que as condições culturais,
dominadas pelo defrontar de idéias que empenhavam o destino do homem, não eram
nada favoráveis à instauração de uma psico logia como ciência "neutra"? E, o que ainda
é mais, não se pensava mesmo que a ciência pudesse ter outros objetos de estudo além
dos fatos materiais.
(1) Com vinte anos, sua descoberta da partenogênese dos afídios lhe valeu ser nomeado
correspondente da Academia de Cidacias de Paris. Fontenelle ,'egnan(e.
(2) Essa, de psvchologie; ou considération sur les opérauons de ldnie. sur /hah,iude e,
sur l'éducui,on. Leyde. Étie Luzac, 1754.
(3) Essai ainslyiique sue les facultés de /'âme, Copenisagsie, Phitibert, 1760;
Considérations sue les corps organisés, Amsterdã, Michel Rey, 1762.
(4) "Não conheço nenhum autor que tenha seguido o mesmo caminho que eu" (Prefácio
do Esuai analytiqae); a propósito do hábito, cujo fundamento procura encontrar nos
processos orgânicos, observa que "timitaram-se o mais freqüentemente a puras
generatidades, morais quase todas". (Mémoires autobiographi çiues.., pubticadas por
Raymond SAVIOZ, Paris, Vrin, 1948. pág. 173.)
(5) Édouard CLAPARÈDE. La psvcliologie as de Charles Eon,,et. Genebra, Georg.
1909.
O próprio Bonnet, convicto partidário dos novos métodos de pesquisas e de
experimentação (ele arruinou a vista no microscópio), era em sua cidade um "notável"
muito apegado à tradição protestante, reverenciada na sua família e na da esposa, e
alérgico às novas idéias dos "filósofos" de seu tempo. Foi assim que ele combateu a
Rousseau e contribuiu eficazmente para sua condenação em Genebra, embora poupando
o poderoso senhor de Ferney, mais do que este o poupou afinal( 1)
Em suma, se estudar objetivamente folhas, insetos e vermes de água doce não formulava
nenhuma dificuldade para a consciência do naturalista Bonnet, o estudo que se propunha
introduzir em psicologia não podia abstrair-se dos conflitos ideológicos de sua época,
vividos por ele com mentali dade conservadora. Com antipatia congênita pelo
materialismo, mas conside rando por outro lado que o idealismo de Berkeley, por sua
indiferença da vida orgânica, "força muito a nossa maneira natural de ver e de julgar"
(2), é no âmbito da solução cartesiana das duas substâncias que ele situa as suas
pesquisas. Seu esforço visará, pois, a fazer depender dos movimentos das fibras
nervosas e cerebrais o desencadear dos processos mentais, consideran do, porém, que
este aspecto fisiológico constitui apenas um dos pólos da reali dade humana,
inexplicável sem o recurso a uma alma imaterial:
"Em virtude da união das duas substâncias, nada poderia se passar na alma sem alguma
coisa no corpo que lhe corresponda. Esta coisa busquei-a sempre, não me gabo de tê-la
sempre encontrado, e o mais das vezes não consegui senão entrevê-la(
A prova da necessidade de admitir uma alma imaterial lhe parece dada pelo fato de as
noções de extensão e de movimento oporem-se à unidade, à simplicidade, à
indivisibilidade do eu (4) Na percepção, observa, tal como intervém por exemplo na
comparação entre dois objetos, é mister que às sensações ligadas a cada um dos objetos
comparados se acrescente o ato que permite justamente esta comparação, e um tal
processo não é redutível a movimentos materiais(
Reflexões desta ordem o apartam do ensino cartesiano no concernente à vida dos
animais. Neles ver apenas autômatos, julga ele, exige da máquina animal tal
complicação que é mais simples admitir um princípio senciente e ativo, distinto da
matéria. Sem tal princípio como explicar inúmeras combina ções atestadas por certas
atividades animais? A este respeito invoca a analogia que se apresenta entre a
organização dos grandes animais e a do homem, parecendo-lhe que esta se situa bem
mais num sentido de parentesco no que de rompimento com relação àquela.
(1) Os dois homens fingiam não se conhecer, mas quando BONNET pubticou em 1769,
sob a inspiração do pensamento de LEIBNIZ, a quem admirava, uma Pa/irigéxésie
phiiiosopliique. a verve cáustica de VOLTAIRE não se pôde conter: "Não sei qual
sonhador de nome BONNET, numa seleção de facécias, chamadas por ele de Pahngénés
parece estar persuadido de que nossos corpos ressuscitarão sem estômago e sem as partes
dianteira e traseira, mas com fibras intelectuais e cabeças excelentes. A de
BONNET se me afigura com um parafuso de menos..." (Dieu ei/es hommes. Berlim,
t769.)
(2) Mémoi,'es autobiogruphiçsues..., isp. c pág. 171.
(3) Analyue abrégée de l'Essai aisalytique. V edição de Neuctsãtet, op. cii., 1. VII, pág.
9.
(4) Essa, de psychologse..., op. ci caps. XXXV e XXXVI ("De la simplicité ou de
l'immatériatité de
t'âme").
(5) Prefácio do Essai analyii que (3t cd.. Copenhague e Genebra, 1775, pâg. XXVI).
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225
Assim é que, após ter tratado da alma humana antes da aquisição da linguagem, declara:
'O que acabo de dizer sobre a Alma humana carente da palavra pode aplicar-se à Alma
dos Animais, Princípio imaterial, dotado de Percepções, Sentimento, Vontade,
Atividade, Memória, Imaginação, mas que de modo algum reflete sobre suas Opera
ções, generaliza suas Idéias, ou é suscetível de Mora/ida de(I)."
Bonnet conserva, todavia, do ensino cartesiano a precaução contra o antropomorfismo
que se introduz de modo espontâneo na explicação do comportamento animal. E,
desconfiando ele próprio dos alvos que a este se determinam muito facilmente,
preocupa-se, ao pesquisar na direção da estru tura corporal e do papel dos excitantes
externos, em encontrar uma expli cação causal:
Voí exaltais a indústria do bicho-da-seda na construção de seu casulo: exaltais uma
quimera. O bicho-da-seda constrói um casulo porque o constrange a necessidade de fiar.
Dá ao casulo a figura elíptica porque, forçado às vezes de dobrar o corpo na disposição
de um anel, outras na forma de S, constitui assim uma espécie de molde que determina
mecanicamente a figura e a proporção do casulo(
Em relação às abelhas, por exemplo, considera absurdo pensar que acumulam provisões
para o inverno, sendo unicamente verdade que recolhem o mel e cera. E a explicação
deste fato deve ser procurada "nas relações exis tentes entre as flores e a constituição
psicofísica das abelhas". Atraídas para as flores "pelos corpúsculos que destas emanam",
elas "encontram prazer de aí exercer sua atividade, e de fazê-lo de certo modo(
Quer se trate das abelhas, dos pássaros ou dos castores, a capacidade de exercer, sem
aprendizado nem imitação, atividades que, à primeira vista, parecem resultar de longo
hábito ou prévia reflexão, induz Bonnet a postular a adaptação de certa estrutura
orgânica a necessidades e a um gênero de vida determinados. Essa a razão por que
busca a explicação em direção do organismo, particularmente na parte da estrutura
cerebral onde pensa deva existir um sistema de fibras correlativo a estas atividades e aos
meios de exercê-las.
Está-se, pois, em presença de uma disposição inata, e isto levanta o problema de sua
origem. Hoje, a psicologia animal pode invocar o concurso da fiogenia. Para Konrad
Lorenz, por exemplo, o ilustre observador dos animais em semiiberdade, a seleção e as
mutações são os dois artífices de uma evolução que pode explicar estruturas das
espécies( A isto evidentemente se chegou, porque houve, desde os trabalhos de Bonnet,
os de Lamarck e sobre tudo os de Darwin. Menos bem armado para enfrentar o
problema, o natura lista genebrino, voltando-se para Leibniz, vê nestas estruturas inatas
um dom da natureza, e admite uma pré-formação, desde a origem do mundo, de todos os
seres destinados a habitá-lo, e uma "lei secreta" que preside à conservação das espécies e
das sociedades animais.
(1) Ess Londres, MDCCLV, pág. 24.
(2) Ibjd., cap. VIII, pág. 322.
(3) Ibid., cap. VIII, págs. 322-323.
(4) CI. nosso cap. XXII. §4.
Em relação ao papel dos excitantes externos (já mencionado na citação referente às
abelhas) é a atualidade das sensações e o grau de sua intensidade que determinam os
movimentos do animal. A atividade deste fica assim submetida ao "princípio do prazer",
como hoje se diz, na esteira de Freud.
Até as manifestações atribuídas ao "amor maternal" se ligam, segundo Bonnet, a este
princípio:
"Vós estais sensibilizados com o apego da cadela por seus filhotes; enobreceis este apego,
e o elevais à condição de ternura refletida; vós vos equivocais; a cadela gosta dos filhotes
porque gosta de si mesma; eles lhe contribuem ao bem-estar atual, quer aliviando suas
mamas de um leite multo abundante, quer provocando nas partes
nervosas um titilar agradável( 1)."
O "prazer" deve explicar em suma a persistência das sociedades animais:
"As abelhas, as formigas, os castores, etc., nascem em sociedade; nela são reti dos pelos
prazeres, e vinculam-se a este estado. Os prazeres se fundamentam na cons tituição do
animal, e ele os prova desde o nascimento; quanto mais os prova, mais se estreitam os
liames com a sociedade. Daí, a conservação desta. O prazer é a voz da natureza. Todo ser
senciente obedece a esta voz; é ela que chama a abelha para a colmeia, a formiga para o
formigueiro, o castor para a cabana(
Ora, sendo subjetivo o fato de experimentar prazer, Bonnet vê nele, no âmbito de suas
pesquisas, uma nova prova da existência de uma alma no próprio animal.
Mas como se acha unida ao corpo esta alma imaterial? A respeito do problema, Bonnet
confessa ignorância. A união constitui a seus olhos uma verdade de fato ao mesmo
tempo que um mistério impenetrável. Recorre, a este respeito, e sob duplo aspecto, à
noção de força (força inerente à máquina corporal, força motora da alma), contentando-
se com admitir a interação das duas substâncias como um "fenômeno" cujas "leis" restam
a estudar.
Esta reserva, aliás, não o impede de falar da "sede da alma" como de uma
"maquinazinha prodigiosamente composta", que representaria em ponto pequeno todo o
sistema nervoso, e de compará-la a um cravo ou órgão( cujas "teclas" (as fibras
sensoriais) são movidas às vezes pelos objetos, às vezes pela "força motora" da alma.
Sobre, este sensorium, porém, mostra-se muito prudente, e o essencial é para ele saber
que a alma está de certo modo presente no cérebro, e no corpo através do cérebro.
Quando expõe, em seu Essai de psychologie, as primeiras manifesta ções da vida
sensitiva, remontando à do recém-nascido e mesmo à do feto, trata-se, pois, sempre, das
"operações da alma"; de uma alma cuja força motora, a partir do tacto, se modifica para
aparecer-nos sob o aspecto da imaginação, da memória, da vontade, da atenção, etc.
Em seu Essai analytique, para dar uma idéia do desenvolvimento progressivo das
faculdades humanas, imagina, como Condillac, uma estátua
(1) Ess op. n cap. VIII, pág. 324.
(2) Ibid.
(3) Méotoit'es autobiog, op. ci., Carta IX, págs. 145-164.
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animada gradualmente, e ele próprio vê também no olfato a primeira sensa ção que abre
um mundo exterior, e a partir da qual nascem as outras sensa ções. Todavia, menos
radicalmente empirista que o autor do Traité des sensa tions, valoriza a atenção que para
ele não é absolutamente uma simples crista lizáção do sentir; ela manifesta a seus olhos o
despertar da consciência, e com isso uma influência da alma sobre o cérebro (1).
Excetuada esta diferença, ele também admite que todas as nossas idéias têm como
origem primeira os sentidos, e preocupa-se com a "mecânica secreta" que preside à
produção e à reprodução delas. Pensa que na repetição mais ou menos freqüente dos
movimentos nas mesmas fibras, sobretudo durante a vida infantil, é que é mister buscar a
origem dos gostos, inclinações, costumes, caráter; também está persuadido de que a
educação não devera nunca perder de vista o papel e a importância do intermediário
representado pelo corpo. Este assunto ainda, mutatis mutandis, lembra Freud forçosa-
mente.
Muito tempo após a publicação de seu Essai de psychologie, teve ensejo de deplorar que
suas idéias em matéria de educação tenham sido eclipsadas pelas do Emílio:
"Sois gratos a Rousseau de ter-se insurgido contra o ridículo procedi mento de falar de
Deus às crianças. Oito anos antes de aparecer o Emílio. o autor da Psicologia [ de
psychologieJ tinha dito as mesmas coisas e, parece-me, com mais precisão, no capítulo
LXXXI da Instrução das crianças(
Durante sua vida, Bonnet foi um cientista de grande reputação, como o atestam por si sós
os títulos que seguem seu nome de autor em 1760 (estava então com quarenta anos), ao
publicar oEssai analytique(
Naturalista por um aspecto de sua personalidade, era ademais leitor e ad mirador de
Malebranche, Leibniz e Montesquieu, e sua obra encerra igualmen te especulações
metafísicas e religiosas que se relacionam com suas crenças e sua imaginação( Pôde
exercer, pelo duplo aspecto de suas obras, uma influência sobre espíritos de diversa
orientação( sua Palingénésie gozará de grande aceitação entre os místicos e os
iluminados da época revolucionária.
E hoje em dia?
Pela maneira de conduzir-se, superpondo a um comportamento empí rico - e de
tendência organicista - o princípio metafísico de uma alma imaterial, a doutrina de
Bonnet faz época incontestavelmente. Seus caracteres fundamentais (o corpo, o
movimento, a força, a alma) nela aparecem como
(1) "A atenção é. pois. uma ,,,od,jic'ação da atividade da alma: ou. para expressar.nte em
outros termos, eia é certo exercício da força motora da alma sobre as fibras do cérebro."
(Esoay analylt que.... Copenhague e Genebra, MDCCLXXV. t. 1, cap. Xl, pág. 86.)
(2) Carta de 4 de novembro de 1763 ao conde de BENTINCK. grande admirador de
ROUSSEAU (citada por Raymond SAVIOZ. La philosop/tie de Charles Bo,t,tet de
Ge,têt'c. Paris, Vrin. 1948, pág. 45).
(3)"... de ia Société Royale d'Angielerre, de l'Académie Royale deu Sciences de Suhde,
de t'Académie de l'Institut de Bologne, Correspondant de l'Académie Royale deu
Sciences et deu Sociétés Royales de Montpetlter. et de Gttingue."
(4) Contemplution de ia nature, Amsterdã, 1764; Palingénésiephilosophtque. Genebra,
1769; Recherches philonophiques sur les preuves du christianisme, Genebra, 1770, etc.
(5) O Sr. Raymond SAVIOZ trata desta inflodncia no cap. XVI de sua tese, La
ph,losophte de Charles Bo,rnet, Paris, Vrin, 1948.
demasiado justapostos, e sua tentativa de descrever a "economia de nosso ser",
reconstruindo o concreto com elementos empíricos abstratos, prejudica sua exigência
genética, de aspecto bastante obsoleto após Kant e Darwin.
De sua obra, contudo, independentemente de seu esqueleto ultrapas sado, permanece
válido o apelo de fundar a psicologia no estudo das corre lações observáveis entre a vida
psíquica e os processos fisiológicos. Não era o único, mas era um caminho, hoje
prolongado pela psicofisiologia. Certamente que os novos conhecimentos adquiridos no
domínio do funcionamento cere bral e nervoso, como as descobertas no âmbito da
endocrinologia, singular- mente enriqueceram e complicaram o aspecto desta correlação
que Bonnet julgou por seu lado descobrir no impulso mais ou menos forte de
certasfibras; mas o problema que ela lhe formulava, e que ele tentou encarar com o instru
mental da sua época, subsiste em profundidade sempre que se pretende explicar
fisiologicamente a vida psíquica.
8. A psicofisiologia de Cabanis
Admitindo embora que a sensibilidade física é a fonte das idéias e dos hábitos humanos,
o médico Pierre-Jean-Georges Cabanis (1757-1808), perten cente ao grupo dos ideólogos
(1), bem percebeu a ambigüidade da doutrina de Condillac quanto à natureza do eu. O
gosto pela experiência e o espírito critico se aliam, nele, a uma fé robusta no progresso da
ciência.
Transferindo-se (Ano VIII) da cadeira de clínica interna para a medi cina legal e história
da medicina, Cabanis se preocupou com a organização dos hospitais (Observations sur les
hôpitaux, 1789), propôs reformas para os asilos de alienados e para as escolas de
medicina. Em sua opinião, porém, os progressos da ciência estão condicionados por um
método que, desconfiando das teorias especulativas, se contentará com a observação
escrupulosa dos fenômenos a fim de induzir certas conseqüências de seu encadeamento.
Cabanis não põe em dúvida que as ciências naturais devam englobar o estudo do homem,
nem que as questões morais possam ser esclarecidas pelo estudo dos
fenômenos físicos. Por isso, é tratando desses dois aspectos ao mesmo tempo que
procura fundar nova ciência do homem. No fim do ano II e começo do ano III, no
Institut (criado pela Convenção) leu as seis primeiras Memórias de seu estudo sobre os
Rapports du physique et du moral de l'homme.'
'Permiti, pois, cidadãos, que eu vos entretenha hoje com as relações entre o estudo físico
do homem e o estudo dos processos de sua inteligência; com as existentes
(1) Sabe que CABANIS recebia seus amigos "ideólogos" na casa que lhe legara Mmc
HELVÉTIUS, em Auteuit. A ideologia, filosofia ensinada na França na época da
Revolução e do Império. visava a uma análise das idéias baseada na observação dos
fenômenos, no sentido daquilo que entendemos hoje por psicologia. Seu chefe, DESTU
DE TRACY (1754.1836), discípulo critico de CONDILLAC. homent soltado para o
concreto, conheceu as honras políticas (foi um dos trinta primeiros senadores); amigo de
CABANIS, embora apareça como precursor de MAINE DE BIRAN. na medida em que
põe em relevo um etemento ativo do sujeito - que julga indispensável a percepção
Eléntrois d'idíologie. Paris, 1804) - também acreditava na intima ligação entre o fisico e o
moral. Seu discípulo LAROMIGUIERE (1756.1837), que exerceu grande influência em
VictortOUSIN. faz a junção entre a ideologia e o espiritualismo renascente. Anátoga
inspiração pode ser encontrada em ROYER (l763 1845). Esses homens, que haviam
descoberto a chamada filosofia "escocesa" (Thomas REID e Dugatd STEWART)
opunham ao sensualismo de CONDILLAC um principio ativo da alma e seus poderes
inatos.
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entre o desenvolvimento sistemático de seus órgãos e o desenvolvimento análogo de
seus sentimentos e de suas paixões; relações essas de que resulta claramente que a
fisiologia, a análise das idéias e a moral, são apenas os três ramos de uma única e
mesma ciência que se pode chamar, com toda justeza, a ciência do homem.
Em nota, acrescenta:
"É o que os alemães chamam de Antropologia; e, sob esse título, compreendem, com
efeito, os três principais objetos de que falamos.( 1)"
Em que consiste exatamente o ato da sensibilidade? Supõe sempre a consciência e uma
percepção distinta? Devem-se relacionar com qualquer outra propriedade do corpo vivo
as impressões não percebidas e certas deter minações nas quais a vontade não toma
parte? Tais as principais questões que o filósofo se propõe resolver.
Esse médico, que louva Hipócrates por haver colocado a medicina em seu caminho
natural da experiência apoiada no raciocínio, e atribui a essa ciência grande papel no
aperfeiçoamento da espécie humana, que ardente mente deseja, era muito versado em
filosofia, familiarizado com numerosos autores antigos e modernos. Entre os últimos,
admira Francis Bacon, que "veio abrir novas rotas para o espírito humano"; Descartes,
cujos erros "não devem fazer esquecer os imortais serviços prestados às ciências e à razão
humana"; Locke, por motivos óbvios; Charles Bonnet, a seu ver "grande naturalista, tanto
quanto grande metafísico"; Helvétius, cujo espírito era "sábio, extenso, profundo",
Condillac, por sua "razão luminosa" e seu "método perfeito", lamentando embora que
tenham faltado, aos dois últimos, conhecimentos de fisiologia que julga indispensáveis.
(Rapports du physique etdu moral del'ho,nme, L)
Cabanis está, pois, de acordo com todos quantos viram na sensibilidade física a origem
das idéias e dos hábitos humanos. O único princípio dos fenô menos é afaculdade de
sentir, que cumpre admitir como dado inicial:
"Não temos idéia dos objetos senão pelos fenômenos observáveis que eles nos
apresentam: sua natureza, ou sua essência, não pode ser, para nós, senão o conjunto
dessei fenômenos." (Rapports..., II.)
Uma vez, porém, admitido esse princípio, resta ainda que o acordo entre os filósofos
não é unânime:
"... Uns, como Condillac, podem crer que todas as determinações dos animais são
produtos de uma escolha fundada no raciocínio e, pois, frutos da experiência; outros
podem pensar, como os observadores de todos os séculos, que várias dessas
determinações não poderiam ser relacionadas com nenhuma espécie de raciocínio e que,
sem deixar, por essa razão, de ter sua fonte na sensibilidade física, se formam, na maioria
das vezes, sem que a vontade dos indivíduos nelas possa ter outro papel que o de melhor
dirigir-lhes a execução. E o conjunto dessas determinações que foi designado pelo nome
de instinto. "( Rapports.... II.)
(1) Qe' de C 1, Introdução por J. CAZENEUVE, pág. XXVIII.
Negando as operações do instinto e procurando reduzi-las às funções do raciocínio,
Condillac admitia implicitamente a existência de uma causa ativa. que não a
sensibilidade. Pois, como esta é destinada exclusivamente a produ zir juízos, revela-se
evidente que os movimentos vitais (digestão, circulação, secreção de humores...) devem
relacionar-se a outro princípio de ação (Rapports..., Prefácio). A preocupação de Cabanis
é, em suma, distinguir, de maneira mais nítida, nas operações da inteligência e das
funções orgânicas, o que cabe a estas ou àquelas. Assim, a ele se deve o haver
acrescentado, à análise das sensações externas de Condillac, a das sensações internas,
intro duzindo no campo da atividade cerebral as cenestesias. Observa que essas
impressões internas são, no mais das vezes, inconscientes. Trata-se das deter minações
manifestas, desde o nascimento, na criança e no animal, produtos, talvez, de sensações
que remontam à vida fetal; sua presença inicial obriga, porém, a admiti-las como
impulsos interiores.
A existência das determinações inconscientes, particularmente dos instintos de nutrição e
conservação, prova que nem tudo se pode explicar pelas impressões externas, à maneira
de Condillac. A esse respeito, Cabanis insiste na importância da sensibilidade
inconsciente, por ele chamada até de sensibilidade sem sensação, diferente da
irritabilidade:
nos movimentos orgânicos coordenados [ além daqueles ... que são determi nados por
impressões percebidas, há vários determinados por impressões das quais o indivíduo
não tem nenhuma consciência e que, na maioria das vezes, se furtam por si próprios à
observação dele; e entretanto, como os primeiros, cessam com a vida; cessam, quando o
órgão não tem mais comunicação com os centros sensíveis; cessam, em suma, com a
sensibilidade; são suspensos e renascem com ela. A sensibilidade é, pois, a condição
fundamental sem a qual as impressões das quais eles dependem não produzem nenhum
efeito, sem a qual nem mesmo têm existência, pois só nos são dadas a conhecer por seu
intermédio. Assim, como só chamamos de sensação a impressão percebida, há,
verdadeiramente, sensibilidade sem sensação." (Rapports. .. X, nota final do § IV.)
A sensibilidade física é o último termo ao qual chegamos no estudo dos fenômenos da
vida e a análise das faculdades intelectuais e das afecções da alma a ela nos reconduz.
Significa isto que o físico e o moral se confundem em suas origens. Para o ser vivo, só
existem causas que possam agir sobre seus meios de sentir; e só existem verdades
relativas à maneira de sentir geral da natureza humana.
Por outro lado, há perturbações: loucura, epilepsia, afecções extáticas, etc., que provam
não provirem certas impressões das extremidades sencientes, mas serem devidas ao
próprio sistema nervoso. Só elas permitem compreender as operações da memória e da
imaginação.
É para dar relevo à importância da vida fisiológica, atribuindo ao organismo a diferença
dos temperamentos, que Cabanis amplia o sensualis mo. Observando que as diferenças
morais e intelectuais não podem ser expli cadas pela diversidade das impressões
exteriores, e sim pela dos órgãos e, principalmente, pela dos sistemas nervosos,
estabelece uma espécie de inven tário das diferenciações mais constantes, de
conformidade com o sexo, o temperamento, a idade, o estado de saúde, o clima, os
hábitos, o regime. Como em La Mettrie, a interação se exerce aqui num sentido que
privilegia a
230
231
ação do organismo. Às diferenças e às modificações orgânicas correspondem diferenças e
modificações das idéias e das paixões. Os órgãos motores dos movimentos voluntários
são animados e dirigidos pelos órgãos sensitivos e os movimentos involuntários
dependem de impressões recebidas pelos órgãos e devidas à sensibilidade desses
órgãos:
"Não podemos mais, pois, ficar embaraçados para determinar o verdadeiro sentido desta
expressão influência do moral sobre o físico: vemos claramente que designa essa mesma
influência do sistema cerebral, como órgão do pensamento e da vontade, sobre os outros
órgâos dos quais sua ação simpática é capaz de excitar, suspender e até desnaturar todas
as funções." (Rapports..., Xl, § VIII, Conclusão.)
Não se poderia interpretar o pensamento de Cabanis num sentido que seria a admissão
do cérebro como simples instrumento de um pensamento imaterial; sua tendência
materialista parece inegável:
"Para ter idéia justa das operações das quais resulta o pensamento, cumpre considerar o
cérebro como órgão particular, especialmente destinado a produzi-lo; tal como o
estômago e os intestinos são destinados a realizar a digestão, o fígado a filtrar a bílis, as
parótidas e as glândulas maxilares e sublinguais a preparar os sucos salivares. Chegando
ao cérebro, as impressões fazem-no entrar em atividade; como os alimentos, caindo no
estômago, o excitam à secreção mais abundante de suco gástrico e aos movimentos que
lhes favorecem a própria dissolução. A função própria de um é perce ber cada
impressão particular, associar-lhe sinais, combinar as diferentes impressões, compará-
las entre si, delas tirar juízos e determinações; como a função do outro é agir sobre as
substâncias nutritivas cuja presença o estimula, dissolvê-las, assimilar-lhes os sucos à
nossa natureza." (Rapports..., II, § V
O fato de se ignorar como o cérebro produz o pensamento o incita a uma comparação
com os fenômenos da digestão:
"Vemos os alimentos caírem nesta víscera, com as qualidades que lhes são próprias;
vemo-los saírem com qualidades novas; e concluímos que ela verdadeira mente os fez
sofrer essa alteração. Vemos, igualmente, as impressões chegarem ao cérebro por
intermédio dos nervos: estão, então, isoladas e sem coerência. A víscera entra em ação;
age sobre elas: e logo as devolve, metamorfoseadas em idéias, que a linguagem da
fisionomia e do gesto, ou os sinais da palavra e da escrita manifestam exteriormente.
Concluímos, com a mesma certeza, que o cérebro digere, de certo modo, as impressões;
que faz, organicamente, a secreção do pensamento." (Rapports..., li, § VI
Cabanis, que muito deve aos estóicos, concebe, entretanto, a matéria à maneira de La
Mettrie, Diderot e Maupertuis, isto é, como matéria viva, imbuída de energia vital, e o
naturalismo até não exclui para ele, ao cabo, a idéia de uma causa primeira inteligente.
Sua Lettre sur les causes premiêres (a Fauriel), escrita um ano antes de sua morte, assim
o demonstra. Saindo de sua reserva em relação aos problemas metafísicos, observa que o
problema da imortalidade da alma implica o de conhecer o fundamento do princípio de
unidade do ser vivo. Cabe atribuir-lhe uma origem central, ou considerá-lo como a
resultante dos diferentes órgãos? Pois, o eu, se esse fosse o caso, evidentemente não
poderia sobreviver à organização material que lhe deu origem. Ora, observa ele, há todo
o motivo de pensar que a vida esteja
concentrada num foco, donde sua força expansiva se irradia para todos os órgãos e todas
as partes, cuja vida particular não passaria, então, de ema nação.
Essa força centrífuga, peculiar a todo ser vivo, reconduz, assim, a uma atividade única,
animadora de todo o universo ou, vale dizer, a uma causa primeira, que é inteligência e
vontade. Com isso, Cabanis se aproxima singu larmente dos ideólogos e anuncia Maine
de Biran:
"O cidadão Tracy, meu colega no Senado e meu confrade no Instituto nacional, prova,
com muita sagacidade, que toda idéia de corpos exteriores supõe impressões de
resistência; e que as impressões de resistência não se tornam distintas senão pelo senti
mento do movimento. Prova ainda que esse mesmo sentimento do movimento prende- se
ao da vontade que o executa ou se esforça por executá-lo; que, verdadeiramente, só existe
por ela; que, conseqüentemente a impressão ou a consciência do eu sentido, do eu
reconhecido como distinto das outras existências, não pode ser adquirida senão pela
consciência de um esforço querido; que, numa palavra, o eu reside exclusivamente na
vontade." (Rupports..., V,
Admite Cabanis, por outro lado, que o sistema ' pode dividir-se em sistemas parciais;
cada centro pode ser considerado como uma espécie de eu; só aquele que habita o
centro comum (o cérebro) pode ser conhecido e tornar-se sujeito-objeto pela
consciência. E, se o eu central, na medida em que é essencja1men vontade, fonte de
ação, e se distingue dos centros secundá rios pela consciência, pode ser concebido como
imortal, Cabanis reconhece ser impossível demonstrá-lo.
Não cabe aqui insistir em suas concepções morais, pelas quais se aparenta ao ensino dos
enciclopedistas: é o interesse pessoal, naturalmente, que conduz à virtude; e a simpatia,
também, é investida de papel importante.
9. A fenomenologia de Hume
Dá-se o nome de "filosofia escocesa" a uma escola que recorre às luzes do senso
comum e do bom senso para justificar, no homem (contrariando a argumentação céptica
de Hume), a passagem dos fenômenos às suas causas e ao Ser. Lembrei a influência que
seus representantes, Thomas Reid (1710- 1796) e seu discípulo Dugald Stewart (1753-
1828), exerceram na França, no ecletismo de Victor Cousin e de Royer-Collard.
Curiosamente, essa esquema tização exclui da "filosofia esèocesa" o maior escocês da
época, o próprio David Hume (1711-1776), a quem a sutileza de análise conduz à
"solidão desesperada", que ele verifica no término do primeiro livro, seu Tratado da
natureza humana.
Psicólogo, moralista, historiador, sociólogo, esteta, David Hume deu prova de muito rara
precocidade. Dos vinte aos vinte e cinco anos, na França, em La Flèche (para onde se
retirou por dois anos, à sombra de Descartes), elabora esse Tratado, onde já se podem
encontrar todas as suas idéias funda mentais,
Tratado da "natureza humana"? Em que sentido? Não no de uma essência determinável
a priori, porém no de disposições intelectuais e afetivas
232
233
constantes, disposições que deseja estudar concretamente, como já adverte o leitor no
próprio subtítulo da obra: ensaio para introduzir o método experi mental de raciocínio
na matéria moral. Desse gosto pelo concreto dão prova, por outro lado, sua grande
História da Inglaterra (1754-1759) e a História natural da religião (1757).
Semelhante objeto apresenta grande interesse para a psicologia, na medida em que
procura excluir todo pressuposto a fim de manter-se ao nível da experiência autêntica;
nele tanto pode ver-se uma psicologia como ciência dos fatos psíquicos, quanto uma
fenomenologia avant la lettre('). Hume, tal como Berkeley, concede primazia aos dados
imediatos da experiência (ou, antes, daquilo que é encarado como tal), sem, contudo, as
segundas intenções religiosas e apologéticas de Berkeley; ao contrário, com uma reserva
laivada de hostilidade em relação às formas religiosas.
Hume distingue as impressões das idéias. Material das idéias comple xas, as impressões
se subdividem, por sua vez, em dois grupos; o primeiro é o das impressões de sensação
(cores, sons, sabores, odores...), ligadas à excita ção de nossos sentidos. Não cabe
indagar: impressões de que? Pois Hume, que se recusa a atribuir-lhes uma origem
determinável, não admite que elas recon duzam necessariamente a uma substância
material, ainda quando despojadas das qualidades ditas segundas. Cumpre nos
contentemos com ver nelas acon tecimentos psíquicos, diferentes em sua maneira de
manifestar-se, confusos uns, claros outros, que incitam à ação e ao conhecimento.
Prazeres e dores são admitidos por Hume como dados à alma ou ao corpo, pois não
reconhece distinção fundamental entre essas duas instâncias. Em sua opinião, toda
esquematização nesse domínio parece atender bem mais a uma preocupação de
comodidade do que às condições da experiência. Esta, para ele, nos coloca em presença
de uma trama única de acontecimentos diferentes, dos quais não se podem reconhecer as
qualidades senão observando os desejos e as aversões decorrentes:
'As dores e os prazeres do corpo são a fonte de numerosas paixões, tanto quando são
experimentadas, como quando são encaradas pelo espírito; mas surgem na alma ou no
corpo - empregai o termo que vos aprouver - como fatos originais, sem qualquer
pensamento ou percepção que os preceda. Uma crise de gota produz longa série de
paixões, tais como a tristeza, a esperança, o medo: não deriva, porém, imedia tamente,
de nenhuma afecção nem de nenhuma idéia." (Traité.., livro II, sec. 1.)
Ao pretender explicar a complexidade da vida do espírito por associa ções de
sentimentos e de idéias, admite Hume uma segunda categoria de impressões, por ele
chamadas, na esteira de Locke, de impressões de reflexão:
"Uma impressão fere, primeiramente, nossos sentidos, e nos faz perceber o quente ou o
frio, a sede ou a fome, o prazer ou a dor, de um gênero ou de outro. Dessa impressão, o
espírito faz uma cópia que permanece após o desaparecimento da impres são; é o que
chamamos uma idéia. Essa idéia de prazer ou dor, quando volta à alma, produz novas
impressões de desejo ou aversão, esperança ou medo, que se podem chamar,
propriamente, impressões de reflexão, pois dela derivam. São estas novamente copiadas
pela memória e pela imaginação e se tornam idéias, as quais quiçá, por sua
(1) Quanto à influëneia que HUNIE teria esercitio em HUSSERL aí. André-Leais
LEROY. Dua,tJ Hu,,tc, Paris. PUF.. 1953. págs. 318-320.
vez, irão produzir outras impressões e idéias; assim, as impressões de reflexão não são
apenas anteriores às idéias a elas correspondentes, mas também posteriores às impres
sões de sensação das quais derivam." (Trait liv. 1, 1 parte, sec. 1.)
Resulta assim evidente que emoções, sentimentos e paixões devem ser, igualmente,
considerados como simples acontecimentos psíquicos. O esforço de Hume tende a
mostrar principalmente que a tonalidade afetiva (positiva ou negativa) de nossas relações
com as coisas não se prende aos objetos naturais como tais, mas a combinações
associativas. Em suma, prazer e dor são dados fundamentais que polarizam nossas
tendências, conforme objetos ou cir cunstâncias os favoreçam ou contrariem, e produzem
as categorias do bem e do mal. Assim, é agradável a derrota de um inimigo. Ao tratar da
afetivi dade humana, Hume atribui grande importância à simpatia ou comunicação das
paixões, sem excluir, entretanto, os animais:
"Os uivos e lamentos de um cão produzem em seus companheiros uma preocu pação
apreciável." (Traité..., liv. II, II parte, sec. Xli.)
Pois nas espécies animais as impressões também se acham ligadas:
"Para decidir esta questão, consideremos que há, evidentemente, a mesma relação de
idéias, derivadas das mesmas causas, no espírito dos animais e no dos homens. Um cão,
que escondeu um osso, muitas vezes se esquece do lugar onde o escondeu; voltando,
porém, a ele, seu pensamento passa facilmente à coisa anterior mente escondida, por
efeito da contigUidade que produz uma relação entre suas idéias. O mesmo se dá em
relação ao lugar em que tiver sido, um dia, muito surrado: quando se aproximar desse
lugar, tremerá, embora não descubra nenhum sinal de perigo presente. Os efeitos da
semelhança não são tão notáveis; como essa relação, porém, constitui importante
elemento da causalidade, da qual todos os animais julgam, pelo que se discerne,
evidentemente, podemos concluir que as três relações de semelhança, contigüidade e
causalidade agem da mesma maneira, nos animais e nas criaturas humanas." ( Tra,té...,
liv. II, 1 parte, sec. XII.)
Do precedente já resulta que as idéias, segundo Hume, não apresen tam, em relação às
impressões, senão uma diferença de grau, pois delas constituem as "co Delas se
distinguem, principalmente, por uma dife rença de feeling,- por uma intensidade menor,
pois as idéias da imaginação freqüentemente deformam as impressões de sensação, e a
memória, por sua vez, as reproduz, em geral, enfraquecidas. Tais elucidações fornecem a
Hume um critério gnosiológico. Uma idéia é válida quando baseada numa impres são; de
outra forma, não merece confiança. Ora, as idéias de pretensas substâncias - material ou
espiritual - não satisfazem de modo algum essa condição de validade.
Aliás, ao invés de explicar os dados concretos da experiência, elas os contradizem. Pois,
se certas impressões, principalmente as da vista e as do tacto, podem ser localizadas, o
mesmo não acontece com outras. E, se as contradições provenientes da união entre aquilo
que é extenso e aquilo que não o é, parecem justificar o recurso dos
espiritualistas a uma alma imaterial, os materialistas estão em condições favoráveis para
invocar as impressões localizáveis que supõem uma alma extensa e material. Destarte,
Hume é levado a negar toda validade à noção de um substrato, como "liame substan
234
235
cial" das qualidades sensíveis ou de nossas próprias percepções, tanto do ponto de vista
do objeto corno do sujeito. Deve, provavelmente, a Berkeley a eliminação da idéia de
uma substâncta material independente, admitida por Locke. Enquanto Berkeley, porém,
assim faz para esclarecer plenamente a necessidade de uma substância espiritual e para
atribuir ao espírito divino a ordem das idéias, Hume, que se recusa a ultrapassar o terreno
da experiência, tenta explicar essa ordem por leis associativas, na crença de que a
complexi dade da vida do espírito pode ser explicada pela combinação de elementos
simples. Esse motivo constitui o chamado atomismo psíquico de Hume. Motivo real, sem
dúvida; a ele, porém, não se pode reduzir todo o seu pensa mento, pois outros ainda
aparecem (malgrado talvez o autor) com impor tantes corretivos. Os elementos simples se
unem graças a uma atração não menos misteriosa que no mundo físico de Newton. Hume
admite 'que um exame mais aprofundado o envolveria em especulações obscuras e
incertas" (Traité..., liv. 1, 1 parte, sec. IV). Seus efeitos, em compensação, são perfeita
mente observáveis:
"Há ai uma espécie de atração que, como se verá, produz no mundo do espírito efeitos
tão extraordinários como no mundo da natureza e se revela sob formas igual mente
numerosas e variadas." (!bid.)
Se a associação das idéias aparece, em Locke, no sentido de ligações arbitrárias( e se o
fenômeno associativo foi observado por muitos outros filósofos (de Aristóteles a Spinoza
e Leibniz), Hume se distingue de seus predecessores, não só pela importância que lhe
atribui (sob a influência de Newton), como pelas conseqüências que dela tira para
explicar a relação causal, transformada, de lei cósmica, em fato psíquico. Pois, para ele,
essa relação não implica outra coisa senão uma sucessão habitual de nossas repre
sentações, graças à qual antecedentes semelhantes nos fazem esperar conse qüências
semelhantes. E assim que as leis associativas são, para ele, de três formas: semelhança;
contigüidade no espaço e no tempo; relação de causa e efeito. Caberá deduzir daí que
impressões e idéias se unam e se combinem mecanicamente para constituir o
funcionamento complexo da vida espiritual? A ausência de distinção entre aquilo que liga
e aquilo que é ligado, entre as operações e o operador, torna a psicologia de Hume, na
perspectiva desse "atomismo" psíquico que parece caracterizá-la, presa fácil para as
críticas, principalmente após todas as controvérsias travadas a seu respeito desde Kant. Já,
porém, em Hume, as coisás não são encaradas de maneira tão sumária, e reponta, por
vezes, uma atividade intencional da percepção. Admitir, sem mais, que, para Hume, as
idéias devam unir-se por um liame exterior (admissão justificada por certos textos) é
depreciar excessivamente aqueles textos que, ao contrário, acentuam a importância das
relações inerentes a uma estrutura dinâmica:
não posso comparar a alma de maneira mais apropriada senão com uma república ou
uma comunidade onde os diferentes membros estão unidos pelos laços recíprocos do
governo e da subordinação, e engendram outras pessoas que perpetuam a mesma
república nas incessantes transformações de suas partes. Tal como a república pode,
sem perder a individualidade, mudar, não só seus membros, como também suas leis e
tt) C pát 178 .'.
sua constituição, de maneira análoga a mesma pessoa pode variar seu caráter e suas
disposições, assim como suas impressões e suas idéias, sem perder sua identidade. Sejam
quais forem as mudanças, suas diversas partes estão sempre ligadas pela relação de
causalidade. E, sob esse aspecto, nossa identidade, em relação às paixões, serve para
confirmar nossa identidade em relação à imaginação: pois faz que nossas percep ções
afastadas se influenciem umas às outras e faz que nos preocupemos, no presente. com
nossas dores e prazeres passados e futuros." (Traité..., liv. 1, IV parte, sec. VI.)
Convém precisar, a esse respeito, que a "identidade em relação às paixões", implica para
Hume o reconhecimento de uma mira passional sufi cientemente forte para anexar-se
outras tendências; e a "identidade em relação à imaginação" designa uma espécie de
percepção invariável, substi tuta de um complexo de percepções encadeadas em
detrimento de suas diferenças:
embora todos devam reconhecer que, em poucos anos, vegetais e animais sofrem
transformação total, nós ainda lhes atribuímos, entretanto, a identidade, conquanto sua
forma, seu tamanho e sua substância estejam inteiramente modificados. Um carvalho
que, de pequenina planta, passa a grande árvore, é ainda o mesmo carvalho, embora
nenhuma de suas partículas materiais, ou a forma de suas partes, tenham permanecido
as mesmas. Urna criança se torna homem, às vezes, gordo, às vezes, magro, sem que
mude sua identidade." liv. 1, IV parte, sec. VI.)
O que Hume repele com insistência é a noção de uma identidade substancial da alma: a
questão da substância da alma é absolutamente ininteligível; nenhuma de nossas
percepções é suscetível de união local, seja com o extenso, seja com o inextenso; pois
algumas são de uma espécie, outras, de espécie diferente; e, pois que a conjunção cons
tante dos objetos constitui a própria essência da causa e do efeito, podemos muita vez
encarar a matéria e o movimento como causas do pensamento, tanto quanto possamos
conhecer essa relação." (Traiu liv. 1, IV parte, sec. IV.)
Já vimos que o critério de validade, para uma idéia, é estar baseada numa impressão:
"O eu, porém, ou a pessoa, não é uma impressão: é aquilo a que, supõe-se, se
relacionem nossas diversas impressões e idéias." (Ibid., sec. VI.)
Ora, não existe nunca impressão constante e invariável, e, sim, uma sucessão
ininterrupta de dores e prazeres, paixões e sentimentos:
"A idéia do eu, portanto, não poderia derivar de nenhuma dessas impressões, nem de
qualquer outra; conseqüentemente, essa idéia não existe." (Ibid.)
Segundo Hume, a introspecção confirma a impossibilidade, para o eu, de jamais
apreender-se a si mesmo, como tal, isto é, como liame substancial, do qual as
impressões e as idéias seriam as modificações:
"No que me diz respeito, quando penetro mais intimamente naquilo a que chamo eu,
topo sempre com uma percepção especial ou!com outra, de quente ou de frio, de luz ou
de sombra, de amor ou de ódio, de dor ou de prazer. Jamais consigo
236
237
apreender-me, a mim mesmo, em nenhum momento, sem uma percepção e nada posso
observar além da percepção. Quando minhas percepções são afastadas durante certo
tempo, como durante um sono tranqüilo, durante esse tempo não tenho mais consciên cia
de mim e, na verdade, pode-se dizer que não existo. Se todas as minhas percepções
fossem suprimidas pela morte e eu não pudesse nem pensar, nem sentir, nem ver, nem
amar, nem odiar, após a dissolução de meu corpo, estaria completamente aniquilado e
não imagino o que mais faltaria para fazer de mim um perfeito nada. Se alguém pensar,
após uma reflexão séria e imparcial, que tem, de si mesmo, um conhecimento diferente,
devo confessar que não posso raciocinar por mais tempo com ele. Tudo quanto lhe posso
conceder é que pode estar tão certo quanto eu e que divergimos essen cialmente nesse
ponto. Talvez consiga ele perceber algo de simples e contínuo a que chama ele: e estou
certo, contudo, de que não existe em mim princípio semelhante." (Traité..., liv.
1,1V parte, sec. VI.)
Arrisca-se Hume, por isso, a afirmar, deixando de lado "alguns meta físicos desse
gênero", que o homem é um feixe, ou uma coleção, de percepções diferentes que se
sucedem umas às outras com incrível rapidez e estão em perpétuo fluxo e movimento:
"Nossos olhos não podem girar nas órbitas sem que nossas percepções variem. Nosso
pensamento é ainda mais variável que nossa vista; todos os nossos outros sentidos e todas
as nossas faculdades contribuem para essa transformação; não existe um só poder da
alma que permaneça invariavelmente idêntico, talvez, por um único momento, O espírito
é uma espécie de teatro onde diversas percepções fazem, sucessi vamente, sua aparição;
passam, repassam, deslizam sem cessar, e se confundem numa infinita variedade de
condições e situações. No espírito não há, propriamente, nem simplicidade num
momento, nem identidade nos diferentes momentos, fosse qual fosse a tendência natural
que pudéssemos ter a imaginar essa simplicidade e essa identidade. A comparação com o
teatro não nos deve extraviar. São só as percepções sucessivas que constituem o espírito;
não temos o mais remoto conhecimento do lugar onde se repre sentam essas cenas nem
dos materiais de que esse lugar seria constituído." (Ibid.)
A obra de Hume, que representou o papel de fermento na formação do kantismo, ,foi
forçosamente objeto de interpretações muito diversas. Está claro, hoje, que ela ignorou o
espírito como energia capaz de voltar-se sobre si mesma e discutir todo o campo de suas
experiências por meio de uma apreen são total; com a condição de voltar mais bem
armada à experiência, como o testemunha principalmente a física matemática. Eis porque
se encontra ausente, nos escritos de Hume, a distinção (essencial, entretanto) entre as
relações espontâneas das impressões e das idéias e a própria noção de relação. Se,
contudo, sua intuição heraclitica das coisas o leva a acentuar a desconti nuidade da vida
do espírito, pudemos ver que o senso de certa continuidade inegável nem por isso deixa
de traspassar no sentido de uma espontaneidade espiritual. Esse motivo,
fracamente esboçado por Hume, se tornará capital na filosofia alemã do século XIX, por
uma revalorização do cogito cartesiano. O
- próprio Hume experimentava algumas dúvidas quanto à sua maneira de resolver esse
problema do uno-múltiplo ou, seja, do contínuo-descontínuo:
"Muitos filósofos parecem inclinados a pensar que a identidade pessoal nasce da
consciência: a consciência nada mais é que um pensamento, uma percepção refle tida. A
presente filosofia até aí apresenta, pois, um aspecto promissor. Todas as nossas
esperanças, porém, se desvanecem quando passo a explicar os princípios que ligam
nossas percepções sucessivas em nosso pensamento ou nossa consciência. Não posso
descobrir nenhuma teoria que me satisfaça quanto a esse aspecto." (Traité..., Apêndice.)
Sabe-se que Hume, quando voltou a França com Lord Hertford (nomeado embaixador em
Paris, em 1763), recebeu acolhida extremamente atenciosa nos meios intelectuais da
capital francesa, principalmente entre os enciclopedistas, que nele viam um eminente
companheiro de armas. Essa comunidade de opiniões quase não aparece senão em
certos temas comuns de negação do passado; no tocante ao futuro, é considerável a
distância entre o cepticismo agnóstico de Hume e a fé humanista dos enciclopedistas.
10. A psicologia racional de Christian Wolf-f
Discussões acerca da alma surgiram na Alemanha, em fins do século XVII e princípios
do século XVIII, entre adeptos da ortodoxia protestante e partidários de um pensamento
que se inclina para o materialismo, sob a influência de Hobbes ou de Spinoza. Prevalece,
porém, a filosofia de Leibniz, que aparece, em geral, como a síntese harmoniosa dessas
correntes opostas. Essa corrente leibniziana é representada com prestígio por Christian
Wolff (1679-1754), professor em Halie, combatido pelos
pietistas, mas protegido por Frederico II, e autor de obra considerável sobre matemática,
física, filosofia, teologia e psicologia. Espírito de feitio escolástico, esse "fanático do
pensa mento abstrato", como dirá Hegel, atribui o maior valor às definições, e sua
metafísica, que domina as escolas alemãs até o kantismo está cornpartinien tada em
ontologia, psicologia, cosmologia e teologia racional. A própria psico logia, por sua vez,
se subdivide em "psicologia empírica" e "psicologia racio nal": Psychologia empirica
(1732) e Psychologia rationalis (1734).
A primeira é a ciência dos fatos psíquicos, baseada na experiência, estranha ao problema
da existência e da natureza de um princípio espiritual irredutível à matéria. A segunda,
verdadeira ciência da alma, tem por objeto, ao contrário, esse princípio espiritual, do
qual determina a priori a essência e as faculdades. Em tal contexto a psicologia
"empírica", à qual Wolff não trouxe contribuição apreciável, está entravada por
esquemas rígidos; e ainda estamos muito longe da psicologia experimental no sentido
atual do termo, O filósofo admite, por exemplo, a priori, que todos os fenômenos
psíquicos, desde a obscura sensação à idéia clara da inteligência, são graus diferentes da
razão.
Convém notar, entretanto, este aspecto moderno do pensamento de Wolff: o
reconhecimento, na base do paralelismo, da fisiologia como comple mento da
introspecção.
Teve Wolff discípulos de valor, que trouxeram à luz a importância do sentimento no
homem. Convém lembrar ao menos A. G. Baumgarten (1714- 1762), que estudou os
caracteres da sensação em suas relações com as formas inferiores do conhecimento.
Com seus dois volumes de Aesthetica (1750- 1758), que acrescentam às ciências
filosóficas, sob o nome de estética, a teoria do belo na arte, é o pai da estética moderna.
238
239

CAPÍTULO XVIII
A PSICOLOGIA NO PENSAMENTO ALEMÃO DO SÉCULO XIX
1. A importância do pensamento germânico
2. As condições do conhecimento em Kant
3. A ilusão da psicologia racional
4. O caráter prático da psicologia
5. As dificuldades de uma psicologia como ciência
6. A intuição da alma como atividade
7. Hegel e o universal-concreto
8. O inconsciente na filosofia alemã
1. A importância do pensamento germânico
É incontestável que a filosofia alemã do último século, de Kant a Hegel, renovou
profundamente os problemas da vida cultural. Esta predição de
Taine:
'De 1780 a 1830, a Alemanha produziu todas as idéias de nossa era histórica e por meio
século ainda, ou por um século, talvez, nossa grande tarefa será repensá-las( ).
não poderia ser senão matizada pela opinião contemporânea (2).
Não se trata de examinar aqui os múltiplos aspectos desta contribuição, mas apenas o
destino reservado ao domínio da psicologia por esta corrente
revolucionária de pensamento.
2. As condições do conhecimento em Kant
Formado, como se sabe, no clima do racionalismo wolffista e desperto de seu "sono
dogmático" pelo cepticismo de Hume, encontrou Kant, nas aspi
(1) Ifistoire d Ia Iitfératare aagIa 1. V, pág. 268.
(2) Cumpriria levar em consideraçào, principalmente, a influência considerável exercida,
tanto pelo evolUCiotiiSliiO de Herbert SPENCER, como pelo positivismo de Augusto
COMTF. sistemas ta,isbént predominantes
no século XIX
240
rações morais de Rousseau e na controvérsia entre Locke e Leibniz sobre os
fundamentos do conhecimento humano - atiçada no século XVIII os esti mulantes para
uma meditação que lhe conduzirá o pensamento às teses profundamente originais das
três Críticas. Sabe-se também que na primeira (Crítica da razilo pura. 1781; 2? edição,
refundida, em 1797), visa a provar que a razão teórica vai de encontro a barreiras
intransponíveis.
Não é que essa razão desempenhe, a seu ver, papel secundário no conhecimento. Bem
ao contrário, atribui-lhe o fundamento da verdade na ordem fenomenal, O empirismo
lhe parece impotente para explicar verdades necessárias e permanentes, como as das
matemáticas, cujas evidências tudo devem à razão. Por exemplo, é verdade que 2 X 2
são 4 e nenhuma expe riência particular conseguiria infirmar essa verdade, pois ela
depende da própria estrutura do espírito humano. O erro do empirismo é não ver esse
aspecto racional do conhecimento. Em compensação, o erro do racionalismo é ignorar
que todo verdadeiro conhecimento implica um dado empírico, a presença de sensações
coordenadas no espaço e no tempo. E, observando que o espírito humano, se pode
"esvaziar" mentalmente o espaço e o tempo de todo conteúdo, é impotente para fazer
abstração do próprio espaço e do próprio tempo, Kant é levado a atribuir-lhes o caráter,
não de objetos perce bidos, mas de condições sine qua non de nossa apreensão das coisas,
de "formas" de nossa sensibilidade. Essa sensibilidade modificada constitui a aurora do
conhecimento, como aparece na criança. Por isso, Kant reduz o dado empírico a uma
"multiplicidade caótica", isto é, às impressões que os nervos nos transmitem das
excitações exteriores. E a atividade do espírito que dá a essas impressões seu sentido e
seu valor, convertendo em percepções apenas aquelas que encontram lugar no campo de
certa intencionalidade (como se diria hoje) da consciência. E assim que a percepção,
constitutiva do mundo humano, resulta, para Kant, de uma operação complicada, que põe
em jogo a atividade do sujeito, sensibilidade e intelecto. E o fenômeno (isto é, aquilo que
se apresenta à consciência) implica a realidade daquilo que não aparece, isto é, a
realidade em si. Como conceber essa realidade? Como, para sabê-lo, necessário seria estar
em condições de transcender, a um tempo, as "formas" de nossa sensibilidade e as
"categorias" de nosso entendimento, só pode, evidentemente, tratar-se, no contexto
kantiano, de um quid misterioso.
3. A ilusão da psicologia racional
Por isso, Kant é levado a denunciar a ilusão da psicologia racional:
reportar o dado da intuição sensível a uma substância considerada simples e imaterial,
para determinar-lhe as propriedades como objeto transcendente à experiência. Pois,
como a experiência jamais pode ser transcendida, o pensa mento funciona no vácuo
quando imagina ter por objeto o ser em si. Se a intuição sensível é cega sem o conceito,
o conceito, sem ela, é vazio. Esse equívoco quanto às próprias condições do
conhecimento leva a psicologia racional a fazer do eu uma substância. Ela ignora esse
fato capital de que as categorias do entendimento humano, cujas leis constituem o
fundamento da ciência, só valem na medida em que unem e coordenam um dado
empírico; não vê que sua idéia de uma substância simples e imaterial tem por único
fundamento a exigência unitária do espírito humano.
241
Segundo Kant, o sujeito da vida espiritual é constituído pelo que chama "a unidade
sintética da apercepção transcendental": o penso, que traduz a forma de nossa
experiência interna. Esse eu que julga, não podendo ser, simultaneamente, juiz e parte,
não poderia julgar metafisicamente a si mesmo. Kant nega, assim, que se possa passar
legitimamente dessa consciên cia do pensamento que acompanha e fundamenta toda
atividade conceptual, ao "sou ", à maneira cartesiana. Por isso, os problemas inerentes
às relações entre a alma e o corpo se tornam, para ele, pseudoproblemas, pois a diversi
dade entre o objeto do senso externo e o do senso interno é de ordem pura mente
fenomenal, não concernente a "substâncias":
quando desejo determinar o lugar que ocupo como homem no mundo, vejo-me diante
da necessidade de considerar meu corpo em relação com outros corpos exteriores a
mim. - Ora, a alma não pode perceber-se senão pelo senso íntimo e não pode perce ber o
corpo (interiormente e exteriormente) senão por sentidos externos. Não pode, portanto,
em absoluto, determinar-se nenhum lugar porque, para isso, deveria ter a si mesma por
objeto de sua própria intuição externa, o que repugna( 1)."
Em relação à apercepção pura - consciência daquilo que o homem faz
- o senso íntimo é a consciência do que ele sente. E esse senso está sujeito a ilusões.
Tende a considerar o que o afeta como fenômenos externos, a tomar imagens por
sensações ou, até, por inspirações devidas a um ser que não é objeto dos sentidos
externos:
"Donde a ilusão e, com ela, a superstição ou até visões de espírito e, tanto num como
noutro caso, engano do senso íntimo, enfermidade da alma. Donde a tendência a
considerar o jogo das representações do senso íntimo como conhecimento experimental,
quando não passa de ficção; a tendência a deter-se também, freqüentemente, num estado
artificial da alma, pela razão, talvez, de que é considerado salutar e como que acima das
representações sensíveis e, conseqüentemente, a tendência a deixar-se enga nar por
intuições assim formadas (sonhos em estado de vigília). - Pois o homem acaba por
considerar o que ele próprio deliberadamente introduziu no espírito como algo que aí já
se encontrava anteriormente e apenas acredita haver descoberto nas profundezas da
alma o que ele mesmo aí fez entrar."
"Assim eram E...] as sensações supersticiosamente terríveis de um Pascal. Essa
perturbação do espírito não pode ser facilmente corrigida por meio de representações
racionais (pois, que podem elas contra pretensas intuições?). A tendência a dobrar-se
sobre si mesmo, assim como as ilusões do senso íntimo dela resultantes, só readquirem
o equilíbrio quando o homem é reconduzido ao mundo exterior e, assim, posto em
harmonia com as coisas sujeitas ao senso externo(
Se Kant mantém a noção de uma "coisa em si", se tende a pensar que a matéria que a
fundamenta poderia ser aquilo que fundamenta a vida espiri tual; e se reintroduz, a título
de postulados da "razão prática", as idéias de alma, imortalidade e Deus, como os
corolários de uma ética que gira em torno do caráter absoluto do imperativo moral, do
"tu deves" incondicional da cons ciência moral, em detrimento embora da felicidade
terrena, tudo isso é feito,
(1) De Iorgane de Idme (1796); em resposta ao anatomista Samuel Thomas von
SOEMMERRING, que lhe dedicara sua obra do mesmo nome (Kiinigsberg. 1796).
(2) "Du sens intime" ia Aathropologie, trad. 1. TISSOT, Paris, Librairie philosophique
de Lagrange, 1863, págs. 68-69.
reafirmando a impotência da razão especulativa para dar-lhe demonstração válida, já
que é impossível deixar o mundo fenomenal:
a vida é, para nós, a condição subjetiva de toda experiência possível e, nos limites da
vida, não se pode concluir pela persistência da alma; pois a morte do homem é o fim de
toda experiência relativa à alma considerada como objeto de experiência . . .1 (Prole
gômenos a toda metafísica futura que possa apresentar-se como ciência, 1783.)(*)
4. O caráter prático da psicologia
Despojada, assim, a psicologia racional de toda validade especulativa, só resta às
pesquisas psicológicas um método empírico, "pragmático", que Kant denomina
"Antropologia" (Anthropologie in pragmatischen Hinsicht, 1798) ( ). Trata-se de uma
descrição do senso interno enquanto consciência da ordem do tempo, enquanto "intui" a
simultaneidade ou a sucessão das repre sentações temporais. Nessa maneira de conhecer
praticamente o interior do homem pelo exterior, a obra de Kant é fértil em observações
perspicazes:
quanto ao conhecimento e à afetividade, quanto ao grau das sensações, que aumenta por
contraste, novidade, mudança e intensidade superior.. - Apresenta igualmente numerosas
reflexões penetrantes sobre o caráter dos indivíduos (caracterologia e fisiognomonia), do
sexo, dos povos, das raças; sobre a superstição e a crença nos
"espíritos"; sobre os sentimentos doentios e o domínio que sobre eles pode exercer a
vontade.
Sendo de constituição débil:
"Meu peito fraco e estreito, que pouco jogo permite aos movimentos do coração e dos
pulmões, dera-me uma predisposição natural para a hipocondria que, em minha
juventude, chegava até ao desgosto pela vida."
Kant soube fazer triunfar em si mesmo essa vontade moral exaltada em sua obra:
"Ficou-me a opressão, pois a causa reside em minha estrutura corporal; tornei- me,
porém, senhor de sua influência em meus pensamentos e em minhas ações, desviando
minha atenção desse sentimento, como se ele de modo algum influísse em mim."
Está persuadido de que, ainda nas doenças reais, devemos distinguir cuidadosamente a
doença do sentimento da doença:
- na maioria das vezes E...] não se notaria a doença propriamente dita, que consiste, quase
sempre, apenas no mau funcionamento local de um órgão sem importância, se um mal-
estar geral, um desconforto, um sentimento desagradável ou uma dor não tornassem
muito penoso nosso estado. Vários desses sentimentos, porém, desses efeitos da doença
sobre todo o corpo, se acham, em grande parte, em nosso poder. Uma alma
() Damos o título da obra de KANT segundo a excelente edição em língua portuguesa,
com introdução, tradução e notas de Antônio Pinto de CARVALHO, publicada na
"Biblioteca Universitari , série 11 (Filosofia), vol. 3, Companhia Editora Nacional, São
Paulo, 1959. (3. B. D. P.)
(1) Antes de KANT, Ernst PLATNER (1744-1818) escreveu uma Neue
Anthropologie... (Leipzig, 1771- 1772, 2vols.; 2!ed., Leipzig, 1790,1 vol.)
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243
fraca, delicada e, portanto, uma sensibilidade exagerada, fica completamente arrasada
por eles; ao contrário, um espírito mais forte, mais rijo, expulsa-os e domina-os."
(Anthropologie, op. cit., pág. 459.)
Positivamente, o kantismo significa que a apreensão sintética do espí rito, em sua
realidade primária irredutível, constitui a única psicologia possível. Mas, por sua crítica
da psicologia racional, por sua nítida delimi tação dos domínios respectivos da filosofia e
da ciência (cuja objetividade é garantida pela universalidade formal das leis do
entendimento humano), Kant estimula indiretamente a criação de uma psicolo gia
objetiva, ainda que, pessoalmente, não acredite muito nisso. Um pouco à maneira de
Augusto Comte, que, em nome do "positivismo" característico, segundo ele, da menta
lidade moderna, nega toda validade à psicologia, por ele encarada sob a forma de
psicologia introspectiva ("Não se pode estar à janela e ver-se passar pela rua. No teatro,.
não se pode ser, ao mesmo tempo, ator no palco e espectador na sala") (1) e pretende
reduzir seu domínio ao da fisiologia e da sociologia (2). Num como noutro caso, a
contribuição, por negativa que seja, é um pôr-se em guarda quanto às condições de um
conhecimento válido do homem pelo homem e um preparo de terreno para a instauração
dessas pesquisas que constituirão uma "psicologia sem alma".
5. As dificuldades de uma psicologia como ciência
Citam-se freqüentemente argumentos de Augusto Comte contra a introspecção. São
menos familiares, nas terras de língua francesa, os de Kant sobre os obstáculos que, a
seu ver, impedem que a psicologia se torne ciência:
1. O homem que percebe que está sendo observado e procuram penetrar no seu interior,
ou fica embaraçado (e, a partir desse momento, pode não mais mostrar-se como é) ou se
esconde e não quer, então, ser conhecido como é.
2. Deseja ainda limitar-se ao exame de si mesmo? Cai numa posição critica,
principalmente no que diz respeito a seus estados de paixão, que, nesse caso, são rara
mente suscetíveis de dissimulação; pois, se os móveis estão em ação, ele não se
observa; e, se vem a observar-se, cessam os móveis.
3. As circunstâncias de tempo e de lugar, quando duradouras, produzem htbitos que são,
como se costuma dizer, outra natureza e que tornam o conhecimento de si mesmo, para o
homem, suficientemente difícil para que ele hesite em procurar ter uma idéia de si
mesmo, ou ainda com maior razão idéia de outro, com quem convive. Com efeito, as
diversas situações em que o homem é colocado pelo acaso, ou por ele próprio como
aventureiro, constituem grande obstáculo a que a antropologia atinja a categoria de
ciência formal." (Anthropologie, op. ci Prefácio do Autor.)
A distinção kantiana entre o senso interno e o senso externo, em suas relações com o
tempo e o espaço, conserva especial importância para o pensa
(1) Coam dephi!osophiepositice, lição 11.
(2) Caberia considerar num exame mais longo as idéias de Augusto COMTE e lembrar,
a propósito delas, as de BROUSSAIS (1772-1838), a quem COMTE consagrou, em
1828, um comentáno sobre as observações dos fenômenos cerebrais. (Examee da
Tmaité de Broussais.) Adversário dos ecléticos, aos quais critica de praticarem uma
psicologia mais imaginativa do que cientifica, BROUSSAIS preconiza o estudo do
homem nas bases de um método comparativo, orientado pelo principio de um
paralelismo psicobiotógico. (De l'irr,taiion ei de la folie, 1828.)
mento contemporâneo, tão fortemente sensibilizado à temporalidade( 1). Bergson e
Kant, malgrado todas as divergências doutrinárias (o primeiro exige do senso interno
"dados imediatos" inconcebíveis no contexto kantiano) se encontram na negativa da
possibilidade de medir os fenômenos psíquicos. E até por isso que Kant vê na psicologia
uma descrição de caráter mais prático que científico; pois, a fenômenos mentais, inscritos
no fluxo do tempo, não se poderiam aplicar leis matemáticas intemporais, válidas para o
mundo espacial. Semelhante decretação de impotência não impediu, certamente, que a
psicologia, desde Fechner e até desde Herbart, praticasse a medida. Mas poderiam ter
ocorrido, nesse domínio, equívocos e mal-entendidos.
Pierre Janet, de quem se conhece a importante contribuição para a nova ciência,
desejoso de caracterizar-lhe, em 1937, a evolução, num período de cinqüenta anos,
declarava a propósito do método dos testes:
"Sem dúvida, esse método media algo com grande precisão; nem sempre, contudo,
podia dizer com precisão o que media(
4
6. A intuição da alma como atividade
Se os limites do conhecimento estabelecidos por Kant foram transpos tos pelos idealistas
alemães, de Fichte a Hegel, nem por isso voltam eles à metafísica do Ser e da alma-
substância. Procurando deduzir o finito de um princípio infinito e absoluto, rejeitam a
noção de uma substancialidade finita, indispensável à elaboração de uma psicologia
racional; e chegam, assim, a dissolver a alma individual na reconstrução dialética da
realidade inteira(
É assim que Fichte não vê mais a eternidade na persistência do eu indi vidual após a
morte, e sim no Ichheit, "Eu" único e absoluto, considerado sob o aspecto de uma
atividade e de uma tensão. E na medida em que o eu empí rico disso participa que se
eleva à imortalidade. O filósofo substitui, pois, a idéia de uma alma substancial pela do
espírito que se eleva à consciência do princípio eterno das coisas, que contribui para a
realização eterna dos valores pelo papel que assume no surto da humanidade.
Na obra de Scheiling, particularmente Filosofia e religião (1804) e Pesquisas filosóficas
sobre a essência da liberdade humana (1809), especial relevo é dado ao problema da
existência: à passagem do eu como dado con creto e único, que nenhuma razão pode
explicar, à ipseidade, isto é, ao existir sob a forma do eu.
(1) Jacques HAVET, que compreendeu que o tempo desempenha um papel central na
filosofia de KANT, consagrou notável estado a essa questão: Kant ei le pmobléme da
temps, N. R. F.; Galtimard, 4t cd., 1946. Cl. especialmente o capitulo VII: "Le temps eI
l'expérience interne".
(2) Comunicação sobre "Les conduites sociales", ao Xl Congresso Internacional de
Psicologia, Paris, de 25a31 dejuthode 1937.
(3) A rejeição da alma como substância e sua assimilação, em sua realidade concreta, á
atividade espi ritual, considerado o indivíduo isolado como abstração, estão presentes
entre os continuadores de HEGEL na Itália, Benedetto CROCE e Giovanni GENTILE,
que lhe desviam o pensamento no sentido de uma imanência absoluta do Espírito: "... O
indivíduo é uma instituição [ porque o Espírito o forma, e porque transforma e desfaz
esses grupos e relações de tendências e hábitos em que se configura a individualidade,
exatamente como forma, trans forma e desfaz essas instituições chamadas sociais ou
históricas, a família romana ou a família cristã, a casta india na. a escravidão antiga ou a
servidão medieval, que se poderiam considerar outros tantos indivíduos que nasceram.
viveram e morreram, à maneira de César ou Napoleão." (CROCE, "O indivíduo, a Graça
e a Providencia - nos Fmamrni'ni,diEiwa, Saggifiliixvfiei. VI. Bari, 1922, pág.
95.)
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Emile Bréhier assinalou admiravelmente as articulações e as tensões dessa obra densa,
de incontestável interesse na perspectiva em que se coloca ram as filosofias ditas "da
existência" (1).
7. Hegel e o universal-concreto
Quanto a Hegel, na imensa empresa constituída por sua memorável Fenomenologia do
espírito (1807): acompanhar a experiência que a consciên cia tem de si mesma e de seu
objeto, e sua transformação de consciência natural em consciência de si, visa a
demonstrar que o espírito em si da natu reza se torna com o homem, espírito para si. Essa
operação, "ciência da expe riência da consciência", destinada a exprimir a verdade do
Todo, contradiz tanto uma psicologia individual que pretendesse ser exaustiva, como uma
sociologia que aspirasse à exclusividade. Como Kant, está Hegel persuadido de
que a essência do conceito implica a unidade sintética da apercepção:
unidade do eu penso ou da consciência de si, condição da atividade do espí rito.
Pretende, entretanto, determinar o papel e a função do entendimento abstrato por meio
de uma razão "dialética", cujas operações progressivas (eliminada a "coisa em si") devem
permitir ao homem compreender, sem outro resíduo além de um começo absoluto, todo o
desenvolvimento da reali dade física, biológica e histórica. A aparição do homem, que
toma consciência de si mesmo e do mundo é, ao mesmo tempo, a tomada de consciência
do Logos, até então "alienado" na Natureza e inconsciente. E essa tomada de consciência,
que assinala o começo da história e de suas lutas, se desenvolve até o "Saber absoluto",
quando o Homem-Deus conquista o sentido da realidade total e a justifica. Não nos cabe
aqui alongar-nos sobre essa epopéia do Logos hegeliano, sobre a teogonia que pretende
explicá-lo. Basta lembrar que existe na obra de Hegel uma ambiguidade (muito já se falou
de sua "dupla face") resultante do fato de
que a reconstrução especulativa do sistema universal do mundo é impossível sem a
consciência humana e seu desenvolvimento; do fato de que a Fenomenologia do
espírito, que descreve as vicissitudes da consciên cia humana, serve, pois, de escala para
todo o sistema; e basta lembrar também que a interpretação deste sistema, conforme se
oriente para o pri meiro ou para o segundo aspecto (para a cosmogonia ou para a
antropologia) deu origem a uma direita e a uma esquerda hegelianas.
A dialética hegeliana, com o destino heracitico que reserva às oposições e às
contradições, admitidas no real (natural e histórico) como o motor de seu
desenvolvimento; com sua pretensão de tudo explicar por um proceder racional capaz de
repensar em seus vários níveis a própria articulação das coisas, constitui a síntese mais
poderosa do século XIX, e a mais aventurosa também, a muitos respeitos. Não deixou de
alimentar as controvérsias filosó ficas até nossos dias, a despeito de eclipses passageiros;
e sabe-se que tanto o marxismo quanto o assim chamado "existencialismo" nasceram da
revolta de Karl Marx e de Kierkegaard, respectivamente, contra um pensamento que
neles exercia uma como fascinação ambivalente. Na perspectiva que aqui
(1) Schelling. Alcan, Paris, 1912.
adotamos, trata-se apenas de compreender o que se torna, em Hegel, o domí nio
considerado, em geral, como o da psicologia( 1)
Desde o há característico da evidência sensível, e desde as determina ções racionais mais
gerais do aqui e do agora, o desenvolvimento da consciên cia é descrito por Hegel como
processo ascendente, capaz de superar gradual mente os limites assinados ao ser humano
por sua situação no seio do mundo físico, orgânico e social - esses limites que Kant
decretava intransponíveis. No contexto hegeliano, o eu é encarnado, a individualidade
humana é a própria concreção do universal. Donde, na obra de Hegel, a constante
repulsa pelo moralismo abstrato: "O frio dever kantiano é o último bocado indigesto que
a Revelação deixou à razão e lhe pesa no estômago", declara ele em sua História da
Filosofia (2).
A estrutura psíquica, inconcebível sem um organismo corporal, condiciona, por sua vez, a
atividade espiritual. O eu é dado com o objeto indi vidual, constituído por "este- homem-
aqui", sem o qual não pode haver cons ciência. E o próprio objeto não é al
senão para um eu que não desaparece da consciência, como os objetos que &a recebe por
impressões sensoriais sempre mutáveis. Os eus têm, assim, evidências sensíveis
diferentes, e sua individua lidade, como tal, é inexprimível ç or conceitos. Um eu
particular é uma unidade que se revela a si mesma e cuja forma é a de uma função
unificante e universajizante, sem determinação. E o Eu Eu, como diz Hegel. A pre sença
dessa identidade "tautológica" anuncia, ao mesmo tempo, o poder de dar nome às coisas e
o de manter na consciência as separações estabelecidas pelo entendimento. Sabe-se como
essa energia que fundamenta a vida do espí rito despertava a admiração de Hegel, cujo
esforço titânico visa a explicar, não sóo que se apresenta à consciência, mas
também o pensamento e a linguagem que revelam esta aparição( a linguagem que,
segundo ele, representa a
(1) O existencialismo será rapidamente considerado a propósito da fenomenologia de I-
IUSSERL. Quanto ao marxismo. particularmente na forma extrema que o constitui ent
"materialismo dialéiico'. cumpriria largo estudo para esclarecer-lhe as relações com a
psicologia. Sua maneira de conceber a objetividade e, sobretudo, o 'reflexo" da realidade
na consciência, pode ensejar multo equívoco, Baste lembrar que nele o ser humano é
concebido como eminentemente social. Foi pelo trabalho em sociedade que o homem
saiu da animalidade, adquiriu estrutura fisio lógica mais complexa, à qual corresponde
vida mental mais rica. A aparição do pensamento e da reflexão é insepa rável da aparição
da linguagem, por sua vez inseparável de todas as relações concretas que o trabalho
desenvolve entre os homens. As contradições nas idéias são atribuidas a contradições no
próprio real; e postula-se que uma transformação das condições sociais liberará a
consciência humana de suas contradições, Não se trata de renovar de início a consciência
moral, e sim de abolir o regime da propriedade particular - do qual o egoísmo é, de certo
modo, o corolário - pelo da propriedade socialista, a fim de que triunfe a idéia da
fraternidade. Quanto às imbricações atuais dessa concepção (a qual comporta numerosas
passagens subreptícias do indicativo para o imperativo> com a psicologia, cf. o relatório
de René ZAZZO, de uma viagem que fez à U. R. S. S., em abril de 1955, com dois
outros psicólogos, igualmente professores da Sorbonne, Paul FRAISSE e Jean PIAGET
(revista La Raison, nt 15, 3? trimes tre de 1956, págs. 7-23>.
Cl. também, de Georges POLITZER. "Critiques des fondements de la psychologie" (nos
dois únicos números publicados da Rei'u de Psvc/io/vgir Cuiscrêie, 1? de fevereiro e 1?
de julho de 1929); "Un faux contre'révolationnaire, le "Freudo-marxisme"" (revista
Cvni,nune, n? 3, novembro de 1933); "Fio de la psycha. nalyse" (revista La proséc. sob o
pseudónimo dc T. W. MORRIS>.
(2) "Uma coisa impressiona vivamenfe em HEGEL: não é um moralista, sente-se que a
moral propria mente dita não o preocupa da maneira como, por exemplo, preocupou
KANT ou até NIETZ5CHE; ao mesmo tempo, estuda constantemente as condições da
consciência moral. Consciência pecadora, consciência de culpabili dade, consciência que
perdoa, são as figuras por ele analisadas, o que, aliás, vai muito mais longe que todos os
discursos de moral." )Jean HYPPOLITE: "Phénoménologie de Hegel eI psychanalyse",
em La psyehaioairse, publi cação da Société Française de Psychanalyse, vol. III, P. U. F.,
1957, pág. 24, nota.)
(3) É provável que, sob este aspecto, HEIDEGGER se aproxime de HEGEL pelas
preocupações da mesma ordem. Jean WAHL, com sua habitual argúcia, destacou esse
parentesco intelectual assinalando o papel desempe nhado por HOLDERLIN. amigo e
condiscipulo do jovem HEGEL. a qaem HEIDEGGER dá grande importância. Cf.
pnncipalmente de WAHL, "Hegel e Heidegger", estudo publicado em apêndice ao
volume de Angéle MARIETrl, Pviir cxnnaíire /a peinvée de Hi'ge/. Bordas. 1957. págs.
185-195. Cl. igualnientr, de HEIDEGGER. Hcge/i !kgriff der Erfahrnng in Ho/zwrge,
Clostermann, 1950.
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concretização do sentido universal e como o lugar de intercomunicação em que surge e
se desenvolve o problema do nós. A consciência de si universal se elabora, assim, por
um parto doloroso que põe em jogo a intercomunicação das consciências. Para Hegel,
trata-se de descrever o itinerário percorrido pela consciência, através das consciências,
em luta por seu reconhecimento recí proco. Pois, uma consciência individual é sempre,
parcialmente, a consciência em geral (Fenomenologia do espírito, 1, 308) e o eu se
reencontra e se reflete, forçosamente, no eu dos outros. Essa interdependência condi
ciona a história humana; assegura a ordem ética do mundo, ordem que triunfa sempre
sobre os "discursos pomposos referentes ao bem supremo da humanidade", sobre os
grandes ideais que "exaltam o coração e deixam a razão vazia", que "edificam sem nada
construir". Tais declarações só apre sentam um conteúdo abstratamente subjetivo:
o indivíduo que pretende agir com fins tão nobres e tem nos lábios essas frases
excelentes, passa, a seus próprios olhos, por um ser excelente; sente-se crescer, a cabeça
cresce, e também a dos outros, mas é apenas o intumescimento vazio( 1)."
Se o indivíduo natural, enquanto indivíduo, se opõe à multiplicidade infinita do Todo, é
permanecendo, forçosamente, ligado a ela, condição de sua vida; portanto, é, ao mesmo
tempo, destacado da realidade total e solidá rio com ela. E um consciência é inseparável
desse ser sensível e individual, ligado pelo desejo aos outros seres sensíveis e individuais
que ela se representa. Rompendo com a tradição intelectualista, atribui Hegel lugar
essencial à afetividade, aos instintos, que imanizam as relações dos seres vivos. Tem um
senso profundo de seu domínio, ao mesmo tempo que da nostalgia da unidade que,
através das lutas e sofrimentos da encarnação, anima os existentes indi viduais. A Vida,
nos diz ele, reconduz ao sentido da vida (Fenomenologia do esp frito,
1, 152). E, como esse sentido só pode ser experimentado num eu, significa isto que ela
nos reconduz à consciência.
Por isso, uma consciência individual é, ao mesmo tempo, distinta e solidária da
consciência. Sua vida é, essencialmente, uma vida de relação com outra, que jamais pode
ser radicalmente "outra", pois não caberia falar de um eu fora dessa relação. E no
momento superior da consciência, com o aparecimento do Eu = Eu (2), que a alma se
identifica com o espírito, torna- se reflexão subjetiva em si, energia que nega o mundo
natural como tal e a própria alma como substância. No grau mais baixo de sua curva
ascensional, ela é uma realidade natural que só tem o senso de si. Reduz-se, então, a uma
vida psíquica obscura, de onde vem e para onde retorna tudo quanto se produz no mundo
natural e onde se penetra de novo no sono. Embora já se afirme como centro da sua
própria sensibilidade, é ela teatro de sensações difusas, onde se confundem ainda sujeito
e objeto. Nesse estádio primitivo, o eu embrionário, inconsciente, afetivo, onde se
formam os hábitos e onde podem surgir os fenômenos de sonambulismo, de telepatia, de
premonição, dá sua tonalidade à vida imediata e espontânea. Não é esse, porém, o espírito
volente e pensante:
(1) Cl. "L'actualisation de la conscience de soi rationnelle par sa propre activité", ia
Phénoménologie de l'esprit, trad. 3. HYPPOLITE. Aubier, 1939, t. 1, págs. 288-321.
(2) "A expressão da consciência é Eu = Eu; liberdade aba frata. idealidade pura."
(Eacicé. 424.)
'Os conhecimentos científicos, ou as noções filosóficas e as verdades gerais, exigem
outro terreno, o pensamento que surge da obscuridade da vida afetiva para elevar-se à
livre consciência; é tolice esperar do estado de sonâmbulo revelações sobre as idéias."
(Enciclopédia, § 406.) (l)
Quando as forças compreendidas no senso de si rompem as barreiras inseparáveis da
vida do eu consciente, a saúde mental se vê comprometida:
"Esse elemento terrestre liberta-se quando se relaxa a força da sabedoria e do universal,
dos princípios teóricos ou morais, sobre o elemento natural, pois, em geral, essa força os
domina ou dissimula-os; o mal, com efeito, existe em si no coração que, como imediato, é
natural e egoísta. E o mau gênio do homem que domina na loucura; opõe-se ao elemento
melhor e sábio que também está presente no homem e o contraria e, assim, esse estado é a
ruína e a desgraça do próprio espírito. O verdadeiro trata mento psíquico, por
conseguinte, se cinge a essa concepção de que a loucura não cons titui uma perda
abstrata da razão, nem do lado da inteligência nem do lado da vontade e da
responsabilidade, mas uma simples perturbação do espírito, uma contradição da razão
que ainda subsiste, tal como a enfermidade física não é uma perda abstrata, isto é,
completa, da saúde (isso seria, com efeito, a morte), mas uma contradição existente na
saúde. Esse tratamento humano, isto é, tão benevolente quanto razoável, da loucura
- e Pinel tem direito ao maior reconhecimento por tudo quanto fez nesse terreno - supõe
o doente racional, encontrando, nesta suposição, um ponto de apoio, para consi derá-lo
sob esse aspecto; da mesma forma que ela encontra tal ponto de apoio (no que se refere á
corporalidade) na vitalidade que, como tal, dispõe ainda de alguma saúde."
(Enciclopédia, § 408.)
8. O inconsciente na filosofia alemã
No hegelianismo, sob a armadura abstrata da expressão, palpita um senso cósmico da
vida psíquica, onde o inconsciente intervém sob a forma de tendências ocultas no fundo
de todo ser, agente como outras tantas causas sutis, mais eficazes que as causas visíveis;
e de primordial importância no desabrochar das lendas, dos mitos, da linguagem. O
"racionalista" Hegel alargou, pois, na realidade, imensamente, o domínio do pensamento.
Sabe-se que na obra de Schopenhauer, seu grande adversário, o inconsciente aparece sem
contrapartida racional positiva, malgrado os elementos platônicos que nela se podem
encontrar, sob o aspecto de uma forma irracional investida de primazia ontológica sobre a
inteligência.
De sua grande obra, O mundo como vontade e representação (1818) e, particularmente,
do capítulo intitulado "Primazia da vontade sobre o inte lecto", poder-se-ia extrair uma
psicologia baseada na subordinação da vida consciente àquio a que hoje chamamos
"motivações inconscientes" (2). Opiniões análogas reaparecem em Cari Gustav Canis (
Vorlesungen über Psy chologie, 1831; Psyché, 1846) igualmente com uma espécie de
esboço freudiano:
(1) Eacidopédia das ciêaciaufiloséficas, O edição em 1817. Tradução francesa de J.
(3IBELIN; Pr de l'Eacyclopédie des sciences philosophiqi Vrin. 1952.
(2) "As extensas concordãnctas da psicanálise com a filosofia de Schopenhauer - ele não
só defendeu a pnmazia da afetividade e a importância preponderante da sexualidade.
como até adivinhon o mecanismo do recalque - não se deixam restringir a meu
conhecimento de sua doutrina. Li Schopenhauer ntoito tarde ent ntinha vida," (FREUD,
Ma de es la puychanalyse, trad. francesa de Marie BONAPARTE, Les Essais, XXXVII,
GaIli mard, 1949, pág. 93.)
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Existe uma região da vida da Alma onde realmente jamais penetra um raio de
consciência; podemos, portanto, chamá-la Inconsciente absoluto [ Ademais, em face dela,
temos um inconsciente relativo, isto é, esse domínio de uma vida que real mente já
atingiu a consciência, mas tornou a ser, temporariamente, inconsciente( 1)."
Canis faz da alma o princípio da vida e tenta interpretar o rosto e a forma do corpo
vivente como a expressão do espiritual consciente e incons ciente (Do simbolismo da
forma humana, 1853).
Também E. von Hartmann, em sua Filosofia do inconsciente, de 1869, afirma o primado
da vida inconsciente. Quanto a Nietzsche (que invoca a seu favor o testemunho da
psicologia, tida por ele como a "senhora de todas as ciências", é com uma espécie de
encarniçamento que deseja pôr a nu os móveis inconscientes da conduta humana, o mais
das vezes inconfessados ou mascarados, com vistas a essa transmutação de valores da
qual se faz anun ciador (particularmente em Humano, demasiado humano, 1878; Aurora,
1881; Para ah do bem e do mal, 1886; A genealogia da moral, 1887)(2).
Atribuindo embora a mais alta dignidade ao homem-criador-de-valores, Nietzsche
psicólogo se afadiga, paradoxainiente, em reduzir o psíquico ao fisiológico e à físico-
química, considerando a tomada de consciência como epi fenômeno(
(1) Citado por Jean FILLOUX, L'inconscient, P. U. F. (Que sais-je?), 1952.
(2) "A Nietzsche .1 cujas intuições e pontos de vista freqüentemente concordam da
maneira mais surpreendente com os resultados penosamente adquiridos pela psicanálise,
evitei precisamente por isso; fazia, pois, menos questão de priortdade do que de
permanecer livre de toda prevenção." (FREUD, Ma cio ei la p isp. cit.. pág. 93.)
(3) Sobre N,rizuche psicólogo, cl. o estudo de Henri REVERDIN, da recopilação de
confertiscias pronun ciadas em Genebra sob os auspícios da Fundação Marte Gretler,
em 14 e 15 de outubro de 1944, por ocasião do primeiro centenário de nascimento do
filósofo tEugen Re,ilsch Vertag, Erlenbach, Zurique). Do mesnio autor, aluno de
Jean.lacques GOURD. de Adrirn NAVILLE. de Gaslon EROMMEL e de ftiéodore
ELOURNOY, que especial. isente estudou a psicologia religiosa. cf. La nsiiisiii
d'expéneiiee si/ou W,//iu,s fumes (Genebra e Basitéia, Georg eI Cc. 1913) e Lis i di'
/uis' di' /'i'vpi'ii (Neucliálet, Editioris dela Baconnióre, 1961,).
250

CAPÍTULO XVIII
A PSICOLOGIA NO PENSAMENTO ALEMÃO DO SÉCULO XIX
1. A importância do pensamento germânico
2. As condições do conhecimento em Kant
3. A ilusão da psicologia racional
4. O caráter prático da psicologia
5. As dificuldades de uma psicologia como ciência
6. A intuição da alma como atividade
7. Hegel e o universal-concreto
8. O inconsciente na filosofia alemã
1. A importância do pensamento germânico
É incontestável que a filosofia alemã do último século, de Kant a Hegel, renovou
profundamente os problemas da vida cultural. Esta predição de
Taine:
'De 1780 a 1830, a Alemanha produziu todas as idéias de nossa era histórica e por meio
século ainda, ou por um século, talvez, nossa grande tarefa será repensá-las( ).
não poderia ser senão matizada pela opinião contemporânea (2).
Não se trata de examinar aqui os múltiplos aspectos desta contribuição, mas apenas o
destino reservado ao domínio da psicologia por esta corrente
revolucionária de pensamento.
2. As condições do conhecimento em Kant
Formado, como se sabe, no clima do racionalismo wolffista e desperto de seu "sono
dogmático" pelo cepticismo de Hume, encontrou Kant, nas aspi
(1) Ifistoire d Ia Iitfératare aagIa 1. V, pág. 268.
(2) Cumpriria levar em consideraçào, principalmente, a influência considerável exercida,
tanto pelo evolUCiotiiSliiO de Herbert SPENCER, como pelo positivismo de Augusto
COMTF. sistemas ta,isbént predominantes
no século XIX
240
rações morais de Rousseau e na controvérsia entre Locke e Leibniz sobre os
fundamentos do conhecimento humano - atiçada no século XVIII os esti mulantes para
uma meditação que lhe conduzirá o pensamento às teses profundamente originais das
três Críticas. Sabe-se também que na primeira (Crítica da razilo pura. 1781; 2? edição,
refundida, em 1797), visa a provar que a razão teórica vai de encontro a barreiras
intransponíveis.
Não é que essa razão desempenhe, a seu ver, papel secundário no conhecimento. Bem
ao contrário, atribui-lhe o fundamento da verdade na ordem fenomenal, O empirismo
lhe parece impotente para explicar verdades necessárias e permanentes, como as das
matemáticas, cujas evidências tudo devem à razão. Por exemplo, é verdade que 2 X 2
são 4 e nenhuma expe riência particular conseguiria infirmar essa verdade, pois ela
depende da própria estrutura do espírito humano. O erro do empirismo é não ver esse
aspecto racional do conhecimento. Em compensação, o erro do racionalismo é ignorar
que todo verdadeiro conhecimento implica um dado empírico, a presença de sensações
coordenadas no espaço e no tempo. E, observando que o espírito humano, se pode
"esvaziar" mentalmente o espaço e o tempo de todo conteúdo, é impotente para fazer
abstração do próprio espaço e do próprio tempo, Kant é levado a atribuir-lhes o caráter,
não de objetos perce bidos, mas de condições sine qua non de nossa apreensão das coisas,
de "formas" de nossa sensibilidade. Essa sensibilidade modificada constitui a aurora do
conhecimento, como aparece na criança. Por isso, Kant reduz o dado empírico a uma
"multiplicidade caótica", isto é, às impressões que os nervos nos transmitem das
excitações exteriores. E a atividade do espírito que dá a essas impressões seu sentido e
seu valor, convertendo em percepções apenas aquelas que encontram lugar no campo de
certa intencionalidade (como se diria hoje) da consciência. E assim que a percepção,
constitutiva do mundo humano, resulta, para Kant, de uma operação complicada, que põe
em jogo a atividade do sujeito, sensibilidade e intelecto. E o fenômeno (isto é, aquilo que
se apresenta à consciência) implica a realidade daquilo que não aparece, isto é, a
realidade em si. Como conceber essa realidade? Como, para sabê-lo, necessário seria
estar em condições de transcender, a um tempo, as "formas" de nossa sensibilidade e as
"categorias" de nosso entendimento, só pode, evidentemente, tratar-se, no contexto
kantiano, de um quid misterioso.
3. A ilusão da psicologia racional
Por isso, Kant é levado a denunciar a ilusão da psicologia racional:
reportar o dado da intuição sensível a uma substância considerada simples e imaterial,
para determinar-lhe as propriedades como objeto transcendente à experiência. Pois,
como a experiência jamais pode ser transcendida, o pensa mento funciona no vácuo
quando imagina ter por objeto o ser em si. Se a intuição sensível é cega sem o conceito,
o conceito, sem ela, é vazio. Esse equívoco quanto às próprias condições do
conhecimento leva a psicologia racional a fazer do eu uma substância. Ela ignora esse
fato capital de que as categorias do entendimento humano, cujas leis constituem o
fundamento da ciência, só valem na medida em que unem e coordenam um dado
empírico; não vê que sua idéia de uma substância simples e imaterial tem por único
fundamento a exigência unitária do espírito humano.
241
Segundo Kant, o sujeito da vida espiritual é constituído pelo que chama "a unidade
sintética da apercepção transcendental": o penso, que traduz a forma de nossa
experiência interna. Esse eu que julga, não podendo ser, simultaneamente, juiz e parte,
não poderia julgar metafisicamente a si mesmo. Kant nega, assim, que se possa passar
legitimamente dessa consciên cia do pensamento que acompanha e fundamenta toda
atividade conceptual, ao "sou ", à maneira cartesiana. Por isso, os problemas inerentes
às relações entre a alma e o corpo se tornam, para ele, pseudoproblemas, pois a diversi
dade entre o objeto do senso externo e o do senso interno é de ordem pura mente
fenomenal, não concernente a "substâncias":
quando desejo determinar o lugar que ocupo como homem no mundo, vejo-me diante
da necessidade de considerar meu corpo em relação com outros corpos exteriores a
mim. - Ora, a alma não pode perceber-se senão pelo senso íntimo e não pode perce ber o
corpo (interiormente e exteriormente) senão por sentidos externos. Não pode, portanto,
em absoluto, determinar-se nenhum lugar porque, para isso, deveria ter a si mesma por
objeto de sua própria intuição externa, o que repugna( 1)."
Em relação à apercepção pura - consciência daquilo que o homem faz
- o senso íntimo é a consciência do que ele sente. E esse senso está sujeito a ilusões.
Tende a considerar o que o afeta como fenômenos externos, a tomar imagens por
sensações ou, até, por inspirações devidas a um ser que não é objeto dos sentidos
externos:
"Donde a ilusão e, com ela, a superstição ou até visões de espírito e, tanto num como
noutro caso, engano do senso íntimo, enfermidade da alma. Donde a tendência a
considerar o jogo das representações do senso íntimo como conhecimento experimental,
quando não passa de ficção; a tendência a deter-se também, freqüentemente, num estado
artificial da alma, pela razão, talvez, de que é considerado salutar e como que acima das
representações sensíveis e, conseqüentemente, a tendência a deixar-se enga nar por
intuições assim formadas (sonhos em estado de vigília). - Pois o homem acaba por
considerar o que ele próprio deliberadamente introduziu no espírito como algo que aí já
se encontrava anteriormente e apenas acredita haver descoberto nas profundezas da
alma o que ele mesmo aí fez entrar."
"Assim eram E...] as sensações supersticiosamente terríveis de um Pascal. Essa
perturbação do espírito não pode ser facilmente corrigida por meio de representações
racionais (pois, que podem elas contra pretensas intuições?). A tendência a dobrar-se
sobre si mesmo, assim como as ilusões do senso íntimo dela resultantes, só readquirem
o equilíbrio quando o homem é reconduzido ao mundo exterior e, assim, posto em
harmonia com as coisas sujeitas ao senso externo(
Se Kant mantém a noção de uma "coisa em si", se tende a pensar que a matéria que a
fundamenta poderia ser aquilo que fundamenta a vida espiri tual; e se reintroduz, a título
de postulados da "razão prática", as idéias de alma, imortalidade e Deus, como os
corolários de uma ética que gira em torno do caráter absoluto do imperativo moral, do
"tu deves" incondicional da cons ciência moral, em detrimento embora da felicidade
terrena, tudo isso é feito,
(1) De Iorgane de Idme (1796); em resposta ao anatomista Samuel Thomas von
SOEMMERRING, que lhe dedicara sua obra do mesmo nome (Kiinigsberg. 1796).
(2) "Du sens intime" ia Aathropologie, trad. 1. TISSOT, Paris, Librairie philosophique
de Lagrange, 1863, págs. 68-69.
reafirmando a impotência da razão especulativa para dar-lhe demonstração válida, já
que é impossível deixar o mundo fenomenal:
a vida é, para nós, a condição subjetiva de toda experiência possível e, nos limites da
vida, não se pode concluir pela persistência da alma; pois a morte do homem é o fim de
toda experiência relativa à alma considerada como objeto de experiência . . .1 (Prole
gômenos a toda metafísica futura que possa apresentar-se como ciência, 1783.)(*)
4. O caráter prático da psicologia
Despojada, assim, a psicologia racional de toda validade especulativa, só resta às
pesquisas psicológicas um método empírico, "pragmático", que Kant denomina
"Antropologia" (Anthropologie in pragmatischen Hinsicht, 1798) ( ). Trata-se de uma
descrição do senso interno enquanto consciência da ordem do tempo, enquanto "intui" a
simultaneidade ou a sucessão das repre sentações temporais. Nessa maneira de conhecer
praticamente o interior do homem pelo exterior, a obra de Kant é fértil em o bservações
perspicazes:
quanto ao conhecimento e à afetividade, quanto ao grau das sensações, que aumenta por
contraste, novidade, mudança e intensidade superior.. - Apresenta igualmente numerosas
reflexões penetrantes sobre o caráter dos indivíduos (caracterologia e fisiognomonia), do
sexo, dos povos, das raças; sobre a superstição e a crença nos
"espíritos"; sobre os sentimentos doentios e o domínio que sobre eles pode exercer a
vontade.
Sendo de constituição débil:
"Meu peito fraco e estreito, que pouco jogo permite aos movimentos do coração e dos
pulmões, dera-me uma predisposição natural para a hipocondria que, em minha
juventude, chegava até ao desgosto pela vida."
Kant soube fazer triunfar em si mesmo essa vontade moral exaltada em sua obra:
"Ficou-me a opressão, pois a causa reside em minha estrutura corporal; tornei- me,
porém, senhor de sua influência em meus pensamentos e em minhas ações, desviando
minha atenção desse sentimento, como se ele de modo algum influísse em mim."
Está persuadido de que, ainda nas doenças reais, devemos distinguir cuidadosamente a
doença do sentimento da doença:
- na maioria das vezes E...] não se notaria a doença propriamente dita, que consiste, quase
sempre, apenas no mau funcionamento local de um órgão sem importância, se um mal-
estar geral, um desconforto, um sentimento desagradável ou uma dor não tornassem
muito penoso nosso estado. Vários desses sentimentos, porém, desses efeitos da doença
sobre todo o corpo, se acham, em grande parte, em nosso poder. Uma alma
() Damos o título da obra de KANT segundo a excelente edição em língua portuguesa,
com introdução, tradução e notas de Antônio Pinto de CARVALHO, publicada na
"Biblioteca Universitari , série 11 (Filosofia), vol. 3, Companhia Editora Nacional, São
Paulo, 1959. (3. B. D. P.)
(1) Antes de KANT, Ernst PLATNER (1744-1818) escreveu uma Neue
Anthropologie... (Leipzig, 1771- 1772, 2vols.; 2!ed., Leipzig, 1790,1 vol.)
242
243
fraca, delicada e, portanto, uma sensibilidade exagerada, fica completamente arrasada
por eles; ao contrário, um espírito mais forte, mais rijo, expulsa-os e domina-os."
(Anthropologie, op. cit., pág. 459.)
Positivamente, o kantismo significa que a apreensão sintética do espí rito, em sua
realidade primária irredutível, constitui a única psicologia possível. Mas, por sua crítica
da psicologia racional, por sua nítida delimi tação dos domínios respectivos da filosofia e
da ciência (cuja objetividade é garant ida pela universalidade formal das leis do
entendimento humano), Kant estimula indiretamente a criação de uma psicologia objetiva,
ainda que, pessoalmente, não acredite muito nisso. Um pouco à maneira de Augusto
Comte, que, em nome do "positivismo" característico, segundo ele, da menta lidade
moderna, nega toda validade à psicologia, por ele encarada sob a forma de psicologia
introspectiva ("Não se pode estar à janela e ver-se passar pela rua. No teatro,. não se pode
ser, ao mesmo tempo, ator no palco e espectador na sala") (1) e pretende reduzir seu
domínio ao da fisiologia e da sociologia (2). Num como noutro caso, a contribuição, por
negativa que seja, é um pôr-se em guarda quanto às condições de um conhecimento
válido do homem pelo homem e um preparo de terreno para a instauração dessas
pesquisas que constituirão uma "psicologia sem alma".
5. As dificuldades de uma psicologia como ciência
Citam-se freqüentemente argumentos de Augusto Comte contra a introspecção. São
menos familiares, nas terras de língua francesa, os de Kant sobre os obstáculos que, a
seu ver, impedem que a psicologia se torne ciência:
1. O homem que percebe que está sendo observado e procuram penetrar no seu interior,
ou fica embaraçado (e, a partir desse momento, pode não mais mostrar-se como é) ou se
esconde e não quer, então, ser conhecido como é.
2. Deseja ainda limitar-se ao exame de si mesmo? Cai numa posição critica,
principalmente no que diz respeito a seus estados de paixão, que, nesse caso, são rara
mente suscetíveis de dissimulação; pois, se os móveis estão em ação, ele não se
observa; e, se vem a observar-se, cessam os móveis.
3. As circunstâncias de tempo e de lugar, quando duradouras, produzem htbitos que são,
como se costuma dizer, outra natureza e que tornam o conhecimento de si mesmo, para o
homem, suficientemente difícil para que ele hesite em procurar ter uma idéia de si
mesmo, ou ainda com maior razão idéia de outro, com quem convive. Com efeito, as
diversas situações em que o homem é colocado pelo acaso, ou por ele próprio como
aventureiro, constituem grande obstáculo a que a antropologia atinja a categoria de
ciência formal." (Anthropologie, op. ci Prefácio do Autor.)
A distinção kantiana entre o senso interno e o senso externo, em suas relações com o
tempo e o espaço, conserva especial importância para o pensa
(1) Coam dephi!osophiepositice, lição 11.
(2) Caberia considerar num exame mais longo as idéias de Augusto COMTE e lembrar,
a propósito delas, as de BROUSSAIS (1772-1838), a quem COMTE consagrou, em
1828, um comentáno sobre as observações dos fenômenos cerebrais. (Examee da
Tmaité de Broussais.) Adversário dos ecléticos, aos quais critica de praticarem uma
psicologia mais imaginativa do que cientifica, BROUSSAIS preconiza o estudo do
homem nas bases de um método comparativo, orientado pelo principio de um
paralelismo psicobiotógico. (De l'irr,taiion ei de la folie, 1828.)
mento contemporâneo, tão fortemente sensibilizado à temporalidade( 1). Bergson e
Kant, malgrado todas as divergências doutrinárias (o primeiro exige do senso interno
"dados imediatos" inconcebíveis no contexto kantiano) se encontram na negativa da
possibilidade de medir os fenômenos psíquicos. E até por isso que Kant vê na psicologia
uma descrição de caráter mais prático que científico; pois, a fenômenos mentais, inscritos
no fluxo do tempo, não se poderiam aplicar leis matemáticas intemporais, válidas para o
mundo espacial. Semelhante decretação de impotência não impediu, certamente, que a
psicologia, desde Fechner e até desde Herbart, praticasse a medida. Mas poderiam ter
ocorrido, nesse domínio, equívocos e mal-entendidos.
Pierre Janet, de quem se conhece a importante contribuição para a nova ciência,
desejoso de caracterizar-lhe, em 1937, a evolução, num período de cinqüenta anos,
declarava a propósito do método dos testes:
"Sem dúvida, esse método media algo com grande precisão; nem sempre, contudo,
podia dizer com precisão o que media(
4
6. A intuição da alma como atividade
Se os limites do conhecimento estabelecidos por Kant foram transpos tos pelos idealistas
alemães, de Fichte a Hegel, nem por isso voltam eles à metafísica do Ser e da alma-
substância. Procurando deduzir o finito de um princípio infinito e absoluto, rejeitam a
noção de uma substancialidade finita, indispensável à elaboração de uma psicologia
racional; e chegam, assim, a dissolver a alma individual na reconstrução dialética da
realidade inteira(
É assim que Fichte não vê mais a eternidade na persistência do eu indi vidual após a
morte, e sim no Ichheit, "Eu" único e absoluto, considerado sob o aspecto de uma
atividade e de uma tensão. E na medida em que o eu empí rico disso participa que se
eleva à imortalidade. O filósofo substitui, pois, a idéia de uma alma substancial pela do
espírito que se eleva à consciência do princípio eterno das coisas, que contribui para a
realização eterna dos valores pelo papel que assume no surto da humanidade.
Na obra de Scheiling, particularmente Filosofia e religião (1804) e Pesquisas filosóficas
sobre a essência da liberdade humana (1809), especial relevo é dado ao problema da
existência: à passagem do eu como dado con creto e único, que nenhuma razão pode
explicar, à ipseidade, isto é, ao existir sob a forma do eu.
(1) Jacques HAVET, que compreendeu que o tempo desempenha um papel central na
filosofia de KANT, consagrou notável estado a essa questão: Kant ei le pmobléme da
temps, N. R. F.; Galtimard, 4t cd., 1946. Cl. especialmente o capitulo VII: "Le temps eI
l'expérience interne".
(2) Comunicação sobre "Les conduites sociales", ao Xl Congresso Internacional de
Psicologia, Paris, de 25a31 dejuthode 1937.
(3) A rejeição da alma como substância e sua assimilação, em sua realidade concreta, á
atividade espi ritual, considerado o indivíduo isolado como abstração, estão presentes
entre os continuadores de HEGEL na Itália, Benedetto CROCE e Giovanni GENTILE,
que lhe desviam o pensamento no sentido de uma imanência absoluta do Espírito: "... O
indivíduo é uma instituição [ porque o Espírito o forma, e porque transforma e desfaz
esses grupos e relações de tendências e hábitos em que se configura a individualidade,
exatamente como forma, trans forma e desfaz essas instituições chamadas sociais ou
históricas, a família romana ou a família cristã, a casta india na. a escravidão antiga ou a
servidão medieval, que se poderiam considerar outros tantos indivíduos que nasceram.
viveram e morreram, à maneira de César ou Napoleão." (CROCE, "O indivíduo, a
Graça e a Providencia - nos Fmamrni'ni,diEiwa, Saggifiliixvfiei. VI. Bari, 1922, pág.
95.)
244
245
Emile Bréhier assinalou admiravelmente as articulações e as tensões dessa obra densa,
de incontestável interesse na perspectiva em que se coloca ram as filosofias ditas "da
existência" (1).
7. Hegel e o universal-concreto
Quanto a Hegel, na imensa empresa constituída por sua memorável Fenomenologia do
espírito (1807): acompanhar a experiência que a consciên cia tem de si mesma e de seu
objeto, e sua transformação de consciência natural em consciência de si, visa a
demonstrar que o espírito em si da natu reza se torna com o homem, espírito para si. Essa
operação, "ciência da expe riência da consciência", destinada a exprimir a verdade do
Todo, contradiz tanto uma psicologia individual que pretendesse ser exaustiva, como uma
sociologia que aspirasse à exclusividade. Como Kant, está Hegel persuadido de que a
essência do conceito implica a unidade sintética da apercepção:
unidade do eu penso ou da consciência de si, condição da atividade do espí rito.
Pretende, entretanto, determinar o papel e a função do entendimento abstrato por meio
de uma razão "dialética", cujas operações progressivas (eliminada a "coisa em si")
devem permitir ao homem compreender, sem outro resíduo além de um começo
absoluto, todo o desenvolvimento da reali dade física, biológica e histórica. A aparição
do homem, que toma consciência de si mesmo e do mundo é, ao mesmo tempo, a
tomada de consciência do Logos, até então "alienado" na Natureza e inconsciente. E
essa tomada de consciência, que assinala o começo da história e de suas lutas, se
desenvolve até o "Saber absoluto", quando o Homem-Deus conquista o sentido da
realidade total e a justifica. Não nos cabe aqui alongar-nos sobre essa epopéia do Logos
hegeliano, sobre a teogonia que pretende explicá-lo. Basta lembrar que existe na obra de
Hegel uma ambiguidade (muito já se falou de sua "dupla face") resultante do fato de
que a reconstrução especulativa do sistema universal do mundo é impossível sem a
consciência humana e seu desenvolvimento; do fato de que a Fenomenologia do
espírito, que descreve as vicissitudes da consciên cia humana, serve, pois, de escala para
todo o sistema; e basta lembrar também que a interpretação deste sistema, conforme se
oriente para o pri meiro ou para o segundo aspecto (para a cosmogonia ou para a
antropologia) deu origem a uma direita e a uma esquerda hegelianas.
A dialética hegeliana, com o destino heracitico que reserva às oposições e às
contradições, admitidas no real (natural e histórico) como o motor de seu
desenvolvimento; com sua pretensão de tudo explicar por um proceder racional capaz de
repensar em seus vários níveis a própria articulação das coisas, constitui a síntese mais
poderosa do século XIX, e a mais aventurosa também, a muitos respeitos. Não deixou de
alimentar as controvérsias filosó ficas até nossos dias, a despeito de eclipses passageiros;
e sabe-se que tanto o marxismo quanto o assim chamado "existencialismo" nasceram da
revolta de Karl Marx e de Kierkegaard, respectivamente, contra um pensamento que
neles exercia uma como fascinação ambivalente. Na perspectiva que aqui
(1) Schelling. Alcan, Paris, 1912.
adotamos, trata-se apenas de compreender o que se torna, em Hegel, o domí nio
considerado, em geral, como o da psicologia( 1)
Desde o há característico da evidência sensível, e desde as determina ções racionais mais
gerais do aqui e do agora, o desenvolvimento da consciên cia é descrito por Hegel como
processo ascendente, capaz de superar gradual mente os limites assinados ao ser humano
por sua situação no seio do mundo físico, orgânico e social - esses limites que Kant
decretava intransponíveis. No contexto hegeliano, o eu é encarnado, a individualidade
humana é a própria concreção do universal. Donde, na obra de Hegel, a constante
repulsa pelo moralismo abstrato: "O frio dever kantiano é o último bo cado indigesto que
a Revelação deixou à razão e lhe pesa no estômago", declara ele em sua História da
Filosofia (2).
A estrutura psíquica, inconcebível sem um organismo corporal, condiciona, por sua vez, a
atividade espiritual. O eu é dado com o objeto indi vidual, constituído por "este- homem-
aqui", sem o qual não pode haver cons ciência. E o próprio objeto não é al
senão para um eu que não desaparece da consciência, como os objetos que &a recebe por
impressões sensoriais sempre mutáveis. Os eus têm, assim, evidências sensíveis
diferentes, e sua individua lidade, como tal, é inexprimível ç or conceitos. Um eu
particular é uma unidade que se revela a si mesma e cuja forma é a de uma função
unificante e universajizante, sem determinação. E o Eu Eu, como diz Hegel. A pre sença
dessa identidade "tautológica" anuncia, ao mesmo tempo, o poder de dar nome às coisas e
o de manter na consciência as separações estabelecidas pelo entendimento. Sabe-se como
essa energia que fundamenta a vida do espí rito despertava a admiração de Hegel, cujo
esforço titânico visa a explicar, não sóo que se apresenta à consciência, mas também o
pensamento e a linguagem que revelam esta aparição( a linguagem que, segundo ele,
representa a
(1) O existencialismo será rapidamente considerado a propósito da fenomenologia de I-
IUSSERL. Quanto ao marxismo. particularmente na forma extrema que o constitui ent
"materialismo dialéiico'. cumpriria largo estudo para esclarecer-lhe as relações com a
psicologia. Sua maneira de conceber a objetividade e, sobretudo, o 'reflexo" da
realidade na consciência, pode ensejar multo equívoco, Baste lembrar que nele o ser
humano é concebido como eminentemente social. Foi pelo trabalho em sociedade que o
homem saiu da animalidade, adquiriu estrutura fisio lógica mais complexa, à qual
corresponde vida mental mais rica. A aparição do pensamento e da reflexão é insepa
rável da aparição da linguagem, por sua vez inseparável de todas as relações concretas
que o trabalho desenvolve entre os homens. As contradições nas idéias são atribuidas a
contradições no próprio real; e postula-se que uma transformação das condições sociais
liberará a consciência humana de suas contradições, Não se trata de renovar de início a
consciência moral, e sim de abolir o regime da propriedade particular - do qual o egoísmo
é, de certo modo, o corolário - pelo da propriedade socialista, a fim de que triunfe a idéia
da fraternidade. Quanto às imbricações atuais dessa concepção (a qual comporta
numerosas passagens subreptícias do indicativo para o imperativo> com a psicologia, cf.
o relatório de René ZAZZO, de uma viagem que fez à U. R. S. S., em abril de 1955, com
dois outros psicólogos, igualmente professores da Sorbonne, Paul FRAISSE e Jean
PIAGET (revista La Raison, nt 15, 3? trimes tre de 1956, págs. 7-23>. Cl. também, de
Georges POLITZER. "Critiques des fondements de la psychologie" (nos dois únicos
números publicados da Rei'u de Psvc/io/vgir Cuiscrêie, 1? de fevereiro e 1? de julho de
1929); "Un faux contre'révolationnaire, le "Freudo-marxisme"" (revista Cvni,nune, n? 3,
novembro de 1933); "Fio de la psycha. nalyse" (revista La proséc. sob o pseudónimo dc
T. W. MORRIS>.
(2) "Uma coisa impressiona vivamenfe em HEGEL: não é um moralista, sente-se que a
moral propria mente dita não o preocupa da maneira como, por exemplo, preocupou
KANT ou até NIETZ5CHE; ao mesmo tempo, estuda constantemente as condições da
consciência moral. Consciência pecadora, consciência de culpabili dade, consciência que
perdoa, são as figuras por ele analisadas, o que, aliás, vai muito mais longe que todos os
discursos de moral." )Jean HYPPOLITE: "Phénoménologie de Hegel eI psychanalyse",
em La psyehaioairse, publi cação da Société Française de Psychanalyse, vol. III, P. U. F.,
1957, pág. 24, nota.)
(3) É provável que, sob este aspecto, HEIDEGGER se aproxime de HEGEL pelas
preocupações da mesma ordem. Jean WAHL, com sua habitual argúcia, destacou esse
parentesco intelectual assinalando o papel desempe nhado por HOLDERLIN. amigo e
condiscipulo do jovem HEGEL. a qaem HEIDEGGER dá grande importância. Cf.
pnncipalmente de WAHL, "Hegel e Heidegger", estudo publicado em apêndice ao
volume de Angéle MARIETrl, Pviir cxnnaíire /a peinvée de Hi'ge/. Bordas. 1957. págs.
185-195. Cl. igualnientr, de HEIDEGGER. Hcge/i !kgriff der Erfahrnng in Ho/zwrge,
Clostermann, 1950.
246
247
concretização do sentido universal e como o lugar de intercomunicação em que surge e
se desenvolve o problema do nós. A consciência de si universal se elabora, assim, por
um parto doloroso que põe em jogo a intercomunicação das consciências. Para Hegel,
trata-se de descrever o itinerário percorrido pela consciência, através das consciências,
em luta por seu reconhecimento recí proco. Pois, uma consciência individual é sempre,
parcialmente, a consciência em geral (Fenomenologia do espírito, 1, 308) e o eu se
reencontra e se reflete, forçosamente, no eu dos outros. Essa interdependência condi
ciona a história humana; assegura a ordem ética do mundo, ordem que triunfa sempre
sobre os "discursos pomposos referentes ao bem supremo da humanidade", sobre os
grandes ideais que "exaltam o coração e deixam a razão vazia", que "edificam sem nada
construir". Tais declarações só apre sentam um conteúdo abstratamente subjetivo:
o indivíduo que pretende agir com fins tão nobres e tem nos lábios essas frases
excelentes, passa, a seus próprios olhos, por um ser excelente; sente-se crescer, a cabeça
cresce, e também a dos outros, mas é apenas o intumescimento vazio( 1)."
Se o indivíduo natural, enquanto indivíduo, se opõe à multiplicidade infinita do Todo, é
permanecendo, forçosamente, ligado a ela, condição de sua vida; portanto, é, ao mesmo
tempo, destacado da realidade total e solidá rio com ela. E um consciência é inseparável
desse ser sensível e individual, ligado pelo desejo aos outros seres sensíveis e individuais
que ela se representa. Rompendo com a tradição intelectualista, atribui Hegel lugar
essencial à afetividade, aos instintos, que imanizam as relações dos seres vivos. Tem um
senso profundo de seu domínio, ao mesmo tempo que da nostalgia da unidade que,
através das lutas e sofrimentos da encarnação, anima os existentes indi viduais. A Vida,
nos diz ele, reconduz ao sentido da vida (Fenomenologia do esp frito,
1, 152). E, como esse sentido só pode ser experimentado num eu, significa isto que ela
nos reconduz à consciência.
Por isso, uma consciência individual é, ao mesmo tempo, distinta e solidária da
consciência. Sua vida é, essencialmente, uma vida de relação com outra, que jamais pode
ser radicalmente "outra", pois não caberia falar de um eu fora dessa relação. E no
momento superior da consciência, com o aparecimento do Eu = Eu (2), que a alma se
identifica com o espírito, torna- se reflexão subjetiva em si, energia que nega o mundo
natural como tal e a própria alma como substância. No grau mais baixo de sua curva
ascensional, ela é uma realidade natural que só tem o senso de si. Reduz-se, então, a uma
vida psíquica obscura, de onde vem e para onde retorna tudo quanto se produz no mundo
natural e onde se penetra de novo no sono. Embora já se afirme como centro da sua
própria sensibilidade, é ela teatro de sensações difusas, onde se confundem ainda sujeito e
objeto. Nesse estádio primitivo, o eu embrionário, inconsciente, afetivo, onde se formam
os hábitos e onde podem surgir os fenômenos de sonambulismo, de telepatia, de
premonição, dá sua tonalidade à vida imediata e espontânea. Não é esse, porém, o espírito
volente e pensante:
(1) Cl. "L'actualisation de la conscience de soi rationnelle par sa propre activité", ia
Phénoménologie de l'esprit, trad. 3. HYPPOLITE. Aubier, 1939, t. 1, págs. 288-321.
(2) "A expressão da consciência é Eu = Eu; liberdade aba frata. idealidade pura."
(Eacicé. 424.)
'Os conhecimentos científicos, ou as noções filosóficas e as verdades gerais, exigem
outro terreno, o pensamento que surge da obscuridade da vida afetiva para elevar-se à
livre consciência; é tolice esperar do estado de sonâmbulo revelações sobre as idéias."
(Enciclopédia, § 406.) (l)
Quando as forças compreendidas no senso de si rompem as barreiras inseparáveis da
vida do eu consciente, a saúde mental se vê comprometida:
"Esse elemento terrestre liberta-se quando se relaxa a força da sabedoria e do universal,
dos princípios teóricos ou morais, sobre o elemento natural, pois, em geral, essa força os
domina ou dissimula-os; o mal, com efeito, existe em si no coração que, como imediato, é
natural e egoísta. E o mau gênio do homem que domina na loucura; opõe-se ao elemento
melhor e sábio que também está presente no homem e o contraria e, assim,
esse estado é a ruína e a desgraça do próprio espírito. O verdadeiro trata mento psíquico,
por conseguinte, se cinge a essa concepção de que a loucura não cons titui uma perda
abstrata da razão, nem do lado da inteligência nem do lado da vontade e da
responsabilidade, mas uma simples perturbação do espírito, uma contradição da razão
que ainda subsiste, tal como a enfermidade física não é uma perda abstrata, isto é,
completa, da saúde (isso seria, com efeito, a morte), mas uma contradição existente na
saúde. Esse tratamento humano, isto é, tão benevolente quanto razoável, da loucura
- e Pinel tem direito ao maior reconhecimento por tudo quanto fez nesse terreno - supõe
o doente racional, encontrando, nesta suposição, um ponto de apoio, para consi derá-lo
sob esse aspecto; da mesma forma que ela encontra tal ponto de apoio (no que se refere á
corporalidade) na vitalidade que, como tal, dispõe ainda de alguma saúde."
(Enciclopédia, § 408.)
8. O inconsciente na filosofia alemã
No hegelianismo, sob a armadura abstrata da expressão, palpita um senso cósmico da
vida psíquica, onde o inconsciente intervém sob a forma de tendências ocultas no fundo
de todo ser, agente como outras tantas causas sutis, mais eficazes que as causas visíveis;
e de primordial importância no desabrochar das lendas, dos mitos, da linguagem. O
"racionalista" Hegel alargou, pois, na realidade, imensamente, o domínio do pensamento.
Sabe-se que na obra de Schopenhauer, seu grande adversário, o inconsciente aparece sem
contrapartida racional positiva, malgrado os elementos platônicos que nela se podem
encontrar, sob o aspecto de uma forma irracional investida de primazia ontológica sobre a
inteligência.
De sua grande obra, O mundo como vontade e representação (1818) e, particularmente,
do capítulo intitulado "Primazia da vontade sobre o inte lecto", poder-se-ia extrair uma
psicologia baseada na subordinação da vida consciente àquio a que hoje chamamos
"motivações inconscientes" (2). Opiniões análogas reaparecem em Cari Gustav Canis (
Vorlesungen über Psy chologie, 1831; Psyché, 1846) igualmente com uma espécie de
esboço freudiano:
(1) Eacidopédia das ciêaciaufiloséficas, O edição em 1817. Tradução francesa de J.
(3IBELIN; Pr de l'Eacyclopédie des sciences philosophiqi Vrin. 1952.
(2) "As extensas concordãnctas da psicanálise com a filosofia de Schopenhauer - ele não
só defendeu a pnmazia da afetividade e a importância preponderante da sexualidade.
como até adivinhon o mecanismo do recalque - não se deixam restringir a meu
conhecimento de sua doutrina. Li Schopenhauer ntoito tarde ent ntinha vida," (FREUD,
Ma de es la puychanalyse, trad. francesa de Marie BONAPARTE, Les Essais, XXXVII,
GaIli mard, 1949, pág. 93.)
248
249
Existe uma região da vida da Alma onde realmente jamais penetra um raio de
consciência; podemos, portanto, chamá-la Inconsciente absoluto [ Ademais, em face dela,
temos um inconsciente relativo, isto é, esse domínio de uma vida que real mente já
atingiu a consciência, mas tornou a ser, temporariamente, inconsciente( 1)."
Canis faz da alma o princípio da vida e tenta interpretar o rosto e a forma do corpo
vivente como a expressão do espiritual consciente e incons ciente (Do simbolismo da
forma humana, 1853).
Também E. von Hartmann, em sua Filosofia do inconsciente, de 1869, afirma o primado
da vida inconsciente. Quanto a Nietzsche (que invoca a seu favor o testemunho da
psicologia, tida por ele como a "senhora de todas as ciências", é com uma espécie de
encarniçamento que deseja pôr a nu os móveis inconscientes da conduta humana, o mais
das vezes inconfessados ou mascarados, com vistas a essa transmutação de valores da
qual se faz anun ciador (particularmente em Humano, demasiado humano, 1878;
Aurora, 1881; Para ah do bem e do mal, 1886; A genealogia da moral, 1887)(2).
Atribuindo embora a mais alta dignidade ao homem-criador-de-valores, Nietzsche
psicólogo se afadiga, paradoxainiente, em reduzir o psíquico ao fisiológico e à físico -
química, considerando a tomada de consciência como epi fenômeno(
(1) Citado por Jean FILLOUX, L'inconscient, P. U. F. (Que sais-je?), 1952.
(2) "A Nietzsche .1 cujas intuições e pontos de vista freqüentemente concordam da
maneira mais surpreendente com os resultados penosamente adquiridos pela psicanálise,
evitei precisamente por isso; fazia, pois, menos questão de priortdade do que de
permanecer livre de toda prevenção." (FREUD, Ma cio ei la p isp. cit.. pág. 93.)
(3) Sobre N,rizuche psicólogo, cl. o estudo de Henri REVERDIN, da recopilação de
confertiscias pronun ciadas em Genebra sob os auspícios da Fundação Marte Gretler,
em 14 e 15 de outubro de 1944, por ocasião do primeiro centenário de nascimento do
filósofo tEugen Re,ilsch Vertag, Erlenbach, Zurique). Do mesnio autor, aluno de
Jean.lacques GOURD. de Adrirn NAVILLE. de Gaslon EROMMEL e de ftiéodore
ELOURNOY, que especial. isente estudou a psicologia religiosa. cf. La nsiiisiii
d'expéneiiee si/ou W,//iu,s fumes (Genebra e Basitéia, Georg eI Cc. 1913) e Lis i di'
/uis' di' /'i'vpi'ii (Neucliálet, Editioris dela Baconnióre, 1961,).
250

CAPÍTULO XIX
DE MAINE DE BIRAN A BERGSON
O "fato primitivo" do eu e a primazia do esforço voluntário
2. A tarefa da psicologia
3. A liberdade e a vida afetiva
4. A exigência de uma psicologia espiritualista
5. O aparecimento do pensamento de Bergson
6. Os 'dados imediatos" da consciência e o "eu profundo"
7. As duas memórias
8. A influência do bergsonismo
1. O "fato primitivo" do eu e a primazia do esforço voluntário
Embora a maior parte de suas obras se achasse ainda na condição de manuscritos(
Maine de Biran (1766-1824) era muito apreciado no mundo intelectual da capital
francesa. Amigo de Cabanis e de Tracy, freqüentara no salão de Mrne Helvétius a
"Sociedade d'Auteuil". Mais tarde, em sua própria casa, recebeu regularmente homens
como Royer-Collard, Ampère, Guizot, os irmãos Cuvier e o jovem Victor Cousin, numa
época em que os espíritos se preocupavam com "restaurar" igualmente a vida cultural,
reanímar a tradição católica abalada pelos enciclopedistas, buscando-lhe um terreno de
reconciliação com um certo racionalismo. E assim que Maine de Biran, que sofrera,
primeiramente, a influência dos sensualistas e dos ideólogos e cuja vida mental estivera,
durante algum tempo, sob a dependência das idéias de Locke e de Condillac, delas se
afastou para desenvolver, aprofundando a noção de esforço, já presente em Cabanis e em
Destutt de Tracy, uma teoria
(1) Victor COUSII9 foi o primeiro em dar a conhecer os pensamentos de MAINE DE
BIRAN, a quem considera como profundo nietafisico ( Oca Ires phi/osophiques de Maine
de Riras, Paris e Leipzig Jutes Renoaard et Cie, 4 tornos, 1841). Depois, um genebrino.
Ernest NAVILLE publicou em 1859, com a colaboração de seu compa triota Mas
DEBRIT, uma edição completa (Qracres inéditr de Mai,ie de Riras, Paris, Decobry, E.
Magdelesne et d1e. 3 vols., 18.59). Nora edição em 14 volumes foi publicada entre
1920 e 1949 (Ora erro de Maine de Biran, por Pierre TISSERAND, Paris, Fél(x Alcan e
P. U. F.). Por outro lado, como a familia NAVILLE, depositária dos papêis inêditos de
M. DE BIRAN, encarregou o prol. GOUI-IIER de fazer-lhes o mame e a publicação,
esse longo trabalho deu origem a uma edição integral doioursisil em 3 volumes
(Editions de la Baeonniêre, 1957).
1.
251
da alma humana que lhe acentua o elemento ativo e voluntário( Nessa qualidade, foi
adotado como guia pelos' ecléticos", dessa escola espiritualista francesa que tinha por
chefe Victor Cousin e por principais representantes Royer-Collard, Théodore Jouffroy,
Paul Janet... e, por outro lado, foi profun damente influenciada por escoceses,
especialmente Thomas Reid e Dugald Stewart. Hoje Maine de Biran é reconhecido
como o promotor, em França, de uma psicologia metafísica, da qual a obra de Bergson
aparece como coroa mento. Psicologia que procura opor ao materialismo uma concepção
do psiquismo humano que também invoca a experiência, mas uma experiência entendida
diferentemente, ligada a um método de observação interna que invoca a seu favor o
testemunho do dinamismo da consciência e que recorre ao eu considerado como
atividade do espírito. A obra de Maine de Biran repre senta, assim, uma passagem do
naturalismo do século XVIII (do qual Rousseau foi o único grande adversário) para uma
forma de espiritualismo que substitui o método indutivo de Francis Bacon, considerado
válido para o mundo exterior, por nova maneira de abordar e tratar o homem interior:
trata-se de partir de um conhecimento primeiro, sem o qual nenhum outro seja possível e
com o qual todos os outros se tornem tais, isto é, trata-se de um fato primitivo que
encerre, sob a unidade da consciência, um sujeito pensante ou cognos cente e um modo
qualquer pensado ou conhecido." (Nouveaux essais d'anthropologie, Introdução.)
Essa apreensão do eu vivente como fato primitivo, não podemos esperá la nem da
observação sensível nem do processo racional( Ela só é possível ao grado de um
sentimento interior, concebido por Maine de Biran num senti do que anuncia a intuição
bergsoniana. Tais preocupações, que ressurgirão em Bergson, mais estruturadas,
assinalam, sob certo aspecto, um retorno a Sócrates, a Santo Agostinho e ao Descartes
do Cogito:
"O princípio de Descartes: penso, logo existo ou, melhor, penso, existo, é o
primeiro axioma psicológico, ou o primeiro juízo intuitivo de existência pessoal.
Podemos enunciá-lo assim: Um ser não existe para si mesmo senão na medida em que o
sabe ou o pensa. "(Fondements dela psychologie, Systéme réflexif, cap. IV.)
Os prolongamentos dessa apercepção em Maine de Biran muito devem a Leibniz, que
ocupava lugar de honra em seu universo mental, a quem cita freqüentemente, e a quem
consagrou um estudo especial. No esforço de Leibniz para superar o dualismo
cartesiano, aprecia principalmente a valori zação nova das noções de força e de
finalidade( Essa "força", na psicologia de Maine de Biran, se torna esse esforço
voluntário, para ele testemunho por excelência da realidade do eu como potência
espontânea e livre. Pois o ser humano, quando move o corpo, não poderia duvidar de
que lhe cabe executar ou suspender este ou aquele ato, a seu grado. Para Maine de
Biran, esse eu -
(1) A respeito da crítica leita por MAINE DE BIRAN ao sensualismo de CONDILLAC.
cl., principal mente, suas Notes sue quelg passages de I de Lignar, 1815.
2) "Passei a ttotte de 25 de noventbro em casa do abade MORELLET. Cousersaçóo
psicológica. Meu velho amigo perguntou-me subitantente: queéos'n? Nãu pude
responder. E preciso que a gettte se coloque no ponto de vista intimo da conscibncia e,
tendo presente entho essa unidade quejulga todos os fenômenos, permanecendo
invariávet. aperceba o eu, não pergunte mais o que é, -' (Jouen 181 ?,)
(3) Cl Euthyme ROBEF. Leibniz et Maine de Bieun, tese complementar para o
doutorado em Letras, Paris, Jouve, t
252
considerado como idêntico a si mesmo em qualquer nível (físico, intelectual ou moral) de
sua atividade, revela-se, na apercepção imediata que nos dá a certeza dele, como uma
força, não força vital, mas hiperorgânica, capaz de dominar os órgãos, que -se tornam,
então, instrumentos de suas decisões; e como uma resistência deve sempre ser vencida,
a análise do esforço voluntário conduz, ao mesmo tempo, à certeza de que o eu está
ligado ao não-eu, e de que certa dualidade é inerente à realidade humana. Maine de
Biran, que se limitara, primeiramente, a estudar o fenômeno do hábito (influence de
l'habitude sur la faculté de penser, 1802), distingue as sensações que carac terizam a
afetividade e a passividade, e as percepções ligadas à atividade motriz e à voluntária.
Pois, se o hábito embota as primeiras, reforça, ao contrário, as segundas, com permitir
ao espírito volver a atenção para novos objetos e exercendo, pois, desse ponto de vista,
influência favorável na "facul dade de pensar". Maine de Biran chega a considerar o
esforço muscular como o fundamento da vida psíquica, na medida em que a sensação
desse esforço (sentimento do eu como força agente que se choca contra um obstáculo)
se acha na origem de nossa crença no mundo exterior. -
2. A tarefa da psicologia
Semelhante fato primitivo, em sua opinião, vem anular a critica de Hume à noção de
causalidade e sua pretensão de reduzi-la a um simples jogo de associações habituais. Se
o eu não estivesse presente em cada uni de seus atos voluntários e se disso não tivesse a
sensação imediata, o espírito humano jamais teria chegado a essa noção:
"Á apercepção imediata do eu é a origem e a base única de todas as noções universais e
necessárias de ser, de ,nubstáncia e de causa: entra apenas como condição ou parte
integrante das idéias, produtos sucessivos e eventuais da experiência exterior."
(Nouu'eaux essais d'an:hropo/ogie, lntrod.)
Nessas condições, e embora não se possa compreender a ação que a vontade exerce nos
músculos, o testemunho do senso íntimo é irrefragável; e tampouco o ocasionalismo de
Malebranche (que atribui unicamente a Deus toda força agente) teria razões contra esse
senso. A questão, pois, não é essa. E antes, realmente, segundo Maine de Biran, saber
como o eu chega a locali zar sensações experimentadas como suas, reconhecer objetos
dotados de qualidades determinadas e a enuncjar juízos universais. Na opinião do filóso
fo, é a indagação referente a esses problemas que constitui a tarefa da psico logia, que
não tem mais por objeto o organismo como tal, mas aquilo que caracteriza propriamente
o ser humano. Sem negar certa importância às sensações externas definidas (sentido
muscular e térmico, vista, etc.), Maine de Biran atribui ao esforço voluntário papel
decisivo, não só no respeitante à vida intelectual e moral do homem como no concernente
às localizações orgânicas:
"Pela apercepção interna imediata, o sujeito eu se distingue não só do objeto sentido ou
pensado, isto é, da causa das afecções que experimenta no interior ou dos objetos que se
representam no exterior; ademais, também se distingue a si próprio, no
253
---4
fundo de sua existência pessoal, das idéias e das sensações como representações que lhe
chegam e passam incessantemente." (Nouveaux essais d'anthropologie, lntrod.)
Por isso, o filósofo vê no esforço aliado ao tacto, que se torna, assim, tacto ativo, o
primeiro instrumento do conhecimento objetivo. Considerando embora que não seria
possível, como querem os idealistas, pôr em dúvida as realidades correspondentes às
sensações, está persuadido de que a natureza dessas realidades é toda diferente das
sensações. Encarada desse ângulo, sua gnosiologia se aparenta às opiniões, mais tarde
desenvolvidas pelo chamado "existencialismo", que poderia, aliás, no próprio motivo de
inspíração considerá-lo como precursor:
"Desde a infância, lembro-me de que me espantava o sentir-me existir; como que por
instinto, já era levado a olhar-me por dentro para saber como podia viver e ser eu."
(Nouveaux essai,s d'anthropologie, Introd.)
Segundo Maine de Biran, as idéias reflexivas e pretensamente inatas não passam do fato
primitivo de consciência "analisado e expresso em seus diversos caracteres":
"O ato de reflexão faz, por assim dizer, resultarem do sentimento do eu outras tantas
idéias de atributos, a princípio individuais e que assumem igualmente o caráter universal
e objetivo de noções, quando são notados separadamente, ou abstraídos do eu que os
pensa; é assim que formamos as noções de inteligência, de vontade, etc. (Notes sur
quelques passages de l'abb de Lign'ic.)
Maine de Biran conhecia a obra de Kant, que comenta várias vezes em seu Journal de
maneira muito lisonjeira. Adota a distinção kantiana entre númenos e fenômenos, admite
que a alma não a vemos intuitivamente e dela conhecemos apenas a sua manifestação: o
eu ou existência fenomenal; mas esse conhecimento se lhe afigura suficiente para
justificar, pela reflexão, as crenças espíritualistas quanto à sua natureza e ao seu destino:
"... a apercepção imediata interna da força produtiva não é como o raio direto, a
primeira luz apreendida pela consciência? [ e a consciência reflet ida de força ou de
atividade livre, que dá objeto imediato ao pensamento sem sair de si mesma, não é
como a luz que se reflete, de alguma forma, do seio do absoluto? (Introduction sur les
Leçons dephilosophie de M. Laramiguière. § VIII.)
Opõe Maine de Biran, à concepção kantiana do conhecimento como síntese espontânea
dos dados brutos da experiência amorfa e das categorias do entendimento, a idéia de que
o ato cognitivo é essencialmente atividade, esforço, querer - noções que nele substituem
as "formas" da sensibilidade.
3. A liberdade e a vida afetiva
Cumpriria considerar tudo quando Maine de Biran escreveu sobre a psicologia no
aspecto da sensibilidade (importantes funções politicas( 1) não o
(1) MAINE DE BIRAN foi administrador da Dordogne (1795-1797), membro do
Conselho dos Quinhen tos (1797-1798), subprefeito de Bergerac sob o Império (1806-
1812), conselheiro de Estado e deputado de Bergerac
impediram de fundar, e presidir, em Bergerac, uma Sociedade médica que reunia não
apenas médicos, como cientistas de vária formação).
Observações acerca do sono e dos sonhos. fenômenos de sonambulismo, formas de
alienação mental, sensações inconscientes, tudo que se relaciona com o homem
concreto lhe interessava:
"Pelo pensamento reduzi o homem ao estado de ser sensível e móvel, sem vontade ou
liberdade, e viu-se que, nesse estado, ele não tinha nem mesmo personali dade. (Mas
haverá personalidade sem sensibilidade? Eis ai todo o mistério.)" (Journal, junhode
1816.)
Numerosos escritos de Maine de Biran - que conhecia muito bem os trabalhos de
Boerhaave, de Bichat, de Cabanis, de GalI - mereceriam exame: Mémoires sur les
perceptions obscures, Observations sur le système du De Gall, Nouvelles considérations
sur le so,n,neil, les songes ei le somnam bulisme, Essai sur les fondements de la
psychologie et sur ses rapports avec l'étude de la nature, Nouvelies considérations sur les
rapports du physique et du moral de l'homme, Distinction de l'âtne sensitive et de l'esprit
selon Van Helmont, Considérations sur les principes d'une division des faits psycholo
giques et physiologiques, etc. A segunda parte, por exemplo, de suas Obser vations sur le
systême du D Gall( 1) é consagrada a uma teoria das emoções. Em sua opinião, toda
emoção está ligada a determinada alteração ou mudança das funções
orgânicas: circulação, respiração, secreção, etc., e a teoria de Gali não pode explicar
oscilações e conflitos da vida emocional:
' as faculdades afetivas têm sede no cérebro, como as faculdades intelectuais, de onde
vem, então, essa oposição e essa luta que sentimos em nós mesmos, entre dois
princípios de movimentos e determinações: essa potência de querer, verdadeira força
motora, ora dominante sobre a das paixões, dos instintos e dos apetites que puxam em
sentido contrário, como no caso do Sábio estóico; ora em equilíbrio com ela, como nas
afecções racionais; ora subjugada, como nessas paixões verdadeiramente infelizes nas
quais a gente se sente arrastada por uma espécie de fatum?" (Obser vations sur le
système du Dr Gol).)
As afecções da alegria, da tristeza, da calma, da ansiedade, da cora gem, cia timidez,
etc., que parecem seguramente ligadas a certas modalidades
durante a Restauração (1818-1824). Tal atividade, que não impede a elaboração de uma
obra onsiderávnl, espanta num homem que alguém seria levado a catalogar entre
ospsicaslénicos que Pierre JANET irá descrever. Seuiournal é fértil em citaçêes deste
gênero: "... não tenho o hábito dos negócios, sou tímido, sem nenhuma confiança em
mim mesmo" (novembro de 1814). "A menor duvida sobre a opinião de outrem a meu
respeito atormenta-me, fere-me e me pêe fora de mim" (março de 18151".. a
impossibilidade de organizar minha vida é uma causa de perturbação, de agitação e de
um terrível vazio que experimento com frequência fora de meus momentos de trabalho"
(abril de 1816), "Sinto um grande vazio, em toda a minha existência, não tenho hora
para nada, falta-me ponto de apoio, ocupação fixa meu ser só encontro um fundo estéril
e frio; estou desinteressado de tudo que me cerca" (7 de junho de 1816). "Passei um mau
dia, agitado por impressões de medo, tristeza e embaraço a propósito de tudo" (30
dejulho de 1816). "Estou sempre no mesmo estado de fraqueza, desconfiança,
perturbação interior e sentimento de minha incapacidade, tanto mais penoso quanto mais
me comparo àqueles com quem convivo e que têm um exercício fácil de todas as suas
faculdades" (14-18 de junho de 1817). "Nenhuma reaçõs, nenhum calor, nenhuma
vivacidade, nenhuma presença de espírito..." (17 de novembro de 1817). "Como estou
fatigado da tiralua deste corpo, destes miseráveis nervos que meditam a lei)" (29-30
dejunho de 1818).
II) Sabe-se que o médico alemão Franc Joseph GALL (1758-1828), que trabalhou,
principalmente, em Paris, é o inventor da chamadafreso/ogia. A nova ciência tinha por
objeto localizar as capacidades intelectuais e morais por uma descrição das
protuberãncias do crânio. Pode-se ver uma sobrevivência dessa tentativa em certas
expressões da linguagem familiar, como quando se diz de alguém que tem bossa para a
matemática ou pane o comércio.
254
255
das funções vitais, interessam todos os órgàos. Há impressões imediatas passivas que o
senso íntimo nos leva a localizar em determinados órgãos internos, como a fome, a sede,
uma cólica, uma dor de estômago, etc., e se situam realmente nas partes com as
quais são relacionadas. Outras há, porém. que o senso íntimo é incapaz de atribuir a uma
parte determinada do corpo. Se se pode saber, fisiologicamente, que elas se originam de
determi nada lesão orgânica ou acompanham determinada forma de alteração de certas
funções essenciais à vida, não são sentidas, entretanto, nos órgãos lesados, como não
são sentidos os movimentos que constituem as funções vitais desses órgãos. Essas
afecções modificam o sentimento geral de nossa existência, nos tornam imediatamente
felizes ou infelizes, sem que saibamos que parte de nós mesmos se encontra assim
afetada:
'Apesar de todo estoicismo possível, o espírito não consegue furtar-se às varia ções
necessárias do organismo e da alma sensitiva; esta alma se entristece, desanima, eleva- se
ou rejubila-se, de conformidade com certos estados sucessivos da máquina e graças a
causas completamente independentes da inteligência e da vontade; tudo quanto o eu pode
fazer é desviar a atenção e lutar com maior ou menor esforço; há, porém, estados de alma
e de corpo, nos quais toda luta é impossível" (Journal, 25 de dezembro de
1822.)
Por isso não é de espantar a tendência dos seres humanos a procurar as causas dessas
afecções nos objetos exteriores percebidos, excluídas causas verdadeiras, que nada mais
são do que essas impressões imediatas, obscuras para a consciência, impressões às quais,
segundo Maine de Biran, "todo retorno nos é interdito". Sabe-se que a psicanálise hoje
permite esse "retorno", ao menos em determinados casos(').
Se a princípio se inclinou ao estoicismo, admitindo ser a alma capaz de encontrar, em si
mesma, forças para vencer uma instabilidade afetiva que ele próprio sentia cruelmente,
Maine de Biran chega depois à convicção de que lhe é necessário, para tanto, um socorro
vindo de fora. Um socorro cuja aspi ração no coração humano lhe parece servir de base
para a existência de um ser diferente do homem. E sua psicologia vem da dar, finalmente,
como, mais tarde, a de Bergson, num misticismo que privilegia a religião cristã. Por pene
trante que seja a psicologia biraniana, seus postulados não poderiam ser admitidos por
todos, ao menos quanto ao alcance que essa psicologia lhes atribui. Indubitavelmente, os
homens do século XVII (e já Spinoza) conhe ciam suficientemente o Cogito cartesiano
para não negligenciar o fato primi tivo que o fundamenta. Mas, com ou sem razão, dele
desconfiavam, e se recusaram a atribuir-lhe valor absoluto, considerando-o até, em
princípio, como ilusório. E certo que o desenvolvimento das ciências veio provar quanto
(1) MAINE DE BIRAN acrescenta, entretanto, este voto, que a quimioterapia
contemporânea veio atender, em parte: "Não está ao alcance da filosofia, da razão, ou
mesmo da própria virtude, embora todo-poderosa sobre as vontades e atos do homem de
bem, criar, por si mesmas, nenhuma dessas afecções felizes que tornam tão doce o
sentimento imediato da enistência, ou mudar essas disposições funestas que podem
torná-lo insuportável. Se existissem meios de produzir tais efeitos, seria preciso ---1
procurá-los em uma medicina ao mesmo tempo física e moral; e aquele que houvesse
encontrado um segredo tão precioso, capaz de agir sobre a própria fonte da sensibili
dade interior, deveria ser considerado como o primeiro benfeitor da espécie, o
dispensador do soberano bem, da sabedoria e da própria virtude, se se pudesse chamar
de virtuoso aquele que seria sempre bom sem esforço, pois estaria sempre calmo e
feliz..." (Maiae de Biraa, Mémoire sue les pereeptions obscures, publicado por Pierre
Tisserand, "Les Classiques dela Philosophie", XII, Paris, Colin, 1920, pág. 22.)
o "senso íntimo" está sujeito a ilusões no respeitante ao Universo. E, no respeitante ao
próprio mundo interior, as pesquisas contemporâneas, psicana líticas e reflexológicas,
puseram em destaque os obstáculos que esse senso deve transpor. Mas, 1-esta o fato de
que, ao insistir no sentimento da liberdade, teve Maine de Biran o grande mérito de
realçar o dinamismo do eu como força agente. Por essa razão, se considerarmos a
importância que, por outro lado, assumiu a noção de energetismo psíquico nessas
mesmas pesquisas, é incon testável que ele aparece então como grande precursor, ainda
quando modif i cadas as perspectivas.
4. A exigência de uma psicologia espiritualista
Antes de Bergson - que tem a intenção de refutar os critérios funda mentais de uma
mentalidade cuidosa, em sua época, de instaurar urna psico logia "científica", no sentido
positivista do termo - a exigência de Maine de Biran é confirmada por homens como
Félix Ravaisson (1813-19OO)( Jules Lachelier (1832-1918) e Emite Boutroux (1845-
1921), os dois últimos profes sores de Bergson na Escola Normal Superior. O motivo
comum é, em suma, sempre demonstrar que a psicologia não pode ser constituída ao
nível da experiência entendida num sentido positivista e materialista; estabelecer que
uma experiência assim entendida tem como resultado mutilar, para impor-lhe uma
golilha, a realidade que se procura estudar.
Sedutora para muitos espíritos, esta reivindicação tem adversários naqueles que a
consideram apenas como reação sentimental tendente a subs tituir por intuições
inverificáveis pesquisas cujo progresso só a observação "objetiva" e a experimentação
podem garantir. Tal oposição de princípio confirma o condicionamento das pesquisas
por pressupostos de ordem filosó fica, que põem em ação certa concepção geral do
homem.
Sem entrar aqui no âmago do debate, nem prejulgar dos resultados que as ciências
psicológicas de laboratório podem ministrar, é licito observar que a introspecção
(entendida como fonte de revelação pela consciência) é capaz de fornecer elementos
muito diversos, um dos quais encontra rapidamente no pesquisador um destino
privilegiado. Embora possamos admitir, em rigor, para não remontar mais no passado,
que Descartes e Kant estão de acordo ao menos para favorecer o pensamento puro e que
suas divergências quanto à natureza e ao alcance desse pensamento nascem segundo as
preferências de uma análise subseqüente, resta que outros psicólogos-metafísicos são
levados a considerar, como dados fundamentais, ora o ato livre e voluntário (Maine de
Biran), ora a vontade de viver (Schopenhauer), ora a vontade de poder (Nietzsche), à
espera dessa duração pura que se revela a Bergson, investigador dos "dados imediatos da
consciência", como a realidade por excelência,
(1) BERGSON consagrou-lhe uma monografia: Notice sur la i'ie ei les oeuvres dc M.
Fé/ir Ravaisson Mollien, leitura feita na Academia das Ciências Morais e Políticas em
1904, publicada nos prt,cès-Verbaux dessa Academia, vol. XXV. Paris. 1907.
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257
5. O aparecimento do pensamento de Bergson
A tese de Bergson intitulada Essai sur les données immédiates de la conscience é de
1889, ano em que Pierre Janet apresenta a sua sobre Lauto matisme psychologique. Essa
primeira grande obra de Bergson e a seguinte, Matière et mémoire - Essai sur la relation
du corps à l'esprit (1896), são, juntamente com as duas coleções de ensaios e conferências
intituladas L 'énergie spiriiuelle (1919) e La pensée e! le mout'anl (1934), essenciais para
o conhecimento de sua psicologia. A exemplo de Maine de Biran, que passara do
naturalismo predominante do século XVIII à forma peculiar de espiritua lismo que o
caracteriza, Bergson se formou num momento em que o positi vismo de Augusto Comte,
retomado em certo sentido por Taine('), dominava as ciências
humanas. O próprio Bergson mostrava nítida inclinação para as matemáticas, nas quais
sobressaía, e sua própria tendência mecanicista o impelia então a compartilhar das
opiniões de Spencer sobre uma evolução progressiva do universo a partir de elementos
simples e homogêneos. Refle tindo sobre a decomposição do movimento em elementos
simples (sabe-se que importância ele atribuirá aos famosos argumentos de Zeno de Eléia
(2)) e indagando-se sobre a noção de tempo entre os filósofos e matemáticos é que
Bergson foi levado à sua psicologia introspectiva:
"Quando comecei a criticar a idéia que a filosofia e a mecânica faziam do tempo, por
exemplo, mal suspeitava que me encaminhava para estudos de psicologia e acabaria por
tratar dos dados da consciência(
Psicologia introspectiva que vem dar na metafísica, como a de Maine de Biran, a quem
Bergson louva por haver tido "a idéia de uma metafísica que se elevaria cada vez mais
alto, em direção ao espírito em geral, à medida que a consciência desceria cada vez mais
baixo, até as profundezas da vida inte rior". (La sciencefrançaise, Larousse, 1915).
Bergson se persuadirá de que a esse método está reservado um grande futuro e de que,
se os filósofos houves sem estudado o espírito e o psiquismo com o mesmo fervor com
que estudaram a matéria, provavelmente teríamos hoje uma ciência que estaria "para
nossa psicologia atual como nossa física está para a de Aristóteles". ("Avenir de la
recherche psychique", em La pensée e! le mouvant.)
6. Os "dados imediatos" da consciência e o "eu profundo"
No Essai, Bergson denuncia a ilusãn que, segundo ele, fundamenta o determinismo
psicológico: -considerar os estados de consciência como uni-
(1) Hippolyte TAINE (1828-1893), grande admirador de HEGEL; voltado, porém, apesar
de seu talento literário, para as matemáticas e as ciências naturais, condenava a tradição
espiritualista reatada por MAINE DE BIRAN e Victor COU5IN. Abandonando a
metafísica pela psicofisiologia, invocava a seu favor o testemunho de CONDILLAC,
fazendo-se defensor de um empirismo que considera a psicologia como uma qui'niicQ
,eie,ita/ e define o espírito como um "polipeiro de imagens". (L i 1870,) A tendência que
TAINE representa aparece mais nitida e rigorosa em Théodute RIBOT (cl. cap. XX, §
4).
12) Sobre a interpretação bergsoniana dos argumentos de zENO - que consistem em
contundir o fato indivisível do movimento com a trajetória, sempre divisível, que
descreve - cf. Eusai (80i cd.), págs. 84-86; Matiè,'e ei ,rméomofre )60r cd.), pàgs. 213-
215; L'écolutiou ceéatm'ice, págs. 333 e seguintes. Ainda: "Introduction à la méta
physique" e "La perception do changement" (La pensée ei/e mouvani).
13) Recue Phi/ouophique. t. LX, julho-dezembro de 1905.
dades distintas, espécies de átomos psíquicos regidos por leis associativas. O que revelam
os "dados imediatos da consciência" é a realidade movediça da duração pura ou tempo
vivido, fusão daquilo a que chamamos, por uma espécie de engano de linguagem, estados
de consciência. Pois não se trata de elementos quantitativos que possam ser separados e
enumerados e, sim, de uma continuidade cuja aparente multiplicidade é toda qualitativa.
Trata-se de momentos heterogêneos que se penetram, se misturam e se organizam de tal
sorte que não se poderia dizer se são um ou se são muitos e que não se pode apreender
sob o aspecto da quantidade sem desvirtuá-los. Essa descoberta conduz Bergson a opor,
romanticamente, ao eu exterior e social um eu pro fundo, cujas manifestações atestam a
liberdade humana. Liberdade que é e só pode ser uma experiência vivida; e não se
poderia tentar definir sem "dar razão ao determinismo",
pois ela constitui apenas "a determinação do ato pelo eu inteiro", "um fato e, dentre os
fatos suscetíveis de verificação, não há outro mais claro". (Essai, 80 ed., pág. 166.)
Sabe-se que o leitmotiv da obra de Bergson é essa distinção radical que pretende
estabelecer entre dura ç e espacialidade, e que tem por corolário uma distinção entre a
inteligência, que "só se representa claramente o descon tínuo", e o instinto. Conquanto
se possam encontrar algumas retificações do filósofo à sua afirmação da inteligência
como "caracterizada por incompreen são natural da vida" (Evolution créatrice, 1907,
págs. 167-169, 175), perma nece ainda o fato de que seu intuitivismo se baseia numa
verdadeira oposição entre a inteligência assim determinada (voltada para a ação e para a
fabrica ção de instrumentos) e o instinto. Sabe-se que sua teoria muitõ deve às obser
vações do entomologista Fabre: ministram-lhe os exemplos pelos quais quer provar que o
instinto apreende o real "de dentro", por um conhecimento mais vivido do que
representado, "lúdico e inconsciente", que continua o trabalho pelo qual a vida organiza
a matéria. Assim é o instinto paralisador em várias espécies de himenópteros,
particularmente o sphex, que procede como hábil cirurgião. Chega-se, assim, a uma
concepção mística dos atos instintivos, que caberá aos naturalistas pôr à prova. O que
importa, do ponto de vista psico lógico, é que o instinto pode tornar-se, no homem,
fonte de conhecimento, transformar-se em intuição, segundo a notável definição dada
por Bergson (L 'évolution créatrice) a um termo que nem sempre tem, para ele,
contornos muito precisos:
o instinto tornado consciente de si mesmo, desinteressado, capaz de refletir sobre seu
objeto e ampliá-lo indefinidamente."
Bergson, entretanto, esteve longe de aprovar as opiniões dos surrealis tas sobre a
maneira de apreender a vida profunda. Se é certo que algumas de suas páginas
(especialmente a afirmação de que o eu dos sonhos é a vida mental inteira, e como que o
espírito em estado puro) parecem trazer-lhes água ao moinho, insistiu desde logo no
esforço exigido pelo método por ele preconi zado: esforço para remontar o declive dos
hábitos mentais, oriundos do comércio com as coisas e com a linguagem, a fim de
atingir a fluidez do tempo real em seu fluxo indivisível. Sob este aspecto, contudo, é
inegável que seu pensamento conserva certa ambigtiidade.
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7. As duas memórias
Quando identificou, no Essai, memória e consciência, impôs-se Bergson a tarefa de
mostrar que a memória não está sob a dependência do cérebro, no sentido em que é
habitualmente entendida e que a reduz aos traços nele deixados pelo influxo nervoso; de
provar a existência, ao lado das lembranças motoras ligadas ao organismo, de
"lembranças puras", penhores de uma vida psíquica independente. E, para demonstrá-lo,
entende colocar-se no próprio terreno das ciências positivas:
"Propusera-me [ o seguinte problema: "Que ensinariam a fisiologia e a pato logia atuais
sobre a antiga questão das relações entre o físico e o moral a um espírito sem opinião
preconcebida, decidido a esquecer todas as especulações às quais pôde entregar-se na
matéria, decidido também a pôr de lado, nas afirmações dos cientistas, tudo quanto não
seja a verificação pura e simples dos fatos?" E pus-me a estudar. Bem depressa percebi
que a questão não seria suscetível de solução provisória nem até de fórmula precisa, se
não ficasse restrita ao problema da memória. Na própria memória fui levado a talhar uma
circunscrição que precisei restringir cada vez mais. Após haver- me detido na memória
das palavras, vi que o problema assim formulado ainda era demasiado vasto e que é a
memóriã do som das palavras que formula a questão sob a forma mais interessante e
mais precisa. A literatura sobre a afasia é imensa. Levei cinco anos para examiná-la. E
cheguei à conclusão de que entre o fato psíquico e seu substra to cerebral deve existir
uma relação que não corresponde a nenhum dos conceitos já feitos que a filosofia coloca
a nosso serviço (1)."
Após hãver submetido a estudo critico a teoria das localizações cere brais, entende
Bergson demonstrar que, por concludente que pareça quanto à afasia( cumpre
considerá-la numa perspectiva completamente diferente da de simples paralelismo. Pois, a
lesão cerebral não atinge as lembranças em si mesmas, mas apenas o mecanismo cerebral
que lhes condiciona a evocação:
"... nas amnésias, nas quais todo um período de nossa existência passada, por exem plo, é
súbita e radicalmente arrancado da memória, não se observa lesão cerebral precisa; e, ao
contrário, nas perturbações da memória em que a localização cerebral é nítida e certa, isto
é, nas afasias diversas e nas moléstias do reconhecimento visual e auditivo, não são estas
ou aquelas lembranças determinadas que são como que arran cadas do lugar onde
teriam sede, mas é a faculdade de lembrar que se apresenta mais ou menos diminuída
em sua vitalidade, como se o sujeito tivesse maior ou menor dificuldade em trazer de
volta suas lembranças em contato com a situação presente." (Matiêre et mémoire, 6O
ed., Resumo e Conclusão, págs. 266-267.)
Em suma, o papel do cérebro, que a vida do espírito excede infinita mente, é assegurar,
por intermédio do sistema nervoso, a coordenação das funções de relação e a adaptação
do ser ao seu meio. E essa função de "aten ção à vida" que é alterada na amnésia, na
qual lembranças úteis não são mais evocadas. Na operação da memór ia, o cérebro não
serve para "conservar o
II) Comunicação à Société Française de Philosophie: "Le para!!élisnse psychophvsique
ei la méiaphysique positive" (Builelin de Ia Société Française de Philouophie, redigido
por Xavier LEON, ano 1, n? 2junho de 1901). Tese e discussão.
(2) O cirurgião e antropólogo francês Paul BROCA (1824-1880), a quem o exame de
grande número de crânios (humanos e animais) levara à idéia de uma relação direta
constante entre o grau de inteligência e a estrutura cerebrat, estabelecera clinicamente
que a palavra, enquanto função psiquica e fisiológica, tem por condição a inte gridade
da terceira circunvolução frontal esquerda, chamada, desde então, "zona de Broca".
passado, mas para mascará-lo primeiro e depois deixar transparecer dele o que é
praticamente útil". ("L'âme et le corps", em L'énergie spirituelle, II). "Filtro" ou "tela",
ele "colhe para nós uma vida psíquica real no campo imenso do sonho". (Durée ei
simultanéité.) Quanto mais desenvolvido o cére bro, maior a indeterminação e mais
variada a escolha. Ao invés de deixar passar as imagens, o cérebro as reflete. Reflete,
porém, apenas aquelas que nos são úteis para a ação e compõem, então, as
representações.
Não é possível considerar aqui a gnosiologia bergsoniana, que vê nas imagens o próprio
mundo, num sentido que não deixa de lembrar Berkeley e que vê na "percepção pura"
um ato pelo qual nós nos colocamos de imediato nas coisas. Limitamo-nos a lembrar que
o "eu", na perspectiva bergsoniana, se forma gradualmente, pela separação entre o corpo
e seu meio:
"Os psicólogos que estudaram a infância bem sabem que nossa representação começa
por ser impessoal. E pouco a pouco, e à força de induções, que ela adota nosso corpo
como centro e se torna nossa representação..." (Matière et mémoire, 6O ed., pág. 45.)
A concepção bergsoniana entende, pois, estabelecer distinção radical (discutível, mas de
real interesse para a psicologia) entre Memória-Hábito, inseparável do corpo, e
Memória-Imagem, dele independente. A Memória- Hábito compreende tudo que é
aprendido para saber. E adquirida por meio de repetição, decomposição e recomposição
do ato e constitui urna mudança de via nervosa que um impulso inicial basta para
desencadear. E o caso da lição decorada e, em suma, de todo processo de memor ização.
Em compen sação, a história individual onde se insere essa forma de memória - e que é
duração vivida - constitui uma memória que, para Bergson, não apresenta nenhum dos
caracteres do hábito. Relaciona-se a um conjunto movediço de "lembranças puras", que
vivem e se conservam nas profundezas da consciên cia, no estado de "fantasmas
invisíveis" (1). Essas lembranças constituem o eu profundo, com raízes num inconsciente
concebido como superabundância de vida, de tonalidade de todo diferente da concepção
freudiana. Se o passado, pelo fato de ser, no mais das vezes, inibido pelas necessidades
da ação, perma nece para nós quase inteiramente oculto, o sonho o manifesta. Pois, o
sono provoca um estado de desligamento, de desinteresse com
relação a essas necessidades; e "lembranças-fantasmas" a ele afluem, algumas das quais,
em condições favoráveis, tomarão consistência:
dentre as lembranças-fantasmas que aspiram a lastrar-se de cor, sonoridade,
materialidade, enfim, só o conseguem aquelas capazes de assimilar a poeira colorida que
apercebo, os ruídos exteriores e interiores que ouço, etc., e que, além disso, se
harmonizarem com o estado afetivo geral composto pelas minhas impressões orgânicas.
Quando se realizar essa união entre o movimento e a sensação, terei um sonho." ("Le
rêve", em L 'énergie spirituelle.)
A distinção radical estabelecida por Bergson éntre essas duas formas de memória longe
está de satisfazer a todos os psicólogos. E assim que Pierre Janet objetava, por exemplo,
que ela bem poderia concernir apenas a uma
(1) Cf. "le rêve", conferência pronunciada no lnstitut Général Psychologlque, a 26 de
março de 1901, em L 'énergie spirituelle. IV.
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261
diferença de níveis no que chamava as "condutas superiores". Se é possível invocarem-
se alguns fatos em favor das teses bergsonianas, como a súbita aparição de imagens
infantis ou a famosa visão panorâmica dos agonizantes ou das pessoas em perigo de vida,
revela-se duvidoso que se possa reviver, em sonho, o passado, a não ser sob a forma de
imagens muito fragmentárias. E esse passado será verdadeiramente conservado de
maneira integral, como pretende Bergson? Terá mesmo um sentido, sem a intervenção da
atividade racional e dialética, própria de uma personalidade também, ela mesma, cons
tante devir? Quanto às famosas reminiscências de Marcel Proust, que parecem confirmar
as opiniões bergsonianas, não parece excluído possa o jogo de reflexos condicionados
explicá-las, como permite explicar tantas reminis cências aparentemente inopinadas.
Pode-se observar, a esse respeito, que Bergson, ao referir-se à Memória-Hábito,
considera quase que apenas o aparelho muscular, quando os condicionamentos
interessam todo o orga nismo, com suas sensações tanto internas quanto externas.
Permanece certo, porém, que o fenômeno da memória, em seus diversos aspectos, não
parece explicado senão quando se consente em extrapolar os resultados parciais das
pesquisas. E as perspectivas abertas pela teoria de Bergson nesse sentido não podem ser
peremptoriamente refutadas no terreno da ciência.
8. A influência do bergsonismo
Sabe-se que a revolução metodológica promovida por Bergson foi senti da como
libertadora por grande número de espíritos aperreados pelo clima positivista da época; e
sua influência cultural foi prodigiosa em todos os domí nios: artístico, literário, científico,
até politico. Edouard Le Roy, sucessor de Bergson no Collége de France, não receava
decretar, "com plena consciência do justo valor das palavras", que a revolução
bergsoniana "se iguala em importância à revolução kantiana ou até à revolução socrática"
(1). Por sua vez, Pierre Janet, em conferência sobre Les conduites sociales, no XI Con
gresso Internacional de Psicologia (Paris, de 25 a 31 de julho de 1937), declarava:
"... Programa importante na concepção da psicologia científica foi, a pouco e pouco,
cumprido; é que o essencial dessa ciência, se quer ser objetiva e tornar-se útil, deve ser
o estudo da ação humana e todos os fatos psíquicos devem ser expressos em termos de
ação. Eis uma idéia que nos foi a princípio inspirada pela psicologia do Sr. Bergson e,
sob diferentes formas, domina hoje a maioria dos estudos de psicologia científica: essa
idéia encerra uma simplificação e uma precisão cuja importância será cada vez maior,
no futuro."
É fato que certa psicologia do comportamento poderia invocar a seu favor o testemunho
de Bergson, pois para ele, o cérebro tem, além das funções sensoriais, o papel de
"imitar, no mais amplo sentido do termo, a vida mental", e aparece "como encarregado
de imprimir ao corpo os movimentos e as atitudes que encarnam aquilo que o
espíritopensa ou aquilo que as circuns tâncias o convidam a pensar". E essa mímica ele
a reconhece como de primor dial importância:
(1) Une philosophie noui'elle, Heni-iBergson. Paris, Alcan, 1912, pág. 3.
"É por ela que nos inserimos na realidade, que nos adaptamos a ela e respon demos às
solicitações das circunstâncias mediante ações apropriadas." ("Fantômes de vivants" e
"Recherche psychique", emL'énergie spirituelle, III.)
Também é fato que a tese bergsoniana da inteligência como atividade essencialmente
utilitária foi abundantemente explorada para vário fim. Veio, de início, por esse aspecto,
reforçar a corrente marxista que dá a máxima importância à praxis e se opõe ao homem
teórico e intemporal da filosofia tradicional. E basta considerar a importância e a
variedade das pesquisas acerca da função e da gênese da inteligência (trabalhos de G.
Bohn, Lévy Bruhl, Pierre Janet, Edouard Claparède, Jean Piaget...), para nos conven
cermos do interesse consagrado desde então à inteligência prática ou sensori motriz,
tornada objeto de estudos sistemáticos, tanto em suas manifestações no adulto, como na
criança e no próprio animal.
Também na fenomenologia e em seus prolongamentos "existencia listas", não é de
duvidar que certos aspectos do bergsonismo (primazia do imediato, tempo vivido,
experiência pura, distinção entre um eu profundo e um eu superficial, etc.) tenham
exercido considerável influência.
Resumindo: se hoje resulta claro que o empirismo de Bergson suscita
problema e, por outro lado, os dualismos por ele instituídos (Quantidade e
Qualidade, Duração e Espaço, Inteligência e Instinto, Memória-Hábito e
Memória-Imagem, etc.) necessitam corretivos, está longe de esgotar-se seu
papel de fermento( 1)
(1) Cl. o número especial do Baile,,,, dela Sq,c,é I-ra?içaise d,' Plidosophit-: "Bergson ei
obus" (Actos du )(e Congrès des Sociétés de Philosophie de Langue Française, Paris,
17-19 de maio de 1959, centenário do nasci mento do filósofo).
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f CAPÍTULO XX
ORIGEM E DESENVOLVIMENTO
DA PSICOLOGIA CIENTÍFICA
1. O clima positivista
2. O empirismo inglês
3. A psicologia experimental na Alemanha
4. A obra de Théodule Ribot
5. As ciências psicológicas em 1900
6. A reabilitação da introspecção
1. O clima positivista
Após o grande surto da filosofia alemã, no apogeu na época do magisté rio de Hegel em
Berlim, até sua morte em 1831, uma lassitude se manifesta em relação aos grandes
sistemas racionalistas. O sucesso das ciências positivas contribui para o descrédito da
metafísica, com revelar o arbitrário dos esque mas dialéticos foijados pela filosofia pós-
kantiana da natureza, ao mesmo tempo que a reação marxista ao idealismo hegeliano
solapa-o no terrena da realidade social e política. De maneira geral, as ciências parecem
ter a última palavra, e se acreditam em condições de relegar ao museu os filósofos e,
sobretudo, os metafísicos.
Sabe-se da enorme influência exercida nos espíritos pelas hipóteses transformistas de
Lamarck (1744.1829) e, principalmente, de Darwin (1809- 1882) - este, na opinião de
Nietzsche, "o maior benfeitor da humanidade contemporânea" - as quais tornaram
popular a idéia esboçada no século XVIII de que entre o homem e os animais existe
apenas diferença de grau. Nesse aspecto, era poderoso o apoio que recebiam as
refutações criticas da existência de uma alma-substância, privilégio do homem. Por toda a
Europa, as exigências espiritualistas se exprimem por um ecletismo dessorado, típico da
filosofia de Victor Cousin. O evolucionismo agnóstico de Spencer, a socio logia de
Augusto Comte, o transformismo darwiniano parecem vencer em todos os domínios da
vida cultural, conquistada pela idéia do determinismo universal. E a época de Taine, de
Renan, com seu A venir de la science, aquela
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em que, na Alemanha (nesse país onde prevalece a senha do Keine Meta physik mehr,
embora ao preço de substituir uma melhor por outra, menos boa) Moleschott, Büchner,
Haeckel... celebram a matéria e repudiam as especulações racionais em favor dos
"fatos" e da experiência positiva. Epoca propícia, portanto, para o aparecimento de uma
psicologia que reivindicasse, em sã consciência, seus direitos de cidadania no mundo
científico, com o mesmo título da química ou da biologia. O problema da medida ligado a
certos experimentos preocupava então muitos cientistas, particularmente no domínio da
óptica e da astronomia, e conduzia naturalmente ao da percepção. O nascimento da
psicofísica na Alemanha assinala a passagem dessas preocupações para o plano da
psicologia como ciência. Grandes eram as dificuldades por vencer, pois se tratava de
submeter à experimentação, não apenas a matéria ou a vida, mas esse próprio espírito do
homem que criou as ciências, como criou a arte e a filosofia. Não é de espantar, pois, que,
desde as primeiras tentativas da nova ciência, filósofos tenham adotado opinião diame
tralmente oposta às pretensões reveladas por essas tentativas, para opor-lhes, como única
válida, uma psicologia sintética, à maneira brilhante de Bergson.
Quanto àqueles que desejarão, ao contrário, evitar toda "contamina ção" pela especulação
filosófica, correrão o risco de cair de Caríbdis em Cila, isto é, na fisiologia, levados pelo
esforço para eliminar essa subjetividade, sem a qual, entretanto, a psicologia não teria
mais objeto próprio. Esse obstáculo mal aparece ainda no empirismo manifesto na
Inglaterra, na esteira de Hume, quando os métodos subjetivos e objetivos encontram um
terreno prático de conciliação; nem até na Alemanha, onde as pesquisas dos pioneiros da
nova psicologia têm por fundo uma metafísica obscurecida e mal confessada (Fechner,
Lotze, Wundt).
2. O empirismo inglês
John Stuart Mill, em seu Sistema de lógica (A system of Iogic, ratioci native and
inductive, 1843) reivindica para a psicologia o caráter de ciência independente, de
observação e experimentação, cujo objeto consiste em extrair as leis em função das quais
os fenômenos do espírito se produzem uns aos outros. Sem excluir, em princípio, que a
verdade destas leis depende, em última análise, de condições orgânicas, observa que o
conhecimento dos processos nervosos é ainda por demais imperfeito para que possamos
contar com a fisiologia mais que com a psicologia quando se trata de compreender a
sucessão dos fenômenos psíquicos. Investe, assim, a psicologia de uma nova dignidade,
num sentido, porém, ainda bem moderado. Pois, sua concepção se inscreve num contexto
que visa a estabelecer uma doutrina completa e, por isso mesmo, filosófica, do
empirismo. Recusando-se a admitir princípios a priori, segue os passos de Locke,
aprofunda o método indutivo preconizado por Francis Bacon e junta-se a Hume na
afirmação de que a noção de causali dade provém da experiência de sucessões
constantes, experiência, aliás, limitada a nosso sistema planetário. Associacionista,
divide a consciência em "idéias" elementares que formam unidades associativas,
considera o eu como uma sucessão de estados de consciência e os corpos como
"possibilidades permanentes" de sensações. A metodologia de Stuart Mill, bem
conhecido na França (particularmente pelos trabalhos de Ribot), exerceu considerável
influência no começo da psicologia nova nesse país. No mesmo caso se encontra
Herbert Spencer (1820-1903), cujo vasto Sistema da filosofia sinté tica é muito
representativo, no mais elevado dos níveis, das preocupações naturalistas predominantes
na segunda metade do século XIX. Essa conformidade de inspiração, e sua
reivindicação dos "fatos" e da experiência, lhe valerão, em geral, marcada preferência,
apesar do seu caráter não menos dogmático e aventuroso que o das sínteses racionais
desacreditadas. Baseia-se seu evolucionismo num realismo gnosiológico, onde os
conceitos de força e de matéria desempenham papel fundamental. Spencer descreve as
fases combi natórias do ritmo de dois tempos (de integração e desintegração) que os
anima, descuidoso de um escolho possível: tomar como realidade objetiva aquilo que
poderia não ser mais que a representação dessa evolução num espírito "evolvido".
Trata-se, para ele, de estabelecer que esse ritmo de integração e desintegração dá origem
a uma passagem gradual do "homogê neo indefinido" ao heterogêneo diferenciado,
acompanhada a acumufação de matéria da dissociação da mesma matéria quando
aumentam os movimentos particulares e exteriores( i).
Se atribui às ciências particulares o papel de tirar dos objetos da expe riência as leis de
seu devir, reconhece, pois, na filosofia a capacidade de elevar-se a plano mais alto, à
fórmula da lei geral da evolução, cuja fecundi dade é demonstrada pelo valor regulador
em sua aplicação à multidão dos fatos. Dentro da concepção toda naturalista de Spencer,
encadeiam-se esses fatos numa regressão ao infinito; e, como só são conhecidos numa
relação de comparação ou sucessão, sua essência última escapa a toda inteligência.
Sabe- se que sua famosa identificação do Absoluto com o Incognoscível o conduz a
reconciliar as ciências com a religião, contanto que esta consinta em depurar- se,
reconciliação toda negativa, numa veneração comum do desconhecido- incognoscível.
Dado que seu evolucionismo, a partir do "homogêneo indefinido", abrange toda a
realidade, da nebulosa primitiva aos sistemas planetários, da matéria à vida, da vida à
consciência, da consciência animal às sociedades humanas, é forçosamente em termos
de fisiologia que trata do psiquismo humano. Aquilo que pensadores consideraram
como inato nesse psiquismo (Platão), ou como estrutura a priori (Kant), Spencer o reduz
a relações preestabelecidas no sistema nervoso, oriundas de relações reais no mundo
exterior. Tais relações são preestabelecidas em certo momento da evolução, para os
indivíduos, dos quais vêm condicionar a experiência, mas estabele cidas pelas
experiências acumuladas dos organismos precedentes. O mesmo se dá em relação aos
valores morais, expressões das experiências herdadas das gerações anteriores e que
interessam à manutenção da saúde, tanto no organismo social, como no organismo
individual. Spencer atribui, assim, papel essencial à hereditariedade das qualidades
adquiridas; é por ela que pretende explicar as aptidões individuais transmitidas,
enriquecidas, à geração seguinte. Com relação a Darwin, que, evidentemente, conheceu
por sua obra capital Da origem das espécies por via de seleção natural, aparecida em
1859, Spencer (cuja obra essencial foi publicada entre 1860 e 1893) entende ligar a
evolução dos organismos à evolução em geral, remontar às "leis universais da
redistribuição da matéria e do movimento".
(1) Sobre a evolução segundo SPENCER cf. especialmentePremierspri caps. 17-21.
268
269
Em sua classificação das ciências, atribui, à psicologia, lugar indepen dente (Princípios de
psicologia, parte 1, cap. VII). Lugar ao lado da biologia, pois, para ele, trata-se de
apreender a vida psíquica em seu nível mais baixo e mostrar como se organiza por
adições sucessivas. Considera-a sob o aspecto de uma correspondência que reproduz
subjetivamente a realidade objetiva do mundo, por uma integração cada vez mais
complexa de elementos originaria- mente separados. Dessa forma ela é, sucessivamente,
considerada em suas manifestações: ação reflexa, instinto (ação reflexa composta), vida
consciente (sentimento e vontade, memória e razão). Houve transformação dos
sentimentos, a princípio gerais e confusos e, depois, diferenciados pelas múlti plas
impressões dos sentidos; e transformação dos reflexos mecânicos do instinto em
inteligência. Isso significa que Spencer considera essencial a afetividade, ela própria
condicionada por uma constituição hereditária; e vê no choque nervoso o elemento
originário da vida mental.
Muito mais analítico e, por isso, difícil de resumir, a psicologia de Alexander Bain
(1818-1903), professor da Universidade de Aberdeen, fundador da revista Mmd, em
1876 (no mesmo ano em que Ribot criava a Revue philosophique) também mostra a
primazia atribuida à corrente nervosa:
"Admite-se agora uma doutrina de que a força nervosa é produzida mediante a ação do
alimento fornecido ao corpo e, em conseqüência, pertence à categoria das forças que
têm origem comum e são conversíveis entre si - força, mecânica, calor, eletricidade,
magnetismo, decomposição química. A força que anima o organismo humano e
alimenta as correntes do cérebro tem origem na grande fonte primeira de força
vivificante, o
Por isso, Bain não atribui somente ao cérebro a sede do sensorium, o qual, em sua
opinião, reside onde quer que circule o influxo nervoso:
músculos, órgãos dos sentidos, vísceras. Está persuadido de que se devem aplicar
doravante, à psicologia, os processos das ciências naturais e invoca a seu favor como
garantia o método das "variações concomitantes", preconi zado por Stuart Mill. Suas
obras principais, Os sentidos e a inteligência, As emoções e a vontade, O espírito e o
corpo..., contêm numerosas observações acerca dos órgãos dos sentidos e do movimento
em relação com o sistema nervoso, ligadas a experiências sobre as interações do cérebro
com as funções biológicas, sobre as relações entre o desenvolvimento cerebral e a
inteligência, sobre os tempos de reação, sobre as sensações, a respeito das quais enunciou
leis (de relatividade e de difusão), etc.
3. A psicologia experimental na Alemanha
Nascida na Alemanha, onde Johann Friedrich Herbart (1776-1841), autor de uma
Psicologia científica, já tentara aplicar as matemáticas ao estudo da vida psíquica, a
psicofísica se atribuiu a tarefa de determinar a relação existente entre um fenômeno
físico, considerado como excitação causal, e o fenômeno psíquico (a sensação) dele
resultante, com a finalidade de chegar a leis. Desta forma, E. H. Weber, inicialmente
fisiologista e anato
(1) The Senses a Me iniellect, pág. 65; citaç de Th. RIBOT, La psycholog,e a
contemporaine, 3 Alean, 1901, pág. 255.
mista (1795-1878), foi conduzido por suas pesquisas em torno das sensações
(principalmente tácteis e visuais) a passar da fisiologia à psicologia; chegou ele à
conclusão de que a quantidade de excitação necessária para discernir uma primeira
sensação de uma segunda está em relação, constante e determinável, com a sensação
inicial. Aumentando-se aos poucos essa quantidade, a sensa ção primeira permanece, de
início, inalterada; e para que o sujeito perceba o aumento (isto é, experimente uma
sensação diferente, que assinale a transpo sição de um limiar de consciência) deve
ocorrer aumento de certa importância, proporcional à quantidade de excitação primeira.
Donde essa "lei" de Weber, segundo a qual a excitação cresce ou decresce de maneira
contínua, a sensa ção de maneira descontínua; e a quantidade de excitação
correspondente a um limiar diferencial mantém relação fixa com a excitação que serve
de ponto de partida.
Desses primeiros trabalhos de Weber, empreendeu o filósofo Gustav Fechner (1801-
1887) deduzir matematicamente uma lei mais precisa: a sensação cresce como o
logaritmo da excitação (Elementos de psicofísica, 1860; A propósito da psicofisica,
1877). Essas preocupações com uma ciência psicológica positiva se aliam, em Fechner,
a uma curiosa forma de panteísmo místico (Zendavesta ou das coisas do Céu e do além).
Tais investigações assinalam a introdução da medida em psicologia e encontram-se na
origem dos métodos que visam a determinar, num sujeito dado, o menor estímulo
perceptível ou a menor diferença perceptível entre dois estímulos (medida dos limiares
sensoriais).
A "lei Weber-Fechner" foi abundantemente comentada, discutida, refutada e não cabe
aqui abordar o aspecto técnico das controvérsias que suscitou. As pesquisas que a
fundamentam foram retomadas em França por Marcel Foucault (La psychophysique,
1901), com maior espírito critico, porém, quanto à complexidade dos fenômenos
sensoriais em suas relações com a percepção. Já lembrei as críticas, do ponto de vista
filosófico, dirigidas por Bergson à psicofísica em seu Données immédiates de la
conscience e sua maneira de demonstrar que podemos medir o excitante, não, porém, a
sensação e que a relação de equivalência estabelecida entre os dois aspectos é puramente
convencional. E fora de dúvida que, se podemos medir fenômenos objetivos,
supostamente invariáveis, em condições admitidas como idênticas, o mesmo não se dá
com relação aos fenômenos psíquicos, ainda com aqueles que parecem os mais simples,
isto é, precisamente as sensações. Pois, cada uma delas corresponde a uma impressão
subjetiva, variável conforme os indi víduos, ou até no mesmo indivíduo em momentos
diferentes, e relativa a certas condições orgânicas, nervosas, cerebrais. Não é evidente
que a mesma broca de dentista, a girar com a mesma velocidade, pode provocar
sensações muito diversas? Por outro lado, quando os fenômenos físicos, considerados
como "excitantes", ultrapassam certo grau - de calor, por exemplo - que sentido há em
falar de limiares diferenciais? Eis porque a psicofisiologia, com base no reconhecimento
de certas relações de concomitância. entre estados psíquicos e estados fisiológicos
(glandulares, nervosos, cerebrais) veio destronar, de maneira geral, a psicofísica. Essa
psicofísica, entretanto, não desapareceu por isso, pois serve para determinar; em certos
sujeitos e em certas condições, "limiares sensoriais", o que é muito útil, sobretudo na
orientação, seleção e adaptação profissionais (psicotécnica). Seja como foi', é
270
271
fato que os fenômenos sensoriais, desde esses primeiros trabalhos de Weber e Fechner,
têm sido objeto de inúmeros estudos nas mais diversas pers pectivas( 1).
Wilhelm Wundt (1832-1920) desempenhou papel decisivo na consti tuição da psicologia
experimental ao anexar-lhe a fisiologia e a anatomia. Seu objetivo era elaborar uma
psicologia que admitisse apenas "fatos" e recorresse, tanto quanto possível, à
experimentação e à medida. O laboratório por ele criado em Leipzig (1879), provido da
aparelhagem permitida pela ciência da época, foi muito freqüentado por estudantes de
diversos países que, de volta à pátria, passavam a imitá-lo. Tal o caso, principalmente,
de Stanley Hall que, em 1883, fundou um laboratório análogo na Universidade Johns
Hopkins, de Baltimore. De maneira geral, Wundt exerceu
considerável influência nas origens da nova psicologia nos Estados Unidos da América(
2),
Estudou, a princípio, a fisiologia, e foi, em Heidelberg, aluno de Helm holtz, muito
conhecido por suas pesquisas sobre as percepções visuais e auditivas e sobre a condução
nervosa. A curiosidade de Wundt, aguçada pelo problema proposto pela "equação pessoal
dos astrônomos" (o fato de que cada um parecia ter seu próprio tipo de erro), voltou-se,
primeiramente, para o estudo da percepção sensorial, particularmente da
visão (Ensaio sobre a teoria da percepção) (3). Em obra publicada no ano seguinte, Lição
sobre a alma dos homens e dos animais, cujo título lhe reflete a concepção animista, trata
da sensação, da memória, da inteligência; do desenvolvimento estético, moral e social; da
linguagem no homem e nos animais; na feição de uma psicologia comparada. Achava,
com efeito, que as manifestações superiores da atividade espiritual escapam às pesquisas
de laboratório e sua Lógica preconiza para seu estudo o recurso a outros meios de
investigação: crianças e doentes, etnografia, filologia, história. Sabe-se que consagrou
extensas obras à "psicologia dos povos" (4).
Em seus Elementos de psicologia fisiológica (5), cuidoso de dar um balanço das
recentes descobertas e de, ao mesmo tempo, entregar ao público o fruto de suas longas
investigações, descreve minuciosamente o sistema nervoso, sua natureza, estrutura e
funcionamento, em termos de atividade e de relações, com a intenção de refutar a
hipótese, que considera obsoleta, das energias sensoriais específicas.
Seu objetivo é determinar as relações entre os fenômenos psíquicos e seu substrato
orgânico, particularmente cerebral, na base do paralelismo:
(1) Quanto ao desenvolvimento complexo dos estudos sobre a sensaçAo, levadas em
conta suas diferentes orientações (psicofisiologistas, bergsonianas, fenomenológicas,
gestaltistas, etc.), cl. M. PRADINES. "L'évolution do problème de la sensation au XXe
siècle", em La psychologie du XX siêcle, obra coletiva, P. U. F., 1954. Cl. também de
Henri PIERON, professor no Collêge de France e ilustre psicólogo de laboratório: La
sensation, guide de ria, Gallimard, 1945.
(2) Quanto ao desenvolvimento das pesquisas nesse país, cf. "La psychologie
expérimentale américaine", deGérard DELEDALLE, emLapsychologiecontemporaine,
P.U.F., 1951, cap. II, págs. 48-95.)')
(') O capítulo citado pelo Autor é parte da obra de Paul FOULQUIE (escrita em
colaboração com Gérard DELEDALLE), La psychologie contemporuine. Essa obra está
nestas "Atualidades Pedagógicas": A Psicologia conte,nporánea, trad. e notas de Haydée
Camargo Campos, vol. 74, 45 cd., 1977. A colaboração de DELEDALLE, "A
psicologia experimental americana", está entre pág. 43 e pág. 85. (3. B. D. P.)
(3) Beitriige zur Theorie der Sinnesn Heidelberg, Winter, 1862.
(4) Elemente der Vdkerpsychologie. Leipzig, 1912: Problema der Vd/kerpsychologie,
Stuttgart, 1921, etc.
( Gaundzüge der physiologizchen Psychologie. Leipzig, Engelmann, 1874. Trad.
francesa da 2 cd. (1880) pelo De. Etie ROUVIER, Alcan, 1886,2 vols.
- nada se passa em nossa consciência que não encontre seu fundamento sensorial em
processos físicos determinados." (Eléments..., Prefácio.)
e demonstrar que a sensação e a imagem são produtos das passagens do influxo nervoso
pelos neurônios cerebrais. Não atribui, porém, a essa pesquisa experimental, no sentido
estrito do termo, senão um campo limitado; reco nhece dois tipos de leis do
conhecimento: leis associativas e leis aperceptivas, exprimindo estas a atividade livre do
pensamento. Se, influenciado por Kant, nega toda validade às noções decorrentes de uma
concepção substancialista da alma, é admitindo o papel fundamental da apercepção no ato
cognitivo, não só pelo caráter insubstituível da experiência imediata que ela
constitui (possuir o sentimento desta atividade inicial = ser consciente), como porque
essa apercepção ativa é a garantia única da continuidade interior. Pois, ela une as
representações segundo as leis do pensamento, utilizando como mate rial as impressões
exteriores. A interioridade dessas leis é o fundamento da liberdade.
Essa noção de apercepção tem como corolário em Wundt a noção da vontade, cuja
atividade externa é, a seus olhos, apenas uma forma da ativi dade interna (os
movimentos automáticos e reflexos foram, a princípio, queridos e o movimento instintivo
é a forma primitiva do movimento volun tário). Isso significa que atribui ao instinto (de
onde, em sua opinião, derivam todas as outras manifestações da vida) papel
fundamental.
Por isso, a fim de explicar a correlação entre a complexidadeda orga nização física e a
das operações psíquicas, Wundt é levado a seguir direção oposta à explicação
consistente em estabelecer, entre elas, uma relação de causalidade que privilegia a
primeira:
"Estudo mais aprofundado da história da evolução psíquica deve, necessaria mente,
chegar à opinião oposta: pelo movimento que provoca, o instinto reage sobre a
organização física, e nela deixa traços persistentes que facilitam a renovação do movi
mento instintivo, sem deixar de dar origem a manifestações instintivas mais complexas, já
que as reações das outras ações instintivas a elas se vêm associar." (EltÇments.... cap.
XXIV.)
Tendo por fundamento um empirismo que pretende ser tão radical quanto possível
(fixados seus limites pelas próprias condições da experiência), Wundt é conduzido a uma
forma de metafísica de articulações pouco nítidas, antes demonstrativa do
enfraquecimento da filosofia, no país que produziu Kant e Hegel. Repele o materialismo,
na medida em que o conceito de matéria, nascido de uma mediatização da experiência,
lhe parece hipotético; e o espiritualismo, na medida em que suas noções lhe parecem
puros seres de razão, foijados para uma explicação fictícia dos fatos da experiência
interna e externa. E de opinião que a antiga concepção animista, no sentido aristotélico da
alma como "a primeira enteléquia do corpo vivo", é a melhor base para esclarecer o
problema do desenvolvimento, assim intelectual como corporal. E conduzido, destarte, a
admitir certa finalidade em todos os fenômenos da natureza. Se reconhece que as plantas
(a cujo respeito não se. poderia, eviden temente, demonstrar que obedecem a um
instinto), sob este aspecto consti tuem problema, está inclinado a pensar que sejam
"animais desenvolvidos de um lado só". Ainda na luta pela existência segundo Darwin, o
psiquismo está
272
273
implicado sempre que os instintos e as ações voluntárias aparecem como causas. Quanto
à matéria inorgânica, na medida em que encerra as "condi ções prévias das manifestações
da vida", postula que as formas de instinto mais elementares já se encontram constituídas
no átomo:
a correlação absoluta entre o físico e o psíquico sugere esta hipótese: aquilo que
chamamos de alma é o ser interno da mesma unidade, unidade que encaramos exte
riormente como o corpo que lhe pertence." (Eléinents..., cap. XXIV.)
4. A obra de Théodule Ribot (1839-1916)
Teórico da nova ciência, Ribot é o autor de uma obra que se caracteriza pela
preocupação de integrar os esforços já realizados na época em outros países
(Psychologie anglaise contemporaine, 1870; Ps aliemande contemporaine, 1879). As
duas obras contêm introduções substanciais, que aparecem como uma espécie de
manifestos da nova psicologia, essa psicologia à qual este aluno da Escola Normal
Superior, "agrégé" de filosofia, brilhante mente se convertera. Sabe-se que por sua
intenção foi criada no Collège de France, graças à intervenção de Renan, uma cadeira de
"psicologia experi mental e comparada", de onde recomendava aos alunos formação
científica e rigorosa especialização num campo determinado do vasto domínio psico
lógico:
"Atualmente, o número dos que estão preparados para esta obra é bem pequeno. Na
maioria, os fisiologistas são pouquíssimo psicólogos e a maior parte dos psicólogos
conhece mal demais a fisiologia. Vivemos numa época de transição cujas dificuldades
são capazes de cansar as melhores coragens. Não há quem se interesse vivamente pelos
progressos da nova psicologia que não sinta, a cada instante, as lacunas de um preparo
insuficiente. Para empreender com êxito essas investigações, cumpriria conhecer as
matemáticas, a fisica, a fisiologia, a patologia, ter matéria para manejar, inst rumentos à
mão e, principalmente, o hábito das ciências experimentais. Tudo isso falta. Sobretudo
na França, graças às idéias correntes de que nos imbuiu nossa educação primeira e aos
maus hábitos de espírito que nos fez contrair, passamos a segunda metade da vida a
desaprender o que aprendemos na outra(')."
Ribot manifestava, às vezes, entusiasmo de neófito; e podem-se reconhecer em sua
obra, ao lado de observações perfeitamente razoáveis, como:
"A nova psicologia difere da antiga pelo espírito: ele não é metafísico; pela finalidade:
ela só estuda fenómenos; pelos processos: ela os toma de empréstimo, tanto quanto
possível, às ciências biológicas(
outras, inquinadas de exagerado exclusivismo:
'Até aqui a psicologia teve a infelicidade de estar nas mãos dos metafísicos.
Formou-se, assim, uma tradição difícil de romper."
(1) Psychologieallemandecontemporaine, 5' ed., Paris, Alcan, 1898. pág. XXVII.
(2) !bid., pág. VIII.
nenhuma reforma é eficaz contra aquilo que é radical mente falso, e a antiga psico logia
é uma concepção bastarda que deve perecer pelas contradições que encerra(
A evolução de Ribot reflete as vicissitudes da nova psicologia que visa à conquista de
um estatuto legal no mundo científico, especialmente nas rela ções com duas vizinhas
incômodas: a filosofia e a fisiologia. De modo geral, tende a privilegiar a fisiologia,
conforme o atestam suas explicações da memória, que gostaria de reduzir a um hábito
baseado em processos orgâni cos. Sólida formação filosófica o mantinha, contudo,
consciente das dificul dades metodológicas. Cumpre não esquecer que dirigiu até a morte
a célebre Revue Philosophique, por ele fundada em 1876. Chegou, finalmente, a reco
nhecer que as experiências de laboratório têm limites assaz estreitos, que a certeza das
pesquisas objetivas não é absoluta e que o método subjetivo condi ciona, na realidade,
todos os outros( Além de sua obra de teórico das novas tendências e do papel de chefe
de escola, a contribuição de Ribot à psicologia científica consiste em numerosos
trabalhos que obtiveram ampla repercussão. Seu associacionismo não o impediu de
pensar que a afetividade desempe nhava, no comportamento humano, papel mais
decisivo que os estados intelectuais; e consagrou vários estudos a esse aspecto da vida
psíquica (Psychologie des sentiments, 1896; La logique des sentiments, 1905; Essai sur
les passions, 1907). Sob a influência de Charcot, encarou as enfermidades mentais como
experiências que se oferecem naturalmente ao pesquisador e lhe permitem acompanhar a
regressão e a desagregação dos estados normais (Les maladies
de la mt 1881; Les maladies de la volonté, 1883; Les maladies de la personnalité, 1885).
Em suas obras, L 'évolution des idt générales (1897) e Essai sur l'imagination créatrice
(1900), procurou também abranger as manifestações mais complexas da vida do espírito.
Ribot admitiu que as ciências psicológicas têm necessidade de recorrer (se não
quiserem confinar-se a pesquisas experimentais muito limitadas) a um método
comparativo que utilize as aquisições das diversas ciências humanas (antropologia,
etnografia, lingüística, história...).
"A idéia de progresso, de evolução ou de desenvolvimento, tornada prepon derante, em
nossos dias, em todas as ciências que têm objeto vivo, foi sugerida pelo duplo estudo das
ciências naturais e da história. As idéias escolásticas sobre a imutabi lidade das formas da
vida e a uniformidade das épocas da história deram lugar a uma concepção contrária. A
doutrina do velho Heráclito voltou, mas confirmada pela expe riência de vinte séculos:
tudo Øassa, tudo muda, tudo se move, tudo se transforma.. Fisiologia, lingüistica, história
religiosa, literária, artística, política - tudo depõe em favor do desenvolvimento. Essa
idéia, sem a qual não se tem da vida e da história senão uma concepção errônea, por uma
singularidade inexplicável, permaneceu ausente da psicologia ordinária... Caso se
pretenda que o psicólogo deva afastar todas essas varia ções acidentais para chegar à
condição última e absoluta da atividade mental, um estudo concreto será então
transformado em abstrato, uma realidade será substituída por uma entidade; proceder-se-á
como o zoologista que tomasse por base de suas pesquisas o
tipo ideal da animalidade(
(1) Ibid.. pãgs. III, XXVII. XXVIII.
(2) Capitulo "Psychologie", em Dela ,m dans (es sciences. obra coletiva, Alcan, Pans,
1909.
(3) La psvcho1og anglaise contemporaine, Introdução. Paris, Alcan, 1901. págs. 36-37.
274
275
5. As ciências psicológicas em 1900
O impulso que toma a nova psicologia se manifesta na criação de laboratórios em
numerosos países e no aparecimento de revistas especiali zadas: na França, depois de
Annales Médico-psychologiques, L 'Année Psychologique; na Alemanha,
Philosophische Studien e Zeitschrift für Psychologie; nos E.U.A., American Journal of
Psychology e Psychological Review. Reflete-se, igualmente, nas comunicações
apresentadas aos Congressos Internacionais de Psicologia. Lançada por um
"privatdozent" da Universidade polonesa de Lemberg, a idéia desses congressos
encontrara eco favorável na Revue Philosophique de Ribot, em 1881, e encontrara
realização em 1889, mediante um primeiro "Congresso de Psicologia Experimental", em
Paris, sob a presidência de Charcot como titular. Dirigiram-no efetivamente, entretanto,
Théodule Ribot, vice-presidente, e Charles Richet, secretário- geral. Dele participaram
psicólogos já mais ou menos famosos: Pierre Janet, Fred W. H. Myers, Auguste Forel,
Théodore Flournoy, Alfred Binet, William James... Seguiu-se um segundo congresso
em Londres (1892), onde o hipno tismo e a teoria das localizações cerebrais foram
longamente tratados. Alexander Bain nele apresentou uma comunicação sobre a
introspecção; Ribot, sobre a natureza dos conceitos; Münsterberg, sobre os sentimentos.
A psicologia genética fez sua aparição com as exposições de Preyer sobre a origem do
número, e de Baldwin, sobre os começos da reação voluntária.
Seiscentos psicólogos se reuniram pela terceira vez em Munique, em 1896. Enquanto na
reunião o hipnotismo ocupava ainda lugar importante, o campo da anatomofisiolog ia dos
centros nervosos apresentava-se bastante reduzido. Esse congresso, do qual se destacou
"a impressão de que a psicolo gia tomava consciência de si mesma"( chamou- se
simplesmente "Congresso de Psicologia". Eliminara-se o adjetivo "experimental", que
parecia evocar exclusivamente as pesquisas de laboratório, sem abranger com exatidão as
investigações em curso na época. A psicologia aplicada nele apareceu com
numerosas comunicações psicopedagógicas, dentre as quais uma de Ebbinghaus sobre
seu método de medir a fadiga dos escolares.
Um IV Congresso se reuniu em Paris, em 1900, sob a direção de Ribot e Pierre Janet.
Nesse congresso, invadido por muitos ocultistas, espíritas e teosofistas, apareceram
tanto a psicologia religiosa como a psicologia animal. Enquanto Ebbinghaus, numa
comunicação sobre "A psicologia de agora e de há cem anos", observava que a nova
ciência, a exemplo das mais antigas, se libertara a partir daquele momento, das tradições
nacionais, Théodule Ribot, na alocução de abertura, esboçava um balanço das pesquisas e
do trabalho experimental no decorrer da última década( 2). Nessa alocução, atribui lugar
de honra à anatomia e à fisiologia, essas ciências auxiliares da psicologia, que a
colocavam diante da tarefa de interpretar as recentes descobertas sobre os neurônios,
transportando-as para seu próprio terreno. No domínio da psicolo gia propriamente dita,
observa que grande atividade se desenvolveu no decorrer dos últimos anos:
multiplicaram-se livros e, nas revistas especiali
(1) Ci. Édouard CLAPARÉDE: Esqutnse hcttot'iqae des Cong,'és internationaax de
psychoiogte, sessão de abertura do IX Congresso Internacional de Psicologia, New
Haven, 1 de setembro de 1929.
(2) "Le développement de la psychologt depuis le dernier Congrês psychologique",
Actas da IV Congrês Inter,,.ationai de Psychologie, relato das sessões e textos das
memórias publicados pelo Dr. Pierre JANET, secretário- geral do Congresso, Paris,
Alcan, 1901.
zadas, artigos sobre a visão, a audição, o tacto, o olfato, o paladar, as sensa ções internas,
a fadiga, etc. Reconhece que os adversários da nova ciência não erraram de todo a
censurar-lhe uma predileção pelo respeitante aos órgãos dos sentidos e às percepções;
julga, contudo, necessárias essas pesquisas que têm por objeto a "matér ia- prima da vida
mental". Além da memória e da associação de idéias, a atenção (a princípio
negligenciada pela psicologia experimental) provocou múltiplas investigações sobre as
duas formas de reação, sensorial e motriz, entre pessoas, sãs e doentes, e até entre
animais, O problema das emoções, após todas as discussões e polêmicas produzidas pela
repercutente teoria de James- Lange (1), suscitou numerosas pesquisas baseadas no
método das variações concomitantes e consagradas, principal mente, a experiências de
laboratório acerca das variações do pulso e da circu lação em geral em suas relações com
os estados afetivos; ainda suscitou igual mente o estudo por diversos processos
(inquéritos, questionários, método comparativo) de algumas emoções simples, como o
medo e a cólera, e até de certas formas mais complexas, como o sentimento religioso ou
estético. Inver samente, admite Ribot, o estudo das manifestações superiores da vida do
espí rito: operações lógicas, juízo, raciocínio, imaginação criadora.., faz pobre figura no
inventário das publicações psicológicas,
verossimilmente pelo cuidado louvável, segundo pensa, de evitar as "especulações vãs".
Ribot lembra ainda, sem nomear Alfred Binet, que a psicologia da criança, no começo
fragmentária e até algo anedótica, assumiu forma mais sistemática e visa não tanto a
descrever estados quanto a relatar uma evolução e a tornar-se, assim, estudo embriológico
e genético do espírito humano, proposta ainda a servir os interesses da pedagogia. No
domínio da psicologia social, observa que ela considera uma ordem de fenômenos que
nem a introspecção, nem a experimentação, nem o raciocínio podem revelar-nos porque
têm origem numa ação recíproca dos espíritos; lembra, a esse propósito, os estudos que
homens como Gabriel Tarde e Gustave Le Bon empreenderam na França sob o nome de
psicologia das multidões.
Para ter a idéia do caminho percorrido na segunda metade do século XIX, basta lembrar
esta definição de psicologia, corrente em 1850, da qual cada proposição se vê invalidada
no fim do século: "Essa parte da filosofia cujo objeto é o conhecimento da alma e de
suas faculdades consideradas em si mesmas e estudadas unicamente por meio da
consciência...
(1) É sabido que essa teoria, sustentada simultaxeamente pelo fisiologista dinamarquês
CarI LANGE e por William JAMES (este, primeiramente, na revista Mmd), afirma
paradoxalmente que a emoção é simplesmente a tomada de consciência das reações
viscerais e glandulares anteriores ao fato mental. ("... Ficamos aflitos porque choramos,
irritados porque batemos, assustados porque trememos." W. JAMES. La théorie de
I'émotion, trad. francesa, Alcan, 1902, pág. 61.) Fssa teoria pode ser considerada caduca.
No campo da psicofitiologiu, atribuem-se geralmente a centros da base do cérebro
(especialmente da região hipotatâmica( as reações fisiológicas da emoção.
o argumento decisivo é fornecido por esses doentes freqüentemente encontrados nos
hospícios, os pseudo' bulbares, acometidos de riso e choro espasmódico, nos quais
vemos desencadearem-se, mecanicamente, risos sem alegria e sotuços sem tristezas.
Quem quer que tenha sentido a humilhação dolorosa com que alguns desses doentes
suportam sua incontinência mímica, quem quer que lhes tenha adisinhado o desespero
sob o acesso de riso furioso. teve a certeza íntima deque estavam tristes porque riam."
(Jean DELAY. La psrrho'p/tt'stologie humatrte, P.U.F., 1945. pág. 19.) Filósofo,
médico, experimentador, Willians JAMES (1842-1910). bem conhecido como o pai
dopi'ag mutismo, é também o primeiro grande nome da psicologia americana: autor de
copiosos Principies of Psvc/toiog,y (1890), organizara em Harvard um laboratório de
psicologia experimental já em 1876, antes de WUNDT. Com o tempo, suas
preocupações morais e religiosas acabam por prevalecer -e ele se afasta de pesquisas
que se lhe tornam irrisórias: "Desembaracei-me para sempre do laboratório; e pediria
imediatamente minha demissão se quisessem que dele me encarregasse de novo. Os
resultados de todo esse trabalho se me afiguram cada vez mats decepcionantes e
insignificantes.,." (A Théodore FLOURNOY, Leuers, II, 5-4.)
(2) Adolphe FRANCK, Dictionnaire des sciences philosophiqaes, primeira edição, de
1844 a 1852; 2t cd. em 1875.
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6. A reabilitação da introspecção
O balanço de Ribot situa-se num momento em que a nova ciência ia experimentar grande
reflorescimento, em particular do lado da psicopatologia e da fenomenologia (cf. o
capítulo seguinte). No plano da psicologia experi mental stricto sensu, este renascimento
se caracteriza pela reabilitação da introspecção, que havia sido até então excluída dos
laboratórios.
Já antes do final do século XIX, certos trabalhos na Alemanha - especialmente os de H.
Ebbinghaus sobre a memória (Ueber das Gediichtnis, 1885) - mostraram que os
fenômenos psíquicos podiam ser estudados diretamente, isto é, sem passar por seus
concomitantes fisiológicos. Tais obras levaram os psicólogos a tomar em consideração o
recurso sistemático à intros pecção, método que Wundt julgava impraticável. Foi,
entretanto, seu aluno e assistente, Ostwald Külpe, quem deveria adotá-lo, afirmando-se
como o promotor de pesquisas experimentais conduzidas nesta nova base. As investi
gações, conhecidas pelo nome de Denkpsychologie, fariam, nos primórdios de nosso
século, entre 1900 e 1908, a reputação da "Escola de Wurtzburgo" (Külpe, Karl Marbe,
Ach, Messer, Karl Bühler). Semelhante empresa impli cava repor em debate o sistema
empirista e sensualísta herdado dos ingleses e de Condillac, prevalecente na origem da
psicologia científica. Pois, este sistema pretendia que as operações da vida mental, nelas
compreendidas as ligações de idéias e os princípios racionais, fossem explicáveis pela
associação mecânica das idéias, e daí decorria que o pensamento não podia ser outra
coisa senão o último produto de imagens associadas. Ora, as pesquisas dos
wurtzburguenses, com seu recurso à introspecção controlada, significavam que não se
pensava mais em limitar-se ao registro da excitaçào, à qual esti vesse submetido o
sujeito, e ao da reação respectiva, mas que se lhe pedia colaborasse ativamente nas
experiências, observando e verificando a exatidão do que elas nele produziam. E esta
espécie de revolta palaciana ia obrigar a nova ciência a inscrever na ordem do dia um
problema capital: o do pensa mento e da linguagem, visto os wurtzbiirgiienses
concluírem de suas pesquisas ser necessário admitir a existência de um pensamento
puro, sem imagens e palavras.
Esta reação contra a tendência de a psicologia científica do início reduzir a vida mental a
uma espécie de mosaico se manifestara em outros países além da Alemanha. Na França,
Alfred Binet, que conhecia de muito perto os métodos utilizados no laboratório
germânico, considerava-os excessi vamente restritos. Na realidade, foi ele, antes dos
wurtzburguenses, o primeiro a praticar metodicamente a introspecção provocada( As
expe riências, a que se entregou, também o persuadiram que uma idéia abs trata, a de
justiça, por exemplo, bem podia suscitar, em certos sujeitos, imagens tais como as de
balança ou juiz, mas que estas imagens o mais das vezes eram muito banais e sem
medida comum com a atividade judicativa e significante do pensamento racional.
Ao mesmo tempo, na Suíça, Édouard Claparède reivindicava, por sua vez, uma
concepção mais ampla da psicologia, que permitisse explicar a ativi
(1) L 'étside e.epéi-imextale dei 'mteiligexce (1903).
dade inteligente, a direção do espírito( 1). Caracterizará de "funcional" sua própria teoria,
entendendo por função a relação entre o fato a explicar e a totalidade da conduta. Com
preocupações psicológicas a ir ao encontro das de Pierre Bovet, de Neuchâtel, os dois
criarão em 1912 o Instituto Jean Jacques Rousseau, transformado em Instituto das
Ciências da Educação, que Jean Piaget dirigirá até 1971.
(1) L associatioii des id (1903). Aparentado com Théodore FLOURNOY. que, a
exemplo de RIBOT em França, se consagrara à nova ciência e tornou-se o primeiro
titular de uma cadeira de psicologia experimental, que dispunha de laboratório, na
Universidade de Genebra, Edouard CLAPAREDE refere que uma meia dúzia de
neófitos se aplicavam ali, nas pegadas de FECI-INER e WUNDT. a registrar tempos de
reação e a determinar limiares sensoriais. sem compreender bem a significação de tais
experiências. Sobre as recordações de CLAPA REDE. cf. A Histo of Pst'i'hsitigv iv
Aniiibivvg editada por Cari MURCHISON. Clark Universtiy Press, Worcester. Mas'...
1930. sol. 1. pág'.. 63-97.
278
279

CAPÍTULO XXI
A FORMAÇÃO DE ESCOLAS NO SÉCULO XX
1. A psicologia das profundezas"
a) Origens da psicanálise
b) O desenvolvimento do freudismo
c) A "psicologia individual" de Alfred Adler
d) A "psicologia analítica" deC. G. Jung
2. A reflexologia e o behaviorismo
3. A "Gestalttheorie"
1. A psicologia "das profundezas"
a) Origens da psicanálise
Nesse ano de 1900, em que Théodule Ribot, no Congresso de Paris, apresentava o
balanço de que tratamos no capítulo precedente ( 5), aparecia a primeira obra decisiva
de Freud: Die Traumdeutung (A interpretação dos
-sonhos), de fraquíssima repercussão na época, mas que deveria, finalmente, abrir à
psicologia perspectivas imprevistas. Ainda no mesmo ano as Logische Untersuchungen
de Husseri inauguram uma "análise intencional", que terá, igualmente, repercussões,
diretas ou indiretas, nas ciências psicológicas(').
A psicanálise tem hoje, pois, uma longa história, no decorrer da qual se nuançou,
complicou e transformou muito. A comemoração do nascimento de Freud, em 1956, veio
acrescentar, a uma bibliografia enorme, tamanha quantidade de obras e estudos, que,
diante desse acúmulo de pensamentos em torno do de Freud, temos um sentimento de
estar correndo o risco de uma aposta ao falar dele em termos breves. Como se sabe, o
termo psicanálise, mesmo relacionado exclusivamente com Freud, designa muita coisa.
Método
(1) O pensamento husserliano. que continua, em certo sentido, a empresa
fenomenológica de HEGEL, mas zuni a preocupação de não "decolar' da experiência
sivida, isto é. sem os VÔOS metafísicos do segundo. deseni penha papel de primeira
grandeza na cultura contemporânea, na medida em que representa um cuidado inédito
na busca dos próprios fundamentos da verdade; marcou profundamente os estudos
psicológicos, nos quais veio dissipar ilusões quanto à facitidade de eliminar as
preocupações filosóficas no estodo do psiquismo humano. Sobre a inftuên cia da
fenomenotogia de HUSSERL, cf. nosso capítulo XXIV.
280
de exploração do psiquismo humano, na medida em que é considerado como o teatro de
processos inconscientes desconhecidos pela psicologia clássica, é ainda, e
principalmente, uma terapêutica para certas neuroses e psico neuroses. Enfim, por
ampliação indefinida, a psicanálise acabou por invadir todos os domínios da atividade e
da cultura humanas: caracterologia, peda gogia, estética, sociologia, história artística e
literária, mitologia, folclore, história das religiões, história das civilizações.
Embora não tenha propriamente descoberto o inconsciente, como tal, teve Freud a idéia
genial de revelar e descrever-lhe o papel no psiquismo humano. Lembrei que, bem antes
dele, filósofos do século XIX, a começar por Schopenhauer, afirmaram a primazia da
vida instintiva, desvendaram, à sua maneira, certas ilusões próprias da concepção
intelectualista do compor tamento. Por outro lado, na segunda metade do século XIX,
muitos fisiolo gistas, neurologistas, psicólogos, médicos, interessados nos fenômenos da
histeria, da hipnose e da sugestão viram claramente que a vida psíquica ultra passava
singularmente o campo da consciência clara. Numa época em que a atenção até do grande
público se via atraída pelas estranhas manifestações que determinaram o aparecimento,
primeiro do movimento espírita, depois das sociedades de estudos psíquicos, o chamado
ocultiárno conheceu uma fase de interesse renovado; cientistas dele se ocuparam,
batizando-o de metapsi quica (Charles Richet) e se puseram a estudar fenômenos
considerados até então como decorrentes da superstição e do charlatanismo. Por outro
lado, o reconhecimento oficial do psiquismo inconsciente foi muito particularmente
ilustrado pela obra do médico e filósofo Pierre Janet, cuja tese de doutorado em Letras
em 1889 sobre o automatismo psíquico (L'automalisme psychologique) assim como sua
tese de medicina em 1893 sobre o estado mental dos histéricos (L 'état mental des hyst
marcam datas importantes na história da psicologia geral.
Janet demonstrou que personalidades segundas, brotadas segundo ele das regiões
inferiores do eu, podem surgir num indivíduo e levá-lo a executar certos atos, sem que
este indivíduo tenha, de modo algum, consciência de ser a causa de tais atos. Mas é
como intelectualista pouco interessado pela vida afetiva que Janet vê as coisas. Como o
essencial a seus olhos é a consciência em vigília, com sua "função do real" que garante o
estado normal, não duvida que é unicamente a desagregação deste poder de síntese que
abre a porta às manifestações inconscientes, "formas inferiores da atividade humana", e
por aí mesmo às neuroses e até às psicoses. Nesta perspectiva, ele não chegará como
Freud à idéia de um verdadeiro dinamismo do inconsciente, o qual se
acha, afinal de contas, reduzido por ele a uru "subconsciente" parasitário que engendra a
debilidade da consciência( 1).
(li Deve-se a Pierre JANET uma descriçà notável e sempre atual da "psicastenia" (cf.
particularmenle Les obsessivas et Ia psyehastéaie, 1903; Le néc,-vses. 1909; Lafaibl
esse psvcho/vgiqae, 1930) para designar uma das formas deste enfraquecimento da
atividade psíquica à qual atribui as perturbações mentais dos histéricos, dos obsedados,
dos atacados de fobia, dos abúlicos, dos levados à dúvida doentia... Em suma, ele está
de acordo com FREUD em admitir como critério do normal uma harmoniosa
coordenação das energias, mas para explicar de modo diferente as deficiências e as
anomalias da "tensão psíquica" que caracteriza a seus olhos a normalidade; ora, sua
própria explicação Isimples "fraqueza" da consciência) não é capaz de facer entender a
memória inconsciente nem a função simbolizante do inconsciente. Sobre Pierre JANET,
cl. de E. MINKOWSKI, Pi,'ee,' Javei. Essai sur t'homme et sur l'oeuvre (Centenaire de
Th. Ribot); igualmente, de Paul FOULQUIE. La psvchologie conteasporaiae )P.U.F..
1951). págs. 329-350.
281
O fato de ter havido um "clima" peculiar de época, rico em apelos, o qual encerrava,
aliás, muitos outros aspectos (a revolução trazida pelas teorias evolucionistas, o
progresso das ciências físicas e biológicas, a criação da psico logia científica) em nada
diminui a originalidade básica de Freud. Pois seu mérito, diante de fatos que atraíam a
atenção dos cientistas e apaixonavam a opinião( 1), consistiu principalmente em
compreender o partido que deles se poderia tirar para o tratamento das neuroses e,
particularmente, em descobrir que o histérico é um ser que "sofre de reminiscências".
Suas reflexões nesse sentido haviam sido orientadas pelas observações de um colega
neurologista muito conhecido em Viena, o Dr. Joseph Breuer. No decorrer dos anos de
1880 a 1882, Breuer tivera a oportunidade de tratar de uma jovem portadora ,de
perturbações histéricas: paralisias parciais, contratura, confusão mental. Tendo
observado que os sintomas se atenuavam quando a doente lhe fazia confidências, mas
que as confidências obtidas pare ciam reticentes, tivera o médico a idéia de recorrer ao
sono hipnótico; e a revivescência de certas lembranças, nesse estado provocado,
determinara o desaparecimento dos fenômenos mórbidos.
Especializado no estudo das doenças nervosas, Freud julgou que deveria procurar fora
de Viena as informações que lhe permitiriam aperfei çoar os conhecimentos. "Brilhava
ao longe o grande nome de Charcot( Graças a uma bolsa de estudo, foi a Paris,
inscreveu-se como aluno na Salpêtrière e entrou em contato com ele. Aquele já então
conhecido como "o grande Charcot" se ocupava preferencialmente com a histeria; e seus
discípu los conseguiam provocar em certos sujeitos, por sugestão hipnótica, paralisias e
contraturas. Quando Freud, de volta a Viena, quis informar a Sociedade dos Médicos
acerca do que havia visto e aprendido na França, seus colegas puseram-se na defensiva.
Na cidade que outrora expulsara o "charlatão" Mesmer, tais práticas não tinham boa
reputação:
"Os médicos dos hospitais em cujos serviços encontrava casos semelhantes recusaram-
se a deixar-me observá-los e tratá-los. Um deles, um velho cirurgião, excla mou: "Mas,
meu caro colega, como pode dizer tais absurdos! Hysteron (sic) quer dizer útero.
Portanto, como pode um homem ser histérico? (3)"
Esta não era senão uma das primeiras manifestações da incompreen são, freqüentemente
carregada de hostilidade e repulsa, contra a qual Freud iria embater durante um decênio.
(1) Em princípios de 1900. alguns meses antes de FREUD. o professor genebrino
Théodore FLOURNOY, promotor da psicologia experimental na Suíça, publicou uma
obra onde expunha os resultados de pesquisas Conceit. Iradas durante seis anos em
ioroo do estranho caso de uma jovem, Flélène Smith. conhecida em Genebra como
médium e que, em certos momentos, vivia delírios sonambúlicos organizados em
autênticos romances (FLOURNOY os cataloga em cliii, indu, ciclo real, ciclo
,nurc,a,nil. Ësse livro, th'x index d la /ilupii'ii' Man; ,iiolciurniica,, iii' somna,nbulisnie
mcc glousola/ie, traduzido para o inglês assim que apareceu, atingiu em poucos meses a
terceira edição francesa e toda a imprensa o comentou. Nele se encontra uma expticação
psicanalíIica muni la horre dos fenômenos relatados e também a idéia de que o sonho é
a chave do subconsciente: "Brotando de nosso fundo oculto, trazendo à luz a natureza
intrínseca de nossas emoções subconscientes, desvendando nossos pensamentos
recônditos e a propensão instintiva de nossas associações de idéias, o sonho é muita vez
um instrutivo instrumento de sondagem das camadas desconhecidas que sustentam nossa
personalidade comum, Isso dá lugar, ás vezes, a muito tristes descobertas, porém,
algumas vezes, também permite que se revele assim a melhor parte de nós mesmos."
(Des index..., pág. 133.) Cl. Edouard CLAPAREDE. "Théodore Flournoy. sa vie ei son
oeuvre, 1854.1920". (Extrato dos Are dePuychologie. vol. XVIII, Kandig. Genebra.
192t.)
(2) Sigmund FREUD, Ma iie cita psoc/ia,ialvsi', trad. de Marie BONAPARTE, N. R. F.,
Galtimard, 1949, pág. 16.
(3) Ma eie..., op. cii.. pág. 21.
Alguns anos mais tarde (1889) voltou à França, mas dessa vez a Nancy, para aproximar-
se do "velho e afetuoso Liébault" e, principalmente, de
Bernheim:
"Fui testemunha das espantosas experiências de Bernheim com seus doentes do
hospital, e lá é que recebi as mais fortes impressões relativas à possibilidade de
poderosos processos psíquicos mantidos, entretanto, ocultos à consciência dos
homens(')."
Impressionou-o particularmente o curioso fenômeno das sugestões chamadas pós-
hipnóticas, ou seja, a execução, por um sujeito, em estado de vigília, de um ato que lhe
foi sugerido no sono hipnótico e a cujo propósito, por absurdo que pareça, seu autor
demonstra uma preocupação de explicar, procura atribuir-lhe motivação consciente,
como se houvesse sido desenca deado por sua própria iniciativa.
Mais uma vez de volta a Viena, Freud reatou relações com o Dr. Breuer, e os dois
homens associaram por algum tempo os trabalhos, publi cando em comum (1895)
"Estudos sobre a histeria". Sobrevindo, porém, diver gências quanto à interpretação dos
fenômenos estudados, rompeu-se, defini tivamente, a colaboração entre eles. Enquanto
Breuer atribuía a inconsciência de certas lembranças a um estado mental particular e
fortuito, determinado por certas condições (fadiga, realização de tarefa monótona...),
Freud se persuadiu da existência de um móvel profundo para esse esquecimento e de
que a sexualidade desempenharia papel preponderante em tal circunstân cia(
Preocupava-se, por isso, com achar um método que, menos tributário do ocultismo do
que a hipnose, e de aplicação mais fácil, lhe permitisse liberar, em seus doentes, tais
lembranças perturbadoras. Uma tentativa infru tífera de hipnotismo pô-lo no bom
caminho.
Sem estar adormecida, uma paciente deu livre curso a seus pensa mentos durante uma
sessão, relatando, de forma confusa e desordenada, tudo quanto lhe passava pela cabeça,
exibindo também emoções relacionadas com o que exprimia. Assim nascia a associação
livre, tendente a obter do sujeito a expressão de tudo quanto lhe vem ao espírito, em geral
imagens aparente mente fúteis, extravagantes ou escabrosas. Esse meio iria tornar- se a
técnica por excelência do tratamento psicanalitico. Quando pedia a seus pacientes que
recordassem as circunstâncias ligadas à desordem de que sofriam, pôde Freud observar
que essas lembranças eram penosamente despertadas e tudo se passava como
se uma resistência lhes fosse oposta. Por isso o problema que encontrou foi, então: como
baldar essa resistência, como chegar a essas zonas obscuras do psiquismo, cuja entrada
parecia guardada por um censor vigilante. Freud teve, como é sabido, a idéia de recorrer
ao sonho. E como lhe pareceu que, nos sonhos, a censura, se está adormentada, não está
desapa recida e as tendências inconscientes nele não se manifestam senão cuidadosa
mente camufladas, esforçou-se por interpretá-los, decifrar aquilo que se ocultava em seu
disfarce simbólico.
senual,"
(1) ibid., pág. 25.
(2) Na Salpêtribre, ouvira CHARCOT dizer a BROUARDEL: "Na origem da histeria há
sempre algo de
282
283
Essa pesquisa( 1)0 conduziu a descobertas sensacionais. O inconsciente não é apenas o
receptáculo de lembranças esquecidas e vergonhosas, recal cadas pelo eu e relegadas, um
pouco à maneira de certas obras que vão parar no inferno da Biblioteca Nacional(*), mas,
ainda, e principalmente, um foco ativo de desejos e tendências vivazes, em luta constante
com forças tendentes a refreá-las. Esse conflito de tendências se lhe afigura presente
também nessas anomalias da vida cotidiana: esquecimentos, lapsos, erros de leitura ou
escrita, equívocos, desazos, ausências..., testemunhas de uma intrusão das tendências
inconscientes na vida organizada de todos os dias. E nessa primeira fase da psicanálise,
assinalada pela publicação do livro sobre os sonhos e, depois, por obras como a
Psicopatologia da vida cotidiana (1901), Três ensaios sobre a teoria da sexualidade e O
chiste e suas relações com o inconsciente (ambos de 1905) que as grandes descobertas de
Freud viram a luz: etiologia das neuroses, motivações inconscientes, sexualidade infantil,
recalque, resistência, transferência que se estabelece entre paciente e analista, chamada
por Freud de "intensa relação afetiva".
Em suas primeiras teorias, aparece o inconsciente como uma espécie de húmus primitivo,
comum a todos os homens, repleto de tendências moral mente deploráveis, onde
mergulham as raízes das personalidades humanas. A preponderância que atribui então à
sexualidade justifica até certo ponto o reproche depansexualismo que sofreu e que o
desenvolvimento ulterior de seu pensamento tornou caduco, O principal elemento de
escândalo foi sua afirmação da sexualidade infantil e da importância decisiva do
complexo de Edipo na formação da personalidade, acompanhada de sua definição - não
muito feliz - da criança como perverso polimo,fo, mercê de audaciosa e paradoxal
inversão das relações geralmente admitidas entre o normal e o anormal. Muitas vezes,
aliás, o reproche e o escândalo assentavam em precon ceitos bem enraizados que
impediam o esforço de compreender as novas pers pectivas abertas por suas descrições.
b) O desenvolvimento dofreudismo
Com o tempo, as opiniões de Freud sofreram profundas alterações, principalmente no
tocante à angústia e à origem das neuroses; sua última interpretação dos instintos pouco
se assemelha à primeira teoria da libido. Ainda assim, suas melhores armas foram
forjadas no decorrer desses dëz anos aproximadamente de trabalho intenso e solitário
que qualificará mais tarde de "esplêndido isolamento".
Foi em 1907 que tudo deveria mudar. Freud tem notícia de que em Zurique o psiquiatra
Eugen Bleuler (a quem se deve a descrição da esquizo frenia), então diretor da clínica de
Burghólzli, e seu assistente Cari Gustav Jung muito se interessam pela ciência por
ele criada. Travam-se relações e, na Páscoa do ano seguinte, os amigos da psicanálise se
reúnem num Congresso em Salzburgo. Decidem a organização regular de tais encontros
e se entendem
(1) Hoje se sabe que papel representou, na ongem da psicanálise, em conexão com as
observações clínicas, a auto-análise por ele enipreendida desde 1897. após a morte do
pai. (Cl. La ,iais.ia,,c de/a psrchana/vre, P.U.F.. 1956.)
(*) Jxfeniii de uma biblioteca é a parte fechada onde se guardam os livros de caráter
licencioso. (J. B. D. P.(
sobre a publicação de uma revista, dirigida por Freud e Bleuler, da qual Jung se torna
redator-chefe: Jahrbuch für psychologische und psychopathologische Forschungen; ela
deixará de aparecer no início da guerra de 1914-1918. Em seguida, 1909 marca a
primeira consagração oficial da psicanálise nos Estados Unidos com o convite da Clark
University, de Worcester, que celebra o vigé simo aniversário de sua fundação, para
Freud e Jung pronunciarem uma série de conferências em língua alemã( l),
Em 1910, rim Segundo Congresso realizado em Nuremberg decide a criação de uma
Associação Internacional de Psicanálise, da qual Jung, mal grado as reticências dos
membros vienenses, se torna presidente (2), A novel associação incluirá em breve
grupos ou aderentes isolados em muitos países da Europa, e até fora dela, e com eles
Freud se corresponderá.
Fundam-se novas revistas: a Zentralblatt für Psychoanalyse (Revista Central de
Psicanálise), redigida por Alfred Adler e Wilhelm Stekel, .depois pelo último somente;
em seguida Imago, na qual analistas não médicos, como Hans Sachs e Otto Rank,
contribuirão para alargar o campo das aplicações da psicanálise. Nesta época o
freudismo já conta com adeptos eméritos como Karl Abraham, Sandor Ferenczi, Ernest
Jones.
Em França, todavia, embora Pierre Janet houvesse reconhecido, no Congresso
Internacional de Medicina de 1913, que "a psicanálise prestou grandes serviços à análise
psicológica", bem pequena repercussão suscitará a nova ciência antes da Primeira
Guerra Mundial. Uma das raras exceções a esta falta de interesse inicial é representado
por um estudo de Hesnard e Régis( Somente em 1926 constituir-se-á em Paris uma
Sociedade Psicana lítica que publicará a cada trimestre uma RevueFrançaise
dePsychanalyse.
É provável que a atitude reticente de Janet a respeito da psicanálise (seu reconhecimento
dos "grandes serviços" que ela prestou à análise psicológica fora feito um pouco da boca
para fora) contribuiu para o atraso de sua pene tração em França. Isto porque Janet, que
gozava de grande reputação em seu país, estava em suma persuadido de que o criador da
psicanálise lhe devia o essencial de suas afirmativas(
O Terceiro Congresso Psicanalítico (Weimar, 1911) é precedido pela dissidência de
Alfred Adler e será seguido pela ruptura com Carl Gustav Jung.
Doravante duas importantes escolas se desenvolverão em rivalidade com a de - Freud:
apsicologia individual de Adler e apsicologia analítica de Jung.
(1) As conferências de FREUD apareceram em tradução francesa com o titulo de Cio
/eçons sue Ia psvchana/vse (Paris, Payot, 1921); P.B,P., n? 84.
(2) "De/sei que elegessem C, G, JUNG como primeiro presidente, iniciativa bastante
infeliz, como se revelou mais tarde." (FREUD: Ma i'ir',.., op. cri., pág. 79.)
(3) La psvclioaisa/rse des isetirnses ei eles psvi'ho.ies (Ir cd., Paris, Alcan, 1914; 2t cd.,
1921; 31 cd., 1929).
(4) Em La osédecine psvc/to/ogiqur (Ftaíttmarion, 1923), falará de "um médico
estrangeiro, o Sr. Dr. S. FREUD" que, após ter-se interessado em Paris pelos estados de
CHARCOT e de seus alunos, modificou em suas pubticações os termos de que ele,
JANET, se servia; "chamava de psicn-análise o que eu chamara análise psicoló gica,
denominou complexus (?) o que co denominara sistema psicológico".
Por sua vez, FREUD, por volta de 1916, embora admitindo que JANET foi o primeiro a
publicar sobre his teria, acrescenta a este respeito: "Confesso que estive durante muito
tenipo disposto a atribuir a P. JANET um mérito todo especial por sua explicação dos
sintomas neuróticos, concebidos por ele como expressões das "idéias Inconscientes" que
dominam os doentes. Mais tarde, porém, dando prova de exagerada reserva, JANET
exprimiu' se como se tisesse querido fazer compreender que o inconsciente não era pura
ele senão uma "maneira de falar" e que no seu pensamento este termo não correspondia a
nada de real. Desde então não compreendo mais as deduções de.JANET, mas penso que
se prejudicou muito, quando teria podido granjear muito mérito", (Inteodui'tioo à /a psyi'/
P.B.P., o? 6, pág. 239,)
284
285
Sobrevém a Grande Guerra que, ao dispersar os adeptos da psicanálise, originários de
diferentes países, iria provisoriamente pôr um fim à expansão da nova ciência. Os
trágicos acontecimentos deveriam, aliás, dar ocasião a Freud de sentir a insuficiência de
suas teorias iniciais, sobretudo pelo fato de que soldados traumatizados por combate ou
bombardeio tendiam a reviver nos sonhos a situação que viveram, o que pouco se
ajustava com a teoria do sonho como satisfação simbólica de desejos recalcados. A
experiência das neuroses de guerra, coincidindo com a de dificuldades imprevistas
sobre- vindas na aplicação da técnica psicanalítica desta época, leva Freud - forte mente
abalado pelo desencadear das forças de agressão - a rediscutir todas as suas idéias
anteriores.
Deste modo, seus escritos de 1920 a 1923, particularmente Jenseits des Lustprinzip e Das
Ich und das Es (1), assinalam uma direção capital de seu pensamento. Contentara- se até
então em situar o comportamento humano en tre dois pólos: o princípio de prazer,
soberano nos albores da vida humana, e o princípio de realidade, modificador do primeiro
em função das condições im postas pelo mundo exterior. Ora, ele reconhece que a
interação entre estes dois princípios não pode explicar a tendência à repetição de condutas
infelizes, como, a seu modo, atestavam as neuroses de guerra e também a estranha
conduta de certos pacientes obstinados em mergulhar de novo em situações penosas
(fracassos, amores infelizes, etc.) sob a influência inconsciente de experiências antigas.
Para explicar estes novos elementos, admite doravante um novo fator da vida psíquica
inconsciente: a "compulsão de repetição" (Wiederho lungszwang), e a atribui ao caráter
conservador das pulsões em geral. Mas como pode tal "compulsão" instalar-se como
protótipo na vida afetiva com levar a repetir penosas situações anteriores? Freud se lança
ao mar novamente e, para explicar esta tendência "demoníaca" (demonisch), confere nova
dimensão à dinâmica instintual pela introdução de "pulsões de morte"
(Todestriebe). Doravante sua nova teoria postula a distinção funda mental entre dois
tipos de instintos: as "pulsões de vida" (Lebenstriebe), cujo alvo é "estabelecer sempre
maiores unidades a fim de conservá-las", e que envolvem as exigências contraditórias da
conservação do indivíduo e da espécie; e as "pulsões de morte" (Todestriebe), cujo
termo é "romper todas as relações, portanto destruir toda coisa", e que visam a um
retorno ao anonimato anterior à aparição da vida. As "pulsões de morte" teriam nascido
na matéria viva no momento em que as forças cósmicas agiam sobre a matéria
inorgânica com criar seres vivos, e exprimem, no próprio interior dest es últimos, uma
força que trabalha no sentido do repouso e da morte. Cabe, pois, admitir que a vida, cuja
continuidade é assegurada pelo instinto de reprodução, traz em si enraizada uma
tendência para regressar ao inorgânico, e esta é uma conse qüência das condições que a
viram nascer; vale dizer que para Freud "segunda maneira" existe, no próprio interior do
ser humano, um conflito eterno entre as forças antagônicas da vida e da morte; pensa
explicar assim a "compulsão de repetição" e a agressividade, a qual não somente pode ser
exercida contra outrem, mas também voltar-se contra o próprio indivíduo
(mecanismos de autopunição, condutas masoquistas).
(1) Traduções francesas sob os tltulos de A du pnncipe de plaiiir e Le moi ei le soi, iii
Essai., de psychanalyse (Paris, Payot, 1927). O termo "soi", inadequada traduçio do "es"
freudiano, o uso substituiu por
- deselegante mas mais conforme ao original (Essais depoychanalyse, P.B.P.. n' 44). A
admissão destas pulsões de morte arraigadas na existência humana suscitou grande
número de discussões e até de objeções entre os mais fervoro sos adeptos do freudismo.
Inserindo-se na inspiração pessimista de Freud no momento do pós-guerra, deveria
conferir a suas considerações psicossocioló gicas antes uma sombria coloração. Em obras
como L 'avenir d'une iliusion (1927) e Malaise dans la civilisation (1929), ela se enxerta
em seus postulados anteriores de tal modo que a análise, por mais penetrante que seja,
descura outros fatores, especialmente econômicos e políticos, e não contribui com uma
verdadeira dialética da vida social e cultural. Como quer que seja, este novo aspecto da
doutrina freudiana atesta com brilho a transposição da passagem de uma psicopatologia
para uma verdadeira metafísica - muito embora de base materialista e qualificada de
metapsicologia. E metafísica pessimista, uma vez que Freud, se pensa doravante que o
instinto de morte tende à volta à vida inorgânica, rejeita como "fábula" a hipótese
neoplatônica de uma substância viva qúe, dividida, tenderia, por um movimento de
retorno, a restaurar a unidade originária( 1).
Nesta perspectiva pessimista inscreve-se a nova teoria freudiana das instâncias
(Instanzen) estruturadoras da personalidade: id (Es), ego (Ich) e superego (Uberich).
Sua elaboração, no concernente ao "superego", muito deve às idéias de Gustave I Bon
sobre a psicologia da multidão, expostas em uma obra cujo sucesso foi considerável no
início do século( Freud toma-as como ponto de partida porque mostram a
permeabiidade do ego às influên cias de outrem (sentimento de poder e de
irresponsabilidade do indivíduo na multidão, incitação a ceder a pulsões que teria de
outro modo refreado, etc.). Elas o conduzem, no ensaio consagrado explicitamente à
psicologia cole tiva( a estudar muito especialmente o fenômeno da identificação
(Identifi zierung), segundo o qual um indivíduo só pode se tornar ele mesmo com
incorporar modelos à sua volta e com estar sujeito às impressões dos seres com os quais
se acha em relação. Cabe aqui, certamente, admitir a importância extrema deste aspecto
das coisas na formação do psiquismo humano, reserva feita do que se passa em seguida
ao nível das relações interpessoais.
O ego, segundo Freud (que lhe atribui sobretudo o papel de defender o indivíduo contra
os perigos externos), desenvolve-se lentamente, zona limitada da consciência, a partir do
id, em contato com o mundo e sob influência externa, do meio, da primeira educação. Já
anteriormente, Freud invocava a este respeito a coerção da "realidade",
mas a novidade consiste em não mais considerar o ego como inteiramente consciente.
Em relação a este, volta-se a encontrar a idéia de que o que não é atualmente consciente
pode, em princípio, em caso de necessidade, tornar a sê-lo, por um esforço de
rememoração, conforme ao que Freud admitia no respeitante ao pré-cons ciente (das
Vorbewusste); a novidade, porém, consiste em admitir ainda e sobretudo, na vida do ego,
elementos inconscientes recalcados, cujo acesso à consciência é muito mais penoso, pois
chocam-se com esta "resistência" que ele revelara desde o início, mas sem que se ficasse
sabendo quem a exercia, e como. Doravante, os processos inconsciente-
pré-consciente-consciente estão mais bem esclarecidos, o ego consciente a identificar-se
em suma com o "eu",
(1) Cf. Abr depsvehasaivoe (última obra dc FREUD, publicada postumamente), P.U.F.,
1955, pág. 8.
(2) Psvc/iologie drsfoaks. 28' cd., Paris. Alcan. 1921.
(3) Pst'chologie cr,I/ecti e asalvse da moi, inEssais depsvchanaicse, op. cii.. págs. 86.98.
286
287
enquanto o próprio ego é em parte inconsciente. Freud situa a formação do supetego por
introjeção e projeção das exigências e interditos dos que nos cercam, após a situação
edipiana, portanto ao redor de 5 ou 6 anos, a ele atri buindo este poder de censura que
descobrira até nos sonhos e esta "resistên cia" que logo à primeira o impressionara no
decurso de suas análises. O superego pode manifestar-se na vida adulta como instância
tirânica, criando um sentimento de culpabilidade que atinge o paroxismo em certas
psiconeu roses; pode, porém, exercer também o papel positivo de ajudar o ego na via
das "sublimações" (Sublimierungen), esta espécie de transmutação das pulsões
instintuais em atividades socialmente ou culturalmente válidas - constatada mas não
verdadeiramente explicada pelo freudismo. As novas perspectivas abertas por este
remanejamento das teses freudianas deveriam modificar o método terapêutico, e os
práticos tenderiam doravante a preocu par-se menos com a libido e seus recalques do que
com os meios utilizados pelo ego para se defender num duplo front: contra as pulsões
instintuais e/ou contra um superego muito exigente. Parece que a prática confirmou a
validez desta nova orientação, na medida em que permitiu constatar que, efetiva mente, o
sistema de "defesa do ego", formação de compromisso, representava papel essencial na
resistência, com a reativação desta quando o sistema parece estar ameaçado. Tornou-se
então manifesto que esta impressão de ameaça produz ansiedade, e até angústia, e que a
resistência visa a manter o status quo do equilíbrio adquirido, embora frágil.
Anteriormente, Freud considera va a angústia como uma espécie de aflição sobrevinda
quando o sujeito se vê submetido a um afluxo de excitações, internas ou externas, e se
sente incapaz de dominá-las. Freud falava então em angústia automática (automatische
Angst). Ora, numa obra importante de 1926(1), introduz a noção de sinal de angiístia
(Angstsignal), para relacioná-lo ao dispositivo de defesa do ego quando se acha
ameaçado em seus mecanismos de resistência e de censura por elementos recalcados,
provenientes do id e do superego; o "sinal" é, pois, o de um perigo interno. A nova teoria
implica que não se poderia fugir ou comba ter a angústia como se faz com o medo, por
ser este último suscitado por um perigo real e determinável. Pode, porém, produzir-se
uma projeção que trans forme a angústia em medo: fobia de animal, agorafobia,
claustrofobia, etc.
Bem consideradas as coisas, a segunda forma do freudismo difere consideravelmente da
primeira. Todavia, o essencial permanece: a importân cia das situações da infância em
suas relações com a maturação da sexuali dade e o complexo de Edipo; e a própria
angústia, ainda que interior, prolon garia na vida adulta as primeiras experiências da
criança, enquanto o ego era ainda fraco.
Seja como for, permanece aberto o problema da distinção que parece claramente impor-
se entre a consciência moral autêntica e a que dita o superego. A obra do Dr. Charles
Odier revela essa preocupação( mas muitos epígonos de Freud mal parecem preo cupar-
se com a questão.
É sabido que Freud se interessou ainda pela criação literária e artística, e que se lhe
devem, particularmente, estudos sobre Leonardo, Miguel Angelo,
1965).
(1) Hensmung, Svmpsom and Angss (srad. francesa l,,h,hslsss,s. scmpso ango zsse, P.
U.F., 1951. 2, ed, (2) Les deux soarces consciente es inconsciente de/a vie mora/e, Éd.
de Ia Baconnière, Boudrv, 1953.
Goethe..., além das interpretações de figuras criadas pela imaginação de um autor
(especialmente sobre a Gradiva do escritor W. Jensen). Por outro lado, sua
metapsicologia engloba a psicologia religiosa na psicologia coletiva. Muito cedo Freud
ficara impressionado com as analogias que descobria entre os ritos religiosos e o
cerimonial de sujeitos que sofriam de "neurose obsessiva". Remonta a 1913 o estudo do
totemismo e dos tabus a este ligados, ao qual irá se dedicar( 1), Esse estudo conduziu-o a
uma interpretação psicanalítica que postula a sucessão do clã totêmico à horda do pai,
morto pelos filhos revolta dos contra sua tirania, e do qual o totem seria substituto; isto
explicaria a ambivalência dos sentimentos, ao mesmo tempo de culpabilidade e de
triunfo, do culto totêmico. O tabu do incesto, a interdição de matar um membro do clã e
o dever da exogamia decorreriam deste assassínio originário, e o sacrifí cio do totem
(fora do qual é tabu) seria a reprodução simbólica deste crime inicial. Na linha aberta
por Totem e tabu virão acrescentar-se Die Zukunft eu'er Iliusion (L'avenir d'une
illusion, 1927), Das Unbehagen in der Kultur (Malaise dans la civilisation, 1929); esta
última obra ganhou renovado inte resse desde que Herbert Marcuse nela se inspirou
para sua teoria social.
O que caracteriza a doutrina de Freud é o haver sido elaborada, por assim dizer, às
apalpadelas, à medida de uma reflexão constante a partir de uma experiência médica
cuja importância não deve ser subestimada, con quanto se proponha a questão da
legitimidade de dar tamanha extensão a dados da alçada da psicopatologia. E
incontestável que Freud, ao mostrar que no pretenso homem racional da tradição
clássica, a criança ainda sobrevive, projetou nova luz no drama humano. Seu gênio
inovador incitou-o a fazer, assim, aproximações entre fenômenos à primeira vista tão
diferentes quanto a mentalidade da criancinha e a do primitivo, o sonho, os delírios dos
psico patas, os ritos religiosos e as criações do artista. O procedimento implica uma
inversão paradoxal das relações geralmente admitidas entre o normal e o anormal. E
inegável que as doenças oferecem um campo de observação extre mamente precioso à
investigação científica, com esclarecerem estruturas psicológicas profundas por um
aspecto insubstituível; no caso, porém, o obstáculo - e Freud quase não o evitou - está
em querer explicar por esse aspecto todas as atividades do espírito.
A perspectiva causa problema no concernente à atividade estética, e até filosófica, e em
geral no que o freudismo chama de sublimação. Com relação à arte, Freud reconhece
facilmente que o verdadeiro artista possui um "poder misterioso", sem que isso o impeça
às vezes de assimilar a obra do artista a uma sorte de Ersatz da líbido. Por
exemplo, quando declara que o artista conquistou finalmentepor sua fantasia o que antes
só existira na sua fantasia:
honra, poder e amor das mulheres (2), Se o desenrolar do tempo provou quan to a
contribuição psicanalítica fora preciosa para esclarecer certos conteúdos de uma obra de
arte, não se poderia dizer que ela explica a imaginação criadora.
Mas permanece o fato de que nenhuma reserva poderia diminuir a excepcional
importância da empresa freudiana, ela que devia modificar todos os dados da vida
cultural e obrigá-la a repor-se a si mesma em discussão.
(1) To'e'ot es Tahssn, trad. francesa. Paris, Payot. 1923.
)2 I sso si la jssschasssslssc. P.B. P.. a Is. pág. 355.
288
289
Para a convulsão que trouxe, outros colaboraram à sua maneira, quer tivessem
permanecido ortodoxos ou caído na heresia. Pois, Sigmund Freud, cujas modificações
por ele trazidas às suas teorias deixam subsistir o que considera as colunas de Hércules
tia psicanálise: a sexualidade infantil e o complexo de Edipo, tornara-se o chefe de um
grupo ao qual impunha, de certo modo, o modelo do homo sexualis. Pretendia
representar então o papel do mestre que deve conservar um controle da teoria e da
prática psicanalítica e, nestas condições (sem falar da experiência ci-ucial da Primeira
Guerra Mundial que desmembrou durante anos a Associação Internacional de Psica
nálise), era impossível que tudo corresse sem choques. Os mais graves vieram dar nas
dissidências de Adier e de Jung, de que trataremos adiante. Entre os demais membros,
por mais cuidosos de obediência que fossem, rivalidades e ciúmes eram inevitáveis, e
aqueles cuja originalidade prevalecia sobre o cuidado de fidelidade iriam também eles
afastar-se finalmente.
Entre os adeptos que tiveram para com Freud uma dedicação incondi cional, o mais
dotado foi talvez Karl Abraham, durante muito tempo assis tente na clínica psiquiátrica
de Zurique - dirigida por Eugen Bleuler e com Cari Gustav Jung então como médico-
chefe - e que exerceu mais tarde grande autoridade como presidente da Sociedade de
Psicanálise de Berlim. Prático emérito (vários adeptos, entre os quais Helen Deutsch,
Melanie Klein, Theodor Reik, foram analisados por ele), é autor de estudos clínicos e
teóricos, em particular de um aprofundamento das vistas de Freud sobre a formação do
caráter em ligação com os estádios atravessados pela libido, e de um ensaio, bem
anterior ao Moisés de Freud, sobre Amenhotep IV (Echna ton), jovem faraó herético
que passa por ser a primeira individualidade da história na ordem da espiritualidade
religiosa( 1). Movido por um espírito de ponderação, constantemente preocupado em
manter a coesão do grupo freudiano, e não desprovido de perspicácia, atestada pela
presciência de certos perigos de cisão que escapavam a seu mestre( Abraham morreu
prematuramente em 1925, com a idade de 48 anos.
Outro dos primeiros e dos mais fiéis discípulos foi Ernest Jones, funda dor do Jornal
Psicanalítico, da Inglaterra; também ele desenvolveu vistas freudianas sobre o
simbolismo, as fases da sexualidade, o erotismo anal nas suas incidências sobre o
caráter, o folclore, etc. Deve-se-lhe importante inter pretação psicanalítica de Hamlet(
E, porém, conhecido, sobretudo, pelo muito convincente livro à glória de Freud
(dedicado a Anna Freud, "digna filha de um gênio imortal"), verdadeira mina de
informações sobre o fundador da psicanálise e sobre as vicissitudes do grupo(
Aos adeptos conformistas, Freud preferia, contudo, o húngaro Sandor Ferenczi, que
considerava um pouco como seu filho adotivo; levou-o consigo aos Estados Unidos
quando do convite que recebera com Jung em 1909, intro
(1) Dispersos em periôdicos diversos, os escritos de Abraham foram reunidos e
publicados pelo Dr. use BARANDE (Ocaso-es compl?tes. t. 1, 1965; t. II. 1966, Paris,
Payot, Bibliothèque Scientifique).
(2) Correspondace, 1907-1926, N.R.F., Gailimard, 1969.
(3) Hamiet ei Oedipe, N.R.F. Gailimard, 1967.
(4) lhe Lsfe and Wock of Sigmand Fread, Nova York, 1953-1957. Trad. francesa, La
vie ei loca ver de Signsusd Freud, t. 1, 1958; t. I 1958; 1. III, 1961 (P.U.F.) - Esta obra
de JONES está na origem da excelente introdução á psicanálise constituída pela
sugestiva obra de Marthe ROBERT (La résolutioe p P.B.P., 58e59).
290
duziu-o em sua família e fé-lo seu companheiro nas suas viagens de férias; e no
momento em que se deterioraram as relações entre Freud e Jung, é Ferenczi o
incumbido de refutar a heresia nascente. Entretanto, pelos fins da vida, quando Freud
admitira "pulsões de morte" e certo pessimismo prevalecia no grupo quanto à eficácia
da cura psicanalítica, Ferenczi pôs-se também a duvidar do método e ousou modificá-lo.
Acreditou, logo de início, encontrar o remédio em uma análise conduzida em estado de
frustração e impôs toda a sorte de interditos a seus pacientes (abstinência sexual,
frugalidade, etc.), na idéia de que a libido, assim contida fora das sessões, se canalizaria
para a análise, que poderia então resultar mais rápida. Mas esta técnica "ativa" mostrou-
se decepcionante. Ferenczi teve de se convencer de que as proibições impostas
acarretavam certamente uma reação emocional, mas de irritabili dade, causada pelas
frustrações impingidas e o mais das vezes sem relação com afetos recalcados. Passou
então de um extremo a outro e recorreu a uma análise de "relaxação" em que não
representava mais o papel do parente interditador, mas, ao contrário, o do parente
compreensivo e complacente, na idéia, desta vez, de que o analista deveria suprir a falta
de amor de que os pacientes teriam sofrido na infância. Nesta nova perspectiva foi levado
ao ponto de manifestar-lhes provas tangíveis de afeição, o que muito desagra dava a
Freud. Apesar disso, embora perdessem em cordialidade confiante, suas relações
mantiveram-se até a morte( l)•
As hesitações técnicas de Ferenczi serviram para salientar a importân cia da relação
intersubjetiva na situação analítica, que há muito chamara a atenção de Jung. Este
aspecto das coisas adquirirá, por outro lado, singular relevo nos trabalhos de Moreno(
Além disso, Ferenczi revela em seus escritos espírito original e ousado( Desejou
particularmente um "pansim bolismo" suscetível de integrar a biologia na psicanálise,
num sentido que permitiria uma solução unitária para os problemas, sem cessar
renascentes, da causa e do sentido, do corpo e da alma( O ilustre pioneiro da medicina
psicossomática, Franz Alexander, diretor do Instituto de Psicanálise de Chicago e
professor de clínica psiquiátrica na Universidade de Illinois, deu grande importância às
vistas de Ferenczi neste domínio(
Ferenczi era muito ligado a outro membro cio grupo, Otto Rank, e muito o afligiu
quando este se separou de Freud. Rank é sobretudo conhecido por sua teoria do
"traumatismo do nascimento" (6), isto é, do primeiro choque. decisivo da vida que o
neurítico não poderia nunca vencer. Via no mito de Edipo a tentativa para resolver o
mistério do destino humano pelo retorno ao seio materno e, no próprio ato sexual, um
esforço inconsciente de reunião
(1) Nascido em 1873, em Miskolcz, na Hungria, FERENCZI morreu de anemia
perniciosa em Budapesle, em 1933. Fundara em 1913 a Associação Psicanalítica
Húngara e ocupara em seu país, no governo efêmero de Bela KUN. uma cátedra de
psicanálise - a primeira do mundo.
(2) Cf. cap. XXIII. § 3.
(3) Está em curso uma edição completa de suas obras aos cuidados do Dr. Michacl
BALINT, seu aluno e amigo íntimo. Já apareceram (em dois volumes): o tomo 1(1968).
o tomo 11)1970) e o tomo III (1974) por Payot. Paris (col. Science de l'Homme. dirigida
pelo Dr. Gérard MENDEL).
(4) Thalasna, pvvchanalvse dos origines dela sie sexaelle, P.B.P., 28. 1966.
(5) Cl., em trad. francesa, La médecine psychonomatiqae (Paris, Payot, 1952; igualmente
is P.B.P., n II); Principes dep o? 123. 196$). À distinção de FREUD entre as tendências
eróticas e agressivas. ALEXANDER substitui um comportamento global intencional
(purposeful integrated behariour), e relativiza a neurose, que lhe parece, em boa parte,
função do meio social.
(6) Tio' Traunta of Birih, Nova York, Harcourt, 1929 (trad. francesa, Le traumatinnie de
la nai.ssance ei na uignificuiwti pour la psvcltona!vse, Paris, Payot, 1924).
291
1
simbólica com o corpo materno, O ser humano, no qual reside uma tendência originária e
básica para recobrar a felicidade intra-uterina, não pode viver sem ilusão, e a religião
particularmente lhe permite encontrar, no refúgio junto a um ser supremo, um lenitivo
para esta nostalgia. Freud estimava muito Rank, do qual trata muitas vezes em sua
correspondência com Abraham. A "questão Rank", como então se dizia no cenáculo
psicanalítico, o preocu pará singularmente, e aceitava com dificuldade os alarmes de
Abraham:
"Ao termo de um exame muito atento, sou forçado a reconhecer, ... no Trauma tismo do
nascimento, a expressão de uma regressão científica, que confirma, até em detalhes, a
recusa jungiana da psicanálise e os sintomas que a acompanham. Não é coisa fácil de se
dizer. Eis porque tanto mais naturalmente acrescento que não sou cego às diferenças
pessoais; de um lado, Ferenczi e Rank, com todas as suas qualidades de simpatia; de
outro, a falsidade e a brutalidade de Jung - eis coisas que não perco de vista
absolutamente. Não é necessário, porém, que isto me impeça de constatar em suas
publicações uma repetição do caso de Jung, embora eu próprio tenha principiado por não
querer crê-lo(')."
Quanto a Wilhelm Reich, autor que ressurge para o primeiro plano na crise de nosso
tempo, muito jovem se apaixonou pelas teorias freudianas. Foi com 23 anos, quando
ainda estudante de medicina, que se tornou, em 1920, membro da Sociedade
Psicanalítica de Viena( Deveria, porém, reprovar a mudança ocorrida naquele momento
no pensamento de Freud, persuadido de que esta nova direção (nova concepção da
angústia, agressividade, compulsão de repetição, pulsões de morte) manifestava um
recuo conservador e pusilâ nime em relação às teorias revolucionárias que prevaleciam
no início (sexuali dade infantil, recalque, etiologia sexual das neuroses). Animado de
espírito muito progressista em matéria política e social, adere em 1923 ao partido
comunista austríaco e faz-se o infatigável promotor de um freudo-marxismo que lhe
acarretará, afinal, ser renegado pelos chefes de seu partido (1932), e em seguida excluído
do movimento psicanalítico (1934).
Reich via ao mesmo tempo na liberação sexual a única profilaxia das neuroses e o
melhor instrumento da revolução marxista. Nesta dupla perspec tiva desenvolveu
intensa atividade de pesquisador e de militante, elaborando em particular uma teoria
caracterológica original( na base dos condiciona mentos humanos:
"Toda ordem social cria os caracteres de que necessita para manter-se. Na sociedade
dividida em classes, a classe dirigente garante sua supremacia por meio da educação e
das instituições familiares, pela propagação, entre todos os membros da sociedade, de
suas ideologias, proclamadas ideologias dominantes. Mas não se trata somente de impor
ideologias, atitudes e conceitos aos membros da sociedade: na realidade, temos que
ocupar-nos, em cada nova geração, com um processo em profun didade, gerador de uma
estrutura psíquica correspondente em todas as camadas da sociedade à ordem social
estabelecida(
(1) Carta de ABRAHAM a FREUD em 26 de fevereiro de 1924 (ia Coreespondanre, op.
rir., pág. 356).
(2) Nascido em 1897 na Galicia austriaca, REICH tornou-se prnneiro assistente, depois
médico-chefe na Policlínica Psicanalítica de Viena (1922-1930); dirigiu um seminário
sobre a terapéutica psicanalítica (1924-1930).
(3) Cf. cap. XXII, § 6.
(4) Lanalyse caractrrielle, Paris, Payot, 1971, pág. 16.
Levado pelo advento do nazismo a refletir sobre os fatores psicológicos favoráveis ao
totalitarismo, é ainda na repressão à sexualidade que descobre o mecanismo essencial da
renúncia à iniciativa individual. Ele considera certo que a criança mo lestada na expressão
espontânea de sua sexualidade desen volverá uma personalidade mortificada, propensa à
submissão diante de qual quer autoridade; e, se o indivíduo assim
modificado tentar sacudir os seus grilhões, fracassará fatalmente em razão da situação
frustrante donde provêm, e cairá seja na obsessão do sexo, seja na delinqüência ou na
tirania.
Bem antes de Marcuse, portanto, Reich pensou que os indivíduos eram alienados por
uma escravidão interiorizada. E como o único remédio é, a seus olhos, a liberação da
sexualidade, o conceito de um perfeito desabrochar da "função do orgasmo", garantia
exclusiva da saúde psíquica, torna-se nele uma espécie de monomania( Todavia,
malgrado certos aspectos extrava gantes de sua obra, que lhe valeram um fim lamentável
nos Estados Unidos, onde se exilara( certamente influenciou até certo ponto os
promotores do "culturalismo" americano, alguns dos quais, aliás (Karen Horney, Erich
Fromm) já o haviam conhecido bem na Alemanha(
c) A "psicologia individual" de Alfred Adier
Israelita e austríaco como Freud, Alfred Adler, nascido em Viena, em 1870, também se
orientou para a neuropsiquiatria, após ter-se especializado temporariamente em
oftalmologia. Ao travar conhecimento, em 1901, com Freud, catorze anos mais velho do
que ele, apaixonaram-no as pesquisas do criador da psicanálise no campo da etiologia
da histeria e das neuroses, pesquisas que lhe forneceram precioso estímulo. Quase não
aprovava, contudo, a extrema importância então atribuída por Freud à sexualidade.
Em sua primeira obra, As inferioridades orgânicas e sua repercussão psíquica (1907), já
afirma uma concepção original. Mas só em 1911 é que ocorre a cisão definitiva. A partir
de então, ao lado da psicanálise freudiana, coexistirá a psicologia individual de Alfred
Adler, que seu criador propagará até a morte, em 1937, mediante intensa atividade,
dividido o tempo entre consultas, cursos e conferências na Europa e nos Estados Unidos
da América, artigos e importantes obras( Enquanto Freud parecia, a princípio, hipnoti
zado pela sua descoberta da papel da sexualidade na etiologia das neuroses,
(1) Em 1928. FREUD escrevia a Loa SALOMÊ: "Temos aqui um Dr. REICH. capaz
mas )ovem e impe tuoso cavalgador de cavalos de batalha, que agora venera no
orgasmo genital o contraveneno de toda neurose." (Los Andeeas-Salom correspondance
acec Sig,nund Freud, N. R.F., Gallimard, 1970, pág. 216.)
(2) Morreu na penitenciária de Lewisburg. na Pensitsânia. condenadi, cm consequência
de suas estranhas práticas inspiradas por uma descoberta que julgava destinada a salvar
a humanidade de todos os seus males: a do orgônio e dos bions, duas entidades
ignoradas dos biólogos e dos fisiologistas.
(3) Cf. cap. XXIII. - Sobre Wilheím REICH muttiplicam.se os estudos. Cf.
particularmente Michel CATI'IER: La cie ei l'oeurre du D' Wilhe/m Reich (Lausanne.
Edil. 'Age de l'Homme. 1969): Constantin SINEL NIKOFF: L'oeucre de Wilhel,n Reich
(Paris, Maspero, 1970) em que se encontra Importante bibliografia; iran Michel
PALMIER: Wilhelm Reich (Le Monde, em 18/10, Paris, 1969).
(4) Traduções francesas nas Éditions Payot, Paris: te tempórarnenl nerveux.
Psvchologie indicidueile ei upp/icaiioits ii /a psvckoi/iérapie (11 cd.. 1926; 3 cd.. 1955);
Connaissa,ice de /ho,n,,ie (Fruir Bibtiothêque Payot n?90, 1949); te scan dela cie(1950;
3e cd., 1963), P.B.P. n? 127; La compensation psvchiquede /étai dinférioeité der 01-
ganes, seguido de Le prob/ême de l'honiosexualité (1956); Pratique ri ihéorie de la
psychologie indtciduelle co (1961): La conduite dela ele (1926); L'enfant difjici/e
(PrOle Bibliothèque Payot o 15).
292
293
Adier insistiu, desde o primeiro instante, nos instintos dominadores do ego e nas
inúmeras rivalidades deles decorrentes. Contrariamente a Freud, estava persuadido de
que a personalidade humana implica uma finalidade e seu comportamento, na mais
ampla acepção do termo, teórica e prática, é sempre função de um fim para o qual se
orienta desde a infância. E chama plano de vida a essa orientação fundamental, bem
anterior ao famoso projeto fundamental de Sartre.
Do ponto de vista filosófico, Adler também se situa na corrente de pensamento irracional
que remonta a Schopenhauer. Seu parentesco mental com homens como Nietzsche,
Dilthey e Hans Vaihinger é certo; distingue-se deles, contudo, pelo caráter
essencialmente prático de suas próprias preocu pações. Para Adler, todos os "valores"
nascem das necessidades da vida social e, a seu ver, a grande tarefa é o desenvolvimento
de um sentimento comuni tário, capaz de harmonizar as exigências individuais com as da
sociedade. Nietzschiano, admite que a vida é uma luta. O indivíduo deve impor-se de
alguma forma, procurar dominar de certa forma. O malogro dessa tendência dominadora
congênita dá origem ao que aparece como o fio condutor da psicologia individual: o
sentimento de inferioridade, ao qual o nome de Adler permanecerá ligado, como o de
Jung ào inconsciente coletivo. Na criança, que deve superar-se incessantemente, num
ritmo acelerado, essa tendência dominadora é particularmente forte. Como, porém, a
coerção de sua roda a obriga a recalcar os desejos, torna-se inevitável um violento
conflito durante os. primeiros anos de vida. Adler tem, pois, como natural o sentimento
de inferioridade na criança, cuja fraqueza é real em relação aos adultos. Considera,
porém, que ele deve desaparecer com o desenvolvimento da personalidade e
desaparecerá se a necessidade de auto-afirmação,
nesse desenvolvimento, for satisfeita de maneira positiva, isto é, social ou culturalmente
válida. A não ser assim, o sentimento de inferioridade se cristaliza e dá em complexo.
Para Adier, toda inferioridade tem como corolário automático a busca de uma
compensação, já ao nível da vida fisiológica. Assim, a compensa çõo representa, para ele,
uma noção-chave, tal como a do recalque para Freud.
Quando um indivíduo nasce com órgãos deficientes, com inferioridade orgânica
constitucional, nele se desencadeia toda uma série de processos inconscientes, ao mesmo
tempo fisiológicos e psíquicos, tendentes a restabe lecer certo equilíbrio, a produzir um
desenvolvimento que compense de qualquer forma essa inferioridade. Nessa perspectiva,
a libido freudiana aparece subordinada ao instinto de dominação; e a personagem de Don
Juan, por exemplo, melhor se explicará pelo papel que nela desempenham a vaidade e a
vontade de poder do que pelo erotismo como tal. Aliás, Adler é de opinião de que
existem D. Juans femininos, cujo comportamento trai a
intenção de dominar e humilhar o homem, e, sob o nome de "protesto viril", descreveu a
atitude de certas mulheres - viragos ou amazonas - capaz de conduzir facil mente à
frigidez ou à homossexualidade. Julga que, encontrando também oportunidade de
exercer-se sob os disfarces da compaixão e do devotamento, a necessidade de dominar
leva certas mulheres a amar seres fracos ou enfer miços; e pensa, igualmente, que a
inferioridade sentida nessa época da vida desempenha grande papel nas neuroses tão
freqüentes na idade crítica. Dado o papel quase exclusivo atribuído por Adier à intenção
compensatória, não é
de admirar que sua interpretação dos sonhos divirja em todos os pontos da freudiana.
Persuadido de que todas as lembranças oníricas são evocadas em relação a uma
projeção para um futuro próximo ou longínquo, absolutamente não lhe importa buscar
nos sonhos os traços de um traumatismo inicial. Segundo afirma, o sentido do sonho é
preparar, por tentativas, o caminho para a superioridade desejada por quem dorme; criar
nele certo estado afetivo, uma forma de preparação inconsciente própria a aplainar certas
dificuldades encontradas por sua necessidade particular de afirmação.
A fixação de um sentimento de inferioridade pode ter conseqüências muito diversas.
Além do caso de inferioridade real, orgânica ou funcional, freqüentemente hereditária,
ou ainda simplesmente convencional (p. ex., ao ver das outras crianças, a anomalia da
criança ruiva ou portadora de óculos), pode ter por origem uma educação defeituosa
(pais tirânicos ou excessiva mente vaidosos, que comparam incessantemente os filhos
com outros, mais bem dotados); ou uma situação social frustrada (principalmente no caso
de filhos de proletários, cujo desenvolvimento se choca com obstáculos materiais e
psíquicos), e cujo papel mais se evidencia quando se trata de órf ãos abando nados ou
educados pela assistência pública. Circunstâncias particulares podem também
desempenhar função determinante: a introdução, no círculo familial, de um recém-
chegado, quase sempre irmãozinho ou irmãzinha, que capta o interesse do qual a criança
se beneficiaria sozinha até então. Inversa mente, um irmão caçula poderá sentir-se
esmagado pelos irmãos mais velhos. Poderíamos alongar-nos aqui consideravelmente.
Basta compreender, no caso, que essas diferentes causas representam menos para Adler
do que suas conseqüências, as quais acarretam a formação de certo plano de vida. Tais
conseqüências podem ser numerosas e variadas, embora suscetíveis de reduzir-se a um
denominador comum, e delas Adler observou justamente o caráter de ambigüidade
paradoxal. Pois, podem manifestar-se alternada mente, por vezes no mesmo indivíduo,
por timidez paralisante e resignação excessiva, ou por fanfarronada e blefe.
Se todo ser humano, na opinião de Adier, pensa e age em função de finalidade própria, o
neurótico é aquele que mobiliza exageradamente suas forças psíquicas a fim de reagir a
um sentimento de inferioridade, e isso quase sempre no sentido de um objetivo fictício
de poder e superioridade. Se seu irracionalismo o leva a admitir que toda vontade
constitui um esforço de. compensação a serviço dos instintos de dominação do ego,
considera que a necessidade de compensar um sentimento de inferioridade está, nos
nervosos, na própria raiz do querer e do pensar. Adler viu bem que uma extrema susce
tibilidade é sempre sinal revelador de um sentimento de inferioridade, nisso que surge
sempre que a pessoa tem o vago sentimento de que lhe tocaram no ponto fraco.
Na melhor das hipóteses, a compensação se revela positiva, quiçá triun fante. E o caso do
indivíduo que, tendo enfrentado resolutamente seu senti mento de inferioridade, superou-
o ao ponto de que o resultado é finalmente superior ao que teria obtido se, mais dotado
desde o início, se deixasse ficar todo repousado em coxim de preguiça. Essa é,
indubitavelmente, uma pro funda verdade da psicologia adleriana, demasiado
desconhecida por aqueles que esperam demais dos famosos testes em matéria de
orientação profissional. Pois, uma tensão dessa ordem escapa forçosamente à observação
objetiva, por
294
295
mais sutilmente aperfeiçoados que fossem os instrumentos aos quais recor
resse.
Em oposição a esse tipo de supercompensação, considerado plenamente válido, Adier
apresenta outros, mais freqüentes, porém infelizes, negativos. Compensações
dissimuladoras: é o caso do indivíduo que procura sempre um álibi para suas
escapadelas diante de decisões que possam ferir-lhe o amor- próprio; que pretexta
indolência natural, lassidão ou se entrincheira por trás de um "que adianta?" de espírito
forte; ou daquele que se compraz num herois mo verbal, enganando aos outro s e a si
mesmo e acaba na mitomania ou recorre à maledicência para diminuir os méritos
alheios, para negá-los em sua superioridade. Seria um nunca acabar enunciar todas as
diversas formas de compensação dissimuladora, que visam a iludir os outros e
principalmente a si mesmo, por uma determinada atitude ou por alguma proeza
compensatória (excesso de velocidade, bravatas, apostas estúpidas, bebedeiras de
estudantes, etc.).
Já tivemos ocasiãc de lembrar que a necessidade de compensar, segun do Adler, fornece,
em última análise, a chave dos sonhos. Adier lhes atribui a função de satisfazer
ficticiamente o instinto de poder, conforme atesta a megalomania, esse sonhar acordado; e
observa que o próprio delírio sonam búlico trai essa necessidade de dominação, revelada
pelo fato de o sonâmbulo geralmente desejar subir aos telhados. As fugas das crianças,
devidas, segundo Freud. ao ciúme em relação ao pai e à hostilidade experimentada contra
ele, na perspectiva adleriana manifestam a necessidade de salvar um ego ameaçado de
asfixia. Com maior freqüência, a fuga para a volúpia, com o sentimento de poder e de
escape de si próprio que concede, constitui um fantasma de compensação. Outras formas
compensatórias (exploratórias) também comportam modalidades diversas, das quais fora
impossível fazer enumeração exaustiva: é o caso
da criança que continua a urinar no leito, como se preferisse ser punida a viver naquilo
que sente como indiferença; é o neurótico que se instala na doença como se encontrasse,
na tirania que exerce sobre sua roda, uma satisfação que superasse a miséria de seu
estado... A luz da medicina chamada psicossomática, atualmente em pleno surto, várias
idéias adierianas apresentam grande interesse, embora neste domínio pareçam
excessivamente radicais quando admitem que todos os males são a expressão simbólica
de certa intenção. Como quer que seja. Adier tem o mérito de haver elaborado, bem antes
de Freud, uma teoria da personalidade total; de haver posto em relevo as forças do ego e
sua necessidade de expan são, ao mostrar a evidência de uma finalidade neurótica.
Criticaram-lhe os freudianos o não-reconhecimento do papel do inconsciente, e uma
distinção muito insuficiente entre seus processos e os da consciência. Efetivamente, essa
distinção aparece completamente secundária em Adler, para quem é sufi ciente a
verificação de que o sentimento de inferioridade, quando se instala, suscita um mal-estar
interior que impele o indivíduo a empenhar-se em certo tipo de compensação. Seja
como for quanto a esse problema, outro mérito da psicologia individual consiste em
explicar fatores culturais, admitido o papel de inferioridades convencionais. Mal é de
duvidar que numa sociedade como a nossa, onde a concorrência se exerce com extrema
aspereza, a mulher se ache colocada numa situação ambígua, própria a favorecer-lhe
essa recusa da feminilidade e de suas servidões descrita por Adler sob o nome de
protesto viril.
Comparadas às idéias freudianas. as de Adler impressionam pela simplicidade, pelo
esquematismo, o que pode aparecer como vantagem ou como defeito. E defeito para os
freudianos, que vêem simplismo nessa sim plicidade.
Cumpre assinalar, em todo caso, um aspecto positivo da psicologia adieriana: a
demonstração de que um indivíduo pode, quase sempre, explorar ao máximo seus dons
naturais, e o essencial é a coragem para enfrentar sua inferioridade, real ou
convencional. A própria vida de Adier ilustra essa teoria. Criança débil, muito cedo
precisou aplicar sua energia num sentido que devia permitir-lhe superar essa fraqueza
constitucional. Na escola, teve de vencer grandes dificuldades. Essas condições
particulares levarão Jung a explicar por diferenças caracterológicas as divergências de
opinião entre Adier e Freud.
d) A "psicologia analítica" de C. G. Jung
Filho de pastor, originário de Basiléia, na Suíça, Cari Gustav Jung nasceu no cantão de
Turgóvia, em 1875(*). Após estudar medicina em Basi léia, especializou-se em
psiquiatria, e logo adquiriu renome com suas pesqui sas experimentais sobre as
associações das idéias. Em vez de esperar do sujeito uma expressão inteiramente
espontânea, à maneira freudiana, Jung aperfei çoou um método de experimentação
inaugurado por Wundt, e trabalhou com o auxílio de uma centena de palavras (cabeça,
sonho, mulher, água, cantar, etc.). Pronunciada qualquer dessas palavras "indutoras",
deveria o sujeito associar-lhe outra com a maior rapidez possível (Jung media o tempo
de reação) e o conjunto das respostas permitia ao psicólogo diagnosticar deter minados
"complexos afetivos".
Já tivemos ocasião de lembrar que Jung colaborou estreitamente com Freud, durante
alguns anos, a partir de 1907, quando trabalhava ao lado de Bleuler na clínica de
Burghülzli, em Zurique (essa adesão da psiquiatria oficial de Zurique à psicanálise
rompeu o silêncio que a envolvia). Divergên cias deveriam provocar uma ruptura,
atenuada com Bleuler (1), logo decisiva com Jung. Este, em sua obra Metamoifoses e
simbolos da libido( critica as teorias freudianas, que julga excessivamente limitadas.
Suas próprias pesqui-' sas no domínio do inconsciente, que o fizeram persuadir-se de que
nem todos os sonhos podem ser explicados como resultantes de desejos recalcados,
levam-no a empreender viagens longínquas durante os anos de 1921 a 1925, a fim de
estudar iii loco a psicologia dos povos primitivos (Africa do Norte, Arizona, Novo
México, Quênia). As analogias por ele descobertas entre os conteúdos do inconsciente de
um europeu moderno e certas manifestações da psique primitiva o impressionam e o
levam a prosseguir suas investigações nos domínios da etnologia, da alquimia, da
psicologia e da simbólica religiosas.
(*) JUNG faleceu em 1961, depois de publicada a primeira edição desta obra, datante de
1960. (J. B. 1). P.)
(1) A obra de Eugen BLEULER tem grande importãncia para a hist6ria da
psicopatologia, pois veio enri quecê-la com a descrição da esquizofrenia, psicose que
tem como conseqüência, por ama espécie de deslocação das eslruluras mentais, uma
concentração do doente em si mesmo, numa ruptura de conlato com o meio. No seu
estudo A demência precoce ou grupo dos esquizofrênicos (1911) é que aparece pela
primeira vez a noção de amhiva!ência, à qual estava reservado um énito singular no
mundo conlemporáneo.
(2) Waodlungeo uodS Viena. Deulicke. 1912.
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297
Jung denominou psicologia analítica sua própria concepção( 1) Se esse adjetivo
testemunha sua dívida de reconhecimento em relação à psicanálise, o termo "sintética"
assinalaria melhor a orientação fundamental e as preocu pações que a caracterizam, pois
seu interesse está constantemente voltado para a complexidade da alma humana, para o
psiquismo como totalidade. Em sua grande obra publicada em 1921, Os tipos
psicológicos (2), assenta os fundamentos de uma caracterologia que lhe permite
"desabsolutizar" as teorias contrastantes de Freud e Adier. Freud, extrovertido segundo
Jung, deveria elaborar uma teoria da libido objetal, atribuir importância essencial à
transferência afetiva para o psicanalista; Adler, introvertido, que, muito cedo, precísou
mobilizar suas energias para vencer uma debilidade constitu cíonal e grandes
dificuldades escolares, deveria pôr em relevo exclusivamente o indivíduo preocupado
consigo mesmo e com sua própria superação. Na opinião de Jung, essas diferenças
caracteriais reconduzem à consideração do psiquismo normal, que ambas as teorias,
freudiana e adleriana, desconfiadas e redutivas, só explicam parcialmente.
Sem negar de modo algum o valor de uma terapêutica que permita liberar a energia
psíquica da forma inferior e inutilizável que reveste na neurose, Jung considera
essencial o problema da utilização, pois sua própria experiência médica o conduziu a
pensar que essa energia pode mostrar-se rebelde às injunções do consciente, e que seu
caráter é caprichoso, tanto no plano individual como no plano coletivo.
A psicologia jungiana, apresentada em mais de duzentas obras e artigos( é densa e é
muito difícil caracterizar-lhe resumidamente as noções fundamentais: sombra, persona,
anima, animus e o Si. A sombra é sobretudo o conteúdo do inconsciente pessoal, que,
nesta teoria, se apresenta como o reverso de nossas virtudes; em suma, é aquilo que
recusamos admitir a respeito de nós mesmos, embora sejamos um dia forçados a fazê-
lo, pois a realização de si, tal como a entende Jung, implica a reconciliação com esse
aspecto recalcado da pessoa. Eis porque a integração da sombra constitui aspecto
essencial da terapêutica jungiana, pois, de conformidade com os ana listas da escola, é
ela que, no decorrer do tratamento, provoca a transfor mação de certos sonho s; no
momento em que os arquétipos, modelos mile nares do desenvolvimento da psique,
substituem os desejos egoístas do eu, onde novas imagens aparecem. Faculta-se, então,
o acesso às profundezas do psiquismo, de onde surge algo de essencial. A teoria
jungiana distingue assim dois tipos de sonhos: aqueles que exprimem os conflitos do
próprio sujeito e aqueles - os "grandes" - que emanam dos arquétipos e demonstram
apro fundamento da vida espiritual. Quanto à persona, é a máscara do indivíduo
socializado, a personagem que representamos, o aspecto deformado e parcial da anima.
Admite Jung que o conjunto dos motivos que constituem a alma, quase sempre
inconfessados, são principalmente de ordem sexual. Mas pensa também que o ser
masculino é psiquicamente completado por um ideal
(1)'... no que me diz respeito, nada mais pude obter de ADLER e JUNG além de
renunciarem a chamar suas doutnnas de "Psicanálise'. (FREUD, Ma rie... isp. ei!. pág.
83.)
(2) P Tipex. Zurique. Rascher, 1921.
(3) Dessas obras existem excelentes traduções francesas sob a direção do Dr. Roland
COHEN, particular.
- mente aquelas publicadas em Genebra pela Librairie Georg ei C (Anpects du dra,ne
contem povain, 1948; Types p3 1950; Pscc/sologie de 1 tncoflsciefl!. 1951; La guér,si,n
pscrlzo/ogique, 1953; Métamorphoscs de
1 'dnii' ei seu v,,ihoIex. 1953; L 'énerg psvchiqsie. 19561.
inconsciente de feminilidade, que lhe determina o comportamento; inversa mente, a
mulher traz em si um ideal secreto de virilidade, a imagem ideali zada do homem
desejado, a tendência a identificar-se com ele, antes mesmo de havê-lo encontrado.
Jung substitui, portanto, as pulsões sexuais do id freudiano por uma polarização
estabelecida, em todo ser humano, entre seu próprio sexo e a idealização imaginada e
personificada do outro. Se o psicólogo suíço se preocupa com as reações de ordem
biológica, primitivas, subjacentes ao funcionamento do psiquismo humano, parece que a
história da vida começa, para ele, a partir do inconsciente coletivo, cujos arquétipos são
herdados com a estrutura cerebral, e que dela representam, em suma, o aspecto psíquico;
são "formas assumidas pelos instintos", de tal maneira que o homem, à falta de idéias
inatas, herda tendências a pensar segundo certas linhas de força inconscientes. Por isso,
para Jung a finalidade é liberar a alma que, a seus olhos, permanece subconscientemente
deformada, enquanto a imagem ideal que a anima (anima ou animus) é constituída apenas
de lembranças devidas às interdições parentais (superego freudiano). Trata-se de purificar
o incons ciente das lembranças obsessivas que impedem a disponibilidade da energia
psíquica e mantêm o indivíduo em perpétua contradição entre seus desejos conscientes e
sugestões inconscientes.
De maneira geral, o comportamento neurótico é, para Jung, sinal de desunião essencial
entre as exigências antagônicas da natureza e da cultura, O neurótico tende a fazer sua
uma moral que lhe pesa e da qual desejaria, ao mesmo tempo, libertar-se, e vive, assim,
dilacerado por um incessante conflito.
As expressões da linguagem corrente, "procurar-se", "encontrar-se a si mesmo"
esclarecem um tanto o fim colimado por Jung, para quem a inte gração da
personalidade, garantia da saúde psíquica, implica a instauração de justas relações com
essa fonte energética interior que é o inconsciente cole tivo. Integração que não deixa de
lembrar a clássica "harmonização de tendências", pois consiste realmente em integrar os
desejos num conjunto dotado de significação. E assim que Jung acabou por introduzir, no
lugar do superego freudiano, aquilo que considera como a verdadeira instância
incons ciente, o Si, que se lhe afigura como "o centro desconhecido e tão procurado da
personalidade", o "ponto indefinível onde se reconciliam as antinomias". E, como o Si é
um estado individual, representativo do grau de sublimação de que um indivíduo é
capaz, é ao inconsciente coletivo que cabe o papel de alicerce das imagens míticas e
arquetípicas. Cumpre admitir que esses mode los, esses protótipos da experiência
humana, ocultos nas camadas profundas de nosso psiquismo, influenciam nossos
pensamentos secretos e nossa vida emocional, no mais alto grau.
Para os freudianos, esses arquétipos só podem constituir um entrave, pois não seria
possível liberar ou dissolver complexos de imagens admitidos como realidades supra-
individuais. Por isso, reprovam, em Jung e em seus discípulos, o haverem substituído a
verdadeira análise pela contemplação dessas pretensas estruturas arquetípicas. Julgam
eles que as pulsões do id podem ser modificadas mediante uma análise profunda, e
criticam Jung por limitar-se a tornar-lhes a presença menos angustiosa, despojando-a de
todo caráter individual, por exemplo, reduzindo ao mínimo o complexo edipiano
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em benefício de uma entidade vazia: a imagem coletiva da mãe, segurança e
refúgio por excelência, simbolizada por imagens como o nicho, a concha, a
mãe-natureza, a água profunda...(
Aos olhos dos freudianos, esse processo pode realmente ter como conse qüência
exorcizar, na superfície, as ameaças por eles atribuidas ao id, não, porém, resolver o
conflito profundo que a elas está ligado; seria, quando muito, útil para reforçar
artificialmente certos aspectos do ego, pela amplifi cação dos sonhos no decorrer do
tratamento e pelo trabalho exigido do paciente nos intervalos das sessões. Pode-se
observar, entretanto, a propósito da interação entre o analista e o analisado, muito cedo
admitida por Jung, que os adeptos do freudjsmo quase não mais admitem hoje a
neutralidade rigorosa que fora regra da escola, e grande número deles se inclina por um
diálogo entre analista e analisado. A' oposição feita a Jung neste ponto perde, pois, da
acuidade. Não deixa de subsistir, porém, uma oposição doutrinária que os freudianos,
persuadidos de ser detentores do segredo da análise "profunda", atribuem ao caráter
artificial da terapêutica jungiana que, em sua opinião, pode bem ter como efeito permitir
a pessoas idosas agarrarem-se a alguma coisa, sem, entretanto, obter verdadeira
transformação do paciente. Sem pretender, de modo nenhum, arbitrar entre as duas
escolas, sobre o plano terapêutico, é licito observar que a análise à freudiana, longa e,
por isso mesmo, dispendiosa, e excludente das pessoas idosas, tem aplicação bem
restrita. Afirmar teoricamente que a situação infantil desempenha papel primordial na
origem de uma neurose é uma coisa. Coisa muito diversa é tratar de um ser às portas da
velhice, a sofrer de conflitos ou a soçobrar na depressão. Ora, os jungianos estão
persuadidos de que o fato de entrar em contato com imagens e simbolos energéticos do
"inconsciente coletivo" (que consideram a fonte viva da força psíquica) é salutar no
momento em que se deve, por força das coisas, aprender a renunciar. Ainda quando, por
isso, o método de Jung represente antes uma iniciação, uma escola de sabedoria (com
tantos outros exemplos na história) do que uma terapêutica correspon dente às exigências
de determinada ciência, aliás flutuante, não cabe, todavia, desvalorizá-lo( 2). Por sua vez,
Jung julga que os psicólogos não dispõem ainda de nenhum ponto de referência
verdadeiramente sólido, e o essencial é rejeitar todo dogmatismo metodológico. Mas,
embora preocupado em abranger a vida psíquica em sua complexidade vivida, e não
sujeita às condições do labora tório, nem por isso deixa de ater-se exclusivamente ao
domínio dos fatos e da prática, não ultrapassar o campo da psicologia como ciência e
abster-se teori camente de qualquer incursão na especulação filosófica. Eis porque suas
(1) "JUNG tentou uma transposição dos fatos á para o modo abstrato, impessoal, sem
levar em conta a história do indivíduo, forma por que esperava evitar o reconhecimento
da sexualidade infantil e do complexo de Edipo, ao mesmo tempo que a necessidade da
análise da infância." (FREUD, Ma cie.... isp. ci pág. 83.)
(2) Dentre aqueles que se preocupam com "superar" as antinomias inerentes à tríplice
corrente psicana ática, convém citar Paul DIEL, em cuja obra uma forma de psicologia
sintética reabilita de certa maneira a intros pecção e reencontra algumas verdades
fundamentais da tradição filosófica. Autor de Psvc/iolxéie de la moticaiioss, 1948; La
dicinité, 1950; Le symbolisme danx la myihologie grecque, 1952; La peat- ei langoixse,
1956, Paul DIEL procueâ Testabelecer, contra FREUD, a primazia do normal sobre o
anormal, restaurar socraticamente a idéia de um sentido da vida em relação ao qual o
insensato é o patológico. As noções de "falsa motivação", "tarefa eval tada",
"culpabilidade", como também a de superconsciência, desempenham papel essencial
nesta psicologia cujas operações estão ligadas à fé, com pretendida base biológica,
numa "justiça inerente à vida", Para uma introdução à psicologia da motivação de Paul
DIEL, cf, o número especial de Présence, Genebra-Paris, 1959, ano VIII, s? 9,
primavera de 1959,
pesquisas, que abrangem impressionante número de fatos e hipóteses, não são
verdadeiramente sistematizadas.
Esse empirismo deliberado parece paradoxal, máxime no respeitante à vida religiosa, que
ele considera uma realidade sui generis essencial ao equilí brio do psiquismo humano,
sem se pronunciar, porém, sobre seus funda mentos ontológicos, pois, nesse caso, teria de
transcender a experiência. Desse ponto de vista, a psicologia de Jung introduz elemento
novo na "nova" psicologia. Admite que o padre ou o pastor são mais habilitados que o
médico em matéria de espiritualidade, e isso vem formular um problema no plano
terapêutico, pois os freudianos, de maneira geral, acham que uma interven ção religiosa
pode contribuir para aumentar a repressão de uma emoção recal cada e perturbadora. No
plano teórico, como é natural, autores mais desejosos de certeza metafísica procuraram,
apoiados em textos, puxar o jungismo para o lado de suas próprias crenças. Tentativas
infrutíferas, e não sem razão. Valeram a Jung as mais
contraditórias etiquetas: teísta, ateu, gnóstico, agnós tico, místico, materialista, etc. (I)...
Tais confusões e mal-entendidos, inevitá veis até mais ampla informação, provavam as
dificuldades levantadas pelo fenomenismo de Jung.
Mas desde a publicação póstuma de suas confidências autobiográ ficas( não é mais
possível duvidar de que ele sempre tendeu para o ocul tismo e teve preocupações de
ordem mística. Sem poder antecipar nosso juízo sobre a sorte que o futuro reserva às
suas teorias, é licito, entretanto, pensar que o psicólogo suíço teve o mérito de
aprofundar e enriquecer a descoberta freudiana da função simbolizante do inconsciente.
Pois, nesse terreno, abriu ousadamente perspectivas insuspeitadas e suscetíveis de
ampliação indefi nida, que obrigavam a reexaminar vários aspectos do psiquismo
humano demasiado negligenciados até então, particularmente pelo positivismo.
Na opinião de Charles Baudouin, comentador particularmente autori zado, "se Jung nem
sempre é claro, ao gosto dos leitores, é precisamente porque não se submete ao pendor
prematuro da abstração, que classifica, simplificando, esquematizando. Com medo de
empobrecer a idéia, arrasta com ela todo um amálgama de realidade humana, natural,
ilógica, "pré-ló gica", ao qual essa idéia adere intimamente. Isso é pesado, talvez, mas
rico e verdadeiro [ Ele reintegrou, na psicanálise materialista de ontem, a "alma", até há
bem pouco recalcada. Mas, se pôde fazê-lo eficazmente, sadiamente, é porque ninguém
melhor do que ele soube conservar aquilo que Nietzsche chamava de "senso da terra"(
Charles Baudouin, morto em 1963, muito contribuiu para o conheci mento de Freud, de
Adler e de Jung nos países de lingua francesa. Sua importante obra se caracteriza por
grande abertura de espírito e pelo cuidado de reconciliar, mercê de penetrante e sutil
interpretação, os diversos aspectos da psicologia "das profundezas" com os
conhecimentos adquiridos da sabedo
(1) Cl. Raymond HOSTIE, Dia ,nyi/ie à la ,'eligion, La psychologie analyiique de C. O.
Jung. Desclée de Brousser, 19S5. (As páginas 205-223 são consagradas a uma
bibliografiajungiana muito cuidadosa.)
(2) Erinnt'vungerz. Trau,ne, Gedankí'n, Zurique e Stuttgart, Ráscher, 1962 (trad.
francesa ''Ma iie. Soucen,rs, rfies ei pcotées. Gallintard, 1966).
(3) "Jung, hon,me concrei", na obra coletiva m homenagem a JUNG, C. O. Jang (Le
disque vert, Bruxelas, 1955), págs. 350-351. Cf., do mesmo autor, L'oeucre defung et la
puycholo,gie complexe. Paris, Payot, 1963.
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ria tradicional. Tem uma concepção original do comportamento humano, considerado por
ele em sua totalidade viva, com todas as correlações humanas e significantes que entretém
com o meio. Autor principalmente de Suggestion et autosuggestion, Mobilisation de
l'énergie, La force en nous, Découverte de la personne, L'âme et laction, De l'instinct à
l'esprit, Psychanalyse de l'art, Psychanalyse de Victor Hugo, etc., criou
em Genebra um Instituto Inter nacional de Psicagogia e a revista Action et Pensée. Uma
tentativa de repensar as teorias psicanalíticas na base de uma noção muito ampla do
comportamento encontra-se novamente com o Dr. A. Hesnard, cuidoso de escapar aos
dualismos tradicionais: alma e corpo, físico e psíquico, orgânico e funcional( 1). Um dos
pioneiros na introdução em França do pensamento de Freud (2), ao qual consagrou mais
tarde uma obra muito documentada sobre a evolução das pesquisas psicanalíticas e sua
extensão, em contato com outras contribuições da cultura contemporânea nos principais
países (3), Hesnard orientou-se, particularmente influenciado por Merleau Ponty, para
uma interpretação fenomenológica da psicanálise
(Psychanalyse du lien interhumain, P.U.F., 1957). Autor igualmente de livros de alcance
ao mesmo tempo médico e psicológico, e até filosófico em sua inspiração marxi zante
(L'univers morbide de la faute, P.U.F., 1949, Morale sans péché, P.U.F., 1954), faleceu
em 1969, deixando um manuscrito sobre a passagem de Freud a Lacan(
2. A reflexologia e o behaviorismo
A descoberta dos reflexos condicionados surgiu no campo da psicologia animal quando
esta se valia da experimentação em situações de laboratório. Levada em conta a extensão
que lhe dará nos Estados Unidos o behaviorismo de Watson, esta descoberta representa
uma contribuição fundamental da nova psicologia, no aspecto mais radicalmente
objetivista. A nova conquista é inseparável dos nomes de Pavlov (1849-
1936), prêmio Nobel por sua obra sobre a digestão e de Bechterew (1857-1927), ambos
fisiologistas e neurolo gistas. E sabido que nasceu da experimentação com cães e que
consiste na substituição de um excitante ou "estímulo" primitivo, o qual provoca um
reflexo absoluto ou incondicionado, por um excitante novo ou "estímulo condicionado"
(ou sinal, como dizia também Pavlov) que, por sua vez, irá provocar, por aprendizagem,
uma resposta reflexa adquirida. E assim que o cão que saliva ao receber um pedaço de
carne (reflexo incondicionado) salivará ao ouvir um som ou ao ver uma luz, depois que
esses estímulos tive rem acompanhado cei-to número de vezes a apresentação da carne.
Isso quer dizer que nova associação reflexa nasceu entre o centro auditivo ou visual e o
centro salivar: o "reflexo condicionado" ou associado. Descobriu Pavlov que
(1) La théorie psychanalytique et les conceptions psychologiques contemporaines" in
LÉn,luiion Psr
chiairique. 1948, fase. 1. -
(2) La jisychoai desnérroses si ais psvshoses (em colab. com o Prol. RËGIS), 1' cd..
Paris. Alcan. 1914.
(3) L 'oeuvre de Freud ei soa importance pour ie monde moderne, Paris, Payot. 1960.
No mesmo editor e do mesmo autor: Les phobies ei la névrose phobique (1961);
Psvchologie da crime (1962); Manuel de sexslogie normale ei paihologique (4t cd.,
1962).
(4) DeFreudâ Lacan, Paris. Les Éditions E.S.F., 1970.
qualquer fenômeno natural pode transformar-se em sinal: um som, uma cor, um odor,
uma estimulação da pele, etc. A experimentação, muito desenvol vida nesse sentido,
permitiu estabelecer que esses reflexos condicionados põem em jogo processos não só de
excitação como de inibição. Pois um cão pode ser condicionado de tal maneira que o
reflexo espontâneo de dor ceda a um reflexo de satisfação, quando, por exemplo, uma
descarga elétrica dolo rosa acompanha a apresentação da carne durante um periodo de
tempo bastante a que se efetue a substituição. Constatou-se também que tais
condicionamentos podem, igualmente, atingir grande especificidade; que um cão é capaz
de aprender a não reagir senão a determinados sons, imagens, cores ou figuras, excluídos
outros estímulos mal e mal diferentes desses; e até a reagir a notas tão agudas que os
ouvidos humanos não as percebam. Se estiver habituado a salivar à vista de um círculo,
sem reagir à vista de uma elipse, dará sinais de agitação quando, ao aproximar- se a
elipse sempre mais do círculo, não for mais capaz de distinguir entre as duas figuras.
Pavlov já conseguia provocar verdadeiras neuroses caninas ao pôr em conflito processos
de inibição e de excitação. E, pois, natural que certos autores, considerando que, para
Freud, as neuroses têm origem na repressão ou inibição de um fator emocional,
procurassem, por esse aspecto, encontrar um terreno de conciliação entre a reflexologia
pavloviana e a psicanálise.
Por outro lado, as mudanças de via nervosa criadoras dos condiciona mentos se
mostram mecanismos frágeis, que desaparecem quando não entre tidos por uma
reintrodução passageira do estímulo natural (no caso, a carne). Na falta dele, o tempo de
reação aumenta, a secreção salivar diminui progres sivamente; ocorre aquilo que Pavlov
chamava de "inibição interna", uma tendência do reflexo condicionado a desaparecer.
Alguns comentadores, prin cipalmente o fisiologista francês Paul Chauchard, insistiram
nas condições especiais de isolamento que tais experimentos exigem. Já Pavlov tivera
ocasião de observar que, se o animal era subitamente colocado em estado de alerta pela
chegada inopinada de um estranho, uma "inibição externa" vinha com prometer o
trabalho. Por outro lado, nem todos os cães mostram a mesma docilidade. Há os
arrogantes, que são os mais refratários. Podem ocorrer, igualmente, surpresas, como, por
exemplo, o caso da náusea que a simples visão do experimentador provocava em
determinado cão( 1); ou o do "reflexo de defesa" que pode produzir-se quando um cão,
estimulado por uma corren te elétrica excessivamente violenta, se põe a latir ou procura
morder...
Verificando que a abração completa do córtex cerebral determinava o desaparecimento
dos reflexos condicionados, inferiu Pavlov que seu mecanismo dependia inteiramente da
função cortical. Observou-se, entre tanto, que tais reflexos podiam ser provocados em
animais inferiores, desti tuídos de córtex e até, a crer em certos autores, nos infusórios.
Com seres humanos, a experimentação em matéria de condicionamento é,
evidentemente, mais limitada. E possível, no entanto, de outra forma, conforme Watson e
seus discípulos provaram, com lactentes e criancinhas.
Sabe-se que a descoberta de Pavlov é utiizável - e utilizada - em casos determinados:
desintoxicação de alcoólatras, métodos de relaxamento,
(1) Paul CHAUCHARD, Lc système neriseux cisc, inconnues, P.U.F., 1951, pág. 84.
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parto sem dor. Neste último caso, baseia-se na noção de que a dor da partu riente tem
como causa principal reflexos condicionados (sociais) de medo. Trata-se, pois, de pôr em
jogo as inúmeras interações entre os neurônios corti cais e as vísceras, no sentido de um
domínio indireto sobre o simpático; de pôr, em suma, a mulher, pela prática de uma auto-
sugestão imaginativa, acompanhada de educação respiratória e abdominal, em condições
de dirigir o próprio parto.
De modo geral, a descoberta dos reflexos condicionados veio esclarecer os mecanismos
de há muito utilizados no adestramento de animais, de forma, porém, completamente,
empírica.
O gênio de Pavlov consistiu em demonstrar categoricamente como fun cionam esses
mecanismos de substituição, num nível que engloba a afetivi dade (é preciso que o
animal sinta fome), mecanismos que constituem, dentro de uma história individual,
tipos de relação suscetíveis de explicar até a parte do psiquismo humano relacionada
com os automatismos e a formação dos hábitos, cujo papel é maior do que geralmente
se pensa. Muita gente existe que alardein liberdade e passa a maior parte do tempo a
comportar-se como robô. A reflexologia permite ainda compreender melhor como
certos estados de alma, aparentemente misteriosos, podem instalar-se mercê das
lembranças associadas a certos estímulos, que desempenham o papel de desligador (a
madeleine de Proust) (*).
Quanto às funções superiores do psiquismo humano, Pavlov parece não ter tido idéias
definitivas. E certo, contudo, que lhes reconheceu a capacidade
- ainda quando as denomine "atividade nervosa superior" - de sintetizar os sinais que
influenciam o comportamento ao nível dos condicionamentos, num sistema de sinais
abstratos e inseparáveis da linguagem.
Em compensação, a descoberta dos reflexos condicionados é explorada por Watson num
sentido que dá a seu behaviorismo as características de uma escola de afirmações
dogmáticas. Nascido em Greenville (1878)(**), John Broadus Watson foi professor da
Universidade de Johns Hopkins (Baltimore) onde dirigiu o laboratório de psicologia.
Suas comunicações ao Congresso Internacional de Psicologia de 1921 valeram-lhe
reputação mundial. O watso nismo estava no apogeu nos Estados Unidos da América,
onde deveria suscitar muita discussão e controvérsia( 1).
O behaviorismo de Watson representa a mais audaciosa tentativa de reduzir a psicologja a
uma ciência natural, excluindo de seus domínios a cons ciência (atenção, memória,
vontade, inteligência) e, pois, todo recurso à introspecção, para só admitir o
comportamento objetivo. Não se trata aqui de simples orientação metodológica, mas de
intransigente monismo materialista.
(*) O Autor se refere às passagens clássicas nas quais PROUST descreve a evocação de
lembranças nele despertas pelo sabor da madeleine molhada no chá. v. o aproveitamento
desse rico material ilustrativo de um processo psiquico em A. CUVILLIER, Psychologie,
vol. 1 do Manuel de Philosophie (edição Philosophie), Colin, Paris, 1931, págs. 245 e
393, ouem P. FOULQUIE, Psvchologie, Les Editions de l'Ecole, Paris, s/d, págs. 321-
322. (3. B. O. P.)
(*e) WATSON faleceu em 1958. (J. B. D. P.)
(1) Cf., de WATSON, Behavior: an infroductioa io comparativepsychology (1914)
ePsychologyfrom lhe
sfandpoini of a behaviorisi (1919). Igualmente R. ZAZZO. Psychologues ei
psycho/ogie.r dA,nérique, P. U. E., 1941;
Pierre NAVILLE, La psycho/ogie, science du comportemeni. Le behaviorisme de
Waison, Gallimard, 1942; A.
TILQUIN, Le behariorisme, origine ei déve/oppemeni de Ia psychoiogie de réaciio n en
Amérique, Vrin, 1950
(Bibliogr., págs. 511.528).
É óbvio que essa exclusão do espírito acarreta como corolário, no terreno da
psicopatologia, a exclusão das doenças "mentais".
Na opinião de Watson, faltara audácia aos psicólogos que haviam desejado estabelecer
uma "nova" psicologia (errl particular Ribot, Fechner e Wundt), os quais ficaram a meio
caminho em seus esforços de libertação da tradição filosófica. Por outro lado, a
psicologia como ciência abstrata se lhe afigurava destituída de valor prático , sem
verdadeiro interesse para o educa dor, o jurista, o médico, o industrial ou o comerciante...
E fora de dúvida que a inspiração watsoniana mergulha raízes no utilitarismo de nossa
época, e muito especialmente na efficiency à moda americana. Em presença de deter
minado indivíduo, a questão essencial é saber de que ele é capaz e qual pode ser seu
rendimento, O imenso êxito do behaviorismo nos Estados Unidos da América prende-se
à sua intenção de limitar-se exclusivamente ao observável, ao controlável, ao mensurável.
Ao travar conhecimento com as pesquisas de Pavlov, em 1916, a orien tação de Watson
já era a de um psicólogo cuidoso de criar uma ciência obje tiva e comparada, inspirada
então pelas investigações em curso no campo da psicologia animal, entre as quais, de
modo particular, as de J. Loeb sobre os "tropismos" e pelas experiências de E. Thorndike.
E sabido que Thorndike estudava o comportamento dos animais por meio de suas
famosas problem boxes. Encerrava-se um animal em jejum numa espécie de gaiola, de
onde deveria escapar para alcançar o alimento colocado do lado de fora, acionando um
mecanismo mais ou menos complicado. Após uma série de tentativas desordenadas
e infrutíferas, o animal conseguia desencadear finalmente, por um movimento ajustado da
pata ou do focinho, o mecanismo de abertura. Para explicar esse comportamento,
Thorndike recorria a considerações neuro fisiológicas e à intervenção do acaso, negando
ao animal qualquer forma de inteligência. A teoria mais conhecida é a dos "ensaios e
erros", de Lloyd Morgan. Quando um gato ou um rato encontra a solução de um
problema que assim lhe é imposto, é fortuitamente. Depois, as reações felizes se
organizam no espaço e no tempo, segundo a lei de freqüência, isto é, a resposta certa se
instala, eliminadas as outras. Semelhante interpretação, contestada pelos gestaltistas, em
relação aos macacos antropóides, Watson não se arreceou de estendê-la ao próprio
homem, do qual pretende explicar todos os hábitos pelo êxito fortuito de certas respostas,
a partir de alguns reflexos absolutos ou, incondicionados. Esse modo de ver foi objeto de
severas críticas. O pai do behaviorismo foi censurado por falta de cultura filosófica, grave
desconheci mento dos problemas gnosiológicos. Em certo sentido, porém, ficou claro que
sua intrepidez apresenta mais vantagens que inconvenientes, na medida em que o
extremismo pode, às vezes, ser mais instrutivo que o sincretismo. Considerando que as
crianças nascidas e amamentadas em materni dade são os melhores sujeitos, na medida
em que seu condicionamento ante rior é de controle mais fácil, Watson, seus
colaboradores e seus continuadores se dedicaram a inúmeros
experimentos em "berçários experimentais", com o propósito, a princípio, de conhecer as
reações que podem ser admitidas como inatas (embora sob a reserva dos
condicionamentos pré-natais dificilmente controláveis...). Essas reações primárias
constituem um catálogo reduzidís simo na escola behaviorista: reflexos pupilares e
patelares, secreção salivar, reações corporais (com choro e grito) a picada, queimadura,
etc., à retirada
304
305
de pontos de apoio ou ruído violento. Observando que, na maioria dos casos, se
manifesta, então, na criança, uma reação emocional, os behavioristas foram obrigados a
admitir certas formas congênitas de comportamento, que reduzem a três: reação
espontânea "de medo", quando a criança é subita mente privada de um suporte ou
surpreendida por um ruído violento; reação "de cólera" (que apareceria desde o décimo
dia de vida), quando seus movi mentos são impedidos; e reação "de amor", quando lhe
fazemos cócegas ou a embalamos, etc.
Os behavioristas convenceram-se principalmente de que as crianças não tinham,
originariamente, nenhuma reação "de medo" em presença de qual quer animal (rato, rã,
coelho, cão...) ou de objeto coberto de pêlos ou de penas, ou ainda, diante de máscaras
careteiras('); nem em presença do fogo, que perturba apenas quando o calor é excessivo
(porque intervém, então, a reação de "pele atingida"). Puderam observar inversamente
que esses animais ou objetos podem tornar-se, muito rapidamente, sinais, condicionados
de medo, por associação com certos stimuli primários (ruídos violentos, perda de suporte,
etc.) e que se pode facilmente, depois, "descondicionar" essas rea ções adquiridas de
medo, substituindo-as por uma reação positiva; por exemplo, oferecendo uma guloseima à
criança, ao apresentar-lhe, de uma distância cada vez mais próxima, o animal ou objeto
causador do medo.
Tomando para ponto de partida, pois, algumas reações admitidas como primitivas, todo
o comportamento humano deve ser explicado pelos condicio namentos, ou, por outra, ele
é encarado exclusivamente sob o aspecto de estí mulos e respostas, que à psicologia cabe
determinar. "A essência de todo behaviorismo é ser a ciência do par estimulo- resposta
(2). Cabe apenas fazer distinção entre estímulos externos (luz, obscuridade, frio, calor,
ruído, etc.) e estímulos internos (as modificações orgânicas em certas condições, por falta
de alimento, de atividade sexual, etc.). As respostas podem ser: explícitas (das mais
simples, como aproximar-se ou afastar-se de uma luz, sobressaltar- se a um ruído,
procriar, às mais complicadas, construir casas, fazer planos, escrever
livros) ou implícitas (secreções salivares, contrações do estômago vazio, etc.), estas de
mais difícil observação.
O indivíduo está sempre "fazendo" alguma coisa: respira, dorme, anda, corre, pára,
zanga-se, chora, grita, escreve, lê, brinca.. - Se cada uma de suas respostas põe em jogo
certo grupo muscular, implica a atividade do organismo inteiro. Eis porque o
behaviorismo watsoniano se recusa a privile giar qualquer órgão ou aparelho, nervoso,
digestivo, circulatório, respiratório, muscular; afirma que o sistema nervoso funciona por
arcos inteiros, e seu papel é puramente coordenador,
Na opinião de alguns psicofisiologistas pavlovianos, Watson reduz inde vidamente ao
mínimo a função dos neurônios corticais; caberia antes indagar, numa perspectiva
antropologista, se não haverá ambigüidade, da parte de uma escola que pretende ser
rigorosamente mecanicista, nessa referência ao
(1) Com base em suas próprias experiências, os promotores da Gestaiuheorie (cf. o
parágrafo seguinte) estão ao contrário persuadidos de que alguns objetos, por exemplo
uma boneca fabricada de certo modo, podem Suscitar uma reação de medo tanto no
animal quanto na criança, independentemente de qualquer experiência
-anterior e de qualquer aprendizado.
(2) A. TILQIJIN, op. ci pág. 18.
"corpo total", ou seja, a uma instância que não pode ser considerada dest i tuída de
finalidade interna.
Assim como assim, o behaviorismo, definindo o comportamento como "aquilo que o
organismo faz ou diz", considera que a palavra é uma ação como as outras. Dizer é
"fazer simbolicamente" e, portanto, comportar-se. As condições da vida social devem
explicar a interiorização da linguagem, ou seja, do pensamento, encarado como
comportamento de substituição, que põe em jogo estímulos e respostas simbólicas.
"Pensar é falar; falar para si e consigo." Ainda aqui, é invocada como prova a observação
da criança. Quan do o bebê se encontra no estádio da "vocalização anárquica", os pais, a
prin cípio, se rejubilam com sua tagarelice incoerente, felizes porque não é mudo nem
idiota. Logo, porém, essa tagarelice se lhes torna fatigante e vem uma pressão para que a
criança faça menos barulho. Começa, então, a resmungar, o que muita vez continua ainda
a perturbar o ambiente. Finalmente, sob a coerção assim exercida, a socialização da
linguagem progride até qué desapa reça o próprio
movimento dos lábios, ainda subsistente quando a criança lia ou refletia; a verbalização
se tornou, assim, interior( 1)
Qualquer que possa ser o interesse das investigações levadas a efeito pelo behaviorismo,
o imperialismo explicativo de um Watson assenta num risco a correr: a eliminação da
subjetividade. Quando, para justificá-la, Watson declara que jamais descobriu o papel
da consciência numa ação humana, e que não a podemos "encontrar" nem "definir", não
vale a pena insistir... Apenas, é necessário observar que a consciência não pode ser defi
nida porque é ela que define... Se for eliminada, e com ela as sensações, as imagens, os
pensamentos, as intenções, as volições, para tudo reduzir às reações do organismo em
reposta a estímulos, os atos humanos mais refletidos ficarão privados de toda
significação, e estará suprimido, assim, o campo da psicologia propriamente dita.
Um psicólogo de Lausanne, Larguier des Bancels, já observava que, se
o rubor devido ao calor, por exemplo, interessa ao fisiologista, é o rubor ligado
à timidez ou à vergonha que interessa ao psicólogo. Os behavioristas de tipo
watsoniano erram, sem dúvida, ao confundir esses dois aspectos.
Sabe-se que o aspecto das significações inspira a fenomenologia de Husserl, de
múltiplas repercussões sobre as ciências psicológicas de nosso
tempo.
3. A "Gestalttheorie"
É certa uma influência da fenomenologia (2) sobre o desenvolvimento da Gestalttheorie
ou psicologia da "forma", particularmente por intermédio de Koffka, antigo aluno de
Husserl( Com a preocupação de satisfazer a
(1) A. TILQUIN, op. cii., págs. 169-170.
(2) Cl. cap. XXIV.
(3) Mas WERTHPIMER, de Praga (1880-1943), Kurs KOFFKA, de Berlim (1886-
1941) e Wolfgang KOHLER, da Eslônia (nascido em 1887), os três grandes fundadores
da Gestaitrheorie. de origem judaica, se viram obrigados a emigrar para os E.U.A. em
conseqüência do advento do nacional-socialismo. Algumas de suas obras. como D zur
Gestalriheo,ie. Erlangen, 1925 (WERTHEIMER); Gestalt Psyc/wlogy, Londres, 1930
(KOHLER); Principies of Ges tais Psychoiogy. Nova York, 1935 (KOFFKA), são
fundamentais para o conhecimento
306
307
exigência experimental característica da psicologia como ciência, mas com um senso
muito avisado dos problemas inerentes à teoria do conhecimento, a Gestalttheorie
representa uma reação original a toda psicologia associacio nista no sentido que lhe é
geralmente atribuído, o de estudar a vida psíquica sob o aspecto de uma combinação de
elementos pretensamente simples (sensações e imagens) que a constituiriam, O
gestaltismo deve seu princí pio essencial ao psicólogo de Viena Christian von Ehrenfels
(1859-1932), autor de uma memória Sobre as qualidades da forma, cuja repercussão, na
época em que o Dr. Breuer, nessa mesma cidade, levava a Freud certos dados que
desempenhariam relevante papel na gênese da psicanálise, foi inicialmente insignificante
(1),
Esse estudo inicial de Ehrenfels continha particularmente certas obser vações a respeito
da melodia, cuja unidade é a "forma particular", ou quali dade irredutível à enumeração
das partes que a compõem; cuja realidade, essa totalidade precisamente designada pelo
termo "melodia", é constituída por certa relação das notas entre si. E, observava
Ehrenfels, se as qualidades sensíveis podem ser relacionadas a excitantes determinados
(no caso, sons), é impossível a mesma correspondência quando se trata da percepção
das "formas". As verificações do psicólogo vienense punham, assim, em destaque um
princípio que orientará todas as investigações dos criadores do gestal tismo: uma
totalidade, longe de ser a soma das partes que contém, condicio na, ao contrário, essas
partes; nesse sentido, uma parte numa totalidade é diferente dessa parte, isolada ou
inserida em outra totalidade.
Este princípio leva a opor ao desmembramento analítico da vida psí quica a consideração
deformas, de estruturas, de conjuntos (Zusammenhün ge) admitidos como realidades
primitivas. Toda percepção é a de uma figura sobre um fundo, O problema consiste, pois,
essencialmente, em descrever estruturas perceptivas globais, com vistas a reduzir a leis
suas aparições e suas transformações; em mostrar, principalmente, como a organização
interna que as condiciona lhes modifica os elementos componentes; e como basta mudar
um só desses elementos para modificar uma estrutura global. O relato das investigações
dos gestaltistas sobre a percepção é quase impossível sem desenhos e figuras que não
podemos reproduzir aqui.
Tais opiniões poderiam conduzir à admissão de uma atividade estrutu radora da vida
psíquica, a realçar o papel do sujeito no conhecimento. Para doxalmente, tal não se dá; e
os gestaltistas, considerando que as formas surgem num campo de percepção que se
organiza por si mesmo, muita vez alargam a noção de estrutura global a ponto de tornar
impossível a determi nação da parte respetiva do sujeito e do objeto no ato cognitivo.
Não é de admirar, pois, que,entre os próprios representantes da Gestalttheorie
sobreviessem divergências, quanto à natureza e à origem dos conjuntos estruturados
(escolas de Graz, de Berlim, de Leipzig); principal-
do movimento gestaltista. Convém lembrar ainda os notáveis estudos de Paul
GUILLAUME, Psychologie de la forme, Flarnmarion, 1937, nova edição em 1948. e de
David KATZ, Introdiwtion à la psycho!ogie de la forme, Riviére et Cie, 1955. [ faleceu
em 1967. O livro de GUILLAUME foi traduzido para o português: Psicolo gia da forma,
trad. de Jnneu de Moura, vol. 81 destas "Atualidades Pedagógicas", São Pauto,
2t cd., 1966. Quanto ao de KATZ, cabe lembrar que há edição espanhola: Psicología de
la forma, trad. de José M. Sacristán, Espasa
- Calpe, Madri, 1945.- J. 8. D. P.]
(1) "Ueber Geslattqualitãten". VierteljahresschriftfiirPhilosophie, 14, 1890.
mente entre os "dualistas" da escola austríaca de Graz e os "monistas" da escola de
Berlim. Para os primeiros, a "forma" é uma representação mental, que põe em jogo uma
atividade do espírito cognoscente. Para os segundos, é somente por abstração que se
pode distinguir entre "forma" e dados sensoriais; estes não constituem uma "matéria" à
qual uma forma confira um sentido, eles são imediatamente "enformados". Aliás,
observam os monistas da escola, os conjuntos estruturados não existem apenas no
pensamento, mas igualmente no mundo biológico e fisico.
Seguramente, quando se trata dos seres vivos, certa finalidade interior, cujo
funcionamento implica uma subordinação das partes ao conjunto, é hoje geralmente
admitida. Mas, um biologista tal como Emile Guyénot (para não citar senão ele) foi
levado, por sua muito longa experiência de laboratório, a pensar que o organismo vivo
mostra inegável descontinuidade com relação às formações físico-químicas.
"Pois bem! não, a máquina do organismo não é construída por uma máquina. Aí está uma
incompreensão completa da realidade do desenvolvimento embrionário. A máquina é
construída por uma célula, uma única, que não é uma máquina. E uma soma de condições
físicas e químicas, e é tudo. Ficamos estupefatos ao ver sair dela algo que é um aparelho
coordenado, um organismo formado de partes, cada uma com uma função por cumprir.
Aí está o milagre realizado pela vida... (1)"
Essa descontinuidade - se é que existe - assim como a emergência constituída pela
aparição da consciência de si, desaparece entre os monistas da Gestalttheorie.
Wertheimer introduziu, a esse propósito, a idéia de um parentesco estrutural entre as
"formas" nos diferentes níveis, parentesco expresso pelo princípio do isomorfismo
(nova maneira de conceber o parale lismo) que relaciona ao condicionamento
fisiológico do sujeito cognoscente a estruturação do dado sensorial. A tendência é,
então, explicar as estruturas psíquicas pela morfologia nervosa.
Quanto aos exemplos dados pelos gestaltistas das "formas" no mundo físico, são bem
conhecidos (sistemas astronômicos, a bolha de sabão esférica formada espontaneamente
pela água ensaboada, a gota de água derramada num corpo quente e que tende
imediatamente, se o calor não for excessivo, a formar uma esfera, etc.).
Da observação de uma tendência geral à realização de uma estrutura tão simples e
regular quanto possível, a Gestalt passou à admissão (Wert heimer) de uma lei da "boa
forma" ou da "pregnância das formas", mani festa no mundo físico pela realização de
formas regulares e simétricas (econô micas também, pois a esfera encerra o maior
volume na menor superfície).
Aplicado ao comportamento, pela obra, primeiro, de Koffka, o gestal tismo conduziu a
opiniões que, até certo ponto, se aproximam das dos fenome nólogos (intencionalidade
da consciência) e até dos "existencialistas" (ser-no- mundo), pela admissão de um
"campo total", onde o organismo e o meio entram como dois pólos correlativos e que
constitui a ambiência real da ação humana, pois o meio geográfico é considerado como
científico e derivado.
(1) Resposta a Pierre NAVILLE a respeito do homens-máquina-de-reflexos do
behaviorismo iei V11e5 Rencontres Internationales de Genéve, L homme des-ani la scic
1952. Editions dela Baconnióre. pág. 310.
•1
308
309
1
Nesse plano a escola gestaltista irá acentuar cada vez mais a organização dinâmica e
sintética de um campo perceptivo, mercê de tensões interiores produzidas por
necessidades que determinam as reações.
'Para o faminto, o campo de percepção se organiza diferentemente do campo de
percepção do saciado; para o soldado que busca um refúgio, o campo tem aparência
diferente da que teria para um esteta; sua solidão pode ser um paraíso para o misan
tropo e, ao contrário, deixar melancólico um ser ávido de presença humana( 1)."
Como veremos ao tratar da psicologia animal, estes pdntos de vista gestaltistas foram
confirmados pelas experiências de Kbhler com macacos superiores, cujos êxitos assim
interpretava: uma súbita modificação no campo perceptivo do animal, motivada por
uma tensão interior, transforma em "vetores" os elementos inicialmente neutros do
ambiente, e um objeto reveste subitamente, em nova totalidade estruturada, a
significação nova de instru mento para um fim. Cabe, evidentemente, perguntar aqui até
que ponto essa experimentação, que evita o escolho de condições excessivamente
artificiais, é suscetível de ser, por sua vez, falseada pelo papel que nela pode ter a
imitação.
Sabe-se que a Gestalttheorie, de maneira geral, teve toda sorte de repercussões na
psicologia contemporânea; não existe nenhum aspecto em que ela tenha deixado de
exercer alguma influência (psicologia da inteligên cia, psicologia da criança,
psicopatologia...). E certo que suas ramificações podem ser fecundas nos mais diversos
domínios. Em pedagogia, por exemplo, pelo realce de um ensino que não seja a mera
justaposição de disciplinas e, sim, seja constituído de conjuntos coerentes muito mais
assimiláveis; no terreno social, pelo estímulo a repensar a influência exercida nos
indivíduos por estruturas determinadas, favoreceu grandemente uma passagem muito
geral para a psicologia social, em particular pela obra de Kurt Lewin, do qual trataremos
adiante. Por sua descrição de um "campo psicológico" conside rado por eles como uma
"categoria explicativa fundamental", os gestaltistas forneceram à psicologia, de maneira
mais sutil que Watson, o meio de se libertar do jugo cartesiano, ao dar-lhe uma
justificação da correspondência que ela tendia a estabelecer entre vida interior e
comportamento.
As preocupações globais e dinâmicas, introduzidas pela Gestalttheorie, tendem a impor-
se também no domínio médico, no qual a medicina chamada "psicossomática", nascida
nos Estados Unidos da América há um quarto de século, vem ganhando terreno cada
dia. A inspiração dessa medicina se mostra realmente como o resultado lógico das
pesquisas realizadas nos mais diversos domínios (reflexologia pavioviana, psicanálise,
neuropsiquiatria, endocrinologia); ainda fora da escola psicossomática propriamente
dita, a medicina em geral, por oposição à de ontem, na qual a extrema especialização
aparecia como a própria condição de seu caráter científico, se orienta incon
testavelmente para a consideração dos equilíbrios e dos desequilíbrios globais do
indivíduo em sua totalidade psico-orgânica(
No plano teórico, as discussões suscitadas pela Gestalttheorie versam principalmente
sobre o papel da afetividade na percepção, sobre as relações
(1) David KATZ, op. out., págs. l55
(2) Cl F. ALEXANDER. La médeci,,epsvcho-somatiqne. seu principes et seu
appiicattr'ns, Payot, Parts, 1952 (2t cd. "Pefite Bibliothêque Payot 1962); igualmente
Paul CHAUCI-IARD. La ,ctédecine pscchosornattqne, P.U.F., 1955.
da percepção com a ação, sobre a imbricação dos campos perceptivos globais com os
episódios de uma história individual, onde entram a hereditariedade, a memória e os
hábitos. Como é de supor, os gestaltistas se acreditam em condi ções de responder a
todas essas perguntas. Quanto à memória, por exemplo, falam de um processo de
aquisição concebido como um processo de or zação, mostrando que, sem a intervenção
de uma necessidade, de um inte resse, não poderia existir associação. Mas, se a
importância da afetividade e da experiência adquirida forçosamente não lhes escapou,
muitas questões permanecem ainda abertas quando se trata de compreender
verdadeiramente as articulações concretas dessas estruturas perceptivas por eles
descritas com muita sagacidade.
Sobre este ponto, seus modos de ver deveriam encontrar importantes prolongamentos nos
trabalhos de um aluno de Kóhler em Berlim, Kurt Lewin (1890-1947), o qual exercerá
um papel de primeira plana no domínio da psico logia social norte-americana( l). Israelita
como os promotores da Gestalt theorie, Lewin viu-se obrigado a fugir como eles da
Alemanha hitlerista para refugiar-se nos Estados Unidos. Os contatos que manteve neste
país com representantes moderados do behaviorismo levaram-no a aprofundar o famoso
par estímulo-resposta e a integrá-lo na sua teoria do campo total( Este constitui uma
ampliação do "campo perceptivo", enquanto engloba o próprio sujeito com sua
afetividade. Este aspecto das coisas já aparece entre os promotores da Gestalttheorie, em
particular em certas descrições de Koffka( mas Lewin aborda-o mais diretamente e
recorrendo a engenhosas técnicas para experimentar a influência do
"campo psicológico" sobre o individuo. Assim suas experiências visam a mostrar a
interdependência do sujeito e dos objetos considerados segundo uma configuração de
conjunto, num campo total que engloba o todo.
Por exemplo, uma criança é colocada num círculo traçado a giz. Sem transpor os limites
assim prescritos, ela deve atingir um objeto do lado de fora, dispondo para tanto de
alguns instrumentos: bastões, ganchos, barban tes. Lewin observa e descreve em termos
de "dinâmica do campo" as reações afetivas do sujeito em relação à estrutura que
constitui o elemento perceptivo ou cognitivo da situação. Essa estrutura põe em jogo duas
forças: uma, orien tada para o objeto, que exerce uma atração sobre o sujeito;
outra, chamada por Lewin de "barreira psíquica", proveniente do "círculo a não ser trans
posto", e que constitui uma força dirigida em sentido contrário. O conflito cria uma
tensão, e Lewin observa a maneira pela qual o sujeito tenta fazer c'essá-la, suas atitudes e
os sentimentos que manifesta.
A melhor solução é naturalmente o êxito obtido quando a instrução é observada, e isso
causa plena satisfação ao sujeito. Se fracassa nestas mesmas condições, o próprio fracasso
será sem embaraços. Mas, freqüentemente intervêm condutas dilatórias ou de evasão. Por
exemplo, a criança interrompe suas tentativas fingindo interessar-se por outra coisa;
entrincheira-se por detrás de uma atitude passiva ou imagina procedimentos quiméricos,
etc. O procedi-
(1) Cl. cap. XXIII, 3,e.
(2) A Dinam,c Theory ofPersonaiitr. Nova York, 1935; Principies o! Topoiogical
Pst'choiogv. Nova York, 1936. Ci., em francés: Psychoiogie dvnatnaque. P.U.F.. 1959.
(3) Principies of Gestait Psvchoiogv. op. co.
310
311
mento é às vezes mais brutal, e o sujeito busca uma satisfação medíocre vio lando a
instrução, ou adotando uma atitude hostil, etc. Os atos de substitui ção pQdem revestir-
se de formas as mais afastadas tecnicamente do problema inicial, e procura-se uma
trégua no sentido de uma compensação fictícia.
As experiências de Lewin mostraram que ocorrem "valorizações" em função igualmente
de situações anteriores, segundo tenham sido êxitos ou fracassos. Tais valorizações
conduzem o sujeito, em alguns casos, a empenhar a fundo o seu eu, a colocar todos os
seus recursos na solução do problema, com a conseqüência de intensificar o êxito ou o
fracasso; ou, ao contrário, consi derar o problema como uma espécie de jogo, sem nele
empenhar-se inteira mente, e isso resultará em fazer menos penoso o fracasso ou menos
vivo o êxito. Se, pois, o campo total de Lewin polariza o espaço segundo as forças que
surgem como pólos de atração ou de repulsão, não exclui a dimensão temporal, isto é, a
história. Convém ainda lembrar a este respeito suas expe riências que consistiam em
apresentar a alguns sujeitos certos problemas práticos que uns (o grupo testemunha)
podiam aplicar-se em resolver até a solução final, enquanto os outros eram interrompidos
em sua tarefa sob quaisquer pretextos, tão naturais quanto possível. Ao investigar em
seguida o que subsistia na memória no tocante às ações terminadas ou inacabadas, Lewin
pôde constatar que a ação interrompida deixava uma lacuna, criava o que ele chama de
"quase-necessidade", isto é, uma tendência para terminá la. Isso, em linguagem
gestaltísta, provaria que a estrutura da ação, se perma nece aberta, cria uma tensão que
subsiste até a obtenção de equilíbrio graças à execução completa.
312

CAPÍTULO XXII
OS PRINCIPAIS CAMPOS DAS PESQUISAS
1. O problema dos critérios
2. O uso dos testes e seus limites
3. A psicofisiologia
4. A psicologia animal
5. A psicologia genética
6. A caracterologia
1. O problema dos critérios
No decurso da segunda fase de seu desenvolvimento, na primeira meta de de nosso
século, a psicologia se diversificou a tal ponto que não seria possível descrevê-la
inteiramente no plano das pesquisas, nem, pois, afortiori, aspirar a um balanço exaustivo
no plano dos fatos. Em compensação.é possí vel esclarecer a situação criada, fazendo
incidir a atenção nos métodos e crité rios que orientam estes trabalhos e dos quais já se
tratou no capítulo prece dente. E incontestável que não se está hoje, propriamente
falando, em presen ça de uma psicologia, mas-de ciências psicológicas, cuja unificação
constitui problema. Entre os próprios psicólogos, certas intolerâncias recíprocas nos
reconduzem aos critérios metodológicos. Se, por exemplo , a psicanálise freudiana abriu
suficientes perspectivas novas para que suas contribuições possasn ser consideradas
capitais para o conjunto das pesquisas contemporâ neas, isso não tira que tenha sido
depreciada por Watson, o pai do behavio rismo norte-americano, e de que cientistas
stricto sensu cheguem até a contes tar-lhe todo caráter científico. E o caso de Marcel
Boil, que classifica na mesma categoria - a categoria psiquiátrica dos
"ciclotímicos" - os psicana listas, os místicos, os radiestesistas, os homeopatas e os
metafísicos... (1) E óbvio que tais divergências decorrem dos métodos e da idéia que se
faz da experiência. Mostra-o especialmente a história da psicologia animal.
(1) Locc I sci PU.F.. 1947, pág. 129.
313
Deste ponto de vista, a marcha das ciências psicológicas revela flutua ções que
reconduzem forçosamente ao problema do conhecimento. Pois, oscila entre o desejo de
uma radical objetividade (o behaviorismo watsoniano constitui a tentativa mais audaciosa
nessa via paradoxal) e o cuidado com as próprias condições do conhecimento, que não se
poderia simplificar sem simplismo (foi o papel da Gestalt sob a influência da
fenomenologia husser liana). A última parte desta obra é consagrada à influência exercida
no domínio das ciências psicológicas pelo movimento filosófico nascido da preocupação
de resolver uma crise que interessa a todo o pensamento contem porâneo: à filosofia, na
medida em que a ruptura dos limites tradicionais, desde Marx até
Nietzsche, lhe criara uma situação ambígua, ameaçada como se via de dissolução nas
condições históricas, sociológicas, psicológicas, das quais seria apenas a expressão; e às
próprias ciências, cujos fundamentos haviam sido submetidos a uma crítica severa,
principalmente pelo empirico criticismo de R. Avenarius (Kritik der reinen Eifahrung,
Leipzig, 1888-1890). de E. Mach (Die Analvse der Empfindungen, lena, 1903) e, na
França, contemporaneamente aos trabalhos de Bergson, pelos de Henri Poincaré (La
valeur de la science, 1905) e de P. Duhem (La théorie p/zysique, 1906).
2. O uso dos testes e seus limites
Outras pesquisas anteriores, orientadas pelo desejo de registrar e medir, com o auxílio
de provas, certos aspectos do psiquismo humano, pode riam ser lembradas
(particularmente as do antropologista inglês Francis Galton), mas é sobretudo ao francês
Alfred Binet (1857-1911) que cabe a paternidade do método dos testes. O termo foi
criado pelo psicólogo ameri cano J. McKeen Cattell em 1890, quando denominou
"mental test" uma série de provas psicológicas destinadas a descobrir as diferenças
individuais dos estudantes universitários. O método estava destinado a ter grande voga, e
o empregariam até o abuso.
Antigo aluno de Charcot na Salpêtrière, Alfred Binet, e se tornou, em 1894, diretor do
primeiro laboratório de "psicologia fisiológica" da Sorbonne, orientou-se logo para uma
psicologia "experimental" já muito diferente da imaginada por ocasião do advento da
nova ciência. Persuadido de que a vida psíquica é uma totalidade e de que o pensamento
não poderia reduzir-se, como queria Hippolyte Taine( a uma combinação de imagens,
preocupou- se em estudar a inteligência humana sob o aspecto de "esquemas diretores"
e o ser humano como um "feixe de tendências". Já em 1896, na revista Anne
Psychologique (criada em 1895 e da qual Henri Piéron se tornou, mais tarde, o diretor e
o principal colaborador), critica, em seus predecessores, o haverem atribuído, em seus
exames mentais, excessiva importância ao estudo dos processos psíquicos inferiores e o
haverem por demais negligenciado as aptidões superiores (atenção, imaginação,
inteligência), que diferenciam muito mais os indivíduos do que sua aptidão táctil ou
olfativa. Já lembrei què em seu livro de 1903, Ei ode expérimentale de l'intelligence,
caracteriza sua maneira de ver quanto à psicologia de laboratório praticada pelos prede
(1) De lixtdlligence (1870).
cessores. A experimentação, tal como a concebe, é, pois, muito ampla e inclui
principalmente questionários, conversas, inquéritos, etc., ou seja, processos que
implicam a intervenção de uma introspecção controlada( 1)
Exatamente nos princípios do século, na França, o problema das crianças anormais
estava na ordem do dia. Em 1904, o Ministério da Instru ção Pública submeteu-o a uma
comissão de médicos, educadores, cientistas, da qual Binet fez parte e da qual veio a
tornar-se um dos relatores. Dedi cando-se inteiramente a essa nova tarefa, pôs-se,
incansavelmente, à procura de um critério científico que permitisse avaliar o
retardamento ou o progresso intelectual de um estudante, e já no ano seguinte, achava-
se em condições de publicar, na revista Année Psychologique, os resultados de
pesquisas reali zadas em colaboração com o Dr. Simon, médico do Asilo de Rouen( Para
descobrir os débeis mentais nas escolas, imaginara recorrer a provas de dificuldades
crescentes, que pusessem em jogo os "processos superiores", a fim de determinar o
rendimento característico da média das crianças em cada idade. Comparando os
resultados obtidos por um sujeito qualquer com os níveis estabelecidos
(idade mental média), tornava-se possível, assim, determinar se a criança era, ou não,
retardada e de quanto o era. Mais tarde, no livro Les enfants anormaux (Paris, 1907),
Binet irá condensar suas opiniões quanto à instauração de uma "escala métrica da
inteligência".
Quando principiara, vários anos antes, a pesquisar sobre as correlações possíveis entre o
volume do crânio e o grau de inteligência, fora barrado pelas dificuldades de apreciar este
mesmo grau de inteligência. Impressionado pelo fato de que uma criança pode em geral
dizer o próprio nome por volta dos 3 anos, e a idade por volta dos 6, acabou por imaginar
questões-tipo, que punham em jogo um saber ligado à experiência cotidiana e diferente
segundo as idades e se mostravam apropriadas para classificar as crianças segundo as
respostas dadas. Uma criança de inteligência de 6 anos, por exemplo, é a que é capaz de
resolver problemas que a maioria das crianças de 6 anos pode resolver
(definir pelo uso objetos familiares, uma mesa, um garfo... distinguir manhã e noite,
copiar convenientemente um losango, etc.). A uma idade mental de 15 anos deve
corresponder a capacidade de sair-se bem numa prova- recorte, de reconstruir uma figura,
de distinguir palavras abstratas, etc. Notam-se os resultados obtidos com um - ou um +, e
a média geral permite alcançar facilmente a idade mental. Como acontece freqüentemente
que a criança malogre diante de uma ou duas provas correspondentes à sua idade, mas
saia-se bem em outras de idade superior, a média é determinada
contando-se cada êxito complementar para uma fração de ano (diferente segundo a
idade). Em poucas palavras, trata-se de um nível comparativo fundado num critério de
normalidade obtido pelo êxito de 50 a 75% dos sujeitos de certa idade, antes do que de
uma medida propriamente dita.
(1) Cf. cap. xx, § 6, no qual se acha lembrada igualmente a 'Escola de Wurtzburgo".
(2) BINET e SIMON, "Méthodes nouvelles pour le diagnostic du niveau intellectuel des
anormaux", An,sée Psycho/ogique, xi, 1905. Os lestes estabelecidos por ambos seriam
publicados, de forma muito explicada, numa reedição, pelo Dr. SIMON, La meoare da
déceloppement de l'intelhgexce chez lesjeunes enfanto, Paris, 1907. [ pequeno livro de
Th. SIMON e Alfred BINET foi, hájá longos anos, posto em português: Testes pw'a a
medida do desenco/cimento da intelligexcia, trad. e notas de Lourenço Filho, vol. X da
"Bïbliotheca de Educação", Melhoramentos, São Paulo [ -3. B. D. P.j
314
315
A escala original de Binet-Simon foi, aliás, várias vezes modificada pelos próprios
autores. Ela se situa na origem de inúmeras pesquisas análo gas, destinadas a pô-la à
prova e a aperfeiçoá-Ia( 1)
De maneira geral, a psicologia de Binet mostra grande preocupação com o concreto;
visa mais ao estudo dos indivíduos e de certas famílias de espíritos do que ao espírito
em geral. A extensão de sua curiosidade se revela no simples enunciado de seus outros
estudos: Psychologie des grandes calcula teurs et joueurs d'óchecs, 1894; La
suggestibilité, 1900; "Les mystère de la peinture" (Année Psychologique, 1909);
"Rembrandt" (ibid., 1910); L 'âme et le corps, 1905; "Esprit et matière" (Bulietin de la
Société Française de Philosophie, 1905); "Cerveau et pensée" (Archives de Psychologie,
VI); Les révélations de l'écriture, 1906; "Essai de chiromancie expérimentale" (Année
Psychologique, XIV).
A mesma variedade de interesses está presente no psicólogo genebrino Edouard
Claparède (1873-1940), cuja obra, em boa parte, continua a de Binet (a quem, aliás, o
ligavam laços de amizade), por um esforço constante para elaborar e experimentar
métodos de diagnóstico mental. E também para discuti-los:
"Desejaria ser um observador, um explorador, um experimentador, um desco bridor.
Tenho sido, principalmente, um sistematizador, um ensinante, um organizador de
conhecimentos, um fazedor de "revisões gerais" para "esclarecer" uma questào. Minha
obra sobre a psicologia da criança está repleta de divisões, subdivisões e classificações
pedantes que horripilam meu ser romântico (...j e sofro com isso, tanto mais que é este
que me parece corresponder a meu "verdadeiro eu", enquanto a tendência clássica se me
apresenta como um demônio estranho que me agarra pela garganta e me impõe
brutalmente sua vontade(
Como Binet, Claparède se ocupou de múltiplos aspectos das ciências psico ló gicas:
psicofisiologia, psicopatologia, psicanálise, psicologia animal; associação de idéias,
memória, testemunho; interesse, necessidades, jogo; inconsciente, hipnose; psicologia
da criança em geral, pedagogia em geral, etc. Invocava a seu favor o testemu nho de urna
psicologia funcional( despo jada de todo escrúpulo metafísico ou epistemológico, de
inspiração pragmá tica, segundo a qual a legitimidade tem por garantia única a
fecundidade. Em sua opinião, semelhante psicologia tinha o mérito de permitir a descrição
e a delimitação de certos fenômenos, enunciar com precisão problemas de gênese; sugerir
aplicações práticas, formular leis. Enquanto é por assim dizer impossível
- pensava ele - distinguir, por exemplo, do ponto de vista "estru tural", a inteligência e a
vontade, pois se encontram em mistura imagens, pensamentos, tendências, afetos, etc.,
quando as vemos do ângulo funcional, estamos na presença de condutas muito diferentes.
Trata-se, então, de
(1) "Esse trabalho notável, repleto de promessas, passou completamente despercebido na
França. Quando muito, provocou algumas zombarias por parte de pedagogos facetos. No
estrangeiro, porém, não deixou de suscitar a admiração geral e, depois, um entusiasmo
que chegou ao exagero, principalmente nos Estados Unidos..." (Ed. CLAPARÉDE,
Comment diagnostiquer les aptitudes c/iez les écoliers, Flammarion,
1924. pág. 12).
(2) "Autobiographie', Éditioos des Are/tires de Psyc/io/ogie, Genebra, 1941. Em inglês
em A Hitiory of Psychology itt Autobiography, publicada por Cari MURCHISON.
Ctark University Press, Worcester. Mass., 1930. vol. 1.
(3) "La psychologie fonctionnelle", comunicação ao X Congresso Internacional de
Psicologia, realizado em Copenhague, agosto de 1932, extrato da Recue Philosophique,
janeiro-fevereiro de 1933.
indagar não somente o papel de determinado fenômeno, mas em que Circuns tâncias
ocorre e que situação o engendra. As leis que Claparède foi assim levado a propor são
muito numerosas: lei da necessidade ("Toda necessidade tende a provocar as reações
próprias a satisfazê-la"); lei da extensão da vida mental ("O desenvolvimento da vida
mental é proporcional à diferença entre as necessidades e os meios de satisfazê-las"); lei
da tomada de consciência ("O indivíduo toma consciência de um processo (de uma
relação, de um objeto), tanto mais tarde quanto mais cedo sua conduta envolveu o uso
automático, inconsciente, desse processo"); lei da antecipãçõo ("Toda necessidade que,
por causa de sua natureza, corre o risco de não poder ser imediatamente satisfeita,
aparece antecipadamente"); lei do interesse momentâneo ("A cada instante a
necessidade mais urgente tem prioridade sobre as outras"), etc.
Embora se possa, contudo, encontrar nele idéias interessantes no res peitante, de modo
particular, à psicologia da inteligência e da vontade, ao sono('), etc., foi em
psicopedagogia que se exerceu, na senda aberta por Binet, a atividade principal de
Claparède. Refratário aos métodos estandar dizados do ensino oficial, tinha a nostalgia
de um ensino "sob medida", e iniciava seus alunos, atraidos de diversos países pela
fama granjeada pelo Instituto Jean-Jacques Rousseau, por ele criado em 1912, na prática
e na discussão dos mais variados testes, O método dos percentis, aplicado à graduação
dos testes, servia-lhe para determinar o lugar ocupado por um indi víduo num total de
cem, grupados de acordo com os resultados obtidos por determinado teste, e para
elaborar, assim, "perfis psíquicos" (2) (*)
Como já fiz notar, os psicólogos desenvolveram uma desconcertante atividade na
criação dos testes. Como estes se contam agora às centenas, até aos milhares, haveria
necessidade de um volume para expor somente aqueles que foram imaginados para o
diagnóstico da inteligência e do caráter.
No concernente à inteligência, por exemplo, tornou-se evidente, após a escala métrica
de Binet-Simon, modesta em suas pretensões, que seria mister encontrar outros meios,
caso se quisesse "medir" a inteligência adulta. Pois, com a chegada da inteligência ao
termo de seu desenvolvimento, por volta dos 15 anos, as coisas se complicam muito.
Como falar ainda em idade mental? Eis o motivo pelo qual as pesquisas se complicaram
ao extremo, como, igual mente, o objeto da investigação, já que a "inteligência" se
enriquece com a experiência vivida e com uma grande quantidade de aquisições culturais
da qual é inseparável.
Já no relativo à idade mental, o psicólogo alemão Wilhelm Stern consta tara que a falta
de correspondência de um ano entre a idade mental e a idade
(1) Sua teoria do sono recorre à "lei da antecipação". Há uma margem entre a percepção
subjetiva da necessidade e a necessidade orgânica objetiva, e essa margem permite ao
indivíduo não ser apanhado desprevenido. Assim como a fume - observava
CLAPAREDE - aparece bem antes de que se esteja a ponto de morrer de inanição, e se
come "cedo demais", o sono constitui uma necessidade antecipadora. Aos autores da
época que, em sua maioria, atribuíam o sono a uma intoxicação, CLAPAREDE objetava
que dormimos muito antes de estar intoxicados (a intoxicação ao contrário, provoca a
insénia), e que existe um sono instintivo (como no caso dos ratos silvestres edas
marmotas) e um sono resultante do desinteresse. -
(2) "Proftls psychologiques gradués d'aprês l'ordination des sujets", Are/tires de
Psychologie, XVI, 1916; Psychologie de l'enfant, 81 cd., prefácio; Coniment
diagnostiquer les aptitudes chez les écoliers, 21 cd., cap. IV.
(*) V. também, a respeito das idéias do psicopedagogista genebrino: o estudo de i. E.
DAMASCO PENNA, "Claparède", na obra Grandes educadores, Editora Globo, Porto
Alegre, 1949, págs. 219-333 e o de Robert DOTTRENS, "Edouard Claparéde", na obra
Les grandspédagogues, de Jean CHATEAU e colaboradores, Presses Universitaires de
France, Paris, 1956, págs. 275.290. (2. B. D. P.)
316
317
do calendário não tinha o mesmo significado caso a criança estivesse com 4 ou
12 anos. Foi, assim, conduzido a propor uma medida derivada da idade mental,
o Quociente de Inteligência (Q. 1.), ou seja, a relação da idade mental à idade
real (o indivíduo médio definido com um Q.I. de 100).
Conforme o Q. 1. seja superior, igual ou inferior ao padrão, o sujeito é adiantado,
normal ou retardado.
Com o aparecimento da psicologia diferencial, cujo nome foi introdu zido por W. Stern
em 1900, iriam multiplicar-se os trabalhos que recorrem à estatística e à técnica dos
testes, com numerosas aplicações nos campos da psicotécnica, da seleção e da orientação
profissional.
Papel importante neste domínio representou um primo de Darwin, o inglês Francis
Galton (1822-1911), o qual concebera antes o projeto de verifi car experimentalmente a
teoria da evolução estudando ostatisticamente as diferenças individuais e a
hereditariedade, e teve a idéia de estender seu método aos fenômenos mentais. Esses
trabalhos de Galton, continuados por outros autores, conduziram à arnílise fatorial de
Charles Spearman (1863-1945), a saber, um método de análise dos coeficientes de
correlação próprio para revelar os fatores gerais nos comportamentos individuais. O
nome de Spear man é inseparável do fator G (fator geral), por ele descoberto, e que
impreg naria, mais ou menos, segundo as dificuldades que apresentem, os testes a que se
submete o sujeito. Em todo comportamento humano este fator G se acha associado a um
fator S (fator específico). Mas o americano L. L. Thur stone (1887-1955) iria descobrir
neste mesmo comportamento uma multipli cidade de fatores dos quais nenhum seria
geral... Não se poderia tratar aqui de passar em revista todos os testes imaginados desde
então; bastará consi derar brevemente aqueles que gozam de particular aceitação.
É o caso, no respeitante aos testes relativos à inteligência, da escala de Wechsler-
Bellevue (1), que suscitou grande número de variantes, muitas vezes insignificantes.
Concebida especialmente para medir a inteligência do adulto, comporta onze testes que
põem em jogo a informação geral do sujeito, o grau de compreensão geral, a capacidade
de raciocínio aritmético, a memória imediata dos montantes, o vocabulário, além dos
testes que consistem em reordenar imagens para reconstituição de uma história, em
indicar o que falta num desenho incompleto, etc.
Quanto aos testes chamados "de personalidade" e "de caráter", o mais famoso é, sem
dúvida, o psicodiagnóstico do psicólogo suíço Hermann Rorschach (1921). O material
comporta dez pranchas cobertas de borrões de tinta, negros ou policrômicos, que o
experimentador submete, em ordem deter minada; à interpretação do paciente. As reações
deste - percepção do conjun to ou de um detalhe de uma prancha, apreensão dos borrões
antes sob o aspecto da forma, da cor, ou do movimento ou, ainda, o conteúdo da sua
interpretação pessoal (animais, seres humanos, figuras, órgãos, etc.) - constituem
um conjun to de dados que o experimentador, por sua vez, interpretará para um diagnós
tico sobre o grau de inteligência, a fantasia e o caráter do sujeito(*).
(1) Do nome de Wechs!er. professor americano, e do de um hospital psiquiátrico, o
BeI!evi no Estado de Nova York.
() V. a esse propósito: Cícero Christianø de SOUZA. O método de Rorschach, vol. 23
da col. "Iniciação Científica", Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1953. (3. B. D.
P.)
Após o de Rorschach, o T. A. T., o Tematic Apperception Test, é o teste "projetivo"
mais em voga, sobretudo nos países anglo-saxões. Foi pro posto em 1935 pelos
psicólogos americanos Morgan e Murray, e também teve i variantes. Uma série de
desenhos que representam cenas com um ou vários personagens, ambíguas no
significado, é apresentada ao sujeito, o qual deve dizer o que vê e imaginar uma gênese
e um desfecho da situação representada. A idéia diretriz é a de que o sujeito se
identifique com o perso nagem principal da imagem e lhe atribua seus próprios
sentimentos. Além do tema e do desfecho da história, diversos elementos entram assim
em conside ração: a natureza do personagem (herói), suas necessidades (needs), suas
coerções (press).
O teste de frustração (imaginado por Rosenzweig) é também de empre go freqüente.
Elaborado, como seu nome indica, numa perspectiva mais restrita, visa a revelar as
tendências profundas do sujeito pelo modo como resolve certas situações com dois
personagens (dos quais um é frirstrado), representadas por desenhos.
O psiquiatra Henri Arthus imaginou outro teste "de projeção", o da aldeia. O su jeito,
posto em presença de um jogo de construção com peças que representam casas, muros,
tetos, árvores, campanário, chaminé de fábrica, etc., deve construir uma aldeia segundo a
própria imaginação. A interpre tação, fundada essencialmente na disposição dos diversos
elementos, leva também em conta o comportamento do sujeito durante a prova
(rapidez, segurança, indecisão, etc.)(
Se inscrito na mesma ordem de pesquisas, o teste de Lipot Szondi pre tende ser mais
ambicioso em seu alcance. Pois, este psiquiatra húngaro, que emigrou para Zurique em
1944, transformou a psicanálise freudiana em Schicksalanalyse (análise do destino), na
qual aparece uma teoria dos genes recessivos como subestruturas das tendências
inconscientes de Freud (2) O teste que lhe inspiraram suas concepções, de complexa
aplicação, visa a revelar na personalidade do sujeito suas pulsões profundas. Colocado
em pre sença de 6 séries de 8 fotografias, das quais uma é a de um indivíduo atingido
por uma das 8 anomalias pulsionais catalogadas por Szondi, o paciente deve designar
particularmente as que lhe são mais simpáticas(
Não resta dúvida de que todos estes testes "de personalidade" e "de cará ter" podem ser
úteis ao prático, finalmente o único juiz no caso. Parece, porém, também evidente que a
interpretação deles é muito delicada e depende, em últi ma análise, da competência, da
intuição e da habilidade do experimentador.
Se os testes que têm por objeto as atividades sensoriais e motoras (visão, audição, tato,
força muscular, fatigabiidade, rapidez e precisão dos reflexos, etc.) se tornaram
indispensáveis no domínio da seleção profissional e justifi cam por si sós a psicotécnica,
uma muito maior reserva impõe-se acerca dos testes mais ambiciosos.
Em particular, com respeito aos testes de inteligência, sempre me pare ceu haver uma
desproporção entre o impressionante aparelho científico e a
(1) Le viliage, te.çt d'actjnjté créalnce, Paris, Paul Hartmann, 1949.
(2) Schicksalanalyse, Basiléia, Benno Schwabe, 194S.
(3) Experimenteile Triebdiagno.stik, Berna, Hans Huber, 1947.
318
319
magreza dos resultados. Impressão análoga à que me davam estes pescadores, munidos
de formidável equipamento, que voltavam domingo à noite com um punhado desses
cadozes que o aldeão, aliás, pega com vara de pescar... Na f a mosa escala de Wechsler-
Bellevue, por exemplo, estas questões elementares bem que podem permitir revelar a
existência de sujeitos dotados de nível intelec tual abaixo da normal, mas vê-se com
dificuldade como possam ensinar real mente sobre as qualidades de um ser humano. Em
todo caso, ensinam a medir-lhe a paciência, julga o Dr. Pierre Theil, para quem uma tal
prova "constitui uma gigantesca comédia pseudocientífica", uma "ação de escroque para
com a ciência", quando aplicada à seleção dos chefes (1). Nos Estados Unidos, outro
autor sem ilusões, o sociólogo Pitirim Sorokin, observa uma singular falta de
correspondência entre a instabilidade e a complexidade do homem, de um lado, e o
caráter artificial de testes que se desenrolam em tempo muito curto, numa hora fixada
pelos práticos, e cujas questões, envol tas em fraseologia vaga, são suscetíveis de várias
respostas. Lembra a este respeito que até uma observação de muito mais longa duração
pode conduzir a apreciações singularmente errôneas. Sirvam de prova: Tolstoi e com
notas médias em dissertação russa, Newton passando sem brilho especial seus últimos
exames universitários, Vico eliminado num concurso universi tário em proveito de um
medíocre, Verdi e Beethoven, antes mal apreciados junto aos seus mestres, etc. (2).
Convém observar que a voga dos testes está estreitamente ligada a certas condições
sociais. E imensa nos Estados Unidos, onde se precisou recrutar rapidamente, em 1917,
os quadros do exército; onde predomina o critério da eficiência e onde as necessidades de
seleçãd profissional, e uma mentalidade imbuída de ciência e de empirismo,, asseguram o
sucesso de mé todos respondentes às exigências conjugadas da técnica e da moda.
Tende-se a crer, no outro lado do Atlântico, que o especialista, conselheiro- psicólogo ou
psiquiatra, dispõe de receitas infalíveis para a solução de todos os males e conflitos
interiores. No duplo aspecto da psicotécnica e da psicoterapia, os testes, juntamente com
os questionários e as sondagens de opinião, parecem lá envolvidos em supersticioso
respeito. E um aspecto das coisas que volta remos a encontrar adiante no capítulo
conságrado à psicologia social. Inversa mente, noutro contexto social, os testes na URSS
apenas conheceram um sucesso efêmero. Em prática por volta de 1930, eles ali foram
objeto de ata ques muito vivos e, em seguida, proibidos por decreto do Comitê Central do
Partido Comunista em 1936, sobretudo porque nesse país, orientado por uma filosofia
bem determinada e ainda desprovido de pessoal qualificado, tratava- se muito mais então
de formar que de selecionar.
De maneira geral, hoje está claro que os testes se tornaram indispensá veis no domínio da
psicotécnica a servfço de nossa sociedade científica e con quistadora e podem ser úteis ao
psicólogo, ao psiquiatra e ao pedagogo, mas como simples instrumentos, por
aperfeiçoados que possam ser, que tomam seu sentido não de si mesmos, mas de certa
finalidade, consciente e delibe rada, ou não; em suma, sem que uma superstição a seu
respeito obscureça o problema essencial, que é de ordem antropológica e, não, científica e
técnica.
(1) La psychofechniqi fausse science?. "La médecine praticienne". Paris, 1962.
(2) Te,,da,,ces es d de la sociologie américaine. Paris, Aubier, 1959, pág. 78.
Aliás, em abril de 1954, as Jornadas Internacionais de Psicologia da Criança, que
reuniam em Paris algumas centenas de psicólogos, médicos e educadores de diversos
países (incluídos os do leste europeu), mostrou feliz mente o despertar de um espírito
critico generalizado quanto ao emprego dos testes, depois de uma mania que, por toda a
parte, havia sido excessiva.
3. A psicofisiologia
A introdução sistemática da anatomia e da fisiologia no domínio da psicologia, desde
Wundt, constitui urna característica fundamental das pesquisas contemporâneas. Permitiu
o aparecimento e o desenvolvimento da psicofisiologia, pelo estudo das variações
concomitantes de certas funções psíquicas com o corpo, em particular com os sistemas
nervosos da vida de relação e da vida vegetativa, com o encéfalo e com as glândulas
endócrinas. Essas pesquisas vão dar na caracterologia quando, ao invés de procurar
extrair leis gerais, tendem a estabelecer uma classificação dos indivíduos em função de
certas particularidades comuns, que permitem atribuir-lhes uma categoria tipológica( 1).
Essas mesmas pesquisas encontram aplicação prática no domínio da psicotécnica, e vêm
juntar-se, por outro lado, às da psicopato logia. São, portanto, abundantes as
interferências e os compromissos entre os métodos tendentes a
estabelecer um esquema de explicação onde o aspecto biológico tem prioridade sobre os
dados puramente psíquicos e os que privile giam, ao contrário, os últimos; em suma, entre
a orientação das fisioterapias e das psicoterapias. De modo geral, no terreno das
pesquisas e métodos, fica claro que uma psicofisiologia assentada na hipótese de
trabalho de que todo fenômeno psíquico tem um concomitante físico determinado está
em franco progresso; representa, certamente, um dos aspectos particularmente fecundos
de uma psicologia que aspira a ser verdadeiramente "experimental". A hipó tese desse
paralelismo tem a seu favor a evidência dos fatos mais corriqueiros; sua diferença em
relação ao passado reside no fato de que, atualmente, conta com os benefícios de um
aparelhamento técnico aperfeiçoado, tornado possí vel pelos progressos das ciências
físicas e biológicas.
É quase escusado invocar, a esse respeito, todas as modificações e alte rações do humor,
e do pensamento sob o efeito de certas perturbações corpo rais ou de certos
medicamentos; e, inversamente, todas as repercussões orgâ nicas produzidas por
acontecimentos psíquicos (emoções, tristeza, alegria, etc.). Na prática, ainda quando é
impossível, evidentemente, demonstrar esse paralelismo quando se trata das atividades
superiores do espírito, senão por um aspecto de certo modo negativo (por exemplo, a
determinação das causas fisiológicas de um desfalecimento que interrompe a vida da
consciência), a admissão dele se mostrou fecunda na orientação das pesquisas. Essa
admissão encontra, por outro lado, fundamento no fato de que a evolução biológica se
apresenta como uma espécie de impulso em direção a uma complexidade nervosa e
cerebral sempre crescente (multiplicidade de vias nervosas, riqueza cada vez maior em
neurônios), cuja importância condiciona, muito particular- mente no homem, atividade e
comportamento de complexidade surpreen dente.
(1) Existem atualmente numerosos sistemas de caracterologia, ruias tipologias têm por
fundamento crité rios particulares de classificaçào, somáticos ou psicológicos. Cf. § 6
do presente capítulo.
320
321
As descobertas realizadas em psicofisiologia são numerosas e complexas demais para
poder caber aqui senão de maneira muito sucinta. Por exemplo, depois da descoberta,
por Cannon, da hiperglicemia (aumento de açúcar do sangue) nas grandes emoções
humanas, todas as reações viscerais que acom panham a emoção (circulatórias,
digestivas, respiratórias, glandulares, musculares, etc.) passaram a ser objeto de
pesquisas minuciosas, a fim de se estabelecerem certas constantes( 1). Por outro lado, a
psicofisiologia veio esclarecer a importância das glândulas endócrinas e dos hormônios
por elas produzidos. A experimentação em animais (principalmente em cães, gatos e
macacos, por ablação dessas glândulas, genitais, tireóide, supra-renais) mostrou como
podiam corrigir-se as perturbações psicofisiológicas assim provocadas, mediante extratos
glandulares específicos. Quem ignora hoje os correlatos psíquicos do mau
funcionamento da tireóide e suas conseqüências no humor e na atividade intelectual,
conforme seja demasiado rápido ou demasiado lento? Também foi revelada a
importância das glândulas de secre ção interna pelo papel de direção e de controle
endócrino que parece desem penhar a menor dessas glândulas, a hipófise, localizada na
base do crânio e qualificada de autêntico "cérebro endócrino".
A vivissecção praticada em cães (Cannon, Bard) permitiu a aquisição de novo
conhecimento do papel atribuível às diversas partes do cérebro (principalmente do de
sua base, o diencéfalo), no domínio das pulsões instin tivas. Enquanto o tálamo parece
reger a tonalidade afetiva das sensações, ficou claro que o hipotálamo presidia às
pulsões primitivas, às oscilações entre sono e vigília, ao humor. De maneira geral, a
experimentação mostrou que o diencéfalo podia ser considerado como o ponto de
junção do sistema nervoso central com o sistema neurovegetativo e o sistema
endócrino:
"Em estreita relação com a hipófise, glândula mestra das endócrinas, com o lobo frontal,
instrumento das sínteses mentais, rico em formações vegetativas, o diencé falo ocupa uma
situação privilegiada nos confins dos sistemas nervosos da vida vegeta tiva e da'vida de
relação(
Em suma, passou-se a admitir que os aparelhos endócrino e simpático, com suas
correlações diencefálicas, regem as forças instintivas, e que as inte rações entre o córtex
(enormemente desenvolvido no homem) e a base do encéfalo, estão em relação com um
poder de síntese e de atenção que preside às funções de utilização controlada da energia.
De maneira geral, as investigações psicofisiológicas, enriquecidas pelas conquistas da
neurologia, revelaram a espantosa complexidade do sistema nervoso central (o que
preside aos movimentos musculares do esqueleto e à vida de relação). Admite-se hoje
que toda excitação determina na célula nervosa uma perturbação da descarga elétrica
(produzida pela atividade química da célula) que constitui o influxo nervoso, esse fluido
misterioso atri buído por Descartes aos "espíritos animais". Esse influxo nervoso parece
(1) A emoção é um fenômeno característico de um "fato" suscetível de diversas
interpretações, já que podemos exprimi-la em termos de físico-química, de neurologia
ou de psicologia. No plano psicológico propõe-se o problema do sentido da emoção.
"Rata do instinto" para o psicólogo de Lausanne, J. LARGUIER 0E5 BANCELS, já
para SARTRE ela se relaciona com as características de uma "conduta mágica", etc.
(2) Jean DELAY, Aspects de Ia psychiatrie ,noderne, P.U.F., RibIioth de Psychiatrie.
dirigida por Jean DELÀY, 1956, pág. 58.
assim consistir numa onda elétrica, de velocidade mensurável, que se propaga de um
elemento nervoso a outro por um mediador químico, desde que entre eles exista certo
acordo ou, seja, desde que l a mesma cronaxia; o papel dos centros nervosos (medula
espinhal e encéfalo) é desviar o influxo nesta ou naquela direção, bloqueando -lhe Ob
facilitando-lhe a passagem. Pôde-se comparar essa atividade à de um telefone automático
extremamente complicado. Admite-se hoje que o cérebro humano possui, elevada ao
máxi mo, uma capacidade de excitação e de frenagem (dinamogenia e inibição) e tanto
pode dirigir os influxos intracerebrais para os sistemas motores (mexer o braço, à
vontade) como interdizer uma resposta reflexa (ficar "impassível" sob uma dor). Esse
aspecto das coisas é esclarecido, até certo ponto, à luz dos "reflexos condicionados".
Sabe-se, por outro lado, que as potencialidades cerebrais só se podem atualizar por obra
de uni desenvolvimento progressivo, a partir das impressões sensoriais, elas próprias
inseparáveis do intercâmbio com o meio social. A importância decisiva desse fator foi
esclarecida por certos casos de crianças selvagens, criadas por lobas, e que se mostraram
incapazes de falar e de aprender quando reintegradas na sociedade dos homens, como se
seus centros coordenadores se tivessem atrofiado por falta de uso.
4. A psicologia animal
Se a experimentação aplicada ao ser humano encontra um obstáculo nos limites
impostos pela consciência moral ou religiosa, o mesmo não sucede quando se trata dos
animais. Por isso o domínio da psicologia animal é freqüentemente considerado, pelos
que o cuítivam, como privilegiado em razão da liberdade de ação de que dispõe o
experimentador para controlar suas hipóteses. Lembrei, no capítulo precedente, a
descoberta, em situação de laboratório, dos reflexos condicionados. Em psicologia
dinica a experimentação se encontra forçosamente limitada; o mesmo se dá na psicolo
gia da criança. Impossível saber qual o comportamento de uma criança se fossem
transformadas suas condições de vida, se fosse educada fora de qual quer meio social.
Por outro lado, sempre se dispõe em psicologia humana somente de um número
reduzido de sujeitos, e isso limita também o alcance das conclusões estatísticas. Nada de
semelhante em psicologia animal, visto poder-se nesse caso praticar toda espécie de
experiências com recurso particu larmente à vivissecção e também criar o animal em
condições artificiais, de maneira provisória ou durável, associando várias gerações, o que
permite teoricamente de levar em conta a ação recíproca da hereditariedade e do meio na
gênese de certas atitudes. Tudo com um "material" por assim dizer ilimi tado, exceção
feita quando se trata de experiências com macacos antropóides. Em poucas palavras, o
domínio da psicologia animal seria por excelência aquele em que o ideal de uma
psicologia objetiva encontra suas melhores condições, mercê de um método que permite
descrever na linguagem das ciências físicas as respostas dos animais a situações
determinadas, admitindo- se que a relação objetiva explique também a perspectiva
própria do animal. Estamos aqui, inevitavelmente, nas antípodas da concepção segundo a
qual somente existe verdadeira psicologia no conhecimento direto do psiquismo pelo
próprio indivíduo, conhecimento interior, vivido, como o queria
322
323
Bergson( 1). Sempre houve por certo naturalistas que observaram os animais. Tal
observação, porém, segundo os psicólogos, seus sucessores, não era nada "científica".
Podia, quando muito, informar a respeito do modo como um animal se comporta em
condições naturais, mas não era capaz de revelar fosse o que fosse sobre os
determinismos de tal comportamento. Ou, se ela tentava fazê-lo, era para confundir o
mais das vezes condições e simples circunstân cias, enquanto que a experimentação
permite, ao suprimir essa ou aquela circunstância, saber se tal circunstância é acessória ou
determinante. O entomologista Fabre, com cujas observações Bergson muito contara, não
escaparia a esta deficiência.
C. L. Morgan (1852-1936) foi o primeiro a romper com o antropomor fismo que
consiste em atribuir às condutas do animal intenções análogas às que ocorrem no
comportamento humano, e a preconizar um método experi mental. Promoveu assim
pesquisas que se multiplicariam, com vistas a estudar objetivamente a vida animal.
Certa voga tiveram inicialmente os famosos tropismos do biólogo alemão J. Loeb
(1859-1924), considerados como o próprio tipo da atividade elementar. Loeb entendia
por "tropismos" as reações de orientação e de locomoção levadas a efeito num animal
por agentes externos (luz, calor, etc.); reações interpretadas em sentido puramente
mecanista. A teoria deveria dar azo a várias controvérsias, e a extrapolações que
freqüentemente resultaram em excluir do comportamento qualquer aspecto psicológico.
Inúmeros trabalhos seguiram os de Loeb: sobre os organismos inferio res (protozoários,
moluscos, crustáceos, invertebrados); sobre os insetos; sobre os animais inferiores; sobre
os antropóides ou macacos superiores (gibbon, orangotango, chimpanzé, gorila). A
discriminação dos grupos estu dados não foi determinada somente em vista de uma
repartição das tarefas; ela invoca a seu favor o fato de que caracteres distintivos
conferem, àqueles, certos laços objetivos. Parece, porém, realmente, que a classificação
das espécies. deve algo à hierarquia que os filósofos, desde Aristóteles, sempre
estabeleceram.
As pesquisas empreendidas no campo da psicologia animal forneceram inúmeros dados
experimentais, quer sobre os mecanismos do comportamento animal, quer sobre os
processos de sua aprendizagem (o famoso learning dos psicólogos americanos). Tais
dados foram diversamente interpretados. As publicações consagradas a essas
experiências foram particularmente nume rosas por volta dos anos 1920-1940. J. A.
Bierens de Haan menciona mais de 200 d uma obra de R. Woodworth dedica urna
centena de páginas às reações condicionadas e ao aprendizado num labirinto(
Para concretizar as coisas, convém lembrar a esse respeito as experiên cias
particularmente notáveis de E. Thorndike (1874-1949), engenhoso inova dor no domínio
da técnica experimental. Ele submeteu aos métodos do labirinto e às experiências com as
"problem-boxes" toda espécie de animais, pintainhos, gatos, cães, macacos inferiores.
Para ele, que recusava qualquer hipótese sobre o psiquismo animal, a questão era saber
como os animais resol
(1) Ct. cap. XIX.
(2) Labyrinth und U, Leida, 1937.
(3) Psychologie e.xpérimentale, P.U.F., 1949.
vem problemas de interesse vital pára eles. Colocado sem alimento numa gaiola
resguardada por rede de arame, o animal vê do lado de fora um pedaço de carne ou de
peixe. Para sair e pegar a comida, deve abaixar um fecho. Thorndike observou o
seguinte: o animal, após atirar-se várias vezes contra a porta, acabou por chocar-se
fortuitamente com o fecho e abri-la. Recomeçada a experiência, calculando-se o tempo
requerido para cada êxito, constata-se que este tempo diminui com o número das
experiências. Tirou-se a conclusão de que o animal aprende por ensaios e erros. O
primeiro movimento coroado de sucesso é devido ao acaso, depois instala-se um
mecanismo: uma adap tação reflexa não dirigida, que permite excluir do processo de
aprendizagem a intervenção de uma atividade inteligente. Já aí existia uma solução
"behavio rista" no sentido que Watson iria popularizar em breve(
A criticaram, porém, o artifício dos métodos, próprios a criar con dições de pânico no
animal, a determinar movimentos desordenados de sua par te, falseando assim
particularmente a medida do tempo necessário ao êxito.
As controvérsias surgidas a esse respeito atestam uma oscilação freqüentemente
renovada nas concepções e métodos psicológicos, umas imbuídas de objetivismo radical,
a privilegiar pontos de vista mecanicistas e associacionistas; outras inclinadas a
reconhecer no sujeito da experiência um elemento subjetivo e certa capacidade de
invenção. No primeiro caso, tende-se a recusar qualquer atenção à uma intencionalidade,
e esta resolução ante cipada influi na interpretação. No segundo caso, acontece que a
experimen tação vem confirmar o papel de uma subjetividade capaz de encontrar uma
resposta pessoal diante de um problema por resolver. Testemunham-no as experiências
de Kühler e de Yerkes.
O psicólogo alemão Wolfgang Kühler( 2) achava-se, durante a Primeira
- Guerra Mundial, nas ilhas Canárias, onde existia (em Tenerife.) um centro de pesquisas
fundado e patrocinado pela Academia de Ciências da Prússia. Projetou Kbhler,
trabalhando com macacos antropóides, pôr à prova a teoria dos ensaios e erros de
Thorndike; imaginou, porém, experiências que não comportassem o elemento de coerção
censurado àqueles que recorriam às "caixas-problemas" e aos labirintos. Os
experimentos lhe provaram que os macacos, de aptidões individuais desiguais, eram em
geral capazes de resolver problemas que constituíam verdadeiros testes de inteligência
prática. Por e um chimpanzé, em presença de uma banana suspensa no teto, deslocará
caixas para nelas subir e agarrar o manjar tentador. Sultan, o mais célebre dos
chimpanzés de Kühler, chegou até a encaixar duas hastes de bambu para atingir, por
meio do bastão assim formado, a banana cobiçada.
A interpretação "gestaltista" de Kôhler é a de que certo objeto (caixa, bastão, etc.) pode
adquirir bruscamente, na percepção de uma nova totali dade estruturada, um significado
do qual até então estava desprovido, e isso implica, da parte do animal, uma Einsicht, um
discernimento.
As experiências iniciadas na mesma época por R. M. Yerkes, diretor dos Laboratórios de
Biologia dos Primatas (Yale University, Orange Park), provariam que os antropóides não
possuem somente uma tal Einsicht, mas
(1) C cap. XXI, § 2.
(2) C cap. XXI, § 3.
324
325
ainda um pensamento simbólico pelo menos rudimentar. Yerkes punha jovens
chimpanzés em presença de um aparelho automático que distribuía um bago de uva
cada vez que um tento era introduzido no mecanismo, e consta tou que os chimpanzés
aprendiam rapidamente o uso das peças. Os dados do problema foram em seguida
complicados com a introdução de um segundo aparelho de alavanca, a ser acionada pelo
chimpanzé para receber um tento que iria depositar no aparelho distribuidor de uvas.
Teve-se a idéia de fechar este último durante certo tempo e deixar aberto o aparelho
distribuidor de tentos, e os chimpanzés se utilizaram então do distribuidor de tentos para
fazer sua provisão, esperando pacientemente a reabertura do aparelho distribuidor de
uvas... Finalmente os chimpanzés teriam até podido distinguir os próprios t entos; alguns
eram inutilizáveis, enquanto outros permitiam obter um bago, e outros ainda dois.
A experiência do casal Kellog é igualmente digna de menção; eles tive ram a idéia de
criar juntos, durante nove meses, o filho Donald, de 10 meses de idade, e uma
femeazinha chimpanzé, Gua, de 7 meses e 1/2. A criança e a macaca receberam os
mesmos cuidados e mais ou menos a mesma alimen tação. Acordando e deitando -se às
mesmas horas, tinham jogos e passeios iguais( 1)
Mostrou-se inicialmente na macaca uma superioridade em d domínios: manipulação de
objetos, reação a ordens, descoberta da proveniên cia de um som. Com 14 meses, Donald
só reagia corretamente a 8 palavras, Gua a 12. Mas, aos 19 meses, Donald tomou a
dianteira. Reagiu corretamente a 68 palavras, a macaca a 58 somente, e esta
superioridade da criança cresceu desde os primeiros desenhos comuns, sobretudo com a
aquisição da linguagem.
Essa experiência veio confirmar o que se podia saber por outra via: a importância da
linguagem humana, cujo desenvolvimento - em dado momento em todo caso - parece
inseparável do da inteligência. Se o cérebro do antropóide é mais precoce, em relação
com um desenvolvimento físico e fisiológico mais rápido, atinge bastante rapidamente
um estado de estabili zação; enquanto a criança, que só atingirá pelos 20 anos sua
maturidade fisio lógica, prossegue de modo lento mas como indefinido seu
aperfeiçoamento cerebral.
Por este lado, pois, volta-se a encontrar uma especificidade qualitativa da inteligência
humana. E se pode ser útil, do ponto de vista metodológico, estudar a inteligência em
geral, sob o aspecto de maior complexidade segundo as espécies, não se poderia afastar
em princípio essa especificidade, sem a qual não haveria história nem cultura, e nem
também psicologia animal. A esse respeito, é interessante lembrar a evolução do
pensamento de F. J. J. Buytendijk, professor na Universidade de Utrecht, o qual tinha já
longa carreira de experimentador quando se orientou, por volta de 1938, para uma
perspectiva inteiramente diversa, em particular sob a influência da fenomeno logia, a
ponto de manifestar seu acordo com as concepções teóricas de Merleau-Ponty. A nova
convicção à qual devia convergir, ao refletir sobre toda a sua experiência adquirida, vem
juntar-se à da maioria dos filósofos desde Aristóteles no que diz respeito ao psiquismo
humano comparado com o
(1) A. C. KELLOG, Le singe e: l'enfant (trad. de lhe Ape and lhe Chi/dl, Paris, Stock,
1936.
psiquismo animal, uma vez que admite que o ponto de partida de todas as funções
mentais do homem reside na separação do sujeito e do objeto. Somente no homem o
ser-em-si se torna ser-para-si. Esta particularidade implica um "desprendimento" em
relação ao mundo ambiente, isto é, ao dado primitivo, que irá se transformar em
universo dotado de existência objetiva. Por aí mesmo aparece a possibilidade da
linguagem, da cultura e de uma conduta normativa('). Entre os macacos - tão próximos
aparentemente do homem - as representações se perdem depressa demais para que a
separa ção do sujeito e do objeto se efetue. Não se apartando do meio em que vivem,
são deste modo desprovidos de linguagem e de cultura.
Contudo, mesmo em relação a eles, as novas concepções de Buytendijk se afastam dos
preconceitos objetivistas dos que querem somente reconhecer a relação de causa e
efeito, ignorando comportamentos qualitativos cujo reconhecimento lhe parece impor-se
na própria psicologia animal; em com pensação, elas se harmonizam com as conclusões
tiradas por Kiihler e por Yerkes de suas próprias experiências.
Para Buytendijk, a "definição objetiva" que se pretendeu aplicar à psicologia animal, por
temor de cair no antropomorfismo, é um processo redutivo e grosseiro que restringe os
fenômenos ao que deles aparece num esquema preestabelecido. As relações causais dos
fenômenos vitais represen tam a seus olhos apenas uma das numerosas relações que
caracterizam os sucessos pelos quais se manifesta a vida. E a sucessão das situações que
forma um encadeamento cujo sentido e alcance importa investigar no próprio campo da
vida animal. Buytendijk considera que toda busca de leis, no domínio da psicologia
animal, é desprovida de sentido se limitada a uma descrição formal, abstração feita da
unidade global que preside aos sucessos obser vados.
Por isso ele chegou à convicção de que se deve confiar inteiramente - sobretudo ao
tratar-se de animais de grande estatura - à observação em estado de liberdade, em plena
natureza, estudo hoje singularmente facilitado pela foto grafia, principalmente pelo
cinema. Do animal só podemos conhecer seu com portamento, e não é possível dele falar
de maneira válida sem representar seus movimentos como atos dirigidos a um certo
meio, atual ou apenas virtual. E, pois, indispensável, para compreender as reações e as
atividades espontâneas do animal, considerá-lo como um sujeito.
Análoga exigência se.volta a encontrar com o fisiologista alemão Victor von
Weizsãcker, o qual define o animal como "uma atividade subjetiva vista do lado de
fora" (2); e a mesma exigência temos ainda com o biólogo e fisiolo gista Jacob von
Uexküll (1864-1944), cujas pesquisas têm todas como princípio que o mundo vivido
pelo animal não pode ser objetividade sem que esteja perdi da sua qualidade essencial,
isto é, justamente sua qualidade vital. Eis porque ele se afasta das pesquisas de
psicologia animal efetuadas com o auxílio de grande quantidade de mensurações e de
estatísticas e baseadas em relações artificial mente impostas com um objeto determinado,
um labirinto, por exemplo. Tal procedimento é a seus olhos enganador, já que o animal
mantém em seu mundo vital relações variáveis com os objetos, cada um deles podendo
(1) Traité depsychologie ani,nale, P.U.F. ( Logos), 1952.
(2) Der Ges Leipzig, 1943.
326
327
tornar-se "portador de significação"; e esta significação é o animal enquanto sujeito que
confere ao objeto( l)•
As experiências de J. von Uexküll visam assim a provar que, por ser a "realidade"
diversamente percebida pelas espécies animais, aquilo que se tende a considerar como
fundamental: órgãos sensoriais, reflexos, tactismos, é na realidade apenas a atualização
de uma atividade subjetiva que entra diferentemente em jogo. Ele pensa que o
incremento progressivo dessa ativi dade, desde a tonalidade individual da célula até a
"melodia" do órgão e à "sinfonia" do organismo, é irredutível a qualquer processo
mecânico, o qual implica a ação de um objeto sobre outro( e que, por conseqüência, o
modelo da composição musical é muito mais adequado: uma "composição natural" a
obrigar efetivamente a "partir sempre de um sujeito tomado em seu meio" para dele
estudar "as relações harmônicas com os objetos particu lares que se lhe apresentam como
portadores de significação( Na natureza, "nada é deixado ao acaso"; por toda a parte
"uma regra de significação muito íntima liga o animal a seu meio físico e os reúne num
duo em que as particu laridades dos dois "parceiros" compõem um contraponto(
Se o estudo do comportamento animal em suas condições naturais muito deve a Jacob
von Uexküll, é Konrad Lorenz, diretor do Institut für Vergleichende Verhaltensforschung
(Instituto para o Estudo Comparativo do Comportamento) da Sociedade Max Planck e
professor na Universidade de Munique, que é hoje considerado como o representante por
excelência da etologia, isto é, justamente do estudo dos animais em seu habitat natural.
Criador, naturalista, biólogo e psicólogo, vive em sua residência familiar de Altenberg, na
Alta Baviera, em contato permanente com os animais cuja conduta espontânea aplica-se
em estudar.
Sua preocupação essencial, condutora de suas pesquisas, é também a de compreender a
adaptação do animal ao meio; mas o recurso a uma espécie de harmonia preestabelecida,
à maneira de J. von Uexküll, não lhe parece válida cientificamente. Suas próprias
pesquisas foram em princípio empreendidas sem metodologia preconcebida:
"A ciência indutiva começa sempre por uma observação sem idéias preconce bidas de
casos particulares e avança a partir deles, por via de abstração, em direção às leis gerais
a que obedecem todos(
mas inserem-se finalmente numa teoria global que revolucionou a psicologia animal. De
modo geral, no plano da descrição, as análises muito minuciosas que faz desse
comportamento confirmam mais os pontos de vista empíricos, muito antigos, dos
criadores e dos habituados aos animais que os "decretos" dos experimentadores
mecanicistas. Pois Lorenz admite inteiramente uma espontaneidade animal. Admite-o,
porém, à sua maneira, em perspectiva
(1) Srreifziige durch die Un von Tieren and Menschen-Bedeutungslelzre; trad. francesa
por Philippe MülIer, Mondes animaux es monde humain. Théorie dela signification,
Paris, Edit. Gonthier, Bibliothèque Média' tions, 1965.
(2) Ibid., pág. 118.
(3) Ibid. pág. 119.
(4) Ibid., pág. 121.
(5) L 'agression. Une hjs(oire natureile da mal. Paris, Flammanin, 1969, pág. 8.
328
original, substituindo, a toda interpretação eivada de antropomoj-fismo uma análise
científica na qual a filogênese intervém como elemento essencial. Trata-se, com efeito,
para ele de apreender no comportamento animal estru turas irredutíveis aos processos de
aquisição individual, quer já no ovo quer in utero, resultando de seus trabalhos uma
transformação das noções de instinto, de inato, de adquirido, e até de condicionamento
Em relação ao instinto, por exemplo, mostra que esta noção cômoda (quer se trate de
"instinto de conservação" quer de "instinto de reprodução", etc.) não explica melhor as
orientações do comportamento que "força auto motora" o funcionamento de um veículo a
motor( 1)
Isso não significa, entretanto, que considere o recurso a uma "atividade instintiva" como
ilegítima; mas somente que este recurso, para ser cientifica mente válido, deve revelar ao
mesmo tempo uma conexão causal circunstan ciada( Suas pacientes pesquisas o
persuadiram, com efeito, de que a conduta dos animais é determinada por motivações que
se imbricam numa ordem muito variável, e que as "grandes" pulsões como a fome,
a sexuali dade, a fuga e a agressão podem até ceder o passo a instintos fiogenetica
mente mais jovens:
"Na cabra, por exemplo, as pulsões particulares que garantem a unidade contí nua do
rebanho.., dominam o indivíduo a ponto de eclipsar às vezes todas as outras pulsões. O
carneiro de Panurge ficou legendário! Um ganso cinzento que perde o grupo faz o
impossível para reencontrá-lo, O impulso que o impele para o bando pode até dominar
seu instinto de fuga(
Pôde igualmente constatar que as motivações que se prendem à hierarquia social podem
representar um papel decisivo, e neste ponto rende homenagem aos colaboradores de
Yerkes que o descobriram em seus chim panzés:
"A equipe de Yerkes isolou um qualquer dos membros de um grupo desses macacos e
ensinou-lhe, só a ele, a conseguir bananas pela manipulação de um meca nismo assaz
complicado de um aparelho construído com esse fim. Quando esse macaco, com o
aparelho, foi reposto no grupo, os chimpanzés de ordem superior bem que tentaram
roubar-lhe as bananas ganhas com o trabalho, mas nenhum teve a idéia de observar este
ser desprezado para dele aprender algo. Em seguida, ensinou-se do mesmo modo ao
chimpanzé-chefe a servir-se do aparelho. Devolvido a seu grupo, os outros o observaram
com muito interesse e trataram logo de imitá-lo(4)."
Ora, se as motivaçõe localizáveis no comportamento animal são múlti plas e enredadas,
como ir além do nível da simples descrição para explicá-las cientificamente? Esta
questão reconduz à importância atribuída por Lorenz à adaptação filogenética; aspecto
pelo qual o inato reaparece em sua teoria, pelo fato de que a presença de estruturas
psíquicas hereditárias no comporta mento exclui em princípio sua interpretação pela só
reflexologia(
(1) L agressivo.. op. ei;., pág. 9; lambém Ueher den Begriff der Instiok (Leida, 1937) e
Inda/roce and teleologisc/ie Psyc/iologie ("Naturwiss,", XXX, 1942).
(2) Com essa exigência, sua obra diverge da de Jacob von UEXKÜLL, para quem a
significação é "o fio diretor pelo qual a biologia deve guiar-se" (Mondes animaux eI
monde humain, op. eis., pág. 106).
(3) L'agression,,,, op. ci;., pág. 116.
(4) L 'agression..., op. ci pág. 56.
(5) Essais sur le comportrment animal, Paris, Edit. du Seuil, 1970, pág 409.
329
Lorenz admite perfeitamente que o embrião possa adquirir alguns conhecimentos
relacionados com o meio natural, mas considera certo que outros conhecimentos têm
origem diferente:
"Acreditar, por exemplo, que o pintainho possa aprender a bicar o alimento porque sua
cabeça, antes de sair da casca, é sacudida passivamente pelas batidas do coração, supõe
a existência de um mecanismo muito especial de ensino, filogenetica mente programado,
ou então a crença numa harmonia preestabelecida (1)."
E como rejeita a hipótese dessa "harmonia preestabelecida", invocada por Jacob von
Uexküll, é do lado desse "mecanismo muito especial de ensino, filogeneticamente
programado" que ele se orienta, ao considerar como "inata" a informação que subtende
a adaptação, e que é manifestada pelo funcionamento de certa estrutura nervosa( Por
conseqüência, como todas as cadeias causais do desenvolvimento começam por essa
informação heredi tária contida nos genes e no plasma do ovo, é preciso admitir que a
ontogênese de um organismo e de seu comportamento formula em primeiro lugar a
questão de saber o que está impresso no genômio, e que em seguida somente se tentará
distinguir os elos causais que produzem, a partir das impressões presentes no genômio,
uma estrutura adaptada e prestes a funcionar(
Equivale a dizer que o comportamento filogeneticamente fixado, com permitir a uma
espécie adaptar-se e sobreviver, tem uma "função de ensino". Lorenz está convencido de
que o desconhecimento dos problemas ligados à função de sobrevivência, e à origem
filogenética do comportamento em geral
- desconhecimento devido a um excesso de confiança no aparelhamento experimental
artificial - muito prejudicou a psicologia animal( Várias manifestações do
comportamento animal o convenceram de que existem estruturas que devem sua
adaptação específica a uma informação adquirida no decurso da evolução da espécie e
estocada nos genes; mostra-o, por exemplo, o mecanismo que desencadeia a luta do
esgana contra o rival, ou a da perna ao grugulejar do filhote.
No processo de interação entre o organismo e o meio, é a espécie que produz, por
intermédio da mutação e da seleção, a adaptação que permite a sobrevivência. Todas as
estruturas e funções complexas dos cromossomos, aí compreendidas a mutação e a
reprodução sexual, são um mecanismo criado a serviço da função consistente em
adquirir e pôr de reserva informações sobre o meio. Lorenz julga que tal processo é
análogo ao de uma indução, na medida em que as informações assim adquiridas são
"memorizadas" pelos genes, com razão chamados por certos geneticistas "fonte de
informações codificadas" (5)
(1) Éi'oluzion e, modsJ de romportenserzl. Lin,,éetI'acquis. Paris, Bibliothêque
Scieniifique Payot, 1967. pág. 137.
(2) Ibid., pág. 56.
(3) Ibid., pág. 59.
(4) Ibid., pág. 137,
(*) Épinoche. no original. O esgana-gata (Gastemsteas aculeatus) é um pequeno peixe
de 5 a 8 cm que possui 2 a 4 espinhas dorsais, uma em lugar das nadadeiras ventrais e
outra recurva na região da nadadeira anal. Nos flancos, em vez de escamas, é provido de
um número variável de placas ósseas que, às vezes, se reduzem ao mínimo e mesmo
chegam a faltar. A espécie que se adaptou à água doce não habita rios de montanha e,
embora se encontre nos grandes rios tranqüilos da planície, prefere os pequenos e
ervosos, os charcos e os lagos. A espécie marinha, também chamada de esgana-gata-de-
três-espinhas, sobe em cardumes pelos rios, na época da primavera; em águas pouco
profundas o macho constrói o seu ninho-túnel, diante do qual, com a aproximação das
fêmeas, dá início a uma curiosa dança nupcial. (A. O. A.)
(5) !bid., pág. 16.
Lorenz estudou séries de espécies vizinhas para estabelecer etogramas:
inventários dos tipos de comportamento próprios a uma espécie, com a descrição por
imagem, dia após dia, hora após hora, de todas as fases de um comportamento. Esse
procedimento mostra que os gestos de uma gansa cinzenta para repor um ovo no ninho
se distribuem em várias seqüências:
tensão do pescoço em direção ao ovo, com tremor, mesmo se se tratar de um falso ovo;
tomada do objeto com gestos estereotipados, suscetíveis até de serem executados no
vazio, uma vez desencadeados; em compensação, a estabilização do ovo entre o pescoço
e o bico está estreitamente ligada às condições do momento. Lorenz pôde igualmente
registrar movimentos "no vazio" entre os estorninhos cativos, que se aplicavam a capturar
uma mosca inexistente; tudo se passa como se o pássaro provasse uma
necessidade tal desses movimentos a ponto de surgirem como o próprio alvo de sua
atividade.
Esforçando-se por extrair, com pesquisas infinitamente pacientes e minuciosas, as
estruturas de comportamentos provenientes de muito longa hereditariedade, Lorenz
pretende, pois, provar uma aquisição realizada por estruturas orgânicas criadas no
decurso da evolução da espécie, sob a pressão seletiva da necessidade de sobreviver( l)
Eis porque considera ilegítimo opor adquirido e inato, uma vez que toda aquisição
individual implica, para ser possível, a presença de uma estrutura inata(
Assim é que, na corte nupcial do esgana-gata, por exemplo, intervém um impulso
interno que impele o macho a buscar com cuidado um território adaptado; e uma vez
escolhido este, um impulso à reprodução o incita a expulsar os outros machos, a fazer
um ninho e a acolher a fêmea; e cada um de seus atos é determinado por uma atitude
correspondente da fêmea e vice- versa: dança em ziguezague, tremor, fertilização,
outros tantos movimentos instintivos e estereotipados. Na luta entre os machos, uma
série de vaivéns é seguida por um combate severo no limite dos territórios, e a vantagem
cabe àquele que está mais próximo do ninho. Pelo fato de o macho reagir esponta
neamente a um objeto vermelho, por baixo, executando os movimentos muit o particulares
que lhe servem para combater um rival, é lícito inferir que ele - "sabe" que este rival
possui o ventre vermelho e admitir assim a existência de mecanismos de comportamento
adaptados mas independentes da aquisição individual. E o que prova, em suma, a conduta
do cão novo que, sem nenhuma experiência prévia, é capaz de executar toda uma série
concatenada de ações necessárias para enterrar um osso(
No mundo dos pássaros, igualmente, o processo fiogenético na base de um
comportamento encerra uma "ciência" que, sem aprendizado, excede até em
complexidade o que se pode obter hoje de um computador. Um jovem andorinhão(*),
por exemplo, criado numa estreita cavidade onde não pode bater as asas nem mesmo
estendê-las, é capaz, a partir do momento em que se
(1) Éi et modification da comporre op. ei,., pág. 30
(2) Ibid.. pág. 60.
(3) Ibid., págs. 47, 113.
(*) Jeune martinet. no original. Nos orifícos de paredes ou rochas, os andorinhões fazem
seus ninhos de penas, palhas e restos orgánicos, cimentando-os com saliva. E proverbial a
velocidade destas aves e são grandes migradoras as espécies própnas dos climas
temperados. Durante muito tempo despertou intensa curiosidade saber como dormiriam
os jovens andorirthôes e os desprovidos de ninho. Experiências realizadas com a ajuda do
radar mostraram que ao crepúsculo as aves se elevavam a 1.500 ou 2.000 me só desciam
com o amanhecer. Na França são mais conhecidos o andonnhão-preto (Apus apus),
comum durante o verão, e o andorinhão-de.ventre-brc.nco ou alpino (Apus
,ndba). Ambos hibernam na Africa. (A. O.A.)
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331
acha livre da prisão, de calcular as distâncias e de resolver, apesar da veloci dade de seu
vôo, todos os problemas apresentados pela resistência do ar, pelas correntes ascendentes,
pela turbulência e pelas depressões das correntes descendentes; de
"reconhecer" e de agarrar as presas; de pousar com precisão em dado local (1).
Em poucas palavras, Lorenz considera indubitável que a adaptação do comportamento é
influenciada por dois mecanismos independentes:
1?) O processo filogenético, causador de um comportamento ligado a certa organização
estrutural e funcional.
2?) Os processos de modificação do comportamento por adaptação no decurso da vida
do indivíduo.
É sob a pressão seletiva da necessidade de sobreviver que a aquisição é realizada por
estruturas orgânicas criadas durante a evolução da espécie, com os informes
filogeneticamente admitidos a indicar ao organismo qual das conseqüências de seu
comportamento deve ser obtida de modo repetido, e quais devem ser evitadas para
sobreviver. Estes informes se localizam sobre tudo nas organizações perceptivas que
reagem seletivamente a certas configu rações externas e/ou internas de estímulos, de
modo a serem transmitidos, modificados pelo sinal mais ou pelo sinal menos, aos
mecanismos da aquisi ção( Isso significa que a "função vital" da própria aquisição se
manifesta no "fato pasmoso" de tender em geral a modificar os mecanismos do compor
tamento no sentido da sobrevivência.
Por exemplo, entre muitos animais selvagens onívoros, um mecanismo lhes faz preferir
os alimentos que contêm um mínimo de fibras e um máximo de açúcar, de lipídios e de
amido; e, nas condições "normais" da vida selva gem, é evidente que esse mecanismo
desencadeador filogeneticamente adaptado é útil à sobrevivência( Ora, cada vez que o
animal realiza um ato "consumatório", produz-se uma reaferência, isto é, um efeito de
retroação favorável ao aperfeiçoamento desse ato. Um dos mecanismos dessa progressão
se encontra no fato de que todo alivio de uma tensão reforça aquilo que a precedera.
Deste modo, o "mecanismo de reforço das perfeições" produz no homem essas
atividades praticadas pelo prazer que elas lhe dão (esqui, dança, etc.).
"Se recusamos considerar a introspecção como fonte legítima de conhecimento, podemos,
em todo caso, afirmar objetivamente que nossos amigos, ao se dedicarem aos esportes
mencionados, recebem indubitavelmente um reforço no seu comporta mento( Mas o que
permite um progresso, pode permitir também uma regres são. Acontece que esse
mecanismo no homem civilizado produz uma procura de bens excessiva em relação à
normal, e comprometedora da saúde, como o
(1 Ecolulion ei ,nodification du comporiemeni, op. co. pág. 38.
(2) Ibid., págs. 26-27.
(3) Ibid.. pág. 27.
(4) Ibid.. pág.99.
desafogo através do álcool e dos estupefacientes que pode conduzir à into xicação. -
Parece que certos ratos são mais prudentes nesse caso, pois se mostra ram capazes
(experiência de Richter em 1954, lembrada por Lorenz) de refazer por síntese seu
regime desequilibrado por alimentos dos quais foram separados os componentes:
"Mesmo quando eram assim apresentados à parte os aminoácidos das proteínas
necessárias, os ratos tomavam exatamente a porcentagem correta de cada constituinte;
provaram-no as pesagens feitas após a experiência. Fez-se que animais se submetessem
a ablação do córtex adrenal, operação que desequilibra o metabolismo do sal. Ora, eles
souberam compensar o desequilibrio com aumentar, em proporções correspondentes, o
seu consumo de CINa( 1)."
As investigações de Lorenz não só deram evidência ao papel das estru turas aparecidas
de modo filogenético; revelaram também a importância de um fenômeno que alguns,
antes dele, conheceram, mas sem tê-lo estudado como o fez: é o da impressão ou
impregnação (Prãgung), no sentido do que a psicanálise ensina no nível humano quanto
à influência das primeiras impres sões recebidas na vida infantil. Em certas espécies
animais, com efeito, o primeiro ser vivo que aparece respondendo aproximativamente a
certo número de "solicitações" instintivas, passa por um registro e fixa o instinto de
maneira considerada como irreversível por Lorenz. A impressão não poderia ser
confundida com o simples estím na medida em que ela fornece ao orga nismo um
"operador de satisfações" que não tem somente valor de sinal substituído, acidental e
contingente, mas que canaliza o dinamismo do instinto. Assim, uma gralha criada por
Lorenz, identi ficava-se com ele, a ponto de imitá-lo quando ia a pé; assim também um
ganso cinzento, nascido na chocadeira artificial, seguia-a como seguiria a mãe se a
chocadeira, munida de aparelho adequado, respondesse por um ruído a seu "grasnido de
abandono".
O caso de Martina, a gansinha cinzenta de Lorenz, a qual, logo após nascer,
contemplava imóvel o criador, a quem ela se ligou a ponto de não mais se comportar
como gansa normal, ficou famoso nos anais da psicologia animal:
"A cabeça inclinada, levantava para mim um grande olho escuro, um único, pois como a
maioria das aves, o ganso cinzento fixa apenas com um olho o que quer com precisão. E
como eu fizesse um gesto acompanhado de uma palavra breve, saiu de sua atitude de
expectativa, e essa vida minúscula me saudou: o pescoço entesado e a nuca aprumada, ela
fez ouvir, muito rápido e em várias sílabas, esse som que, nos animais novinhos, parece
um cochicho leve e cheio de ardor. Ela saudava exatamente, muito exatamente, como um
ganso cinzento adulto e como ela o faria ainda milhares de vezes durante sua existência.
Já saudava, porém, como se fosse pela milésima vez(
(1) Op. cii., pág. 24.
(*) Chouca. no original. (Dicionarizado choucus.) A gralha-de-nuca-cinzenta (Co,-eus
,nonedula) é um corvídeo da Europa e da Asia. Com a contínua eliminação de predadores
(falcões.peregrinos, águias-reais, açores, gaviões, etc.), seus inimigos naturais, o forte
instinto gregário destas aves, aliado à capacidade de alimentarem-se dos vegetais
cultivados pelo homem, conduziu-as a uma expansão incontrolada, com sérios danos para
a agricultura. Entretanto, rigidamente hierarquizadas, cooperadoras contra os inimigos
comuns, e monógamas, seu elevado comportamento social atraiu, há muito, a atenção dos
homens de ciência. (A. O. A.)
(2) Ilparlaif avec les mamm:fères, les oiseaux ei les poissons. Paris, Flammarion, 1968.
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O filhote de ganso, pregado às pessoas, recusa obstinadamente seguir um ganso em
lugar de um homem, mas não fará diferença alguma entre a jovem, pequena e delicada,
e um corpulento ancião barbudo( 1),
Uma vez fixado seu instinto num ser humano, o gansinho não sente mais nenhum
conforto junto a seus congêneres adultos; por isso Lorenz devia aquietar as aflições de
Martina, assumindo para ela as funções da Mamãe Gansa na fâbula(
Lorenz assegura que os gansinhos lhe permaneciam fiéis, mesmo após terem começado a
voar. Mas ele devia então imitar aproximadamente a aterrissagem de um ganso, isto é,
correr e cair com os braços estendidos, para que os próprios gansos aterrissassem bem
perto dele. Tudo se passa como se a impressão se produzisse sobre um fundo de t emas
gerais inatos e esperados. Os patinhos, por exemplo, depois da impressão, seguem o
experimentador se este avança de cócoras, mas ficam como perdidos se ele se conserva
de pé.
O fenômeno se apresenta, aliás, de maneira muito diferente segundo as espécies. Por
exemplo, uma pequena gralha habituada a dirigir-se a um homem, como se fosse pai ou
mãe, para servir-se de alimento, abandoná-lo-á para associar-se a outros pássaros
(gralhas ou corvos) em suas atividades de rapina. Inversamente, malgrado a associação
com outras gralhas a primeira impressão pode reafirmar-se na maturidade sexual e ela
voltará então às boas graças com os seres humanos, livre de interessar-se novamente
pelas novas gralhas-de-nuca- cinzenta quando lhe despertar o instinto parental.
Por outro lado, certificou-se que entre os pássaros os nidífugos, muito mais maduros ao
nascer que os nidícolas, eram refratários à impressão; atestam-no as galinholas(*)e as
tarambolas (**), as quais se afastam dos seres estranhos à sua espécie. E, pois, manifesto
que seu comportamento não responde a uma espera temática ainda muito geral, mas a
um esquema já diferenciado.
Um resumo pode apenas dar uma fraca idéia da obra de Lorenz, de extensão e variedade
excepcionais. Isso, porém, não significa que ela seja exaustiva no domínio da psicologia
animal, no qual podem manifestar-se outras exigências menos orientadas para a biologia.
Decerto a espontaneidade do instinto se acha plenamente reconhecida
por ele no aspecto do "comportamento apetitivo" (Appetenzverhaltefl), e ele
faz questão de distanciar-se dos "maníacos da terminologia objetiva" (3). Não
é menos certo que sua insistência na necessidade dos movimentos instintivos, e
na coerção exercida pela acumulação do impulso que força o animal a
(1) Ézohition ei ,nodificatio'i da com portement. isp. cii., pág. 77.
(2) Estranho diálogo este, na verdade, que conseguiu manter com a gansinha.
companheira na noite. "Vtvivivivi?" (a traduzir: "Eu estou aqui, onde está você?") Ao
que Loreive respondia. "Gangangaflg" (eqorsateria a "Eu estou aqui ") E a gausinha.
tranqüilizada, concluía com um "Virrrrr" (seriao mesmo que 'Eu durmo, boa' noite...")
(*) Bécasse. no original. A galinhola (Scolopux rusticola) vive nas regiões temperadas
do norte do conto nente europeu e hiberna nas partes meridionais da Europa Ocidental,
no norte da Africa, na India, etc. Na época da passagem, primavera e outono, ela é
muito comum na França, onde nidifica. (A. O. A.)
(**) P!airies's. no original. Da família dos Cas'adríídeos, as tarambolas têm distnbuiçõo
cosmopolita. Contudo, são migradoras as espécies das regiões frias. A pildra-dourada
(Chas'adi'ius apricarius) e a prata (Citara driun squataeo/a). outras designações da
tarambola, sõo uses de passagem na França. (A. O. A.)
(3) Éco!utiu,i ei mod du co,,iporteme op. cii., pág. 85.
exec esses movimentos, se necessário por uma conduta de substituição, apouca
singularmente o momento subjetivo como tal. Por isso é normal que outros
pesquisadores vejam as coisas com preocupações diferentes. Pois, a diversidade dos
mundos vividos pelos animais, em função de sua estrutura particular e de seu interesse
momentâneo, complica singularmente os dados. Édouard Claparède, por imbuido que
fosse de experimentação, havia perf ei tamente visto a dificuldade:
"O universo do cão deve ser essencialmente olfativo, mas como imaginá-lo? Tanto mais
que não são apenas as impressões sensoriais, mas ainda, e sobretudo, talvez, os
interesses, as necessidades, as tendências, que desenham as linhas de cada universo. Pois,
o mundo exterior não se reflete no espírito como num espelho; um objeto só existe para
um ser na medida em que tem importância para ele,
Esta diversidade de universos impermeáveis uns aos outros cria evidentemente, para
quem quer efetuar experiências sobre a inteligência dos animais, grandes dificul dades,
o expõe a graves erros de interpretação e o obriga a constantes precauções. Com efeito,
não é provável que o problema que formulamos para o animal, este o perceberá como
nós próprios o percebemos. As percepções de um animal estão atribuído valores
funcionais que não são os que nós próprios a elas atribuimos(l
Para que haja unanimidade em matéria de psicologia animal, seria mister que fosse
dirimido todo desacordo não somente sobre os métodos, mas também entre os biólogos e
os psicólogos, o que não sucede. Vimos que a tarefa essencial para Lorenz, que
interpreta biologicamente o instinto, é distinguir no comportamento animal
"coordenações hereditárias" (Erb koordinationen), isto é, movimentos inatos,
estereotipados, característicos de uma espécie. Inversamente, J. A. Bierens de Haan, de
Amsterdã, cuidoso de estudar o instinto psicologicamente, interessa-se muito mais pelo
elemento subjetivo no comportamento animal. A maneira de Jacob von LJexküll, insist e
sobre a diversidade dos universos próprios aos diferentes animais:
"Para o arborícola, o terrícola, o aerícola, um mesmo objeto pode ter um valor todo
diferente. A árvore, por exemplo, que se torna para o primeiro um lugar de refúgio em
caso de perigo, é para o segundo somente um obstáculo no momento da fuga, faz-se
para o terceiro um lugar de repouso; enquanto que um sítio descoberto na floresta, que
parece ao arborícola uma fronteira mais ou menos intransponível, facilita a circulação
ao habitante da terra e o protege contra o perigo que o ameaça em plen mata(
Com base em suas próprias experiências, principalmente com macacos inferiores e
racuns, Bierens de Haan acabou concluindo que a medida da inteligência não denuncia
uma correlação absoluta com o lugar reservado a um animal no sistema zoológico. Foi-
lhe dado constatar, por exemplo, que um macaco inferior (Cebus hypoleucus) mostrava-
se mais engenhoso na arrumação de caixas para empilhar e nelas subir em seguida do que
um gorila ou um orangotango de Yerkes, e mesmo que alguns chimpanzés de Kcihler (3).
Coube-lhe constatar também que as proezas de um racum eclipsavam as de um
chimpanzé quando se tratava de afastar um obstáculo para atingir um
(1) Le myni animal (disersos colaboradores), "Présences", Paris, PIou, 1939, pág. 168.
(2) JourisiddePnychologie XXXlVeannée, 1937, pág.354.
(3) Op. cii., pág. 375.
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alimento. Enfim, acabou chegando à convicção de que animais inferiores no sistema
zoológico podem atestar uma mais alta compreensão concreta que certos macacos
antropóides. Suas experiências, aliás, trazem à luz variações individuais que têm sua
importância. Como o observou, justamente, Edouard Claparède, tem-se a tendência de
falar do rato, do cão, do chimpanzé, como se os animais de uma mesma espécie não
apresentassem entre eles senão mínimas diferenças no tocante à inteligência; ora:
"Inteiramente como entre os homens, existe entre eles indivíduos de talento, e até de
gênio. E preciso lembrar-se disso e abster-se cuidadosamente de julgar da inteli gência
de uma espécie pela de um único indivíduo (1)."
5. A psicologia genética
Jean Piaget, co-diretor do Institut des Sciences de l'Éducation de Genebra, que se impôs
por suas pesquisas de psicologia genética e cujos trabalhos nesse domínio se tornaram
clássicos, critica a Gestalttheorie por abusar das estruturas perceptivas prontas e
acabadas. Em sua opinião, a existência dos todos ou das estruturas de conjunto
constitui, em si mesma, um fato por explicar; e só a análise de um processo assimilador,
ordenado na duração de uma história individual, pode esclarecer o dinamismo da inteli
gência. Sua obra ilustra a escola psicológica de Genebra, essa cidade onde Théodore
Flournoy e Edouard Claparède tinham trazido importante contri buição à psicok
científica. Ela deve muito a Claparêde, que (conforme já tivemos ocasião de lembrar)
consagrara a maior parte de sua atividade à psicologia da criança, encarada segundo uma
concepção "funcional" que ele se esforçava por exprimir em leis. Piaget revela, porém,
originalidade e rigor que fazem de sua obra a mais representativa da psicologia genética.
Só lhe podem ser comparados, nesse domínio, os trabalhos de Henri Walion. Essa obra é
consagrada essencialmente ao estudo paciente e sistemático da evolução mental da
criança: formação do juízo e do raciocínio, da noção de causalidade física, do juízo
moral, das noções de número, quantidade, tempo, movimento, velocidade, espaço,
acaso, etc., e comporta, assim sendo, inigua lável riqueza de experiências e de
observações.
Na introdução a seu livro La représentation du monde chez l'enfant (1926) observa
Piaget que os testes, úteis na determinação de um diagnóstico individual, se mostram
insuficientes para a tarefa que se propõe. Ele próprio imaginou cerca de cinqüenta testes,
para estudar principalmente, na criança, as noções de distância, de tamanho, de peso, de
volume, de representação em duas ou três dimensões, etc. Integra-os, porém, num
"exame clínico", que permite o controle das hipóteses no decorrer de conversações
orientadas por engenhosos métodos de interrogação; depois reún as respostas em est que
caracterizam, em idades determinadas, a pa. para uma forma mais evolvida de raciocínio.
Foi assim levado a distinguir seis estádios na evolução da criança, desde os primeiros
movimentos instintivos de mamada até a interiorização da inteligência
"sensorimotora" sob a forma de combinações mentais. A descrição desses estádios
constitui um estudo genético dos vários
(1) Le ,,,ystêre ani,,,aL.., op. cii. pág. 171.
níveis de equilíbrio do comportamento da criança, desde o nascimento até o
aparecimento da linguagem, numa idade que varia de 18 a 24 meses( 1) Esse primeiro
período é aquele em que se adquirem as subestruturas indispensáveis à aquisição das
estruturas lógicas da inteligência.
A criança parte de reações "sensorimotoras", de esquemas já montados pela
hereditariedade, que se organizarão e se adaptarão graças a uma assimi lação progressiva
e desde logo ativa. Pois, os esquemas de sucção, por exemplo, se exercem desde os
primeiros dias, na ausência ou na presença de qualquer objetos e mostram já essas
repetições e generalizações que definem a assimilação no sentido dado por Piaget. Lá
pelo quarto ou quinto mês, observa-se um tipo de coordenação particularmente
importante, por "assimi lação recíproca": a dos esquemas visuais e motores, quando a
mão tende a conservar e repetir os movimentos observados com os olhos e os olhos a
olhar aquilo que é feito pela mão.
O bebê de 5 ou 6 meses começa a pegar os objetos que vê, mas não tem ainda a noção
de sua permanência. Se se lhe puser um pano sobre o rosto, saberá tirá-lo; mas se o pano
for utilizado em sua presença para dissimular um objeto, para o bebê esse objeto
desapareceu. Isso porque seu mundo exterior é composto de uma sucessão de quadros
instáveis, ligados a espaços heterogêneos entre si: bucal (do qual Freud mostrou toda a
importância( táctil, visual, auditivo; espaços que se acham centrados no corpo da
pessoa, mas sem coordenação. A noção de permanência do objeto, que leva meses para
construir-se, supõe a localização do objeto, e esta a organização do espaço geral, com
relações tais como em cima-embaixo, alto-baixo, etc. Já existe, pois, toda uma
construção no ato inteligente do bebê que levanta um objeto para descobrir outro que se
escondeu em sua présença. São necessários cerca de 18 meses para que se opere essa
reviravolta de perspectiva, verda deira "revolução copernicana": a construção de um
espaço geral que englobe os primeiros espaços particulares, com objetos doravante
sólidos e permanen tes, e dentro do qual o próprio corpo da pessoa se tenha tornado um
objeto entre os demais.
Esse período, que precede a linguagem, manifesta, pois, uma forma de inteligência,
desprovida, porém, de pensamento, que Piaget chama de senso rimotora. O pensamento,
segundo ele, é adquirido apenas através de uma sucessão de estádios que resultam em
outras tantas formas de equilíbrio. Estádio da criança que mama, inicialmente, da qual
falamos, que resulta no equilibrio sensorimotor (prática dos desvios, reversibilidade dos
deslocamen tos no espaço) e no início da interiorização dos esquemas. Sucede-lhe outra
etapa, denominada pré -operatória por Piaget. Ela tem início por volta de um ano e meio
mais ou menos, com a linguagem, para ir até os 7 ou 8 anos. Aí aparece a função
simbólica, manifestada principalmente pelo jogo que pode chegar a ser, de simples
exercício motor até então, a representação de uma coisa por outra (a boneca, por
exemplo, que representa uma pessoa); função simbólica, ainda, manifestada pelo gesto
ou na forma da imitação interiori
(1) Cl. La na,ssance de linze11 chez 1enfanz, 1936; La constrxction du réel chez
/'enfan:. 1937 (Delachaux eI Niesflé).
(2) A respeito do que chama de fase oral, FREUD considera que os primeiros meses da
vida se carac terizam por um auto-erotismo difuso, onentado para o prazer da sucç que é
exercida, fora do seio ou da mama deira, em outros objetos que o recém-nado tende a
sugar e a morder.
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zada (imagem mental). Em poucas palavras, este período é 0cm que a criança reaprende
no plano do pensamento o que aprendeu no da ação, isto é, aquele no qual se
interiorizam os resultados até então simplesmente "agidos". Não se está, pois, em
presença de uma simples tradução, mas de uma reestruturação. A criança se torna capaz
de coordenar seus deslocamentos num sistema total; pode voltar a um ponto de partida
(reversibilidade dos deslocamentos), ou fazer desvios para chegar a um mesmo ponto por
caminhos diferentes. E preciso, porém, esperar até cerca de 7 ou 8 anos para que ela
possa represen tar-se estes deslocamentos. No puro plano da inteligência, é a idade em
que a criança adquire a noção de conservação da matéria. Antes, colocado em presença
de duas bolazinhas, idênticas, de massa para modelar, e solicitada a transformar uma
delas em salsicha ou em bolo, julgará que há mais massa na bolazinha transformada. Será
ao redor dos 8 anos somente que estará apta para compreender que a quantidade é
forçosamente a mesma, já que nada se acrescentou nem se tirou da bolazinha. Continuará,
porém, a julgar que esta, ampliada em salsicha ou em bolo, tornou-se mais pesada;
apenas com cerca de 10 anos é que obterá a noção da conservação do peso, no decurso
de uma etapa caracterizada pelas "operações concretas" (de 7 a 12 anos mais ou menos).
Essa etapa revela uma lógica que ainda não visa os enunciados verbais, mas unicamente
objetos manipuláveis: lógica das classes (a criança pode reter os objetos em conjunto ou
classificados), lógica das relações (que lhe permite combinar os objetos), lógica dos
números (pode enumerar materialmente os objetos, manipulando-os). Ainda não se trata,
porém, de lógica das proposições, adquirida apenas ao redor dos 12 anos. Antes, segundo
Piaget, a criança é incapaz de resolver um problema como este: Edite é mais clara que
Susana; Edite mais morena que Lily; qual das três é mais morena? pois este problema
torna necessária uma seriação verbal, o que é algo inteiramente diverso
de uma "operação concreta". Instala-se uma nova lógica
- a do adulto - lógica essencialmente do discurso. Desde os 12-15 anos o ser humano se
torna capaz de manipular hipóteses, de raciocinar colocando-se no ponto de vista de
outrem, sem aderir às proposições sobre as quais este racio cina; capaz de manipular
enunciados verbais, proposicionais, de maneira "hipotético-dedutiva". Tal capacidade
completa-se aos 14-15 anos. A partir de então é possível uma "combinatória", própria a
unir um elemento qual quer a qualquer outro.
Em suma, o desenvolvimento mental da criança segue uma ordem de su cessão que se
voltaria a encontrar em toda a parte, uma vez que a construção de uma nova noção
supõe subestruturas anteriormente adquiridas. Se o meio social pode acelerar o
processo, jamais poderia, afirma Piaget, inverter essa ordem, de tal sorte que a criança,
por exemplo, descobrisse a conservação do volume sem ter achado a do peso, ou esta
última sem ter adquirido a noção de substância.
"A criança começa... por esta forma vazia que é a substância, mas começa por lá porque
sem isso não haveria conservação do peso. Quanto à conservação do volume, trata-se de
um volume físico e não geométrico, pois comporta a incompressibilidade e a
indeformabilidade do corpo, o que, na lógica da criança, incluirá necessariamente a
resistência, a massa, e, por conseqüência, o peso, já que a criança não distingue o peso e
a massa(')."
(1) Le lempa ei le déve/oppernent inie/ectuel de I'enfent. conferência nas xvIIes
Rencontres Inierna tionales de Genebra. (La cie ei le lempa, Editions de Ia Baconniêre,
1962, pág. 42.)
O aprendizado no sentido do learning americano também não poderia mudar nada na
necessidade e na ordem do processo de aquisição e de matura ção; não pode obter da
criança outra coisa do que fazê-la gaguejar um resultado incompreendido.
A atividade sensorimotora, organizadora de esquemas e que, para Piaget, constitui a
própria matéria da inteligência, determina a construção do real. Entende Piaget que o
esquema (o que é generalizável em situações análogas) não é um sistema de
associações, mas um verdadeiro "conceito motor", que se aplica e se generaliza por
"assimilações e acomodações combinadas", O reflexo condicionado ou a associação não
seriam, assim, senão aspectos isolados arbitrariamente da totalidade do ato constituído
pelo esquema assimilador:
"Sem a assimilação, fonte dos esquemas totais, a associação não se formaria nem se
manteria: a assimilação está para os reflexos condicionados, no plano motor, como o
juízo está para a associação de idéias, no pensamento reflexivo, isto é, é a própria
atividade construtora em relação a seus resultados automatizados(l)."
A maturação fisiológica do sistema nervoso é condição necessária, não, porém,
suficiente, do desenvolvimento psíquico; não é condição suficiente porque a coordenação
dos esquemas implica uma atividade variável de uma criança para outra. E necessário um
exercício, no decorrer do qual a experiên cia e o controle, inerentes à própria inteligência,
permitam a acomodação progressiva dos esquemas ao real.
Os experimentos de Piaget (com vasos, contas, fichas de duas cores, etc.) lhe provaram
que o pensamento infantil é essencialmente intuitivo e conduz a resultados irracionais, na
ausência de um princípio diretor perma nente, de aquisição relativamente tardia. Admjte
essas grandes etapas, com seus estádios particulares, como processos sucessivos de
equilíbrio. Desde que o equilíbrio seja atingido em determinado ponto, a estrutura é
integrada num novo sistema em formação( As estruturas de cada idade variam, pois, em
seu conteúdo, por um raio de ação cada vez mais amplo no espaço e no tempo; mas seu
acabamento se define sempre em termos de mobilidade e de reversi bilidade. A "marcha
para o equilíbrio" significa que o desenvolvimento intelectual se caracteriza por uma
reversibilidade crescente, a qual, para Piaget, é "o caráter mais aparente do ato de
inteligência, capaz de desvios e de voltas". Essa reversibilidade aumenta regularmente,
degrau por degrau, no decorrer dos diferentes estádios:
- essa reversibilidade é precisamente q critério de pensamento racional, tanto em lógica
como em matemática. Pode-se, pois, concluir que, se a razão procede genetica mente
dos processos assimiladores e acomodadores que têm raiz nos mecanismos biológicos,
consegue, entretanto, venèer a corrente de irreversibiidade, característica, a um tempo,
do organismo e do universo físico que lhe serve de meio, para constituir um sistema de
operações reversíveis, aptas à compreensão do universo e de si mesma(
(1) Lepmblème de /' ei de l'habiiude reflexe condiiionn "Gesiali"ou assimilalion,
Comuni caç5o ao XI Congresso Internacional de Psicologia, Paris, 1937.
(2) Le problème des siade.s en psychologie de l'enfani, P.U.F., Bibliothèque scientifique
Internationale. Paris, 1956, pág. 41.
(3) Leproblême de I'inielligence ei de l'kabiiude..., op. cii.
338
339
Piaget foi criticado por cair no intelectualismo, isolar artificialmente a inteligência,
deixando de reconhecer-lhe as íntimas relações com a afetivi dade. Pôde responder,
facilmente, que não pretendera negar a função, acele radora ou perturbadora, da
afetividade na vida intelectual; mas que, se um bloqueio afetivo pode impedir,
temporariamente, um aluno de compreender ou reter, por exemplo, as regras da adição,
não poderia modificar seja o que for nessas regras. Por essa razão, distingue as funções
cognitivas (percepção e funções sensorimotoras, até a inteligência abstrata com as
operações formais), das funções afetivas, reconhecendo, entretanto, que são indissociáveis
na conduta concreta do indivíduo. As formas mais abstratas da inteligência (as
matemáticas) derivam de uma necessidade, de um interesse; produzem esta dos de prazer,
de decepção, de fadiga, de esforço, até sentimentos de malogro ou de êxito; e até, por
vezes, sentimentos estéticos (por exemplo, diante da coerência de uma solução) (1)•
A crítica, porém, talvez tenha, em realidade, outro motivo, mais difícil de formular:
çerta secura de pensamento de Piaget, imbuído de lógica e de epistemologia. A esse
propósito, convém voltar sumariamente aos fundamen tos de sua psicologia genética: os
conceitos, já lembrados, de assimilação e de acomodação, para ele noções-chaves (tal
como as de "integração" e "desinte gração" para Spencer) e cujo sentido está precisado
principalmente na Introduction à l' g (2).
Toda conduta, cumpre entender, é uma adaptação; e toda adaptação, um
restabelecimento do equilíbrio entre o organismo e o meio. Toda atividade implica um
desequilíbrio momentâneo (não há nutrição, nem trabalho, sem necessidade; não há
inteligência sem problema, sem uma sensação de lacuna, etc.) e a volta ao equilíbrio é
assinalada por um sentimento provisório de satisfa ção. Nesse esquema muito geral,
suscetível de caracterizar outras psicologias do comportamento, Piaget introduz de seu
os dois elementos em questão (assimila ção e acomodação), como os dois pólos da
adaptação, num sentido ao mesmo tempo biológico e mêntal. Todo ser vivo tende a
"assimilar" o mundo am biente a seu organismo e a seus esquemas de ação e
pensamento. Se, no tocan te ao organismo, a assimilação tende a conservar-lhe a forma, a
acomodação intervém nas condições exteriores em função das quais ele se modifica. Do
ponto de vista cognitivo, a "assimilação" é perceptiva e sensori motora: o objeto é
percebido em relação com esquemas anteriores, isto é, com o conjunto das operações
mentais de que dispõe o sujeito (por exemplo, o bebê de um ano utiliza-se de suas
cobertas, puxando-as em sua direção, para apoderar-se de um objeto colocado sobre elas,
mas excessivamente distante para que possa pegá-lo diretamente). E a
"acomodação" aparece quando os esquemas anteriores devem ser transformados para
adaptar-se às proprieda des de um objeto novo que lhes opõe resistência. Considerada
sob o aspecto afetivo, a assimilação se confunde com o interesse; e a acomodação, com
o interesse por um objeto enquanto novo. Assim, a adaptação constitui sempre um
equilíbrio, atingido quando o objeto, sem resistir em demasia à assimila ção, resiste,
entretanto, suficientemente para que haja acomodação.
(1) Relatiovs e, l'intelligence ei laffecii dam (e déve(oppeme'it de 1'enfa, C.D.U., Les
cours en Sorbonne, 1954.
(2) Paris, P.U.F., 1950, 3 volumes.
Essa tendência à assimilação, presente em diferentes níveis - fisioló gico, prático,
intelectual - é, pois, fenômeno ao mesmo tempo dinâmico, na medida em que o sujeito
tende a estender sua esfera de ação a uma parte cada vez mais vasta do mundo
ambiente, e conservador, na medida em que tende a conservar sua estrutura interior e
busca impô-la às condições exteriores (1)• Semelhante concepção não poderia admitir
uma lógica de algum modo extrín seca, em relação aos próprios processos, e Piaget
considera, efetivamente, que a lógica é o espelho do pensamento e, não, o inverso. Nela
vê uma "axiomâtica da razão", da qual a psicologia da inteligência é a ciência
experimental corres pondente, e não crê que a lógica clássica, enquanto permanecer
numa forma descontínua e atàmística de descrição, possa ser considerada intangível.
Trata-se de construir hoje uma lógica das totalidades, se se quiser que sirva de esquema
adequado aos estados de equilib rio do espírito; e de analisar as operações sem reduzi-
las a elementos isolados, insuficientes diante das exigên cias psíquicas.
Segundo Piaget, o sujeito assimila as realidades exteriores em certa ordem, "porque essa
ordem é o que há de mais natural do ponto de vista das fases do desenvolvimento da
inteligência". Repugna-lhe recorrer a realidades lógico-matemáticas já prontas e admite
que essas operações são simplesmente "as formas mais gerais da coordenação das ações".
"... não creio, absolutamente, que a lógica se prenda somente à linguagem. Ela tem suas
raízes mais profundas na coordenação das ações e igualmente - assim espero - nas
coordenações nervosas. Mas digamos, presentemente, coordenação das ações. Visto
tratar-se das coordenações mais gerais, aí existe um terreno privilegiado para se
estabelecerem fases ao mesmo tempo distintas e integrantes(
Se, pois, o desenvolvimento mental da criança segue, como vimos, uma ordem de
sucessão constante, que o meio social pode acelerar, mas não seria capaz de
transformar, resta o fato de Piaget atribuir a esse meio um papel muito importante,
subentendido em todas as suas afirmações e por ele, aliás, reconhecido explicitamente:
"Em nossas sociedades, numa idade determinada, situada entre os 11/12 e os 13/14 anos,
observamos o aparecimento de novo sistema de operações [ Esse sistema depende do
meio social, e a prova está em que nem mesmo existe no adulto de numero sas
sociedades consideradas primitivas; e entre os próprios gregos que, indubitavel mente,
descobriram o emprego desse sistema, esse emprego permanecia reservado a um escol.
Parece-me evidente que, se tivéssemos feito as mesmas pestjuisas entre as crianças
gregas do tempo de Aristóteles, como as fazemos atualmente, com os peque nos
parisienses ou genebrinos de 10/15 anos, teríamos chegado a resultados muito diferentes(
Não é de duvidar que semelhantes idéias conduzam a uma problemá tica filosófica,
pois, se o "sistema" a que o psicólogo se refere "depende do meio social", seja em que
caso for o condiciona. E volta a propor-se, então, o problema da gênese da razão. O
velho Aristóteles já observara, muito bem,
(1) Cl. Lucien GOLDMANN, "La psychologie de Jean Piaget", e "L'épistêmologie de
Jean Piaget", em Recherches dialectiques, N.R.F., Gallimard, 1959, págs. 118.145.
(2) Leproblème dei siades..., op, cii., pãgs. 98-99.
(3) lbid.. pág. 73.
340
341
que o psiquismo da criança não continha "em ato" o aparelhamento intelec tual que
caracteriza especificamente a razão humana. A ordem cronológica se apresenta,
entretanto, para ele, ao inverso da ordem ontológica; com a dificuldade de conciliar a
realidade do Noíis, em sua atualidade eterna, e a formação concreta do individuo.
Em Piaget, não se trata, evidentemente, de ontologia, nem da passa gem da potência ao
ato, mas a dificuldade ressurge noutra perspectiva. Pois, a descrição dos estádios não
resolve o problema da estrutura à qual chegam.
Na sua interpretação genética faz entrar vários fatores: a hereditarie dade, a maturação
interna, cujo papel é, segundo pensa, evidente mas insufi ciente, na medida em que não
se trata de um fator qu'è atua isoladamente; seu efeito ocorre em todas as situações, mas
indissociável daquele que é produto da aprendizagem e da experiência. Um segundo
fator é importante: a expe riência física, a ação dos objetos, mas ele também é
insuficiente, pois é funda mental a parte do sujeito; a criança não obtém sua lógica da
experiência dos objetos, mas das ações que exerce sobre eles. Convém então considerar o
papel representado pelo meio social e pela educação, sem esquecer, entre tanto, que uma
transmissão entre o adulto e a criança, entre o meio social e a criança educada, requer
uma assimilação, da parte da criança, do que se lhe quer inculcar; uma assimilação
condicionada pelas leis de um desenvolvi mento que é, em todo o caso, parcialmente
espontâneo. Ainda que as palavras repetidas pelas crianças possam muitas vezes enganar,
sua verdadeira compreensão depende da construção, já lembrada, das
"operações concre tas", no plano das ações interiorizadas. E um quarto fator, essencial,
ocorre no desenvolvimento da inteligência: o fator de equilíbrio, no sentido de equili
brio progressivo, pois toda descoberta, toda noção nova, toda afirmação, etc., deve
equilibrar-se com as outras, por um jogo de regulações, de compen sações, que vem
resultar em coerência, na reversibilidade operatória, ao termo desse desenvolvimento(
1)•
É mister, pois, contentar-se com admitir que o estado de adaptação e de equilíbrio
(relativo) do adulto é o objetivo do processo, que é o de uma sociali zação progressiva do
pensamento. A esse propósito, Henri Wailon, do qual falaremos adiante, critica Piaget
por haver confundido descrição e explicação. Aquele não vê, por outro lado,
continuidade sem ruptura no desenvolvimento da criança, e sim, antes, estados de crises
e de revoluções a se integrarem numa concepção geral do homem.
Piaget pretende não se afastar do terreno da experiência; o problema, contudo, é saber se,
na verdade, o conseguiu, e a que preço. Alguns autores acreditam ver nele um marxista
que se ignora. E o caso de Maximiien Rubel, que considera lamentável o fato de Piaget,
"cujas concepções, às vezes, tanto se aproximam das idéias metodológicas de Marx,
haver-se limitado a uma informação de segunda mão"( e de Lucien Goldmann, que
empreendeu estudar a obra do psicólogo à luz da concordância que lhe descobre com o
(1) Le temps ei le développemeni inteliectuel de I'enfant, conferência nas xvIIes
Rencontres Internatio nales de Genebra, op. cii., págs. 56-57.
(2) Karl Marx Essai debiographie intellectuelle, Marcel Rivière et de, 1957, pág. 313.
materialismo dialético. Observa que um dos principais resultados dos traba lhos
experimentais de Piaget é que a consciência e a ação constituem os dois aspectos
parciais e inseparáveis da realidade concreta e total; o pensamento de Piaget é
"dialético", na medida em que rejeita todas as oposições rígidas decorrentes do desejo de
absolutizar aspectos reais e parciais (instinto-inteli gência, pensamento-ação, norma- fato,
etc.)( 1).
A maneira de ver de Piaget me parece assinalar os limites da psicologia
"experimental", equipada com admirável aparelho lógico, mas, tanto quanto
a sociologia, incapaz de fazer de antropologia filosófica. A respeito de Piaget,
o filósofo valdense Arnold Reymond se confessava perplexo:
"Por um lado, parece-me que J. Piaget se orienta para um idealismo, próximo do de
Berkeley, segundo o qual nada existe para cá das sensações e de sua organização cada
vez maior pelo pensamento; rejeita, entretanto, a noção da existência de um Deus
transcendente que só ele dá coerência a esse idealismo. Por outro lado, parece professar
um dinamismo do pensamento que modelaria progressivamente o próprio objeto de sua
experiência. A experiência modela o pensamento e o pensamento modela a expe
riência(
Por ocasião da viagem realizada à U. R. S. S., em companhia de Paul Fraisse e René
Zazzo, em abril de 1955, durante uma recepção na Academia de Ciências, Piaget,
"decidido a inflamar o debate e a fazê-lo convergir para sua obra", perguntou a seus
anfitriões, filósofos e psicólogos, se o conside ravam idealista, precisando, a esse
propósito, que não imaginava o que poderia ser um objeto fora do conhecimento que
dele possuía e que, em sua opinião, o conceito era sempre resultante de uma ação:
"Um Soviético perguntou, então, com toda boa fé, a Piaget, se admitia a existência do
mundo exterior. Piaget respondeu afirmativamente; mas, quanto ao objeto, "era outra
estória". Então Rubinstein (3) fez-lhe notar com o ar mais sério do mundo, que o objeto
era um pedaço do mundo exterior. Ao que Piaget declarou, complacente, que, se o objeto
não fosse senão isso, ele lhe admitia de bom grado a exis tência, exterior e anterior à
consciência(
A discussão chegou ao reconhecimento, por parte dos russos, da neces sidade de
distinguir a psicologia da teoria do conhecimento:
"E foi com a reserva dessa distinção dialética, com essa reserva de que o psicó logo não
devia ter a pretensão de explicar o mundo, que se admitiu, com ênfase meio séria, meio
cômica, que Piaget não era idealista(
(1) Recherches dialectiques, op cii.
(2) Arnold REYMOND, Plulosophie spiritualiste, Rouge/Vrin, 1942, 2, vol., pág. 343.
(A propósito de uma obra de iran PIAGET ei. DE LA HARPE, Deux types daititudes
réligieuses: immanence ei ira nscendance. Genebra, 1928.) -
(3) S. L. RUBINSTEIN, autor de importantes tratados russos de psicologia: Os
fundamentos da psico logia (1935): Os fundamentos da psicologia geral (1940).
ZAZZO observa que a ele se deve a primeira exposição sistemática da teoria marxista
sobre as noções de motivação e de aptidão: "Os problemas da psicologia na obra de K.
Marx", Psychotechniquesoi de 1934.
(4) René ZAZZO, "Les problèmes actuets de la psychologie en U.R.s.S.", La Raison, Nt
15, 1956, pág. 11.
(5) Ibid., pág. 12.
342
343
Segundo o modo de ver do próprio Piaget, as insuficiências da psico logia parecem ser
menos "de princípio" que da juventude dessa ciência, ainda na fase das primeiras
descobertas. Forçoso lhe é reconhecer, entretanto, que os psicólogos, ao menos
presentemente, quase não estão de acordo, nem até quanto aos famosos "estádios". Em
resumo, se os estádios
são para a psicologia genética o que a classificação é para a zoologia ou para a botânica
sistemáticas, ou, ainda, uma estratigrafia para a geologia, os psicólogos se encontram na
situãção em que as ciências naturais estavam em suas origens, e já ultra passaram há
longo tempo, com uma classificação por autor e nenhuma chave que permitisse
homologar os quadros de uns e de outros...
Ora, o homem, como muito bem dizia Ortega y Gasset, não pode viver a crédito(*). E é
sob esse aspecto que a psicologia de Piaget pode dar a impressão de certa aridez. Ela se
limita a verificar, finalmente, que o meio social desempenha papel essencial e o
desenvolvimento da criança vem a dar numa estrutura que é a inteligência adulta do
homem ocidental, caracterizada pela reversibilidade. Sem nada dizer-nos do próprio real
em última instância, nem do sentido da sociedade humana e seu desenvolvimento no
contexto da evolução geral, acaba por preconizar uma objetividade cujas condições são
o espírito experimental, uma técnica da prova apoiada numa lógica coerente, coisas todas
que implicam a colaboração social e a autonomia da pesquisa; e chega a verificar que
essa exigência de objetividade se choca com obstáculos sociocêntricos e egocêntricos
(visão deformada pelo grupo social, preconceitos de família, de classe, de nações, de
partidos). Está muito bem; mas assim se obtém uma forma de universalidade vazia,
puramente científica, que deixa intacta a problemática inerente à situação do homem na
história, do homem "criador de valores", como dizia Nietzsche, e chamado a decisões
"irrever síveis" e, finalmente, também deixa intacta a problemática suscitada pelo próprio
pesisamento conceitual, caracteristico do homem em relação aos animais, quer fossem
estes os antropóides muito bem providos no referente às atividades perceptivas e
sensorimotoras. A expressão "universalidade vazia" desagradou ao Sr. Piaget. A de
universalidade "abstrata" tê-lo-ia chocado menos? Como quer que seja, nunca pretendi
dizer que seus trabalhos "não podem ser utilizados para uma antropologia filosófica"( o
que equivaleria a subestimar uma contribuição cuja importância, ao contrário, acredito
ter, nem bem nem mal, mostrado. Dizer que esta contribuição é incapaz de "fazer de"
antropologia filosófica não implica absolutamente que não possa contri buir para a
mesma. Como uma tal interpretação errônea seria surpreendente tratando-sê do lógico
que também é Piaget, penso que se deve ver aí antes uma reação afetiva num autor
persuadido de deter a fórmula da única psico logia válida. Como sua atual "epistemologia
genética" torna, a seu ver, caduca qualquer pesquisa menos depreciativa da reflexão
filosófica, ele não admite que se possa pensar haver, também em psicologia, muitas
moradas na casa do pai. Teria eu no presente livro
"tido prazer" em assinalar divergências lá onde o avisado olhar do prático pode apenas
descobrir a unidade da psicolo
(1) Le problème des stades..., op. cü., págs. 1-2.
(*) Como nos esclarece o Autor em carta, a expressão de ORTEGA Y GAS5ET visava
"àqueles que pensam possam as ciências dar amanhã resposta aos problemas propostos
ao homem aqui e agora". (J. B. D. P.)
(2) Sagesse ei :llusio,us de laphüosophie, P.U.F., 1965; 2 ed., 1968, págs. 275-276.
gia e convergências profundas; a deficiência se prenderia a um vício redibitório do
filósofo em geral que se interessa "com efeito, mais pela diversidade das escolas e dos
sistemas e sente no seu domínio um prazer de certo modo profis sional quando surgem
novas doutrinas que se desviam suficientemente das outras"(').
Não seria antes que o espírito filosófico, sem chegar forçosamente ao "eu sei que nada
sei" de Sócrates, quer levar tudo em consideração, como gostava de dizer Charles
Baudouin, e não esquecer jamais "o resto", recu sando deixar-se encerrar numa doutrina
unilateral? Eis porque gostei desse comentário que uma memória do Sr. Piaget( inspirou
ao reputado psiquia tra e antropólogo Eugène Minkowski:
Eminente especialista em psicologia e mais particularmente e psicologia da criança, é
nesta última que crê encontrar o fundamento das soluções que dá aos problemas
epistemológicos. Tais problemas, na minha opinião, pelo fato d sua pró pria natureza,
situam-se fora de qualquer psicologia, fora especialmente de toda psico logia genética,
assim como de toda óptica evolucionista e histórica. O Sr. Jean Piaget proclama-se adepto
resoluto do que chama de psicologia científica; recusa, por esse motivo, categoricamente,
o que designa pelo nome de psicologia filosófica. Mas a psicologia filosófica, apesar de
tudo, é uma psicologia; de sua parte e a seu modo, enriquece nossos conhecimentos
relativos ao ser humano, e o faz mesmo se, por outros motivos, alguns a qualificam de
anticientífica. O que se disse a respeito da corrente antropológica moderna, em suas
relações íntimas com certas tendências do pensa mento filosófico, dá disso testemunho(
Além disso, o eminente teórico e prático Julian de Ajuriaguerra, que no seu alentado
tratado consagra um capítulo ao desenvolvimento da criança segundo a psicologia
genética( reconhece que nela não se encontram somente convergências:
"Três pessoas (Piaget, Wallon, Freud): três doutrinas que partem de certo número de
bases comuns; cada qual com suas caracteristicas originais; às vezes se completam,
outras, com formulações diferentes, se aproximam, mas muito freqüente mente se opõem,
malgrado os esforços de alguns para encontrar entre elas, custe o que custar, um
"compromisso"."
A idéia de que a psicologia não se basta a si mesma, de que não pode instituir sozinha
um conhecimento do homem, é plenamente admitida por Henri Wallon (1879-1962), o
qual atribui à ciência psicológica a perspectiva do materialismo dialético. Sua obra
considerável, que trata essencialmente da origem e do desenvolvimento da consciência,
do caráter e do pensamento, não interessa menos e de maneira capital à psicologia
genética(
(1) Ibid., pág. 265.
(2) Em Cuhins l,,iernutionaux du Sembolisme, N. 17-18, 1969, consagrados aos
problemas do estru turalismo.
(3) "Journées annuelles de l'évotution psychiatrique les 6 ei 7 décembre 1969", i,i L
Ero/ution Psvch,a trique, ano 1971. abril-junho, Toulouse, Ed. Edouard Privat, 1971.
(4) Manae/ de psychiatrie de leu/uni, Paris, Masson et C' 1970.
(5) Médico e psicólogo de vasta cultura, WALLON desenvolveu grande atividade
social: professor no
Collêge de France de 1937 a 1949, secretàrio geral da Educação Nacional em 1944,
deputado de Paris e presidente da
Comissão de Reforma do Ensino em 1946. Além de seus muitos artigos e conferências,
é principalmente o autor de
Leu/uni iu,'hu/ent. Paris, Alcan. 1925; Les origines du caractêre chez leu/uni, Paris,
P.U.F.. 1934: Lérolut,on
psvcho/ogique de lrnfuvs. Paris. Colin. 1941; Les origines de/a pennée chez l'e,ifant.
Paris. P.U.F.. 1945, etc.
344
345
Wailon, porém, não é um lógico da psicologia à maneira de Piaget. Observador e clínico
antes de tudo, muito precavido por sua orientação filosó fica contra o arbitrário das
repartições abstratas, não vê nos "estádios" do desenvolvimento senão uma
estabilização provisória a ser encarada como ordens de grandeza no dinamismo de uma
conduta individual, mais impor tante, a seu ver, do que uma esquematização rígida. Em
seu livro sobre a origem do pensamento na criança, põe de lado a legitimidade de um
problema da "representação" como tal, considerando que o pensamento da criança, pré-
categorial e polimorfo, difere do pensamento adulto como o confuso do que é distinto
graças à cultura, e que há entre os dois pensamentos a i5ermea- biidade de uma
"mentalidade" comum. Segundo Walion, a criança ante cipa-se constantemente à sua
condição de adulto, e sua experiência não é feita somente de objetos; comporta também o
que ele denominou as "ultracoisas", designando por esse termo horizontes que escapam a
uma tomada direta pela criança: céu, astros, vida, morte... Horizontes de realidades dos
quais a criança não duvida, mas que não lhe permitem uma atitude objetivante como as
coisas a seu alcance. Não é, pois, possível dar, na linguagem das últimas, respostas que
visam à zona das ultracoisas. A consideração destas introduz, em suma, uma idéia
"estrutural", já que ela se relaciona com a própria conf i guração do mundo infantil.
Se Wailon considera a antecipação como a regra no desenvolvimento da criança, é em
razão de uma motivação interna e não da perfeição dos meios de execução; pois é a
disponibilidade da criança que lhe permite aceitar papéis que seu organismo é ainda
incapaz de suportar. O verdadeiro meio do desen volvimento não é, pois, o corpo sem o
elemento interior, nem a consciência cuja integração progressiva não se compreenderia,
mas uma estrutura total da conduta, uma "maturação funcional". Em outros termos, a
mudança orgâ nica é a condição necessária mas não suficiente do desenvolvimento,
incom preensível sem a intervenção de outros elementos: situação psicológica complexa
entre a antecipação e a regressão, o sentimento de inferioridade e de rivalidade "latente"
com os pais, as relações libidinais, etc.
Em suma, pois, os trabalhos de Wallon visam a provar que o desenvol vimento
biológico da criança é inseparável do desenvolvimento social, um e
outro igualmente essenciais. Persuadido de que o caráter se forma pelas
reações à roda, e que as primeiras experiências emocionais e "posturais"
representam nessa formação o papel decisivo, atribuía muita importância à
educação, sua preocupação maior nos últimos anos de vida( 1)
Para explicar o fato de que a consciência do corpo é solidária da cons ciência das coisas,
substitui a noção de cenestesia pela de "esquema postural". O termo implica a idéia de
que a consciência infantil está aberta para o exterior e, não, fechada sobre si mesma (a
consciência da mão, por exemplo, confunde-se com a de seu uso: a mão é aquilo que
pode pegar os objetos e os objetos são "devendo ser pegados").
Wallon (que nisso se aproxima dos pontos de vista fenomenológicos) designa o mundo
infantil como o da "sociabiidade sincrética"; a consciência individual só aparece mais
tarde, como objetivação do corpo da pessoa.
(1) Cf., a respeito, TRAN-THONG: La peaséepédagogique dEenri Wailon, Paris,
P.U.F., 1969.
346
Somente então constitui-se uma fronteira entre o eu e os outros, e ao mesmo tempo
"seres humanos" em relação de reciprocidade.
Wailon considera certo que o recém-nascido, antes de três meses, sente somente uma
impressão de "descompletude"; sem consciência de outrem, a não ser sob o aspecto de
simples fixações.
É em geral após seis meses que surge um brusco desenvolvimento nesse ponto, e
assinalado por verdadeiras condutas que se relacionam à imagem de outrem e não
somente a mímicas. A imagem do próprio corpo, essa, é reconhecida mais tardiamente
porque articula um problema mais difícil para a criança. Com efeito, se para outro ela
dispõe de duas imagens visuais: o modelo e sua imagem especular, possui para si mesma
apenas uma única imagem visual completa: a do espelho. E-lhe necessário, pois, chegar a
com preender que essa imagem não é ela - criança - que está onde se sente
interoceptivamente; e a compreender também que é visível para outro onde se sente,
como ela mesma vê sua imagem no espelho. Walion concorda com os psicanalistas em
atribuir uma significação particular à conquista do "visual", a qual abre uma nova forma
de existência; pois a criança, na medida em que se percebe como podendo ser olhada,
conduz-se de maneira diferente, e uma passagem se efetua do corpo vivido ao corpo
visível e olhado.
É igualmente após seis meses em geral que a "sociabilidade sincrética" se manifesta
como uma "sociabiidade incontinente". A criança fixa dora vante as pessoas com gestos
que multiplica em relação a elas como em direção ao corpo próprio. Sorri quando olhada
e se põe a manifestar uma sensibili dade social muito adiantada para o seu
conhecimento do mundo físico. E como interioriza o par espectador-espetáculo, abre-se-
lhe então o campo para as birras e o ciúme.
Walion pensa que a simpatia, primordial na vida infantil, aparece num fundo de
mimetismo cuja função é irredutível, já que o "esquema corporal" é que permite
primeiro à criança compreender as atitudes dos outros durante todo o período da "pré-
comunicação". Chama de "impregnação postural" a consciência do corpo como
capacidade de imitar e realizar atitudes observadas no mundo exterior; tal ocorre quando
a criança vê e imita alguém, buscando compreender com o corpo a conduta alheia.
Em resumo, segundo Walion, a estrutura da personalidade da criança, antes que seja
capaz de dizer "eu", caracteriza-se por uma indistinção dos momentos do tempo e do
espaço, quando a criança está como que espalhada nas imagens às quais dão ocasião as
ações, e incapaz de distinguir as coisas no tempo e no espaço, o símbolo e seu
significado.
Eis porque a aparição do "eu", isto é, o momento em que a criança toma consciência de
sua própria existência, constitui, a seu ver, um momento essencial. Fala até, a esse
respeito, em ' da personalidade", e a situa ao redor da idade de 3 anos(
Enquanto a criança tinha até então personalidades intercambiáveis, às quais
sucessivamente se identificava, deve agora adotar uma atitude que seja
so
(1) CL Les or du caracère chez íenfa,,t, op. cit., em particular o último capítulo: "La
cooscience de
347
A
"a sua", a de uma personalidade distinta, com sua consistência e perspectiva
próprias. Não quer isso dizer que o estadc anterior tenha sido abolido, pois o
"sincretismo" foi recuado antes que supresso, mas resta o fato de que o
momento é decisivo como tomada de consciência, pela criança, da distância e
de uma separação entre ela própria e outrem.
Doravante, quererá fazer, "sozinha", certas coisas: empurrar ou arras tar objetos, trepar,
regar, etc. E a autonomia relativa que adquire lhe formula novos problemas, pelo fato de
que o olhar de outrem, esse olhar que a encora java antes, se lhe torna embaraçoso (à
maneira dos adultos que conhecem o medo quando aparecem em público). Se esse olhar
pode perturbá-la a ponto de não poder executar certos atos, é porque desperta nela a
consciência de não ser somente o que ela é a seus próprios olhos, mas também o que é
aos olhos dos outros. A partir de então, uma incessante comparação implicita se esta
belece entre ela e os outros, devendo a criança provar suas possibilidades e direitos em
relação a eles. Ela quer que se ocupem dela, começa a mentir ou a dissimular, a perturbar
o jogo dos companheiros, a tirar objetos pelo único prazer de tirá-los Um sinal do fato de
que a relação eu-outrem cessa de ser indiferenciada aparece também com a idéia de
transação, manifestada quando a criança propõe dar isto em troca daquilo. Igualmente
durante esse período de "crise", segundo Wallon, as atitudes da roda revestem-se de
extrema importância, pois podem suscitar na criança reações emotivas que a farão
regressar a um comportamento mais antigo. Certos traços de experiências infelizes nesse
momento da vida (certa falta de jeito, inibições, etc.) podem subsistir na idade adulta( 1),
É um dos méritos de Wailon, esse de ter descrito com nitidez o momento decisivo que
representa na história de um ser humano a tomada de consciência de sua própria
realidade. Momento do qual é impossível de duvi dar, ao passo que o conhecimento dos
anos iniciais é suspeito, devido a que sua observação é difícil e muito mais tributária
dos preconceitos e preocupa ções do psicólogo. Se acordo existe a esse respeito, é sobre
a importância das primeiras experiências emocionais e da necessidade de amor e de
confiança a serem satisfeitos na criancinha( A observação, dizia, é, porém, difícil do
ponto de vista psicológico.
A cada um é dado observar que a criancinha dorme e mama; que essa situação implica
uma estreita relação com a pessoa que dela cuida e a nutre; que essa pessoa é, mais
freqüentemente, em nossa civilização até o presente, a mãe; e que com esta, esteve, seja
como for, em comunicação íntima até o nascimento. Mas algo diferente é saber o que se
passa "na criança" na primeira fase de sua vida.
Jung, por exemplo, no âmbito de sua doutrina, atribui à criança uma "condição
espiritual" distinta de sua condição natural, e vê nesse contraste inicial o fundamento
provável da energia psíquica. Segundo ele, a "disposição germinativa infantil" contém
toda a herança ancestral como todas as precondi
(1) Cf. "La maladresse", Joursal de Pvvchologir, 1928; reeditado i Enfance, Paris, 1959.
n 3-4.
(2) No animal, onde, contrariamente do que se passa na espécie humana, a regulação
inata do comporta mento social é suficiente, experiências em macacos rhesus mostraram
os danos resultantes de uma perturbação artificialmente provocada desde o nascer,
quando faltam o calor e a proteção inerentes às necessidades ligadas ao esquema da mãe
durante os primeiros meses da vida. (Hariy F. HARLOW, "Basic Social Capacity of
Primates", os T/,e Ei'ole.tion of Mona Capacity for Co/fure, Detroit, Wayne State
University Press, 1959.)
ções do ser civilizado; e está até persuadido de que certos sonhos de crianças "encerram
possibilidades de significação que quase dão vertigem e coisas que só revelam seu
sentido profundo à luz de comparações com os primitivos" (1).
Mas, além do fato de que a posição de Jung é um tanto quanto hetero doxa nas ciências
psicológicas de nosso tempo, sua perspectiva é estrutural e, não, genética, já que situa,
logo de início, a vida infantil no âmbito de uma doutrina dirigida para a auto-regulação
da psique.
Se preocupações inteiramente diferentes animam Melanie Klein, a qual inaugurou uma
nova tendência no freudismo, ela se acha menos distante de Jung do que se poderia crer à
primeira vista; pois, ela também atribui muitas coisas à vida mental da criancinha:
fantasmas, conflitos instintuais, senti mentos de culpabilidade, etc. E que ela acredita
descobrir já ai a luta entre "pulsões de morte" e "pulsões de vida", primeira fonte de
sadismo e de agressividade à espera que comece, desde o fim do primeiro ano, a fase edi
piana(
De um ponto de vista rigorosamente científico, é só externamente que se pode tentar
determinar os primeiros sinais de uma autonomia relativa na criança. Fé-lo, de maneira
exemplar, o discípulo de Freud, o Dr. René Spitz, cujas pesquisas utilizam os recursos
da técnica e se cercam de grandes precau ções metodológicas. Spitz, de início, não se
permite admitir processos intra- psíquicos no recém-nascido:
"0 lactente se encontra, ao nascer, em estado não diferenciado. Todas as suas funções,
nelas incluídos os instintos, se diferenciarão em seguida por um processo que terá sua
origem, quer na maturação, quer no desenvolvimento(
Em tal perspectiva genética, o sorriso aparece a Spitz como o primeiro "organizador
psíquico", a saber, uma estrutura capaz de integrar aquisições anteriores( Manifestaria,
em geral ao redor dos 3 meses, um princípio rudi mentar do ego, na medida em que
implica certa consciência de relação com outro, o esboço de uma diferenciaçãb, entre si e
algo de exterior, O indicador do segundo organizador é constituído pelo fenômeno da
"angústia dos 8 meses": uma reação de abandono da criança ao ser manejada por pessoa
desconhecida. Reação atribuível até a uma criança perfeitamente desenvol vida, visto
que manifesta, segundo Spitz, a capacidade nova de diferenciar emocionalmente uma
pessoa amada (aceita) de uma pessoa estranha (recusada). Enfim, ele considera como
terceiro "organizador psíquico" a aparição do "não" na criança, no seu segundo ano de
vida. E o momento quando a criança, antes da posse da linguagem propriamente dita, se
torna capaz de um movimento de cabeça negativo ou afirmativo, com a significação
(1) Lénei'gétiquepsychique lrad. Yves Le Lay, Genebra, Georg, 1956, pág. 77.
(2) Uma bibliografia dessa autora figura na obra de Claude GEETS: Ms Klei Paris.
"Psycho lhêque", Edil. Universitaires, 1971.
(3) La premiàre annáe dela ele de lenfant, prefácio de Anna Freud, Paris, P.U.F., 1958,
pág. 2; nova edição Dela naissance à /a paro/e, P.U.F., 1968.
(4) "Os organizadores do psiquismo assinalam certos níveis essenciais da integração da
personalidade. Nesses pontos, os processos de maturação e de desenvolvimento
combinam.se mutuamente para formar um amálga ma. Depois que tal integração foi
realizada, o mecanismo psíquico funciona segundo um modo novo e diferente. Ao
produto desta integração chamamos de "organizador". (Le non ei le oui, traduzido do
inglês por Mmc A -M Rocheblave.Spentà, Paris, P.U.F., pág. 107).
348
349
da recusa ou da aceitação - "primeiros representantes dos sinais simbólicos de
abstração"(').
Os estudos de Spitz mostraram que o estudo metódico da afetividade na primeira
infância era possível sem esperar um conhecimento perfeito dos mecanismos
fisiológicos que a subtendem. Tais estudos parecem, aliás, provar claramente que a
criança é capaz de condutas que não podem ser explicadas unicamente pelo
funcionamento orgânico, o meio podendo favorecer ou comprometer a "antecipação",
como dizia Henri Wallon, sobre sua conduta de adulto.
Spitz estudou as condições de desenvolvimento das crianças em institui ções
americanas: berçário e home para crianças abandonadas, para compará los com as de
um meio familiar (lares burgueses e rurais). E, para essas pesquisas, recorreu à tomada
de filmes e aos baby tests( que permitem uma investigação da personalidade (percepção,
domínio corporal, relações sociais, relações com os objetos) e a elaboração de uma
curva de personalidade.
Ora, as médias do quociente de desenvolvimento que estabeleceu mostram uma espécie
de derrocada entre as crianças do home nos últimos quatro meses do primeiro ano, ainda
que as condições de higiene e de assepsia fossem aí iguais às do berçário. A diferença
essencial consistia em que os pequeninos eram confiados a nurses, cada uma das quais se
encarregava de várias crianças e não dispunha de tempo livre para balançar-lhes o berço
ou passear com elas. Para fazê-las conservar-se tranqüilas, circundavam os berços de
lençóis, e as crianças, separadas do mundo exterior, deixadas em sua cabina com o teto
por único horizonte, podiam apenas brincar com as mãos ou os pés. Continuamente
deitadas de costas, elas se mostrarão incapa zes, mesmo por volta dos 6 meses, de virar-
se de lado.
Spitz pôde demonstrar que tais inconvenientes quase não têm influên cia nos três
primeiros meses, e as curvas de desenvolvimento no berçário e no home se cruzam no
quarto mês. Inversamente, as dos pensionistas do home decrescem em seguida
rapidamente, mostrando um desenvolvimento mental retardado e elevada mortalidade
durante doenças contagiosas. No berçário, ao contrário, animado e provido de
brinquedos, os resultados eram excelentes. As crianças aí se desenvolviam bem,
iniciando-se, em particular muito mais cedo, no asseio e na linguagem, e isso apesar de
terem, por mães, menores, infratoras, freqüentemente débeis mentais, psicopatas e até
criminosas... Em suma, as experiências de Spitz demonstraram que as privações no
intercâm bio afetivo, entre 3 meses e 1 ano, tinham graves conseqüências sobre as regu
lações psicossomáticas em crianças do home, o que manifestava assim toda a
importância do fator psicológico constituído pela presença da mãe. Por isso ele
interrogou-se sobre o problema do meio cultural:
"A maioria das nossas observações foi feita no meio cultural ocidental sobre sujeitos de
raça branca, negra e indígena. Este meio tem, como tradição, contatos estreitos entre o
lactente e uma única mãe...
Uma tradição cultural, na qual o contato entre mãe e filho se regula de maneirã diferente
da nossa, trará modificações importantes à época em que o objeto se constitui
(1) Ibid., pág. 110.
(2) H. HETZER. K. WOLF, Baby Tests", Zeil heiftfifrPsee/ 107, 1928.
assim como à natureza das próprias relações. É possível entrever semelhantes diferen ças
nos escritos dos antropólogos. Margaret Mead, por exemplo, descreveu numerosas
culturas com tradições bem diferentes da nossa para a educação das crianças... Anna
Freud falou desse último fenômeno em suas observações sobre as crianças de tenra idade
educadas por enfermeiras que eram substituídas constantemente. As crianças não se
apegavam a uma pessoa maternal, visto que ela lhes faltava, mas tendiam a formar o que
se poderia chamar "gangs". A importância dessas observações para nossa cultura não
poderia ser superestimada. Estudos pacientes e exatos das conseqüências de diversas
constelações culturais dos elementos constituintes do par mãe-filho nos fornecerão os
dados mais preciosos para a prevenção das deformações do caráter, da personalidade, do
psiquismo, assim como as indicações para as condições mais favorá veis nas quais
educar as crianças. Os estádios do desenvolvimento das relações objetais acima descritos
são apenas um esboço grosseiro que nos dá os pontos de referência no decorrer do
primeiro ano de vida. E um quadro cujos detalhes permanecem ignorados e exigem
numerosos estudos tanto individuais quanto interculturais( 1)."
Voltaremos a encontrar esse aspecto das coisas ao tratar do "cultura lismo" americano(
2)
6. A caracterologia
Não data de hoje a tentativa de fundar cientificamente uma caractero logia, dado que, já
no quinto século antes de nossa era, a medicina da escola hipocrática distinguia quatro
temperamentos humanos (sanguíneo, linfático, bilioso e atrabiiário). No século XX,
porém, o progresso da caracterologia caminhou a par com o das ciências psicológicas,
mercê de pesquisas empreen didas com intenções diversas, científicas ou práticas.
Lembrei a voga que experimentam em psicotécnica os chamados testes "de caráter" e
"de perso nalidade". E evidente (posta de lado a questão do valor desses "testes") que
certas profissões requerem disposições caracteriais tanto quanto aptidões determinadas.
Por outra parte, importa ao psicoterapeuta conhecer de algum modo os traços
caracteriais de seu paciente, quer sob o aspecto de sua consti tuição, quer de seu
passado; igualmente o que trabalha com grupos, em especial o pedagogo cuidoso de
individualizar seu ensino, deve ser um pouco caracterologista. Quanto ao mais, todos
"praticam" a caracterologia, ao menos da maneira como Monsieur Jourdain escrevia
prosa. No sentido amplo e vago do termo, fundada na observação empírica e na
intuição, a caractero logia é tão velha quanto a própria reflexão. Como interrogar-se
sobre as condutas humanas sem certos pontos de referência, sem certas classificações?
A literatura é farta em descrições caracterológicas, singularmente penetrantes em
autores como Cervantes, Shakespeare, Molière, Stendhal, Balzac ou Dostoievski. A
questão não é, portanto, a da validez da caracterologia garan tida por sua necessidade,
mas, antes, saber se se pode fundar uma verdadeira "ciência do caráter", isto é, da
maneira de ser e de sentir próprias a um indivíduo.
A tentativa choca-se imediatamente com a objeção da liberdade, que implica a
imprevisibiidade do agir humano. A objeção, porém, é unicamente teórica, pois as
condutas humanas, a seu nível médio, apresentam tal confor
(1) Lapremière année de eie de 1enfa op. ci págs. 158-1S9.
(2) Ct. cap. XXIII.
350
351
midade que é muito legítimo pô-las em relação com fatores discerníveis. Pode sê-lo
com "valores" e em termos de "motivações"; mas a qualidade destas, justamente, é
atribuída a um indivíduo em função de certos traços de caráter que se crê estar-se em
condições de reconhecer-lhe, e que se supõe, não somente orientem sua escolha de
certos valores, mas confiram a essa própria escolha uma certa qualidade. Por outro lado,
basta pensar nos múltiplos condicionamentos que estão na origem de todos esses atos
humanos como que estereotipados; a esses erros involuntários, tornados visíveis por
Freud, e que se revestem para o observador de um sentido perfeitamente localizável sob a
aparência dos tiques, dos embaraços, dos atos falhos, dos esquecimentos ou lapsos,
etc. De outro modo, a vida social seria impossível sem certa consis tência caracterial dos
indivíduos que a compõem, pois é dessa consistência que, em boa parte, depende a das
regras, dos costumes e das instituições.
Isso exposto, a situação atual no concernente à caracterologia - no sentido preciso do
termo - é análoga à da psicologia em geral: não há uma, mas caracterologias, que
recorrem a critérios de classificação diferentes, com essa dificuldade teórica que os
conceitos básicos: temperamento, constituição, caráter, individualidade, personalidade,
etc., são objeto de definições variáveis segundo os autores, e implicam uma concepção
particular da natureza e da gênese do "caráter".
O papel de um esquema explicativo pode ser considerado como mais ou menos
necessário. O filósofo balense Paul Hâberlin, por exemplo, o conside rava indispensável
para delimitar as descrições caracterológicas( 1); da mesma opinião é Ludwig Klages,
para quem a caracterologia tem por fundamento uma teoria irracionalista, de inspiração
nietzschiana( 2).
Se é bem verdade que toda caracterologia se insere forçosamente num esquema
particular, não vejo que isso vá contra a possibilidade de extrair de uma teoria uma
caracterologia "funcional", cujo emprego mostrará o que ela vale, independentemente
de seus fundamentos mais ou menos hipotéticos.
Certos autores têm tendência de privilegiar a constituição orgânica; ou tros, fatores
psicológicos individuais; outros, fatores sociais. Quando estes últi mos predominam, a
caracterologia tende a perder seus direitos. E o que bem parece ocorrer na obra de certos
psicólogos sociais, os quais utilizam as noções de atitudes e de papel para exprimir
processos que colocam em jogo uma "inte ração" constante do indivíduo e do meio social,
e num sentido que quase não deixa consistência ao indivíduo como tal. Parece, porém,
efetivamente impos sível negar toda a realidade ao que se chama comumente de
"caráter".
Pode-se distinguir nas pesquisas caracterológicas uma dupla preocu pação: reduzir as
condutas individuais a certas formas típicas, ou analisar uma individualidade enquanto é
justamente esta individualidade. Mas se a caracterologia, segundo os autores, põe em
relevo ora um, ora outro aspecto, os dois se completam, mais do que se excluem
concretamente, pois não se poderia descrever um caráter individual sem uma referência
- explícita ou implicita - a categorias dependentes de certas classificações tipológicas.
(1) Der Clmracte, Bâle, 1935.
(2) Les priscipes de Ia carauérologie. Delachaux ei Niestlé, 1950; Lhe Persónlichkeii.
Einfahrssges es de, C/rnrakfero/ogie. Potsdam, 1931.
Na França, a escola morfológica fundada pelo médico lionês Claude Sigaud e seu aluno,
o Dr. Léon Mac Auliffe( 1), embora quase não forneça indicações sobre as correlações
psicológicas dos tipos que descreve, inspirou pesquisas nesse sent ido. Sob a influência de
Lamarck, ela considera que o meio modela as formas da vida estimulando algumas
de suas funções, e sua descrição clínica de certos tipos se funda na predominância de um
aparelho orgânico. Ela distingue o digestivo, caracterizado pela predominância da divisão
inferior do busto e da face - abdominal e bucal; o respiratório, no qual prevalece a
divisão média - torácica e nasal; o muscular, cujo desenvol vimento das três divisões do
busto e da face é sensivelmente igual; o cerebral, no qual predomina a divisão superior -
cefálica e craniana.
Uma caracterologia pode derivar dessa classificação morfológica, inspi rada pela idéia de
que a morfologia e o caráter têm as mesmas causas biológicas profundas. Foi assim que o
psiquiatra Louis Corman, que atribui a Sigaud a descoberta das leis determinantes da
forma e da função - em particular a lei de dilatação-retração - aplicou-se a desvendar suas
correla ções psicológicas.
"Sabemos agora que a forma humana tem um sentido, que ela objetiva a função, torna-a
visível a nossos olhos. E não são apenas as funções do corpo que as formas nos
revelam, são também as funções da alma e do espírito" (2).
A morfopsicologia de Corman tem como fundamento uma oposição essencial entre o tipo
dilatado (hipoexcitável e hiperexcitável) e o tipo retraído; o primeiro, alegre, otimista,
espontâneo, impulsivo, de pensamento concreto e prático; o segundo, pessimista,
refletido, inibido, de espírito especulativo. Corman distingue três tipos de retraídos:
lateral, frontal e "de base". Analisa metodicamente o aspecto geral da fisionomia, os
"vestíbulos sensoriais" (olhos, boca, nariz), as duas metades do rosto, as três divisões, a
expressão, enquanto revelaria a atitude psicológica explicável sobretudo em termos de
adaptação ou de resistência(
Com Giacinto Viola e seu discípulo Nicola Pende, fundadores da escola tipológica
italiana, manifestou-se a preocupação de fundar o diagnóstico caracterológico em
mensurações muito detalhadas, antes de tudo morfoló gicas, mas também fisioló gicas
(sangue, metabolismo basal, funcionamento endócrino, equilíbrio neurovegetativo, etc.).
Sua tipologia divide os homens em longilíneos e brevilíneos; os primeiros, de membros
longos e delgados, ao passo que nos segundos é considerável o desenvolvimento do
tronco em relação aos membros. E como longilineos e brevilineos se subdividem em
estênicos e astênicos, os trabalhos da escola italiana chegam à distinção de quatro tipos
fundamentais cujas particularidades físicas teriam por correlatos
(1) Claude SIGAUD: Traité des Iroublesfonctionnels de I'appareil digestif Paris, 1894;
31 cd., Maloine, 1914; Claude SIGAUD ei VINCENT, La forme humaise. Sa sign
Paris, Maloine, 1914. Léon MAC AULIFFE: Les tempéraments, Paris, N.R.F., 1926; La
personnalif é ei I'hérédité, Paris, Amédée Legrand, 1932.
Cf. igsialmente Jacques BERTHOLON: L'oeuere de Claude sigaud. clinicien lyo (1862-
1921), LiSo, Ouse Frêres, 1956 (tese de medicina).
(2) Prefácio à obra de Roger MUCHIELLI: Caractéres es cisages, P.U .F., 1954.
(3) Vi. ei caructéres. em colaboração com GERVAIS-ROU55EAU, Paris, Plon, 1932;
Quinze leçons ae moepko-psychojogje, Paris, Amédée Legrand, 2t cd., Stock, 1947; La
diagnostic du tempérament por Ia morpho logle, Paris, Amédée Legrand, 1947.
352
353
tais particularidades caracterológicas( I). Há, pois, convergências entre os tipos
descritos pela escola italiana e os da escola francesa; elas voltam a encon trar-se
igualmente nos trabalhos do psiquiatra alemão Ernst Kretschner, ligados parcialmente
aos de seu predecessor Kraepelin (o qual elaborou uma teoria das constituições, entre
elas a ciclotímica (Kj círculo, thjmós, humor), para explicar doenças mentais) e aos de
Eugen Bleuler.
A Eugen Bleuler, do qual já falei atrás( devem-se as noções de autismo e de sintonia.
Designa pela primeira a atitude - evidente em certos estados psíquicos mórbidos - de um
sujeito recurvado sobre si mesmo numa subjetividade quase absoluta e conservando
apenas liames superficiais com o mundo exterior; atitude cujo paroxismo é atingido na
esquizofrenia. Inversa mente, o sintônico é para Bleuler o indivíduo que vive em
uníssono com o que o cerca. Em suma, pois, é o contato vital com o meio e os
acontecimentos que chamam a debate os dois termos; é esse contato que assegura ao
sintônico um bom equilíbrio psíquico.
Ora, a esse propósito, os pontos de vista de Bleuler divergem dos do psiquiatra alemão
Ernst Kretschmer, professor de psiquiatria e de neurologia na Universidade de Tübingen
e autor de uma obra que teve, igualmente, uma grande repercussão(
Baseado em sua própria experiência clínica, Kretschmer acabou por pensar que a
doença mental é somente a forma extrema de disposições carac teriais típicas,
localizáveis em cada pessoa. E nesta hipótese que assenta sua própria caracterologia,
mais esquemática do que a de Bleuler, em quem prevalece a prudência critica com
respeito às tipologias em geral.
Da convergência dos dados da observação psicológica ordinária e da observação clínica,
Kretschmer distinguiu dois tipos principais, cuja descrição morfológica ele faz; tipos
caracterizados psiquicamente pela aptidão ou inaptidão para o contato vital com o meio
assim como com o desenrolar das coisas (a aptidão é a característica do tipo ciclotímico, a
inaptidão a do tipo esquizotímico). Morfologicamente, o esquizotímico é um
leptossômico (leptós, estreito, fino) e o ciclotímico, um pícnico (pyknós, espesso, denso),
o que lembra os longilíneos e os brevilíneos da escola italiana.
A esses dois tipos principais Kretschmer acrescenta o atlético, menos freqüente (robusto e
musculoso, sem excesso de banha), com predisposição para a epilepsia, e o dispiástico
(dus, mau), que é, pois, antes um "desvian te", de composto heterogêneo.
Para voltar aos dois tipos principais, o leptossômico (esquizotímico) é, pois, aquele que
tem tendência a viver recurvado sobre si mesmo (é o autismo de Bleuler), enquanto o
pícnico (ciclotímico) abre-se para o ambiente e as coisas. E como Kretschmer considera
evidente que as grandes doenças mentais que são a esquizofrenia e a psicose maníaco -
depressiva correspondem a duas exagerações mórbidas do comportamento, julga não
haver senão diferenças de grau na passagem eventual da esquizotimia (sensibilidade
(1> Giacinto VIOLA: Li' 1.' di correlazione ,norfologica de, ,p, ,vdn',duau. Pádua, 1909;
La ec zione ,adieiduale. Bolonha, 1933, 2 vaIs. Nicola PENDE: Trauato di biotipologia
emana, Milão, 1939.
(2) CI. cap. XXI, § 1 d.
(3) Krperbau and Charak Berlim, Springer. 1921 (trad. francesa da f cd. alemã; La
stracture da corps e! da careci ère, Paris, Payot, 1930).
voltada sobre si mesma) à esquizoidia (inadaptação, devaneio, solidão) e à esquizofrenia
(ruptura consumada); o mesmo sucede na passagem da cicloti mia (cordialidade,
jovialidade) à cicloidia (euforia-depressão) e à psicose maníaco-depressiva (mania,
melancolia).
É, pois, sobre a noção de ciclotimia que Bleuler e Kretschmer estão em desacordo, pois
o primeiro se recusa a assimilar o sintônico (que, segundo ele, designa simplesmente o
indivíduo normal, adaptado às exigências das situações e dos acontecimentos) ao
ciclotímico kretschmeriano, predisposto à cicloidia e tocado assim de um coeficiente de
morbidez. A divergência submete à discussão a simetria tipológica de Kretschmer.
Seja como for, este último, além das investigações relat ivas à influência racial em tipos
que descreve (as raças latinas, por exemplo, apresentariam uma porcentagem mais
elevada de pícnicos, enquanto que o tipo leptossômico dominaria nas raças nórdicas),
tentou ilustrar suas teorias ao estudar, baseado em vasta documentação, algumas grandes
personalidades( Res salta de sua investigação que os grandes filósofos, os teólogos e os
fundadores de religião seriam, em geral, do tipo leptossômico - esquizotimico (Calvino,
Pascal, Savonarola, Descartes, Locke, Spinoza, Kant, Hegel, Schopenhauer, Nietzsche),
enquanto que a maioria dos naturalistas e médicos seria do
tipo pícnico-ciclotímico. Reconhece que as exceções não faltam (Sócrates, por exemplo,
catalogado como "displâstico") e que é preciso evitar, aliás, de subestimar a influência da
época e do meio na formação do espírito e da obra dos grandes homens. Malgrado esse
reconhecimento, pelo autor, dos limites de sua empresa, não se poderia dizer que ela
obteve consenso universal. Util, sem dúvida, para os práticos na medida em que,
efetivamente, certo tipo morfológico vem acompanhado de um temperamento suscetível
de manifestar certas perturbações nervosas e mentais específicas, a tipologia de
Kretschmer é-o menos ao nível da psicologia geral. Pois, há grande distância entre acons
tituição e a personalidade, de múltiplos componentes, e a hipótese de uma
predeterminação do pensamento filosófico, religioso e científico pelas caracte rísticas
do organismo é das mais conjeturais. O papel das relações sociais bem poderia ser, no
caso, muito mais importante. Se os exemplos evocados por Kretschmer são, muitas
vezes, convincentes, resta que sua dicotomia: filó sofos e teólogos de um lado,
naturalistas e médicos de outro, deve ser admitida cum grano salis. Não parece muito,
por exemplo, que filósofos como Leibniz, Berkeley, Schelling ou Marx tenham sido
leptossômicos.
Quanto às pesquisas do americano W. H. Sheldon, ilustre professor de Harvarcl(
fundamentam-se em um método a um tempo psicológico e morfológico. Inscritas na
linha aberta pela "análise fatorial" de Spearman, visam a tornar manifestos,
estatisticamente, "componentes morfológicos" aos quais se atribuem certos
temperamentos caracterizados do ponto de vista psicológico:
Estes componentes morfológicos são função do desenvolvimento mais detalhado de
uma das camadas embrionárias, a qual determina um tipo morfológico e o tipo
caracterial que lhe corresponderia:
(1) GenieleMenschen, 4 ed., Heidelberg, springer-Verlag, 1948.
(2) The Varieties o! Haman Physique. An Introduction to Constitaiional Psychology.
Nova York, Harper Brothers, 1940; The Varieties of Temperament, Nova York, Harper,
1942.
354
355
Endoderma
(tubo digestivo e glândulas anexas)
Mesoderma
(músculos, sangue, esqueleto)
Ectoderma Ectomórfico
(pele, sistema nervoso, cérebro)
As pesquisas a que Sheldon se entregou durante anos, no meio univer sitário,
convenceram-no do grau muito elevado da correlação. Do ponto de vista psicológico,
resulta o seguinte:
O tipo viscerotônico (correspondente ao pícnico de Kretschmer como também ao
brevilíneo da escola italiana) é capaz de desfrutar do conforto e do bem-estar, de
repouso e distração. Sociável, amável, complacente, dorme bem e aprecia a boa mesa.
O tipo somatotônico (análogo ao atlético de Kretschmer e ao longilíneo estênico da
escola italiana) caracteriza-se pela firmeza da postura e dos gestos, pela energia e
coragem físicas, pela necessidade de jogos e exercícios.
O tipo cerebrotônico (que lembra o esquizotímico kretschmeriano e o longilíneo
astênico da escola italiana), dado à vida intelectual, é angustiado, inibido, tenso; dorme
mal e inclina-se à solidão e à sociofobia.
Em compensação, é uma perspectiva exclusivamente psicológica que a caracterologia
dos holandeses Heymans e Wiersma, largamente difundida nos países de língua francesa
pelos trabalhos de René Le Senne, Emmanuel Mounier e Gaston Berger, criou uma
tipologia fundada nas "propriedades". O tipo caracterial é determinado pela dosagem de
três fatores fundamentais: a emotividade (vibração interior, agitação suscitada por
situações que deixam frio o "não-emotivo"), a atividade (necessidade espontânea de agir,
mesmo sem coerção ou interesse maior), e a repercussão das representações (mais
imediata e de menos longo alcance no "primário" do que no
"secundário"). A importância mais ou menos grande dos componentes emotividade,
ativi dade, repercussão, no caráter, dá os tipos seguintes:
O apaixonado (Emotivo, Ativo, Secundário) - que tem o sentido da grandeza,
personalidade em tensão por uma obra a executar, seja de que ordem for, e animada por
uma ambição realizadora (Miguel Angelo, Lutero, Corneille, Napoleão, HegeL..).
O coMrico (Emotívo, Ativo, Primário) - voltado para uma ação mais improvisada, de
reações rápidas, às vezes impetuosas, aptidão oratória (Diderot, Danton, Mirabeau,
Beaumarchais...).
O nervoso (Emotivo, Não-ativo, Primário) - subjetivo, de humor variá vel, que necessita
divertimentos e excitantes, inconstante, errante, indivi dualista e freqüentemente revoltado
(Musset, Baudelaire, Edgar Poe, Van Gogh, Gauguin. .).
O sentimental (Emotivo, Não-ativo, Secundário) - sonhador, medita tivo, curvado sobre
si mesmo, inclinado à melancolia, tímido, escrupuloso, sem jeito para viver, em quem o
sentimento da natureza, assim como os senti mentos morais, são muito fortes
(Rousseau, Vigny, Maine de Biran, Amiel...).
O sanguíneo (Não-emotivo, Ativo, Primário) - frio, objetivo, decidido, dotado de
sentido prático, de trabalho fácil, de percepção rápida, diplomata, oportunista, voltado
para o êxito social (Mazarino, Mme de Sévigné, Voltaire, Taileyrand...).
O fleumático (Não-emotivo, Ativo, Secundário) - com o sentido da legalidade e da
justiça, moderado, ponderado, simples, respeitável, de humor igual, pontual e objetivo
(Leibniz, Locke, Kant, Washington, Buffon. Condorcet, Renan, Taine. .).
O apático (Não-emotivo, Não-ativo, Secundário) - fechado, miste rioso, voltado sobre si
mesmo sem vida interior vibrante, homem de hábitos, taciturno, amante de sua
tranqüilidade (Luís XVI).
O amo,fo (Não-emotivo, Não-ativo, Primário) - corresponde ao que se chama de modo
habitual um "bom caráter", acolhedor, à disposição de terceiros, conciliador por
indiferença, negligente, voltado para o seu bel- prazer (Luís XV).
Daria trabalho encontrar outros exemplos históricos desses dois últimos tipos, pouco
destinados, naturalmente, a um papel histórico e social.
O método é simples: um questionário, O de Heymans e Wiersma, que permite
estabelecer as primeiras estatísticas, foi publicado por Le Senne como apêndice de seu
Traité de caractérologie (P.U.F), e freqüentemente revisto e corrigido, muito
especialmente por Gaston Berger, que o completou de maneira a conhecer em que
sentido se acha orientado o potencial caractero lógico('). Esse questionário foi objeto de
criticas referèntes em particular às suas condições de aplicação (o mínimo de cultura e de
capacidade de intros pecção para responder a ele). Em seus limites é, porém, excelente,
uma vez que as questões formuladas são bastante "ne para obter respostas sinceras.
Tendo-o utilizado em numerosos grupos, pude constatar que a ignorância dos resultados
colimados é uma condição dessa sinceridade. Por mais que insistais sobre o fa) de que
todos os caracteres têm suas vantagens e seus inconvenientes, que não se trata de localizar
aptidões mas maneiras dife rentes de ser e de sentir, etc.: por ocasião de
uma segunda aplicação do teste, fosse num intervalo de alguns meses apenas, é sempre o
número dos amorfos e dos apáticos qoe diminui, enquanto o dos apaixonados tende a
crescer... Resta o fato de que esta caracterologia, essencialmente operacional, pode
prestar serviços para um diagnóstico rápido. Mas, como essa rapidez é relativa, já que é
preciso responder a 90 questões, o caracterologista de Laus Maurice Gex, teve a idéia de
compor um questionário mais curto, contendo 50 questões muito breves; concebeu-o de
modo a constituir uma contraprova do questionário "clássico" da escola, na medida em
que não se refere aos fatores fundamentais (Emotividade, Atividade, Repercussão), mas
diretamente aos traços de caráter que, supõe-se, produza sua dosagem( No momento da
aplicação, a concordância pareceu-me duvidosa. Esse novo questionário, aliás, não é o
único, e o número deles corre o risco de crescer, à maneira do que ocorre com os testes
utilizados em psicotécnica(
(1) Gaston BERGER, Trcur pratique d'analyse du caractêre, P.IJ.F. 1952.
(2) Maurice GEX, Tcet coract un diagnostic rapide. P. U.F., 1953.
(3) O de Robert MAISTRIAUX (Questionnaire caracu edição do Centre de
Caractérologie, Bru%elas) comporta 194 quest há, igualmente, 3 questionários -
elementar, típico, caracte,ístico - de Roger
Camada embrionária
Tipo morfológico Endomórfico
Tipo caracterial Viscerotônico
Mesomórfico Somatotônico
Cerebrotônico
356
357
Essa caracterologia psicológica pode concordar, em certa medida, com tipologias mais
ambiciosas( 1)• Sua particularidade é informar-nos sobre os dados atuais do caráter e,
não, sobre sua gênese. A emotividade, por exemplo, admitida como "fator fundamental",
é inata? O nervoso deve seu tipo a uma disposição congênita ou determinada em sua
infância? Ou ainda a um "plano de vida" (Adler) ou a uma "escolha fundamental"
(Sartre)?
É evidente que a gênese do caráter permanece obscura e que variam as concepções,
forçosamente, quando se trata de determinar o que cabe à hereditariedade, à vida uterina
e ao nascimento, à aprendizagem, às influên cias do meio ou às situações vividas. Na
psicologia chamada "das profun dezas", muito especialmente com Freud, uma
influência particular é atribuida à infância. O termo de "caráter" designa, então, antes
atitudes adquiridas, e o papel do temperamento fica eclipsado pelas situações que o
indivíduo viveu no decurso de sua formação. Para Freud, as fases atravessadas pela
criança (oral, anal, fálica) representam um papel determinante, visto estarem na origem
tanto das "fixações" e das "regressões" quanto das "formações reacionais" e das
"sublimações". Postula-se que um indivíduo viveu no estádio oral uma experiência
marcante, ou que conseguiu difidil mente a limpeza anal, etc. Por exemplo, as
formações reacionais a uma fixação anal criariam uma mania da ordem e da limpeza,
até uma mania do escrúpulo, enquanto uma sublimação manifestada no gosto por
dinheiro reconduziria ao prazer da criança a controlar suas matérias fecais; o me smo
ocorreria com o gosto de manipular objetos materiais, típico do pintor, escultor ou
pedreiro mas que também se encontra em muitas profissões manuais. Entre os autores
mais ou menos estreitamente ligados ao freudismo que se ocuparam de caracterologia,
alguns se atêm a pontos de vista que privi legiam as fases e os tristes episódios da. libido
(Karl Abraham, Ernest Jones, Wilhelm Stekel, Anna Freud). Abraham, por exemplo,
que pensa com Freud que os caracteres são determinados por sublimação ou formação
reacional contra as pulsões sexuais, afirma que o indivíduo "genital" não é mais
dominado pelo princípio do prazer, enquanto os outros - os ligados aos está dios
anteriores - são narcísicos (2). Outros insistem no papel do superego. E assim que
Juliette Boutonier propôs uma caracterologia das relações volun tárias que distingue os
dependentes, vítimas de um superego tirânico, incapazes de libertar-se da infância e da
educação; os inibidos e os desre grados cujas ações são, de modos diversos, paralisadas
ou desintegradas(
Para Adler, em compensação, dada a importância quase exclusiva que atribui ao "plano
de vida" orientado por processos compensatórios, é em função do futuro que um caráter
se cristaliza e se estrutura, e se trata, sobre tudo, de descobrir as reações de um sujeito e o
que elas visam. Em tal perspec GAILLAT destinados às crianças (Aaalyse cara cté rielle
des élères d'une classe par lear mai'tre. P.U.F., 1952); ainda
ode Paul GRIEGER, com 160 questões (Tesi caracférologique, 3t edição, suplemento
ao Précis de caractérologie à l'usage des éducazeurs.- le diagno.stic caractérologique.
Paris, Ligel, 1952, etc.).
(1) C. Roger MUCHIELLI: Caraciàres ei i op. cii., P.U.F., 1954, onde o autor se esforça
por evidenciar correspondências entre a caracterologia de HEYMANS-Le SENNE e as
de KRETSCHMER, SHELDON, CORMAN eJUNG.
(2) Éiade psychanalytique de lafor,nation du cara.ciêre (1925), ia Oeuvre.s complètes, 1.
II, Paris, Payot, 1966.
(3) Juliette BOUTONIER, Les défaillances dela ,,Oloaté. P.U.F., 1945.
tiva, o que é muitas vezes considerado como inato seria o produto de tenta tivas de
adaptação, e os "traços" de caráter o produto de uma escolha operada em certas
circunstâncias. Por exemplo, uma criança cujo irmão mais velho é dotado mas violento,
poderá assumir, em relação aos pais, uma atitude simpática para ganhar-lhes a
aprovação; ao passo que um outro se fará cabeçudo e agressivo para dominar pais
demasiado fracos, etc. E essas atitudes constituídas em certas conjunturas familiares se
cristalizarão em "traços de caráter". Eis porque a "psicologia individual" de Adler insiste
tanto sobre a educação, e a constituição nela intervém apenas a propósito dos processos
compensatórios desencadeados em caso de inferioridade orgânica. São,
portanto, em última análise, esses próprios processos, qualquer que seja sua origem, que
constituem o verdadeiro objeto da caracterologia adleriana.
Quanto a C. G. Jung, as preocupações caracterológicas exercem em seu pensamento um
papel privilegiado. Lembrei que ele atribui a uma diver gência de caráter as teorias
antagônicas de Freud e de Adler( l), e isso lhe permite relativizá-las. Sua tipologia é de
um gênero todo especial, elaborada na idéia de que nenhum método estatístico e fundado
na morfologia convém na matéria, dada a complexidade da vida psíquica, particularmente
da vida psíquica inconsciente( Todas as tentativas de fundar um conhecimento da
personalidade em dados objetivos lhe parecem falsas ciências eivadas de simplismo.
Os dois grandes tipos de atitudes descritos por ele, bem conhecidos a partir de então - o
extrovertido e o introvertido - designam a maneira (aber tura ou recuo) pela qual um
indivíduo está em contato com o mundo exterior. Devem ser considerados como duas
dimensões ou dois pólos imbricados da vida psíquica, dos quais o mais manifesto é
consciente e o mais oculto, in consciente.
Em suma, . Jung chama introversão uma disposição para reter, sobretudo, o que é
interior, isto é, o que é sentido e pensado, como se um véu subjetivo interviesse entre a
percepção dos objetos e a própria realidade do sujeito; inversamente, a extroversão
designa a disposição para reter, sobretudo, o quetem relação com o exterior, servindo os
objetos 'como meios de conhecimento para o sujeito. Equivale a dizer que a distinção se
refere à relação sujeito-objeto, a respeito da qual Jung está persuadido que representa um
grande papel no próprio modo de elaboração dos conhecimentos.
No interior desse plano geral, introduz "tipos funcionais", conforme predomine num
indivíduo o pensamento, o sentimento, a sensação ou a intuição; acaba, assim,
descrevendo quatro tipos extrovertidos e quatro tipos introvertidos. Os práticos da
escola jungiana admitem geralmente que as quatro funções podem aparecer às vezes
como personagens no decorrer do processo de individuação( o que vai na direção do
privilégio atribuído por Jung ao arquétipo da quatern idade.
(1) Cf.cap.XXI,lt,d.
(2) Typespsychologiqaes, Genebra, Georg, t950.
(3) JUNG entende por "processo de individuação" uma ampliação da vida consciente,
quando um desen volvimento da personalidade permite a esta recuperar valores de que
não dispunha, especialmente com a integração de sua sombra, isto é. aquilo que, no
interior dela, ela própria recusava.
358
359
Como já lembrei( se Jung admite claramente o ego como centro da consciência, não é
esse ego mas o Si que considera como centro da alma. E é o Si que é visado pelo
"processo de individuação". A idéia de uma auto regulação da alma como totalidade
consciência-inconsciência está implicada em todos os modos de conduzir seu
pensamento, e essa é a razão pela qual os dois grandes tipos de atitudes por ele descritos
(extroversão e introversão) aparecem em sua obra no duplo nível do consciente e do
inconsciente. Por exemplo, se a extroversão caracteriza o indivíduo bem integrado na
vida (o sintônico de Bleuler), ela pode prejudicá-lo por sua unilateralidade, quando
existe o risco de que ele se perca nos objetos e suscite, na forma de distúrbios
neuróticos, um "choque às avessas" de seu inconsciente por demais descu rado;
reciprocamente, uma introversão demasiado exclusiva pode vir a dar, por uma espécie
de desforra das coisas, na esquizoidia.
Pode-se dizer que a caracterologia de Jung alinha-se com uma intuição do mundo que o
orienta em direção da "bela alma", independentemente das condições sociais, o que lhe
criticam os autores que consideram essenciais essas condições( 2).
Essa consideração pode levar a interrogar-se da "objetividade" em matéria de
caracterologia, e talvez da psicologia em geral. Se se fizer abstra ção da caracterologia
prática, modesta em suas pretensões, de Le Senne Berger, há poucas dúvidas de que as
próprias tipologias morfológicas, pela importância atribuida aos dados constitucionais,
tendam antes a dar do homem uma imagem estereotipada. E tal pode ser o caso também
das caracte rologias orientadas para o freudismo, na medida em que insistem unicamente
em certas determinações instintuais (fixações, regressões, etc.) na formação de um
individuo. Esse aspecto das coisas interessa no mais alto grau a escola
"culturalista" norte-americana, em que o remanejamento pelo qual nela passou o
freudismo acarreta uma espécie de dissolução da caracterologia na psicologia social.
Assim é que, para o ilustre representante dessa escola, Erich Fromm, as interações entre
o indivíduo e a sociedade se revestem de impor tância capital. Se admite forçosamente
que os seres humanos têm em comum os instintos de reprodução e de conservação, pensa
que tudo quanto se refere à expressão e à satisfação do homem, isto é, suas paixões, sua
angústia, suas idéias e suas ações, é o produto da história e da cultura. Mas esse produto
(as idéias de Fromm encontram-se então com as de Marx) é por sua vez ativo e reage
sobre o meio, mercê de uma constante dialética em que entram processos essenciais de
assimilação e de socialização(
Nessa passagem de Freud a Marx, que leva a psicanálise para o caminho da crítica social,
Wilhelm Reich - apóstolo dessa "revolução sexual" em voga em nossos dias - foi um
precursor; Membro da Sociedade Psicanalítica em 1920, e do partido comunista em
1927, recusou os remaneja mentos trazidos então por Freud às suas próprias idéias
iniciais sobre a origem sexual das neuroses, em particular a hipótese de um instinto de
morte. Tal remanejamento atestava, a seu ver, um recuo pusilânime em relação à teoria
da libido, que ele próprio pretende "biologizar" mais ainda, na convicção de que
(1) Cap.XXI,
(2) É assim que Herbert MARCUSE crê poder "liquidar" com três palavras o jangismo :
"pseudo-mito logia obscurantista'. (Ema et cieilisation, Paris, Les Editions de Minuil,
1963, pág. 208).
(3) Cl. cap. XXIII, § 2, c.
toda neurose esconde em sua base uma perturbação da função genital, uma de ficiência da
"potência orgástica" ( I)• E como o sistema social é, segundo ele, o principal responsável
dessa deficiência, afirma que se não poderia combater neuroses sem trazer à debate a
ordem estabelecida: "O conflito da puberdade é o resultado da recusa que a sociedade
opõe à vida amorosa do adolescente"(
Em suas preocupações subversivas a caracterologia ocupa um lugar privilegiado, pois ele
pretendia que a análise tomasse em séria consideração o conjunto das resistências que
constituem, segundo ele, a "couraça caracte rial" própria de todos os neuróticos, mesmo
na ausência de sintomas visíveis. Tem como certo que, atrás dos sintomas aparentes, se
encontra sempre um terreno caracterjal mórbido, formado no decorrer dos primeiros anos
de vida, e que transparece no comportamento geral do paciente. A normalidade, em
compensação, é o apanágio do "caráter genital", não recalcado, aberto ao prazer por uma
economia libidinal bem equilibrada, mas cuja atualização é impedida ou constantemente
entravada por nossa civilização moralizante e anti-sexual. Eis porque a psicanálise não
pode abstrair-se das condições sociais, mas tem, ao contrário, obrigação de lutar para
transformá-las.
"Tentei mostrar que as neuroses resultam de uma educação patriarcal e autori tária, com
repressão sexual, e que é a prevenção das neuroses que importa antes de tudo. Em nosso
sistema social, nada permite barrar o caminho aos neuróticos; as condições prévias a toda
profilaxia dependerão das mudanças radicais de nossas ideo logias e instituições sociais
que são o objeto da luta política de nosso século(
Reich descreve várias formas caracteriais de maneira circunstancjada: o caráter
histérico, o caráter compulsivo, o caráter fálico-narcísico e, sobretudo, o caráter
niasoquista(
Embora admitindo que os traços caracteriais derivam em profundidade de fontes pré-
genitais, sua originalidade está em considerar que a "coutaça" determinada por eles, se
protege bem o ego em certo sentido, o isola e se mostra prejudicial pela rigidez conferida
ao comportamento, da qual pode sofrer, freqüentemente, mais o ambiente que o próprio
indivíduo. Surge o caso, por exemplo, com certas condutas entrincheiradas atrás de uma
fachada ambiciosa ou arrogante.
Em suma, Reich está convencido de que todas as neuroses derivam do caráter, que
resulta das adaptações do ego aos instintos e ao mundo exterior; e de que as
malformações caracteriais, mesmo na ausência de sintomas aparen tes, constituem uma
forma específica de neurose.
• (1) "Por potência orgástica nós entendemos a aptidão para alcançar a satisfação
adequada à estase libidi'
nat do momento." . "A consciência se acha completamente concentrada na percepção
das sensações de prazer. O
ego participa dessa atividade na medida em que tenta esgotar todas as possibilidades de
prazer e chegar ao máximo
de tensão antes que se produza o orgasmo." (Cf. Lafoiiction de l'oi-gasme, L'Arche,
1952, págs. 86-93
(2) Ibid., pág. 80.
(3) L 'analyse curacti)eiel/e, Paris, Bibtiothèque Scientifique, Payot, pág. 14.
(4) Ibid., Deuxiême Partie, págs. 184-231.
360
361

CAPÍTULO XXIII
A PSICOLOGIA SOCIAL
1. Os primórdios da psicologia social
2. O "culturalismo" norte-americano a) Etnologia e psicanálise
Os "novos caminhos" segundo Karen Horney
e) O humanismo de Erich Fromm
d) O extremismo crítico de Herbert Marcuse
3. A abordagem experimental
a) Floyd Allport e a "facilitaçãosocial" b) A noção de "atitude" e sua extensão
c) A pesquisa sexológica de Kinsey
d) As experiências de Sherif
e) A "dinâmica dos grupos" de Kurt Lewin
f) Moreno e a "sociometria"
4. Psicologia social, ciência e filosofia
A vida em comum formula um problema fundamental já ao nível da vida animal, onde
muitos fatos observados mostram a influência do grupo no comportamento dos indivíduos
(por exemplo, as relações hierárquicas de dominação e submissão). Dessa influência
ocupa-se a psicologia animal há cerca de trinta anos (estudos sobre as abelhas em
particular, sobre os pássaros, sobre os peixes, etc.). No plano humano, a dimensão social,
dentro do contexto da cultura contemporânea - desde Hegel, Comte, Spencer, Darwin e
Marx - intervém como jamais na história, e a psicologia, apesar de ter por objeto o
comportamento individual, deu-se cónta de que não podia fazer abstração das relações
entre os homens, nem das que os ligam a seu meio. Tal necessidade não havia escapado
àquele que é considerado com razão como o fundador da psicologia científica
- W. Wundt - o qual quis completar suas pesquisas de laboratório por uma "psicologia
dos povos" (1). Mas o enorme trabalho que realizou nesse domínio não parece, te
exercido influência direta sobre as pesquisas contemporâneas, as quais se alimentam em
outras fontes (behaviorismo, psicanálise, Gestalt, psicologia genética, etnologia,
antropologia, etc.).
A preocupação de apreender a vida psíquica em suas manifestações concretas deu
origem à "psicologia social", cujo termo aparece desde o final do século XIX com
Emile Durkheim (1858-1917) e com o psicólogo norte- americano J. M. Baldwin.
Considera-se em geral que a obra de Durkheim,
(1) Sua VoIke não compreende menos de dez volumes (1 cd. 1900.1920).
362
por sua maneira de encarar a vida do homem em sociedade, representa a contrapartida
da concepção individualista que prevalece na obra do compa triota e contemporâneo
Gabriel Tarde (1843-1904). Para esse último, ao mesmo tempo filósofo, historiador,
jurista e criminologista, a sociedade é uma "coleção de seres" que se imitam uns aos
outros. Inspirando-se largamente nos pontos de vista das escolas médicas de Charcot e
Bernheim, o autor de Les bis de l'imitation (1895) funda essa imitação na sugestão(').
Os fenômenos da vida em comum seriam assim condicionados pela
psicologia dos indivíduos que compõem a sociedade, pois a invenção, particu larmente, é
sempre de natureza individual.
Não cabe examinar aqui uma teoria que generaliza esse fato inegável de que o caráter
elementar e automático das funções psíquicas, aparente na degenerescência patológica
como na conduta tipicamente instintiva, volta a encontrar-se em muitas manifestações da
vida social; basta lembrá-la como exemplo de uma já antiga tentativa de explicar as
interações humanas a partir de uma psicologia orientada para o sujeito individual;
perspectiva essa que reaparece na psicologia social americana de nosso tempo. Em
compensação, Emile Durkheim, que desejava ser sociólogo e nada de "psicólogo social",
quis estudar as "representações coletivas" que emergem da interação dos homens em
sociedade, sendo o indivíduo, a seu ver, modelado e dominado pelo meio social. Não é,
pensava, na direção dos indivíduos isolados que será preciso buscar a explicação dos
fenômenos sociais, mas na da "consciência cole tiva", nesse sentido que uma linguagem,
uma tradição popular, uma estrutura politica e social - realidades fundadas nas atividades
coletivas de um grupo - preexistem aos indivíduos particulares e lhes sobrevivem. Por
conseguinte, a "mentalidade" dependeria diretamente dos modelos próprios a uma dada
sociedade, os quais influenciam os indivíduos até em suas relações privadas.
Essa evocação de duas concepções antagônicas, nascidas numa época em que a
psicologia social estava ainda balbuciante, permite compreender logo à primeira que é
difícil definir o objeto da nova ciência. Reconhecem-lhe, em geral, uma posição
intermediária entre a psicologia individual e a socio logia; psicossociologia, em suma,
que se propõe a estudar as interações entre o indivíduo e o grupo social por meio de
pesquisas tão "experimentais" quanto possível, e que enfatiza as relações de
interdependência entre a personalidade e a sociabiidade, com a preocupação de evitar o
inconveniente perigoso de uma oposição abstrata entre o indivíduo e o meio social.
Longe está, entretanto, de que os dois pólos - indivíduo e grupo social - exerçam igual
atração no domínio da psicologia social. Sua história mostra que uma das tendências -
individualista ou coletivista - prepondera segundo os autores, como o mesmo acontece,
aliás, no plano geral da cultura. Nos Estados Unidos, onde a psico logia social chegou a
um extraordinário desenvolvimento, as noções de atitude e de papel, de personalidade de
base, etc., são constantemente empregadas num sentido que deveria permitir superar a
antinomia; tal não ocorre sempre, porém, sem ambigüidade.
(1) As experiências de CJ-IARCOT em Paris, e de BERNHEIM em Nancy. puseram em
moda as sugestões, e vários autores (em particular Gustave LE BON: Psychologie
destoa/eu (1895), aprovada plenamente por FREUD( difundiram a idéia das
transformações por que passa o psiquismo individual ao contato com a multidão, sua
regres são a um estado de selvageria e de barbáne. Com LE BON, todavia, o conceito de
"multidão" permanece indeter minado e aplica-se a qualquer agrupamento.
363
Os primeiros estudos específicos de "psicologia social" remontam a 1908, a denotar de
início a preocupação de se estabelecer uma teoria geral( 1). E o caso, particularmente,
de William McDougall, de origem inglesa, profes sor em Oxford antes de instalar-se em
Harvard (1871-1938), e cujas idéias conheceram grande sucesso além-Atlântico, num
primeiro momento. Sob a influência de Freud, McDougall tomou a si a t arefa de repensar
as teorias de Darwin e de William James, e acabou propondo uma psicologia social não
racional, fundada numa teoria muito ampla do instinto. Antes até da aparição da Gestalt,
forma da atividade psíquica um conceito orgânico e total. Todo comportamento, segundo
ele, está orientado para um alvo (purposive) por uma força
(drive, urge) que se acha na origem de todas as atividades do ser vivo, um pouco no
sentido do querer-viver de Schopenhauer, e que McDougall designa com um termo
grego: hormé. A hormé permite compreen der essa espécie de triagem que ocorre em
todo processo de aprendizagem, durante o qual um ato, conforme tenha êxito ou
fracasse, é sentido como agradável ou desagrável, reforça ou enfraquece a propensão
para realizá-lo. O instinto é o liame emocional que une os três aspectos da vida
subjetiva:
conhecer, sentir, tender para, a cada um dos quais corresponde certo modo de
comunicação: a sugestão, a simpatia, a imitação.
Em suma, malgrado os remanejamentos sucessivos de sua doutrina, McDougall pensa
que as condutas sociais são fundamentalmente instintivas. Até no homem, no qual se
manifestam sob um aspecto muito particular, dadas sua diversidade e plasticidade, é aos
instintos que é preciso recorrer se se quiser compreender o comportamento ou procurar
modificá-lo. Deste modo a religião teria nascido do temor e da submissão; o crescimento
das grandes cidades seria devido ao "instinto gregário"; a acumulação do capital seria o
produto do instinto de aquisição... Esse esforço para constitu ir, ao mesmo tempo
biológica e psicologicamente, a psicologia social suscitou muito apoio e também muitas
oposições. Em particular a de Knight Dunlap, o qual nega a possibilidade de descobrir
impulsos instintivos independentes no comportamento unitário de um indivíduo normal e
não vê nenhuma utilidade em catalogar "instintos sociais
fundamentais" quando se trata de compreen der condutas humanas concretas( O filósofo
John Dewey, um dos primeiros presidentes da American Psychological Association,
opôs-se também às teorias de McDougall, afirmando que não são os instintos mas os
hábitos que permitem dar sentido à psicologia social; hábitos que devem ser considerados
como dinamismos gerados pela interação das disposições biológicas e do meio social,
num sentido que prefigura um pouco o "campo social" que Kurt Iewin introduzirá no
domínio da psicologia social.
2. O "culturalismo" norte-americano
a) Etnologia e psicanálise
As teorias culturalistas, derivadas da psicanálise por filiação e reação, nasceram da
preocupação de submeter à discussão as descrições freudianas
(1) E. A. ROSS; Social Paycholvav, Nova York, 1908. W. MCDOUGALL: Ao
Ioiroduc4ivo to Social Psychologj Londres, 1908.
(2) Are There Any Instincts?, 1919; Habits. Theie Making a Unmaking, Nova York,
1932.
da dinâmica das pulsões, com a consideração de que, tributárias das obser vações feitas
no contexto da civilização ocidental, deveriam ser confrontadas com as condições da
vida infantil em outras sociedades.
Essa passagem do "biologismo" de Freud, como dizem de bom grado os "culturalistas",
para as novas perspectivas desses últimos foi influenciada principalmente pelos
trabalhos de Adier (que insistiu sobre os fatores sócio- culturais em certas fixações do
sentimento de inferioridade), pelos de Reich (que lhes atribui uma importância essencial
na formação do caráter), pelos de Jung, enfim (devido ao interesse que sempre votou à
mentalidade do povos "primitivos").
Desde 1913, o próprio Freud (Totem e Tabu) aborda a psicologia coletiva, num sentido,
porém, que subordina as tendências sociais às pulsões instintuais reprimidas. Em resumo,
ele via na civilização um processo que torna necessária uma coerção com cujas penas os
indivíduos são os únicos a arcar, enquanto que a corrente "culturalista" chegará à
afirmação de que as sociedades devem ser consideradas sob o aspecto de um conjunto de
insti tuições que exercem um papel, não somente negativo, mas positivo na formação da
personalidade.
Mutatis mutandis, aí existe o renascer do conflito que opunha o psicolo gismo e o
sociologismo no começo do século; o primeiro, insistindo inteira mente no indivíduo
como tal; o segundo, vendo nele, antes, a resultante do meio social. Mas a originalidade
dos culturalistas está em que quase não falam mais da sociedade em geral, porém de
sociedades particularizadas, preocupados mormente em reunir fatos precisos que
interessam à formação da personalidade em tal meio social e cultural.
Foi nos Estados Unidos que floresceram suas teorias, modificando a orientação do
freudismo em direção de uma psicologia social que se valia dos dados novos da etnologia
e da antropologia, aqueles, principalmente, extraí dos das descrições de Bronislaw
Malinowski (1884-1942), professor de antropo logia da Universidade de Londres e
universalmente conhecido por seus traba ilios sobre as sociedades primitivas. Entusiasta,
de inicio, em relação à psicaná lise, Malinowski iria abrir o caminho ao
"culturalismo" ao opor às hipóteses freudianas (inspiradas em observações clínicas
realizadas no âmbito da socieda de ocidental), a necessidade de estudar, diretamente e
sem opinião preconcebi da, a vida social, famiial, o comportamento sexual de uma
sociedade primitiva, no caso a das ilhas Trobriand (ao nordeste da Nova Guiné e noroeste
da Melanésia)( Estendeu-se, particularmente, sobre a grande liberdade sexual reinante
entre os trobriandeses. E para duvidar, porém, que suas descrições possam ser utilizadas
tais quais para uma comparação válida com os dados la sociedade européia do século XX
e sua valorização da monogamia, dada a grande diferença de mentalidade, por um lado
científica e técnica e, por outro, mágica, reinante entre as duas sociedades. Por exemplo,
se os trobriandeses ignoram em verdade, como afirma Malinowski, a paternidade
fisiológica, não é surpreendente que vivam sob um
(1) Cl. especialmente La sexual ei au répressiol, dano Ira soci peinliiiies (P.B.P. o? 95);
Ti-vis esaais sue la ele ,oc,ale de, przm,t,fs (P.B.P. n? 109); La Pie sexueile des sauvages
du Nord-Ouesi de la Mélanésie (FtP. n? 156).
Veja-se igualmente a obra de Michel PANOFF. que contém uma bibtiografia !i,-
onislalv Malinvoski
(P. B. P. o? 195).
364
365
regime "matrilinear", em que a mãe forma o centro e o ponto de partida do parentesco, e
a sucessão e a herança transmitem-se em linha maternal. E, porém, forçar as coisas tomar
seu modo de vida, como fará Wilhelm Reich, por modelo de uma sociedade não
repressiva e sã, oposta às sociedades patriarcais que podem apenas produzir desajustados
com a repressão de sua sexualidade. De tal exagero estarão isentos os
"culturalistas" norte-ameri canos, os quais utilizam os dados dos etnólogos com muito
mais ponderação e nuances.
Ruth Benedict, bem conhecida por seus trabalhos sobre os índios da América (1),
contribuiu para a nova antropologia culturalista por sua idéia de que a psicologia dos
indivíduos está, num grupo, subordinada à influência de modelos que devem ser
seguidos para que haja adaptação ao mesmo( Pois, efetivamente, implantar-se-á na
corrente "culturalista" a idéia de que em toda cultura há patterns admitidos e possuidos
em comum, os quais prescre vem ao indivíduo o que deve fazer ou não fazer para ser
aprovado. A noção de pattern tem por corolário a de aculturação, que introduz o
problema de saber como o indivíduo é receptivo às normas do grupo, como pode a elas
adaptar-se e nelas encontrar o próprio equilíbrio. Será evidente que não é possível
contentar-se com ver na personalidade, que deve interiorizar os patterns, o simples
reflexo de uma cultura. Esse problema da interiorização levará a recorrer à psicanálise,
já que, pelos processos descritos por esta, principal mente pelos de introjeção e projeção,
é suscetível de ser explicada a existência de uma personalidade "comum" ou
"aprovada".
Assim Abram Kardiner, nascido em 1891 e professor na Universidade de Colúmbia,
dar-se-á como tarefa sistematizar a nova antropologia, inte grando numa só estrutura
dinâmica o psíquico e o cultural. Para tanto utiliza como psicanalista os inquéritos dos
etnólogos, em particular os de Ralph Linton entre os tanala de Madagascar e os
polinésios das ilhas Marquesas. Persuadido de que as primeiras experiências emocionais
têm durável efeito sobre a personalidade, situa-as em seu contexto social, na medida em
que tais experiências se colocam dentro de um certo tipo de instituições primdrias,
caracteristicas de um grupo que possui suas próprias regras de alimentação, seus próprios
costumes familiais, seus próprios interditos sexuais. Pois, essas mesmas experiências
tendem assim a produzir um estilo de vida comum, uma estrutura de personalidade
análoga: a personalidade de base (3) E preciso, pois, entender por esse termo um modo
de comportar-se, de entrar em relação com outrem e com as coisas, comum aos
indivíduos de um grupo social que têm seus próprios patterns culturais. E essa
personalidade de base, na medida em que se "projeta" - no sentido psicanalítico do termo
- em instituições jurídicas, religiosas, morais, etc., cria esses elementos fundamentais de
cultura que constituem as instituições secundá rias.
Assim é que nas ilhas Marquesas, por exemplo, existiria no folclore, nas lendas e
narrações, a imagem de uma personagem feminina sem equivalente
(1) Em particular, com Ruth BUNZEL, sobre os zulti, tribo que vive numa faixa de terra
inóspita, ao longo do rio do mesmo nome, entre as Montanhas Rochosas e as Sierras,
(2) Patterns ofCulture, Nova York, 1934; o titulo da trad. francesa - Échanti//u,is de
civi/isations, Les Essais, Galtimard, 1950- não explica o sentido implicado no titulo
original, visto que pattern (modelo, esquema, configuração, padrão...), desde então de
emprego corrente, é algo muito diferente de éc/,unti/hn.
(3) Cl., sobre esse conceito, o estudo histórico e critico de Mike! DUFRENNE. Lo
j,eesovvulité de ha P.U.F., 1966.
em nossas sociedades; e isso precisamente porque lá se encontra um esquema cultural de
educação muito diferente do nosso. As mulheres, que ali parecem ser menos numerosas
do que os homens, passam de homem para homem, abandonando suas crianças desde o
nascimento. As crianças, nessa região onde não há quase leite e onde o alimento é raro,
são alimentadas pelo pai que lhes administra nem bem nem mal uma papa de farinha e
leite. Aléfn da grande mortalidade infantil, origina-se dessas condições de educação uma
personalida de particular cujos traços estão em relação com a experiência de uma
carência maternal. Não é sob o aspecto da mãe que a mulher lhe aparece, mas, antes, sob
o de um ser a temer e no qual não se pode confiar. E, pois, pelo lado da personalidade de
base, conceito "operacional" a seu ver, que Kardiner faz
derivar as instituições secundárias das instituições primárias. A noção é investida ao
mesmo tempo de um valor lógico (é normal que condições idên ticas de ambiente na
infância produzam uma estrutura de base análoga) e empírico (uma tal estrutura comum é
localizável num grupo humano).
Por conseqüência, convém admitir que os traços típicos da "persona lidade de base" são
verdadeiramente congênitos às instituições, e determiitam
a existência e a estabilidade de uma cultura. Elaborada em certo meio família!
e educativo (por um modo comum de alimentar, amar e disciplinar as crianças),
essa personalidade permite o ajustamento a instituições que, por
sua vez, continuam a modelá-la e a estruturá-la( l).
Tal articulação deveria assim permitir - em princípio pelo menos - compreender as
condutas pessoais pelo estudo das instituições; e, inversa mente, prever a natureza e a
evolução destas a partir da personalidade
de base.
Os trabalhos de Ralph Linton (1893-1953), por último professor de etnologia na Yale
University, são menos esquemáticos. Procedem de um homem que adquiriu, no próprio
espaço de trabalho, como arqueólogo e depois como etnólogo, uma grande experiência da
vida de numerosos grupos, e representam, no mais alto nível, o pragmatismo em matéria
de psicologia social. Esta, segundo Linton, deve preocupar-se de nuançar as coisas,
admitindo particularmente, além de uma "personalidade de base", a noção de uma
"personalidade estatutária". Pois, se se quiser compreender como a posiç do indivíduo na
organização social influencia suas relações com a cultura, o recurso a uma tal
personalidade, ligada a certa classe ou casta, poderá explicar a modelagem por que
passou a individualidade em sociedades cujas relações de produção têm um conteúdo de
classe. A esse respeito Linton retoma do sociólogo e filósofo George Herbert Mead o
conceito de papel, indispensável, a seu ver, se se quiser explicar a socialização da persona
lidade.
Em suma, Linton se preocupa em assinalar e descrever modelos muito diferenciados.
Ele próprio, porém, nem por isso está menos convencido da importância capital do
condicionamento dos primeiros anos de vida:
"Embora mal se tenha começado a estudar as relações entre as técnicas de educação das
crianças nas diferentes sociedades e os tipos de personalidade de base
(1) C de KARDINER; The Jndii and lux Socuet Columbua Untsersity Press, 1939 (trad.
francesa. L'indiu dann na sociéué, Paris, N.R.F., Gallimard, 1969, com uma introdução
de Claude Lefort(. Cl. gualtneflte PsychologieuilFrou ofSoeiety. Nova York, 1945.
366
367
constatados entre os adultos, está-se, entretanto, em condições de admitir entre os dois
fatos correlações indubitáveis (1)."
Ele reconhece que a determinação dessas correlações é coisa delicada, dada a
complexidade dos laços inter-humanos, mas sem duvidar do princípio:
"Resta o fato de que, quando se conhecem os resultados já obtidos, não se pode duvidar
que dêem a chave de numerosas diferenças entre os tipos de personalidade de base, até o
presente atribuídas aos fatores hereditários. Os membros "normais" de não importa que
sociedade devem a configuração de sua personalidade muito menos a seus genes do que
às suas amas-de-leite (nurseries) (2)."
A análoga conclusão chegara Margaret Mead, filha do sociólogo George Herbert Mead,
com as hoje clássicas investigações em certas tribos da Nova Guiné; tribos pouco
numerosas, mas que haviam conservado tipos de cultura pouco contaminados pelos
modelos ocidentais (3). Suas descrições, que muito contribuíram para o enriquecimento
da psicanálise e da psicologia social, visam, também elas, a mostrar que o meio social
(atitudes, modelos propostos às crianças) é mais determinante para a formação da
personalidade que o processo genético. Assim, nas ilhas Samoa, pôde constatar, a
família, no sentido em que a entendemos, não existe; a moradia contém uma dezena de
homens e a criança não distingue o pai. Desse modo, não pode essa criança conhecer a
situação edípica. A vida em comum dos meninos e meninas, os mais jovens a obedecer
aos mais velhos, parece igualmente excluir os trauma tismos sexuais. A moça, em
particular, que se submete a mandos múltiplos, goza de grande liberdade sexual, e
adquire assim um tipo de personalidade que não conheceu os distúrbios da puberdade.
Isso provaria que a famosa "crise da adolescência", com todas as perturbações
fisiológicas e psíquicas que lhe são atribuídas, depende do meio e, não, de condições
biológicas inelutá veis. Margaret Mead pensa que é, aliás, o caso de outras
propriedades, julga das normais segundo o sexo, "naturais" ao homem ou à mulher em
geral, quando são, na realidade, função do meio e da educação.
Sucede assim que na tribo dos arapesh, que vivem numa região monta nhosa e pobre,
não se pode encontrar o espírito de competição característico, em todos os níveis, de
nossas sociedades ocidentais. Os homens e as mulheres, mansos e bondosos para com os
filhos, cercando-os de afeto e punindo-os com discernimento, fazem deles seres
cooperadores e confiantes. Inversamente, na tribo canibal dos mundugomors, na qual
todos são caçadores, as mulheres são tão combativas, violentas e cruéis quanto os
homens. Não manifestam nenhum "amor maternal", e os filhos, a viver no meio de
adultos indiferentes ou hostis, são coagidos a lutar para obter o suficiente alimento; em
tais condi ções, reagem com a agressividade, tornam-se inquietos e violentos. Enfim,
numa terceira tribo, a dos tschambulis, o elemento dominador é representado pelas
mulheres. Robustas, práticas, agindo com reflexão, são elas que tratam dos negócios do
clã e se ocupam do abastecimento. São também elas que
(1) The Cultural Background ofPerso,talsit', Nota York, 1945 )trad. francesa:
Lt'fusdernero culturel dela personualité. Paris, monographies Dunod, 1967, pág. 125)
(2) Jb,d., pág. 126.
(3) Seus principais escritos foram traduzidos em francês sob o titulo de Moeurs ei
sexualit en Océanie (Paris, Plon, 1962).
escolhem os companheiros, enquanto os homens, sensíveis, timidos e submis sos,
dedicam-se à dança, à tecedura, à pintura... Em resumo, pois, as pesquisas de Margaret
Mead vêm dar também na formulação do problema essencial da nova antropologia: o de
saber o que, na formação da personali dade, cabe aos instintos e aos fatores sócio -
culturais. Na medida em que o realce é dado à plasticidade do ser humano em interação
constante com um meio particularizado, o problema implica submeter novamente à
discussão a doutrina freudiana que relaciona as experiências da primeira infância com as
pulsões do ide com a constituição do superego (1).
A oposição poderia, entretanto, ser menos decisiva do que parece abstratamente, nesse
sentido em que os processos descritos por Freud, parti cularmente os de introjeção e de
identificação (que resultam em interiorizar o que primeiro é exterior) permanecem válidos
pelo fato de que a criança, mesmo educada num meio muito diferente do de Freud,
integra efetivamente regras de conduta e tabus. Não observou Margaret Mead que nas
ilhas Samoa, malgrado a grande liberdade sexual de que fala, existem tabus rigo rosos no
concernente aos irmãos e irmãs? Contrariamente ao que se passa em nossas sociedades,
elas que se sensibilizam tanto com o incesto entre pais e filhos. Se, pois, é indubitável
que as prescrições e os interditos variam de uma sociedade para outra, parece difícil
provar contra Freud que as motivações sexuais não representam em todos
os casos um papel importante, nem que se possa não levar em conta, na vida infantil
(seja qual for o meio social) a descoberta pela criança de sua própria sexualidade.
Resta, porém, ver que solução encontra esse duplo aspecto das coisas - biologia e
ambiente - entre os principais "culturalistas" nos Estados Unidos.
Um dos pioneiros da nova orientação é o psiquiatra Harry Stack Sullivan, cu jos trabalhos
são característicos da imbricação da psicopatologia e da psicologia social. A psicanálise,
tal como a concebe, não mais se orienta para o sujeito individual mas torna- se o estudo
das "relações interpessoais". Sua teoria tem por fundamento a idéia de que, a partir de um
substrato bioló gico dado, a pessoa humana, produto de interações com o meio social, é
modelada pela cultura. Essa teoria atribui, assim, grande importância à aprovação ou
desaprovação que as tendências individuais encontram na socie dade, podendo a pressões
exercidas por esta suscitar má consciência e, até, dissociar o psiquismo individual(
Convém, todavia, lembrar que a ampliação das teorias psicanalíticas por um
conhecimento mais aprofundado das interferências culturais sobre a formação e o
comportamento do individuo, não é um fenômeno unicamente norte-americano. Em
França, por exemplo, Daniel Lagache, prático de rara cultura (a um tempo, médico,
literato e filósofo) que se tornou o primeiro professor de psicanálise da Sorbonne, é autor
de uma obra teórica importante que visa também a assinalar o papel essencial das
relações inter-subjetivas e das identificações( Lagache tem como certo que a psicologia
pode ser
(1) Sobre esse aspecto das coisas, c Roger BASTIDE: "Sociologie et psychaoalyse", tu
Trasté de socso' logie. publicadosobadireçâodeG. Gurvitch. t. II (P.U.F., 1960).
(2) Ci. Iutroduction lo lhe Stud of !uferpersoual Relatiosss itt Psych,atr , vol. 1, 1938;
ConcepttonS of Mode,',, Psvchiatry, Washington, 1946; The lnterpersonal Theory
ofPsychsatry. Londres, 1955.
(3) La jalot,xis' a,ussureusc. 2 sois., t'.U. F.. 1947: L 'u do la 1 P.U.F.. 1949; La psvcha
fla!Vse, P 1955. etc.
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369
apenas "cinica", sendo tarefa dela fazer servir o aparelhamento científico a uma
verdadeira compreensão de condutas que sempre, concretamente. são as dos seres
humanos a braços com uma situação determinada( 1). Foi por seguir o próprio caminho
que também ele se voltara para a psicologia social(
b) Os "novos caminhos "segundo Karen Horney
Karen Horney (1885-1952), natural de Hamburgo, estudou medicina em Berlim, onde se
uniu ao grupo freudiano. Exercera importante papel no Instituto Psicanalitico berlinense
antes de emigrar para os Estados Unidos em 1932, onde ensinará primeiro no Instituto
Psicanalítico de Chicago, a chamado de Franz Alexander, depois no de Nova York. Mas,
devido sua insistência sobre a importância dos fatores sociais nas neuroses ter suscitado
tensões no seio desse instituto de obediência freudiana e, finalmente, sua exclusão
(1941), ela fundará com colegas a Association for Advancement of Psychoanalysis, com
um organismo próprio para a formação dos analistas, o American lnstitute for
Psychoanalysis, e uma revista, a American Journal of Psychoanalysis, atualmente dirigida
pelo Dr. Harold Kelman.
Em seus artigos publicados na Alemanha pelos anos 3Ojá aparece certo desvio em
relação a Freud quanto à diferença dos sexos; pois ela recusa admitir que a pretensa
inferioridade da mulher se ligue à biologia e incrimina a esse respeito a condição que
lhe é reservada numa sociedade, ao mesmo tempo industrializada e puritana, que reduz
o papel feminino ao amor e à maternidade (3).
Difícil é saber em que medida, em Berlim, onde conheceu Wilhelm Reich, foi ela
influenciada pelo marxismo, a respeito do qual reinava grande fermentação das idéias
após a guerra 1914-1918. Em todo caso, Erich Fromm, com o qual colaborava, viveu
por sua parte, intensamente, esses anos contur bados e não cessou desde esse tempo de
associar Marx a Freud em sua reflexão(
Em sua introdução a Les voies nouveiles de la psychanalyse, Karen Horney relata que ela
sentia umas vagas dúvidas quanto à validez das teorias psicanalíticas, e que Wilhelm
Reich, entre outros, a havia então "encorajado e estimulado" ao insistir sobre a
necessidade primordial de analisar os traços caracteriais de defesa que o neurótico
constrói para si. Manifesta seu reconhe cimento a Max Horkheimer, que "a ajudou a
descobrir as premissas psíquicas do pensamento de Freud", e sobretudo a Erich Fromm,
admitindo que lhe deve muito. Suas dúvidas deveriam confirmar-se nos Estados
Unidos:
(1) cf. Mme FAVEZ-HOUTONIER: La psrohsiogtr dlinique. ubjet-rnéthsdes-
proh/èmes, Centre de Documentatvon Universitaire, 1959.
(2) Cl. parttcularmente vn Ur. A. HESNARD: L 'oeuv','e de Feend op. vir., o capítulo
VI consagrado psicaná!tse francesa, especialmente a Daniel LAGACHE e a Jacqaes
LACAN.
(3) Flucht uns de, Wetblschke (Fuite de la fémisité, 1926); Geltem,nte Weiblichkejt
(Obstacles de ia féminsté, 1926); D,e monogame Forderung (Les exigences de lo
monogamie, 1927); Das Misntrauen zwischen den Geschiechtern (Lo méfsance entre les
sexes, 1930), etc., in Internationale Zeitschrifz für Psychoanalyne. Cl. La psrchslogve
de lafe Paris, Payot, 1969.
(4) "Estava profundamente perturbado por interrogações sobre os fenômenos individuais
e sociais, ávido de encontrar uma resposta, Encontrava as respostas no sistema de
FREUD e no de MARX. mas fui também estttnulado petas opostções e peto desejo de
resolver essas contradições.' (is Berond tive Chavns of iliusioris - M Encounte, n'oh
Marx and Freud, Pocket Books, Inc., 1962.)
"A maior liberdade que encontrei nos Estados Unidos face às crenças dogmã ticas,
permitiu-me de não me crer mais obrigada a considerar como indubitáveis as teorias
psicanalíticas e deu-me a coragem de avançar segundo os caminhos que eu tinha por
justos."
Seus trabalhos despertaram além-Atlântico um muito amplo inte resse (1).
Se ela deveria acabar se convencendo de que as condições culturais são determinantes
em numerosos conflitos neuróticos, e de que o "biologismo" de Freud reflete a
mentalidade ultrapassada da época em que ele viveu, não renega o método da
"associação livre" nem as teorias freudianas das pulsões inconscientes, mas modifica a
técnica psicanalítica com considerar que importa sobretudo observar as reações
emotivas do paciente no decurso da análise.
Incorporando os pontos de vista adlerianos sobre a necessidade de afirmar-se e de
compensar inferioridades, ela contestará em 1942 (L'auto analyse) a necessidade,
afirmada por Freud, de um psicanalista para adquirir a autonomia. Para Karen Horney, o
ego tende naturalmente a desenvolver-se e a realizar-se, e a neurose apenas aparece se
essa tendência foi maltratada na criancinha pelos que a cercam. Mas, mesmo então, a seu
ver, a tendência per manece, em geral, bastante forte para que o adulto possa sair-se bem
da dificul dade. O alvo do trabalho é fornecer às pessoas desejosas de tentar a experiên
cia de uma auto-análise os conhecimentos e os métodos que o permitirão. Reconhece,
todavia, que esta não é uma tarefa fácil, mas difícil e dramática, e que ao menos o
controle de um entendido é desejável.
Por outro lado, Karen Horney se desvincula da metapsicologia de Freud, mormente dos
instintos de morte, da agressividade inata, da compul são de repetição, coisas todas que
lhe parecem eivadas de pessimismo excessivo, O que propõe, não é aplicar a psicanálise
aos estudos sociológicos, mas fazê-la tirar proveito das descobertas antropológicas
invertendo, em suma, as relações estabelecidas por Totem e Tabu entre a psicanálise e a
sociologia.
Em La personnalit névrotique de notre temps (1937) afirma que as condições de vida,
sobretudo nos grandes centros urbanos, são fatores decisivos de neuroses. Pois, elas
preparam o individuo para uma incessante frustração: riquezas inacessíveis num mundo
brutal onde o dinheiro tudo permite; mundo em contradição com o ensino moral e
religioso e onde a desi gualdade dos bens cria entre os indivíduos um estado de tensão
ou mesmo de hostilidade. O que em troca se lhes oferece em profusão são possibilidades
de satisfação imaginária distribuídas por rádio, cinema, televisão, inúmeras revistas, etc.,
outras tantas compensações alucinatórias que contribuem para o desequilíbrio mental.
(1) Tive Neurr,tie Personaiitr of our Time, Nova York, 1937 (trad. francesa: La
personnalilé nérrotv que de nutre temps, Paris, L'Arche, 1953); Neo Wars is
Psvchoanalrsis, Nova York, 1939 (trad. francesa: Les roles sou ceifes dela
psrc'hanalyse, Paris, L'Arche, 1951); Setf'Anaivsis. Nova Ycrk, 1942 (trad. francesa:
LAuto -anal se. com um prefácio de Didier ANZIEU, Paris, Stock, 1953); Ou, Isner
Confliv'ts, Nova York, 1945 (trad. francesa: Nos conflicts intérieur.v, Paris, LArche,
1955).
Para uma bibliografia mais completa, cf. Yvon BRES: Freud ei ia psvchana/rse
améncalne, Karen Noese, Paris, Vrin, 1970.
370
371
O segundo trabalho da autora, Les voies nouvelies de la psychanalyse (1939), é que iria
anunciar uma nova dissidência no interior do movimento psicanalítico.
São, certamente, dignas de interesse as idéias que fundamentam essa cisão, mas foi
freqüentemente criticada em Karen Horney, muito particular- mente na Europa, certa
superficialidade que contrasta com a profundeza deFreud(
c) O humanismo de Erich Fromm
Em compensação, é inconteste a reputação de Erich Fromm, freqüen temente
considerado como o pai da escola culturalista americana. Nasceu em Francforte em
1900. Após ter estudado psicologia, sociologia e filosofia para especializar-se em
seguida em psicanálise no Instituto de Berlim, emigrou para os Estados Unidos em
1934, e deu cursos na Colúmbia e na Yale University; atualmente ensina psicologia na
Universidade de Nova York e na National University, de México. No início dos anos
30, colaborara na revista Zeitschr für Sozial Forschung, editada pelo conceituado Instituto
de Pesquisa Social de Francforte, ao qual pertenciam Theodor Adorno, Max Horkheimer,
Herbert Marcuse. Sua obra considerável( ampliou enorme- mente os dados psicanalíticos,
pois que, se se pode dizer, lançou mão "de todos os meios para alcançar seus fins",
considerando como um terrível empo brecimento a tendência atual para relativizar o
pensamento e para deificar uma "objetividade" esterilizante:
"A pesquisa científica deve ser impessoal e seu objetivo é manter o mundo sob um
microscópio anônimo, necessariamente assepsiado e esterilizado, afastado de toda
contaminação humana. Antes de tratar de qualquer fato que seja, o analista deve cal çar
as luvas de borracha do cirurgião. (La peur dela liberté, op. Ci pág. 198.)
Sua concepção é, pois, a de um homem "engajado" que se esforça por considerar a
realidade humana em sua complexidade, sob o duplo aspecto de corpo e de espírito, de
sensibilidade e de razão, de ser individual e de ser social. Se o homem possui um
inconsciente, tem também uma consciência, e essa exige um resposta para a questão do
sentido mesmo de sua existência. Isto quer dizer que Fromm se recusa a separar a
psicologia dos problemas biológicos, econômicos e sociais, e até dos problemas
filosóficos e morais. E a "condição humana" que o preocupa, a união do homem no
mundo, numa liberdade ineliminável que lhe confere um status sui generis.
Como Jung, está persuadido de que o "recalcado" não consiste unica
(1) Cf., por exemplo, J.-B. PONTALIS: "Les ,nauvais chemins de la psychanalyse ou
Karen I-lorney critique de Freud". ia Aprls Freud. Paris, Sulliard, 1965.
Em compensação, o trabalho de Yson BRÉS: Freud ei/o psvchana/rse anléncaine. Karen
Horrlv (Paris. Vrin, 1970) procura dar relevo ao pensamento da autora.
(2) Escape from Freedom, Nova York, 1941 (lrad. francesa: La peur de/a /iberté, Paris.
Buchel/Chastel,
1941); M for Hin Nova York, 1947 (trad. francesa: L /tomme pour /ui-mênie, Paris. Les
Editions Sociales
Erançaises, 1967); Pst'choanalvsis and Reli Nes 1950 (trad. francesa: P ei re/içiii,i.
Paris.
Editions de lEpi. 196$); TiteForgotlen Laaguage, Nova York. 1951 (trad. francesa: Li'
langogeouhlié, Paris, Payot.
1953); The Sane Soci 1955 (trad. francesa: Si,ciéré aliénée ei société saine. Paris. Le
Courrier do Livre. 195€):
The Jleort ofMan, lis Genius for Good and E,'i/, Nova York, 1-larper & Row, 1964: T/te
Rerr,/ution of Hope. Nova
York, 1968 (lrad. francesa sob o tílaloEspoires réiolution, Paris, Stock, 1970).
mente em tendências incompatíveis com a vida em sociedade, mas também em
virtualidades preciosas. Por isso a terapêutica psicanalítica deve ser enca rada, segundo
ele, de maneira mais ativa e positiva do que a dos freudianos ortodoxos, pois não se trata
apenas de habilitar o sujeito a adaptar-se às restrições da sociedade em que vive, mas,
na perspectiva de uma sociedade mais humana, ajudá-lo a desenvolver suas
potencialidades, a tornar-se verda deiramente "ele mesmo". A esse respeito, pensa-se,
igualmente, no "processo de individuação" de Jung, embora a tonalidade difira. Ainda
por outro lado, lung foi o primeiro a desvendar o papel que podem representar, no cresci
mento da criança, os problemas afetivos dos pais; ora, esse papel é reafirmado por
Fromm de maneira muito circunstanciada, na preocupação de mostrar quanto certas
atitudes "destruidoras" podem prejudicar ao desabrochar de uma personalidade.
Concretamente, ao nível das relações familiais, os casos são inúmeros. Por exemplo, uma
criança nascida na classe média, dotada de talento e de gosto pela arte, poderá chocar-se
com a oposição de um pai, para quem o dinheiro e os negócios são "a realidade"; caso
esse pai seja autoritário, opor-se-á francamente. Se for de opinião que
"é preciso" não contrariar o desenvolvimento do filho, sofrerá em silêncio; mas, mesmo
nesse caso, este terá a idéia de que sua conduta desagrada àqueles que ama, sentirá an
gústia, e essa o levará a reagir de algum modo: ou se revoltará, empe nhando -se em
conflito aberto, ou desenvolverá seu talento e gosto numa espé cie de clandestinidade, ou
se dobrará à vontade paterna, racionalizando sua resignação. O resultado, porém, será de
qualquer modo uma mutilação de sua tendência criadora.
De maneira mais geral, no seio de uma cultura que vê em certa dureza uma prova de
vigor e de poder, os indivíduos deverão reprimir, como fraqueza, toda expressão de
simpatia humana espontânea. Fromm está persuadido de que as influências parentais se
exercem desde o primeiro instante da vida, por uma interação que ocorre entre o filho e
os pais. De Adler retém a idéia de que a primeira forma de angústia na criança nasce do
conflito entre a necessidade de ser amada, rodeada, aprovada, protegida, e a de ser
independente; insiste, porém, no fato de que as tendências que a criança se esforça por
reprimir, para estar em harmonia com o meio, não são forçosamente tenulências em si
indesejáveis, até se estão em desacordo com as normas culturais autorizadas ou
prescritas. Enquanto Freud pensa que a sociedade tem por função controlar as pulsões de
que se acha o homem dotado biologicamente, Fromm "marxiza" as coisas, esforçando-se
por mostrar que a cultura é uma realidade dinâmica no próprio interior dos indivíduos, e
que as tendências dela, historicamente datadas, exercem um papel capital na formação de
uma personalidade. Assim uma sociedade industrial, com sua mecanização e sua
burocratização, exige atributos como a disciplina, a ordem, a pontualidade.., que se
tornam, por sua vez, produtos e agentes de cultura. Fromm insiste sobre os atributos
relativamente permanentes de um "caráter social" determinável. Sem adotar a teoria
kardineriana da relação entre instituições primárias e secundárias, atribui a esse caráter
social um papel tanto psicológico quanto econômico, pois sua função subjetiva é "de
levar-nos a nos felicitar por agir como somos obrigados a fazê-lo"; tal caráter "interioriza
as necessidades exteriores e atrela a energia humana a determi nadas tarefas econômicas"
(5). Em outros termos, as idéias só se tornam
(1) Lapeurdela liherté, op. di., pág. 227.
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operantes na medida em que respondam a necessidades humanas determi nantes em um
caráter social. Cabe, pois, admitir que a estrutura desse caráter influencia não apenas os
pensamentos e os sentimentos, mas róprios atos:
"Os atos de uma pessoa normal podem parecer fruto unicamente de conside rações
racionais e lógicas, como imperativos da realidade. Debaixo, porém, do micros cópio da
análise psicanalítica, distingue-se facilmente que larga parte do comporta mento
humano obedece outros impulsos. Visto hoje todos experimentarem o mesmo eslíniulo
para o trabalho-e a necessidade de ter uma ocupação remuneradora ser mais urgente do
que nunca, pode-se avaliar a parte de coerção e de inconsciente que entra em nossas
preciosas atividades de cidadãos livres(')."
Mas a sociedade como tal não se opõe absolutamente ao homem; ela é criada por ele e o
cria por sua vez, num movimento dialético que constitui a história. Essa a razão pela qual
não se deve considerar as pulsões instintivas
- historicamente condicionadas - como fatores biológidos estabelecidos para sempre.
Fromm não poderia, evidentemente, contestar que os seres humanos experimentam todos
certas necessidades como a fome e a exuali dade; mas ele salienta o fato de que essas
próprias necessidades não estão fixadas quanto à forma de sua expressão e satisfação e
de que, em particular, tudo quanto se passa no psiquismo humano é produto da cultura. E
já lem brei sua convicção profunda de que o homem não tem somente necessi dades
fisiológicas mas igualmente aquela, não menos imperiosa, de dar um sentido à sua
relação com o mundo e consigo mesmo, sob pena de ter uma sensação intolerável de
solidão e isolamento. Não pode haver saúde mental sem liames espirituais, sem uma
orientação que implique certa fé e uma capacidade de dedicação a alguma coisa. O ser
humano, libertado da adapta ção instintiva por um processo efetuado, sem dúvida, muito
lentamente, acha- se hoje, ao nascer, mais despojado de comportamentos
predeterminados do que qualquer outro animal e, em conseqüência,
sua adaptação deve muito menos ao instinto do que à aprendizagem no seio de uma
cultura. Deve tudo aprender; não só a comer e a andar, mas a viver, isto é, a ser capaz de
agir e pensar por si mesmo, como pessoa autônoma; a viver, num certo sentido,
separado da natureza assim como do grupo, e sabendo que deve morrer. Se se tornou
mais "livre", se domina, em certa medida, as forças naturais, ele é também desde já ma is
consciente de sua precariedade, de seu isolamento e de seu fim inelutável. Na Idade
Média, pertencendo a um todo estruturado, sua personalidade estava integrada e sua
vida tinha um sentido definido; identi ficava-se com o papel que representava na
sociedade: camponês, artesão, cavaleiro, clérigo. Mas os movimentos econômicos,
politicos, religiosos, sociais, após a desintegração da vida medieval, transformaram essa
situação; uma nova classe apareceu, a dar menos valor ao nascimento e à origem do que
ao espírito de iniciativa e à ambição individual. Seu domínio sobre as massas destruiu a
estrutura social; e se a nova liberdade trazia com ela um sentimento acrescido de poder,
graças a uma atividade econômica florescente, vinha acompanhada de uma sensação de
isolamento individual, fonte de angústia e de cepticismo quanto ao sentido mesmo da
vida. Erich Fromm, que evoca Max Weber, pensa que a Reforma contribuiu muito para o
advento da liberdade e
(1) Ibid., pág. 225.
do isolamento, na medida em que criou uma nova individualidade que visava a se fazer
amada de Deus e a merecer a salvação, e que via no êxito um indício do favor divino. E
os traços caracteriais que levavam a encontrar no sucesso pessoal um lenitivo para a
angústia e para a dúvida vieram a ser as forças produtivas do sistema capitalista.
Depois de tais experiências culturais, a questão para Fromm é saber se o homem será
capaz de conservar a confiança em si e sua independência, à espera de encontrar uma
solução para a sua sensação de solidão; ou se prefe rirá renunciar à sua integridade e à
sua liberdade abandonando-se a não importa que forma de totalitarismo, pela
necessidade de sentir-se novamente ligado aos outros.
Em The Sane Society (1956), Fromm psicanalisa a alienação do homem contemporâneo
numa sociedade cuidosa, antes de tudo, de produção econômica; um homem de
personalidade condicionada, tornado estranho ao mundo que ele criou, a seu
semelhante, às coisas que utiliza e aos alimentos que consome, ao domínio de si e, até, à
sua interioridade. O diagnóstico é sombrio. Fromm, todavia, não quer desesperar e
ardentemente deseja o advento de um "humanismo radical", capaz de transformar a i
atual:
"O combate será difícil. Mas quando a opinião pública, reagindo com força à ameaça à
vida - tanto física quanto espiritual - começar a exigir essas mudanças, cada vez mais
numerosos os homens juntar-se-ão às fileiras do humanismo radical. Uma leve
esperança é justamente permitida, porque a ameaça atual não é somente dirigida contra
o interesse de classe de certos grupos, mas também contra a vida e a saúde de todos;
assim as idéias do humanismo radical têm chances de serem adotadas por uma grande
parte da população e de realizarem, como convém, uma mudança radical (1)"
d) O extremismo crítico de Herbert Marcuse
O progressismo de Karen Horney e de Fromm é julgado insignificante por Herbert
Marcuse( Recorrendo à metapsicologia de Freud num sentido que politiza todos os
problemas, atribui ao freudismo uma ala esquerda com Wilhelm Reich na melhor
posição, e uma ala direita da qual Jung lhe parece o representante mais significativo e
detestável; finalmente, porém, nã é menos severo com respeito aos "culturalistas", cujo
reformismo, oportunista, ambí guo e inoperante, a seu ver, ele desaprova(
É perfeitamente inútil, segundo ele, desejar um futuro melhor limitando-se a denunciar
o mercantilismo e o caráter desapiedado da concor
(1) Eupvo' et r vp. cit. - pág. 180.
(2) Herbert MARCUSE nasceu em Berlim em 1898. Tendo vivido intensamenle a
Revolução alemã no decurso de seus estudos, quando militasa no partido social-
democrata, deixará Berlim para acabar seus estudos em Friburgo-em-Brtsgau, onde será
aluno de Edmundo HUSSERL. depois de Martin HEIDEGGER; sob a direção deste
último, elabora sua tese de doutorado sobre HEGEL (L de liege) o lefondensent d'une
Ihéorie de I'h,sii,r,c,té, 1932). Ligado a Theodor ADORNO e a Mas HORKHEIMER,
por uma reflexão comum sobre a socio logia e o marxismo no Instituto de Pesquisa
Social de Francforte, exilar-se-á nos Eslados Unidos depois do advento de Hitler. Nesle
último país ele ensinava na Universidade californiana de San Diego.
(3) Cl. Éros et ciei/isuzion, contrihution à Freud (Paris. Les Edilioos de Miruil. 1963),
mnito particular- mente o posfácio: "Critique du eévisionisme néo-freudien".
374
375
rência no presente. Pois, a mudança que se impõe e que interessa a estrutura instintual do
homem tanto quanto sua estrutura cultural, é muito mais profunda. Tal mudança torna
necessária uma luta que as teorias de Karen Horney e de Erich Fromm só podem
paralisar, com sua "espiritualização revisionista" a transformar o fato bruto da repressão
social num problema moral, como todas as filosofias conformistas o fazem em todas as
épocas. Seu reformismo atenua os problemas do conflito entre as forças pré-individuais
(id) e as forças supra-individuais (superego), os quais se tornam simpl os das relações
entre o racional e o irracional, entre a conduta moral e a imoral dos indivíduos. Que o
homem seja ele mesmo e para si mesmo, eis uma aspira ção frommiana. Mas como
poderia sê-lo quando o indivíduo é sujeito e objeto de uma manipulação tal que não tem
mais sentido a distinção entre ser para si e ser para os outros?
Os "cuituralistas" negam querer adaptar o indivíduo à sociedade por eles criticada, mas
logram apenas elaborar uma nova ideologia da interiori zação. E isso porque não vão ao
fundo das coisas e porque não submetem a discussão as "premissas fundamentais da
sociedade". Se a "força e á integri dade interior", que Fromm invoca a seu favor, são algo
a mais do que a socie dade alienada espera de todo bom cidadão que coopera para a
alienação geral, elas se relacionam com uma consciência que ultrapassou essa alienação;
ora, uma tal consciência esclarecida não pode mais aceitar valores que se reve larão como
os instrumentos do estado de coisas a mudar.
Ou, afirma Marcuse, definem-se a personalidade e a individualidade dentro da
civilização existente, e a realização delas equivale então a uma adaptação bem sucedida,
ou elas se definem em termos de um conteúdo que ultrapassa os limites dessa
civilização e engloba potencialidades recusadas ao indivíduo. Neste caso, a realização
implica o recurso a formas novas de perso nalidade, e a verdadeira cura de um paciente
seria tornar-se ele um revoltado...
Em suma, Marcuse pensa que uma espécie de abismo separa o presente do desejado
futuro melhor; abismo que se pode transpor somente por um salto, enquanto que os
culturalistas contentam-se com critérios de valor:
saúde, sucesso, maturidade, que são os mesmos da "sociedade industrial avançada"
criticada por eles. Assim fazendo, eles submetem a psicanálise à ação desta sociedade,
muito mais do que Freud, que bem viu, para além de todas as diferenças entre as formas
históricas, a desumanidade fundamental, comum a todas: os controles repressivos que
perpetuam na própria estrutura instintual a dominação do homem pelo homem. A esse
respeito, sua pretensa "concepção estática da sociedade" é muito mais próxima da
verdade que os conceitos "dinâmicos" dos neofreudianos. Segundo Marcuse, é porque
Freud descobriu que o "mal-estar da civilização" tinha raízes na estrutura biológica do
homem, que ele limitou o papel e o objetivo da terapêutica psicanalitica. Ela implica para
ele a idéia de que essa personalidade a ser desenvolvida pelo indivíduo é regulamentada
desde o início e seu conteúdo só pode ser definido em termos dessa regulamentação;
assim ele ultrapassou as ilusões da ética idealista, pois a personalidade
nada mais é, efetivamente, do que o indivíduo "partido", que interiorizou e utilizou com
sucesso a repressão e á agressão. A esse modesto programa freudiano, os culturalistas
quiseram sobrepor um objetivo mais elevado destinando como tarefa à terapêutica
desenvolver as potencialidades de um indivíduo com vistas ao próprio desabrochar deste
último. Finalidade, porém, inacessível precisamente, não por falta das técnicas
psicanalíticas, mas porque a própria estrutura da civilização a ela se opõe.
A perspectiva de Freud, que teve os olhos voltados para o princípio da infância, é
profunda na medida em que as relações decisivas são as menos interpessoais; estas não
podem ser senão uma superestrutura na reificação das relações humanas próprias de
nosso mundo alienado. No melhor dos casos, só podem capacitar o indivíduo "normal"
para ultrapassar por si mesmo a repres sidade universal. Somente na medida em que a
psicanálise elucida a experiên cia universal sobrevivendo na experiência individual, é que
pode romper a reif i cação que petrifica as relações humanas numa sociedade onde a
alienação transforma a pessoa numa função intercambiável.
E Freud, recusando-se a ver na existência desumana um simples aspecto negativo de uma
humanidade que progride, tem da realidade uma concepção mais humana que a de seus
"críticos tolerantes e generosos" que estigmatizam sua frieza. Seu mérito é o de ter
querido remontar da cons ciência ao inconsciente, da personalidade adulta à criança, dos
processos individuais aos processos genéticos, isto é, da superfície (a personalidade
condicionada) à profundeza das fontes. Ora, os culturalistas, invertendo a perspectiva,
consideram as instituições e as relações sociais como produtos acabados; fazem assim
passar o interesse psicológico da primeira infância para a maturidade, já que somente ao
nível da consciência refletida é que se pode definir o meio como um elemento que
determina a estrutura da persona lidade acima do nível biológico. Eis o que lhes permite
de colocar novamente em voga todos os valores da moral idealista por experiência
conhecidos:
realização produtiva da personalidade, responsabilidade, respeito do próximo, amor,
felicidade, etc., como se o homem pudesse verdadeiramente praticar todas essas virtudes
permanecendo são e equilibrado numa sociedade que o próprio Fromm descreve como
dominada por relações de trocas de mercado.
Marcuse afirma que todos esses valores, em tais condições, são falseados e ambíguos.
Pois, a "produtividade", por exemplo (esse alvo do indivíduo são), . deve normalmente
manifestar-se por uma boa direção dos negócios, por uma boa administração, com a
esperança razoável de um sucesso reconhecido; e o amor, revelar-se à maneira de libido
bem sublimada, inibida, conforme às condições impostas à sexualidade. Como os
valores, porém, devem significar, ao mesmo tempo, a idéia de uma realização do homem,
é como se designassem simultaneamente faculdades humanas muti ladas e inteiras, não-
livres e livres.
Tal ambigüidade faz das teorias pretensamente críticas do culturalismo uma doutrina
realmente conformista e moralista, traída pelo próprio estilo de pregador ou de
assistente social de seus autores.
Marcuse digna-se reconhecer, entretanto, que a renúncia do "si infe rior" ao "si
superior" de que fala Fromm( 1) é, talvez, um passo necessário no
(1) A descoberta do verdadeiro Si é considerada como de primeira importância por
FROMM, muito preocupado das relações da psicanálise com o budismo Zen. FROMM
foi o promotor de um seminário sobre essa questão, realizado em Cuernavaca (México),
do qual participaram uns cinquenta psicólogos e psiquiatras, a maioria deles psicanalistas.
(Cl. Boudhisme Zen etpsychonalyse.)
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377
caminho do progresso humano, imposto na civilização repressiva, mas com a condição
de saber claramente que as apirações humanas, uma vez interiori zadas e sublimadas no
"si superior", infletem as resultantes sociais para resultantes espirituais cuja solução é
um dever puramente moral.
Em resumo e em certo sentido, é o dilema do "logue e do Comissário", cuja oposição
abstrata resolve-se, nem bem nem mal, concretamente.
Pode-se, porém, julgar, a esse respeito, que Marcuse, embora invocan do Freud a seu
favor, afasta-se também dele à sua maneira. Evidentemente é direito seu, mas sob a
condição de não embaralhar as coisas. Ora, Marcuse, ao tratar do princípio de realidade
segundo Freud, quase não parece preocu par-se com o fato de que Freud o utiliza para
designar a capacidade própria ao ser humano de observar o real empírico e de levá-lo
suficientemente em conta para se proteger do dano que lhe acarretaria a satisfação
incontrolada de suas pulsões instintuais. Que esse dano varia com as condições sociais é
uma coisa, mas, outra, é reduzir esse princípio a um fenômeno de repressão. Pois, é
menos sob esse aspecto do que sob o de uma maturação progressiva e necessária que
Freud descreveu as fases da "sexualidade" que terminam normalmente na expressão
genital. Nessa perspectiva, o ideal do "Eros livre" segundo Marcuse, que glorifica Orfeu
e Narciso em relação a Prometeu, "herói-arquétipo do princípio de rendimento" (1), só
pode ser o ideal de um regressão ao estádio infantil; ideal que implica erroneamente a
idéia de que a sexualidade pré-genital é mais "livre" que a que vem a termo - ou deveria
vir
- na maturidade(
As críticas de Herbert Marcuse têm em suma por fundamento uma teoria que transpõe
deliberadamente a passagem da psicologia social para uma filosofia social. Ligado como
Max Horkheimer e Theodor W. Adorno ao Instituto de Pesquisa Social de Francforte,
onde se preocupava muito com a relação Hegel-Marx e Freud, reteve do primeiro o
caráter revolucionário da razão e a idéia de totalidade; isso lhe permite não permanecer
fechado nos limites das categorias pelas quais a própria realidade social se explica e justi
fica. Como para Hegel, a razão torna-se para ele o instrumento capaz de deci frar o
processo histórico com sua dupla face de atualidade e de virtualidade, isto é, não
somente sob o aspecto de seus dados efetivos, mas igualmente sob o das tendências que
aí se manifestam como germes de uma nova realização de mais altos valores humanos;
valores indubitáveis, mas excluídos, até o presente, do desenvolvimento histórico. Todo
o esforço crítico de Marcuse é, por conseguinte, dirigido contra o
"sistema" da sociedade industrial avançada (cujo conceito é por ele admitido como
unitário), no fundo irracional, já que a racionalidade que o anima é puramente
tecnológica( Sob a aparência enganadora de bem-estar de que ela é causa, ele denuncia
a realidade de uma "dominação" anônima, mantida por uma repressão cujo sentido é
disfarçar com falsas aparências a liberdade realizável. Tem como incontestável que o
homem de hoje está condenado a viver num estado de empobrecimento cultu ral, e até
biológico (e aqui vale-se de Freud), sem nenhuma justificação nas
(1) Éeos ei civilisaiion..., isp. cii. pág. 144.
(2) Erich FROMM, por ocasião dos primeiros ataques de MARCUSE, replicou que a
posição deste era um exemplo de "niilismo humano disfarçado em radicalismo" (iii Pas-
tisans, nP 32-33, out.-nov. 1966). -
(3> One Dimensiona! Man, Boston. 1964 (trad. francesa: Lh',mme unidimensionnet
Paris. Les Editions de Minuit, 1968).
condições atuais dos recursos e da técnica. Denuncia com raro vigor a habili dade
matreira dessa sociedade que consegue assimilar e neutralizar qualquer forma de
oposição; sociedade na qual a consciência está subjugada a ponto
J de, não somente não ser mais fonte autônoma de orientação, mas de transfor mar-se
ela mesma num instrumento próprio para manter o homem num contexto que bloqueia
sua liberdade. O "homem unidimensional" é, em suma, o homem incapaz de transcender
a situação dada, de estudar uma alternativa para o que lhe apresenta a sociedade na qual
se acha alienado. Severo com respeito às formas da liberdade nas democracias liberais e
repre sentativas, que ele parece considerar como formas vazias só funcionando na medida
em que nelas não se introduza um conteúdo provocador, Marcuse também não aprova a
situação reinante nos países do leste europeu; revelou como o marxismo soviético,
libertador em suas origens, se transformou em instrumento ideológico de controle e
opressão( l) Trata-se, pois, bem conside radas as coisas, de uma teoria social que, depois
de Hegel e Marx, recorre a um retorno às possibilidades efetivas da história, em função
de um diagnós tico no qual o conceito de irracionalidade tende a passar à frente do das
contradições econômicas do pensamento de Marx. Os trabalhos mais recentes de Marcuse
inclinam-se a demonstrar que uma análise em profundidade das virtualidades históricas
impõe a necessidade de recusar em bloco a situação dada, e de promover uma mudança
qualitativa, um salto da quantidade para a qualidade, como o diz ele próprio em
linguagem marxista, identificando a revolução com uma mobilização psicopolitica total.
A concepção postula uma nova antropologia, herdeira da moral
judeu-cristã que prevaleceu na história da civilização do Ocidente, mas em decisiva
ruptura com ela. Pode-se julgar que o radicalismo de Marcuse e, sobretudo, seu conceito
unitário da "socie dade industrial avançada", o conduz a uma "massificação" discutível
dos dados atuais. Por outro lado, o próprio "salto" causa problema, na medida em que
implica o despertar e a afirmação de novas necessidades (felicidade, paz, liberdade, etc.)
que sejam a negação determinada daquelas condicio nadas pelo "sistema" atual, e que o
sustêm, aliás, e mantêm-lhe os valores. Ora, se o homem "unidimensional" é incapaz de
transcender a situação dada, e se sua própria vida consciente apenas serve para reforçar
sua integração no contexto que bloqueia sua liberdade, é evidente que nada se passa
enquanto permanece satisfeito com sua sorte - por alienado que possa ser aos olhos do
filósofo. Em suma, para fazer nascer e desenvolver as novas exigências revolu
cionárias, é preciso suprimir os mecanismos que mantêm as antigas; e para chegar a
isto, é preciso que exista a necessidade de suprimi-los. Ora, na medida em que a
mobilização psicológica preconizada se choca com a inércia geral da consciência
satisfeita, por "alienada" que seja, a teoria marcusiana parece, claramente, não consagrar
o "fim da utopia", mas antes a chegada de uma nova utopia. E, ainda que se conceda a
possibilidade do salto em questão, resta que a "grande recusa" marcusiana implica uma
aposta; susten tável na medida em que se admita que toda a razão, no sentido hegeliano
do termo, vive desde já sepultada no inconsciente, e inerente a essas pulsões que as
estruturas sociais do mundo burguês reprimiram e que se trata dc libertar.
(1) Le murxis Paris, N.R.F., Gailimard, col. ldées, 1963.
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379
3. A abordagem experimental
b) A noção de "atitude" e sua extensão
a) A "facilitação social" segundo Floyd H. Allport
Floyd H. Allport procurou delimitar o campo da "psicologia social", ao mesmo tempo
que fundá-la experimentalmente. Seus trabalhos( 1) assinalam a influência que o grupo
exerce sobre a conduta e a opinião dos indivíduos, mas sem por isso admitir que ele
constitua um "todo" real, pois não há vida mental sem um sistema nervoso central,
próprio a um organismo individual. A noção de grupo, Allport prefere a de indivíduos
em interação recíproca. Behaviorista, separa-se de Watson por considerar que não se
pode compreen der em profundidade o par estímulo-resposta se se fizer abstração da
cons ciência. Porque esta é modificada é que os indivíduos em grupo não agem do
mesmo modo que isoladamente. E Ailport denomina "facilitação social" esse fenômeno
segundo o qual os indivíduos agrupados, estimulando-se reciproca mente, têm mais
vivas reações.
Ao considerar o comportamento social em suas relações com o cómpor tamento
biológico, adota certos conceitos freudianos, mas os "behavioriza". Fala, assim, de
"motivações anti-sociais" em vez de pulsões instintivas, de "pulsões socializadas" em
lugar de "superego"; e os instintos de McDougall substitui por "reações nervosas",
determinadas pela herança biológica, mas modificadas pelo condicionamento social.
Allport desenvolveu igualmente uma teoria sobre os "traços" da perso nalidade, visando
a descrever o comportamento humano de um ponto de vista "operacional". Campo de
pesquisas esse que deveria ter especial voga nos Estados Unidos. O traço, segundo
Allport, deve ser concebido como um siste ma neuropsíquico próprio a cada indivíduo e
que capacita a este comportar-se de acordo com certa finalidade adaptada às condições
diversas do meio. Pode- se, pois, determinar os traços que um indivíduo, em determinada
situação, desenvolve para ajustar-se a ela de certo modo. F. H. Allport considera que
toda relação social esconde um conflito de personalidade, no sentido de que pessoas em
contato se "medem" inevitavelmente. O alcance dessa constatação foi largamente
explotado por psicólogos americanos lembrados do struggle for life darwiniano, e os
traços ascendência e dependência foram objeto de pesquisas particulares, em ligação com
o problema da leadershi isto é, da função daquele que dirige e comanda um grupo de
indivíduos. Admite-se, geralmente, que esses dois
"traços" surgem bem cedo, que são tenazes e suficientemente delimitáveis para se
submeterem a uma mensuração capaz de fornecer um jiagnóstico e uma previsão. De
modo geral, Floyd H. Allport interessou-se muito menos pelos problemas da percepção e
da intelecção do que pelos problemas caracteriais. Por outro lado, sua oposição à noção
de "grupo" como designativa de um todo real deveria suscitar várias discussões entre os
autores, conforme neles prevalecesse a tendência individualista ou sociológica. Como
essas discussões andassem freqüentemente em círculo, delas se tirou, sobretudo, o
estímulo para pesquisas práticas sem muita preocupação com a teoria.
(1) Social Psyc/zo/ogy, Cambridge, 1924; Methode it lhe Study of Co/ledice Action
Phenomeno, Nova York. 1942.
380
As noções de atitude e de papel muito se devem a George Herbert Mead (1863-1931),
cuja obra, de certo modo redescoberta, inspirará numerosos pesquisadores (1). Pois, o eu
nela é concebido precisamente como um sistema de "atitudes" sociais interiorizadas, e
todo o relevo é dado aos "papéis" que o indivíduo exerce desde a infância, de início
livremente, em seguida no jogo regulado que lhe é imposto pela vida social. Essas duas
noções, desde então utilizadas em psicologia social para abordar os problemas relativos a
realida des sócio-culturais determinadas, parecem muito cômodas para quantos pensem
que as discussões sobre a relação entre o eu e o social, consideradas como espécies de
entidades, são abstratas ao mesmo título que as discussões relativas à cultura em geral.
O que, porém, se deve entender por atitude? Dessa noção-chave da psicologia social
americana, Gordon W. Allport deu uma definição muito comumente admitida:
"Uma atitude é uma disposição mental e nervosa organizada pela experiência, e que
exerce uma influência diretriz ou dinâmica sobre as reações do indivíduo a todos os
objetos e a todas as situações que a eles se referem(
Essa "disposição mental e nervosa" é o próprio de uma personalidade considerada por
Gordon W. Allport como um misto, isto é, como uma orga nização psicobiológica que
determina a maneira pela qual um indivíduo se ajusta ao meio.
Os primeiros modos distintivos desse ajuste são constituídos pelas ativi dades
espontâneas e as manifestações emocionais do recém-nascido, de freqüência e
intensidade variáveis. A partir aproximadamente do sexto mês, a maneira de reagir se
diferencia mais nitidamente e os traços manifestados ten dem a instalar-se, e isso
implica, senão uma verdadeira fixação, ao menos uma estruturação, uma certa
organização(
Trata-se, pois, de designar por atitude uma disposição (state of readi ness) a respeito de
não importa que objeto. Disposição de um indivíduo ou de um grupo? Acerca desse
ponto as coisas são faltas de clareza, mas voltaremos a ele. E do lado do objeto, como
determiná-lo, visto que o campo psicológico de um indivíduo comporta muitas relações
diversas e variaveis, tecidas pelas necessidades de sua vida biológica assim como pelo
desenrolar de sua vida sentimental, intelectual, profissional, cívica, etc.? E forçoso, pois,
para obter conhecimentos e possibilidades de previsões em termos de atitudes, restringir
cada vez seu emprego a objetos determinados. Consideram-se em geral, mas não
exclusivamente, tal idéia, tal instituição, recorrendo-se a categorias distintivas muito
simples: atitude generalizada, menos generalizada, favorá vel, desfavorável, indiferente,
etc., e também a certas particularidades dos sujeitos que as manifestam: sexo, habitat, etc.
E evidente que não se poderia
1) Mtod. Self, aodSrtc,ei (L csp lesoi ei la iociété), Chicago, Charles W. Morris, 1934
(trad. francesa P.U.F.. 1963).
(2) Cf. David KRECH e Richard S. CRUTCHFIELD, Théories et peoblème.t de
psychologie aociale, P.U.F., 1952.
(3) Persontaluy, a Psycho/ogieul lnierpeetation, Nova York, 1937.
381
L
pretender assim ir muito longe no conhecimento das condutas humanas com todas as
funções que implicam concretamente: emoções, percepções, senti mentos, inteligência,
paixões, etc.; e isso tanto menos que as técnicas empre gadas, questionários e
entrevistas, em geral só atingem o comportamento verbal, ao passo que a atitude
individual possui muitas outras dimensões, freqüentemente mais significantes. Por
conseguinte, as distinções estabele cidas, forçosamente sumárias, relacionam-se com a
intensidade da atitude, sua importância, seu grau de realidade, etc. E as coisas ainda se
complicam quando não se trata de fatos observáveis, mas de princípios ou de pre
conceitos.
A elasticidade do termo permite seu emprego para designar tanto disposição individual
quanto coletiva, mas disso resultam certas ambigüi dades.
Roger Girod, em sua obra sobre a psicologia social americana( 1), tentou esclarecer
especialmente as noções de atitude comum e de atitude coletiva. Quanto à primeira, diz
ele, as coisas são relativamente claras. Num dado país, todos, por exemplo, éondenam o
incesto; é uma atitude comum. Pode-se admiti-lo, observando, entretanto, que a redução
de todas as atitudes indivi duais a uma atitude comum já comporta uma boa parte de
abstração, podendo certos indivíduos condenar hipocritamente, por assentimento pura
mente exterior. Mas, e a atitude coletiva? Girod dá exemplos: o da Suíça, onde todos os
cidadãos não estão unanimemente de acordo com o regime existente, assim como o
atesta a presença de partidos politicos opostos, mas onde cada indivíduo não cumpre
menos, dia após dia, as suas obrigações (paga impostos, faz seu serviço militar, etc.). Ou
ainda o exemplo da guerra da Indochina, que prosseguia quando mais da metade do
povo francês, entre 1947 e 1950, era a favor de negociações tendentes a reconhecer a
indepen dência do Vietnã. Nos dois casos a atitude não é comum, mas coletiva. Utili zar o
mesmo termo para designar realidades tão diferentes, causa concreta- mente problemas.
Primeiro, porque os indivíduos que adotam tal atitude (em nosso caso, prosseguimento da
guerra, negociações ou indiferença) não exercem a mesma influência sobre os
acontecimentos. Numa eventual guerra, a atitude de certos meios, o dos oficiais e
suboficiais dos corpos do exército, por exemplo, pode ser decisiva, e as coisas seguem um
curso ao qual se submete o maior número, a menos que as circunstâncias não permitam
uma mutação, como foi o caso da Rússia durante a guerra mundial. Por outro lado, um
indivíduo, a despeito de sua atitude de oposição, pode obedecer exteriormente, por temor,
por preocupação de não comprometer os seus, por um sentimento de impotência, etc. Em
suma, pode-se perguntar se a atitude coletiva permite realmente estabelecer uma relação
concreta entre sujeitos e objetos; e se a noção não seria antes uma abstração concernente à
sociologia. Ao nível da descrição psicológica, bem poderia não existir de fato senão atitu
des individuais, a rigor comuns. A maioria dos comentadores admite as imprecisões
teóricas da psicologia social nos Estados Unidos, mas acrescen tam, imediatamente, que
elas são compensadas por uma multidão de pesqui sas muito notáveis sobre o
comportamento dos mais diversos grupos: cultu rais, políticos, militares, religiosos, etc.
Efetivamente, os inquéritos e as
(1) Attitudes colleclires et ,elatio,, humui, P.U.F.. 1953.
publicações sobre as influências dos fatores da vida social multiplicaram-se além-
Atlântico de modo assombroso, e a dificuldade é, antes, de dar a cada coisa o que lhe
cabe, isto é, distinguir entre os inquéritos científicos e os de alcance inteiramente
utilitário: classes e tensões sociais, relações profissionais, informação, propaganda,
opinião pública, autoridade e comando, etc. Trata- se, em .geral, de analisar os diversos
fatores em jogo numa situação típica, para determinar como poderiam ser eventualmente
modificados, e a grande novidade reside em que esta experimentação tem por objeto
aspectos da vida humana que eram, no passado, da competência da especulação moral,
filosó fica e religiosa.
c) A pesquisa sexológica de Kinsey
De Alfred Kinsey, biólogo, professor na Universidade de Indiana, e de seus
colaboradores, tomarei, a título de exemplo, o vasto inquérito sexológico, que ,evela, por
suas intenções assim como por seus resultados, um aspecto significativo da psicologia
social nos Estados Unidos( 1). Em seu prefácio ao volume deLe comportement sexuel de
lafemme, Robert M. Yerkes e George W. Comer, presidentes sucessivos do Comitê de
pesquisas sobre os problemas sexuais, criado pelo Conselho Nacional da Pesquisa,
julgam que a empresa foi tomada possível pelas novas condições
culturais: emancipação sexual e econô mica da mulher, difusão das teorias e descobertas
freudianas, contato de milhões de jovens americanos, no decurso das duas últimas
guerras mundiais, com civilizações cujas normas e práticas sexuais diferiam das que
lhes haviam inculcado na infância. s dois autores admitem que a psicanálise transfornou
nos Estados Unidos a concepção do papel da sexualidade na vida mental e social, mas
que Freud, com base em sua experiência clínica, "propôs teorias que serviram de
fundamento a uma tarefa que ele não era de modo algum capaz, por causa de sua
natureza e formação, de levar a bom termo"; uma tarefa que competia a Kinsey realizar.
De s empresa dejierá decorrer, quando ganhar suficiente extensão, um "conhecimento
fux dos fenômenos sexuais, que permitirá verificar as teorias, modificá-las, completá
las". A argumentação pode deixar alguém perplexo. Se o gênio de Freud é indiscutível,
é mais do que duvidoso o de Kinsey, o qual partilha com Watson certa audácia que
desarma, uma fé robusta no valor de métodos inteiramente objetivos, simplificadores a
despeito de seu manejo complicado. Kinsey dirigiu sua pesquisa recorrendo à taxonomia
(em linguagem clara: ciência da classificação), método que praticou longamente
estudando os insetos e por ele considerado como aplicável a "toda população de
elementos heterogêneos, não importa em que domínio" (2). Não seria
preciso, todavia, crer que os pontos de vista progressistas dos meios culturais de Indiana
fossem unanime mente partilhados nos Unidos, onde o puritanismo vizinha com a
audácia científica. Se a empresa de Kinsey beneficiou-se dos apoios do Comitê Nacio nal
da Pesquisa e da Fundação Rockefeller, conheceu muitas dificuldades no
(1) Le comporremenl sexuel de l'homme (Sexual Beharir,r in lhe Human Male), par
Alfred C. KINSEY, aver la coilaboration de Wardelle B. POMEROY ei Clyde E.
MARTIN, "Rayonnement de la Peosée", Pans, 1948, 1020 p. Le con,porte,nent sexuel
de lafe (Sexual Beharior is lhe Human Female), par les dirigeants dei Institui de
Recherches Sesueiles de Université d'indiana: Atfred C. KINSEY, Warde!Ie B.
POMEItO?. Clyde E. MARTIN, Paul H. GEBNARD, Le Livre Cotstemporain-Atniot-
Dutnont", Paris, 1954, 76
(2) Le com portement sexuel de l'homme, isp. ci pág. 27.
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decurso do caminho: intervenção do Conselho da Ordem dos Médicos, por "exercício
ilegal da medicina"; da policia: pressões sobre a Universidade para que proiba a
continuação das pesquisas e sua publicação, e suspenda o ensino de Kinsey; revogação
de um professor secundário por ter, na cidade em que ensinava, colaborado com o
empreendimento, etc. De um ponto de vista filosófico, Kinsey e seus colaboradores só
viram nessas reações um sintoma muito interessante da influência exercida pelas velhas
tradições e costumes sociais até em pessoas que receberam formação científica.
Como quer que seja, dossiês biográficos de mais de dezesseis mil pessoas foram
estabelecidos, constituindo uma abalizada amostragem de grupos muito diferentes para o
levantamento dos dois estudos fornecidos por 5.300 casos de homens e 5.940 casos de
mulheres. Tratou-se, de cada vez, de acumular "fatos científicos totalmente livres das
noções de valor moral ou de tradição social", sem nenhum preconceito quanto ao caráter
(raro ou banal, normal ou anormal) dos comportamentos sexuais, recusando-se até
distinguir entre indivíduos considerados pelos psiquiatras como equilibrados, neuróticos
ou psicopatas. Assim se procedeu, tanto para descobrir a atividade sexual dos
indivíduos quanto para conhecer os fatores que permitem compreender as diferenças de
seu comportamento sexual, e também as que ocorrem de uma camada da população para
outra.
A enorme documentação foi reunida através de entrevistas diretas, à mercê de
dificuldades consideráveis sobre as quais Kinsey se explica longa mente. O inquérito foi,
de início, conduzido mais particularmente no nordeste do país, numa zona delimitada
pelo Massachusetts, Michigan, Tennessee e Kansas, para estender-se em seguida a todos
os Estados da União. Os casos observados incluem mulheres e homens de todas as
idades, de todas as profis sões, de todas as categorias intelectuais, desde os analfabetos
ou semi-anal fabetos até os membros mais eminentes da classe intelectual; os
pertencentes a coletividades rurais e urbanas as mais diversas; os representantes de todos
os graus de adesão ou não às diversas religiões, etc. Kinsey e seus colaboradores
tomaram extraordinárias precauções para certificarem-se das confissões veri dicas, com
o maior cuidado de garantir o segredo profissional: código secreto do qual apenas
quatro pessoas tinham a chave, documentos conservados em móveis classificadores, com
fechaduras de tipo especial, colocados em salas que se mantinham fechadas, etc. Para
determinar o meio e a freqüência do orgasmo obtido pelos indiví duos, distinguiram-se as
diversas práticas sexuais em seis categorias: mastur bações, poluções noturnas, tateios
heterossexuais, coito heterossexual, práticas homossexuais, contatos com os animais. Os
dados colhidos foram classificados segundo o sexo, a raça, o grupo cultural, o estado
civil, a idade, o nível de educação, o grupo profissional dos pais, o meio (rural, urbano,
misto), o credo, o local do nascimento... e revelaram particularmente que as diferenças
das condutas sexuais entre os níveis sociais de um conjunto de habitações ou de uma
única cidade, às vezes até entre duas secções vizinhas de uma mesma comunidade,
podem ser tão importantes quanto aquelas que os antropólogos puderam constatar entre
raças diversas( 1)
(1) Cl. te comportement sexuel dei homme. op. ci cap. X: Le niveau social et lactivité
sexuelie".
Kinsey revela a esse respeito que as categorias sociais são muito dife rentes nos Estados
Unidos, e que as pessoas de um grupo têm poucos contatos com as de outro( 1). As
pessoas de classes sociais diferentes, devido a suas ocupações no decurso de atividades
profissionais, mantêm, inevitavelmente, contatos cotidianos com terceiros, mas, para o
relacionamento e amizade, esco lhem indivíduos que estejam no grupo social a que elas
pertençam. Chefes de serviço e empregados de escritório podem viver a alguns passos
dos operários sem ter por isso a impressão de um trabalho em comum; e ao saírem do
traba lho, é muito raro que os dois grupos se misturem. Os membros de uma classe não
convidam para jantar em casa os representantes de outra; como também não passariam a
noite em reunião com éles, nem se distrairiam em sua compa nhia. Na opinião de Kinsey,
o parceiro de jogo, o amigo íntimo da família, seriam melhores "testes" para determinar o
nível social do que as ligações de negócios ou não importa que filosofia social. Em toda
parte existe certa sepa ração. A classe dos empregados, por exemplo, se subdivide em
vários níveis. Exceção feita para as relações de trabalho, os empregados das casas comer
ciais e os de escritório não se sentem à vontade com os diretores e chefes de serviço. E se
os médicos cuidam de pessoas pertencentes a todos os meios sociais, procuram, para
ocupar o lazer, a companhia de outros médicos, de homens de negócios ou de
professores. Por sua vez, os "trabalhadores" não sentem nenhum ponto de contato
particular com os homens de negócios, os mundanos ou os representantes da aristocracia,
salvo, em raros casos, os que deixaram de pertencer a esses meios. Em suma, se nenhuma
disposição legal impede não importa quem incorporar-se em não importa que grupo
social, e se essas estratificações são difíceis de definir, a realidade destas últimas é
indubitável para Kinsey. E o cqmportamento sexual que lhes é próprio mani festa muitos
caracteres específicos: por exemplo, as classes "inferiores" consi deram a masturbação
como anormal, por racionalização de uma opinião segundo a qual tal prática é nociva à
saúde; e tal atitude, análoga à que se encontra entre certos povos primitivos, não seria
fundada no respeito de valores morais, mas em certo desprezo para a incapacidade social
daquele que não pode obter de outro modo suas descargas sexuais. Ora, os universitários
não partilham dessa opinião. E se sua moral é mais exigente no respeitante à virgindade
da mulher no momento do casamento, essa exigência não exclui, de modo algum, a
prática dos contatos sexuais mais refinados. São partidários das técnicas preliminares ao
ato sexual, enquanto as classes "inferiores" concedem a
elas pouco tempo, pois julgam que o prazer essencial é obtido por meio da união dos
órgãos da cópula, a única que compete às relações sexuais "normais". Tais classes
consideram, em geral, a nudez como mais indecente do que as próprias relações sexuais,
enquanto os homens de formação universitária julgam-na condição dessas últimas. E do
mesmo modo que prevalece entre eles o beijo "profundo", este seria considerado com
certa repugnância pelos indivíduos dos grupos "inferiores", entretanto menos delicados
em outros domínios..., etc.
Os documentos que reuniu persuadiram Kinsey de que a legislação americana, no
referente à sexualidade, está em completo desacordo com as realidades do
comportamento humano, e é, aliás, inaplicável:
(1) Lc co,nporie,nent sexuci de iufemrne. op. c pág. 435.
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"Existe em nossa população uma proporção tão elevada de homens e de mulheres que se
entregam a atividades sexuais proibidas pelas leis de quase todos os Estados da União,
que a aplicação absoluta ou sistemática da legislação atual seria inconcebível (1)"
Aplicadas, pois, inevitavelmente, de maneira caprichosa, essas leis não teriam por
efeito, pensando bem, senão favorecer as fraquezas administra tivas, a corrupção e a
chantagem. Mal caberia duvidar de que o relatório Kinsey tranqüilizou, nos Estados
Unidos, muitas pessoas a quem inquietava sua sexualidade, mostrando-lhes que seu
comportamento, longe de ser excep cional, era característico de seu grupo. Isto significa
que tais pesquisas podem contribuir para extirpar erros de interpretação e preconceitos,
mas com o risco plausível de substitui-los por outros, pois o pragmatismo radical não se
acha imunizado contra toda filosofia inconsciente, nem, até, contra lugares comuns.
d) As experiências de Sherif
Já observei que, por serem o indivíduo e o grupo os dois pólos entre os quais oscila
forçosamente a psicologia social, o conceito de interação parece suscetível de superar a
oposição dos termos. Ora, a esse conceito preferido, como ao de "norma de grupo", as
experiências de Musafer Sherif, em Harvard, trouxeram um fundamento experimental ao
mostrar que a influên cia do grupo se exerce, não apenas ao nível da "facilitação"
descrita por Floyd H. Allport, mas já ao nível da percepção( O procedimento a que
recorreu Sherif consistia em colocar indivíduos numa câmara escura, diante de uma luz
intermitente. E sabido que nessas condições o ponto luminoso, imóvel na realidade, é
percebido como se se deslocasse (fenômeno de autocinetismo). Os indivíduos
submetidos à experimentação deviam avaliar a oscilação da luz durante a exposição de
dois segundos. Cada indivíduo formulava rapidamente sua avaliação e a mantia em
seguida, mas Sherif pôde constatar que as apre ciações variavam muito de sujeito para
sujeito, a tal ponto, que alguém podia avaliar o deslocamento da luz como sendo de 1 a
3 polegadas, e outro, como atingindo 9 a 11 polegadas.
Sherif chamou de "normas individuais" a esses julgamentos pessoais. Depois repetiu a
experiência, mas com pequenos grupos de duas ou três pessoas. Cada uma delas devia
dar em voz alta a sua apreciação, durante o tempo em que escutava também as avaliações
enunciadas pelos outros membros de seu grupo. Revelou-se então o seguinte: os membros
de um grupo
- tivessem sido ou não submetidos à experiência isoladamente - chegavam rapidamente a
uma avaliação que aparecia como característica do grupo, com apenas ligeiras variações
individuais. Sherif disso concluiu que a condição de grupo criava gradualmente "normas
de grupo" ou "normas sociaís", que constituíam outros tantos ancoradouros ou
"esquemas de referência" a orientar os sentimentos, julgamentos e condutas de seus
membros. Admitiu- se que Sherif tinha assim provado experimentalmente que as normas
sociais
(1) Ibid., pãg3
(2) The Psychology o) Social Norms (La psychologie des formes s ,a lrs). Nova York. 1-
lorper and Brother 1936
de um dado grupo se estabelecem no decurso da interação social; por isso termo de social
norm foi adotado para designar as regras, os costumes, as atitudes, os valores próprios de
um grupo e, em geral, para qualificar s comportamento constatado num grupo social;
julgou-se que tais experiências constituíam a ilustração microscópica dos fenômenos que
se produzem en muito maior escala na vida em sociedade, Øn:de o indivíduo aprende a
perce-. ber o mundo à maneira de sua família, de sua roda e das instituições. Tai
perspectiva, segundo a qual as normas sociais, elas próprias de origem cultu-. ral, são
parte integrante das motivações individuais, postula evidentemente que o julgamento
individual tende a conformar-se com o da maioria, en virtude mesmo das leis próprias
desta interação espontânea salientada pela experimentação de Sherif. Pode- se julgar que
essa perspectiva traz água para o moinho do conformismo, já que as
"normas sociais" tendem assim a se tornarem o critér io em matéria de conveniência, de
gosto e, até, de moral.
e) A "dinâmica dos grupos "de Kurt Lewin
A noção de grupo deveria ainda obter maior crédito após os trabalhos de Kurt Lewin, a
quem O. W. Allport considera como a figura mais impor tante, juntamente com Freud,
da psicologia contemporânea( 1). Esses traba lhos tiveram primeiramente por objeto a
influência do meio no sentido psico lógico do termo, isto é, de um ambiente ao qual o
sujeito confere uma signifi cação, com vistas a determinar as leis que regem a
organização dessas unida des psíquicas constituídas pelo jogo recíproco do indivíduo e
de seu próprio meio( Lewin, em seguida, passando do "campo psicológico" para o
campo social, elaborou sua famosa "dinâmica dos grupos", muito em voga nos Estados
Unidos, e cuja idéia diretriz é a de que o grupo, por suas constantes interações com os
indivíduos que o compõem, é a sede de transformações incessantes.
O método proposto por Lewin recorre à linguagem e aos conceitos matemáticos;
constitui uma "tipologia" que pretende, sem nada deixar escapar do concreto psicológico,
garantir às descrições uma rigorosa objetivi dade. Método revolucionário, que submete
novamente a discussão não só os procedimentos da pesquisa experimental, mas o próprio
sentido da psicologia, pois pretende inaugurar uma maneira construtiva
("galileana") de abordar os problemas, o que deve permitir à psicologia tornar-se, a
exemplo da física, uma verdadeira ciêncía hipotético-dedutiva. As discussões suscitadas
pelas pesquisas assim orientadas não permitem ainda pensar que um progresso decisivo,
em relação a outras perspectivas de referência mais tradicionais, tenha sido assinalado
pela descrição do "campo" em termos emprestados à física:
direção, vetor, sentido, magnitude, distância, continuidade, descontinuidade, restrições,
... aos quais vêm juntar-se, no caso mais específicos, os de cami nhada, locomoção,
mobilidade, fluidez, coesão, alvo, etc. Mas permanece o fato de que Lewin, por sua
teoria do campo social, forneceu, também ele, uma justificação teórica ao pragmatismo
da psicologia social americana ao contri buir para este com o sistema denominado
"dinâmica dos grupos". O objetivo
(1) TheGeniusof Kurt Lewin, inJo, vol. 16, n 1, seI. 1947.
(2) C cap. XXI, §3.
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é elaborar uma ciência sistemática dos grupos sociais, e de fazer os resultados obtidos
servirem à solução de certos problemas práticos e morais: relações entre trabalhadores e
empregadores, eliminação de preconceitos raciais, melhoria da produtividade, etc. (1).
Trata-se, em suma, de revelar as forças em jogo num grupo, na suposição de que as leis
deduzidas de um grupo bem selecionado possam ser aplicadas a todos os grupos
possíveis. E nesse sentido que a noção de grupo, criticada por Floyd H. Allport, iria
encontrar-se refor çada pelas pesquisas de Lewin conduzidas em termos de aspiração, de
conflito, de frustração (group needs, group goals), etc. Autores não deixaram de discutir
a legitimidade de uma tal transferência de conceitos, tomados de empréstimo à
psicologia individual, num plano em que o grupo e não mais o indivíduo é a unidade de
análise. Segundo David Krech, por exemplo, a substituição do termo campo social ao de
"campo psicológico" não basta para que as leis reveladas pelas brilhantes pesquisas de
Lewin e seus alunos no domínio da psicologia individual, se tornem leis de "dinâmica
dos grupos" (2).
As reservas de alguns, porém, não impedem que os trabalhos de Lewin inspirem todo
um movimento vanguardista de pesquisas a postular que um grupo tem atributos
próprios, inatingíveis pela síntese dos dados que pode fornecer a consideração
individual de seus componentes. Com seu centro de estudos, fundado em 1946 pelo
próprio Lewin, e seu próprio periódico, Human Relations, o novo método reúne um
número sempre crescente de "pesquisadores" experimentais.
f) Moreno e a "sociometria"
Jacob L. Moreno, não menos cuidoso de experimentação que Lewin, criticou neste o
sacrifício à elegância formal e o contentar-se com pesquisas insuficientes do ponto de
vista sociométrico. Moreno, nascido em 1892 em Bu careste, após ter estudado
psiquiatria em Viena, instalou-se nos Estados Unidos por volta de 1925. Homem de
interesses mentais muito diversos, de cultura ex cepcional, ao mesmo tempo histórica,
médica, psicológica e filosófica, não lhe faltam idéias curiosas e originais, ao contrário de
vários experimentadores norte-americanos que não fazem grande caso das teorias. Ele
refletiu sobre os conflitos humanos, repensou em nível social o famoso problema
biológico da "sobrevivência dos mais aptos" e buscou um meio de fundar uma técnica da
liberdade própria para equilibrar as energias espontâneas do homem a fim de que
pudessem elas ser propícias à harmonia e à unidade do gênero humano. Isso significa
que muito alta ambição preside às pesquisas sociométricas das quais se. fez o promotor.
Se está, porém, animado de uma preocupação humanista que o liga à grande tradição
filosófica, Moreno pretende renovar a própria psicologia científica, sem renunciar, de
forma alguma, à experimen tação e à medida. Embora se devesse ver em tal intenção
alguma utopia, é subestimar demais seu esforço com reter deste unicamente a
aparelhagem
(1) Resolring Social Co°sflícis. Selected Papem ias Gmoup Dy,rnmsics, Nova Yorlv,
1948.
(2> "Psychological Theory and Social Psychoíogy" ti H. HELSON, Ths'orcucal
Foicedat,o,u o! Pst'clio /ogv. Nova York. 1951, cap. 14. Citado por Leonardo
ANCONA. La psicologia o negO Stati U,,iti d'Ano-rica. Milão, 1954, pág. 48.
experimental proposta, considerando como muito acessório e passível de ser
desatefldido o sentido que à última empresta Moreno( 1).
Num domínio em que a maré dos fatos tende a submergir toda idéia diretriz, não é
indiferente que um homem tenha idéias sobre o homem. As de Moreno, expostas por ele
principalmente num livro de significativo título( orientam-se para os conceitos de
espontaneidade e de criatividade, "pedras angulares do sistema sociométrico" (3); a esse
respeito mostra-se grato a Bergson, o qual teve o "mérito imortal" de haver evidenciado
essa esponta neidade e criatividade no Essai sur les données immédiates de la conscience
assim como em L 'évolution créatrice. Nessa perspectiva, Moreno distingue duas espécies
de energia: uma sujeita ao princípio de conservação e outra que escapa a esse princípio. A
primeira dá ocasião a essas "conservas culturais" que se podem utilizar e trocá-las mais
tarde por vantagens pecuniárias, enquanto que a outra forma de energia, embora sua
quantidade possa ser mensurada, não pode ser nem conservada, nem
deslocada ou transformada. Ela emerge e gasta-se de uma só vez: devendo emergir para
ser gasta e, gasta, para ceder lugar a uma outra, nisso comparável à vida desses animais
que nascem e morrem no mesmo dia, unicamente para perpetuar-se. Sem essa espécie de
energia que não se conserva, a espontaneidade, o universo não teria podido nunca ter
início nem prosseguir sua marcha(
É isso mesmo o que quis mostrar Bergson, mas em plano metafísico. Ora, Moreno, no
que lhe concerne, reivindica ter feito descer do céu para a terra os conceitos de
espontaneidade e de criatividade, por meio da invenção de técnicas, particularmente
opsicodrama e o sociodrama, os quais permitem efetuar experiências sobre essa forma
de energia e de exercer uma ação tera pêutica. A esse respeito a tentativa de Moreno
interessa tanto à psiquiatria quanto à psicologia social.
À "sociometria", método experimental destinado por ele a todas as ciências sociais,
atribui a construção progressiva de uma "ciência autêntica" da sociedade:
"Ciência da personalidade, ciência da sociedade, ciência da civilização que não seriam
fundadas numa teoria da espontaneidade e da criatividade, são desprovidas de todo o
valor. Elas se metem num beco sem saída. Tal é o destino de todo sistema negativo de
análise, como o de Freud e de seus discípulos, até os mais heterodoxos(
Moreno julga que a sociometria, que tem por objeto o "estudo matemá fico das
propriedades psicológicas das populações", pode ser considerada como um movimento
especificamente americano, pois este se revelou de
>i) É o que faz Scan PIAGET, por exemplo, doutrinário de uma psicologia
decididamente "cientifica":
"Inspirando-se em considerações metafisicas sobre a espontaneidade criadora, da qual é
fácil fazer abstração (do mesmo modo que se pode reler as leis de KEPLER.
esquecendo-se de sua mística>. MORENO forneceu daao tócnicas que tiveram um
sucesso crescente e são aplicáveis ao estudo das relações sociais entre crianças (assim
como ás ialaçôes entre adultos e crianças): o psicodrama ou jogo simbólico coletivo e o
teste sociométrico, destinado a medir a coesão dos grupos". (Problènieo dela
pstchonociologie de /'i'nfance ti Tra,,é de soclo/ogte. publicado sob a direção
deGeorgesGURV tIl, P.U.F., 1950, págs. 229-254.>
(2) Who liall sur,'it'r? (trad. francesa sob o título Fondmnienio dela soc',onzétrie, P.
U.F., 1954),
(3) lbid., pág. 15.
(4) Op. ci prefácio à trad. francesa, pág. XXX.
(5) Op. cii., pág. XXIX.
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grande fecundidade nos Estados Unidos, enquanto que se estancou na Eu ropa:
"Mais do que não importa qual outra variedade da espécie humana, o ameri cano gosta
de exprimir-se em avaliação, em 'status", em algarismos; ele é essencial- mente o homo
metrum (1)."
Dado esse pragmatismo, quase não cabe ficar impressionado, como ficou o próprio
Moreno, com o contraste entre a "lenta aceitação das idéias e das teorias que
fundamentam os métodos sociométricos, e a adoção rápida desses mesmos métodos"
(2). Pois, essas idéias e teorias devem ser encaradas como a síntese das principais
correntes do pensamento europeu moderno, e pode-se perguntar se estas são familiares à
cultura americana em geral.
Lembrei o débito que Moreno reconhece com respeito a Bergson, cuja concepção da
evolução, ao levar em conta a experiência vivida do homem em contato com a mudança,
assinala a seu ver um progresso manifesto sobre a de Spencer. Por outro lado, atribui à
escola de Nancy, particularmente a Bernheim, o mérito de haver mostrado a importância
das estimulações inter- pessoais, e com isso conduzido ao estudo dos grupos e das
multidões. E Freud? Moreno, que f seu aluno em Viena, o admira. Mas, engenhosa-
mente, considera-o como um historiador, à maneira de Nietzsche, nesse sentido de que o
caminhar de seus pensamentos é retrospectivo: Nietzsche, cuidoso de um ultrapassar do
homem por si mesmo, inclina-se sobre as cultu ras e as formas de moral do passado;
Freud, atento em curar os indivíduos, se inclina sobre as origens traumáticas dos
distúrbios psíquicos. Nos dois casos, trata-se de explicar o presente pelo passado. Ora,
Moreno atribui a si o mérito de haver invertido a perspectiva e a própria técnica
psicanalítica, para orientar a personalidade total do sujeito para a ação espontânea, e
transfor má-lo assim em ator espontâneo. Em vez de remontar ao passado, trata-se de
entrar na própria vida, como "encenador", de inventar uma técnica que, apoiando-se no
presente imediato, espose, de certo modo, a própria direção da vida e do tempo; trata-se
de ultrapassar a associação livre de Freud buscando a secundar no sujeito sua completa
libertação e sua expressão mental e mímíca(
Por outro lado, do positivismo de Augusto Comte decorreram estudos concretos sobre as
formas primitivas do trabalho: caça, extração mineira, agricultura, pesca, guarda dos
rebanhos, etc., mas mercê de métodos que se revelaram forçosamente menos felizes
quando aplicados às populações urbanas. Pois, para penetrar os modos de vida e as
estruturas sociais construí das pelo homem: famílias, escolas, usinas, etc., e reencontrar
sua constituição interna, era indispensável substituir a um "âmbito geográfico" uma
geografia psicológica. Quanto ao materialismo dialético, enfim, Moreno pensa que
acentuou muito cas-regadamente o coletivo, desconhecendo este fato essencial que o
indivíduo é um ser energético, e a sociedade uma realidade complexa, movediça, de
redes formadas continuamente por correntes psicológicas. Disso
(1) Op. cii.. pág. IX.
(2) MORENO observa a esse respeito que foi no sociólogo francês Georges
GURVITCIJ que encontrou a melhor apreciação da escola sociotnétrlca: Microsociologie
ei soctontétric', Cuhier.s Jn,tr,,arii,,,aux de Socic,logw, sol. III. 1947. e Vo,ution
actuelIede/u P.U.F,. 1950. cap. IV.
(3) Op. eji. pág. 5.
deveriam resultar as tristes conseqüências que a doutrina marxista causaria à proporção
do aumento de sua influência sobre o homem e a sociedade.
Em suma, pois, é no plano da vida vivida que as técnicas sociométricas visam a
experimentar os processos de interação, fazendo intervir as noções de átomo social, de
rede, de tele e de ator-em-situação.
Segundo Moreno, se o eu individual projeta suas emoções sobre os grupos que o cercam,
estes, por sua vez, projetam sobre o eu suas emoções. Por conseguinte, a noção de átomo
social não designa o indivíduo, mas a menor estrutura social constituída pelo núcleo de
suas relações (atrações e repulsões recíprocas), e a noção de rede se aplica às cadeias de
inter-relações constituídas pelos átomos sociais; é de redes que são formadas a tradição
social e a opinião pública. Enfim, por tele, é preciso entender as correntes afetivas que
constituem os átomos sociais e as redes.
Moreno pensa que a resistência oposta a tudo o que poderia compro meter a "unidade
sagrada" do indivíduo é devida, sobretudci, à idéia de que os sentimentos, as emoções,
os pensamentos se desvaneceriam sem o suporte orgânico que se lhes atribuia, quando,
na realidade, os átomos sociais e as redes - possuidoras de uma estrutura durável e cujo
desenvolvimento segue certa ordem - obrigam a reconhecer a existência de estruturas
extra-indi viduais, nas quais circula o "fluxo mental":
"Temos o hábito de pensar que os sentimentos emergem do foro íntimo do indivíduo e
que se fixam mais forte ou mais fracamente em pessoas e nas coisas do meio imediato.
Temos o hábito de pensar não só que esses sentimentos brotam todo inteiros
exclusivamente do organismo individual.., mas ainda que esses estados físicos e
mentais, uma vez aparecidos, residem sempre no interior desse organismo. A relação
afetiva com uma pessoa ou coisa foi chamada apego ou fixação, mas esses apegos e
essas fixações eram considerados pura e simplesmente como projeções individuais. Essa
maneira de pensar combinava com a concepção materialista do organismo indi vidual,
com sua unidade e, por assim dizer, com sua independência de microcosmo( 1)."
A notar que o tele entre quaisquer dois indivíduos pode ser apenas virtual e não se
tornar ativo senão quando os indivíduos entrem em contato, ou quando seus sentimentos
e suas idéias se ponham em relação à distância, graças a algum modo de comunicação,
semelhante a uma rede. Esses efeitos à distância, ou efeitos de tele, constituem uma
estrutura sociométrica comple xa, produzida por longa cadeia de indivíduos, cada um dos
quais apresenta um grau de sensibilidade diferente ao mesmo tele, que vai da indiferença
à resposta mais intensa. Entra igualmente no tele o prestígio exercido sobre uma
coletividade por sujeitos, grandes políticos ou vedetes de cinema, dos quais emana um
atrativo simbólico na medida em que encarnam um ideal e, até, um mito. Disso resulta
que o átomo social se acha assim composto de muitas estruturas tele, e que, por sua vez,
os átomos sociais fazem parte de esquemas (patterns) mais vastos: as redes sociométricas,
que unem ou separam largos grupos de indivíduos segundo as relações
de seu tele. Por outro lado, as próprias redes sociométricas fazem parte de mais vasta
unidade: a geografia sociométrica de uma coletividade, a qual é ela própria parte inte
(1) Op. cii.. pág. 23.
390
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grante da mais extensa configuração - a totalidade sociométrica da socie dade humana(
Segundo Moreno, a importância histórica da sociometrja se prende ao seu lugar
intermediário entre a sociologia e o socialismo revolucionário, dos quais, no limite,
constitui a síntese possível e desejável. A sociometrja partilha com a sociologia a
tendência para construir sistemas sociais bem elaborados; com o socialismo
revolucionário, a idéia de uma ação social planificada. Mas a diferença essencial reside
em que esta ação deve ser, na socionietria, concebida e controlada pelo método
experimental, isto é, aplicada a grupos restritos, para que os conhecimentos adquiridos
permitam ampliá-la a mais vastos conjuntos sociais.
A terapêutica se funda em afinidades que aparecem entre os indivíduos e os esquemas
(patterns), resultado de interações espontâneas, O objetivo é reconstruir grupos sociais, e
modificar o indivíduo, aproveitando a reorgani zação do grupo do qual faz parte.
Moreno está persuadido de que, tendo encontrado numa coletividade seu lugar
harmonizado com as leis que regem os aspectos psico lógicos dos conjuntos sociais, um
indivíduo estará deste modo preservado de transgredir os limites de seu desenvolvimento
e de sua expansão naturais. Ter-se-á disso muita certeza?
O psicodrama visa a dar aos indivíduos ocasião de libertar seus impulsos espontâneos,
O sujeito deve "interagir" em face de pessoas da sua roda ou de auxiliares que os
representem. Pode inventar um papel, reproduzir uma cena do passado, representar um
problema presente cuja solução é urgen te, ou prefigurar experiências futuras. Os
pesquisadores podem assim discernir a alternância dos impulsos espontâneos e das
reações estereotipadas, inspiradas por clíchês culturais, por preconceitos do meio, a
adaptação variável às situa ções oferecidas, que são outros tantos índices para uma
terapêutica( 2). Quanto ao sociodrama, sua técnica visa a "explorar a imagem verídica
dos males sociais num grupo", a revelar a estrutura social real desse grupo - muitas
vezes camuflada - e os conflitos que provoca, ao mesmo tempo que a direção das
transformações desejáveis. Moreno dá do sociodrama essa descrição sugestiva:
"Ele pode funcionar como um meeting numa cidade, com essa diferença que estão
presentes os únicos indivíduos a quem diz respeito o problema discutido, e que a ação
dramática tem relação com questões de importância vital para a coletividade.., as
soluções e os atos brotam do próprio grupo. A escolha do problema e de sua solução
com todas suas implicações partem do grupo e, não, de um que dirige a experiência."
O experimentador nem por isso deve agir pessoalmente menos, e sua tarefa nada tem da
de um homem de ciência tal como imaginado comumente:
"Os pesquisadores que empregam técnicas sociodramátjcas devem, para começar,
organizar meetings preventivos, didáticos e terapêuticos, no grupo onde vivem e
trabalham; organizar, quando lhes é pedido, meetings do mesmo gênero em toda a parte
onde se formulem problemas análogos; penetrar em grupos vítimas de dificuldades
sociais urgentes ou crônicas, meter-se em meetings organizados por grevistas, em
tumultos de diferente gênero, em ajuntamentos e manifestações polí
(1) Op. cit,, pág. 24.
(2) Cf, Jean MAISONNOUVE- P5Vc/wIogíe socia/ P.U.F., t951, págs 98-107
licas, etc., a fim de tentar participar da situação e de compreendé-la no próprio local c
ação. O pesquisador que usa técnicas sociodramáticas, acompanhado por uma equipe de
auxiliares, deve envolver-se na própria vida do grupo que quereria estudar, com a mesma
determinação, a mesma dureza ou ferocidade de um chefe polít ico ou sindical, O meeting
sociodramático pode transformar-se numa ação coletiva tão depri mente ou entusiasta
quanto os meerings políticos, com esta diferença fundamental de que os que fazem
política buscam submeter à própria vontade as massas, enquanto o teste sociodramático
esforça-se por conduzir a massa a um máximo de realização espontânea de si, de
expressão de si, e de análise de si por si mesma (1)."
Isto significa que o psicodrama e o sociodrama exigem certas condições que lhes
restringem o uso. Em compensação, o teste sociométrico de Moreno, baseado na
dimensão "atração-repulsão", é de fácil aplicação em não importa que grupo, e não se
privam de a ele recorrer. Inventado primeiro para estudar as escolhas interpessoais entre
os alunos de uma classe, foi em seguida utili zado por numerosos "pesquisadores" em
toda espécie de instituição social. Modificado de diversos modos, como é a sorte de todos
os testes, serve para distinguir as estruturas espontâneas de grupos os mais variados; por
exemplo, certos aspectos da leadership, pela análise das características das pessoas que
recebem uma grande adesão no grupo, etc. Os sociometristas, julgando quase impossível
deslindar, com a ajuda de psicologia empírica, através da intuição e da observação, as
redes de inter-relações que unem os membros de não importa que coletividade, visam a
determinar cientificamente as situações e os papéis do indivíduo no nós, efêmero ou
durável, constituído por qualquer que seja dos grupos sociais. A plasticidade dos métodos
permite ampliar indefini damente o campo de investigação. O próprio Moreno distingue o
que chama de cold sociometry e hot sociomet,y, preferindo a segunda, com grande dife
rença. Pois, a cold sociometry implica uma experimentação que não tem forçosamente
como objetivo, ao investigar as afinidades interpessoais de
seus membros, de reestruturar organicamente não importa que grupo; este, ao con trário,
é o intento essencial -da hol sociometrv. Nos dois casos, entretanto, trata- se de pedir a
todos os membros de uni grupo que designem, entre os compa nheiros, aqueles com os
quais gostariam de encontrar-se para uma determi nada atividade. Os critérios de
escolha podem ser muito diversos: relações afetivas, se se quiser compor um dormitório
num internato ou num quartel, por exemplo; relações de ascendência-dependência, se se
tratar de designar um chefe de equipe, etc. E necessário um trabalho preparatório que
consiste em colocar o grupo nas melhores disposições possíveis para uma resposta
sincera às questões. Quando se trata de hot sociometry, é mais fácil mobilizar o
interesse das pessoas para formar grupos de trabalho, equipes de jogo, dormitórios,
secções de combate, times esportivos, círculos de estudos, etc.
Segue-se um trabalho delicado: examinar minuciosamente as respostas e-extrair da
massa das informações obtidas as indicações a serem interpre tadas do ponto de vista
psicológico ou sociológico( Certos experimentadores acrescentam outra dimensão
chamada "teste de percepção sociométrica": um questionário que constitui como a
introversão do teste sociométrico, pois
- (1) "Méthode expérímentale, sociométrie o marxisme", in C'ahiers Inlernusionaux de
Socio/oÁ sol. VI. Edit. do Seuil. 1951.
(2) Sobre a aplicação e o exame minucioso do teste sociométrico, ct. Georges BAST lN
Les techsigries soeiom P.U.F., 1951. onde se encontrará igualmente uma importante
bibliografia a respeito. Cf. tansheni Paul MAUCORPS: Psvcho/ogie do ,nor,ee,nents
sociaur, P.U.F., 1950, págs. 81-126.
392
393
consiste em pedir a cada indivíduo do grupo para adivinhar aqueles que o escolheram ou
rejeitaram, com vistas a esclarecer a subjetividade tida por cada qual na percepção da
sua personalidade e da sua posição social no grupo. As pesquisas sociométricas foram
empreendidas em todos os domínios e em todos os sentidos: grupos escolares, industriais,
militares, de crianças, de adultos, evoluídos, primitivos.., segundo métodos de notação
diferentes, visando a determinar as relações entre o status sociométrico e certas
características, tanto físicas (estatura, peso, idade, aparência), quanto psicológicas
(inteli gência, êxito escolar, atitudes, traços da personalidade) ou sociais (nível social e
econômico, número de filhos da família, capacidade psicossocial de contato com
outrem)...
4. Psicologia social, ciência e filosofia
Pitirim Sorokin, que denuncia a "testecracia" e a "quantifrenia" que reina na psicologia
social dos Estados Unidos, a "obsessão da descoberta" e o "complexo do descobridor"
entre os pesquisadores, reconhece a Moreno o mérito de ligar-se a um passado cultural.
Por outro lado, admite a superiori dade das técnicas sociométricas sobre os testes que
proliferam nas ciências psi cossociais. Mas permanece céptico quanto ao alcance dos
resultados que delas se pode obter ou esperar. Se a originalidade criadora pudesse ser
mensurada por tais testes correntes e fáceis, observa ele, se pudessem garantir as
aptidões e as incapacidades dos indivíduos, seria resolvido com perfeição o mais árduo
problema da seleção e da repartição das ocupações profissionais e das situa ções sociais
entre os sujeitos. Cada qual ocuparia a situação correspondente a seus talentos, e a
sociedade inteira lucraria extremamente com uma distri buição científica desse gênero. O
conjunto dos organismos de educação e de correção ficaria assim grandemente
simplificado e completamente modifi cado. O total também das obras criadoras de uma
sociedade - na ordem econômica, politica, científica, tecnológica, religiosa, ética, artística
- aumentaria consideravelmente em conseqüência dessa criatividade desenvol vida.
Todavia:
"A infelicidade está em que a realização de uma tal utopia não pode ser assegu rada
pelos testes. Como nós tentamos mostrá-lo, todos esses procedimentos, a começar pelos
testes de inteligência e até os testes automáticos de criatividade, comportam graves erros.
Se, defeituosos como são, fossem aplicados à seleção e à repartição dos indivíduos nos
diversos empregos, disso só poderiam resultar erros nefastos de orienta
ção profissional; o sistema atual, longe de ser melhorado, ficaria agravado e o bem-
estar geral diminuído antes que il )."
O presente capítulo, consagrado à psicologia social norte-americana, por insuficiente que
seja, terá mostrado ao menos a diversidade das pesquisas que a constituem e que não se
poderia reduzir a um denominador comum, O que não impede um desenvolvimento
quantitativamente prodigioso da nova ciência, sob a forma de inquéritos, sondagens de
opinião, experimentações, aplicações múltiplas; e tudo isso em geral numa perspectiva
essencialmente pragmática.
(1) Pitirim SOROKIN, Tendances ei déboiiea de Ia sociologie a,néricaine, Aubier, 1959
(lrad. deFads a,id FoibIe ia Modera Sociologc and RelaiedScieaces, Chicago, 1956).
Restaria, entretanto, considerar o alcance de tal tipo de pesquisa do ponto de vista
filosófico. E, nessa perspectiva, mesmo se consideradas por demais român ticas, surgem
ao espírito, com certa nostalgia, as variações de Heidegger sobre a tirania do a gente, que
assegura ao indivíduo a segurança, à custa da liber dade e da responsabilidade.
Pois, muitas pesquisas que se desenvolvem no domínio da psicologia social americana
recorrem ao condicionamento social, à influência exercida pelo grupo na formação da
personalidade, à origem social das normas e valores, etc., num sentido que quase não
deixa margem à autonomia do indivíduo, à sua subjetividade que se pretende incorporar
sem sacrificar.
Desejar-se-ia, por outro lado, que houvesse uma distinção mais nítida entre
conhecimento do homem e interesses práticos, os quais exercem um grande papel na
medida em que a nova ciência é favorável aos meios de negócios por suas aplicações na
publicidade, na psicologia industrial, nas vendas, etc. As inúmeras "sondagens" efetuadas
nos Estados Unidos, mais utiitárias em geral que a de Kinsey, atestam a amplitude e a
vitalidade dos novos métodos.
Mas, como o interesse do businessman não é forçosamente o do homem, sem mais,
impõe-se uma discriminação entre a psicologia social a serviço do comércio, da indústria,
da politica, do militar, da propaganda, etcc., e a psicologia em suas relações com o
problema da verdade. Exigência que reconduz inevitavelmente ao sentido que já o velho
Sócrates se esforçava por distinguir nas condutas humanas. O que se quer, afinal?
Produzir mais, viver melhor? Sem dúvida, embora a produtividade intensiva não garanta
a felicidade. Há, porém, poucos homens que admitam como único objetivo de sua
atividade a riqueza, o poder e a consideração, e é então que intervêm, ao menos como
álibis, os ideais. Mas quais? O bem-estar social, na medida em que permite o desabrochar
da personalidade, a liberdade? Ora, estas são noções que exigem mais ampla reflexão. E
que tipo de homem se visa a formar? Seres cujo rendimento seja máximo no seio do
grupo? Ou que sejam eventualmente capazes, em nome de exigências humanas
superiores, de protesto e de revolta?
Muitas outras questões podem ser formuladas quanto à significação e ao alcance das
pesquisas empreendidas sob o pretexto de psicologia social. Por exemplo, é legitimo tirar
da descrição de um grupo social princípios gerais de ação? A história, com a liberdade e
as coerções que a constituem, não comporta um desenvolvimento que se pode decifrar
de maneira diferente? Por outra parte, a "socialização" do indivíduo, que parece
evidente, causa problema. Muitos psicólogos sociais foram levados a toda espécie de
experiên cias a esse respeito, com gêmeos, crianças adotivas, indivíduos de raças
diferentes, etc. Mas, além do fato de essa psicologia social morfológica quase não
parecer manter laços orgânicos com a do comportamento, é impossível afirmar que os
resultados obtidos por tais pesquisas tornem caducas as controvérsias muito antigas entre
nativistas e empiristas.
Será necessário precisar que essas restrições não visam à psicologia social como tal,
mas somente a certas tendências que nela se manifestam?
Entre os autores que nela vêm dar com a preocupação de esclarecer de maneira
profunda o comportamento humano, cabe mencionar o médico-
394
395
psiquiatra Alexander Mitscherlich, atualmente diretor do Sigmund Freud Institut, de
Francforte; é, com efeito, uma "psicologia social de inspiração analitica" que ele invoca a
seu favor para formular do nosso tempo um diagnóstico que reconduz também,
mutatis mutandis, à metapsicologia de Freud( Um fenômeno lhe parece essencial hoje: o
do desaparecimento progressivo e inelutável da figura do pai numa sociedade onde os
modelos tradicionais não exercem mais que uma influência repressiva e tornam-se para os
indivíduos uma fonte de angústia, de agressividade ou de indiferença; Mitscherlich
denuncia à sua maneira a "massificação" dessa sociedade, que coage milhões de seres a
viverem em formações urbanas incoerentes e irracio nais( e seu caráter de anonimato
que exclui toda obra onde o indivíduo possa imprimir o seu cunho. Tal estado de coisas,
julga ele, só pode criar um "exército gigantesco de irmãos ciumentos" que rivalizam entre
si:
"Perante a sociedade camponesa ou feudal, capitalista e burguesa, trata-se aí de uma
mudança de toda a situação social cujas conseqüências, uma vez que atingirem a
consciência, não poderão mais ser ignoradas. A isso se acrescenta o fato de que as massas
da sociedade industrial não "vegetam" mais num estado constante de diminuição das
forças vitais, e não têm mais que sofrer da subalimentação e das epidemias. Seu
excedente de forças pulsionais busca satisfação nas usurpações de tipo horizontal sobre o
concorrente(
Hoje existe, pois, segundo ele, um problema urgente formulado pelo que chama de
"excedente pulsional", isto é, todas as forças instintivas que os processos de
aprendizagem não puderam tornar utilizáveis no interior do grupo, forças que o
indivíduo não pode controlar e o pressionam na ausência de um "ideal do eu" capaz de
incorporá-las(
As pulsões rejeitadas devem procurar, fora, uma válvula de escape, especialmente na
direção dos bodes expiatórios do grupo( A dificuldade que constata em vencer os
preconceitos coletivos, na medida em que estão ligados à gênese mesma do
desenvolvimento caracterial, leva Mitscherlich a pensar que a humanidade se acha hoje
diante de uma espécie de dilema: ou abandonar-se à idéia de que as atividades do ego
não podem ser reforçadas senão por revoluções que revestem o aspecto do assassínio
mítico do pai, isto é, por acontecimentos que deixam uma impressão profunda na vida
psíquica coletiva; ou apostar na esperança de que o nível de consciência atingido até o
presente baste para permitir uma ampliação progressiva da razão integrativa. O autor
tem como certo que nisso existe, diante da ameaça de uma destruição da espécie Homo
Sapiens, ao menos diante da alteração do patrimônio gené tico por um tempo difícil de
prever, uma "corrida contra o relógio(
Análoga inspiração, isto é, que se afasta do movimento culturalista acentuando a
estrutura instintual do homem, é encontrada nas obras "sócio-
(1) Auf deni VVi'g zur 'arenas,',, G.'st'll.schati, Muniquc. R. Piper & Co. Verlag, 1963
(irad. francesa:
Vens la société sa,,s pêres, N.R.F., GalIin 1969).
(2) Die Unicin/ilichkeii unseren Siadie, Ansi z,',,r Unfnieden, Suhrkamp Verlag, 1965
(trad. francesa: Psychanalyse ei urhanis,ne, Gallin Les Essais CLIII. 1970).
(3) Vens la saeréré ia,,, pêres, o,". cri., pág. 229.
(4) Ibid., pág. 26.
(5) Ibid., pág. 39.
(6) lbid., pág. 81.
psicanalíticas" do Dr. Gérard Mendel( Também ele insiste no caráter inédito da "crise
das gerações" na sociedade ténica de nosso tempo. Os adolescentes não podem mais
vencer a etapa edipiana (inelutável, segundo Mendel), pois as exigências dessa sociedade
e os conflitos coletivos incons cientes por ela criados destroem o modelo do pai,
interiorizado por ocasião do primeiro conflito edipiano. A maneira de Mitscherlich,
Mendel, que estuda penetrantemente o movimento de revolta da juventude atual,
somente vê salvação numa tomada de consciência dos medos irracionais:
"O verdadeiro problema de nossa época é evitar que os adolescentes decepcio nados,
enganados, resvalem para o fascismo, para o qual, na ausência de contraforça, tende
muito naturalmente a sociedade tecnológica(
Quanto a Konrad Lorenz, foi a partir de seus estudos sobre o compor tamento animal(
que entrou também no domínio da psicologia social. Sua volumosa obra, onde as
manifestações de agressividade intra-específica ao nível do homem ocupam importante
lugar, é significativa a esse respeito( Aí é encontrado o relevo dado às pulsões
instintivas, mas na perspectiva filogenética que lhe é cara.
Ficou especialmente impressionado, ao observar combates de lobos e cães, com o fato
de que o vencido oferece a garganta ao vencedor, e este graciosamente o poupa. Trata-
se aí, evidentemente, pensa Lorenz, de uma inibição de origem filogenética, que se
orienta para a sobrevivência entre os animais que desenvolveram armas perigosas
(prova-o não aparecer a inibição entre aqueles cujos combates não acarretam ferimentos
muito graves).
Mas, e no homem? Nele volta a manifestar-se a inibição, segundo Lorenz, desde o
guerreiro de Homero que, cabeça curvada, pede demência, até a nossa moderna moral
social. Isso quer dizer que Lorenz considera extre mamente importante o aspecto
fiogenético da agressividade humana em suas diversas formas, atentando a que os efeitos
nocivos desse aspecto (que Freud tentou explicar por uma pulsão de morte específica)
provêm "muito simples mente do fato de que a pressão da seleção intra- específica fez
evolver no homem, em época a mais afastada, uma quantidade de pulsões agressivas,
para as quais ele não encontra válvula adequada na sociedade atual" (5)• O mesmo
sucede com a "hipertrofia pulsional" que se manifesta na criminali dade, simples
"modificação do comportamento ligada à domesticação".
Assim, na perspectiva de Lorenz, a psicologia - e não somente a psico logia animal -
torna-se serva da biologia. Implícita e explicitamente:
"Cada ser vivo é um sistema, resultado de um devir histórico, e cada uma de suas
manifestações vitais só pode ser verdadeiramente compreendida se uma pesquisa causal
racional estudar o processo de sua gênese filogenética. Trata-se aí de um fato evidente,
na hora atual, para todo aquele que reflete sobre a biologia. Inversamente, a
(1) La récrrlieer,,iirelepêre, Paris, P.B.P., 1968; La crise dei génénal Paris, P.B.P., 1969.
(2) La c,'ise dei gén ap. cii., pág. 248.
(3) CI. cap. XXII, §4.
(4) Das sogenaflnle Base. Zar Narurgeschichte der Agressian, Viena, Dr. G.
Borotha.Schoeler Verlag, 1963 (trad. francesa: L'agressian. Une l,is natureile du ria
Paris, Flammarion, Nouvelie Bibliolhèque Scien tifique, 1969).
(5) Ibid., pág. 259.
396
397
idéia de que o mesmo ponto de vista é válido para todos os fenômenos do comporta
mento psíquico e que nossas produções psíquicas e intelectuais não são independentes
de todo o restante dos fenômenos da vida, tal idéia não abre caminho para si senão
dificilmente e com extrema lentidão. Até nos psicólogos contemporâneos encontra-se
ainda grande reticência em admitir que a todo comportamento - mas também a tudo o
que se passa em nossa consciência - corresponde igualmente, de maneira paralela, um
processo neuropsíquico(')."
Sob nova forma, é, pois, a velha idéia do paralelismo que ressurge com Lo renz. Ela
implica, no caso, que ele renuncia a ver na "espontaneidade" admitida, fosse ela humana,
a expressão de uma vida psíquica irredutível, e quer submetê-la a uni estudo que a ajuste
aos processos neurológicos explicáveis pela ciência. Tal naturalismo não poderia
convencer a todos os espíritos. Já tive ocasião de observar, ao expor suas teorias sobre o
comportamento dos animais, que a maneira pela qual ele encara a "esponta neidade"
apouca singularmente o momento psíquico. A fortiori em nível humano, a atividade
espiritual em sua universalidade concreta ou, se quiserem, a subjetividade como fonte e
fundamento do mundo fenomenal, parece estar bastante comprometida na sua obra,
apesar de, afirmando muito pertinazmente o dever de penetrar a fundo no conhecimento
do nosso próprio comportamento, ele preconizar, em palavras somente, o gnõthi seautón
(o "conhece-te a ti mesmo" do templo délfico) aprofundado por
Sócrates( 2) Não é que Lorenz desconheça efetivamente o caráter único do homem. Não
invoca explicitamente Kant a seu favor? Mas seu Kant é uma transposição natura lista do
de Kdnigsberg, pois interpreta-o de um modo que assimila as formas e as categorias
a priori da sensibilidade e do entendimento aos a priori existen tes nos animais( Para
Lorena, com efeito, as estruturas cognitivas do homem têm também uma origem
biológica e fiogenética.
Nessas condições, é evidente que desaparece o dever moral no sentido kantiano. Pensa
Lorenz efetivamente que é preciso tudo ignorar da esponta neidade essencial das
pulsões instíntivas para crer que se poderia diminuir ou mesmo suprimir a agressão,
colocando a humanidade ao abrigo das estimu lações que podem desencadear um
comportamento agressivo; ou para imagi nar-se que é lícito jugular essa agressão
opondo-lhe um veto moral( Consi dera como verdadeiro que o único valor que não pode
ser posto em dúvida, independentemente de toda moral racional ou educação, é "o liame
de amor e amizade humana, fonte de toda a bondade e caridade, e que representa a
grande antítese da agressão" (5).
Com seu humor e sua bonomia radiante, o homem Lorena é a antítese do cientista que
se poderia acusar de "desumanizar" a ciência. Mas a questão não é essa, e, sim, a de
saber se a maneira pela qual ele concebe a subjetivi dade humana pode realment e
explicar esta última. Segundo Erich Fromm, por exemplo, para quem importa
essencialmente a atividade criadora e a adaptação dinâmica do homem às estruturas da
sociedade, a insistência de
(1) Essais sor (e campo rteme, a et Somai,,, op. eiS. pãg. 409.
(2) L ageession. op. eiS.. pág. 292.
(3) Cf. particularmeste Kant's Lehre tom apnorisehen im Liehte gegenv Biologie
(Btatter for Deotsc/ 1941, 15, pãgs. 94-125).
(4) L ag,'ession. . op. eu., pág. 292.
(5) ibid, pág. 301.
Lorenz na hereditariedade animal instintual não atinge o problema especifi camerite
humano, visto melhor pelo próprio Freud, apesar do seu "biolo gismo". Fromm teme
que o naturalismo de Lorenz, nolens volens, traga água ao moinho de unia tendência
que ele, Fromm, deplora na cultura contemporâ nea: a de uma espécie de demissão geral
do homem diante do determinismo dos instintos e, além disso, diante dos
computadores( o.
Tal situação cultural leva-o a citar a seu favor esta advertência solene de Lewis
Mumford:
"O homem moderno se aproxima... agora do último ato de sua tragédia, e eu não poderia,
mesmo querendo, dissimular a finalidade ou o horror da mesma. Nós temos
suficientemente vivido para ser os testemunhos da reunião, em íntima associa ção, do
autômato e do id, o id a subir do mais profundo do inconsciente, e o autômato, pensador
à imagem da máquina e máquina à imagem do homem, a baixar, completa mente
desligado das outras funções de preservação da vida e das reações humanas, das alturas
do pensamento consciente. A primeira força, quando foi desligada do conjunto da
personalidade, mostrou-se mais brutal que feras as mais selvagens; a segunda força é de
tal modo impermeável às emoções humanas, às angústias humanas, aos objetivos
humanos, de tal modo destinada a responder somente à gama limitada de questões para a
qual seu mecanismo foi originalmente concebido, que lhe falta inteligência salutar para
suspender a ação de seu próprio determinismo, embora precipite a ciência, assim como a
civilização, para a própria ruína(
Com um interesse inteiramente diferente, o psicólogo Jean Piaget, de quem se sabe a
muita preocupação com elaborar uma epistemologia genética, procura, muito mais que
Lorenz, indagar a respeito do caráter necessário das conexões cognitivas a priori:
"Explicar unicamente pela seleção, no sentido do mutacionismo, por que o cérebro
humano foi capaz de construir estruturas lógico-matemáticas tão admiravel mente
adaptadas à realidade física é.. - impensável, pois os fatores de utilidade e de
sobrevivência só teriam conduzido a instrumentos intelectuais grosseiramente aproxi
mativos, que satisfazem largamente a vida da espécie e dos indivíduos, e, não, a esta
precisão, nem, sobretudo, a esta necessidade intrínseca, a exigir ambas uma explicação
muito mais profunda da adaptação do que a triagem a posteriori no meio de variações
aleatórias(
Se é louvável a exigência, aqui expressa pelo Sr. Piaget, de uma "explicação muito mais
profunda", é evidente que não é à filosofia que ele pensa (a cujo intento e proceder ele é
alérgico), mas à sua "epistemologia genética", única capaz de fundamentar um
conhecimento válido. Infeliz mente o problema que Lorenz resolve à sua maneira é
metafísico e, como tal, não poderia ser resolvido de maneira peremptória pelo mais
aperfeiçoado esquema técnico. Se tais esquemas respondem mais ou menos eficazmente
aos "como" que o homem formula à realidade, os "por que" que igualmente propõe, só
podem ser postos de lado quando com base num cientismo que os consideraria uma
extrapolação possível de ser desatendida sem grande incon veniente.
(5) Espoirei r Paris, Stock, 1970, pág. 62.
(2) Ia the Name o! Sanite (Nova York, Llarcourt Brace & Co., 1954), citado por
FROMM. op. CO.. págs. 62-63.
(3) Biologie ei connaissance. Coliection "L'Avenir dela Science", Gailimard. 1967, pág.
316.
398
399
No respeitante às condutas, por exemplo, até no domínio da psicologia animal, onde
Lorenz é exímio no gênero, algumas de suas descrições, que "roçam" o antropomorfismo
repudiado em princípio, traem a dificuldade de uma explicação científica exaustiva. Ora,
essa dificuldade é muito maior quando se trata da subjetividade humana, de suas origens
e dos impulsos profundos que a levam a agir. Eis
ai um aspecto do conhecimento que pesqui sadores especializados reconhecem
plenamente.
Assim é que Thure von Uexküll, por exemplo, observa que todos os projetos segundo os
quais as ações se executam, e segundo os quais as máqui nas se constroem e funcionam,
deixam na obscuridade o que os cria. Que o homem queira desembarcar na lua, explorar o
cinturão de radiações que circunda a terra, ou fotografar Vênus, eis aí tambémfatos de
certo gênero, e inexplicáveis cientificamente. Isto significa que uma parte da realidade - e
que interessa o homem total - pode apenas ser eludida mas não resolvida pelos esquemas
técnicos( 1).
(1) Thure von UEXKULL. L ,néd epsvch Idéev, GaWmard, 1966, cap. VII.
400

CAPÍTULO XXIII
A PSICOLOGIA SOCIAL
1. Os primórdios da psicologia social
2. O "culturalismo" norte-americano a) Etnologia e psicanálise
Os "novos caminhos" segundo Karen Horney
e) O humanismo de Erich Fromm
d) O extremismo crítico de Herbert Marcuse
3. A abordagem experimental
a) Floyd Allport e a "facilitaçãosocial" b) A noção de "atitude" e sua extensão
c) A pesquisa sexológica de Kinsey
d) As experiências de Sherif
e) A "dinâmica dos grupos" de Kurt Lewin
f) Moreno e a "sociometria"
4. Psicologia social, ciência e filosofia
A vida em comum formula um problema fundamental já ao nível da vida animal, onde
muitos fatos observados mostram a influência do grupo no comportamento dos indivíduos
(por exemplo, as relações hierárquicas de dominação e submissão). Dessa influência
ocupa-se a psicologia animal há cerca de trinta anos (estudos sobre as abelhas em
particular, sobre os pássaros, sobre os peixes, etc.). No plano humano, a dimensão social,
dentro do contexto da cultura contemporânea - desde Hegel, Comte, Spencer, Darwin e
Marx - intervém como jamais na história, e a psicologia, apesar de ter por objeto o
comportamento individual, deu-se cónta de que não podia fazer abstração das relações
entre os homens, nem das que os ligam a seu meio. Tal necessidade não havia escapado
àquele que é considerado com razão como o fundador da psicologia científica
- W. Wundt - o qual quis completar suas pesquisas de laboratório por uma "psicologia
dos povos" (1). Mas o enorme trabalho que realizou nesse domínio não parece, te
exercido influência direta sobre as pesquisas contemporâneas, as quais se alimentam em
outras fontes (behaviorismo, psicanálise, Gestalt, psicologia genética, etnologia,
antropologia, etc.).
A preocupação de apreender a vida psíquica em suas manifestações concretas deu
origem à "psicologia social", cujo termo aparece desde o final do século XIX com
Emile Durkheim (1858-1917) e com o psicólogo norte- americano J. M. Baldwin.
Considera-se em geral que a obra de Durkheim,
(1) Sua VoIke não compreende menos de dez volumes (1 cd. 1900.1920).
362
por sua maneira de encarar a vida do homem em sociedade, representa a contrapartida
da concepção individualista que prevalece na obra do compa triota e contemporâneo
Gabriel Tarde (1843-1904). Para esse último, ao mesmo tempo filósofo, historiador,
jurista e criminologista, a sociedade é uma "coleção de seres" que se imitam uns aos
outros. Inspirando-se largamente nos pontos de vista das escolas médicas de Charcot e
Bernheim, o autor de Les bis de l'imitation (1895) funda essa imitação na sugestão(').
Os fenômenos da vida em comum seriam assim condicionados pela
psicologia dos indivíduos que compõem a sociedade, pois a invenção, particu larmente, é
sempre de natureza individual.
Não cabe examinar aqui uma teoria que generaliza esse fato inegável de que o caráter
elementar e automático das funções psíquicas, aparente na degenerescência patológica
como na conduta tipicamente instintiva, vo lta a encontrar-se em muitas manifestações da
vida social; basta lembrá-la como exemplo de uma já antiga tentativa de explicar as
interações humanas a partir de uma psicologia orientada para o sujeito individual;
perspectiva essa que reaparece na psicologia social americana de nosso tempo. Em
compensação, Emile Durkheim, que desejava ser sociólogo e nada de "psicólogo social",
quis estudar as "representações coletivas" que emergem da interação dos homens em
sociedade, sendo o indivíduo, a seu ver, modelado e dominado pelo meio social. Não é,
pensava, na direção dos indivíduos isolados que será preciso buscar a explicação dos
fenômenos sociais, mas na da "consciência cole tiva", nesse sentido que uma linguagem,
uma tradição popular, uma estrutura politica e social - realidades fundadas nas atividades
coletivas de um grupo - preexistem aos indivíduos particulares e lhes sobrevivem. Por
conseguinte, a "mentalidade" dependeria diretamente dos modelos próprios a uma dada
sociedade, os quais influenciam os indivíduos até em suas relações privadas.
Essa evocação de duas concepções antagônicas, nascidas numa época em que a
psicologia social estava ainda balbuciante, permite compreender logo à primeira que é
difícil definir o objeto da nova ciência. Reconhecem-lhe, em geral, uma posição
intermediária entre a psicologia individual e a socio logia; psicossociologia, em suma,
que se propõe a estudar as interações entre o indivíduo e o grupo social por meio de
pesquisas tão "experimentais" quanto possível, e que enfatiza as relações de
interdependência entre a personalidade e a sociabiidade, com a preocupação de evitar o
inconveniente perigoso de uma oposição abstrata entre o indivíduo e o meio social.
Longe está, entretanto, de que os dois pólos - indivíduo e grupo social - exerçam igual
atração no domínio da psicologia social. Sua história mostra que uma das tendências -
individualista ou coletivista - prepondera segundo os autores, como o mesmo acontece,
aliás, no plano geral da cultura. Nos Estados Unidos, onde a psico lo gia social chegou a
um extraordinário desenvolvimento, as noções de atitude e de papel, de personalidade de
base, etc., são constantemente empregadas num sentido que deveria permitir superar a
antinomia; tal não ocorre sempre, porém, sem ambigüidade.
(1) As experiências de CJ-IARCOT em Paris, e de BERNHEIM em Nancy. puseram em
moda as sugestões, e vários autores (em particular Gustave LE BON: Psychologie
destoa/eu (1895), aprovada plenamente por FREUD( difundiram a idéia das
transformações por que passa o psiquismo individual ao contato com a multidão, sua
regres são a um estado de selvageria e de barbáne. Com LE BON, todavia, o conceito de
"multidão" permanece indeter minado e aplica-se a qualquer agrupamento.
363
Os primeiros estudos específicos de "psicologia social" remontam a 1908, a denotar de
início a preocupação de se estabelecer uma teoria geral( 1). E o caso, particularmente,
de William McDougall, de origem inglesa, profes sor em Oxford antes de instalar-se em
Harvard (1871-1938), e cujas idéias conheceram grande sucesso além-Atlântico, num
primeiro momento. Sob a influência de Freud, McDougall tomou a si a tarefa de
repensar as teorias de Darwin e de William James, e acabou propondo uma psicologia
social não racional, fundada numa teoria muito ampla do instinto. Antes até da aparição
da Gestalt, forma da atividade psíquica um conceito orgânico e total. Todo
comportamento, segundo ele, está orientado para um alvo (purposive) por uma força
(drive, urge) que se acha na origem de todas as atividades do ser vivo, um pouco no
sentido do querer-viver de Schopenhauer, e que McDougall designa com um termo
grego: hormé. A hormé permite compreen der essa espécie de triagem que ocorre em
todo processo de aprendizagem, durante o qual um ato, conforme tenha êxito o u
fracasse, é sentido como agradável ou desagrável, reforça ou enfraquece a propensão
para realizá-lo. O instinto é o liame emocional que une os três aspectos da vida
subjetiva:
conhecer, sentir, tender para, a cada um dos quais corresponde certo modo de
comunicação: a sugestão, a simpatia, a imitação.
Em suma, malgrado os remanejamentos sucessivos de sua doutrina, McDougall pensa
que as condutas sociais são fundamentalmente instintivas. Até no homem, no qual se
manifestam sob um aspecto muito particular, dadas sua diversidade e plasticidade, é aos
instintos que é preciso recorrer se se quiser compreender o comportamento ou procurar
modificá-lo. Deste modo a religião teria nascido do temor e da submissão; o crescimento
das grandes cidades seria devido ao "instinto gregário"; a acumulação do capital seria o
produto do instinto de aquisição... Esse esforço para constituir, ao mesmo tempo
biológica e psicologicamente, a psicologia social suscitou muito apoio e também muitas
oposições. Em particular a de Knight Dunlap, o qual nega a possibilidade de descobrir
impulsos instintivos independentes no comportamento unitário de um indivíduo normal e
não vê nenhuma utilidade em catalogar "instintos sociais
fundamentais" quando se trata de compreen der condutas humanas concretas( O filósofo
John Dewey, um dos primeiros presidentes da American Psychological Association,
opôs-se também às teorias de McDougall, afirmando que não são os instintos mas os
hábitos que permitem dar sentido à psicologia social; hábitos que devem ser considerados
como dinamismos gerados pela interação das disposições biológicas e do meio social,
num sentido que prefigura um pouco o "campo social" que Kurt Iewin introduzirá no
domínio da psicologia social.
2. O "culturalismo" norte-americano
a) Etnologia e psicanálise
As teorias culturalistas, derivadas da psicanálise por filiação e reação, nasceram da
preocupação de submeter à discussão as descrições freudianas
(1) E. A. ROSS; Social Paycholvav, Nova York, 1908. W. MCDOUGALL: Ao
Ioiroduc4ivo to Social Psychologj Londres, 1908.
(2) Are There Any Instincts?, 1919; Habits. Theie Making a Unmaking, Nova York,
1932.
da dinâmica das pulsões, com a consideração de que, tributárias das obser vações feitas
no contexto da civilização ocidental, deveriam ser confrontadas com as condições da
vida infantil em outras sociedades.
Essa passagem do "biologismo" de Freud, como dizem de bom grado os "culturalistas",
para as novas perspectivas desses últimos foi influenciada principalmente pelos trabalhos
de Adier (que insistiu sobre os fatores sócio- culturais em certas fixações do sentimento
de inferioridade), pelos de Reich (que lhes atribui uma importância essencial na formação
do caráter), pelos de Jung, enfim (devido ao interesse que sempre votou à mentalidade do
povos "primitivos").
Desde 1913, o próprio Freud (Totem e Tabu) aborda a psicologia coletiva, num sentido,
porém, que subordina as tendências sociais às pulsões instintuais reprimidas. Em
resumo, ele via na civilização um processo que torna necessária uma coerção com cujas
penas os indivíduos são os únicos a arcar, enquanto que a corrente "culturalista" chegará
à afirmação de que as sociedades devem ser consideradas sob o aspecto de um conjunto
de insti tuições que exercem um papel, não somente negativo, mas positivo na formação
da personalidade.
Mutatis mutandis, aí existe o renascer do conflito que opunha o psicolo gismo e o
sociologismo no começo do século; o primeiro, insistindo inteira mente no indivíduo
como tal; o segundo, vendo nele, antes, a resultante do meio social. Mas a originalidade
dos culturalistas está em que quase não falam mais da sociedade em geral, porém de
sociedades particularizadas, preocupados mormente em reunir fatos precisos que
interessam à formação da personalidade em tal meio social e cultural.
Foi nos Estados Unidos que floresceram suas teorias, modificando a orientação do
freudismo em direção de uma psicologia social que se valia dos dados novos da etnologia
e da antropologia, aqueles, principalmente, extraí dos das descrições de Bronislaw
Malinowski (1884-1942), professor de antropo logia da Universidade de Londres e
universalmente conhecido por seus traba ilios sobre as sociedades primitivas. Entusiasta,
de inicio, em relação à psicaná lise, Malinowski iria abrir o caminho ao
"culturalismo" ao opor às hipóteses freudianas (inspiradas em observações clínicas
realizadas no âmbito da socieda de ocidental), a necessidade de estudar, diretamente e
sem opinião preconcebi da, a vida social, famiial, o comportamento sexual de uma
sociedade primitiva, no caso a das ilhas Trobriand (ao nordeste da Nova Guiné e noroeste
da Melanésia)( Estendeu-se, particularmente, sobre a grande liberdade sexual reinante
entre os trobriandeses. E para duvidar, porém, que suas descrições possam ser utilizadas
tais quais para uma comparação válida com os dados la sociedade européia do século XX
e sua valorização da monogamia, dada a grande diferença de mentalidade, por um lado
científica e técnica e, por outro, mágica, reinante entre as duas sociedades. Por exemplo,
se os trobriandeses ignoram em verdade, como afirma Malinowski, a paternidade
fisiológica, não é surpreendente que vivam sob um
(1) Cl. especialmente La sexual ei au répressiol, dano Ira soci peinliiiies (P.B.P. o? 95);
Ti-vis esaais sue la ele ,oc,ale de, przm,t,fs (P.B.P. n? 109); La Pie sexueile des sauvages
du Nord-Ouesi de la Mélanésie (FtP. n? 156).
Veja-se igualmente a obra de Michel PANOFF. que contém uma bibtiografia !i,-
onislalv Malinvoski
(P. B. P. o? 195).
364
365
regime "matrilinear", em que a mãe forma o centro e o ponto de partida do parentesco, e
a sucessão e a herança transmitem-se em linha maternal. E, porém, forçar as coisas tomar
seu modo de vida, como fará Wilhelm Reich, por modelo de uma sociedade não
repressiva e sã, oposta às sociedades patriarcais que podem apenas produzir desajustados
com a repressão de sua sexualidade. De tal exagero estarão isentos os
"culturalistas" norte-ameri canos, os quais utilizam os dados dos etnólogos com muito
mais ponderação e nuances.
Ruth Benedict, bem conhecida por seus trabalhos sobre os índios da América (1),
contribuiu para a nova antropologia culturalista por sua idéia de que a psicologia dos
indivíduos está, num grupo, subordinada à influência de modelos que devem ser
seguidos para que haja adaptação ao mesmo( Pois, efetivamente, implantar-se-á na
corrente "culturalista" a idéia de que em toda cultura há patterns admitidos e possuidos
em comum, os quais prescre vem ao indivíduo o que deve fazer ou não fazer para ser
aprovado. A noção de pattern tem por corolário a de aculturação, que introduz o
problema de saber como o indivíduo é receptivo às normas do grupo, como pode a elas
adaptar-se e nelas encontrar o próprio equilíbrio. Será evidente que não é possível
contentar-se com ver na personalidade, que deve interiorizar os patterns, o simples
reflexo de uma cultura. Esse problema da interiorização levará a recorrer à psicanálise,
já que, pelos processos descritos por esta, principal mente pelos de introjeção e projeção,
é suscetível de ser explicada a existência de uma personalidade "comum" ou
"aprovada".
Assim Abram Kardiner, nascido em 1891 e professor na Universidade de Colúmbia,
dar-se-á como tarefa sistematizar a nova antropologia, inte grando numa só estrutura
dinâmica o psíquico e o cultural. Para tanto utiliza como psicanalista os inquéritos dos
etnólogos, em particular os de Ralph Linton entre os tanala de Madagascar e os
polinésios das ilhas Marquesas. Persuadido de que as primeiras experiências emocionais
têm durável efeito sobre a personalidade, situa-as em seu contexto social, na medida em
que tais experiências se colocam dentro de um certo tipo de instituições primdrias,
caracteristicas de um grupo que possui suas próprias regras de alimentação, seus próprios
costumes familiais, seus próprios interditos sexuais. Pois, essas mesmas experiências
tendem assim a produzir um estilo de vida comum, uma estrutura de personalidade
análoga: a personalidade de base (3) E preciso, pois, entender por esse termo um modo
de comportar-se, de entrar em relação com outrem e com as coisas, comum aos indivíduos
de um grupo social que têm seus próprios patterns culturais. E essa personalidade de
base, na medida em que se "projeta" - no sentido psicanalítico do termo - em instituições
jurídicas, religiosas, morais, etc., cria esses elementos fundamentais de cultura que
constituem as instituições secundá rias.
Assim é que nas ilhas Marquesas, por exemplo, existiria no folclore, nas lendas e
narrações, a imagem de uma personagem feminina sem equivalente
(1) Em particular, com Ruth BUNZEL, sobre os zulti, tribo que vive numa faixa de terra
inóspita, ao longo do rio do mesmo nome, entre as Montanhas Rochosas e as Sierras,
(2) Patterns ofCulture, Nova York, 1934; o titulo da trad. francesa - Échanti//u,is de
civi/isations, Les Essais, Galtimard, 1950- não explica o sentido implicado no titulo
original, visto que pattern (modelo, esquema, configuração, padrão...), desde então de
emprego corrente, é algo muito diferente de éc/,unti/hn.
(3) Cl., sobre esse conceito, o estudo histórico e critico de Mike! DUFRENNE. Lo
j,eesovvulité de ha P.U.F., 1966.
em nossas sociedades; e isso precisamente porque lá se encontra um esquema cultural de
educação muito diferente do nosso. As mulheres, que ali parecem ser menos numerosas
do que os homens, passam de homem para homem, abandonando suas crianças desde o
nascimento. As crianças, nessa região onde não há quase leite e onde o alimento é raro,
são alimentadas pelo pai que lhes administra nem bem nem mal uma papa de farinha e
leite. Aléfn da grande mortalidade infantil, origina-se dessas condições de educação uma
personalida de particular cujos traços estão em relação com a experiência de uma
carência maternal. Não é sob o aspecto da mãe que a mulher lhe aparece, mas, antes, sob
o de um ser a temer e no qual não se pode confiar. E, pois, pelo lado da personalidade de
base, conceito "operacional" a seu ver, que Kardiner faz derivar as instituições
secundárias das instituições primárias. A noção é investida ao mesmo tempo de um valor
lógico (é normal que condições idên ticas de ambiente na infância produzam uma
estrutura de base análoga) e empírico (uma tal estrutura comum é localizável num grupo
humano).
Por conseqüência, convém admitir que os traços típicos da "persona lidade de base" são
verdadeiramente congênitos às instituições, e determiitam
a existência e a estabilidade de uma cultura. Elaborada em certo meio família!
e educativo (por um modo comum de alimentar, amar e disciplinar as
crianças), essa personalidade permite o ajustamento a instituições que, por
sua vez, continuam a modelá-la e a estruturá-la( l).
Tal articulação deveria assim permitir - em princípio pelo menos - compreender as
condutas pessoais pelo estudo das instituições; e, inversa mente, prever a natureza e a
evolução destas a partir da personalidade
de base.
Os trabalhos de Ralph Linton (1893-1953), por último professor de etnologia na Yale
University, são menos esquemáticos. Procedem de um homem que adquiriu, no próprio
espaço de trabalho, como arqueólogo e depois como etnólogo, uma grande experiência da
vida de numerosos grupos, e representam, no mais alto nível, o pragmatismo em matéria
de psicologia social. Esta, segundo Linton, deve preocupar-se de nuançar as coisas,
admitindo particularmente, além de uma "personalidade de base", a noção de uma
"personalidade estatutária". Pois, se se quiser compreender como a posiç do indivíduo na
organização social influencia suas relações com a cultura, o recurso a uma tal
personalidade, ligada a certa classe ou casta, poderá explicar a modelagem por que
passou a individualidade em sociedades cujas relações de produção têm um conteúdo de
classe. A esse respeito Linton retoma do sociólogo e filósofo George Herbert Mead o
conceito de papel, indispensável, a seu ver, se se quiser explicar a socialização da persona
lidade.
Em suma, Linton se preocupa em assinalar e descrever modelos muito diferenciados.
Ele próprio, porém, nem por isso está menos convencido da importância capital do
condicionamento dos primeiros anos de vida:
"Embora mal se tenha começado a estudar as relações entre as técnicas de educação das
crianças nas diferentes sociedades e os tipos de personalidade de base
(1) C de KARDINER; The Jndii and lux Socuet Columbua Untsersity Press, 1939 (trad.
francesa. L'indiu dann na sociéué, Paris, N.R.F., Gallimard, 1969, com uma introdução
de Claude Lefort(. Cl. gualtneflte PsychologieuilFrou ofSoeiety. Nova York, 1945.
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367
constatados entre os adultos, está-se, entretanto, em condições de admitir entre os dois
fatos correlações indubitáveis (1)."
Ele reconhece que a determinação dessas correlações é coisa delicada, dada a
complexidade dos laços inter-humanos, mas sem duvidar do princípio:
"Resta o fato de que, quando se conhecem os resultados já obtidos, não se pode duvidar
que dêem a chave de numerosas diferenças entre os tipos de personalidade de base, até o
presente atribuídas aos fatores hereditários. Os membros "normais" de não importa que
sociedade devem a configuração de sua personalidade muito menos a seus genes do que
às suas amas-de-leite (nurseries) (2)."
A análoga conclusão chegara Margaret Mead, filha do sociólogo George Herbert Mead,
com as hoje clássicas investigações em certas tribos da Nova Guiné; tribos pouco
numerosas, mas que haviam conservado tipos de cultura pouco contaminados pelos
modelos ocidentais (3). Suas descrições, que muito contribuíram para o enriquecimento
da psicanálise e da psicologia social, visam, também elas, a mostrar que o meio social
(atitudes, modelos propostos às crianças) é mais determinante para a formação da
personalidade que o processo genético. Assim, nas ilhas Samoa, pôde constatar, a
família, no sentido em que a entendemos, não existe; a moradia contém uma dezena de
homens e a criança não distingue o pai. Desse modo, não pode essa criança conhecer a
situação edípica. A vida em comum dos meninos e meninas, os mais jovens a obedecer
aos mais velhos, parece igualmente excluir os trauma tismos sexuais. A moça, em
particular, que se submete a mandos múltiplos, goza de grande liberdade sexual, e
adquire assim um tipo de personalidade que não conheceu os distúrbios da puberdade.
Isso provaria que a famosa "crise da adolescência", com todas as perturbações
fisiológicas e psíquicas que lhe são atribuídas, depende do meio e, não, de condições
biológicas inelutá veis. Margaret Mead pensa que é, aliás, o caso de outras
propriedades, julga das normais segundo o sexo, "naturais" ao homem ou à mulher em
geral, quando são, na realidade, função do meio e da educação.
Sucede assim que na tribo dos arapesh, que vivem numa região monta nhosa e pobre,
não se pode encontrar o espírito de competição característico, em todos os níveis, de
nossas sociedades ocidentais. Os homens e as mulheres, mansos e bondosos para com os
filhos, cercando-os de afeto e punindo-os com discernimento, fazem deles seres
cooperadores e confiantes. Inversamente, na tribo canibal dos mundugomors, na qual
todos são caçadores, as mulheres são tão combativas, violentas e cruéis quanto os
homens. Não manifestam nenhum "amor maternal", e os filhos, a viver no meio de
adultos indiferentes ou hostis, são coagidos a lutar para obter o suficiente alimento; em
tais condi ções, reagem com a agressividade, tornam-se inquietos e violentos. Enfim,
numa terceira tribo, a dos tschambulis, o elemento dominador é representado pelas
mulheres. Robustas, práticas, agindo com reflexão, são elas que tratam dos negócios do
clã e se ocupam do abastecimento. São também elas que
(1) The Cultural Background ofPerso,talsit', Nota York, 1945 )trad. francesa:
Lt'fusdernero culturel dela personualité. Paris, monographies Dunod, 1967, pág. 125)
(2) Jb,d., pág. 126.
(3) Seus principais escritos foram traduzidos em francês sob o titulo de Moeurs ei
sexualit en Océanie (Paris, Plon, 1962).
escolhem os companheiros, enquanto os homens, sensíveis, timidos e submis sos,
dedicam-se à dança, à tecedura, à pintura... Em resumo, pois, as pesquisas de Margaret
Mead vêm dar também na formulação do problema essencial da nova antropologia: o de
saber o que, na formação da personali dade, cabe aos instintos e aos fatores sócio -
culturais. Na medida em que o realce é dado à plasticidade do ser humano em interação
constante com um meio particularizado, o problema implica submeter novamente à
discussão a doutrina freudiana que relaciona as experiências da primeira infância com as
pulsões do ide com a constituição do superego (1).
A oposição poderia, entretanto, ser menos decisiva do que parece abstratamente, nesse
sentido em que os processos descritos por Freud, parti cularmente os de introjeção e de
identificação (que resultam em interiorizar o que primeiro é exterior) permanecem válidos
pelo fato de que a criança, mesmo educada num meio muito diferente do de Freud,
integra efetivamente regras de conduta e tabus. Não observou Margaret Mead que nas
ilhas Samoa, malgrado a grande liberdade sexual de que fala, existem tabus rigo rosos no
concernente aos irmãos e irmãs? Contrariamente ao que se passa em nossas sociedades,
elas que se sensibilizam tanto com o incesto entre pais e filhos. Se, pois, é indubitável
que as prescrições e os interditos variam de uma sociedade para outra, parece difícil
provar contra Freud que as motivações sexuais não representam em todos os casos um
papel importante, nem que se possa não levar em conta, na vida infantil
(seja qual for o meio social) a descoberta pela criança de sua própria sexualidade.
Resta, porém, ver que solução encontra esse duplo aspecto das coisas - biologia e
ambiente - entre os principais "culturalistas" nos Estados Unidos.
Um dos pioneiros da nova orientação é o psiquiatra Harry Stack Sullivan, cujos trabalhos
são característicos da imbricação da psicopatologia e da psicologia social. A psicanálise,
tal como a concebe, não mais se orienta para o sujeito individual mas torna- se o estudo
das "relações interpessoais". Sua teoria tem por fundamento a idéia de que, a
partir de um substrato bioló gico dado, a pessoa humana, produto de interações com o
meio social, é modelada pela cultura. Essa teoria atribui, assim, grande importância à
aprovação ou desaprovação que as tendências individuais encontram na socie dade,
podendo a pressões exercidas por esta suscitar má consciência e, até, dissociar o
psiquismo individual(
Convém, todavia, lembrar que a ampliação das teorias psicanalíticas por um
conhecimento mais aprofundado das interferências culturais sobre a formação e o
comportamento do individuo, não é um fenômeno unicamente norte-americano. Em
França, por exemplo, Daniel Lagache, prático de rara cultura (a um tempo, médico,
literato e filósofo) que se tornou o primeiro professor de psicanálise da Sorbonne, é autor
de uma obra teórica importante que visa também a assinalar o papel essencial das
relações inter-subjetivas e das identificações( Lagache tem como certo que a psicologia
pode ser
(1) Sobre esse aspecto das coisas, c Roger BASTIDE: "Sociologie et psychaoalyse", tu
Trasté de socso' logie. publicadosobadireçâodeG. Gurvitch. t. II (P.U.F., 1960).
(2) Ci. Iutroduction lo lhe Stud of !uferpersoual Relatiosss itt Psych,atr , vol. 1, 1938;
ConcepttonS of Mode,',, Psvchiatry, Washington, 1946; The lnterpersonal Theory
ofPsychsatry. Londres, 1955.
(3) La jalot,xis' a,ussureusc. 2 sois., t'.U. F.. 1947: L 'u do la 1 P.U.F.. 1949; La psvcha
fla!Vse, P 1955. etc.
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apenas "cinica", sendo tarefa dela fazer servir o aparelhamento científico a uma
verdadeira compreensão de condutas que sempre, concretamente. são as dos seres
humanos a braços com uma situação determinada( 1). Foi por seguir o próprio caminho
que também ele se voltara para a psicologia social(
b) Os "novos caminhos "segundo Karen Horney
Karen Horney (1885-1952), natural de Hamburgo, estudou medicina em Berlim, onde se
uniu ao grupo freudiano. Exercera importante papel no Instituto Psicanalitico berlinense
antes de emigrar para os Estados Unidos em 1932, onde ensinará primeiro no Instituto
Psicanalítico de Chicago, a chamado de Franz Alexander, depois no de Nova York. Mas,
devido sua insistência sobre a importância dos fatores sociais nas neuroses ter suscitado
tensões no seio desse instituto de obediência freudiana e, finalmente, sua exclusão
(1941), ela fundará com colegas a Association for Advancement of Psychoanalysis, com
um organismo próprio para a formação dos analistas, o American lnstitute for
Psychoanalysis, e uma revista, a American Journal of Psychoanalysis, atualmente dirigida
pelo Dr. Harold Kelman.
Em seus artigos publicados na Alemanha pelos anos 3Ojá aparece certo desvio em
relação a Freud quanto à diferença dos sexos; pois ela recusa admitir que a pretensa
inferioridade da mulher se ligue à biologia e incrimina a esse respeito a condição que
lhe é reservada numa sociedade, ao mesmo tempo industrializada e puritana, que reduz
o papel feminino ao amor e à maternidade (3).
Difícil é saber em que medida, em Berlim, onde conheceu Wilhelm Reich, foi ela
influenciada pelo marxismo, a respeito do qual reinava grande fermentação das idéias
após a guerra 1914-1918. Em todo caso, Erich Fromm, com o qual colaborava, viveu
por sua parte, intensamente, esses anos contur bados e não cessou desde esse tempo de
associar Marx a Freud em sua reflexão(
Em sua introdução a Les voies nouveiles de la psychanalyse, Karen Horney relata que ela
sentia umas vagas dúvidas quanto à validez das teorias psicanalíticas, e que Wilhelm
Reich, entre outros, a havia então "encorajado e estimulado" ao insistir sobre a
necessidade primordial de analisar os traços caracteriais de defesa que o neurótico
constrói para si. Manifesta seu reconhe cimento a Max Horkheimer, que "a ajudou a
descobrir as premissas psíquicas do pensamento de Freud", e sobretudo a Erich Fromm,
admitindo que lhe deve muito. Suas dúvidas deveriam confirmar-se nos Estados Unidos:
(1) cf. Mme FAVEZ-HOUTONIER: La psrohsiogtr dlinique. ubjet-rnéthsdes-
proh/èmes, Centre de Documentatvon Universitaire, 1959.
(2) Cl. parttcularmente vn Ur. A. HESNARD: L 'oeuv','e de Feend op. vir., o capítulo
VI consagrado psicaná!tse francesa, especialmente a Daniel LAGACHE e a Jacqaes
LACAN.
(3) Flucht uns de, Wetblschke (Fuite de la fémisité, 1926); Geltem,nte Weiblichkejt
(Obstacles de ia féminsté, 1926); D,e monogame Forderung (Les exigences de lo
monogamie, 1927); Das Misntrauen zwischen den Geschiechtern (Lo méfsance entre les
sexes, 1930), etc., in Internationale Zeitschrifz für Psychoanalyne. Cl. La psrchslogve
de lafe Paris, Payot, 1969.
(4) "Estava profundamente perturbado por interrogações sobre os fenômenos individuais
e sociais, ávido de encontrar uma resposta, Encontrava as respostas no sistema de
FREUD e no de MARX. mas fui também estttnulado petas opostções e peto desejo de
resolver essas contradições.' (is Berond tive Chavns of iliusioris - M Encounte, n'oh
Marx and Freud, Pocket Books, Inc., 1962.)
"A maior liberdade que encontrei nos Estados Unidos face às crenças dogmã ticas,
permitiu-me de não me crer mais obrigada a considerar como indubitáveis as teorias
psicanalíticas e deu-me a coragem de avançar segundo os caminhos que eu tinha por
justos."
Seus trabalhos despertaram além-Atlântico um muito amplo inte resse (1).
Se ela deveria acabar se convencendo de que as condições culturais são determinantes
em numerosos conflitos neuróticos, e de que o "biologismo" de Freud reflete a
mentalidade ultrapassada da época em que ele viveu, não renega o método da
"associação livre" nem as teorias freudianas das pulsões inconscientes, mas modifica a
técnica psicanalítica com considerar que importa sobretudo observar as reações
emotivas do paciente no decurso da análise.
Incorporando os pontos de vista adlerianos sobre a necessidade de afirmar-se e de
compensar inferioridades, ela contestará em 1942 (L'auto analyse) a necessidade,
afirmada por Freud, de um psicanalista para adquirir a autonomia. Para Karen Horney, o
ego tende naturalmente a desenvolver-se e a realizar-se, e a neurose apenas aparece se
essa tendência foi maltratada na criancinha pelos que a cercam. Mas, mesmo então, a seu
ver, a tendência per manece, em geral, bastante forte para que o adulto possa sair-se bem
da dificul dade. O alvo do trabalho é fornecer às pessoas desejosas de tentar a experiên
cia de uma auto-análise os conhecimentos e os métodos que o permitirão. Reconhece,
todavia, que esta não é uma tarefa fácil, mas difícil e dramática, e que ao menos o
controle de um entendido é desejável.
Por outro lado, Karen Horney se desvincula da metapsicologia de Freud, mormente dos
instintos de morte, da agressividade inata, da compul são de repetição, coisas todas que
lhe parecem eivadas de pessimismo excessivo, O que propõe, não é aplicar a psicanálise
aos estudos sociológicos, mas fazê-la tirar proveito das descobertas antropológicas
invertendo, em suma, as relações estabelecidas por Totem e Tabu entre a psicanálise e a
sociologia.
Em La personnalit névrotique de notre temps (1937) afirma que as condições de vida,
sobretudo nos grandes centros urbanos, são fatores decisivos de neuroses. Pois, elas
preparam o individuo para uma incessante frustração: riquezas inacessíveis num mundo
brutal onde o dinheiro tudo permite; mundo em contradição com o ensino moral e
religioso e onde a desi gualdade dos bens cria entre os indivíduos um estado de tensão
ou mesmo de hostilidade. O que em troca se lhes oferece em profusão são possibilidades
de satisfação imaginária distribuídas por rádio, cinema, televisão, inúmeras revistas, etc.,
outras tantas compensações alucinatórias que contribuem para o desequilíbrio mental.
(1) Tive Neurr,tie Personaiitr of our Time, Nova York, 1937 (trad. francesa: La
personnalilé nérrotv que de nutre temps, Paris, L'Arche, 1953); Neo Wars is
Psvchoanalrsis, Nova York, 1939 (trad. francesa: Les roles sou ceifes dela
psrc'hanalyse, Paris, L'Arche, 1951); Setf'Anaivsis. Nova Ycrk, 1942 (trad. francesa:
LAuto -anal se. com um prefácio de Didier ANZIEU, Paris, Stock, 1953); Ou, Isner
Confliv'ts, Nova York, 1945 (trad. francesa: Nos conflicts intérieur.v, Paris, LArche,
1955).
Para uma bibliografia mais completa, cf. Yvon BRES: Freud ei ia psvchana/rse
améncalne, Karen Noese, Paris, Vrin, 1970.
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O segundo trabalho da autora, Les voies nouvelies de la psychanalyse (1939), é que iria
anunciar uma nova dissidência no interior do movimento psicanalítico.
São, certamente, dignas de interesse as idéias que fundamentam essa cisão, mas foi
freqüentemente criticada em Karen Horney, muito particular- mente na Europa, certa
superficialidade que contrasta com a profundeza deFreud(
c) O humanismo de Erich Fromm
Em compensação, é inconteste a reputação de Erich Fromm, freqüen temente
considerado como o pai da escola culturalista americana. Nasceu em Francforte em
1900. Após ter estudado psicologia, sociologia e filosofia para especializar-se em
seguida em psicanálise no Instituto de Berlim, emigrou para os Estados Unidos em
1934, e deu cursos na Colúmbia e na Yale University; atualmente ensina psicologia na
Universidade de Nova York e na National University, de México. No início dos anos
30, colaborara na revista Zeitschr für Sozial Forschung, editada pelo conceituado Instituto
de Pesquisa Social de Francforte, ao qual pertenciam Theodor Adorno, Max Horkheimer,
Herbert Marcuse. Sua obra considerável( ampliou enorme- mente os dados psicanalíticos,
pois que, se se pode dizer, lançou mão "de todos os meios para alcançar seus fins",
considerando como um terrível empo brecimento a tendência atual para relativizar o
pensamento e para deificar uma "objetividade" esterilizante:
"A pesquisa científica deve ser impessoal e seu objetivo é manter o mundo sob um
microscópio anônimo, necessariamente assepsiado e esterilizado, afastado de toda
contaminação humana. Antes de tratar de qualquer fato que seja, o analista deve cal çar
as luvas de borracha do cirurgião. (La peur dela liberté, op. Ci pág. 198.)
Sua concepção é, pois, a de um homem "engajado" que se esforça por considerar a
realidade humana em sua complexidade, sob o duplo aspecto de corpo e de espírito, de
sensibilidade e de razão, de ser individual e de ser social. Se o homem possui um
inconsciente, tem também uma consciência, e essa exige um resposta para a questão do
sentido mesmo de sua existência. Isto quer dizer que Fromm se recusa a separar a
psicologia dos problemas biológicos, econômicos e sociais, e até dos problemas
filosóficos e morais. E a "condição humana" que o preocupa, a união do homem no
mundo, numa liberdade ineliminável que lhe confere um status sui generis.
Como Jung, está persuadido de que o "recalcado" não consiste unica
(1) Cf., por exemplo, J.-B. PONTALIS: "Les ,nauvais chemins de la psychanalyse ou
Karen I-lorney critique de Freud". ia Aprls Freud. Paris, Sulliard, 1965.
Em compensação, o trabalho de Yson BRÉS: Freud ei/o psvchana/rse anléncaine. Karen
Horrlv (Paris. Vrin, 1970) procura dar relevo ao pensamento da autora.
(2) Escape from Freedom, Nova York, 1941 (lrad. francesa: La peur de/a /iberté, Paris.
Buchel/Chastel,
1941); M for Hin Nova York, 1947 (trad. francesa: L /tomme pour /ui-mênie, Paris. Les
Editions Sociales
Erançaises, 1967); Pst'choanalvsis and Reli Nes 1950 (trad. francesa: P ei re/içiii,i.
Paris.
Editions de lEpi. 196$); TiteForgotlen Laaguage, Nova York. 1951 (trad. francesa: Li'
langogeouhlié, Paris, Payot.
1953); The Sane Soci 1955 (trad. francesa: Si,ciéré aliénée ei société saine. Paris. Le
Courrier do Livre. 195€):
The Jleort ofMan, lis Genius for Good and E,'i/, Nova York, 1-larper & Row, 1964: T/te
Rerr,/ution of Hope. Nova
York, 1968 (lrad. francesa sob o tílaloEspoires réiolution, Paris, Stock, 1970).
mente em tendências incompatíveis com a vida em sociedade, mas também em
virtualidades preciosas. Por isso a terapêutica psicanalítica deve ser enca rada, segundo
ele, de maneira mais ativa e positiva do que a dos freudianos ortodoxos, pois não se trata
apenas de habilitar o sujeito a adaptar-se às restrições da sociedade em que vive, mas,
na perspectiva de uma sociedade mais humana, ajudá-lo a desenvolver suas
potencialidades, a tornar-se verda deiramente "ele mesmo". A esse respeito, pensa-se,
igualmente, no "processo de individuação" de Jung, embora a tonalidade difira. Ainda
por outro lado, lung foi o primeiro a desvendar o papel que podem representar, no cresci
mento da criança, os problemas afetivos dos pais; ora, esse papel é reafirmado por Fromm
de maneira muito circunstanciada, na preocupação de mostrar quanto certas atitudes
"destruidoras" podem prejudicar ao desabrochar de uma personalidade. Concretamente,
ao nível das relações familiais, os casos são inúmeros. Por exemplo, uma criança nascida
na classe média, dotada de talento e de gosto pela arte, poderá chocar-se com a oposição
de um pai, para quem o dinheiro e os negócios são "a realidade"; caso esse pai seja
autoritário, opor-se-á francamente. Se for de opinião que
"é preciso" não contrariar o desenvolvimento do filho, sofrerá em silêncio; mas, mesmo
nesse caso, este terá a idéia de que sua conduta desagrada àqueles que ama, sentirá an
gústia, e essa o levará a reagir de algum modo: ou se revoltará, empe nhando-se em
conflito aberto, ou desenvolverá seu talento e gosto numa espé cie de clandestinidade, ou
se dobrará à vontade paterna, racionalizando sua resignação. O resultado, porém, será de
qualquer modo uma mutilação de sua tendência criadora.
De maneira mais geral, no seio de uma cultura que vê em certa dureza uma prova de
vigor e de poder, os indivíduos deverão reprimir, como fraqueza, toda expressão de
simpatia humana espontânea. Fromm está persuadido de que as influências parentais se
exercem desde o primeiro instante da vida, por uma interação que ocorre entre o filho e
os pais. De Adler retém a idéia de que a primeira forma de angústia na criança nasce do
conflito entre a necessidade de ser amada, rodeada, aprovada, protegida, e a de ser
independente; insiste, porém, no fato de que as tendências que a criança se esforça por
reprimir, para estar em harmonia com o meio, não são forçosamente tenulências em si
indesejáveis, até se estão em desacordo com as normas culturais autorizadas ou
prescritas. Enquanto Freud pensa que a sociedade tem por função controlar as pulsões de
que se acha o homem dotado biologicamente, Fromm "marxiza" as coisas, esforçando-se
por mostrar que a cultura é uma realidade dinâmica no próprio interior dos indivíduos, e
que as tendências dela, historicamente datadas, exercem um papel capital na formação de
uma personalidade. Assim uma sociedade industrial, com sua
mecanização e sua burocratização, exige atributos como a disciplina, a ordem, a
pontualidade.., que se tornam, por sua vez, produtos e agentes de cultura. Fromm insiste
sobre os atributos relativamente permanentes de um "caráter social" determinável. Sem
adotar a teoria kardineriana da relação entre instituições primárias e secundárias, atribui a
esse caráter social um papel tanto psicológico quanto econômico, pois sua função
subjetiva é "de levar-nos a nos felicitar por agir como somos obrigados a fazê-lo"; tal
caráter "interioriza as necessidades exteriores e atrela a energia humana a determi nadas
tarefas econômicas" (5). Em outros termos, as idéias só se tornam
(1) Lapeurdela liherté, op. di., pág. 227.
372
373
operantes na medida em que respondam a necessidades humanas determi nantes em um
caráter social. Cabe, pois, admitir que a estrutura desse caráter influencia não apenas os
pensamentos e os sentimentos, mas róprios atos:
"Os atos de uma pessoa normal podem parecer fruto unicamente de conside rações
racionais e lógicas, como imperativos da realidade. Debaixo, porém, do micros cópio da
análise psicanalítica, distingue-se facilmente que larga parte do comporta mento
humano obedece outros impulsos. Visto hoje todos experimentarem o mesmo eslíniulo
para o trabalho-e a necessidade de ter uma ocupação remuneradora ser mais urgente do
que nunca, pode-se avaliar a parte de coerção e de inconsciente que entra em nossas
preciosas atividades de cidadãos livres(')."
Mas a sociedade como tal não se opõe absolutamente ao homem; ela é criada por ele e o
cria por sua vez, num movimento dialético que constitui a história. Essa a razão pela qual
não se deve considerar as pulsões instintivas
- historicamente condicionadas - como fatores biológidos estabelecidos para sempre.
Fromm não poderia, evidentemente, contestar que os seres humanos experimentam todos
certas necessidades como a fome e a exuali dade; mas ele salienta o fato de que essas
próprias necessidades não estão fixadas quanto à forma de sua expressão e satisfação e
de que, em particular, tudo quanto se passa no psiquismo humano é produto da cultura. E
já lem brei sua convicção profunda de que o homem não tem somente necessi dades
fisiológicas mas igualmente aquela, não menos imperiosa, de dar um sentido à sua
relação com o mundo e consigo mesmo, sob pena de ter uma sensação intolerável de
solidão e isolamento. Não pode haver saúde mental sem liames espirituais, sem uma
orientação que implique certa fé e uma capacidade de dedicação a alguma coisa. O ser
humano, libertado da adapta ção instintiva por um processo efetuado, sem dúvida, muito
lentamente, acha- se hoje, ao nascer, mais despojado de comportamentos
predeterminados do que qualquer outro animal e, em conseqüência,
sua adaptação deve muito menos ao instinto do que à aprendizagem no seio de uma
cultura. Deve tudo aprender; não só a comer e a andar, mas a viver, isto é, a ser capaz de
agir e pensar por si mesmo, como pessoa autônoma; a viver, num certo sentido,
separado da natureza assim como do grupo, e sabendo que deve morrer. Se se tornou
mais "livre", se domina, em certa medida, as forças naturais, ele é também desde já mais
consciente de sua precariedade, de seu isolamento e de seu fim inelutável. Na Idade
Média, pertencendo a um todo estruturado, sua personalidade estava integrada e sua
vida tinha um sentido definido; identi ficava-se com o papel que representava na
sociedade: camponês, artesão, cavaleiro, clérigo. Mas os movimentos econômicos,
politicos, religiosos, sociais, após a desintegração da vida medieval, transformaram essa
situação; uma nova classe apareceu, a dar menos valor ao nascimento e à origem do que
ao espírito de iniciativa e à ambição individual. Seu domínio sobre as massas destruiu a
estrutura social; e se a nova liberdade trazia com ela um sentimento acrescido de poder,
graças a uma atividade econômica florescente, vinha acompanhada de uma sensação de
isolamento individual, fonte de angústia e de cepticismo quanto ao sentido mesmo da
vida. Erich Fromm, que evoca Max Weber, pensa que a Reforma contribuiu muito para
o advento da liberdade e
(1) Ibid., pág. 225.
do isolamento, na medida em que criou uma nova individualidade que visava a se fazer
amada de Deus e a merecer a salvação, e que via no êxito um indício do favor divino. E
os traços caracteriais que levavam a encontrar no sucesso pessoal um lenitivo para a
angústia e para a dúvida vieram a ser as forças produtivas do sistema capitalista.
Depois de tais experiências culturais, a questão para Fromm é saber se o homem será
capaz de conservar a confiança em si e sua independência, à espera de encontrar uma
solução para a sua sensação de solidão; ou se prefe rirá renunciar à sua integridade e à
sua liberdade abandonando-se a não importa que forma de totalitarismo, pela
necessidade de sentir-se novamente ligado aos outros.
Em The Sane Society (1956), Fromm psicanalisa a alienação do homem contemporâneo
numa sociedade cuidosa, antes de tudo, de produção econômica; um homem de
personalidade condicionada, tornado estranho ao mundo que ele criou, a seu
semelhante, às coisas que utiliza e aos alimentos que consome, ao domínio de si e, até, à
sua interioridade. O diagnóstico é sombrio. Fromm, todavia, não quer desesperar e
ardentemente deseja o advento de um "humanismo radical", capaz de transformar a i
atual:
"O combate será difícil. Mas quando a opinião pública, reagindo com força à ameaça à
vida - tanto física quanto espiritual - começar a exigir essas mudanças, cada vez mais
numerosos os homens juntar-se-ão às fileiras do humanismo radical. Uma leve
esperança é justamente permitida, porque a ameaça atual não é somente dirigida contra
o interesse de classe de certos grupos, mas também contra a vida e a saúde de todos;
assim as idéias do humanismo radical têm chances de serem adotadas por uma grande
parte da população e de realizarem, como convém, uma mudança radical (1)"
d) O extremismo crítico de Herbert Marcuse
O progressismo de Karen Horney e de Fromm é julgado insignificante por Herbert
Marcuse( Recorrendo à metapsicologia de Freud num sentido que politiza todos os
problemas, atribui ao freudismo uma ala esquerda com Wilhelm Reich na melhor
posição, e uma ala direita da qual Jung lhe parece o representante mais significativo e
detestável; finalmente, porém, nã é menos severo com respeito aos "culturalistas", cujo
reformismo, oportunista, ambí guo e inoperante, a seu ver, ele desaprova(
É perfeitamente inútil, segundo ele, desejar um futuro melhor limitando -se a denunciar
o mercantilismo e o caráter desapiedado da concor
(1) Eupvo' et r vp. cit. - pág. 180.
(2) Herbert MARCUSE nasceu em Berlim em 1898. Tendo vivido intensamenle a
Revolução alemã no decurso de seus estudos, quando militasa no partido social-
democrata, deixará Berlim para acabar seus estudos em Friburgo-em-Brtsgau, onde será
aluno de Edmundo HUSSERL. depois de Martin HEIDEGGER; sob a direção deste
último, elabora sua tese de doutorado sobre HEGEL (L de liege) o lefondensent d'une
Ihéorie de I'h,sii,r,c,té, 1932). Ligado a Theodor ADORNO e a Mas HORKHEIMER,
por uma reflexão comum sobre a socio logia e o marxismo no Instituto de Pesquisa
Social de Francforte, exilar-se-á nos Eslados Unidos depois do advento de Hitler. Nesle
último país ele ensinava na Universidade californiana de San Diego.
(3) Cl. Éros et ciei/isuzion, contrihution à Freud (Paris. Les Edilioos de Miruil. 1963),
mnito particular- mente o posfácio: "Critique du eévisionisme néo-freudien".
374
375
rência no presente. Pois, a mudança que se impõe e que interessa a estrutura instintual do
homem tanto quanto sua estrutura cultural, é muito mais profunda. Tal mudança torna
necessária uma luta que as teorias de Karen Horney e de Erich Fromm só podem
paralisar, com sua "espiritualização revisionista" a transformar o fato bruto da repressão
social num problema moral, como todas as filosofias conformistas o fazem em todas as
épocas. Seu reformismo atenua os problemas do conflito entre as forças pré-individuais
(id) e as forças supra-individuais (superego), os quais se tornam simpl os das relações
entre o racional e o irracional, entre a conduta moral e a imoral dos indivíduos. Que o
homem seja ele mesmo e para si mesmo, eis uma aspira ção frommiana. Mas como
poderia sê-lo quando o indivíduo é sujeito e objeto de uma manipulação tal que não tem
mais sentido a distinção entre ser para si e ser para os outros?
Os "cuituralistas" negam querer adaptar o indivíduo à sociedade por eles criticada, mas
logram apenas elaborar uma nova ideologia da interiori zação. E isso porque não vão ao
fundo das coisas e porque não submetem a discussão as "premissas fundamentais da
sociedade". Se a "força e á integri dade interior", que Fromm invoca a seu favor, são algo
a mais do que a socie dade alienada espera de todo bom cidadão que coopera para a
alienação geral, elas se relacionam com uma consciência que ultrapassou essa alienação;
ora, uma tal consciência esclarecida não pode mais aceitar valores que se reve larão como
os instrumentos do estado de coisas a mudar.
Ou, afirma Marcuse, definem-se a personalidade e a individualidade dentro da civilização
existente, e a realização delas equivale então a uma adaptação bem sucedida, ou elas se
definem em termos de um conteúdo que ultrapassa os limites dessa
civilização e engloba potencialidades recusadas ao indivíduo. Neste caso, a realização
implica o recurso a formas novas de perso nalidade, e a verdadeira cura de um paciente
seria tornar-se ele um revoltado...
Em suma, Marcuse pensa que uma espécie de abismo separa o presente do desejado
futuro melhor; abismo que se pode transpor somente por um salto, enquanto que os
culturalistas contentam-se com critérios de valor:
saúde, sucesso, maturidade, que são os mesmos da "sociedade industrial avançada"
criticada por eles. Assim fazendo, eles submetem a psicanálise à ação desta sociedade,
muito mais do que Freud, que bem viu, para além de todas as diferenças entre as formas
históricas, a desumanidade fundamental, comum a todas: os controles repressivos que
perpetuam na própria estrutura instintual a dominação do homem pelo homem. A esse
respeito, sua pretensa "concepção estática da sociedade" é muito mais próxima da
verdade que os conceitos "dinâmicos" dos neofreudianos. Segundo Marcuse, é porque
Freud descobriu que o "mal-estar da civilização" tinha raízes na estrutura biológica do
homem, que ele limitou o papel e o objetivo da terapêutica psicanalitica. Ela imp lica para
ele a idéia de que essa personalidade a ser desenvolvida pelo indivíduo é regulamentada
desde o início e seu conteúdo só pode ser definido em termos dessa regulamentação;
assim ele ultrapassou as ilusões da ética idealista, pois a personalidade nada mais é,
efetivamente, do que o indivíduo "partido", que interiorizou e utilizou com sucesso a
repressão e á agressão. A esse modesto programa freudiano, os culturalistas quiseram
sobrepor um objetivo mais elevado destinando como tarefa à terapêutica desenvolver as
potencialidades de um indivíduo com vistas ao próprio desabrochar
deste
último. Finalidade, porém, inacessível precisamente, não por falta das técnicas
psicanalíticas, mas porque a própria estrutura da civilização a ela se opõe.
A perspectiva de Freud, que teve os olhos voltados para o princípio da infância, é
profunda na medida em que as relações decisivas são as menos interpessoais; estas não
podem ser senão uma superestrutura na reificação das relações humanas próprias de
nosso mundo alienado. No melhor dos casos, só podem capacitar o indivíduo "normal"
para ultrapassar por si mesmo a repres sidade universal. Somente na medida em que a
psicanálise elucida a experiên cia universal sobrevivendo na experiência individual, é que
pode romper a reif i cação que petrifica as relações humanas numa sociedade onde a
alienação transforma a pessoa numa função intercambiável.
E Freud, recusando-se a ver na existência desumana um simples aspecto negativo de uma
humanidade que progride, tem da realidade uma concepção mais humana que a de seus
"críticos tolerantes e generosos" que estigmatizam sua frieza. Seu mérito é o de ter
querido remontar da cons ciência ao inconsciente, da personalidade adulta à criança, dos
processos individuais aos processos genéticos, isto é, da superfície (a personalidade
condicionada) à profundeza das fontes. Ora, os culturalistas, invertendo a perspectiva,
consideram as instituições e as relações sociais como produtos acabados; fazem assim
passar o interesse psicológico da primeira infância para a maturidade, já que somente ao
nível da consciência refletida é que se pode definir o meio como um elemento que
determina a estrutura da persona lidade acima do nível biológico. Eis o que lhes permite
de colocar novamente em voga todos os valores da moral idealista por experiência
conhecidos:
realização produtiva da personalidade, responsabilidade, respeito do próximo, amor,
felicidade, etc., como se o homem pudesse verdadeiramente praticar todas essas virtudes
permanecendo são e equilibrado numa sociedade que o próprio Fromm descreve como
dominada por relações de trocas de mercado.
Marcuse afirma que todos esses valores, em tais condições, são falseados e ambíguos.
Pois, a "produtividade", por exemplo (esse alvo do indivíduo são), . deve normalmente
manifestar-se por uma boa direção dos negócios, por uma boa administração, com a
esperança razoável de um sucesso reconhecido; e o amor, revelar-se à maneira de libido
bem sublimada, inibida, conforme às condições impostas à sexualidade. Como os
valores, porém, devem significar, ao mesmo tempo, a idéia de uma realização do homem,
é como se designassem simultaneamente faculdades humanas muti ladas e inteiras, não-
livres e livres.
Tal ambigüidade faz das teorias pretensamente críticas do culturalismo uma doutrina
realmente conformista e moralista, traída pelo próprio estilo de pregador ou de
assistente social de seus autores.
Marcuse digna-se reconhecer, entretanto, que a renúncia do "si infe rior" ao "si
superior" de que fala Fromm( 1) é, talvez, um passo necessário no
(1) A descoberta do verdadeiro Si é considerada como de primeira importância por
FROMM, muito preocupado das relações da psicanálise com o budismo Zen. FROMM
foi o promotor de um seminário sobre essa questão, realizado em Cuernavaca (México),
do qual participaram uns cinquenta psicólogos e psiquiatras, a maioria deles psicanalistas.
(Cl. Boudhisme Zen etpsychonalyse.)
376
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caminho do progresso humano, imposto na civilização repressiva, mas com a condição
de saber claramente que as apirações humanas, uma vez interiori zadas e sublimadas no
"si superior", infletem as resultantes sociais para resultantes espirituais cuja solução é
um dever puramente moral.
Em resumo e em certo sentido, é o dilema do "logue e do Comissário", cuja oposição
abstrata resolve-se, nem bem nem mal, concretamente.
Pode-se, porém, julgar, a esse respeito, que Marcuse, embora invocan do Freud a seu
favor, afasta-se também dele à sua maneira. Evidentemente é direito seu, mas sob a
condição de não embaralhar as coisas. Ora, Marcuse, ao tratar do princípio de realidade
segundo Freud, quase não parece preocu par-se com o fato de que Freud o utiliza para
designar a capacidade própria ao ser humano de observar o real empírico e de levá-lo
suficientemente em conta para se proteger do dano que lhe acarretaria a satisfação
incontrolada de suas pulsões instintuais. Que esse dano varia com as condições sociais é
uma coisa, mas, outra, é reduzir esse princípio a um fenômeno de repressão. Pois, é
menos sob esse aspecto do que sob o de uma maturação progressiva e necessária que
Freud descreveu as fases da "sexualidade" que terminam normalmente na expressão
genital. Nessa perspectiva, o ideal do "Eros livre" segundo Marcuse, que glorifica Orfeu
e Narciso em relação a Prometeu, "herói-arquétipo do princípio de rendimento" (1), só
pode ser o ideal de um regressão ao estádio infantil; ideal que implica erroneamente a
idéia de que a sexualidade pré-genital é mais "livre" que a que vem a termo - ou deveria
vir
- na maturidade(
As críticas de Herbert Marcuse têm em suma por fundamento uma teoria que transpõe
deliberadamente a passagem da psicologia social para uma filosofia social. Ligado como
Max Horkheimer e Theodor W. Adorno ao Instituto de Pesquisa Social de Francforte,
onde se preocupava muito com a relação Hegel-Marx e Freud, reteve do primeiro o
caráter revolucionário da razão e a idéia de totalidade; isso lhe permite não permanecer
fechado nos limites das categorias pelas quais a própria realidade social se explica e justi
fica. Como para Hegel, a razão torna-se para ele o instrumento capaz de deci frar o
processo histórico com sua dupla face de atualidade e de virtualidade, isto é, não
somente sob o aspecto de seus dados efetivos, mas igualmente sob o das tendências que
aí se manifestam como germes de uma nova realização de mais altos valores humanos;
valores indubitáveis, mas excluídos, até o presente, do desenvolvimento histórico. Todo
o esforço crítico de Marcuse é, por conseguinte, dirigido contra o
"sistema" da sociedade industrial avançada (cujo conceito é por ele admitido como
unitário), no fundo irracional, já que a racionalidade que o anima é puramente
tecnológica( Sob a aparência enganadora de bem-estar de que ela é causa, ele denuncia
a realidade de uma "dominação" anônima, mantida por uma repressão cujo sentido é
disfarçar com falsas aparências a liberdade realizável. Tem como incontestável que o
homem de hoje está condenado a viver num estado de empobrecimento cultu ral, e até
biológico (e aqui vale-se de Freud), sem nenhuma justificação nas
(1) Éeos ei civilisaiion..., isp. cii. pág. 144.
(2) Erich FROMM, por ocasião dos primeiros ataques de MARCUSE, replicou que a
posição deste era um exemplo de "niilismo humano disfarçado em radicalismo" (iii Pas-
tisans, nP 32-33, out.-nov. 1966). -
(3> One Dimensiona! Man, Boston. 1964 (trad. francesa: Lh',mme unidimensionnet
Paris. Les Editions de Minuit, 1968).
condições atuais dos recursos e da técnica. Denuncia com raro vigor a habili dade
matreira dessa sociedade que consegue assimilar e neutralizar qualquer forma de
oposição; sociedade na qual a consciência está subjugada a ponto
J de, não somente não ser mais fonte autônoma de orientação, mas de transfor mar-se
ela mesma num instrumento próprio para manter o homem num contexto que bloqueia
sua liberdade. O "homem unidimensional" é, em suma, o homem incapaz de transcender
a situação dada, de estudar uma alternativa para o que lhe apresenta a sociedade na qual
se acha alienado. Severo com respeito às formas da liberdade nas democracias liberais e
repre sentativas, que ele parece considerar como formas vazias só funcionando na medida
em que nelas não se introduza um conteúdo provocador, Marcuse também não aprova a
situação reinante nos países do leste europeu; revelou como o marxismo
soviético, libertador em suas origens, se transformou em instrumento ideológico de
controle e opressão( l) Trata-se, pois, bem conside radas as coisas, de uma teoria social
que, depois de Hegel e Marx, recorre a um retorno às possibilidades efetivas da história,
em função de um diagnós tico no qual o conceito de irracionalidade tende a passar à
frente do das contradições econômicas do pensamento de Marx. Os trabalhos mais
recentes de Marcuse inclinam-se a demonstrar que uma análise em profundidade das
virtualidades históricas impõe a necessidade de recusar em bloco a situação dada, e de
promover uma mudança qualitativa, um salto da quantidade para a qualidade, como o diz
ele próprio em linguagem marxista, identificando a revolução com uma mobilização
psicopolitica total. A concepção postula uma nova antropologia, herdeira da moral
judeu-cristã que prevaleceu na história da civilização do Ocidente, mas em decisiva
ruptura com ela. Pode-se julgar que o radicalismo de Marcuse e, sobretudo, seu conceito
unitário da "socie dade industrial avançada", o conduz a uma "massificação" discutível
dos dados atuais. Por outro lado, o próprio "salto" causa problema, na medida em que
implica o despertar e a afirmação de novas necessidades (felicidade, paz, liberdade, etc.)
que sejam a negação determinada daquelas condicio nadas pelo "sistema" atual, e que o
sustêm, aliás, e mantêm-lhe os valores. Ora, se o homem "unidimensional" é incapaz de
transcender a situação dada, e se sua própria vida consciente apenas serve para reforçar
sua integração no contexto que bloqueia sua liberdade, é evidente que nada se passa
enquanto permanece satisfeito com sua sorte - por alienado que possa ser aos olhos do
filósofo. Em suma, para fazer nascer e desenvolver as novas exigências revolu
cionárias, é preciso suprimir os mecanismos que mantêm as antigas; e para chegar a
isto, é preciso que exista a necessidade de suprimi-los. Ora, na medida em que a
mobilização psicológica preconizada se choca com a inércia geral da consciência
satisfeita, por "alienada" que seja, a teoria marcusiana parece, claramente, não consagrar
o "fim da utopia", mas antes a chegada de uma nova utopia. E, ainda que se conceda a
possibilidade do salto em questão, resta que a "grande recusa" marcusiana implica uma
aposta; susten tável na medida em que se admita que toda a razão, no sentido hegeliano
do termo, vive desde já sepultada no inconsciente, e inerente a essas pulsões que as
estruturas sociais do mundo burguês reprimiram e que se trata dc libertar.
(1) Le murxis Paris, N.R.F., Gailimard, col. ldées, 1963.
378
379
3. A abordagem experimental
b) A noção de "atitude" e sua extensão
a) A "facilitação social" segundo Floyd H. Allport
Floyd H. Allport procurou delimitar o campo da "psicologia social", ao mesmo tempo
que fundá-la experimentalmente. Seus trabalhos( 1) assinalam a influência que o grupo
exerce sobre a conduta e a opinião dos indivíduos, mas sem por isso admitir que ele
constitua um "todo" real, pois não há vida mental sem um sistema nervoso central,
próprio a um organismo individual. A noção de grupo, Allport prefere a de indivíduos
em interação recíproca. Behaviorista, separa-se de Watson por considerar que não se
pode compreen der em profundidade o par estímulo-resposta se se fizer abstração da
cons ciência. Porque esta é modificada é que os indivíduos em grupo não agem do
mesmo modo que isoladamente. E Ailport denomina "facilitação social" esse fenômeno
segundo o qual os indivíduos agrupados, estimulando-se reciproca mente, têm mais
vivas reações.
Ao considerar o comportamento social em suas relações com o cómpor tamento
biológico, adota certos conceitos freudianos, mas os "behavioriza". Fala, assim, de
"motivações anti-sociais" em vez de pulsões instintivas, de "pulsões socializadas" em
lugar de "superego"; e os instintos de McDougall substitui por "reações nervosas",
determinadas pela herança biológica, mas modificadas pelo condicionamento social.
Allport desenvolveu igualmente uma teoria sobre os "traços" da perso nalidade, visando
a descrever o comportamento humano de um ponto de vista "operacional". Campo de
pesquisas esse que deveria ter especial voga nos Estados Unidos. O traço, segundo
Allport, deve ser concebido como um siste ma neuropsíquico próprio a cada indivíduo e
que capacita a este comportar-se de acordo com certa finalidade adaptada às condições
diversas do meio. Pode- se, pois, determinar os traços que um indivíduo, em determinada
situação, desenvolve para ajustar-se a ela de certo modo. F. H. Allport considera que
toda relação social esconde um conflito de personalidade, no sentido de que pessoas em
contato se "medem" inevitavelmente. O alcance dessa constatação foi largamente
explotado por psicólogos americanos lembrados do struggle for life darwiniano, e os
traços ascendência e dependência foram objeto de pesquisas particulares, em ligação com
o problema da leadershi isto é, da função daquele que dirige e comanda um grupo de
indivíduos. Admite-se, geralmente, que esses dois
"traços" surgem bem cedo, que são tenazes e suficientemente delimitáveis para se
submeterem a uma mensuração capaz de fornecer um jiagnóstico e uma previsão. De
modo geral, Floyd H. Allport interessou-se muito menos pelos problemas da percepção e
da intelecção do que pelos problemas caracteriais. Por outro lado, sua opo sição à noção
de "grupo" como designativa de um todo real deveria suscitar várias discussões entre os
autores, conforme neles prevalecesse a tendência individualista ou sociológica. Como
essas discussões andassem freqüentemente em círculo, delas se tirou, sobretudo, o
estímulo para pesquisas práticas sem muita preocupação com a teoria.
(1) Social Psyc/zo/ogy, Cambridge, 1924; Methode it lhe Study of Co/ledice Action
Phenomeno, Nova York. 1942.
380
As noções de atitude e de papel muito se devem a George Herbert Mead (1863-1931),
cuja obra, de certo modo redescoberta, inspirará numerosos pesquisadores (1). Pois, o eu
nela é concebido precisamente como um sistema de "atitudes" sociais interiorizadas, e
todo o relevo é dado aos "papéis" que o indivíduo exerce desde a infância, de início
livremente, em seguida no jogo regulado que lhe é imposto pela vida social. Essas duas
noções, desde então utilizadas em psicologia social para abordar os problemas relativos a
realida des sócio-culturais determinadas, parecem muito cômodas para quantos pensem
que as discussões sobre a relação entre o eu e o social, consideradas como espécies de
entidades, são abstratas ao mesmo título que as discussões relativas à cultura em geral.
O que, porém, se deve entender por atitude? Dessa noção-chave da psicologia social
americana, Gordon W. Allport deu uma definição muito comumente admitida:
"Uma atitude é uma disposição mental e nervosa organizada pela experiência, e que
exerce uma influência diretriz ou dinâmica sobre as reações do indivíduo a todos os
objetos e a todas as situações que a eles se referem(
Essa "disposição mental e nervosa" é o próprio de uma personalidade considerada por
Gordon W. Allport como um misto, isto é, como uma orga nização psicobiológica que
determina a maneira pela qual um indivíduo se ajusta ao meio.
Os primeiros modos distintivos desse ajuste são constituídos pelas ativi dades
espontâneas e as manifestações emocionais do recém-nascido, de freqüência e
intensidade variáveis. A partir aproximadamente do sexto mês, a maneira de reagir se
diferencia mais nitidamente e os traços manifestados ten dem a instalar-se, e isso
implica, senão uma verdadeira fixação, ao menos uma estruturação, uma certa
organização(
Trata-se, pois, de designar por atitude uma disposição (state of readi ness) a respeito de
não importa que objeto. Disposição de um indivíduo ou de um grupo? Acerca desse
ponto as coisas são faltas de clareza, mas voltaremos a ele. E do lado do objeto, como
determiná-lo, visto que o campo psicológico de um indivíduo comporta muitas relações
diversas e variaveis, tecidas pelas necessidades de sua vida biológica assim como pelo
desenrolar de sua vida sentimental, intelectual, profissional, cívica, etc.? E forçoso, pois,
para obter conhecimentos e possibilidades de previsões em termos de atitudes, restringir
cada vez seu emprego a objetos determinados. Consideram-se em geral, mas não
exclusivamente, tal idéia, tal instituição, recorrendo-se a categorias distintivas muito
simples: atitude generalizada, menos generalizada, favorá vel, desfavorável, indiferente,
etc., e também a certas particularidades dos sujeitos que as manifestam: sexo, habitat, etc.
E evidente que não se poderia
1) Mtod. Self, aodSrtc,ei (L csp lesoi ei la iociété), Chicago, Charles W. Morris, 1934
(trad. francesa P.U.F.. 1963).
(2) Cf. David KRECH e Richard S. CRUTCHFIELD, Théories et peoblème.t de
psychologie aociale, P.U.F., 1952.
(3) Persontaluy, a Psycho/ogieul lnierpeetation, Nova York, 1937.
381
L
pretender assim ir muito longe no conhecimento das condutas humanas com todas as
funções que implicam concretamente: emoções, percepções, senti mentos, inteligência,
paixões, etc.; e isso tanto menos que as técnicas empre gadas, questionários e
entrevistas, em geral só atingem o comportamento verbal, ao passo que a atitude
individual possui muitas outras dimensões, freqüentemente mais significantes. Por
conseguinte, as distinções estabele cidas, forçosamente sumárias, relacionam-se com a
intensidade da atitude, sua importância, seu grau de realidade, etc. E as coisas ainda se
complicam quando não se trata de fatos observáveis, mas de princípios ou de pre
conceitos.
A elasticidade do termo permite seu emprego para designar tanto disposição individual
quanto coletiva, mas disso resultam certas ambigüi dades.
Roger Girod, em sua obra sobre a psicologia social americana( 1), tentou esclarecer
especialmente as noções de atitude comum e de atitude coletiva. Quanto à primeira, diz
ele, as coisas são relativamente claras. Num dado país, todos, por exemplo, éondenam o
incesto; é uma atitude comum. Pode-se admiti-lo, observando, entretanto, que a redução
de todas as atitudes indivi duais a uma atitude comum já comporta uma boa parte de
abstração, podendo certos indivíduos condenar hipocritamente, por assentimento pura
mente exterior. Mas, e a atitude coletiva? Girod dá exemplos: o da Suíça, onde todos os
cidadãos não estão unanimemente de acordo com o regime existente, assim como o atesta
a presença de partidos politicos opostos, mas onde cada indivíduo não cumpre menos, dia
após dia, as suas obrigações (paga impostos, faz seu serviço militar, etc.).
Ou ainda o exemplo da guerra da Indochina, que prosseguia quando mais da metade do
povo francês, entre 1947 e 1950, era a favor de negociações tendentes a reconhecer a
indepen dência do Vietnã. Nos dois casos a atitude não é comum, mas coletiva. Utili zar o
mesmo termo para designar realidades tão diferentes, causa concreta- mente problemas.
Primeiro, porque os indivíduos que adotam tal atitude (em nosso caso, prosseguimento da
guerra, negociações ou indiferença) não exercem a mesma influência sobre os
acontecimentos. Numa eventual guerra, a atitude de certos meios, o dos oficiais e
suboficiais dos corpos do exército, por exemplo, pode ser decisiva, e as coisas seguem um
curso ao qual se submete o maior número, a menos que as circunstâncias não permitam
uma mutação, como foi o caso da Rússia durante a guerra mundial. Por outro
lado, um indivíduo, a despeito de sua atitude de oposição, pode obedecer exteriormente,
por temor, por preocupação de não comprometer os seus, por um sentimento de
impotência, etc. Em suma, pode-se perguntar se a atitude coletiva permite realmente
estabelecer uma relação concreta entre sujeitos e objetos; e se a noção não seria antes
uma abstração concernente à sociologia. Ao nível da descrição psicológica, bem poderia
não existir de fato senão atitu des individuais, a rigor comuns. A maioria dos
comentadores admite as imprecisões teóricas da psicologia social nos Estados Unidos,
mas acrescen tam, imediatamente, que elas são compensadas por uma multidão de pesqui
sas muito notáveis sobre o comportamento dos mais diversos grupos: cultu rais, políticos,
militares, religiosos, etc. Efetivamente, os inquéritos e as
(1) Attitudes colleclires et ,elatio,, humui, P.U.F.. 1953.
publicações sobre as influências dos fatores da vida social multiplicaram-se além-
Atlântico de modo assombroso, e a dificuldade é, antes, de dar a cada coisa o que lhe
cabe, isto é, distinguir entre os inquéritos científicos e os de alcance inteiramente
utilitário: classes e tensões sociais, relações profissionais, informação, propaganda,
opinião pública, autoridade e comando, etc. Trata- se, em .geral, de analisar os diversos
fatores em jogo numa situação típica, para determinar como poderiam ser eventualmente
modificados, e a grande novidade reside em que esta experimentação tem por objeto
aspectos da vida humana que eram, no passado, da competência da especulação moral,
filosó fica e religiosa.
c) A pesquisa sexológica de Kinsey
De Alfred Kinsey, biólogo, professor na Universidade de Indiana, e de seus
colaboradores, tomarei, a título de exemplo, o vasto inquérito sexológico, que ,evela, por
suas intenções assim como por seus resultados, um aspecto significativo da psicologia
social nos Estados Unidos( 1). Em seu prefácio ao volume deLe comportement sexuel de
lafemme, Robert M. Yerkes e George W. Comer, presidentes sucessivos do Comitê de
pesquisas sobre os problemas sexuais, criado pelo Conselho Nacional da Pesquisa,
julgam que a empresa fo i tomada possível pelas novas condições
culturais: emancipação sexual e econô mica da mulher, difusão das teorias e descobertas
freudianas, contato de milhões de jovens americanos, no decurso das duas últimas
guerras mundiais, com civilizações cujas normas e práticas sexuais diferiam das que
lhes haviam inculcado na infância. s dois autores admitem que a psicanálise transfornou
nos Estados Unidos a concepção do papel da sexualidade na vida mental e social, mas
que Freud, com base em sua experiência clínica, "propôs teorias que serviram de
fundamento a uma tarefa que ele não era de modo algum capaz, por causa de sua
natureza e formação, de levar a bom termo"; uma tarefa que competia a Kinsey realizar.
De s empresa dejierá decorrer, quando ganhar suficiente extensão, um "conhecimento
fux dos fenômenos sexuais, que permitirá verificar as teorias, modificá-las, completá las".
A argumentação pode deixar alguém perplexo. Se o gênio de Freud é indiscutível, é mais
do que duvidoso o de Kinsey, o qual partilha com Watson certa audácia que desarma,
uma fé robusta no valor de métodos inteiramente objetivos, simplificadores a despeito de
seu manejo complicado. Kinsey dirigiu sua pesquisa recorrendo à taxonomia (em
linguagem clara: ciência da classificação), método que praticou longamente estudando os
insetos e por ele considerado como aplicável a "toda população de elementos
heterogêneos, não importa em que domínio" (2). Não seria
preciso, todavia, crer que os pontos de vista progressistas dos meios culturais de Indiana
fossem unanime mente partilhados nos Unidos, onde o puritanismo vizinha com a
audácia científica. Se a empresa de Kinsey beneficiou-se dos apoios do Comitê Nacio nal
da Pesquisa e da Fundação Rockefeller, conheceu muitas dificuldades no
(1) Le comporremenl sexuel de l'homme (Sexual Beharir,r in lhe Human Male), par
Alfred C. KINSEY, aver la coilaboration de Wardelle B. POMEROY ei Clyde E.
MARTIN, "Rayonnement de la Peosée", Pans, 1948, 1020 p. Le con,porte,nent sexuel
de lafe (Sexual Beharior is lhe Human Female), par les dirigeants dei Institui de
Recherches Sesueiles de Université d'indiana: Atfred C. KINSEY, Warde!Ie B.
POMEItO?. Clyde E. MARTIN, Paul H. GEBNARD, Le Livre Cotstemporain-Atniot-
Dutnont", Paris, 1954, 76
(2) Le com portement sexuel de l'homme, isp. ci pág. 27.
382
383
decurso do caminho: intervenção do Conselho da Ordem dos Médicos, por "exercício
ilegal da medicina"; da policia: pressões sobre a Universidade para que proiba a
continuação das pesquisas e sua publicação, e suspenda o ensino de Kinsey; revogação
de um professor secundário por ter, na cidade em que ensinava, colaborado com o
empreendimento, etc. De um ponto de vista filosófico, Kinsey e seus colaboradores só
viram nessas reações um sintoma muito interessante da influência exercida pelas velhas
tradições e costumes sociais até em pessoas que receberam formação científica.
Como quer que seja, dossiês biográficos de mais de dezesseis mil pessoas foram
estabelecidos, constituindo uma abalizada amostragem de grupos muito diferentes para o
levantamento dos dois estudos fornecidos por 5.300 casos de homens e 5.940 casos de
mulheres. Tratou-se, de cada vez, de acumular "fatos científicos totalmente livres das
noções de valor moral ou de tradição social", sem nenhum preconceito quanto ao caráter
(raro ou banal, normal ou anormal) dos comportamentos sexuais, recusando -se até
distinguir entre indivíduos considerados pelos psiquiatras como equilibrados, neuróticos
ou psicopatas. Assim se procedeu, tanto para descobrir a atividade sexual dos
indivíduos quanto para conhecer os fatores que permitem compreender as diferenças de
seu comportamento sexual, e também as que ocorrem de uma camada da população para
outra.
A enorme documentação foi reunida através de entrevistas diretas, à mercê de
dificuldades consideráveis sobre as quais Kinsey se explica longa mente. O inquérito foi,
de início, conduzido mais particularmente no nordeste do país, numa zona delimitada
pelo Massachusetts, Michigan, Tennessee e Kansas, para estender-se em seguida a todos
os Estados da União. Os casos observados incluem mulheres e homens de todas as
idades, de todas as profis sões, de todas as categorias intelectuais, desde os analfabetos
ou semi-anal fabetos até os membros mais eminentes da classe intelectual; os
pertencentes a coletividades rurais e urbanas as mais diversas; os representantes de todos
os graus de adesão ou não às diversas religiões, etc. Kinsey e seus colaboradores
tomaram extraordinárias precauções para certificarem-se das confissões veri dicas, com o
maior cuidado de garantir o segredo profissional: código secreto do qual apenas quatro
pessoas tinham a chave, documentos conservados em móveis classificadores, com
fechaduras de tipo especial, colocados em salas que se mantinham fechadas, etc. Para
determinar o meio e a freqüência do orgasmo obtido pelos indiví duos, distinguiram-se as
diversas práticas sexuais em seis categorias: mastur bações, poluções noturnas, tateios
heterossexuais, coito heterossexual, práticas homossexuais, contatos com os animais. Os
dados colhidos foram classificados segundo o sexo, a raça, o grupo cultural, o estado
civil, a idade, o nível de educação, o grupo profissional dos pais, o meio (rural, urbano,
misto), o credo, o local do nascimento... e revelaram particularmente que as diferenças
das condutas sexuais entre os níveis sociais de um
conjunto de habitações ou de uma única cidade, às vezes até entre duas secções vizinhas
de uma mesma comunidade, podem ser tão importantes quanto aquelas que os
antropólogos puderam constatar entre raças diversas( 1)
(1) Cl. te comportement sexuel dei homme. op. ci cap. X: Le niveau social et lactivité
sexuelie".
Kinsey revela a esse respeito que as categorias sociais são muito dife rentes nos Estados
Unidos, e que as pessoas de um grupo têm poucos contatos com as de outro( 1). As
pessoas de classes sociais diferentes, devido a suas ocupações no decurso de atividades
profissionais, mantêm, inevitavelmente, contatos cotidianos com terceiros, mas, para o
relacionamento e amizade, esco lhem indivíduos que estejam no grupo social a que elas
pertençam. Chefes de serviço e empregados de escritório podem viver a alguns passos
dos operários sem ter por isso a impressão de um trabalho em comum; e ao saírem do
traba lho, é muito raro que os dois grupos se misturem. Os membros de uma classe não
convidam para jantar em casa os representantes de outra; como também não passariam a
noite em reunião com éles, nem se distrairiam em sua compa nhia. Na opinião de Kinsey,
o parceiro de jogo, o amigo íntimo da família, seriam melhores "testes" para determinar o
nível social do que as ligações de negócios ou não importa que filosofia social. Em toda
parte existe certa sepa ração. A classe dos empregados, por exemplo, se subdivide em
vários níveis. Exceção feita para as relações de trabalho, os empregados das casas comer
ciais e os de escritório não se sentem à vontade com os diretores e chefes de serviço. E se
os médicos cuidam de pessoas pertencentes a todos os meios sociais, procuram, para
ocupar o lazer, a companhia de outros médicos, de homens de negócios ou de
professores. Por sua vez, os "trabalhadores" não sentem nenhum ponto de contato
particular com os homens de negócios, os mundanos ou os representantes da aristocracia,
salvo, em raros casos, os que deixaram de pertencer a esses meios. Em suma, se nenhuma
disposição legal impede não importa quem incorporar-se em não importa que grupo
social, e se essas estratificações são difíceis de definir, a realidade destas últimas é
indubitável para Kinsey. E o cqmportamento sexual que lhes é próprio mani festa muitos
caracteres específicos: por exemplo, as classes "inferiores" consi deram a masturbação
como anormal, por racionalização de uma opinião segundo a qual tal prática é nociva à
saúde; e tal atitude, análoga à que se encontra entre certos povos primitivos, não seria
fundada no respeito de valores morais, mas em certo desprezo para a incapacidade social
daquele que não pode obter de outro modo suas descargas sexuais. Ora, os universitários
não partilham dessa opinião. E se sua moral é mais exigente no respeitante à virgindade
da mulher no momento do casamento, essa exigência não exclui, de modo algum, a
prática dos contatos sexuais mais refinados. São partidários das técnicas preliminares ao
ato sexual, enquanto as classes "infer iores" concedem a
elas pouco tempo, pois julgam que o prazer essencial é obtido por meio da união dos
órgãos da cópula, a única que compete às relações sexuais "normais". Tais classes
consideram, em geral, a nudez como mais indecente do que as próprias relações sexuais,
enquanto os homens de formação universitária julgam-na condição dessas últimas. E do
mesmo modo que prevalece entre eles o beijo "profundo", este seria considerado com
certa repugnância pelos indivíduos dos grupos "inferiores", entretanto menos delicados
em outros domínios..., etc.
Os documentos que reuniu persuadiram Kinsey de que a legislação americana, no
referente à sexualidade, está em completo desacordo com as realidades do
comportamento humano, e é, aliás, inaplicável:
(1) Lc co,nporie,nent sexuci de iufemrne. op. c pág. 435.
384
385
"Existe em nossa população uma proporção tão elevada de homens e de mulheres que se
entregam a atividades sexuais proibidas pelas leis de quase todos os Estados da União,
que a aplicação absoluta ou sistemática da legislação atual seria inconcebível (1)"
Aplicadas, pois, inevitavelmente, de maneira caprichosa, essas leis não teriam por
efeito, pensando bem, senão favorecer as fraquezas administra tivas, a corrupção e a
chantagem. Mal caberia duvidar de que o relatório Kinsey tranqüilizou, nos Estados
Unidos, muitas pessoas a quem inquietava sua sexualidade, mostrando-lhes que seu
comportamento, longe de ser excep cional, era característico de seu grupo. Isto significa
que tais pesquisas podem contribuir para extirpar erros de interpretação e preconceitos,
mas com o risco plausível de substitui-los por outros, pois o pragmatismo radical não se
acha imunizado contra toda filosofia inconsciente, nem, até, contra lugares comuns.
d) As experiências de Sherif
Já observei que, por serem o indivíduo e o grupo os dois pólos entre os quais oscila
forçosamente a psicologia social, o conceito de interação parece suscetível de superar a
oposição dos termos. Ora, a esse conceito preferido, como ao de "norma de grupo", as
experiências de Musafer Sherif, em Harvard, trouxeram um fundamento experimental ao
mostrar que a influên cia do grupo se exerce, não apenas ao nível da "facilitação"
descrita por Floyd H. Allport, mas já ao nível da percepção( O procedimento a que
recorreu Sherif consistia em colocar indivíduos numa câmara escura, diante de uma luz
intermitente. E sabido que nessas condições o ponto luminoso, imóvel na realidade, é
percebido como se se deslocasse (fenômeno de autocinetismo). Os indivíduos
submetidos à experimentação deviam avaliar a oscilação da luz durante a exposição de
dois segundos. Cada indivíduo formulava rapidamente sua avaliação e a mantia em
seguida, mas Sherif pôde constatar que as apre ciações variavam muito de sujeito para
sujeito, a tal ponto, que alguém podia avaliar o deslocamento da luz como sendo de 1 a
3 polegadas, e outro, como atingindo 9 a 11 polegadas.
Sherif chamou de "normas individuais" a esses julgamentos pessoais. Depois repetiu a
experiência, mas com pequenos grupos de duas ou três pessoas. Cada uma delas devia
dar em voz alta a sua apreciação, durante o tempo em que escutava também as avaliações
enunciadas pelos outros membros de seu grupo. Revelou-se então o seguinte: os membros
de um grupo
- tivessem sido ou não submetidos à experiência isoladamente - chegavam rapidamente a
uma avaliação que aparecia como característica do grupo, com apenas ligeiras variações
individuais. Sherif disso concluiu que a condição de grupo criava gradualmente "normas
de grupo" ou "normas sociaís", que constituíam outros tantos ancoradouros ou
"esquemas de referência" a orientar os sentimentos, julgamentos e condutas de seus
membros. Admitiu- se que Sherif tinha assim provado experimentalmente que as normas
sociais
(1) Ibid., pãg3
(2) The Psychology o) Social Norms (La psychologie des formes s ,alrs). Nova York. 1-
lorper and Brother 1936
de um dado grupo se estabelecem no decurso da interação social; por isso termo de social
norm foi adotado para designar as regras, os costumes, as atitudes, os valores próprios de
um grupo e, em geral, para qualificar s comportamento constatado num grupo social;
julgou-se que tais experiências constituíam a ilustração microscópica dos fenômenos que
se produzem en muito maior escala na vida em sociedade, Øn:de o indivíduo aprende a
perce-. ber o mundo à maneira de sua família, de sua roda e das instituições. Tai
perspectiva, segundo a qual as normas sociais, elas próprias de origem cultu-. ral, são
parte integrante das motivações individuais, postula evidentemente que o julgamento
individual tende a conformar-se com o da maioria, en virtude mesmo das
leis próprias desta interação espontânea salientada pela experimentação de Sherif. Pode-
se julgar que essa perspectiva traz água para o moinho do conformismo, já que as
"normas sociais" tendem assim a se tornarem o critério em matéria de conveniência, de
gosto e, até, de moral.
e) A "dinâmica dos grupos "de Kurt Lewin
A noção de grupo deveria ainda obter maior crédito após os trabalhos de Kurt Lewin, a
quem O. W. Allport considera como a figura mais impor tante, juntamente com Freud,
da psicologia contemporânea( 1). Esses traba lhos tiveram primeiramente por objeto a
influência do meio no sentido psico lógico do termo, isto é, de um ambient e ao qual o
sujeito confere uma signifi cação, com vistas a determinar as leis que regem a
organização dessas unida des psíquicas constituídas pelo jogo recíproco do indivíduo e
de seu próprio meio( Lewin, em seguida, passando do "campo psicológico" para o
campo social, elaborou sua famosa "dinâmica dos grupos", muito em voga nos Estados
Unidos, e cuja idéia diretriz é a de que o grupo, por suas constantes interações com os
indivíduos que o compõem, é a sede de transformações incessantes.
O método proposto por Lewin recorre à linguagem e aos conceitos matemáticos;
constitui uma "tipologia" que pretende, sem nada deixar escapar do concreto psicológico,
garantir às descrições uma rigorosa objetivi dade. Método revolucionário, que submete
novamente a discussão não só os procedimentos da pesquisa experimental, mas o próprio
sentido da psicologia, pois pretende inaugurar uma maneira construtiva
("galileana") de abordar os problemas, o que deve permitir à psicologia tornar-se, a
exemplo da física, uma verdadeira ciêncía hipotético-dedutiva. As discussões suscitadas
pelas pesquisas assim orientadas não permitem ainda pensar que um progresso decisivo,
em relação a outras perspectivas de referência mais tradicionais, tenha sido assinalado
pela descrição do "campo" em termos emprestados à física:
direção, vetor, sentido, magnitude, distância, continuidade, descontinuidade, restrições,
... aos quais vêm juntar-se, no caso mais específicos, os de cami nhada, locomoção,
mobilidade, fluidez, coesão, alvo, etc. Mas permanece o fato de que Lewin, por sua
teoria do campo social, forneceu, também ele, uma justificação teórica ao pragmatismo
da psicologia social americana ao contri buir para este com o sistema denominado
"dinâmica dos grupos". O objetivo
(1) TheGeniusof Kurt Lewin, inJo, vol. 16, n 1, seI. 1947.
(2) C cap. XXI, §3.
386
387
é elaborar uma ciência sistemática dos grupos sociais, e de fazer os resultados obtidos
servirem à solução de certos problemas práticos e morais: relações entre trabalhadores e
empregadores, eliminação de preconceitos raciais, melhoria da produtividade, etc. (1).
Trata-se, em suma, de revelar as forças em jogo num grupo, na suposição de que as leis
deduzidas de um grupo bem selecionado possam ser aplicadas a todos os grupos
possíveis. E nesse sentido que a noção de grupo, criticada por Floyd H. Allport, iria
encontrar-se refor çada pelas pesquisas de Lewin conduzidas em termos de aspiração, de
conflito, de frustração (group needs, group goals), etc. Autores não deixaram de discutir
a legitimidade de uma tal transferência de conceitos, tomados de empréstimo à psicologia
individual, num plano em que o grupo e não mais o indivíduo é a unidade de
análise. Segundo David Krech, por exemplo, a substituição do termo campo social ao de
"campo psicológico" não basta para que as leis reveladas pelas brilhantes pesquisas de
Lewin e seus alunos no domínio da psicologia individual, se tornem leis de "dinâmica
dos grupos" (2).
As reservas de alguns, porém, não impedem que os trabalhos de Lewin inspirem todo
um movimento vanguardista de pesquisas a postular que um grupo tem atributos
próprios, inatingíveis pela síntese dos dados que pode fornecer a consideração
individual de seus componentes. Com seu centro de estudos, fundado em 1946 pelo
próprio Lewin, e seu próprio periódico, Human Relations, o novo método reúne um
número sempre crescente de "pesquisadores" experimentais.
f) Moreno e a "sociometria"
Jacob L. Moreno, não menos cuidoso de experimentação que Lewin, criticou neste o
sacrifício à elegância formal e o contentar-se com pesquisas insuficientes do ponto de
vista sociométrico. Moreno, nascido em 1892 em Bu careste, após ter estudado
psiquiatria em Viena, instalou-se nos Estados Unidos por volta de 1925. Homem de
interesses mentais muito diversos, de cultura ex cepcional, ao mesmo tempo histórica,
médica, psicológica e filosófica, não lhe faltam idéias curiosas e originais, ao contrário de
vários experimentadores norte-americanos que não fazem grande caso das teorias. Ele
refletiu sobre os conflitos humanos, repensou em nível social o famoso problema
biológico da "sobrevivência dos mais aptos" e buscou um meio de fundar uma técnica da
liberdade própria para equilibrar as energias espontâneas do homem a fim de que
pudessem elas ser propícias à harmonia e à unidade do gênero humano. Isso significa
que muito alta ambição preside às pesquisas sociométricas das quais se. fez o promotor.
Se está, porém, animado de uma preocupação humanista que o liga à grande tradição
filosófica, Moreno pretende renovar a própria psicologia científica, sem renunciar, de
forma alguma, à experimen tação e à medida. Embora se devesse ver em tal intenção
alguma utopia, é subestimar demais seu esforço com reter deste unicamente a
aparelhagem
(1) Resolring Social Co°sflícis. Selected Papem ias Gmoup Dy,rnmsics, Nova Yorlv,
1948.
(2> "Psychological Theory and Social Psychoíogy" ti H. HELSON, Ths'orcucal
Foicedat,o,u o! Pst'clio /ogv. Nova York. 1951, cap. 14. Citado por Leonardo
ANCONA. La psicologia o negO Stati U,,iti d'Ano-rica. Milão, 1954, pág. 48.
experimental proposta, considerando como muito acessório e passível de ser
desatefldido o sentido que à última empresta Moreno( 1).
Num domínio em que a maré dos fatos tende a submergir toda idéia diretriz, não é
indiferente que um homem tenha idéias sobre o homem. As de Moreno, expostas por ele
principalmente num livro de significativo título( orientam-se para os conceitos de
espontaneidade e de criatividade, "pedras angulares do sistema sociométrico" (3); a esse
respeito mostra-se grato a Bergson, o qual teve o "mérito imortal" de haver evidenciado
essa esponta neidade e criatividade no Essai sur les données immédiates de la
conscience assim como em L 'évolution créatrice. Nessa perspectiva, Moreno distingue
duas espécies de energia: uma sujeita ao princípio de conservação e outra que escapa a
esse princípio. A primeira dá ocasião a essas "conservas culturais" que se podem utilizar
e trocá-las mais tarde por vantagens pecuniárias, enquanto que a outra forma de energia,
embora sua quantidade possa ser mensurada, não pode ser nem conservada, nem
deslocada ou transformada. Ela emerge e gasta-se de uma só vez: devendo emergir para
ser gasta e, gasta, para ceder lugar a uma outra, nisso comparável à vida desses animais
que nascem e morrem no mesmo dia, unicamente para perpetuar-se. Sem essa espécie
de energia que não se conserva, a espontaneidade, o universo não teria podido nunca ter
início nem prosseguir sua marcha(
É isso mesmo o que quis mostrar Bergson, mas em plano metafísico. Ora, Moreno, no
que lhe concerne, reivindica ter feito descer do céu para a terra os conceitos de
espontaneidade e de criatividade, por meio da invenção de técnicas, particularmente
opsicodrama e o sociodrama, os quais permitem efetuar experiências sobre essa forma
de energia e de exercer uma ação tera pêutica. A esse respeito a tentativa de Moreno
interessa tanto à psiquiatria quanto à psicologia social.
À "sociometria", método experimental destinado por ele a todas as ciências sociais,
atribui a construção progressiva de uma "ciência autêntica" da sociedade:
"Ciência da personalidade, ciência da sociedade, ciência da civilização que não seriam
fundadas numa teoria da espontaneidade e da criatividade, são desprovidas de todo o
valor. Elas se metem num beco sem saída. Tal é o destino de todo sistema negativo de
análise, como o de Freud e de seus discípulos, até os mais heterodoxos(
Moreno julga que a sociometria, que tem por objeto o "estudo matemá fico das
propriedades psicológicas das populações", pode ser considerada como um movimento
especificamente americano, pois este se revelou de
>i) É o que faz Scan PIAGET, por exemplo, doutrinário de uma psicologia
decididamente "cientifica":
"Inspirando-se em considerações metafisicas sobre a espontaneidade criadora, da qual é
fácil fazer abstração (do mesmo modo que se pode reler as leis de KEPLER.
esquecendo-se de sua mística>. MORENO forneceu daao tócnicas que tiveram um
sucesso crescente e são aplicáveis ao estudo das relações sociais entre crianças (assim
como ás ialaçôes entre adultos e crianças): o psicodrama ou jogo simbólico coletivo e o
teste sociométrico, destinado a medir a coesão dos grupos". (Problènieo dela
pstchonociologie de /'i'nfance ti Tra,,é de soclo/ogte. publicado sob a direção
deGeorgesGURV tIl, P.U.F., 1950, págs. 229-254.>
(2) Who liall sur,'it'r? (trad. francesa sob o título Fondmnienio dela soc',onzétrie, P.
U.F., 1954),
(3) lbid., pág. 15.
(4) Op. ci prefácio à trad. francesa, pág. XXX.
(5) Op. cii., pág. XXIX.
388
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grande fecundidade nos Estados Unidos, enquanto que se estancou na Eu ropa:
"Mais do que não importa qual outra variedade da espécie humana, o ameri cano gosta
de exprimir-se em avaliação, em 'status", em algarismos; ele é essencial- mente o homo
metrum (1)."
Dado esse pragmatismo, quase não cabe ficar impressionado, como ficou o próprio
Moreno, com o contraste entre a "lenta aceitação das idéias e das teorias que
fundamentam os métodos sociométricos, e a adoção rápida desses mesmos métodos"
(2). Pois, essas idéias e teorias devem ser encaradas como a síntese das principais
correntes do pensamento europeu moderno, e pode-se perguntar se estas são familiares à
cultura americana em geral.
Lembrei o débito que Moreno reconhece com respeito a Bergson, cuja concepção da
evolução, ao levar em conta a experiência vivida do homem em contato com a mudança,
assinala a seu ver um progresso manifesto sobre a de Spencer. Por outro lado, atribui à
escola de Nancy, particularmente a Bernheim, o mérito de haver mostrado a importância
das estimulações inter- pessoais, e com isso conduzido ao estudo dos grupos e das
multidões. E Freud? Moreno, que f seu aluno em Viena, o admira. Mas, engenhosa-
mente, considera-o como um historiador, à maneira de Nietzsche, nesse sentido de que o
caminhar de seus pensamentos é retrospectivo: Nietzsche, cuidoso de um ultrapassar do
homem por si mesmo, inclina-se sobre as cultu ras e as formas de moral do passado;
Freud, atento em curar os indivíduos, se inclina sobre as origens traumáticas dos
distúrbios psíquicos. Nos dois casos, trata-se de explicar o presente pelo passado. Ora,
Moreno atribui a si o mérito de haver invertido a perspectiva e a própria técnica
psicanalítica, para orientar a personalidade total do sujeito para a ação espontânea, e
transfor má-lo assim em ator espontâneo. Em vez de remontar ao passado, trata-se de
entrar na própria vida, como "encenador", de inventar uma técnica que, apoiando -se no
presente imediato, espose, de certo modo, a própria direção da vida e do tempo; trata-se
de ultrapassar a associação livre de Freud buscando a secundar no sujeito sua completa
libertação e sua expressão mental e mímíca(
Por outro lado, do positivismo de Augusto Comte decorreram estudos concretos sobre as
formas primitivas do trabalho: caça, extração mineira, agricultura, pesca, guarda dos
rebanhos, etc., mas mercê de métodos que se revelaram forçosamente menos felizes
quando aplicados às populações urbanas. Pois, para penetrar os modos de vida e as
estruturas sociais construí das pelo homem: famílias, escolas, usinas, etc., e reencontrar
sua constituição interna, era indispensável substituir a um "âmbito geográfico" uma
geografia psicológica. Quanto ao materialismo dialético, enfim, Moreno pensa que
acentuou muito cas-regadamente o coletivo, desconhecendo este fato essencial que o
indivíduo é um ser energético, e a sociedade uma realidade complexa, movediça, de
redes formadas continuamente por correntes psicológicas. Disso
(1) Op. cii.. pág. IX.
(2) MORENO observa a esse respeito que foi no sociólogo francês Georges
GURVITCIJ que encontrou a melhor apreciação da escola sociotnétrlca: Microsociologie
ei soctontétric', Cuhier.s Jn,tr,,arii,,,aux de Socic,logw, sol. III. 1947. e Vo,ution
actuelIede/u P.U.F,. 1950. cap. IV.
(3) Op. eji. pág. 5.
deveriam resultar as tristes conseqüências que a doutrina marxista causaria à proporção
do aumento de sua influência sobre o homem e a sociedade.
Em suma, pois, é no plano da vida vivida que as técnicas sociométricas visam a
experimentar os processos de interação, fazendo intervir as noções de átomo social, de
rede, de tele e de ator-em-situação.
Segundo Moreno, se o eu individual projeta suas emoções sobre os grupos que o cercam,
estes, por sua vez, projetam sobre o eu suas emoções. Por conseguinte, a noção de átomo
social não designa o indivíduo, mas a menor estrutura social constituída pelo núcleo de
suas relações (atrações e repulsões recíprocas), e a noção de rede se aplica às cadeias de
inter-relações constituídas pelos átomos sociais; é de redes que são formadas a tradição
social e a opinião pública. Enfim, por tele, é preciso entender as correntes afetivas que
constituem os átomos sociais e as redes.
Moreno pensa que a resistência oposta a tudo o que poderia compro meter a "unidade
sagrada" do indivíduo é devida, sobretudci, à idéia de que os sentimentos, as emoções,
os pensamentos se desvaneceriam sem o suporte orgânico que se lhes atribuia, quando,
na realidade, os átomos sociais e as redes - possuidoras de uma estrutura durável e cujo
desenvolvimento segue certa ordem - obrigam a reconhecer a existência de estruturas
extra-indi viduais, nas quais circula o "fluxo mental":
"Temos o hábito de pensar que os sentimentos emergem do foro íntimo do indivíduo e
que se fixam mais forte ou mais fracamente em pessoas e nas coisas do meio imediato.
Temos o hábito de pensar não só que esses sentimentos brotam todo inteiros
exclusivamente do organismo individual.., mas ainda que esses estados físicos e
mentais, uma vez aparecidos, residem sempre no interior desse organismo. A relação
afetiva com uma pessoa ou coisa foi chamada apego ou fixação, mas esses apegos e
essas fixações eram considerados pura e simplesmente como projeções individuais. Essa
maneira de pensar combinava com a concepção materialista do organismo indi vidual,
com sua unidade e, por assim dizer, com sua independência de microcosmo( 1)."
A notar que o tele entre quaisquer dois indivíduos pode ser apenas virtual e não se
tornar ativo senão quando os indivíduos entrem em contato, ou quando seus sentimentos
e suas idéias se ponham em relação à distância, graças a algum modo de comunicação,
semelhante a uma rede. Esses efeitos à distância, ou efeitos de tele, constituem uma
estrutura sociométrica comple xa, produzida por longa cadeia de indivíduos, cada um dos
quais apresenta um grau de sensibilidade diferente ao mesmo tele, que vai da indiferença
à resposta mais intensa. Entra igualmente no tele o prestígio exercido sobre uma
coletividade por sujeitos, grandes políticos ou vedetes de cinema, dos quais emana um
atrativo simbólico na medida em que encarnam um ideal e, até, um mito. Disso resulta
que o átomo social se acha assim composto de muitas estruturas tele, e que, por sua vez,
os átomos sociais fazem parte de esquemas (patterns) mais vastos: as redes sociométricas,
que unem ou separam largos grupos de indivíduos segundo as relações
de seu tele. Por outro lado, as próprias redes sociométricas fazem parte de mais vasta
unidade: a geografia sociométrica de uma coletividade, a qual é ela própria parte inte
(1) Op. cii.. pág. 23.
390
391
grante da mais extensa configuração - a totalidade sociométrica da socie dade humana(
Segundo Moreno, a importância histórica da sociometrja se prende ao seu lugar
intermediário entre a sociologia e o socialismo revolucionário, dos quais, no limite,
constitui a síntese possível e desejável. A sociometrja partilha com a sociologia a
tendência para construir sistemas sociais bem elaborados; com o socialismo
revolucionário, a idéia de uma ação social planificada. Mas a diferença essencial reside
em que esta ação deve ser, na socionietria, concebida e controlada pelo método
experimental, isto é, aplicada a grupos restritos, para que os conhecimentos adquiridos
permitam ampliá-la a mais vastos conjuntos sociais.
A terapêutica se funda em afinidades que aparecem entre os indivíduos e os esquemas
(patterns), resultado de interações espontâneas, O objetivo é reconstruir grupos sociais, e
modificar o indivíduo, aproveitando a reorgani zação do grupo do qual faz parte.
Moreno está persuadido de que, tendo encontrado numa co letividade seu lugar
harmonizado com as leis que regem os aspectos psicológicos dos conjuntos sociais, um
indivíduo estará deste modo preservado de transgredir os limites de seu desenvolvimento
e de sua expansão naturais. Ter-se-á disso muita certeza?
O psicodrama visa a dar aos indivíduos ocasião de libertar seus impulsos espontâneos,
O sujeito deve "interagir" em face de pessoas da sua roda ou de auxiliares que os
representem. Pode inventar um papel, reproduzir uma cena do passado, representar um
problema presente cuja solução é urgen te, ou prefigurar experiências futuras. Os
pesquisadores podem assim discernir a alternância dos impulsos espontâneos e das
reações estereotipadas, inspiradas por clíchês culturais, por preconceitos do meio, a
adaptação variável às situa ções oferecidas, que são outros tantos índices para uma
terapêutica( 2). Quanto ao sociodrama, sua técnica visa a "explorar a imagem verídica
dos males sociais num grupo", a revelar a estrutura social real desse grupo - muitas
vezes camuflada - e os conflitos que provoca, ao mesmo tempo que a direção das
transformações desejáveis. Moreno dá do sociodrama essa descrição sugestiva:
"Ele pode funcionar como um meeting numa cidade, com essa diferença que estão
presentes os únicos indivíduos a quem diz respeito o problema discutido, e que a ação
dramática tem relação com questões de importância vital para a coletividade.., as
soluções e os atos brotam do próprio grupo. A escolha do problema e de sua solução
com todas suas implicações partem do grupo e, não, de um que dirige a experiência."
O experimentador nem por isso deve agir pessoalmente menos, e sua tarefa nada tem da
de um homem de ciência tal como imaginado comumente:
"Os pesquisadores que empregam técnicas sociodramátjcas devem, para começar,
organizar meetings preventivos, didáticos e terapêuticos, no grupo onde vivem e
trabalham; organizar, quando lhes é pedido, meetings do mesmo gênero em toda a parte
onde se formulem problemas análogos; penetrar em grupos vítimas de dificuldades
sociais urgentes ou crônicas, meter-se em meetings organizados por grevistas, em
tumultos de diferente gênero, em ajuntamentos e manifestações polí
(1) Op. cit,, pág. 24.
(2) Cf, Jean MAISONNOUVE- P5Vc/wIogíe socia/ P.U.F., t951, págs 98-107
licas, etc., a fim de tentar participar da situação e de compreendé-la no próprio local c
ação. O pesquisador que usa técnicas sociodramáticas, acompanhado por uma equipe de
auxiliares, deve envolver-se na própria vida do grupo que quereria estudar, com a mesma
determinação, a mesma dureza ou ferocidade de um chefe político ou sindical, O meeting
sociodramático pode transformar-se numa ação coletiva tão depri mente ou entusiasta
quanto os meerings políticos, com esta diferença fundamental de que os que fazem
política buscam submeter à própria vontade as massas, enquanto o teste sociodramático
esforça-se por conduzir a massa a um máximo de realização espontânea de si, de
expressão de si, e de análise de si por si mesma (1)."
Isto significa que o psicodrama e o sociodrama exigem certas condições que lhes
restringem o uso. Em compensação, o teste sociométrico de Moreno, baseado na
dimensão "atração-repulsão", é de fácil aplicação em não importa que grupo, e não se
privam de a ele recorrer. Inventado primeiro para estudar as escolhas interpessoais entre
os alunos de uma classe, foi em seguida utili zado por numerosos "pesquisadores" em
toda espécie de instituição social. Modificado de diversos modos, como é a sorte de todos
os testes, serve para distinguir as estruturas espontâneas de grupos os mais variados; por
exemplo, certos aspectos da leadership, pela análise das características das pessoas que
recebem uma grande adesão no grupo, etc. Os sociometristas, julgando quase impossível
deslindar, com a ajuda de psicologia empírica, através da intuição e da observação, as
redes de inter-relações que unem os membros de não importa que coletividade, visam a
determinar cientificamente as situações e os papéis do indivíduo no nós, efêmero ou
durável, constituído por qualquer que seja dos grupos sociais. A plasticidade dos métodos
permite ampliar indefini damente o campo de investigação. O próprio Moreno distingue o
que chama de cold sociometry e hot sociomet,y, preferindo
a segunda, com grande dife rença. Pois, a cold sociometry implica uma experimentação
que não tem forçosamente como objetivo, ao investigar as afinidades interpessoais de
seus membros, de reestruturar organicamente não importa que grupo; este, ao con trário,
é o intento essencial -da hol sociometrv. Nos dois casos, entretanto, trata- se de pedir a
todos os membros de uni grupo que designem, entre os compa nheiros, aqueles com os
quais gostariam de encontrar-se para uma determi nada atividade. Os critérios de
escolha podem ser muito diversos: relações afetivas, se se quiser compor um dormitório
num internato ou num quartel, por exemplo; relações de ascendência-dependência, se se
tratar de designar um chefe de equipe, etc. E necessário um trabalho preparatório que
consiste em colocar o grupo nas melhores disposições possíveis para uma resposta
sincera às questões. Quando se trata de hot sociometry, é mais fácil mobilizar o
interesse das pessoas para formar grupos de trabalho, equipes de jogo, dormitórios,
secções de combate, times esportivos, círculos de estudos, etc.
Segue-se um trabalho delicado: examinar minuciosamente as respostas e-extrair da
massa das informações obtidas as indicações a serem interpre tadas do ponto de vista
psicológico ou sociológico( Certos experimentadores acrescentam outra dimensão
chamada "teste de percepção sociométrica": um questionário que constitui como a
introversão do teste sociométrico, pois
- (1) "Méthode expérímentale, sociométrie o marxisme", in C'ahiers Inlernusionaux de
Socio/oÁ sol. VI. Edit. do Seuil. 1951.
(2) Sobre a aplicação e o exame minucioso do teste sociométrico, ct. Georges BASTlN
Les techsigries soeiom P.U.F., 1951. onde se encontrará igualmente uma importante
bibliografia a respeito. Cf. tansheni Paul MAUCORPS: Psvcho/ogie do ,nor,ee,nents
sociaur, P.U.F., 1950, págs. 81-126.
392
393
consiste em pedir a cada indivíduo do grupo para adivinhar aqueles que o escolheram ou
rejeitaram, com vistas a esclarecer a subjetividade tida por cada qual na percepção da
sua personalidade e da sua posição social no grupo. As pesquisas sociométricas fo ram
empreendidas em todos os domínios e em todos os sentidos: grupos escolares, industriais,
militares, de crianças, de adultos, evoluídos, primitivos.., segundo métodos de notação
diferentes, visando a determinar as relações entre o status sociométrico e certas
características, tanto físicas (estatura, peso, idade, aparência), quanto psicológicas
(inteli gência, êxito escolar, atitudes, traços da personalidade) ou sociais (nível social e
econômico, número de filhos da família, capacidade psicossocial de contato com
outrem)...
4. Psicologia social, ciência e filosofia
Pitirim Sorokin, que denuncia a "testecracia" e a "quantifrenia" que reina na psicologia
social dos Estados Unidos, a "obsessão da descoberta" e o "complexo do descobridor"
entre os pesquisadores, reconhece a Moreno o mérito de ligar-se a um passado cultural.
Por outro lado, admite a superiori dade das técnicas sociométricas sobre os testes que
proliferam nas ciências psi cossociais. Mas permanece céptico quanto ao alcance dos
resultados que delas se pode obter ou esperar. Se a originalidade criadora pudesse ser
mensurada por tais testes correntes e fáceis, observa ele, se pudessem garantir as
aptidões e as incapacidades dos indivíduos, seria resolvido com perfeição o mais árduo
problema da seleção e da repartição das ocupações profissionais e das situa ções sociais
entre os sujeitos. Cada qual ocuparia a situação correspondente a seus talentos, e a
sociedade inteira lucraria extremamente com uma distri buição científica desse gênero. O
conjunto dos organismos de educação e de correção ficaria assim grandemente
simplificado e completamente modifi cado. O total também das obras criadoras de uma
sociedade - na ordem econômica, politica, científica, tecnológica, religiosa, ética, artística
- aumentaria consideravelmente em conseqüência dessa criatividade desenvol vida.
Todavia:
"A infelicidade está em que a realização de uma tal utopia não pode ser assegu rada
pelos testes. Como nós tentamos mostrá-lo, todos esses procedimentos, a começar pelos
testes de inteligência e até os testes automáticos de criatividade, comportam graves erros.
Se, defeituosos como são, fossem aplicados à seleção e à repartição dos indivíduos nos
diversos empregos, disso só poderiam resultar erros nefastos de orienta ção profissional;
o sistema atual, longe de ser melhorado, ficaria agravado e o bem- estar geral diminuído
antes que il )."
O presente capítulo, consagrado à psicologia social norte-americana, por insuficiente que
seja, terá mostrado ao menos a diversidade das pesquisas que a constituem e que não se
poderia reduzir a um denominador comum, O que não impede um desenvolvimento
quantitativamente prodigioso da nova ciência, sob a forma de inquéritos, sondagens de
opinião, experimentações, aplicações múltiplas; e tudo isso e m geral numa perspectiva
essencialmente pragmática.
(1) Pitirim SOROKIN, Tendances ei déboiiea de Ia sociologie a,néricaine, Aubier, 1959
(lrad. deFads a,id FoibIe ia Modera Sociologc and RelaiedScieaces, Chicago, 1956).
Restaria, entretanto, considerar o alcance de tal tipo de pesquisa do ponto de vista
filosófico. E, nessa perspectiva, mesmo se consideradas por demais român ticas, surgem
ao espírito, com certa nostalgia, as variações de Heidegger sobre a tirania do a gente, que
assegura ao indivíduo a segurança, à custa da liber dade e da responsabilidade.
Pois, muitas pesquisas que se desenvolvem no domínio da psicologia social americana
recorrem ao condicionamento social, à influência exercida pelo grupo na formação da
personalidade, à origem social das normas e valores, etc., num sentido que quase não
deixa margem à autonomia do indivíduo, à sua subjetividade que se pretende incorporar
sem sacrificar.
Desejar-se-ia, por outro lado, que houvesse uma distinção mais nítida entre
conhecimento do homem e interesses práticos, os quais exercem um grande papel na
medida em que a nova ciência é favorável aos meios de negócios por suas aplicações na
publicidade, na psicologia industrial, nas vendas, etc. As inúmeras "sondagens" efetuadas
nos Estados Unidos, mais utiitárias em geral que a de Kinsey, atestam a amplitude e a
vitalidade dos novos métodos.
Mas, como o interesse do businessman não é forçosamente o do homem, sem mais,
impõe-se uma discriminação entre a psicologia social a serviço do comércio, da indústria,
da politica, do militar, da propaganda, etcc., e a psicologia em suas relações com o
problema da verdade. Exigência que reconduz inevitavelmente ao sentido que já o velho
Sócrates se esforçava por distinguir nas condutas humanas. O que se quer, afinal?
Produzir mais, viver melhor? Sem dúvida, embora a produtividade intensiva não garanta
a felicidade. Há, porém, poucos homens que admitam como único objetivo de sua
atividade a riqueza, o poder e a consideração, e é então que intervêm, ao menos como
álibis, os ideais. Mas quais? O bem-estar social, na medida em que permite o desabrochar
da personalidade, a liberdade? Ora, estas são noções que exigem mais ampla reflexão. E
que tipo de homem se visa a formar? Seres cujo rendimento seja máximo no seio do
grupo? Ou que sejam eventualmente capazes, em nome de exigências humanas
superiores, de protesto e de revolta?
Muitas outras questões podem ser formuladas quanto à significação e ao alcance das
pesquisas empreendidas sob o pretexto de psicologia social. Por exemplo, é legitimo tirar
da descrição de um grupo social princípios gerais de ação? A história, com a liberdade e
as coerções que a constituem, não comporta um desenvolvimento que se pode decifrar
de maneira diferente? Por outra parte, a "socialização" do indivíduo, que parece
evidente, causa problema. Muitos psicólogos sociais foram levados a toda espécie de
experiên cias a esse respeito, com gêmeos, crianças adotivas, indivíduos de raças
diferentes, etc. Mas, além do fato de essa psicologia social morfológica quase não
parecer manter laços orgânicos com a do comportamento, é impossível afirmar que os
resultados obtidos por tais pesquisas tornem caducas as controvérsias muito antigas entre
nativistas e empiristas.
Será necessário precisar que essas restrições não visam à psicologia social como tal,
mas somente a certas tendências que nela se manifestam?
Entre os autores que nela vêm dar com a preocupação de esclarecer de maneira
profunda o comportamento humano, cabe mencionar o médico-
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psiquiatra Alexander Mitscherlich, atualmente diretor do Sigmund Freud Institut, de
Francforte; é, com efeito, uma "psicologia social de inspiração analitica" que ele invoca a
seu favor para formular do nosso tempo um diagnóstico que reconduz também,
mutatis mutandis, à metapsicologia de Freud( Um fenômeno lhe parece essencial hoje: o
do desaparecimento progressivo e inelutável da figura do pai numa sociedade onde os
modelos tradicionais não exercem mais que uma influência repressiva e tornam-se para os
indivíduos uma fonte de angústia, de agressividade ou de indiferença; Mitscherlich
denuncia à sua maneira a "massificação" dessa sociedade, que coage milhões de seres a
viverem em formações urbanas incoerentes e irracio nais( e seu caráter de anonimato que
exclui toda obra onde o indivíduo possa imprimir o seu cunho. Tal estado de coisas, julga
ele, só pode criar um "exército gigantesco de irmãos ciumentos" que rivalizam entre si:
"Perante a sociedade camponesa ou feudal, capitalista e burguesa, trata-se aí de uma
mudança de toda a situação social cujas conseqüências, uma vez que atingirem a
consciência, não poderão mais ser ignoradas. A isso se acrescenta o fato de que as massas
da sociedade industrial não "vegetam" mais num estado constante de diminuição das
forças vitais, e não têm mais que sofrer da subalimentação e das epidemias. Seu
excedente de forças pulsionais busca satisfação nas usurpações de tipo horizontal sobre o
concorrente(
Hoje existe, pois, segundo ele, um problema urgente formulado pelo que chama de
"excedente pulsional", isto é, todas as forças instintivas que os processos de
aprendizagem não puderam tornar utilizáveis no interior do grupo, forças que o
indivíduo não pode controlar e o pressionam na ausência de um "ideal do eu" capaz de
incorporá-las(
As pulsões rejeitadas devem procurar, fora, uma válvula de escape, especialmente na
direção dos bodes expiatórios do grupo( A dificuldade que constata em vencer os
preconceitos coletivos, na medida em que estão ligados à gênese mesma do
desenvolvimento caracterial, leva Mitscherlich a pensar que a humanidade se acha hoje
diante de uma espécie de dilema: ou abandonar-se à idéia de que as atividades do ego
não podem ser reforçadas senão por revoluções que revestem o aspecto do assassínio
mítico do pai, isto é, por acontecimentos que deixam uma impressão profunda na vida
psíquica coletiva; ou apostar na esperança de que o nível de consciência atingido até o
presente baste para permitir uma ampliação progressiva da razão integrativa. O autor
tem como certo que nisso existe, diante da ameaça de uma destruição da espécie Homo
Sapiens, ao menos diante da alteração do patrimônio gené tico por um tempo difícil de
prever, uma "corrida contra o relógio(
Análoga inspiração, isto é, que se afasta do movimento culturalista acentuando a
estrutura instintual do homem, é encontrada nas obras "sócio-
(1) Auf deni VVi'g zur 'arenas,',, G.'st'll.schati, Muniquc. R. Piper & Co. Verlag, 1963
(irad. francesa:
Vens la société sa,,s pêres, N.R.F., GalIin 1969).
(2) Die Unicin/ilichkeii unseren Siadie, Ansi z,',,r Unfnieden, Suhrkamp Verlag, 1965
(trad. francesa: Psychanalyse ei urhanis,ne, Gallin Les Essais CLIII. 1970).
(3) Vens la saeréré ia,,, pêres, o,". cri., pág. 229.
(4) Ibid., pág. 26.
(5) Ibid., pág. 39.
(6) lbid., pág. 81.
psicanalíticas" do Dr. Gérard Mendel( Também ele insiste no caráter inédito da "crise
das gerações" na sociedade ténica de nosso tempo. Os adolescentes não podem mais
vencer a etapa edipiana (inelutável, segundo Mendel), pois as exigências dessa sociedade
e os conflitos coletivos incons cientes por ela criados destroem o modelo do pai,
interiorizado por ocasião do primeiro conflito edipiano. A maneira de Mitscherlich,
Mendel, que estuda penetrantemente o movimento de revolta da juventude atual,
somente vê salvação numa tomada de consciência dos medos irracionais:
"O verdadeiro problema de nossa época é evitar que os adolescentes decepcio nados,
enganados, resvalem para o fascismo, para o qual, na ausência de contraforça, tende
muito naturalmente a sociedade tecnológica(
Quanto a Konrad Lorenz, foi a partir de seus estudos sobre o compor tamento animal(
que entrou também no domínio da psicologia social. Sua volumosa obra, onde as
manifestações de agressividade intra-específica ao nível do homem ocupam importante
lugar, é significativa a esse respeito( Aí é encontrado o relevo dado às pulsões
instintivas, mas na perspectiva filogenética que lhe é cara.
Ficou especialmente impressionado, ao observar combates de lobos e cães, com o fato
de que o vencido oferece a garganta ao vencedor, e este graciosamente o poupa. Trata-
se aí, evidentemente, pensa Lorenz, de uma inibição de origem filogenética, que se
orienta para a sobrevivência entre os animais que desenvolveram armas perigosas
(prova-o não aparecer a inibição entre aqueles cujos combates não acarretam ferimentos
muito graves).
Mas, e no homem? Nele volta a manifestar-se a inibição, segundo Lorenz, desde o
guerreiro de Homero que, cabeça curvada, pede demência, até a nossa moderna moral
social. Isso quer dizer que Lorenz considera extre mamente importante o aspecto
fiogenético da agressividade humana em suas diversas formas, atentando a que os efeitos
nocivos desse aspecto (que Freud tentou explicar por uma pulsão de morte específica)
provêm "muito simples mente do fato de que a pressão da seleção intra- específica fez
evolver no homem, em época a mais afastada, uma quantidade de pulsões agressivas,
para as quais ele não encontra válvula adequada na sociedade atual" (5)• O
mesmo sucede com a "hipertrofia pulsional" que se manifesta na criminali dade, simples
"modificação do comportamento ligada à domesticação".
Assim, na perspectiva de Lorenz, a psicologia - e não somente a psico logia animal -
torna-se serva da biologia. Implícita e explicitamente:
"Cada ser vivo é um sistema, resultado de um devir histórico, e cada uma de suas
manifestações vitais só pode ser verdadeiramente compreendida se uma pesquisa causal
racional estudar o processo de sua gênese filogenética. Trata-se aí de um fato evidente,
na hora atual, para todo aquele que reflete sobre a biologia. Inversamente, a
(1) La récrrlieer,,iirelepêre, Paris, P.B.P., 1968; La crise dei génénal Paris, P.B.P., 1969.
(2) La c,'ise dei gén ap. cii., pág. 248.
(3) CI. cap. XXII, §4.
(4) Das sogenaflnle Base. Zar Narurgeschichte der Agressian, Viena, Dr. G.
Borotha.Schoeler Verlag, 1963 (trad. francesa: L'agressian. Une l,is natureile du ria
Paris, Flammarion, Nouvelie Bibliolhèque Scien tifique, 1969).
(5) Ibid., pág. 259.
396
397
idéia de que o mesmo ponto de vista é válido para todos os fenômenos do comporta
mento psíquico e que nossas produções psíquicas e intelectuais não são independentes
de todo o restante dos fenômenos da vida, tal idéia não abre caminho para si senão
dificilmente e com extrema lentidão. Até nos psicólogos contemporâneos encontra-se
ainda grande reticência em admitir que a todo comportamento - mas também a tudo o
que se passa em nossa consciência - corresponde igualmente, de maneira paralela, um
processo neuropsíquico(')."
Sob nova forma, é, pois, a velha idéia do paralelismo que ressurge com Lorenz. Ela
implica, no caso, que ele renuncia a ver na "espontaneidade" admitida, fosse ela
humana, a expressão de uma vida psíquica irredutível, e quer submetê-la a uni estudo que
a ajuste aos processos neurológicos explicáveis pela ciência. Tal naturalismo não poderia
convencer a todos os espíritos. Já tive ocasião de observar, ao expor suas teorias sobre o
comportamento dos animais, que a maneira pela qual ele encara a "esponta neidade"
apouca singularmente o momento psíquico. A fortiori em nível humano, a atividade
espiritual em sua universalidade concreta ou, se quiserem, a subjetividade como fonte e
fundamento do mundo fenomenal, parece estar bastante comprometida na sua obra,
apesar de, afirmando muito pertinazmente o dever de penetrar a fundo no conhecimento
do nosso próprio comportamento, ele preconizar, em palavras somente, o gnõthi seautón
(o "conhece-te a ti mesmo" do templo délfico) aprofundado por
Sócrates( 2) Não é que Lorenz desconheça efetivamente o caráter único do homem. Não
invoca explicitamente Kant a seu favor? Mas seu Kant é uma transposição natura lista do
de Kdnigsberg, pois interpreta-o de um modo que assimila as formas e as categorias
a priori da sensibilidade e do entendimento aos a priori existen tes nos animais( Para
Lorena, com efeito, as estruturas cognitivas do homem têm também uma origem
biológica e fiogenética.
Nessas condições, é evidente que desaparece o dever moral no sentido kantiano. Pensa
Lorenz efetivamente que é preciso tudo ignorar da esponta neidade essencial das
pulsões instíntivas para crer que se poderia diminuir ou mesmo suprimir a agressão,
colocando a humanidade ao abrigo das estimu lações que podem desencadear um
comportamento agressivo; ou para imagi nar-se que é lícito jugular essa agressão
opondo-lhe um veto moral( Consi dera como verdadeiro que o único valor que não pode
ser posto em dúvida, independentemente de toda moral racional ou educação, é "o liame
de amor e amizade humana, fonte de toda a bondade e caridade, e que representa a
grande antítese da agressão" (5).
Com seu humor e sua bonomia radiante, o homem Lorena é a antítese do cientista que
se poderia acusar de "desumanizar" a ciência. Mas a questão não é essa, e, sim, a de
saber se a maneira pela qual ele concebe a subjetivi dade humana pode realmente
explicar esta última. Segundo Erich Fromm, por exemplo, para quem importa
essencialmente a atividade criadora e a adaptação dinâmica do homem às estruturas da
sociedade, a insistência de
(1) Essais sor (e campo rteme, a et Somai,,, op. eiS. pãg. 409.
(2) L ageession. op. eiS.. pág. 292.
(3) Cf. particularmeste Kant's Lehre tom apnorisehen im Liehte gegenv Biologie
(Btatter for Deotsc/ 1941, 15, pãgs. 94-125).
(4) L ag,'ession. . op. eu., pág. 292.
(5) ibid, pág. 301.
Lorenz na hereditariedade animal instintual não atinge o problema especifi camerite
humano, visto melhor pelo próprio Freud, apesar do seu "biolo gismo". Fromm teme
que o naturalismo de Lorenz, nolens volens, traga água ao moinho de unia tendência
que ele, Fromm, deplora na cultura contemporâ nea: a de uma espécie de demissão geral
do homem diante do determinismo dos instintos e, além disso, diante dos
computadores( o.
Tal situação cultural leva-o a citar a seu favor esta advertência solene de Lewis
Mumford:
"O homem moderno se aproxima... agora do último ato de sua tragédia, e eu não poderia,
mesmo querendo, dissimular a finalidade ou o horror da mesma. Nós temos
suficientemente vivido para ser os testemunhos da reunião, em íntima associa ção, do
autômato e do id, o id a subir do mais profundo do inconsciente, e o autômato, pensador
à imagem da máquina e máquina à imagem do homem, a baixar, completa mente
desligado das outras funções de preservação da vida e das reações humanas, das alturas
do pensamento consciente. A primeira força, quando foi desligada do conjunto da
personalidade, mostrou-se mais brutal que feras as mais selvagens; a segunda força é de
tal modo impermeável às emoções humanas, às angústias humanas, aos objetivos
humanos, de tal modo destinada a responder somente à gama limitada de questões para a
qual seu mecanismo foi originalmente concebido, que lhe falta inteligência salutar para
suspender a ação de seu próprio determinismo, embora precipite a ciência, assim como a
civilização, para a própria ruína(
Com um interesse inteiramente diferente, o psicólogo Jean Piaget, de quem se sabe a
muita preocupação com elaborar uma epistemologia genética, procura, muito mais que
Lorenz, indagar a respeito do caráter necessário das conexões cognitivas a pr iori:
"Explicar unicamente pela seleção, no sentido do mutacionismo, por que o cérebro
humano foi capaz de construir estruturas lógico-matemáticas tão admiravel mente
adaptadas à realidade física é.. - impensável, pois os fatores de utilidade e de
sobrevivência só teriam conduzido a instrumentos intelectuais grosseiramente aproxi
mativos, que satisfazem largamente a vida da espécie e dos indivíduos, e, não, a esta
precisão, nem, sobretudo, a esta necessidade intrínseca, a exigir ambas uma explicação
muito mais profunda da adaptação do que a triagem a posteriori no meio de variações
aleatórias(
Se é louvável a exigência, aqui expressa pelo Sr. Piaget, de uma "explicação muito mais
profunda", é evidente que não é à filosofia que ele pensa (a cujo intento e pro ceder ele é
alérgico), mas à sua "epistemologia genética", única capaz de fundamentar um
conhecimento válido. Infeliz mente o problema que Lorenz resolve à sua maneira é
metafísico e, como tal, não poderia ser resolvido de maneira peremptória pelo mais
aperfeiçoado esquema técnico. Se tais esquemas respondem mais ou menos eficazmente
aos "como" que o homem formula à realidade, os "por que" que igualmente propõe, só
podem ser postos de lado quando com base num cientismo que os consideraria uma
extrapolação possível de ser desatendida sem grande incon veniente.
(5) Espoirei r Paris, Stock, 1970, pág. 62.
(2) Ia the Name o! Sanite (Nova York, Llarcourt Brace & Co., 1954), citado por
FROMM. op. CO.. págs. 62-63.
(3) Biologie ei connaissance. Coliection "L'Avenir dela Science", Gailimard. 1967, pág.
316.
398
399
No respeitante às condutas, por exemplo, até no domínio da psicologia animal, onde
Lorenz é exímio no gênero, algumas de suas descrições, que "roçam" o antropomorfismo
repudiado em princípio, traem a dificuldade de uma explicação científica exaustiva. Ora,
essa dificuldade é muito maior quando se trata da subjetividade humana, de suas origens
e dos impulsos profundos que a levam a agir. Eis ai um aspecto do conhecimento que
pesqui sadores especializados reconhecem plenamente.
Assim é que Thure von Uexküll, por exemplo, observa que todos os projetos segundo os
quais as ações se executam, e segundo os quais as máqui nas se constroem e funcionam,
deixam na obscuridade o que os cria. Que o homem queira desembarcar na lua, explorar o
cinturão de radiações que circunda a terra, ou fotografar Vênus, eis aí tambémfatos de
certo gênero, e inexplicáveis cientificamente. Isto significa que uma parte da realidade - e
que interessa o homem total - pode apenas ser eludida mas não resolvida pelos esquemas
técnicos( 1).
(1) Thure von UEXKULL. L ,néd epsvch Idéev, GaWmard, 1966, cap. VII.
400

CAPÍTULO X24
FENOMENOLOGIA E PSICOLOGIA
1. Husseri e a psicologia
2. A influência da fenomenologia
3. A psicologia fenomenológica
a) na obra de Jean-Paul Sartre
b) na obra de Maurice Merleau-Ponty
1. Husserl e a psicologia
Edmund Husseri (1859-1938), o promotor da fenomenologia contem porânea,
considerava-se discípulo de Brentano, cujos cursos acompanhou em Viena('). A exemplo
de Descartes, impôs-se a tarefa de repensar os funda mentos do saber, cuidoso
de reencontrar uma certeza que permitisse ao pensamento superar um estado de crise, de
conseqüências para toda a vida cultural, e caracterizado particularmente, segundo
Husserl, pela perda da intencionalidade filosófica e pelo desbordar do método matemático
para áreas fora dos limites que deveriam ser-lhe próprios.
'O aparecimento da fenomenologia em princípios deste século decorreu de um impulso
baseado numa inaudita exigência. Compreendia-se a si própria como um recomeço
radical. Sem dúvida principiou numa época "vazia" do ponto de vista filosó fico. O
mundo universitário, ao menos na Alemanha, estava dominado pelos epígonos de um
kantismo que degenerara em pura metodologia da ciência positiva. Nietzsche
(1) Franz BRENTANO (1838-1917), que foi padre, separou-se da Igreja. Nutrido de
ARISTÕTELES e da Ëscolástica. de LEIBNIZ e de LOCKE, afirma com muito vigor, na
época do naturalismo, o primado da psicologia sobre as ciências naturais: o que é
fenénteno não é verdadeiramente real, e o que é verdadeiramente real não se torna
fenômeno. Ora, os fenômenos físicos são os sinais de algo real: sua certeza é mediata. Em
compensação. e é privilé gio deles, a certeza dos fatos psíquicos é imediata. BRENTANO
opõe, assim, à psicologia dos conteúdos, uma psicologia dos atos: a vida da consciência
está ligada aos atos diretamente vividos da apercepção, da representação, dojuízo, do
amor, atos esses também d(rigidos para objetos. Antes de HUSSERL, BRENTANO
acentua assim uma noção que deveria ler uma sorte singular no pensamento
contemporâneo: a da intencionalidade da consciência, sempre dirigida para alguma coisa.
CI. de Frauc BRENTANO: P da poinr de inc empinqnc. trad. de M. de GANDILLAC.
Aabier.
f9t4; igualmente Lucie GIL5ON: Méthode et enétaphysiqae sebo Forno Bcentaoo, Vrin,
t955, e La psychologie
deucriptive selon Franz Bren Sano, Vrin, t9 (cada uma das obras contém bibliografia).
401
ainda não era reconhecido como pensador metafísico. De maneira geral, desde a
"derrocada do idealismo alemão", a metafísica não ocupava mais lugar algum (1)."
Não se poderia pensar em expor aqui a fenomenologia husserliana; e sim, apenas, de
indicar-lhe a orientação e a influência nas ciências psico lógicas.
Pelo objetivo de oposição relativamente a essas ciências, a fenomeno logia se inscreve na
linha inaugurada por Bergson, quando menos pela critica que lhes faz à pretensão de só
admitir como válida uma psicologia positiva, objetiva e experimental. Pois Husserl
censura precisamente, à psicologia assim compreendida, o fato de recorrer, em sua
fundamentação, ao postulado realista do senso comum, incapaz de satisfazer um
pensamento preocupado com o essencial. Se é verdade que o sujeito empírico faz parte
do mundo, é também verdade que o mundo não é senão um objeto "intencional" para o
sujeito que o pensa. Portanto, não se pode devidamente tratar o homem como uma coisa
entre as coisas, como o produto de influências físicas, fisio lógicas e sociológicas, que o
determinariam de fora. A própria psicologia, qualquer que seja o método, é, antes de
tudo, um projeto, uma intenção de melhor compreender o homem e seu comportamento.
Conquanto suas opiniões a respeito mostrem alguma ambigüidade, Husserl visa menos
a opor, à psicologia científica, outra psicologia, do que a assinalar os limites da primeira e
a demonstrar que o desenvolvimento das ciências psicológicas não resolve a exigência
antropológica de reduzir a um denominador comum o duplo aspecto da interioridade
racional e da objetividade que elas invocam a seu favor. Psicólogos têm assimilado esse
objetivo a uma tentativa de restaurar a introspecção, da qual desconfiam, quando não a
arrastam às gemônias. Essa opinião é justa e falsa. E falsa porque a fenomenologia
husserliana se opõe tanto ao intelectualismo idealista quanto ao empirismo naturalista.
Descreve o psiquismo humano como sendo sempre e de imediato. "relação com o
mundo"; repudia (ao menos em intenção) toda universalidade abstrata, substituindo os
processos da filosofia especulativa pelo retomo "às próprias coisas", que constitui o como
leitmotiv da revolução metodológica husserlia na. E discutível, além disso, que a análise
intencional, como tal, possa vir a substituir, sem equívoco, a metafísica especulativa, com
a conseqüente problemática. Seja qual for, porém, a solução desse problema filosófico,
não se trata, para Husserl, de restaurar a introspecção no sentido de um conheci mento
puramente interior, privilegiado; o que quer estabelecer é que não pode haver psicologia
verdadeiramente bem fundamentada a não ser intencional e inter- subjetiva. Essa última
noção, a implicar uma relação de reconhecimento recíproco das pessoas numa
humanidade comum, adquirirá sempre mais importância em sua obra. Basta-me, porém,
assinalar aqui que seu objetivo é o de superar a um tempo a
metafísica tradicional pelo rigor perfeitamente científico e as ciências, pelo caráter
original e, não, derivado, da investigação. Já indiquei a influência direta exercida pela
fenomenologia husserliana sobre os promotores da Gestalt, os quais, por suas descrições
do "campo psicológico", situarão precisamente os problemas em nível anterior àquele em
(1) Eugen FINCK, "Lanalyse intentionnelle et le problème de la pensée spéculative",
em Problêmes actuels de 1 phénomé,so/ogie. Desclée de Brouwer, 1951, pág. 59.
(Eugen FINCK é geralmente considerado como o intérprete mais penetrante de
HUSSERL e de HEIDEGGER.)
que é estabelecida categoricamente a distinção entre o sujeito e o objeto, entre o interior e
o exterior.
Husserl não induz a transcender as experiências (Erlebnisse), mas a extrair-lhes o sentido.
A orientação da consciência no rumo de certos objetos "intencionais" permite o que
Husserl chama de "análise eidética". Ele distingue, a esse respeito, uma consciência
"explícita" do objeto, própria do "eu" atual, e uma consciência implícita, "potencial". Se
a preocupação dominante com o sentido, característica da fenome nologia husserliana,
pode lembrar as idéias que obsidiaram Sócrates até a morte, é preciso não confundir a
"análise eidética" com uma dialética de tipo platônico. Husserl, com efeito, se opõe não
somente ao naturalismo, tendente a encerrar o comportamento humano numa rede de
causas e efeitos exprimí veis na terceira pessoa, mas também ao idealismo, na medida
em que este reduz o homem a um conjunto conceptual organizado.
Meio-termo entre essas duas tendências, a fenomenologia está nas origens do chamado
"existencialismo" contemporâneo. Não que a existência (no sentido do homem que a si
se apresenta como "ser-no-mundo") seja conceito próprio husserliano. Mas foi derivado,
sem grande dificuldade, graças a outras influências (Kierkegaard, Nietzsche), do conceito
de Lebens welt, ou "mundo vivido", de capital importância, no pensamento mais amadu
recido de Husserl, para designar a presença no mundo, antes da reflexão, de um nível do
vivido imediato, na origem de todo conhecimento. Quer dizer que a
"própria coisa" é concebida por Husserl como o dado, como o intuído. Todas as ciências
pressupõem esse Lebenswelt como seu terriço originário, mas logo dele se afastam para
construir o mundo "depurado" do conheci mento científico. Ora, Husserl entende realçar
o valor imprescritível dessa experiência ingênua e originária, que só pode ser descrita
como uma relação de ser, como um conjunto organizado de significações em diferentes
níveis. Importa compreender que essa ligação com o mundo, presente na origem de todas
as condutas humanas e do sentido que manifestam, não se pode exprimir em termos
tomados às ciências naturais; nem pelos que utiliza o idealismo para exprimir a
construção do objeto pelo sujeito.
Trata-se de estabelecer uma "reflexão radical", capaz de revelar os preconceitos oriundos
do meio e das condições exteriores; de tomar consciente nossa ligação com o mundo
físico, social, cultural; de ultrapassar a singulari dade, na medida em que uma consciência
não é apenas uma sucessão de estados e de acoutecimentos, mas esses acontecimentos
têm um sentido revelável. Sob esse aspecto, a fenomenologia se inscreve na perspectiva
aberta por Hegel e quase não inova. A originalidade reside antes na maneira de preencher
o hiato entre a lógica e a psicologia, sem "decolar" da experiência, por uma intuição ou
visão das essências (Wesenschau) que permite o
acesso a um saber universalmente válido.
Na opinião de Husserl, o erro comum do psicologismo e do positivismo é não dar valor
senão aos dados individuais dos sentidos, quando é certo que podemos ver, em espírito,
concebendo-os como fenômenos, objetos gerais. Por exemplo, antes de proceder,
unicamente pela experiência e do ponto de vista psicológico, ao estudo da percepção e
do juízo, deve a reflexão intuitiva elucidar o que são, na essência, uma percepção e um
juízo. A fenomenologia
402
403
se dedica, assim, a uma investigação científica, não dos fatos, mas das formas da
consciência dos objetos, definidos por um ato da consciência. Por esse aspecto, a
fenomenologia se aproxima da via trilhada por Kant( l).
Não cabe aqui deter-nos mais numa empresa que suscita problemas de ordem filosófica,
muito especialmente por sua pretensão de recomeçar, em suma, da estaca zero, à moda
cartesiana, e reencontrar "as coisas em si mesmas" numa realidade de fato toda
impregnada de história(
Trata-se muito mais de lembrar a influência que a fenomenologia exer ceu sobre as
ciências psicológicas, e os prolongamentos encontrados por ela em autores que a invocam
diretamente a seu favor. Influência essa, fiz recordar, que foi considerável em primeiro
lugar para a filosofia, especial mente sobre todas as novas teorias que se filiam à linha da
"existência"; em apoio da intuição do homem como "ser no mundo( elas exploraram sua
descoberta do campo das significações e sua "análise intencional", própria para elucidá-
lo.
2. A influência da fenomenologia
Antes de ter agido sobre a cultura francesa, a fenomenologia husser liana exerceu
profunda influência sobre o pensamento alemão, muito parti cularmente sobre a
filosofia existentiva(*) de Karl Jaspers e sobre a exis tencial de Martin Heidegger; é
freqüentemente através deles que a feno menologia repercutirá sobre as ciências
psicológicas, especialmente sobre a psicoterapia. Jaspers, que foi psiquiatra e psicólogo
antes de dedicar-se à filosofia, já insiste em sua alentada obra de "psicopatologia geral"
(4) sobre a relação pessoal que o médico deve estabelecer com o doente, sobre a
necessidade de levar em conta todos os elementos que esse contato direto pode revelar,
sem considerar como entidade o conceito geral de doençà:
a suprema relação do médico com seu doente é uma comunicação e.xis tentiva que
ultrapassa toda terapêutica, isto é, tudo que pode ser organizado ou
(1) Cf. Idíes directriceopourunep/zénoménologie. primeira parte, obra de 1913, trad. de
1'. RICOEUR, 7t ed., Paris, Gallimard, 1950.
(2) Cf. Pierre THÉVENAZ, "Qu'est-ce que la phénoménologie?" Rei', de Théologie ei
de P/iilosophie, Lausanne, 1952, n? 1, II e IV (bibliografia). Também Jean-F.
LYOTARD, La phénommnologie, P.U.F.. 1954 (bibliografia).
(3) Essa é uma idéia já fortemente posta em relevo por HEGEL, porém eclipsada pela
arquitetura barroca do sistema. MERLEAU-PONTY sublinhou com muita justeza essa
exigência da Fenomexologia do espírito do grande filósofo alemão: "Não se trata mais
apenas, como na Crítica da razão pura teórica, de saber em que condi. çôes a experiência
científica é possível e sim de saber, de maneira geral, como é possível a experiência
moral, esté. tica, religiosa, de descrever a situação fundamental do homem diante do
mundo e diante de outrem, e de compreender as rettgiôes, as morais, as obras de arte, os
sistemas econômicos e juridicos como outras tantas maneiras, para o homem,
de fugir às dificuldades de sua condição, ou fazer-lhes frente.,. Não é mais a experiência
de laboratório: é a prova da vida." (Sens ei non-senx, Nagel, 1948. págs. 129-130.)
(*) Aqui seguimos a terminologia adotada pelo Dicionário de Filosofia, de Nicola
Abbagnano (São Paulo. Editora Mestre Sou, trad. coordenada e revista por Alfredo
Bosi, it cd., 1970), que traduz os adjetivos alemães existentiell e existent,aI
respectivamente por exisientivo e existencial. Outra tradução para os mesmos termos,
contudo, acha-se lembrada no Pequeno Vocabulário da Li'ngua Filosófica, de Armand
CUVILLIER. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1976, trad. e adaptação de Lólio
Lourenço de Oliveira e 1. B. Damasco Penna, na nota dos tradutores, pág. 192. (Jaipers
denominava a sua filosofia de Existenophilosopl,ie, título, aliás, de um de seus livros,)
(A. O.A.)
(4) Allgrerieine Psvchopat/iologve. Berlim, Springer, 1913; 3e cd. aum, e rev., 1923
(irad. francesa de KASTLER et MENDOUSSE: P générale, Paris, Alcan, 1928).
metodicamente encenado. A cura, desde esse momento, se realiza e se circunscreve na
comunidade de dois seres livres e dotados de razão, no plano da existência possível."
(De la psychotérapie. P.U.F., 1956, pág. 1.)
Jaspers insiste sobre a importância primordial da responsabilidade do psiquiatra, de seu
compromisso pessoal, e sobre o fato de que uma formação médica, somática e
psicopatológica, se é evidentemente necessária, não poderia substituir tais predicados:
"Como todas as empresas humanas, a psicoterapia tem também seus perigos próprios.
Em vez de mostrar o caminho aos angustiados, pode tornar-se uma espécie de religião,
análoga às seitas gnósticas de há quinze séculos. Pode oferecer sucedâneos da
metafísica e do amor, da fé e da vontade de poder, dar livre curso a impulsos sem
escrúpulos. E sobre a aparência de nobres exigências, pode rebaixar a alma e corrom pê-
la." (Ibid., pág.43.)
No domínio psiquiátrico, Jaspers foi um dos primeiros a considerar o delírio como uma
experiência primária irredutível, a saber, como certa maneira de ser no mundo, de
percebê-lo e dar-lhe sentido. Deveria em breve, em sua obra posterior: Psychologie der
Weltanschauungen (1919), abrir caminho para o "existencialismo" ao descrever as
"visões do mundo" como atitudes existentivas em face do universo, que se fazem passar
por sistemas objetivos.
É na corrente fenomenológica que se situa o criador da "análise existen cial" (Daseins-
Analyse), o psiquiatra suíço Ludwig Binswanger, cujo pensa mento se liga ainda a
outras fontes filosóficas:
"Bem infelizes seriam os nossos doentes se, para curar-se, fossem obrigados a
compreender Heráclito ou Hegel; ninguém, entretanto, se curará nem será verdadei
ramente curado no mais profundo do seu ser, se o médico não conseguir fazer brotar
nele essa pequena chama de espiritualidade cuja vigilância deve revelar a presença do
alento do espírito( )."
A exigência hegeliana de um universal-concreto parece orientar sua análise existencial:
em todo tratamento psicológico sério e na psicanálise, principalmente, há momentos em
que o homem deve decidir se deseja conservar seu pensamento indivi dual, seu "teatro
privado", como disse uma doente, sua arrogância, seu orgulho e seu desafio, ou então
se, entre as mãos do médico - mediador iniciado entre o mundo particular e o mundo em
geral, entre a ilusão e a verdade - o homem prefere real mente despertar de seu sonho e
tomar parte na vida universal..," (2).
Se Binswanger muito deve à psicanálise freudiana, alarga-lhe, pois, o horizonte
recorrendo aos métodos descritivos da fenomenologia; aparta-se de Freud, neste aspecto
essencial: o homem não é um ser de natureza, e cumpre substituir as relações causais pela
busca do sentido. E lícito observar que essa exigência não é realmente estranha à
psicanálise, sobretudo se interpretada (como o faz Merleau-Ponty) para além de suas
formulações literais. Na verdade é antes a "tonalidade" do sentido que está em causa:
(1) Lc ,'éce ei l trad. do alemão por Jacqueline VERDEAUX, Desclée de Brouuer, 1954,
pág. 184.
(2) ihid.
404
405
nós, os homens, quem somos e que somos? Nenhuma época - e ainda menos a nossa -
pôde responder, e hoje estamos de novo diante do comecinho da nova busca desse
Nós(')..."
É evidente que essa preocupação essencial com o sentido, de inspiração heideggeriana,
absolutamente não exclui, em Binswanger, a contribuição das ciências biológicas e
psicológicas; os dois aspectos sãó por ele unificados na noção de Daseinerkenntnis
(conhecimento da existência). E seu objetivo fornecer uma orientação à psicopatologia,
mostrando que a situação de doença se esclarece com o recurso a três coordenadas
essenciais: o sujeito, o movimento existencial, o esboço do mundo. Tomando a Heidegger
os existen ciais de sua ontologia, ele encara o ser humano no seu movimento de transcen
dência, coagido a escolher uma atitude em face do mundo; e considera que a existência
possui dois constituintes essenciais: o encargo (o trabalho) e o amor. Do ponto de vista
fenomenológico, Binswanger admite que a unidade homem-mundo é fundamental e a
consciência de si é o corolário da consciên cia do mundo. Esta presença no mundo,
constitutiva da ipseidade, se realiza pela formação de um mundo inteligível, sempre
concreto e histórico, próprio de cada tipo de indivíduo.
Assim é que a doença como tal importa menos, a seu ver, que o indiví duo em certa
situação de doença. Num sentido não muito afastado daquele que Adler atribuía ao
"estilo de vida", mas com um suporte filosófico mais elabo rado, considera que o clínico
deve esforçar-se por compreender concretamente a maneira de ser de seu paciente,
enquanto ela é experiência vivida, um "projeto" inserido em sua história, já que cada
pessoa recorta à sua maneira um universo na complexidade do mundo social e cultural,
O objetivo do trata mento é que o doente reviva, em comunicação com o psicoterapeuta,
as fases sucessivas dessa experiência vital. Pois essa reinterpretação do passado deve
reconciliá-lo com esse organismo psicobiológico que é o corpo, por inter médio de uma
espécie de superação que não deixa de lembrar a famosa Aufhebung de Hegel. Tais
idéias conduzem Binswanger a análises penetran tes sobre o espaço e a linguagem;
sobre o espaço, na medida em que a subjeti vidade humana, inseparável de uma
dimensão corporal, é necessariamente especializante; sobre a linguagem, na medida em
que a constituição do pensa mento, ligada à construção de um mundo, utiliza
necessariamente a lingua gem (2). Numa tal perspectiva, Binswanger estudou
particularmente a esqui zofrenia, considerada por ele como uma transformação das
"estruturas espe cíficas" da condição mesma de ser. Se o esquizofrênico é
verdadeiramente dividido, é que nele "domínios vitais", desligados da existência,
constituem como uma ameaça estranha para o si (a região mais íntima do ser). Não
aceitou os fundamentos de seu ser e seu Dasein, para fugir da angústia exis tencial,
permanece apegado a ideais inacessíveis. Por não ter sabido dominá lo, seu destino não
é autêntico, e sua história não passa de local de encontro das circunstâncias e das
situações(
(1) Op. cit., pág. 139.
(2) Grundformeti una Erkennt,,is menschlichen Datei,,.,, Zurique, Niehans, 1953;
Ausgew Vortrage und Aufsdtae, Berna. Franeke, 1955. CL Henri NIEL "La
psychana!yse enistentiale de Ludwig Binssvanger" , Critique, out. 1957.
(3) Schizophrenie, Neske, Plullingen. 1957.
As idéias de Binswanger estiveram no centro das discussões havidas no iv Congresso
Internacional de Psicoterapia, reunido em Barcelona de 1 a 7 de setembro de 1958, cujo
tema era precisamente "Psicoterapia e análise existencial".
A importância da experiência vivida foi igualmente muito bem posta em relevo pelo
psiquiatra francês, de origem russa, Eugène Minkowski, autor em 1933 já de uma
importante obra de subtítulo significativo: "Etudes phénoménologiques et
psychopathologiques" (1), Invocando ao mesmo tempo Bergson e Husserl a seu favor,
Minkowski - em quem a experiência clínica alia-se a uma vasta cultura filosófica -
recorre, para a consideração das psicoses, à experiência imediata autêntica, isto é, ainda
não deformada pelos métodos e pelo aparelhamento científicos. Nessa perspectiva, o
"tempo vivido" torna-se para ele uma noção central; a "sintonia" (2) representa a seus
olhos a expressão da harmonia entre o ritmo do desenrolar das coisas e o da duração
subjetiva; por isso o "contato vital" com o meio e os acontecimentos, que remete ao
impulso vital bergsoniano( lhe parece o elemento essencial. Como esse contato é presente
no sintônico, deficiente ou ausente no esquizo tímico, a maneira diferente de eles
"viverem" o tempo permite a Minkowski ampliar e aprofundar ao mesmo tempo a
explicação das afecções mentais, muito particularmente as da esquizofrenia e da psicose
maníaco-depressiva:
essa maneira está submetida no esquizofrênico ao que Minkowski chama de "princípio de
justaposição", por falta justamente de contato vital com o mundo objetivo, enquanto que o
"princípio de penetração", por mais que garanta a saúde mental do sintônico, pode
transformar-se no maníaco exci tado numa espécie de precipitação febril, assim como, ao
contrário, estagnar em suas fases depressivas.
A influência exercida pela fenomenologia sobre as ciências psicológicas comporta
muitos outros aspectos. Consultar-se-á com proveito a esse respeito a comunicação que
sobre o assunto consagrou o Dr. A. Hesnard, então presi dente da Sociedade Francesa de
Psicanálise( o qual declarou:
"Pela primeira vez na história da cultura, um movimento filosófico(S), acessível ao
psiquiatra, afirma que a consciência, vida intencional, é ao mesmo tempo fonte de
significação e de valor e meio do universo; que todo ser humano pensa e existe, não em,
mas por seu meio humano. Doutrina essencialmente humanista, à qual a psiquiatria,
ciência do homem, não poderia ficar indiferente."
3a) A psicologia fenomenológica
na obra de Jean-Paul Sartre
Sartre, que estudou o pensamento de Husserl em Berlim, no decurso dos anos 1933-
1934, no Instituto francês onde sucedera a Raymond Aron, teve
(1) Le lempa ' Paris, d'Artrey, 1933; igualmente: La sd,izuphrénie. Paris, Payot, 1927.
(2) CI. cap. XXII. §6.
(3) CI.eap. XIX.
(4) Apport dela phénoménologie à/a psvrhiatrie coa femporai'le (Rapport au Congrès de
Psychiatrie rt de Neurologie de langue française, LVIIe Session, Tours, 8-l3juin 1959),
Masson ei éditears.
(5) O Dr. HESNARD pensa aqui menos em HUSSERL do que em MERLEAU-
PONTY.
406
407
seu próprio pensamento animado desde o início( 1) pela exigência de esclare cer do
ponto de vista fenomenológico certas grandes manifestações do com portamento
humano. No pensamento husserliano viu um método que permitia remontar das
manifestações particulares do comportamento, pelas quais o homem se realiza como
ser-no-mundo, àquio que funda a unidade sintética da sua existência. O psicólogo,
observava Sartre, não se compro mete. Aceita do homem uma noção inteiramente
empírica e, cuidoso de uma ciência positiva, recorre à experiência entendida de duas
maneiras: exterior, dada pela percepção espaço-temporal dos corpos organizados, e
interior, fornecida pela introspecção. Mas independentemente do fato de que alguém
pode sempre perguntar-se se não haveria outras experiências possíveis (das essências ou
dos valores, por exemplo, ou experiência religiosa), resta, do ponto de vista
metodológico, a questão de saber se os dois tipos de experiên cia, admitidos geralmente,
são complementares, se devem ser subordinados um ao outro, ou se um dos dois deve ser
afastado.
Os psicólogos não estão realmente de acordo a não ser sobre a necessi dade de partir dos
fatos, isto é, do que se encontra no decurso de uma pesqui sa, e que se apresenta como
um enriquecimento em relação aos fatos anterio res. Não se pode, por conseguinte,
esperar dos fatos que eles próprios se orga nizem numa totalidade sintética significante:
"Os piicólogos não percebem, com efeito, que é tão impossível atingir a essência
acumulando acidentes, quanto chegar à unidade acrescentando cifras à direita de 0,99. Se
sua finalidade é apenas acumular conhecimentos de pormenor, nada há que dizer;
apenas, não se vê o interesse desses trabalhos de colecionador. Se, porém, em sua
modéstia, anima-os a louvável esperança de que, com base em suas monografias, será
feita, mais tarde, uma síntese antropológica, estão em plena contradição consigo(
Estudando particularmente o imagiiu$ rio e a emoção, Sartre entendeu mostrar que a
experimentação e a medida não nos poderiam esclarecer de fato a respeito deles. Pois, a
imagem, na medida em que é "ausência de objeto que pretende fazer-se passar por
presença de objeto", não é um conteúdo da cons ciência, mas uma operação em que ela
se engaja toda inteira; assim como a emoção é um ato total da consciência na sua relação
ao mundo. Segundo os princípios e os métodos dos psicólogos, o conheciment o
da emoção pode apenas acrescentar-se do lado de fora aos outros conhecimentos da vida
psíquica; ela pode apenas ser admitida como um fenômeno sui generis em relação a
outros (atenção, memória, percepção, etc.), sem mesmo que se possa assim desvendar
realmente sua ligação essencial com eles. E do mesmo modo que é pela experiência que
se atribuem emoções ao homem, é a ela que se recorre para estabelecer-lhes os limites e a
definição dela mesma. Tratar-se-á, por conseguinte, de determinar os fatores desse
estado complexo, distin guindo especialmente suas manifestações corporais e o estado de
consciência propriamente dito, com vistas a formular certas leis. E a essa pesquisa
fundada na observação dos processos da emoção que Sartre opõe um proceder
fenomenológico que tem por objeto aquilo que seriam as estruturas essenciais da
"realidade humana". Como Heidegger, vê na emoção uma das grandes
(1) L 'im P.U.F. 1936; E d',rne héorie des émotio,,s, Hermann et 1939.
(2) Esq d th des ,eol,o, 2e ed. 1948, pág. 5.
atitudes humanas, considerando que por essa razão o estudo dela pode ser
particularmente esclarecedor. Ao nível dos fatos, certas teorias estabeleceram a respeito
dela uma relação causal que privilegia o aspecto interior, atribuindo a discordâncias nas
representações esses fenômenos afetivos que constituem a emoção: palidez, rubor,
tremura, lágrimas, suor, diarréia, etc. Outras teorias, muito particularmente a de William
James, inverteram o processo, ao pretenderem que o distúrbio orgânico era a causa e,
não, o efeito da emoção. Quaisquer que possam ser os progressos registrados desde então
pela psico fisiologia, em particular quanto ao papel representado pelos centros básicos do
cérebro, e que tornam caduca a teoria periférica de James, trata-se sempre de uma
explicação que recorre aos fatos, ao passo que Sartre entende revelar a significação da
emoção. E o que ela significa, é a própria consciência em uma de suas atitudes essenciais.
No caso, uma atitude "mágica", concretizada por uma "degradação espontânea e vivida
da consciência em face do mundo". Por isso os psicólogos que abordaram o estudo da
emoção em termos de condutas o interessam mais. Certas análises de Pierre Janet e de
Kurt Lewin lhe parecem suscetíveis de uma interpretação em apoio a suas preocupações
fenomenológicas. Sua critica dos modos de ver de Pierre Janet, por exemplo, constitui
mais uma correção do que uma oposição. O psicólogo francês estudara a emoção pelo
ângulo das condutas, cuidoso de salvaguardar o aspecto psíquico do fenômeno, mas sem
abandonar por isso o terreno da objetividade científica; e sua concepção de uma força
psíquica diversamente distribuída segundo os indivíduos o levara a ver na emoção a
passagem de uma conduta adaptada a uma conduta inadaptada ou de "malogro". Segundo
Sartre, essa passagem permaneceria ambígua no pensamento de Janet, em razão de uma
hesitação quanto à intervenção da consciência.
O papel desta não se limita a "ter consciência" dos processos fisiológicos da conduta de
malogro, pois só ela possui o poder de finalizar a emoção e dela fazer uma verdadeira
"conduta", isto é, conferir-lhe o sentido de um malogro em relação a uma outra conduta.
A sem-razão de Janet teria consistido, em suma, em justapor duas concepções, uma
mecanicista, outra subrepticia mente finalista. Quando relata, por exemplo, o caso de
pacientes vindos a ele para falarem de si mesmos e que, não podendo realizarem suas
declarações, acabam rompendo em soluços ou atacados de crise de nervos, sua posição
não lhe permite decidir se tais distdrbios se originam porque esses doentes não podem
dizer nada, ou para que nada digam. De seu lado, Sartre não hesita em acentuar
inteiramente a intencionalidade, considerando que a emoção é um sistema utilizado para
disfarçar, para substituir uma conduta que é repelida. Não se poderia, julga ele, explicar
de outro modo as diferenças qualitativas da emoção; compreender por que há diversas
condutas de malogro, podendo um indivíduo reagir a uma brusca agressão pelo medo ou
pela cólera. Para Sartre, uma emoção particularizada representa um meio particular de
eludir uma dificuldade, uma escapatória, um logro de certo tipo. Diante de uma situação
que parece indestrinçável, diante de um perigo que parece insuperável, ela surge como
uma conduta mágica de evasão. Se a jovem que consultava Janet( 1) foi tomada de uma
crise de nervos no momento em que lhe falava reservadamente, é que se pôs assim na
impossibilidade de prosseguir, e sua conduta mágica tinha como objetivo comover o
médico,
(1) Cf. Dei ' 1 'extase (1926). ci. igualmente L 'obsension et la poychasténie, 1903.
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transformar-lhe a impassibilidade de cientista em interesse afetivo. Sua conduta visava a
eludir a responsabilidade que a situação comportava. Enquanto está agitada por lágrimas
e soluços, é-lhe tirada toda a possibili dade de falar, e essa é uma maneira de fugir à
sensação aflitiva de que o ato estava realmente em seu poder( 1)
Em suma, na perspectiva de Sartre, o sujeito utilizaria sua energia para criar uma
situação fictícia, transformando sua maneira de estar presente no mundo; e seu corpo
representa, "mímica", essa transformação, a qual pode chegar até à perda dos sentidos
em face de um perigo, o que equivale a suprimir este último como objeto de
consciência. E preciso, pois, ver na conduta "mágica" a evasão de uma situação real,
negada como situação pre sente por um recurso ao imaginário.
Comentando a esse respeito os trabalhos dos Gestaltistas, particular- mente os de Kurt
Lewin( Sartre neles vê a prova de que a cólera, por exem plo, não é mais instinto que
hábito ou cálculo estudado, mas a solução brusca de um conflito, um modo de cortar o nó
górdio, com vistas a obter sem grande dificuldade uma certa satisfação. E o caso da
pessoa que rasga uma folha que contém uma exposição incompreensível para ela; ou
daquela que se irrita em uma discussão no momento em que lhe faltam os argumentos. A
única desrazão dos Gestaltistas está em não explicarem realmente a passagem de uma à
outra forma, por exemplo, do estado de procura ao de cólera. Pois, o processo não pode
ser explicado senão com estabelecer primeiro a consciência, cuja atividade sintética
rompe e reconstitui formas continuamente, e é a única capaz de explicar a finalidade da
emoção.
Todas as análises de Sartre, sempre penetrantes, mas propensas a excessiva
esquematização, tendem a provar que as condutas humanas se desenvolvem sempre
contra um fundo de consciência. Esse princípio metodo lógico é-lhe o fundamento tanto
da crítica à psicanálise freudiana quanto da teoria da má-fé. Se dá grande importância ao
psiquiatra vienense Stekel, é sobretudo porque este, com base em sua própria experiência,
acabou por concluir que o núcleo da neurose era, na realidade, consciente( Contra Freud,
afirma que uma tendência recalcada só pode "disfarçar-se" mediante um projeto velado
de disfarce. A sem-razão de Freud foi hipostasiar, "coisi ficar" esse processo de "má-fé",
ligar-lhe as articulações (censura e recalque) numa unidade
mágica, à maneira daquela que, na participação primitiva, une a pessoa env'ultada à
figurinha de cera modelada à sua imagem( A psicanálise freudiana, segundo Sartre, que
a interpreta muito mais literal mente que Merleau-Ponty, é indevidamente objetivista
(ela introduz como coisa a libido) e causal (admite uma ação mecânica do meio social
no sujeito). A simbólica geral por ela forjada para a interpretação dos sonhos é fundada
nessa "coisificação" da vida psíquica. A psicanálise freudiana, Sartre opõe uma
psicanálise "çxistencial", à qual atribui como objeto, não descobrir um
(1) Esquose.... op. cit., phg. 37.
(2) Cf. nosso cap. XXIII, 3, e.
(3) "Não acredito no inconsciente; nele acreditei em meu primeiro período, mas, após
minhas experiências de trinta anos, concluí que todos os pensamentos recalcados são
pré-conscientes (para-conscientes) e que os doentes têm sempre medo de ver a verdade..
." (Wilhetm STEKEL, La femme frigide, trad. do alemão pelo Dr. Jean DALSACE,
N.R.F., Galtimard, 22r cd., 1949, pág. 20.)
(4) L 'Étre ei IeNéant, 4s cd., Galtimard, 1943, pág. 92.
dado desaparecido nas trevas do inconsciente, mas uma escolha livre. Uma "psicanálise
existencial" que considera como falaciosa toda simbólica geral, e que se preocupa
menos em organizar uma lista das condutas, das tendências e das inclinações, do que em
interrogá-las para decifrá-las (1).
Ao ímpor assim interdito ao inconsciente, Sartre deve atribuir a dimen são de consciência
a todas as manifestações psíquicas. No caso da emoção, vimos que é a própria
consciência que se faz consciência-emocionada, e não cabe, pois, buscar fora dela uma
significação puramente interna. Essa signifi cação longe está de ser sempre explícita, e
Sartre bem deve admitir graus de condensação e de clareza muito diversos. Francis
Jeanson( para apoiar a teoria de seu mestre de que a emoção é uma conduta da
consciência, embora a pessoa emocionada creia estar sujeita à emoção, invoca como
auxílio a hesita ção da linguagem. Não se pode dizer: emocionar-se por estar
emocionado, alegrar-se por estar alegre, entristecer-se por estar triste, zangar-se por estar
zangado? Essa ambigüidade revelaria que o ser humano muitas vezes acaba
apaixonando-se por seu jogo, compraz-se com as próprias reações aos aconte cimentos, e
bastaria, por conseguinte, admitir, para dar razão a Sartre, que nós "aí pomos do nosso"
desde o início. Em suma, trata-se de afirmar que a vida da consciência já se exerce no
irrefletido, num plano em que ela não se distingiie de seu próprio comportamento, pois
ela é então "consciência- mundo" antes do aparecimento da consciência clara, reflexiva;
trata-se de afirmar que na emoção essa consciência-mundo, que não poderia ser passiva,
é de certo modo fixada a uma intenção cujos efeitos são obtidos por meio de uma evasão.
Seja como for, resta que o problema: o que é a emoção? se formula unicamente ao nível
da consciência refletida, e que a emoção aí aparece como sofrida, ainda que se afirme
teoricamente que ela é intencional no plano irre fletido. Existe aqui um problema moral
capital, cuja discussão escapa ao nosso propósito. Convém, antes, lembrar a teoria do
imaginário segundo Sartre, estreitamente ligada à da emoção; pois ele vê uma
semelhança entre a emoção e a imagem mental.
Do mesmo modo como a emoção é uma atitude "mágica":
o ato de imaginação.., é um ato mágico. É uma encantação destinada a fazer aparecer o
objeto no qual se pensa, a coisa desejada, de maneira que se possa tomar posse dela.
Nesse ato existe sempre algo de imperioso e de infantil, uma recusa de considerar a
distância, as dificuldades(
Na perspectiva de Sartre (a consciência é o ato pelo qual nós visamos um objeto), é
preciso, evidentemente, libertar-se do que aparece então como um preconceito, isto é,
atribuir à consciência o valor de um continente que encerraria sensações, lembranças,
emoções, desejos, etc. Não há nada na consciência, e também não, com certeza,
imagens. Está-se, unicamente, em presença de uma consciência imajante, que visa o
objeto a seu modo, assim como há uma consciência perceptiva - sujeita aos objetos do
mundo em que
(1) Ibid., pág. 656.
(2) Le probtême morai et ia pexsée de Sartre, Paris, Édit. do Myrte, 1947.
(3) L'imoginaire. Gallimard, 1940. pág. 161.
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se acha situada - e uma consciência amante. Ai estão outros tantos tipos fun damentais
de comportamento, dos quais o universo romanesco de Sartre traz uma ilustração. As
situações vividas por seus personagens lembram muitas vezes a transformação do campo
psicológico descrita pelos Gestaltistas. na me dida em que a consciência afetiva
espontânea aí se revela idêntica à do objeto que inspira os sentimentos experimentados.
Assim é que aparece em Sartre romanesco um mundo fechado do desespero, um mundo
vazio do tédio, um mundo amargo do ressentimento, etc.
A "consciência imajante" é essencialmente a que recusa momentanea mente os objetos do
mundo, que se evade da sua situação real por uma mira negadora do tempo e do espaço
presentes. No sonho, culmina esta libertação com relação ao real; são as imagens e as
cenas do sonho que são consideradas reais, por mais absurdas que possam parecer ao
despertar, no tocante à cons ciência percipiente.
Isolado dos outros objetos do mundo, o objeto imaginado não pode ser observado mas
olhado; e esse olhar não aprofunda o conhecimentoS Sartre adota uma observação de
Alain sobre a imagem mental do Partenon: tentais vo-lo representar, credes vê-lo, e...
impossível vos é enumerar-lhe as colunas. Pobres em determinações, as imagens são
orientadas, recebem um sentido e uma consistência interna, por um saber implicito.
Aquele que revê a imagem de uma pessoa ausente, sabe que se trata dela, é a ela que seu
olhar se dirige. Existe aí uma relação vivida pela consciência; forma esta a imagem diri
gindo-se para um objeto que ela considera como ausente. Se Sartre insiste muito sobre a
essência da imagem como falsa presença, como niente(*) que quer passar por ser, e isso
forçosamente a um nível em que a distinção clara do percebido e do imaginário é, por
assim dizer, clara demais, é que sua análise fenomenológica do imaginário visa
essencialmente, como a da emoção, a fundamentar sua teoria mestra da absoluta liberdade
humana:
"Para que uma consciência possa imaginar, é preciso que escape, por sua própria
natureza, ao mundo, é necessário que possa tirar de si uma posição de recuo em relação
ao mundo. Numa palavra, é mister que ela seja livre" ' Se fosse possível
(*) Na presente análise sobre a psicologia fenomenotógica na obra sartriana, preferimos,
com vistas a maior clareza do pensamento, traduzir néa,U, néa,uiser e néantisation
respectívamente por niente, nientizar e nientização.
Assim procedemos em razão de as palavras portuguesas aniquilar, aniquilação ou anular,
anulação, por suas diferentes conolações, já não possuirem a simplicidade de significação
dos citados vocábulos franceses e se distanciarem, portanto, do espírito dos termos
usados por Sartre.
Podemos registrar, como tentativas de tradução para néantiuation os termos niil ou
nulificação do Pequeno Vocabulário da Língua Filosófica, de Armand Cuvillier, São
Paulo, Companhia Editora Nacional. 1976. Os dois vocábulos portugueses, porém,
podem lembrar, por suas raízes, outras palavras de sentido perfeitamente circunscrito
em filosofia ou no direito, como niitis,no, anufação, etc.
Recorremos, assim, ao termo ,,iente, cuja presença, como sinônimo de nada, na
literatura arcaica porto. guesa, alcança um tempo de vida superior a cem anos, conforme
podemos depreender das datações estabelecidas pelos que estudaram o passado do
nosso idioma. (Na Regra de São Bento do século XIV encontramos também a variação
niinie. Vide Rei', firas, de Filologia. V. p. 22.1 Sobre o termo, os interessados poderão
consultar, entre Outros, O Glossário de .4 demanda do Santo Graal, na edição
organizada pelo Padre Augusto MAGNE. Rio. liii' prensa Nacional, 1944; Lições de
filologia giortoguesu, de Carolina Michaelis de VASCONCELOS. Edição da Revista de
Portugal. Lisboa, 1946, págs. 313-314; "Contribuição para um dicionário do língua
poetuguesa arcaica". de José Joaquim NUNES (Revista Lusiia,ia, sol. XXVII. pág. 531
e C'asisigas de Santa Maria, de Afonso X. o Sábio, editadas por Waltee METTMANN.
Coimbra, 1959. 196!, 1964, 1972 (sobretudo, no sol. II. as cantigas 158 (verso 21) e 238
Iverso 401, e' ni, vol. III. a cantiga 288 (verso 43)).
Nientizar e nieneização é uma adaptação em portugués para os dois termos criados por
Sartre ao examinar em L 'Etre e, fe Néant o significado de ,sichten exposto
primeiramente por HEII3EGGER. (A. O. A.)
conceber uma consciência que não representasse, seria preciso concebê-la como total
mente enviscada no existente e sem possibilidade de compreender outra coisa que o
existente(')."
A imaginação aparece assim como a oposição da consciência ao mundo; ela manifesta
seu poder de negar seu "estar-lá" estabelecendo um "niente". Uma imagem é sempre, de
certo ponto de vista, o mundo negado; e o mundo recalcado a um plano de fundo,
permanece a título de horizonte sobre o qual se destaca a forma irreal da imagem.
Pela imaginação, a consciência se liberta momentaneamente do mundo, mas ela
permanece, não obstante, em situação no mundo. Disso resulta, segundo Sartre, um
caráter decepcionante da imagem, a qual não pode dar-nos um objeto sem nos assinalar
ao mesmo tempo a sua ausência. Essa ambigüidade define a própria consciência,
absolutamente livre, mas sem pre "em situação". O poder de negação da consciência
torna possível a imagi nação que manifesta empiricamente esse poder. Imaginar, é
"nientizar" o mun do, mas opondo-lhe algo de captável intuitivamente, mercê deste
escape que, se gundo Sartre, caracteriza a liberdade do sujeito em face da inércia do
objeto.
Essa captação intuitiva é para Sartre a fonte de todo conhecimento verdadeiro:
"Não há outro conhecimento a não ser o intuitivo. A dedução e o raciocínio,
impropriamente chamados conhecimento, são apenas instrumentos que conduzem à
intuição... E se se perguntar o que é a intuição, Husserl responderá, de acordo com a
maioria dos filósofos, que é a presença da "coisa" (sache) em pessoa à consciência. O
conhecimento é, pois, do tipo de ser que descrevemos no capítulo precedente sob o nome
de "presença à..." Mas nós havíamos estabelecido justamente que o em-si não podia
jamais por si mesmo ser presença. O ser-presente, com efeito, é um modo de ser ek-
estático do para-si. Somos, pois, obrigados a inverter os termos de nossa definição: a
intuição é a presença da consciência à coisa (2)."
Ele afirma a esse respeito:
o teor metafísico de toda revelação intuitiva do ser",
acrescentando que:
"... é precisamente o que devemos atingir e desvendar pela psicanálise (3)."
Em suma, sua "psicologia fenomenológica", que vai ter a uma "psica nálise existencial",
implica uma ontologia que vem dar em "esboços metafí sicos" (4). Do ponto de vista
filosófico, a questão é saber se a intuição à maneira sartriana garante realmente uma
"revelação" direta do ser, e com preender de fato o que a distingue da reflexão. Tal
questão não poderia ser abordada em algumas páginas, já que Sartre lhe consagra mais
de 700 em L 'Etre et le Néant.
II) L'irnaginaire. Gallimard. 1940, pág. 234.
(2) L 'Êire et le Nóant, op. cii., págs. 220-221.
(3) Ibid., pág. 695.
(4) Jbid. (conclusão).
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Enquanto pretende ser "fenomenológica", essa intuição não poderia ser assimilada à de
Bergson. Se este acreditou que sua intuição podia permitir um conhecimento absoluto
da realidade( i), era ilusão de sua parte, pois ele não atingiu por ela senão somente o
"psíquico" e, não, "a consciência conce bida como "para-si•"" (2):
"Os caracteres da duração psíquica são, para Bergson, um fato contingente de
experiência: assim são porque assim são encontrados, eis tudo(
Visto a teoria bergsoniana do conhecimento ter influenciado Proust, um trecho
consagrado por Sartre a esse último, em um capítulo de L 'Etre et le Néant sobre a
temporalidade, é particularmente esclarecedor. Pois, trata-se para ele de mostrar a
deficiência de uma análise que quer encontrar, "por decomposição intelectualista na
sucessão temporal dos estados psíquicos", elos de causalidade racional entre esses
estados:
"Assim que Swann, sem horror, podia representá-la em seu espírito, assim que revia
bondade em seu sorriso, e o desejo de arrebatá-la a qualquer outro não era mais
acrescentado pelo ciáme a seu amor, esse amor voltava a ser amorosa atração para as
sensações que lhe dava a pessoa de Odete, para o prazer que tinha em admirar como um
espetáculo ou em interrogar como um fenômeno o levantar de um dos seus olhares, a
formação de um dos seus sorrisos, uma entonação emitida com sua voz. E esse prazer
diferente de todos os outros acabara por criar nele uma carência, que só Odete podia
saciar com sua presença ou suas cartas... Assim, pelo próprio quimismo de seu mal,
depois de ter feito ciáme com seu amor, recomeçava a fabricar ternura, piedade por
Odete(
Como, pergunta Sartre, o ciúme pode "acrescentar" ao amor o "desejo de arrebatá-la a
qualquer outro"? Como esse desejo uma vez adicionado ao amor impede-o de voltar a
ser "amorosa atração para as sensações que lhe dava a pessoa de Odete"? Como pode o
prazer "criar" uma carência? O amor, "fabricar" esse ciúme que, em troca, lhe
"acrescentará" o desejo de arrebatar Odete a qualquer outro? E como, liberto desse
desejo, vai ele de novo "fabricar" ternura?
Estas questões lhe provocam este comentário:
"Proust tenta aqui constituir um quimismo simbólico, mas as imagens químicas de que se
serve são simplesmente capazes de disfarçar motivações e ações irracionais. Procura- se
arrastar-nos a uma interpretação mecanicista do psiquismo, a qual, sem ser mais
inteligível, deformaria completamente sua natureza. E, todavia, não é possível impedir- se
que nos mostrem entre os estados estranhas relações quase inter-humanas (criar, fabricar,
acrescentar) que permitiriam quase supor que esses objetos psíquicos sejam agentes
animados. Sob as descrições de Proust, a análise intelectualista assinala a cada instante os
seus limites: ela pode operar suas decomposições e classificações apenas na superfície e
num fundo de irracionalidade total(
(1) Cl. a "introduction à la mélaphysique" (Recue de Méraphysique es de Mora/e, ano
1903, pàg. 1 e seg.).
(2) LÊsreetleNéant, pág. 214.
(3) Ibid.
(4) de chez Sua,rn, 37s cd., II, pàg. 82. (É SARTRE quem sublinha.)
(5) L ÊUe es/e Néan(, pág. 217.
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Pelo que é preciso, pois, substituir essa psicologia fundada numa intui ção
'intelectualista"? Como remediar a isso?
"É preciso renunciar a decompor o irracional da causalidade psíquica: esta causalidade é
a degradação em mágico, num em-si que é o que é em seu lugar, de um para-si ek-
estático que é seu ser à distância de si. A ação mágica à distância e por influência é o
resultado necessário desse afrouxamento dos liames de ser. O psicólogo deve descrever
esses liames irracionais e tomá-los como dado primeiro do mundo psíquico( )."
Somos assim reconduzidos - independentemente da questão de saber o que se pode
validamente "descrever" em tal contexto - à ontologia dualista de Sartre; a do em-si e do
para-si vítima de uma "degradação em mágico".
Se a intuição é "presença da consciência à coisa" e sua revelação, na medida em que
"alguma qualidade" a faz ser à consciência, como conceber as relações do corpo pessoal
com a consciência? A consciência espontânea e irrefletida, diz-nos Sartre, "existe seu
corpo", que é aquilo pelo que as coisas se descobrem a ela. E somente por outrem que o
corpo se torna um objeto do mundo, uma coisa entre as outras coisas:
"Eu existo meu corpo: tal é sua primeira dimensão de ser. Meu corpo é utilizado e
conhecido por outrem: tal é sua segunda dimensão. Mas, na medida em que eu sou para
outrem, outrem desvenda-se a mim como o sujeito para o qual eu sou objeto(
É por referência ao ponto de vista de outrem que esse corpo se torna objeto para o
próprio sujeito:
"Existo, pois, para mim como conhecido por outrem - em particular em minha própria
facticidade. Existo para mim como conhecido por outrem a título de corpo. Tal é a
terceira dimensão ontológica de meu corpo(
Embora não possa tratar-se aqui de considerar toda a filosofia de Sartre, convém
precisar que nela o termo "facticidade", tomado de emprés timo à língua filosófica
alemã, designa o que existe como purofato para um ser que já está no mundo. A
"facticidade" do "para-si" (ou da consciência) designa a dupla contingência de sua
existência e de seu engajamento numa situação dada. Dito de outro modo, a existência
do "para-si" não é necessá ria, e também não é necessário que tome consciência de si
mesma neste país, nesta família, etc. Por conseguinte, a corporeidade deve ser concebida
essen cialmente como uma dialética entre o corpo-instrumento (projeto) e o corpo
facticidade (estar-lá), já que, de uma parte, "o corpo é o instrumento que eu sou",
e que ele é, de outra parte, "... o corpo original.., existido por cada consciência como sua
contingência própria(
Essa dialética da corporeidade lhe dá ocasião para análises muito sutis, especialmente a
respeito do "olhar" dos outros, o qual nos constitui de tal
(1) Ibid.. 3!, pág. 217. (2) lb pág. 418. (3) Ibid., págs. 418-419. (4) Ibid.. págs. 403, 427.
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L
modo que o "para-si" nos remete sempre ao "para-outrem"; pois é por inter médio de
outrem que o para-si individual está em condições de dar de si uma opinião como se
fosse um objeto. A vergonha, por exemplo, é sempre vergonha diante de outrem. Em
suma, como nós não podemos existir para nós senão existindo para outrem, resignamo -
nos a ver-nos pelos olhos dos outros.
Essas idéias conduzem Sartre, em L Être et le Néant, a considerar as relações humanas
sob um ângulo pessimista. No seu pensamento existe a retomada da famosa luta mortal
das consciências, de Hegel. Mas enquanto esse último a considerava somente como uma
via cru cis necessária ao advento e, finalmente, ao triunfo do Espírito, Sartre se compraz
em descrever a inter subjetividade sob o aspecto desse conflito das liberdades que se
utilizam "coisificando-se" em proveito delas mesmas e reciprocamente. Suas análises do
olhar, que é sempre um olhar frio de juiz ou de inimigo, um olhar que "desapossa",
caminham todas nesse sentido. "Alguém me olha" tem para ele o sentido de: torno -me,
nos projetos de outrem, meio para fins que ignoro. Eu sou escravo na medida em que a
liberdade dos outros tem poder sobre mim; e essa liberdade que se exprime pelo olhar dos
outros me escapa, pois não posso discernir senão seus corpos, assim como o outro não
pode constituir-me como coisa a não ser discernindo-me como corpo.
Se a Critique de la raison dialectique (1960) assinala neste ponto uma mudança na
perspectiva sartriana, nela introduzindo a dimensão social e a solidariedade que ela
instaura, suas obras anteriores e, muito especialmente, L 'Etre et le Néant, acentuavam
constantemente os danos que padecem neces sariamente as liberdades em conflito. Ser
tolerante? E precipitar outrem num mundo próximo da indiferença, despojado de certos
valores, O amor? E uma espécie de aposta precária, querendo, o que ama, que o outro
deseje ser amado deste amor que lhe é dado, com a pretensão, de ambas as partes, de
ser-lhes feita doação, não só de um corpo, mais de uma consciência, isto é, de uma
liberdade, O impasse é ainda mais nítido nas "condutas de malogro": no masoquismo,
onde o indivíduo "se renuncia" em vão em proveito do olhar e do projeto dos outros, sem
poder esquecer completamente seu projeto maso quista, isto é, uma complacência eivada
de má-fé; no sadismo, onde basta um único olhar da vítima, se não é implorante, mas
desprezador ou rancoroso, para lembrar uma liberdade que não se pode dominar e
reduzir, como o corpo, ao estado de puro objeto. Há ainda na obra de Sartre a descrição
de outras maneiras, mais sutis ou mais dissimuladas, de fugir esta liberdade que é o
próprio homem, visto não haver "natureza humana", e o homem ser liber dade e
totalmente liberdade. Uma liberdade projeto e escolha já no plano irre fletido, o que
equivale a suprimir todo e qualquer sentido à distinção geral mente estabelecida entre
atos livres e atos sob coação. Segundo Sartre, a gente se escolhe covarde, corajoso,
tímido ou ciumento, como se escolhe anti-semita ou bem vestido. Isso parece estar bem
em teoria. Concretamente, é evidente que a liberdade, no sentido de uma vontade que se
determina a isto ou àquio, se manifesta quando já existe um "caráter". Ora, esse caráter,
Sartre o dissol ve num "projeto fundamental" que não se sabe onde situar. Certamente
tem ele razão de desconfiar do ato livre onsiderado à maneira clássica: delibe ração
seguida de decisão; e de insistir a esse respeito sobre a importância do instante, que pode
ser o de uma "escolha existencial" decisiva. E tem certa mente razão também de haver
assinalado com vigor o que há de imprescrip
tível no ato livre: esta vontade de dizer "não" a toda forma de tirania, se as
conseqüências da recusa são plenamente aceitas. E sabido que os estóicos já: afirmavam
esse poder do homem. Mas sabe-se também que essa vontade era entre eles antes o que
se pôde chamar de nolontade. Eles admitiam uma natureza humana, estabeleciam uma
distinção capital entre interior e exte rior, e interpretavam essa
"nolontade" no duplo sentido de um domínio de si e de uma aceitação do destino fundada
em sua fé numa ordem universal. Sartre procede de modo totalmente diverso: toma de
empréstimo a Hegel e a Marx a idéia de uma vontade que deve "agir" sobre o real e adota
a fórmula de Jules Lequier: fazer e fazendo fazer-se. Mas a essência, para o próprio
Hegel, precede a existência, enquanto a rejeição por Sartre de toda a natureza huma na
pouco facilita a plena inteligência de sua posição. E manifesto que para ele a vontade - no
sentido habitual do termo - depende da "escolha funda mental", assim como, para o
psicanalista, ela depende do complexo. Ora, para este último, ju stamente, existe este
psiquismo inconsciente que Sartre não admite. Não se pode, pois, saber quando ocorre
pela primeira vez essa "escolha fundamental". Empiricamente, pode-se constatar que a
criança nasce com o grito, o que poderia dar ocasião a uma interpretação
"existen cial": ela manifesta assim a angústia de abandonar um meio acolchoado,
protegido, por outro, frio, barulhento, isto é, um desamparo, uma "dere licção" no
sentido heideggeriano... se se quiser. Resta, entretanto, que o "para-si" no sentido de
consciência, de interrogação, intervém a partir de algo que parece claramente
"inconsciente" em relação a ela. As crianças que vêm ao mundo não se comportam do
mesmo modo e parecem atestar logo de início "potencialidades" diferentes. Mas o que
importa também, é que o bebê não diz "eu" no decurso dos primeiros anos iniciais de
sua vida, enquanto já se forma um certo "caráter". Sartre nos diz que "a consciência do
corpo se confunde com a afetividade original" (1), embora estabelecendo teoricamente
uma radical separação entre o para-si e o em-si. Num trecho de L 'Etre et le Néant, diz-
nos a respeito do sadismo, um dos seus temas preferidos:
o sadismo não busca suprimir a liberdade daquele a quem tortura, mas a coagir essa
liberdade a identificar-se livremente com a carne torturada. Eis porque o momento do
prazer é, para o algoz, o em que a vítima renega ou se humilha. Com efeito, por maior
que seja a pressão exercida sobre a vítima, a renegação continua livre, ela é uma
produção espontânea, uma resposta à situação; ela manifesta a realidade humana;
qualquer que tenha sido a resistência da vítima e por mais tempo que tenha esperado para
pedir que fosse poupada, teria podido, apesar de tudo, esperar dez minutos, um minuto,
um segundo a mais. Ela decidiu no momento em que a dor se tornava insuportável. E a
prova dessa decisão está em que ela viverá mais tarde, no remorso e na vergonha, a sua
renegação. Assim, esta lhe é inteiramente imputável(
Teoricamente, isso tem ligação. Se a vítima resistiu dez minutos, poderia ter
"suportado" um minuto a mais... Mas decide ela ceder? O corpo pessoal não é uma
"facticidade" da mesma maneira que o corpo de outrem, e claramente parece que a
"nientização" do passado pela qual é constituído não possa ser tão radical quanto Sartre
o pretende.
(1) LÊfreetIeN pág. 395.
(2) Ibid., págs. 473-474.
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Dois anos após a publicação de L 'Être ei le Néant, Merleau-Ponty, testemunhando
embora sua admiração por um livro cujas descrições "formu lam de maneira aguda e
com nova profundidade o problema central da filoso fia tal como se apresenta após as
aquisições dos últimos séculos", assinalara muito bem a dificuldade levantada a esse
respeito pelo sartrismo:
"A nosso ver, o livro permanece por demais exclusivamente antitético: a antítese de
minha vista sobre mim mesmo e da vista de outrem sobre mim, a antítese do para-si e do
em-si figuram muitas vezes como alternativas, em vez de serem descritas como o lia me
vivo de um dos dois termos ao outro e como sua comunicação. No concernente ao su j' e
à liberdade, é visível que o autor busca primeiro apresentá-los fora de todo compro
misso com as coisas, e que se reserva estudar alhures a "realização" do niente no ser que
é a ação e que torna possível a morai. LEire ei te Néant mostra antes que o
sujeito é liberdade, ausência, negatividade, e que nesse sentido o niente é. Mas isso quer
dizer também que o sujeito é apenas niente, e necessita ser trazido no ser, não é
pensável senão num plano de fundo do mundo e, enfim, se alimenta do ser como as
sombras, em Homero, se alimentam do sangue dos vivos. Podemos, pois, esperar, após
L 'Etre ei le Néant, toda a espécie de esclarecimentos e de complementos (1)."
Não há dúvidas de que as preocupações que animaram as pesquisas de Merleau-Ponty
exerceram influência em Sartre. A este, por outro lado, a experiência da guerra havia
tornado sensível o problema do engajamento e da responsabilidade na história, e ele devia
acabar antes dando sua total adesão ao movimento revolucionário, reservando -se a
possibilidade de uma retratação futura de sua ideologia( Essa atitude provocou, desta
vez muito mais vivas, novas críticas de Merleau-Ponty, o qual denunciou o
"ultrabolchevismo" de Sartre. Pronunciar-se em favor do comunismo, rejeitando sua
filosofia, o que o priva de toda a justificação teórica, observava ele, deixa lugar apenas a
uma pura decisão de querer o que jamais foi, nem pode ser, concebido de outro modo do
que como libertação subjetiva relativamente às determinações exis tentes. Em suma, a
atitude de Sartre lhe pareceu uma maneira de instalar-se deliberadamente no imaginário(
Depois houve (1957), esboçando a Critique de la raison dialectique (1960), o artigo de
Sartre na revista polonesa Tworczosc sobre "marxismo e existencialismo", no qual afirma
que o marxismo é a única filosofia viva de nosso tempo, inexcedível enquanto não for
terminada a socialização do mundo, e que o existencialismo, apropriado para dar vida a
um marxismo fossilizado, lhe deve estar subordinado. Nessa trilha, o havia precedido
Merleau-Ponty, o qual concluía no já citado artigo de 1945: "Um marxismo vivo deveria
"salvar" a pesquisa existencialista e incorporá-la, em vez de sufocá-la" (4) Esse mesmo
motivo anima a Critique de la raison dialectique. A antropologia marxista precisa de um
fundamento humano que evite a desumanização que ameaça o saber, quando este se
objetiva a ponto de esque cer sua raiz existencial. Interrogar o homem e permitir que o
homem se inter rogue, tal é o papel da filosofia enquanto ideologia existencial. Nessa
alentada obra, cuja tipografia não facilita a leitura, Sartre aborda o
que ele chama de enigma da inteligibilidade histórica: a oposição da liberdade e da
necessidade,
(1) Seus et non-sens, Nagel, 1948, pág. 144 (La querelie de i'existentiai,s
(2) Les communistes et ia paix (Temps Modernes. jul..out. 1952).
(3) Les aventures de ia dia/evOque, Gailimard, 1955, cap. V.
(4) Seus e non-sens, op. ci pág. 154.
da interioridade e da exterioridade, e descreve o "lugar da história", isto é, o do choque
das liberdades individuais - que se tornam liberdades "comuns" em grupos - e das
inações contrárias que deixam nas instituições. Se é verdade que a pessoa se determina
em:
uma sociedade que se constrói continuamente destinando a cada um de seus membros
um trabalho, uma relação com o produto de seu trabalho e relações de produção com os
outros membros, tudo isso num incessante movimento de tota lização..
essas próprias determinações são:
"... mantidas, interiorizadas e vividas (na aceitação ou na recusa) por um projeto pessoal
que possui dois caracteres fundamentais: não pode, em caso algum, definir-se por
conceitos; enquanto projeto humano é sempre compreensível (de direito se não de fato).
Explicitar essa compreensão não conduz de modo algum a encontrar as noções abstratas
cuja combinação poderia restituí-la no saber conceitual mas em repro duzir pessoalmente
o movimento dialético que parte dos dados experimentados e se eleva à atividade
significante (1)."
Como a Critique de la raison dialectique interessa mais à filosofia e à sociologia do que à
psicologia, limito-me em assinalar que ela se funda na distinção estabelecida por Sartre
entre o grupamento-objeto, "coletivo inerte", "grupamento serial", e o grupo- sujeito, que
é pra.xis, liberdade indi vidual e comum ao mesmo tempo. A co nsideração do homem
como praxis, éo elemento novo trazido por essa última obra, na qual a transformação do
real pela ação constitui o essencial da pesquisa. A consciência desse problema já aparecia
na conclusão de L 'Etre ei le Néant. A despeito das análises "dialé ticas" da sociedade
humana e da história, à maneira brilhante do autor, não se poderia afirmar que todas as
dificuldades inerentes a suas perspectivas anteriores tenham sido superadas. Contra
Marx, Sartre leva particularmente e longamente em cont a a
"raridade" e a ameaça permanente que ela constitui para os homens, aos quais não
somente atinge exteriormente, mas afeta interiormente, influenciando a qualidade de
suas relações recíprocas.
A mudança está, sobretudo, na admissão de uma "totalização" da história, a respeito da
qual Sartre anuncia um tomo II da Critique de la raison dialectique, no qual tentará
estabelecer "que há uma história humana com uma verdade e uma inteligibilidade, não
considerando-se o conteúdo material dessa história, mas demonstrando-se que uma
multiplicidade prática, seja qual for, deve totalizar-se continuamente interiorizando em
todos os níveis sua multiplicidade" (2). Será um dia publicado tal tomo?
3b) A psicologia fenomenológica
na obra de Maurice Merleau-Ponty
O pensamento de Merleau-Ponty apresenta, evidentemente, muita analogia com o de
Sartre, vistos sua fraternização de início sob a bandeira da fenomenologia e, depois, o
interesse comum pelo marxismo: mesmo esforço
(1) Critique dela raison dia/ectique, pág. 105.
(2) Ibid., pág. 156.
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419
para penetrar e descrever o mundo vivido, pré-reflexivo; mesma vontade de submeter a
discussão todo esse dado que o hábito nos apresenta como sem mistério, remontando aos
processos que parecem os mais originários da ativi dade perceptiva. Mas o pensamento
de Merleau-Ponty é mais "carnal", menos doutrinário, animado com a preocupação de
nada sacrificar dos problemas, mais do que com a de impor-lhes unia teoria peremptória.
Para este autor, que tem uma espécie de fobia do pensamento que "sobrevoa", a
consciência está verdadeiramente engajada no corpo pessoal assim como em certa
experiência do real, e não poderia "decolar" desta validamente:
"O presente efetua a mediação do Para Si e do Para Outrem, da individualidade e da
generalidade. A verdadeira reflexão dá-me a mim mes'no, não como subjetividade
ociosa e inacessível, mas como idêntica à presença ao mundo e a outrem, tal como a
realizo agora: eu sou tudo o que vejo, sou um campo inter-subjetivo, não a despeito de
meu corpo e de minha situação histórica, mas, ao contrário, sendo esse corpo e essa
situação, e todo o resto através deles(')."
Suas análises penetrantes e minuciosas visam sempre a mostrar como podem adquirir- se,
a partir de uma experiência sem artifício, as significações projetadas sobre o mundo; a
provar que as experiências da consciêffcia, que implicam, para ele, também uma
ontologia, fundamentam, em última análise, todas as representações, fossem elas
científicas, da chamada reali dade "objetiva"; e suas referências à psicologia científica,
particularmente aos dados cinicos da patologia nervosa e mental, são por ele jitilizadas
num sentido que pretende reconduzir a essa experiência originária:
"Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se quisermos pensar
com rigor a própria ciência, apreciar-lhe exatamente o sentido e o alcance, ser- nos-á
preciso despertar antes essa experiência do mundo da qual é a expressão segunda. Essa
ciência não tem e não terá jamais o mesmo sentido de ser que o mundo percebido, pela
simples razão que ela é dele uma determinação ou explicação(
Eis por que nem a psicologia "científica" nem a psicologia "racional" podem, a seu ver,
dar respostas decisivas ao problema do comportamento, pois este apresenta já ao nível
da vida irrefletida um imbricado de signifi cações que devem ser interpretadas. A
respeito da psicologia genética de Piaget( observa que as crianças devem ter de algum
modo "razão contra os adultos ou contra Piaget", e bem que será preciso "que os
pensamentos bárbaros da primeira idade permaneçam como conhecimento adquirido
indis pensável sob os da idade adulta, se deve haver para o adulto um mundo único e
inter-subjetivo". Para que a luta das consciências, a partir do cogito, possa ter início, é
mister que elas 'tenham um terreno comum e se lembrem de sua coexistência pacífica
no mundo da criança"( O amor, nos adultos, não testemunha a persistência desse estado
de indivisão?
"Por mais que nossas consciências construam, através de nossas situações próprias, uma
situação comum na qual elas comunicam, é do fundo de sua subjetivi dade que cada um
projeta esse mundo "único" (1)."
Pouco me parece que Piaget, o qual mostra como a inteligência se forma incorporando
estruturas anteriores, pretenda que nada subsista dessas últimas. A divergência se prende,
sobretudo, à significação e ao alcance atribuíveis a essa inteligência cuja construção
descreve; a preocupações de ordem totalmente diferente, lógicas e intelectualistas em
Piaget, ontológicas e existenciais em Merleau-Ponty, cujo pensamento se move sempre,
mercê de uma dialética alimentada por uma tensão vivida, entre esses dois pólos que
constituem para ele uma experiência originária e a teoria do conhecimento. O que a
Merleau-Ponty interessa - a partir de uma natureza que não é somente objeto de
conhecimento, mas um terriço donde procede a distinção lógica do sujeito e do objeto - é,
essencialmente, o comportamento entendido como uma maneira para o homem de
realizar-se como "subjetividade encarnada", de projetar-se para o mundo a partir de uma
situação. Um mundo sempre dado, mas sempre inacabado e ambíguo, fosse apenas
porque resulta de nossas percepções e das de outrem, e porque é da confrontação delas
que surge um sentido. Equivale a dizer que Merleau-Ponty repudia todo "sistema" à
maneira clássica, para introduzir uma descrição da vida humana em termos de
movimento e de relação:
"A existência é indeterminada em si, por causa de sua estrutura fundamental, na medida
em que é a própria operação pela qual o que não tinha sentido adquire sentido, o que
tinha apenas sentido sexual adquire uma significação mais geral, o acaso se faz razão,
enquanto ela é retomada de uma situação de fato. Chamaremos de trans cendência este
movimento pelo qual a existência adota e transforma uma situação de fato(
A existência nunca compreende a totalidade do ser e do tempo, mas ela está sempre
situada no ser e no tempo. Daí uni novo aspecto dessa ambigüi dade que, segundo
Merleau-Ponty, não é uma imperfeição da consciência ou da existência, mas sua
definição(
"Se digo que estou encerrado em meu presente, como, bem pensado, passa-se por
transição insensível do presente ao passado, do próximo ao longínquo, e como é
impossível separar rigorosamente o presente daquilo que é somente apresentado, a
transcendência dos longínquos ganha meu presente e introduz uma suspeita de irreali
dade até nas experiências com as quais julgo coincidir. Se estou aqui e agora, não estou
nem aqui nem agora(
Para formar um mundo, não podem as coisas e os instantes articular-se um sobre o outro a
não ser através "deste ser ambíguo que se chama uma subjetividade"; não podem tornar-
se co-presentes senão de um ponto de vista e em intenção. E essa preocupação
permanente de uma subjetividade encar
(1) Phbwmb GaIIim*rd, 1945, pág. 515.
(2) Ibid.. págs. 11-111.
(3) Cf. nosso cap. XXII, § 5.
(4) Ph de 5 op. cü.. pág. 408.
(1) Ibid., pág. 409. (2) Ibid., pág. 197. (3) Ibid., pág. 383. (4) Ibid., pág. 382.
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nada que orienta sua interpretação da psicanálise. Ele lhe atribui o mérito de haver
assinalado a importância da sexualidade, considerando que é nela que o homem projeta
sua maneira de ser com respeito ao mundo e aos outros:
'Se a história sexual de um homem dá a chave de sua vida, é porque na sexuali dade do
homem se projeta sua maneira de ser relativamente ao mundo, isto é, relativa mente ao
tempo e aos outros homens(i)."
e a noção de "complexo", entendida como estrutura de consciência lhe parece válida
para designar o núcleo a partir do qual o comportamento do sujeito adquire um sentido,
ao mesmo tempo em que constitui para ele a fonte de toda significação.
Sua interpretação do freudismo é muito livre, pois se trata para ele de repensar em
termos de verdadeiras condutas as descrições psicanalíticas:
o apanágio do freudismo é claramente de mostrar.., que não há instinto sexual no homem,
que a criança "perversa polimorfa" estabelece (quando o faz) uma atividade sexual
chamada normal, somente ao termo de uma história individual difícil. O poder de amar,
incerto de seus instrumentos assim como de seus objetivos, caminha através de uma série
de cercos que se aproximam da forma canônica do amor, antecipa e regride, repete-se e
se supera sem que se possa jamais pretender que o amor sexual chamado normal nada
seja senão ele próprio. O vínculo entre o filho e os pais, tão poderoso para iniciar como
para retardar essa história, não é, ele próprio, de ordem instintiva. E para Freud um
vínculo de espírito. Não é porque o filho tem o mesmo sangue que o dos pais, que ele os
ama; é porque se sabe saído deles ou os vê voltados para ele, que, pois, se identifica com
eles, concebe-se à imagem deles, concebe-os à sua própria imagem tde filho]. A realidade
psicológica última é, para Freud, o sistema das atrações e das tensões que liga o filho às
figuras parentais, depois, através delas, a todos os outros, sistema
esse no qual o filho ensaia, alternativamente, diferentes posições, das quais a última será
sua atitude adulta(
Mesmo se seu positivismo não lhe permitiu escapar a explicações causais e objetivas,
Freud mostrou que todo ato humano, como o declara explicitamente em sua Introdução à
psicanálise, "tem um sentido". Tanto quanto reduz as superestruturas a infra-estruturas
instintivas, observa Merleau-Ponty, ele mostrou na infância uma vida adulta prematura;
tanto quanto explica o psíquico pelo corpo, mostrou a significação psicológica do corpo,
sua lógica secreta ou latente, com ligar, por exemplo, as condutas esfincterianas a uma
primeira esçolha das relações de generosidade ou de avareza que a criança estabelece
com outrem. E nesse sentido que Merleau Ponty quer despojar a noção de inconsciente do
que ela apresenta, na obra de Freud, de compacto demais, se se pode dizer, de
impermeável demais à cons ciência, a qual não pode senão conhecer o resultado dos seus
processos; isso para substituir à noção de inconsciente a de consciência latente ou
implícita, o que o aproxima assim, numa certa medida, da teoria sartriana da "má-fé";
mas de maneira menos radical, mais nuançada e em outra tonalidade, consi derando que é
preciso levar em conta uma "existência carregada", que não
(1) Ibid., pág. 197.
(2) L'homme ri /adi'rrsit conferência nas Rencontres Internationales de Genebra de 1951
publicada no volume: La connaissance dei 'hvmme au xXr si/de. Editions de Ia
Baconnière, Boudry.
pode jamais recuperar-se inteiramente e adquirir sua transparência exterior. Uma
"percepção ambígua" estaria na origem dessa consciência implícita não conceitual, "a
qual roça seus objetos, elude-os no momento em que vai propô los, leva-os em conta, tal
como o cego os obstáculos.., e subtende nossos atos e cõnhecimentos explícitos" (l),
Em resumo, o que Merleau-Ponty toma de empréstimo à psicanálise assim interpretada,
invocando ao mesmo tempo a análise existencial de Bins wanger( é a idéia de que "o
espírito passa no corpo assim como inversa mente o corpo passa no espírito" (3),
Que pode, porém, significar esse termo espírito, numa teoria que reduz todo o psiquismo
à "estrutura do comportamento"? Simplesmente uma nova forma de unidade.
Embora valendo-se dele nesse caso, Merleau-Ponty consi dera, como Sartre, que o
vocabulário clássico é inadequado para explicar o comportamento, quer se trate de vida
interior ou exterior, de mecanismo ou de finalismo, etc, O behaviorismo watsoniano aqui
ficou aprisionado, ele que "decreta" em princípio a exclusão da dimensão interior. Por
isso Merleau Ponty julga a respeito dele que o que há "de são e de profundo" na intuição
do comportamento, isto é, "a visão do homem como debate e "explicação" perpétua com
um mundo físico e com um mundo social", se acha compro metido por uma "filosofia
ilsdigente"( A seu ver, se a distinção do psíquico e do somático é justificada em
patologia, perde seus direitos quando se trata de compreender o ser normal, isto é,
integrado, porque nele os processos somáticos não se desenrolam isoladaniente, mas
estão inseridos num ciclo de ações mais amplo. Não se trata de duas ordens de fatos
exteriores um ao outro, mas de dois tipos de relações dos quais o segundo integra o
primeiro:
"O espírito não é uma diferença específica que viria acrescentar-se ao ser vital ou
psíquico para dele fazer um homem, O homem não é um animal racional. A aparição da
razão e do espírito não deixa nele intacta uma esfera dos instintos fechados sobre si.
Distúrbios gnósicos que afetam a atitude categorial, traduzem-se pela perda das
iniciativas sexuais(S). A alteração das funções superiores atinge até as montagens
chamadas instintivas e a ablação dos centros superiores acarreta a morte, enquanto os
animais descerebrados podem nem bem nem mal subsistir.., O homem não pode jamais
ser um animal: sua vida é sempre mais, ou menos, integrada que a de um animal. Mas, se
os supostos instintos do homem não existem separadamente da dialé tica espiritual, de
modo correlativo essa dialética não se concebe fora das situações concretas em que se
encarna. Não se age com o espírito sozinho, O espírito nada é, ou é urna transformação
real e não ideial do homem. Porque não é uma nova espécie de ser, mas uma nova forma
de unidade, não pode repousarem si mesmo(
(It Ihid., pág.S8.
(2) Cf. P/o(,iooiéiio/ogie de/a pereepiiv cip. cii. 1. parte, cap. V, corps comme être
sexué".
(3) L ho,notr ei /'adcersité, isp. cii. pág. 57.
(4) La strxclare da corripvrteme,ii, 4r ed., P.U.F. 1960. pág. 3. (Pierre NAVILLE,
defensor em França do behaviorisnto, fluo podena. evidentemente, aprovar este
Julgamento de MERLEAU-PONTY. A indigência. retor que ele, está muito mais "no
filósofo obsedado pela ontologia". Ele afirma que a dialética se degradou de HEGEL a
HEIDEGGER e que o comportamento "dialético" de MERLEAU-PONTY, a-causal e
antimecanista, é, na realidade, um comportamento "místico": "Tal é o círculo vicioso da
psicologia existencial, se se pode dizer. Por esse caminho esquisito, MERLEAU espera
reabsorver as aquisições positivas do behaviorismo nas belas taga telices da filosofia
clássica." (Pierre NAVILLE, Les cvinditions de la /ibcrté, Paris. Edil. du Sagiltaire,
1947, pág. 87.)
(5) K. GOLDSTEIN, Der Au/bati e/is Orgunisn,ns, 1934, pág. 301 (trad. francesa La
stroittird iA' /'orga Galhmard, 1951). (MERLEAL-PONTY muito deir ai,s trabalhos dc
GOLI)STEIN, e isso rcci,nlteceu plenamente.)
(6) La si,'ucturr da comportenne rip. dii., pág. 196.
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Merleau-Ponty pensa que o novo conceito do homem, tal como é posto em evidência
pela filosofia, pela psicologia, pela literatura, pela arte e pela politica de nosso tempo,
faz romperem-se as tradicionais barreiras do espiri tualismo e do materialismo, do
otimismo e do pessimismo. O homem não é um puro espírito; é um corpo; mas um
corpo que sente e percebe, que prevê e transforma o meio em que vive.
Tal conceito implica, evidentemente, o da impossibilidade de atingir-se sozinho a
verdade, já que a percepção é co-percepção e o corpo próprio faz pai-te dà
intercorporeidade que nos revela uns aos outros. A verdade constitui- se na comunicação,
na relação infinita de cada qual com os outros e as coisas. Em tal perspectiva, é preciso
renunciar tanto à objetividade entendida como dada, quanto à absolutidade do sujeito,
pois este não é senão termo no processo da inter.subjetivação. Em outras palavras, se os
fatos estão sempre em relação com a consciência (isto é, fenômenos) a consciência é
sempre inter- relação de sujeitos que não são nem absolutos nem solipsistas.
O papel e o alcance atribuídos por Merleau-Ponty à noção de estrutura, também muito
devem, evidentemente, à Gestalttheorie, cujos trabalhos lhe parecem exigir um
requestionamento das condições e dos limites de um saber científico, muito
particularmente no domínio da psicologia animal. Retém das experiências de Kiihler que
elas assinalaram o fato de que as relações esti mulo.resposta eram condicionadas por
certa estrutura do universo animal considerado, e que uma descrição válida não poderia
fazer disso abstração. Os Gestaltistas, porém, segundo Merleau-Ponty, não souberam
tirar todas as conseqüências implicadas em suas pesquisas. Por estimarem as fórmulas
precisas, estudaram, de preferência, formas que põem em jogo funções senso - riais
anônimas, em detrimento das formas mais complexas que interessam à personalidade
inteira; formas mais difíceis de descobrir, na medida em que dependem menos
diretamente das condições exteriores dadas, mas que são mais preciosas para o
conhecimento do comportamento humano. Além disso, um preconceito científico levou-
os geralmente a crer que a totalidade dos fenômenos pertencia ao universo da física, e que
os progressos dessa ciência, ligados aos da fisiologia, permitiriam, finalmente,
compreender como as formas mais complexas repousam, em última análise, nas mais
simples (1).
Na realidade:
o que faz a diferença entre a Gestali do círculo e a significação círculo, é que
a segunda é reconhecida por um entendimento que lhe dá existência como lugar dos
pontos eqüidistantes de um centro; a primeira, por um sujeito familiar com seu mundo,
e capaz de tomá-la como modulação deste mundo, como fisionomia circular(
É difícil, sem traí-la por um pensamento de "sobrevôo", resumir uma dialética tão
concreta e sutil como a de Merleau-Ponty, que se esforça para descrever a experiência
humana esposando todos os aspectos do dado. Pensa mento ambíguo, é sobejamente
sabido( por vezes desconcertante. A maneira mesma de abordar os problemas, numa
espécie de claro-escuro, a
(1) Sena ei non -sena. Paris, Nagei. 1948, págs. 165.196 (La métaphysique dans
!'hoinme).
(2) Phénoméno/ogie de la perception, op. ç pág. 491.
(3) Ferdinand ALQUIÉ: "Une philosophie de l'ambiguï(é" iii Recue Fo,,ia 1. Xl, pág.
59; A. de WAEHLENS, Une p/iilosop/iie de l'a L 'exjste,,i,&ri,ne de Maunee Meeleau-
Pontv, Lovatna. 1951.
meio caminho entre o imediato e o conceitual, entre a descrição e a explicação, segundo
se trate de estrutura ou de significação, e que pretende determinar um modo de existência
mista, ao mesmo tempo coisa e consciência, não poderia satisfazer a todos os espíritos.
Tanto na obra de Merleau-Ponty como na de Sai-ti-e pode-se perguntar se a vida
conceitual tira a sua vantagem plena. Aquele, ao terminar La structure du comportement,
deu-se claramente conta da dificuldade:
"Quais sào as relações dessa consciência naturada e da pura consciência de si?
Pode-se pensar a consciência perceptiva sem suprimi-la como modo original, pode-se
manter-lhe a especificidade sem tornar impensável sua relação à consciência intelec tual?
Se o essencial da solução criticista consiste em rejeitar a existência aos limites do
conhecimento e em reencontrar a significação intelectual na estrutura concreta, e se,
como o disseram, o destino do criticismo está ligado a essa teoria intelectualista da
percepção, no caso em que ela não fosse aceitável, seria novamente necessário definir a
filosofia transcendental de modo a nela integrar até o fenômeno do real. A "coisa"
natural, o organismo, o comportamento de outrem e o meu apenas existem pelos seus
sentidos, mas o sentido que neles surge, não é ainda um objeto kantiano, a vida
intencional que os constitui não é ainda uma representação, a "compreensão" que a eles
tem acesso não é ainda uma intelecção( 1)."
Ao final de sua Phénoménologie de la perception. ele declara:
"Nós reencontrávamos sob a intencionalidade de ato, ou tética, e como sua condi ção de
possibilidade, uma intencionalidade operante, já agindo antes de toda tese ou todo
julgamento, um "Logos do mundo estético", uma "arte escondida nas profun dezas da
alma humana", e que, como qualquer arte, não conhece a si a não ser nos seus resultados(
Merleau-Ponty pensa aqui em Husseri, mas pode-se, bem conside rando, lembrar
Benedetto Croce, que escreveu uma Estética como ciência da expressão e lingüística geral
(1900), precisamente para explicar uma "intuição pura" que ele considera como a forma
imediata e singela do conhecimento, anterior a todo juízo de realidade; mas Croce
elaborou em seguida uma Lógica como ciência do conceito puro (1905), que deu
relevância ao universal- concreto de Hegel, distinguindo de pseudoconceitos, para
explicar igualmente a autonomia do pensamento conceitual, e para justificar sua
capacidade de recuperar, de certo modo, no plano da vida refletida, as intuições da vida
imediata e os resultados dapraxis humana(
É, pois, em particular, além da diferença de intenção e de tonalidade, o problema da
natureza e do alcance do conceito que está em causa. Se Croce, na sua "filosofia do
espírito", resolve-o de um modo que pode ser criticado, esse problema parece-me, antes,
esbatido do que de fato elucidado no existen cialismo de Sartre e de Merleau-Ponty. Mas,
seja como for deste problema de ordem essencialmente filosófica, resta a constatar que
Merleau-Ponty, por sua reflexão lúcida e profunda sobre
(1) La stracuiu da comporiemeni, op. cii. - pág. 124. (Sublinhado por mim.)
(2) Phénoménologie dela percepilon. op. cii.. pág. 490.
(3) Ser MERLEAU-PONTY alude a CROCE em Signes (Gailimard, 1960), págs.
195.196, nada diz em Les aventures de la dialeciiqae (Gallimard, 1955) a respeito da
transforma,ão croceana da dialética de HEGEL, precedida de uma crítica, aliás
demasiado unicamente especulativa, do marxismo (Maierialinmo hisidr ieo e econo mia
marxista. t960).
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as ciências humanas, nutrida por uma informação rara dos métodos e resul tados delas,
exerceu influência não somente em certas pesquisas particulares, mas sobre a vida
cultural em geral, a exemplo de Bergson, Croce e Sartre. Filósofo "engajado", sua
excepcional erudição estava a serviço de um inte resse apaixonado por todas as formas
da atividade humana, e se tornou para muitos homens um pensador modelo.
Mais reservado que Sartre, não dispondo dos meios de expressão extra ordinariamente
variados deste último, ficou um pouco eclipsado aos olhos do grande público. Logo após
sua morte, Sartre lealmente restabeleceu a verda deira natureza de sua colaboração
(1)• Se a inopinada partida de Merleau Ponty, aos 53 anos, não foi sentida de fato senão
pelos que conheciam o homem e seu pensamento, é provável que o tempo tornará mais
amplamente sensível a importância de uma obra muito cedo interrompida e longe, sem
dúvida, de estar terminada. Uma obra que, no domínio que é objeto deste volume, levou
em especial experimentadores da psicologia animal e práticos em psicopatologia a
transformarem suas perspectivas (2).
Por isso Merleau-Ponty surge como um daqueles que mais contribuíram para
restabelecer, entre as ciências psicológicas e a filosofia, os laços que os
primeiros psicólogos entendiam romper a título definitivo.
Sua lucidez equilibrada foi, no caso, mais eficaz que a genialidade impulsiva de Sartre,
promotor cultural prestigioso mas que, enfim, desen coraja pelo dogmatismo de suas
posições assumidas e por suas guinadas. Hoje, não há mais dúvidas de que seus reflexos
podem levar a melhor sobre a sua reflexão e, quando seus "decretos" muito
manifestamente racionalizam seus engajamentos e suas aversões, pode-se admirar a
inspiração deles, muitas vezes generosas, sem se ficar convencido de sua justeza. O
caráter de revira volta de um tal pensamento é um escolho certo no plano teórico. Seria
mesmo necessário expor a peremptória teoria da liberdade que fundamenta em
particular a "psicanálise existencial" de L 'Etre et le Néant, já que a vasta "biografia" de
Flaubert( lhe consagrará, não a validez mas o desuso?
(1) "Merleau-Ponty vivant" ,n L T Mod 1961, n? 184-185.
(2) C cap. XXII, § 4, XXIV, § 2.
(3) L'id,o, d Gn d.' 1521 a (857(3 1., N.R.F.. Gallirnard, 1971-1972).
426

CONCLUSÃO
Ao cabo desta obra, espero haver mostrado os aspectos essenciais do drama do homem
ocidental para o melhor conhecimento de si mesmo; como chegou à elaboração de uma
psicologia separada de suas raízes filosóficas e esvaziada, na medida em que aspirava ao
rigor científico, da própria reali dade designada etimologicamente pelo termo; e qual foi o
desenvolvimento da nova ciência, ou melhor, das novas ciências psicológicas, dada
doravante a diversidade dos campos de investigação e a dos métodos.
Desde a época de Wundt, quando as pesquisas, refletindo a mentali dade positivista de
então, aplicavam-se ao estudo abstrato de fenômenos psíquicos e de funções encaradas
como elementares, profundas mudanças ocorreram, devidas, sobretudo, às revoluções
psicanalítica e gestaltista, que impuseram a exigência de estudar o homem não mais
desarticulado por uma artificial divisão por partes, mas em sua totalidade. Totalidade
essa sobre a qual resta a entender-se, já que essas mudanças não impediram o behavio
rismo americano de reduzir a psicologia a uma ciência do comportamento que se
mostrava objetiva a ponto de excluir toda referência direta à vida psíquica e espiritual
do homem; solução obtida mediante um "empurrãozinho", logo à primeira
controvertido.
Em resumo, o desenvolvimento da nova psicologia mostrou que seu objeto dificilmente
se prestava aos métodos das ciências naturais, que então se imaginavam em total solução
de continuidade com a filosofia. E aconteceu, até, que esta, expulsa pela porta, entrou
pela janela, em particular sob o aspecto da fenomenologia husserliana e do pensamento
de Heidegger; a primeira, obrigando a aprofundar os processos da percepção; a segunda,
427
tendo largas repercussões em psicopatologia. As perspectivas mudaram a tal ponto que
a fisiologia, longe de aparecer como modelo, tendeu ela própria a integrar-se numa
antropologia.
Seja como for, através das vicissitudes de sua história, a nova ciência ganhou um lugar
de eleição no crédito que as ciências humanas em geral conhecem.
Esta situação privilegiada, nas sociedades industriais, se prende a fatores diversos. Basta
pensar no prestígio de que gozam a psicopatologia e as psicoterapias, o qual pouco parece
abalado ainda pela "antipsiquiatria", de recente manifestação. No desarvorar das crenças
tradicionais, com ensina mentos minados de longa data, é precisamente para o psiquiatra,
o psicana lista ou o psicólogo-conselheiro que se continua a voltar para estas diretivas das
quais o padre e o pastor tinham outrora a exclusividade.
O papel das ciências psicológicas, encarado nesse aspecto, é tanto mais importante
quanto a sociedade contemporânea, não só multiplica as condi ções que perturbam o
equilíbrio nervoso e mental, mas aumenta as exigências de escolaridade e profissionais
impostas por qualificações, sempre mais diferenciadas, o que submete a rudes provas os
indivíduos dentre os quais saem os vencidos que vão engrossar a multidão dos
inadaptados. Tais condi ções são favoráveis, além disso, ao progresso da psicotécnica e,
até, dos testes projetivos e da caracterologia, aos quais se pede um diagnóstico apressado
das aptidões e das tendências.
Em suma, muitas necessidades práticas contribuem hoje ao desenvolvi mento da
psicologia.
No plano teórico, em relação à exigência de verdade, o problema de sua objetividade
científica se formula novamente.
Em dezembro de 1888, numa conferência na universidade de Genebra, onde era o
primeiro titular de uma cadeira de psicologia experimental, Théodore Flournoy
declarava:
"Quantos capítulos de psicologia dita científica, positiva, em cujas entrelinhas o
preconceito metafisico transparece a cada passo e cujo tom respira mais o opium
theologicum do que a serena indiferença da ciência em matéria de crença filosófica!" Tal
apreciação, ,nutatis mutandis, por antiga que seja, é menos inatual do que se poderia
crer à primeira vista. Pois, a psicologia, complicando-se e diversificando-se, interferindo
com as outras ciências, não cessou por isso de manter ambíguas relações com o
pensamento filosófico. A mudança, em relação ao clima cultural prevalecente no início da
Primeira Guerra Mundial, é, sobretudo, que os ostracismos recíprocos se atenuaram
muito, e que as pesquisas se orientam, em geral, para uma apreensão dinâmica e
multidimen sional do comportamento humano.
Todavia, essa nova orientação não impede a psicologia de compor, às vezes, com as
outras ciências, uma visão do mundo que constitui uma filosofia disfarçada na medida
em que pretende explicar de maneira exaustiva as condutas do homem, até mesmo sua
vida interior.
Assim a psicologia aparece doravante como uma espécie de Janus.
De um lado, ela se apresenta sob o aspecto de pesquisas inúmeras, que têm como objetivo
tanto a percepção quanto a função simbólica, o desenvol viniento da criança ou as
representações intergrupos, etc. Basta consultar as "memórias originais" e os exames
críticos publicados nos mais recentes números de L 'Année Psychologique, para se
convencer da tecnicidade de experiências efetuadas num domínio rigorosamente
delimitado, quer se trate de um rato submetido a um programa de reforço contínuo ou da
construção do espaço gráfico na criança.
Cabe admitir que todos esses trabalhos são outras tantas contribuições válidas dos
profissionais da psicologia à nova ciência, mesmo se podem, às vezes, fazer pensar, no
plano da cultura, na atividade de certos animálculos inofensivos no mundo natural.. -
Que nosso tempo seja o da especialização, não é o caso de se admirar, e a maioria das
pesquisas exige doravante um trabalho de equipe. O escolho está somente em que a
árvore impeça de ver a floresta, ou, neste caso especí fico, que a acumulação dos fatos
eclipse um problema que permanece essen cial: o que é o homem, o homem não como
coisa entre as coisas, mas como sujeito?
É, então, que aparece a outra face da psicologia, muito menos marcada de modéstia.
A pluralidade das ciências humanas nada tem em si de redibitória. É a própria condição
de seu avanço. Aí não reside a questão. Está em que, ao nível da interpretação, os que
não se confinam em pesquisas bem comparti mentadas, crêem-se, às vezes, sem respeito
para esta "vigilância" preconizada por Husseri com relação ao saber, autorizados a
encerrar o ser humano num esquema que revela, sob a capa da objetividade científica,
uma extrapolação à base de projeções. Este "reducionismo", esquecidiço do fato de que a
pessoa humana é uma variável independente, pode revestir aspectos diversos, ser tanto
biologismo quanto sociologismo, psicologismo quanto patologismo.
Se se tiver preocupação com um denominador comum às ciências humanas de nosso
tempo, poder-se-á encontrá-lo em particular na valorização da "corporeidade",
concebida de modo muito diverso mas num mesmo cuidado de superar o dualismo
tradicional da alma e do corpo.
Da reabilitação do organismo e de suas expressões atestam tanto o renascer de interesse
para com as práticas da ioga quanto a voga que têm as técnicas de relaxação, a
ergoterapia em clínica, a psicologia e certas terapias de grupos, com mét odos às vezes
próprios a escandalizar os profanos.
Tal tendência se enraíza, evidentemente, na mentalidade de nosso tempo, com o
progresso da sexologia a ir de par com a famosa "libertação sexual". As pesquisas de
Kinsey, lembradas na presente obra, parecem muito timoratas depois que Masters e
Virginia Johnson, seus reputados continua dores, entraram na psicologia por técnicas que
visam a restaurar, pratica mente, as deficiências e as variações nas condutas sexuais. É
lícito pensar que a nova mentalidade é preferível à da época vitoriana que conheceu
Freud, para sua infelicidade, segundo alguns; mas bem neces sário é constatar que a
caça aos antigos tabus introduz novos, como os do sofrimento e da morte, hoje em dia.
428
429
O problema da subjetividade profunda, que as perspectivas em que se inscrevem as
pesqusas resolvem de certo modo, fosse subrepticiamente, ou que elas indevidamente
ignoram, ressurge sempre, quer se queira ou não.
Lembrei que a tentativa de J. B. Watson de instaurar uma psicologia sem o recurso ao
"mentalismo", pareceu a muitos psicólogos uma espécie de aposta. Não se poderia dizer
que ela foi mal sucedida, visto que reaparece agora através da obra de Burrhus Frederic
Skinner.
Segundo o célebre professor americano de Harvard, Watson teve o mérito de afirmar que
a realidade humana, também ela, é explicável em termos de estímulos e respostas, e que
uma psicologia verdadeiramente cientí fica não precisa absolutamente da aparelhagem
criada pela superstição do mental. A única fraqueza do watsonismo seria uma informação
insuficiente quanto às conseqüências do condicionamento "operante"; pois tudo é questão
de meio, e a observação direta dos fatos, graças a uma "tecnologia do compor tamento"
em constante desenvolvimento, permite renunciar seriamente aos métodos hipotético-
dedutivos aplicados a processos erroneamente considera dos
afetivos ou mentais. Na medida em que se compreender melhor a interação entre
organismo e meio, será a variáveis acessíveis à observação que serão atribuidos efeitos
relacionados até o presente a fatores psíquicos. Pois, sendo todos os organismos
autômatos controlados pelo meio e o objetivo deles é a redução das tensões por respostas
adaptadas, a evolução mental é apenas o resultado de ensaios conservados por reforços.
Objetar-se-á que o homem é um ser que luta para sua liberdade? Ilusão, segundo
Skinner, pois essa "vontade de ser livre" nada mais é do que certos mecanismos de
comportamento próprio ao organismo humano, e cujo efeito principal é evitar ou fugir
os aspectos "aversivos" do meio natural e social. Debater em termos conceituais de
liberdade ou dignidade humanas, é fazer obstáculo aos progressos tecnológicos em
matéria de comportamento.
Resta a questão - se se hesita em identificar esses progressos ao progresso, sem mais - de
saber quem utilizará essa tecnologia e para que fins. Skinner não esquiva a questão, mas
sem poder certamente a ela respon der a não ser projetando, com talento, aliás, suas
esperanças e seus ideais, até mesmo suas próprias ilusões. Pois, se a pesquisa dos
"condicionamentos operantes" é uma coisa, outra é afirmar que o comportamento
humano possui mesma origem e mesma função que o dos animais; que é, em princípio,
idêntico ao do rato, cujo comportamento foi um dos primeiros objetos de estudo de
Skinner. Chi se contenta gode, como dizem os italianos. Mas restam forçosamente
espíritos aos quais não poderia satisfazer tal redução do homem a um esquema
unidimensional.
Nós vimos que as interpretações, de parte da psicanálise, se apresentam mais nuançadas,
pois que Jung já criticava nas teorias freudianas e adierianas o seu caráter "redutivo".
Há ainda epígonos de Freud a quem obsedam as pulsões a tal ponto de "explicarem" um
criador e sua obra em termos de homossexualidade, incesto, sadomasoquismo,
narcisismo, voyeurismo ou mega lomania. Mas são uma minoria e quase não contam. A
maioria dos autores que invocam a psicanálise a seu favor mostram doravante um espírito
muito aberto.
O que ainda é mais, a orientação aberta pela análise existencial de Ludwig Binswanger,
sob a influência do pensamento de Heidegger, floresce
hoje nas duas cidades que interessam essencialmente à história da psicanálise:
em Zurique, onde Médard Boss instaura, a partir da "abertura para o mundo", uma
medicina psicossomática que renova em profundidade a abordagem das doenças; em
Viena, onde Viktor Frankl se afirma, após Freud e Adler, como o promotor de uma
terceira escola vienense, denominada, um pouco curiosamente, logoterapia. Esta tem por
caracteristicas essenciais a distinção do psiquismo e do espiritual, a importância
atribuida ao poder humano de transcender-se, de aceder à liberdade e à
responsabilidade. Frankl opõe a Freud que o amor não é somente um derivado da
sexualidade inibida, nem a sublimação um simples resultado; e que a consciência, por
sua capaci dade de opor-se às convenções, aos valores e aos tradicionais, não pode ser
identificada ao superego. Se o homem é num sentido o produto da hereditariedade e do
meio, é também, e sobretudo, o ser que deve decidir por si mesmo. Diferentemente do
animal, não é informado por seus instintos do que deve fazer; e hoje, não sendo mais, de
modo diverso do homem de outrora, in formado pelas tradições, sente a tentação de um
refúgio no conformismo ou no totalitarismo. Frankl vê no que chama de "vazio
existencial", segundo ele sempre mais espalhado e que lhe parece como um desafio à
psiquiatria, um dos grandes males de nosso tempo. E dizer da importância que a
"logotera pia" confere ao sentido da existência, assim como à atitude adotada em face
de uma situação, pois o próprio sofrimento pode ser convertido em realização (Frankl
conheceu o horror dos campos da morte).
Vê-se que distância existe entre tal orientação e a de um Skinner.
Tudo bem considerado, através da pluralidade das ciências humanas emergem
tendências cujo critério de validez escapa à ciência como tal, pois reconduzem a uma
opção existencial dos pesquisadores. E o caso, diga-se de passagem, da atitude
dogmática, adotada a priori, por alguns dentre os que são a favor ou contra a
parapsicologia.
Quando concluía a primeira edição desta obra, invocando a figura do velho Sócrates
obsedado pelo problema do sentido, relevava o fato de que o homem, hoje como ontem,
se vê confrontado com um problema essen cial: o do espírito encarnado, ou, se se
prefere, o do poder fazer-se, ao mesmo tempo, sujeito e objeto; sublinhava, então, a
importância desse princípio originário da humanidade, o qual fundamenta todos os outros
assim como todas as interpretações. E observava, a esse propósito, que as ciências
psicológicas objetivam fatalmente essa subjetividade fundamental, até quando renunciam
a decompô-la em elementos discordantes e que se podem justapor, para dela falar em
termos de pulsões, funções, atividades ou campos; pois, todas as variantes introduzidas
na aparelhagem metodológica não podem explicar esse enigma primeiro que constitui a
emergência de um ser que dá um sentido a tudo o que ele observa e experimenta.
Essas observações não visavam, absolutamente, a minimizar a contri buição das
ciências psicológicas, própria a esclarecer, como nunca antes, vários aspectos do
psiquismo e do comportamento, mas visavam unicamente a negar-lhes o poder de
constituírem uma antropologia desprovida de postulados filosóficos.
Esta convicção não foi abalada pelo reproche de certos críticos segundo o qual a
psicologia como ciência do comportamento é estranha a tais preocu
439
431
pações. Pois, esta reserva se acha desmentida quando o psicólogo se arroga o direito de
reduzir a um esquema a totalidade do homem, isto é, deste ser que, embora
permanecendo ligado ao que o transcende, rompe incessantemente os limites nos quais o
quereriam encerrar.
432

BIBLIOGRAFIA SUMÁIUA
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(1) Do livro clássico de BRE'I há também edição reduzida: BreUs History
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1953. (J. B. O. P.)
(2> A obra de FOULQUIÉ e DELEDALLE foi posta em portoguês: .4 psicologia
contem pordoca, trad, e
notas de Haydée Camargo CAMPOS, vol. 74 destas "Atualidades Pedagógicas",
Companhia Editora Nac,onal, S3o
Paulo, 41 cd.. 1977. (J. E. O. P.)
(3) Também foi posto em portugués o tivro de REUCHLIN: Hist6ris da psicologia, trad.
de Bento Prado Júnior, vol. 56 da coleção "Saber atual", Difusão Européia do Livro,
São Paulo, 1959. (3. B. O. P.)
433
263,
335,
112,
164,
185,
208,
322,
258,
Diderot, 196, 203, 204, 205, 206-208, 211, 214, 215, 216, 217, 222, 232, 356
Diel, Paul, 300
Diels, Hermann, 18, 30, 31, 32
Dilthey, Wilhelm, 294
Diocles (de Caristo), 20, 83
Diógenes de Apolônia, 9,19-20
Diógenes (de Sínope), XIX
Diógenes Laércio, 31, 32, 53
Dostoievski, 351
Dottrens, Robert, 317
Duelos, 206
Dufrenne, Mikel, 366
Duhem, P.-M.-M., 314
Dunlap, Knight, 364
Duns Escoto, 109
Dupréel, Eu 29, 31
Durkheim, Emile, 7, 362, 363
Chauchard, Paul, 303, 310
Cheselden, Dr. William, 207, 216
Cícero, 53, 54, 58
Claparède, Edouard, 213, 220, 224, 276, 278, 279, 282, 316-31 7, 336
Cleantes (de Assos), 57, 58, 59
Clemente de Alexandria, 79, 85-86
Cleópatra, 166
Colombo, Cristóvão, 109
Colombo de Cremona, Realdo, 116
Comte, Augusto, 203, 240, 244, 267, 362, 390
Condillac, 188, 196, 208, 217, 221-224, 227, 229, 230, 231, 251, 252, 258, 278
Condorcet, 203, 357
Copérnico, 109, 123, 133
Corman, Louis, 353, 358
Corneilie, 356
Comer, George W., 383
Coste, Pierre, 174
Cousin, Victor, 164, 229, 233, 251, 252, 258, 267
Cowper, William, 187
Crisipo (de Solos), 57, 59
Croce, Benedetto, 245, 425, 426
Crutchfield, Richard S., 381
Cuvier (irmãos), 251
Cuvillier, Armand, 304, 404, 412
Ebbinghaus, Hermann, 276, 278
Ehrenfels, Christian von, 308
Elizabeth (princesa da Boêmia), 161
Empédocles, 9, 10,15-1 7, 18, 30, 32
Enciclopedistas, 192, 196, 203-204, 205, 214, 215, 218, 220, 233, 239, 251
Enesidemo, 11
Epicteto, 57, 60
Epicuro, 52, 53-57, 59, 66, 83
Erasístrato, 28, 83
Erasmo, 109, 198
Esquirol, 203
Estratão, 212
Eucken, Rudolf, 433
Euripides, 6, 22, 30
Eustacchio, Bartolomeo, 116
229, 267, 269,
Dalsace, Jean, 410
Damasco Penna, i. B., Xl, X 13, 30,
70, 105, 117, 144, 171, 207, 243,
272, 284, 297, 304, 308, 315, 317,
318, 344, 404, 433
Damasco Penna, Luiz, 13, 30
Danton, 356
Darwin, Charles, 226, 273, 318, 362, 364
Daubenton, Louis, 189
Daumas, 433
Debritt, Max, 251
Dela Harpe, J., 343
Delay, Jean, 277, 322, 433
Deledaile, Gérard, 272, 433
Demétrio Poliorcetes, 53
Demócrito, 22, 30, 41, 42, 52, 53,54
Descartes, 23, 86, 91, 105, 109,
117, 118, 130, 151-162, 163,
167, 174, 175, 176, 180, 181,
188, 193, 196, 201, 204, 207,
215, 223, 230, 233, 252, 257,
355, 401
Destutt de Tracy, 203, 229, 233, 251
Deutsch, Helen, 290
Dewey, John, 364
Fabre, 259, 324
Fabricio d'Acquapendente, 116
Faliopio, Gabriel, 116, 215
Fauriel, 232
Fechner, Gustav Theodor, 168, 224, 245, 268, 271, 272, 279, 305
Ferencsi, Sandor, 285, 290, 291, 292
Fichte, 112,245
Ficino, Marcílio, 110
Filloux, Jean, 250
Filo (de Alexandria), 65, 66-70, 79, 81, 85, 86.
Finck, Eugen, 402
Flaubert, 426
Floumnoy, Théodore, 250, 276, 277, 279, 282, 336, 428
Fontaine, 156
Fontenelie, 198, 224
Fome!, Auguste, 276
437
Foucault, Marcel, 271
Foulquié, Paul, 272, 281, 304, 433
Fraisse, Paul, 247, 343
Franck, Adolphe, 277
Frankl, Viktor, 431
Franklin, Benjamin, 191
Frederico II, 196, 198, 208, 239
Freud, Anna, 290, 349, 351, 358
Freud, Sigmund, 227, 228, 249, 250,
280-291, 292, 293, 294, 296, 297, 298, 300, 301, 302, 303, 308, 319, 337, 345, 348,
349, 352, 358, 359, 360, 363, 364, 365, 369, 370, 371, 372, 373, 375, 376, 377, 378,
383, 387, 389, 390, 396, 397, 399, 405, 410, 422, 429, 430, 431.
Fromm, Erich, 293, 360, 362, 370, 372-
375, 376, 377, 378, 398, 399
Frommel, Gaston, 250
Gaillat, Roger, 357-358
Galeno, 21,27-28, 114, 126, 187
Galilei, Galileu, 109, 112, 118, 130, 186
Galimard, Pierre, 25
Gail, Franz Joseph, 190, 255
Gallitzin (príncipe), 209
Galton, Francis, 314, 318
Gandillac, M. de, 401
Gardeil, 25
Gassendi, 153, 154
Gauguin, 356
Gebhard, Paul H., 383
Geets, Claude, 349
Gentile, Giovanni, 133, 134, 135, 136, 137, 245
Gervais- Rousseau, 353
Geulincx, 161
Gex, Maurice, 357
Gibelin, J., 249
Gide, André, 138
Gilson, Etienne, 84, 95, 100, 101, 102, 104,109
Gilson, Lucie, 401
Girod, Roger, 382
Goclenius, Rodolfo, XVII
Goethe, 113, 173, 289
Goldmann, Lucien, 341, 342
Goldstein, Kurt, 423
Górgias, 22, 29, 30,31-32
Gouhier, Henri, 251
Gourd, Jean-Jacques, 250
Gradi, Matteo Ferrari, 114
Grammont (duque de), 198
Griéger, Paul, 358
Guiart, Jules, 124
Guilherme de Occam, 109
Gujllaume, Paul, 308, 433
Guillotin, J.-I., 191
Guizot, François, 251
Gurvitch, Georges, 369, 389, 390
Guyénot, Emile, 309
Guzzo, Augusto, 132
H Paul, 352
Haeckel, Ernst Heinrich, 268
Hahnemann, Friedrich, 126, 190
Hall, Stanley, 272
Haller, Albrecht von, 190, 201, 202
Harlow, Harry F., 348
Hartmann, Eduard von, 250
Harvey, William, 116, 186
Havet, Jacques, 245
Hegel, 110, 113, 136, 137, 151, 173, 188, 203, 239, 240, 245,246-249, 258, 267, 273,
280, 355, 356, 362, 375, 378, 379, 403, 404, 405, 406, 416, 417, 423, 425
Heidegger, 9, 247, 375, 395, 402, 404, 406,408,423,427, 430
Helmholtz, Hermann von, 272
Helmont, Jan Baptiste van, 186
Helson, H., 388
Helvétius, Claude-Adrien, 196, 203, 205,207,208-211, 230
Helvétius, Mrne, 203, 208, 229, 251
Heráclito, 9, 10-13, 15, 30, 31, 46, 119, 136, 139, 275, 405
Herbart, J. F., 245, 270
Hermes Trismegisto, 66
Heródoto, 53, 55
Herófilo,27, 28, 83
Herriot, Edouard, 69, 70
Hertford (Lord), 239
Hesnard, Dr. A., 285,302,370,407
Hetzer, H., 350
Heymans, 356, 357, 358
Hipócrates, 15, 21, 22-28, 50, 83, 126, 146, 230
Hitler, 375
Hobbes, Thomas, 162, 239
Hoffmann, Friedrich, 189
Holbach, Paul-Henri d', 196, 203, 205, 208, 209,211-213
Hiilderlin, 247
Homero, 5, 65, 397, 418
Horácio, 140
Horkheimer, Max, 370, 372, 375, 378
Horney, Karen, 293, 362, 370-372, 375, 376
Hostie, Raymond, 301
Humboldt, 110
438
Hume, David, 140, 161, 180, 188, 192, 195, 214, 221, 233-239, 240, 253, 268
Husseri, Edmund, 234, 247, 280, 307,
375,401-404, 407,413,425,429
Hyppolite, Jean, 247, 248
Jaeger, W., 48
James, William, 276, 277, 364, 409
Janet, Paul, 252
Janet, Pierre, 245, 255, 258, 261, 262, 263, 276, 281, 285, 409
Jaspers, Karl, 404, 405
Jeanson, Francis, 411
Jensen, W., 289
Jerônimo (SA0), 94
Jesus Cristo, 80,81,82,89, 128
Johnson, Masters, 429
Johnson, Virginia, 429
Jones, Ernest, 285, 290, 358
Josué, 196
Jouffroy, Théodore, 252
Joussain, André, 195
Jung, Carl Gustav, 124, 280, 284, 285, 290, 291, 292, 294,297-301, 348, 349, 358, 359-
360, 365, 372, 373, 375, 430
Jussieu, A.-L. de, 191
Justino, 39
Kant, 30, 33, 98, 105, 113, 123, 136, 161, 174, 192, 195, 220, 229, 236,
240-245, 246, 247, 254, 257, 269, 273, 355, 357, 398, 404
Kardiner, Abram, 366, 367
Kastler, 404
Katz, David, 308, 310
Kellog, A. C., 326
Kelman, Dr. Harold, 370
Kepler, 389
Kierkegaard, 246, 403
Kinsey, Alfred C., 362, 383-386, 395, 429
Klages, Ludwig, 352
Klein, Melanie, 290, 349
Koffka, Kurt, 307, 309, 311
Kohler, Wolfgang, 307, 308, 310, 311, 325, 326, 327, 335, 424
Koyré, Alexandre, 127
Kraepelin, 354
Krech, David, 381, 388
Kretschmer, Ernst, 354, 355, 356, 358
Külpe, Ostwald, 278
Kun, Bela, 291
Lacan, Dr. Jacques, 302, 370
Lachelier, Jules, 257
Lagache, Dr. Daniel, 369, 370
Laignel-Lavastine (Prof.), 433
Lamarck, 226, 267, 353
La Mettriè, Julien O. de, 162, 188, 189,
195-203, 206, 208, 231, 232
Lange, Carl, 277
Lanson, Gustave, 214, 216
La Peyronie, 215
Laplanche, Jean, 433
Larguier des Bancels, J., 307, 322
La Rochefoucauld, 162
Laromiguière, 229
Lavater, J. K., 190
Lavoisier, 188, 191
LeAoX, 110
La Bon, Gustave, 277, 287, 363
Lefort, Claude, 367
Leibniz, 19, 47, 54, 133, 162, 163, 180-
186, 208, 217, 225, 226, 228, 236, 239, 241, 252, 355,357,401
La Lay, Dr. Yves, 349
Léon, Xavier, 260
Leonardo da Vinci, 109, 110, 112, 116,
118-123, 127,288
Lequier, Jules, 417
Leroy, André-Louis, 194, 234
La Roy, Edouard, 262
Leroy, Maxime, 204
La Senne, René, 356, 357, 358, 360
La Terrier, François, 433
Leucipo, 52
Lévy-Bruhl, 263
Lewin, Kurt, 310, 311-312, 362, 364,
387-388. 409,410
Liébault, 192, 283
Lineu, 189
Linton, Ralph, 366, 367
Locke, John, 163, 173-180, 181, 192, 193, 204, 207, 216, 220, 221, 222, 230, 234, 236,
241, 251, 268, 355, 357, 401
Loeb,J.,305,324
Lorenz, Konrad, 226, 328-335, 397-400
Lotze, Rudolf Hermann, 268
Lourenço, o Magnífico, 110
Lourenço Filho, 315
Lucrécio, 53, 54,55, 57, 201
Luís XV, 190, 357
Luís XVI, 190,191,357
Lutero, 109, 356
Lyotard, Jean-F., 404
Mach, E., 314
Magne, Augusto (Padre), 412
439
Maine de Biran, 224, 229, 233, 251-
257, 258, 356
Maisonneuve, Jean, 392
Maistriaux, Robert. 357
Malebranche, 159, 161, 163, 166-167, 195, 196, 208, 228, 253
Malinowski, Bronislav, 365
Malpighi, Marcelio, 186
Maquiavel, 109, 111, 112, 145
Marbe, Karl, 278
Marco Aurélio, 57, 58, 59, 60, 61
Marcuse, Herbert, 289, 293, 360, 362, 372, 375 -3 79
Marietti, Angèle, 247
Martin, Clyde E., 383
Marx, Karl, 54, 246, 314, 342, 355, 360, 362, 370, 378, 379, 417,419
Masson-Oursel, Paul, XVIII
Maucorps, Paul, 393
Maupertuis, 232
Mazarino, 357
Mazon, Paul, 5, 6
MeDougall, William, 364, 380
Mead, George Herbert, 367, 368, 381
Mead, Margaret, 351, 368, 369
Médicis, Cosmo de, 110
Mendel, Dr. G 291,396-397
Mendousse, 404
Meneceu, 53
Mercuriale, Gerolamo, 114
Merleau-Ponty, Maurice, 302, 326, 401, 404, 405, 407, 410, 418, 41 9-426
Mersenne (padre), 153, 159
Meslier, Jean, 209
Mesmer, Franz Anton, 125, 190-192, 282
Messer, 278
Mettmann, Walter, 412
Meunier, Mano, 6
Meyrat, Dr. G., XIII
Michaelis de Vasconcelos, Carolina, 412
Michel, Paul-Henri, 132, 133, 134, 136, 137
Miguel Ângelo, 109, 288, 356
Mill, John Stuart, 268, 270
Milliet, Sérgio, 144
Minkowski, Dr. Eugêne, 281, 345,407
Mirabaud, 212
Mirabeau, 356
Mitscherlich, Alexander, 396, 397
Moisés, 128
Moleschott, 268
Moliêre, 105, 138, 186, 187, 351
Molyneux, William, 176, 207, 216
Montaigne, 109, 112, 118, 138-144. 164
Montesquieu, 228
Montfort, Remond de, 182
Morellet (abade), 252
Moreno, Jacob L., 291, 362, 388-394
Morgagni, Giambattista, 187, 189
Morgan, Conway Lloyd, 305, 319, 324
Morris, T. W., 247
Mounier, Emmanuel, 355
Moura, Irineu de, 308
Muchielli, Roger, 353, 358
Mueller, Fernand-Lucien, XIII, XIV, XV, XIX
Müller, Philippe, 328
Mumford, Lewis, 399
Münsterberg, 276
Murchison, Carl, 279, 316
Murray, 319
Musset, 356
Myers, Fred W. H., 276
Namer, Émile, 132, 133
Napoleão,
Narciso, 378
Naville, Adrien, 250
Navilie, Ernest. 251
Naville, Pierre, 304, 309, 423
Newton, 123, 157, 186, 188, 204, 236, 320
Nicolau de Cusa, 109,110,113,132
Niel, Henri, 406
Nietzsche, 9, 11, 58, 172, 247, 250, 257, 267, 294, 301, 314, 344, 355, 390, 401,403
Normand, Ch., 53
Nostradamus, 119
Nunes, José Joaquim, 412
Odier, Charles, 288
Oldenburg, 167
Oliveira, Lólio Lourenço de, XI, 404
Orfeu, 378
Orígenes, 79, 86-87
Ortega y Gasset, José, 344
Palmier, Jean-Michel, 293
Panoff, Michel, 365
Paracelso, 109, 113, 118, 124-127, 146, 186, 190
Paré, Ambroise, 116
Parmênides, 9, 10, 13-14, 15, 30, 32
Pascal, 89, 112, 134, 145, 163 -166, 182, 242, 355
Paulo (São), 79,80-82, 84
Pavlov, Ivan, 155, 302-304, 305
Péladan, 120
Pende, Nicola, 353, 354
Perdicas II, 27
Péricles, 18, 22, 30
Peters, R. 5., 433
Petrarca, 110
Piaget, Jean, 247, 263, 279, 336-345, 346, 389, 399, 420, 421
Pichot, Pierre, 433
Pico dela Mirandola, 109
Piéron, Henri, 272, 314
Píndaro, 21
Pinel, Phiippe, 203, 223, 249
Pirro (de Elida), 32
Pitágoras, 7, 8, 14, 128
Pítocles, 53
Platão, 7, 15, 18, 21, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35-40, 41, 42, 46, 48, 49, 50, 51, 59, 65, 71,
85, 93, 110, 127, 128, 176, 196, 221, 269
Platner, Ernst, 243
Plattner, Felix, 114
Plotino, 71-78, 79, 88, 92, 94, 110, 133
Plutarco, 53
Poe, Edgar, 356
Poincaré, Henri, 314
Politzer, Georges, 247
Pollnow, H., 167
Pomeroy, Wardelle B., 383
Pomponazzi, Pietro, 109, 118, 127-129, 131
Pontalis, J.-B., 372, 433
Porfírio, 72
Pradines, Maurice, 272
Prado Júnior, Bento, 433
Preyer, 276
Prometeu, 378
Protágoras, 29,30-31, 32, 36, 46, 49, 52
Proust, Marcel, 262, 304, 414
Ptolomeu Soter, 27
Pucelle, Jean, 157
Puchkin, 320
Puisieux, M de, 207
Rabeau, Gaston, 104
Rabelais, 109, 116, 196
Rank, Otto, 285, 291, 292
Rat, Maurice, 70
Ravaisson, Félix, 257
Réaumur, R.-A., 224
Régis, 285, 302
Reich, Wilhelm, 292, 293,360-361, 365, 366, 370, 375
Reid, Thomas, 229, 233, 252
Reik, Theodor, 290
Rembrandt, 187
Renan, Ernest, 173, 267, 274, 357
Reuchlin, Maurice, 433
Reverdin, Henri, 250
Reymond, Arnold, 343
Reymond, Auguste, 5, 15, 433
Ribot, Théodule, 144, 258, 267, 268, 270, 274 -2 75, 276, 277, 278, 279, 280, 305
Richet, Charles, 276, 281
Richter, 333
Ricoeur, Paul, 404
Robef, Euthyme, 252
Robert, Fernand, 5
Robert, Marthe, 290
Rocheblave-Spenlé, M A.-M., 349
Rohde, Erwin, 5, 433
Rorschach, Hermann, 318, 319
Rosenzweig, 319
Ross, E. A., 364
Rousseau, 176, 188, 190, 206, 211, 213, 214, 215, 218-221, 223, 225, 228, 241,252,356
Rouvier, Dr. Élie, 272
Rovera, J de la, 116
Roy, Jean-H., 158
Royer-Collard, 229, 233, 251, 252
Rubel, Maximilien, 342
Rubinstein, S. L., 343
Rudolfer, Noemy da Silveira, 117
Saadi, 211
Sachs, Hans, 285
Sacristán, José M., 308
Saint-Germain (conde de), 190
Saint-Simon, Claude-Henri, 203
Saitta, Giuseppe, 123
Salzi, Pierre, 49
Sartre, 66, 294, 322, 358, 401, 40 7-419, 423, 425, 426
Savioz, Raymond, 224, 228
Savonarola, 355
Schelling, 110, 245, 355
Schiller, F. C. 5., 30
Schopenhauer, 172, 249, 257, 281, 294, 355, 364
Schrecker, P., 167
Sciacca, Michele Federico, 433
Sêneca, 53, 57
Servet, Miguel, 111, 116
Servigen, Louise, 118
Sévigné, M de, 357
Sexto Empírico, 11,32
Shakespeare, 351
Sheldon, W. H., 355, 356, 358
Sherif, Musafer, 362, 386-387
Sigaud, Claude, 353
Simon (Dr.), 315
Simondon, Gilbert, 433
Sinelnikoff, Constantin, 293
Skinner, Burrhus Frederic, 430, 431
440
441
Smith, Hélène, 282
Sócrates, 22, 30, 31, 32-34, 35, 37, 52, 69, 87, 128, 140, 141, 142, 220, 221, 252, 345,
355, 395, 398, 403, 431
Soemmerring, Samuel Thomas, 242
Sorano (de Efesa), 83
Sorokin, Pitirim, 320, 394
Souza, Cícero Christiano de, 318
Spearman, Charles, 318, 355
Spencer, Herbert, 203, 240, 258, 267,
269-2 70, 340, 362, 390
Spengler, Oswald, 113
Spinoza, 117, 133, 137, 162, 163, 167-
173, 181, 208, 212, 236, 239, 256, 355
Spitz, Dr. René, 349-351
Stahl, Dr. Georg Ernst, 162, 186, 189, 201
Stekel, Wilhelm, 285, 358, 410
Stendhal, 208, 351
Stenon, Nicolas, 187
Stern, Wilhelm, 317, 318
Steward, Dugald, 229, 233, 252
Suilivan, Dr. Harry Stack, 369
Szondi, Dr. Lipot, 319
Taine, Hippolyte, 240, 258, 267, 314, 357
Tales, 9, 15
Talleyrand, 357
Tannery, Paul, 159
Tarde, Gabriel, 277, 363
Telésio, Bernardino, 109, 118,1130-132, 147
Teriuliano, 79, 83-84, 85, 215
Theil, Dr. Pierre, 320
Thévenaz, Pierre, 404
Thibaudet, Albert, 138
Thorndike, E., 305. 324, 325
Thoynard, 174
Thurstone, L. L., 318
Ticiano, 116
Tilgher, Adriano, 433
Tilquin, A., 304, 306, 307
Tisserand, Pierre, 251, 256
Tissot, L, 242
Toledo Malta, 1. M., 144
Tolstoi, 320
Tomás de Aquino (Santo), 97, 98-105, 109
Torricelli, Evangelista, 186
Tran-Thong, 346
Trembley, Abraham, 189
Tricot, 1.41,48, 50, 51
Tronchin, Théodore, 190
Turpius, Nicolas, 187
Uexküll, Jacob von, 327, 328, 329, 330, 335
Uexktill, Thure von, 400
Vaihinger, Hans, 294
Vaiéry, Paul, 118
Valia, Lourenço, 109
Van Gog 356
Verbeke. G., 48, 58
Verdeaux, Jacqueline, 405
Verdi, Giuseppe, 320
Vertot, René Aubert de, 70
Vesálio, 109,116, i2i
Vico, G. B., 152, 320
Vigny, Alfred de, 356
Vincent, 353
Viola, Giacinto, 353, 354
Vives, Juan Luis, 117
Voltaire, 105, 183, 188, 190, 203, 204, 209, 212,214-217, 222,225, 357
Waehlens, Aiphonse de, 424
Wagner, 181
Wahi, Jean, 247
WalIon, Henri, 336, 342, 345-348. 350
Washington, 357
Waszink, J. H., 83
Watson, John Broadus, i62, 202, 302, 303, 304-307. 310, 313, 325, 380, 383, 430
Weber, E. H., 270, 271, 272
Weber, Max, 374
Wechsler, 318
Weizs Victor von, 327
Werner, Charles, 73
Wertheimer, Max, 307, 309
Wiersma, 356, 357
Willis, Thomas, 186, 187, 192
Wolf, K., 350
Wolff, Johann Christian, 188, 239
Woodworth, R., 324
Wundt, Wilhelm, 268, 272-274, 277, 278, 279, 297, 305, 321, 362, 427
Xenofonte, 32, 33
Yerkes, R. M., 325, 326, 327, 328, 329, 335, 383
Zazzo, René, 247, 304, 343
Zeno(deCítio), 20,57,58
Zeno(deEléia), XIX, 258
Zoroastro, 66
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133 - Jean Châtean e colabora dores, Os grandes peda gogistas
Este lipro foi imu pela EDIPE Artes Gráficas, Rua Domingos Paiva, 60 - S4o Paulo.

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