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TEORIAS DO VALOR
E DISTRIBUIÇÃO
DESDE ADAM SMITH
Tradução de
ÁLVARO DE FIGUEIREDO
3 3? '
BIBLIO TECA DE TEXTO S U N IVERSITARIO S
M. D.
1. INTRODUÇÃO: A PROPÓSITO DE IDEOLOGIA.
9
a verdadeira natureza da situação, desafiando por con
seguinte qualquer separação analítica radical. Será este
de qualquer modo, o significado que teremos sobre
tudo em mente nas considerações que se seguem. Talvez
seja desnecessário acrescentar que sempre que se utilizar
a palavra «ideologia», esta se referirá necessariamente a
um sistema completo de pensamento, ou a um conjunto
coordenado de convicções e ideias que formam uma estru
tura, ou grupo, a nível superior, de conceitos relacionados,
para chegar a noções, análises, aplicações e conclusões
mais específicas e particulares. Deste modo, a palavra
relacionar-se-á geralmente com certas actividades e polí
ticas, mas não necessariamente em termos simples e ime
diatos; e para aqueles que conduzem a discussão ao nível
mais elevado (ou mais genérico), a relação pode não ser
sempre inteiramente consciente, e ainda menos explícita.
Na acepção mais geral, uma ideologia constitui ou implica
uma posição filosófica, no nosso contexto actual uma filo
sofia social, desde que a isto se não dê um significado
excessivamente formal ou metodológico.
No domínio da economia política ou da teoria econó
mica, o papel da ideologia (e, por implicação, a sua defi
nição) tem sido tratado de maneiras diversas. Primeira
mente, tem sido considerado em oposição à ciência, como
conjunto de postulados morais e daquilo a que se chama
«juízos de valor». Deste modo, é um elemento exterior
introduzido na investigação objectiva e «positiva», que,
embora penetre inevitavelmente na maior parte das ideias
que se têm a respeito de questões práticas, merece ser
depurado mediante uma análise mais rigorosa e uma
definição mais precisa. É assim que a afirmação de
que os factores de produção, num mercado de con
corrência, têm os seus preços determinados segundo
a sua produtividade marginal ou incremental, é por vezes
posta em contraste com a afirmação de que as pessoas
deveriam ser remuneradas de acordo com o seu contri
buto para a produção, e esta última afirmação é posta
de parte como intromissão não científica. As teorias
sobre a determinação da repartição efectiva do rendi
mento são igualmente confrontadas com os postulados
sobre as formas ideais de repartição do rendimento. Por
vezes, enquanto se mantém este contraste entre um ele
mento ideológico e um elemento científico, numa teoria ou
doutrina, alargam-se as fronteiras do elemento ideológico,
para incluir outras categorias de afirmações além das
puramente morais: encontramos tais categorias com a
designação, por exemplo, de afirmações «metafísicas»,*
que não têm lugar numa teoria científica, visto
não poderem ser verificadas ou postas de parte; apesar
disso, desempenham a função de persuadir pessoas a
adoptar certas atitudes e realizar certas actividades.
Joseph Schumpeter, que entre os economistas moder
nos, trouxe talvez a mais séria e completa contribuição
para esta discussão, assumiu uma atitude algo diferente
— talvez se possa dizer menos simplista — sobre
11
este assunto.* Aquilo que ele destacou com justeza e cha
mou acertadamente «visão» — visão da forma com
plexa da realidade e da natureza dos problemas que
se põem à humanidade em qualquer situação histórica
dada — é inevitavelmente ideológico. Deste modo, a ideo
logia «penetra no autêntico rés-do-chão, no acto cognitivo
pré-analítico», e com o próprio começo da teoria «mediante
o material proporcionado pela nossa visão das coisas»;
«[sendo] esta visão, quase por definição, ideológica», visto
que «dá corpo à imagem das coisas, tal como nós as
vemos».** A razão alegada parece ser menos a da perspec
tiva historicamente condicionada do observador, inevita
velmente limitada pelo tempo e lugar e posição na socie
dade, do que a da atitude emocional que leva os homens a
formar imagens agradáveis de si próprios e dos seus pares
— o facto de «a maneira como vemos as coisas dificil
mente se distinguir daquela como desejamos vê-las»
(embora se acrescente que «quanto mais honesta e simples
for a nossa visão, mais perigosa é para a eventual emer
gência de qualquer coisa a que se possa atribuir validade
geral»). E daqui conclui Schumpeter que, embora «Econo
mia Política» e «Pensamento Económico» em geral***
tenham quase inevitavelmente de ser ideologicamente
condicionados, a «análise económica» propriamente dita
pode ser tratada como independente e objectiva — um
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para ser o veículo de certas afirmações acerca de activi
dades ou fenómenos económicos. Se se der o primeiro
caso, não poderá ser identificada com a historia das
teorias económicas do tipo daquelas que examinaremos
adiante; visto que estas teorias, conforme notaremos, têm
muito que ver com a afirmação económica, mesmo que
em nível razoavelmente geral. Se se der o segundo
caso, certamente que não pode ser separada das res-
postas às questões que inclui, e, portanto, da forma real
(ou suposta) dos problemas económicos a cujo tratamento
se destina — e isto por muito «rarefeita» ou abstracta
que a estrutura da afirmação possa ser. Neste caso,
não se pode pretender que seja «independente» do
conteúdo e significado económico das proposições que
são (como o próprio Schumpeter admite) condicionadas
ideologicamente, e daqui resulta que não pode ser con
siderada supra-ideológica. A análise teórica e a gene
ralização são sempre construídas a partir da classificação,
no sentido de se utilizar aquilo que foi classificado pri
meiro como as suas unidades materiais ou meios de conta
gem ; e o que é a classificação, senão um esquema de limi
tes entre objectos descontínuos, que por sua vez derivam
do modelo estrutural apreendido (ou que se pensa ter-se
descoberto) no mundo real? O próprio Schumpeter torna
isto evidente na definição que nos dá de «Visão» — «aquilo
que surge primeiro... em qualquer tentativa científica»:
e acentua, «antes de iniciarmos um trabalho analítico de
qualquer espécie, temos de destacar primeiro o conjunto
de fenómenos que desejamos investigar, e adquirir ‘intui
tivamente’ uma primeira noção do modo como se agrupam,
ou, por outras palavras, daquilo que se nos afigura,
do nosso ponto de vista, serem as suas propriedades
fundamentais.» *
Dizer isto não é negar que se possa fazer um
estudo separado de teoria económica apenas no seu aspecto
analítico, e mesmo escrever uma história deste aspecto
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per se, concebida como o aperfeiçoamento dum aparelho
técnico (como se poderia escrever a historia de qualquer
outra técnica).* Mas o que é duvidoso é que, se se fizesse
esse estudo, ele pudesse ser considerado um estudo de uma
secção separável e definível da própria matéria: isto é,
como um conjunto de proposições ou afirmações para cujo
suporte o esquema analítico foi concebido. Neste caso,
teríamos, ao que parece, uma questão completamente dife
rente. Claro que não é fácil separar uma apreciação sobre
a análise enquanto instrumento, de um juízo de valor sobre
o seu papel no quadro de uma aplicação específica. Mas
seguramente que há uma diferença, e uma diferença crucial,
entre uma discussão sobre a sintaxe e a que incide sobre
o conteúdo de afirmações particulares modeladas em qual
quer forma sintáctica dada. O que é muito discutível é se
em economia, ou em qualquer ramo de ciência social,
se se prestar atenção ao conteúdo económico duma teoria
como distinto da sua estrutura analítica, qualquer parcela
da teoria pode manter a independência e neutralidade que
se atribui (com alguma razão) à própria análise formal:**
15
Esse conteúdo pode ser constituído por certo tipo de afir
mações sobre a forma e funcionamento de processos eco
nómicos reais, por muito genéricas ou particularizadas que
tais afirmações pretendam ser. Deve ser seguramente
este o caso, a menos que se esteja a fazer referência
a um país completamente imaginário; e então teremos
a análise concebida não como instrumento ou ferramenta,
mas como um quadro ou um mapa. Na sua formação,
a «visão» de Schumpeter tem essencialmente de entrar;
a afirmação de que a teoria a envolve como relicá
rio, enquanto «imagem» ou «mapa», depende intei
ramente e está relacionada com essa «visão»*, e
esta, como o próprio Schumpeter tão acertadamente
acentua, está sempre relacionada com certo momento
e situação social no processo da história. Não há aprecia
ção de teoria econômica, e menos ainda qualquer exame
histórico de sistemas de teorias, que pareça justificavel-
mente negar ou ignorar esta relatividade. Um «modelo»
matemático pode ser (e deve ser, inter alia) examinado
no seu aspecto puramente formal, como estrutura com
patível. Ao mesmo tempo, enquanto teoria económica,
a sua própria estrutura é relevante para a afirmação
que faz acerca da realidade — para a sua qualidade
diagnostica. Preferindo uma estrutura à outra, o
criador do modelo não só está a preparar um suporte
ou estrutura dentro do qual o pensamento humano pode
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operar, como também está a pôr em evidência certos
factores e relações e a excluir outros ou a colocá-los
na sombra;* e ao agir assim, pode julgar-se que está
a distorcer ou esclarecer a realidade, proporcionando
desta maneira uma base segura ou não para a inter
pretação e previsão — é talvez mais provável que
esteja a esclarecer certos aspectos ou facetas escondidas
da realidade, ou certas situações que surgem à mente,
ao mesmo tempo que está a eclipsar, ou a ocultar com
pletamente, outros aspectos, facetas ou situações. Isto não
significa, evidentemente, que qualquer distorção ou par
cialidade desse tipo faça parte da intenção consciente do
criador do modelo, que na realidade pode tê-lo escolhido
por razões puramente formais, porque o considerou
intelectualmente engenhoso ou esteticamente agradável.
Mas na medida em que é influenciado pelas suas impli
cações económicas — isto é, na medida em que está a pro
curar ser um economista — a forma e projecção desse mo
delo serão influenciadas pela sua visão do processo eco
nómico, e pelas condições sociohistóricas que determinam
e limitam a sua imagem mental da realidade social, sejam
elas quais forem.
No entanto, se algumas afirmações económicas, pelo
menos as de nível mais geral, forem susceptíveis de ex
pressão puramente matemática, a «imagem» da realidade
económica a que dão corpo poderá parecer de carácter
demasiado abstracto para sofrer, em grau considerável,
o efeito de influências «ideológicas», e menos ainda para
conter qualquer desvio ou parcialidade específica. Por
isso, o conteúdo e a forma das afirmações podem ser aqui
qualificados como «ideologicamente neutros» e «supra-
-históricos», pelo menos num grau suficiente para que
qualquer elemento historicamente relativo seja pouco
importante e justificadamente ignorado na sua elaboração.
Tem-se dito frequentemente que um sistema de equações
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simultâneas não é per se portador de implicação causal.
Esse sistema não faz mais que descrever uma situa
ção como um conjunto de inter-relações: uma situação
composta por um grupo de elementos interiormente rela
cionados e tratados isoladamente, falando em termos
de comparação, daquilo que lhes é exterior, pelo menos
na medida em que não entram em interacção. Mas não faz
mais do que isto.
No entanto, uma descrição deste tipo não chega
a ser uma explicação, no sentido de descrever a situa
ção como um processo económico que opera de uma certa
maneira e sobre o qual é possível agir.* Para o conseguir,
o sistema de equações deve dizer-nos algo mais; e este
«algo mais» tem quase inevitavelmente uma forma causal,
quer se trate duma interacção mútua complexa dum
conjunto de variáveis, quer do tipo mais simples da ligação
causal unidireccional.** Isto acontece muito correntemente,
de facto, mesmo com aquilo que o leigo afirma serem
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sistemas puramente formais, que descrevem uma cadeia
de inter-relações e nada mais; estando implícita
uma ordem, de determinação, desde o momento em que
algumas das variáveis são consideradas como exogena-
mente determinadas a partir do exterior do sistema, ou
então como constantes, e, portanto, especificadas como
dados (implícita ou explicitamente), sendo as outras
dependentes das relações internas do sistema ou «incóg
nitas» que aguardam uma solução.* Isto é certamente
verdadeiro quanto ao sistema walrasiano de equilíbrio
geral, apesar de afirmações (ou pelo menos implicações)
feitas por vezes em contrário. O próprio Walras, como
veremos adiante, não hesita em falar de «forças [que] são
a causa primeira e as condições da variação dos preços», ou
dos preços dos serviços produtivos de factores como
sendo «determinados no mercado de produtos».** No caso
dos «modelos» dinâmicos que desempenharam um papel
19
tão importante nas teorias de crescimento modernas,
o sistema de inter-relações é interpretado como a descrição
da interacção entre variáveis de tipo particular e com
certa direcção; o que tem significado considerável para
a estabilidade ou instabilidade do equilíbrio para que
tende o sistema. A interpretação particular que confere à
teoria o seu carácter essencial e as suas implicações práti
cas, resulta da introdução de hipóteses adicionais (por
vezes imputando valores particulares e variáveis particula
res) que não faziam parte do esquema na sua forma pri
mitiva. Por outro lado, a simples definição daquilo que
constitui a própria esfera de inter-relações relevantes (e
portanto os limites dum sistema teórico) pode ser funda
mental, conforme veremos: fundamental por distinguir
vias diferentes para localizar as influências determinantes.
Associada à noção de teoria económica como estru
tura puramente formal, enquanto teoria de equilíbrio ge
ral, temos a do papel «conciliador» dessa análise econó-
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mica generalizada, em relação a teorias opostas (e menos
gerais) que agitaram anteriormente escolas rivais. Ulti
mamente, este ponto de vista tem sido bastante discutido,
pelo menos em certos círculos; ponto de vista que serve,
evidentemente, qualquer exame crítico da historia do
pensamento económico. Um exemplo desta atitude é a
série de tentativas feitas, logo que apareceu a General
Theory de Keynes, para apresentar as diversas afirmações
e conclusões da doutrina keynesiana e pré-keynesiana
como dependentes de diversos valores ou «formas» impli
citamente atribuídos a certos parâmetros ou relações fun
cionais generalizadas (e nalguns casos a hipóteses implí
citas de independência). Deste modo, a Teoria Geral
da Teoria Geral representaria as doutrinas adversas como
casos especiais das formas de afirmação mais gerais
e «verdadeiras». Contudo, a «conciliação», neste caso,
parece não ter representado muito mais que a afirmação
de que um tipo de mecanismos caracteriza um tipo de
situação, e outro tipo de mecanismos conviria a uma
situação diferente (por exemplo, quando algum factor de
«reforço» especial bastava para manter o pleno emprego
e/ou a plena utilização da capacidade). Talvez um exemplo
mais pertinente seja a sugestão recentemente feita (na se
quência do renovado interesse pelo ponto de vista clás
sico) de que não há oposição real entre as tradicionalmente
opostas teorias do valor de Ricardo e de Marx, por um lado.
e de Jevons e da escola austríaca, por outro: em qualquer
sistema de equações de equilíbrio geral (por exemplo,
do tipo walrasiano), as despesas de trabalho e os coefi
cientes de substituição dos consumidores (ou utilida
des marginais) terão de ser incluídos, e, adequada
mente interpretados, deverão acentuar a influência de
terminante de umas ou outros.* Uma maior formalização
21
do problema é assim identificada com uma maior neutrali
zação, na medida em que se tratar duma intrusão de ordem
ideológica, e é considerada, consequentemente, como exem
plificando o progresso científico na matéria que Schumpe
ter procurou encontrar no seu exame histórico da evolução
da análise económica per se. Se este progresso das téc
nicas analíticas envolveu alguma restrição dos limites
da matéria, em relação aos que generosamente traçaram
os pioneiros clássicos, é caso para aplaudir e não para
lamentar: quando muito foi um esforço bem compensado,
pelo que se ganhou em rigor científico.
Tudo quanto se pode dizer resumidamente, penso eu,
a respeito de um corpus supostamente «neutro»,
é que ao ser cuidadosamente formulado e anali
sado, se revelará muitíssimo escasso em conteúdo con
creto: isto é, a sua aparente neutralidade resulta de conter
muito pouco em matéria de afirmações concretas sobre
situações económicas, ou os processos e suas manifestações
— tão pouco, talvez, que será muito duvidoso classificá-lo
como teoria económica, no sentido de teoria que explica
a acção e o comportamento social. Para merecer esta quali
ficação, deverá ser estruturado de maneira a mostrar
como certos efeitos ou acontecimentos são determinados;
e um sistema de equilíbrio definido em termos de um
22
conjunto de equivalências ou identidades, pode não ser
mais que uma série de tautologías.*
Duvidar da posição ocupada por um corpus de teoria
aparentemente «neutro» deste tipo, não é o mesmo
que negar a existência de certas generalizações de alto
nível que se aplicam a uma variedade de situações insti
tucionais diferentes. Os escritores marxistas, por exemplo,
têm sempre concordado que há afirmações gerais, e
até «leis», que se aplicam a todos os modos de produção
ou sistemas socioeconómicos, ou pelo menos a todos
os sistemas que contêm como característica comum a
produção de bens para venda num mercado, e portanto
alguma forma de divisão de trabalho e troca.** Igualmente,
para escolher um exemplo de «modelos de crescimento»
modernos (tal como o modelo de von Neumann), há certas
inter-relações entre quantidades em crescimento económico
que se aplicam a qualquer sistema económico, dado
apenas um mínimo de hipóteses comuns quanto a preços
e flexibilidade de preços, possibilidades técnicas e elas
ticidade da oferta. Mas isto não implica que se trate
apenas de juízos analíticos sobre um (indefinido) equilí
brio de variáveis inter-relacionadas: se assim fosse, con
forme vimos, o seu significado na prática seria insigni
ficante, e, mesmo como estrutura possibilitando juízos
23
mais concretos, seriam provavelmente pouco esclarece
dores. Uma restrição deste tipo não se aplica, com cer
teza, à espécie de juízo genérico a que temos estado
a referir-nos, sobre situações de troca ou relações estru
turais em crescimento, o que não nos impede de falar
em termos causais de factores que afectam os coeficientes
de preços de equilíbrio ou condicionem o processo de cres
cimento.
Deve acentuar-se uma vez mais, para evitar qual
quer possibilidade de má interpretação, que não temos
qualquer intento de negar a existência, em teoria eco
nómica, de lugar para juízos de complexa interdependência
mútua ou recíproca, além dos juízos mais familiares
de relação causal simples e directa, do tipo «dado A,
resulta B» ou «A é condição necessária e suficiente para
que suceda B». A questão é (como já acentuámos) que
estas afirmações, na medida em que definem a natureza
da interdependência, se referem à forma e disposição de
situações e processos reais, dependendo assim, pelo menos
até certo ponto, da «visão» que se tem destes, não sendo
de modo nenhum puramente formais ou a priori.
Curiosamente, aquilo que dissemos aplica-se a grande
parte da análise pura subjacente à teoria da «optimização»
(com as suas filiações com a economia normativa, con
forme veremos daqui a pouco), assim como a juízos de
equilíbrio geral do tipo walrasiano.
Tomemos como exemplo qualquer afirmação de que
certas variáveis estão inter-relacionadas, tal como a sim
ples afirmação de que o nível de output presente, a taxa
de crescimento do Output e a quantidade de inputs de tra
balho do sistema são interdependentes. B verdade que esta
afirmação não implica uma direcção de dependência,
que é inteiramente recíproca. Mas logo que se introduz
a hipótese (por exemplo, por postulado ou conhecimento
daquilo que constitui a situação geral ou «modo de apre
sentação» do problema) de que se duas das quantidades do
nosso exemplo forem tomadas como dadas, no sentido de
serem tratadas como variáveis independentes (ou deter
minadas exogenamente), a outra estará determinada
ipso facto (isto é, torna-se variável dependente). Assim,
24
se a força de trabalho é tomada como um factor dado
em qualquer momento, como característica da situação
demográfica (juntamente com o imperativo político do
seu pleno emprego), haverá, para qualquer nível dado
de output final presente, urna certa taxa de crescimento
que é a máxima possível; de maneira que, se também
se considerar necessário um certo nível de output
presente (como dado histórico ou em virtude da neces
sidade dum certo nível mínimo de salários ou con
sumo reais), a taxa de crescimento máxima provável é de
terminada como resultante. Se, juntando uma quarta va
riável à situação, na forma duma opção entre métodos
de produção alternativos (ou técnicos), se indicar uma
dada taxa de crescimento como o objectivo político
(viável) duma economia planeada, segue-se que existe
uma certa escolha óptima de métodos de produção no
sentido duma que maximizará o nível de output (e por
tanto de consumo) de maneira compatível com a manu
tenção do objectivo pretendido (ou, alternativamente,
maximiza a taxa de crescimento possível com qualquer
nível dado de consumo). Assim, uma transição dum
simples juízo de dependência mútua para um teorema
de optimização exige, por um lado, a pressuposição de
qualquer objectivo normativo (a «função objectiva»),
e, por outro lado, de alguma restrição (ou restrições)
como característica aceite de situações reais, por exemplo,
certos recursos económicos disponíveis para a produção
(visto que sem limites para estes não valeria a pena
economizar a sua utilização, e portanto não haveria
problema económico a resolver).
O essencial, nesta questão, é que esta transição
se realiza (ou pelo menos se inicia) assim que se preenche
o esquema com quaisquer características adicionais duma
situação real. Quando isto acontece, implica imediatamente
certas indicações de direcção da dependência. Mais ainda,
este «preenchimento do esquema» pode ser feito quase
inconscientemente, e ser, portanto, inexplícito, porque
a, mente humana é capaz de pensar situações globais,
mesmo quando tem a intenção de abstrair apenas certas
características dessas situações e tratá-las isoladamente.
25
Portanto, as diferenças que pode apresentar o aspecto
duma situação global, dependentes de diferenças de «visão»
e perspectiva, podem tornar-se cruciais.
Temos estado a falar de teoria económica como descri
ção da estrutura e funcionamento duma sociedade baseada
na troca, acentuando em especial a questão da interde
pendência de preços e mercados diferentes. Escusado será
dizer que isto é uma base fundamental para uma política,
por indicar aquilo que esta pode e não pode fazer, e por
meio de que instrumentos pode prosseguir este ou aquele
objectivo. Mas as teorias do equilibrio per se são pouco
elucidativas sobre qual a política objectiva a praticar,
na gama de alternativas possíveis; e é evidente que
as alternativas existem, apesar do determinismo implicado
na formulação de «leis económicas» pelos economistas.
Esta preocupação com os fins políticos, e com os meios
disponíveis para os atingir, representa a tradição nor
mativa em economia, que os positivistas pretenderam pôr
de parte como elemento estranho e uma intrusão na teoria
económica enquanto disciplina científica, que se ocupa
(assim se diz) de afirmações positivas acerca daquilo
que é e não daquilo que deve ser. Apesar disto, tem
alcançado cada vez mais respeito e atenção em décadas
recentes, certamente como reacção à crescente pressão
de problemas relacionados com a intervenção do Estado
na esfera económica, actualmente cada vez mais conscien
temente concebida, em virtude do planeamento económico
da economia como um todo. Na realidade, no actual
desenvolvimento da teoria, os elementos «positivo» e
«normativo» mostram-se dificilmente separáveis e ten
dem a confundir-se. Por outro lado, tem-se registado um
progresso correspondente na esfera das técnicas de análise
muito formalizadas.* Esta análise utiliza os métodos de
tratamento de «problemas extremos», como se lhes chama,
26
para prescrever as condições de maximização, seja qual
for a quantidade económica tomada como a «função
objectiva». Na escolha desta, a técnica de maximização
per se, é, evidentemente, neutra; mas a sua interpretação
económica e as suas implicações empíricas serão crucial
mente afectadas por ela. Evidentemente, na escolha e
utilização do maximizante, entram facilmente em jogo,
e de maneira decisiva, as influências ideológicas de que
falámos.
II
27
Isto levanta a questão de saber como e porque deve ser
assim: a forma e os modos deste condicionamento social
e histórico do pensamento abstracto.
Não se pretende negar que o tipo de factor subjectivo
ao qual Schumpeter se refere (emoções, desejos, con
vicções) seja uma parte da explicação, e que, visto os
economistas estarem sujeitos às fraquezas correntes da
carne e do espírito humano, se encontre em muitos casos,
senão na sua maioria, como ingrediente importante a
colorir a visão de certos pensadores. O que pode ser nega
do, na minha opinião, é que seja este o único ou o principal
modo de condicionamento. Na verdade, podemos afirmar
que se trata da forma menos interessante de condiciona
mento das relações sociais sobre o pensamento. Mais fun
damental, embora talvez mais difícil de identificar em
casos particulares, é a medida em que o pensamento é
moldado pelos problemas decorrentes dum certo contexto
social.* Este contexto é em si próprio uma mistura e inter
acção complexa de ideias e sistemas de pensamento aceites
(que com toda a probabilidade são em parte constituídos
por elementos metafísicos e hipóteses não verificadas,
e exercem uma forte acção como tendências conser
vadoras inatas) com os problemas apresentados pelos
acontecimentos e situações práticas correntes. Deste
modo, a generalização aceite e a prática corrente estão
em permanente confronto. Mas, nesta confrontação, seria
um erro conceber aquilo a que chamamos «prática», conce-
28
biãa como qualquer coisa de independente e animista> como
formulando problemas que o pensamento contemplasse
como observador passivo. Há sempre um elemento subjec
tivo no processo do conhecimento, não apenas no sentido de
que a acção e a experimentação desempenham um papel
fundamental, mas também no de que uma e outra são
precedidas e moldadas pela formação de conceitos. Os pro
blemas correntes são criados tanto pela acção humana ins
pirada no pensamento, exercida sobre uma situação exis
tente, como pela própria situação objectiva (e mutável); e
neste sentido pode dizer-se que estão conátantemente em
contradição. Os problemas que surgem deste modo consti
tuem então o ponto de partida para a formação dum novo
sistema de pensamento e de novos conceitos e teorias;
e, nesta medida, elas estão sempre relacionadas com um
certo contexto histórico. Estes conceitos e ideias mutáveis
representam em parte um comentário ou interpretação
— uma «reflexão», se preferirmos utilizar uma analogia
mais passiva — da situação objectiva a partir da pers
pectiva particular em que é observada. Mas visto que
as ideias e os conceitos herdados, ao operarem como meio
de refracção, modificam esta perspectiva e a resultante
visão da situação, as ideias novas são sempre, ao mesmo
tempo, uma crítica de ideias antigas que formam a herança
do pensamento; portanto, estas ideias novas são neces
sariamente moldadas em parte pela relação antitética
em que se encontram com as ideias antigas, e também
pelo facto de serem afirmações empíricas sobre a reali
dade. Por esta razão, o debate suscitado pelo desejo de
determinar se as ideias têm uma genealogia própria, ou,
pelo contrário, «reflectem» sempre a realidade objectiva
corrente, pode ser insatisfatório e uma causa de desilusão.
O que geralmente se esquece é que, na medida em que
as ideias são postas em confronto com os problemas,
e estes se referem (implícita ou explicitamente, e
senão directa, pelo menos indirectamente) a uma
actividade potencial, o processo de crítica e desenvolvi
mento dificilmente pode deixar de ser influenciado pelo
meio social (ou ponto de referência no complexo de
29
relações sociais) do indivíduo ou «escola» que formula
o problema. A acção social ou económica, pelo menos,
só pode ser concebida em relação a algo de concreto,
seja instituição, pessoa, grupo social, classe ou organi
zação; e para que a interpretação dos problemas seja
operacional, deverão ter alguma referência implícita
deste tipo.
Esta estrutura de pensamento herdada, dentro da
qual (ou em reacção contra a qual), os problemas reais são
formulados, e contra cujo fundamento — ou por vezes nos
seus próprios termos — surge o debate teórico, inclui neces
sariamente hipóteses e afirmações gerais simultaneamente
analíticas e sintéticas. Estas, formando uma «teia con
ceptual» (como se lhe chamou) ou conjunto de categorias
conceptuais ou «caixas», em cujos termos o nosso pensa
mento funciona,* são fundamentais tanto para a forma
como os problemas são moldados como para os métodos
e instrumentos concebidos para os solucionar. Na for-
mação de noções gerais deste tipo, é difícil excluir com-
pletamente o raciocínio por analogia. Na realidade, é di
fícil conceber que qualquer coisa que pretende ser uma
imagem geral da sociedade, e, portanto, relevante para a
sociedade tomada globalmente e para a modificação de toda
a sua estrutura (o que é diferente de descrever certos
aspectos e facetas suas), possa deixar de incluir pro-
31
algum modelo de relações, pareceria descoordenada
e inexplicável. Ao contrário de afirmações mais parti
culares, essa estrutura conceptual não é facilmente veri
ficável ou rejeitável. De facto, o que aqui poderia parecer
relevante não é tanto o ser ou não afirmada numa forma
potencialmente «verificável» ou «falsificável» (o critério
de Popper), mas sim o seu grau de generalidade, que
a afasta da possibilidade real de rejeição empírica.*
Ê esta generalidade que a torna especialmente propensa
à introdução de uma influência de ordem ideológica. Quan
do ela existe, quase nunca é fácil notá-la, e menos fácil
ainda combatê-la e anulá-la. Neste aspecto, razões lógicas
e psicológicas acentuarão a necessidade dum conceito gené
rico— ou então, contribuem para a sua rejeição: não
apenas num sentido de coerência lógica, mas também
no sentido mais amplo da sua «adequação». Já dissemos,
de facto, que «a observação nunca é absolutamente incom
patível com um esquema conceptual»;** e que podem
coexistir por algum tempo esquemas estruturais opostos
(por exemplo, os de Ptolomeu e Copérnico na cosmologia),
cada um com o seu grupo de discípulos e defensores.***
32
No domínio das ciências sociais, a controvérsia entre
teorias gerais antagónicas pode ser notoriamente incon-
cludente e posta de parte; a sua conclusão, quando se
verifica, fica a dever-se tanto à mudança da moda inte
lectual ou das hipóteses geralmente aceites, como à estrita
lógica da argumentação.
Falando do efeito mais directo de determinadas situa
ções em teoria económica: é bastante evidente — tão evi
dente que parece ser um exemplo muito simples — que não
é possível desenvolver uma teoria monetária antes de sur
gir uma economia monetária de qualquer espécie; do mesmo
modo, a maioria das modernas dificuldades a respeito da
teoria monetária, e a controvérsia quanto à sua interpreta
ção adequada (por exemplo, quanto à influência exercida
pela oferta de moeda sobre o resto da economia e a eficácia
de certas actuações de bancos centrais), dependem do
crescimento moderno de substitutos da moeda, instru
mentos de crédito e outros meios de pagamento. Um
«modelo» de equilíbrio geral duma economia não tem
probabilidade de surgir até o crescimento das rela
ções de mercado e da mobilidade económica ter
atingido o nível de desenvolvimento que começaram a ter
na Inglaterra de meados do século dezanove: sem isso,
a própria noção de interdependência de todos os preços
dificilmente seria apreendida por nós.* Parece neces
sário pelo menos um certo grau de desenvolvimento
33
destas condições, antes de a noção dum nível geral de
salários ou lucros, tal como a encontramos em Adam Smith,
poder ser formulada. Analogamente, foi preciso atingir um
certo nível de técnica mecânica na indústria, para os pro
blemas especiais relacionados com o capital fixo serem
reconhecidos e merecerem atenção (e embora Ricardo
tivesse acrescentado um capítulo especial a respeito de Má
quinas ã sua terceira edição, trata-se de uma reflexão
que ocorre tardiamente; e o seu tratamento geral do lucro
permaneceu vulnerável à crítica de Marx de que não pro
cedera à apreciação do papel daquilo a que este último cha
mou «capital constante»), O próprio conteúdo dos termos,
muito especialmente o de lucro em relação a capital, pode
modificar-se, e na sua modificação reflectir relações e insti
tuições em transição.* Algo semelhante sucede sem dúvida,
de um modo geral, com as relações e conexões que os
pensadores consideram relevantes e significativas. Embora
a possibilidade de desemprego como resultado crónico
da «insuficiência de procura efectiva» tenha sido men
cionada durante muito tempo «no mundo subterrâneo
dos heréticos», é um facto notável, e muito signifi
cativo, que esta ideia tivesse sido menosprezada, e só
graças à crise económica mundial de 1929-31 acabasse
por ter aceitação académica. Até então, a Lei de Say
teve uma aceitação praticamente incontestada: uma prova
bem evidente, sem dúvida, de como o preconceito, a tra
dição e a aceitação dos nossos desejos como realidades
transformados em abstracções, podem cegar tão forte
mente a visão humana, mesmo perante a evidência.
Muito menos possibilidades de penetrar na ortodoxia
académica teve a noção marxista de rendimento do ca
pital como fruto de exploração, e da relação salário-
34
-lucro como relação de antagonismo e não de participação.
É quase evidente por si só, que a questão dificilmente se
poderia pôr até ter aparecido, juntamente com a criação
dum proletariado, um mercado livre de trabalho assala
riado; e mesmo então, do ponto de vista da classe
dominante, o que chamava a atenção e se afigurava
significativo era a liberdade, e não a privação de meios.
Apesar daquilo que formos levados a esperar a priori,
a história da economia política, desde o seu início, fornece
abundantes provas de como a formação da teoria econó
mica esteve estreitamente (e mesmo conscientemente)
associada à formação e defesa duma determinada política.
Embora as doutrinas da escola clássica fossem muito
abstractas, especialmente na forma que lhes foi dada
por Ricardo (a quem Bagehot chamou «o verdadeiro fun
dador da Economia Política abstracta)», estiveram muito
estreitamente relacionadas com problemas práticos do seu
tempo, conforme veremos. Por outro lado, apreciar esta re
lação, e observar essas teorias à luz dos problemas políticos
a que procuravam responder, é um elemento essencial
para compreender a sua intenção e o seu objectivo prin
cipal. Assim, a verdadeira estrutura da Riqueza ãas
Nações de Adam Smith é formada e moldada pela sua
preocupação com as políticas mercantilistas e as teorias
em que se fundamentavam. Sabe-se que Malthus apresen
tou o seu Ensaio sobre a População como resposta às
opiniões optimistas (e ao tempo radicais) de seu pai,
acerca das possibilidades de progresso material e duma
futura sociedade igualitária de felicidade humana.* A pri
meira vez que Ricardo apareceu publicamente como econo
mista, formulando uma teoria monetária e do comércio ex
terno, foi no papel de crítico da política do Banco de Ingla
35
terra durante a Querela da Barra de Ouro, e os germes das
suas teorias do valor e distribuição surgiram numa publi
cação de Fevereiro de 1815,* preparatória do debate desse
mesmo mês na Câmara dos Comuns sobre a nova Lei
do Trigo, e destinado a estabelecer o fundamento teórico
da livre importação de cereais. John Stuart Mill expôs
nos seus Princípios de 1848 certas doutrinas (acentuando
especialmente o seu modo de «aplicação social») que têm
de ser consideradas no âmbito da sua anterior defesa
do «radicalismo filosófico» na década de 1820, com a
Westminster Review; e se é certo que considerou o seu
System of Logic amplamente relacionado com a exposição
duma perspectiva empírica de conhecimento, em oposição
«à perspectiva apriorística alemã do conhecimento» huma
no, como «o grande suporte intelectual de doutrinas falsas
e más instituições»»** algo de semelhante é ainda mais ver
dadeiro na forma como concebeu a Economia Política.
Escritores como Senior e Mountifort Longfield, ao sabor
da maré de uma primeira reacção contra as teorias
de Ricardo, manifestaram de modo evidente (e Longfield
muito explicitamente),*** preocupação pelas perversas
pretensões dos sindicatos e procuraram apresentar uma
justificação do Lucro, em resposta à crítica socialista
incipiente. Edwin Cannan fez o seguinte comentário sobre
36
a Economia Política clássica: «Entre todas as ilusões a
respeito da historia da economia política británica,
nenhuma é maior que a convicção de que a economia
da escola e período de Ricardo teve um carácter quase
completamente abstracto e desligado do concreto.» Acerca
dos economistas do século dezanove em geral, afirma:
«Com eles, na grande maioria dos casos, os objectivos
práticos foram predominantes... (e) a relação íntima entre
a economia e a política do período de Ricardo... pro
porciona uma chave para numerosos enigmas».*
Mas ao focar problemas concretos, não haverá dife
renças de grau, e na realidade diferenças de tipo, suficien
tes para impossibilitar que se diga de modo geral que as
teorias dum certo período definem a sua tendência social?
Alguns pensadores, naturalmente, têm mais consciência
que outros de problemas contemporâneos particulares,
quer em virtude dos seus contactos ou experiência, quer
porque a preocupação com directrizes políticas se adapta
às suas inclinações e ao seu modo particular de vei
as coisas. Outros, por sua vez, embora menos (ou igual
mente) cônscios da cena contemporânea e das suas par
ticularidades, podem sentir maior interesse por sínteses
de ideias e por uma «generalização de alto nível»
— pela elegância formal de sistemas e teoremas de novo
estilo, preocupando-se pouco com os corolários e direc-
37
trizes que deles se podem deduzir. Conforme já sugeri
mos, esse contraste — ou, talvez melhor, essa diferente
forma de seleccionar e conceber os problemas — não de
pende necessariamente do grau de abstracção das teorias
em causa. Embora em certa medida seja verdade que teo
remas que têm em vista uma «generalização de alto nível»
devem fazer, pela sua própria natureza, abstracção da
multiplicidade de pormenores particularizados, isto não
significa de modo nenhum que aqueles que têm uma
relação íntima com a prática e se apoiam nela, ten
dam necessariamente para uma forma menos abstracta.
A razão residirá possivelmente no facto de a sua própria
concentração em certos delineamentos e facetas da cena
global (a fim de lhes dar relevância operacional) poder
envolver uma selecção e abstracção doutros aspectos,
e portanto a apresentação da realidade numa perspectiva
especial (e em certo sentido «irreal»), Ricardo, e talvez
também Walras, parecem ser exemplo disto no que diz
respeito à teoria económica. Não há muitos indícios de que
o crescente formalismo da teoria económica nas décadas
recentes tenha diminuído a intromissão de questões ideo
lógicas na discussão económica (por exemplo, a respeito
da estabilidade ou instabilidade de modelos de cres
cimento).*
Nesta questão de centro de interesse, e portanto
do modo de selecção e abstracção, houve uma diferença
fundamental tão crucial para a forma como os pro
blemas são vistos e interpretados, que lhe confere uma
importância essencial na classificação e apreciação de
teorias. Um método de análise possível é abstrairmo-nos
das características específicas dum sistema ou instituição
particular (ou «modo de produção», no estilo marxista), e
38
concentrarmos a atenção nas características que são co
muns a todos, ou pelo menos a alguns, sistemas distintos, e
que nesta medida são supra-históricos. Se uma teoria adap
tada deste modo a partir do que é «universal», for apresen
tada como algo mais que um prolegómeno.* implicará que
na interpretação causal de acontecimentos, estes ele
mentos são em certo sentido primários, e que aquilo
que é peculiar ao complexo institucional especial é
secundário. Por outras palavras, a forma e o ângulo de
generalização, conforme aquilo que selecciona para pôr
em destaque e aquilo que deixa ficar na sombra, não
pode deixar de ter influência, não só nas atitudes e convic
ções humanas, e portanto na actividade social (por exem
plo, conforme se pretende uma «engenharia social» ou uma
mudança institucional radical), mas também no diagnós
tico intelectual de problemas sociais e económicos parti
culares. Não pode deixar de ser ideológica neste sentido.
Porém, uma análise que parte do carácter historicamente
mutável do objecto das ciências sociais, e concentra a
atenção naquilo que, na situação contemporânea apre
ciada, é historicamente contingente, terá implicações con
trárias. Qualquer destes tipos de análise pode revelar-se
evidentemente incapaz de fornecer uma interpretação in
teiramente convincente ou frutuosa; deste modo — prova
velmente o único como os teoremas das ciências sociais
podem ser verificados — será rejeitado pela experiên
cia. O que é mais provável acontecer, pelo menos
39
durante algum tempo, é coexistirem os dois tipos de
interpretação e haver conflito entre as suas implicações
no domínio da acção e da experiência, possivelmente
sem que a verdadeira natureza das suas diferentes formas,
de conceber a realidade se torne completamente perceptí
vel (visto que não é invulgar suceder que uma hipótese
fundamental dum teorema se mantenha implícita e ig
norada até ser exposta pela discussão intensiva e crítica
polémica). Mesmo quando esta diferença de visão é cla
ramente estabelecida e apercebida, os modos de ver opos
tos podem encontrar defensores sinceramente convictos,
porque exprimem separadamente a perspectiva segundo
a qual as diferentes classes sociais observam o complexo
social de relações interactuantes e mudança. Por conse
guinte, continuam lado a lado como escolas antagónicas.
O exemplo mais marcante do contraste que temos es
tado a descrever (ao qual voltaremos daqui a pouco) é a
divergência entre o tipo de teoria, que abrange a
maior parte das teorias puramente de «troca» ou de
mercado e que molda o problema económico em termos
de factores «naturais» ou universais,* e as teorias que,
acentuando relações sociais de produção e/ou distribui
ção de rendimento, atribuíram preponderância a factores
«institucionais» e apresentaram os problemas económicos
duma forma essencialmente «institucional». Escusado será
dizer que a análise de Marx em O Capital, com «uma aná
lise crítica da produção capitalista» como subtítulo do seu
volume inicial, pertence a este segundo tipo. Veremos
que já antes John Stuart Mill compreendera o signi
ficado deste tipo de divergência bastante para afir
mar, em contradição com os seus predecessores, que se
gundo o seu modo de ver, enquanto as «leis de Produção»
eram naturais e universais, as leis de distribuição, pelo con
trário, eram «parcialmente de instituição humana, uma vez
40
que o modo como a riqueza é distribuída, em qualquer
sociedade depende dos regulamentos ou usos que nela
prevalecem»:* neste sentido, estavam historicamente re
lacionadas com instituições de propriedade e nelas enrai
zadas. Com a geração que se seguiu a Mill, e o interesse
que atribuiu a uma teoria de procura de relações de troca
e a uma derivação da distribuição do rendimento (por in
termédio de preços de factores) destas relações de troca,
o interesse retrocedeu de facto para uma descrição do
problema económico na sua essência, tal como é determi
nado pelas condições universais e supra-históricas de
qualquer sociedade de troca, sejam quais forem as suas
relações sociais particulares, estrutura de classe e institui
ções de propriedade. Assim, o modo de conceber a natureza
da mudança histórica — a sua estrutura, sequência e meca
nismo causal — influirá na maneira de fixar os limites
permitidos e as formas admissíveis de generalização, a
fim de que as projecções abstractas e teoremas resultan
tes sejam relevantes para os problemas reais e as políticas
viáveis.
Como exemplo análogo, mas bastante diferente, pode
mos considerar a oposição que sempre tem havido entre
teoristas que consideram que qualquer revelação provém da
construção de modelos teóricos do mais alto nível de abs
tracção, e os que são suficientemente impressionados pela
multiplicidade e diferenças concretas para negarem a essa
generalização abstracta tudo o que não seja um papel
obscurantista. Um exemplo recente deste último tipo encon
tra-se no estudo sobre a pobreza e o subdesenvolvimento na
Ásia do Sul pelo Professor Gunnar Myrdal, que, ao acentuar
as peculiaridades institucionais das economias que inves
tiga, põe de parte as categorias usuais do economista,
considerando-as irreais e inaplicáveis, e preferindo, para
formular a sua crítica, os modelos semi-matemáticos
de crescimento tão em voga nas discussões sobre o desen
volvimento e planeamento a partir da segunda guerra
41
mundial.* A questão da relevância e aplicabilidade, admi
tindo que algum critério simples e directo exista, está
muito longe de ser facilmente determinável. Presumivel
mente, a questão poderia ser verificada a muito longo
prazo, contando-se o número de corolários ou directrizes
das diferentes escolas que parece terem «resultado» na
prática, e condecorando a escola que tivesse somado
maior número. Entretanto, a escolha entre uma e outra
dificilmente pode deixar de ser influenciada pelas regras
e directrizes particulares que as duas escolas tenham apre
sentado, como implicações das suas respectivas teorias e
pontos de vista, e pela atitude do observador em relação às
mesmas. Por exemplo, pode considerar-se que as directri
zes políticas em questão serão plausíveis (ou não plausí
veis) com outros fundamentos, e o facto de elas parecerem
resultar também de algum teorema geral pode ser consi
derado como um reforço da suposição inicial. Juízos for
mulados nesta base — retrocedendo pragmaticamente de
directrizes políticas para conceitos genéricos básicos —
devem quase inevitavelmente ser influenciados por consi
derações «ideológicas» e inclinações. Uma longa experiên
cia parece comprovar esse facto.
42
Com essas diferenças entre tipos de generalizações
está relacionada (mesmo que não seja imediatamente evi
dente) a difícil questão de como distinguir e classificar
este papel ideológico, se for efectivamente legítimo falar
de teorias sociais com carácter ideológico. Escusado será
dizer que, em literatura polémica, o emprego de etiquetas
tais como a de «apologética» para descrever esta ou aquela
escola de escritores, segundo a sua proveniência social e
tendência, tem estado longe de ser claro ou consequente.
Sabe-se que Marx falou da escola de economia política
clássica (termo que ele próprio criou) como de «escola
burguesa». Mas não pretendeu de modo algum pôr
g de parte as suas doutrinas, por serem completamente
O a negativas e produto de «falsa consciência»: de facto, des-
^ „ tacou elogiosamente o avanço que o seu pensamento repre-
j & sentou e a visão científica de que deram provas quanto à
^ ll natureza da sociedade económica (embora dentro «dos
q 3 limites para além dos quais ‘o seu pensamento’ não podia
q | passar»).* Mesmo quanto ao período posterior a 1830, do
44
uma distinção entre o papel ideológico duma teoria que
formula um certo tipo de justificação do sistema exis
tente, e, portanto, enfraquece a crítica e desvia a revolta
(ou, no caso contrário, que profere uma condenação
do status quo) e uma análise teórica que apenas produz
alguns corolários políticos (por exemplo, no que diz res
peito à política orçamental) para os governos utilizarem
em contingências particulares («engenharia social», num
certo contexto ad hoc e limitado). No entanto, não parece
nada fácil fazer a delimitação entre estes dois tipos de teo
ria e um estudo aparentemente objectivo das condições
gerais do equilíbrio de mercado (estático ou dinâmico).
O sistema walrasiano constitui um bom exemplo deste
tipo de estudo.
Este exemplo pode parecer sugerir que a resposta de
pende de o último tipo de teoria ser ou não passível de in
terpretação normativa, e de certas conclusões normativas
serem ou não explicitamente deduzidas, como de facto
sucedeu com o sistema walrasiano, a partir do momento
em que se lhe aditou o teorema da maximização da
utilidade em condições de livre concorrência. Não se pode
negar que esta é uma via em que a análise formal pode
ter, e tem tido, implicações apologéticas. Mas será a única
via? Em caso afirmativo, talvez se possa atribuir a aná
lise formal per se a uma intrusão de ordem normativa; o
facto de um tipo de análise conduzir, mais do que outro,
a esse tipo de tratamento (por exemplo, atribuindo à uti
lidade um papel fundamental) é «acidental» no que diz
respeito à análise per se. Adoptar este ponto de vista, con
tudo, seria menosprezar aquilo que anteriormente se acen
tuou; designadamente que a análise teórica, pelo menos
numa teoria social como a economia, tem inevitavelmente
a sua história causal. Tipos diferentes de história causal
podem ter implicações diversas no domínio daquilo que
é possível realizar e alcançar por meio de política e acção
social; ela é, por conseguinte, relevante, e até fundamen
tal, para estabelecer alternativas viáveis — se, de facto,
existe qualquer alternativa viável para a estrutura socio
económica existente — e isto inteiramente dentro dos
limites do raciocínio «positivo» e wão-normativo. Pode
45
citar-se o simples contraste entre o tratamento keynesiano
e pré-keynesiano dos determinantes do nivel de rendimento
e emprego, que essencialmente consistiu em o primeiro
afirmar que a ordem de determinação causal era: inves
timento —> poupança (por intermédio do efeito multipli
cador de uma alteração de investimento, no rendimento) ;*
enquanto a teoria pré-keynesiana tinha tratado o inves
timento como determinado e limitado pela poupança, por
intermédio da influência desta na taxa de juro. Não é
preciso alongarmo-nos demasiado sobre a influência impor
tantíssima desta modificação teórica na política (em.
especial, quanto a técnicas práticas e meios para
combater o desemprego e influir no nível de actividade).
Mesmo assim, podemos dizer que este tipo de alteração
de sequência causal (dentro daquilo que Marx denominaria
a «esfera de circulação») não modificou fundamental
mente a imagem conceptual de como funcionava um
sistema capitalista. Mais importante, nesta questão, é
o contraste entre teorias que analisam o modo de determi
nação dos preços, ou das relações de troca, através e por
meio das condições de produção (custos, coeficientes de
input e outros) e as que consideram principalmente a
procura como ponto de partida.
Sem dúvida que tem sido este o contraste mais mar
cante e distintivo entre os dois principais sistemas rivais
do pensamento económico no século dezanove e de en
tão para cá; uma distinção que é velada por tentativas
puramente formais para os «conciliar», ou para inter
pretar em termos exclusivamente formais as diferenças
entre ambos. Por outro lado, o contraste torna-se
mais profundo do que parece à primeira vista, porque,
conforme veremos, envolve uma diferença nas «fron
teiras» da questão, ou nos factores e influências incluídos
46
no círculo das influências relevantes ou dos factores deter
minantes. Para os economistas clássicos, e especialmente
para Marx, o estudo da Economia Política e a análise
do valor de troca partia necessariamente das condições
socioeconómicas que moldavam as relações de classe
da sociedade. Adam Smith considerava importante dis
tinguir entre o «primitivo e rude estado da sociedade
que precede a acumulação de bens e a apropriação da
terra», e a sociedade de classes depois de «terem sido
acumulados bens nas mãos de pessoas privadas»; enquanto
Ricardo considerou «as leis que regulam» a distribuição
como «o principal problema da Economia Política», uma
vez que explicavam os principios segundo os quais
«o produto da térra é dividido entre três classes da comu
nidade, designadamente o proprietário da terra, o dono
dos bens ou capital necessário para o seu cultivo, e os
trabalhadores cujo esforço permite ela ser cultivada».*
Pode dizer-se que para eles a Economia Política era uma
teoria de distribuição antes de ser uma teoria de valor de
troca: seguramente Ricardo, conforme veremos, ideou a sua
teoria do lucro antes de ter aperfeiçoado a sua teoria
do valor como fundamento e estrutura da primeira. Mais
deliberada e explicitamente, Marx acentuou sempre a
distinção entre os processos e relações essenciais na
sociedade humana e o reino das aparências; identificando
troca, ou circulação de bens-dinheiro, com o segundo,
e relações sociais de produção com os primeiros. A con
centração da atenção na troca per se, isolada do seu
contexto sociohistórico, foi fonte de «falsa consciência»
e teorização ilusoria. Marx afirmou na sua polémica contra
Proudhon: «Em princípio, não há troca de produtos,
mas sim troca de trabalhos que competem na produção.
É do modo de troca de forças produtivas que depende
47
o modo de troca de produtos.»* A mesma ideia surge
de novo na sua referência ao «fetichismo dos bens»,
no Capital: «Urna determinada relação social entre os ho
mens assume aos seus olhos a forma fantástica duma rela
ção entre coisas»;** e ainda em Teorias sobre a mais-
-valia (referindo-se à vulgãrõkonomie pós-ricardiana):
«a existência do rendimento', tal como surge apa
rentemente, está separada das suas relações internas
e de todas as ligações. Assim, a terra torna-se a fonte
de renda, o capital a fonte de lucro, e o trabalho a fonte
de salários.*** Os limites da questão por ele traçados
não foram, consequentemente, arbitrários: foram consi
derados, coerentemente com a sua interpretação do desen
volvimento histórico, indispensáveis para englobar todos
os factores necessários para qualquer explicação com
pleta e substancial.
Em oposição a esta forma de abordar a questão, a me
todologia introduzida pela «revolução jevoniana», e mais
sistematicamente formulada por Menger e pela «escola aus
tríaca», procurou deduzir uma explicação do valor de
troca das atitudes de consumidores individuais para com os
bens como valores de uso que proporcionam a satisfação
de necessidades individuais. O significado deste ponto de
vista não é (como correntemente se tem pensado) apenas
o pôr-se em destaque o extremo oposto duma cadeia
de acontecimentos ou processos interdependentes. Em
vez disso, existem duas consequências fundamentais
deste modo de abordar o problema. Em primeiro lugar,
tratou indivíduos, a sua estrutura de necessidades e as
escolhas e substituições resultantes, como os dados últimos
e independentes do problema económico: estes eram os
átomos últimos do processo de troca e do comportamento
de mercado, para além dos quais a análise não ia (por
exemplo, não se ocupava, e de facto não podia ocupar-se,
48
do condicionamento ou interdependência social de
desejos e reacções comportamentais dos indivíduos).
Em segundo lugar, deduziu uma teoria de repartição
inerente ao processo de fixação de preços — como fixação
de preços de «factores originais» ou serviços produtivos
de acordo com o papel que desempenhavam na criação
de bens que, em primeiro ou segundo grau, eram de uti
lidade para consumidores finais. Na concepção de Menger,
conforme veremos adiante, havia uma hierarquia simples
de «bens de primeira ordem» e «bens de ordem superior»;
os valores dos segundos dependiam dos primeiros de
maneira simples, conforme o seu papel no processo unidi
reccional pelo qual bens ou serviços de «ordem superior»
eram produtivamente transformados em bens de con
sumo e valores de uso finais. Isto, e não a utilização
do dispositivo formal de incrementos marginais, foi o
ponto capital da nova tendência do último quartel do século
dezanove (uma razão pela qual a designação de «margi-
nalismo» para descrever esta tendência é mal aplicada).
Antecipando a discussão nos capítulos seguintes:
talvez seja particularmente digno de nota o facto de
esta inclusão de uma teoria de repartição dentro da teoria
da formação dos preços, como conjunto constitutivo
do conjunto mais amplo de processos de mercado, vistos
como um todo inter-relacionado, ser discutível num as
pecto importante. Uma estrutura de procuras de mercado
só pode ser deduzida de desejos, preferências e reacções
comportamentais de consumidores, desde que se admita
que os mesmos dispõem de um determinado rendimento
monetário.* Daqui resulta que uma repartição inicial
4 49
de rendimento entre indivíduos está implícita no processo
geral da formação de preços, no sentido de que deve ser
incluida como uma das determinantes da estrutura de
procura a partir da qual os preços (incluindo os preços
dos factores produtivos) são deduzidos; o processo total
de fixação de preços está relacionado com esta distri
buição postulada. Por outras palavras, uma teoria da
distribuição se for concebida como uma teoria de preços
deduzidos de serviços ou factores produtivos, não pode
ser independente da repartição de rendimento inicial
como premissa essencial.*
A consequência importante, mas muito raramente
notada, desta oposição entre o modo clássico de abordar
o problema e o moderno, resulta imediatamente daquilo
que foi dito: designadamente, que no primeiro, a reparti
ção do rendimento é tratada como resultante de
instituições sociais (por exemplo, posse da propriedade)
e relações sociais, ao passo que no último é determinada
pelas condições de troca. No primeiro caso, é determinada
do exterior, e, no segundo, do interior do processo dos
preços de mercado (Marx exprimiria o primeiro afirmando
que as condições sociais e as forças de classes eram
mais fundamentais que as relações de troca).** Classica
50
mente, a repartição do rendimento (por exemplo, o
coeficiente salário-lucro) era uma pré-condição da forma
ção de preços relativos. Em contrapartida, na teoria
pós-jevoniana e austríaca, a teoria da repartição do
rendimento é deduzida como parte do processo geral
de formação de preços — como um sistema de equações
fazendo parte do sistema total de equações do equilíbrio
de mercado (embora não sem circularidade, conforme
vimos, na medida em que tem de presumir-se uma repar
tição inicial do rendimento traduzindo' as necessidades
ou preferências dos consumidores em termos de procura
de mercado). Assim, a repartição do rendimento surge
como algo independente das instituições de propriedade
e das relações sociais: como algo supra-institucional e
supra-histórico, pelo menos no que diz respeito à distribui
ção do rendimento entre factores. Veremos adiante que
isto é a substância e essência da crítica da teoria
de produtividade marginal na discussão moderna (a polé
mica contra a chamada escola «neo-clássica»); embora
a discussão, em si mesma, tenha tratado principalmente
de questões formais (de coerência e análogas). Conforme
um escritor afirmou recentemente: «A teoria das relações
de produção pretendeu ser independente das instituições
da sociedade; isto é, as relações entre homens eram
tratadas como irrelevantes para uma explicação da re
partição. Marx teve o mérito de ver que esta separação
não é válida, mesmo no mundo da pura lógica, e o
significado desta distinção no caso de mais de um bem
de capital tem sido sublinhado pelos críticos modernos
das parábolas neo~clássicas.»*
51
Ill
54
2. ADAM SMITH
I
55
um mecanismo nos negócios dos homens, com o qual era
incompatível a interferência não esclarecida do soberano
ou estadista, foi a inovação fundamental do pensamento
humano sobre a sociedade, substituindo essencialmente
o pensamento antigo baseado no «direito natural»,
e não continuando-o, como por vezes se tem afir
mado.* Segundo Lord Robbins, embora Smith «utilize
muito frequentemente a terminologia de Naturrecht»,
os seus «argumentos são muito coerentemente de carácter
utilitarista».** Aquilo que existe de impressionantemente
novo no «princípio da Liberdade Natural», que enunciou
logo em 1749, é a afirmação empírica de que (na paráfrase
de Schumpeter) «a livre interacção de indivíduos não pro
duz caos, mas sim um sistema ordenado que é logicamente
determinado»*** — um sistema que, por conseguinte, pode
ser enunciado em termos racionais. É certo que se falou
muito, ao tempo, da «ordem natural», e que isto favo
recia um antigo apreço pelos dispositivos artificial-
56
mente elaborados pelo homem. Mas a verdadeira finali
dade desta suposta ordem natural (usando as palavras
de Dugald Stewart na Memória de Adam Smith) era
«permitir que cada homem, contanto que respeite as regras
da justiça, lute pelo seu próprio interesse à sua própria
maneira, e aplique a sua indústria e o seu capital na mais
livre concorrência com os seus concidadãos.»* Por outro
lado, foi especialmente característico de toda a escola,
o facto de a sua principal preocupação ter sido a política
económica. Esta preocupação precedeu e determinou as
suas ideias acerca da ordem económica, tanto quanto
foi consequência delas e dos seus corolários.
Numa orientação análoga, os Fisiocratas, a escola
francesa dos économistes do século dezoito, debruçaram-
-se sobre a transformação das políticas tradicionais dos
governos em matéria de comércio e tributação;** e, com
este objectivo, elaboraram o conceito duma «ordem econó
mica». De certa maneira, fizeram isto mais «objectivamen
te» que Smith e a escola inglesa, visto que se preocuparam
menos com a natureza e motivação humanas e dirigiram
a sua atenção para a estrutura ou sistema de relações
comerciais—para uma fisiologia da sociedade económica—
com processos e regras próprias às quais a política gover
namental deve adaptar-se, quando não subordinar-se.***
57
Citando o Professor Meek: «Os Fisiócratas partiram da
hipótese de que o sistema de troca através do mercado,
cuja análise era o seu objectivo principal, estava sujeito a
certas leis económicas objectivas, que funcionavam inde
pendentemente da vontade do homem e podiam ser racio
nalmente conhecidas. Estas leis governavam a forma
e o movimento da ordem económica, e, portanto... a forma
e o movimento da ordem social como um todo.»* O que
existia de peculiar na sua maneira de abordar o problema,
era o facto de terem considerado como ponto fundamental
a questão da fonte e explicação da existência de um produto
líquido ou excedente, e terem tomado, como fulcro do seu
sistema, uma resposta a esta questão. Postularam (pro
vavelmente como observação empírica) que só a produção
na agricultura podia proporcionar um produto líquido ou
excedente. Pode presumir-se que a prova fosse a existên
cia de toda uma classe de proprietários de terra que dela
vivia exclusivamente, sob a forma de renda da terra; daqui
resultava que, desta maneira, e neste caso por excellence,
a Natureza mostrava a sua bondade para com o homem.
«A mais-valia surge como uma dádiva da natureza
(Marx).** Noutros domínios da actividade económica
humana, os inputs produtivos manufacturados (para
usar a terminologia moderna) podiam substituir-se a si
próprios, mas, em geral, nada mais podiam fazer: neste
sentido, eram stérile e não productif.*** A consequência
lógica foi o famoso imposto único. Se a actividade
agrícola era a fonte do excedente de que dependiam o
Estado e a aristocracia, isto implicava que tudo o que
* Ibid., p. 19.
** Theories of Surplus-Value, Parte I, trad. Emile Bums (Mos
covo, s.d.) p. 51.
*** Como não tinham uma teoria do valor, não foi introduzida
nenhuma distinção entre produtividade física e de valor (como ob
serva Schumpeter, History of Economic Analysis, p. 238).
58
restringisse essa actividade devia ser condenado como
socialmente pernicioso. É o caso das restrições ao comércio
e da tributação pesada de agricultores e comerciantes, que
enfraqueciam as fontes dos avances foncières, 'primi
tives e annuelles de que dependia o nível desta actividade
produtiva. Este, por sua vez, era o ponto fundamental
da sua análise do fluxo circular de troca (hoje talvez
se lhe chamasse um «m odelo») representado no famoso
Tableau Êconomique de Quesnay. («Cantillon e Quesnay
tiveram esta concepção da interdependência geral de todos
os sectores e todos os elementos do processo económico,
no qual — como Dupont realmente disse — nada se man
tém isolado e todas as coisas permanecem unidas.»*).
A isto acrescentou-se, numa relação bastante lógica, uma
noção paralela àquela que vimos ser característica de es
critores ingleses do século dezoito: a de que os interesses
dos indivíduos, quando prosseguidos livremente, serviam o
bem público, e isto pela «magia» da concorrência, que numa
«sociedade bem ordenada» assegura que «cada homem
trabalhe para outros, enquanto crê que está trabalhando
para si próprio». No entanto, não se procurava demons
trar logicamente esta suposição; apelava-se para «prin
cípios de harmonia económica» outorgados ao mundo
pela benevolência divina.**
No que se refere à «dívida» que Smith terá con
traído para com a Escola Francesa, com a qual
contactou durante a sua viagem pela França e
Suíça em 1764-6, talvez seja mais verdadeiro ter exis
tido uma geração de ideias paralela e independente,
em vez de dependência duma fonte original única. Sabemos
agora que muitas das noções características desenvolvidas
por Smith na Riqueza das Nações estavam presentes,
pelo menos em embrião, nas suas lições anteriores a 1764.
Sucedeu assim, por exemplo, não só com a ideia de a divisão
do trabalho ser limitada pela dimensão do comércio mas
* Ibiã., p. 242.
** Cf. Meek, Economics of Physiocracy, p. 70.
59
também com a do papel benéfico do interesse individual,
traduzido no seu expressivo aforismo segundo o qual «não
é da benevolência do carniceiro, cervejeiro ou padeiro que
podemos esperar o nosso jantar, mas sim do facto de eles
procurarem o seu próprio interesse. Podemos apelar, não
para o seu espírito humanitário, mas sim para o amor que
têm por si próprios, e nunca lhes falemos das nossas
necessidades, mas sim das suas vantagens.»* O contacto
com as ideias francesas pode de facto estar na origem
(além de reforçar a sua fé na liberdade económica) da sua
noção de capital como «adiantamento» no tempo — quer
dizer, adiantamento da produção, ou, pelo menos, do seu
acabamento: uma noção que continha implicitamente todos
os elementos essenciais da teoria do capital posteriormente
desenvolvida, na medida em que esta tratou o ponto fulcral
do problema do capital e do seu investimento, como rotação
no tempo. De qualquer modo, a noção de capital constituído
fundamentalmente por adiantamentos de salário aos traba
lhadores impregnou toda a Economia Política clássica na
Inglaterra.** Adam Smith parece ter partilhado a mesma
ideia quando, nas suas primeiras lições, afirmou que «cada
comércio exige uma certa quantidade de alimento, vestuá
rio e habitação para ser realizado» e que «o número de pes
soas que são empregues deve ser proporcional a essa
quantidade».*** Embora expressamente em desacordo com
o princípio fundamental do sistema fisiocrático de que só
60
a agricultura proporcionava um proãuit net, admitia
a existência de «dois excedentes» na agricultura. «Com
efeito, os agricultores e os trabalhadores agrícolas, para
além da quantidade de bens que os mantém e emprega,
reproduzem anualmente um produto líquido, uma renda
livre para o proprietário da terra. Deste modo, tal como
um casamento que produz três filhos é seguramente
mais produtivo que outro que produz apenas dois, tam
bém o trabalho dos agricultores e trabalhadores agrícolas
é mais produtivo que o dos comerciantes, artífices e fabri
cantes.»* Provavelmente, a ideia de Smith, que examina
remos adiante, acerca da relação do interesse do pro
prietário da terra com o interesse social geral, estaria
ligada a este aspecto.
II
61
com este. «O preço natural... é, na realidade, o preço
central, para o qual os preços de todos os bens tendem
continuamente.»* Já nas primeiras lições esta concepção
estava completamente formada: «qualquer política que
tende a fazer subir o preço de mercado acima do preço
natural, tende a diminuir a abundância pública»; «todos
os monopólios e privilégios exclusivos das corporações, por
mais louvável que possa ter sido a intenção inicial da sua
instituição, têm o mesmo mau efeito» que «os impostos
sobre exportação e importação» que «também embaraçam
o comércio».** A melhor política é, de longe, a de «deixar
as coisas seguir o seu curso natural». E esta afirmação,
tão genérica, não apresenta nenhuma prova minimamente
fundamentada. No entanto, não se trata de uma afirmação
metafísica, como não o era a noção de «valor natural»
per se (o facto de o equilíbrio que ela definia ser
hipotético não a torna metafísica), ainda que tivesse
um certo cunho metafísico em virtude da terminologia,
que, sem dúvida, lhe conferiu muito maior impacto numa
audiência contemporânea (e noutras subsequentes) — uma
audiência que estava impregnada de noções metafísicas
acerca do ius naturalis.
Quando se tratou de dar uma definição mais precisa
deste valor natural e sua determinação, Adam Smith
pouco mais teve para dizer além de que o preço do equi
líbrio era estabelecido no devido momento pela concor
rência, através das operações de oferta e procura —- e que
para ele «tendem constantemente os preços de todos
os bens». O «preço natural» dum bem é definido
como sendo igual à soma das «taxas naturais dos
salários, lucro e renda», que, por sua vez, são definidas
como «taxas correntes ou médias» dos salários, lucro ou
renda predominantes nas «circunstâncias gerais da socie-
* Ibid., p. 61.
** Lectures... by Adam Smith, ed, Cannan, pp. 178, 236.
62
dade» em determinado momento: por outras palavras,
determinadas pelas condições gerais de oferta e pro
cura de trabalho, capital e terra, que governam res
pectivamente as três «Partes componentes do Preço dos
Bens», nas quais, «em qualquer sociedade, o preço de
qualquer bem acaba por se desdobrar por si próprio numa
ou noutra ou em todas estas três partes». Torna-se
evidente como «a quantidade apresentada no mercado
deve, em qualquer momento, ser quase igual à procura
efectiva», ou, inversamente, como «alguma das partes com
ponentes do seu preço, deve subir acima do preço natural»,
ou, como alternativa, descer abaixo deste, e de que modo
isto influenciará a oferta subsequente, adaptando-a ao
nível da procura. Isto implica que a justificação da con
corrência, com as suas oscilações frequentes e por vezes
amplas tendentes a igualar os preços de mercado e natu
ral, «seja o próprio ajustamento da quantidade total de
indústria anualmente utilizada para apresentar qualquer
bem no mercado, à procura efectiva».*
A sugestão duma teoria do valor natural do trabalho,
surge tanto na discussão do «preço real e nominal» (de
que voltaremos a ocupar-nos) como na abertura do Capí
tulo V I do Livro I, «Das Partes Componentes do Preço
dos Bens». Mas cedo verificamos que isto só se aplica
«àquele primitivo e rude estado da sociedade que precede
a acumulação de bens e a apropriação da terra». Então,
«a proporção entre as quantidades de trabalho necessá
rias para adquirir diferentes objectos... será o único
factor capaz de constituir uma norma de troca recíproca...
Neste estado de coisas, todo o produto do trabalho
pertence ao trabalhador; e a quantidade de trabalho
correntemente necessária para adquirir ou produzir
qualquer bem é o único factor que pode regular
a quantidade de trabalho que este bem deve normal-
63
mente comprar, ou por ela ser trocado.»* Mas, «assim
que se acumula capital nas mãos de certas pessoas,
algumas destas utilizá-lo-ão naturalmente em pôr a tra
balhar pessoas industriosas, a quem fornecerão materiais
e subsistência, a fim de obterem um lucro com a venda
do seu trabalho, ou com aquilo que o seu trabalho acres
centa ao valor dos materiais». «O valor que o trabalhador
acrescenta aos materiais desdobra-se em duas partes»,
salários e lucros. «Nestas circunstâncias, o produto total
nem sempre pertence ao trabalhador. Em muitíssimos ca
sos, este tem de partilhá-lo com o proprietário do capital
que o emprega.» Segue-se que «no preço dos bens... os lu
cros do capital constituem uma parte componente comple
tamente diferente dos salários de trabalho, e regulada
por princípios muito diferentes». Por outro lado, a pro
porção destas duas componentes pode variar muito entre
as diferentes linhas de produção.**
Conforme tem sido frequentemente observado, suge-
re-se aqui uma teoria do lucro «deduzido»; tanto o lucro
como a renda são implicitamente considerados como dedu
ções daquilo que é, «naturalmente», ou «originalmente»,
o produto do trabalho.*** O que não passa duma sugestão
no caso do lucro, torna-se bastante mais explícito quando
se chega à terceira componente, a renda da terra, com
* Ibid., p. 51.
** Ibid., pp. 52, 53.
*** Ê de notar que Marx tratou isto como um conceito de mais-
-valia, pelo menos em embrião — e a teoria de Ricardo ainda
o fez em maior grau: como uma «teoria de mais-valia que, evidente
mente, existe na sua obra, embora não defina a mais-valia como dis
tinta das suas formas particulares, lucro, renda, juro». A propósito,
elogia Adam Smith (o seu «grande m érito») pelo seu sentido histó
rico ao considerar (muito melhor que Ricardo) que «com a acumu
lação de capital e o aparecimento da propriedade da terra... surge
algo de inédito» ( Theories of Surplus Valué, Parte I, trad. E Burns
(Moscovo, s.d.) pp. 83-6, Parte II, trad. Renate Simpson (Moscovo,
1968; Londres, 1969) p. 169).
64
a observação de que «os senhores da terra, como todos
os outros homens, desejam colher onde nunca lavraram,
e exigem uma renda mesmo para o seu produto natural».
(E acrescenta: «A madeira da floresta, a erva do campo,
e todos os frutos naturais da terra, que, quando esta era
propriedade comum, custavam ao trabalhador apenas o
incómodo de os colher»; ao passo que agora tem de
«pagar para os colher; e tem de ceder ao dono da terra
uma porção daquilo que colhe ou produz com o seu
trabalho».)* Se de facto foi intencional, essa teoria da
«dedução», poderia ser interpretada de modo plausível no
âmbito de certa teoria do «direito natural». O que estaria
certamente de acordo com o quadro geral em que
Adam Smith a colocou. Mas também poderia ser inter
pretada num sentido histórico-comparativo, como uma
teoria incipiente da exploração, vista como relação social,
num sentido análogo ao de Marx.**
Smith apresenta-nos assim uma teoria dos preços que
pode ser caracterizada (segundo a descrição feita por
Sraffa)*** como uma «Teoria da Soma» — uma soma
(meramente) de três componentes primárias do preço.
Também tem sido considerada como uma simples Teoria do
Custo de Produção; neste aspecto foi transmitida ao longo
do século dezanove e tomou-se conhecida nos manuais
sobre esse assunto. Smith deduziu dela um corolário
que, depois de examinado, pode ser um elemento para a
■5
65
contestação desta teoria de adição-mais-oferta-e-procura,
como explicação adequada do valor. Segundo esse corolá
rio, ao qual se atribuiu importância considerável, um im
posto sobre bens essenciais, ou mais particularmente sobre
alimentos, teria um efeito mais profundo que outros
impostos, visto que, fazendo subir o nível dos salários
(monetários), acabaria por aumentar os preços de todos
os bens. Isto significa que «o preço monetário dos cereais
regula o de todos os outros bens de produção doméstica».*
O que implica que quando os cereais sobem, tudo sobe; mas
logo surge a pergunta: «sobe em termos de quê?» Esta
pergunta viria a ser feita, como veremos, por Ricardo,
e iria constituir o trampolim da crítica de Ricardo ao
tratamento do valor por Adam Smith.
No entanto, só no quinto capítulo do Livro I Adam
Smith parece relacionar, pela primeira vez, valor de troca
e trabalho, em ligação com aquilo a que ele chama «a
medida real» do valor de troca, «ou em que consiste o
preço real de todos os bens», como podemos ler no título do
capítulo. Para evitar um equívoco que não tem sido raro,
é necessário acentuar que neste capítulo o autor se ocupa,
não da causa ou «regra» (isto é, princípio) do valor, mas
sim do padrão de medida em cujos termos os valores dos
bens e as alterações por eles sofridas podem ser avaliados
de forma apropriada. Embora estes dois aspectos estives
sem intimamente associados no pensamento do tempo,
sendo o segundo, em especial, considerado uma chave para
o primeiro (conforme veremos também com Ricardo), são
questões distintas e separáveis, e foi deste segundo aspecto
que Adam Smith se ocupou imediatamente neste ponto.
Depois de observar que o valor de troca dum bem
é «mais frequentemente avaliado pela quantidade de
dinheiro, do que pela quantidade de trabalho ou
de qualquer outro bem que possa ser obtido em troca»,
prossegue pondo em relevo que o dinheiro é em
si mesmo variável (como se viu com a inflação da época
60
Tudor), pois depende das variações da quantidade de tra
balho necessária para a mineração do ouro e da prata. «Tal
como uma medida de quantidade, tal como o pé natural,
a braça ou a mão-cheia, que variam constantemente na sua
própria quantidade e nunca podem medir rigorosamente
as outras quantidades, também um bem cujo valor varia
constantemente nunca pode ser uma medida rigorosa
do valor doutros bens.» Tendo excluído o dinheiro, o
autor volta a recorrer ao trabalho como único padrão
possível; e a razão que apresenta tem um interesse con
siderável. Ê que «quantidades iguais de trabalho, em
qualquer momento e lugar, podem ser tidas como de
igual valor para o trabalhador. Nas condições normais
de saúde, força e disposição de espírito, com um grau
normal de habilidade e destreza, sacrifica sempre a mesma
porção do seu conforto, liberdade e felicidade... Só o tra
balho, portanto, nunca variando no seu próprio valor,
é o padrão último e verdadeiro pelo qual pode ser avaliado
e comparado o valor de todos os bens, em qualquer
momento e lugar. É o seu preço real; o dinheiro é apenas
o seu preço nominal.»* Talvez, traduzindo isto na termino
logia de Marshall, se pudesse dizer que equivale a afirmar
que o trabalho constitui o custo real final implicado na
actividade económica, e, portanto, o único padrão satisfa
tório em cujos termos podem ser medidos os valores mutá
veis de todos os bens, incluindo os metais preciosos como
bem monetário.
No parágrafo do qual se extrai esta passagem, Adam
Smith parece fazer muito claramente a distinção entre a
quantidade de trabalho necessária para a produção dum
bem, e o preço pelo qual esse trabalho será trocado no mer
cado (ou aquilo que Marx, conforme veremos, iria denomi
nar o preço da força de trabalho). Segundo o autor «o
preço que ele (o trabalhador) paga deve ser sempre o
mesmo, qualquer que seja a quantidade de bens que
recebe em troca. A quantidade de bens comprada não
* Ibiã., p. 37.
67
é, evidentemente, sempre a mesma; mas é o seu valor
que varia, e não o do trabalho que os compra. Em qual
quer momento e lugar, é caro aquilo que é difícil de obter,
ou o que é adquirido à custa de muito trabalho; e é barato
o que se pode obter facilmente, ou com muito pouco
trabalho.» No parágrafo seguinte, afirma: «Mas embora
para o trabalhador a quantidades iguais de trabalho cor
responda sempre o mesmo valor, para a pessoa que o
emprega, no entanto, essas quantidades têm um valor
variável. É igualmente variável a quantidade de bens que
ele utiliza para as comprar, e para ele o preço do trabalho
parece variar como o de todas as outras coisas... Na rea
lidade, contudo, são os bens que são baratos num caso,
e caros no outro.»*
Contudo, surpreendentemente, noutro ponto do
mesmo capítulo encontramo-lo referindo-se à «quantidade
de trabalho que ele (um bem) lhe permite comprar ou
ter à sua disposição», como sendo a «medida real do valor
de troca de todos os bens»: isto é afirmado, efectivamente,
no parágrafo inicial desse capítulo.** B nesta base que
Ricardo critica a sua confusão, aparente, do preço do
trabalho (isto é, dos salários pagos) com a quantidade
de trabalho necessária para produzir um determinado pro
duto, o que resultou, portanto, numa flutuação entre um
padrão de trabalho disponível e um padrão de trabalho in
corporado. (Segundo Ricardo, Smith, «que tão rigorosa
mente definiu a fonte original do valor de troca», «criou
outro padrão de medida do valor... não a quantidade de
trabalho aplicada na produção dum objecto, mas sim a
quantidade que pode render no mercado: como se estas
duas expressões fossem equivalentes».)***
68
De facto, pode considerar-se que, dentro dum con
texto de padrão ou medida, esta noção de trabalho disponí
vel é paralela à noção de salário como determinante do
valor, no sentido de «parte componente dum preço», que
nós vimos ter sido adoptada por Smith como base do seu
corolário acerca do papel dominante dos cereais (enquanto
bem-salário) na formação dos preços de todos os outros
bens. Evidentemente, as duas medidas, que iriam
ser intensamente discutidas entre Ricardo e Mal-
thus, dariam resultados idênticos se (mas só se) os
salários se mantivessem constantes como proporção do
valor total produzido (o que significa que as oscilações
i) de salário ao longo do tempo estão ligadas a mudanças
na produtividade do trabalho) .* Pelo contrário, dentro de
um contexto de regra ou princípio causal para a formação
do preço ou do valor de troca, uma teoria dos salários e
uma teoria do trabalho incorporado serão equivalentes
(ignorando a renda) se (mas só se) a proporção entre
trabalho e capital, e portanto a proporção entre salários
e lucro, for uniforme em todas as linhas de produção.
69
Não se pode dizer que Adam Smith tivesse feito muito
uso desta concepção de uma medida de valor em termos
de trabalho, em qualquer dos sentidos a que faz alusão.
Visto que a questão está directamente relacionada com
o problema da divisão proporcionada do produto, seria
talvez de esperar que conduzisse a alguma discussão
deste assunto, na forma de uma mais ampla investigação
do problema da distribuição. No entanto, para falar com
propriedade, não é isso que acontece. O que encontramos
como consequência da investigação sobre as Partes
Componentes do Preço de Bens, são duas proposições
relacionadas que se referem à tendência de duas destas
componentes (salários e lucros) para a uniformidade
entre diferentes empregos e indústrias, e a determinação
do nível geral de cada um deles por condições de oferta
e procura de trabalho e capital, respectivamente. As «cir
cunstâncias que determinam naturalmente» a taxa de
salários e a taxa de lucros, assim como as suas diferenças
«nos diversos empregos de trabalho e capital», formam
a matéria dos capítulos seguintes (VIII, IX e X ) , seguida
de um estudo separado da Renda da Terra. Ê no primeiro
destes capítulos que — para além das observações conheci
das sobre o facto de a «melhoria das condições das classes
inferiores da população» ser uma vantagem («inevitavel
mente, não pode ser florescente e feliz uma sociedade
cujos membros, na sua imensa maioria, são pobres e
miseráveis»)* e sobre a superioridade dos patrões em ma
téria de poder de negociação mantendo-se «sempre numa
espécie de combinação tácita, mas constante e uniforme,
para que os salários do trabalho não subam acima da
sua taxa actual»** — se encontra uma afirmação geral,
70
mais clara, a respeito de os salários dependerem
sobretudo da taxa de variação verificada na procura
de trabalho; estando esta, por sua vez, dependente
da taxa de acumulação do capital. «A procura da
queles que vivem dos salários... aumenta necessariamente
com o aumento do rendimento e capitais de cada país, e
não pode aumentar sem este... Não é a grandeza real da
riqueza nacional, mas o seu aumento constante, que
provoca um aumento nos salários. Por conseguinte,
não é nos países mais ricos, mas sim nos mais
florescentes, ou naqueles que estão a enriquecer mais
depressa, que os salários são mais altos.»* E tam
bém: «Merece ser sublinhado que é no estado pro
gressivo em que a sociedade avança... mais do que quando
adquiriu a totalidade das suas riquezas, que a condição
dos trabalhadores pobres... parece ser mais feliz e mais
confortável. Ela é difícil num período estacionário, e mise
rável num período de declínio. O estado progressivo é na
realidade o estado feliz e vigoroso para as diferentes
classes da sociedade. O período estacionário é monótono,
o de declínio é melancólico.»** Esta posição de destaque que
se confere à taxa de variação, em vez de ao nível de procura,
está relacionada, e na realidade até resulta de um modo
de considerar a população como tendente a acompanhar
qualquer aumento de procura e salários («se esta procura
for constantemente crescente, a remuneração do trabalho
deve necessariamente incentivar o casamento e a multipli
cação dos trabalhadores»), até que «a multiplicação exces
siva» da mão-de-obra ultrapasse esta procura, ao primeiro
sinal de afrouxamento do seu aumento, e assim «faça de
novo descer o seu preço [do trabalho] para a taxa apro
priada que as condições da sociedade exigiam». «Deste
modo», conclui-se, «a procura de homens, como a de
outros bens, regula necessariamente a produção de ho
* Ibid., p. 71.
** Ibid., p. 83.
71
/
/
mens; acelera-a quando ela é demasiado lenta, e detém-na
quando se torna excessiva.»*
Quanto ao lucro, também é afectado pelo «estado
de progresso ou declínio da riqueza social», mas de
maneira oposta. «O aumento de mercadorias, que faz subir
os salários, tende a fazer baixar os lucros. Quando
as mercadorias de muitos fabricantes ricos são colocadas
no mesmo ramo de negócio, a sua concorrência mútua
tende naturalmente a fazer baixar o lucro; e quando
há um aumento análogo de mercadorias nos diferentes
negócios realizados na mesma sociedade, a mesma con
corrência deve produzir o mesmo efeito em todos».**
O resultado pode ser uma descida dos preços de muitos
bens, ainda que a subida de salários provoque a subida
do preço de outros. Esta explicação dada por Smith
para uma taxa de lucro decrescente com o progresso,
foi também matéria para uma crítica ulterior de Ricardo,
que, evidentemente, a considerava um exemplo muito claro
da inadequação das explicações baseadas na oferta-e-pro-
cura em que Smith (e na sua peugada, Malthus em parti
cular) tanto se apoiava. De qualquer modo, sob a forma em
que foi apresentada, a conclusão baseava-se numa genera
lização contestável daquilo que frequentemente acontece
num só ramo de negócio, relativamente ao macro-nível
de todos os negócios.
No que diz respeito a diferenças de salários e lucros
em diversos empregos (diferenças coerentes com o «preço
natural», e não desvios deste), a forma como as tratou
corresponde à conhecida teoria das vantagens líquidas
iguais. No início do Capítulo X encontramos a afirmação
clara e inequívoca de que «pelo menos numa sociedade...
onde houvesse perfeita liberdade, e onde cada homem
fosse perfeitamente livre de escolher a ocupação que
se lhe afigurasse apropriada, e de a trocar... o conjunto
das vantagens e das desvantagens dos diferentes empregos
72
de trabalho e capital deveria, em ramos vizinhos,
ser perfeitamente igual ou tender continuamente para
a igualdade». Ê óbvio que, «se existisse no mesmo ramo
qualquer emprego consideravelmente mais ou menos van
tajoso que os restantes, tanta gente se aglomeraria nele,
no primeiro caso, e tanta gente sairia dele, no
segundo, que as suas vantagens depressa voltariam
ao nível dos outros empregos».* Como resultado, os
salários e lucros tenderiam continuamente para serem
desiguais, exactamente na medida necessária para com
pensar, na balança das vantagens e desvantagens, outras
diferenças que não o ganho pecuniário. Cinco «circuns
tâncias principais» foram depois indicadas como res
ponsáveis por esses desvios dos ganhos monetários:
o «carácter agradável ou desagradável dos próprios empre
gos», a facilidade ou dificuldade da aprendizagem no
ramo, a constância ou inconstância do emprego, o grau
de responsabilidade atribuído ao ofício em questão e o
grau de incerteza de êxito. Contudo, conforme a segunda
parte do capítulo sublinha, «a política da Europa, não
favorecendo uma completa liberdade, dá origem a outras
desigualdades muito mais importantes»; e, implicitamente,
essa política é condenada.
Nas páginas consagradas à terceira componente
do preço, encontramos uma curiosa contradição. A renda
aparece como uma componente, num sentido diferente do
das outras duas: tão diferente, de facto, que faz duvidar
da sua capacidade para desempenhar o papel que lhe é
atribuído como explicação parcial ou determinante do
preço.** «A renda entra, portanto», escreve o autor, «na
composição do preço dos bens, de maneira diferente dos
salários e do lucro. Salários e lucro, altos ou baixos, deter-
* Ibiã., p. 99.
** Cf. a referência de Marx a «esta contradição» em Theories
of Surplus Value, Parte 2 (Londres, 1969) Cap. X III, p. 321. Claro
que Ricardo tinha apontado a sua incompatibilidade com uma
explicação do preço em termos de uma soma de três «componentes».
7
3
minam preços altos ou baixos; as rendas altas ou baixas,
são o seu efeito.»* A isto o autor acrescenta que «a renda
da terra... é naturalmente um preço de monopólio. De
modo nenhum está em proporção com o que o proprie
tário possa ter gasto com a melhoria da terra, ou como
que pode receber dela; mas sim com aquilo que o agricultor
lhe entrega.»
É apenas nas três últimas páginas deste capí
tulo,** depois duma extensa digressão histórica sobre
moeda e preços, que pela única vez se aborda o aspecto
da distribuição a que Ricardo iria atribuir tão grande
importância: designadamente, a relação entre as receitas
(ou rendimentos) das «três grandes e originais ordens
constituintes de toda a sociedade civilizada», e de cada
uma destas, separadamente, com «o interesse geral da so
ciedade». Esta relação, tal como a que se estabelece entre
o interesse individual e o geral, é de harmonia geral
e não de conflito, no que diz respeito aos senhores da terra
e aos trabalhadores. Visto que a renda da terra sobe
«de cada vez que aumenta a riqueza real da sociedade», o
interesse dos proprietários («a primeira daquelas três
grandes ordens») «está estrita e inseparavelmente ligado
ao interesse geral da sociedade». O mesmo sucede com
o interesse dos assalariados, «estritamente ligado ao inte
resse da sociedade, tal como o dos primeiros», visto que
os salários «nunca são tão altos como quando a procura
de trabalho cresce continuamente». Deste modo, o inte
resse dos assalariados, assim como o dos proprietários
de terras, foi identificado com o progresso da acumulação
de capital.
A excepção, extremamente curiosa à primeira vista,
é o interesse dos «mercadores e donos de manufacturas»,
74
que vivem do lucro. Acerca desta terceira ordem, observa-se
que «a taxa de lucro, ao contrário da renda e dos salários,
não sobe com a prosperidade nem desce com a decadência
económica da sociedade. Na verdade, é naturalmente baixa
em países ricos e alta em países pobres, e é sempre mais
alta nos países cuja degradação económica é mais rápida.
O interesse desta terceira ordem não tem, portanto, a
mesma conexão com o interesse geral da sociedade que
o das outras duas.» 'Note-se, todavia, que o fundamento
para a condenação, ou pelo menos para a prevenção
contra esta terceira classe ou ordem social, é a sua ten
dência para patrocinar medidas destinadas a limitar a
concorrência; já que «alargar o mercado e restringir
a concorrência é sempre do interesse dos negociantes...
um grupo de homens cujo interesse nunca coincide exacta
mente com o do público, que geralmente convém
enganar e até oprimir, e que por conseguinte, em muitas
ocasiões, tem enganado e oprimido».* Mais adiante, fa
lando de direitos aduaneiros protectores, o autor refere-se
à «mesquinha ganância, ao espírito monopolizador dos
mercadores e donos de manufacturas, que nem são nem
devem ser os governantes da humanidade... o seu interesse
é... directamente oposto ao da grande maioria das
pessoas».**
Estas palavras são severas, e têm sido muitas vezes
citadas para demonstrar que Smith não pode ser acusado
de fornecer «expressão teórica aos interesses essenciais da
classe dedicada aos negócios»,*** ou de ser, em qualquer
sentido, um porta-voz do capitalismo industrial. Na reali
dade, elas são-no, em qualquer significado simples e di
recto da palavra «porta-voz». O contexto histórico da
Riqueza das Nações foi certamente mais complexo do
75
que pode estar implícito numa frase deste tipo. Bm
primeiro lugar, no tipo de juízo de valor que citamos,
o autor teve sem dúvida em mente toda a rede de
regulamentações restritivas incorporadas no Sistema Mer
cantilista, que representava, no seu modo de ver, um
interesse mercantil individual e regional e constituía um
obstáculo ao processo geral de acumulação de capital e ex
pansão industrial. O que não era incompatível com a defesa
do sistema nascente (ou mesmo, implicitamente, da classe
de capitalistas industriais que foram simultaneamente os
seus pioneiros e os seus beneficiários finais) contra o inte
resse sectorial dos «mercadores e donos de manufacturas»,
onde estes constituíssem obstáculo a um objectivo mais
vasto. Em segundo lugar, convém recordar que Smith escre
veu exactamente nos primórdios, senão na véspera, da Re
volução Industrial, mais de quarenta anos antes de Ricardo.
Escreveu num momento em que os «donos de manufactu
ras» eram principalmente identificados com meio-comer-
ciantes, meio entrepreneur, que «se serviam» do sistema de
artesanato doméstico (ou quando muito, daquilo que Marx
denominaria «manufactura», em oposição a «maquino-fac
tura»). Por outro lado, escreveu num século em que se fa
ziam alguns dos mais notáveis progressos em matéria de
investimento capitalista e de novos métodos produtivos no
domínio da agricultura, mais que na indústria. A sua dou
trina só pode ser apropriadamente compreendida como re
flexo dum período de transição, cujos problemas consistiam
essencialmente em desbravar o terreno para o investimento
e a expansão industrial, que ele identificava com a supres
são da regulamentação impeditiva e regionalmente pro
tectora no interesse da concorrência acelerada e de mer
cados mais amplos.
Pode notar-se, a propósito, que este modo de trata
mento da distribuição, em termos do efeito do progresso
sobre os rendimentos das classes, foi novo na Riqueza ãas
Nações e aparentemente não teve paralelo nas lições ante
riores. Pode ser (como sugeriu Cannan) que o autor tivesse
sido influenciado neste aspecto pelo seu contacto com
os Fisiócratas, em especial pelo Tableau Economique
de Quesnay. Nas LÁçõesi encontramos apenas algumas
76
observações esparsas, como «A repartição da riqueza não
está de acordo com a do trabalho... Assim, aquele que
suporta o maior peso é o que tem menos vantagens.»*
u i
77
«Suponhamos que quatro partes de todo o dinheiro
da Inglaterra eram aniquiladas numa noite, e que,
no que diz respeito a numerário, a nação era reduzida
à mesma condição que nos reinados dos Henriques e
Eduardos; qual seria a consequência? Não deveria o
preço de todo o trabalho e bens baixar em proporção,
e tudo ser vendido tão barato como era naqueles tem
pos? Quem poderia então concorrer connosco em qual
quer mercado estrangeiro, ou ultramarino, ou vender
produtos ao preço que a nós permitiria um tal lucro?
Em muito pouco tempo, portanto, isto deveria de-
volver-nos todo o dinheiro que perdemos, e elevar-
-nos ao nível de todas as nações vizinhas; onde, de
pois de termos chegado, perdemos imediatamente a
vantagem do baixo custo do trabalho e dos bens, e o
consequente afluxo de dinheiro é detido pela nossa
abundância e saciedade.»
78
Ê sem dúvida esta a passagem a que Adam Smith
parece ter-se referido nas suas primeiras lições, quando
afirmou que David Hume «demonstra de maneira muito
engenhosa que o dinheiro deve manter-se sempre aproxi
madamente proporcional à quantidade de bens em cada
país; que sempre que o dinheiro se acumula acima da
quantidade correspondente de bens em qualquer país, o
preço destes sobe necessariamente; que este país tem de
vender a preços mais baixos no mercado internacional, e,
consequentemente, o dinheiro tem de sgir para outras
nações».*
A Riqueza das Nações, no capítulo dedicado ao «Prin
cípio do sistema comercial ou mercantil» (Capítulo I
do Livro IV ), contém o seguinte panegírico do comércio
externo: «Confere um valor aos seus produtos exce
dentes, trocando-os por outras coisas, que podem satisfa
zer uma parte das suas necessidades, e aumentar o seu
bem-estar. Graças a ele, a pequenez do mercado interno
não impede que a divisão do trabalho, em qualquer
ramo particular da arte ou manufactura, seja levada até
à máxima perfeição. Abrindo um mercado mais amplo
a qualquer parte do produto do seu trabalho que exceda
o consumo interno, incita-os a aumentar os seus poderes
produtivos e a ampliar o mais possível a sua produção
anual, aumentando assim o rendimento real e a riqueza
da sociedade. O comércio internacional presta per
manentemente estes grandes e importantes serviços
a todos os países em que é praticado. Daqui re
sulta grande benefício para todos.» E acrescenta, ata
cando o mito da exportação de excedente: «Importar
o ouro e a prata que podem ser necessários em países
que não têm minas, é, sem dúvida, uma parte da acção
do comércio externo. No entanto, é uma parte muitíssimo
insignificante dessa acção. Um país que pratique o comér
cio internacional apenas nessa base, dificilmente teria
ocasião de fretar um navio durante um século.»**
79
Não se deve deixar de observar, contudo, que antes de
chegar à Conclusão da sua crítica do Mercantilismo, o ata
que se generalizou para além de considerações sobre comér
cio internacional e repartição dos metais preciosos. Neste
Capítulo (V III do Livro IV ), há uma afirmação muito
citada e que é perfeitamente actual: «O consumo é o
único fim e objectivo de toda a produção; e o interesse
do produtor deve ser tido em conta apenas na medida
necessária para promover o interesse do consumidor.»
E acrescenta: «Pelo contrário, no sistema mercantil,
o interesse do consumidor é quase sempre sacrificado
ao do produtor; e parece ter em vista a produção, e não
o consumo, como o fim e objecto últimos de toda a indús
tria e comércio.»* Foi essencialmente esta a «mensagem»
da Riqueza, das Nações ao mundo da concorrência que
estava a nascer.
Restam duas últimas questões, às quais pensamos
dever dedicar alguma atenção, pelo menos para que
o tratamento de Adam Smith não fique incompleto:
a sua noção e uso da distinção entre trabalho «produtivo»
e «improdutivo», e a definição, intimamente relacionada
com esta distinção, de Rendimento Líquido em oposição
a Rendimento Bruto.
Ao ocupar-se do trabalho produtivo, Smith rejei
tou inicialmente a afirmação fisiócrata de que o
trabalho na indústria era estéril, ou improdutivo.
Pretendia reservar a designação «improdutivo» para
«servos domésticos» e servidores (quer de casas aristo
cráticas quer do governo) que prestavam os seus serviços
directamente ao seu senhor ou patrão. Estes serviços
eram pagos a partir do «rendimento», numa transacção
que devia ser classificada de «consumo» e não de
«produção»: por um lado, não era seguida ou completada
por qualquer venda ulterior para realizar um lucro.
«O trabalho dos servos domésticos (ao contrário do que
sucede com os artífices e manufactureiros) não perpetua a
* IUd., p. 620.
80
existência do fundo que os mantém e emprega. A sua
manutenção e emprego fazem-se sempre à custa dos
patrões, e o trabalho que fornecem não é de natureza
a retribuir essa despesa. Esse trabalho consiste em ser
viços que geralmente acabam no próprio momento em
que são prestados, e não se fixa ou realiza em qualquer
bem vendável. Foi tendo isto em consideração que...
classifiquei os artífices, os manufactureiros e os merca
dores, entre os trabalhadores produtivos, e os servos do
mésticos entre os estéreis ou improdutivos.»*
Mas ao explicar em que consistia a diferença entre
«artífices, manufactureiros e mercadores», por um lado,
e «servos domésticos», por outro, Adam Smith está longe
de ser claro. Introduz aqui duas definições distintas,
embora em grande medida sobrepostas, que envolvem
(como Marx observou) certas contradições ou, pelo
menos, não comportam qualquer delimitação clara entre
os produtivos e os improdutivos.
Aparece primeiro a noção de trabalho produtivo como
aquele que, não só substitui as despesas directas
de produção, incluindo os seus próprios salários, como
rende um lucro ou excedente sobre e acima destas des
pesas (ou, em terminologia moderna, em excesso
do valor de todos os inputs). Esta noção é essencial
mente a mesma que a dos Fisiocratas; e Marx viria
a chamar-lhe «a definição correcta».**
81
Em segundo lugar, aparece a noção implícita na
passagem que acabámos de citar, de trabalho produtivo
incorporado num «bem vendável», com um valor de troca
próprio, e que geralmente apto a ser revendido: isto em
oposição a «serviços que geralmente acabam no próprio
momento da sua realização». As atenções concentraram-se
principalmente sobre este ponto, cujo comentário e dis
cussão têm vindo a desenrolar-se até aos nossos dias
(incluindo a discussão sobre a função dessas categorias
nos países socialistas). Este significado já desponta na
primeira menção de trabalho produtivo e improdutivo, re
lacionada com a Acumulação de Capital no Capítulo III do
Livro II, ainda que como uma ambiguidade de inter
pretação. A frase inicial deste capítulo afirma que «há uma
espécie de trabalho que constitui um acréscimo ao valor
da matéria sobre que se aplica; e há uma outra que
não tem esse efeito. O primeiro, pelo facto de pro
duzir um valor, pode ser chamado produtivo... O tra
balho dum servo doméstico, pelo contrário, não realiza
qualquer aumento de valor.»* Depois de afirmar que «um
homem enriquece empregando uma multidão de manufac-
tureiros, e empobrece mantendo uma multidão de servos
domésticos», este parágrafo inicial do capítulo termina
com novas referências ao trabalho que se fixa em «certa
matéria ou bem vendável», em contraste com «serviços
[que] geralmente acabam no próprio momento da sua
realização, e raramente deixam algum vestígio de valor
atrás de si». É razoável supor que Adam Smith não encon
trou contradição entre as duas definições, porque não
considerava possível existir lucro ou mais-valia a não ser
quando o trabalho em questão produzisse um bem ven
dável. Sem dúvida que as duas noções coincidem em
grande parte. Mas, como Marx também observou,
82
os actores, músicos, mestres de dança, cozinheiros e
prostitutas podem criar um excedente ou lucro para
um patrão, se forem empregados por «um empresário de
teatros, concertos, bordéis, etc.»* Do mesmo modo, «um
escritor é um trabalhador produtivo, não na medida em
que produz ideias, mas na medida em que enriquece um
editor». O fulcro da questão, diz Marx, é uma «relação
social de produção», e não «a especialidade particular
do trabalho» ou «o valor de uso particular em que este
trabalho especial é incorporado»; precisamos de «uma
definição de trabalho que provenha, não do seu conteúdo
ou do seu resultado, mas da sua forma social particular.»**
No que se refere à distinção feita por Adam Smith
entre Rendimento Bruto e Líquido, é evidente que ele tam
bém tinha em mente a noção fisiocrática de produit net
como um excedente que provém da actividade económica.
Mas a definição apresentada é algo diferente. Conforme o
definido no Capítulo II do Livro II, o Rendimento Líquido
parece ter inicialmente o significado «moderno» aceite
(isto é, rendimento nacional): designadamente, o produto
ou rendimento bruto («a produção total anual da terra
e do trabalho» dum país) menos o capital consumido para
84
lheita anual; e ter, em microcosmos, este tipo de exemplo
simplificado:
85
a propósito Adam Smith, porque este «exagera cons
tantemente as vantagens que um país obtém principal
mente a partir dum rendimento bruto elevado».*
8
6
3. DAVID RICARDO
87
forme o demonstra a publicação de panfletos sobre pro*-
blemas particulares. Entre estes podemos citar Britam
Independent of Commerce de William Spence, de 1808,
e a réplica de James Mill, em Commerce Defended,
no mesmo ano; este último é principalmente memorável
pela sua defesa da «Lei de Say», proposta pela primeira
vez no Traité d’Économie Politique de J. B. Say, cinco
anos antes. O ano de 1798, por outro lado, tinha visto sur
gir o Essay on Population de Malthus; ao passo que,
na primeira década do novo século, não eram raros os
artigos sobre questões de economia política na The Edin-
burgh Review, que vieram a tornar-se assunto de discussão
entre os cognoscenti* A discussão da política monetária e
da baixa de preços motivada pela guerra, na época da Con
trovérsia do Ouro, forneceu ensejo para a primeira apa
rição pública de Ricardo; entretanto, os debates par
lamentares sobre a Lei do Trigo, de Fevereiro de
1815, iriam provocar uma verdadeira eflorescência
de panfletos nesse mesmo mês, durante o qual a teoria
da renda foi aperfeiçoada, e, no que diz respeito a Ricardo,,
se completaram os fundamentos da sua teoria do lucro
e da tendência deste para decrescer com o progresso¡
da acumulação de capital. O período de que Marx falaria
como «notável pela actividade científica no domi
nio da Economia Política», e urna época em que «foram.
disputados magníficos torneios»,** estavam próximos.
O que na realidade podemos afirmar é que até 1817, o
ano dos Principios de Ricardo, não houve nada a que fosse
possível chamar um sistema teórico único de economia
88
política, mesmo como esboço preliminar. Uma caracterís
tica da Riqueza das Nações era o seu carácter não sistemá
tico quanto a teoria. Houve até quem considerasse esse
facto como uma das suas maiores virtudes: tinha capaci
dade para ser muito esclarecedor, porque se ocupava am
plamente com a história e com situações particulares, e não
fazia um esforço excessivo para atingir uma unidade con
ceptual. Não há dúvida de que continha aperçus brilhantes,
peças de teoria elegantemente apresentadas, comentários
muitíssimo convincentes e juízos sobre políticas e sistemas
particulares de pensamento, como o «mercantil» e o «agrí
cola». Mas faltou-lhe uma teoria da distribuição, no
verdadeiro sentido do termo, e aquilo que apresentou
como teoria dos preços ou do valor (na forma da adição
das três componentes) era logicamente incompleto
— mantendo-se isolada a distinção entre preço de
mercado e preço natural e o seu princípio de vantagens
líquidas iguais e as suas sólidas contribuições nesta
matéria. Com Ricardo, no entanto, surge algo de bas
tante diferente: uma teoria integrada do valor, do lucro
e da renda; com aspectos ou elementos que têm algo
da limpidez e precisão duma demonstração matemática,
à qual se juntou de forma convincente um corolário de
política.
Sabe-se que entre 1809 e 1811, o interesse de Ricardo
por problemas económicos se centrou especialmente em
questões de moeda e preços e na sua conexão com as varia
ções da taxa de câmbio. A sua visão destas questões for-
mou-se durante o processo de crítica à política do Banco de
Inglaterra durante a guerra: o Banco foi acusado de res
ponsabilidade na emissão excessiva de notas, à qual se
atribuiu o prémio corrente do ouro (em termos de notas)
e a queda do valor cambial da libra em Hamburgo,
Amesterdão e outros centros financeiros europeus. Esta
crítica surgiu pela primeira vez num artigo anónimo
publicado no Morning Chronicle em Agosto de 1809 (se
guido por duas cartas, em Setembro e Novembro) e foi
posteriormente desenvolvida num panfleto intitulado «O
Preço Alto do Ouro, uma Prova da Desvalorização das No
tas de Banco», em 1810. Depois da publicação do Relatório>
89
da Comissão do Ouro, escreveu mais três cartas ao
Morning Chronicle (em Setembro de 1810), apoiando as
suas conclusões (que «não podem deixar de convencer
quem não se encontre demasiado deformado por precon
ceitos»).* No decurso desta discussão sobre o preço em
esterlino da barra de ouro, foram enunciados os elementos
essenciais da Teoria Quantitativa da Moeda e daquilo que
viria a chamar-se a Teoria da Paridade do Poder de Com
pra das trocas internacionais.
Ê da publicação do panfleto muitíssimo pertinente,
de Fevereiro de 1815, Um Ensaio sobre a Influência de um
Preço Baixo do Trigo nos Lucros de Capital, mostrando
a inconveniência das restrições à importação, que datam
realmente os elementos essenciais da sua teoria do valor
e distribuição. Este panfleto, conforme vimos, foi publi
cado no mesmo mês que outros sobre a mesma
questão, escritos por Malthus, West (a autoria indicada
na página de título era apenas «Um Membro do Colégio
Universitário, Oxford») e pelo Coronel Robert Torrens.
Os Princípios de Economia Política e Tributação, publi
cados dois anos mais tarde, constituíram um desenvolvi
mento e elaboração pormenorizada das ideias elementares
apresentadas no Ensaio, quando da discussão dum ponto
concreto e de grande valor prático.
O Ensaio de 1815 principia apresentando um enun
ciado da famosa teoria da renda diferencial, que se tornou
conhecida como «Teoria da Renda de Ricardo». Na reali
dade, Ricardo reconhece a influência do panfleto de Mal
thus aparecido três semanas antes, An Inquiry into
Rent, sobre essa teoria, e, conforme Sraffa salien
tou,** o que parece ter acontecido é que Ricardo com
preendeu que a teoria exposta por Malthus completava
a sua própria teoria sobre os lucros. Anteriormente,
tinha estudado a noção da diminuição da retribui
ção no sentido de uma decrescente produtividade
90
marginal do trabalho, à medida que a produção agrícola
se amplifica (ou intensifica). De facto, disto dependia
não só o preço dos cereais em relação aos bens manu
facturados, mas ainda o lucro (do agricultor e também
do fabricante e do comerciante). Por conseguinte, pode
dizer-se que Ricardo tinha no espírito o esquema funda
mental duma teoria da renda, mas não lhe introduzira
realmente a noção de renda como excedente, juntamente
com o seu modo de determinação, até ter lido o panfleto
de Malthus. O panfleto que West publicara onze dias
antes e que enunciava fundamentalmente a mesma teoria
da renda baseada na produtividade marginal decrescente
na agricultura, não tinha sido lido por Ricardo quando
escreveu o Ensaio*
Notemos que ao expor a sua concepção da renda
como o produto excedente da terra infra-marginal (ou al
ternativamente, de aplicações infra-marginais do trabalho)
onde a produtividade era maior na margem, Ricardo teve
perfeitamente consciência da existência de uma margem
intensiva e de uma margem extensiva. De qualquer modo,
isto era completamente evidente na altura em que escreveu
os Princípios, onde se refere em termos gerais à renda
como «sendo sempre a diferença entre a produção obtida
pelo emprego de duas quantidades iguais de capital e tra
balho** e dependente da «desigualdade da produção obtida
a partir de quantidades sucessivas de capital aplicadas
à mesma terra ou a uma nova terra».*** Independente
9
1
I
mente do modo como fosse explicada — quer o seu au
mento fosse atribuído à aplicação de maior quantidade de
trabalho e capital a uma superfície de terra dada e
existente, ou a uma extensão do cultivo a uma terra
nova de qualidade inferior — mantinha-se sem alteração
a ideia de que era «uma criação de valor, no sentido em
que eu entendo esta palavra, mas não uma criação de
riqueza», e de que este aumento era «sempre o efeito da
crescente riqueza do país, e da dificuldade em alimen
tar a sua população, cada vez maior»;* e quando J.-B. Say
objectou que «terra sem renda» era algo que não existia,
Ricardo pôde replicar que esse facto não era relevante,
visto que sempre houve unidades de capital e trabalho
que não produziam renda na margem intensiva de todas
as terras.**
A sua teoria dos lucros foi em muitos aspectos
mais importante para a estrutura essencial da sua dou
trina. Esta, tem interesse observá-lo, formou-se antes
mesmo do Ensaio e foi enunciada, antes da sua teoria
do valor, inteiramente em termos de produto. Segundo
Sraffa, também podia ter sido enunciada num esboço pre
parado um ano antes, que não sobreviveu mas foi descrito
numa carta como «escritos sobre os lucros de Capital»,
que parece ter mostrado a Malthus e a Hutches Trower.***
Era essencialmente uma teoria do excedente, mais clara e
explicitamente que a teoria da «dedução» de Adam Smith.
Segundo ela, os Lucros dependiam da diferença entre o
produto do trabalho na margem do cultivo e o custo
desse trabalho; ambos eram expressos em Cereal. Por
conseguinte, o Lucro era expresso como simples pro
porção produto/salários: uma proporção que diminuía
à medida que a margem se ampliava e o produto de um
92
dia de trabalho diminuía. Como podemos ver numa carta
de Junho de 1814, a sua teoria estava resumida na afir
mação de que «a taxa de lucros e juro deve depender da
proporção de produção destinada ao consumo necessário
para essa produção».* No Essay on Profits de 1815,
afirma que «os lucros gerais do capital dependem inteira
mente dos lucros da última fracção de capital aplicada na
terra». De Quincey diria mais tarde que «ele (Ricardo)
foi o primeiro que possibilitou a dedução dos salários a
partir da renda — e portanto a dedução dos lucros a
partir dos salários... numa fórmula concisa, pode dizer-se
dos lucros — que são as sobras dos salários.»**
A esta Teoria Cerealífera do Lucro (poderemos
chamar-lhe assim) estava inicialmente ligada a noção
de que os lucros da agricultura determinavam os lucros
gerais. Não podia haver duas taxas de lucro diferentes
na indústria e na agricultura, coerentemente com a «lei» de
(ou tendência para) uma taxa de lucro uniforme. Visto
que a razão entre o lucro e os salários na agricultura era
determinada pelas condições de produção desta (e por ser
uma proporção de produto era invariante em relação a qual
quer alteração do preço do cereal), o impacto da adaptação
tinha de recair sobre os preços dos produtos fabricados,
até que, em consequência destas alterações de preços, a
mesma taxa de lucro fosse obtida nos produtos fabricados
e na agricultura. A única possibilidade de alterar a taxa de
lucro na agricultura (que representa a relação entre
out put de cereal e input de cereal em semente e salários),
era modificar a margem de cultivo. Assim, quando
93
um crítico sustentava (como fez Malthus na sua corres
pondência com Ricardo em 1814-15), que uma expansão
do comércio, especialmente do comércio externo, podia
aumentar a taxa geral de lucro, tinha necessariamente
de demonstrar como poderia tal expansão modificar os
lucros da agricultura modificando a margem.
Na concepção de Ricardo estava implícita, eviden
temente, a hipótese de que os salários eram pagos em
termos de cereal — uma teoria de subsistência, ou pelo
menos (em terminologia marshalliana) de preço de oferta,
de salários-cereal pagos independentemente.* Ricardo con
siderou obviamente a procura de cereal em qualquer mo
mento, e portanto a posição da margem agrícola, enquanto
determinada pela dimensão da população trabalhadora
(presumivelmente com uma procura de bens essenciais
muito pouco elástica).** Por deferência para com os
argumentos de Malthus, Ricardo modificou mais tarde
a sua opinião anterior de que os lucros agrícolas
determinam de maneira absoluta os lucros gerais:
pelo menos até ao ponto de admitir que os traba
lhadores não consumiam apenas cereal, mas também
alguns bens manufacturados. Apesar disso, no entanto,
manteve o ponto fundamental da sua posição principal, de
que os lucros gerais não podiam divergir da proporção
de cereal produzida para os salários-cereal consu
midos durante a sua produção na margem agrícola,
ainda que em certas circunstâncias, no processo de
ajustamento, a posição desta margem pudesse sofrer
certa modificação. Consequentemente, com esta restrição,
continuou a sustentar que os lucros eram determinados
94
pela relação entre produto e salarios, na margem da
agricultura.
Quando adaptou esta teoria do lucro à teoria da
renda enquanto regulada por diferenças na produtividade
do trabalho sucessivamente aplicado à terra, ou a terras
de qualidade diferente, aproximou-se muito de concluir
(embora isso não tenha sido afirmado explicitamente)
que o lucro e a renda eram duas espécies do produit
net fisiocrático. De qualquer maneira, eram conside
rados antagónicos no sentido de que qualquer aumento
da renda se fazia à custa do lucro e representava mera
mente uma transferência de rendimento líquido. Conforme
se pode ler no Ensaio: «Desse modo, a renda é em todos os
casos uma parte dos lucros anteriormente obtidos na terra.
Nunca é uma nova criação de rendimento, mas sempre
uma parte de um rendimento já criado.» E prosseguia,
expondo a essência da sua teoria nestas duas frases
fundamentais: «Os lucros do capital só diminuem porque
nem sempre se pode encontrar terras igualmente bem
adaptadas para produzir alimentos; e o grau de baixa dos
lucros, e o aumento das rendas, dependem inteiramente
da maior despesa feita com a produção. Se, portanto, para
lelamente ao aumento em riqueza e população dos países,
se pudesse acrescentar-lhes novas parcelas de terra fértil,
os lucros nunca diminuiriam, nem as rendas subiriam com
cada aumento de capital.»* O quadro no seu conjunto era
este: em virtude da crescente produtividade do trabalho
na margem, à medida que o cultivo se ampliava, os lucros
tendiam a diminuir, enquanto o capital se acumu
lava e a população aumentava com esta acumulação.
Desta forma se dava a explicação que faltava na teoria
de Adam Smith da tendência para um lucro decrescente
(que ele atribuíra, em termos de oferta e procura,
a uma maior concorrência). Simultaneamente, as ren
das subiam, transferindo assim o que anteriormente
95
tinham sido os lucros do agricultor (ou fabricante) para
as algibeiras do proprietário da terra.*
Tendo estabelecido deste modo, em termos genéricos,
o antagonismo de interesses entre propriedade fundiária e
capital industrial («o interesse do proprietário rural é
sempre oposto ao interesse de qualquer outra classe
da comunidade»),** prosseguiu tomando para exemplo os
direitos de importação de cereais então em vigor, que
criticou de maneira especial. Estes direitos provocavam
inevitavelmente o aumento das rendas, porque aumenta
vam a procura, o custo e o preço do cereal produzido no
país; ao mesmo tempo, tinham como inevitável consequên
cia adicional a baixa do lucro (perante um determinado
nível de salários-cereal). Inversamente, a abolição destes
direitos, a fim de permitir a entrada de cereal
estrangeiro mais barato, aumentaria o lucro, e,
deste modo, promoveria a acumulação de capital. O obs
táculo a esta medida tão vantajosa era o interesse dos
96
proprietários de terras em manter as rendas. O panfleto
termina com um ponto de discussão fundamental. Os me
lhoramentos na agricultura e as importações de cereal
diminuem o custo da cultura do cereal e tendem, portanto,
a fazer baixar os preços do cereal e as rendas.
A oposição a estas descidas do preço e da renda deveriam,
logicamente, implicar uma oposição àqueles melhoramen
tos. «Se os interesses do proprietário de terras fossem
suficientemente importantes para nos induzir a não apro
veitarmos todos os benefícios que adviriam da importa
ção de cereal a baixo preço, deveriam também influenciar-
-nos no sentido de rejeitar todos os melhoramentos na
agricultura e nas alfaias agrícolas; porque é inevi
tável que o cereal se torna mais barato, as rendas
diminuem, e a possibilidade do proprietário de terras
pagar impostos será durante algum tempo, pelo me
nos, tão dificultada por esses melhoramentos como
pela importação de cereal. Para sermos coerentes, deve
ríamos, através duma só lei, impedir os melhoramentos
e proibir a importação.»*
II
7
97
tura, teve de introduzir uma teoria do valor para
demonstrar como os preços daqueles outros bens se
alteravam quando o custo do cereal em trabalho aumen
tava. Malthus replicara a Ricardo que os lucros gerais
podiam igualmente sofrer a influência dos preços eleva
dos dos produtos manufacturados, devidos a uma forte
procura dos mesmos, por exemplo, uma intensa procura
de exportações, na mesma medida em que seriam influen
ciados «pelas forças naturais da última terra utilizada
para cultivo». Nos seus próprios Princípios (Capítulo V,
Secção IV ) escreveu que «os lucros dependem dos preços
dos bens, e da causa que os determina, designadamente
a relação oferta-procura»; ao passo que «a teoria de
Ricardo sobre os lucros se baseia inteiramente na cir
cunstância de a massa dos bens se manter ao mesmo
preço, enquanto a moeda continua a ter o mesmo valor,
seja qual for a variação de preço do trabalho... Nada
podemos deduzir [conclui o autor] sobre a taxa de lucros
a partir de um aumento dos salários monetários, se os
bens, em vez de se manterem ao mesmo preço, forem
diversamente afectados.»*
Ao utilizar a Teoria do Valor Trabalho com esta
finalidade, Ricardo estava de facto a substituir Cereal por
Trabalho, em cujos termos passou igualmente a exprimir
o produto, os salários e o excedente. O lucro era agora
concebido como o excedente, ou diferença residual, entre
a quantidade de trabalho necessária para manter a força
de trabalho e o total da força de trabalho: na termino
logia dos Princípios, dependia da «proporção do trabalho
anual do país... destinada ao sustento dos trabalhadores».**
Esta era uma forma mais geral (porque assente em menos
hipóteses restritivas) para a afirmação já citada de que
98
o lucro dependia da «proporção entre a produção e o
consumo necessário para essa produção», sendo tanto
a produção total como o consumo necessário medidos
em termos do trabalho necessário para os produzir.
Posta assim em termos de valor, a proposição de que
os lucros descem por causa duma decrescente produti
vidade de trabalho expressa em cereal, passa a traduzir-se
desta maneira: os lucros descem por causa do valor
crescente do cereal, e portanto dos salários, relativamente
a outros produtos.
Na verdade, na exposição do Ensaio encontramos
já esta teoria do valor em embrião, embora os fundamen
tos da teoria do lucro, tal como da renda, fossem ainda
enunciados na forma «agrícola» mais primitiva. Assim,
no ponto em que afirma que se produz necessariamente
uma simultânea queda dos lucros e subida das rendas,
devido ao decréscimo dos rendimentos da terra à medida
que se alarga a produção de cereal, acrescenta:
99
página que se encontra pouco depois da passagem acima
citada, é esclarecedora: pode mesmo afirmar-se que é
fundamental para compreender o significado que Ricardo
atribuía à sua própria teoria do valor. Nessa nota de
pé de página, escreve: «Admitiu-se que o preço do ce
real regulava o preço de todas as outras coisas. Isto afi-
gura-se-me um erro. Se o preço do cereal sofrer a influên
cia da subida ou descida dos próprios metais preciosos,
então os preços dos bens também serão afectados,
mas isto sucede porque o valor do dinheiro varia, e não
porque se altera o preço do cereal. Penso que o preço dos
bens não pode materialmente subir ou descer, enquanto
o dinheiro e os bens se mantiverem nas mesmas propor
ções, ou melhor, enquanto o custo de produção de ambos,
determinado em cereal, se mantiver o mesmo.»*
A teoria a que Ricardo se refere, segundo a qual os
preços do cereal determinam os outros preços (porque
quando o cereal sobe, os salários monetários têm de subir
paralelamente, para manter o salário-cereal constante, o
que por sua vez faz subir outros preços), era a de Adam
Smith. Aquilo a que Ricardo opunha a sua Teoria
do Valor do Trabalho, era manifestamente a Teoria do
Valor do Salário de Adam Smith (ou aquilo que atrás
referimos como a Teoria da Adição);** a qual conside
rava o valor dos bens regulado inter alia pela quantidade
de salário que a sua produção custa (juntamente com as
respectivas quantidades das outras duas «partes componen
tes do preço»). Segundo as palavras da secção inicial do
Capítulo Sobre o Valor, das segunda e terceira edições
dos Princípios de Ricardo: «O valor de um bem, ou
a quantidade de qualquer outro bem pelo qual seja tro
cado, depende da quantidade relativa de trabalho neces
sária para a sua produção, e não da importância paga
por esse trabalho.»
* Ibiã., p. 21.
** Ver Capítulo 2.
100
Reflectindo um pouco, torna-se evidente que a teoria
demasiado imprecisa de Adam Smith conduz a uma conclu
são absurda: que os valores de todas as coisas podem subir
simultaneamente, sempre que uma das «componentes»
sobe por qualquer razão, quer isto seja devido a uma subida
do custo de subsistência, como no caso presente, quer, mais
geralmente, devido ao jogo da oferta e da procura. O que
sugere a pergunta: em que termos sobem todos os valo
res? Se monetariamente, então isto equivaleria à depre
ciação da moeda («dizer que o preço dos bens sobe sig
nifica que a moeda baixou em valor relativo; porque é
em relação aos bens que o valor relativo do ouro é ava
liado»). Mas tomando para padrão o bem-moeda, essa
depreciação só pode ter lugar se o próprio custo de
produção do bem-moeda descer, ou se subir o custo da
generalidade de bens que não o bem-moeda. Quanto ao
possível efeito sobre este último de uma subida de salá
rios, segundo Ricardo, se o ouro fosse extraído no interior
do país em questão, esse efeito sobre o ouro não seria
diferente do efeito sobre outros bens, e os seus valores
relativos manter-se-iam sem alteração. No caso de o
ouro ser extraído no estrangeiro e importado: «Nesse
caso, se o preço de todos os bens subisse, o ouro não
poderia vir do estrangeiro para os comprar, mas sairia
do país para ser utilizado com vantagem na compra dos
bens estrangeiros relativamente mais baratos. Torna-se
claro que a subida dos salários não fará aumentar o preço
dos bens, quer o metal de que é feita a moeda seja
produzido no país ou no estrangeiro.»*
Podemos portanto considerar a sua refutação da
teoria de Smith como tendente a incluir a própria moeda
no conjunto dos bens em geral, e, em consequência, pos
tulando que o preço de qualquer bem ou grupo de bens
só pode subir se se tornar necessária maior quantidade
101
de trabalho para o produzir, relativamente à que é neces
sária para produzir uma onça de ouro. Esta proposição
(acerca da «invariabilidade do valor dos metais pre
ciosos»), segundo as palavras de Ricardo numa carta
a James Mill, «é a âncora-mestra sobre a qual todas as
minhas proposições são elaboradas».*
Quando escreveu o Capítulo sobre o Valor, nos
Princípios, Ricardo começou coerentemente por desenvol
ver a sua própria argumentação teórica refutando a
teoria de Smith. Começou por criticá-lo pela sua con
fusão entre quantidade de trabalho e trabalho disponível
como medida de valor. Em seguida, desenvolveu a ideia
de que o valor dum bem depende «da quantidade rela
tiva de trabalho necessária para a sua produção»,
«e não da maior ou menor importância paga por
esse trabalho».** Toma depois o conhecido exemplo de
Smith do castor e do veado («se matar um castor custa
em geral duas vezes aquilo que custa matar um veado,
um castor devia naturalmente ser trocado por dois veados,
ou valer dois veados») e afirma que o princípio que se
pretende explicar através deste exemplo, de que o trabalho
«é realmente a base do valor de troca de todas as coisas,
excepto daquelas que não podem ser transformadas pela
acção humana, é uma doutrina da mais alta importância
em economia política». Critica-o ainda por continuar a
referir-se ao maior ou menor valor de um bem, consoante,
«não a quantidade de trabalho aplicada na produção de
qualquer objecto, mas sim a quantidade que ela pode obter
no mercado».
Alargando o exemplo do castor-veado, de modo a
abranger o caso em que «fosse necessário [ao caçador]
102
para matar a caça» capital na forma de alguma arma,
mostrou que o seu uso não impugnava necessariamente
esse princípio (como Adam Smith dera a entender):
os preços comparados do castor e do veado «estariam em
proporção com o trabalho real aplicado, tanto na formação
do capital como na destruição dos animais»; isto não
é afectado pelo facto de «os instrumentos necessários
para matar o castor e o veado poderem pertencer a uma
classe de homens, e o trabalho empregue na sua des
truição poder ser fornecido por outra classe», ou pelo
facto de aqueles que proporcionam o capital «se apoderarem
de metade, um quarto ou um oitavo do produto obtido»,
visto que «quer os lucros do capitalista fossem maiores
ou menores... quer os salários de trabalho fossem altos
ou baixos, teriam idêntica função em ambas as uti
lizações».*
Deve notar-se que o autor estava aqui a admitir
implicitamente que as proporções em que o capital era
utilizado (ou aquilo a que Marx chamaria a «composição
orgânica do capital») eram iguais nas diversas linhas de
produção consideradas, quer na caça do castor e do veado,
quer na pesca de peixe, quer na caça doutras espécies,
quer na fabricação de meias. O que ele pretendia mostrar
era que «a acumulação de capital... nas mãos de pessoas
particulares» e «a apropriação da terra» não invalidavam
per se (como Smith afirmara)** o princípio da troca
proporcional ao trabalho aplicado na produção. Deve
notar-se também que a importância atribuída àquilo que já
vimos o autor designar como «a âncora-mestra» da sua
posição explica a sua preocupação, exposta numa secção
adicional da sua terceira edição,*** por uma «me
dida invariável» de valor e pelas condições necessárias
para garantir a invariabilidade desse padrão: questão à
103
qual voltaremos. Ao concluir a sua exposição sobre o valor,
que acabamos de resumir, escreve: «Se tivéssemos um
padrão invariável, pelo qual pudéssemos medir as varia
ções de outros bens, verificaríamos que o extremo limite
até ao qual poderiam subir de modo permanente, seria
proporcional à quantidade de trabalho adicional neces
sária para a sua produção, e que só poderiam subir se
aquela quantidade aumentasse.»*
Contrariamente à afirmação de Adam Smith, uma
subida de salários não daria origem a uma subida geral
dos preços: em vez disso, provocaria uma redução dos lu
cros, e isto na medida necessária para restabelecer o equi
líbrio. De Quincey viria a resumir como se segue o ponto de
vista de Ricardo sobre a relação entre salários e lucro.
«Pode dizer-se dos lucros — que são as sobras dos salários:
qualquer acto de produção proporcionará tanto lucro...
quanto os salários aplicados nesse acto permitirem que so
beje... Mas não será o preço, pelo contrário, predetermina
do pelos salários e lucros, conjuntamente ? Não, essa é a ve
lha doutrina fora de moda. Mas a nova economia mostrou
que todo o preço é determinado pela quantidade propor
cional de trabalho produtivo, e apenas por ela... Qualquer
alteração que modifique as relações existentes entre salá
rios e lucros terá necessariamente origem nos salários:
qualquer modificação que insensivelmente afecte os lucros,
deverá ser sempre considerada como registo e medida de
uma anterior alteração de salários.»**
Muitos leitores deste Capítulo Sobre o Valor, senão
a grande maioria, ficam surpreendidos quando logo
em seguida surge o que se lhes afigura uma afir
mação em contrário, assim resumida no título da
Secção IV da terceira edição: «O princípio de que a
quantidade de trabalho aplicada na produção dos bens
* Ibid., p. 29.
** Thomas de Quincey, The L ogic of Politioal Economy (Edimburgo
e Londres, 1844) pp. 204-5. No seu Prefácio* tinha falado na
«revolução realizada nessa ciência por Ricardo».
determina os seus valores relativos, consideravelmente mo
dificados pela utilização de máquinas e outro capital fixo
e durável.»* E prossegue dizendo que «as ferramentas,
utensílios, edifícios e máquinas utilizados nos diferentes
ramos de actividade podem ter graus de durabilidade
diversos, e a sua produção pode requerer diferentes quan
tidades de trabalho... e as proporções, em que o capital é
investido em ferramentas, máquinas e edifícios, pode
igualmente ser combinada de modos diversos». Apresentou
assim «outra causa, além da maior ou menor quantidade
de trabalho necessária para produzir bens, das variações
dos seus valores relativos» — acrescentando (surpreenden
temente, à primeira vista): «esta causa é a subida ou
descida do valor do trabalho».** Para muitos, esta refe
rência a uma segunda «causa» do valor, sobretudo pelo
relevo que lhe é conferido na terceira edição, surge como
uma contradição e prova dum afastamento duma teoria
«primitiva» cuja elaboração iniciara ao tempo do Ensaio,
em direcção a algo como uma Teoria do Custo de Produ
ção, em que viria a transformar-se mais tarde nesse sé
culo,*** e que não diferia essencialmente da teoria das
«partes componentes do preço, de Adam Smith.
105
Após a publicação da famosa Introdução de Sraffa,
sabemos agora que há pouco ou nenhum fundamento
para esta interpretação, e que a situação é realmente
diferente. Foi depois da publicação do Ensaio sobre o
Lucro e enquanto escrevia os Princípios-} que Ricardo
fez a «descoberta» do «curioso efeito», como ele escreveu,
duma subida de salários sobre os produtos industriais
em que era utilizada uma parte relativamente importante
de capital fixo: designadamente, que essa subida de salá
rios fazia realmente descer os preços desses produtos (em
virtude da consequente queda dos lucros). Foi isto
que constituiu a base da referência por nós citada a uma
«segunda causa» (aquilo que na primeira edição surge
como referência ao facto de o valor relativo dos bens estar
«igualmente sujeito a flutuações provocadas por uma subi
da de salários, e a consequente queda dos lucros, se os capi
tais fixos utilizados forem de valor desigual, ou de desigual
duração»).* Mas, em vez de considerar isto como uma con
cessão, entendeu tratar-se duma descoberta sua que vinha
reforçar a sua argumentação contra Adam Smith; e assim
a declarou triunfalmente nos seus Princípios de 1817.
Uma subida de salários, além de não provocar a subida
dos preços dos bens, fazia realmente baixar os preços
de alguns deles.** Deste modo, o efeito secundário de
106
desiguais proporções de capital, longe de limitar e enfra
quecer o corolário anti-Smith do seu princípio do valor,
serviu paradoxalmente para o reforçar. Não nos sur
preende, dadas as circunstâncias, que tivesse considerado
a sua causa primeira (quantidade de trabalho) como
«nunca suplantada» pela «segunda causa» (variação nas
proporções e durabilidade do capital), «mas apenas modi
ficada por ela.»*
Na realidade, o elemento de paradoxo neste «curioso
efeito» — a conclusão de que os preços não subiam e que os
produtos obtidos por meio do capital fixo desciam (confor
me é dito na primeira edição de 1817) dependia da hipótese
de que o seu padrão invariável, ou moeda, em cujos termos
se mediam os preços dos bens, era produzido por um «tra
balho isolado». Quatro anos depois, na terceira edição,
alterou a sua definição de padrão estabelecendo que este
era «produzido com uma proporção dos dois tipos de capi
tal, muitíssimo próxima da quantidade média utilizada na
produção da maioria dos bens»; assim, nestes termos,
ao subirem os salários, alguns produtos subiriam de
preço (aqueles «em cuja produção se tinha utilizado me
nos capital fixo que a média em que o preço era
avaliado» e/ou com mais rápida rotação de capital fixo
e circulante), enquanto outros (aqueles em que entrava
uma parte maior de capital fixo) desceriam; o nível de
preços da média mantinha-se sem alteração, conforme
exija o seu corolário anti-Smith ( como lhe chamamos).**
Deste modo aproximou-se mais, convém notá-lo, do ponto
de vista que Marx adoptou na sua teoria dos Preços de
Produção do Volume 3 de O Capital.
107
O lugar ocupado nesta exposição pela noção de «um
padrão invariável» explica a sua preocupação em encon
trar a forma apropriada para definir urna medida inva
riável de valor, assim como a íntima conexão, no seu
pensamento, entre os dois problemas da medida e da causa
ou principio do valor. A relação entre ambos, tal como
ele a via, está claramente expressa na frase inicial da
secção «Sobre uma medida invariável do valor» (Secção V I
na terceira edição): «Quando os bens variam em valor
relativo, seria conveniente ter meios para apurar quais
os que desceram e quais os que subiram em valor real,
e isto só será possível comparando-os um após outro
com alguma medida padrão, de valor invariável, que
não esteja sujeita a nenhuma das flutuações que
afectam outros bens.»* Prossegue alegando que «é
impossível dispor dessa medida, porque não há nenhum
bem que não esteja sujeito ás mesmas variações que
aqueles cujo valor deve ser determinado». Mas enquanto,
no que respeita «ao fundamento real do valor de troca»,
não há alteração no seu ponto de vista, tornam-se
cada vez mais evidentes a hesitação e a dúvida na sua
busca de uma definição precisa das condições necessárias
para garantir a invariabilidade desse padrão. Na sua ter
ceira edição, parece ter admitido que a invariabilidade de
um padrão não era somente impossível de realizar na prá
tica, mas também de descobrir como princípio. A razão que
apresenta é que, mesmo supondo que «seja sempre necessá
ria a mesma quantidade de trabalho para obter a mesma
quantidade de ouro, o ouro continuará a não ser uma medi
da de valor perfeita, pela qual se possam avaliar rigorosa
mente as variações de todos os outros bens, porque na sua
produção não entrariam precisamente as mesmas combina
ções de capital fixo e circulante que nas outras coisas; nem
a durabilidade do capital fixo seria a mesma; nem necessi
taria do mesmo espaço de tempo, antes de ser posto no mer
cado». Sendo assim, só poderia «ser uma medida de valor
* Ibid., p. 43.
108
perfeita para todas as coisas que fossem produzidas preci
samente nas mesmas circunstâncias que ele próprio, mas
não para quaisquer outras». Dessa forma, parecia estar-se
perante um dualismo de duas entidades incomensuráveis,
trabalho e tempo (isto é, o período de tempo durante o qual
o trabalho era «adiantado», ou, alternativamente, arma
zenado) : foi neste contexto que fez a perspicaz obser
vação de que todas as diferenças de capital podem redu
zir-se a diferenças de tempo.* Era forçoso contentar-
-se, portanto, com «uma aproximação tão grande quanto
pode conceber-se teoricamente de uma medida padrão
de valor»: designadamente, «o ouro considerado como bem
em cuja produção entram proporções dos dois tipos de ca
pital, tão próximas quanto possível da quantidade média
utilizada para a maioria dos bens».** E, todavia, conside
rou tão importante esta procura dum valor absoluto, que
passou o último Verão da sua vida numa intensa corres
pondência com Malthus sobre a questão da medida de
valor (a seguir à publicação do panfleto deste último,
com aquele nome), e as últimas semanas de vida a escre
ver diversos esboços incompletos de um caderno sobre
«Valor absoluto e Valor de Troca?».*** Segundo a sua
própria confissão, numa última carta a Mill, «pensara
bastante no assunto, ultimamente, mas sem muito pro
gresso».** **
109
Actualmente, esta busca duma medida ideal ou
padrão invariável pode afigurar-se curiosa, ou até
destituída de significado: tanto que muitas vezes é posta
de parte como problema inexistente, ou como apenas uma
forma antiquada do conhecido «problema do número-in-
dice». É possível que a posição ocupada na controvérsia
económica dos últimos anos por questões de medição de
capital e da influência da repartição nos preços, contribua
para que a preocupação de Ricardo mereça uma atenção
mais compreensiva. Devemos também a Sraffa a revelação
da verdadeira natureza do problema de Ricardo. Através
dele sabemos que aquilo que perturbava Ricardo era o
facto de a dimensão do produto nacional parecer alterar-se
quando mudava a sua repartição entre as classes. «Mesmo
que nada tenha ocorrido para o alterar na totalidade, pode
haver modificações aparentes devidas apenas a uma mu
dança da medida. Esta deve-se ao facto de a medida ser
estabelecida em termos de valor e os valores relativos te
rem sido modificados em virtude duma alteração na repar
tição entre salários e lucros.» Se Ricardo tivesse estado
principalmente interessado em saber «porque é que dois
bens produzidos pela mesma quantidade de trabalho não
têm o mesmo valor de troca», esta necessidade não teria
constituído problema para ele. Mas como a sua principal
preocupação incidia sobre efeito de uma subida ou descida
de salários — sobre uma «alteração», mais do que sobre
uma «diferença»— era fundamental para a sua análise
«encontrar uma medida de valor que fosse invariante em
relação a mudanças na repartição do produto; porque, se
uma subida ou descida de salários, por si só, produzisse
uma alteração no valor do produto social, seria difícil
determinar rigorosamente o seu efeito sobre os lucros».*
110
III
* Ibid., Vol. I, p. 50. Nas suas Notas sobre Malthus, escreve: «Creio
que é um grande erro afirmar que os salários desceram, quando
se concordou em que o trabalhador ‘obteve uma maior proporção do
valor da produção total obtida por uma determinada qu-antidade de
capital’ . O valor, penso eu, é medido em proporções» ( i b i d Vol. II,
p. 138). Esta linguagem^ em particular, foi asperamente criticada
por Bailey (entre outros), como «linguagem estranha» e «uma sin
gular deturpação dos termos» (A Critical Dissertation on the Nature,
Measure and Causes o f Value (Londres) 1825) p. 50); e Malthus
referiu-se a ela como «esta invulgar utilização de termos comuns
que tornou a obra de Ricardo tão difícil de ser compreendida
por muitas pessoas» (Principles of Political Economy, considered
with a view to their practical application (Londres, 1820) p. 214).
Malthus utilizou as expressões de Smith «salários reais» e «renda
real» para indicar «poder de trabalho disponível, e as coisas neces
sárias e convenientes da vida».
** O Professor M. Blaug, por exemplo, parece interpretá-lo neste
sentido ( Economic Theory in Retrospect (Londres, 1964 e 1968)
p. 111).
112
crescente em absoluto», mas também «crescendo proporcio
nalmente ao capital aplicado na terra», e afirma que «o
proprietário da terra não só obtém maior produção, como
uma parte mais importante na partilha». Na primeira edi
ção dos Princípios, este «duplo benefício» para o proprietá
rio da terra é sublinhado, e é feita referência à «parte pro
porcional de produto em bruto pago ao proprietário da
terra como renda» como sendo crescente.* Perante a
crítica de Malthus (nos seus próprios Princípios) ao facto
de ter tratado a renda em termos de proporções, Ricardo
admitiu, nas suas Notas sobre Malthus, que «a linguagem
que empregara no que respeita a proporções pode não ter
sido tão clara como deveria», e que visto ter cometido o
erro de afirmar** que «a proporção do produto global
que cabe ao dono da terra» aumenta, desejava «corrigir
a passagem», substituindo a expressão proporção por «por
ção», «ou, se a mantivesse, devia referir-se à proporção do
produto obtido nas terras mais férteis».*** De acordo com
isto, entre as suas revisões, da terceira edição dos Princí
pios, Ricardo incluiu uma alteração no Capítulo sobre a
Renda, emendando «proporção do produto global» para
«proporção do produto obtido com um dado capital em
qualquer exploração agrícola dada».**** Parece claro, por
tanto, que Ricardo tivesse em mente o produto da terra
cultivada anteriormente, quando falava da fracção de
renda crescente e a margem de cultivo era ampliada. Um
olhar sobre qualquer diagrama da renda, num manual ele
mentar, provará que ele tinha razão, mas que também é
perfeitamente possível que a renda, como proporção
do produto global, da terra cultivada anteriormente
e da terra cultivada de novo, desça quando a margem de
* 113
cultivo aumenta.* É claro que de um modo geral nada
se altera na sua exposição sobre a renda e o lucro, pelo
facto de a renda como parte relativa subir ou descer, ao
contrário do que alguns terão pensado.
Na sua previsão a longo prazo (baseada, conforme
vimos, na hipótese de importações de cereais insignifi
cantes, ou pelo menos restritas) entra a noção do estado
estacionário, que, com aspectos ligeiramente diferentes
e com diversos graus de destaque, ocupou um lugar impor
tante em boa parte das obras do período clássico. Se quisés
semos descrever a cena em tons trágicos, poderíamos
sentir a tentação de falar dum fantasma espreitando
por cima da linha do horizonte; a possibilidade de ele
se erguer no horizonte seria uma preocupação constante,
sempre que se considerassem os efeitos a longo prazo de
medidas políticas. O progresso da acumulação de capital
seria o objecto constante e a garantia de prosperidade
material para a comunidade em geral e para todas as
classes. Adam Smith concebeu o seu «estado progres
sivo... na realidade o estado que permite a alegria e o
bem-estar para todas as diferentes classes da sociedade»
(em contraste com o qual, «o estacionário é monótono
e decadente»). Este estado progressivo, «quando a so-
* O aumento ou dim
depende da forma da curva de custos.
Como é evidente, o custo absorve pro
porcionalmente mais (e a renda equi
valentemente menos) em condições de
produção de custo elevado perto da mar
gem, do que em terra mais fértil;
enquanto o grau em que sobem as rendas
desta última, depende da rapidez com
que o custo (e portanto o preço) sobe à medida que a margem
é ampliada. Assim, no diagrama ao lado, utilizando uma curva
•de custos em linha recta, o triângulo renda mantém-se em
proporção constante com o ’ total; enquanto a renda como parte
do produto da terra tmtiga OA, sobe proporcionalmente quando
o cultivo aumenta para OB e o preço aumenta de modo equivalente
de OP, para OP,; cf. B|laug; Ricardian Economics, p. 110, onde,
no entanto, se utilizam curvas de produtividade média e marginal.
114
ciedade avança para novas aquisições, mais do que
tendo alcançado a plena prosperidade», surge quando «as
condições dos trabalhadores pobres, da grande parte do
povo, parecem ser as mais felizes e as mais confortá
veis».* Ricardo, com tendência para uma visão dinâ
mica pessimista, manteve firmemente a possibilidade-—
desde que não houvesse comércio livre, e «não obstante
a tendência dos salários para se ajustarem à taxa natu
ral» — de o preço de mercado do trabalho, «numa socie
dade em progresso, durante um período indefinido, lhe
ser constantemente superior; porque só depois de o
impulso que um aumento de capital dá a uma nova
procura de trabalho produzir efeito, poderá outro aumento
de capital produzir o mesmo efeito». Esta possibilidade será
reforçada se as circunstâncias permitirem que «um suple
mento à alimentação e vestuário dum país... seja reali
zado com o auxílio de máquinas, sem qualquer aumento, e
mesmo com uma diminuição absoluta da quantidade pro
porcional de trabalho necessária para produzi-los». Então,
na realidade, «a condição do trabalhador beneficiará
muito»; e se acontecesse haver «uma abundância de terra
fértil: nesses períodos a acumulação seria frequentemente
tão rápida, que a remuneração dos trabalhadores não pode
ria aumentar com a mesma rapidez que o capital». Há tam
bém uma alusão a outra influência favorável, a que mais
tarde John Stuart Mill daria muita importância: que «o
preço natural do trabalho», estando dependente «dos hábi
tos e costumes do povo», deve ser modificado por altera
ções tendentes a elevar o nível dos últimos. A este respeito
escreveu (na sua segunda edição): «Os amigos da huma
nidade não podem deixar de desejar que em todos os países
as classes trabalhadoras apreciem o conforto e as distrac
ções, e que sejam estimuladas por todos os meios legais,
nos seus esforços para os obter. Não pode haver melhor
garante contra uma população excessiva.»**
115
Apesar disto, no entanto, o quadro mais geral ou
provável que terá visto nas circunstâncias que então
predominavam em Inglaterra, era o da população ten
dendo a ultrapassar a acumulação de capital, e «à medida
que a população aumenta, os preços dos bens de primeira
necessidade subirão constantemente, porque será preciso
mais trabalho para os produzir». Se os salários monetá
rios, nestas circunstâncias, subissem de forma a compen
sar total ou parcialmente o trabalhador, «os lucros do
fabricante diminuiriam necessariamente», e surgiria uma
tendência para desincentivar uma ulterior acumulação.
Embora o estado estacionário («do qual, creio, ainda esta
mos muito longe») só seja explicitamente mencionado
no contexto das Leis dos Pobres e do seu efeito sobre
a população, parece claro que ele o via como o
destino último dessa «tendência natural dos lucros
para diminuírem», que constantemente ameaçava pre
judicar o «estado progressivo», especialmente em vir
tude das restrições à importação. Embora «contro
lada de tempos a tempos», em virtude de aperfeiçoa
mentos na maquinaria agrícola e de descobertas na ciência
da agricultura, esta tendência, muito antes de ter atingido
o seu limite, «terá impedido toda a acumulação, e quase
todo o produto do país, depois de pagos os trabalhadores,
será propriedade dos donos de terras e dos beneficiários
de dízimas e impostos».*
Não tem sido raro rejeitarem-se estas tendências
dinâmicas apontadas por Ricardo, opondo-as a aconteci
mentos reais da segunda metade do século dezanove. Esse
pessimismo — não só no seu caso, mas também todo aquele
gerado à volta do debate sobre um «estado estacionário»—
foi posto de parte como uma curiosidade na história do
pensamento, ou mesmo como um exemplo salutar do
resultado a que se chega quando se seguem até ao fim
«extensos encadeamentos de raciocínio dedutivo», como
aqueles que Marshall** aconselhava os economistas a
116
evitar. Essa crítica, porém, parece ser menos que razoável
no caso de Ricardo: de facto, a comparação da sua «previ
são» com acontecimentos reais, num século que iria ser o
cenário do livre comércio inglês e de uma revolução nos
transportes terrestres e marítimos, é pouco apropriada
quando se tem em conta a sua menção explícita de «impedi
mentos à livre importação», no contexto das tendências des
critas. Pode dizer-se que, nos Princípios, estes impedimen
tos à importação são muito pouco sublinhados como condi
ção ; e que, visto não serem devidamente colocados no centro
do quadro, dão a impressão de serem apenas uma in
fluência reforçadora, que se limita a afectar o calendário
da «tendência natural» descrita, a qual se manifestaria em
qualquer caso, embora mais lentamente, se essa influência
não se fizesse sentir. Parece claro, no entanto, segundo o
seu próprio ponto de vista, que as Leis sobre os Cereais fo
ram relevantes, senão mesmo fundamentais, no contexto
da sua previsão dinâmica. Na exposição feita no Ensaio,
foram-no de maneira evidente; e a sua relevância mo
tivou a afirmação de Edwin Cannan citada no Capítulo I,
de que para «base de uma exposição contra as Leis
sobre os Cereais, seria difícil encontrar algo mais eficaz
que a teoria da repartição de Ricardo».* As importa
ções livres, segundo o seu modo de ver, foram a compensa
ção essencial para os rendimentos decrescentes— essencial
para manter afastado o fantasma do retorno a um
estado estacionário. Escrevendo em 1819, e referindo-
-se «à escassez, e consequente alta do custo dos alimentos
e outros produtos fundamentais» como «o único obstáculo»
ao crescimento da riqueza e da população, «por tempo inde
finido», declara: «Deixemos que estes (isto é, alimentos e
produtos fundamentais) sejam fornecidos do estrangeiro
em troca de bens manufacturados, e será difícil determinar
o limite em que deixareis de acumular riqueza e obter
lucro com a sua aplicação.» E acrescenta: «Esta é uma
questão da máxima importância para a economia polí-
117
tica».* Um ano depois, escrevendo a Trower, afirma:
«Preconizo o comércio livre dos cereais fundamentando-me
no facto de que, sendo o comércio livre e os cereais bara
tos, os lucros não descerão, por muito importante que
possa ser a acumulação de capital. Se nos limitarmos aos
recursos do nosso próprio solo, penso eu, a renda acabará
por absorver a maior parte do produto que resta depois de
pagos os salários, e, consequentemente, os lucros serão bai
xos.»** Esta interpretação das suas próprias intenções
nos Princípios (referia-se à «errónea exposição» no livro
de Malthus) afigura-se-nos decisiva.
Até aqui não nos referimos expressamente ao
lugar ocupado pela teoria da população, de Malthus, no
sistema de Ricardo, embora isto esteja implícito naquilo
que já foi dito. Basta esclarecer que Ricardo aceitou intei
ramente esta teoria, e ficou grato ao amigo e par
ceiro do jogo epistolar. Esta teoria proporcionou a Ricardo
um fundamento para uma teoria da oferta de salários. Per
mitiu encontrar um mecanismo de ajustamento da oferta
pelo qual os salários, ou «preço de mercado» corrente,
se ajustavam ao «preço natural do trabalho»; sendo
este definido como «o preço necessário para que os
trabalhadores possam subsistir e perpetuar a sua raça,
sem aumento nem diminuição».*** Por outras palavras,
o preço do trabalho era regulado pelo seu próprio custo
de produção, no sentido de um nível de salários que bas
118
tasse para manter uma dada população trabalhadora
(ou uma população que aumenta aproximadamente ao
ritmo da acumulação de capital — nunca ficou bem escla
recido qual das possíveis alternativas). Vimos que esta
noção de um dado, ou independentemente determinado
nível de salários-cereal, constituía a base dessa teoria
dos lucros, conforme foi inicialmente formulada. Mas tam
bém vimos que não lhe deu uma grosseira interpreta
ção de subsistência física, como alguns imaginaram,
e, por isso, a rejeitaram com certa ligeireza. «Os hábi
tos e os costumes» faziam parte daquilo que era con
vencionalmente «necessário» em qualquer tempo ou lugar.
Assim, no seu Capítulo Sobre os Salários, encontra-se esta
passagem muito citada: «Não se deve entender que o
preço natural do trabalho, mesmo que calculado em alimen
tos e bens essenciais, é absolutamente fixo e constante. Va
ria em momentos diversos no mesmo país, e difere muito
concretamente em países diferentes. Depende essencialmen
te dos hábitos e costumes do povo. Um trabalhador inglês
consideraria o seu salário abaixo da sua taxa natural e
muitíssimo escasso para sustentar uma família, se não lhe
permitisse comprar qualquer outro alimento além de bata
tas, e viver numa habitação melhor que um casebre
de adobe; e no entanto, essas exigências moderadas
são muitas vezes consideradas suficientes em países
onde ‘a vida humana é barata’ e as necessidades
do homem facilmente satisfeitas.»* Era assim acen
tuada a importância deste elemento social ou convencional,
nos momentos em que o preço de mercado do trabalho
subia acima do preço natural, de que «dependerá» «a
permanência» desta subida e no qual «os amigos da huma
nidade» podiam pôr as suas esperanças como «garante
contra uma população excessiva».
Ê difícil terminar uma descrição da teoria de Ricardo
sem uma referência à sua discussão com Malthus
119
sobre a causa de «excessos» e a possibilidade de sobre-
produção geral. Quanto a isto, Ricardo baseava-se naquilo
que veio a chamar-se a Lei de Say, enquanto Malthus tem
sido saudado como precursor da doutrina do século vinte
que, indo contra aquela Lei, atribui importância ao nível
de procura efectiva. Tal como Sismondi, Malthus adoptava
a este respeito aquilo que seria considerado durante um
século ou mais a heresia do subconsumo. Uma parte
importante das «Notas sobre Malthus» de Ricardo é
ocupada por este tema.
Malthus principia expondo o caso em que uma «parci
mónia» por parte dos capitalistas é utilizada para empregar
trabalhadores adicionais (em comum com Ricardo, tem
em mente o caso em que o capital é constituído exclusi
vamente por capital circulante, e todo o novo capital
é consequentemente aplicado em salários e matérias-pri
mas, com os quais são criados novos postos de trabalho).
«É sem dúvida possível, através da parcimónia», diz,
«dedicar imediatamente uma parte do produto de qual
quer país mais vasta do que o habitual, à manutenção
de trabalho produtivo; e é verdade que os trabalhadores
assim empregados são consumidores.» Mas... o consumo
e a procura ocasionados pelas pessoas empregadas no tra
balho produtivo nunca podem, por si sós, constituir
um motivo para a acumulação e aplicação de capital;
e quanto aos próprios capitalistas, juntamente com os
proprietários de terras e outras pessoas ricas, terão acei
tado, por suposição, serem parcimoniosos, e privarem-se
das suas conveniências e luxos usuais para econo
mizarem o seu rendimento e aumentarem o seu capi
tal. Nestas circunstâncias, pergunto eu, como é possível
supor que a maior quantidade de bens obtida com um
maior número de trabalhadores produtivos encontre com
pradores, sem que se dê uma tal descida de preços que
os seus valores desçam abaixo dos custos de pro
dução.»* Isto quase poderia ser uma passagem de
120
J. A. Hobson ou qualquer outro teórico do subconsumo
(ou sobrepoupança); mas, no entanto, não surge como
linguagem especificamente keynesiana (à primeira vista,
pelo menos), visto que a parcimónia adicional é
imediatamente equilibrada por um investimento adicional.
A preocupação parece incidir sobre o efeito produtivo do
investimento adicional, que não é acompanhado por qual
quer expansão da procura (o que lhe dá um certo sabor
kaleckiano).
Referindo-se a Say e à sua «Lei dos Mercados»,
Malthus prossegue afirmando que, embora alguns es
critores muito avisados tenham pensado» que não
pode haver uma sobreprodução geral ou abundância
de todas as coisas, porque, como «os bens são sempre
trocados por bens, metade destes abastecerá o mercado
para a outra metade», mesmo assim, na sua opinião, «não é
de modo algum verdadeiro... que os bens sejam sempre
trocados por bens. A grande massa dos bens é directa
mente trocada por trabalho.» Portanto, «é perfeitamente
evidente que esta massa de bens, comparada com o tra
balho pelo qual será trocada, pode perder valor devido
à abundância, tal como qualquer bem perde valor
em virtude dum excesso de oferta».* A este respeito,
parece preocupar-se com uma subida dos salários reais
como efeito dum aumento da taxa de acumulação, com
uma consequente diminuição dos lucros. Isto pode pare
cer estranho, vindo da pena do autor do Ensaio sobre a
População (como, na verdade, J. B. Say observou).**
121
No entanto, a sua atenção concentra-se principal
mente na insuficiência da procura de bens. «Nunca poderá
existir uma procura de trabalho produtivo com um objec
tivo de lucro, a não ser que o valor da produção obtida
seja superior ao do trabalho que a realizou. Não se pode
utilizar novos braços em qualquer espécie de indústria,
apenas em consequência da procura da sua produção
ocasionada pelas pessoas empregadas.»* Visto que uma
taxa de acumulação excessivamente rápida se tornava pos
sível, havia vantagem na existência duma classe de
«consumidores não produtivos», como se lhe afigurava
ser o caso da aristocracia agrária. A sua procura com
pensaria a excessiva parcimónia dos capitalistas, e assim
estabelecer-se-ia um equilíbrio económico e social. O autor
conclui que «nenhuma nação tem possibilidade de enri
quecer graças a uma acumulação de capital, resultante
duma permanente baixa do consumo; porque, como essa
acumulação ultrapassa em muito aquilo que se pretende,
a fim de satisfazer a procura efectiva de produtos, uma
parte destes depressa perderia o seu uso e o seu valor,
deixando de constituir riqueza».**
Ricardo, o que não causa surpresa, replicou com a
própria teoria de Malthus sobre a população. Em pri
meiro lugar, negou que a parcimónia, quando equilibrada
por um investimento de capital circulante adicional, pu
desse causar qualquer insuficiência de procura (a não ser
que o investimento fosse mal orientado): as «necessidades
dos consumidores» seriam simplesmente «transferidas, jun
tamente com o poder de consumir, para outro grupo
de consumidores»; «o poder de consumir... não é supri
mido, mas sim transferido para o trabalhador».*** Em
segundo lugar, o aumento dos salários será uma situação
temporária, a não ser que o custo da subsistência em tra-
123
questões fundamentais, e manteve sempre um certo pendor
conservador. Isto pode ser mais revelador para explicar
o desacordo entre ele e Ricardo, do que a ideia de que
Malthus tendia a esperar «efeitos imediatos e temporá
rios», enquanto Ricardo contava com os resultados a longo
prazo e mais permanentes de uma alteração económica
(conforme ele próprio declarou).*
124
4. A REACÇÃO CONTRA RICARDO
125
Evidentemente, já em vida de Ricardo existiam cor
rentes de pensamento antagónicas. Muitíssimo concreto e
sem rodeios no seu conservantismo, foi, conforme vimos,
o Conde de Lauderdale, pensador económico de relevo,
que se bateu ousadamente contra a maré cheia do
Smithianismusi. Além de ser politicamente proteccionista,
pelo menos no que se refere às Leis sobre os Cereais, tinha
a preocupação dominante de denunciar a «funesta paixão
pela acumulação, que falsamente tem sido considerada
virtude», e de demonstrar «toda a extenção do mal que
pode advir da indulgência para com ela». O mal era «a
diminuição de valor» que «se produzirá... nos artigos em
que a parcimónia dará origem a uma sublimação da pro
cura», daí advindo, «analogamente, uma diminuição da
produção do país».* Isto significava que «a acumula
ção de capital deve ter sempre os seus limites».**
Outro alvo da sua crítica foi a concepção de Smith
do lucro como dedução, cujas implicações ideológicas
ele compreendeu de modo perspicaz. Contrariamente a
essa ideia, via a origem do lucro na capacidade de o
and Ideology and Other Essays (Londres, 1967) pp. 67-8; e para
um modo 'de ver antagónico, cf. as observações de Lionel Robbins,
The Evolution of M odem Economic Theory (Londres, 1970)) p. 59.
O Professor Meek observa que «Marx viu o ano de 1830 como assina
lando o fim da economia «ricardiana» — e, de facto, não só da eco
nomia «ricardiana» mas também da economia «clássica» e até da
economia «científica». A partir daíx os cientistas foram obrigados
a ceder o passo aos profissionais» ( i b i d p. 52). Foi em referência
a estas tendências posteriores a 1830, que Marx criou o termo
vulgarõkonomie.
* Conde de Lauderdale, An Inquiry into the Nature and Origin
of Public Wealth (Edimburgo, 1804) pp. 218, 220, 248. Neste
sentido, pode parecer que não fez mais do que proclamar uma
opinião de simples subconsumo. Acrescenta, de facto, que a
formação dum fundo de acumulação teria permitido uma «riqueza
real que se dissiparia» (devido à queda da procura» (antes deste
fundo de acumulação... poder com toda a probabilidade ter trans
formado... o rendimento em capital» ( i b i d p. 249), o que alguns
talvez considerem como uma antecipação do raciocínio keynesiano
sobre poupança e investimento e o efeito imediato duma modi
ficação da tendência para consumir.
** Ibid., p. 265.
126
capital «fornecer uma quantidade de trabalho, que de outro
modo seria realizado pela mão do homem; ou na realização
pelo capital de uma quantidade de trabalho que está para
além do alcance do esforço pessoal do homem.* Embora
Malthus, conforme vimos, tivesse certamente sido influen
ciado por ele, preferiu no entanto o papel de defensor
da tradição de Smith, nos pontos em que Ricardo
atacara a Riqueza das Nações e dera às suas dou
trinas fundamentais um cunho mais radical. Isto é
evidente não só na tenaz defesa que Malthus fez
da avaliação do valor pelo «trabalho disponível», de
Adam Smith, mas também no seu hábito de conceber ques
tões de valor de troca dentro de um contexto geral de
oferta-procura (tal como Adam Smith tinha feito na sua
«Teoria das Componentes Aditivas»). Em nenhum caso isto
foi mais evidente que no seu modo de tratamento da teoria
dos lucros.** E no entanto, na altura em que a reacção
contra Ricardo estava no auge, estas diferenças passaram
a ser consideradas secundárias e o próprio Malthus, dentro
duma visão mais ampla, próximo do ponto de vista ricar-
diano.***
127
O avolumar de críticas a Ricardo, nos anos que se
seguiram à sua morte, foi motivado principalmente pelas
suas teorias do valor e do lucro; em segundo lugar, pela
sua teoria da renda, pelo menos tanto quanto esta era
apresentada de modo a considerar os interesses do proprie
tário da terra opostos ao interesse social. O professor R. L.
Meek explicou a veemência e rápido êxito destas críticas
pelo facto «de a maioria dos economistas estarem muitís
simo conscientes da perigosa utilização que alguns escrito
res radicais estavam a dar aos conceitos de Ricardo»*; en
tre estes escritores incluía-se Thomas Hodgskin, em espe
cial, e mais tarde outros «socialistas ricardianos».
Embora McCulloch, em meados da década de 1820, se
tivesse encarregado de uma série de lições anuais em
honra de Ricardo (e publicasse mais tarde uma colecção
de obras do mesmo autor), era, por formação e inclinação,
incapaz de levar por diante a tarefa de replicar de forma
efectiva a estas críticas; isto porque era mais um jor
nalista e divulgador fluente (e inteligente) do que um
pensador subtil ou original. Por outro lado, com o correr
128
do tempo, foi-se afastando cada vez mais da posição
de Ricardo.
O primeiro e talvez o mais influente dos ataques
contra Ricardo, foi a obra de Samuel Bailey, de 1825,
um negociante de Sheffield com certa importância naquela
cidade, que mais tarde entraria, inter alia, numa crítica
filosófica muito forte, que incluiu uma crítica da teoria
do Bispo de Berkeley. A sua polémica contra Ricardo
tomou a forma de um ensaio de 200 páginas, intitulado
Uma dissertação Crítica sobre a Natureza, Medida
e Causas do Valor: principalmente em referência aos
trabalhos de Ricardo e seus adeptos, que primeiro foi
publicado anonimamente, e considerado por alguns econo
mistas do século como uma notável antecipação de noções
modernas. Embora Torrens cedo o aprovasse (na dis
cussão do Clube de Economia Política, em 1831), Seligman
classificou Bailey entre os «Economistas Britânicos Me
nosprezados».*
O alvo principal da sua crítica foi a noção ricardiana
de valor absoluto, e com esta, a noção de padrão inva
riável. Bailey era um relativista convicto, e começou
por definir o valor como sendo constituído apenas por
aquilo a que Ricardo tinha chamado «valor relativo»
ou «valor de troca». «Valor», disse, «indica... não algo de
positivo ou intrínseco, mas unicamente a relação de reci
procidade de dois objectos como bens permutáveis... indica
uma relação entre dois objectos», portanto «comporta[ndo]
uma noção de distância».** Seguia-se que «o próprio termo
valor absoluto implica a mesma espécie de absurdo que
distância absoluta», e que a busca por Ricardo de
um valor invariável para padrão não tinha sentido,
visto ser impossível definir ‘valor invariável’. «A minha
tese é que, se as causas que afectam qualquer bem
se mantiverem sem alteração, o seu valor não permanecerá
:9
129
invariável, a não ser que as causas que afectam a totali
dade dos bens continuem sem alteração relativamente
a ele.»* Apresentando esta noção de valor puramente
relativa (e negando qualquer outra), falou, a propósito,
em «valor, no seu sentido último», como significando a
«est:ma em que qualquer objecto é tido. Indica, para falar
com exactidão, um efeito produzido na mente.»** (Esta
observação, escusado será dizê-lo, fez com que fosse sau
dado como um progenitor da Revolução Jevoniana.) *** De
Quincey é alvo de um ataque especial por ter exposto a
teoria de Ricardo, e até Malthus o é, por ter apadrinhado a
noção de valor «invariável, absoluto, natural» (em
Medida do Valor), em oposição a valor «nominal ou re
lativo».
No que se refere à sua teoria do lucro, pouco contribuiu
para além da afirmação de que os lucros indicam «apenas
uma parte ou proporção de bens», e uma subida dos lucros
só pode significar que «o ganho do capitalista é proporcio
nalmente superior ao capital aplicado»; donde conclui
que quando os lucros são definidos deste modo, «a propo
sição de que quando o trabalho sobe, os lucros descem
necessariamente, só é verdadeira quando essa subida não
se deve a um aumento do seu poder produtivo» (refere-
-se, é claro, a salários como «salários reais» no sentido
de Smith-e-Malthus, e não de salários como proporção,
ou «o valor real dos salários» no sentido de Ricardo).
Voltando à questão do valor, afirma que o custo de
produção, que o regula em condições de concorrên
cia, «pode ser... uma quantidade de trabalho ou uma
quantidade de capital», e conclui, de acordo com Torrens,
que como causa próxima influindo na mente dos capita
listas, «a quantidade de capital aplicada é a causa que
determina o valor do bem produzido».****
* Ibid., p. 20.
** Ibid., p. 180.
*** Cf. Rauner, Samuel Bailey, pp. 5-7.
**** Bailey, A Critical Dissertation..., p. 201.
130
Uma pequena curiosidade no seu modo de tratamento
do valor é uma referência ao monopólio. Distingue-se entre
dois tipos principais, um «no qual há apenas um interesse»,
outro «no qual há interesses separados». No primeiro,
o monopolista pode ter interesse em reter parte da oferta.
Mas no segundo caso, não será assim: mesmo que «esteja
protegido por um privilégio exclusivo (por exemplo, uma
concessão ou uma indústria com grandes custos iniciais) ou
não tenha de preocupar-se com a concorrência pública»,
«é obrigado... a fornecer a maior quantidade de bens que
puder, até ao ponto em que o preço médio lhe renda um
lucro maior que qualquer aplicação corrente do capital».*
Prossegue incluindo nesta última categoria a maioria das
situações de curto prazo (como seriam hoje classificadas)
e a maioria dos desvios temporários do preço de mercado
em relação ao custo de produção. «Todos os bens que ne
cessitam de um período de tempo considerável para a sua
produção, estão sujeitos a ser uma vez por outra incluídos
na classe de artigos que devem o seu valor a este segundo
tipo de monopólio, por uma súbita alteração da relação
entre a procura e a oferta. Daqui resulta aquilo a que os
economistas chamam valor de mercado». Se a procura
aumentar, «os possuidores dos bens desfrutarão de um mo
nopólio temporário», ao passo que se a procura diminuir,
terão a desvantagem de serem «forçados a colocar toda a
sua oferta no mercado, devido à concorrência».** E termina
apresentando aquilo que pode virtualmente ser considerado
como um terceiro tipo de monopólio: «o caso em que a
concorrência não pode aumentar, excepto provocando um
aumento de custo». A renda é assim tratada como um
exemplo de «valor de monopólio», devido à escassez de
terras de fertilidade superior, e «resulta [nte] do lucro
extraordinário obtido pela posse dum instrumento de
produção protegido, até certo ponto, da concorrência».***
* IUd., p. 187.
** Ibiã., pp. 188-9.
*** Ibid., pp. 185, 195-6.
131
A Dissertação de Bailey foi citada por Torrens, que
manifestou a sua aprovação e considerou como decisiva
pela sua crítica da Teoria de Ricardo Sobre o Valor, na já
mencionada discussão no Clube de Economia Política;* e
no mesmo ano, Coteri, que também foi muito influenciado
por Bailey, referiu-se lacónicamente a «alguns ricardianos,
que ainda subsistem».** A Dissertação foi duramente tra
tada, no entanto, por um articulista na Westminster Review
de Janeiro de 1826 (que parece ter sido James Mili,***
embora o artigo tenha sido atribuido ora ao pai ora ao
filho). Malthus replicou com alguma aspereza nas suas
Definições de Economia Política, de 1827, onde se refere
a Bailey acusando-o de aplicar a sua própria definição
de valor «para julgar a veracidade de várias pro
posições sugeridas por diversos escritores, que, segundo
ele próprio diz, usaram o termo num sentido muito dife
rente». O trabalho é prontamente rejeitado como «caracte
risticamente calculado para retardar o progresso da ciência
que deveria ter procurado promover».**** Malthus pros
segue defendendo o uso de uma distinção entre valor rela
tivo e valor absoluto, afirmando que «a comparação de um
bem, quer com a massa dos outros bens, quer com o custo
de produção elementar, é essencialmente distinta da com
paração com um bem particular... é fundamental para
a linguagem da economia política que sejam distingui
dos por termos diferentes». A isto acrescenta que «nada
é mais comum que o uso dos termos real, positivo e
absoluto, em oposição a relativo, quando os primeiros ter
mos se relacionam com algum objecto mais geral, parti
cularmente com algo que é considerado um padrão».****"
132
Marx, o que não causa surpresa, referiu-se a esta obra
como «não tendo valor positivo»; ao passo que Schumpe
ter, não há muito tempo, a saudou como «uma obra
prima de crítica».*
Observe-se que como rejeição da Teoria de Ricardo
Sobre o Valor, esta obra teve menos peso do que
lhe atribuíram os seus admiradores contemporâneos e
modernos, e que ficou aquém da sua finalidade. Definir va
lor como valor relativo, ou valor de troca, não é per se uma
refutação daqueles que, procurando encontrar uma base
ou «causa» deste valor de troca, a procuram no custo
de produção (ou, de facto, em qualquer outra coisa),
e a definem por meio dum termo distintivo, seja ele
valor «natural», «real» ou «absoluto». Neste ponto a
réplica de Malthus foi, não há dúvida, inteiramente justa.
O que tem de ser demonstrado é que nenhum conceito
deste género pode ser sustentado coerentemente. Embora
isto esteja implícito na Dissertação de Bailey, não
se pode afirmar que esteja demonstrado. No que diz
respeito a realismo, de modo algum é suficiente apresentar
uma noção «metafísica» que deva ser considerada (tal o
«valor natural» de Smith) como existente apenas em certas
condições hipotéticas — a não ser que todas as conclusões a
que se chegue por raciocínio dedutivo tenham de ser rejei
tadas segundo esta orientação.
II
133
lições proferidas respectivamente em Dublin e Oxford.
O primeiro, nas Lições de Economia Política, expôs algo
aparentado com uma teoria da produtividade marginal dos
lucros (os lucros deviam-se à produtividade adicional ex
traída do trabalho quando o capital era investido em
máquinas); o segundo, nos seus Elementos de Economia
Política, propôs a sua conhecida teoria do lucro como
recompensa duma abstinência, que implica uma interpre
tação dualista do «custo real», determinante do valor,
como constituído por trabalho mais abstinência. Schum
peter diz de Longfield que «produziu um sistema que se
teria mantido de pé em 1890» e «antecipou o essencial da
teoria de Bõhm-Bawerk.*
Senior merece, provavelmente, que o mencionemos em
primeiro lugar, visto que teve realmente prioridade na ma
téria; as suas lições foram proferidas antes de 1830.
Nomeado para a nova cadeira de Economia, criada
em Oxford em 1825, por um prazo de cinco anos,
voltou a ocupá-la mais tarde, de 1847 a 1852. As
lições que proferiu durante o primeiro período em que
regeu a Cadeira constituíram a base dos seus Elemen
tos de Economia Política, publicados no mesmo ano
que a segunda edição póstuma dos Princípios de Malthus.
A partir de 1830, como membro do Partido Whig, foi
o seu conselheiro nas questões económicas, e membro
da conhecida Comissão da Lei dos Pobres de 1832-4.
A sua conhecida «violenta oposição ao sindicalismo»,
como se lhe chamou,** prova que de modo nenhum
desconhecia ou era indiferente às implicações sociais
das suas teses.***
134
Acerca de Abstinência, postula apenas que ela deter
mina e explica o Lucro. «O lucro é a remuneração duma
abstinência, e esta o adiamento da satisfação», ao mesmo
tempo que o capital «deve a este fenómeno a sua exis
tência e conservação». Noutro ponto defende que Trabalho
e Natureza são as únicas forças produtivas primárias,
mas que «necessitam da cooperação dum terceiro Prin
cípio Produtivo para completa eficiência. Ao Terceiro
Princípio... daremos o nome de Abstinência», que «está
na mesma relação para o Lucro que o Trabalho para os
Salários».* No entanto, admite uma restrição, ao afirmar
que o Capital tende constantemente a aproximar-se da
Terra (e, logicamente também, o Lucro da Renda) por
perder a sua mobilidade assim que é investido em bens
duradouros. Do mesmo modo (apresentando um raciocínio
diferente) «para todos os fins úteis, a distinção entre
lucro e renda cessa assim que o capital proveniente dum
dado rendimento se torna, quer por doação, quer por
herança, propriedade duma pessoa a cuja abstinência
e esforços não deve a sua criação. O rendimento
que provém de uma doca ou molhe ou canal, é
lucro nas mãos do construtor original. É a recom
pensa da sua abstinência ao aplicar capital para
fins de produção, em vez de obter com ele satisfações
imediatas. Mas nas mãos do seu herdeiro, tem todos
os atributos da renda. É para ele a dádiva da fortuna,
e não o resultado dum sacrifício».** Talvez não seja de
surpreender que esta restrição tenha tido tão pouco re
levo entre aqueles que, acompanhando Sénior, «justi
ficaram» o lucro e o juro em termos de abstinência
135
(ou «adiamento», palavra menos sugestiva para designar
a mesma coisa) e procuraram assimilar o lucro e os
salários como pagamentos de «custos reais»; porque a
restrição anula em grande parte essa justificação
(ou explicação — chame-se-lhe o que se quiser) .* O comen
tário de Edwin Cannan vem aqui a propósito: «Nas comu
nidades civilizadas modernas e ricas, a propriedade her
dada é muitíssimo mais importante que a propriedade
adquirida pela poupança de pessoas vivas.»**
Ao discutir os salários, Senior parte duma Teoria
da Subsistência, defendendo que o salário depende
«da importância do Fundo destinado ao sustento dos Tra
136
balhadores, relativamente ao número de Trabalhadores
a sustentar.* Até aqui, podemos classificá-lo como defen
sor duma simples Doutrina de Fundo de Salários. Mas em
seguida põe restrições ou amplia esta afirmação geral em
diversos aspectos. (Simultaneamente, de facto, tem o
cuidado de declarar incompatível com a sua própria
teoria a ideia de «que a Taxa de Salários depende
apenas da proporção entre o número de Trabalhadores
e a quantidade de Capital no país».)** Quanto à im
portância do Fundo, depende, em primeiro lugar «da produ
tividade do trabalho na produção directa ou indirecta
dos bens utilizados pelo trabalhador», e, em segundo lugar,
«do número de pessoas directa ou indirectamente empre
gadas na produção de coisas para o uso dos trabalhadores,
relativamente ao número total de famílias trabalhado
ras».*** Até aqui pode parecer que se mantém bastante
próximo de Ricardo, que, conforme vimos, tratou os lucros
como sendo determinados pela produtividade do trabalho na
produção de bens-salário em relação ao nível dos salários
reais, ou, alternativamente, pela proporção da força de
trabalho necessária para produzir bens-salário. É signifi
cativo, contudo, que Sénior visse essa proporção como de
terminando, não os lucros em relação aos salários, mas,
pelo contrário, a procura de trabalho em termos reais. Por
outro lado, ao explicar como é determinada a sua segunda
proporção, exprimiu-a inversamente à de Ricardo: é deter
minada pelas «Causas que Desviam Trabalho da Produção
de Bens para o uso das Famílias Trabalhadoras»: isto é,
« I Renda. II Tributação. III Lucro». Por outras palavras,
em vez de 03 Lucros serem determinados «pelo que sobeja
dos salários», conforme De Quincey afirmou**** (tendo a
produtividade em conta, por influenciar a importância des-
13T
tas «sobras»), o Lucro é tratado (juntamente com a Renda)
como antecipadamente determinado, e os Salários, ao que
parece, como o resíduo depois de feitas estas deduções pré
vias.* Isto está na tradição de Adam Smith, num sentido;
com a diferença pouco importante de que o Lucro é expli
cado (embora não de maneira completamente clara) pela
Abstinência. Respondendo à interrogação sobre o que
determina a taxa de lucro, introduz a noção de «período
médio de adiantamento de capital» — o tempo durante o
qual os salários têm de ser adiantados; e como explicação
para as diferenças internacionais de salários, apresenta a
interessante sugestão (em Three Lectures on the Cost of
Obtaining Money, 1830) de que estas são devidas a diferen
ças de valor, em termos de metais preciosos, de bens expor
táveis produzíveis por um trabalhador médio durante um
período dado, depois de considerada a dedução do lucro,
segundo a taxa de lucro e o «período de adiantamento».
Quanto ao Valor, Senior parece ter seguido em grande
parte J.-B. Say e Lauderdale ao tratá-lo como dependente
da Utilidade, condicionada por uma limitação de oferta
e transferibilidade; acrescentando que essa limitação era
«de longe a mais importante». « A utilidade», escreve,
«não indica nenhuma qualidade intrínseca às coisas a
que chamamos úteis, exprime apenas as suas relações
com os trabalhos e prazeres da humanidade.» Alguns
saudaram-no como antecipador da Lei da Utilidade Decres
cente, pela sua afirmação de que «não só há limites para
o prazer que os bens de qualquer tipo podem proporcionar,
como também o prazer diminui, numa proporção rapida
mente crescente, muito antes desses limites;... dois artigos
do mesmo tipo raramente proporcionam duas vezes o
mesmo prazer que um».** Há também quem veja um
vislumbre de modernismo na sua afirmação de que, en
138
quanto «os nossos desejos buscam não tanto a quantidade
como a diversidade», o desejo de diversidade «é pouco
importante em comparação com o desejo de qualidade».*
Mountifort Longfield foi um Juiz irlandês, nomeado
em 1932 para a Cadeira de Economia Política no Colégio
da Trindade, em Dublim, pelo arcebispo Whately. As lições
em questão foram proferidas em 1833 e publicadas no ano
seguinte. No seu Prefácio (p. vn) exprime a sua preo
cupação em provar «como é impossível regular salários
em geral, quer através de acordo com os trabalhadores,
quer por texto legislativo»; de modo que é evidente o seu
interesse, senão preocupação, com a nascente «questão
Trabalhista». Como é igualmente clara a sua rejeição das
ideias de Ricardo, pelo menos no que respeita à teoria dos
lucros. Abre a sua discussão sobre os Lucros, atacando a
afirmação de Ricardo de que a taxa de lucros só pode
ser incluída no âmbito da baixa dos rendimentos da terra,
que, elevando o custo de subsistência, faz subir os Salários.
Começa por considerar o capital investido como capital fixo
em máquinas ou ferramentas aperfeiçoadas como auxi
liar do trabalho. O lucro do capital primeiramente inves
tido desta forma, tenderá a ser regulado pela «quantia
que pode ser paga pela utilização de qualquer máquina»
e isto «pela sua eficiência no auxílio às operações do
trabalhador». Isto estabelecerá aquilo a que ele chama
o «limite máximo» do lucro. Mas «o seu limite inferior
é determinado pela eficiência do capital que, sem impru
dência, é aplicado da maneira menos eficiente», a cujo
nível a concorrência tenderá a reduzir todo o lucro do
capital fixo.** Daqui conclui que os aumentos de capital,
per se, «tendem a diminuir a taxa de lucro»,
mesmo «sem um. aumento da população», e a fazer subir os
preços dos cereais. Os lucros do capital circulante «têm
de ser regulados pelos lucros do capital fixo».*** A sua
139
noção de «eficiência marginal» do lucro (tal como é, essen
cialmente) está resumida na afirmação seguinte: «Em
qualquer caso, os lucros do capital serão sempre regulados
por aquela parte que for forçoso aplicar com a menor
eficiência, no auxílio ao trabalho».* É evidente que temos
aqui um número bastante grande de esboços preliminares
da teoria económica do fim do século.
Quanto aos «salários do trabalhador», estes «depen
dem do valor do seu trabalho e não das suas necessidades».
Tal como Senior, defende que os salários reais «dependem
inteiramente da taxa de lucros e da eficiência do trabalho
na produção dos artigos em que os salários do trabalho
são geralmente gastos».** O notável corolário deduzido con
siste na afirmação reconfortante de que «a quantidade de
lucros e salários está confinada a limites que o poder
da legislatura não pode ampliar, por qualquer exercício
directo da sua autoridade. Neste ponto, a legislação e o
acordo podem causar prejuízos, mas não podem praticar
o bem».*** E na sua décima-primeira e última lição,
condensa o resultado dos seus estudos (que «não serão,
assim o espero, desagradáveis para os espíritos benevo
lentes») na afirmação acerca das leis económicas que
citámos no Capítulo I.**** A isto acrescenta a obser
vação: «Descobriremos que todas as causas que enfra
quecem qualquer fonte de riqueza têm origem no vício
ou na irreflexão.»***** As leis da produção e da reparti
ção, aparentemente, não são apenas feitas de matéria, são
também de origem divina.
No que se refere ao Valor, Longfield prestou igual
mente mais atenção à utilidade do que tinha sido cos
tume, pelo menos em Inglaterra. «O valor de qualquer
artigo depende da procura e da oferta e... indirectamente,
* Ibid., p. 193.
** Ibid., pp. 206, 212.
*** Ibid. p. 159.
*»** y er acima, página 36n.
***** Ibid., pp. 222-3.
140
o custo de produção de qualquer bem, assim como a sua
utilidade tem efeito sobre o seu preço.»* Fala de «intensi
dades de procura» variáveis, e conclui que «o preço de mer
cado é regulado pela procura que, sendo a de menor inten
sidade, mesmo assim conduz a compras reais. Se a oferta
existente for mais do que suficiente para satisfazer toda a
procura igual ou superior a um certo grau de intensidade,
os preços descerão, para se adaptarem a uma procura
menos intensa.»** Isto é certamente um prenúncio duma
Lei da Utilidade Decrescente Jevoniana. ,
O sucessor de Sénior, após a primeira passagem deste
pela Cadeira de Economia Política em Oxford, foi Richard
Whately, a quem por sua vez sucedeu W. F. Lloyd,
em 1831. Tanto Whately como Lloyd publicaram as suas
lições (essa publicação, aliás, era uma das condições
da ocupação da Cadeira); o primeiro em 1831, com o título
Lições Preliminares de Economia Política, o segundo
em 1834, intitulando-as Uma Lição sobre a Noção de
Valor. As opiniões de ambos foram análogas às de Sénior
e às do seu colega de Dublim; e ambos são geralmente
classificados entre o grupo dos economistas da reacção
anti-ricardiana, que antecipou algumas das principais
ideias da «Revolução Jevoniana» que se produziria qua
renta anos mais tarde.
Whately, cujas ideias gerais podem ter influenciado
Sénior***, sugeriu o termo «Cataláctica» como nome mais
apropriado para a Economia Política, acentuando o facto de
esta se ocupar principalmente com o mecanismo da Troca
(a «esfera de circulação» de Marx, que este considerou
como pertencendo mais ao «fenómeno» que à «essência»).
W. F. Lloyd foi sem dúvida o mais importante dos dois
como descobridor do princípio da utilidade marginal (o
papel que muitos lhe atribuíram): considerou o valor como
«significafndo] indubitavelmente um sentimento da mente,
* Ibid., p. 110.
** Ibid., p. 113.
*** Cf. Schumpeter, Economic Analysis, p. 484.
141
que se apresenta sempre na margem de separação entre
necessidades satisfeitas e não satisfeitas», e explicou que
«um aumento de quantidade acabará por esgotar, ou sa
tisfazer até ao máximo, a procura de qualquer objecto
de desejo específico».*
Outros autores pertencentes a este período, embora
não a este grupo, mostraram ainda mais claramente (con
forme o Professor Meek fez notar) grande preocupação
com as implicações sociais da doutrina ricardiana à qual se
opunham.** Samuel Read referiu-se energicamente àquilo
que ele considerava implícito na teoria de Ricardo (que
«o trabalho é a única fonte de riqueza») como «um erro
prejudicial e fundamental» no âmago do seu sistema.***
Poulett Scrope, autor dos Princípios de Economia Política
de 1833, referiu-se às obras da Escola Ricardiana (na qual
incluía Malthus e Whately) como «não proporcio
nando qualquer resposta capaz de satisfazer o espírito de
um homem com uma educação elementar, vulgar senso
comum e honestidade, que nelas procure alguma justi
ficação para a imensa disparidade de fortunas e circuns
tâncias que saltam à vista por todos os lados. Pelo con
trário, estas obras, segundo me parece, contêm muitas
contradições e erros óbvios e inculcam muitos princípios
falsos e perniciosos».**** Noutro ponto da mesma obra
142
(Political Economy for Plain People) fala de uma «errónea
hostilidade para eom o Capital» e do «Direito ao Lucro
sobre o Capital» mencionando Hodgskin e a sua «explora
ção dos trabalhadores».* Nos seus Princípios, menciona
especificamente aqueles que «bradam contra o capital
como o veneno da sociedade, e contra o facto de os pro
prietários do capital cobrarem o juro deste, como um abuso,
uma injustiça, uma exploração dos trabalhadores»; e
acusa a teoria do trabalho de não reconhecer o lucro como
compensação pelo «tempo durante o qual o proprietário
do capital permitiu que este estivesse aplicado».** Não
causa surpresa ele ter apresentado a noção de absti
nência (independentemente de Senior, ao que parece) como
explicação para a existência do lucro.*** A caracterização
de Marx, ao falar de «má consciência e perverso desígnio
de apologética», terá sido tão exagerada como estas?
u i
143
ainda o cuidado de atribuir a estes «uma análise bastante
perfeita, acessível e sem qualquer ruptura violenta».*
É sem dúvida verdade que as ideias novas, quando apre
sentadas pela primeira vez, aparecem muitas vezes (talvez
mais do que aquelas que não aparecem) na forma de sim
ples extensões duma estrutura conceptual existente, ou
mesmo como tentativas para conciliar esta estrutura com
noções ou observações anteriormente consideradas con
traditórias (como sucedeu com os epiciclos e o sistema
ptolomaico). Só ulteriormente as novas ideias ou obser
vações encontrarão expressão mais convincente, como
elementos ou relações fundamentais duma estrutura con
ceptual completamente nova, que desafia a antiga na sua
integralidade. Assim sucedeu com o novo sistema teórico
do período posterior a 1870, associado neste país ao nome
de Jevons. No entanto, interpretar retrospectivamente
as ideias anteriores de um Bailey, Sénior ou Long-
field sobre a utilidade ou a produtividade margi
nal, ainda imperfeitas e a necessitar de formulação
mais geral, como simples tentativas para aperfeiçoar ou
continuar o ricardianismo, conciliando-o com os seus crí
ticos, é ser muito menos que justo para com a sua novidade
e o seu papel crítico e eventualmente disruptivo. Poucas
dúvidas devem restar, perante as provas existentes, de
que o grupo associado a Sénior (incluindo Longfield)
se afastou muito conscientemente das doutrinas mais
características de Ricardo, e especialmente daquelas
(como a sua teoria do lucro e o relevo que atribui à relação
antagónica entre salários e lucro e entre lucro e renda)
que consideravam socialmente perigosas e portanto inde
fensáveis.
Mesmo que limitemos a nossa atenção, tal como Schum-
peter, ao esquema analítico das doutrinas, é óbvio que
houve, de modo geral, duas tradições completamente dis
tintas e antagónicas no pensamento económico do século
dezanove, no que se refere à ordem e modo de determina
144
ção de fenómenos de troca e distribuição de rendimento.
Uma destas tradições, inspirada em Adam Smith, tratou o
valor de qualquer bem como determinado pela soma das
várias despesas ou custos envolvidos na sua produção ; des
pesas estas que dependem dos pagamentos necessários de
térra, capital e trabalho, e das respectivas quantida
des exigidas pela produção do bem em questão. A deter
minação destes pagamentos necessários era incluida
numa estrutura geral de oferta e procura, e em Adam
Smith era tratada como o problema da taxa geral de lucros,
taxa de salários e renda da térra, que, conjuntamente,
constituíam as «partes componentes do preço». Diversos
autores consideraram uma ou outra destas componentes
como «residual» no conjunto global, no sentido de que rece
bia o que restava do produto total após a realização de
certas partilhas pré-determinadas. Vimos que para
Adam Smith o rendimento da propriedade (isto é,
lucro e renda) aparecia como uma dedução prévia, num
contexto que sugeria moderadamente uma teoria da explo
ração (pelo menos muitos assim pensaram, incluindo Bort-
kievicz). Isto parecia implicar uma explicação dos salários
como resíduo; embora este estivesse sujeito a um
mínimo ( «há uma certa taxa abaixo da qual parece impos
sível reduzir, durante um tempo considerável, os salários
correntes mesmo das mais baixas espécies de trabalho»);
a possibilidade duma subida acima deste mínimo era (tal
vez um pouco contraditoriamente) condicionada por um
«aumento dos fundos destinados ao pagamento de salá
rios»; o que dava origem a «uma concorrência entre
patrões, que faziam ofertas uns contra os outros, a fim de
angariarem trabalhadores, e assim desfaziam voluntaria
mente a combinação natural dos patrões para não subirem
os salários.»*
Foi este tipo de concepção, esquematizado por Smith
de uma forma mais leve e sugestiva que rigorosa, que os
economistas do grupo Senior-Longfield, durante as décadas
de 1820 e 1830, procuraram desenvolver naquilo que viria a
tu
145
ser conhecido como Teoria do Valor do Custo de Produção.
Deste modo passou por John Stuart Mili (embora incon
gruentemente, sob a influência de Ricardo) até Alfred
Marshall; e deste modo foi posteriormente associada
a uma teoria do custo real concebida subjectivamente (fa
zendo lembrar «a faina e fadiga» de Adam Smith) e conse
quentemente susceptível de ser utilizada como fundamento
duma teoria do lucro, para além duma teoria dos salarios.
(Havia muito que Coterill comentara, bem simplesmente:
«há dois ingredientes no custo de produção, salários e
trabalho... e lucros do capital».)* A renda da térra conti
nua a ser, nesta perspectiva, visto não haver custo real, um
excedente residual, embora concebido subjectivamente, cor
respondendo á utilização das dádivas da natureza (para
além das anteriores possibilidades de utilização alternati
vas) . Tinha-se extraído assim o ferrão à ideia de o lucro ser
uma «dedução prévia» do produto do trabalho, uma vez que
o capital e o trabalho foram colocados ao mesmo nivel como
factores de produção com responsabilidade conjunta, quan
do não co-igual, pelo produto. Por outro lado, a noção
global de certas formas de rendimento como «deduções
prévias» e outras (ou outra) como «resíduos», perdeu
importância, tornou-se até sem significado, dada a intro
dução subsequente da noção de «determinação simul
tânea»; sendo esta aplicada tanto à atribuição do preço
de diversos factores produtivos, como aos respecti
vos papéis das condições de oferta e das condições de
procura (com as diferenças estabelecidas por Marshall
referentes à questão do tempo, com a sua conhecida
distinção entre a hipótese de curto prazo ou de longo
prazo, em que pode haver alterações de oferta adaptáveis).
Ê só nas últimas e mais sofisticadas versões na
linha da tradição da oferta-procura-e-partes-componentes-
-do-preço, especialmente naquelas que põem principal
mente em relevo as influências da procura, que encon
tramos uma consideração bastante essencial, que já ante-
146
riormente focámos e à qual voltaremos mais tarde. Consiste
ela em que a estrutura teórica de determinação assenta in
teiramente no processo de troca (ou naquilo que hoje cor
rentemente se designa por processo de formação dos
preços); preços do produto e repartição do rendimento
são assimilados e integrados num sistema de determinação
mútua ou simultânea de preços de produto e preços de
factor em inter-acção. Isto foi especialmente verdadeiro,
conforme veremos, com a Escola Austríaca, para a qual
a noção de «custo real» é substituída por uma hipótese
de ofertas ãuãas de diversos factores, com uma consequente
determinação da procura de todos os preços (e, a pro
pósito, a noção de excedente, aplicada tanto à renda
como ao lucro, perde neste contexto todo o significado).
Isto não foi apenas uma peculiaridade do tratamento
austríaco: faz parte do sistema de Walras e dos que
dele derivaram. Mesmo que (como com Marshall) se
retenha o custo real subjectivo como uma determinante,
na margem, das ofertas de capital e trabalho, dá-se
inevitavelmente maior importância às condições de procura
(e suas determinantes subjectivas), relativamente às
quais a Teoria do Custo de Produção passa inevita
velmente para segundo plano. O único modo como as con
dições de produção interferem neste processo essencial
mente de troca ou de mercado, é sob a forma de «coefi
cientes técnicos», que definem as possibilidades de com
binação de factores, e aquilo a que hoje correntemente se
chama uma «função de produção» que estabelece a gama
de coeficientes técnicos alternativos. Condições e relações
sociais, ou instituições como o tipo de propriedade,
estão completamente ausentes;* sendo efectivamente con
sideradas como destituídas de qualquer papel determinante
e irrelevantes para o resultado. Isto significa, naturalmente,
147
que um conceito como «exploração» ou mais-valia (ou
mesmo algo mais moderado, que implique um antagonismo
de rendimento a longo prazo de tipo ricardiano) não tem
lugar nem sentido, visto que a sua validade assenta
em algo que se refere a relações de preço articuladas com
alguma característica da estrutura institucional (e se nada
a respeito das relações de preço normais depende do
fundamento social ou institucional, estas relações de preço
só podem reflectir as necessidades do problema económico
per se, e. g. o esquema das raretés de Walras,
que se manterão idênticas seja qual for o sistema institu
cional, uma vez que exista livre troca). A intervenção do
monopólio é, evidentemente, outra questão (e este é um as
pecto da situação de mercado); e é característico do pen
samento «moderno» que o termo «exploração», quando
chega a ser utilizado, seja aplicado num sentido completa
mente diferente, para qualificar algum desvio de relações
de preço «normais», devido à existência de um elemento
monopolista ou «imperfeição» de mercado.*
A segunda grande linha de tradição também partiu
de Smith, embora na forma quase hegeliana de cer
tas doutrinas ou teses de Smith invertidas (e por
tanto convertidas) por Ricardo. Primeiro, a peculiar
teoria do valor de Smith (com a sua distinção polarizada
entre «o primitivo e rude estado» e a sociedade capitalista
desenvolvida) foi remodelada por Ricardo, a fim de trans
formar as condições de produção, e em particular as quan
tidades de trabalho empregues na produção, na determi
nante básica tanto na sociedade capitalista como na socie
dade pré-capitalista. Deste modo rejeitou a Teoria das Com
ponentes Aditivas, e, por implicação, rejeitou igualmente a
possibilidade de tratar a esfera de relações de troca como
«sistema isolado», e fundamentou firmemente a explicação
destas relações de troca em condições e circunstâncias
148
de produção. Em segundo lugar, fosse qual fosse a razão
que o levou a considerar a repartição como o problema
central, o seu instinto, ao fazê-lo, foi indubitavelmente
correcto, e o seu modo de tratamento da distribuição
fundamental. Viu que esta tinha de ser explicada em
termos que lhe são característicos, e não como resultado
de relações de troca oferta-procura, conforme Smith fizera.
Esta teoria, de qualquer modo, foi incapaz de pro
porcionar resultados precisos, na forma um tanto vaga
como Malthus e Smith a formularam. Por outro lado,
para Ricardo, uma resposta ao problema da repartição
era uma condição necessária e prévia para calcular o
efeito duma alteração de salários sobre os preços (tanto
gerais como individuais): por outras palavras, para cal
cular as «modificações» dos preços relativos provocadas
por diferenças de condições técnicas de produção com uma
influência particular sobre a utilização do capital fixo.
(Conforme notámos acima, o «efeito curioso» de um au
mento de salários sobre os preços de bens produzidos com
uma quantidade desproporcionada de capital fixo foi ino
vação sua, e tratada por ele como reforço da sua própria
posição, e não como concessão à de Adam Smith.)
No que diz respeito à repartição, apenas é possível
constatar que Ricardo ampliou e desenvolveu a curta
secção consagrada a este assunto na Riqueza das Nações.
Mas esta ampliação continha um elemento adicional fun
damental: a introdução, implícita senão expressa, de
um dado social ou institucional nas condições socio-
-económicas que definem o nível de salários reais. Em
Ricardo, este aspecto não foi definido cuidadosa ou
completamente: pareceu basear-se numa ideia malthusiana
de aumento da população, embora tivéssemos observado
que ele teve o cuidado de incluir o elemento «hábito e cos
tumes» na sua noção de necessidades de subsistência
num certo momento ou em qualquer país. Mas foi esta
forma de apresentar a repartição e as suas determinantes
que abriu a porta pela qual Marx introduziu na teoria
económica essas fundamentais «relações sociais de pro
dução», e, em particular, o aparecimento historicamente
condicionado dum proletariado, como fulcro da sua teoria
149
da mais-valia. Uma das principais consequências residiu
(mais explicitamente, talvez, em Ricardo que em Marx) em
que, sendo o nível de salários reais tomado como estabe
lecido deste modo, as condições de produção na indústria
ou indústrias produtoras de bens essenciais para assala
riados desempenhavam um papel crucial na determinação
da proporção entre lucros ou excedentes e salários, e por
tanto (dadas as despesas de trabalho necessárias em várias
linhas de produção) dos valores de troca relativos. A pro
porção fundamental era a do produto de um dia de traba
lho para os salários de um dia de trabalho, ou, a
uma escala global, a fracção da força de trabalho
total necessária para produzir bens de subsistência,
ou de primeira necessidade, destinada a essa força de
trabalho. Foi um economista russo pouco conhecido,
W. K. Dmitriev, no final do século, quem parece ter sido
o primeiro a apreciar e formular concisamente a novidade
distintiva da estrutura analítica e modo de tratamento
do problema por Ricardo—-algo que tinha ficado apa
gado e esquecido entre as revisões e reinterpretações
que entretanto tinha sofrido. Respondendo a uma crítica
a que nos referiremos adiante,* Dmitriev mostrou que
a essência da teoria de Ricardo podia ser esquematizada
na equação seguinte aplicada a um caso simplificado
de dois produtos, na qual um deles, A, é imput da sua pró
pria produção e da de B. Dmitriev escreveu-a deste modo:
N ax (1 + r ) %
A a A
N ax (1 + r)*
B a B
* Ver Capítulo 7.
150
N a e N b são o número de unidades de trabalho neces
sárias para produzir respectivamente uma unidade de
A e B; r é a taxa de lucro e t o tempo durante o qual
o trabalho é adiantado (ou período de produção). Isto,
logicamente, assemelha-se muito ao caso ricardiano da
agricultura, que produz cereal como bem-salário e pro
dutos manufacturados. Dmitriev mostra seguidamente que
se pode derivar r directamente de N e t na indústria de
bem-salário, desde que se conheça a (o salário real).
N, t e a são parte dos dados na equação acima mencio
nada; N e t dependem das condições técnicas de produção
de A e não é necessário determinar primeiro o preço
de A, antes de se poder derivar r. Com esta equação
simples, basta determinar, no caso de dois produtos, a
proporção de preço de A para B, dados os N e os t e a *
Foi contra todo este modo de abordar uma teoria
do lucro que a escola Senior-Longfield reagiu tão forte
mente — não apenas contra ele com instrumento analítico
inadequado (o qual, tal como muitos outros críticos de
Ricardo, provavelmente não compreenderam inteira
mente), mas contra as suas mais amplas implicações e
corolários. Reagindo desta forma, seriam levados quase ine
vitavelmente (e acabariam por se lhe juntar) na onda da
outra tradição, antagonista, que vinha de Smith, reforçan
do-a desse modo. Se de facto for justo considerá-los «reno
151
vadores» ou «conciliadores», esse termo deve realmente re
ferir-se ao seu papel no desenvolvimento desta tradição
smithiana, e não do ramo ricardiano. Foi o que veio a suce
der, conforme veremos, com J. S. Mill, apesar das inibições
impostas por piedade filial; de modo que a sua eventual
influência foi definir e desenvolver, não a tradição ricar-
diana, mas sim a corrente antagonista que eventualmente
a suplantou; isto foi ocultado na altura (e mais tarde) pela
sua insistência em que estava a defender e renovar a dou
trina de Ricardo. Esta última reapareceria, quase no fim
do período de Mill, em Marx, que a adoptou e desenvolveu à
sua própria maneira dialéctica. E pouco surpreende a facto
de ulteriormente ter sobrevivido naquilo a que Keynes cha
mou «o mundo subterrâneo dos heréticos», e de ter sido
menosprezada pela élite académica, como infeliz progeni
tora de Marx — para só reaparecer na década de 1960, na
forma daquilo a que se chamou «neo-Ricardianismo», um
movimento minoritário associado a uma crítica da dou
trina ortodoxa.
Talvez tenha aqui lugar uma observação final, quase
entre parêntesis, aludindo a outro problema que
tem muitas vezes obscurecido a verdadeira natureza da
doutrina de Ricardo. Deve estar razoavelmente esclarecido,
com o que expusémos, que um sistema que determina a re
partição em termos de troca e preços resultantes, tem de
ser constituído, de uma maneira ou outra, e considerando a
possibilidade de diversos graus de importância, em termos
de oferta e procura;* mas au contraire no sistema ricar
diano, que explica a troca em termos de repartição e
esta em termos de produtividade e condições de pro
dução numa indústria ou sector de indústria (dado o
salário real), não têm lugar as relações de oferta e
procura — pelo menos, até alcançar movimentos em
preços relativos, e em particular dos preços de mercado
smithianos. Em diversas ocasiões, Ricardo, em contro
152
vérsia com a posição de Smith e Malthus, criticou e
rejeitou explicações em termos de «oferta e procura»;
e por ter tomado esta atitude, Ricardo foi por sua vez
criticado por incompreensão grosseira do facto de que
para cortar são precisas as duas metades da «tesoura»
de Marshall. Schumpeter, por exemplo, escreveu o se
guinte: «Assim, para Ricardo, a questão principal era
a quantidade de trabalho versus oferta e procura...
O verdadeiro inimigo era a teoria da oferta e da procura,
que 'se tornou quase um axioma em economia política,
e tem sido a fonte de muito erro’ (Cap. 30, terceiro
parágrafo)... Isto implica, evidentemente, que Ricardo
não se apercebia da natureza e do lugar lógico, em teoria
económica, do aparelho de oferta e procura, e que aquela
se lhe afigurou uma teoria do valor distinta e contrária
à sua. Isto honra-o pouco como teórico. Porque logica
mente o seu próprio teorema de valores de equilíbrio
só pode ser sustentado, na medida em que é possível sê-lo,
em virtude da acção recíproca da oferta e da procura.»*
Ê uma estranha acusação, somente explicável por
uma incompreensão fundamental (e de modo nenhum iné
dita). Ricardo não teria negado, evidentemente (mais do
que Marx,** que Schumpeter incui igualmente na sua crí
tica) , que no contexto do preço de mercado e das suas varia
ções e ajustamentos as alterações das relações de oferta e
procura actuam como causas próximas dos movimentos de
preços. O que Ricardo tinha em mente era o uso da noção
de relações de oferta e procura por Smith, no seu sistema
como um todo — como veículo e estrutura de determi
nação. Ricardo utilizava-a como uma etiqueta para
a teoria antagonista do valor e repartição, a qual
ele combatia. Significativamente, Malthus, por sua
153
vez, usou-a como frase genérica em oposição ao sistema
de Ricardo. Escreveu nos seus Princípios que «os dois
sistemas, um dos quais explica os preços da grande massa
dos bens pelo custo da sua produção, e o outro explica
os preços de todos os bens, em todas as circunstancias,
permanentes e temporárias, pela relação entre oferta
e procura, embora tenham necessariamente entre si
um grande número de afinidades têm uma origem
essencialmente diferente e devem, portanto, ser cui
dadosamente diferenciados». Concluía afirmando a sua
convicção de «que o grande princípio da procura e da oferta
entra em acção para determinar aquilo a que Adam
Smith chama preços naturais, e bem assim os preços
de mercado».* A este respeito, o comentário de Ricardo
foi: «O autor esquece a definição de preço natural de
Adam Smith, ou não diria que a procura e a oferta podem
determinar o preço natural. O preço natural é apenas
outro nome para custo de produção. Quando qualquer
bem é vendido pelo preço que retribui os salários do tra
balho consumido com ele, e também proporciona renda
e lucro à taxa corrente no momento, Adam Smith
declara que aquele está ao seu preço natural. Ora estes
encargos manter-se-iam iguais, quer os bens tivessem
muita ou pouca procura, quer se vendessem a um preço
de mercado alto ou baixo.»** Não confirmará este comen
tário de Ricardo que ele considerava os salários e o
lucro como determinados independentemente e antes do
preço de mercado ou mesmo do valor natural?
154
5. JOHN STUART M ILL
155
mente, visitara Gatcomb Park e dera passeios com
ele; por outro lado, estudara Economia Política com o
pai (quando tinha 13 anos), lendo o texto dos Princípios
de Ricardo como base. Ao mesmo tempo, era por índole
um sistematizador e sintetizador (alguns diriam ecléctico);
e no Prefácio do seu próprio livro de 1848, declara que
o seu objectivo é escrever um tratado que contenha
«os mais recentes progressos que tenham sido feitos
na teoria». «Muitas ideias novas, e novas aplicações das
ideias», escreveu, «têm sido extraídas das discussões dos
últimos anos... e parece haver razões para que o domínio
da Economia Política seja inteiramente revisto, quanto
mais não seja com o objectivo de incorporar os resultados
destas especulações e de os harmonizar com os princípios
anteriormente estabelecidos pelos melhores pensadores
da matéria.»
Tomou acertadamente como modelo A Riqueza das
Nações, em vez dos trabalhos de Ricardo, visto que «a
qualidade mais característica» dessa obra de Adam Smith
tinha sido «associar invariavelmente os princípios e a sua
aplicação», o que «implica uma gama muito mais
vasta de ideias e questões, do que numa economia
política considerada como ramo de especulação abstracta.»
«Para fins práticos», acrescentava Mill, «a economia
política é indissociável de muitos outros ramos da
filosofia social» — uma verdade que «Adam Smith nunca
perde de vista».* Estes sentimentos poderiam indicar
que a sua devoção ia para o tipo de abordagem e para
a tradição de Adam Smith, em qualquer das suas inter
pretações, e que a sua defesa da doutrina de Ricardo
contra os seus críticos não foi mais do que um acto
de piedade.
De qualquer modo, quando se observa Mill retrospec
tivamente, torna-se bastante claro que, em muitos
aspectos, a sua própria obra esteve muito mais próxima
156
de Marshall que de Ricardo; e que, no referente à sua
teoria do valor, em vez de continuar e aperfeiçoar Ricardo,
manteve no essencial a posição de Smith onde aquele
a atacou. Veremos que, de qualquer maneira, acabou por
chegar a uma Teoria do Custo de Produção que era
essencialmente a Teoria das Componentes Aditivas de
Smith, por um lado inspirando-se parcialmente em Sénior
e mesmo em Say, e, por outro lado, procurando conciliar o
resultado com algumas propostas de Ricardo. Schumpeter
fala da «linha Smith-Mill-Marshall» e recusa-se a incluir
J. S. Mili na escola de Ricardo, baseando-se no facto de «a
economia dos Princípios [de 1848] já não ser ricardiana».
Fundamenta e desenvolve esta opinião franca e firme como
se segue: «Isto é obscurecido pelo respeito filial e também,
independentemente disto, pela própria convicção de J. S.
Mili de que estava apenas a modificar a doutrina ricar
diana. Mas esta convicção era errada. As suas alterações
atingem fundamentos da teoria, e, mais ainda, evidente
mente, da perspectiva social. O ricardianismo certamente
que significou mais para ele do que para Marshal... No que
se refere aos Princípios de Marshall, o ricardianismo pode
ser posto de parte, sem que a sua falta seja notada.
No que se refere aos Principios de Mili, podia ser aban
donado sem que a sua falta se fizesse sentir muito.»*
Visto que John Stuart (nascido em Pentonville,
Londres, em 20 de Maio de 1806, filho primogénito de
James Mili) escreveu uma autobiografia na idade avan
çada, não há necessidade de recordar qualquer dos curio
sos pormenores da sua educação e das influências
que nele se exerceram, mesmo quando estes pormenores
são importantes para a compreensão das suas ideias. Além
da educação intensiva, dada pelo pai, podemos destacar
como principais influências sobre a sua atitude e
ponto de vista sociofilosóficos, após a adolescência,
a Sociedade Utilitarista e a fundação da West-minster
157
Review. A primeira foi um pequeno grupo (nunca teve
mais de dez membros), «composto por jovens com as mes
mas ideias acerca de princípios fundamentais», que come
çaram a reunir-se em casa de Bentham no Inverno de
1822-3, e assim continuaram durante bastante mais
de três anos. Poi «a primeira vez que alguém se intitulou
Utilitarista». Mais ou menos ao mesmo tempo (em 1823),
Bentham fundou a Westminster Review, como órgão radi
cal «para fazer frente aos grupos do Edinburgh e do
Quarterly»; e John Stuart colaborou nesta nova revista
com frequentes artigos e análises. (O pai contribuíra
para o primeiro número, com um artigo que criticava
o Partido Whig, e a Edinburgh Review como seu principal
órgão literário.) Acerca do «Radicalismo Filosófico»
(como veio a ser chamado) do grupo de jovens agru
pados à volta da Westminster, John Stuart (que era
um deles) escreveu o seguinte: «O seu modo de pensa
mento não era caracterizado pelo Benthamismo, em qual
quer sentido que tenha relação com Bentham como chefe e
guia, mas sim por uma combinação do ponto de vista de
Bentham com o da economia política moderna e com a
metafísica de Hartley.»* Defendiam a limitação de nas
cimentos entre a população trabalhadora preconizada por
Malthus, como «único meio de obter uma melhoria nas
suas condições económicas»; e em política, sustentavam o
governo representativo e a liberdade de discussão. Mill re
fere-se à sua «ilimitada confiança» no governo representa
tivo e na liberdade de discussão em política, como armas
contra o domínio da classe minoritária: «quando a legisla
tura já não representar um interesse de classe, tomará
como objectivo o interesse geral». Fala também a seu res
peito e dos amigos, em relação à linha da Westminster
Review, mencionando como um dos seus objectivos princi
pais libertar «o radicalismo filosófico da mancha do Ben
thamismo sectário... para proporcionar uma base mais am
pla e um carácter mais livre e aberto às especulações radi
158
cais; para provar que existia uma filosofia radical mais per
feita e completa que a de Bentham, embora reconhecendo
e incorporando tudo aquilo que de Bentham é perma
nentemente válido». Um exemplo daquilo a que hoje se
chamaria o ponto de vista «de compromisso» destes
jovens radicais, entre os quais se encontrava Stuart Mill,
é a sua própria referência, que já citámos no Capítulo I,
ao seu Sistema de Lógica de 1843, como «um manual...
onde todo o conhecimento se fundamenta na experiência»,
em oposição «ao modo germânico ou a priori de conceber
o conhecimento e as faculdades de aquisição do mesmo»,
que serviram de «importante base intelectual de doutrinas
falsas e más instituições».*
Depois de 1828, Mill pôs de parte as actividades
jornalísticas e embrenhou-se em estudos e trabalhos mais
profundos, que incluíram, em 1830-1, os cinco ensaios
(publicados mais tarde, em 1844) intitulados Ensaios
sobre Algumas Questões Não Resolvidas de Economia
Política dos quais falaremos em breve. Deste período
datou também a influência mais notável na sua vida,
que acabaria por transformá-lo num «socialista» a seu
modo: a saber, o seu encontro (em 1830) com a Senhora
Harriet Taylor, que veio a casar com ele vinte e um anos
mais tarde, três anos após a publicação dos seus Princípios
de Economia Política.
Esta influência da futura mulher na sua obra
(que, como observa Leslie Stephen, «se tornou popular
num sentido em que nenhuma obra sobre o mesmo assunto
tinha sido popular desde a Riqueza das Nações»)** foi
suficientemente importante para aqui ser mencionada,
quanto mais não seja à maneira de um parêntesis.
Segundo as próprias palavras de Mill, tal influên
cia conferiu ao livro o seu «tom geral, pelo qual se distin
gue de todas as exposições anteriores sobre Economia
* Autobiography, p. 225.
** Leslie Stephen, The English Utilitarians (Londres, 1900) Vol. Ill,
p. 53. Prossegue relatando que nas décadas de 1850 e I8601 , «urna
vasta escola considerou Mill um oráculo quase infalível».
159
Política»; esse tom consiste «principalmente na dis
tinção apropriada entre as leis da produção de riqueza,
que são leis reais da natureza, dependentes das proprie
dades dos objectos, e os modos da sua Repartição, que, den
tro de certas condições, dependem da vontade humana».
Outros economistas, na sua opinião, confundiam ambas
«sob a designação de leis económicas... incapazes de serem
derrotadas ou modificadas pelo esforço humano».* Por
outras palavras, considerou a Repartição do Rendimento
como produto de instituições sociais modificáveis — como
relativa do ponto de vista «institucional» e histórico, e
não «natural» ou universal. Esta confissão explícita foi
certamente uma antecipação, tanto em relação àquilo
que estava subentendido nos seus predecessores, como
relativamente ao que mais tarde viriam a ser as teorias
de «imputação», de que falaremos daqui a pouco. Marx
referiria este aspecto como uma razão pela qual «seria
muito errado classificar [os que pensavam como
J. S. Mili] entre o grupo de vulgares apologistas econó
micos»,** embora para Marx, evidentemente, uma afirma
ção como aquela fosse uma indicação inadequada da liga
ção entre Repartição e relações sociais de produção.
Mais especificamente, Mill fala assim da modifi
cação da sua filosofia social sob a influência da
mulher: «Fui [anteriormente] um democrata, mas de
modo nenhum um Socialista.» Depois, falando dele próprio
e da mulher: «O nosso ideal de aperfeiçoamento final
ultrapassou muito a Democracia e classifica-nos decidi
damente sob a designação geral de Socialistas... Pusemos
a nossa esperança num tempo em que a sociedade já não
esteja dividida entre ociosos e diligentes.»*** Nos
Princípios, estas novas opiniões «foram promulga
das menos clara e completamente na primeira edi
ção, bastante mais na segunda e de uma forma
160
inequívoca na terceira». O capítulo que Mili atri
buiu inteiramente à mulher, e ao qual se referiu como
tendo «maior influência sobre as opiniões que tudo o
mais», intitulava-se «O Futuro Provável das Classes Tra
balhadoras». Este não existia «no primeiro esboço do
livro».* Termina, bastante moderadamente para o modo
de ver dos nossos dias, mas radical no tempo em que foi
escrito,** preconizando uma espécie de partilha dos lucros
e a comparticipação. Pode acrescentar-se que quando se
apresentou, em 1865, como candidato ao Parlamento por
Westminster, o fez como Liberal — mas o mesmo fizeram
nessa altura os tradeunionistas que se candidataram ao
Parlamento. Depois de ter perdido o lugar de deputado, em
1868, não voltou a apresentar candidatura, mas deu apoio
e dinheiro e George Odger e a outros tradeunionistas que
se candidataram ao Parlamento.
II
* Ibid., p. 245.
** Este capítulo incluit inter alia, afirmações directas e radicais
tais como: «Não posso considerar provável que elas (as classes
trabalhadoras) se contentem permanentemente com a condição de
trabalho a troco de salários como fim supremo. Trabalhar às
ordens e para proveito de outrem, sem qualquer interesse no
trabalho — o preço deste ajustado pela concorrência... não é,
mesmo que os salários sejam altos, um estado satisfatório para
seres humanos com uma inteligência educada, que deixaram de se
considerar naturalmente inferiores àqueles a quem servem» ( P rinci-
ciples, Yol. I I (2.a ed., 1849) p. 324.
11 161
mas Questões Não Resolvidas, onde expõe o que dizia
ser uma reafirmação da teoria de Ricardo, e que se
apresenta completamente rieardiano na forma.
Na teoria de Ricardo, conforme vimos, os Lucros
dependiam inteiramente dos Salários, no sentido de cons-
tituirem a diferença entre o valor dos salários pagos
pelo trabalho e o valor do produto deste; por outras
palavras, dependiam dos salários reais como proporção
do valor produzido, quando ambos são expressos em
termos do trabalho necessário para os produzir. Esta,
na opinião de Mill, era «a forma mais perfeita sob a qual
a lei dos lucros parece ter sido até agora apresentada»
e «a base da verdadeira teoria dos lucros».* Traduz
isto na sua própria terminologia, tornando-o equivalente
à afirmação de que os lucros dependem «do custo de
produção dos salários»; mas prossegue, destacando que
parte do requisitos para a produção (por exemplo, «ferra
mentas, materiais e edifícios») é constituída por produtos
do trabalho despendido no passado. Portanto, «o seu valor
global não se decompõe nos salários dos trabalhadores por
quem foram produzidos», mas é parcialmente constituído
por lucro destinado aos capitalistas que adiantaram estes
salários do trabalho despendido no passado.** Isto é expli
cado através dum exemplo que a alguns causou perplexi
dade e foi considerado curioso. Ê afinal uma forma notavel
mente simples de expor a questão. Consiste na comparação
162
entre dois casos em cada um dos quais 100 homens, tra
balhando durante um ano e recebendo um alqueire de
trigo cada um como salário, produzem 180 alqueires como
produto final. No primeiro exemplo, parte do tra
balho, o de 40 homens, é despendido no ano anterior
para produzir semente e ferramentas «que atingem
o valor de 60 alqueires»; e no segundo ano com
a ajuda deste «capital fixo e semente», 60 homens tra
balham para conseguir o produto final de 180 alqueires.
No segundo exemplo, todo o trabalho, a saber o de 100
homens, é gasto no ano corrente, e visto que não é
apoiado por um capital fixo a sua produtividade é inferior,
e este trabalho de 100 homens (em vez de 60) rende
o mesmo produto final de 180 alqueires. E no entanto,
embora o dispêndio total de trabalho nos dois casos seja
idêntico, e também o custo em salários, a taxa de lucros
no primeiro caso é de 50 por cento
/ 180— (60 de semente e ferramentas* + 60 salários \
\ 120 1,
/ 180 — 100 \
e no outro caso é de 80 por cento ( = ------------ ) • sendo
^ \ 100 /’
a diferença resultante dessa parte do capital (20 alqueires)
que, no primeiro caso, representava o lucro sobre os salá
rios adiantados no ano anterior. Sendo assim, «a teoria de
Ricardo é imperfeita», porque «a taxa de lucro não
depende exclusivamente do valor dos salários, no seu sen
tido, a saber, a quantidade de trabalho»; do mesmo
modo, o «custo de produção dos salários», do qual
os lucros dependem, deve ser interpretado de ma
neira a incluir no «custo de produção» os lucros
adiantados e, igualmente, os salários adiantados. E con
163
clui: «O princípio ricardiano de que os lucros não podem
subir a não ser que os salários desçam, é estritamente
verdadeiro, se por salários baixos ele entende não apenas
aqueles que são o produto duma quantidade de trabalho
menor, mas também os que são produzidos por menor
custo, calculando conjuntamente trabalho e lucros ante
riores.»*
Como se deverá considerar esta correcção? Em que
medida representa ela um desvio da teoria ricardiana?
Ao longo deste ensaio, como se poderá notar, Mill ocupou-
-se da taxa de lucro, e o foco parece ter sido desviado
do modo de determinação do lucro total, ou do lucro como
uma proporção de qualquer valor produzido dado (e por
tanto como uma proporção dos salários),** que era prin
cipal preocupação de Ricardo, para a proorção entre
este lucro e o caital adiantado. A emenda de Mill
significa pôr em relevo, muito correctamente, que tendo
o capital fixo em linha de conta, esta proporção será
tanto menor, ceteris paribus, quanto maior for a proporção
do capital fixo para o capital circulante, ou quanto maior
fôr o período de tempo durante o qual as despesas de
produção, ou o trabalho, tiverem de ser adiantados; uma
questão que Ricardo parece nunca ter exposto, e até
ter ignorado, presumivelmente porque não se preocupava
muito com o lucro como uma proporção do capital total.
Formalmente, esta emenda pode ser considerada análoga
à crítica de Marx do facto de Ricardo ter ignorado o
chamado «capital constante» como factor na determinação
da taxa de lucro, ou, alternativamente, ter considerado
iguais o lucro e a mais-valia. Mill poderia ter afirmado que
* Ibid., p. 104.
** Deve notar-se que, com a hipótese implícita de Ricardo de um
ciclo de colheita anual e de capital constituído por adiantamentos
de salários, a taxa de lucro era a mesma que a proporção entre
o lucro e os salários e não constituía problema uma diferença
entre as duas. (A semente seria aqui uma restrição, eviden
temente, se fosse considerada como um adiantamento de capital e
não apenas como um dedução do produto bruto no fim de cada ano.)
164
o princípio de Ricardo, segundo o qual os lucros dependiam
do valor dos salarios, era absolutamente verdadeiro quanto
a lucros totais■, ou quanto à quantidade de lucro proporcio
nada por um dado valor total produzido; mas que quando
expresso como proporcional ao capital dependia, natural
mente, da importancia do capital total, e este, por sua
vez, da quantidade de capital fixo utilizada na produção
(relativamente ao dispendio corrente em salarios). Mas de
facto não o fez; preferiu concluir que o «custo de pro
dução dos salários» de Ricardo deve ser considerado como
constituido por «duas partes», salários e «os lucros daque
les que, em qualquer fase antecedente da produção, adian
taram qualquer porção desses salários»; e o modo de trata
mento do seu exemplo pode ser tomado como implicando
que o tempo durante o qual o trabalho é adiantado
influencia não apenas a taxa de lucro (por influenciar a
porção do capital a adiantar), mas também a importância
do lucro total disponível.
Mais tarde, nos seus Princípios, introduz a noção
de um lucro mínimo que permita aos capitalistas continua
rem a acumular capital e a investir na indústria, tendo já
adoptado, nessa altura, o ponto de vista de Sénior sobre o
juro como recompensa de uma poupança, e a noção do lucro
como sendo (ou incluindo) os «salários de direcção».*
Embora tente conjugar estas ideias com a sua versão, um
tanto nebulosamente corrigida, do princípio de Ricardo de
os lucros dependem do «custo de produção dos salários».**
a teoria resultante está muito mais perto da teoria de Mar
shall sobre o «lucro normal», do que qualquer outra.
O tratamento por Mill da teoria do valor*** é pre
cedido por esta afirmação confiante: «Felizmente para
165
o escritor actual ou futuro nada ficou por esclarecer
a respeito das leis do valor; a teoria sobre esta ques
tão está completa.»* Neste ponto, volta a garantir que
nada mais pretende do que ordenar, ampliar um
pouco e reformular Ricardo. O que de facto faz, é
voltar à teoria das «componentes aditivas do preço»,
de Adam Smith, e, na sua reformulação da mesma, colocá-
-la muito perto da teoria de Marshall sobre o «valor nor
mal» a longo prazo. A teoria do lucro de Ricardo é tradu
zida para a afirmação de que os lucros dependem do «custo
de produção dos salários», de modo a incluir os lucros cor
respondentes ao tempo durante o qual os salários foram
adiantados em custo de produção. Mill prossegue afir
mando que «as coisas, normalmente, são trocadas umas
pelas outras proporcionalmente aos seus custos de produ
ção», e explicitando que o custo de produção significa
salários mais lucro sobre a quantidade de capital aplicada
conjuntamente com o trabalho, a uma taxa cuja expec
tativa estimule os capitalistas a continuar produzindo.
«Se considerarmos como produtor o capitalista que
faz os adiantamentos, a palavra Trabalho [na teoria
de Ricardo] pode ser substituída pela palavra Salário:
aquilo que o produto lhe custa são os salários que teve
de pagar.» Mas visto que o capital é «o resultado de uma
abstinência», segue-se que «o produto, ou o seu valor,
deve ser suficiente para remunerar, não apenas todo o
trabalho necessário, mas também a abstinência de todas
as pessoas por quem foi adiantada uma remuneração
das diferentes classes de trabalho. A recompensa da
abstinência é o Lucro».** «Como regra geral, existe uma
tendência para que as trocas se efectuem entre si por um
valor que permita a cada produtor recuperar o custo de
produção graças ao lucro corrente... A influência latente
pela qual os valores dos bens se adaptam, a longo prazo,
ao custo de produção, é a variação que de outro modo
* Ibid., p. 515.
** Ibid-, pp. 540, 546.
166
ocorreria no campo da oferta do bem.» No capítulo «Do
Custo de Produção» (Capítulo III do Livro III), conclui no
«estilo de metáfora»: «a procura e a oferta tendem sempre
para um equilíbrio, mas a situação de equilíbrio estável
é aquela em que os bens são trocados uns pelos outros
segundo os seus custos de produção, ou, de acordo com a
expressão que utilizámos, em que eles estão no seu Valor
Natural».*
Assim, num sentido formal, continua a manter uma
base ricardiana para a sua estrutura smithiana renovada,
admitindo que os lucros dependem, inter alia, dos salários,
na sua interpretação corrigida e alterada desta afir
mação. Mas, visto que considera o lucro como tendendo
sempre para o nível mínimo em que remunera exactamente
«a abstinência» e «o trabalho de direcção» e nada mais
(salvo a assunção do risco), e não podendo descer abaixo
deste nível sem prejudicar a oferta, a afirmação ricar
diana parece perder oportunidade.
Schumpeter salientou que a sua concepção de valor
está completamente de acordo com a crítica de Bailey em
relação a Ricardo, e não deixa lugar para o que quer que
seja com a natureza de «valor absoluto». «A energia com
que insistiu no carácter relativo do [Valor] aniquilou com
pletamente o Valor Real de Ricardo e reduziu outros
ricardianismos a inocuidades insípidas.»** Vendo o resul
tado dum ângulo diferente, foi Cairnes quem comentou
que Mill tinha transferido a perspectiva «para o ponto de
vista limitado e parcial do patrão capitalista», estrutu
rando a sua teoria em termos de despesas de produção, em
vez de em termos de qualquer forma de custo real, quer
167
objectiva quer subjectivamente concebido.* Não há dú
vida que, até certo ponto, este comentário é justificado e
indica a afinidade entre o tratamento de Mill e o de Smith.
Mas como crítica é, com certeza, secundário relativamente
ao facto de, na teoria de Mili, a determinação ricardiana
da proporção lucro-salário ser substituída pela noção de
um «nível mínimo» de lucro, que, para não ser apenas
uma caixa vazia, tem provavelmente de basear-se em «pro-
pensões para acumular» um tanto vagas e contingentes,
por parte dos empresários.
Ill
168
pode ser defendida».* Como tal era prima em primeiro
grau, por um lado, da doutrina que muitos julgaram implí
cita na economia política clássica, segundo a qual a indús
tria (e portanto, a longo prazo, também a população) é
condicionada pelo capital, e, por outro lado, doutra tese
litigiosa de Mill, que defende que «a procura de bens não é
procura de trabalho» (isto é, que não é o rendimento gasto
em consumo que cria emprego, mas sim o rendimento in
vestido como adiantamento de salários para o trabalho).
A expressão mais sucinta da sua, doutrina, nos
Princípios, é a seguinte : «Os salários, portanto, dependem
da relação entre a procura e a oferta de trabalho; ou, como
muitas vezes se diz, da proporção entre população e ca
pital. População significa aqui apenas o número de
pessoas da classe trabalhadora, ou melhor, daqueles que
trabalham em troca de um salário; e por capital, entende-
-se apenas capital circulante, e nem mesmo o capital cir
culante total, mas a parte deste que é despendida na compra
directa de trabalho... Os salários (quer dizer, a taxa geral)
não podem subir, a não ser mediante um aumento dos
fundos utilizados para contratar trabalhadores, ou
uma diminuição do número de trabalhadores que pre
tendem ser contratados.»** E também: «Visto, portanto,
que a taxa de salários resultante da concorrência reparte
o fundo total de salários por toda a população trabalha
dora, se a lei ou a opinião geral conseguir estabelecer salá
rios acima desta taxa, alguns trabalhadores ficarão desem
pregados.»***
169
Esta teoria, exposta com a simplicidade e força dum
truísmo aritmético, convinha manifestamente como argu
mento convincente contra o tradeunionismo, que se dizia ca
paz de influenciar o nível geral de salários. Leslie Stephen
jeitou-a como «uma afirmação idêntica: o fundo de sa
lários significa simplesmente os salários, e a taxa destes
é dada pelo total pago dividido pelo número de pes
soas.»* Esta rejeição, embora seja um comentário
justo a algumas das versões menos aperfeiçoadas
da doutrina,** parece ser excessivamente radical, visto
que Mill e os seus discípulos mostram claramente
que não têm a intenção de definir o fundo como salá
rios totais, mantendo, em vez disso, que estes, e por
tanto o seu nível médio, eram condicionados por uma
entidade determinada independentemente, denominada
Fundo de Salários. A refutação implicava que se provasse
170
não existir essa entidade independente e pré-determinante;
o que Thornton de facto fez ao pôr a pergunta: «Existe
realmente esse fundo? Existe alguma porção específica
do capital de qualquer indivíduo em particular, que deva
necessariamente ser despendida no trabalho?*
A retratação de Mili (na qual, segundo Marshall,
«cedeu demasiado, e exagerou a dimensão do seu pró
prio erro»)** foi feita na análise do livro de Thornton in
cluída na Fortnightly Review de Maio de 1869. Foram estas
as suas palavras: «Não há nenhuma lei natural a que seja
inerente a impossibilidade de os salários subirem até ao
ponto de absorverem não só os fundos que ele [o empresá
rio] tinha pretendido aplicar na condução do seu negócio,
mas também tudo aquilo que destina às suas despesas
privadas para além das necessidades vitais. O limite
real da subida é a consideração prática da medida em
que ficaria arruinado, ou seria induzido a abandonar o
negócio, e não o limite inexorável do Fundo de Salários.»
Mas embora negada por um dos seus principais repre
sentantes,*** a doutrina, com todas as suas implicações,
estava destinada a persistir sob outras formas, quer na
de um «fundo de subsistência» de Bõhm-Bawerk, quer
nalguma versão da doutrina da produtividade marginal.
Já citámos a opinião de Marshall de que havia um
sentido em que podia ser considerada verdadeira. Wicksell
sublinharia que a teoria austríaca do capital substituiu,
de facto, a relação simples W = C/L da teoria do fundo
de salários, por
Lwt
171
em que 0 é um fundo de bens de subsistência para
trabalhadores, w o salário e t a duração do período
de produção; juntamente com a relação ulterior p = w +
+ t ( dp/ãt) para determinar t (sendo p a produção anual
por trabalhador), ou então, para determinar t, com a
condição de
wt
(p + w) : -----
2
ser um máximo.*
Não é necessário lembrar que um aspecto em que Mill
foi inteiramente tradicional, e não fez nenhuma alteração
na doutrina aceite, foi na sua fé na «Lei de Say». Neste
ponto foi claro e não fez qualquer concessão: «uma
sobre-oferta geral, ou excesso de todos os bens acima
da procura, na medida em que a procura consiste em
meios de pagamento, fica assim demonstrado ser uma
impossibilidade... Ê por demais evidente, que a pro
dução cria um mercado para a produção.»**
Não se pode concluir uma análise das opiniões de Mill
sobre economia, sem uma breve referência ao juízo conciso
que expressou a respeito do «estado estacionário». A noção
de um estado desse tipo, em que a acumulação de capi
tal se suspenderia, figura, conforme já vimos, nas obras
de Smith e Ricardo, mas tinha sido tratada por eles como
pertencendo de certo modo ao futuro, e, segundo Ricardo,
continuaria a pertencer enquanto o livre comércio de ce
reais e os aperfeiçoamentos da agricultura permitissem
compensar a tendência dos lucros para diminuir e manter
sem redução a taxa de lucro. A atitude de Mill nesta maté
ria foi assinalada por duas peculiaridades. Primeiro, con
siderou o «estado estacionário» ali mesmo ao virar da
172
esquina — quando muito para daí a poucos anos;
o seu advento só era adiado por factos como emprés
timos públicos, exportação de capital e desperdício
deste em virtude de má gestão. Em segundo lugar, conside
rou a chegada do «estado estacionário» com muito menos
pessimismo que os seus antecessores, porque esperava
que daí surgisse a possibilidade de melhorar a repartição
do rendimento. «Não posso considerar o estado estacio
nário do capital e da riqueza com a genuína aversão
geralmente manifestada para com ele por economistas
políticos da escola antiga.»* Sustentou que, se não hou
vesse exportação de capital e desperdício deste e emprés
timos governamentais para gastos improdutivos, factos
que não se pode confiar que continuem indefinidamente,
apenas uns anos mais de acumulação de capital à taxa
existente (desde que «investido anualmente em emprego
realmente produtivo no interior do país») bastariam para
reduzir os lucros ao nível mínimo em que cessa o incentivo
para mais investimento. Os lucros, na sua maneira de ver,
estavam «quase a chegar ao mínimo», e o país, portanto,
«mesmo à beira do estado estacionário».** Podia encarar
isto com serenidade de espírito, visto que sustentava
que se «devia privilegiar uma melhor repartição do ren
dimento e uma ampla remuneração do trabalho como
os verdadeiros objectivos», em vez dum «simples aumento
da produção», ao qual geralmente «se atribuía» uma
«importância excessiva».*** Embora tal aspiração possa
hoje parecer moderada, era, de facto, uma doutrina
radical muito ousada, numa época em que era opinião
geral que a única maneira eficaz de remediar a pobreza
seria deixar os pobres morrer de fome («o rico no seu
castelo, o pobre ao seu portão»).
Esta melhoria da repartição do rendimento, no
entanto, não seria possível se a população continuasse
* ibid., p. 310.
** Ibid., pp. 289, 290.
*** Ibid., p. 315.
173
a aumentar numa proporção malthusiana: estava condi
cionada pela difusão de «hábitos frugais de vida»
entre as classes trabalhadoras, que ele esperava haveriam
de resultar da sua crescente independência e educação.
Dada a difusão destes «hábitos frugais», o resultado
seria que «a população decresceria gradualmente, em rela
ção ao capital e emprego».*
Se pretendessemos fazer uma descrição completa
das realizações da análise de Mill, seria cometer uma
omissão deixar de discorrer sobre a sua contribuição
para a teoria do comércio internacional, em que foi o
primeiro a combinar uma teoria da procura recíproca com
os custos comparados ricardianos, a fim de demonstrar
como os ganhos do comércio eram partilhados entre os
países interessados (só estes podendo definir os limites
no interior dos quais teriam de situar-se os termos de
troca). Por outro lado, ao desenvolver esta ideia, intro
duziu a noção de elasticidade da procura, embora não
lhe desse um nome nem a definisse de maneira precisa.
No caso do presente trabalho, cujo tema assenta em
teorias do valor e repartição, e principalmente nas rela
ções internas dum sistema económico fechado, talvez
seja desculpável não se abordar essas questões.
* Ibiã., p. 322.
174
6. K A R L MARX
175
Hodgskin desenvolveu o seu conceito completo de
exploração a partir da teoria da «harmonia natural»
das leis naturais, de Smith;* criticava Ricardo deste ponto
de vista e de modo particular a sua teoria dos salários
e da renda. O seu argumento de que o trabalho tinha
direito a toda a produção, e de que tanto o lucro
como a renda eram subtraídos ao trabalho, era essencial
mente uma doutrina do direito natural, como geralmente
se pensa ser também a teoria da mais-valia de Marx,
se bem que erradamente.** O direito natural à
propriedade do fruto do próprio trabalho opunha-
~se ao direito de propriedade «legal ou artificial»,
que consiste na apropriação do produto do trabalho dos
outros. Este autor refere-se ao Capital como «absorvendo
toda a produção de um país, à excepção do indispensável à
subsistência do trabalhador, e a produção excedente
da terra fértil», fala-nos da «natureza absorvente do juro
composto» e, numa passagem muito conhecida, escreve
ainda: «Estou certo... de que até que o triunfo do trabalho
seja completo; até que só o trabalho produtivo seja fonte de
riqueza, e a ociosidade empobreça; até que se implante soli
damente a admirável máxima “aquele que semeia há-de
colher” ; até que o direito de propriedade se baseie nos
princípios da justiça, e não nos da escravidão... não pode
nem há-de haver paz na terra e amor entre os homens.»***
Dois anos após a publicação do Lábour Defenãeã foram
176
publicadas as suas lições no Lonãon Mechanics Instituticm
(de que fora um dos fundadores), com o tíutulo de
Popular Political Economy.
No ano seguinte ao da morte de Ricardo, William
Thompson, em An Inquiry into the Principies of the Dis-
tribution of Wealth, deduziria já do postulado de que o
trabalho é o único factor activo criador de riqueza, o
direito do trabalho a toda a produção. Na sociedade tal
como é, esse direito foi obliterado por um sistema de «tro
cas desiguais» que resultou na apropriação de parte do pro
duto do trabalho por aqueles que detêm o poder e vanta
gens económicas. Mesmo abstraindo da grande injustiça
desse sistema, que atenta contra a ideia da «felicidade
máxima», de Bentham, este sistema tem ainda a desvanta
gem de privar o trabalho de quase todo o incentivo (o que
torna necessário o trabalho obrigatório): razão pela qual
era inimigo da produção de riqueza.
G. D. H. Cole, na sua introdução à reedição de 1922
do Labour Defended de Hodgskin, afirmou o seguinte
acerca de Hodgskin e Thompson: «Hodgskin, em Labour
Defended, e William Thompson, no seu Inquiry into the
Principies of the Distribution of Wealth (1824) e em La
bour Rewarded (1827), foram os primeiros a formular com
clareza uma crítica da classe trabalhadora e uma inversão
do sistema económico ricardiano. As concepções construti
vas de ambos diferiam, porém, muitíssimo. Thompson era
um socialista cooperativista da escola de Robert Owen;
Hodgskin era um anarquista filosófico, na tradição de Wil
liam Godwin. Porém, as deduções que um e outro fizeram
dos postulados de Ricardo são muito semelhantes.»*
Anteriormente, em 1821, Piercy Ravenstone (que
pode ser considerado um tradicionalista conservador,
mais do que um socialista ricardiano, como é por vezes
classificado)** propusera já uma teoria da «dedução» ou
178
pagar uma renda... é completamente independente de toda
a diferença de qualidade da terra que ocupam, e não seria
abolida ainda que aquela fosse sempre igual.»*
Se bem que se não possa considerar que estes autores
constituam uma escola de teoria económica, não podemos
deixar de observar que no continente, além do socialismo
utópico de Saint-Simon e Fourier, que pregavam a igual
dade e a harmonia natural dos homens que cooperavam
como produtores, havia ainda a referir, em França, Prou-
dhon, o autor de Qu’est-ce que la Propriété e inventor da
frase «A propriedade é um roubo», e os seus discípulos.
A frase citada era a réplica de Proudhon ao direito à pro
priedade através do trabalho, defendido por Locke, e
uma confirmação dos dois aspectos do direito de proprie
dade que Ravenstone e Hodgskin tinham sublinhado. Prou
dhon era no entanto um «distributivista», tanto quanto (ou
talvez mais) um socialista: certo comentador referiu-se a
ele como «sendo no fundo sempre um camponês».** Exer
ceu uma influência mais anarquista do que socialista, em
consequência de as duas ideias centrais da sua doutrina
serem a de liberdade individual e igualdade; combatia o
comunismo e o Estado autoritário, procurando uma solu
ção para os males derivados do juro sobre o capital num
sistema de crédito universal sem juros, organizado através
de um Banco de Crédito Mútuo.*** Na Alemanha, devemos
mencionar ainda o economista Rodbertus, com a sua teoria
da mais-valia e da renda (que Marx viria a criticar num
capítulo bastante longo de Theorien über den Mehrwert) ,
179
para não falarmos já de um autor um pouco posterior,
Eugen Dühring,* com a sua «teoria da força», que havia
de despertar a ira de Friedrich Engels.
Foram estes os precursores de Das Kapital de Marx,
ou pelo menos os chamados «antecipadores» da sua teoria
da mais-valia.** Além de Rodbertus e Proudhon, Marx
criticaria também em pormenor, nas Theorien über den
Mehrwert, as teorias de Ravenstone e Hodgskin; de modo
particular as de Hodgskin, pois classifica os dois fascículos
deste autor atrás citados como «incluídos entre os pro
dutos mais significativos da economia política inglesa».***
Estes dois autores, se bem que se distinguissem mais
pela sua intuição e bom-senso do que por uma análise rigo
rosa, e que a solução que propusessem fosse incompleta,
contribuíram para a descoberta de um factor importante,
que os economistas ortodoxos não tinham sabido ver.
Uma das falhas das suas teorias consiste em não terem
conseguido demonstrar como é que as «trocas desiguais» ou
a «mais-valia» podiam ser conciliadas com a «concorrên
cia perfeita».
II
180
o levou a sério (considerando que existia nele «a mesma
mistura de méritos positivos e negativos que encontramos
também no seu prototipo Hegel», e que ambos merecem a
designação de «génios filosóficos»), anunciou aquilo a que
dava o nome de «a destruição do sistema de Marx» (na sua
obra polémica de 1896 intitulada Zurn Abschluss des Marx-
schen Systems) , pronunciando simultaneamente a profecia
duvidosa de que «o sistema Marxista não tem qualquer
futuro.»* Marshall considerou-o um pensador tendencioso
que falseou deliberadamente as teorias de Ricardo.**
Edgeworth avaliou «o impacto das teorias de Marx»
como «meramente emocional».*** Keynes, quando se digna
reparar em Marx, considera-o como uma luminária no
mundo sombrio dos heréticos, mas que tem menos para
nos ensinar do que um reformador monetário relativa
mente desconhecido como Silvio Gesell;**** e Samuelson
qualificou-o de «um pós-ricardiano de pouca importância»
— e de «auto-didacta».***** Ludwig von Mises é ainda
mais categórico, na sua afirmação de que «O marxismo
vai contra a lógica, contra a ciência e contra a
própria actividade do pensamento»;****** enquanto um
historiador inglês do pensamento económico falou, a pro
pósito de Marx, de «uma exibição pedante de conheci
mentos», de «uma patinagem artística em gelo pouco
espesso, uma subtileza que se aproxima por vezes peri
gosamente do sofisma», dizendo ainda que «nunca se viu
* Vide p. 158.
** Principles, sétima ed. (Londres, 1916), p. 503.
*** F. Y. Edgeworth, Papers relating to Political Economy (Lon
dres, -925), Vol. Ill, p. 275 (observação que consta de uma crítica
ao Karl M arx de Achille Loria e ao Revival of Marxism de J. S.
Nicholson).
* * ** J. M. Keynes, General Theory o f Employment, Interest and
Money (Londres, 1936), p. 355.
* * ** * W ages and Interest: Marxian Economic Model’s, American
Economic Review, Vol. X L V II, núm. 6, Dezembro de 1957, p. 911.
* * ** ** Socialism, trad. J. Kahane (Londres, 1936), p. 17.
181
em letra impressa um tal milagre de confusão, um exem
plo tão supremo da maneira como não se deve racio
cinar».* Com mais respeito e melhor compreensão da
doutrina de Marx, Joseph Schumpeter fala-nos da «tota
lidade da visão» de Marx, que «se afirma em todos os
pormenores e está precisamente na origem do fascínio
intelectual que exerce sobre todo o partidário ou inimigo
que se dedique ao estudo da sua obra»; e considera Marx
como «o único grande discípulo de Ricardo».**
Em certo sentido, Marx foi sem dúvida um discípulo
de Ricardo; e é por essa razão que dele se afirma por vezes,
num sentido especial, quase hegeliano, de Aufhebung,
que foi «o último dos economistas clássicos».*** O que
podemos concluir com toda a certeza é que se situava
numa linha de descendência directa de Ricardo, e que
a sua versão e interpretação da doutrina desse economista
foi confirmada pelo material novo incluído na edição de
Piero Sraffa Works and Correspondence de Ricardo,
que tão copiosamente citámos no capítulo 3. Schumpeter
explica-nos do seguinte modo a sua referência ao
«discípulo de Ricardo»: «Ricardo é o único economista
182
que Marx considerou um mestre... Marx utilizou o
método de Ricardo: adoptou o esquema conceptual
de Ricardo, formulando os problemas em função das
formas em que ele os definira. Sem dúvida que
alterou essas formas, e que chegou a conclusões muito
diferentes. Fê-lo, porém, partindo sempre de Ricardo,
e criticando-o. A crítica de Ricardo foi o método
que adoptou na sua obra puramente teórica».*
Se pretendermos atingir uma perspectiva correcta
da teoria económica de Marx, e partipularmente dos
seus elementos originais, devemos considerá-los no quadro
da sua concepção geral da evolução histórica, da qual
Das Kapital pretendia ser uma aplicação particular. Temos
ainda de analisar as origens especificamente hegelianas
dessa concepção, a fim de compreendermos os cambiantes
mais subtis das referidas doutrinas. Como se sabe, a
dialéctica como padrão estrutural da evolução começou
em Hegel, a partir do Ser abstracto como Inte
ligência ou «Espírito». Para Marx, pelo contrário,
a dialéctica da evolução radica na Natureza e no Homem,
como parte integrante daquela. Se bem que faça parte
da Natureza e esteja sujeito ao determinismo das leis
naturais, o Homem, como ser consciente, distingue-se
pela sua capacidade de se poder opor à Natureza — subor
183
dinando-a a ele e transformando-a de acordo com as suas
próprias finalidades. Ê esta a única função da actividade
produtiva do homem, do trabalho humano, diferenciando
o homem de todas (ou quase todas) as outras criaturas
vivas; e por essa razão as formas variadas e sucessivas da
actividade produtiva, e de modo particular as relações cons
tituidas entre os homens em sociedade, no exercício dessa
actividade, formam o pano de fundo da história humana.
Uma das principais características desta dialéctica
entre o Homem e a Natureza, uma condição sine qua non
do desenlace progressivo da mesma, foi a invenção e
utilização de instrumentos produtivos, que eram simulta
neamente materializações duradouras do trabalho e
ajudas ao trabalho produtivo -— instrumentos «que o tra
balhador interpõe entre ele e o sujeito do seu trabalho,
e que lhe servem como condutores da sua actividade»;*
são esses instrumentos que fazem do trabalho produtivo
um processo colectivo e social, constituindo a principal
razão da divisão do trabalho. «Na produção, os homens
não só actuam sobre a natureza, como ainda uns sobre
os outros. Só podem produzir colaborando de certa ma
neira e trocando entre si as suas actividades respectivas.»
E ainda: «Actuando assim sobre o mundo exterior e
modificando-o, modifica simultaneamente a sua própria
natureza.»** Daí a importância das forças produtivas
para a compreensão da história humana, se bem que
apenas em conjunção estrita com as relações sociais entre
os homens no decurso da produção associadas estas forças
produtivas (uma interpretação puramente tecnológica,
que alguns têm criticado, por considerarem que empobrece
e distorce o conceito). A explicação da divisão da história
humana em vários períodos e da evolução da mesma
residiria, pois, nos vários modos de produção, que se
caracterizariam não só pelas formas técnicas, pela divisão
184
do trabalho e as trocas, como ainda pelas diferentes
formas de «relações sociais de produção» entre os seres
humanos e entre as classes.
Uma concepção histórica deste tipo, ao ser aplicada
a um sistema económico determinado, terá forçosamente
de o considerar do ponto de vista das condições de pro
dução, incluindo factores socioeconómicos como a pro
priedade ou não propriedade dos meios de produção,
e os respectivos efeitos desses factores sobre a situação
e comportamento dos vários grupos sociais ou classes.
Deste modo, não só se define imediatamente a ordem da de
terminação — condições e relações de produção que deter
minam relações de troca — como ainda se definem os limi
tes do campo de estudo (como já dissemos), que é assim
mais vasto e diferente daquele que geralmente é analisado
na teoria económica concebida como o estudo das «leis do
mercado» (ou concebida a fortiori como o estudo formal da
«adaptação de meios escassos a dadas finalidades», numa
frase de Lord Robbins citada com muita frequência
há quarenta anos atrás). O ponto de vista em questão ex
plica igualmente a importancia atribuída ao Trabalho
como actividade produtiva do homem, que Marx colocava
no fulcro da sua doutrina. Este ponto de vista implica
uma definição virtual da actividade produtiva,* e, cor
relativamente, de apropriação ou exploração, no sentido
de anexação ou recepção de parte dos frutos da produção,
por aqueles que não contribuíram cora qualquer actividade
produtiva e que não participaram pessoalmente no pro
185
cesso de produção per se. O conceito de «exploração»
não é uma ideia «metafísica» ou um juízo ético (e ainda
menos «um mero ruído»), como se tem afirmado por ve
zes:* trata-se de uma descrição factual de uma relação
socioeconómica, comparável à descrição, muito exacta,
que Marc Bloch faz do Feudalismo, quando nos diz que
se trata de um sistema no qual os senhores feudais
«viviam do trabalho dos outros homens». Se a história
for considerada como uma sucessão de modos de produção
diferentes, caracterizados desde o início da era histórica
até aos nossos dias por essa apropriação, é natural que
comecemos por perguntar quais foram os meios e instru
mentos políticos, militares, legais, económicos que a
permitiram. Ao apreender a analogia existente entre
as condições sociais vigentes no século X IX e ou
tras formas anteriores de sociedades de classes, Marx
não podia deixar de iniciar a sua análise pelo estudo
da apropriação no sistema capitalista e de como
se tomava possível, numa sociedade em que todos
os fenómenos económicos eram regulados por relações con
tratuais livres, que a concorrência no mercado assegu
rasse, segundo os economistas, que a troca se realizasse
sempre entre equivalentes, considerados segundo os «valo
res naturais» smithianos. E se esta se efectuava sempre, ou
predominantemente, entre equivalentes, donde surgia en
tão o excedente?
Há quem tenha afirmado que o conceito de explora
ção, e portanto também o de mais-valia, teriam
derivado da proposição de que os bens são trocados
de acordo com as quantidades de trabalho que repre
sentam, recorrendo talvez a uma doutrina lockeana do
«direito natural», segundo o qual o trabalho implicaria
186
o direito da posse do seu próprio produto. Deste ponto
de vista, a lei do valor seria uma premissa e a mais-valia
uma consequência. Podemos afirmá-lo em relação aos
socialistas ricardianos, que partiram de uma ou outra
das seguintes premissas: ou que o trabalho dá direito
à posse de todo o seu produto, ou que só o trabalho
cria «valor» (se bem que nem sempre estabeleçam uma
distinção clara entre o valor de uso e o valor de troca).
Ora era precisamente neste ponto que Marx discordava
das teorias ricardianas, considerando-a sugestivas, mas
inadequadas; e não podemos de modo algum aplicar a
afirmação às doutrinas de Marx. A analogia entre o
capitalismo e as outras formas anteriores de sociedade,
no que se refere à apropriação de um excedente por parte
daqueles que não contribuíam com qualquer actividade
produtiva, era para ele um dado histórico; uma observação
extraída da experiência social. Era essa analogia com
casos em que a apropriação dos excedentes do tra
balho ou da produção se traduzia claramente em termos
políticos ou era sancionada pela lei ou pela força militar,
sendo reconhecida como tal, que Marx tentava sublinhar
quando falava de uma forma especificamente capitalista
de exploração. O problema especificamente económico
consistia, não em provar essa analogia, mas em conci
liar essa afirmação com a lei do valor; em explicar como
é que tal podia suceder na esfera da concorrência dos
economistas, qual era a «mão invisível» que fazia com
que tudo fosse trocado pelo seu «valor natural». No seu
Valor, Preço e Lucro, Marx diz-nos em linguagem
corrente: «Para explicar a natureza geral dos lucros,
temos de partir do teorema de que, em média, os bens
são vendidos pelo seu valor real, e que os lucros são obtidos
vendendo-os pelo seu valor... Se não for possível explicar
o lucro a partir desta suposição, não é possível explicá-lo
de maneira nenhuma.»*
187
A teoria do valor tal como Marx a encontrava em Ri
cardo era, pois, incompatível com este propósito. Nessa
teoria atribuía-se uma importância primordial ao Trabalho
como actividade produtiva do homem, sendo o valor de
troca explicado a partir do trabalho. Marx começou por
tanto por expor, no primeiro volume de O Capital, a sua teo
ria da mais-valia, partindo do principio de que os bens
são trocados pelos seus valores (isto é, proporcionalmente
ao trabalho que representam); fazia-o não apenas para
simplificar, mas sobretudo para demonstrar a origem e a
persistencia da mais-valia no caso mais flagrante. O ponto
de vista adoptado permitia-lhe ainda localizar nos factos
e nas relações de produção a origem da mais-valia (contra
riamente a William Thompson, com a sua teoria das «tro
cas desiguais»), Marx tinha uma consciência clara daquilo
que fazia e das limitações do caso que analisava, conforme
no-lo demonstra uma afirmação que faz no volume I: «Se
na realidade os preços divergem dos valores, teremos de
começar por reduzir os primeiros aos últimos, ou seja, de
considerar que essa diferença é acidental, a fim de poder
mos observar os fenómenos em toda a sua pureza, e para
que as nossas observações não sejam desvirtuadas por
circunstâncias perturbadoras, que nada têm a ver com
o processo em questão.»*
Não foi só por uma questão de simplicidade e de
adequação aos seus propósitos, que Marx considerou os
Valores em termos de Trabalho, seguindo assim as pi-
188
sadas de Ricardo; tinha ainda uma outra razão formal
para o fazer. A maioria dos comentadores de Marx, à
excepção talvez dos mais recentes, não parecem, porém,
tê-la entendido. Como dissemos já, o ponto de vista
que adoptara obrigava-o a partir do postulado de uma
determinada taxa de exploração ou de mais-valia (ou de
razão lucro-salário, nos termos de Ricardo), uma vez que
esta era anterior à formação dos valores de troca ou dos
preços, e que não podia logicamente ser deduzida destes.
Por outras palavras, era necessário exprimi-la em termos
de produção, antes de introduzir a circulação ou a troca.
Como seria então possível exprimir a taxa de mais-
-valia como um dado inicial? Não era satisfatório exprimi-
-la em termos que seriam por sua vez relativos a alterações
na própria razão. Era possível exprimi-la em termos de um
único bem, por exemplo o Trigo, tal como o fez Ricardo
inicialmente, transformando assim essa razão numa razão-
-produto, não afectada pelas variações dos valores de troca
ou dos preços. Caso essa noção já tivesse sido inventada,
poderia também utilizar-se qualquer coisa como o conceito
de bem-padrão compósito de Sraffa, que adiante analisare
mos. Porém, para os propósitos imediatos de Marx era
muito mais conveniente não tomar como referência um
único bem, mas antes exprimir a mais-valia em termos de
Trabalho; como de resto o fizera já Ricardo para determi
nar a razão lucro-salário com base na margem da indústria
de bens-salário. A taxa de exploração podia assim ser ex
pressa como uma razão entre duas quantidades de trabalho
(médio), o que revelava simultaneamente a origem da
mais-valia. Se os bens eram trocados em proporção
ao trabalho despendido, as alterações dessa taxa
não podiam afectar per se os valores de troca relativos,
e as alterações destes últimos também não podiam actuar
sobre a razão de exploração, quando esta assim fosse
expressa. A categoria do Valor (Trabalho), ou a «apro
ximação» do Volume I, traduzia assim um conceito
189
essencial, que de outra maneira não poderia ter sido
introduzido.*
Dado o facto de a análise económica apresentar hoje
em dia um carácter tão exclusivamente quantitativo,
atrevemo-nos a acrescentar um outro comentário, que
esperamos não constitua uma repetição daquilo que está
já implícito nas nossas afirmações anteriores. Se bem
que Marx estivesse pelo menos tão interessado como
Ricardo em demonstrar a existência de uma relação
quantitativa entre as condições de produção e os valores
de troca ou preços reais (quanto mais não fosse porque,
de outro modo, existiria uma lacuna entre a análise
em termos de valor do primeiro volume e os fenómenos
de mercado reais), procurava igualmente demonstrar o
aspecto qualitativo ou relacional dos fenómenos econó
micos, particularmente no que se refere à repartição
dos rendimentos. Considerava que este aspecto era cruciai
para a compreensão do carácter específico e do funcio
namento do tipo capitalista da sociedade de classes. Pre
tendia patentear a «essência oculta» e a «forma
interior» que se ocultava sob «aparências exterio
res» superficiais, sob a «aparência de mercado» das
coisas. É por essa razão que há quem tenha afir
mado que a teoria de Marx deve ser vista como uma
190
«sociologia económica», e não como análise económica,
no sentido moderno e mais restrito do termo. Oskar Lange
exprimia algo de muito semelhante, afirmando que «a supe
rioridade da economia marxista» reside na sua «especi
ficação exacta dos dados institucionais que distinguem
o Capitalismo do conceito mais geral de uma economia de
troca», permitindo assim «a definição de uma teoria da
evolução económica» que a teoria económica vulgar
ignora.* Era este o aspecto que Marx sublinhava na sua
análise do nível de Valor, no volume I, e foi também
essa a sua grande contribuição para a ciência económica.
O facto de a análise ser feita em função da categoria
de Valor, pressupunha a aceitação de determinados postula
dos implícitos, do género daqueles que Ricardo definira no
início do seu capítulo sobre o Valor, se bem que cedo
tenha renunciado a eles. Esses postulados consis
tiam numa uniformidade no que se referia aos as
pectos específicos das condições de produção das
indústrias constituintes ou linhas de produção (po
deríamos considerar igualmente que o autor ignora mo
mentaneamente a ausência de uniformidade, detendo-se
na configuração global —- ou ainda que se refere
a uma situação de mobilidade de trabalho entre as indús
trias, mas em que ainda não existia mobilidade de capital
no sentido moderno). Essa uniformidade pode ser expressa
em termos da razão capital-trabalho,** ou naquilo a que
Marx daria o nome de «composição orgânica do capital», ou
ainda (de uma forma diferente), considerando que se parte
do princípio de que todo o capital consiste em adian
tamentos de salário feitos aos trabalhadores, adianta
mentos esses que têm lugar em todas as linhas de
191
produção por períodos de tempo idênticos.* Em terminolo
gia moderna, poderíamos afirmar que, dado o interesse
do autor nesse estádio pelo quadro macroscópico e
pelo padrão geral de repartição e troca, considerava
possível e legítimo esse grau de abstracção. Os pormenores
das relações microscópicas, com as suas complicações
adicionais, que incluíam divergências entre os preços indi
viduais e os valores (divergências essas que, ao nível
microscópico, se revestiam indubitavelmente de grande
importância), eram para o autor de importância secun
dária,** e só mais tarde seriam analisadas. Considerava-
-as portanto, do mesmo modo que Ricardo, como modi
ficações secundárias do princípio central.
A resposta de Marx ao problema da reconciliação
da mais-valia com a prevalência da «lei do valor» era
muito simples, uma vez que o problema já tinha sido
equacionado, e é hoje muito conhecida. Baseava-se
numa distinção, a que atribuía importância crucial,
entre trabalho e força de trabalho. Definia esta
última, em O Capital, como «a energia transferida para
um organismo humano através da matéria nutritiva»
e como «o agregado das capacidades físicas e mentais
de um ser humano, que este põe em acção sempre que
produz um valor de uso de qualquer espécie».*** A «maté
ria nutritiva» indispensável à reposição da energia despen
dida no trabalho era o input material do trabalho humano;
e a existência e montante da mais-valia dependiam do facto
de o primeiro valor ser inferior ao valor «criado» como
output pelo trabalho que sustentava. Referia-se à dife
rença entre um e outro, como sendo a diferença entre «o
192
tempo de trabalho necessário» (o input) e o tempo de
trabalho total realmente gasto na produção.* Esta
diferença era muito semelhante à diferença de Ri
cardo entre «produção e o consumo necessário a essa
produção». Por outro lado, essa diferença só era
possível — e neste ponto foi introduzido o dado histórico
ou institucional de importância crucial — devido à exis
tência de um proletariado despojado de terras e de quais
quer outras formas de propriedade, e cuja subsistência
dependia portanto da venda da própria força de trabalho
em troca de um salário. (A outra condição da constituição
da mais-valia seria a existência de excedentes de força
de trabalho para além da que era comprada e em
pregue.) «A s condições históricas da sua existência
[do Capital]», escreve Marx, «não consistem na sim
ples circulação da moeda e dos bens. Ele só pode
surgir quando o possuidor dos meios de produção e
subsistência encontra no mercado o trabalhador livre
que pretende vender a sua força de trabalho.»** Por outras
palavras, a força de trabalho devia tornar-se um
bem vendido no mercado, e vendido pelo seu valor, de
193
acordo com as «regras do jogo» da concorrência.* Aquilo
a que Marx dava o nome de «taxa de mais-valia»
(a razão entre a mais-valia e o salário adiantado, ou
o preço de compra da força de trabalho) dependia, quando
considerada dum ponto de vista global, da proporção entre
a força de trabalho empregue e a força de trabalho
total necessária à produção da subsistência dessa força
de trabalho. Era essa a taxa de exploração que estava
na raiz tanto da estrutura da repartição dos rendimentos
(e de modo particular da repartição entre proprietá
rios e não-proprietários) como da estrutura dos preços
relativos. Em consequência do que acabamos de referir,
a repartição dos rendimentos passava a ser interpretada
como o produto historicamente relativo de um dado con
junto de condições históricas ou institucionais.
Esta teoria, tal como a de Ricardo, tem sido com
batida com o argumento de que Marx se baseia numa
teoria de salários de subsistência, que não pode portanto
ser aceite nas condições actuais.** Podemos responder de
dois modos. Em primeiro lugar, que Marx, tal como o fi
zera Ricardo antes dele, declarava expressamente que não
atribuía ao «valor da força de trabalho» um sentido
de subsistência meramente física: a definição prática
daquilo que era considerado como «necessário» em qual
quer época e lugar incluía «um elemento histórico e mo
ral».*** Por outro lado, o trabalho especializado, «a força
de trabalho de um tipo especial exige uma educação
194
ou treino especial, que custa por sua vez um valor equiva
lente em bens, de maior ou menor montante. O montante
desses bens varia de acordo com o carácter mais ou menos
complexo da força de trabalho. As despesas feitas
com essa educação... entram pro tanto no valor total
gasto na produção.»* Os elementos «convencionalmente
necessários» de Marshall** estão portanto incluídos
aqui; poderíamos mesmo concluir que a teoria da
subsistência de Marx não se resume a esta, mas pode
considerar-se uma teoria dos salários ■ «oferta-preço»,
segundo a expressão de Marshall. Em segundo lugar,
Marx referia-se inicialmente a um mercado de trabalho
«puro», caracterizado pela concorrência perfeita e pelo
ajustamento individual dos preços. Admitia portanto que
o preço da força de trabalho podia vir a ser mais elevado
do que o seu verdadeiro valor (ou tornar-se-lhe infe
rior, em determinadas circunstâncias), e não ape
nas temporariamente, mas permanentemente, na me
dida em que as condições desse mercado «puro» da força
de trabalho fossem alteradas ou perturbadas. A este
respeito, considerava o ajustamento colectivo de sa
lários negociado pelos sindicatos como uma influência
transformadora potencialmente importante, e «toda a
combinação de empregados e desempregados», nos sindi
catos, como «perturbadora» da «acção harmoniosa» da lei
195
da oferta e da procura.* Numa situação generalizada de
ajustamento colectivo de salarios, como a que viria a
caracterizar, no século seguinte, os países industriais avan
çados, surgia pois um novo elemento institucional; e para
calcular a taxa de mais-valia, tornar-se-ia necessário
ter em conta essa influência.**
Resta-nos ainda referir o papel primordial que Marx
atribuía, na sua teoria da mais-valia, à existência
do chamado «exército de reserva industrial». En
quanto a teoria dos salários de Ricardo se baseava
na lei da população de Malthus — no postulado da exis
tência de uma oferta de trabalho muito elástica, por
razões malthusianas — Marx repudiava em absoluto tal
postulado, afirmando a existência crónica e re-criação
periódica (através de inovações técnicas tendentes a pou
par trabalho, inovações suscitadas por qualquer tendência
para a elevação dos salários que acarretasse uma dimi
nuição da mais-valia) de uma reserva constituída por
uma reserva de trabalho excedente. Tratava-se de «uma
lei da população característica do modo capitalista de pro
dução».*** Era este o factor que desempenhava a função,
crucial para o sistema, de refrear a tendência para uma
elevação dos salários proporcional à acumulação crescente
196
do capital,* fornecendo a resposta à pergunta: se há uma
diferença entre o valor da força de trabalho e do seu pro
duto, porque é que essa diferença não desaparece a longo
prazo, com o progresso e expansão do próprio sistema?
Uma situação em que os excedentes de mão-de-obra desa
parecessem, e prevalecesse o pleno emprego, seria de
grande instabilidade para o modo de produção capitalista,
que provavelmente lhe não poderia sobreviver.**
Após ter enunciado a sua teoria da mais-valia, que
considerava como uma consequência da diferença entre
o valor da força de trabalho como tal, enquanto vendida
como um bem, e o valor do seu produto, Marx passou
a classificar em dois tipos genéricos os processos de
aumento da taxa de mais-valia. O primeiro, que se reves
tia de uma certa importância nos meados do século XIX,
consistia no aumento da Mais-Valia Absoluta, através de
um prolongamento do dia ou da semana de trabalho, de tal
modo que «o excedente do tempo de trabalho» da força de
trabalho existente aumentasse de modo absoluto e rela
tivamente ao «tempo de trabalho necessário» (gasto na
reposição do valor da força de trabalho ou dispendio
em salários). O segundo tipo consistia no aumento da
Mais-Valia Relativa, através da redução do «tempo de
trabalho necessário» proporcionalmente ao tempo de tra
balho total, sobretudo através do aumento da produtivi
dade do trabalho no sector da produção de bens. Observe-se
que só o aumento da produtividade no sector da produção
de bens de consumo pode ter este efeito; o aumento da pro
dutividade noutros sectores só tem o efeito de reduzir outro
tanto o valor do respectivo produto, mantendo-se o valor da
força de trabalho inalterado.*** Se bem que, contraria-
197
mente a Ricardo, Marx não acreditasse na possibilidade
deu ma tendência a longo prazo de diminuição dos lucros
(no sentido histórico), é possível que o facto de a agricul
tura pesar tanto no sector da produção de bens de con
sumo, apesar da pequena ou nenhuma influência que os
métodos industriais modernos nelas exerciam, tenha le
vado Marx a atribuir um peso relativamente fraco a esta
tendência em certos contextos (ou seja, a baixa da taxa
de lucro), quando seria de esperar que a tivesse consi
derado de maior importância.
Ill
198
em salários), não é portanto uniforme nas várias indús
trias. Introduzira já anteriormente a distinção entre
Capital Constante e Capital Variável, que considerava
mais exacta do que a distinção tradicional entre Capital
Fixo e Capital Circulante; sendo o Capital Variável o
capital adiantado sob a forma de salários na compra
directa da força de trabalho, e o Capital Constante o
capital investido em inputs de bens, quer de ma
térias primas, combustíveis e componentes, quer de
intrumentos duradouros e de estruturas, geralmente clas
sificados como capital fixo. (A linha divisória entre os
dois tipos de capital variará de acordo com o grau
de integração vertical da indústria.) Enquanto a
taxa de mais-valia era designada pela razão s/v,
a taxa de lucro era s/(v + c ), sendo v e c res
pectivamente o capital variável e o capital constante.*
A razão c/v constituía a composição orgânica do capital.
Marx definia os Preços de Produção como o Preço de
Custo (igual ao custo dos salários mais os elementos do
capital constante que entravam no output)** adicionados
à taxa de lucro médio ou normal do capital investido.***
Daí que, em função da taxa simples de mais-valia,
ou razão de exploração a que nos referimos, a taxa
de lucro será tanto mais elevada quanto mais curto
for o período de renovação do capital variável, e será
tanto mais baixa quanto mais alta for a razão entre
o capital constante e o capital variável, ou a «composição
do capital». O primeiro caso será equivalente à «durabili
dade do capital circulante» de Ricardo, e o segundo às
«proporções do capital» e «durabilidade do capital fixo», do
199
mesmo autor. * Consequentemente, quando a compo
sição do capital era superior à média (e/ou a rotação
do capital variável inferior) a concorrência, exprimin
do-se sob a forma de «migração» do capital, provocaria
uma subida dos preços de produção acima dos valores, ao
passo que, no caso contrário, estes seriam mais elevados
do que os preços de produção. Ricardo exprimira o efeito
das diferentes proporções e durabilidades do capital em
termos do efeito diferencial de uma subida de salários
sobre os preços; Marx exprime-o em termos de diver
gência entre os preços de produção nos casos individuais
e os valores.**
É no mesmo contexto e imediatamente a seguir
(na Parte III do Volume III), que Marx nos expõe a sua
solução para o problema clássico da chamada tendência
para a descida da taxa de lucro. Essa solução tem sido
muito discutida e interpretada de maneiras diversas, tanto
no que se refere ao movimento dinâmico a longo prazo
do sistema, como à interpretação das crises económicas
periódicas. Se as diferenças de composição orgânica do
capital entre as várias indústrias fossem responsáveis por
uma «redistribuição» da mais-valia entre as mesmas,
proporcionalmente ao capital, poder-se-ia supor que
as alterações dessa composição explicariam as alte-
200
rações a longo prazo da taxa de lucro. Enquanto
Ricardo recorrera a uma diminuição dos lucros como
explicação, Marx considerava o aumento da razão entre
o capital constante e o capital variável, e de modo parti
cular entre o capital fixo e o trabalho assalariado, como
um efeito das inovações técnicas, que contribuem assim
para a descida da taxa de lucro implicada por uma dada
taxa de mais-valia. Após ter feito esta afirmação, passa
a enumerar uma lista de «causas compensatórias», que
incluíam o aumento da «mais-valia relativa» (em conse
quência do aumento de produtividade rias indústrias de
produção de bens de consumo) e o «embaratecimento
dos elementos do capital constante». Além desta, não há
qualquer outra referência à possibilidade de o progresso
da técnica dar origem a invenções que possam «poupar
capital» ou «poupar trabalho» (o progresso da técnica,
tal como se verificava no século xix, processava-se no
sentido do segundo caso); não há tão-pouco qualquer
referência à força relativa de futuras «tendências» ou
«contra-tendências».* É provável que Marx, tal como
os outros economistas do início e meados do século XIX,
partisse do princípio de que se tratava de uma tendência
da época, que exigia uma explicação; e procedia a análise
tendo em conta esse aspecto, abstendo-se de formular
previsões dogmáticas. Não sabemos se a considerava
ou não como um dos factores causadores das crises perió
dicas. Anteriormente, afirmara que quando a acumulação
de capital excede a oferta de força de trabalho, reduzindo
a um baixo nível o exército industrial de reserva (como
tende a acontecer nos períodos de prosperidade), o investi
mento pára até que uma subida de salários provoque uma
descida dos lucros; o que nos leva a crer que tenha
201
considerado esse fenómeno como uma razão plausível
e suficiente para que o período de prosperidade termine.
Marx «admitira» (conforme afirmam os críticos) no
Volume III que no sistema capitalista a troca se efectuava
aos Preços de Produção, o que, segundo Bõhm-Bawerk,
constituiria a «Grande Contradição» que está na base do
sistema marxista.* Este autor escreverá, referindo-se ao
Volume III: «Não considero que haja neste ponto uma
explicação ou reconciliação de uma contradição, mas ape
nas a contradição em si. O terceiro volume de Marx
contradiz o primeiro. A teoria da taxa média de lucro
e dos preços de produção não pode ser conciliada com
a teoria do valor. Creio que todo o pensador lógico será
desta opinião.» Conclui: «Não tenho qualquer dúvida.
O sistema marxista tem um passado e um presente,
mas não tem um futuro duradouro.»** É certo que Marx
nunca demonstrou de maneira satisfatória a relação entre
os Preços de Produção e os Valores, ou a maneira como
aqueles «derivavam» destes; na ausência de uma tal
demonstração, não havia bases lógicas para afirmar que
os primeiros eram determinados pelas condições de pro
dução e pelas relações sociais de produção que analisara
no Volume I. Os exemplos aritméticos a que recorre para
demonstrar essa relação não são satisfatórios, na medida
em que a transformação em Preços de Produção só é
aplicada aos outputs, e não aos inputs (pelo que se
serve da mesma taxa de lucro que aplicara já na situação
de valor). Se bem que Marx se mostrasse consciente de que
a sua solução era incompleta e se referisse à natureza real
do problema, nunca chegou a apresentar exemplos*** mais
2 0 2
desenvolvidos — talvez devido ao facto de o Volume III
não ter sido acabado, e muito menos revisto. Parece,
além disso, professar a opinião de que os preços totais
serão iguais aos valores totais, e, por outro lado,
de que o lucro total será igual à mais-valia total:
condições que são incompatíveis, a não ser em circuns
tâncias excepcionais.*
Discussões posteriores do «Problema da Trans
formação» (conforme é designado) demonstraram, no
entanto, que a polémica lúcida de Bõhm-Bawerk era
demasiado superficial para atingir a essência do pro
blema (que parece ter compreendido mal) e que os
Valores e os Preços de Produção não são necessaria
mente contraditórios, ainda que assim o pareçam. Ou seja,
estes últimos podem ser deduzidos dos primeiros (ou das
condições de produção, incluindo os dispêndios de tra
balho expressos pelos Valores, mais a taxa de explo
ração fundamental). Uma vez que tanto os inputs,
incluindo a força de trabalho, como os outputs devem
203
ser expressos em termos de preços, e uma vez que
a taxa de lucro será provavelmente afectada por essa
conversão,** ambos os factores devem ser tratados si
multaneamente e segundo a sua interdependência, isto
é, resolvendo um sistema de equações simultâneas.
O primeiro a demonstrar que era possível proceder dessa
forma, adaptando as equações de Dmitriev (a que nos
referimos já) foi Bortkievicz. Bortkievicz empregou um
modelo tri-sectorial: um sector produtor de bens de con
sumo, outro de elementos de capital constante e o terceiro
de bens de luxo, consumidos pela mais-valia. Postulando
condições estáticas e um investimento líquido igual a zero
(a «reprodução simples» de Marx), segue-se que a oferta
de output de cada um dos sectores ou departamentos
da indústria é necessariamente igual à procura da
mesma por parte da soma dos rendimentos significativos
correspondentes aos três sectores (nas tabelas a soma das
colunas tem de ser igual à soma das filas significativas;
isto é, o preço total dos bens de consumo é igual à soma dos
salários pagos nos três sectores). Um pormenor curioso
desta solução, que tem suscitado muitas críticas, é o facto
de apresentar a taxa de lucro como dependente exclusiva
mente das condições de produção (particularmente da com
posição do capital, dada a taxa de mais-valia) nos sectores
de produção de bens de capital e de bens de consumo.
As circunstâncias do terceiro sector, aquele que pro
duz bens de luxo para o consumo capitalista, não são signi
ficativas. (« A taxa de lucro, dada uma determinada taxa
de mais-valia, depende exclusivamente da composição
orgânica do capital nos Departamentos I e I I » ). Para
Bortkievicz «este resultado não é surpreendente do
ponto de vista da teoria do lucro que considera que
204
a origem deste reside no ‘excedente de trabalho’»,* con
firmando aquilo a que, inspirando-se em Adam Smith, ele
chama uma «teoria da dedução» do lucro. «Se é certo que
o nivel da taxa de lucro não depende em nada das condições
de produção dos bens que não entram em linha de conta
para os salários reais, deveremos procurar a origem
do lucro na relação de salários e não na capacidade
de desenvolvimento da produção por parte do capital.
Pois se essa capacidade fosse significativa, não ha
veria explicação para o facto de cert;as esferas da
produção não serem relevantes no que se refere ao
problema do nível de lucro.»** Podemos estabelecer por
tanto um paralelo muito estreito com Ricardo, o qual,
como já vimos, considerava que o Lucro era exclusiva
mente determinado pelas condições na indústria de bens
de consumo (agricultura). Dado que Ricardo não consi
dera o capital fixo no que se referia à produção de bens
de consumo, tratando o capital como exclusivamente
constituído por «adiantamentos de salários» (o «capital
variável» de Marx), na sua teoria a taxa de lucro deri
vava unicamente das condições no sector da produção
de bens de consumo, sendo portanto idêntica à taxa de
mais-valia.
Creio que a demonstração de Bortkievicz podia ser
aplicada a um número de indústrias muito superior aos
três sectores ou indústrias por ele considerados.
O Dr. Francis Seton provou mais recentemente a possibi
lidade de aplicação da demonstração de Bortkievicz ao
caso de n indústrias; concluindo que o facto demonstra
a solidez da «superstrutura lógica» da teoria de Marx.***
205
A mesma demonstração está implícita nas equações de
Sraffa, nas quais os preços derivam das condições
de produção (sob a forma de registo das quantidades
de todos os inputs, incluindo a força de trabalho, neces
sários para a produção de n outputs), que analisaremos
mais adiante.*
A discussão deste aspecto da questão, tal como de
toda a estrutura formal da teoria de Marx em geral,
tem sido muito restrita e confinada a um pequeno número
de especialistas; e, de um modo geral, tem despertado
pouco interesse entre os discípulos e intérpretes de Marx.
Estes últimos têm-se interessado quase exclusivamente
por aquilo que ele escreveu a respeito das crises eco
nómicas — assim como pela aplicação mais lata das suas
ideias às relações internacionais, no que se refere à
exportação de capitais e ao imperialismo. Será portanto
oportuno mencionarmos aqui, em traços gerais, os termos
dessa discussão, se bem que estejam para além dos limites
que a nós próprios nos impusemos.
Marx expõe a sua concepção dos dois tipos principais
de indústria e procede à análise das relações estruturais
entre ambos no fim do segundo volume de O Capital, antes
de abordar o problema do preço e do valor. Este capítulo
da análise de Marx tem despertado muito interesse do
ponto de vista do problema das causas das crises perió
dicas, e, mais recentemente, do das relações estruturais
do crescimento económico (o modelo Feldman, etc.).
Marx começa por analisar o caso da «reprodução sim
ples» (investimento líquido igual a zero), não pelo inte
resse do mesmo em si, mas porque essa análise serve
de introdução ao estudo da «reprodução em expansão»,
206
em que uma parte da mais-valia é dedicada ao desenvol
vimento de um ou outro dos dois tipos de indústria,
ou ao de ambos simultaneamente. No primeiro caso, a
condição de equilíbrio é a de que o capital constante
do Departamento n (produtor de bens de consumo) seja
igual ao capital variável (ou antes, à despesa total em
salários do período em questão) e à mais-valia do Depar
tamento I (que produz meios de produção, ou bens de
capital). A condição de equilíbrio para a reprodução em
expansão era análoga, mas menos simples (assim,
obrigava, em cada departamento, a uma distinção entre
a parte da mais-valia consumida e a parte investida,
e dentro desta última, entre a que era investida como
capital constante e a que era investida como capital
variável).* A definição destas condições tem sido con
siderada por alguns (por exemplo, Tugan-Baranowski)
como uma resposta aos «sub-consumistas», como Mal-
thus e Rodbertus, e como implicando a tese de que não
há qualquer obstáculo fundamental à acumulação contínua
de capital, pelo que, quando se verificam crises, é porque
existe um desequilíbrio entre o desenvolvimento relativo
dos dois sectores. Marx pensava, no entanto, que um tal
«equilíbrio», concebível embora, só ocasionalmente se
207
poderia verificar na realidade, a não ser «por acaso»;*
e enumerava uma série de razões que contribuíam para
excluir a possibilidade de esse equilíbrio vir a ser
atingido, ou para a ruptura periódica do mesmo. Alguns
dos seus discípulos, e entre eles Rosa Luxemburgo, cri
ticavam porém esses esquemas, alegando que não era
neles atribuído o devido relevo ao problema da «reali
zação» da mais-valia, no sentido de realização, através da
venda no mercado, e que isso implicava um perigo crónico
para o processo da «reprodução em expansão», que deriva
ria da ausência do incentivo externo fornecido pelos novos
mercados (ou mercados em expansão constante).** Marx
refere-se muito por alto a esse problema, em determinadas
passagens muito condensadas do fim do Volume II (que
pouco mais são do que notas). Parece porém referir-se
(aparentemente) à reprodução em expansão de taxa pro
gressiva, e não de taxa constante (se bem que, se a pri
meira é impossível, seja lícito perguntarmo-nos como
poderá ter início a reprodução em expansão). Formula,
em relação a esse caso, a seguinte pergunta: como é que
os capitalistas das indústrias de produção de bens de
consumo, que anteriormente encontravam o seu mercado
no consumo realizado com a mais-valia, podem dispor
dos seus outputs? e, se não podem concretizar a sua mais-
-valia sob a forma de dinheiro, como conseguirão continuar
a investir? Se não pretendem fazê-lo, a oferta dos
meios de produção baixará por seu turno (ou, pelo menos,
não continuará a expandir-se ao ritmo previsto). No úl
208
timo parágrafo do Volume II (ponto em que o manuscrito
acaba bruscamente), podemos ler, como resposta a este
enigma, que a expansão do investimento só pode ocorrer
na medida em que os bens de consumo supérfluos forem
exportados em troca de mais ouro proveniente dos países
produtores de ouro.* Ê óbvio que uma exportação dos
excedentes financiada por uma exportação de capitais
desempenharia as mesmas funções. Porém, a ausência
de excedentes para a exportação, o impasse referido por
Rosa Luxemburgo manter-se-ia.
Neste ponto, devemos observar que Marx rejeitava
decididamente aquilo a que se viria a dar o nome de
«Lei de Say»; sublinhando que o processo de circulação
de B-D-B (Bens-Dinheiro-Bens) — ou antes, segundo a
expressão que utilizava, D-B-D’, sendo D’ > D — não era
uma corrente automaticamente contínua, podendo sempre
ser interrompida por uma poupança de D, que não era
então reconvertida em B (isto é, um aumento temporário
da poupança, ou liquidez). Marx não ignorava o problema
da «realização», como no-lo prova a seguinte afirmação:
«A s condições da exploração directa e as da realização
da mais-valia não são idênticas. São logicamente dife
rentes no tempo e no espaço. As primeiras têm como
único limite a força produtiva da sociedade, as segundas
são limitadas pelas relações proporcionais das várias
linhas de produção e pela capacidade de consumo da
sociedade.» Acrescenta ainda que «o mercado tem, pois,
de se expandir continuamente.»**
Os Volumes II e III ficaram incompletos, como
dissemos já, não tendo sido revistos pelo próprio Marx,
se bem que a sua redacção datasse dos meados da década
de 1860 (isto é, antes do Volume I ter sido revisto e
publicado). Quando Marx morreu, em 1883, deixou uma
série de notas e capítulos incompletos, que Engels ordenou
e publicou posteriormente, o Volume II em 1885 e o Vo-
209
lume m em 1894. Engels escreve no Prefácio ao Volume II
que esse material era «fragmentário» e incompleto, e es
crito numa «linguagem por polir», na «linguagem que Marx
empregava nos seus rascunhos, ou seja, num estilo descui
dado, cheio de expressões e frases coloquiais, por vezes
rudes e humorísticas... As ideias eram apontadas à medida
em que iam surgindo no cérebro do seu autor... A con
cluir os capítulos havia apenas algumas frases incoe
rentes, assinalando os passos de deduções incompletas.»
«E, finalmente», acrescentava Engels, «havia ainda essa
famosa letra que o próprio Marx nem sempre era capaz
de decifrar.»
Estava projectado um quarto volume, que con
sistiria em todas as notas que Marx deixara para
uma história crítica do pensamento económico.* Engels
não chegou porém a editar esse volume, pois a morte não
lho permitiu. Foi Karl Kautski que o compilou e publi
cou em 1905, com o título de Theorien über den Mehrwert.
O manuscrito da obra foi parar à posse do Instituto
Marx-Engels-Lénine de Moscovo, que, não considerando
satisfatória a edição de Kautsky, publicou na década
de 1950 a sua própria edição da obra.**
210
7. A «REVOLUÇÃO JEVQNIANA»
211
as inovações da escola Senior-Longfield tinham sido ins
piradas pelas conclusões mais insatisfatórias dos «socia
listas ricardianos». No entanto, não há prova de que
Jevons tenha tido essa intenção consciente, ou mesmo,
que tenha tido conhecimento da obra de Marx: uma vez
que esta última fora publicada em Hamburgo e era rela
tivamente desconhecida, é muito pouco natural que Jevons
tenha tido oportunidade de a ler, e de qualquer modo as
ideias fundamentais de Jevons datavam de pelo menos
dez anos antes (provavelmente da época da sua estadia
na Austrália) e tinham já sido expostas numa comuni
cação à British Association, em 1862. O caso dos austríacos
era diferente, particularmente o de Wieser e de Böhm-
-Bawerk, que tinha conhecimento não só da obra de Marx,
como também da propaganda lassalleana, estando mesmo
até certo ponto obcecado pelas potencialidades das mes
mas. A simultaneidade das datas de publicação destas
novas ideias paralelas, que viriam a imprimir um
carácter e uma direcção inéditos ao pensamento eco
nómico do último quarto do século, tem sido frequente
mente sublinhada e é realmente digna de nota. A Theory
of Political Economy de Jevons foi publicada em 1871,
e os Grundsätze de Menger vieram a lume no mesmo ano;
os Elements de Walras apareceram em 1874.* A obra de
212
Wieser e Bõhm-Bawerk foi publicada na década de 1880.
O Professor Shackle referiu-se nos seguintes termos
às inovações conjuntas desses autores: «Nos 40 anos pos
teriores a 1870 elaborou-se uma Grande Teoria ou Grande
Sistema de Economia, em certo sentido completo
e auto-suficiente, apto a responder, nos seus próprios
termos, a todos os problemas que podiam ser formulados
de acordo com esses mesmos termos... Esta teoria, na sua
beleza e perfeição notáveis... parecia derivar dessas qua
lidades estéticas o selo da sua própria autenticidade e da
sua supremacia sobre a inteligência dos homens.»*
Em termos gerais, podemos dizer que esta alte
ração na estrutura e nas perspectivas da análise económica
se caracterizava por dois aspectos principais. Em primeiro
lugar, no que se refere às influências e determinantes
causais, deixou de ser atribuída uma importância primor
dial aos custos de produção, resultantes das circunstâncias
e condições de produção, para se pôr em relevo a procura
e o consumo final; sendo colocado o acento tónico na capa
cidade, por parte dos bens produzidos, para contribuir para
a satisfação dos desejos e das necessidades dos consu
midores. Esta alteração de ponto de vista contribuiu
para imprimir uma direcção individualista ou atomista
ao pensamento económico moderno —-que se dedica essen
cialmente à micro-análise dos comportamentos e acção
de mercado individuais e à generalização económica
baseada nesses micro-fenómenos. Sabemos já que tal se
tornou possível devido à descoberta (através da aplicação
do cálculo diferencial) do conceito de acréscimos margi
nais de utilidade — o «grau de utilidade final» de Jevons—-
que permitiu superar os obstáculos que outros tinham
213
encontrado ao pretender sublinhar a importância do valor
de uso smithiano, dada a dificuldade que havia em esta
belecer uma relação entre o valor de uso e o valor de troca.
Foi esta minimização do custo e da produção, a favor
da influência da procura e da utilidade do consumo, que
deu origem à alteração que deve ser descrita em termos de
desvio no sentido de uma Teoria Subjectiva do Valor.
Numa passagem muito frequentemente citada, do iní
cio da sua obra, Jevons escrevia: «Uma reflexão e uma
análise aturadas levaram-me a adoptar o ponto de vista
inédito de que o valor depende inteiramente da utilidade.
As opiniões predominantes colocam o trabalho, e não
a utilidade, na origem do valor... O trabalho determina
frequentemente o valor, mas só de forma indirecta,
fazendo variar o grau de utilidade do bem através de um
aumento da oferta.»* No prefácio, explica que «tentei
nesta obra considerar a Economia como o Cálculo do
Prazer e da Dor»; e sublinha a analogia com «a ciência
da Mecânica Estática». No prefácio à segunda edição
(de 1879), renova o seu ataque a Ricardo, referindo-se
às «hipóteses confusas e absurdas da Escola Ricardiana»,
e acrescentando que «os nossos economistas ingleses têm
vivido num mundo idealizado». No parágrafo a rema
tar a obra, escreve: «Ê uma contribuição positiva
interromper a repetição monótona de doutrinas duvidosas
correntes, mesmo que se incorra no risco de um novo
erro.»** Keynes refere-se à sua Tlneory como «o primeiro
tratado que expõe de forma completa uma teoria do valor
baseada em avaliações subjectivas» e «o princípio mar
ginal.»***
Em segundo lugar, e em consequência do que aca
bamos de dizer, aquilo a que podemos chamar os limites
214
da matéria, tal como a sua estrutura de relações
e dependencias causais, foram significativamente alte
rados, se bem que ao tempo se não compreendesse até
que ponto. O sistema de variáveis económicas e a sua
área de determinação foram virtualmente identificados
com o mercado, ou com o conjunto de mercados inter-
-relacionados que constituem a esfera de troca. O que
acabamos de referir pode não nos parecer notável à
primeira vista, pelo menos na medida em que a teoria
económica consiste na teoria do valor, que, pela sua natu
reza, seria essencial e necessariamente composta por rela
ções de troca. Porém, há neste ponto uma implicação que
afecta a relação entre a repartição e a troca e que é menos
óbvia, acarretando consequências fundamentais para
a totalidade do campo de estudo. No sistema de deter
minação adoptado por Ricardo, e a fortiori e mais expli
citamente na perspectiva de Marx, a repartição
era considerada como anterior à troca num sentido
essencial: ou seja, as relações de preço e os valores
de troca só podiam obter-se após ter sido postulado
o princípio da repartição do produto total. Os factores
determinantes da repartição eram, como já vimos, iden
tificados com as condições de produção (as condições
de produção de bens de consumo de Ricardo; as «relações
sociais de produção» de Marx, introduzidas do exte
rior do mercado, na sua qualidade de bases socio-
-históricas dos fenómenos da troca). Per contra, a nova
orientação da análise económica reduzia o problema da
repartição ao preço atribuído aos inputs indispensá
veis por um processo de mercado determinando simulta
neamente o sistema inter-relacionado dos inputs e dos
outputs. Além disso, a repartição (ou o que dela restava
como capítulo independente da análise económica) não só
era determinada a partir do interior do mercado ou pro
cesso de troca, como o era igualmente sob a forma dos
preços derivados de certos bens intermediários ou
factores produtivos: a determinação era considerada
como sendo imposta pelo mercado dos produtos finais,
e daí, em última análise, pela estrutura e intensidade
215
da procura dos consumidores. Jevons* não chegou a desen
volver explicitamente este ponto, pois limitou-se a levar
a cabo apenas metade da «revolução» marginal. Este
aspecto do problema torna-se porém evidente com Menger,
quando este se refere aos bens de «primeira ordem» e de
«ordem superior», sendo os preços dos segundos derivados
dos preços dos primeiros, pelo processo de «imputação»
(Zurechnung) , por outras palavras, de certo modo em
função da produtividade marginal dos bens do produtor
em termos dos bens do consumidor. Mesmo no sistema
walrasiano, esta derivação era perfeitamente explícita.
O próprio Walras o acentuou quando escreveu: «Embora
seja certo que os serviços produtivos são comprados e
vendidos nos seus próprios mercados especiais, os preços
destes serviços, não obstante, são determinados no
mercado de produtos.»** Evidentemente, este apareci
mento da determinação unidireccional deve-se aos econo
mistas austríacos (e também Walras, quanto ao essen
cial) terem simplificado o seu problema admitindo
que se partia de ofertas dadas de factores produtivos,
cujos «serviços» entravam no processo de troca por um
«preço de aluguer». É esta, de facto, a base daquilo
que viria a ser a elegante redução do conceito de custo à
noção esbatida e contingente de «custo de oportunidade»
(isto é, o custo de oportunidades produtivas antecedentes,
destinadas a criar utilidades). Mas, se se puser de parte
esta hipótese de ofertas de factor dadas, a diferença que
daí resulta está apenas em substituir, à maneira mar-
shalliana, uma série de «escalas de ofertas de factores»
vagamente definidas e concebidas subjectivamente, de um
realismo e independência contestáveis (contestáveis por
dependerem de algum tipo de «custos reais» de repar
216
tição relativa de «esforços e sacrifícios»).* Efectua-se
então a determinação mútua, por meio de um equilíbrio
de condições marginais na oferta de serviços ou factores
produtivos, assim como em relação à procura dos consu
midores. Foi este o espectro do chamado «ricardismo»
que subsistiu no sistema de Marshall.
No entanto, curiosamente, a repartição, à qual
Ricardo tinha atribuído esse predomínio, embora per
dendo agora importância, ou até enfraquecendo de
todo, continuou a pretender uma certa prioridade,
mesmo no novo esquema conceptual. Esta ocorrência foi
muito minimizada, a tal ponto que se poderia pensar
que esta pretensão passasse despercebida, embora fosse
impossível não dar por ela. Tratava-se da sua prioridade de
influência na formação da estrutura da procura do con
sumidor, através da mediação entre a utilidade ou
satisfação da necessidade do consumidor individual e
a sua expressão sob a forma de poder de compra
no mercado, e, portanto, de impulso real de mer
cado. Conforme se mencionou no nosso Capítulo I,
teve de postular-se, consequentemente, certa reparti
ção de rendimento preexistente, para que pudesse
ser considerada como determinada por um processo
de formação de preços na esfera da troca de mer
cado. Uma vez reconhecido, este facto prejudicou as
elegantes linhas gerais da imagem conceptual, senão
mesmo a sua consistência interna — ainda que talvez
se pudesse sustentar (quando muito de maneira dis
cutível) que, para fins práticos, a diferença decorrente de
admitir-se esta influência de retorno não tinha geral
mente grande importância, salvo nalguns casos especiais.
Wieser, por exemplo, compreendeu bem esta interfe
rência da repartição no modo de derivação do valor de
troca a partir da utilidade, à maneira da Escola Austríaca.
Na sua obra Natural Value, escreveu: «O preço dum bem
nunca exprime completamente o valor de troca que repre
217
senta para o seu possuidor. Este valor depende ainda da
«equação pessoal» do dinheiro, para o possuidor... A «equa
ção pessoal» do dinheiro é indispensável em qualquer
economia, para podermos repesar uns em relação aos ou
tros, os bens avaliados segundo os seus valores de troca...
Cada acto isolado de troca depende disto.» E também:
«Na formação do valor de troca introduz-se um segundo
elemento, o poder de compra. Em valor natural, os bens
são avaliados apenas segundo a sua utilidade mar
ginal; em valor de troca, são avaliados segundo uma
combinação de utilidade marginal e poder de compra...
O valor de troca, mesmo quando é considerado perfeito, é,
passe a expressão, uma caricatura do valor natural:
perturba a sua simetria económica, ampliando o que é
insignificante e diminuindo o que é importante.»* Mas não
se pode dizer que Wieser seguisse a lógica desta afirmação,
e menos ainda que resolvesse a dificuldade por ela criada.
De um modo geral, os seus colegas e discípulos também
não atacaram a dificuldade.**
Uma consequência importante do novo esquema con
ceptual, foi que a separação que Mill tentou traçar entre
o carácter institucional e de relatividade histórica da
repartição, por um lado, e o carácter «natural» das
leis da produção, por outro, voltou a esbater-se, se
bem que não tenha desaparecido por completo. Admi-
tira-se que diferenças ou alterações institucionais podiam
modificar o regime de repartição do rendimento entre
pessoas (por exemplo, influindo sobre a quantidade
de propriedade na posse de diversos indivíduos); mas
o regime geral de repartição entre factores (o que
significava, essencialmente, entre capital e trabalho) não
218
podia ter essa influência, dada a relação entre as ofertas
relativas de factores e os seus usos produtivos, ou o seu
papel na produção e, portanto, na sua procura. Sendo
assim, na teoria económica não podia haver lugar para
qualquer caracterização de relatividade institucional, do
coeficiente rendimento-propriedade, por exemplo, ou do
coeficiente lucro-salário: estes coeficientes eram catego
rias puramente económicas, no sentido de dependerem
da natureza da situação económica existente e do pro
blema económico per se.
Dum ponto de vista ideológico, este foi sem dúvida
o resultado mais importante da mudança de orientação:
isto é, pela imagem que proporcionou do sistema econó
mico, dos seus problemas e imperativos, e, portanto, pela
possibilidade de ajuizar da correcção ou incorrecção dos
diagnósticos correntes dos males sociais. A alteração
ficou associada, conforme notámos, ao traçado de diferen
tes linhas de delimitação do «sistema económico», tratado
como «sistema isolado»; de forma que os problemas acerca
da posse de propriedade ou das relações e conflitos de classe
eram considerados exteriores ao domínio do economista,
nã oinfluenciando directamente, pelo menos em aspectos
importantes, os fenómenos e relações com os quais a
análise económica estava relacionada, e pertencendo,
em vez disso, aos domínios do historiador econó
mico ou do sociólogo. Um problema como a proveniência
da mais-valia, sobre o qual falámos no capítulo anterior,
nem sequer podia ser apresentado dentro dos termos
estabelecidos da análise económica. No entanto esse facto
não era explícito; era posto de parte por não ter signifi
cado ou cair fora dos limites da matéria.
Houve outras consequências que vieram a ser
tema de discussão ideológica; mas, globalmente, fo
ram de importância secundária. A alusão de Jevons
à Mecânica Estática, por exemplo, como analogia apro
priada para a metodologia da nova economia, revelou-se
profética; como resultado do facto de considerar seria
mente esta analogia, a análise económica passou a
preocupar-se com situações de equilíbrio em condições
de concorrência; e na medida em que estas situações
219
eram de equilíbrio completo, presumia-se virtualmente o
pleno emprego de todos os serviços ou factores de produção
produtivos.* Assim, a possibilidade de equilibrios múltiplos
(por exemplo, em vários níveis de emprego) pouca atenção
mereceu, se é que não foi completamente ignorada (isto é,
até à década de 1930 praticamente). Da mesma forma,
foram ignoradas as considerações dinâmicas; embora o
método da mecânica estática pudesse adaptar-se ao tra
tamento dos problemas da chamada «estática compara
tiva», não podia ser aplicado à estabilidade ou instabili
dade das vias de movimento, e portanto a flutuações ou
à mudança como processo.**
Outro resultado, logicamente consequente ou não,
foi que a transferência do centro da investigação
para a análise do equilíbrio parcial deu origem a uma
concentração de esforços naquilo que viria a ser deno
minado «microeconomia», com exclusão ou quase aban
dono da mais ampla concatenação de interdependências
e efeitos, muito importantes para a formação das macro-
-relações mais vastas, mas também muito frequente
mente escondidos por detrás duma cláusula ceteris paribus
e esquecidos depois. (Podemos citar como exemplo
o engenhoso dispositivo simplificador de Marshall, que
consistiu em admitir como constante a utilidade mar
ginal do rendimento, e considerar que quaisquer efei
tos mais amplos daquilo que estava a acontecer, podiam
ser tomados como uma «segunda ordem de pequenas quan
tidades»; juntamente com a hipótese análoga, na esfera
220
da oferta, de preços de factores dados, a qual permitiu
utilizar a noção duma oferta a longo prazo ou curva
de custos duma indústria). Isto representou, sem sombra
de dúvida, um empobrecimento da economia (como passou
a chamar-se, em vez de economia política), o qual só foi
seriamente contestado na década de 1930, ou mesmo
depois, com a obra de Keynes e o desvio das atenções,
após a segunda guerra mundial, da estática jevoniana
para a teoria do crescimento.
Um subproduto especial da nova estrutura e meto
dologia, que iria produzir corolários de nítida tenãenz
ideológica, foi o hábito da optimização. Este hábito nasceu
da união da utilidade com a técnica dos incrementos
e decrementos marginais, o que, por sua vez, levou direc
tamente à consideração de problemas extremos. Efectiva
mente, alguns autores identificaram virtualmente a mu
dança introduzida por Jevons com o privilegiar das condi
ções de «atribuição»* (simultaneamente das despesas dos
consumidores entre os produtos finais e dos recursos pro
dutivos entre os usos produtivos, via uma escolha e
actuação das empresas); uma vez que a noção de maximi
zação estava implícita na forma de estruturar o problema.
Não era difícil concluir que o suposto comportamento
maximizante (de utilidade em relação aos consumidores
e de lucro em relação aos entrepreneurs) tinha como
resultado que em condições de concorrência em todos
os mercados, o valor (líquido) produzido era maximi
zado. Por meio dum prodígio de agregação, isto era
traduzido na afirmação de que o agregado social de
utilidades era maximizado — tradução ilícita, pois já vimos
que a relação entre valores e utilidades, e, consequen
temente, a soma das últimas, depende da repartição do
rendimento (mais um exemplo de que a «prioridade» desta
se impõe por si própria). Este facto foi inicialmente indi
cado por Jevons, ao afirmar que «na medida em que isto
é compatível com a desigualdade da riqueza em todas as
221
comunidades, todos os bens são repartidos por meio de
troca, de modo a obter-se o máximo benefício».* Talvez o
seu mais conhecido enunciado a nível social seja o de
Walras, segundo o qual, «com a produção num mercado
regulado pela concorrência... asconsequências da livre
concorrência... podem resumir-se em que assim se
atinge, dentro de certos limites, a utilidade máxima»;**
ao que se seguia o óptimo modificado e contingente
(mas não menos influente) associado ao nome do seu
sucessor, Pareto. Embora na altura sujeito à crítica de
personalidades de relevo tais como Marshall e Wicksell
(este último contestou rudemente Pareto, afirmando:
« A doutrina de Pareto não traz nenhuma contribui
ção»***), este corolário optimizante, ao qual voltare
mos quando adiante falarmos da «Economia do Bem-
-Estar», veio a exercer uma grande influência como jus
tificação dum régime de concorrência perfeita e de mer
cado livre.
Fomos de opinião que reduzir a repartição à formação
dos preços dos serviços ou factores produtivos, teve como
resultado excluir as circunstâncias sociais dos indivíduos
(ou grupos sociais) associadas à oferta destes «serviços»
— até ao ponto de perder de vista a própria existên
cia destes indivíduos. Quando muito, estes eram visí
veis, num plano distante, como entidades envoltas
em sombra e fantasmagóricas, sem verdadeiro conteúdo
social ou até sem definição clara e distinta. O caso extremo
apresentou-se quando se postularam ofertas de factores
dadas, correspondendo a repartição apenas à formação
dos preços de n inputs de factores (caso em que nem
mesmo se podia considerar uma taxa de lucro uniforme,
visto que a sua formação implica alterações apropriadas
nas ofertas de bens de capital individuais). Neste ponto,
a ilusão de que a repartição se integra completamente
222
no processo de troca atingiu o seu ponto culminante.
O conceito de ofertas de factores variáveis, governadas
por alguma escala de pregos de oferta, reintroduziu
a posição dos indivíduos por detrás das ofertas, pelo
menos até ao ponto de relacionar as suas acções e motiva
ção com os factores-serviços. Mas essa relação foi de facto
simulada, concebida para permitir um certo grau de
atribuição do valor dos serviços aos indivíduos. Assim,
«abstinência» ou qualquer noção análoga desempenhou a
função de relacionar (ou, quando não de relacionar explici
tamente, pelo menos de esbater a distinção entre) o efeito
produtivo daquilo que é possuído e do seu possuidor legal.
A forma extrema deste conceito foi a interpretação apre
sentada por J. B. Clark para produtividade marginal: esta
significava que cada factor, e por implicação os respon
sáveis pela sua oferta, recebiam o equivalente da sua «con
tribuição» para a produção: «a própria lei», disse
Clark, «é universal, e, portanto, ‘natural’».* Embora esta
afirmação viesse depois a ser refutada nesta forma pro
posta por Clark,** manteve-se uma certa implicação
de atribuição (e ainda mais de inevitabilidade), mesmo
em compêndios não populares, até ao ponto de o factor
e o seu fornecedor (ou proprietário) estarem relacionados
por qualquer conceito do tipo «abstinência» ou «es
pera». Raramente se pensou que fosse necessário indicar
que a propriedade era o primeiro requisito para apre-
223
sentar oferta, e que deste modo, uma vez mais, a repar
tição e as suas determinantes sociais, entravam como con
dição prévia pelas traseiras,
A nível puramente formal, poucas dúvidas podem res
tar de que os novos métodos e o novo contexto, com a sua
analogia matemática, quando não forma matemática, tive
ram como resultado uma maior precisão e rigor de
análise. Neste sentido — aquele a que Schumpeter atribuía
predominância — a análise económica per se pode bem
dizer-se que avançou. Os instrumentos de dissecação da
discussão económica tornaram-se mais penetrantes — se
foram ou não utilizados para dissecar muito profunda
mente, isso é outra questão. Pelo menos no que diz respeito
aos fenómenos de mercado, não há dúvida de que a penetra
ção da análise se tornou maior e que passou a haver maior
subtileza na compreensão da formação dos preços e das va
riações dos preços de mercado (incluindo, mais tarde, a
compreensão de situações de desequilíbrio e de flutuações
em torno do equilíbrio). Apesar das falácias associa
das ao seu uso, mesmo a apresentação de problemas de
atribuição em termos de problemas de extremos e de
maximização teve a sua importância, e não se lhes pode
negar uma aplicação frutuosa. Por exemplo, inspirou, se é
que não gerou, a técnica especial da programação linear,
com a sua evidente relevância para questões de planifi
cação. Isto não significa aceitar a opinião de Schumpeter,
segundo a qual o progresso na análise «pura» constituiu a
característica importante da mudança, e que o seu carácter
ideológico mais não foi que acidental. Na realidade, é o
contrário que é verdadeiro. Além disso, estas realizações
formais devem ser postas em confronto com a abertura de
algumas vias falsas, e, relativamente a problemas mais
fundamentais, com uma atenção pouco esclarecedora vol
tada para aparências superficiais e ilusórias.
A polémica contra a tradição ricardiana anterior, e
ainda mais contra o sistema marxista, cuja porta Ricardo
foi acusado de ter aberto, não se limitou a rejeitar
por parte de Jevons (contra a qual Marshal protestou,
224
dizendo que era demasiado irreverente e iconoclasta).*
A maior parte dos argumentos são tão conhecidos
que não carecem de repetição, pois figuraram cor
rentemente em compêndios elementares durante várias
gerações (como a afirmação de que, ao ignorar a influên
cia da procura, qualquer tipo de teoria do custo é incapaz
de determinar preços em condições em que o custo varia
com a quantidade produzida). Mas há uma acusação
especial à qual aludimos acima, no Capítulo 4, que talvez
mereça ser aqui repetida devido à sua aparente sub
tileza e pelo facto de ter vindo simultaneamente de
Walras e de Jevons. Trata-se do facto de a teoria de Ricardo
ter procurado «determinar duas incógnitas com uma só
equação», ao sugerir que o preço é determinado pelos
salários mais os lucros (quando se exclui a renda),
considerando ao mesmo tempo o lucro como excedente
de valor produzido acima dos salários.** Esta crítica
conforme vimos, embora potencialmente válida contra
a teoria da «soma de componentes» de Smith, resulta
de um erro flagrante por parte de Ricardo, tal como
salientou Dmitriev. Em réplica, já por nós citada,
Dmitriev escreveu o seguinte (passagem que transcre
vemos in extenso, porque toda esta questão há muito
vem sendo mal compreendida):
15 225
Uma só equação não é suficiente para determinar
duas incógnitas.
Desta forma, estamos aparentemente encerrados
num círculo vicioso: para definir o valor, temos de saber
a dimensão do lucro; e o próprio lucro depende da
dimensão do valor. Parece que não há outra saída que
não seja tornar a dimensão do valor, ou do lucro,
dependente de condições situadas fora da esfera da
produção: foi a um processo deste género que A. Smith
recorreu... colocando o nível de lucros dependente da
oferta e procura de capital. Mas esse processo significa
admitir a inconsistência da própria teoria das despesas
de produção. O mérito imortal de Ricardo consiste
precisamente na sua brilhante solução deste problema,
que parecia insolúvel.
226
é atribuído, de permitir elaborar uma teoria da deter
minação da repartição do rendimento, e, a partir daqui,
uma teoria satisfatória do valor e repartição no sentido
clássico? Dado um certo padrão walrasiano de raretés,
não será verdade que se torna em certo sentido «neces
sário» um certo padrão de preços; e, se assim for, não
será essa «necessidade» supra-institucional ?
Esta pergunta é evidentemente pertinente, e não pode
ser iludida pelos críticos da doutrina moderna. Se se
puder fornecer uma resposta em termos gerais, parece que
deverá fundamentar-se numa distinção entre diferentes
categorias de afirmações sobre fenómenos económicos.
Quando se fala em termos daquilo a que Marx teria cha
mado a categoria de «preço de mercado» (à qual ele pró
prio só chega a meio do seu terceiro volume), é certo
que se podem fazer várias afirmações a respeito
das relações oferta-procura; e porque o seu número é
bastante restrito, assim como o seu significado numa pers
pectiva mais ampla, «macro», não decorre daí que não pos
sam ter importância em certos contextos especializados.
A questão está em que, para se fazerem essas afirmações,
é necessário tomar um certo número de coisas como
dadas (por exemplo — para considerar o caso extremo —
em todas as afirmações a respeito de situações de «curto
prazo» ou quase curto prazo marshallianas): dados que
são variáveis dependentes doutro nível de análise, mais
«profundo». Para explicar menos, mais tem de ser postulado
independentemente. Isto, se for bem compreendido, equi
vale (ou é análogo) àquilo que o Professor Hicks pretende
quando fala de «equilíbrio restrito», ao qual se chega
restringindo o número de escolhas «em aberto».* Fun
damentalmente, é por isso que as afirmações relativas
à oferta-procura não podem, por razões que considerámos,
incluir (ou ir tão longe como) uma teoria de repartição
propriamente dita; nem este género de teoria de deter
minação da procura pode proporcionar uma resposta ade
quada ao tipo clássico de problema de valor (única razão
227
pela qual a designação de «neoclássica» que lhe é aplicada
não é apropriada, e pode até ser enganadora). No que
se refere à repartição, já dissemos, de facto, que se deve
postular alguma repartição de rendimento para conferir
significado ao «padrão de procura», e, portanto, fazer
qualquer afirmação geral ao nível global dum tipo
de oferta-procura.
Uma forma de explicar o significado de con
textos nos quais são aplicáveis relações de troca
determinadas pela procura, pode ser a seguinte. Supo
nha-se que todos os inputs produtivos foram ob
jectos naturais disponíveis num certo momento em
certas quantidades determinadas pela natureza.* Quais
quer relações de troca dentro do sistema reflectiriam, evi
dentemente (e seriam explicáveis em termos de) bens di
versos e estritamente limitados vis-à-vis o padrão
de procura de produtos finais produzidos a partir de
diferentes combinações de inputs. Mas então, obvia
mente, o processo de produção que geralmente se con
cede (fora dum mundo completamente automatizado)
não existiria. Poder-se-ia modificar então as condições
para incluir o trabalho como um input entre objectos
naturais (por exemplo, trabalho de colheita, adaptação,
organização); e continuar a ter o mesmo modo de relacio-
nação no que se refere à troca de objectos naturais,
e entre estes e os outros (consumidos) finais: os primei
ros funcionariam como renten-guter, que exige mum preço
proporcional ao papel que desempenharam no processo de
transformação em produtos finais e à procura relativa
dos produtos em que tiveram uma importância pri
mordial. Poderia dizer-se, de facto, que existe aqui uma
certa analogia com os problemas aos quais se aplica
a técnica da programação linear: o problema de distribuir
os objectos naturais (escassos) entre os usos produtivos e
a sua combinação óptima para cada uso — um óptimo que
é definido em termos de «uma função objectiva», inter
pretada em geral como uma série de usos finais conve-
228
nientemente ponderados. Neste aspecto, poderia con
siderarle, de maneira não muito rigorosa, mais
como uma técnica do que como uma explicação
teórica da realidade. De facto, a analogia com a
programação linear pode ser utilizada neste ponto, pre
cisamente porque, como se sabe, esta técnica de análise
é aplicável a alguns problemas duma economia so
cialista, quer a nivel particular quer a nível geral,
assim como a uma economia capitalista, e, nesta medida,
deve referir-se a aspectos ou relações supra-institucionais.
Essa analogia pode ter pelo menos esta vantagem: apre
senta usos finais que é necessário postular arbitraria
mente a partir do exterior do sistema, quer na forma
dum dado plano de output (por exemplo, Kantorovitch),
quer (se for baseada numa procura de mercado explícita)
na da postulação implícita de urna dada repartição de
rendimento.
Per contra, na medida em que se atribui à activi
dade humana um papel primordial no processo produtivo,
e em que inputs reprodutivos (produto do próprio pro
cesso produtivo) substituem objectos naturais escassos, os
fúndamenos do problema económico tornam-se diferentes,
em primeiro lugar porque a questão da existência e pro
veniência de um excedente de valor pode ser agora apre
sentada de um modo relevante,* e em segundo lugar por
que a proporção de qualquer valor-produto dado atribuída
aos salários (e assim contabilizada), e o modo de repar
tição do excedente ou diferença entre ambos, será uma
determinante fundamental da estrutura de preços resul
tante.
Mas, se se puder construir um modo formal de deter
minação, em termos de relações de escassez («escassez»
229
definida e medida em referência ao conjunto de usos
finais), e esse modo de determinação puder fornecer al
guma informação, numa situação de meios ou inputs
determinados naturalmente, porque não haveria ele de
servir igualmente em situações análogas, em que
qualquer conjunto de n meios ou inputs, embora não de
pendentes de limitações naturais, são, não obstante, deter
minados de qualquer outro modo quanto às suas ofertas?
Por outro lado, não poderão as relações de preço-
-escassez assim deduzidas, aplicar-se não só a produtos
mas também a estes meios ou inputs? Na verdade, isto
é perfeitamente possível; mas, conforme vimos ao refe
rirmo-nos aos austríacos, sujeito à condição restritiva de
que o conjunto de n meios ou inputs exista previamente
como dado. A restrição é considerável. Exclui todas as si
tuações em que estas ofertas têm probabilidades de altera
ção (isto é, como efeito de «fudback» dos seus preços), e
uma análise sujeita a esta restrição não pode pronunciar-se
quanto às razões e meios por que estas alterações se produ
zem ou quanto aos seus efeitos — motivo pelo qual falamos
das situações em que essa teoria se pode aplicar como
«situações de quase curto prazo». É evidente que daquilo
que essencialmente é uma teoria de curto prazo se não
pode esperar que resolva problemas de «longo prazo»
(por exemplo, a respeito de situações de equilíbrio que
envolvam uma taxa de lucro uniforme).* Procura-se fugir
a esta restrição tentando agrupar estes n meios ou inputs
em grupos de factores mais vastos, e relacionar as alte
rações de oferta dos primeiros com as situações dos segun
dos: uma fuga que tem as suas dificuldades específicas
(que consistem na necessidade de postular algumas enti
dades distintamente estranhas, na realidade metafísicas,
como «factores» genéricos), que hoje vão sendo conhe
cidas e às quais voltaremos a referir-nos.
Pode observar-se, a propósito, que qualquer dos
dois modos de tratar o problema (e mais manifestamente
no segundo) implica que as combinações partieula-
230
res de inputs, ou técnicas escolhidas dependem dos
(e variam com) os preços dos factores ou inputs esta
belecidos pelas relações de preço resultantes do sistema
em geral. Isto, por sua vez, implica a noção duma «função
de produção», ou duma escala de substituição de factores
que defina todas as diferentes combinações de factores
ou inputs que possam produzir o mesmo output (sendo esta
curva de substituição «objectiva» no sentido de se basear
Unicamente em dados técnicos, num certo estado de conhe
cimento técnico). Esta noção duma «função de produção»
inclui grandes dificuldades, conforme verificaremos daqui
a pouco, quando chegarmos às discussões travadas nos
últimos anos. Se este modo de tratar o problema for posto
de parte, é postulado, então, um conjunto de n processos
ou métodos de produção possíveis para cada indústria;
mas embora o processo ou método escolhido em qualquer
momento dependa da proporção salário-lucro (e da resul
tante estrutura de preços dos produtos utilizados como
inputs), por razões que se tornarão evidentes não se ve
rificará a obrigação que existe no primeiro caso (em que
os grupos de factores e as suas ofertas relativas desem
penhavam um papel primordial), de considerar estes
processos alternativos ordenados de modo particular.
II
232
manas».* Propõe a lei da utilidade decrescente (cha
mando-lhe Lei de Variação da Utilidade: «a utilidade
não é proporcional ao bem »), distinguindo entre a utilidade
total e a utilidade dum incremento adicional e estabe
lecendo uma curva de utilidade do tipo familiar. «O grau
de utilidade» é definido como «o coeficiente diferencial
de utilidade considerado como função de x [a quanti
dade do bem em questão], e constituirá, por sua vez, outra
função de x »; este grau decresce à medida que a quan
tidade dum bem aumenta, até se chegar próximo da
«satisfação ou saciedade» dos nossos apetites.** No capí
tulo seguinte (Da Troca), pressupõe que «o coeficiente
de troca de quaisquer dois bens será o inverso dos graus
finais de utilidade das quantidades de bem disponíveis
para consumo depois de efectuada a troca.*** Os Capí
tulos V, V I e V II do livro tratam das Teorias do Trabalho,
da Renda e do Capital.
Na segunda edição, formulou abreviadamente a
curiosa reafirmação da sua teoria,**** que viria a merecer
um severo comentário de Marshall:
O custo de produção determina a oferta
A oferta determina o grau final de utilidade
O grau final de utilidade determina o valor.
A este respeito, Marshall, que tinha analisado o livro
de Jevons com pouca generosidade (Keynes diz «mesqui
nhamente») no número de Academy de Abril de 1872,
fez o seguinte comentário:***** «Se de facto esta série
causal existisse, não poderia haver grande mal em
omitir as fases intermédias e afirmar que o custo de pro
dução determina o valor. Porque, se A é a causa de B,
que é a causa de C, que é a causa de D, então A é a causa
de D. Mas, na verdade, não existe tal série.» Depois de
propor o seu próprio ponto de vista sobre a «mútua deter
233
minação» do «preço de oferta, preço de procura e quan
tidade produzida» (que considera a maior de todas as
objecções» à fórmula defendida por Jevons), termina in
vertendo a ordem da proposição de Jevons («pode fazer-se
uma sequência um tanto menos falsa que a su a »):
A utilidade determina a quantidade que deve ser
fornecida
A quantidade que tem de ser fornecida determina
o custo de produção
O custo de produção determina o valor,
porque determina o preço de oferta necessário
para que os produtores continuem o seu trabalho*
234
ocuparmos dos austríacos), de as proporções em que os
factores são combinados, mesmo sendo fixas em cada
utilização, serem não-uniformes entre as diversas uti
lizações.
A excepção (bastante vasta) àquilo que expusemos
sobre Jevons e a repartição refere-se ao capital; e a
sua Teoria do Capital despertou um interesse suplan
tado apenas pela sua análise da relação entre incre
mentos de utilidade e preço. Neste ponto, Jevons introduz
aquilo que sem dúvida constitui essencialmente a noção
de produtividade marginal, tratando-a como determinante
da taxa de juro. Isto processa-se em ligação com o seu
modo especial de conceber o capital, constituído pelo
adiantamento da subsistência dos trabalhadores. Neste
ponto mantém-se na linha de tradição clássica, e admite
que, «nesta matéria», está «fundamentalmente de acordo
com Ricardo». Uma tal noção de capital como «adianta
mento» implica uma dimensão temporal — o período de
tempo durante o qual o adiantamento é feito, ou «período
de produção», como viria a ser designado. «O capital,
segundo o meu ponto de vista», escreve, «não é mais
que o conjunto dos bens necessários paru manter
trabalhadores de qualquer tipo ou classe a trabalhar-».
«Os meios correntes de sustento constituem capital na
sua forma livre ou não investida. A única e importante fun
ção do capital é permitir que o trabalhador possa aguar
dar o resultado de qualquer trabalho de longa duração
— estabelecer um intervalo entre o início e o fim dum
empreendimento... O capital apenas nos permite despender
trabalho antecipadamente.»* A possibilidade de alarga
mento do «intervalo médio entre o momento em que o tra
balho é executado e o seu resultado final ou objectivo rea
lizado», não é tratada apenas como uma das funções do
capital; é considerada por Jevons como «a única utilização
do capital».** Esse alargamento (do qual fala como um
«aperfeiçoamento») aumenta a produtividade. Logo, o
235
capital tem duas dimensões: trabalho e tempo. Em pri
meiro lugar, podemos considerar a quantidade de trabalho
investida: por exemplo, o trabalho de um dia, em certa
data. Depois, o período de tempo durante o qual o traba
lho investido é «fechado à chave» ou adiantado: por
exemplo, durante um ano ou alguns anos, ou apenas du
rante um mês. O produto destas duas dimensões classifi-
ca-o ele como «a soma de investimento do capital», em con
traste com «a soma [de capital] investido». Assim, uma
libra pode ser investida durante cinco anos, ou cinco libras
podem ser investidas durante um ano; ambas são iguais
a cinco libras-ano em «quantidade de investimento».*
Explica isto através do famoso triângulo, em que o eixo
horizontal representa a duração, a linha vertical a
soma investida numa data dada, e a área total repre
senta a entidade bidimensional, a «quantidade de inves
timento» total durante todo o período. Se se investirem
£10 durante cada um de dez anos, a «quantidade
investida» no final desse período será £100, mas a «soma
do investimento» (total) será igual a £550 (número que
se aproxima de £500, ou metade da área total de í x o
trabalho investido durante o período, à medida que os
intervalos entre actos de investimento sucessivos se
encurtam e o investimento se torna virtualmente um
processo contínuo).
t
Diagrama jevoniano da quantidade de « investimento »
(ou «período de produção» )
ãt Ft
237
quem nos ocuparemos em breve, a sua influência aca
démica foi limitada e as suas ideias teóricas pouco de
terminantes enquanto viveu. A sua primeira formulação da
sua nova teoria, numa comunicação à Associação Britâ
nica em 1862, foi ignorada; e embora fosse nomeado para
uma cadeira no Colégio de Owen, em Manchester, no ano
de 1866, recusou-se a ensinar as suas próprias ideias du
rante os dez anos que aí permaneceu, preferindo transmitir
aos seus alunos os ensinamentos das doutrinas tradi
cionais de Mill. Keynes refere-se a ele como «um professor
hesitante e sem êxito».* Quando foi publicado, o seu livro
teve poucas críticas, que não foram entusiastas
(houve uma análise de Marshall, que já mencionámos,
e uma crítica hostil de Cairnes); e apenas quatro anos
após a nomeação (em 1876) para a cadeira do University
College, Londres, pediu a demissão por razões de saúde
e morreu afogado dois anos depois, quando tomava banho
na costa sul, apenas com 46 anos de idade. Schumpeter
observa que Jevons deixou poucos ou nenhum discípulo
pessoal: «na Inglaterra, nunca lhe prestaram o devido
preito... a sua originalidade nunca foi reconhecida como
deveria».** O comentário de Keynes sobre Jevons (compa-
rando-o com Marshall) é digno de nota. «A aptidão
de Jevons para expor as suas ideias, para as atirar para
o Mundo, grangeou-lhe a sua grande posição pessoal e a
sua incontestada capacidade para estimular outras mentes.
238
Cada uma das contribuições de Jevons para a Economia
foi como que um panfleto.»*
n i
239
era igual à perda total de produto resultante, menos o pro
duto resultante da utilização dos inputs ou factores
complementares em aplicações alternativas dos mesmos.
No segundo caso (proporções variáveis), este valor era
igual à diferença infligida ao produto pela retirada de urna
unidade do input ou factor, depois de o que restava deste e
outros factores ter sido novamente disposto e combinado
da melhor forma. Tal solução, conforme veremos bre
vemente, suscita diversas dúvidas, e pode até dizer-se
que envolve uma contradição.
Voltando aos «bens de primeira ordem»: Menger acen
tuou que a satisfação das necessidades é tanto mais possí
vel quanto maior for a quantidade disponível dum bem,
e que um consumidor maximiza a sua satisfação em
qualquer momento, distribuindo o seu rendimento de
modo a que a necessidade satisfeita na margem seja igual
em todas as direcções («as mais importantes de todas
estas necessidades concretas que não são satisfeitas têm
igual significado para todos os tipos de necessidades,
e, por conseguinte, a satisfação de todas as necessidades
concretas tem o mesmo nível de importância»). B bem
claro o sentido geral desta afirmação. Mas não está
enunciada de forma precisa, uma vez que não indica clara
mente qual a unidade em cujos termos as necessidades
satisfeitas (ou deixadas insatisfeitas) são medidas e
uniformizadas. Ê evidente que esta afirmação tem sentido
ou não, conforme se admite que a uniformização se realiza
em termos de unidades físicas de cada bem (alqueires
de trigo, metros de tecido ou garrafas de vinho) ou de
unidades de rendimento monetário gastas nestas diversas
mercadorias. A segunda interpretação equivale, portanto,
a falar, não de uniformizar a satisfação da necessidade, ou
utilidade marginal, de bens, mas de tornar a sua utilidade
marginal (em termos de uma unidade física de cada bem)
proporcional aos seus preços. A clareza relativamente a esta
interpretação não é apenas um preciosismo, é relevante
para a questão de saber se uma tal afirmação pode ser
ampliada ou condensada de forma a aplicar-se a um
grupo enquanto distinto de indivíduos tomados separada
mente. Se os rendimentos monetários forem desiguais (de
240
tal modo que as utilidades marginais desses rendimentos
monetários individuais sejam desiguais), qualquer tenta
tiva para ampliar a referida afirmação é meramente fala
ciosa — embora a falácia esteja longe de ser inédita.
Quando esta afirmação é ampliada a um grupo, para
além dos indivíduos, de novo observamos que só é inequí
voca se se tiver introduzido qualquer hipótese sobre a
repartição de rendimento.
Talvez seja bom explicar que uma característica do
modo de análise de Menger, e da sua escola em geral,
foi que, no referente a necessidades e a bens de «ordem
superior» utilizados como inputs na produção, se acentuou
o facto da complementaridade, e ainda o facto de se ter
de trabalhar com unidades finitas {Teílquantità) , não com
infinitésimos (o que está relacionado com a antipatia desta
escola pela «matematização» da teoria, à maneira de Je-
vons e Walras). O significado desta atitude revela-se no
modo especial como esta escola interpretou a noção de
«valor imputado» ou produtividade marginal.
Menger (que viveu até depois da primeira guerra
mundial) foi considerado o pai da Escola Austríaca,
visto que os representantes mais conhecidos desta escola,
Wieser e Bõhm-Bawerk, que haveriam de desenvolver
a sua teoria, em especial no que se refere à «imputação»
como uma teoria de repartição e a teoria do capital, foram
seus discípulos pessoais. Efectivamente, Menger teve mais
êxito que Jevons no que respeita a ser apreciado e
exercer influência enquanto vivo; embora se duvide
de que tal tivesse sucedido, especialmente tendo
em conta a oposição latente da poderosa Escola His
tórica Alemã (com a qual, já idoso, travou pro
longada polémica), sem a ajuda e a actividade literária
dos seus dois principais discípulos, que chamaram a aten
ção para as doutrinas de Menger com os seus próprios
trabalhos, durante a década que se seguiu. Mas antes de
nos ocuparmos das suas contribuições (em certos aspectos
mais interessantes que as do mestre), cabe dizer uma
veram os seus respectivos livros em 1871, mas que Jevons
nem Menger conheciam, ao que parece, quando escre-
palavra acerca desse precursor alemão que nem Jevons
16 241
reconheceu, conforme vimos, quando foi publicada a se
gunda edição do seu próprio livro. Já em 1854, Hermann
Heinrich Gossen publicara um livro com o título
«Desenvolvimento das Leis da Acção Humana e dos con
sequentes Princípios do Comércio Humano», no qual era
apresentada uma teoria semi-matemática do prazer e da
dor, com uma noção de saciabilidade de necessidades ou
utilidade decrescente (a sua «lei principal») e o princípio
de que a tentativa de maximizar o prazer acabará
necessariamente por tornar equivalentes os incrementos
finais de todas as satisfações (ou, mais correctamente,
conforme vimos, dos incrementos finais do rendimento
monetário gasto na aquisição de diversas satisfações).
Este princípio foi aplicado, por analogia, a bens utilizados
na produção (a que chamou «bens de terceira classe») e
ao trabalho; e como o trabalho envolvia uma noção de
desutilidade, o equilíbrio na produção implicava uma com
pensação da desutilidade do trabalho adicional contra a
satisfação adicional resultante do fruto desse trabalho.
O valor depende inteiramente da relação entre o objecto
e o sujeito.*
No entanto, Gossen tratou a utilidade enquanto porta
dora de uma relação linear com a quantidade, de modo que
as curvas de procura nos seus gráficos são sempre linhas
rectas. O que é notável, mas talvez não completamente sur
preendente, é o facto de a obra de Gossen ter permanecido
quase desconhecida e sem exercer influência, até ser
publicamente reconhecida por Jevons em 1879.
Foi Friedrich von Wieser quem se esforçou por desen
volver mais rigorosamente, como teoria geral, o Prin
cípio da Perda, de Menger (a palavra Zurechnung é,
de facto, sua), além de procurar desenvolver uma
teoria do valor de troca a partir duma teoria dos
preços (ou «valor natural»), elaborada no contexto duma
troca individual ou intercâmbio entre parceiros ou grupos
comerciantes; enquanto que E. von Bõhm-Bawerk é conhe-
242
eido pela sua teoria do capital e juro, em que segue
as linhas mestras de Jevons. Esta última teoria foi expres
samente concebida como réplica à teoria da mais-valia de
Marx. Na realidade, a crítica das doutrinas socialistas
foi preocupação predominante para a maioria dos repre
sentantes da Escola Austríaca (e também para Pareto,
de quem falaremos adiante); e a teoria da imputa
ção foi desenvolvida por Wieser como réplica à tese
socialista (deduzida, segundo o seu ponto de vista,
da Teoria do Valor do Trabalho) de que q rendimento pro
veniente da propriedade representava «exploração» de
trabalho. Ambos estes autores, juntamente com Pareto,
poderiam ser considerados apologistas conscientes do sis
tema vigente — e Schumpeter, de facto, apelidou Bõhm-
-Bawerk de «Marx burguês».*
As duas obras mais conhecidas de Wieser foram
publicadas na década de 1880: a primeira, Über den
Ursprung und ãie Hauptgesetz des wirtschaftlichen Wer-
thes («Origem e Lei dos Valores Económicos»), em 1884,
e a segunda, Der Natürlichen Wert (traduzido por
C. A. Malloch e publicada por William Smart em 1893,
com o título «Valor Natural») em 1889. O Princípio
da Perda de Menger, imputando ou deduzindo os valores
dos bens de produção dos valores dos bens de consumo,
é desenvolvido em função duma teoria de produtividade
marginal, ainda que numa versão especial sua — que,
«com uma pequena diferença, era a produtividade mar
ginal» de Schumpeter.** A teoria baseava-se na igualdade
do preço dum bem de produção (em condições de concor
rência) e daquilo que ele chamava a sua «contribuição
produtiva» (a que também chamou «contribuição margi
nal» ou «produto marginal»).
Já nos referimos ao facto de os austríacos utilizarem
unidades finitas e darem particular importância à com
plementaridade. Isto não foi acidental: resultou da rejei
ção de qualquer classificação geral de factores produ-
243
tivos, preferindo tomar cada tipo de ínput como um
bem do produtor independente, a avaliar pelo pro
cesso de imputação; e estes últimos bens tinham de
ser tratados em termos da unidade física própria de
cada um, o que podia implicar, especialmente no caso
de capital fixo, grandes unidades indivisíveis e elementos
de complementaridade significativos. Wieser começa por
demonstrar que o Princípio da Perda de Menger, quando
aplicado a esses casos de complementaridade, resultaria
em que os valores de todos os factores complementares
excedessem o valor da produção* (isto é, quando os
primeiros são avaliados do modo sugerido por Menger,
o valor igual ao produto total da «melhor» combinação
menos o produto dos outros factores da combinação
quando aplicados numa utilização alternativa, imedia
tamente abaixo da melhor). Quando Wieser ad
mite que as proporções podem geralmente variar e não
são de modo nenhum, fixas, tem também como ponto
assente que quaisquer variações (finitas) fora da com
binação, que permitam «a maior compensação possível»,
244
terão um efeito prejudicial sobre o produto; e, consequen
temente, apresenta uma solução destinada a ser o caso
mais seguro em que as proporções são absolutamente
fixas (uma consideração que o Professor Stigler parece
não ter em conta, na sua concisa rejeição da réplica de
W ieser). Este princípio alternativo de imputação proposto
por Wieser, exigia, no entanto, a pressuposição de que
estas proporções, embora existindo factores ou inputs
combinados em proporções fixas em cada utilização, são
diferentes entre diversas utilizações. Os preços dos inputs
resultam então das diferenças de coeficientes técnicos e de
preços de produtos no sistema considerado globalmente.
Isto foi exemplificado da seguinte forma, num caso
simplificado de três factores e três produtos. Designando
por x ,y ez, os valores unitários dos três factores ou inputs,
dois dos quais são utilizados em cada indústria, e escreven
do os valores dos produtos (que se presumem pré-deter-
minados no mercado de bens de consumo) do lado direito
de cada equação, o autor apresentou assim as três equa
ções dos três produtos:
x + y — 100,
2x + 3s = 290,
4?/ + 5z = 590.
245
cujos preços têm de ser determinados. Isto não seria
uma condição limitativa grave, se se estivesse a trabalhar
com factores de produção agrupados em poucas classes
ou poucos grupos principais, à maneira clássica. Mas
quando é necessário determinar separadamente os preços
de bens de produção fisicamente distintos — cada metal,
o combustível ou máquina-ferramenta ou o tipo de traba
lho ou de terra — esta limitação pode tornar-se muito mais
grave. Em segundo lugar, alguns críticos (por exemplo
Stigler) observaram que, visto que os preços dos produtos
são tomados como dados, isso implica que as procuras fi
nais são infinitamente elásticas, de modo que os preços
dos produtos não são alterados por ajustamentos de
output. Esta objecção não é tão insuperável como tal
vez pareça à primeira vista, desde que se possa pos
tular uma condição de equilíbrio (por exemplo, igual
dade de custos e receita) capaz de permitir um ajus
tamento mútuo dos preços dos produtos e output e dos
preços dos bens de produção no processo de procura do
equilíbrio. Wieser foi de facto responsável pela noção
que viria a ser conhecida como custo alternativo ou custo
de oportunidade — a possibilidade de utilização dum
input em qualquer uso afectada a sua disponibilidade, e,
portanto, o seu custo de obtenção para usos alternativos e
opostos — de forma que dificilmente pode ser acusado de
ter ignorado a repercussão dos preços dos bens de produ
ção no output, e, portanto, nos preços dos produtos.
Em terceiro lugar, existe uma dificuldade maior:
aquilo a que se pode chamar um dilema quanto
à hipótese a formular sobre as ofertas de factores,
ou seja— o que é que do lado da oferta se deve tomar
como dado?* Voltamos assim a uma questão difícil e
246
importante, à qual já aludimos de maneira preliminar
na primeira parte deste capítulo: trata-se duma dificul
dade que qualquer teoria de determinação da procura
que trabalhe com bens de capital ou inputs separa
dos deve enfrentar. Se se admitir a hipótese de que a
oferta de vários bens de produção individuais é um dado
constante, estamos diante daquilo a que, em termos mar-
shallianos, podemos chamar uma teoria de curto prazo
(ou quase curto-prazo). O valor de um bem de produção
duradouro, por exemplo uma peça de máquina, é dedu
zido como uma «quase-renda», e será diferente para dife
rentes tipos de capital fixo. Como já observámos, não
aparecerá nenhuma taxa de lucro uniforme nas diversas
componentes do capital fixo. Se, pelo contrário, admi
tirmos como hipótese a existência duma constância re
lativa apenas a um agrupamento mais amplo de factores
(por exemplo, o capital), no interior do qual as ofertas
relativas de bens particulares têm a possibilidade de
variar, sujeitas unicamente à constância quantitativa do
género no seu conjunto, entramos então no problema, agora
conhecido, de como atribuir ao capital um significado
quantitativo independente — uma dificuldade que volta
remos a encontrar (numa perspectiva um pouco diferente)
para o caso de Walras, e examinaremos de forma mais
pormenorizada em relação a discussões e críticas que
têm surgido recentemente.
Talvez convenha notar, a propósito, que se se tra
balhar com incrementos infinitesimais e uma variação con
tínua, como veio mais tarde a tornar-se habitual, a solução
de Wieser e o Princípio da Perda de Menger podem
considerar-se coincidentes, mesmo no caso das proporções
fixas. Há, no entanto, uma certa perda de realismo quando
assim se procede, visto que todos os problemas relaciona
dos com indivisibilidades* estão ipso facto excluídos. Em
247
termos de variação contínua a posição pode resumir-se
como segue. No caso das proporções fixas, o valor de um
factor é determinado pela sua utilidade em usos alternati
vos. No caso das proporções variáveis (isto é, variáveis
em cada indústria), as quantidades dos diferentes factores
ou inputs que podem ser substituídas umas pelas outras, a
fim de se obter a mesma quantidade adicional do produto,
devem ser de igual valor (isto é, os seus preços = ao coe
ficiente dos seus produtos marginais).
Para preencher a lacuna existente na «imputação» de
Menger-Wieser, no que respeita à teoria dos lucros, foi ela
borada a conhecida teoria do juro do capital, que constituiu
a contribuição especial de Eugen von Bõhm-Bawerk para o
trabalho da Escola Austríaca. Esta teoria seguiu as linhas
mestras de Jevons, e, formulada e apresentada com pro
fundidade teutónica, concentrou-se na noção de um período
de produção como a essência quantitativa do «capital»
como factor produtivo. A sua obra em dois volu
mes, Kapital und Kapitalzins, foi igualmente publicada
na década de 1880; o seu primeiro e histórico volume,
Geschichte und Kritik em 1884, e o segundo, Positive
Theorie, em 1889.* A sua intenção de rever sistemati
camente esta obra, à luz da discussão e críticas que susci
tou, foi impedida por quinze anos de ocupações par
lamentares, durante os quais ocupou por três vezes o cargo
de ministro das Finanças; só em 1905 voltou aos trabalhos
académicos como professor em Viena (nesse intervalo foi
apenas professor honorário, tendo dirigido somente um
ou outro seminário). Esta revisão da sua obra e a sua
réplica às críticas a que deu origem ainda não estava ter
minada quando da sua morte, dez anos mais tarde, em 1914.
A sua conhecida (e que, durante muitos anos, conservou
grande influência) crítica de Karl Marx foi escrita du
rante o seu período de trabalho parlamentar, em 1896.**
248
Dissemos que a sua teoria do capital, que iria cons
tituir a teoria austríaca do capital tal como a conhecemos,
teve importantes afinidades com a de Jevons. Ao conside
rar o conceito de um período de produção como essência
do capital, estava a acentuar a potencialmente elevada
produtividade do trabalho quando associada a proces
sos de produção «mais demorados» ou «mais indirec
tos»; resultando a taxa de juro da produtividade adicio
nal devida ao prolongamento deste período de tempo.
«O facto de os métodos indirectos conduzir,em a resultados
mais consideráveis que os directos, é uma das teses mais
importantes e fundamentais de toda a teoria da produ
ção». Uma das afinidades entre a sua Teoria e a de Jevons
foi ainda o considerar o capital como essencialmente cons
tituído por adiantamentos de subsistência aos trabalha
dores: isto é, como basicamente redutível a um fundo
de subsistência. O aumento da produtividade com prolon
gamento do período de produção seria, em geral, proporcio
nalmente decrescente em relação ao prolongamento: por ou
tras palavras, a produtividade marginal do prolongamento
tenderia a diminuir. Para uma quantidade de trabalho dada,
qualquer aumento de capital provoca necessariamente o
prolongamento deste período (um período maior, ceteris
paribus, exigindo mais capital em virtude do aumento
da dimensão temporal). Daqui resultava, segundo um
conhecido raciocínio, que para uma taxa de salários e
uma oferta de capital dadas, era possível, em média,
uma certa duração do período de produção; e a concor
rência asseguraria (concorrência, entenda-se, de empre
sários em busca de capital que permitisse prolongar o pe
ríodo) a igualdade entre a taxa de juro e a proporção entre
o produto adicional obtido graças ao prolongamento do
período e o capital adicional necessário para tal (a «quan
tidade de investimento de capital» de Jevons). Isto pode
igualmente exprimir-se do seguinte modo: dada a oferta
de trabalhadores concorrentes no mercado de em
prego (trocando o seu trabalho pela subsistência)
e também a oferta de capital em busca de investimento,
o nível de salários, a extensão do período de produção
e a taxa de juro, eram determinados mútua e simulta
249
neamente. «Numa comunidade, o juro será tão elevado
quanto o fundo nacional de subsistência for baixo,
quanto o número de trabalhadores empregados por este
fundo for grande, e quanto as receitas excedentes asso
ciadas a qualquer outra ampliação da produção conti
nuarem a ser elevadas.»*'
Mas o que é que determina a quantidade de capital
em busca de investimento? Se não houvesse qualquer
restrição a este, não haveria limite superior para o período
de produção nem limite inferior para a taxa de juro,
que tenderia a baixar até zero. É neste ponto que
Bõhm-Bawerk insere a sua teoria do capital no esquema
da Teoria Subjectiva do Valor, formulando a sua famosa
«subavaliação subjectiva de bens futuros em comparação
com bens actuais». Desta noção derivam todas as expli
cações subsequentes do juro em termos de «preferência
de tempo» ou «desconto de tempo» (por exemplo, a de
Irving Fisher). Pode dizer-se que foi isto que proporcionou
à escola austríaca as suas hipóteses sobre a oferta, no que
se refere à oferta de «poupanças», e, portanto, à oferta de
capital em busca de investimento num dado momento.
Para esta «subavaliação subjectiva de bens futuros»,
o autor apresenta «três fundamentos», que têm sido
objecto de muita (e por vezes maçadora) discussão — dis
cussão em que, desculpar-nos-ão, não entramos.
O primeiro fundamento foi apresentado da seguinte
maneira: «O primeiro grande motivo de diferença na ava
liação de bens presentes e futuros está nas diferentes
circunstâncias de necessidade e abundância no presente
e no futuro.» Por outras palavras, o futuro tem a proba
bilidade de ser mais abundante que o presente e de pro
porcionar um maior rendimento real; de qualquer modo
isto é aplicável à comunidade em geral, ainda que indi
vidualmente as esperanças comparadas do presente e do
futuro possam variar (pois alguns indivíduos esperarão
250
diminuições de rendimento, enquanto outros prevêem um
aumento).
Em segundo lugar, «a bens que se destinam a satis
fazer as necessidades do futuro atribuímos um valor
que é realmente menor que a verdadeira importância da
sua futura utilidade marginal», em virtude duma imagi
nação imperfeita que subestima as necessidades futuras,
ou da falta de força de vontade para resistir à atracção
de necessidades presentes, insuficiência que é reforçada
pela curta duração da vida humana. Evidentemente que
se trata aqui duma diferença irracional de avaliação ao
longo do tempo, e houve quem negasse este modo de ver.*
Em terceiro lugar, atribui-se uma «superioridade téc
nica dos bens presentes sobre os bens futuros»,
visto que os primeiros estão disponíveis para serem
investidos em métodos indirectos de produção mais pro
dutivos. Argumentou-se convincentemente que esta razão
não é de facto independente das do primeiro fun
damento, constituindo a base real da esperança num
rendimento futuro mais elevado, da qual depende esta
primeira razão para subavaliar o rendimento futuro em
relação com o rendimento presente.**
Resumindo, Bõhm-Bawerk explica: «Tento demons
trar que os factos técnicos de produção que descrevo como
a maior produtividade dos métodos de produção de dispên
dio de tempo, proporcionam um fundamento parcial para
avaliar como superiores os bens presentes, cuja posse per
mite a utilização desses métodos de dispêndio de tempo
mais produtivo. Deste ponto de vista, os factos técnicos e
251
psicológicos coordenam-se desde o início.»* E, reunindo os
diversos elementos da sua teoria, conclui: «A relação entre
necessidade e satisfação no presente e no futuro, a subava-
liação de prazeres e dores futuras, e a vantagem técnica
apresentada pelos bens presentes, têm como consequência
que, para a imensa maioria dos homens, o valor de uso sub
jectivo dos bens presentes é maior que o de bens análogos
futuros.» Esta relação de avaliação subjectiva reflecte-se
posteriormente no mercado como «maior valor de troca
objectivo e preço de mercado mais elevado dos bens
presentes».**
Durante as três décadas que se seguiram, poucas
questões dividiram os teóricos da Economia mais niti
damente que esta forma de considerar o capital e
determinar a taxa de juro. Esta teoria teve grandes
admiradores e críticos violentos. Entre os primeiros pode
contar-se Knut Wicksell, embora tivesse também formu
lado algumas críticas a seu respeito: com as suas próprias
modificações e aditamentos, aceitou sem dúvida a noção de
período de produção e afirmou que «nesta teoria propor
ciona-se, pela primeira vez, um substituto real da obsoleta
teoria do fundo de salários».*** Über Wert, Kapitál und
Rente, publicado em 1893, foi a sua própria formulação
e defesa da doutrina austríaca.
Entre as críticas, talvez a mais corrente tenha sido a
de negar que a noção de um período de produção correspon
da a qualquer coisa de real no papel do capital na produção
(caso que corresponderia a considerar a clássica noção de
capital como «adiantamentos para o trabalho», embora in
terpretada, sem relevância para o problema). Afirmou-se,
por exemplo, que em equilíbrio estático, não havendo
investimento, a produção e o consumo são sempre simul
tâneos. Com uma quantidade constante de bens de capital
252
(com composição de idade constante), uma certa frac
ção desta quantidade é substituída em cada ano por traba
lho correntemente aplicado; e pode entender-se o output
corrente como produzido pelo trabalho correntemente
aplicado para produzir estes bens de capital de substitui
ção, sem recorrer a uma noção de trabalho aplicado em
datas anteriores para produzir originariamente os diversos
artigos do stock existente de bens de capital em serviço.
Isto afigura-se uma afirmação válida, quando se está
dentro do contexto de equilíbrio estático. O que esta
afirmação passa em claro, enquanto crítica duma teoria
da formação de capital, é que, logo que se introduz investi
mento líquido no esquema e há modificações na existência
de capital, não pode deixar de ser considerada a ideia
de que o aumento da existência leva necessariamente
tempo-, e esta consideração é imediatamente relevante
quando se pergunta porquê o capital existente é o que
é e não pode ser tão grande em relação ao trabalho
e aos factores naturais que chegue ao ponto de atingir
a «saturação de capital» e reduzir a produtividade mar
ginal do capital a zero.* Não surge assim de novo algo
pelo menos idêntico à noção de um período de produção,
e não parece que a noção de adições ao output final, produ
zidas apenas pelo trabalho corrente, já não é suficiente?
Mais grave, e aparentemente também mais funda
mental, é a crítica de que ao «período de produção»
se não pode atribuir um significado quantitativo claro.
Nesse caso, não se pode igualmente atribuir significado
à sua constância (por exemplo, ao calcular a pro
dutividade marginal de factores que não o capital),
ou ao facto de um período ser maior que outro, e, por
tanto, não se pode atribuir um significado inequívoco a um
aumento no período, e, por conseguinte, na quantidade
de capital. Quando alguns críticos afirmaram que a noção
253
implicava inevitavelmente um retrocesso infinito, Bõhm-
-Bawerk replicou (e justificadamente) que a partir de
certo ponto os inputs de trabalho relevantes se tornam tão
pequenos que são negligenciáveis, mesmo quando multi
plicadas pelo tempo decorrido; e contentou-se com medir
(e comparar) o seu período «médio» como a média arit
mética simples dos inputs de trabalho de várias da-
datas multiplicados pelo tempo decorrido.* Mas a verda
deira dificuldade é mais profunda. Não podemos ficar
por uma média aritmética simples, visto isso não
ser compatível (quando traduzido em termos de valor)
com diferentes investimentos que obtêm a mesma taxa
de lucro (a qual é exigida pelo equilíbrio da concorrência,
com mobilidade de capital a longo prazo). No entanto,
logo que se aplica o juro composto, na ponderação dos
inputs de trabalho de diversas datas, torna-se evidente
que um período de produção com um certo esquema de
tempo de inputs de trabalho pode apresentar-se
«maior» que outro (com um esquema de tempo dife
rente) com uma certa taxa de juro, e «menor» com outra
taxa. Por outras palavras, à medida que a taxa de juro
se modifica, diferentes esquemas de tempo de inputs
de trabalho podem mudar de lugar relativamente à ordem
com que se apresentam no escalonamento dos «períodos de
produção» segundo as suas respectivas «extensões».** Vol
taremos a este problema, com implicações mais amplas, no
contexto da discussão e crítica da chamada doutrina
«neoclássica» das décadas recentes.
Finalmente, temos a terceira corrente de inovação
associada com Léon Walras e com aquilo a que por vezes
254
se chama Escola de Lausana (outras vezes Escola Matemá
tica, para a distinguir dos Austríacos). Walras, que foi
mencionado por Marshall apenas três vezes nos seus Prin
cípios, e ainda assim só de passagem, é considerado por
Schumpeter como «o maior de todos os economistas», por
que «o seu sistema de equilíbrio económico, reunindo a
qualidade de criatividade ‘revolucionária’ com a qualidade
de síntese clássica, é o único trabalho dum economista que
se pode comparar às realizações dos físicos teóricos».*
E no entanto, «os economistas seus contemporâneos foram
na maioria indiferentes ou hostis».** A síntese dos vá
rios aspectos da nova abordagem de um sistema mate
mático de dependência mútua é seguramente a sua mais
importante contribuição — mais do que novidade de ênfase
ou de exposição. Mas apesar da sua preocupação com o
formalismo matemático, vimos que reconhecia que a inter
pretação económica e as implicações causais do seu sistema
eram análogas, quanto ao essencial, às de Jevons ou Men-
ger:*** particularmente a dedução dos preços dos produtos
a partir das necessidades do consumidor e do valor dos ser-
255
viços dos bens de capital e factores a partir da sua utiliza
ção produtiva na criação de bens de consumo. Conforme
Walras disse, em Éléments d'Economie Politique, de
1874: «Em última análise, as curvas de utilidade e as
quantidades possuídas constituem os dados necessários
e suficientes para a formação de preços correntes ou de
equilíbrio.» «O valor provém da escassez». E opõe este
ponto de vista aos de Smith e Ricardo: «a teoria que pro
cura a origem do valor no trabalho é uma teoria des
tituída de significado, e não apenas demasiado restrita,
é uma afirmação mais gratuita que inaceitável».* E ainda:
«Os preços de equilíbrio são iguais aos coeficientes
das raretés», definidos como «as intensidades das
últimas necessidades satisfeitas pelos possuidores dos
bens».** O princípio de que os preços em equilíbrio final
devem igualar o custo de produção, juntamente com o prin
cípio da produtividade marginal, permite uma determi
nação simultânea de preços de produtos e preços dos servi
ços produtivos (isto é, de bens ou factores de produção).
Nesta determinação entram os «coeficientes técnicos»
walrasianos que definem os inputs necessários para
produzir uma unidade de quantidade dum produto dado,
que inicialmente considerou, por uma questão de sim
plicidade, como coeficientes fixos, demonstrando por
este meio que a sua solução de equilíbrio geral era
possível mediante esta hipótese. Mas ulteriormente (na
sua terceira edição de 1896), ampliou a solução ao
caso dos coeficientes variáveis, tratando os coeficien
tes escolhidos como funções dos preços dos serviços pro
dutivos, baseado na hipótese de se escolher o método
256
do menor custo de produção, em qualquer conjunto dado
de preços de serviços produtivos.
No entanto, tal como sucedeu com Menger e Wieser,
o sistema walrasiano deparou com o problema da defi
nição de «dado» no lado da oferta. Admitiu-se como parte
dos dados da situação histórica que, em condições de equi-
cos jlíbrio estático, estavam presentes em certas quantida
des bens de capital específicos; os serviços produtivos cor
respondentes a estes bens de capital eram avaliados da
forma usual, conjuntamente com os coeficientes téc
nicos e os preços dos produtos. Os bens duradouros de
capital valorizavam-se pelo processo de capitalização
da avaliação de mercado dos seus serviços produtivos
respectivos por unidade-período. Mas daqui não podia
resultar nenhuma teoria do lucro: os referidos serviços
produtivos eram determinados como quase-rendas mar-
shallianas, e não havia razão para a avaliação de certos
bens duradouros implicar qualquer relação estreita com
o seu custo de reprodução. Para vencer esta dificuldade,
Walras, num contexto menos estático, recorreu a um
mercado de poupanças, que as dirigia para um inves
timento em novos bens de capital de avaliação rela
tivamente alta em comparação com o seu custo. Desta
forma, havendo uma modificação das quantidades e
(portanto das raretés) de diversos bens de capital,
gerava-se uma tendência para uma taxa de remuneração
uniforme (por intermédio do valor dos seus serviços
produtivos proporcionalmente ao seu próprio valor e
custo) .* Devido ao modo como este problema foi discutido
na década de 1930, chamou-se a isto uma teoria de «fundo
de empréstimo».** Mas visto que a taxa de lucro tinha
sido antes de mais considerada de modo a conferir
significado ao valor e custo dos bens de capital, este modo
de raciocinar pareceu merecer contestação quanto a poder
estabelecer, não apenas uma tendência para a uniformidade
de taxas de remuneração, mas ainda um nível único
17 257
determinado desta taxa de remuneração do capital, num
equilíbrio a longo prazo.* Efectivamente, enquanto
base para uma teoria do lucro, este recurso a um mercado
de «poupança» torna-se tanto mais curioso e contestável
quanto mais o analisarmos.
Poderiam apresentar-se mais críticas a este modo de
conceber o problema em questão, expostas em termos aná
logos. Se a situação for tratada em termos de bens de capi
tal concretos (pondo de parte o género de «capital» como
factor supostamente escasso), no caso de estes bens serem
reprodutíveis, não deve justificar-se a existência de qual
quer taxa de lucro positiva em condições rigorosamente
estáticas,** Se todos os inputs além do trabalho forem
inputs produzidos, como surge a «escassez» específica
* Cf.
P. Garegnani, II Capitale nelle Teorie delia Distríbuzione
(Milão, 1960), pp 112-21. Wieksell considerou a teoria de Walras,
neste ponto, «seguramente incorrecta» e baseada «em hipóteses
incorrectas», «não podendo portanto ser considerada definitiva»
(porque lhe falta o conceito de Jevons-Ephm-Bawerk, de um período
de produção e da produtividade marginal que resulta do prolongamen
to deste período) ( Value, Capital and Rent (Londres, 1954), p. 167).
Mais adiante salientou que «é fútil pretender —como Walras e os seus
adeptos — deduzir o valor dos bens de capital dos seus próprios
custos de produção ou reprodução; porque, de facto, estes custos
de produção incluem capital e juro... Portanto, estaríamos condena
dos a andar em circulo» ( Lectures on Political Economy, trad.
E. Classen (Londres, 1934) Vol. I, p. 149). No mesmo contexto, cha
mou a atenção para a consideração fundamental (embora sem
desenvolver as suas implicações, salvo no que respeita a uma
anomalia pouco importante) de que, «embora o trabalho e a terra
sejam avaliados nos termos da sua própria unidade técnica...
o capi
tal, pelo contrário... é considerado, em linguagem comum, uma
quantia de valor de troca.Por outras palavras, cada bem de capital
em particular é avaliado por uma unidade alheia a si próprio»
( ibid
p. 149).
** A este respeito, cf.
a apreciação de Keynes: «Estou certo
de que a procura de capital é estritamente limitada, no sentido
de que não seria difícil aumentar o stock
de capital até um
ponto em que... a remuneração conjunta de bens duradouros
durante o seu período de existência... apenas cubra os seus custos
de trabalho de produção mais
um prémio de risco e os custos
de especialização e supervisão» (General Theory
(Londres, 1936),
p. 375).
258
que se supõe ser a origem do lucro? Se se admitir de ma
neira coerente hipóteses de equilíbrio completamente está
tico, a produção no sector de bens de capital da economia
tenderá a ampliar-se, até o output destes bens es
tar por si próprio adaptado à necessidade dos mesmos;
necessidade esta que consiste na substituição corrente
do stock de máquinas, etc., existente (equilíbrio), em
indústrias que produzem para o consumidor (numa escala
determinada pela procura final) e no próprio sector de
bens de capital. Com a completa adaptação da oferta
destes bens à procura dos mesmos para fins de subs
tituição corrente, já não existirá qualquer razão para
os seus preços permanecerem acima do custo original da
sua própria substituição corrente (ou depreciação).* De
qualquer forma, será esta a situação de equilíbrio estático
com coeficientes fixos: isto é, com uma só técnica dispo
nível em cada indústria.
Mas não deixará de ser assim se se puser de parte
a hipótese de coeficientes fixos? Cada indústria estará
então perante um conjunto completo de técnicas alter
nativas (o «-espectro» da Prof. Joan Robinson); e à
medida que o lucro (ou juro) descer, mais equipamento
de capital intensivo, cada vez mais caro, se tornará
economicamente viável. Perante estas (possivelmente infi
nitas) possibilidades de «aprofundamento», não reapare
cerá a «escassez» de bens de capital, viste que os recursos
produtivos existentes vão estabelecer um limite à pos
sibilidade de ampliar mais o «aprofundamento» do pro
cesso, e, portanto, à medida em que se poderá recorrer
aos tipos de equipamento capital-intensivos mais atraen
tes, embora caros? Deste modo, aparecerá uma
259
taxa de lucro positiva que reflecte esta escassez num
dado momento. Mas aquilo que se nos oferece agora
não é já um estado estacionário com investimento lí
quido nulo: no decorrer do processo de «aprofundamento»,
haveria uma situação de progressiva alteração caracteri
zada por investimento e crescimento positivos. O seu
resultado a longo prazo, no entanto, voltará a ser um
equilíbrio estacionário com lucro nulo, mesmo que o pe
ríodo seja excepcionalmente longo. Não havendo progresso
técnico, o processo de «aprofundamento» acabará por
ser completo.
Uma saída possível será (que classificaríamos talvez
de neo-walrasiana) o recurso a algum ou todos os «três
fundamentos» de Bõhm-Bawerk e colocar o desejo de au
mentar stocks de bens de capital na dependência da dimi
nuição subjectiva de bens futuros relativamente aos bens
presentes. Esta redução de tempo subjectivo constituiria a
base de uma taxa de remuneração positiva que os diver
sos bens de capital deveriam necessariamente obter para
serem produzidos inicialmente, ou mantidos em uso em
certas quantidades, e, portanto, a base de uma taxa
de equilíbrio positiva (e uniforme) do juro. Sem dúvida,
quase não seria preciso acrescentar que tal explicação sub
jectiva, embora evitasse as dificuldades associadas à
noção de capital como factor de produção,* partilharia
do defeito inerente a qualquer teoria partindo das pre
ferências ou reacções de comportamento dos indiví
duos: designadamente, abstraindo de todas as influências
sociais sobre os desejos e comportamentos individuais,
e ignorando a natureza de distribuição relativa de qual
quer conjunto dessas preferências ou acções individuais.
Convém lembrar, por outro lado, que em sistemas de
260
equilíbrio deste tipo, pode surgir um conjunto de identi
dades com valor pouco ou nada explicativo.*
Seja qual for a lógica dos estados estacionários, a
maioria dos economistas tem razões para não apreciar
tentativas deste género, e recusar a consideração de qual
quer conceito mais abstracto que um equilíbrio de longo
prazo marshalliano, com investimento líquido positivo e
«crescimento lento». Com um «equilíbrio em movimento»
deste tipo, a «escassez» walrasiana, aplicada a bens de
capital em geral, pode parecer relevante — caso contrá
rio a acumulação prolongada de capital não teria sen
tido. Mas no que se refere à explicação do lucro em termos
de «escassez» walrasiana, passamos a estar agora na outra
face do dilema. Uma imputação do tipo de Menger é pelo
menos plausível, na medida em que a produção reveste a
forma de um processo em linha recta de inputs dados que
são transformados em outputs finais. Mas assim que
introduzimos crescimento e investimento líquido pro
longados, uma parte significativa do processo produtivo
deve ter, em vez disso, a forma de um arco de círculo,
com outputs que são novamente aplicados como
inputs novos,** antes de terem podido apresentar-se
como bens de consumo finais. Ê difícil compreen
der como e porque, nestas circunstâncias, a dis
tribuição de rendimento deveria ser determinada pelo
modelo de procura dos consumidores, e não por caracterís
ticas do processo de crescimento (e do modelo de pro
dução adequado a este). Segundo um modelo teórico
de crescimento de von Neumann, agora conhecido, sendo
o salário real constante (dado), o crescimento é maxi
mizado quando os preços atingem o nível em que a taxa
261
de lucro é igual à taxa de crescimento.* A taxa de lucro
é aqui independente tanto do esquema de consumo final,**
como do stock de capital existente ; e sendo independente
de ambos, é evidente que qualquer tipo de explicação
em termos de proporções de factores ou escassez relativa
de factores, deixa de ter relevância.***
O sucessor de Walras na Universidade de Lausana,
Vilfredo Pareto, desenvolveu a teoria da procura do
consumidor em termos de «curvas de indiferença» de
Edgeworth, apresentando as curvas de procura como
deduzidas destas. Ao mesmo tempo, resumiu o problema
do equilíbrio geral numa frase muito citada, em que
este resulta do conflito entre os desejos e os obstáculos
à sua satisfação (ou seja, obstáculos que surgem em vir
tude de certas circunstâncias de produção e da limitação das
2 6 2
ofertas de factores).* Reuniu este trabalho em duas obras
principais, o Cours ã’Economie Politique de 1896 e o
Manuel de 1909. É geralmente considerado como o primeiro
que explicitamente separou a teoria da procura das suas
raízes no hedonismo e no utilitarismo: definindo Utilidade
(ou Ofelimidade, como preferia chamar-lhe) apenas como
«Desejabilidade» — a qualidade de ser desejado por um
consumidor, independentemente da aptidão para propor
cionar satisfação real e contribuir para o bem-estar do con
sumidor. Neste sentido, tratou-a como uma grandeza pura
mente ordinal, e, além disso, como algo que não era
comparável entre indivíduos, e que, portanto, não pode
ser adicionado com vista a formar um total para um
grupo ou para a sociedade. Além disto e do mérito
do maior realismo de admitir coeficientes fixos ao tra
tar dos problemas de produção e da determinação
dos preços de factores («os coeficientes são parcialmente
constantes ou quase constantes e parcialmente variá
veis»),** e de algumas incursões em problemas aplicados,
pouco mais fez do que traduzir o sistema de Walras para
uma forma mais acessível. Mais tarde, transferiu o seu
interesse para a Sociologia, sobre a qual escreveu um
tratado.
O contraste e oposição entre a «interdependência»
matemática do sistema walrasiano e aquilo que tem sido
classificado como a «genética causal» dos austríacos (ou
seja, a maior importância atribuída por estes a relações
directas de causa a efeito) foi especialmente posta em
263
destaque por Pareto; há nisto uma certa analogia com a
atitude de Marshall em relação a Jevons (embora de
modo geral Marshall evitasse métodos matemáticos
e fosse a favor dum método de estudo de «equi
líbrio parcial«). Neste aspecto, Pareto conseguiu ser plus
royáliste que le Roi, e foi ao ponto de reprovar certas
afirmações do seu predecessor, que, no seu entender,
estavam excessivamente impregnadas do modo de ver
«causal».* Nesta ênfase exclusiva da dependência mú
tua, parece ter sido tão parcial como foram Jevons ou
os austríacos em sentido contrário, quando descreveram
situações ou processos segundo sequências causais unidirec-
cionais demasiadamente simples. Não há dúvida que, em
certa medida, este contraste pode ser explicado pela preo
cupação com diferentes níveis de abstracção. Mas talvez
o que expusemos no nosso primeiro capítulo seja suficiente
para sugerir que a dicotomia é irreal, pelo menos no que
se refere à matéria económica, e que, desde que a um
sistema como o walrasiano se dá uma interpretação
económica — e a fortiori uma aplicação económica — surge
necessariamente uma determinação de alguns factores por
outros. Na realidade, parece ter sido assim que o próprio
mestre viu a questão; e numa interpretação dessas, desa
parece seguramente qualquer diferença substancial entre
o seu modo de abordar o problema e o dos austríacos ou
o de Jevons.
264
8. RECOMEÇO DO DEBATE
265
nantes do nível de output numa perspectiva macros
cópica, para o estudo das causas da modificação do nível
de output.
A estas duas correntes, alguns certamente deseja
riam acrescentar mais duas, que se lhes afiguram igual
mente merecedoras de referência. Em primeiro lugar, a
nova teoria da «concorrência imperfeita» e «concorrência
monopolista» (associada especialmente aos nomes de
Joan Robinson e Edward Chamberlin)* merece ser con
siderada como um marco notável no âmbito das décadas
de entre as duas guerras, E foi sem dúvida um marco,
pelo interesse que despertou entre os economistas aca
démicos, na época, e pelo tempo e atenção que lhe foram
dedicados.** A sua história foi-nos transmitida de
forma muito completa pelo Professor Shackle,*** e de
nada serviria repetir aqui o seu admirável relato. No
entanto, pode dizer-se desta corrente que, embora im-
266
portante em si, pouco influenciou o corpus geral da
teoria económica como esquema analítico e conceptual.
Num aspecto, designadamente quanto às implicações
políticas da teoria, foi completamente devastadora:
vibrou um golpe fatal na doutrina do laissez-fmre,
na medida em que esta assentava na natureza «opti
mizante» dum regime de preços de concorrência — o que
levou muitos a oporem-se firmemente à conclusão de
que os preços resultantes dum mercado «imperfeito»
divergiriam significativamente dos preçog num mercado
de concorrência perfeita.* Uma das conclusões mais
inquietantes entre as que surgiram (em virtude do tra
tamento dado por Chamberlin às despesas de venda,
com as quais se relacionavam o nível e a elasticidade
da procura) foi talvez a afirmação de que se admitirmos
que a publicidade e a técnica de vendas têm influência
no mercado, pouco se pode concluir em definitivo acerda da
determinação de preços, e menos ainda sobre os «preços
normais», visto que a procura se tornou em grande me
dida o domínio do «publicitário» e dos chamados «con
selheiros ocultos». Começou-se por considerar a concor
rência imperfeita como uma teoria de formação de pre
ços a nível microscópico de certas indústrias e certos
mercados de produtos. Deu-se pouca atenção** ao seu
significado à escala macroscópica. Quanto ao seu signi
ficado para a teoria da repartição, coube a Kalecki desen
volver este ponto como contribuição distintiva; assunto
a que voltaremos quando nos ocuparmos deste autor,
noutro contexto.
Em segundo lugar, travou-se uma grande discussão (a
julgar, por exemplo, pelo espaço ocupado em jornais) em
torno do desenvolvimento daquilo que veio a ser chamado
«economia do bem-estar» (e até «a nova economia do
267
bem-estar»),* como aplicação especial, senão mesmo
um ramo especial, da análise económica. Esta discussão
foi estimulada por uma tendência neo-paretiana para
negar a possibilidade de comparações interpessoais de
estados mentais, e portanto da utilidade do bem-estar,
e para eliminar da economia normativa as considerações
respeitantes à repartição do rendimento. Este novo ramo
de aplicações normativas (ou «optimizantes»), tem para
a economia, na sua relação co ma formulação de políticas,
pelo menos uma importância potencial, que faz com que
mereça alguma atenção.
Os economistas que atribuem um valor especial (como
Schumpeter) ao aperfeiçoamento de técnicas formais de
análise, desejariam certamente acentuar ainda a cres
cente voga da economia matemática e da econo
metria a partir da segunda guerra mundial. Esta
voga foi em parte estimulada pelo trabalho de pioneiro
de Leontief, ao analisar as entradas-saídas; mas também
pode ser considerado um regresso e ampliação da tradição
de pioneiros como Cournot, Jevons, os pouco (ou menos)
conhecidos Auspitz e Lieben e Dmitriev, e, sobretudo,
de Walras. Talvez esta corrente tivesse surgido mais
cedo se não fosse a influência marshalliana (nos paí
ses de língua inglesa pelo menos) que diminuía o valor
da formulação matemática, considerando-a inadequada,
de um modo geral, para os problemas estudados em eco
nomia. Até hoje, as opiniões têm divergido muito sobre
até que ponto isso é apenas um refinamento formal
ou em que medida é uma contribuição substancial para
o conhecimento económico — ou, na frase de Wicksteed,
um «reagente que precipita as hipóteses mantidas em
solução na verbosidade das nossas comuns investigações».* *
Finalmente (e cronologicamente mais recente), tem
surgido com crescente vigor uma crítica da teoria econó-
269
à «demorada luta do autor para se libertar — uma luta
para se libertar dos modos de pensamento e expressão
habituais», isto é, fugir às velhas ideias «que se ramificam,
para aqueles que tiverem uma formação como a maioria
de nós. em todos os recantos das nossas mentes»).
As ideias implícitas nesta grande modificação foram
reconhecidamente muito simples, embora tivessem tido
uma espécie de efeito de choque nas mentes formadas
nos hábitos de pensamento tradicionais. Nada fizeram
para desafiar ou perturbar a teoria (pós-jevoniana) do
valor e repartição existente e pode dizer-se que evoluíram
no interior desta como esquema geral. Só desafiaram
a doutrina tradicional num ponto fundamental: a hi
pótese de uma única posição de equilíbrio estático, com
pleno emprego de todos os recursos produtivos dispo
níveis como condição necessária.* Embora na prática
diversas fricções possam impedir que seja atingido esse
equilíbrio num determinado momento, sopunha-se que o
sistema tinha uma tendência inerente para ele; como
o corolário implícito de que a política devia ser
orientada para modificar ou afastar as fricções,
mais do que para qualquer outro tipo de inter
venção. A justificação para esta hipótese era que em
qualquer outra situação, que não aquela, os preços relati
vos do sistema (incluindo os preços de factores) tenderiam
a modificar-se, e essa modificação, fosse grande ou pe
quena, bastaria para desviar o output e o emprego em
direcção ao equilíbrio:** daqui o corolário de que a existên
cia de indícios de desemprego permanente seria a prova de
que os salários eram demasiado altos (um corolário da
270
teoria de Pigou que Keynes atacou particularmente).
Contra este ponto de vista, a nova teoria afirmou a
possibilidade de se atingir o equilíbrio em qualquer nível
de output e emprego (isto é, emprego de trabalho e de
equipamento produtivo); sem qualquer tendência necessá
ria dos preços relativos para variar em tal situação, nem,
no caso de tal variação se verificar, sem a reacção corres
pondente do lado da produção e do emprego.
Evidentemente, isto era voltar à controvérsia entre
Ricardo e Malthus em torno dos problemas da «superabun
dância» e à interpretação tradicional da «Ley de Say»
como significando que um estado de sobreprodu-
ção geral era impossível, porque, normalmente, «a oferta
cria sempre a sua própria procura».* O próprio Keynes re
conheceu que estava a repetir os passos desta antiga que
rela, e procurou reabilitar Malthus (e também outros
heréticos de igual tendência, como J. A. Hobson) como
alguém que tinha visto a verdade e a tinha defendido
contra Say e Ricardo (o que teve a desvantagem ocasional
de o levar a confundir o ponto de vista tradicional, que
estava a atacar, com a «escola clássica»). Esta referência
à Lei de Say e seus corolários específicos poderia induzir-
-nos a colocar a nova doutrina no cacifo da «teoria do ciclo
económico», como explicação especial para o facto de a de
pressão se poder tornar crónica — na frase de Schumpeter,
um tipo novo de «teoria do colapso» («embora a ‘teoria do
colapso’ de Keynes seja completamente diferente da de
Marx, tem em comum com esta uma característica impor
tante: em ambas, o colapso é motivado por causas ine
rentes ao funcionamento do mecanismo económico, e
não pela acção de factores exteriores a este»).** Mas
271
relegá-la assim para um departamento especializado da
matéria, seria não conferir a devida importância à sua
generalidade e ao seu significado como crítica da teoria
aceite do equilíbrio de mercado a nível macroscópico.
O argumento de que «a oferta cria a sua própria pro
cura» é justificado pelo facto de que todo o rendimento ou
é consumido ou é investido, e, portanto, de uma forma ou
doutra, é gasto como procura para a produção quer no mer
cado de bens de consumo quer no mercado de bens de capi
tal (ou de trabalho). Era este o sentido da afirmação de
Ricardo: «Nego que as necessidades dos consumidores di
minuam em geral por uma questão de parcimónia— elas são
transferidas, com o poder de consumir, para outro conjunto
de consumidores.»* Isto correspondia a defender que o in
vestimento era sempre igual à poupança: que se esta au
mentasse ou diminuísse, provocaria de alguma forma
esotérica uma modificação do investimento na mesma di
recção e numa quantia equivalente; e isto independente
mente do facto de aqueles que faziam poupanças e os que
investiam serem as mesmas pessoas (por exemplo, algum
antigo capitão da indústria da era Victoriana) ou pessoas
completamente diferentes. Para o senso-comum, isto era
uma afirmação estranha, senão mesmo monstruosa. O ren
dimento nunca era «entesourado»? A economia individual
nunca tomava a forma de reserva de dinheiro ou aumento
dos depósitos bancários? A observação do dia a dia
indicava que isto sucedia muitas vezes, De quem
era a varinha mágica que ordenava que cada au
mento dos depósitos bancários ou de reservas fosse
exactamente compensado por um aumento de investimento
nos negócios? A resposta dos economistas a estas per
guntas, nem sempre explicitamente formulada, era que
as taxas de juro constituíam o mecanismo de equilí
brio. Tal como qualquer outro preço no mercado,
podia interpretar-se o juro variando como a intersec
ção duma escala de oferta de poupanças e duma escala
272
de procura; a segunda dependia do desejo ou von
tade dos entrepreneurs de tomarem de empréstimo fundos
a fim de financiarem o investimento. Se o desejo de poupar
aumentasse perante qualquer taxa de juro dada, isso equi
valeria a uma deslocação da escala de oferta para a
direita. Se a procura de empréstimos não se alterasse,
isso implicaria um ponto de intersecção numa taxa de
riam até serem encorajados novos empréstimos, e,
portanto, mais investimento. A igualdade da poupança
e de investimento, embora não se verificasse em cada mo
mento no tempo, existia como tendência para o equi
líbrio, que operava continuamente e de forma bas
tante rápida, em presença de um mercado de capital e de
crédito desenvolvido.
Foi exactamente este fulcro da Lei de Say que veio a
tornar-se o ponto central do ataque de Keynes contra aquilo
a que preferiu chamar a doutrina «clássica». Negou que
a taxa de juro pudesse ser considerada como determinada
pela oferta e procura de poupanças, ou como um
mecanismo por meio do qual as modificações do de
sejo de poupar exercessem uma influência causal, em
sentido restrito, no nível de investimento. Não pode
ria ser assim porque a quantia poupada era função,
não só de parcimónia, da repartição do rendimento
e da taxa de juro, mas também do nível de rendi
mento global; e este não podia ser considerado indepen
dente da quantidade de investimento (e, portanto, do
nível de produção e emprego). Se as duas equações que
definem respectivamente as escalas de oferta e procura
não fossem independentes, o modo de ver tradicional da
determinação das taxas de juro seria falacioso.*
Esta rejeição do papel fundamental da taxa de juro
como equilibradora da poupança e do investimento condu
18 273
ziu directamente à teoria keynesiana das determinantes de
emprego. Dada a «propensão para o consumo», e portanto
a fracção de qualquer rendimento que será gasta
por consumidores individuais (da qual depende a dimensão
do «multiplicador» de R. F. Kahn), o nível de output e
emprego será função do investimento. Consoante o nível
em que o investimento (e também o consumo) se encontra,
o nível de produção e de emprego pode assumir quase qual
quer valor entre zero e produção total. De qualquer
modo, já não existe um nível único para o qual o
sistema tende necessariamente. Na medida em que o
investimento é constituído por investimento privado, man
ter-se-á regulado pela «eficiência marginal do capital»
(lucratibilidade prevista), modificada, por um lado, por
«expectativas» (fortemente influenciadas por uma «dispo
sição para os negócios» e sentimentos análogos), e, por
outro lado, pelo custo do dinheiro emprestado, designada
mente pela taxa de juro em vigor. No que respeita ao in
vestimento público por organismos governamentais, estas
considerações podem não ser adequadas, e o seu volume
deve ser postulado como variável independente. Desta
forma, inverteu-se a ênfase causal da teoria: em vez
de qualquer modificação da poupança se traduzir num
desvio equivalente do investimento, este passou a ser
a variável independente e (por intermédio das modifi
cações de rendimento) o volume da poupança a variável
dependente.*
274
Que sucedia então à taxa de juro: se tinha perdido
o seu papel de equilibrar a poupança e o investimento,
onde é que se colocava e como era determinada? E aqui
surgiu a segunda novidade. O juro era virtualmente
transformado numa taxa monetária — algo que sofria
a influência, por um lado, da política monetária (que
condiciona por sua vez a oferta de dinheiro disponí
vel), e, por outro lado, da atitude geral para com
a moeda como algo digno de ser retido (enquanto
depósito bancário, por exemplo), de preferência a outros
activos (por exemplo títulos). Era esta a famosa «pre
ferência pela liquidez» -— uma preferência fortemente
determinada por expectativas (ou incertezas) quanto a fu
turas alterações das taxas de juro (e portanto das cotações
dos títulos: por exemplo, quando se retinham títulos, pode
ria haver ganhos ou perdas de capital consequentes, cujo
efeito poderia anular o do juro a receber como rendimento
dos títulos). Para não deixar a porta aberta aos puros «teó
ricos monetários» da depressão e dos ciclos económicos, su
blinhava-se que havia uma importante limitação à influên
cia que a política monetária per se exercia no sentido de
fazer descer a taxa de juro: a famosa «armadilha da liqui
dez», quando a escala de preferências pela liquidez se tor
nava muito (no limite, infinitamente) elástica. Desta
forma, punha-se em destaque o estímulo directo ao investi
mento, incluindo o aumento do investimento público, como
política específica para remediar a depressão e o desem
prego.
Pode observar-se que embora isto constituísse uma teo
ria da depressão, perfeitamente adaptada dentro do contex
to de discussão em que Malthus e todos os adeptos do sub-
consumo tinham escrito, apresentava a possibilidade duma
estagnação crónica ou de longa duração, à medida que
o impulso do investimento privado enfraquecesse. Este foi
um aspecto da questão (a chamada Tese da Estagnação
— firmemente contestada por muitos)* especialmente
275
por Alvin Hansen desenvolvido nos Estados Unidos, tendo
em mente as circunstâncias das décadas de 1920 e 1930;
e provocou a referencia de Schumpeter, que citá
mos, a urna certa afinidade com a explicação das crises
por escritores marxistas. O próprio Keynes, como é obvio,
pouca simpatia manifestou pelas implicações sociais
ou os meandros destes últimos: apesar de uma certa
inclinação para épater les bourgeois e apadrinhar heré
ticos, não foi além da posição de um liberal intervencio
nista, atento às necessidades do seu tempo; e a sua
aversão pelas ideias socialistas aumentou, em lugar de
diminuir, ao longo da década de 1930. A implicação polí
tica a que conduzia a sua nova teoria era, no seu
próprio entender, a necessidade (e viabilidade) de
uma política coordenada de «pleno emprego» por parte
do Governo, combinando a despesa ou o investimento
público e uma política fiscal ou orçamental; as proporções
exactas desta mistura deveriam ser decididas tendo em
conta a experiência prática, esclarecida pelos novos con
ceitos. Outros podem considerar que a sua teoria foi
mais longe; é difícil decidir, em bases simplesmente
apriorísticas, de que lado está a razão.
E que dizer sobre o argumento pré-keynesiano de que a
«flexibilidade dos salários» (que significava na prática uma
redução de salários) bastaria sempre para diminuir o de
semprego, aumentando as margens de lucro e estimulando
maior produção e mais investimento? A resposta de Key
nes foi também uma rejeição desdenhosa e iconoclástica.
Como é que se podia conceber que o nível de preços não
desceria, se descessem os salários? Com toda a proba
bilidade, ambos desceriam pari passu, e então o
pretenso efeito estimulante seria nulo. Podia dizer-se
que esta probabilidade se baseava no conceito de concor
rência num mercado de compradores, que, a curto prazo,
alinhava preços e custos (marginais) iniciais,* ou na
276
hipótese de que a procura de não assalariados seria sufi
cientemente inelástica,* a curto prazo, de tal modo que
qualquer reacção que esta procura pudesse produzir numa
descida de preços inicial envolveria um lapso de tempo
durante o qual (a não ser que a propensão para consumir
tivesse aumentado de modo geral) os rendimentos não
provenientes de salários** depressa baixariam, tanto
quanto o nível de preços. A possibilidade de alguma
influência positiva sobre o investimento, através da pe
quena porta traseira da procura de transacções com a
finalidade de reter dinheiro, e, a partir dáí, sobre as taxas
de juro (mas se assim fosse, porque não chegar ao mesmo
resultado simplesmente pela expansão da oferta de
moeda?) seria a única concessão que estava disposto a
fazer aos seus críticos.
Ao chegarmos a Michael Kalecki, cuja crítica da
doutrina anteriormente aceite seguiu linhas muito aná
logas, encontramos categorias de pensamento que lem
bram muito mais a discussão marxista do chamado «pro
blema da concepção». A sua obra, de facto, poderia
ser considerada como uma formalização desse «pro
blema da concepção»; e, excepto quanto à sua apresenta
ção rigidamente formal e matemática, os marxistas pode
riam sentir-se num mundo familiar. Uma fonte da sua
inspiração é nitidamente Rosa Luxemburgo;*** e como o
primeiro enunciado da sua teoria antecedeu em três anos
(sendo no entanto completamente independente) a Gene
ral Tlneory, os economistas poderiam ter feito referência
(e alguns fizeram-na) a uma «revolução kaleckiana».
Mas os seus primeiros trabalhos foram publicados prin-
277
cipalmente em língua polaca* e não tiveram qualquer
influência imediata no debate travado nos países anglo-
-saxónícos, assim como nos países europeus.**
Kalecki partiu de uma posição notavelmente simples,
e apesar disso chegou a conclusões aparentemente
paradoxais. Utilizou um modelo simplificado de duas
classes, assalariados e capitalistas (os primeiros gas
tando todo o seu salário e os segundos fazendo
todo o investimento), no qual os lucros (brutos) que
os capitalistas como classe podem realizar num sis
tema fechado, dependem da quantia que esta própria classe
gasta em consumo e investimento bruto. (P = C + A,
em que C representa bens consumidos por capitalistas e A
representa acumulação bruta de capital — apenas isto
e nada m ais!)*** Aplicando isto ao mecanismo dos ciclos
económicos, admitiu que a acumulação ou o investimento
variava com a taxa de lucro do capital esperada: uma taxa
(e portanto motivação para investimento ulterior) que
variaria positivamente com o próprio investimento, mas
negativamente com o stock de capital existente, cuja
própria razão de troca dependia (sujeita a um atraso
temporal de curta duração) da actividade do investimento
no passado recente (ou, numa crise súbita, do desinves
timento). Num período de aumento de actividade, decor
rido um certo tempo, a segunda influência — aumento da
quantidade de equipamento — provoca uma queda «na
taxa de aumento da actividade de investimento, e, numa
fase ulterior, dá origem a um declínio nas encomen
das de investimento.» A partir daqui, a súbita prosperidade
está destinada a ter uma vida curta. Quando o investi-
278
mento decrescente atinge o ponto em que já não cobre
a substituição normal, o stock de capital começa também
a declinar, o mecanismo passa a funcionar em sentido con
trário e forma-se uma depressão acumulativa até à descida
da taxa de lucro parar. Conforme escreveu adiante:
«A tragédia do investimento é que provoca crises por ser
útil. Sem dúvida que muitas pessoas considerarão isto
paradoxal. Mas o que é paradoxal não é a teoria, é a
economia capitalista.»*
Na brochura que publicou em 1933, em, língua polaca,
explicou este mecanismo do seguinte modo: «Um au
mento de encomendas de investimento dá origem a um
aumento da produção de bens de investimento que é igual
à acumulação bruta. Isto, por sua vez, causa novo aumento
da actividade de investimento... No entanto, após
algum tempo... decorrido a partir do momento em
que as encomendas de investimento excederam o nível
das necessidades de substituição, o volume de equipa
mento começa a aumentar. De início, isto reduz a taxa
de aumento da actividade de investimento, e, numa fase
ulterior, provoca uma descida nas encomendas de in
vestimento.»**
Mais adiante, no mesmo ensaio, procura es
clarecer possíveis dúvidas quanto ao seu modo ge
ral de abordar o problema: «A conclusão de que o
aumento do consumo dos capitalistas provoca por sua vez
um aumento dos seus lucros, contradiz a convicção geral de
que quanto mais se consome menos se poupa. Este ponto
de vista, correcto em relação a um capitalista isolado,
não se aplica à classe capitalista em geral. Se alguns
capitalistas gastam dinheiro, quer em investimento quer
e mbens de consumo, esse dinheiro passa para outros capi
talistas sob a forma de lucros. O investimento ou o con
sumo de alguns capitalistas proporciona lucros a outros.
279
Os capitalistas, como classe, ganham exactamente tanto
quanto investem ou consomem, e se — num sistema
fechado — deixassem de consumir e construir, não pode
riam fazer dinheiro. Deste modo, os capitalistas em
conjunto determinam os seus próprios lucros pela
amplitude dos seus investimentos e consumos pessoais.
De certa forma, são «donos dos seus destinos»; mas
o modo como os «dominam» é determinado por factores
objectivos, de forma que as flutuações do lucro se afigu
ram ao fim e ao cabo inevitáveis.»*
Mais adiante expôs em termos análogos uma teoria
monopolista da repartição, muito engenhosa (em
bora também simplificada),** segundo a qual a pro
porção dos lucros para os salários dependia do «grau
de monopólio» existente no sistema em geral (o que deter
minava a possível adição de lucro bruto aos custos primá
rios que os capitalistas podiam impor), e o output, em
prego e lucro totais dependiam dos factores de procura
acima mencionados. Algo que muito contribuiu para confe
rir simplicidade a esta análise, foi o facto de o autor ter
trabalhado com uma curva de custo a curto prazo em
forma de L invertido. O autor considerou-a a mais realista
para qualquer situação de equipamento técnico dada, em
qualquer empresa ou indústria. (O próprio tratamento da
utilização do equipamento abaixo da capacidade como uma
situação normal, também pode ser considerado como uma
conjectura adequada a uma situação de monopólio.) Daqui
resultava que até ao ponto de funcionamento a plena capa
cidade, se agia sujeito a um custo constante (inicial);
o output era determinado pela intersecção da curva
(com inclinação negativa) da receita marginal (relevante
para qualquer monopolista parcial) com esta curva de
* Ibid.f p. 14.
** Acerca do monopólio, escreve: «O monopólio parece estar
profundamente enraizado na natureza do sistema capitalista: a livre
concorrência, como hipótese, pode ser útil na primeira fase de certas
investigações, mas como explicação do estado normal da economia
capitalista é simplesmente um mito» ( Essays m the Theory
of Economic Fluctuations (Londres, 1939), p.41).
280
custo horizontal, e o preço pelo preço de procura corres
pondente àquele nível de output. Desenvolvendo estas
teses, Kalecki expôs (e muito cedo, em 1939) considera
ções análogas às de Keynes sobre o efeito das reduções
de salário sobre o emprego. Uma vez que os preços erain
determinados da forma que acabámos de descrever, como
adição aos custos iniciais segundo o grau de mono
pólio predominante, os preços desceriam sempre na
mesma proporção que os salários.* O output e o
emprego não só não teriam tendência para aumentar, como
também poderiam diminuir se o grau de monopólio
aumentasse (e sugeria que essa era a tendência que se
manifestava numa crise súbita). Sustentou que a cons
tância dos salários reais e da parte dos salários na produ
ção total, durante o ciclo económico (assim como ein
períodos mais longos), constituía a base empírica segura
da sua teoria.
Evidentemente, o monopólio, e a política de preçcs
monopolista, é um factor a ter em conta em qua-
quer explicação da repartição que se ajuste ao mundo
capitalista moderno. Alguns encontraram motivo para
crítica no facto de Kalecki utilizar a noção de que o poder
monopolista está representado pelo ramo descendente da
curva de procura posta perante o vendedor (e, portant<>,
241
da curva de receita marginal sua derivada). Reconhece-se
que isto é uma simplificação excessiva, que omite (ou de
algum modo subordina) certos aspectos como o chamado
«monopsónio» e o simples poder de contratação em mer
cados de factores, em especial o mercado de trabalho.
Por outro lado, será possível tratar o monopolio e a fixa
ção de preços em monopolio, noutros termos que não os
das condições de mercado, e, portanto, do estado da pro
cura? Não se estará aqui inevitavelmente dentro da cate
goría de «preços de mercado»; Se assim for, dificilmente se
pode tomar como base para urna crítica o facto de a questão
dever ser tratada nesses termos. Até que ponto poderá
constituir urna base suficiente para uma teoria geral
da repartição e emprego, distinta de qualquer teoria
aã hoc (por exemplo, do problema da concepção e das
flutuações do investimento), é outra questão. Mas nesse
caso pode acontecer que, como alguns sustentaram,* não
seja possível nenhuma teoria do monopólio geral, espe
cialmente para situações que se aproximam do «oli
gopólio».
A formulação keynesiana das determinantes do em
prego tem por vezes provocado críticas, porque está
expressa em termos de «tendências» psicológicas; isto
será menos marcado, talvez, no caso de influências que
afectam o investimento empresarial, do que no caso do
consumo pessoal (em que é apenas uma forma de esta
belecer uma relação entre consumo e rendimento,
ou o seu recíproco, a «lacuna das poupanças»).** Certa
mente que isto não proporciona uma teoria da repar-
282
tição: na realidade, não se pretende que assim seja — a
menos que se pressuponha que a proporção lucro-salário
depende da forma de uma escala de oferta a curto prazo
(ou curva de custos) de output (e portanto, da relação
entre custo médio e custo marginal); e nesse caso seria
puramente uma teoria de curto prazo, e não uma teoria
de longo prazo. Poder-se-ia dizer, no entanto, que isto
carecia de relevância para o ponto imediatamente em
discussão. A noção de eficiência marginal do investimento
como determinante deste, relacionada como estava com
uma taxa corrente de investimento e com expectativas
futuras, poderia de facto sugerir que a teoria tradicional
do lucro, como teoria de equilíbrio estacionário, não
deveria ser posta em questão e remodelada. E, no entanto,
este aspecto da General Theory continua, segundo todas
as probabilidades, a ser o seu ponto mais vulnerável.
li
283
for, as discussões suscitadas pela General Theory sobre
os níveis de output variáveis, depressa chamaram
a atenção para as taxas de crescimento e a sua deter
minação, estabilidade ou instabilidade. O que sem dúvida
encerrou a discussão, reforçando a mudança de orien
tação, foi a crescente importância atribuída às taxas
de crescimento comparadas de diferentes países no período
do pós-guerra, e às causas das mesmas.
Já em 1939, Harrod, naquilo que se veio a afirmar
como um artigo que vinha abrir uma nova via de investi
gação,* apresentara a sua Equação Fundamental daquilo
a que chamaria o «crescimento garantido» — uma equa
ção de «extrema simplicidade» (como ele próprio a
definiria) e que era «truística» no sentido de ser
«necessariamente verdadeira», por definição dos seus
termos. Mas o seu contributo mais importante consistiu
em várias perguntas significativas, sobre a questão da sua
estabilidade ou instabilidade inclusivamente, e da sua
relação com aquilo a que, por contraste, chamou a «taxa
de crescimento natural».
Inspirada pela discussão das teorias do ciclo eco
nómico, a equação de Harrod valeu-se conjuntamente
daquilo que em breve seria chamado o «princípio da
aceleração» e da relação keynesiana designada «multi
plicador». O próprio autor reconheceu ter-se inspirado
na noção já apresentada no Treatise on Money de
Keynes, de 1930, segundo a qual a relação entre a quanti
dade de rendimento poupada e a quantidade aplicada (por
entrepreneurs) em investimentos como adições ao capital
real (ambos tratados ex ante, segundo a terminologia da
Escola de Estocolmo), era a causa primeira de tendencias
para a expansão ou contracção na economia (por inter-
284
médio do seu efeito sobre os pregos e lucros). A «taxa de
crescimento garantido» foi definida como «a taxa de
crescimento que, a produzir-se, deixará todas as partes
convencidas de que não produziram nem mais nem menos
do que a quantidade correcta», ou, por outras palavras,
«as deixará num estado de espírito que as levará a fazer
encomendas que manterão a mesma taxa de crescimento».*
A sua equação era Gw — s/C, sendo s a proporção de
rendimento poupado, enquanto C representava o coefi
ciente capital-OMÍptíí, ou «o valor de bens de capital
necessário para a produção de um aumento unitário
do output». Assim, a taxa «era conjuntamente determi
nada pela tendência para poupar e pela quantidade
de capital exigida por considerações tecnológicas e outras
por cada aumento unitário de output».**
A razão por que esta noção teve um efeito tão sur
preendente ( provocando uma espécie de «revolução men
tal», como o seu autor chegou a afirmar), foi devido à tese
de que uma via de crescimento definida por esta equação
era muitíssimo instável, no sentido de que qualquer afasta
mento em relação à equação, em vez de ser «auto-cor-
rector», desenvolveria uma tendência cumulativa) pelo me
nos dentro de certos limites), para um maior afastamento
na mesma direcção. «Assim, no campo dinâmico, temos
uma condição contrária à que é válida no campo estático.
Um desvio do equilíbrio, em vez de ser auto-corrector,
será auto-agravante. G w representa um equilíbrio em
285
movimento, mas muitíssimo instável.»* Os fundamentos
disto são facilmente compreensíveis se concebermos C intei
ramente em termos de capital produtivo; o que quer dizer
que a situação pode ser expressa em termos de variações
de stocks de matérias-primas e produtos em via de
fabrico, e da reacção dessas variações na produção.
Qualquer desvio da taxa de crescimento real acima
Gw , provocará uma redução de stocks abaixo do
normal: isto estimulará novas encomendas, com o objec
tivo de restabelecer os stocks f o que, consequentemente,
estimulará novo crescimento de output. Inversamente,
um desvio para baixo de Gw provocará um aumento
involuntário dos stocks acima do normal, o que tenderá
a diminuir a produção no período subsequente, devido
a uma diminuição da procura de bens para stock. Desta
forma, o auto-reforço da «sobreprodução é uma conse
quência da produção abaixo do nível garantido.»**
A «taxa natural de crescimento» (ou Gw) foi defi
nida, inversamente, como a «taxa máxima de crescimento
permitida pelo aumento da população, a acumulação de
capital e o progresso tecnológico».*** O significado funda
mental da relação entre G w e Gn era o seguinte:
se o primeiro excedesse o segundo (por exemplo, devido
a uma elevada taxa de poupança), haveria uma tendência
persistente para a depressão com desemprego crónico.
Deste modo se forjava uma corda para o arco dos adeptos
do subconsumo, e se admitia como possível (e com
preensível) a ideia da estagnação do estado da economia.
Pelo contrário, se a taxa garantida se mantivesse abaixo
da taxa natural, haveria probabilidades de se verificarem
desvios para cima, capazes de provocar séries de situações
inflacionárias e de surto económico. De qualquer modo,
* Ibid., p. 22.
** Ibid., p. 24.
*** Ibid., p. 30.
286
«não há qualquer tendência inerente para estas taxas
coincidirem».*
Mais ou menos na mesma época em que Harrod profe
riu as suas lições do pós-guerra (embora na sequência do
seu artigo anterior à guerra), o Professor Domar, na Ame
rican Economic Review de Maio de 1947, exprimia es
sencialmente a mesma relação, sob uma forma que
superficialmente poderia parecer diferente. A essência
e implicações dos dois pontos de vista eram de facto muito
semelhantes; e, consequentemente, muita,gente passou a
referir-se à fórmula de Harrod-Domar como se se tratasse
do produto dum trabalho conjunto. O que Domar pro
curou sobretudo acentuar, foi aquilo que designou como
o «carácter dual do investimento»: gerava aumento de
rendimento (por intermédio do efeito multiplicador), ao
mesmo tempo que, por outro lado, provocava um aumento
de capacidade produtiva. O primeiro representava o lado
da procura, o segundo o lado da oferta (ou da oferta
potencial). Dada a tendência para poupar, apenas uma
taxa de crescimento se manteria automaticamente, no sen
tido de que a nova capacidade criada era contrabalançada
por um crescimento equivalente da procura. Eis a sua
fórmula:
1
A I . ----- = Icr,
OC
ou então
AI
-------- = oc c r ,
I
287
em que oc representa a tendência para poupar (e portanto
1/ oc é o multiplicador» keynesiano) representa a pro
dutividade do investimento, o inverso do coeficiente capi-
tal-output de Harrod; e I designa o investimento. E acres
centa: «A fórmula mostra que não é suficiente que, em
termos keynesianos, as poupanças de ontem sejam investi
das hoje, ou, como frequentemente se diz, que o investi
mento compense a poupança. O investimento de hoje deve
necessariamente exceder sempre a poupança de ontem.
Uma simples ausência de entesouramento não será sufi
ciente... A economia tem de expandir-se continuamente». E
ainda: «Numa sociedade capitalista privada em que oc não
possa variar facilmente, só será possível alcançar um nível
mais elevado de rendimento e emprego, num determinado
momento, mediante maior investimento. Mas este, como
instrumento criador de emprego, vê os seus benefícios
limitados em virtude do seu efeito cr. A economia encon
tra-se perante um dilema difícil: se hoje não se fizer um
investimento suficiente, hoje haverá desemprego. Mas se
hoje se fizer um investimento suficiente, será necessário
um investimento ainda maior amanhã... No que se refere
ao desemprego, o investimento é ao mesmo tempo a cura
do mal e a causa de males futuros ainda maiores.»*
A implicação ideológica de uma teoria que definia uma
via de crescimento equilibrado unicamente para sublinhar
que este era caracterizado por uma «instabilidade de fio
de navalha», é perfeitamente clara; e por esta razão,
não é de surpreender que muitos economistas, especial
mente americanos, tivessem feito grandes esforços para
(pelo menos) atenuar as suas nocivas implicações. Isto foi
possível principalmente através da demonstração (como
fizeram Robert Solow nos Estados Unidos e Trevor Swan
na Austrália)** de que a referida instabilidade depende
288
da hipótese de um C constante (coeficiente capital-owí-
put) . O modelo poderia ter mais estabilidade, afirmou-se,
se se admitisse uma hipótese mais tradicional quanto
à flexibilidade de métodos técnicos (e portanto no valor
de C) perante variações de preços de factores, especial
mente da proporção entre lucro e salário. Isto equivalia
a introduzir novamente a noção de «função de produção»,
que desempenhara um papel fundamental na teoria da
produtividade marginal, e à qual voltaremos a referir-nos
no capítulo seguinte. Assim remodelada, a, «taxa garan
tida» de Harrod tenderia, a longo prazo (pelo menos),
a convergir para a sua «taxa natural», ou taxa máxima;
e o sistema tenderia, a partir daí, a crescer á taxa máxima
possível, compatível com o crescimento da população e o
progresso técnico. Um coeficiente de poupança grande ou
pequeno (o s de Harrod), não influiria sobre a taxa
de crescimento, por muito paradoxal que isto possa pare
cer à primeira vista: apenas afectaria o nível de out
put e de consumo em qualquer altura, tornando-o
respectivamente alto ou baixo. O mecanismo pelo qual
se obtinha este resultado, era o seguinte. Consideremos
o caso em que a taxa garantida de Harrod, Gw, está
acima da sua taxa natural, Gn .. Sendo assim, o alto
nível da primeira, criando escassez de trabalho, fará
subir os salários, e salários mais altos provocarão uma
transição para técnicas de capital mais intensivas (e, por
conseguinte, um nível de output mais elevado por cada
homem empregado). Esta modificação da técnica fará,
portanto, descer Gw ao aumentar o C da fórmula de Har
rod. Ê também possível que o eixo da repartição do ren
dimento, ao deslocar-se do lucro para os salários, faça des
cer o coeficiente de poupança médio, s * e que isto seja
19 289
mais um contributo para fazer descer Gw . Produzir-se-á
uma série de alterações contrárias no caso oposto, estando
Gw abaixo de Gn: o emprego crescente provocará a des
cida dos salários reais, o que incitará a uma passagem
para técnicas de capital menos intensivas, e fará diminuir
o C da fórmula de Harrod.
Este ataque à tese da instabilidade, no entanto,
acaba por ser menos convincente do que pôde parecer
à primeira vista. De facto, presta-se a uma objec
ção bastante simples. A série de adaptações em ques
tão (alteração dos preços de factores e a reacção des
tes sobre as técnicas aplicadas) representa um efeito
a longo prazo (ou série de efeitos). Para que tais adap
tações se processem, será necessário que o crescimento real
se mantenha à taxa garantida, durante um período
de tempo apreciável. Mas se a via de crescimento real
da economia é muitíssimo instável, tal como a expo
sição de Harrod a descreve, não é provável que se man
tenha em Gw durante muito tempo, e ao divergir deste por
qualquer razão, acabará por se afastar ainda mais. Na si
tuação em que Gw > Gn » não poderá igualar Gn durante
mais que um período de tempo muito curto, e terá, por
conseguinte, uma tendência pronunciada para se desviar,
numa direcção descendente, para a estagnação com desem
prego. Uma vez que isto tenha acontecido, este movimento
descendente terá precisamente o efeito contrário daquilo
que o mecanismo estabilizador exige.*
290
Em ligação com o modelo de Harrod e as suas impli
cações, não devemos deixar de mencionar outra crítica
que lhe foi dirigida, de um ângulo muito diferente (na
realidade, oposto): uma crítica em que pouco se repa
rou, feita por Kalecki em The Economic Journal, de Março
de 1962. Contrariamente à crítica de Solow-Swan, que acu
sava Harrod de ter exagerado a instabilidade do cresci
mento, a de Kalecki procurou mostrar que o modelo
de Harrod era insuficientemente dinâmico: que a taxa
tendencial de crescimento que parecia tet, era meramente
efémera e tendia sempre a recair numa posição estática
de crescimento nulo, a não ser que postulasse um fluxo
permanente de inovações que conferissem flutuabilidade ao
sistema. Num certo sentido, isto pode ser considerado uma
ampliação pessimista da «instabilidade» de Harrod,
sob a forma da afirmação de que a instabilidade numa
direcção decrescente é mais provável que o contrário,
e que, uma vez iniciado o declínio do crescimento, não
há ponto de paragem antes de zero. Isto resulta da visão
de Kalecki, já exposta nas suas obras anteriores,
incluindo os seus Studies in Economic Dynamics de 1943,*
291
acerca da dependência de decisões de investimento em rela
ção ao lucro actual, que por sua vez dependia do investi
mento empreendido ( mais o consumo capitalista) no pas
sado imediato. Visto que o investimento teve como resul
tado (decorrido um certo lapso de tempo) expandir a
capacidade produtiva, só haveria procura suficiente para
compensar esta capacidade (e permitir que com ela se rea
lizasse lucro) se o investimento se expandisse continuamen
te (mantendo assim o equilíbrio entre a procura e a cres
cente capacidade produtiva). Sem a intervenção de qual
quer factor especial de «impulso» haverá, por conseguinte,
uma tendência crónica para o investimento enfraquecer
por falta de incentivo, e, uma vez enfraquecido, para de
clinar cumulativamente em direcção a zero. A partir daí,
o seu mecanismo cíclico, a que já nos referimos,
actuará em torno de uma linha tendencial de cresci
mento zero.
Kalecki escreveu: « A ‘taxa de crescimento de Harrod’
é efémera, no sentido de que qualquer desvio em relação
a ela torna o sistema estacionário — isto é, sujeito a flu
tuações cíclicas, mas sem qualquer rumo próprio... O sis
tema não pode sair do impasse constituído por flutuações
em torno de uma posição estática, a não ser que se processe
um crescimento económico gerado pelo impacto de factores
semi-exógenos, por exemplo, o efeito de inovações no
investimento... Os factores semi-exógenos, tais como as
inovações, permitem ao sistema capitalista sair do impasse
do estado estacionário e expandir-se a uma taxa que
depende da importância destes factores.»*
Inspirada por Harrod, mas tendo exercido uma
influência própria comparável em discussões subsequentes,
292
foi a obra da Professora Joan Robinson, The Accumulation
of Capital, de meados da década de 1950. A sua in
tenção foi também apresentar as condições para um
crescimento uniforme a uma taxa constante (aquilo a que
ela chamou condições de «idade do ou ro»); mas, tal como
Harrod, sublinhou a instabilidade a que teria de
fazer face um crescimento uniforme, e especificou
com maior particularidade os diversos escolhos e obs
táculos que levam o sistema que funciona segundo
aquilo a que ela chama «as regras do jogo capitalista»,
a enfraquecer o caminho da depressão, do desemprego e
da estagnação crónica, ou, pelo contrário, a explodir numa
inflação cumulativa. Apesar desta ênfase, no entanto,
a sua análise inclui um ou dois mecanismos esta
bilizadores potenciais que faltam no modelo de Har
rod: em particular, a tendência das variações dos salá
rios reais para provocar modificações no «espectro das
técnicas». Assim, se a oferta de trabalho aumentar mais
lentamente do que a acumulação de capital, isto pode
conduzir a uma subida de salários reais e fomentar con
sequentemente uma mudança para técnicas que permitem
poupar mais trabalho; e inversamente, no caso de a
oferta de trabalho aumentar mais rapidamente que a
acumulação de capital. Por outro lado, uma variação
dos salários reais pode afectar a própria taxa de acumu
lação: se, por exemplo, o aumento da oferta de trabalho
exceder a capacidade produtiva, a diminuição das taxas
de salários monetários resultante pode «tornar o custo
de reprodução de bens de capital inferior ao seu custo
histórico e induzir assim algum investimento adicional.»*
293
Mas embora se indique a possibilidade dessas reacções
de equilíbrio, também se demonstra que elas não sur
gem necessariamente como resultado. O resultado real
pode variar com as circunstâncias e particularmente
com a forma como os planos de investimento das
empresas reagem às variações dos salários monetários.
Deve notar-se que no modelo da Professora Robinson, os
lucros (e com estes os salários reais) são determinados em
primeiro lugar pela taxa de investimento (como em
Kalecki); e consequentemente, o lucro e os salários reais
não podem ser influenciados a não ser que a taxa de
investimento o seja (ou então aquilo que é designado por
consumo de rendeiro).
Embora este modo de abordar o problema tenha sido
claramente influenciado, conforme dissemos, por Harrod,
as suas ideias têm diversas afinidades com as de
Rosa Luxemburgo. Essas afinidades, tanto com Rosa
Luxemburgo como com Marx, são muito evidentes
num artigo que a Professora Robinson escreveu para
o The Economic Journal de Março de 1952, intitulado
«The Model of an Expanding Economy», do que no livro
publicado quatro anos mais tarde e no qual a autora
evita mencionar qualquer daqueles dois autores. Neste
artigo, escreveu: «O significado de uma proposição
depende muito daquilo que nega. Neste aspecto, o modelo
é bilateral. Por um lado, prova que não há qualquer
impossibilidade lógica inerente na concepção dum sistema
capitalista de expansão contínua — contradiz o ponto de
vista de que o capitalismo deve inelutavelmente declinar.
Por outro lado, o modelo mostra que são necessárias
certas condições especiais para que a expansão seja con
tínua, e, deste modo, contradiz a opinião de que o capita-
294
lismo tem, em geral, uma tendência automática para
prosseguir.»*
Na mesma linha de descendência, embora sui generis,
esteve um modelo de crescimento uniforme, proposto
pelo Professor N. Kaldor pela primeira vez no The Eco-
nomic Journal de Dezembro de 1957, e mais tarde publi
cado nos seus Essays on Economic Stability and
Growth, de 1960 (e ulteriormente apresentado numa
versão nova, alguns anos depois).** Pode dizer-se que este
modelo responde principalmente a um tipo de problema
diferente do das outras teorias que mencionámos. Em
bora sublinhe a convergência e a estabilidade, ocupa-se
não tanto com a estabilidade na taxa de crescimento, como
com certas características do processo de crescimento,
especialmente a pretensa estabilidade a longo prazo no
coeficiente capital-OMtpwí e a parte do lucro no rendi
mento nacional (para a qual se pretende que existe uma
forte prova empírica). Mas, de um modo geral, entra na
categoria das teorias que conciliam as taxas de cresci
mento «garantida» e «natural», demonstrando a existência
duma tendência a longo prazo para convergirem: neste
caso, por mútua interacção.
Segundo esta teoria, o crescimento é um produto
conjunto de duas tendências: a dos entrepreneurs para
inovarem, aumentando assim a produtividade, e a sua ten
dência para acumularem ou investirem. O coeficiente capi-
tal-output dependerá dos papéis respectivos desempenha
dos por estas duas tendências: isto é, das intensidades res
pectivas da inovação técnica que origina um aumento da
produtividade, e do aumento de capital. Se uma destas
duas tendências excede a outra, entram em acção forças
que aceleram, ou, alternativamente, que retardam o investi
mento; e é por meio deste mecanismo «compensador»
que actua a tendência a longo prazo para um coeficiente
capital-output estável.
295
Isto é representado por um diagrama que se tornou
muito conhecido, em que os eixos representam a taxa de au
mento de capital por trabalhador e por unidade de tempo
/ 1 dC \
I— . ----- } , medida na abcissa, e a taxa de aumento
\ C, dt /
de output por trabalhador e por unidade de tempo
/ í d° \
I ----- . ----- I , devido a aperfeiçoamentos, sendo esta úl-
\ Ot dt J
tima medida na ordenada. O estado da economia em qual
quer momento, no referente à taxa de crescimento da pro
dução, dependerá principalmente do «dinamismo técnico»
dos seus entrepreneurs — a sua vontade e capacidade para
inovar, que é expressa no gráfico por uma curva (T... T ’)
designada «função do progresso técnico». Conforme esta
curva está acima ou abaixo, assim a taxa de crescimento
é grande ou pequena. O investimento, por outro lado
(representado no gráfico por uma deslocação para a
direita), dependerá do nível de lucro e da relação existente
entre volume de vendas, ou output, e a capacidade produ
tiva do equipamento existente. Assim, se uma das duas
tendências principais exceder a outra, entrarão em acção
forças destinadas a acelerar ou retardar (conforme o caso)
a taxa de investimento, até o processo de crescimento con
junto convergir na linha de 45 graus, que representa uma
proporção constante entre crescimento do output e cresci
mento do capital, e portanto um coeficiente capital-output
constante.
Suponhamos, por exemplo, que estamos situados
sobre a curva T .. ,T' à esquerda do gráfico: nesta posição,
output estará a aumentar em relação à capacidade
produtiva existente, e consequentemente existirá um incen
tivo para aumentar a taxa de investimento, ou, por outras
palavras, para uma deslocação ao longo da curva T...T’
para a direita. Este incentivo será reforçado pelo aumento
do lucro resultante de uma taxa de investimento superior;*
29S
J_ dc
C,' dt
297
mais rapidamente que o cmtput), e com ela uma dimi
nuição do lucro, reforçando a diminuição do investimento.
É natural que se tenha observado que, ao contrário
do modelo Harrod-Domar, este não explica realmente
a taxa de crescimento em si — ou, na medida em que possa
ser afirmado que o faz, explica-a dum modo e num sentido
completamente diferentes,* que nada têm a ver com a sua
estabilidade ou instabilidade. O nível real da curva T...T’
no gráfico, e portanto a taxa de crescimento, depende
daquilo que é designado por «dinamismo técnico» da
economia — algo que também não é completamente expli
cado. Contrariamente a Harrod, Kaldor não considera o
crescimento como dependente do coeficiente de poupança:
este influencia principalmente o nível de lucro (que
varia na razão inversa da poupança) e apenas indi
rectamente a taxa de crescimento (por intermédio do
efeito do lucro sobre o investimento).Conforme nos explica
o autor: «O principal elemento accionador, no processo
do crescimento económico, é a capacidade para absorver
as alterações técnicas combinada com o desejo de investir
capital em empreendimentos industriais.»** Quanto à rela
ção entre o seu modelo e o de Harrod, Kaldor escreveu:
«A s implicações do nosso modelo, segundo a terminologia
de Harrod, podem ser resumidas na afirmação de que o sis
tema tende para uma taxa de equilíbrio de crescimento em
que as taxas «natural» e «garantida» são iguais, visto
que qualquer divergência entre as duas porá em acção
forças que tenderão a eliminar a diferença; e estas
298
forças actuam em parte através de um ajustamento
da taxa ‘garantida’.»*
Pela ênfase atribuída ao «dinamismo técnico» do en
trepreneur, a teoria de Kaldor pode ser tida como apresen
tando algumas afinidades com a de Schumpeter (que con
siderou o entrepreneur capitalista como peça central do
desenvolvimento enquanto inovador par excellence). Isto
confere-lhe aparentemente um aspecto conservador (na me
dida em que entrepreneur está implicitamente identificado
com empresas capitalistas). Por outro lado, negando qual
quer papel à hipótese tradicional de «conhecimento técnico
constante» em teoria estática (e portanto à noção de «fun
ção de produção»), considera-se a si próprio um iconoclasta
no que se refere à teoria tradicional de Repartição da
Produtividade Marginal. No seu artigo ulterior, intitu
lado «A New Model of Economic Growth» (escrito em
colaboração com J. A. Mirrlees), escreveu: «O modelo
é keynesiano no seu modo de funcionamento (as despesas
empresariais são primárias; os rendimentos, etc., são
secundários) e fortemente «ão-neoclássico no sentido de
que os factores tecnológicos (produtividades marginais
ou coeficientes de substituição marginal) não desem
penham qualquer papel na determinação dos salários e
lucros. Ê evidente que uma «função de produção» no sen
tido de relação de um só valor, entre uma certa quantidade
de capital, K , a força de trabalho N e de output Y
(tudo no tempo í), não existe, Tudo depende da história
passada, de como o conjunto de bens de equipamento
que constituem K foi identificado.»**
Talvez valha a pena mencionar, antes de pôr de parte
este assunto um teorema novo e intrigante que foi difun
dido pela literatura dos modelos de crescimento, mas
tem, no entanto, uma relação evidente com conceitos
299
de valor e repartição. Talvez se deva falar de dois teoremas
distintos, que nem por isso deixam de estar relacionados.
O primeiro, e talvez o mais impressionante à primeira
vista, conhecido por Teorema da Não-Substituição, pode ser
atribuído ao Professor Paul Samuelson. Segundo este teo
rema, com um factor escasso, o trabalho, e sendo todos os
outros inputs reprodutíveis, a técnica óptima (ou conjunto
de técnicas em várias indústrias) é independente da pro
cura (e portanto dos outputs comparados de diferentes
produtos).* Por outras palavras, não há, nestas circuns
tâncias, nenhum método de produção de cada produto
mais eficiente que todos os outros, nem um nível de custo
único independentemente da escala de output: conforme
escreveu o Professor Hicks, ao explicar as suas implicações,
«o sistema de Leontief produz sob custo constante, mesmo
que os métodos sejam (em princípio) variáveis» e que
«a escolha do método (seja) independente da procura».**
O segundo teorema, denominado «Regra de Ouro» ou
«Teorema Neoclássico», afirma que, em condições dinâ
micas, só quando todo o lucro é investido, e nenhum
é aplicado no consumo, será possível escolher o conjunto
de técnicas que maximiza a produção total, no sentido de
permitir que o consumo seja máximo para qualquer taxa
de crescimento (ou vice-versa).*** Este teorema pode
300
considerar-se derivado de dois postulados da moderna
teoria do crescimento: (a ) que uma condição para
o crescimento (equilibrado) máximo é a taxa de lucro
ser igual à taxa de crescimento; ( b ) que o lucro total
é igual à soma do investimento mais o consumo capitalista
(donde se segue que, visto o crescimento ser função do
primeiro, a taxa de lucro excederá a taxa de crescimento
segundo o grau em que o consumo, abstraindo dos lu
cros, for positivo). O Dr. M. Nuti utilizou isto muito
inteligentemente para postular uma segunda e «mais subtil
forma de exploração» em regime capitalista: «o menor
nível médio de consumo por cabeça associado a uma esco
lha técnica sub-óptima, sempre que o consumo abstraído
dos lucros impede o cumprimento da regra de ouro».*
u i
301
Em relação a isto, a linha de delimitação entre «an
tigo» e «novo» passou a ser chamada «negação da possibi
lidade de comparações interpessoais». No entanto, isto
não era completamente inédito, pois de facto fora
abordado sessenta anos antes, não só por Pareto
mas também por Jevons. Na década de 1930, con
tudo, essa negação tomou-se rapidamente moda, espe
cialmente na América; e foi por vezes justificada pelo
desejo de finalmente pôr termo ao utilitarismo do
século dezanove. Uma outra razão, não menos importante,
ou talvez a principal, não é, contudo, difícil de encontrar:
os escritos anteriores (a Pigou) sobre o Bem-Estar, dedu
ziram da «Lei da Utilidade Decrescente» o princípio de que
quanto menos o produto nacional fosse repartido em ter
mos de desigualdade, oeteris paribus, tanto maior seria a
soma total resultante de utilidade ou bem-estar.* Estas
conclusões pronunciadamente igualitárias, que constituí
ram uma das duas propostas formuladas em The EconomAcs
of Welfare, foram manifestamente mal recebidas e causa
ram embaraço em certos círculos. Era reconfortante poder
dispor dum sistema de economia de bem-estar do qual fosse
possível excluir questões embaraçosas em matéria de repar
tição; e a «Nova» Economia do Bem-Estar (que se vanglo
riava de rigoroso positivismo) remodelou-se de forma
a tornar irrelevante e desnecessária a intrusão de ques
tões desse género. No entanto, esta falta de vontade,
ou incapacidade, da Nova Economia do Bem-Estar para
se pronunciar em matéria de repartição do rendimento,
acabaria por se tomar o seu calcanhar de Aquiles.
O perigo que ameaçava esta nova abordagem do
problema estava em que, recusando-se a comparar ou reu
nir utilidades individuais, podia pôr de parte a possibili
dade de comparar um produto total com outro (algo que se
302
tornava evidentemente necessário para se poder discutir a
maximização duma produção total e procurar propor condi
ções de «eficiência» económica nesses termos). Foi para
resolver esta dificuldade e restabelecer a distinção entre
qustões de repartição (que eram postas de parte) e questões
de produção (que podiam ser mantidas) que o Professor
Kaldor elaborou o seu Princípio da Compensação. Sem
dúvida que era sempre possível dizer, pelo menos em
princípio, no caso de qualquer modificação económica,
como por exemplo a revogação das Leis dos Cereais, se
aqueles que iriam ganhar com a mudança poderiam ou não
compensar os que iriam perder com essa mudança, e ficar
em condições ainda melhores que as originárias. Se isto
fosse possível, poderia considerar-se o resultado da modifi
cação como significando um aumento de produção total ou
rendimento nacional, e inversamente. Assim, a possibilidade
de compensação acima referida passou a constituir a
definição dum aumento de output total, sem neces
sidade de recorrer a qualquer soma de utilidades indi
viduais.* Infelizmente, verificou-se que o Princípio da
Compensação, como solução da dificuldade teórica (e
não como teste prático, sem dúvida aplicável em muitos
casos reais), implicava algumas contradições bastante
importantes.**
Tendo adoptado a não comparabilidade de utilidades
individuais de Pareto, os novos economistas do bem-
-estar continuaram a utilizar a sua noção de um óptimo
que passou a ser conhecido por «óptimo de Pareto».
303
à primeira vista, esta noção é bastante atraente.
Foi definida como uma situação em que, tomando
como dado o rendimento monetário ao dispor de cada um,
ninguém poderia obter uma melhoria de condições sem
que por isso outro indivíduo (ou outros indivíduos) pas
sassem a uma situação pior. (Na realidade, isto não
era uma situação única — havia inúmeras dessas
situações, uma para cada diferente repartição de ren
dimento monetário.)* Que mais se poderia esperar de
uma política, definível em termos económicos puramente
objectivos, independentes do modo de repartição, e por
tanto capazes de serem utilizados como critério positivista,
wertfrei, de eficiência económica? Neste sentido foi
bem aceite, senão quase universalmente, por autores de
manuais de economia. Aqueles que ainda se preocupa
vam com os problemas da repartição desigual teriam
o cuidado de chamar a atenção para o facto de aqui se
tratar de algo completamente diferente da «equidade»,
a qual era outro problema que devia ser considerado nos
seus próprios termos, dentro do seu próprio contexto;
e, ao mesmo tempo, mostravam a sua satisfação pela
oportunidade que lhes era oferecida por este conceito
de Pareto, de se limitarem, enquanto economistas, a
questões de eficiência económica pura e simples.
Esta situação poderia ter-se mantido assim, e
até eximir-se a qualquer crítica, se não fosse a
armadilha que significava para aqueles que eram
incapazes ou não estavam dispostos a distinguir entre uma
condição necessária e uma condição suficiente para um
óptimo. Definir uma condição (ou condições) que é neces
sário satisfazer para se obter qualquer óptimo completo
(por exemplo, a tangência da curva de preços com uma
curva de indiferença de cada consumidor, ou a igualdade
de taxas de substituição de factores em todas as linhas de
produção), é da maior importância para qualquer
304
teoria da optimização. Mas o mesmo sucede com
qualquer postulado sobre o modo como o rendimento
é repartido entre indivíduos como uma condição neces
sária; e, na sua falta (e vimos que foi deliberadamente
excluído pela «nova» economia do bem-estar), estas con
dições, denominadas condições de Pareto, são real
mente insuficientes para caracterizar uma posição como
óptima. Uma situação em que tais condições são satisfeitas
pode ser inferior a muitas outras situações em que isso não
■sucede. É de presumir que todos os economistas o reco
nheçam ao serem postos perante o problema (de facto,
estão então em condições de replicar que sempre o sou
beram). De qualquer maneira, isto é uma verdade que
muitos esquecem com surpreendente frequência, e de
modo nenhum apenas as estrelas de pequena grandeza,
conforme vão mostrar dois exemplos que se seguem.
A dificuldade parece surgir logo que um óptimo de
Pareto é identificado com um equilíbrio alcançado sob
concorrência perfeita ou comércio livre; e logo surgem
a falácia e a confusão. O exemplo mais vulgar consiste
em raciocínios do tipo seguinte. Se os consumidores
forem racionais e puderem gastar livremente os seus
rendimentos monetários, distribuirão a sua despesa entre
diferentes bens de forma que o coeficiente das taxas margi
nais de substituição (ou coeficiente das utilidades margi
nais), seja igual ao coeficiente dos seus preços (isto é, a
tangência da curva de preços à curva de indiferença que
constitui um óptimo de Pareto, quando aplicada ao mercado
de retalho do consumidor). Isto é o mesmo que afirmar que
os consumidores estão geralmente numa posição em que
nenhum deles pode melhorar a sua própria situação,
dados os preços que ele e o seu rendimento monetário
defrontam — o que é adiantar algo mas, evidentemente, não
muito. É tentador concluir daqui* que, com a condição de
20 305
o coeficiente de preços ser também igual ao coeficiente de
custos marginais na produção, as quantidades de quais
quer dois bens A e B produzidas maximizam o bem-estar
social. E no entanto esta conclusão é falaciosa, visto que
a condição acima mencionada, embora verdadeira para
cada consumidor separadamente, não pode ser generali
zada. Qualquer generalização (por exemplo, numa curva
de indiferença colectiva) depende da repartição do rendi
mento monetário, no sentido de que a utilidade marginal
de despesa (ou a utilidade marginal do rendimento) será
diferente conforme o rendimento dos indivíduos, e qual
quer processo de generalização envolverá uma ponde
ração dos diversos indivíduos de acordo com estas dife
renças.*
E no entanto, foi precisamente numa falácia assim
que «os novos economistas do bem-estar» caíram, ao tenta
rem demonstrar a natureza óptima dos resultados da con
corrência perfeita num sistema de mercado livre. Uma vez
que alguns podem não acreditar nisto, daremos dois
exemplos de modo nenhum negligenciáveis. O Pro
fessor R. Dorfman, num livro sobre Preços e Mer
cados tentou demonstrar como se segue a vantagem da
chamada soberania do consumidor num «mercado livre»:
«Dado que todos os consumidores compram aos mes
mos (ou pelo menos quase aos mesmos) preços, todos
eles terão a mesma taxa marginal de substituição entre
cada par de bens. Portanto, justifica-se a afirmação
de que na comunidade existe uma taxa marginal de subs
tituição entre cada par de bens, e que esta é igual
ao coeficiente dos respectivos preços... [Portanto] vemos
que em equilíbrio de concorrência, cada recurso produtivo
é utilizado de tal maneira que se fosse canalizado para um
artigo diferente não produziria bens a que os consu
midores atribuíssem maior valor que aos normalmente
produzidos; cada recurso é utilizado segundo o desejo
306
dos consumidores.»* A conclusão, escusado será diz^r,
é um completo non sequitur.**
Isto aplica-se igualmente a um argumento apresentado
num manual muito difundido, em que colaborou o mesmo
autor (com os Professores Samuelson e Solow).*** Faz-se
aqui referência á dupla proposição de que «cada equili
brio de concorrência é um óptimo de Pareto» e «cada
óptimo de Pareto é um equilíbrio de concorrência», como
constituindo «o teorema fundamental» e «a espinha dorsal
da economia do bem-estar»; donde se conclui que um equi
librio de concorrência é sempre superior a um equilibrio
de não-concorrência.**** Isto peca manifestamente por
atribuir ao conceito paretiano de um óptimo, como condi
ção necessária mas não suficiente, uma implicação maior
do que se pode logicamente esperar que ele contenha.
Além destes temas mais gerais de optimização do
bem-estar (alguns talvez preferissem o termo «melhoria»),
que incluem necessária e obviamente as questões ideo
lógicas, a exploração desta matéria envolveu ainda diver
sas questões mais específicas. Entre estas inelui-se
308
9. UMA DÉCADA DE FORTE CRÍTICA
310
de Jevons e dos Austríacos,* e tornou-se um crítico
destacado dessa doutrina (para a qual «contra-clássieo»
fosse talvez o termo mais de acordo com a nossa inter
pretação e mcapítulos anteriores). De facto foi em res-
posta a este desafio que o Professor James Meade escreveu
a obra Neo-Classical Theory of Growth, em 1961.
A autêntica linha de separação da discussão crítica,
que dividiu as correntes de opinião mais antigas e mais
novas, foi sem dúvida o aparecimento (em 1960) do livro
pouco volumoso mas fundamental de Piero Sraffa, intitu
lado Production of Gommodities by Means of Commodities;
não só porque esta obra deu início a uma espécie de escola
entre a mais jovem geração de economistas — revelando
uma tendez que poderia ser descrtia como «retorno ao es
tudo de Ricardo e Marx» — , mas também porque provocou
um debate famoso, embora restrito, em meados da
década de 1960, que tem sido geralmente designado
por debate da «múltipla mudança de técnicas». O sub
título deste livro, era bastante significativamente, «Pre
lúdio a uma Crítica da Teoria Económica». Um comen
tador da moderna controvérsia sobre a teoria do capital
referiu-se ao livro como a um guia («pelo menos em espi
rito») do ataque à teoría e método marginal.** O Professor
Meek, ao analisar o livro um ano após a sua publicação,
afirmou que podia ser considerado «simplesmente um
modelo teórico não ortodoxo... concebido para resolver
o problema tradicional do valor de uma forma nova», ou
«como um ataque implícito ã análise marginal moderna»,
ou ainda «como uma espécie de magnífica reabilitação
311
da concepção clássica (e até certo ponto marxista) de
certos problemas fundamentais relacionados com o valor
e a repartição».*
Já aludimos ao problema de conceber o Capital
como grandeza, no âmbito da teoria da produtividade
marginal. Talvez não seja necessário adiantar mais nada
a este respeito, além da curta recapitulação alargada
que se segue. A noção de uma função de produção é um
traço característico da teoria tradicional da forma
ção dos preços dos factores de produção. É geral
mente representada por uma curva que traça as diver
sas combinações de factores possíveis a partir dum certo
estado de conhecimento técnico; cada ponto desta curva
representa um método técnico de produção, com a res
pectiva combinação de factores. Na verdade, não se
pode conceber a adição de mais uma unidade de um factor-
a uma quantidade constante de outro (ou outros) sem mo
dificar a proporção em que os factores estão combinados e
passam dum ponto dum «isoquanto» para um ponto contí
nuo doutro. Em qualquer ponto da curva, o coeficiente de
substituição de factores (ou o seu inverso, o coeficiente
de produtividades marginais) deve ser igual, em equilíbrio
de concorrência, ao inverso do coeficiente dos preços
de factores, visto que só essa será a combinação mais
lucrativa que o entrepreneur poderá escolher. Daqui resulta
que, se os preços relativos de factores se modificarem,
a técnica mais lucrativa, ou de custo mínimo, sofrerá
uma modificação correspondente; e, em qualquer função
de produção bem ordenada, à medida que os salários
sobem e os lucros diminuem, a técnica tenderá a mudar
para uma orientação mais «intensiva de capital», para
uma combinação de factores que utilize mais capital e
menos trabalho.
A não ser que bens de capital heterogéneos sejam
redutíveis a uma quantidade de Capital única, é difícil'
313
da maleabilidade».* Essa hipótese, escusado será dizê-lo,
é perfeitamente arbitrária, e a intenção com que é utilizada
está longe de ser sempre séria. A Professora Joan
Robinson falou de «ectoplasma» a fim de acentuar o
carácter metafísico de qualquer substância assim pos
tulada.** Com intuito mais sério, o Professor Samuelson
introduziu a parábola de uma «Função de Produção Subs
tituta», à qual voltaremos a referir-nos. O Professor
procurou ladear a dificuldade afirmando que as teses
principais da teoria podiam ser de molde a tomá-las
independentes de qualquer avaliação do capital. Isto assu
miu a forma de definição da «taxa de rendimento social»
sobre o investimento num sistema socialista de modo par
ticular,*** e a da demonstração de que esta taxa deve ser
igual à taxa de juro. «Uma propriedade importante da taxa
de juro tem sido mal apreciada: no entanto, a taxa de juro
é realmente determinada, na medida em que prevalecem
o pleno emprego e a formação de preços de concor
rência, e é um rigoroso padrão de avaliação do rendimento
social da poupança.****
314
Uma propriedade evidente do tipo de função de
produção, ou relação de substituição de factores, que já
descrevemos, é que, quando a taxa de juro diminui,
a quantidade de capital utilizada por cada homem
na produção deve aumentar: por outras palavras,
técnicas mais «intensivas de capital» devem ser uni
formemente substituídas por técnicas mais «intensi
vas de trabalho». Se isto não acontecer uniforme
mente, e ao longo de toda a gama de escolha técnica repre
sentada pela curva de substituição, é evidente que há algo
muito errado em toda a noção de uma «função de produ
ção» — e, igualmente, na noção de capital como entidade
quantitativa independente que pode ser substituída, em
quantidades definidas, por outros factores de produção. Foi
precisamente esta propriedade fundamental que foi posta
em questão, como consequência do trabalho de Sraffa, Pro-
ãuction of Commodities by Means of Commodities. Sobre
a natureza geral do sistema constituído por esta obra e
em especial sobre a sua relação com o sistema clássico,
acrescentaremos algo mais adiante. Num certo sentido,
a sua rigorosa demonstração da possibilidade daquilo
que veio a ser designado por «dupla mudança de técnicas»,
com modificações no coeficiente dos preços de factores,
surgiu como um corolário casual dessa obra. Mas
representou, talvez, a sua mais importante contribuição
individual para uma «Crítica da Teoria Económica», e deu
origem a um debate que um dia, sem dúvida, será cele
brado.
Esta possibilidade de «mudança» significa que,
quando os salários sobem e os lucros descem, uma certa
técnica A relativamente intensiva de trabalho, inicial
mente utilizada, pode ser substituída por uma técnica B,
315
mais intensiva, de capital; mas, a um nível de salários
ainda mais elevado (com uma taxa de lucro correspon
dentemente menor), a técnica A pode voltar a ser a
de menor custo e consequentemente substituir B. Para
quem esteja imbuído da tradição moderna, tal possibi
lidade afigura-se um paradoxo inacreditável. Para um
economista moderno, acostumado como está a pensar
em repartição do rendimento como derivada das relações
de preços dos produtos finais, a ideia de que as pró
prias relações de preços estão fortemente relacionadas
com essa repartição, mudando com cada alteração no
coeficiente lucro-salário, pode parecer estranha ou mesmo
discrepante. E, no entanto, é precisamente essa relativi
dade de preços na repartição do rendimento, que
esta possibilidade de «mudança», anteriormente ignorada,
ilustra. Por esta razão, talvez não devesse parecer tão
obscura ou surpreendente para quem conheça Marx (ou
até Ricardo), visto que equivale a desvios dos «preços
de produção» marxista em relação aos «valores» — em
especial, os preços de inputs e de inputs dentro daque
les outputs — quando os salários se modificam e com
estes a taxa de mais-valia (ou o coeficiente lucro-salário).
Para melhor esclarecer as razões deste paradoxo
aparente, pode representar-se a situação de produção
do modo seguinte. O custo e o preço final de um bem
podem ser concebidos como a soma de uma série vertical
de fases de produção desdobradas retrospectivamente
no tempo, sendo cada fase constituída por um input
de trabalho mais inputs de bens (máquinas, matérias-
primas, componentes), que são produtos dalguma fase
anterior; tendo cada uma o seu input de trabalho a res
pectiva data, indicada na série vertical. Trata-se daquilo
a que Sraffa chamou «Redução a Trabalho Datado».
É evidente que tudo depende, no que se refere ao efeito
das modificações das taxas de juro sobre os preços, da
forma como estes termos de trabalho estão distribuídos
no tempo. Consideremos em primeiro lugar o caso de
dois bens, um com maiores inputs de trabalho totais,
mas agrupados em datas recentes, e o outro com me
nores inputs de trabalho totais situados em datas
316
distantes. Com salários baixos e juro alto, o primeiro
pode ficar mais barato, apesar da sua folha de
férias maior. Se os salários subirem e os juros descerem,
o segundo será mais vantajoso em dado momento, em
virtude da sua menor folha de férias: uma vantagem
que se esperará aproveitar seja qual for a subida de
salários e a descida do juro. Este é o caso ortodoxo,
ao qual pode adaptar-se uma função de produção corrente.
Em segundo lugar, podemos supor um caso em que um
bem tem todos ou a maior parte dos sçus inputs de
trabalho aplicados numa data intermédia, tendo o outro
uma parte do trabalho numa data muito distante e o grosso
deste numa data bastante recente. B perfeitamente pos
sível que o segundo bem tenha uma vantagem de preço
em níveis intermédios de juro e salários, mas o primeiro
será preferido (porque mais barato), tanto a níveis de
muito altos (com salários baixos), como a níveis de juro
muito baixos (com salários correspondentemente eleva
dos) . A razão é, naturalmente, a possibilidade de diferen
ças no efeito composto das modificações da taxa de juro
sobre o custo comparado de inputs em datas muito distan
tes e intermédias. O exemplo de Sraffa para este caso é o
do vinho e da arca de madeira de carvalho velha.*
Mais concisamente, poderíamos dizer que neste último
caso o resultado depende das diferentes proporções do tra
balho e de outros inputs nas diferentes «camadas» do pro
cesso de produção vertical. Sraffa explicou esta situação do
seguinte modo. «Os movimentos de preços relativos de dois
produtos dependem não só das respectivas «proporções
do trabalho e dos meios de produção pelos quais são
produzidos, mas também das «proporções» em que
aqueles meios foram eles próprios produzidos, e ainda
das «proporções» em que os meios de produção daqueles
meios de produção foram produzidos, e assim por diante.
O preço relativo de dois produtos pode consequentemente
modificar-se, se os salários descerem, numa direcção
317
oposta àquela que seria de esperar com base nas suas
respectivas «proporções»; além disso, os preços dos seus
respectivos meios de produção podem modificar-se de
maneira a inverter a ordem dos dois produtos quanto
a proporções maiores e menores.»*
A relevância destes factos para o problema da quan
tidade de capital foi imediatamente sublinhada: designada
mente, «a possibilidade de apoiar-se nas tentativas feitas
para encontrar no «período de produção» uma medida
independente da quantidade de capital que pudesse ser uti
lizada, sem argumentos em círculo, para a determinação de
preços e de fracções na repartição». A viabilidade do tipo de
caso que considerámos «parece concludente na demonstra
ção da impossibilidade de reunir os «períodos» pertencentes
às diferentes quantidades de trabalho numa grandeza única
que pudesse ser considerada representativa da quantidade
de capital. As inversões na direcção do movimento dos
preços relativos (quando os salários se alteram), perante
métodos de produção inalterados, não podem ser conci
liadas com qualquer noção de capital como quantidade
mensurável independente da repartição e dos preços.»**
O debate subsequente foi iniciado por uma tentativa,
que partiu de Harvard, de demonstrar a impossibilidade
da ocorrência duma «remudança» num sistema de pro
dução» completo (isto é, no qual n bens são produzidos
por diversos métodos alternativos), enquanto distinto dum
único ramo industrial.*** Esta «impossibilidade» depressa
foi negada, verificando-se que envolvia um erro matemá
tico, tendo-se ficado a dever este trabalho a L. Pasi-
netti e também a P. Garegnani.**** No seu artigo no
* Ibid., p. 15.
** Ibid., p. 38.
*** D. Levhari, The Quartely Journal of Economics,
Vol. LX X IX ,
Fevereiro, 1965.
**** L. Pasinetti, «Changes in the Rate of Profit and Switches of
Techniques», Quartely Journal of Economics, Vol. LXXX, N.0 4,
1966, pp. 503 seg.; P. Garegnani, «Switching of Techniques», Quar
terly Journal of Economics, Vol. LXXX, N.° 4, Novembro, 1966,
pp. 554 seg.
318
Quarterly Journal of Economics, o segundo generalizou
a questão da seguinte forma: «O capital, para se tornar
o factor cujo preço de serviço é a taxa de juro, deve ser
em última análise concebido como o valor, em qualquer
unidade, dos bens de capital; e o valor de qualquer
bem de capital, tal como o valor de qualquer outro produto,
modifica-se com a repartição». Segue-se que «a própria
possibilidade de ordenar as técnicas segundo as propor
ções de capital para trabalho se nos escapa completamente,
e que a ordem pode mudar à medida que os preços e a
repartição se modificam». Aprofundando a sua análise,
mostra depois que nem sequer é válida a afirmação de que,
no caso de haver um ponto de mudança entre duas técni
cas, «a técnica para a qual vamos mudar, quando o juro
baixa, é sempre aquela — sendo os bens de capital de
ambas as técnicas avaliados aos preços do ponto de
mudança — cujo valor de capital por homem é mais
elevado. Esta pretensão não tinha qualquer fundamento.
Quando a taxa de juro diminui, a mudança pode fazer-se
a favor da técnica que exige bens de capital cujo valor por
homem é menor, e não maior.»* Segundo ele, «a aceitação
desta realidade era de grande alcance». Da «subida da pro
porção entre capital e trabalho na economia, quando o juro
desce, deduziram-se ‘funções procura’ para o ‘capital’ (isto
é, ‘poupança’) e para o trabalho... e daí, em especial,
a explicação do juro (lucros) pela escassez de ‘capital’ e
como recompensa duma ‘espera’. É difícil ver como se pode
manter esta elaborada estrutura, quando se apura que
a sua premissa é inexistente.»**
319
Poderíamos perguntar se esta pretensa dificuldade na
teoria do capital não seria susceptível de superação graças
à chamada «Função de Produção Substituta», imaginada
pelo Professor Paul Samuelson, presumindo que foi apre-
tada com esta intenção.* Mas, na realidade, esta enge
nhosa «parábola» apresenta os resultados que lhe são
atribuídos sob certas condições, que excluem ipso facto
situações em que se tornaria possível o tipo de mu
danças de preços relativos que criam o fenómeno de
«remudança». É de facto curioso descobrir que esta hipó
tese implícita vem a ser precisamente aquilo que no
sistema de Marx determina a igualdade entre «preços de
produção» e «valores» e é suficiente para evitar qualquer
divergência entre ambos: designadamente, «as iguais com
posições de capital» entre indústrias, ou coeficientes uni
formes entre meios de produção e trabalho directo, em
todas as linhas de produção. Foi também demonstrado pelo
Professor Garegnani, primeiro, que a curva que representa
todas as relações possíveis entre a taxa de juro e os
salários (máximos possíveis) de todas as técnicas pos
síveis (a que Samuelson chamou «Fronteira de Preços
de Factores») pode, na realidade, ser côncava ou convexa
na origem, e, no caso de concavidade, nunca poderia
ser uma função de produção do tipo aceite;** em se
gundo lugar, que a função de produção de Samuelson só
pode realmente existir quando todas as fronteiras indivi
duais, cada qual relativa a uma técnica particular, forem
linhas rectas,*** o que implica que a proporção entre bens
de capital e trabalho seja a mesma nas indústrias princi-
320
pais «de modo que os valores relativos» dos bens em ques
tão «sejam constantes quando a divisão do produto entre
salarios e juro se modificar». A sua conclusão é que
«a função de produção substituta de Samuelson» não é
senão aquela de cuja existência, neste tipo de economia,
nenhum crítico jamais duvidou.»*
ii
21 321
Já observámos que o facto de a procura não surgir
como determinante era igualmente uma característica do
modelo de von Neumann; e que esta característica do mo
delo provocou uma perplexidade semelhante, quando apa
receu pela primeira vez. A peculiaridade, neste último
caso, era de modo geral atribuída, embora erradamente, ao
facto de se tratar dum modelo de crescimento e de todos os
outputs serem inputs, incluindo os bens-salários, que eram
implicitamente tratados (como em Marx) como sim
ples substituição do trabalho despendido no processo de
produção (sendo os lucros inteiramente aplicados como
novo investimento). Por conseguinte, não havia nenhum
consumo capitalista nem nenhuma procura de luxo dis
criminatória. Não tem sido raro os modelos matemá
ticos, a partir de então, apresentarem, sem estas restri
ções específicas, as mesmas características gerais de pre
ços directamente derivados das condições de produção e não
influenciados pelo modelo de consumo. Assim, um ano
após a publicação de Production of Commodities by
Means of Commodities, um economista americano apre
sentou um sistema formal que conduzia à seguinte conclu
são: «Temos de concluir que os coeficientes de preços são
determinados pelas condições tecnológicas de produção;
sobretudo, as considerações de «oferta e procura» que
estão no centro da habitual teoria económica do preço
parecem não ter qualquer papel importante... Acen
tuamos uma vez mais... que, considerando o papel quase
evanescente desempenhado pela preferência do consumidor
na precedente análise,* estamos perante provas muito
convincentes contra a teoria da utilidade marginal (ou,
mais precisamente, contra o seu significado especial)»**
322
Mais adiante, o mesmo autor resumiu «a conclusão
indicada neste caso», na frase: «a taxa de lucro p
não é deterinada com êxito pelas teorias walia-
sianas da consideração de coeficientes de produç&o,
funções de utilidade e assim por diante. O que a nossa
análise mostra, de facto, é que a determinação da taxa
de lucro não é apenas uma questão económica, mas sim
um problema sócio-político... Assim, justifica-se um cep
ticismo inicial a respeito da análise clássica do equilíbrio ..
A determinação walrasiana desta taxa é contestável.*
Já em capítulos anteriores,** em relação com a defesa
do sistema de Ricardo por Dmitriev, fizemos referência
à sua demonstração de que os lucros, e portanto os preços
relativos, podem ser imediatamente determinados lo£0
que são conhecidos o salário real e as condições de pro
dução (despesas de mão-de-obra e as datas da sua
realização). Também se mencionou que, embora as con
dições de produção possam ser expressas em termos de
trabalho datado (atribuindo portanto um esquema tempo
ral à produção), podem igualmente ser expressas em ter
mos de produção simultânea, através de um sistema de
equações de input-output, sendo o trabalho um dos
inputs (evitando desta forma qualquer problema de
infinito retrocesso).
Eis o que essencialmente se pode dizer sobre o método
adoptado por Sraffa. Se na equação de Dmitriev*** subs
tituirmos os termos de trabalho (os N ) pelas quantidades
do bem-salário (A ) necessárias durante a produção de
cada bem, teremos seguramente o núcleo do sistema
de Sraffa. As equações de preços, no Capítulo II de
Production of Commoãities by Means of Commoãities,
fornecem uma série de produtos que também são inputs,
323
alguns dos quais sob a forma de meios de subsistência para
trabalhadores; sendo a equação de preço de cada produto
constituída pela soma das diversas quantidades de input
multiplicadas pelos seus diversos preços, adicionando o
produto da taxa de lucro por essa soma. Por conseguinte,
estas equações têm a seguinte forma:*
(A p + B p + ... K p ) (1 + r) = Ap
a a a b a Jc a
(A p + B p + ... K p ) (1 + r) = Bp
(A p + Bp + ... K p ) (1 + r) = Kp
Tc a Jc b 1c 1c fe
324
a quantidades de trabalho datadas»; e as suas formulações
são expressões essencialmente equivalentes à mesma
situação de produção, vista de diferentes ângulos ou em
diferentes perspectivas, conforme o caso. A equação
de redução para cada bem é então constituída por uma
série de termos de trabalho, cada qual multiplicado pelo
salário, adicionando-se a este a taxa de lucro do período
que decorrer entre a data do input de trabalho em questão
e o aparecimento do produto final. A equação de preço,
para o produto A, teria então esta forma:
L w + L w { l + r) + ... L w ( l + r ) n + ... = Ap .
a a a a
1 n
325
são produtos conjuntos do equipamento duradouro em
questão.*
O facto de o nível de salários dever ser postulado
independentemente, como um dado neste modo de determi
nação do preço («considerado como constituído por neces
sidades específicas determinadas por condições fisioló
gicas ou sociais independentes dos preços ou taxa de
lucros»),** significa que estamos de novo na metodologia
e no ponto de vista do sistema (verdadeiramente) clás
sico. Não se faz qualquer tentativa de dedução de uma
teoria da repartição a partir do interior do círculo de
trocas; e no abandono desta tentativa verificamos uma
inversão da ordem ou esquema de determinação pré-jevo-
niana: os preços derivam (ou dependem em parte) das
condições de repartição, em vez de esta derivar da estru
tura de preços, tratada, por sua vez, como resultante
da procura. Ê certo que ao utilizar um sistema de equa
ções, se trabalha com um caso de mútua determina
ção; mas isto, conforme vimos, não nega nem exclui
indicadores de direcção para a determinação em qualquer
teoria substancial; e o que aqui importa é que, entre as con
dições dadas do problema, ou dados postulados, um dado
social é introduzido do exterior (ou, como alguns podem
preferir que se diga, debaixo) do processo de mercado.***
Assim, os limites da economia como matéria são ipso facto
traçados de forma diferente e mais ampla: de modo
a incluir condições sociais, institucionais e historicamente
326
relativas, em permanente modificação e modificáveis, que
eram excluídas da economia de tradição pós-jevoniana. As
implicações ideológicas dessa diferença, que já comentá
mos num capítulo anterior, são, evidentemente, amplas
e muito importantes.
É a esta luz, parece-me, que devemos considerar um
aspecto do sistema de Sraffa — ou talvez devessemos
dizer, o seu modo de expor o sistema — que a alguns lei
tores pode parecer intrigante. Inicialmente, o trabalho
é tratado em pé de igualdade com os inputs materiais,
avaliado enquanto input por um salário de subsistência,
«no mesmo pé que o combustível para os motores ou as ra
ções para o gado». Nesse caso, o excedente tem o mesmo
significado que a mais-valia de Marx ou o rendimento lí
quido de Ricardo. Em seguida, para permitir que os salá
rios «possam incluir uma parte do produto excedente», o
autor adopta o expediente de «tratar todo o salário como
variável», excluindo-o de entre os inputs e considerando os
bens-salários, consequentemente, não como «básicos» mas
sim como «não básicos». O rendimento líquido está então
em conformidade com a definição convencional de rendi
mento nacional, que compreende salários e lucros. No en
tanto, o salário continua a ser indicado explicitamente nas
equações de determinação de preço, sendo nelas introduzido
juntamente com as quantidades de trabalho utilizadas nas
diversas indústrias (em vez de aparecer como input de
subsistência necessário). Na realidade, esta alteração é
introduzida por razões de conveniência formal, porque
facilita a definição de lucro máximo no âmbito do Bem
Padrão e demonstra o efeito duma mudança do coeficiente
salário-lucro nos preços relativos; e, em princípio, esta
modificação não tem outras implicações. (Como o próprio
autor afirma, uma «interpretação mais adequada, embora
não convencional, do salário», pode facilmente ser encon
trada à custa de um circunlóquio adicional.) Mas isto pode
ser visto como um artifício para manipular situações em
que a contratação colectiva alcançara uma importância sig
nificativa no mercado do trabalho e os sindicatos tinham
conseguido influenciar a mais-valia no interesse de salários
mais elevados. Se tivermos de encontrar uma analogia mar-
327
xista, poderá ser esta: o conceito marxista do valor da força
de trabalho podia ser considerado no contexto do capita
lismo «puro», com a força de trabalho vendida em situação
de concorrência por lance individual. A contratação colec
tiva, logo que se desenvolveu, introduziu um elemento novo
na situação; e, consequentemente, o preço da força de tra
balho já não corresponde necessariamente ao seu valor,
mas pode aumentar à custa da mais-valia. Para fins teóri
cos, tem de adoptar-se agora como dado o grau e a influên
cia no mercado da organização do trabalho, visto que esta
determina que parte daquilo que no caso «puro» era a
mais-valia está agora incluída no salário.*
Um conceito destinado a resolver o problema que,
conforme vimos, foi fundamental (e insolúvel) para Ri
cardo, ocupa no sistema de Sraffa um lugar central:
o de um «padrão invariável», ou medida de valor, que
se mantenha invariável perante modificações no coefi
ciente lucro-salários. Ricardo procurou-o no Trabalho
como o seu Valor Absoluto; mas descobriu que era difícil
utilizar esta simplificação, na medida em que as propor
ções de capital (a «composição orgânica do capital» de
Marx) eram diferentes para cada indústria. A importante
contribuição de Sraffa foi ter resolvido este problema
graças ao chamado «Bem padrão»:** escolhendo (hipo
teticamente) um bem, ou conjunto de bens, com as pro
priedades necessárias, de modo que se este fosse esco
lhido como moeda, ou numéraire, as avaliações realizadas
nesses termos seriam invariantes para as alterações de re
partição em dois aspectos fundamentais. Primeiro, se os
salários forem definidos em termog desse padrão, existirá
uma relação linear entre as alterações de salários e as alte
rações de lucro resultantes (e em sentido oposto). É isto
que de facto sucede, quer o lucro seja expresso em termos
328
do sistema padrão ou, pelo contrário, em termos do sis
tema real. Em segundo lugar, «a razão entre o produto
líquido e os meios de produção manter-se-á a mesma,
quaisquer que sejam as variações verificadas na repar
tição do produto líquido entre salários e lucro.»*
Numa linguagem corrente e popular, esta medida
padrão é constituída por um bem produzido em certas
condições médias de produção. Mas que condições médias ?
Numa análise mais minuciosa, apercebemo-nos de que a
definição de tais condições é menos simples do que pode
parecer à primeira vista, em virtude de razões conhecidas
dos práticos da análise do input-output. Se quiséssemos
um bem individual real, as características requeridas
seriam as que se seguem:
* Ibid., p. 21.
** Ibid., pp. 12-13.
329
7
330
e os preços dos bens resultantes, são indiferentemente
considerados como expressos quer no produto líquido pa
drão, quer na quantidade de trabalho que no nível dado da
taxa de lucros sabemos ser-lhe equivalente». Quando
os salários se modificam, e com eles (inversamente)
os lucros, esta quantidade de trabalho-padrão também
muda no mesmo sentido. A conclusão é que «todas as
propriedades dum ‘padrão de valor invariável’... se encon
tram numa quantidade de trabalho variável, a qual, no
entanto, varia segundo uma regra simples, independente
dos preços». Esta quantidade de trabalho que funciona
como uma unidade de medida «aumenta de grandeza
quando o salário diminui, isto é, quando a taxa de lucro
aumenta, de maneira que, em virtude de ser igual ao
trabalho anual do sistema quando a taxa de lucro é zero,
aumenta sem limite à medida que a taxa de lucro se
aproxima do seu valor máximo».*
Assim, aquilo que era considerado um problema fun
damental de política económica no tempo de Ricardo, foi
resolvido século e meio mais tarde. Sem uma solução,
não seria possível distinguir, no caso de «qualquer
flutuação de preço em particular, se esta provém das
peculiaridades do bem que está a ser medido, ou das
do padrão de medida».** Mas há uma reflexão suscitada
por esta notável realização, que a muitos pode parecer
de interesse mais geral do que os pormenores da
própria solução. É o facto de este problema ter sido du
rante tanto tempo inteiramente incompreendido, ao
ponto de se negar a sua existência como problema real,
e a causa desta incompreensão e menosprezo. A causa
w R’ — r
331
era evidentemente a mesma que a da cegueira perante a
possibilidade de «remudança» de métodos produtivos:
a incapacidade dos economistas pós-ricardianos para
apreciar a dependência da estrutura de preços em relação
à repartição, e a sua preocupação (pelo menos a partir
de Jevons e dos Austríacos) com a dependência -in
vertida da repartição relativamente a uma estru
tura de preços determinada pela procura. Parece estar
mos perante mais um exemplo (se for necessário) dos
desvios de pensamento provocados pelas estruturas con
ceptuais, quer herdadas quer adquiridas — uma estru
tura ou «imagem» que, como sugerimos no começo deste
livro, poderia estar imbuída de ideologia, ou até ser por
ela instigada e inspirada.
Ainda é cedo para termos alguma certeza sobre o
que virá na sequência de tudo isto; manter silêncio
é preferível a cair na tentação de especular sem base em
fundamentos seguros. Mas seja qual for a maneira como
decorrer a futura análise e discussão, certamente que
só pode trazer um esclarecimento da crítica animada da
última década, quer esteja destinado a ser principalmente
negação e derrota, quer mediação e transcendência
para nova síntese. De qualquer modo, pode dizer-se que
a discussão da década de 1960 foi sem qualquer dúvida
um ponto de viragem. Quanto mais não seja porque aquilo
que tinha sido amplamente aceite como uma ortodoxia
dos manuais de estudo foi profundamente abalado, e
porque se fez reviver uma tradição mais antiga e posta
de parte, nada poderá voltar a ser como antes.
334
o poder de negar a crescente influência do sindicalismo
sobre os salários monetários, e a capacidade para tolerar
condições em que o exército industrial de reserva já não
pode desempenhar o seu papel «estabilizador» inicial.
Há algumas dificuldades formais no seio desta teoria,
relativas à medida em que o grau de monopólio tem de ser
apropriadamente definido. O próprio Kalecki interpretou
isto em termos da inelasticidade da curva de procura
(e portanto a proporção entre procura-preço médios e
receita marginal e custo marginal e médio). Mas
como se processará a transferência do nível dum certo pro
duto em especial, para o nível macroscópico da economia
em geral; e que conteúdo real terá a noção, se essa transfe
rência puder realizar-se satisfatoriamente?* Uma dificul
dade mais concreta é o facto de que, por implicação, o au
mento seria igual a zero, em condições de concorrência
perfeita. Se a mais-valia for unicamente criação do mono
pólio, a sua existência parece ser contestável, nas condi
ções de concorrência «normais» consideradas pelos econo
mistas clássicos e por Marx. Esta objecção seria pouco
importante se a teoria fosse declaradamente consagrada
ao capitalismo monopolista em si mesmo; poderia admi
tir-se uma explicação alternativa da mais-valia adequada
a uma fase anterior e de concorrência do sistema, em
condições de uma reserva de mão-de-obra e de oferta de
trabalho elástica.**
335
Alternativamente, e com uma intenção um pouco dife
rente, pode dizer-se que, embora a explicação marxista
clássica para o aparecimento da mais-valia continue a ser
aplicável tanto ao capitalismo moderno como à sua fase
anterior, a influência do monopólio intervém como ele
mento extra na fase de capitalismo monopolista — uma
influência que lembra formas de exploração características
de estádios de desenvolvimento pré-capitalista.
Uma dificuldade análoga aplica-se à teoria pós-
-keynesiana, segundo a qual a parte do lucro no rendi
mento nacional depende da taxa de crescimento da eco
nomia, juntamente com a tendência dos capitalistas
para a poupança (ou, alternativamente, o consumo). Pa
rece poder deduzir-se daqui que em condições estáticas,
com acumulação de capital nula (a «reprodução simples»
de Marx) os lucros poderiam ser nulos. No entanto, isto
só poderia suceder se os capitalistas se recusassem persis
tentemente não só a investir, mas ainda a gastar os seus
rendimentos (potenciais): a mais-valia deixaria então de
se formar, simplesmente porque não poderia ser «rea
lizada», ainda que existissem condições favoráveis à sua
«criação». Contra isto como teoria de repartição do rendi
mento, o Dr. Nuti objectou convincentemente que a relação
postulada «é uma relação necessária que deve sempre exis
tir para o equilíbrio macro-económico entre grandezas ex
post. Neste sentido não pode ser considerada falsa, e, por
tanto, não constitui fundamento para uma teoria da deter
minação das partes da taxa de lucro e rendimento, especial
mente a curto prazo».* De qualquer forma, a teoria, quando
336
interpretada como uma relação necessária ex post, ¿em
pouca relação com grandezas ex ante, às quais é de pre
sumir que se faça referência quando se fala de «tendên
cias» como determinantes.*
Uma outra hipótese plausível é que uma taxa mínima
de lucro seja de algum modo estabelecida por certo tipo
de mecanismo de decisão quase-político ou institucional.
Isto é uma interpretação plausível, talvez, de uma su
gestão dada por Sraffa, quando propõe que no sis
tema a taxa de lucro poderia ser postulada como
variável independente, em vez do salário real: a pri
meira «pode ser determinada do exterior do sistema de pro
dução, principalmente através do nível das taxas monetá
rias de juro».** Estas seriam provavelmente fixadas, em
termos gerais, pelo Banco Central, quer actuando por sua
própria iniciativa quer como um instrumento da política
monetária governamental. Se estivermos inclinados para
ver a política do Estado como um instrumento ou reflexo
dum interesse de classe, ou de grupos de pressão poderosos
no interior da classe dominante, teremos tendência para
considerar a política monetária uma forma de manter (mais
ou menos conscientemente),*** em benefício dos deten
tores de capital no seu conjunto, a parte de lucro nas
receitas da produção que as circunstâncias existentes
permitirem. Ê certo que de vez em quando as taxas de juro
podem descer, na prossecução duma «política monetária
barata», como em tempo de guerra ou de depressão
económica, ou sob a influência de relações económicas
22
337
internacionais.* (Em ocasiões de excesso de capacidade,
por exemplo, pode ser de interesse colectivo para os
beneficiários dos lucros descer as taxas de juro e lucro,
se por este meio puder ser aumentada a despesa em inves
timento e portanto a capacidade produtiva.) Mas o próprio
facto de a ideia duma taxa a longo prazo «normal» ter
resistido com tanta persistência, mesmo aparentemente,
em períodos conturbados, vem apoiar a convicção de que
a finalidade convencional da política bancária é estabelecer
um mínimo substancial para a parte do lucro.**
Finalmente, antes de deixarmos estas questões,
resta-nos mencionar uma dificuldade que alguns sen
tem em postularem os salários reais como variável
independente, se isto for feito (como em Marx) em termos
de valor (isto é, de trabalho) ou em termos do Bem Padrão
de Sraffa. No primeiro caso, objecta-se que os bens-
-salário não são de facto comprados pelos trabalhadores
pelos respectivos valores, mas sim pelos seus preços de pro
dução;*** no último caso, objecta-se que o consumo real
dos trabalhadores talvez não seja relativo ao Bem
Padrão, mas sim a um conjunto de bens completamente
diferente. Em qualquer dos casos, o postulado perde
conteúdo essencial. Esta dificuldade, no entanto, torna-
-se mais aparente que real, desde que se esteja dispos
to a aceitar a noção dum dado padrão de vida cons
tituído por um conjunto de diversos bens-salário, con
siderados equivalentes por cada família de trabalhadores
típica, e a interpretar «um dado nível de salários reais»
neste sentido. Neste caso, uma definição em termos
dum membro dum conjunto equivalente (quer em termos
de trabalho necessário para produzi-lo quer de Bem
338
Padrão) manterá o seu significado quando traduzida
para outro membro do mesmo conjunto de equivalentes.
Apenas podemos concluir, no momento em que escre
vemos, que essas explicações alternativas da repartição
no nosso mundo do século vinte estão sub juãice na
discussão económica corrente, e que esta (ou mesmo a
sua elaboração) ainda não atingiu, até aqui, um ponto
que permita um juízo final, e ainda menos falar
dum consenso. Pode isto não ser satisfatório como
nota final; no entanto, parece-nos inevitável. Pelo menos,
pode ser uma indicação de que a economia política não
é um texto acabado e continua aberta à moldagem cria
dora da controvérsia, com a qual tanto se enriqueceu no
passado. Na verdade, talvez isto seja mais verdadeiro hoje
que há meio século, quando Keynes escreveu sobre «os
princípios gerais de pensamento, que os economistas ac
tualmente aplicam a problemas económicos», como se se
tratasse de um corpus de teoria aceite.*
339
Í N D I C E
2. A D A M SM ITH ................................................................ 55
3. D A V ID RICARDO ......................................................... 87