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APROXIMAÇÕES ENTRE LEITURA DA BÍBLIA E PSICANÁLISE:

UM ESBOÇO DE DIÁLOGO 1

Karin Kepler Wondracek2


Talvez soe estranho aos ouvidos de ambos, psicanalistas e teólogos, a aproximação que pretendemos aqui. Pois
3
há mais sensações de afastamento que de aproximação, em todos estes anos de embates e debates. Por isso, é
prudente começar por colocar as possíveis aproximações. Num primeiro momento, falar de caminhos comuns, e depois
da relação entre o texto escrito e a sessão analítica. Para começar, resgatemos a herança judaica de Freud, leitor da
Biblia.

1. Freud, filho do Talmud


Freud foi então buscar nos sonhos, nos mitos e nas histórias sagradas uma confirmação do que é da
ordem da incoerência, do indizível e do invisível.
Construir um edifício teórico como se fosse um tecelão, esta foi a estratégia de Freud. Em seu tear, a
matéria prima – a palavra do paciente – era cerzida com os fios do pensamento grego, e os da ética
judaica, e bordada com metáforas retiradas do drama e da poesia ocidentais.
Betty B. Fuks4

A psicanálise, diz ele, talvez não seja concebível como nascida fora dessa tradição [hebraica]. Freud
nasceu nela e, como sublinhei, insiste em que só tem propriamente confiança, para fazer avançar as
coisas no campo que descobriu, nesses judeus que sabem ler há muitíssimo tempo, e que vive, – é o
Talmude – da referência a um texto.
Jacques Lacan5

Se a frase de Betty Fuks resume o percurso freudiano e o aproxima da ética judaica, a de


Lacan quer indicar que esta ética é alicerçada na referência ao Talmude – o Livro, o texto por
excelência. Para isso nos embasamos na tese de doutorado da psicanalista Betty B. Fuks, Freud e a
judeidade: a vocação do exílio.
No seu último grande escrito, Moisés e o monoteísmo6, Freud analisa a herança que a
religião judaica trouxe a seu povo; o destaque é dado às repercussões psíquicas e culturais do
Segundo Mandamento: “não farás para ti imagem”, lado a lado com a grafia do tetragrama
impronunciável YHVH. Freud pondera que a invenção do monoteísmo com tais atributos impõe

1
Texto primeiramente elaborado para a abertura do Grupo de Estudos Psicanálise-Biblia, em
2005, no Círculo Psicanalítico de Porto Alegre, sob coordenação de Natal Fachini e nossa; mais
tarde complementado com a pesquisa de doutorado.
2
Psicóloga e psicanalista, membro pleno da Sigmund Freud Associação Psicanalítica e do Corpo
de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos. Contatos: karinkw@gmail.com
3
Especialmente em O futuro e a ilusão: um embate com Freud sobre a religião. Petrópolis:
Vozes, 2003, organizado pela autora. Cf também O amor e seus destinos: a contribuição de
Oskar Pfister para o diálogo entre teologia e psicanálise (Sinodal, 2005), dissertação de
mestrado da autora.
4
FUKS, Betty B. Freud e a judeidade: a vocação do exílio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p.
58. Os próximos parágrafos são retirados da tese de doutorado Ser nascido na Vida: a
fenomenologia da Vida de Michel Henry e sua contribuição para a clínica. São Leopoldo: PPG
EST, 2010.
5
LACAN apud FUKS, 2000, p. 139.
6
FREUD, Moisés e o monoteísmo (1939). OC v. XXIII, 1977, p. 19-167.
2

uma ausência de representação ao espírito humano que lhe traz conflitos, pois esse “não se cansa
de procurar organizar-se no sentido das imagens e da presença figurada”7.
Fuks ressalta como essa concepção traz o escândalo da alteridade radical: um Deus feito de
nada, sem conteúdo, sem nomeação e sem essência. Essa seria uma das razões do ódio dos demais
povos aos representantes de tal ausência radical. Freud interpreta o efeito dessa interdição de
representabilidade no seu povo:
Uma vez aceita, porém, esta proibição teve um efeito profundo sobre os hebreus: significava um
retrocesso da percepção sensorial diante do que se poderia ser chamado de idéia abstrata – um
triunfo do espírito sobre a sensualidade, ou, a rigor, uma renúncia ao pulsional, com todas as suas
consequências psicológicas necessárias8.

A interpretação freudiana vai no sentido de atestar a evolução intelectual e espiritual com o


distanciamento do corpóreo e a busca do abstrato. O corpo é relacionado ao continente materno,
lugar dos afetos primários e também das religiões primitivas. A passagem para o mundo das ideias
é ligada ao território do pai e da sua presença mediante a palavra. O Deus dos hebreus revela-se
pela palavra, tal qual o pai, e pelo sopro invisível infunde seu espírito ao ser humano, que vive a
partir deste.
1. Para começar, a história do povo é marcada pelo exílio, pelo deserto, pelo nomadismo e
pelo contato pemanente com o estrangeiro, o que faz com que em todo tempo se tenha presente
“o estranho”, também remetendo a um “estranho” dentro do psiquismo, um estranho dentro dos
textos.
2. Em relação a seu Deus, este é representado por um tetragrama – IHVH –, cuja pronúncia
foi esquecida, remetendo a que sempre está além da representação que se fará dele, e assim seu
Deus é alteridade absoluta, inquietante estranheza e por isso presença de angústia.
A angústia, o ensurdecedor barulho do silêncio, surge diante deste abismo de onde reverbera o som
ininteligível que subjaz à lembrança que é de todos: a passagem pelo deserto, o exílio inexorável a que
se está destinado desde o nascimento. YHVH não pode exercer a função de espelho porque é
alteridade radical, avesso a qualquer forma de representação.9

3. As letras do hebraico comportam uma polissemia de interpretações, sem que uma negue
a veracidade da outra. O texto é aproximado da obra de arte, com sentido inesgotável, “está
ancorado no mais além do simbólico: tecido de diferenças é criação ex-nihilo”10. As consoantes
indicativas que fornecem indícios à pronúncia são significativamente chamadas de “mães de
leitura”; e as interpontuações vocálicas juntadas para poder pronunciar e interpretar são a “alma
das letras”11. Mães e alma... dão corpo e sopro de vida à letra. As palavras são lidas e interpretadas
levando em conta o branco do papel que as circunda – sempre outro, sempre diferente do já
sabido, tal como seu Deus. “Quando se imprime alma às letras, como diziam os antigos escribas, o
sentido de uma palavra pode revelar significações inteiramente insólitas.”
Os exegetas hebreus acreditavam que cada versículo da Biblia comportava 60 possibilidades
diferentes de interpretação, complementares e não excludentes, por isso inesgotáveis.12 Por isso a
hermenêutica psicanalítica é tão prenha de sentidos, sempre criativos e novos.
4. O tetragrama YHVH é a analogia tomada por Freud para a interpretação do sonho: as
imagens do sonho devem ser lidas como as letras do tetragrama, remetendo à polissemia e à
impossibilidade de decifrá-lo plenamente, pois ele resiste a todas elas. Interpretar ou ler
psicanaliticamente um sonho é "deixar um lugar nas sombras... o umbigo do sonho, o lugar em que
ele se assenta no não conhecido” 13. Em outras palavras, compreender o texto bíblico pela
hermenêutica psicanalítica é fazê-lo voltar ao modo originário de interpretação – polissêmico tal
7
FUKS, 2000, p. 99.
8
FREUD (1939), 1977. p. 139.
9
FUKS, 2000, p. 108.
10
FUKS, 2000, p. 122.
11
FUKS, 2000, p. 127. A próxima também.
12
CHOURAQUI, André. Louvores II, p. #
13
FREUD apud FUKS, 2000, p. 126, também p. 107.

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qual o sonho. Do texto sagrado à psicanálise, da psicanálise de volta ao texto sagrado, mantendo o
modo original de interpretação.
5. Se Deus é irrepresentável, assim também o humano, feito à imagem de Deus, em certa
medida o é. Este é o conceito de Kadosh [santo, separado]: o humano para além da representação.
Eis o paradoxo da condição humana: ser feito à imagem e semelhança desse Deus que não admite
imagem.
Essa antinomia – identificação à ausência de imagem – estabelece que o homem, sendo santo e
separado, é também irredutível a qualquer representação fixa e imutável (Levítico 19.2). Há sempre
algo que escapa a seu próprio espelho; a epifania do rosto, o que está para além do idêntico que não
se transformar em conteúdo14.

Compreender o texto sagrado, portanto, também é compreender parcialmente e


fragmentariamente o mistério do humano feito à imagem desse divino irrepresentável, sempre
para além do texto, mas no entanto, se revelando através dele.
6. Se a palavra se constitui na revelação do Deus Único e Ausente, é Palavra infinita que não
se sincroniza com os signos que a captam – inscreve-se numa narrativa e numa lei. Essa inscrição
será o traço de uma palavra primeira, primordial, de um dizer que já está retirado do dito” 15.
Numa narrativa e numa lei – numa história dos encontros de afetos e numa sistematização
para a memória, mas que deve ser “re-cordada” em todos os momentos do viver, ou seja, tornar-se
memória do corpo nas diferentes posturas do vivido, algo que a herança galileana 16 também
ameaçou varrer dos estudos dessa Palavra.
No judaísmo, a palavra-representação não abarca o todo, isso sempre referido pelo
esquecimento da pronúncia do nome do pai – impronunciável, irrepresentável, mas presente. “A
palavra é portanto o fio infinito que tece o tecido que recobre o vazio insuperável entre Deus e os
homens, entre homem e homem kadosh e kedushim”17.
Também a Palavra, a Bíblia, tem esse sentido de tecer o fio que recobre o vazio da proibição
da representação que fixaria idolatricamente a imagem. Assim abre-se possibilidades múltiplas de
ler, associar, reler, associar novamente, sempre sabendo que não supera completamente o vazio da
ausência, mas apenas conseque circunscrevê-la.
7. O conceito de pulsão também é iconoclasta – e neste sentido não apenas próximo à
Vontade cega de Schopenhauer, mas perto do Segundo Mandamento:
Todas as letras e palavras escritas no corpus teórico psicanalítico não recobrem, seja com figuras, seja
com definições, este conceito, cujos fundamentos se enraizam na impossibilidade de fixar-se uma
representação para a inesgotável melodia pulsional, assim determinando um vazio presente em sua
estrutura: a pulsão se traduz apenas como uma potência que se presentifica em representações
efêmeras e transitórias18.

Assim como a Palavra revela e encobre IHVH, a representação o faz em relação à pulsão.
“Este o esforço que obriga o analista a atravessar os afetos e as idéias como os nômades
atravessam o deserto e as cidades.”19 Se o afeto é região desértica, lá a revelação de YHVH se deu
como presença em fogo e nuvem. Fuks afirma que, para melhor compreender os paradoxos do

14
FUKS, 2000, p. 105, certamente inspirada em Levinas.
15
BANON apud FUKS, p. 106.
16
Herança galileana é um conceito do filósofo Michel Henry (1922-2002) que assim nomeia a
desconfiança do pensamento ocidental, desde Galileu, com os dados apreendidos na
subjetividade e a posterior exigência de representabilidade a todo fenômeno no pensamento
ocidental. Se esse processo foi benéfico para o avanço das ciências, foi catastrófico para a
subjetividade, gerando a desqualificação da dimensão afetiva e das verdades que não são
representáveis, como o são as da Vida. Cf. tese da autora e HENRY, M. Genealogia da
psicanálise: o começo perdido. Curitiba: UFPR, 2009.
17
FUKS, 2000, p. 106.
18
FUKS, 2000, p. 104.
19
FUKS, 2000, p. 104.

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Sinai, é preciso situar YHVH no registro do inconsciente não-recalcado. Essa herança traz a Freud o
duplo registro:
Freud reconhece duas formas de registro da pulsão: a ideativa e a afetiva, implicando cada uma delas
uma forma distinta de energia psíquica. É fato que uma não pode ser pensada sem a outra; a primeira
envolve um representante que já se inscreveu, já se ligou à ordem ideativa; a segunda indica um
excesso pulsional irredutível às malhas da simbolização. Nesse último registro, grita a inominável
angústia. É no face-a-face com o desconhecido que o sujeito vive o encontro que expressa a extensão
da repetição de uma experiência que “não cessa de não se inscrever”, segundo a fórmula de Lacan
para falar do registro do real.20

Esta experiência do desconhecido em si também se dá na interpretação do texto: este


também deve considerar a mensagem dupla presente nele: o significado explícito e o significado
latente. Um não anula o outro, mas se complementam. Este o modo dos exegetas judeus
operarem, tal como mostra Abraham Heschel na discussão a respeito da isenção do cego de um
olho de peregrinar a Jerusalém. Os exegetas isentam-no pois assim como ele veio para ser visto, ele
veio para ver, mas cego de um olho, não consegue ver a grandeza de Deus no seu Templo. Este o
sentido manifesto desse texto; mas Heschel como intérprete faz a passagem para o sentido latente,
da mesma forma como Freud o faz na interpretação do sonho:
Nessa busca, um olho é o da razão o outro o do coração (místico). Aquele que é espiritualmente cego
de um olho, que só consegue ter a experiência religiosa por meio da perspectiva da razão ou da
perspectiva da mística, não consegue viver a experiência religiosa na profundidade necessária para
estar na presença do Deus vivo. Tendo apenas a visão parcial, ele não consegue fazer a necessária
paralaxe, isto é, sintetizar os dois pontos de vista em uma visão tridimensional.21

Se os exegetas como Heschel expressam que a profundidade do texto só é atingida com os


dois olhos, cabe perguntar se as leituras psicanalíticas da Biblia não buscam justamente o “outro
olho”, com o qual penetrar na profundidade do texto para, como expressa Tillich, este seja
pregação ao inconsciente?22 Por que insistem os psicanalistas leitores da Biblia23, por que insistem
os hermeneutas com a psicanálise?
Talvez o próximo ponto possa trazer mais elementos para essas questões.

2. O texto como sessão e a sessão como texto


Para Raguse (1994) tanto na leitura de um texto como para uma sessão analítica, há um
espaço por preencher – o escritor não está presente para “explicar-se” ou mostrar-se; da mesma
forma, o analisando não está totalmente presente, pois seus dinamismos inconscientes estão
recalcados. Deus está ausente e é presentificado pelo texto; as pulsões estão recalcadas e se
manifestam na fala do analisando.
A palavra é erigida a símbolo que recria a presença do ausente – isto remete ao texto já
citado de Freud “Os progressos da espiritualidade”24.
Deste modo, há um espaço que fica vazio entre o leitor e o texto, como também entre
analisando e analista – espaço que é preenchido pela transferência e contratransferência. Segundo
o teólogo e psicanalista Hartmuth Raguse, as fantasias tecem uma trama que une ambos – na
leitura e na sessão. Foi Winnicott quem mais se ocupou deste fenômeno, ao conceituar o “espaço

20
FUKS, 2000, p. 107.
21
LEONE, Alexandre. Mística e razão: dialética no pensamento judaico. São Paulo: Perspectiva,
2011, p. 141.
22 WONDRACEK, K. A teologia de Tillich e a psicanálise. Correlatio. São Bernardo do Campo,
v.6, 2004
23
DOLTO, Françoise e SEVERIN, Gerald. O evangelho segundo a psicanálise. KRISTEVA, Julia:
Ler a Biblia; Marie Balmary, O sacrifício proibido. JULIEN, Philippe. Abandonarás teu pai e tua
mãe, para citar alguns. Vide bibliografia no final
24
FREUD (1939). Os progressos da espiritualidade. In: Moisés e o monoteísmo. Obras
completas. Rio de Janeiro: Imago, 1977.

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transicional”, o lugar entre a mãe e seu bebê, onde este preenche a ausência materna com as
fantasias e objetos que evocam a presença amada.
O paradoxal é que este espaço de ausência justamente é necessário para que haja esta
recriação, esta nova presentificação.
É o espaço da brincadeira e da fantasia ficcionante, através da qual um ambiente limitado é
preenchido com um mundo que simultaneamente é objetivo e subjetivo. Através do ler a leitora e o
leitor criam um mundo, que por um lado é determinado pelo texto e de modo nenhum surge
totalmente do nada. Mas cada leitura do mesmo texto é diferente, e na criação do mundo textual não
é possível delimitar qual o elemento que se origina no sujeito e qual no objeto. Ambos sempre estão
envolvidos. O que eu cito aqui se refere principalmente à leitura espontânea, mas também o processo
científico de interpretação não tem como sua matéria-prima o texto “objetivo”, mas a leitura do texto
25
através de um intérprete.

No mínimo, são necessários dois: o texto e o intérprete. Aprofundando o paradoxo, Raguse


toma uma cena da Odisséia como figura da leitura – Odisseu está no Vale dos mortos, e para fazê-
los falar, necessita dar-lhes sangue de um animal sacrificado. Sob efeito deste sangue os mortos
falam, e dizem coisas que surpreendem. Isto é, o leitor precisa dar seu “sangue” para que o texto
fale: mas ao mesmo tempo em que o leitor recria o texto pela sua leitura, o texto também mostra
sua independência ao falar ao leitor palavras que este não espera:
Um texto que começa a nos falar sempre já é um texto lido, isto é, um texto que nossa subjetividade
despertou para a vida. No entanto, ele não é apenas um eco da nossa voz interior. Ele fala como
Tirésias a Odisseu, e nos diz coisas que não esperávamos. Pois não fomos nós que o escrevemos, nem
fomos nós que criamos a linguagem na qual foi escrito. Ele nos fala apenas dentro da moldura que
criamos para ele, e na qual nós fornecemos vida a ele.”26

Com a psicanalista Françoise Dolto podes perceber a riqueza oculta nos textos da Biblia: eles
falam de narrativas comuns a todos os humanos, falam do seu nascer, viver e morrer, dos seus
medos e angústias, especialmente aqueles âmbitos que não podem ser expressados em palavras.
Da mesma forma que uma sessão analítica, também o texto desperta resistências. Somos
sujeitos com aparelho psíquico constituído por repressões e outras defesas, quer queiramos ou
não. Utilizando os conhecimentos psicanalíticos, cabe assinalar, junto com alguns autores, a
especial resistência que o texto bíblico despertou no meio psicanalítico, tal como expressa
Françoise Dolto em seu diálogo com Gérald Sévérin:
Sévérin: “Muitas vezes, aceitamos a grandeza e a profundidade humana das mitologias grega ou indus,
enquanto deixamos de lado, nesse plano, a riqueza dos mitos judaico-cristãos (...) será, talvez um certo
medo de ir além ou do transcendente que impede a maioria dos que não crêem de aderirem a elas?

Françoise Dolto: Sem dúvida. Para mim, não há dúvida de que a ‘Sagrada Família’, como dizem os
católicos ou os Evangelhos narrandos a infância de Jesus, exprime-se através de imagens míticas, mas
veiculam também um mistério, uma verdade que se revela nesses textos.

Há mito nessas passagens do Evangelho. Não há dúvida. Mas, para mim, cristã e psicanalista, não há só
isso. O que sabemos nós, com nossos conhecimentos biológicos, científicos, sobre o amor e seu
mistério? O que sabemos da alegria? Como também, o qu sabemos da palavra? Não é ela
fecundadora? Não é ela, algumas vezes, portadora de morte?” (1979, p. 21 e 22).

A resistência está em função do mistério que esses textos trazem... mistérios sobre nós,
nossas origens, nosso devir. Também Marie Balmary comenta o fenômeno do recalcamento para
explicar a relação da nossa cultura com os textos da Bíblia:
Bíblia: uma memória recalcada pela nossa cultura. Seres escravizados e bloqueados por crenças.
Minha própria intuição é que esses textos deviam ser ouvidos de forma diferente após a psicanálise;
trabalho de outros que abriam, cá e lá, níveis muito mais profundos de interpretação...” (Balmary,
1997)

25
RAGUSE, Der Raum des Textes. Kohlhammer, p. 12.

26
RAGUSE, p. 14

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Para ilustrar, vai uma pequena amostra de autores psicanalistas que trabalham com a
hermenêutica psicanalítica da Biblia:
Julia KRISTEVA: “As “ciências humanas”, dependentes de uma racionalidade que aspira a desvelar a
lógica universal depositada num mito, num texto hierático ou num poema, são levadas, ante a Bíblia, a
só estudar a lógica ou a retórica do texto. Não levam em conta, inicialmente, seu poder sagrado. Mas
esperam descobrir, ao término dessa análise positiva e neutra, o mecanismo, o enigma mesmo,
daquilo que é recebido como “santo” e que, implicitamente, opera como tal. (...) A leitura e a
interpretação da Bíblia não seriam, em última análise, o rito dominante, o próprio esgotamento do
ritual e do sagrado judaicos na linguagem e na lógica?

...Quem fala na Bíblia? Para quem?

Essa pergunta é tão mais importante no momento quanto parece tratar-se de um sujeito que, longe de
ser neutro ou indiferente como o das teorias interpretativas modernas, mantém com seu Deus, ao
contrário, uma relação específica de crise ou de processo. Se é verdade que todos os textos ditos
sagrados falam dos estados-limites da subjetividade, é cabível interrogar-se sobre esses estados
particulares que o narrador bíblico conhece. É, portanto, por uma dinâmica intra ou infra-subjetiva
que uma tal leitura será levada a interessar-se. Essa dinâmica, claro, se manifesta nas figuras do
próprio texto. Mas sua interpretação depende de que se leve em conta um novo espaço, o do sujeito
falante. Este, desde então, deixa de ser o ponto opaco que garante a universalidade das operações
lógicas, para abri-se em espaços analisáveis. Aqui aludo à teoria freudiana, porque ela pode retomar
os resultados das análises bíblicas evocadas acima para desdobrá-las no espaço subjetivo. Uma
interpretação que interiorizasse essas descobertas como dispositivos específicos de certos estados do
sujeito da enunciação permitiria ultrapassar a visão simplesmente descritiva. Poderia iluminar o
impacto bíblico sobre seus destinatários.” (2002, p. 127)

“Não conheço o hebraico, leio a Bíblia como profana e sem competência nem verdadeira assiduidade.
Textos literários, porém, me remetem a ela sem cessar, bem como numerosos sonhos, e momentos de
análise – insuportáveis ou magníficos...Depreendo disso tudo um destino específico do feminino que
compreendo, naqueil oque abriga uma transição desse elemento “maternal” – que o paganismo
sacraliza enquanto os politeísmos o cindem e o disseminam – numa construção moral altamente
elaborada.” (...)

“Todos conhecemos – mas será que conhecemos de verdade? Quem é que lê esses textos além dos
crentes? – as muito célebres quatro “mães do Gênesis” e seu poder sobrenatural: belas, rebeldes,
guerreiras, elas são ao mesmo tempo estéreis e dotadas de longevidade – como para conjurar a
natural fecundidade pagã com um destino totalmente diferente, vindo do Outro, mas ao qual elas
também não aderem de corpo e alma.” (2001, p. 121-2)

Marie BALMARY: “Tanto na religião como na análise, é preciso que a figura imaginária do Outro
perverso possa ser projetada e desmascarada. Nesses dois casos, recorre-se à interpretação. O analista
com seu paciente, interpreta e analisa a memória individual, pode-se dizer que de forma esquemática.
Quem interpreta e analisa a memória coletiva a não ser quem está disposto a ouvir e interpretar os
materiais que vêm dela e as projeções calcadas nas grandes figuras religiosas para que não fiquem
coaguladas, coagulando-se também na custosa manutenção de mecanismos de defesa?

Não é necessário para isso ouvir os textos dos quais nos vieram essas figuras, prodigiosas telas para os
nossos cinemas interiores? Se tais textos são , como se diz, reveladores, devem favorecer os dois
tempos necessários para toda terapia: a projeção e a leitura da projeção, a alienação e a cura.”(1997,
p.94)

A leitura psicanalítica da Biblia se faz nesses dois tempos, baseados na interpretação dos
sonhos:
1. Considerar o texto como um sonho, no qual projetamos nossos impulsos e desejos, de
uma forma disfarçada. Condensação e deslocamento são os mecanismos de construção do sonho:
também no texto nossos impulsos aparecem de forma condensada e deslocada. Todos os
elementos do texto podem ser representativos de partes nossas, que se encontram projetadas,
cindidas e deslocadas sobre o texto.

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2. Entrando em contato com os elementos: Na leitura do texto, prestar atenção aos que o
texto evoca: sentimentos, associações, recusas, dificuldades, lapsos. Tudo são indicativos de que
algo se reflete do nosso interior. Dialogar com estes elementos, interrogá-los, imaginá-los, colocar-
se no lugar deles. Deixar que nos revelem sobre nosso interior, nossos desejos reprimidos, nossa
vida emocional escondida de nós mesmos.
Até aqui, parece que os textos são considerados puramente projeções de nossa
humanidade, e também poderiam ser substituídos por outro texto, mito ou lenda. No entanto, não
é assim: consideramos que Deus criou a humanidade à sua imagem e semelhança, estamos
descobrindo algo do Seu Ser. É só lembrarmos que Deus amou a humanidade a tal ponto que quer
nos revelar quem somos na Sua Palavra, para que possa nos curar por ela: o Espírito de Deus revela
a nosso espírito que somos seus filhos amados, convidados para encontros transformativos
mediados pela Sua palavra.
Tal como no tempo de Jesus, a cura e a salvação andam juntas. Também precedidas de
perguntas como: “Que queres que eu te faça?”

3. Teologia e interpretação psicanalítica da Biblia


Embora a hermenêutica psicanalítica da Biblia já seja bem difundida, desperta muitas
resistências. Dominique Stein as analisa 27 e mostra suas dificuldades e razões. A crítica de
“interpretação reducionista” não cabe, pois a hermenêutica psicanalítica não se propõe como
única, antes pelo contrário. Stein entrevê a dificuldade de exegetas com leituras que aproximem o
sagrado do sexual. As outras críticas, de que tais interpretações são muito clínicas, demasiado
subjetivas e não se relacionam adequadamente ao texto também perdem vigor se é visto seu
contexto. Stein comenta que
essas críticas, que surgem sempre depois de um elogio aos métodos historico-críticos, lembram
singularmente os anátemas lançados sobre os precursores desses mesmos métodos, hoje tornados
clássicos. Como são medrosos os guardiães da fé!28

A leitura psicanalítica ajudaria a trabalhar o medo do estranho, do novo, do conflitivo, do


arcaico, desde que não se ponha como verdade absoluta, nem seja feita defensivamente... mas se
esse for o caso, já não é psicanalítica. É preciso guardar espaço para o desconhecido, sempre, e
desconfiar da busca de certezas, seja onde se encontrarem. A hermenêutica judaica ajuda a não
erigir ídolos, muito menos idolatrar métodos e interpretações totalizantes.
Stein conclui expressando o desejo de que psicanalistas possam seguir lendo e
interpretando, e assim co-laborando para compreensão da relação entre humano e divino, suas
semelhanças e diferenças. Recordo Pfister, que já apregoava a psicanálise como ‘humilde lavadora
dos pébs da verdade” 29 – assim também o desejo de que as verdades do recôndito humano, com
suas contradições, angústias, conflitos, sejam tocadas pela leitura múltipla da Biblia.
Concluo com Françoise Dolto:
Ao ler os Evangelhos, eu descubro um psicodrama. As próprias palavras com que são narrados, a
seleção das frases, a escolha de certos temas podem ser compreendidos, repito, de uma outra
maneira, a partir da descoberta do inconsciente e de suas leis, por Freud. As descobertas atuais da
psicanálise, dialética e dinâmica do inconsciente, de acordo com a leitura que faço, são ilustradas por
esse psicodrama que nos contam.

Presidem à elaboração do Evangelho, entre outras, as leis do inconsciente de Jesus, dos redatores e
dos primeiros ouvintes. Essas leis são parte integrante da estrutura desses relatos. Por que não
abordar sua leitura com esse novo instrumento, a psicanálise? 30

27
STEIN, Dominique. Pode-se fazer uma leitura psicanalítica da Biblia? Concilium 158.8, 1980,
p. 31-42.
28
STEIN, 1980, p. 39.
29
Pfister apud WONDRACEK, 2005.
30
DOLTO, F.; SEVERIN, G., 1979, p. 14.

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8

Este o convite, para ir às fontes profundas...

O LIVRO
Uns o carregam debaixo das axilas,
outros o beijam como à melhor das amantes,
outros o farejam, semelhantes a cães
amestrados para drogas. Ele resiste,
materializado em mil, ou duas mil páginas,
em trens, ônibus, hotéis, bordéis,
táxis, ruas, ares, mares,
manipulado por estranhos dedos,
lido por estranhos olhos.

Suas páginas, que Gutenberg arrancou


às unhas da escuridão, fulguram
com nova luz, quando anônimos
resolvem lê-lo como foi escrito:
com sangue, cuspe, e ternura.

Armindo Trevisan, A serpente na grama. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2001.

Bibliografia de estudo
BALMARY, Marie – O sacrifício proibido: Freud e a Bíblia. São Paulo: Paulinas, 1997.
BALMARY, Marie – La divine origine: Dieu n’a pás créé l’homme. Paris: Grassett & Fasquelle,
1993.
BIBLIA CONSELHEIRA. Karl KEPLER (ed). Barueri: SBB, 2011.
CLEMENT, Catherine & KRISTEVA, Julia. O feminino e o sagrado. São Paulo: Rocco, 2001.
DOLTO, Françoise. O evangelho à luz da psicanálise. Rio de Janeiro, Imago: 1979.
FUKS, Betty B. Freud e a judeidade: a vocação do exílio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
JULIEN, Philippe. Abandonarás teu pai e tua mãe. Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2000.
KRISTEVA, Julia. Ler a Biblia. In: As novas doenças da alma. São Paulo: Rocco, 2002.
LACOCQUE, Andre & RICOEUR, Paul. Pensar la Biblia. Barcelona: Herder, 2001.
LEBRUN, Jean-Pierre; WÉNIN, André. Des lois por être humain. Toulouse: Eres, 2008.
LEONE, Alexandre. Mística e razão: dialética no pensamento judaico. De speculis Heschel. São
Paulo: Perspectiva, 2011.
RAGUSE, Hartmuth. Der Raum des Textes. Stuttgart: Kohlhammer.
RAGUSE, Hartmut. “Die Bibel zwischen Literaturinterpretation und analytischem Prozess. In:
ROHDE-DACHSER, Christa (Hg.) Verknüpfungen. Göttingen, Vandehoeck, 1998.

Mais textos nossos:

WONDRACEK, Karin. Caminhos da graça: identidade, crescimento e direção nos textos da


Biblia. Viçosa, Ultimato, 2006.
_______ O amor e seus destinos: a contribuição de Oskar Pfister para o diálogo entre
teologia e psicanálise. São Leopoldo : Sinodal, 2005.
______ Ser nascido da Vida – A Fenomenologia da Vida de Michel Henry e sua contribuição
para a clínica. Tese de doutorado. São Leopoldo: PPG-EST, 2010.

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______Do Gênesis à gênese do sujeito psíquico: um ensaio metafórico. Trabalho apresentado


na Jornada do NESF, 2004.
______ Aproximação psicanalítica da culpa e da graça – Disponível na Internet –
www.cppc.org.br/psicoteologia
______ Como Jesus cuidava das pessoas. Psicoteologia: XXI, n. 46, 2010.
______ A criança como chave hermenêutica. In: FASSONI; DIAS; PEREIRA. Uma criança os
guiará. Viçosa: Ultimato, 2010, p. 211-222.

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