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á discutimos a importância do conheci-


mento sobre as visões de mundo e de
ciência elaboradas pelos futuros profes-
sores, antes mesmo de entrarem para a
Universidade. Conhecemos também alguns prin-
cípios do ofício do historiador, alguns concei-
tos-chave, formas de escrita para as crianças e as
diferenças de natureza entre o conhecimento
histórico e a História disciplina escolar.
Agora é o momento de estudar a configura-
ção da disciplina escolar nos currículos dos anos
iniciais, suas finalidades, meios e conteúdos. Co-
meçarei esta etapa oferecendo um rápido pano-
rama dos currículos elaborados no século XX,
demarcando o lugar da História e as formas de
organização dos saberes produzidos pelos his-
toriadores.
Mas, quem pensa currículo, seja ele de cur-
so, série, ano, disciplina etc., baseia-se sempre
em duas questões: o que deve ser ensinado? Que
tipo de sujeito deve ser formado? Em outras pa-
lavras, quem reflete sobre currículo, como bem
afirma Tomas Tadeu da Silva (2003), pensa em
construção de identidades.
Neste capítulo, veremos que, ao longo do sé-
culo XX, em relação à escolarização das crian-
ças, várias foram as respostas oferecidas para
essas questões e, por isso, muitas foram as pro-
postas de organização dos programas da escola
primária no Brasil.

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FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA O ENSINO DE HISTÓRIA - ITAMAR FREITAS


OS CURRÍCULOS DA
ESCOLA PRIMÁRIA

De início, é preciso saber que, diferentemen-


te do ensino pós-primário (curso secundário, gi-
nasial, 2o grau, científico ou médio), regulado
pelo governo da União, a escola primária, ou
os anos iniciais do Ensino Fundamental, como
hoje são chamados, era normatizada pelos Es-
tados. Cada unidade da federação – Sergipe, Currículo
A questão central que serve
São Paulo, Rio Grande do Norte, Amazonas, de pano de fundo para
qualquer teoria do
entre outros – elaborava a sua proposta currículo é a de saber qual
curricular. Daí, a pluralidade de instituições (en- conhecimento deve ser
ensinado. De uma forma
sino ministrado por escolas isoladas, reunidas mais sintética, a questão
central é: o quê? Para
ou em grupos escolares), de nomenclatura e de responder a essa questão,
as diferentes teorias podem
projetos sobre o tema: curso primário simplifi- recorrer a discussões sobre
cado (ler, escrever e contar), curso primário en- a natureza humana, sobre
a natureza da
ciclopédico (Leitura, Escrita, História do Brasil, aprendizagem ou sobre a
natureza do conhecimento,
Geografia do Brasil, Aritmética, Ciências, entre da cultura e da sociedade.
(Silva, 2003, p. 14-15).
outras), ensino elementar e complementar, en-
sino de primeiras letras. Série
A graduação do ensino em
Após regulação federal, os nomes variaram séries subsequentes,
correspondendo cada uma
ainda mais: ensino fundamental menor, ensino a um ano letivo, permitiu a
racionalização curricular,
das séries iniciais, primeiro e segundo ciclos do ou seja, a distribuição
ensino fundamental e, agora, anos iniciais. metódica e sistemática do
conhecimento a ser
Apesar da variedade de projetos divulgados transmitido na escola [...].
A série tornou-se a matriz
ao longo do século passado, quatro tipos de or- estrutural da organização
ganização curricular predominaram. Sob o as- do trabalho escolar. Essa
unidade temporal, aliada
pecto do desenvolvimento humano – que inter- aos horários escolares e
aos sistemas de exames,
fere diretamente na forma de organização do emoldurou as rotinas
escolares, sedimentando
tempo escolar, progressão dos conteúdos e pro- práticas que conformariam
moção individual do aluno –, tivemos o ensino uma identidade duradora
na escola primária (Souza,
regido em séries e em ciclos. p. 43-44). 129

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Sob o ponto de vista das informações ou dos
A pesquisa educacional tem dados de ciência a serem manipulados por alu-
apontado várias vantagens
do sistema de ciclos nos e professores, o ensino foi organizado por dis-
sobre o sistema seriado. Em
primeiro lugar, a ciplinas ou matérias.
constituição de grupos de
anos e não apenas um ano A organização do tempo por séries – duas, três,
é mais compatível com os quatro ou cinco – representou uma inovação do
conteúdos a ensinar e com
o desenvolvimento início do século XX, no Brasil. Foi uma tentativa
cognitivo do aluno. Depois,
o maior espaçamento entre de racionalização escolar baseada na testagem
os momentos de progressão
permite o
sistemática, na construção de turmas homogê-
acompanhamento neas e na aquisição linear, repetitiva, gradativa e
diferenciado dos alunos e a
criação de trajetórias cumulativa do conhecimento.
diferenciadas para atingir
objetivos educacionais A organização do tempo por sistema de ci-
idênticos. Por fim, algumas
experiências com a
clos é mais recente. Sua implantação experimen-
implantação dos ciclos têm tal data dos anos 1950. Diferentemente da série,
comprovado que a
permanência do mesmo que corresponde a um ano, o ciclo corresponde a
mestre numa mesma turma
por dois ou mais anos intervalos de dois, três ou quatro anos, onde, em
também fortalece e
clarifica os objetivos,
geral, ocorre a progressão automática do aluno.
estratégias do ensino- Na base da organização por ciclos está a incorpo-
aprendizagem, tanto para
os alunos, quanto para os ração da ideia de inclusão e o respeito aos dife-
pais e os próprios mestres
componentes da equipe. rentes ritmos de aprendizagem das crianças.
Isso ajuda a criar hábitos e O outro tipo de organização, referido aci-
facilita o cumprimento e a
avaliação das metas e ma, relaciona-se aos conteúdos, ou seja, ao que
objetivos. (Cf. Perrenoud,
2004, p. 9-23). se ensina. Eles foram inicialmente organizados
por disciplina, que era a forma mais antiga de
responder à questão: que conhecimento deve
ser ensinado? Os elaboradores de currículo, em
sua maioria, estavam convictos de que as disci-
plinas escolares – História, Matemática etc. –
eram repositórios dos mais úteis e sofisticados sa-
beres sistematizados pelo homem numa duração
secular. Em outras palavras, elas refletiam o cor-
po das ciências e das artes – o patrimônio da hu-
130 manidade.

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A outra justificativa para o currículo organiza-
do por disciplinas estava na ideia de que tais sa-
beres possuíam o poder de mobilizar determina-
das potencialidades humanas. Agindo diretamente
no cérebro, por exemplo, a Matemática poderia
auxiliar no desenvolvimento da faculdade da ra-
zão ou no perfeito encadeamento das ideias (pen-
samento lógico). A História, por sua vez, contri-
buiria para o fortalecimento da faculdade da
memória.
A segunda forma predominante de organi-
zar os currículos da escolarização das crianças
foi a junção/integração dos conteúdos discipli-
nares em matérias. Conhecidos exemplos da
década de 1930 são os casos do Distrito Fede-
ral e do Rio Grande do Sul. Nesse último, a es- Faculdade
cola primária prescrevia conteúdos de Estudos As faculdades, poderes ou
funções da alma, foram
Sociais e de Estudos Naturais. A primeira maté- distinguidas de várias
maneiras. Para Aristóteles,
ria somava conhecimentos de História e de Geo- faculdade vegetativa,
sensitiva e intelectiva; para
grafia, e a segunda, tratava de saberes elemen- Santo Agostinho, memória,
tares do que hoje conhecemos como Física, Quí- inteligência e vontade, que
correspondiam à
mica e Biologia. O caso dos Estudos Sociais, Santíssima Trindade: Ser,
Verdade e Amor. Para
porém, é o mais divulgado. Ele foi introduzido, Descartes, entendimento e
vontade. Para Kant,
sistematicamente, nos anos 70 do século passa- conhecer, sentir e desejar.
do em todo o Brasil. Conservando e transpondo
o sentido de poder/função
Em relação a essas duas formas de organizar da alma, a palavra
faculdade também é
os dados de ciência, podemos afirmar o seguin- empregada para nomear as
te: enquanto o modelo disciplinar projetava grandes divisões dos
conhecimentos humanos e
cada disciplina como ativadora de determina- o corpo de professores de
uma mesma universidade:
da potencialidade humana, o currículo por Faculdades de Teologia,
Direito, Medicina e
matéria propunha a integração entre os vários Filosofia ou Artes. (Cf.
saberes científicos e as capacidades do homem. Abagnano, 1997, p. 518-
520; Lalande, 1999, p.
Uma das vantagens propagadas era a possibili- 381). 131

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dade de explorar uma questão social – as mi-
Estudos Sociais grações populacionais, por exemplo – com os
Para Maria do Carmo
Martins, professora da conceitos e estratégias metodológicas de várias
Universidade de Campinas
e pesquisadora do ensino disciplinas, tais como: História, Geografia e Eco-
de História, a lei n. 10.038/
1968, que institui os nomia.
Estudos Sociais, era clara:
a Geografia e a História
poderão ser integrados em ORGANIZAÇÕES CLÁSSICAS DA
Estudos Sociais, área
denominada de Ciências HISTÓRIA NOS CURRÍCULOS DA
Humanas. A alteração do
status da História e da
ESCOLA PRIMÁRIA
Geografia aparece de
forma condicional. O verbo
usado é “poderão”, logo, Pode parecer uma incoerência, mas as opções
existia a possibilidade de
não ocorrerem tais entre um currículo simplificado ou enciclopé-
transformações. Essa
possibilidade foi suprimida
dico, seriado ou cíclico não representam, ne-
após 1971, com a Reforma cessariamente, modificações nas formas de or-
do Ensino feita pela
ditadura militar, que ganização do conhecimento histórico ministrá-
efetivou os Estudos Sociais
para o currículo nacional vel nas escolas ao longo do século XX. Em do-
da escola de 1º grau (8
anos) e incentivou a
cumentos produzidos até 1950 – Rio Grande do
criação do curso superior Sul, São Paulo, Distrito Federal, Minas Gerais,
de Estudos Sociais,
responsável pela formação Sergipe –, encontrei variações sobre o ano/sé-
de professores para
atuarem nessa nova rie, sobre a época adequada à introdução dos
disciplina. Juntamente com estudos históricos – no primeiro ano, segundo
os saberes da História e da
Geografia, Estudos Sociais ou quarto –, e algumas formas clássicas predo-
ganharam a companhia de
uma outra disciplina minantes de distribuição da História ao longo dos
escolar, a Organização
Sociais e Política do Brasil,
cursos primários: organização cronológica e a or-
que aparecia nos currículos ganização temática, como apresentarei adiante.
escolares em separado para
algumas séries do ensino Quanto à opção por organizar o currículo em
ginasial e secundário desde
1961. (Cf. Martins, 2002, disciplinas ou matérias (campos de conhecimen-
p. 104-105).
to), ao contrário, há mudanças substantivas na
História a ser ensinada. Maior exemplo está na
Reforma do Ensino de 1º e 2º graus de 1971 que
prescreveu as matérias Comunicação e Expres-
são, Ciências e Estudos Sociais como núcleo co-
132 mum dos currículos. Nessa configuração, o co-

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nhecimento histórico transformou-se em um dos
conteúdos que compunham os Estudos Soci-
ais, a saber: História, Geografia e Organização
Social e Política do Brasil (OSPB). Para o geógrafo Carlos
Delgado de Carvalho,
A Reforma de 1971 é o exemplo mais conhe- parceiro de Anísio Teixeira,
cido, mas ela não inaugurou o ensino de Estu- os Estudos Sociais
seriam matéria de ensino
dos Sociais: em 1934, foi adotado por Anísio compatível com todos os
níveis de ensino,
Teixeira no Distrito Federal; em 1939, compôs abrangendo a História,
o currículo primário no Rio Grande do Sul; e, Economia, Sociologia,
Política, Geografia
em 1966, foi introduzido em nove grupos esco- Humana e Antropologia
Cultural. Em livro
lares do Estado de São Paulo. publicado na década de 50
do século passado, o autor
Nessas ocasiões, e, principalmente, a partir da lista os cinco objetivos
década de 1970, a função e o espaço da História gerais dos Estudos Sociais:
1. conhecer e compreender
nos currículos variaram de acordo com a noção os conceitos sociais e o
valor das instituições; 2.
de Estudos Sociais: integração de disciplinas – desenvolver, no indivíduo,
a capacidade de estudar,
História, Geografia, OSPB ou História, Geogra- ler e interpretar, com senso
fia e Ciências; soma de disciplinas – História + crítico, o que leu, ouviu ou
viu; 3. despertar a
Geografia; introdução de conceitos das ciências personalidade do
educando, desenvolvendo
da História e da Geografia; introdução dos con- seus interesses culturais e
seu senso de
ceitos das Ciências Sociais; estudo do meio – glo- responsabilidade; 4.
balização, centros de interesse e aulas integra- integrar o indivíduo na
sociedade democrática em
das; estudo de conceitos fundamentais do mate- que deve viver, promovendo
a sua cooperação como
rialismo histórico. bom cidadão; 5.
compreender a
Assim, os conhecimentos históricos ou ganha- interdependência das
ram a forma de História do Brasil em cronologia nações do mundo
moderno, respeitando as
progressiva, seguindo ou seguida da descrição funções particulares dos
diferentes grupos e
geográfica do Brasil, ou foram conceitos caros à contribuindo à
epistemologia histórica – tempo, causalidade, compreensão
internacional. (Carvalho,
entre outros – mesclados a conceitos da Geogra- 1957, p. 12, 14, 65).

fia, OSPB , Antropologia, Sociologia, Economia Anísio Teixeira


Reformador e educador
e Ciências. baiano (1900/1971), era
Como vimos, a organização do currículo pri- leitor de John Dewey e
entusiasta dos Estudos
mário por matérias provocou mudanças impor- Sociais. 133

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tantes, não só na forma de organizar o conheci-
Cronologia mento histórico, mas também na natureza desse
progressiva
Empregada e difundida conhecimento. É provável que, pela primeira vez,
pela obra de Joaquim
Maria de Lacerda, a sequência de acontecimentos político-adminis-
reeditada no Rio de
Janeiro, em 1918. trativos da história nacional tenha sido substitu-
Descobrimento do Brasil. ída pelo desenvolvimento de conceitos básicos
Povos indígenas do Brasil.
Primeiras explorações da da epistemologia histórica e/ou pela experiên-
costa do Brasil.
A aventura de Diogo cia cotidiana do aluno. Vejamos agora as formas
Álvares e de Ramalho.
Divisão do Brasil em
clássicas de organização do conhecimento his-
capitanias (1531). tórico produzido pelos historiadores e emprega-
História da fundação das
capitanias. do no ensino da História para crianças: a organi-
Primeiro governador geral
do Brasil (1549/1553). zação cronológica e a organização temática.
Serviços prestados pelos
jesuítas.
Segundo governador geral
do Brasil (1553/1558).
Terceiro governador geral ORGANIZAÇÃO
do Brasil (1558/1572).
Fim trágico de D. Luiz de CRONOLÓGICA
Vasconcelos (1570).
Divisão do Brasil em dois
governos (1572/1577). Na organização cronológica, a História ganha-
O estado do Brasil em
1580. va a forma de uma lista de temas, classificados
Sexto governador geral do
Brasil (1583/1591). segundo a sua abrangência ou posição no calen-
Sétimo governador geral. dário. Como o próprio título denuncia, o crité-
Sucessores de D. Francisco
de Souza. rio de organização provém do tempo, ou seja, é
Tomada da Bahia pelos
holandeses. necessário observar o tempo cronológico como
Ocupação de Pernambuco
pelos holandeses (1630/
ordenador da experiência humana e como fator
1654). de inteligibilidade dessa mesma experiência para
Expulsão dos holandeses do
Brasil [...]. os alunos iniciantes. Essa cronologia, entretan-
(Lacerda, 1918).
to, pode ser apresentada em sentido progressi-
vo, regressivo, misto e ampliatório.
Uma cronologia progressiva é a que dis-
tribui o conhecimento histórico na chamada or-
dem natural: do ontem para hoje, do mais anti-
go para o mais recente. Assim, foi comum contar
134 a História do Brasil às crianças do primeiro ano

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iniciando pela data de 1500, com o personagem
Pedro Álvares Cabral, e encerrá-la no quarto ano
com Getúlio Vargas e a Revolução de 1930.
Na cronologia regressiva, conta-se a his-
tória “de frente para trás”, do contemporâneo
para o antigo, do hoje para o ontem. A História Cronologia regressiva
Epregada no estado de
do Brasil ganha sentido, então, com a narração Minas Gerais em 1950.
O ensino da História
de fatos da vida do próprio aluno, da sua escola, começa com o presente. No
bairro, cidade, estado e país, do presente para o primeiro ano, as crianças
aprendem os elementos
passado, até chegar ao citado Pedro Álvares históricos mais perceptíveis
ao seu entendimento, como
Cabral e à aventura do Descobrimento, já nos a escola, nome, fundador,
fatos interessantes de sua
últimos anos do primário. vida presente e passada,
A dominante distribuição cronológica, entre- valor, eficiência da escola.
No segundo, suas
tanto, não se encerra nos sentidos progressivo e indagações abrangerão o
governo da cidade,
regressivo. Ela pode também fazer uso dessas autoridades locais,
Prefeitura, impostos e
duas formas numa mesma proposta curricular. benefícios, o nome da
Por isso, não foi incomum iniciar os dois primei- cidade, origem,
fundadores, beneméritos,
ros anos de forma regressiva e tomar a forma lendas, data local.
No terceiro, estudará o
progressiva no terceiro e quarto anos, isto é, co- município e sua história, os
poetas, sentimento de
meçar o ensino da história com o exame da vida família, terra natal e
do aluno – nome, data de nascimento, familia- sentimento de pátria.
No quarto, tratará da vida
res, peculiaridades da escola e do bairro aonde e obra de homens ilustres
ligados à região e das
mora – e saltar abruptamente para o ano 1500 – grandes invenções
influenciadoras do
no terceiro ano, por exemplo – examinando, progresso humano: estrada
progressivamente, acontecimentos como as ca- de ferro, automóvel,
navegação, aviação, luz
pitanias hereditárias, a descoberta do ouro nas elétrica, telefone, rádio.
Partindo da escola, que
Minas Gerais, o movimento de Independência no frequenta e observa
Rio de Janeiro e em São Paulo e o regime militar diretamente, o aluno
dilatará gradativamente o
das décadas de 1960, 1970 e 1980. círculo de suas
investigações para
Outra forma de distribuição cronológica do considerar a localidade, o
município, a região, com
conhecimento histórico ganhou o nome de seus homens
concêntrica ou ampliatória. Essa modali- representativos. (Correia
Filho, 1953, p. 15-16).
dade consiste em trabalhar, todos os anos, o mes- 135

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mo conjunto de temas, de forma a torná-los, gra-
Programa concêntrico dativamente, mais complexos. Assim, por meio
ou ampliatório no
ensino primário do Distrito de modificações no método de ensino e nos tex-
Federal em 1916
1. classe elementar – Nome tos examinados, o professor ministraria os mes-
da nossa pátria.
2. classe média – Pedro mos temas no primeiro, segundo, terceiro e quar-
Álvares Cabral, descoberta to anos: Descobrimento, indígenas, Tiradentes,
do Brasil.
3. classe complementar – Bandeirantes, Independência e República.
Pedro Álvares Cabral,
descoberta do Brasil, Um caso hipotético ilustra as singularidades
viagem de Pedro Álvares
Cabral, descobrimento do
dessa abordagem: no primeiro ano, o aluno es-
Brasil, estado e condições tudaria o Descobrimento, ou seja, o nome da
de vida dos indígenas na
época do descobrimento, pátria e do descobridor. No segundo, examina-
primeiros estabelecimentos
dos portugueses no Brasil, ria as razões da descoberta, a biografia de Cabral,
organização da colônia em
capitanias. (Cf. Serrano,
os problemas das viagens marítimas. No terceiro
1916). ano, trataria dos conflitos econômicos entre Por-
tugal, Espanha, França e Inglaterra, e assim por
diante, sem fugir, entretanto, ao tema principal do
início de cada ano: o Descobrimento do Brasil.

ORGANIZAÇÃO
TEMÁTICA

Na organização temática do conhecimento


histórico, obviamente, o critério orientador é o
tema e não o tempo cronológico ou seu subpro-
duto, a periodização linear. O critério de esco-
lha do tema, base para organização dos estudos
históricos, pode provir (com maior ou menor ên-
fase) da Psicologia, Pedagogia ou História.
É fácil observar essas orientações. Num currí-
culo onde a orientação principal vem da Psico-
logia cognitiva, são enfatizadas a aquisição e/ou
136 a construção de noções como tempo, espaço, di-

FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA O ENSINO DE HISTÓRIA - ITAMAR FREITAS


ferença, semelhança, entre outras. Um currículo
inspirado pela teoria crítica de Paulo Freire em- Entre os historiadores
franceses, a organização
prega temas chamados “geradores”, extraídos da temática enfrentou
algumas críticas. Jaques Le
vivência problematizada dos educandos. O pro- Goff, por exemplo, alertou:
é preciso ver qual é o
grama não necessariamente freiriano, mas que discurso escolar sobre o
visa construir uma sociedade mais justa e iguali- tema, e parece-me que é o
velho discurso. Existe um
tária (democrática), cidadã, valorizando o coti- certo progresso quando se
faz uma História narrativa
diano discente, pode priorizar o interesse do pró- desde a carroça ao avião
supersônico. Mas se é, em
prio aluno. Até a “morte de Airton Sena”, por primeiro lugar, de novo
exemplo, pode vir a ser um tema do programa uma História narrativa e,
em segundo lugar, uma
de História. História que, longe de ser a
dos possíveis e da liberdade
Com esses poucos exemplos, afirmo que a ideia na História[...] Torna-se ao
contrário, uma História
de tema, empregada, sobretudo, nas quatro últi- mais determinista que
mas décadas do século XX, não abrange apenas nunca, que dá a entender
que se devia forçosamente
uma unidade de sentido que agrupa vários assun- passar da carroça ao barco
a vapor, ao comboio, ao
tos “históricos”, por exemplo – o tema Descobri- automóvel e ao avião
supersônico, receio que se
mento do Brasil, reunindo personagens e episó- tenham tornado as coisas
dios, como as sociedades indígenas, os portugue- ainda piores do que
estavam, na medida em que
ses, os encontros e confrontos na Costa Atlântica. o conteúdo deste ensino
tem seduções óbvias e
Assim configurada, a ideia de tema não avançaria diminui ainda mais o
muito além das “unidades didáticas” importa- espírito crítico dos alunos.
Todos os que aqui estão
das dos Estados Unidos na primeira metade do saudaram a entrada de
novos objetos na História:
século passado. Muito mais que unidade didá- a História Nova pode
fazer-se através do estudo
tica, portanto, um tema pode ganhar os senti- de um objeto a partir do
dos de conceito, problema, eixo gerador ou as- qual toda a História de
uma sociedade se desmonta
sunto significativo, predominantemente, origi- aos nossos olhos. Mas o
que eu noto nessa História
nados da Psicologia, Pedagogia, Política, Soci- temática, tal como ela se
esboça, é uma História que
ologia ou da História. se encerra no tema e que
Na História, o tema ganha os sentidos de con- não explica por que é que a
carroça e o automóvel
ceito e de questão porque o ensino de História apareceram, e como isso se
inscreve na História geral
também é orientado por matrizes conceituais da das sociedades. (Le Goff,
1991, p. 14-15).
ciência de referência. Um profissional da Histó-
ria de certa orientação marxista, por exemplo, 137

FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA O ENSINO DE HISTÓRIA - ITAMAR FREITAS


entende que as categorias “trabalho” e “relações
Bloco inicial (Ciclo Básico - sociais” são fundamentais para a interpretação
1a e 2a séries)
Eixo temático: (materialista) da experiência humana.
trabalho
Diferentes formas de vida - Um tema, por outro lado, é também uma ques-
Diferentes formas de
trabalhar. tão porque essa mesma matriz transpõe para o
Com quem vivemos. ensino a ideia de que estudar História não é ape-
Quem encontramos na
escola. nas receber passivamente informações sobre o
Os objetos da casa e da
escola. passado conhecido. É também conhecer as fer-
Como nos relacionamos em
casa e na escola para
ramentas e estratégias de elaboração do próprio
satisfazer as nossas conhecimento histórico. É interrogá-lo constan-
necessidades.
Diferentes necessidades, temente a partir dos problemas enfrentados no
diferentes atividades.
Diferentes formas de presente do aluno. Daí a criação, por exemplo,
trabalhar - diferentes
formas de viver - diferenças
do “eixo temático - trabalho” como
sociais. organizador do currículo de História para as sé-
Contrução de uma História
- expressão e registro. ries iniciais em São Paulo, no ano 1989.
Bloco Intermediário (3a, 4a. Mas é importante saber que a História ensi-
e 5a séries)
Eixo temático; Trabalho
nada por eixos temáticos ou temas geradores
O lugar em que vivemos - distingue-se da História temática. A pesquisado-
formas de vida e trabalho.
O lugar em que vivemos ra Circe Bittencourt (2005) afirma que os
sempre foi assim?
Diferentes formas de viver e eixos temáticos são indicadores de um conjunto
trabalhar. de temas, selecionados, inclusive, por critérios
Constituição do mercado
de trabalho assalariado na pedagógicos, que contemplam faixa etária, nível
sociedade brasileira a
partir do século XIX. escolar, tempo escolar dedicado à disciplina. A
(Reis, 2001).
História temática resulta do aprofundamento da
Circe Bittencourt investigação sobre determinado tema, a partir
Pesquisadora do ensino de
História e professora da dos interesses e estratégias estabelecidos pelos
Universidade de São Paulo
e da Pontifícia próprios historiadores.
Universidade Católica de
São Paulo. Escreveu Ensino
de História: fundamentos e
métodos (2005).

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FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA O ENSINO DE HISTÓRIA - ITAMAR FREITAS


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FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA O ENSINO DE HISTÓRIA - ITAMAR FREITAS


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RESUMO

Currículo é o que se ensina com o objetivo de construir sujeitos e forjar identidades.


No Brasil, no século XX, o conhecimento produzido pela historiografia esteve presente
na escolarização das crianças, não importando a configuração desse ensino –
primário ou primeiro grau, simplificado ou enciclopédico, seriado ou cíclico. As formas
com as quais o conhecimento histórico foi organizado – as configurações dos
programas –, entretanto, variaram bastante. A organização cronológica em suas
versões progressiva, regressiva, mista ou concêntrica-ampliatória e a versão
temática/conceitual foram os tipos predominantes neste período.

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