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Fotograma do filme Olho de vidro _ uma história da fotografia

António Sena (Toé) e Margarida Gil, 1982/ Produção RTP, Lisboa.


Revisitar Olho de vidro
_ uma história da fotografia,
um breve comentário

Margarida Medeiros

O texto que se segue tem origem na comunicação oral realizada no


contexto da palestra que teve por mote a série de dois episódios para a
rtp, realizada em 1982 por António Sena e Margarida Gil, sobre a Foto-
grafia e a sua História.
O interesse histórico deste filme, sendo António Sena, à época _
e ainda hoje _, um pioneiro ímpar na historiografia portuguesa da fo-
tografia, é múltiplo e variado, não apenas pelo enfoque didáctico que
constitui, mas, sobretudo, pela forma como inventaria as diferentes
existências da fotografia no seio da cultura contemporânea. De objecto
privado a público, de instigadora de pensamentos nostálgicos e meio de
registo objectivo e histórico, de plataforma artística incontornável do
século xx, todo o potencial com que a fotografia se desenvolveu e embre-
nhou na cultura ocidental, desde a sua invenção, está aqui inventaria-
do. Centrado, inevitavelmente, pelo seu formato didáctico, nos pontos
de ancoragem histórica consagrados em obras como a de Beaumont
Newhall ou Helmut Gernsheim1, este documentário preocupa-se em
realçar a dimensão estética da fotografia e a forma como essa estética en-
volve, de forma tantalizante, os mais recônditos gestos do quotidiano.
Um dos momentos mais interessantes do filme, e que remetem para
toda a história da ontologia da fotografia, de Oliver Hendell Holmes a
Barthes, é o momento em que, na abordagem dos anos 50, os reali-
zadores tomam como exemplo o livro de Victor Palla e Costa Martins,
Lisboa, cidade triste e alegre, na última parte do documentário. Depois de
apresentada a obra _ que o próprio António Sena redescobriu, na sua

1. Cf Helmut Gernsheim, (1955, 1969) The Origins of Photography (NY/ London, Thames and
Hudson, 1982); Beaumont Newhall (1937, 1955, 1982) The History of Photography (NY/ Boston/
Toronto, The Museum of Modern Art, 1993).

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busca de uma história da fotografia portuguesa, em particular do perío-


do dos anos 50 _ somos conduzidos a uma cena inusitada. Os realizado-
res, a sua equipa de filmagem e os próprios autores do livro deslocam-se
a Alfama, um dos bairros de Lisboa onde tinha sido realizada parte das
imagens que constituem a obra, e vão à procura das pessoas que ali se
encontram fotografadas. É toda uma algazarra que se gera e filma, mo-
tivada pelo encontro com a imagem de si que estas pessoas reencontram
trinta anos depois. No pequeno grupo de pessoas que se junta em torno
da equipa, de livro aberto na mão, algumas pessoas vão identificando os
personagens ainda vivos.
Mas o centro de todo o episódio é o momento em que uma senhora
vai a casa buscar o vestido com o qual fora fotografada décadas antes,
abrindo-se um plano em que vestido _ “real” _ e fotografia no livro
_ da rapariga envergando, com ar sonhador, o mesmo vestido _ são
mostrados lado a lado. Esta relação autentificadora da fotografia com
a “vida real”, de contiguidade, foi sempre uma das suas propriedades
mais idiossincráticas, que levou Walter Benjamin a reflectir sobre as suas
consequências no modo (a)crítico com que uma fotografia é recebida.
Para Benjamin, tudo mudara com as sucessivas modificações técnicas
introduzidas na aparelhagem fotográfica, que permitiam imagens cada
vez mais rápidas, ou seja, que permitiram introduzir o “instantâneo”,
roubando à fotografia aquela aura de distância que se obtinha na con-
templação das antigas fotografias, nas quais o tempo da produção era
uma das suas marcas constitutivas. Esta realidade foi, para Benjamin,
responsável pela “degenerescência” da fotografia, já que se torna num
objecto “transparente”, onde é impossível demorar o olhar, onde a reali-
dade do presente se confunde com a sua imagem2.
Ora é esta vertigem realista da fotografia, esta “transparência”, que
leva a esquecer que se trata apenas de um pedaço de papel, ou de uma

2. Walter Benjamin, “Pequena História da Fotografia”, in A Modernidade (Lisboa, Assírio &


Alvim, 2006, trad. de João Barrento).

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página de um livro, que é bem documentada, “ao vivo”, em Olho de vidro


_ uma história da fotografia. «O referente adere», dizia Barthes, ou seja, a
imagem fotográfica apela à emoção provocada pela retrospecção do real
que se acredita sempre ter existido como está representado. A imagem
convoca a percepção, mesmo que retrospectiva, da experiência real e é
essa condição inabalável da fotografia, mesmo que digital, que permite
que esta se tenha insinuado como uma ferramenta básica da comuni-
cação moderna, bem como da arte contemporânea. Assim, ao longo do
documentário, deambula-se pela história da fotografia, como pela pre-
sença da mesma nos sítios mais perto ou mais longe, desde as imagens
da necrofilia no jornal às fotografias de casamento, desde as imagens dos
grandes mestres às colocadas nas campas do cemitério dos animais no
Jardim Zoológico. Mas este deambular não é realizado de forma anódina
ou compilativa. Para além da voz off, que nos vai sugerindo relações, his-
tórias, citações, cronologias, a banda sonora tem um papel fundamental
na transmissão das propriedades sensoriais da fotografia. Medium quase
sem textura, plano e por vezes mesmo transparente (nos diapositivos, e
hoje no ecrã do computador), o paradoxo da fotografia está _ também
_ na capacidade para convocar outros sentidos, como o tacto, o odor ou
o som, na medida em que convoca sempre, inevitavelmente, os processos
subjectivos da memória, quer esta seja privada ou colectiva.
A banda sonora _ música ligeira intercalada também com outra
mais clássica _ tem também um papel fundamental, indicando de for-
ma persistente uma trajectória de leitura para as fotografias apresen-
tadas. Pequenos desvios lúdicos, como o texto de Alice que surge das
imagens de Lewis Carroll, sequências em que canções nos remetem para
a imagem que passa diante dos olhos do espectador, canção pop america-
na e inglesa, música portuguesa (Elis Regina, Kodachrome, Paul Simon &
Garfunkel, Sérgio Godinho, Edith Piaf...), toda esta constelação sonora
contribui para reforçar uma leitura simultaneamente eufórica e disfóri-
ca da fotografia.
Eufórica, porque a articulação permanente entre a música (sobretu-
do ligeira), a voz off e as imagens que vão deslizando perante o espectador,

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parece ter por objectivo sublinhar a tensão emocional provocada pela


estética fotográfica: uma estética que se baseia na possibilidade de rever
o visto (mesmo se nunca antes visto), que vive da possibilidade de olhar
fixamente para uma realidade que já passou, ou não se viu suficiente-
mente, ou nunca se pôde observar directamente; eufórica porque revela
‘a realidade’ diante dos nossos olhos, por obra de um movimento mecâ-
nico; mas a perspectiva é também eufórica porque constantemente nos
revela a fotografia, como uma forma de celebração dos heróis e dos gran-
des acontecimentos do século xx: a resistência, as lutas sociais, a Grande
Depressão e a Farm Security Administration. Será difícil visionar certas par-
tes do filme _ claramente geracional _ sem ser tocado por uma emoção,
fruto da associação entre, por exemplo, imagens das lutas dos anos 30 e
40 e canções de intervenção politica que lhes surgem associadas. (Nes-
te sentido é um documentário que assumidamente espelha a ideologia
política dos seus realizadores.)
Mas a leitura que nos fornece é também disfórica, não relativamen-
te à fotografia em si mesmo, face à qual o discurso é sempre entusiasta e
entusiasmante; mas porque nos conduz numa deriva _ consequência
inevitável da própria ontologia da fotografia _ pela fotografia a partir
de sequências de imagens, orientadas por canções (românticas), que
promovem a percepção da mesma como objecto nostálgico, produto de
uma cultura centrada na rememoração do passado como parte essen-
cial da sua construção identitária. Este olhar da fotografia para trás _
para o próprio tempo, como diria Barthes _ é apresentado no filme de
forma quase insustentável. É pela filmagem das imagens fixas, numa
sequência não arbitrária nem aleatória, sem sequer dar oportunidade
ao espectador de nelas se poder fixar mais alguns instantes do que os
permitidos pela montagem do filme, que aquele é mobilizado para esse
sentimento, e pode, no final, concluir da eficácia do medium enquanto
forma de memento mori, como sublinhava Susan Sontag.
Um dos aspectos mais fascinantes deste filme é a forma como utili-
za, de forma ostensivamente manipulativa _ eventualmente consciente
_ o cinema (mais propriamente excertos de filmes) para estabelecer uma

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contextualização de algumas épocas da história da fotografia. Enquan-


to a fotografia vai sendo apresentada por épocas, preocupações, grandes
mestres ou estilos, o seu contexto histórico é-nos induzido por pequenos
inserts cinematográficos; assim, em certos momentos da narrativa históri-
ca da fotografia, o real social, a conjuntura política ou histórica é-nos for-
necida por outro media, ao qual, supostamente, neste contexto, se atribui
o papel de apresentador de uma realidade objectiva, que estaria para lá
da objectiva fotográfica e que serviria, assim, de fundamento apodíctico
do discurso elaborado em voz off ao longo da série. O que cria um parado-
xo, extremamente interessante e responsável pelo sentimento de candura
que hoje este documentário desperta: enquanto a imagem fotográfica é
descrita em toda a sua complexidade, variedade de géneros e transversa-
lidade cultural, o cinema aparece, nas frestas “históricas” da narrativa,
como algo “sem código”, como uma linguagem meramente do real, passí-
vel de promover no espectador um efeito de verosimilhança relativamente
à narrativa histórica proposta. Se o cinema reverte sobre todo o conjunto
do filme esse “efeito de real”, é porque em grande parte a narrativa histó-
rica em torno da fotografia nos é dada como _ apesar do aviso inicial, de
que se trata de “uma” história da fotografia _ numa perspectiva diacró-
nica, desde os seus primórdios (Niépce, Daguerre, Talbot) até ao tempo
em que o filme foi feito e se encaixa, portanto, no modelo do “era uma
vez”, inevitável a qualquer “história da fotografia”. Assim, a perspectiva
temporal que é realizada no filme é entrecortada por esses breves inserts
de real fornecidos pelo hiperrealismo do cinema, com a sua dimensão
temporal, a sua linguagem articulada no tempo. Essa relação estabeleci-
da é particularmente incisiva na abordagem da fotografia do género foto-
jornalístico, onde às imagens de grandes repórteres se associam pequenos
excertos fílmicos dos grandes acontecimentos do meio do século.
Mas curiosamente, esta técnica narrativa de que se servem ludi-
camente os realizadores exibe de forma muito clara a diferença entre a
fotografia e o cinema. Barthes denunciara já o paradoxo manifesto na
fotografia enquanto «mensagem sem código»3 : a forma como esta, apre-
sentando-se como tal, esconde frequentemente o seu contrário: o código,

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isto é, a truncagem, a ideologia, a pose. Mas nada pode desmantelar


completamente o efeito brutal exercido pela fotografia, mesmo que, sa-
bendo isso tudo, procuremos distanciar-nos desse efeito “traumático”,
obsceno, imposto pela imediatez com que a imagem precipita quem a
olha no poço fantasmático designado por “real”.
Com o cinema é outra história. Entre o documento dos irmãos
Lumiére e a ficção evasora de Hollywood, o cinema envolve o espectador
num tempo simulado (mesmo que coincida com o tempo “real”), e com
ele sabemos sempre “que estamos no cinema”. Não é tão brutal, embora
possa ser mais alucinante. Com uma doçura que é negada à fotografia,
a introdução destes breves excertos reforça a associação livre do espec-
tador da História da Fotografia de António Sena e Margarida Gil, devido
à própria estrutura da montagem, no sentido em que mobiliza a sua
percepção dos mesmos filmes como o pano de fundo de “real” onde se
inscreve a narrativa fotográfica, e que a justifica. Um efeito magistral, de
perfeitos ilusionistas.

Mas, finalmente, o que este filme sublinha _ numa espécie de demons-


tração prática das mais determinantes teses sobre a ontologia fotográ-
fica, e que marcaram a história da sua teoria até essa data (Benjamin,
Kracauer, Barthes, Sontag) _ é a forma como a fotografia convoca, mais
do que qualquer outro medium, o inconsciente, colocando assim o sujeito
face a face com as suas memórias desejadas mas também indesejadas,
como a memória/ consciência do fluir do Tempo, coadjuvada pelos mate-
riais que envolvem toda a narrativa do documentário.
É possível que este documentário seja hoje visto por gerações mais
novas como um objecto “datado”. Mas essa _ para além de outras _ é
uma das riquezas históricas deste filme, feito “no seu tempo”, colocando
as questões que se colocavam “no seu tempo” e que são ainda, em grande

3. Cf. Roland Barthes, “Le Message Photographique”, in Communications, 1, 1961, reeditado


em L’Obvious et l’Obtus (Paris, Folio, 2001).

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parte, as mesmas _ a aceleração dos processos, com a chegada do digi-


tal, apenas vem acentuar alguns desses aspectos mais agonísticos convo-
cados pela fotografia desde o seu início. O seu desenho epocal (realizado
com um modo de produção que seria hoje impensável em termos de di-
reitos de banda sonora) é uma das suas mais-valias, na medida em que
permite situar o documentário no tempo através de elementos que não
se reportam a um “envelhecimento” do conteúdo mas que revelam as es-
truturas formais com as quais o desenho deste documentário procurava
situá-lo no seu espaço discursivo: a necessidade, urgente, de divulgar a
história da fotografia, a sua importância cultural e as suas referências
fundamentais. No seu conjunto, visto a esta distância, é também um
retrato de António Sena, e da militância com que procurou integrar a
fotografia e a sua história na cultura portuguesa, procurando todos os
meios de divulgação ao seu alcance.

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