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Essa crítica pecular segue uma insistência de que esses movimentos de direitos
civis devem ser uma forma de política identitária por fazerem uma defesa muito
explícita de determinado grupo de identidade. [Mas] não — não é isso o que os
críticos liberais da “política identitária” querem dizer com o termo. Defender direitos
humanos, liberdades e oportunidades com foco em grupos de identidade que não os
têm é algo completamente coerente com o liberalismo universal — de fato, é algo
integral a ele. Essa defesa, no entanto, não é política identitária.
Essa não é uma mera picuinha semântica. É vital distinguir entre o liberalismo
universal e a política identitária, e reconhecer o que ambos compartilham e como
diferem. Ambos se opõem à desigualdade e buscam remediá-la, mas o fazem com
concepções muito diferentes de sociedade e usam diferentes abordagens. Essas
diferenças são importantes. O liberalismo universal tem como foco a individualidade
e a humanidade compartilhada, e busca chegar a uma sociedade em que todo
indivíduo tem igual acesso a todo direito, liberdade e oportunidade que nossas
sociedades partilhadas oferecem. A política identitária tem como foco explícito a
identidade de grupo e busca dar poder político a esse grupo tratando-o como uma
entidade monolítica e marginalizada, diferente de — e polarizada contra — outro
grupo descrito como uma entidade monolítica privilegiada.
Liberalismo Universal
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Portanto, o liberalismo universal é um princípio de muitos, e é um princípio que
nasceu do pensamento Iluminista e da fundação de democracias seculares e liberais.
Como tal, fez nascer os movimentos de direitos civis.
Esses movimentos tiveram sucesso, mas não por causa de uma pequena minoria de
ativistas, mesmo os mais inspiradores como Martin Luther King. Tiveram sucesso
porque recorreram a um espírito liberal universal através do qual as democracias
liberais se definiam com orgulho, mas que não havia sido estendido a todos os
cidadãos. Os movimentos de direitos civis chamaram as nações (e suas instituições)
abertamente a defender precisamente essa atitude; uma atitude que havia crescido
constantemente (apesar das dificuldades) desde o humanismo renascentista, fora
desenvolvida mais ainda durante o Esclarecimento (Iluminismo), encontrara uma voz
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explícita em filósofos como Mary Wollstonecraft e John Stuart Mill, fora apresentada
como central e fulcral na Constituição dos EUA, e fora perfeitamente eleita para dar
um grande passo após o fim das Guerras Mundiais, o colapso do Império Britânico e
o fim das leis Jim Crow.
Política Identitária
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bom nome dos movimentos de direitos civis para fazê-lo. Teóricos pós-coloniais,
teóricas feministas interseccionais, teóricos críticos raciais e teóricos queer se
apropriaram em grande medida do conceito de construtivismo social mas rejeitaram
o seu antirrealismo radical. Defenderam que coisa alguma pode ser tratada ao
menos que fosse aceito que os grupos identitários existiam, eram socialmente
construídos, e que o poder era acumulado em alguns deles e negado a outros. Isto
é, para esses pós-modernistas aplicados, a objetividade permanecerá impossível,
mas a identidade e a opressão nela baseada são objetivamente reais.
Para tomar um exemplo muito claro dessa virada conceitual, considere o ensaio
fundador da interseccionalidade, “um conceito provisório ligando a política
contemporânea à teoria pós-moderna”, escrito por Kimberlé Crenshaw, que também
foi uma figura importante na teoria crítica da raça. Em “Mapeando as Margens:
Interseccionalidade, Política Identitária e Violência contra as Mulheres de Cor”,(2)
Crenshaw problematiza a abordagem do que ela chamou de “liberalismo
mainstream” (o que estamos chamando de “liberalismo universal”), que tentou
remover a significância social de categorias de identidade para superar as barreiras
que dificultavam que mulheres, pessoas não-brancas e minorias sexuais tivessem
acesso a tudo o que a sociedade tinha a oferecer. [Podemos entender “remover a
significância social” num sentido social como a posição de que não deveria haver
expectativas ou limitações sobre alguém por causa de sua identidade. Com o
objetivo de superar expectativas como “meu médico será um homem e minha
enfermeira será uma mulher. Meu advogado será branco, meu jardineiro será
mexicano”. O objetivo disso não é remover a identidade, mas as expectativas
associadas a ela (mesmo se as pessoas continuarem a escolher de forma diversa
por causa de diferenças em interesses entre os sexos ou fatores culturais que não
são impostos por expectativas brancas e patriarcais, tais como a sobre-
representação de pessoas de origem indiana na medicina ocidental).] Crenshaw
descreve corretamente o liberalismo mainstream como uma tentativa de continuar a
quebrar as barreiras que fortalecem expectativas acerca de papeis raciais e de
gênero. Ela também observou que isso era um anátema para a política identitária
que ela favorecia:
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[Para] afro-americanos, outras pessoas de cor, e gays e lésbicas, entre outros… a política
baseada em identidade tem sido uma fonte de força, comunidade e desenvolvimento
intelectual. A adoção da política identitária, entretanto, tem conflitado com concepções
dominantes de justiça social. Raça, gênero e outras categorias de identidade são com
frequência tratadas no discurso liberal mainstream como vestígios de viés ou dominação
— isto é, como arcabouços intrinsecamente negativos nos quais o poder social trabalha
para excluir ou marginalizar aqueles que são diferentes. De acordo com esse
entendimento, nosso objetivo libertador deve ser esvaziar tais categorias de qualquer
significância social. No entanto, implícita em certas vertentes de movimentos feministas
e de libertação racial, por exemplo, está a opinião de que o poder social em delinear a
diferença não precisa ser o poder da dominação; pode em vez disso ser a fonte do
empoderamento e reconstrução sociais.
Podemos todos reconhecer a distinção entre as asserção “sou negra” e a asserção “sou
uma pessoa que por acaso é negra”. “Sou negra” toma a identidade socialmente imposta
e a empodera como uma âncora da subjetividade. “Sou negra” se torna não apenas uma
afirmação de resistência mas também um discurso positivo de auto-identificação,
intimamente ligado a afirmações de celebração como a nacionalista negra “Black is
beautiful“. “Sou uma pessoa que por acaso é negra”, por outro lado, chega à auto-
identificação pelo empenho voltado a uma certa universalidade (com efeito, “sou em
primeiro lugar uma pessoa”) e a uma rejeição concomitante à categoria imposta
(“negra”) como uma coisa contingente, circunstancial e não-determinante.
Não há uma verdadeira justiça, no entanto, quando as pessoas que são alvos disso
não são as mesmas pessoas que historicamente oprimiram pessoas não-brancas e
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mulheres. Esse instinto é quase certamente também algo natural para nós, pois
pagar “pelos pecados dos pais” é algo com uma história muito profunda. É um
instinto que é melhor abandonar, e certamente não tem lugar numa democracia
liberal. Se a maioria das pessoas trabalham hoje com um entendimento de justiça,
igualdade e reciprocidade como coisas individuais, essa mentalidade pode ser
incompreensível e alienante.
É dessa forma que a política identitária se faz mais contraproducente e perigosa. Nós
humanos somos criaturas tribais e territoriais, e a política identitária vem muito mais
naturalmente para nós do que a universalidade e a individualidade. A nossa história
presta testemunho de humanos favorecendo de forma flagrante sua própria tribo, sua
própria vila, sua própria religião, sua própria nação e a própria raça acima das outras
e criando narrativas na tentativa impulsiva de justificá-lo.
Os direitos e princípios humanos universais de não julgar as pessoas por sua raça,
gênero ou sexualidade — que se desenvolveram ao longo do período moderno e
resultaram nos movimentos de direitos civis, na igualdade perante a lei, e em muito
progresso social — são muito mais estranhos para nós e precisam ser
consistentemente reforçados e mantidos. Se permitirmos que a política identitária na
força da Justiça Social corroa essa trégua frágil e precária, poderíamos desfazer
décadas de progressos social e prover motivos para o ressurgimento do racismo, do
sexismo e da homofobia. Dada a novidade de uma sociedade igualitária, não está
nem um pouco claro que as mulheres e as minorias raciais e sexuais poderiam
facilmente recuperar essas perdas.
Devemos clamar por uma abordagem mais rigorosa dos problemas de justiça social.
Deve ser uma abordagem que não se fia em uma crença em uma sociedade
dominada por sistemas de poder e privilégio perpetuados no discurso, nem em
utilizar viés da confirmação altamente motivado de forma ideológica como uma
técnica interpretativa, ou em considerar a vivência pessoal assim interpretada como
uma autoridade.
Aqueles de nós que pensam que está claro que a sociedade funciona melhor quando
reconhecemos a humanidade e individualidade compartilhadas de pessoas de todas
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as identidades, e buscam assegurar que nenhuma identidade seja empecilho ao
acesso de alguém a todo direito, liberdade e oportunidade — isto é, os liberais —
devem defender esses valores e reconhecer que são eles, e não os políticos
identitários, que estão continuando o bom trabalho dos movimentos de direitos civis.
Foi assim que o Movimento de Direitos Civis, o feminismo liberal de segunda onda e
o Orgulho Gay funcionaram e inspiraram sociedades a valorizarem os direitos
humanos universais e a igualdade de oportunidade para apoiar o avanço célere do
progresso social. Esses movimentos não foram uma forma de política identitária e a
política identitária não é uma continuação de seu trabalho. Não se deixe convencer
do contrário.
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de quatro livros, mais recentemente Life in Light of Death; seus ensaios apareceram
em publicações como TIME, Scientific American e The Philosopher’s Magazine;
pensa que todos estão enganados a respeito de Deus.
Notas
9/9