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COLEOÇÃO SÍNTEaSE
século de personalidades amadurecidas e perfeitas, de costumes e de todas a s ideias. Sabe agora que a s coisas
personalidades harmoniosamente desenvolvidas, mas têm sido diferentes ao longo das várias épocas e que
uma época de trabalho colectivo tão rentável quanto pouco importa o que ele é. Com uma indiferença melan-
possível. Isso significa simplesmente que os homens se cólica faz desfilar diante de si, umas após outras, as
devem treinar p a r a satisfazer a s necessidades deste í várias opiniões, e compreende a frase e a emoção de
tempo, para porem o mais rapidamente possível mãos Horderlin, a o ler a obra de Diógenes Laércio sobre a
à obra. S ã o obrigados a trabalhar na fábrica da utili- vida e a doutrina dos filósofos gregos: *Senti, mais
dade pública antes mesmo de estarem maduros, ou para uma vez, que me deixo impressionar mais tragi-
que pelas vidas dos homens, que habitualmente são os homens do passado; em todos os outros pontos
consideradas as Únicas reais.» diferem infinitamente -para falar com prudência -
Os Antigos provaram que este modo avassalador, ?h de todos os sábios de velha cepa. E, contudo, exigem
estonteante e violento de estudar história não é necessá- :I - para si honras e vantagens, como se o Estado e a opi-
rio à juventude; e os modernos demonstram que é ,I nião pública fossem obrigados a reconhecer a mesma
extraordinariamente perigoso. Observe-se, um pouco, i
I autenticidade à s moedas novas e às moedas antigas. Os
o estudante de história, herdeiro, por vezes desde a sua carroceiros concluíram entre si um contrato de trabalho
adolescência, de u m gosto precocemente embotado. Apro- e decretaram a inutilidade do génio; uma época ulterior
priou-se do «método» de trabalho, dos truques e do vai decerto dar-se conta de que os seus edifícios são r
tom superior do seu mestre; uma pequena parcela de amontoados de pedras, e não verdadeiros edifícios.
passado, cuidadosamente delimitada, caiu sob a sua Quanto àqueles que têm permanentemente na boca a
perspicácia e sob o método que lhe inculcaram. Já pro- palavra concentração e a divisa sagrada dos modernos,
duziu, ou, para usar um termo mais nobre, já «criou», «Divisão do trabalho.», «Em fila!», eis o que é urgente
tornou-se um servidor activo da verdade, passou para dizer-lhes, em termos claros e precisos: Se quereis
o campo d a história universal. Se desde a infância ele fazer avançar a ciência a toda a velocidade, haveis de
se sentia <realizado», muito mais se sente agora; arruiná-la rapidamente e levar à morte a galinha
basta agitá-lo p a r a recolher à s mãos cheias a massa que forçais, por processos artificiais, a acelerar a sua
crepitante da sua sabedoria. Mas essa sabedoria está postura. E verdade que a ciência progrediu a uma velo-
podre e todas a s maçãs têm bicho. Acreditem-me, cidade extraordinária nos últimos decénios. [Mas
quando os homens duvidaram, sofreram, produziram na olhai-os, estes sábios, estas poedeiras extenuadas! Não
fábrica da ciência antes de atingirem a maturidade, a são, decerto, naturezas «harmoniosas», mas caca-
ciência não tarda a cair em ruínas, como acontece com rejam mais do que nunca, porque põem mais do que
os escravos prematuramente utilizados nas fábricas. nunca. Os ovos são cada vez mais pequenos, muito
Lamento t e r de recorrer ao vocabulário dos negreiros e embora os livros sejam cada vez mais volumosos. O
dos patrões para designar relações em que não deveria resultado final e o mais natural é a «vulgarização» tão
haver vestígios de utilitarismo, e deveriam estar isen- apreciada da ciência, ou seja, a sua «feminização», a
tadas das necessidades da vida, mas vieram involunta- sua «infantilização», dado que se tem a desonra de
riamente aos lábios, para descrever a mais recente gera- retalhar para um «público heterogéneo» a veste da ciên-
ção de sábios, a s palavras da fábrica, do mercado do cia - neste momento, estamos a utilizar um vocabulário
trabalho, de oferta e de procura, da produtividade e de alfaiate para designar uma actividade de alfaiate.
outros vocábulos próprios do egoísmo. A honesta medio- Goethe considerava isso um abuso e exigia que a s
cridade é cada vez mais medíocre, a ciência cada vez ciências se manifestassem no exterior, apenas por meio
mais produtiva, n o sentido económico da palavra. No de uma p r d t i m mpwim. As antigas gerações de
fundo, os sábios mais recentes são sábios apenas num sábios tinham boas razões para pensar que este abuso
era grave e inoportuno. Por boas razões também, este
abuso não pesa n a d a aos jovens cientistas modernos,
porque, para além de um pequeno domínio bem delimi-
tado do saber, eles são o tal público heterogéneo, e têm
as mesmas exigências. Só têm a instalar-se comoda-
mente nas suas poltronas e abrir à curiosidade necessi-
tada desse público variado o seu limitado campo cientí-
fico. Tal acto de complacência será qualificado logo
a seguir de «condescendência modesta do cientista para 8
com o seu povo», quando, no fundo, o sábio condescendeu
consigo próprio, com o que nele há de povo não de
cientista. Façai u m a ideia de povo, nunca será dema- Pode parecer surpreendente e até contraditório que
siado grande nem demasiado nobre. Se tivesseis uma eu atribua a uma época tão pronta a desatar aos gritos
ideia elevada de povo, seríeis misericordiosos para com de triunfo ruidosos e indiscretos a respeito da sua
ele e evitaríeis oferecer-lhe, à laia de tónico, o vosso cultura histórica, uma espécie de consciência irónica
ácido histórico. Mas, no fundo, a vossa estima pelo povo de si, o pressentimento de que não é talvez ocasião para
é muito débil, porque não podeis ter um respeito sin- festas, o temor de que talvez, em breve, terá terminado
cero e motivado pelo seu futuro; e tendes atitudes pessi- todo o prazer que o conhecimento do passado pode dar.
mistas, de homens que vivem com o pressentimento de Goethe propôs-nos um enigma do mesmo género rela-
uma catástrofe e isso os torna indiferentes e negligentes tivamente a algumas personalidades, no seu notável
para com a felicidade de outrem. Contanto que a terra estudo sobre Newton. Ele descobre no fundo de s i
ainda nos suporte! E quando deixar de nos suportar, próprio, ou talvez nas alturas de si mesmo, «o obscuro
continuará a estar bem. IÉ: isto o que eles pensam, e pressentimento da sua injustiça», algo como a expres-
vivem a sua existência c o m irmia. são, inteligível por momentos, de uma consciência supe-
rior que o julga e que atingiu uma visão irónica da
natureza, e que vive necessariamente nele. I3 assim que
vamos encontrar nos historiadores, cujo espírito atin-
giu o maior e mais elevado desenvolvimento, a ideia,
frequentemente tão atenuada que é tão-só uma espécie
de cepticismo universal, de que é um grande absurdo e
uma superstição crer que a educação de um povo deve
ser essencialmente histórica, como é nos nossos dias.
Não é evidente que a s nações mais vigorosas, quer pelos
seus actos quer pelas suas obras, viveram de modo
diferente, educaram de outro modo a sua juventude?
Mas este absurdo, esta superstição, objecta-se com e da consciência medievais. O lema, que a época moderna
cepticismo, é precisamente o que nos convém, a: nós lhe opõe, o memento vivere, ressoa ainda com uma certa
que chegámos tarde, Últimos rebentos anémicos de raças timidez, não é proclamado em voz alta, tem ainda algo de
vigorosas e joviais, nós(a quem se aplica a profecia de quase desonesto. Porque a humanidade está ainda fir-
Hesíodo, segundo a qual há-de aparecer uma raça de memente ligada ao seu memento mwiJ que ela traduz
homens de cabelos grisalhos e Zeus aniquilará a espécie na sua necessidade universal de história. A ciência,
quando esse sinal se tiver tornado manifesto. A cultura apesar de já-ter batido fortemente a s asas, ainda não
histórica é, com efeito, uma maneira de nascer com os conseguiu voar em pleno céu. O profundo desespero de
cabelos grisalhos, e o s que apresentam este sinal desde a que ela se deixou possuir tomou este verniz histórico que
infância chegam necessariamente à crença na velhice da ensombra agora toda a educação e toda a cultura supe-
humanidade. Mas à velhice convém uma ocupação de rior. Uma religião que, de todas a s horas da vida huma-
velhos : olhar para trás, totalizar, concluir, procurar na, considera a Última a mais importante, que prediz o
uma consolação no passado através da recordação; é fim de toda a vida sobre a terra e que condena todos os
a cultura histórica. Mas a raça humana é resistente, não seres vivos a viver perpetuamente apenas o quinto acto
gosta que se considere a sua actividade numa perspecti- de uma tragédia, desperta certamente a s forças mais
va de milénios, nem mesmo de centenas de milénios, profundas e mais nobres da alma, mas é inimiga de
quer para t r á s quer para a frente, ou seja, ela recusa-se qualquer plantação nova, de qualquer tentativa ousada,
absolutamente a s e r considerada por este átomo, este de toda a ambição; entrava qualquer passo na direcção
infinitamente pequeno que é o indivíduo humano. Que de um desconhecido de que ela não gosta e de que nada
podem significar alguns milénios, o tempo de 34 vidas espera; sujeita-se, contra vontade, ao fluxo do devir, que
humanas, considerando 60 anos como média, para que no ela espera repudiar ou sacrificar em tempo devido, e no
inicio deste período se possa falar de «juventude» e no qual vê uma força que nos atrai para a existência, que
fim de «velhice» d a humanidade? Não haverá antes, no nos mente a respeito do valor da existência. O cristia-
fundo desta crença paralisante, uma humanidade em nismo gostaria de fazer de uma cultura sempre em pro-
vias de degenerescência, um mal-entendido a respeito gresso e que tem como palavra de ordem o mernento vi-
de uma concepção teológica cristã herdada da Idade vere o que os Florentinos fizeram, sob a influência dos
Média, a ideia da iminência do fim do mundo, do Juízo sermões de Savonarola, quando organizaram autos-de-fé
Final, esperado no terror? Não será esse o pensamento com quadros, manuscritos, espelhos e máscaras. E como
que se esconde numa necessidade excessiva de formular não tem possibilidade de realizar os seus projectos direc-
os juízos da história como se o nosso tempo, o Último tamente, isto é, pela força, consegue à mesma esse seu
possível, tivesse autoridade para pronunciar sobre o objectivo aliando-se à cultura histórica, frequentemente
passado o Juízo Final, que a fé cristã não espera do ho- sem esta se aperceber. E então, falando em nome desta
mem, mas do Filho d o Homem? Outrora, este memento cultura, repudia com um encolher de ombros tudo o que
m w i J dirigido ao indivíduo e à humanidade, era um está em devir e espalha por todo o lado o sentimento de
aguilhão cruel, uma espécie de espada afiada da ciência que tudo vem demasiado tarde, de que tudo se reduz
a acção de epígonos, em suma, de que todos nós conhecer que é incontestavelmente histórica; compete
nascemos com cabelos grisalhos. A ideia austera e à história resolver o problema da história, o saber
profunda d o não-valor do passado, a ideia deve necessariamente voltar o seu aguilhão contra si
de que o mundo está amadurecido para o Juizo, próprio - esta tripla obrigação é o imperativo do espí-
refugiaram-se neste pensamento céptico: em qual- rito dos «tempos novos», se é que eles têm algo de novo,
quer caso, é bom conhecer o passado, porque é de poderoso, de vital, de original. Ou será verdade que
demasiado tarde p a r a fazer melhor. O sentido histórico nós, alemães -para deixar de parte a s nações români-
impõe, deste modo, aos seus servidores uma atitude cas -, em todos os sectores superiores da cultura não
passiva e retrospectiva, e é quase só quando há esqueci- passamos de epígonos, porque não podemos ser mais
mento momentâneo ou intermitência deste sentido histó- nada, de acordo com o que Wilhelm Wackernagel expri-
rico que o homem, presa da febre histórica, consegue miu nesta definição digna de ser meditada: <<Nós,ale-
agir; depois, passada a acção, procura dissecá-la, blo- mães, somos, no fundo, uma nação de herdeiros; mes-
quear o seu efeito analisando-a, escalpelizando-a para mo na nossa alta ciência, na nossa religião, não
dela fazer história. Neste sentido, pode-se dizer que passamos de epígonos do mundo antigo. Até aque-
vivemos ainda na Idade Média, que a história entre nós les que se recusam, respiram continuamente a
é uma teologia camuflada, assim como o respeito teste- atmosfera do cristianismo e o espírito imortal da
munhado pelo profano à casta dos historiadores não é cultura antiga; e se fosse possível eliminar estes dois
outra coisa senão o respeito atávico manifestado para elementos do a r vital em que mergulha a nossa vida
com o clero. O que outrora se dava à Igreja dá-se agora, icterior, não ficaria grande coisa para alimentar a vida
mais parcimoniosamente, à ciência, mas foi a Igreja que do espírito.» Mesmo que gostemos de nos tranquilizar
conseguiu noutros tempos que lhe fosse tributado esse pelo pensamento de que a nossa vocação é sermos her-
respeito, e não o espírito moderno que, entre outras vir- de&os da Antiguidade, mesmo que decidamos levar
tudes louváveis, é, como se sabe, um tudo nada avarento muito a sério esta vocação, realizá-la com grandeza e
e um molengão em matéria de liberdade, virtude aris- reconhecer esta decisão como o nosso Único e caracterís-
tocrática. tico privilégio, somos obrigados a interrogar-nos sobre
É possível que esta opinião desagrade, talvez não se o nosso destino eterno consistirá em sermos discipu-
menos que a dedução que vê no memento m w i medieval 10s da Antiguidade decadente. Talvez um dia nos venha
e no pessimismo que o cristianismo manifesta relativa- a ser permitido apontar para um objectivo mais elevado
mente ao futuro da vida sobre a terra, a origem do e longínquo, talvez um dia possamos gabar-nos de ter
a.buso da história. pode tentar-se substituir por uma cultura alexandrina e romana, e possamos então pro-
explicação melhor esta que eu apresento, também por-nos uma tarefa mais grandiosa ainda, como a mais
ccjm alguma hesitação. Porque a origem da cul- nobre das recompensas: i r para além deste mundo ale-
tura histórica e d a sua hostilidade profunda, absolu- xandrino e procurar corajosamente os nossos modelos
tamente radical, para com o espírito de um tempo novo, no mundo grego arcaico da grandeza, do humano e do
de uma consciência moderna, esta origem, é preciso re- natural. Lá iremos encontrar a redidade de m a wl-
mento triste e paralisante considerarmo-nos os rebentos
por esta razão, i n f h i t a m m t e rica e viva. Se nós fosse- tardios de todos os tempos, mas o que é terrível e des-
mos apenas epígonos, como poderíamos, considerando truidor é que esta filosofia, por uma impudente revira-
esta cultura como herança que nos está destinada, volta, tenha divinizado o que chegou tarde, como se
continuar a não s e r nada de mais digno e grande do que ele fosse o sentido e o fim de toda a evolução anterior.
epígonos ? Estes reles mestres-escola identificaram-se com a histó-
Com isto quero dizer uma coisa, nada mais: mesmo ria universal. Este modo de pensar habituou os alemães
o pensamento d e se ser apenas epígono, se pensado a falar do «processo universal)) e a justificar o seu
com grandeza, pode garantir ao indivíduo e à nação próprio tempo como o resultado necessário desse pro-
grandes possibilidades de acção e uma visão do futuro cesso; como consequência, instalou a história no lugar
cheia de esperança, na medida em que nos sentirmos de todas a s outras forças espirituais, arte e religião,
herdeiros e descendentes de forças plásticas prodigiosas como senhora exclusiva, na medida em que ela é «a ideia
e em que virmos nesse facto a nossa honra, o estímulo que se realiza por si», a «dialéctica dos génios nacionais)}
que nos impele p a r a a frente. Portanto, nada de comum e o autêntico Juizo Final.
com os pálidos rebentos estiolados de raças vigorosas, A história, compreendida à maneira de Hegel, foi
que arrastam u m a vida incerta de antiquários e de denomidada, ironicamente, a acção de Deus sobre
coveiros. Esses rebentos tardios vivem uma existência a terra, não passando o próprio Deus de uma
irónica, o nada persegue o curso hesitante da sua vida, criação da história. Mas esse Deus, dentro dos crâ-
porque eles são memórias vivas, e, todavia, a sua memó- neos hegelianos, tornou-se transparente e inteligível
ria não tem sentido se eles não forem herdeiros. Assim, a si mesmo e subiu já dialecticamente todos os degraus
envolve-os o obscuro pressentimento de que a sua vida do seu devir até à revelação de si mesmo; de tal maneira
é um pecado, porque nenhuma vida futura virá justi- que para Hegel o cimo e o termo do processo universal
ficá-la. acaba por coincidir com a sua própria existência berli-
Mas s e virmos estes rebentos com vocação de anti- nense... Deveria mesmo ter dito que tudo o que viesse de-
quários trocar repentinamente a sua impertinência por pois dele não teria mais valor do que a coda do rondó
uma resignação irónica e dolorosa, se os imaginarmos universal ou, mais precisamente, seria supérfluo. Não o
a proclamar com voz estridente que a raça atingiu disse; em compensação, implantou nas gerações impreg-
o zénite, porque finalmente ela se conhece e se revelou nadas pelo seu pensamento a admiração pela «poeira
a s i mesma, tal espectáculo permitir-nos-ia decifrar, da história», que se metamorfoseia em cada instante na
~
como numa parábola, a significação enigmática admiração aberta pelo sucesso e conduz à idolatria do
que pode t e r para a cultura alemã uma certa filosofia real- culto idolátrico que generalizou a fórmula mitoló-
muito célebre. Creio que neste século não houve oscila- gica e autenticamente alemã de «fazer justiça aos fac-
ções nem viragens perigosas que a influência prodigiosa, tos». Mas quando se aprende a curvar a espinha e a bai-
sensível ainda hoje, desta filosofia, o hegelianismo, não xar a cabeça diante do «poder da história», acaba-se por
tenha tornado mais perigosas. Na verdade, é um pensa- aprovar com a cabeça, como um bonzo chinês, qualquer
poder, quer seja d o governo ou da opinião pública ou também o juiz destas flagrantes imoralidades. Por
da maioria do número, e por agitar os membros em obe- exemplo, é uma ofensa à moral Rafael ter morrido com
diência estrita a quem tem nas mãos os fios. Se qual- 36 anos; um ser como ele não deveria morrer. Mas se
quer sucesso é devido a uma necessidade racional, se quiserdes vir em auxílio da história e justificar o real,
qualquer acontecimento é uma vitória da lógica ou direis: Se tivesse vivido mais tempo, repetiria o tipo de
d a «Ideia», então punhamo-nos de joelhos perante beleza que criara e não criaria uma beleza nova, e outras
toda a espécie de sucessos. Quê? Desapareceram as razões do mesmo género. Tornais-vos, assim, os advoga-
mitologias soberanas? Estarão a s religiões a ago- dos do diabo, escolhendo para ídolo o sucesso, o facto
nizar? Olhai uns instantes para a religião do poder consumado, quando o facto é sempre absurdo e foi sem-
da história. Observai os sacerdotes da mitologia das pre mais parecido com um bezerro do que com um deus.
ideias e os seus joelhos esfolados. As próprias vir- Apologistas da história, é a ignorância que vos inspira
tudes, não marcham todas elas atrás desta nova crença? estas afirmações. Ê porque ignorais o que é uma
Ou não será abnegação quando o homem histórico se n a t u ~ anakurans como Rafael que vos é indiferente
deixa humilhar até ao estado de espelho objectivo? saber se ela existiu ou se já não existirá. A respeito
Não será magnanimidade renunciar a todos os d? Goethe, quiseram recentemente ensinar-nos que, aos
poderes do céu e da terra porque em todos estes 82 anos, já tinha esgotado todas a s suas virtualidades.
poderes se adora o poder em s i ? Não será jus- E, contudo, não me importaria de dar alguns anos desse
tiça t e r permanentemente nas mãos a balança das Goethe «esgotado» em troca de carradas inteiras
forças e examinar minuciosamente qual é a mais forte dessas vidas activas e hipermodernas, só para poder
e mais pesada? E que escola de conveniências é este beneficiar de encontros como os que Goethe teve com
modo de encarar a história! Julgar objectivamente Eckermann e assim livrar-me da doutrina dos legioná-
tudo, não s e irritar com nada, não amar nada, tudo rios do tempo presente. São muito poucos os vivos que
compreender, suaviza e torna maleável. E se o homem têm o direito de viver diante de tais mortos. Que tantos
educado nesta escola se irritar alguma vez em público, homens estejam ainda em vida quando essas personali-
isso será motivo d e júbilo, porque se sabe que ele dades raras já não vivem, é uma estupidez incorrigível,
o faz como artista; nele, a ira et studium é sempre um grave <<éassim» oposto ao «não deveria ser assim»
sine i r a et studio. da moral. Sim, oposto à moral. Porque qualquer que
Que sentimentos desactualizados tenho no coração seja a virtude de que se fala- justiça, generosidade,
contra este combinado de mitologia e de virtude! Mas bravura, sabedoria, piedade para com os humanos - o
poderemos rir-nos, eles é que têm de exprimir-se. Direi homem só é virtuoso quando se revolta contra a força
então que a história não cessa de repetir-se: «Era uma cega dos factos, contra a tirania do real e quando
vez.. .». A moral diz: <<Enecessário que seja assim.. .» se sujeita a leis que não são a s que regem situações
ou «Não deveria ser assim.. .». E a história transfor- históricas dadas. Nada sempre contra a corrente
mou-se no reportório das mais flagrantes imoralidades. da história, quer lutando contra a s suas paixões,
Enganar-nos-íamos se pensassemos que a história 6 que são para ele a realidade mais próxima e estúpida,
Se a história não passasse de «um sistema universal
de paixões e de erros», o homem deveria lê-la como
Goethe aconselhava a ler Werther: «Sê homem e não
me imites». Mas, felizmente, a história guarda também
a lembrança daqueles que foram grandes lutadores
contra a história, isto é, contra a força cega do real,
ela própria se amarra ao pelourinho pondo em evidên-
cia como personalidades verdadeiramente históricas
aquelas que se preocupam pouco com o «é assim» e que
obedecem orgulhosamente e com alegria ao «isto é que Será o nosso tempo fundador de uma raça?
deve ser». O que as atira incessantemente para a frente De facto, a veemência do seu sentido histórico é tal e
não é o desejo de sepultar a espécie, mas de fundar uma fala uma linguagem tão universal, tão desdenhosa
raça nova. E mesmo que fossem retardatários, h á uma de fronteiras, que a s épocas vindouras, neste ponto
maneira de viver que pode fazê-lo esquecer - a s gera- ao menos, hão-de celebrar a sua força inovadora, se
ções futuras considerá-los-ão como antepassados da acaso houver épocas futuras, no sentido em que a cultu-
sua raça. r a o entende. Mas neste momento aparece uma dúvida
grave: muito próximo do orgulho do homem moderno
há a sua auto-ironia, a consciência que ele tem de dever
viver numa ambiência historicizante e como que crepus-
cular, o seu temor de nada poder salvar, para o futuro,
das suas experiências e das suas forças juvenis. Daqui
vai-se mais longe, até ao cinismo,e justifica-se o curso
da história e da evolução universal do ponto de vista
preciso do homem moderno, em virtude deste cânone
cínico: foi preciso chegar ao ponto em que nos encon-
tramos, foi preciso que o homem se transformasse no
que hoje é, e ninguém tem o direito de se revoltar contra
esta necessidade. Os que não suportam o clima de iro-
nia refugiam-se no sentimento de bem-estar oferecido
pelo cinismo. O Último decénio oferece-lhes, além disso,
como presente, uma das suas mais belas invenções, uma
definição completa e plena do cinismo e da sua arte de
viver em harmonia com o seu tempo, sem qualquer
escrúpulo. A ísso chama ele «o abandono total da per- de caminhar, de subir no teu conhecimento, é a tua
sonalidade a o processo universal». Personalidade e pro- fatalidade. A terra firme afunda-se debaixo de ti, no
cesso universal! Processo universal e personalidade do incerto. Já não tens escoras para a vida, além de algu-
pulgão! Ouvir perpetuamente repetida a maior de todas mas teias de aranha que qualquer novo progresso des-
as hipérboles: o universo, o universo, o universo! Quan- trói. Mas basta de'falar seriamente de tudo isto, pois
do o sábio, por muito pouco honesto que ,seja, devia falar que h á maio de falar agradavelmente.
apenas do homem, do homem, do homem! Herdeiros O hábito furioso e irreflectido de escalpelizar todos
dos Gregos e dos Romanos? Herdeiros do cristianismo? os fundamentos sólidos, de os dissolver num devir fluido
Nada disso conta para os cínicos. Mas herdeiros do e fugidio, o modo como o homem moderno, essa grande
processo universal! Cumes e alvos do processouniversal! aranha colocada no centro da teia universal, tira o seu
Sentido e soluções de todos os enigmas do devir tais fio do passado para dele fazer história, tudo isto pode
como se apresentam ao homem moderno, fruto maduro ocupar e inquietar o moralista, o artista, o homem
da árvore do Conhecimento! Tendes motivo para vos or- piedoso, e também o homem de Estado. Para já, vamos
gulhar. 13 assim q u e se reconhecem os chefes de fila de divertir-nos vendo todas estas coisas no brilhante
todos os tempos, mesmo que cheguem tarde. Nunca espelho mágico do filósofo parodkta, na cabeça do qual
o pensamento se desenvolveu tanto, mesmo em sonho, o tempo chegou à contemplação de si próprio, irónica
porque agora a história do homem não é mais do que e distintamente, «até à infâmia», para dizer como
a continuação da história dos animais e das plantas; Goethe. Hegel ensinou-nos que «sempre que o espírito
até n a profundidade Última das espécies, o histo- avança, nós, os filósofos, avansamos com ele». Ora o
riador do universo encontra vestígios seus no plasma. nosso tempo deu um passo à frente, chegou à auto-
vivo; considerando milagroso o caminho imenso que o -ironia e eis que Eduard von Hartmann estava pre-
homem já percorreu, o olhar tem vertigens ao con- sente para escrever a sua famosa Filosofia do Incons-
templar o milagre mais surpreendente ainda, o homem ciente, ou melhor, a sua filosofia da ironia consciente.
moderno, capaz d e abarcar com o olhar o caminho Poucas vezes lemos uma invenção mais alegre, uma
perdido. Eleva-se orgulhosamente até ao cume da batota mais filosófica do que a de Hartmann. Se ele
dit pirâmide do processo universal; e, colocando aí o não nos informa, não nos ilumina a respeito do incons-
fecho de abóbada do seu conhecimento, parece procla- ciente, é que nós já deviamos ter morrido. A origem
mar à natureza circunstante: Eis-nos no fim! Nós e o fim da evolução universal, do primeiro sobressalto
somos o fim! Nós somos a natureza na sua perfeição! da consciência até ao regresso catastrófico ao caos, a
Europeu loucamente orgulhoso do século XIX, tu tarefa exacta da nossa geração na evolução universal,
deliras. Longe de completar a natureza, o teu saber tudo extraído da fonte inspiradora e engenhosamente
mata a tua própria natureza. Compara a altura do inventada do Inconsciente, e iluminado por reverbera-
teu saber com a humildade do teu poder. Sem dúvida, ao ções apocalípticas, tudo copiado com tal seriedade,
subires pelos raios de sol do teu conhecimento, elevas-te com uma tal honestidade e uma semelhança tão perfeita
até a o céu, mas desces também para o caos. O teu modo que poderia pensar-se que se trata de uma filosofia
autêntica a levar a sério, e não de uma filosofia para o operário levará uma vida confortável, com um horá-
r i r - um tal conjunto assegura ao seu autor a situação rio de trabalho que lhe há-de deixar tempo livre
de um dos primeiros filósofos parodistas de todos os para a sua formação intelectual, Intrujão, mil vezes
j.
tempos. Ofereçamos no seu altar uma madeixa de cabe- intrujão! Como exprimes bem a nostalgia da huma-
los, como se s e tratasse do inventor de uma panaceia,
para roubar a Schleiermacher esta fórmula admirativa. i nidade presente. Mas t u sabes também qual é o fan-
tasma que, se leavntará no fim desta idade viril da
Efectivamente, que panaceia haverá que seja mais humanidade, como resultado da formação intelectual
eficaz contra o abuso da cultura histórica do que a I
dada à mediocridade honesta: será a náusea. Ê evidente
paródia feita por Hartmann à história universal? 6
que tudo corre mal, lamentavelmente mal, mas tudo
Se se quisesse exprimir secamente o que Hartmann irá. lamentavelmente pior, <<évisível que o Anti-Cristo
anuncia do alto do s e u tripé, por entre o fumo da ironia ganha terreno)). Mas é preciso que seja assim, que
inconsciente, seria necessário dizer que ele anuncia aconteça assim, porque com tudo isto estamos no bom
qu? o nosso tempo deveria ser exactamente o que é, caminho, que leva à náusea de tudo o que existe.
se a humanidade ficasse realmente farta desta existên- «Caminhemos, pois, energicamente no caminho da evo-
cia, o que nós cremos de todo o coração. Essa temível lução universal, como operários na vinha do Senhor,
ossificação do tempo, esse perpétuo ranger de ossos, porque é o Único processo que conduz à redenção».
que David Strauss ingenuamente pintou como a mais A vinha do Senhor. O processo. A redenção. O que
bela das realidades, são justificadas por Hartmann não se pode ver e ouvir não é a cultura histórica que só
s6 a posteriori, ex causis efficientibus, mas também conhece o devir, que se disfarça propositadamente numa
a priori, ex causa finali. O brincalhão projecta sobre o paródia caricatura1 e que, através da máscara que lhe
nosso tempo uma luz de Juízo Final e resulta dai que cobre o rosto, enuncia sobre ela a s mais fantasistas
este tempo é muito bom, pelo menos para quem, dese- proposições? Porque o que é que o Último apelo deste
jando sofrer'o mais possível de tudo aquilo que a vida intrujão exige aos operários da vinha? E m que tra-
tem de indigesto, não deseja para muito próximo o balho devem eles progredir energicamente? Por outras
advento do último dia. E verdade que Hartmann chama palavras, o homem que beneficiou de uma cultura his-
«idade do homem» à época de que a humanidade se tórica, o moderno fanático do processo, quer nade,
aproxima. Mas se dermos crédito à sua descrição, é o quer se afogue no rio do devir, que pode fazer ainda
estado de bem-aventurança em que há tão-só uma «ho- se quiser recolher os frutos preciosos desta vinha,
nesta mediocridade» e em que a arte corresponde «ao a náusea? Bastar-lhe-á continuar a viver como viveu,
que é para o banqueiro a comédia-bufa que alegra os a amar o que amou, a odiar o que odiou e a ler os
serões». E a época em que já não h á necessidade de jornais que sempre leu. Há só um pecado para ele:
qénios, porque seria lançar pérolas a porcos ; para mais, viver de modo diferente do que viveu. Mas como
essa época ultrapassou o estádio em que há necessidade viveu? Di-lo com uma clareza lapidar uma página
de génios, porque atingiu uma fase mais avançada e célebre, com as suas máximas impressas em maiús-
mais importante, o estádio de evolução em que todo culas, que excitou o cego êxtase e o furor encan-
tado da escória d a cultura moderna, a qual julgou ler e canonizava o evangelho cómico de Hartmann, apli-
nestas frases a sua autojustificação iluminada pelo fogo cando toda a honestidade da «German mind» e até
de um apocalipse. Poraue este parodista inconsciente com a «seriedade cheia de esgares do mocho», como diz
exigia de qualquer indivíduo <<oabandono total da per- Goethe. Mas é preciso que o mundo avance, não basta
sonalidade à evolução universal cujo fim é a redencão sonhar com este estado ideal, é necessário merecê-lo
universal». Ou, d e modo mais claro, mais luminoso pela luta e pelo combate, e é pela hilaridade que passa
ainda: «Proclamaremos provisoriamente que a afirma- o caminho da redenção que nos há-de libertar dessa gra--.
ção do querer viver é a única legítima, pois só pelo aban- vidade hostil de mocho. Virá o tempo em que nos abste-
dono total à vida e à s suas dores, e não através de uma remos prudentemente de reconstruir pelo pensamento a
resignação fraca e d e um abandono egoísta se pode ser- evolução universal, ou, simplesmente, a história da hu-
vir a evolução universal ... O esforço para a negação manidade, o tempoem que não haverá consideração pelas
individual do querer viver é igualmente louca e igual- massas mas tão-só pelos indivíduos que formam como
mente inútil, mais louca ainda que o suicídio... O que uma espécie de ponte por cima da torrente drsor-
leitor avisado compreenderá, sem mais, qual é a forma denada do devir. Esses não constroem a evolução, vivem
que uma filosofia prática baseada sobre estes prin- fora do tempo, e, contudo, graças à história que Ihes
-. cípios pode assumir, e que só ela pode trazer, não possibilita uma colaboração, constituem a repíiblica de
o desacordo mas a plena reconciliação com a vida». génios de que falou Schopenhauer. Para lá dos interva-
O leitor avisado compreenderá ... E houve quem los desérticos do tempo, um génio chama outro, e sem
não compreendesse Hartmann. Como é divertido pensar se deixarem perturbar pela algazarra dos anões turbu-
que pôde s e r mal compreendido. Teriam os alemães lentos que grasnam por debaixo deles, prossegue o alto
modernos adquirido tanta finura? Um inglês atento diálogo dos espíritos. A missão da história é servir de
- acha que Ihes falta «delicacy of perception» e tem intermediário entre eles, permitir o nascimento do
mesmo a ousadia d e dizer: «In the German mind there homem de génio e dar-lhe forças. Não, o objectivo final
does seem t o be something splay, something blunt- da humanidade não está no seu termo, mas nos seus
-edged, unhandy a n d unfelicitous.» O grande parodista exempZares stupmiores.
protestará? Ê verdade que, na sua opinião, nós estamos Neste momento, onossocómico objectará com admii
R aproximar-nos desse estado ideal «em que a raça rável dialéctica, tão autêntica quanto são admiráveis
humana há-de construir conscientemente a sua histó- os seus admiradores, que como não é compatível com
ria». Mas é claro que estamos bastante mais longe a ideia de evolução atribuir ao processo uma duração
desse estado ainda mais ideal em que o homem há-de infinita no passado, porque nesse caso toda a evolução
ler conscientemente o livro de Hartmann. Uma vez che- iniaginável já teria transcorrido, o que não é eviden-
gados a esse ponto, ninguém deixará vir aos seus temente o caso (ai, o malandro!), também não podemos
lábios a palavra evolução universal sem um sorriso; atribuir a este processo uma duração ilimitada no futu-
porque lembrar-se-ão, nesse momento, do tempo em que ro; um e outro excluiriam a noção de uma evolução
se escutava, assimilava, contestava, honrava, difamava orientada para um fim (malandro, mais uma vez!)
e aproximariam a evolução do trabalho inútil das Danai- exagerado do devir, que prejudica a vida, o ser, contra
des. Mas o triunfo completo da lógica sobre o ilogismo a inversão inconsiderada de todas a s perspectivas. E
(mil vezes malandro!) deve coincidir com o fim tempo- será sempre necessário dizer, em louvor do autor da
ral do processo universal, o Juízo Final. Não, espírito Filosofia do Inconsciente, que ele foi o primeiro a
claro e altivo, enquanto o ilogismo reinar como hoje, ter sentido vivamente o que há de risível no conceito de
enquanto, por exemplo, se puder falar do processo «processo universal», e a tê-lo feito sentir mais viva-
i
universal no meio da aprovação geral, estaremos ainda mente ainda através da extraordinária seriedade da
longe do Juízo Final, porque ainda há alegria a mais sua descrição. Porque é que «o mundo» existe, por-
nesta terra, porque há um número excessivo de ilusões, que existe a humanidade? Preocuparmo-nos com isso,
por exemplo, a s que os teus contemporâneos têm a teu é só para nos divertirmos, porque a presunção do mais
respeito, não estamos ainda amadurecidos para sermos pequeno dos vermes da terra é o que há de mais
lançados no teu nada, porque continuamos a acreditar cómico e pitoresco na cena do mundo. Mas porque
que tudo seria mais alegre cá em baixo se começassem é que t u existes, tu, ser individual, pergunta-o a ti
a compreender-te, inconsciente incompreendido! Se, próprio, e se ninguém é capaz de to dizer, tenta jus-
todavia, um pesado desgosto nos assaltar, como o tificar a priori o sentido da tua existência pelo facto
profetizaste aos teus leitores, se tivesses razão na tua de lhe dares uma finalidade, porque não conheço
descrição do presente e do futuro- e ninguém mais melhor razão para viver do que morrer por uma
que tu desprezou nem exprimiu melhor esse desprezo por grande causa, por um desígnio impossível, animae
um e por outro - estou pronto a juntar o meu sufrá- magnae prodigus. Se, pelo contrário, as doutrinas
gio ao da maioria, nas formas propostas por ti, do devir soberano, da fluidez de todas as noções, de
para afirmar que o mundo deve acabar sábado à meia- todos os tipos, de todas as raças, a ideia da ausência de
-noite em ponto. Concluiremos que a partir de amanhã diferença essencial entre o homem e o animal - ideias
o tempo passou, que não voltará a aparecer mais que eu considero verdadeiras mas mortais -ainda vão
nenhum jornal. Talvez o efeito não venha a produzir-se, ser lançadas ao público durante uma geração, o que é
e entãd a nossa decisão terá sido vã; nesse caso, tere- possível concluir da fúria de educação actual, ninguém
mos ainda ocasião p a r a fazer uma bela experiência. se admirará que a nação morra por tanta miserável
Tomaremos nas mãos uma balança e colocaremos num mesquinhez, por tanta ossificação e egoísmo, e que
dos pratos o Inconsciente de Hartmann e no outro o comece a desagregar-se como nação. Em vez de uma
processo universal de Hartmann. Há pessoas que crêem nação hão-de surgir talvez, sobre a palco do futuro, asso-
que os pratos se equilibram, porque são fórmulas ciações de egoísmos individuais, fraternidades com o
igualmente más e duas brincadeiras. Logo que se com- fim de explorarem pelo banditismo todos aqueles que
preender a brincadeira de Hartmann, ninguém voltará não fazem parte delas, e outras criações do utilitarismo
a empregar o termo bárbaro «processo universal», vulgar. Continue-se, portanto, para preparar essas
excepto por brincadeira. Na realidade, já é tempo de criações, a escrever a história na óptica das
atirar a convocação d a s malícias satíricas contra o gosto massas, procurando nelas as leis que se deduzem
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das necessidades das massas, isto é, leis que regulam cia sobre a s massas; o sucesso do cristianismo, a sua
os movimentos das camadas inferiores, das camadas de «força histórica», a sua duração, tudo isso não prova
argila e de greda da sociedade. As massas merecem nada, felizmente, em favor da grandeza do seu fundador;
algum interesse apenas por estes três motivos: copiam a testemunhar, seria contra ele. Mas entre ele e o seu
vagamente os grandes homens, de acordo com clichés sucesso histórico interpõe-se uma camada de paixão mui-
gastos; oferecem uma resistência aos grandes; enfim, to terrestre e confusa, de erro, de necessidade Se prazer
são instrumentos dos grandes. Quanto ao resto, que vão e de domínio, de sentimento e de honra, forças a agir
para o diabo e a estatística com elas. O quê? A esta- constantemente no imperium romanum. Desta camada
tística provaria que h á leis na história! Leis? o cristianismo conservou o seu gosto pela terra, esse
Demonstra primordialmente que a massa é vulgar e de resto de terra que lhe permitiu continuar neste mundo
uma repugnante uniformidade. Poderá chamar-se lei aos e, de certa maneira, lhe deu consistência. A grandeza
efeitos de uma qualquer destas forças de gravidade a não deve depender do sucesso, e Demóstenes é grande
que se dá o nome de parvoíce, imitação simiesca, amor e não teve sucesso. Os mais puros e mais autênticos
e fome? Seja. Mas o princípio permanece: na me- adeptos do cristianismo entravaram e comprometeram
dida em que h á leis e m história, essas leis não têm o seu êxito secular, a sua pretensa força histórica, mais
qualquer valor e a história também não vale nada. Ora, do que o favoreceram, porque se colocavam frequente-
é justamente esse género de história que presentemente mente fora do «mundo» e não se preocupavam nada com
tem grande voga, a que considera os grandes instintos de <o processo da ideia cristã» ; essa a razão do seu anoni-
massa como o que há d e essencial e de mais importante mato dentro da história. Em termos cristãos, o diabo
na história e vê nos grandes homens apenas a expres- é o senhor do mundo, o mestre do êxito e do progresso.
são rigorosa dessas leis, como bolhas que se formam à E a verdadeira força dentro das forças histjricas e, fun-
superfície da inundação. damentalmente, há-de ser sempre assim, por mais desa-
Afirma-se que a massa há-de produzir a gran- gradável que isso soe a ouvidos acostumados a ouvir di-
deza, que o caos d a r á à luz a ordem; e, para vinizar o sucesso e a força da história. Essa força traba-
acabar, entoa-se o hino em louvor da fecundidade lhou muito para mudar o nome à s coisas e ?ara rebapti-
da massa. Dá-se o nome de «grande» a tudo que zar o diabo em pessoa. A hora presente corre um grave
agitou por momentos a massa, tudo o que foi, como se perigo. Os homens estão prestes a descobrir que o
diz, uma «força histórica». Mas não será isso confundir egoísmo do indivíduo, dos grupos e das massas serviu
claramente qualidade com quantidade? Se a massa sempre de alavanca aos movimentos da história; mas,
obtusa encontrou um pensamento adaptado a ela, por ao mesmo tempo, esta descoberta não inquieta nin-
exemplo, um pensamento religioso, se ela o defender guém; pelo contrário, decreta-se que o egoismo deve ser
teimosamente e o arrastar atrás de si ao longo de sécu- o nosso deus. Nesta crença nova estão os fundamentos
los, dir-se-á então, e só então, que o inventor e fundador da história futura sobre o egoismo, com uma intenção
de tal pensamento foi grande. E porquê? As qualidades bem definida; mas é preciso que o egoismo seja pruden-
mais nobres e mais excelentes não têm qualquer influên- te, que aceite certos limites para poder consolidar-se, que
tude a história-para ver o que é um egoí
mos ciosamente os direitos da nossa juventude;
uma missão muito especial no futuro sistema universal
não nos cansaremos de defender na nossa juventude
dos egoísmos. Deve passar a ser o patrão de todos
o futuro, contra aqueles que querem destruir a nossa
os egoísmos inteligentes, a fim de os proteger com toda
imagem do futuro. Mas até neste combate teremos de
a sua força militar e policial das terríveis erupções dos
fazer a seguinte constatação : f avovecerm-se expressa-
egoismos ininteligentes. Pela mesma razão, a história,
mente, encorajam-se, utilixarn-se os excessos do sentido
a. dos homens e a dos animais, introduz-se prudentemen-
histórico de que o presente sofre.
t 2 nas massas populares e nas massas operárias, perigo-
Mas é contra a juventude que são utilizados, para
sas porque não têm sabedoria, porque se sabe que uma
a guindar à maturidade viril do egoismo que se apre-
suspeita de formação histórica é susceptível de despe-
senta como objectivo; são utilizados para destruir
daçar a cobiça, os instintos obscuros e grosseiros e de
a resistência natural da juventude, por meio de uma
os conduzir pelos caminhos do egoismo requintado. E m
iluminação enganadora mágico-científica. Mais, sabe-se
suma, para falar como E. von Hartmann, «o homem
bem demais o que a história pode, dada a preponderbn-
projecta preparar n a pátria terrestre uma morada
cia que ela adquiriu. Pode extirpar os mais vigorosos
prudentemente orientada- para o futuro, habitável e prá-
instintos da juventude: o ardor, a insolência, a dedica-
tica». O mesmo escritor qualifica este período como
ção e o amor. Pode temperar o ardor do sentimento da
idade viril da humanidade, muito embora faça troça
justiça, recalcar ou reprimir o desejo de uma matura-
daquilo a que hoje s e chama viril, como se esta palavra
çãó lenta, opondo-lhe o desejo contrário de fazer
só conviesse a um egoismo avisado. Prediz que há-de
depressa, de ser Útil e fecundo; pode entregar à dúvida
vir depois uma idade de senilidade, só para zombar dos
corrosiva a probidade e a ousadia do sentimento. A
nossos velhos tão bem adaptados ao seu tempo, porque
história é mesmo capaz de tirar à juventude o seu mais
ele fala da maturidade reflectida com a qual eles con-
belo privilégio: a energia com que ela, no excesso
templam «todas as violentas contrariedades da sua vida
da sua fé, implanta em s i um grande pensamento, a fim
anterior e compreendem a inutilidade dos pretensos
de fazer crescer no seu seio um pensamento ainda maior.
objectivos dos seus esforços passados». Não, a uma
Um certo excesso de história é capaz de tudo isto, atra-
idade viril animada por este egoismo prudente e for-
vés do deslocamento das perspectivas e pela supressão
mado na cultura histórica, corresponde uma velhice
de uma atmosfera envolvente; só permite ao homem que
agarrada à vida com uma avidez repugnante, sem qual-
haja e sinta historicamente. Com a fuga aos horizontes
quer dignidade, depois um último acto no qual «esta
infinitos, o homem refugia-se em si mesmo, no mais
história, nas suas estranhas vicissitudes, desagua numa
exíguo dos domínios egoístas que haja e, fatalmente,
segunda infância, sem memória, sem olhos, sem dentes,
murcha e seca. Talvez alcance a prudência, mas nunca
sem gosto, sem nada 3>>.
a sabedoria. Aceita que falem com ele, calcula os
Os perigos que ameaçam a nossa vida e a nossa
factos e acomoda-se a eles; não se revolta, pisca
cultura provêm destes velhos decrépitos, sem dentes,
os olhos e procura a s suas vantagens ou a s do seu
partido para vantagem ou prejuízo de outrem. Esque-
ce-se do pudor supérfluo e transforma-se gradualmente
no adulto ou no velho descritos por Hartmann. M ~ éS
exactamente a isso que ele deve chegar, é justa-
mente.esse o sentido do «completo abandono da persona-
lidade ao processo universal», que é cinicamente exi-
gido dele-porque o termo é a redenção do mundo,
como nos assegura o malandro do Hartmann. Seja! A
vontade e o objectivo destes «adultos» e destes «velhos»,
segundo Hartmann, só pode ser a redenção do mundo,
mas o mundo estaria mais liberto se se livrasse deles, Pensando na juventude, grito: Terra, terra! Já
porque viria logo a seguir o reino da juventude. basta de procura apaixonada e de erros, de viagem
por sombrios mares desconhecidos. Aparece terra firme.
É urgente acostar, seja qual for a costa; o abrigo do
mais miserável porto de acaso vale mais do que ser ati-
rado para este infinito de cepticismo e de desespero.
Primeiro acostemos, encontraremos depois os portos
favoráveis e havemos de facilitar o desembarque aos
nossos descendentes.
Navegação perigosa e emocionante! Como estamos
longe do pacífico estado de contemplação em que vimos
aparelhar o nosso navio. Ao tentarmos descobrir os
gerigos da história, expusemo-nos mais do que ninguém
a esses mesmos perigos. Trazemos em nós os estigmas
dos males que cairam sobre os homens do nosso tempo,
como consequência do abuso da história, e estas pági-
nas, quer pelo seu exagero crítico, quer pelo universa-
lismo do seu humanismo e pela sua frequente passagem
da, ironia ao cinismo, do orgulho ao cepticismo, mos-
tram bem, devo confessá-lo, o seu carácter moderno, a
fraqueza da personalidade. E, contudo, tenho confiança
na força que me inspira e que, à falta de génio, conduz
o meu barco; confio na juventude que me guiou até
aqui; isto obriga-me a protestar contra a fo~rmaçáo
I
histórica imposta b juventude actaal; é por isso que - um saber falso ,e superficial. Falso e superficial, porque
o contestador exige que o homem moderno aprenda ? se tolerava a contradição entre a vida e o saber, porque
antes de mais a viver e só utilize a história se ela
estiver ao serviço da vida tal corno ele já a colnhece.
E preciso s e r jovem para compreender o sentido deste
protesto, e, tendo em conta a velhice antecipada da
I não se via o que a cultura das nações verdadeiramente
cultas tem de característico: a cultura só pode crescer
e desenvolver-se a partir da vida, ao passo que entre os
alemães é ,uma flor de papel decalcada sobre a vida,
juventude actual, é difícil ser bastante jovem para um xarope de açúcar deitado sobre um bolo e, por
adivinhar contra o que é que se protesta aqui. esta razão, mentirosa e estéril. Mas a educacão
Vou exemplificar : surgiu na Alemanha, ainda não da juventude, na Alemanha, parte j ~ s t a r h e n tdeita
~
há um sécula, entre alguns jovens, a intuição daquilo ideia falsa e estéril de cultura. A sua finalidade, que
a que se d á o nome de poesia. Será possível acre- parece muito pura e muito elevada, não é formar o
ditar que a s gerações precedentes e contemporâneas homem livre e culto, mas o sábio, o homem científico
nunca tenham falado dessa arte que Ihes parecia tão rapidamente utilizável, que se mantém afastado da
estranha e tão contrária à natureza? Sabemos, pelo con- vida para melhor a ver. O resultado, visto do
trário, que elas reflectiram com todas a s suas forças ângulo do empirismo vulgar, é o filisteu culto, empan-
sobre a poesia, a escreveram, a discutiram, amontoando turrado de estética e de história, o falador senil e pre-
palavras sobre palavras. A ressurreição de uma pala- sunçoso sempre pronto a discorrer sobre o Estado,
vra não significou a morte imediata dos produtores sobre a Igreja e sobre a arte, é o sensorium de mil
de palavras; em certo sentido, pode dizer-se que eles impressões sem originalidade, o ventre insaciável que,
ainda sobrevivem. Porque se, como diz Gibbon, só é pre- todavia, ignora o que são uma fome e uma sede
ciso tempo, muito tempo, para que um mundo desapa- honestas. Que uma educação que tem um tal objectivo
reça, só é preciso tempo, mas muito mais tempo ainda, e que chega a tal resultado seja uma educação contra
para que na Alemanha, no país do «pouco a pouco», a natureza, é o que só o homem que ela ainda não for-
morra uma noção falsa. Como quer que seja, há mou por completo pode sentir, é o que só pode ser pres-
talvez cem homens mais do que havia há cem anos que sentido pelo instinto da juventude, porque ela ainda está
saibam o que é a poesia, talvez haja mais cem daqui na posse do seu instinto natural que mais tarde há-de
a cem anos que tenham aprendido o que é a cultura ser quebrado pelo artifício e pela violência desta edu-
e que os alemães, apesar dos seus discursos e da sua cação. Mas quem, por sua vez, quiser pulverizar esta
bazófia, não tiveram cultura até agora. A satisfação educação deve ajudar a juventude a fazer-se ouvir, e
generalizada entre os alemães em relação à sua cultura deve precedê-la iluminando com uma claridade racio-
parecer-lhes-á tão grosseira e incrível como para nós nal a resistência meio-consciente que se exprime bem
o classicismo de Gottsched, ainda h á pouco tão unani- alto. Mas como atingir objectivo tão insólito?
memente aceite, o u o valor de Ramler igualado a Pín- Antes de mais, destruindo o preconceito da crença
daro. Vão talvez considerar que esta cultura não era na necessidade deste tratamento educativo. Espero que
mais do que uma espécie de saber relativo à cultura, não se pense que não há outra realidade possível para
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além da nossa lamentável realidade actual? Examine-se Platão julgou necessário que a primeira geração da
nesta linha a literatura escolar e pedagógica dos Últimos sua sociedade nova, no Estado ideal, fosse educada com
decénios e constatar-se-á com tristeza e estupefacção a ajuda de uma poderosa mentira de segurança; ensi-
que, apesar das flutuações dos programas e da violên- nava-se à s crianças que tinham vivido durante certo
cia das controvérsias, o projecto educativo continua tempo, como num sonho, debaixo da terra, e que lá
a ser o mesmo e que o resultado presente, o homem tinham si40 modeladas e formadas pelo autor da natu-
culto no sentido actual, é aceite sem reflexão como reza. 1mpÔssível revoltar-se contra este passado, impos-
fundamentd necessário de toda a educação futura. Esse sível opor-se à obra dos deuses. E r a necessário acre-
cânone monótono poderia formular-se assim: o jovem ditar nesta lei natural inquebrantável: quem nasce filó-
começa por ser informado a respeito da cultura, e sofo tem oiro nos membros, o militar tem prata e o ope-
não da vida; não poderá, em qualquer caso, começar rário ferro e bronze. Como não é possível, segundo Pla-
por viver e por fazer a s suas experiências. E esta tão, unir estes metais, assim também não será possível
informação relativa à cultura será insuflada e incor- modificar essencialmente a ordem das castas. A crença
porada no jovem sob a forma de conhecimento his- na aeterna ueritas desta ordem estabelecida era o funda-
tórico; quer dizer, encher-se-á a sua cabeça com uma mento da educação nova e do Estado novo. Também o
multidão prodigiosa de noções tiradas do conhecimento aiemão moderno crê na aeterna veritas do seu sistema
muito mediato d o s tempos e dos povos do passado, educativo, do seu género de cultura; e, contudo, esta
e não da intuição imediata da vida. A necessidade que crença poderá vir a desfazer-se como se desfez o Estado
ele sente de aprender por si mesmo, de fazer ele pró- platónico, se se opuser à mentira de necessidade uma
prio algumas experiências e de sentir formar-se nele verdade necessária: a Alemanha não tem cultura por-
um sistema coerente e vivo das suas experiências pes- que, dada a sua educação, não pode tê-la. Quer ter a flor,
soais, será abafada e como que intoxicada pela luxuosa mas sem raiz e caule, quere-a portanto em vão. 13 a ver-
perspectiva de poder, em poucos anos, acumular em dade pura, uma verdade desagradável e rude, mas
si a s experiências mais elevadas e mais memoráveis necessária.
dos tempos passados, justamente a s das épocas maio- E nesta verdade que é preciso educar a nossa
res. O mesmo método insensato leva os nossos jovens primeira geração; será ela quem mais terá a sofrer, por-
artistas à s colecções e à s galerias de arte em vez de os que terá de se educar por meio desta verdade, de se ele-
introduzir no atelier de um mestre e, sobretudo, no ate- var apesar dela, de se formar em novos hábitos, numa
lier Único da Única iniciadora, a natureza. Como se o nova natureza, a partir de um hábito antigo e primordial,
visitante apressado pudesse descobrir na história os de uma natureza antiga e primeira. De tal maneira que
processos e as técnicas das épocas passadas e o produto bem poderia dizer para consigo, em velha linguagem cas-
efectivo d a sua vida. Como se a vida não fosse um telhana: Defienda me Dios de my!-Que Deus me
ofício que é necessário aprender a fundo e exercer cons- defenda de mim, isto é, da natureza que me foi incul-
tantemente com rigor, para não produzir inábeis e fala- cada. Deverá saborear esta verdade gota a gota, como
dores! um remédio amargo e eficaz; é preciso que cada um dos
indivíduos desta geração triunfe de s i próprio e se passado o seu alimento tonificante. O mal é temível,
inflija um veredicto que seria mais suportável infligir mas se a juventude não tivesse uma clarividência inata
ao conjunto de u m a época. Não temos cultura, mais, ? sua
i natureza, ninguém saberia que se tratava de um
estamos perdidos para a vida, para um modo sim- mal e que se perdera um paraíso de saúde. Porém, com
ples e justo de ver e entender, de apreender com êxito o instinto salutar desta mesma natureza, a juventude
a verdade próxima e natural. Até agora não temos adivinha c,omopoderá ganhar de novo o paraíso, conhece
sequer a s bases de uma cultura, porque não esta- os sucos mágicos e os bálsamos que hão-de curar a
mos persuadidos de termos em nós uma vida autên- doença da história. Quais são os seus nomes? Não
tica. Desagregado e em ruína, dividido quase meca- se admirem que sejam nomes de venenos. Os contra-
nicamente num interior e num exterior, pulverizado venenos do hi-oricismo são o não-historicismo e o
de conceitos como de dentes de dragões que produ- super-hbtorickmo. Tais nomes fazem-nos voltar ao
ziriam mais conceitos, que são outros tantos dragões, começo das nossas reflexões e à sua atmosfera de
sofrendo d a doença das palavras e sem confiança nas serenidade.
minhas próprias sensações enquanto não tiverem o Designo com o nome de não-historicismo a arte e o
selo das palavras, eu próprio sou a fábrica de conceitos poder de esquecer e de encerrar-se num hwixonte limi-
e de palavras, um organismo sem vida mas com uma in- tado. Chamo super-históricas a s forças que afastam o
quietante actividade. Tenho talvez o direito de dizer olhar do devir e o orientam para aquilo que confere ao
Cogito ergo sum, m a s não Vivo ergo cogito. Foi-me con- devir um carácter de eternidade e de significação igual
cedido o «ser» vazio, e não a «vida» plena e verdejante; ao da arte e da relig2ão. A ciência-porque só ela fala-
o meu sentimento primitivo garante-me só que eu sou ria de venenos - vê nestas forças, nestes poderes, for-
um ser pensante, e não um ser vivo, que eu não sou um ças e poderes hostis, porque só considera verdadeiro e
animal, mas, quando muito, um cogital. Dêem-me pri- justo o estudo do real, isto é, o estudo científico que vê
meiro a vida, que eu dou-lhes uma cultura. É: o grito por todo o lado o devir, um estado histórico e nunca um
de todos os indivíduos desta primeira geração, que se existente, um eterno; vive num estado de hostilidade
reconhecem por este grito. Mas quem vai dar-lhes esta secreta contra os poderes irportalizantes da arte e da
vida ? religião, da mesma forma que odeia o esquecimento, a
Nem um deus nem um homem - a sua juventude. morte do saber, e que tenta suprimir os limites do hori-
Libertem-nos d a s suas cadeias e terão libertado zonte e lançar o homem num mar infinito e ilimitado
a vida, porque e l a estava escondida apenas, estava de ondas luminosas, o mar do devir tal como ela julga
presa, não estava nem seca nem morta: interroguem-se! conhecê-lo.
Mas esta vida libertada está doente, é preciso curá- Ainda se ele pudesse ai viver! Da mesma ma-
-la. Sofre de muitos males e não só da recordação das neira que a s cidades, com um tremor de terra, desa-
suas cadeias, sofre, e isso é o que mais nos interesa, da bam e voltam ao deserto, assim como o homem constrói
doença da história. O excesso da história atacou a a medo e furtivamente a sua casa em solo vulcânico,
faculdade plástica da vida, já não sabe ir buscar ao assim a vida desaba, enfraquece e desanima quando o
200
tremw de conceitos causado pela ciência priva o homem a essência do seu senão, não poder utilizar qualquer no-
do fundamento da s u a segurança e da sua tranquilidade, ção, qualquer palavra de ordem partidária tirada da
que é a confiança em algo de durável e eterno. moeda corrente das idsias do tempo presente, e de crer,
Será que a vida deve prevalecer sobre o conheci- nas suas melhores horas, numa força que actua nela,
mento e sobre a ciência, ou é o conhecimento que deve que é uma força de luta, de dissidência, de divisão, e
.
prevalecer sobre a vida? Qual destas duas forças é num sentjmento cada vez mais exaltado da vida.
superior? Ninguém hesitará, decerto: a vida é superior Poder-se-á contestar que esta juventude tenha cultura,
e dominante, porque um conhecimento que destruisse a mas para que juventude constituiria isso uma censura?
vida destruir-se-ia também automaticamente. O conheci- Pode-se considerá-la exagerada e rude, mas ainda não
mento supõe a vida, ele tem pela conservação da vida o é suficientemente velha nem prudente para saber mode-
mesmo interesse que qualquer ser tem pela sua exis- rar-se. Sobretudo, não tem necessidade de fingir que
tência. A ciência tem, pois, necessidade de ser vigiada possui e defende uma cultura acabada e goza de todas
e controlada de cima. Deveria haver lugar, ao lado da a s vantagens e de todos os privilégios da juventude,
ciência, para uma higiene da vida, e um principio dessa especialmente de uma probidade corajosa e sem cálculo
higiene seria que o não-historicismo e o super-histori- e da consolação exaltante da esperança.
cismo são os tópicos naturais contra a invasão da vida E u sei que estes expectantes compreendem e vêem
pela vegetação parasita da história, contra a doença de perto todas estas generalidades e que hão-de trans-
da história. E possível que, nós próprios atacados pela formá-las pela sua própria experiência num pensamento
doença da história, venhamos a sofrer com os seus con- pessoal; os outros poderão considerá-los, por enquanto,
travenenos. Mas isto não é um argumento contra a apenas como vasos fechados e vazios; até que, sur-
terapêutica escolhida. , preendidos, vejam com os seus próprios olhos que os
É esta a missão da juventude, desta geração de lu- vasos estão cheios e que essas generalidades continham
tadores e de domadores de serpentes que anunciam uma e concentravam nelas ataques, exigências, instintos
cultura e uma humanidade mais felizes e mais belas, vitais e paixões que não podiam estar escondido,^ por
sem ter desta felicidade futura e desta beleza superior mais tempo. Repudiando aqueles que duvidam de que o
mais do que um pressentimento cheio de promessas. Esta tempo obscureça, quero -voltar-me agora para esta
juventude vai sofrer simultaneamente do mal e do
remédio, e todavia crê poder orgulhar-se de uma saúde 1 sociedade dos expectantes e contar-lhes, sob a forma de
parábola, a sua marcha e a sua cura e como escapa-
mais robusta e de uma natureza mais natural que as ram à doença da história; vou, pois, contar-lhes a sua
gerações precedentes, adultos e velhos cultos do tempo própria história até ao momento em que, tendo conquis-
prksente. Mas a s u a missão é agitar a ideia que o tempo 1 tado a saúde, poderão estudar de novo a história e
presente tem de «saúde» e de «cultura» e suscitar rX tornar Útil o passado subordinando-o à vida, no triplo
a crítica e o ódio contra estas noções híbridas e mons- pcnto de vista de que falámos: monumental, tradiciona-
truosas; e o sinal que garante esta saúde mais robusta lista e crítico. Serão então .mais ignorantes que as
será justamente o £acto de esta juventude, para exprimir pessoas cultas de agora, porque terão esquecido muito e
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terão mesmo perdido o desejo de lançar os olhos sobre a esta máxima uma interpretação prática, tiveram
tudo aquilo que os cultos querem saber; as suas marcas a felicidade insigne de enriquecer e alargar o tesouro
distintivas, aos olhos das pessoas cultas, serão a sua herdado dos seus antepassados, transformaram-se no
«incultura», a sua indiferença e a sua hostilidade para modelo e nas primícias de todos os povos civilizados
com muitos acontecimentos importantes e realmente do futuro.
válidos. Mas, no termo da sua cura, ter-se-ão tornado Esta parábola aplica-se a cada um de nós. Que ele
de novo homens e terão deixado de ser uma massa de organize o seu caos interior, reflectindo nas suas verda-
aparência humana; já é bastante! Que grandes esperan- deiras necessidades. A sua probidade, a sua natu-
ças! Não se r i o vosso coração, oh expectantes? reza &ria e sincera hão-de revoltar-se contra o
E como havemos de alcançar este objectivo? Logo hábito inveterado de repetir, aprender e imitar; com-
nos vossos primeiros passos, o deus délfico lembrar- preenderá que a cultura deve ser mais do que o
-vos-á o seu preceito: conhece-te a ti mesmo. E um pre- mamento da vida, ou seja, uma maneira de a disfarçar,
ceito difícil, porque este deus «não esconde nada, não porque qualquer ornamento esconde aquilo que enfeita.
anuncia nada, mas contenta-se com sugerir», como disse Assim, revelar-se-lhe-á a ideia grega de cultura, contrá-
Heraclito. Que vos sugere ele? ria à concepção romana, a ideia de uma cultura que é
!Houve séculos em que os Gregos estiveram num uma physk nova e enriquecida, sem distinção entre o
perigo análogo àquele em que nós nos encontramos, o interior e o exterior, sem dissimulação e sem convenção,
perigo de serem submergidos pelo estrangeiro e pelo cultura concebida como a união da vida e do pensa-
passado e de morrer por causa da «história». Nunca mento, da aparência e do querer. Aprenderá, por expe-
viveram numa segurança orgulhosa e inacessível: pelo riência própria, que foi a força superior da sua natu-
contrário, a sua cultura foi durante muito tempo um reza moral que deu aos Gregos o triunfo sobre todas a s
caos de formas e d e concepções estrangeiras: semíticas, civilizações, e que todo o progreso em simerida& deve
babilónicas, Iídias, egípcias, e a sua religião serviu de preparar e favorecer a cultura autêntica, mesmo que a
receptáculo a todas a s divindades do Oriente, um sinceridade prejudique por vezes, gravemente, a classe
pouco à maneira da religião e «cultura» dos alemães, culta que goza actualmente do respeito geral, mesmo
que são um caos constantemente agitado por todos os que provoque a ruína de uma cultura que não passa de
países e 9odo o passado. E, contudo, graças à máxima ornamento.
a,polínea, a cultura helénica não se transformou num
conglomerado. Os Gregos foram aprendendo a organizar
o caos, entrando em si próprios, de acordo com a doutri-
na délfica, isto é, reflectindo nas suas verdad,'w a s neces-
sidades e deixando morrer a s suas necessidades factícias.
Foi assim que tomaram nas mãos o seu destino e dei-
xaram de ser os herdeiros e os epígonos instruídos do
Oriente. Depois d e uma penosa luta interior, dando