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FRIEDRICO NIETZSCHE

COLEOÇÃO SÍNTEaSE

O MEIO DIVINO, por Teilhard de Chardin


O EXISTENCIALISMO E UM HUMANISMO, por Jean-
-PawZ Sartre e Vergilio Ferreira
INTEMPESTIVAS
A ORIGEM DA FAMTLIA, DA PROPRIEDADE PRIVADA
E DO ESTADO, por Fri#edrichEngek
DO AMOR, por Stendhd
O LUGAR D O HOMEM NO UNIVERSO, por Tdlhard de Tradução ds
Chardin
ASSIM FALAVA ZARATUSTRA, por F. Nietxsche
O CONCEITO DE ANGOSTIA, por Soren Kierkegaard
A SOCIEDADE PRIMITIVA I, por LewZs H. Morgan LEMOS DE AZEVEDO
NAPOLEAO I , por E. Tarlé
NAPOLEAO 11, par E. Turlé
OS DOZE CESARES, por Suetónio
HUMANO DEMASIADO HUMANO, por F. Nietxsck
O PENSAMENTO EUROPEU NO SSCULO XVIII - I , por
Paul Hazard
-
O PENSAMENTO EUROPEU NO SSCULO XVIII 11, por
Paul Hazard
A SOOIEDADE PRIMITIVA 11, por L e w k H. Morgan
A IDEOLOGIA ALEMA I, por Karl Murx e F. Engals
A SAGRADA FAMfLIA, por Karl Marx e F. Emgels
DIALECT?[CA DA NATUREZA, por F. Engels
KARL MARX I , por Franx Mehring
KARL MARX 11, por Franx Mehring
A IDEOLOGIA ALEMA 11, par KarZ Marx e F. Engels
A SITUAÇÃO DA CLASSE TRABALHADORA EM IN-
GLATERRA, por F. Engels EDITORIAL PRESENÇA * LIVRARIA MARTINS FONTES
ICONSIDERAÇÕES INTEMPESTIVAS, por F. Nidxsche PORTUGAL BRASIL '
Strauss, domador da linguagem, a evidência pudera
ver; agora somos testemunhas desse facto na sua
lanterna. mágica e celebramos a efeméride. Foi tam-
bém ele quem n o s ensinou que «o nosso sentimento
do todo reage religiosamente quando é ofendido»
e não o esqueceremos. Já conhecemos o encanto
que resulta de perceber, pelo menos até aos joe-
lhos, personalidades sublimes. Estamos, por isso,
felizes por ter conhecido o «prosador clássico», mesmo
nesta perspectiva limitada. Francamente, o que vimos
foram pés de barro e o que nos parecia uma s ã cor de
carne não passava de um borrão. A cultura filisteia ale-
mã vai certamente indignar-se pelo facto de falarmos DA UTILIDADE E DOS INCONVENIENTES
de ídolos pintados a propósito daquilo que ela reconhece DA HISTÓRIA PARA A VIDA
como um Deus vivo. Mas quem ousar desapear as suas
estátuas não teme, apesar da sua indignação, dizer-lhe
na cara que ela esqueceu a distinção entre o vivo e o Prefácio
morto, entre o autêntico e o falso, entre o original e o
imitado, Deus e ídolo, que ela perdeu o instinto viril
e são do real e do justo. Merece desaparecer e já «De resto, abomino tudo aquilo que me instrui sem
se reduzem as insígnias do seu poder, já o seu manto aumentar e estimular imediatamente a minha activi-
de púrpura se desprende; e, quando a púrpura cai, com dade.» E com esta afirmação de Goethe, acompanhada
ela cai o duque. l5 por um vigoroso ceterum censeo, que queremos iniciar
Esta é a minha confissão. E a confissão de um iso- estas considerações sobre o valor ou não valor da histó-
lado, e que pode um isolado contra o mundo inteiro, ria. Contamos, efectivamente, expor nestas páginas por
mesmo que se ouvisse a sua voz? A sua apreciação, que razão devemos abominar, segundo a palavra de
direi eu ornamentando-me mais uma vez com uma i Goethe, o ensino que não vivifica, o saber que amolece
autêntica e preciosa pena de avestruz, «seria subjectiva- a actividade, a história encarada como precioso supér-
mente mais verdadeira quanto menor fosse o seu valor fluo e luxo do conhecimento - falta-nos o necessá-
objectivo de persuasão». Não é verdade, bons amigos? rio, e o supérfluo é inimigo do necessário. Decerto
Coragem. Confiemos, pelo menos provisoriamente, no que temos necessidade da história, mas temos necessi-
seu «mais.. . quanto menor». Provisoriamente, enquanto I dade dela de uma maneira diferente da do ocioso requin-
passar por intempestivo o que é de todos os tempos e tado nos jardins do saber, mesmo que ele olhe altiva-
n a i s actual hoje que nunca, aquilo de que todos temos mente para a s nossas rudes e antipáticas necessidades..
necessidade: dizer a verdade. Quero dizer que temos necessidade dela para a vida e
para a acção, não para nos afastarmos preguiçosamente sofremos de uma febre histórica decoradora e que,
da vida e da acção, nem, muito menos, para embelezar pelo menos, deveríamos reconhecer que padecemos dessa
esta vida'egoísta e a nossa actividade branda e inútil. doença. Mas se Goethe teve razão ao dizer que nós
Serviremos a história só na medida em que ela serve a cultivamos simultaneamente vícios e virtudes e se,
vida, mas o abuso da história e a sua sobrevalorização como se sabe, uma virtude hipertrofiada, como acontece
provocam a degenerescência e o enfezamento da vida, modernameslte com o sentido da história, pode provocar
fenómeno de que é necessário e doloroso termos cons- a ruína de uma nação, bem assim como um vício hiper-
ciência, através dos evidentes sintomas que se mani- trofiado, que me deixem falar, ao menos uma vez! Não
festam na nossa época. vou negar, para me desculpar, que foi de mim princi-
Tentei descrever um sentimento que muitas vezes palmente, e dos outros só a título de comparação, que
me atormentou: vingo-me dele apresentando-o ao retirei a s experiências que deram origem a este senti-
público. Pode acontecer que algum leitor se sinta levado mento que me tortura-mesmo que seja apenas na
por esta descrição a dizer-me que também experimenta medida em que sou discípulo da antiguidade, e sobre-
tal sentimento, m a s que eu não o senti com bastante tudo da antiguidade grega, que eu venha a experimen-
pureza e espontaneidade e, sobretudo, que não soube t a r sentimentos tão pouco actuais, apesar de me sentir
exprimi-lo com a conveniente segurança e com a matu-' filho do tempo presente. Mas é uma liberdade que me
ridade que s ó , a experiência oferece. Um ou outro concedo a mim próprio, enquanto filólogo clássico,
pensará isso, mas a maior parte dir-me-á que é um porque não vejo para que poderia servir a filologia
sentimento absurdo, contra a natureza, abominável, clássica no nosso tempo, senão para lançar uma acção
numa palavra, ilícito, e que me mostrei indigno do intempestiva contra esta época, sobre esta época e,
poderoso movimento histórico deste nosso tempo, que assim o espero, em beneficio do tempo que há-de vir.
o mundo tem podido observar, nomeadamente na Alema-
nha, há já duas gerações. Seja como for, como me
arrisco a descrever o meu sentimento como um fenó-
meno natural, a moralidade pública terá mais a ganhar
do que a perder, porque proporciono a muita gente a
oportunidade de elogiar esse movimento contemporâneo
a que me refiro. Quanto a mim, espero conseguir uma
coisa que me é ainda mais cara que o decoro, ou seja,
a ocasião de me ver publicamente informado e refutado
na opinião que tenho a respeito da nossa época.
Se esta consideração é intempestiva, é porque eu
considero como um mal, como uma deficiência, como
uma carência, u m a coisa que o tempo presente glorifica,
a sua cultura histórica; é porque creio que todos nós
Observe-se um rebanho que pasta; ignora o que
foi ontem e o que é hoje. Volteia, retouça, repousa,
rumina, agita-se de manhã à noite, dia após dia, ligado
ao seu prazer e à sua dor, ao impulso do instante, sem
melancolia nem saciedade. É duro para o homem ver
isso, porque se orgulha da sua humanidade quando se
compara com o animal, cuja felicidade entretanto inveja.
Efectivamente, ele deseja viver como o animal, sem
saciedade nem dor, mas, ao querê-lo, não quer como o
animal. «Porque é que não me falas da tua felicidade?
Porque é que te limitas a olhar-me?». O animal gostaria
de responder: «Ê que eu esqueço exactamente aquilo
que queria dizer». Até mesmo esta resposta é afogada
no esquecimento, e cala-se. É a vez de o homem se
admirar.
Mas o homem também se admira de si próprio,
de não poder aprender a esquecer e de ficar permanen-
temente amarrado ao passado. Por mais longe que vá,
por mais depressa que corra, as suas algemas seguem-
-no. Ê um facto extraordinário: o instante aparece
como um relâmpago e depois desaparece também
como um relâmpago. Nada antes, nada depois, e, con-
tudo, ele vem perturbar como um fantasma a paz
de um instante ulterior. Sem parar, uma folha após outra
se desprende do cilindro do tempo, cai, volteia por ins- é que mantém em vida o ser vivo e o estimula a viver,
tantes e depois volta a cair sobre os joelhos do homem. nenhum filósofo tem mais razão do que o cínico, porque
Então, o homem diz «Lembro-me», e tem inveja do ani- a felicidade do animal, esse perfeito cínico, é a prova
mal que esquece imediatamente e que vê realmente o ins- viva da verdade do cinismo. A mais pequena felicidade,
tante morrer, quando cai na bruma e na noite e se extin- se está sempre presente e nos faz felizes, vale mais,
gue para sempre. O animal vive de uma vida não histó- sem comparação possível, do que a maior felicidade
rica, porque se absorve completamente no momento pre- que se limita a um episódio, que é como quem diz, um
sente, como um número primo que não deixa qualquer re- capricho, uma feliz inspiração perdida no meio de
síduo atrás de si; não sabe dissimular, não esconde nada um conjunto de dores, de desejos e de privações. Mas
e mostra-se tal qual é a cada instante, só pode ser since- na mais pequena como na maior felicidade, h á sempre
ro. Pelo contrário, o homem defende-se do peso pro- qualquer coisa que faz com que a felicidade seja uma
gressivamente mais pesado do passado, que o esmaga ou felicidade: a possibilidade de esquecer, ou, para dizer
o desvia, que torna pesada a sua caminhada como um em termos mais científicos, a faculdade de nos sentir-
invisível fardo de trevas, que ele pode negar por vezes, e mos momentaneamente fora da história. O homem que
que nega com gosto no contacto com os seus seme- é incapaz de se sentar no limiar do instante esquecendo
lhantes, para despertar a sua inveja. Por isso é que todos os acontecimentos passados, aquele que não pode,
se emociona ao v e r o rebanho a pastar como se se sem vertigem e sem medo, pôr-se de pé um instante,
tratasse d a reminiscência de um paraíso perdido ou, como uma vitória, jamais saberá o que é uma felicidade
numa proximidade ainda mais familiar, a criança que e, o que é pior, nunca fará nada para dar felicidade
não tem qualquer passado a recusar e que brinca, na aos outros. Imaginai o exemplo extremo: um homem
sua feliz cegueira, entre as barreiras do passado e do que fosse incapaz de esquecer e que fosse condenado
futuro. E, contudo, a sua brincadeira um dia será a ver permanentemente um devir; deixaria de acre-
perturbada, será arrancada à sua inconsciência. Apren- ditar no seu próprio ser, deixaria de acreditar em
derá a compreender estas palavras, <Antigamente.. .», si, veria dissolver-se tudo numa infinidade de pon-
fórmula que a t r a i sobre o homem a luta, a dor tos móveis e acabaria por perder-se na torrente do
e a saciedade e que lhe recorda que a sua existência '' devir. Finalmente, como verdadeiro discípulo de Hera-
não é senão um imperfeito, que nunca se há-de com- clito, não ousaria sequer mexer um dedo. Todo o
pletar. Quando, p o r fim, a morte traz o esquecimento acto exige o esquecimento, da mesma forma que a
desejado, rouba-nos simultaneamente o presente e a vida dos seres orgânicos exige não só a luz como
existência e põe o selo definitivo sobre esta verdade, também a obscuridade. Um homem que tudo quisesse
que ser não passa de um ter &do inintermpto, uma ver historicamente seria semelhante àquele que fosse
coisa que vive d e se negar e de se consumir, de se obrigado a prescindir do sono ou ao animal cuja vida
contradizer a si própria. fosse ruminar e ruminar sem fim. Portanto, é possível
Se é verdade que uma felicidade, um gesto para viver quase sem recordar e viver feliz, como o demons-
uma nova felicidade, qualquer que seja o sentido, t r a o animal, mas é impossível viver sem esquecer. Ou,
mais simplesmente, há u m grau de insónia, de rumina- for capaz de delimitar o círculo do seu horizonte e, por
ção, de sentido histórico que prejudica o ser vivo e outro lado, o seu egoísmo o impedir de subordinar o seu
que acaba por destrui-lo, quer se trate de u m homem, olhar ao horizonte de outrem, morrerá por moleza ou
de uma nação ou d e uma civQixaçáo. por pressa excessiva. A serenidade, a boa consciência,
Para definir o grau e fixar o limite em que é abso- a alegria na acção, a confiança no futuro, tudo isso
lutamente necessário esquecer o passado, sob pena de se depende, no indivíduo como na nação, da existência
tornar o coveiro d o presente, seria necessário conhecer de uma linha de demarcação entre o que é claro e pode
a medida exacta d a fwça plástica de um homem, de uma abarcar-se com o olhar e o que é obscuro e confuso.
nação, de uma civilização, quer dizer, a faculdade de Trata-se de saber esquecer a tempo, como de saber
crescer por si mesmo, de transformar e de assimilar recordar a tempo; é imprescindível que um instinto
o passado e o heterogéneo, de cicatrizar a s suas feridas, vigoroso nos advirta sobre quando é necessário ver a s
de reparar as s u a s perdas, de reconstruir a s formas coisas historicamente. e quando é necessário não a s
destruídas. Há homens que têm tão pouca força plástica, ver historicamente. É este o princípio sobre que o
que podem morrer de um único incidente, de uma Única leitor deve reflectir: o sentido histórico e a sua negação
dor, por vezes de u m a leve injustiça, como se se tratasse são igualmente necessários à: saúde de um individuo,
da abertura de u m a veia por onde perdessem todo o de uma nação e de uma civilixação.
sangue. Pelo contrário, h á outros a quem a s catástrofes Cada qual pode fornecer uma observação de apoio
mais brutais e m a i s terrificas e até os seus próprios ao que acabámos de afirmar. Pode acontecer que um
crimes afectam t ã o pouco que conseguem, no próprio homem tenha urna ciência histórica e um sentido da
momento ou pouco depois, reencontrar uma saúde sufi- história muito reduzidos, que o seu horizonte seja tão
'ciente e uma situação de b m consciência. Quanto mais limitado como o de um habitante de um vale alpino,
o temperamento do homem está fortemente enraizado pode ser injusto em todos os seus juízos e cometer em
nele, tanto melhor saberá apropriar-se de largas porções cada uma das suas experiências o erro de se crer o
de passado, ou dominá-las. E se se quisesse imaginar o primeiro a tê-las; e, apesar de todas as suas injustiças
temperamento mais forte e mais prodigioso, encontrá- e de todos os seus erros, apresentar-se cheio de saúde
-lo-íamos naqueIe que tivesse abolido o limite para além e com uma robustez a toda a prova, que dá prazer ver,
do qual o sentido histórico se torna opressivo e pre- quando, muito perto de si, o homem mais justo e mais
judicial. Absorveria e transformaria em sangue pró- sábio adoece e definha porque a s linhas do seu hori-
prio todo o passado, o seu e o dos outros. O que um zonte continuam a deslocar-se, porque não consegue
tal temperamento não fosse capaz de assimilar, esque- desembaraçar-se da teia bem mais delicada da sua
cê-lo-ia. O passado já não existe, o horizonte está justiça e das suas verdades, e chegar a querer e a dese-
fechado e completo e nada evoca que, para além, jar com energia. Pelo contrário, vimos o animal que
existam homens, paixões, doutrinas, fins. E e lei não tem qualquer sentido histórico e cujo horizonte se
geral que o ser vivo não pode tornar-se são, forte reduz quase a um ponto, viver numa certa felicidade,
e fecundo senão dentro de um certo horizonte; se não ignorando, em todo o caso, a saciedade e a mentira.
Devemos, pois, considerar muito importante a facul- todavia, se sinta excessivamente fraca e cansada
dade de sentir directarilente a s coisas, para além de para ser capaz de o ultrapassar, de um salto.
qualquer sentido histórico, pelo menos na medida em E o, estado de espírito menos razoável do mundo,
que esta falta de sentido histórico constitui o único limitado, injusto para com o passado, cego a todos os
fundamento sobre o qual é possível edificar algo de perigos, surdo a todas a s advertências, é um pequeno
justo, de são, de grande e de humano. A ausência de turbilhão qe vida no coração de um mar de trevas e de
sentido histórico é comparável a uma nebulosa dentro esquecimento ; e, contudo, este estado - não histó-
da qual a vida se produz a si própria, para desaparecer rico, anti-histórico, numa primeira visão - é a matriz
quando essa nuvem protectora for destruida. É verdade não só de um acto injusto isolado, mas de todos os actos
que s ó quando o homem, à força de reflectir, de com- justos, e nenhum artista será capaz de realizar a sua
parar, de dividir, de relacionar, consegue delimitar obra, nenhum general conseguirá a vitória, nenhum
o âmbito da não-história, é que nasce dentro da nebulosa povo conquistará a liberdade, sem os terem desejado e
um foco claro e brilhante. Ê, pois, pela faculdade que procurado fora de qualquer pensamento histórico. Se
ele tem de fazer servir o passado à vida e de refazer o homem de acção, na opinião 'de Goethe, nunca é um
a história com o passado, que o homem se torna homem; homem consciencioso, também não é consciente. Esquece
mas um excesso de história destrói o homem e ele não a maior parte das coisas para realizar uma só, é
teria começado, nem sequer ousado começar a pensar, injusto para com o que está atrás de si e só reconhece
sem esta nebulosa que envolve a vida, antes da história. um direito, o daquele que vai ser. E assim que o homem
Que acções poderia o homem realizar sem previamente de acção ama infinitamente mais o seu acto do que este
ter penetrado nessa esfera vaporosa da não-história? omerece, e os maiores empreendimentos produzem-se em
Ou, abandonando a s imagens e servindo-me de um exem- tal excesso de amor que são necessariamente indignos
plo para ilustrar o meu pensamento, imagine-se um deste amor, mesmo quando, por outro lado, têm um
homem impressionado, arrastado por uma paixão vio- valor incalculável.
lenta, por uma mulher ou por um ideal grandioso: Se um homem fosse capaz, em muitos casos, de
todo o seu mundo se transforma. Se olha para trás, detectar e, depois, de respirar a atmosfera não-histórica
sente-se cego; se afina os ouvidos, só ouve ruídos sem na qual nascem todos os grandes acontecimentos his-
significado; o que ele vê nunca lhe pareceu t ã o verda- tóricos, talvez pudesse, porque se trata de um ser pen-
deiro, tão próximo, tão colorido, tão luminoso, como se sante, elevar-se a um ponto de vista supra-histórico,
o abarcasse simultaneamente com todos os sentidos. tal como um dia Niebuhr o descreveu, como o resultado
Todos os seus juízos de valor mudaram e se desvalori- possível de cogitações históricas: <<Ahistória, clara-
zaram; há tantas coisas que ele já não pode avaliar, mente e minuciosamente observada, pode, pelo menos,
porque é a custo que ele a s sente. Interroga-se sobre dar-nos a conhecer que a s maiores e mais excelsas
se não terá sido enganado por palavras estranhas, por personalidades do nosso género humano não sabem
opiniões estranhas; admira-se de que a sua memória por que acaso a sua vista assumiu a configuração
gire dentro do mesmo círculo sem se cansar e, particular que orienta a sua visão, aquela que eles gos-
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tariam de impor a todos os outros; impor, é o termo, saber histórico, os seus pensamentos e os seus actos são
porque a sua consciência é de uma intensidade excepcio- pouco históricos, e 'até que ponto o seu estudo da histó-
nal. A falta de saber isto e de tê-lo verificado em muitos ria é comandado pela vida e não por uma necessidade de
casos, fica-se escravo da aparição de um grande espí- conhecimento purg.
rito que traga a maior paixão numa forma determi- Mas o problema a que quisemos dar uma primeira
nada.» Poder-se-ia qualificar este ponto de vista de resposta pode reservar-nos uma outra. E que será nova-
supra-histórico, porque quem nele se colocasse não mente um 'não, mas um não com outra justificação.
sentiria qualquer desejo de continuar a viver e de cola- Será o não do homem supra-histórico, que não vê sal-
borar na história, por ter visto a cegueira e a injustiça vação na evolução, mas para quem o mundo já está
do homem de acção; isso curá-lo-ia da tentação de levar completado e atinge a cada instante o seu objectivo. Que
demasiado a sério a história, por ter aprendido a pôr poderiam ensinar-nos a mais os dez anos do futuro, de
sempre a mesma questão a propósito de todos os que os dez anos passados não tenham conseguido ensi-
homens, de todos os factos, quer seja entre os Gregos nar-nos?
ou os Turcos, numa qualquer época do século I ou do 10sentido desta doutrina é a felicidade ou a resigna-
século XIX: porquê e como vivemos? Perguntem a ção, ou a virtude, ou a penitência? Sobre este ponto
quem conhecerem se gostariam de reviver os últimos os homens supra-históricos nunca conseguiram pôr-se
dez ou vinte anos e saberão quais são os que estão de acordo. Mas ao contrário de todos os outros modos de
predestinados a adoptar este ponto de vista supra-histó- considerar historicamente o passado, conseguem a una-
rico. Decerto q u e dirão todos unanimemente que não, ~ i m i d a d eneste ponto: o passado e o presente são uma
mas este não t e r á motivos bem diversos. Alguns vão Única e mesma coisa e, apesar de toda a sua diversi-
dizer: mas os próximos vinte anos são certamente dade, conservam a unidade profunda de um mesmo
melhores. Deles disse David Hume, com bastante tipo e realizam a omnipresença de tipos indestrutíveis,
ironia : apresentando uma estrutura estável de valor invariável
And from t h e dregs of life hope t o receive, e de significação sempre idêntica. Da mesma forma que
What the f i r s t sprightly running could not give. a s centenas de línguas diversas correspondem a necessi-
dades tipicamente estáveis dos homens, de tal modo
A esses chamamos nós espíritos históricos; o espectá- que, se se compreendessem essas necessidades não se
culo do passado impele-os para o futuro, dá-lhes cora- aprenderia nada de novo através do conhecimento
gem para viver, acende neles a esperança de que das diversas línguas, assim o pensador supra-histórico
a justiça há-de vir, que a felicidade os espera do outro ilumina de dentro toda a história dos povos e dos indiví-
lado da montanha que vão subir. Estes homens histó- duos, adivinha por uma premonição o sentido original
ricos pensam que o sentido da existência se revela cada desses diferentes hieróglifos e vai progressivamente evi-
vez melhor no decurso da evolução, só olham para trás tando o afluxo transbordante de textos escritos; pois,
para melhor compreender o presente em função da como seria possível que não se sentisse cheio, desilu-
evolução anterior. Não sabem que, apesar de todo o seu dido, desanimado, perante a infinita superabundância
de factos? De tal maneira que os mais ousados estão na ocasião do nascimento de uma civilização, portanto,
preparados para dizer, como Giacomo Leopardi: «Não se for dominada e dirigida por uma força superior,
h& nada que seja digno de t e impressionar, a terra não em vez de querer dominar e dirigir por si própria.
merece um suspiro, a nossa.vida é dor e aborrecimento, Na medida em que está ao serviço da vida, a his-
o mundo é lama e nada mais. Acalma-te!» tória está ao serviço de uma força não histórica; em ra-
Mas deixemos para os homens supra-históricos o zão desta subordinação, não poderá nem deverá jamais
seu pezar e a sua sabedoria. Por hoje, gozemos a nossa ser ciência pura, como a s matemáticas, por exemplo.
loucura e concedamo-nos um pouco de tempo, como se Mas saber &é que ponto a vida tem necessidade dos
fossemos pessoas activas e sempre em progresso, adora- serviços da ciência é um dos problemas e das preo-
dores da evolução. O respeito que temos pelos factos cupações mais graves que interessam à saúde de um
históricos não passa, talvez, de um preconceito ociden- homem, de uma nação e de uma civilização. Porque se há
tal; que importa, contanto que à sombra de tal precon- excesso de história, a vida desagrega-se e desintegra-se,
ceito nos seja possível avançar sem nunca nos determos. mas em virtude desta degenerescência também a histó-
Oxalá aprendamos a estudar cada vez melhor a história ria se desagrega.
em função da vida. Nesse caso, será fácil conceder que
os espíritos supra-históricos são mais sábios do que nós,
conservando nós a certeza de que temos mais vida do que
eles. E sendo assim, a nossa ignorância terá mais futuro
do que a sabedoria deles. E para que não haja dúvidas
quanto ao sentido da oposição entre vida e sabedoria,
vou trazer à liça um processo já muito experimentado:
vou apresentar, s e m mais, algumas teses.
Um fenómeno histórico pura e completamente
conhecido e reduzido a um facto epistemológico, morreu
para quem o conheceu, porque nele descobriu a ilusão,
a injustiça, a paixão cega e, de uma maneira geral, toda
a sombria aura terrestre do fenómeno, ao mesmo
tempo que a sua importância histórica. E esta impor-
tância torna-se impotente para o sábio, mas não talvez
para o que está vivo.
A história encarada como essência pura e domi-
nadora arrastaria a humanidade para o seu fim e para
o juizo final. A verdade é que a cultura histórica só é
salutar e rica d e promessas de futuro se se inscrever
numa corrente de vida nova e poderosa, por exemplo,
Que a vida tem necessidade de ser servida pela
história é um facto de que é necessário ter consciência,
bem como do princípio que havemos de defender mais
tarde, de que um excesso de história é prejudicial ao
ser vivo. A história é própria do ser vivo por três
razões: porque é activo e ambicioso, porque tem prazer
em conservar e venerar, e porque sofre e tem necessi-
dade de libertação. A esta tripla relação corresponde a.
tripla forma da história, n a medida em que é possível
distingui-las : história mmumental, história tradicio-
nalista, história critica.
A história interessa, antes de mais, ao homem
activo e poderoso, a quem entra num grande combate,
a quem tem necessidade de modelos, de iniciadores, de
consoladores que não consegue encontrar à sua volta,
nem na época presente; é neste sentido que Schiller se
interessa por ela. Porque a nossa época é tão miserável,
dizia Goethe, que o poeta não consegue encontrar entre
os que o rodeiam os caracteres que poderia vir a uti-
lizar na sua obra. Pensando no homem de acção, Políbio
diz, por exemplo, que a história política é a verdadeira
preparação para o governo de um Estado e uma mestra
excelente, porque nos recorda a s desgraças de outrem
e nos exorta a suportar a s vicissitudes da fortuna.
Depois de s e ter reconhecido que é esse o sentido da his- atmosfera de grandeza protesta. 32 preciso que nada de
tória, não é possível ver sem pena os viajantes curiosos monumental possa nascer, eis o lema que nos opõem.
e os micrologistas minuciosos a enxamear a s Pirâmi- Os hábitos obtusos, a mesquinhez e a baixeza, que
des das grandes épocas passadas. O homem que pro- enchem os mais longínquos recantos deste mundo e
cura estímulo p a r a imitar ou superar os seus modelos envolvem de uma espessa e densa atmosfera terrestre
não gosta de encontrar o ocioso em busca de distracção tudo o que é grande, interpõem-se como um nevoeiro
e de sensações q u e se passeia como através dos tesouros importuno e mentiroso, que deforma a s linhas e corta
acumulados de u m museu. a respiração, no caminho que a grandeza deve trilhar
Para não perder a coragem e não sucumbir ao tédio, para alcançar a eternidade. Ora este caminho passa
entre ociosos débeis e incorrigíveis ou entre companhei- por cérebros humanos, cérebros de animais angustiados
ros só aparentemente activos, porque na realidade a sua pela brevidade da vida, que nascem sempre para as
- acção não passa d e agitação, o homem de acção lança mesmas misérias e conseguem, com dificuldade e por
um olhar para trás e interrompe, por momentos, o seu pouco tempo, evitar a morte. Só querem uma coisa:
caminho, quanto mais não seja para tomar novo fôlego. viver, a todo o preço. Quem imaginaria que seriam capa-
Mas o seu termo é sempre uma felicidade, não necessa- zes desta difícil corrida olímpica que é o conteúdo da
riamente a sua, m a s a de uma nação ou a da humani- história monumental, e que só ela permite que a gran-
dade no s e u conjunto. A resignação repugna-lhe e ser- deza sobreviva? E, contudo, h á sempre quem desperte,
ve-se da história como um antídoto contra a resignação. quem se sinta fortalecidó e feliz ao contemplar a gran-
A maior parte d a s vezes, só pode contar com a recom- deza passada, como se a vida humana fosse uma coisa
pensa da glória, isto é, com o direito de ocupar um magnífica e como se o fruto mais belo desta planta
lugar de honra no templo da história, onde poderá servir amarga fosse saber que uma vez, no passado, um
de mestre, de consolador ou de advertência para a pos- homem cheio de força e de orgulho atravessou a vida,
teridade. Porque a lei que ele reconhece, é que tudo aqui- que um outro veio absorvido no seu pensamento,
lo que nunca contribuiu para alargar e embelezar a no- que um terceiro se voltou para a piedade e para o
ção de «homem» deve permanecer eternamente presente, desejo de servir, deixando todos, atrás de si, esta lição:
a fim de manter eternamente presente esta possibilidade. quem tem a vida mais bela é aquele que não se
Crer que os grandes momentos da luta entre os indi- agarra à vida. Ao passo que o homem vulgar encara
víduos formam uma cadeia que prolonga através dos este breve tempo com tanta seriedade e avidez, esses,
milénios a trave-mestra da história, crer que para mim que se encontram no caminho da imortalidade e
um desses momentos altos já passados continua vivo da história monumental, conseguiram extrair de si
e luminoso, é o fundamento da crença na humanidade, próprios um riso olímpico, ou, pelo menos, uma ironia
tal como ela se exprime através da exigência de uma superior. Frequentemente, desciam ao túmulo com
história mofiumental. Mas a crença de que tudo o que é ironia. Que restava deles para descer à terra? Nada
grande deve ser eterno suscita, justamente, a mais terrí- mais do que aquilo que sempre lhes pesou, essa escória,
vel das lutas, porque tudo aquilo que vive fora desta esses excrementos, essa vaidade que é a sua animalidade.
Tudo isso caía então no esquecimento, depois de ter sido os pitagóricos tivessem razão, ao crer que sempre que
longamente objecto do seu desprezo. Mas uma coissa se apresenta uma mesma conjugação dos astros se
vivia: o monograma da sua personalidade, uma obra, devem repetir sobre a terra os mesmos acontecimentos,
iam acto, uma inspiração rara, uma criação. Vivia por- até ao mais insignificante dos pormenores, de tal
que a humanidade vindoura não poderia passar sem maneira que quando os astros atingem uma determi-
ela. A glória, sob esta forma transfigurada, é uma coisa nada posi~ãoum estóico deve fazer aliança com um
completamente diferente do delicioso alimento do nosso epicurista, César deve ser assassinado e Colombo deve
egoísmo, como disse Schopenhauer. É a crença na coesão descobrir a América. Só se a terra, no fim do 5." acto,
e na continuidade da grandeza através de todos os tem- retomasse desde o começo o seu drama, e estivesse
pos, é um protesto contra a fuga das gerações e contra proyado que o mesmo encadeamento de causas, o
a precaridade de tudo o que existe. mesmo deus ex machina, a mesma catástrofe voltassem
Em que é que a contemplação do passado monu- com intervalos regulares, é que o homem poderia desejar
mental, o estudo do que os tempos antigos tiveram de que a história monumental se repetisse com uma fide-
clássico e de r a r o podem servir ao homem de hoje? Ele lidade iconográfica, isto é, até ao mais pequeno porme-
conclui que se a grandeza passada foi pmsivel ao menos nor, cada facto com a sua particularidade e a sua
uma vez, sê-10-á sem d6vida possivel no futuro. Caminha unicidade bem definidas. Mas isso não acontecerá,
com mais coragem, porque conseguiu libertar-se da a não ser que os astrónomos se transformem em astró-
I
dúvida que o assalta nos momentos de fraqueza e logos. Até lá, a história monumental não saberá o que
lhe sugere que ele quer o impossível. Se bastasse há-de fazer desta identidade total, continuará a unir
uma centena d e homens de cérebro fecundo e educa- aquilo que se repele, a generalizá-10 e a considerá-lo
dos num espírito novo para estrangular a falsa idêntico. Teimará em atenuar a diversidade dos motivos
cultura, que desde há pouco se impôs como moda na e das circunstâncias a fim de apresentar como monu-
Alemanha, que consolação seria pensar que a cultura mentais, isto é, como exemplares e dignos de imitação
do Renascimento se construiu sobre os ombros de uma os efeitos, em prejuízo das causas, de tal modo que,
centena destes, homens! como ela prescinde o mais possivel das causas, se pode-
E todavia -para tirar imediatamente do mesmo ria dizer que ela se tornou uma colecção- de «efeitos
exemplo um outro ensinamento- como seria fluida, I
1 em si», isto é, de factos que têm sempre efeito. O que
flutuante e inexacta esta comparação! Que diferenças se celebra nas festas populares, nos aniversários reli-
é preciso preterir para que a comparação tenha esse efei- giosos ou militares, é um desses efeitos em si,; é isso
tc) de consolação! Que violência não é necessário fazer à que perturba o sono dos ambiciosos, que repousa como
realidade individual do passado para o introduzir força- I um amuleto no coração dos aventureiros, mas não é o
damente numa forma geral, depois de lhe ter afeiçoado Y verdadeiro nexo das causas e dos efeitos, o qual, ple-
a s arestas e arredondado os contornos, a fim de conse- namente conhecido, provaria à evidência que não é
guir essa assimilação! No fundo, tudo o que foi possível possível sair do jogo de dados do futuro uma conjuntura
uma vez não pode voltar a ser possível, a menos que absolutamente semelhante.
Enquanto a história tal como é escrita tiver por inimigos hereditários, contra as personalidades artís-
centro os grandes Zmpubos que o homem poderoso dela ticas fortes, portanto contra aqueles que podem tirar
tira, enquanto se apresentar o passado como digno de deste tipo de história ensinamentos autênticos, orien-
imitação, como imitável, enquanto se acreditar que pode tá-la para a vida e transformar numa prática superior
repetir-se, a história estará em perigo de sofrer um o que aprenderam. Barra-se-lhes o caminho, enche-se-
ligeiro desvio, de s e r embelezada e aproximada da livre -lhes o céu de nuvens, rodeando de danças idólatras o
criação poética. Há mesmo épocas que são incapazes de monumento meio-compreendido de algum grande passa-
distinguir entre um passado monumental e uma ficção do, como que dizendo-lhes: «Aqui está a arte verdadeira
mítica, porque encontram em ambos idêntico estímulo. e autêntica. Que nos importam os artistas em evolução
Se a contemplação d e um passado monumental predomi- cheios de veleidades. Parece que esses enxames de dan-
rta sobre as outras concepções, ou seja, sobre a tendên- çarinos têm o privilégio do «bom gosto», porque o cria-
cia tradicionalista e a tendência crítica, o passado res- dor está sempre em posição de inferioridade relativa-
sente-se disso; grandes sectores desse passado ficam mente ao simples espectador, que não meteu a mão na
esquecidos e desprezados, escoando-se numa onda massa. Desde sempre o político de café foi mais avisado,
cinzenta e uniforme, donde emergem ilhotas de factos mais justo e mais reflectido do que o homem de Estado
isolados e embelezados; a s raras personalidades que aí em exercício. E se se quiser transportar para o campo da
é possível descortinar têm algo de artificial e de mila- arte o uso do referendo e do voto maioritário e forçar
groso, como a costela de oiro que os discípulos de o artista a vir ao forum defender-se contra os estetas
Pitágoras pretendiam distinguir no seu mestre. A his- preguiçosos, podemos estar certos, de antemão, de que
tória monumental engana-nos por meio de um jogo de virá a ser condenado, não apesaT de, mas porque os seus
analogias, através de semelhanças enganadoras arrasta juizes proclamaram solenemente o cânone da arte monu-
o homem corajoso para a temeridade e o entusiasta mental (isto é, da arte cujo efeito é perene, na sua pró-
para o fanatismo. E u m a tal história, entregue à s mãos e pria definição). Para apreciarem a arte que ainda não é
às cabeças dos egoístas inteligentes e dos malfeitores monumental, porque actual, falta-lhes, antes de mais,
exaltados, leva à ruína dos impérios, à s guerras e revo- a necessidade de uma arte, depois a pureza do gosto
luções, e aumenta o número dos «efeitos em si» na his- e. finalmente, a autoridade que a história dá. Pelo con-
tória, isto é, dos efeitos sem causa suficiente. Tudo isto trário, o instinto revela-lhes que a arte pode matar a
para lembrar os males que a história monumental arte. Por nada no mundo deverá-nascer uma nova arte
pode provocar em homens fortes e activos, para bem monumental, e é exactamente para isso que serve a auto-
ou para mal. Mas que coisas não provoca ela nos impo- ridade que a arte monumental vai buscar ao passado.
tentes e indolentes, quando dela se apoderam! Apresentam-se como peritos de arte porque gostariam
Tomemos o exemplo mais simples e mais acessível. de suprimir a própria arte; apresentam-se como médi-
Imaginemos pessoas não artistas ou pouco artistas, cos, mas não passam de envenenadores. Educam a lin-
couraçadas pela história monumental dos artistas. Con- guagem e o gosto para explicarem com subtilezas porque
t r a quem vão assestar a s suas armas? Contra os seus recusam obstinadamente tudo o que se lhes oferece de
"
arte substancial, porque não querem deixar nascer a sua
grandeza. A sua táctica é esta: «Olhem, a grandeza *
está à vista!» Na realidade, a grandeza que já está à
vista importa-lhes tão pouco como aquela que vai
nascer. A vida deles dá testemunho de que a história
monumental é o travesti que dissimula o seu ódio dos
grandes e dos poderosos do tempo presente, fazendo-se
passar- pela admiração satisfeita dos grandes e dos pode-
rosos do tempo passado.-Com esta máscara invertem o
sentido desta concepção da história. Quer tenham cons-
ciência disso quer não, comportam-se como se a sua
divisa fosse: «Deixai os mortos sepultar os vivos». A história é também a riqueza do homem que quer
Cada uma das t r ê s variedades de história tem um conservar e venerar o passado, daquele que lança um
campo próprio e um clima próprio; fora, prolifera numa olhar fiel e amoroso para as origens, para o mundo
vegetação parasita e devastadora. Quando o homem em que cresceu; com este acto de piedade, procura de
que quer criar grandes coisas precisa do passado, usa algum modo pagar a divida para com o passado. Alimen-
a história monumental. Ao contrário, quem quer perpe- t a r com mão piedosa, em proveito daqueles que hão-de
tuar o que é habitual e venerado de h á muito, encara o vir depois, o que sempre foi, a s condições em que nasceu,
passado como antiquário e não como historiador. Aquele é o seu modo de servir a vida. A posse do brk-à-brac dos
que é apanhado pela necessidade presente e que se quer antigos muda de sentido numa alma deste tipo, porque
ver livre do seu peso, precisará de uma história ela é por sua vez possuída. Tudo o que é pequeno,
critica, isto é, que julga e que condena. A transplanta- limitado, adquire importância, porque a alma conser-
ção imprudente destas diversas espécies é fonte de mui- vadora e piedosa do historiador tradicionalista trans-
t a s desgraças. O crítico sem necessidade, o antiquário porta-se para esses objectos e neles faz um doce ninho.
sem piedade, o perito sem poder criador são plantas A história da sua cidade transforma-se na sua própria
que degeneraram, p o r terem sido arrancadas a o seu história; a muralha, a porta levadiça, o regulamento
terreno. municipal, a festa popular são como que o memorial ilus-
trado da sua juventude; neles se encontra com o seu
vigor, o seu ardor para o trabalho, o seu prazer, a sua
sabedoria, a sua loucura e os seus excessos. Vivia-se
bem aqui, diz ele para consigo, e uma vez que ainda se
vive bem, há-de viver-se bem mais tarde; somos tenazes
e não nos dobrarão numa noite. Com este «nós» ultra-
passa a vida individual, efémera e fantástica, e identifi-
ca-se com o génio familiar da sua casa, da sua família e
d a sua cidade. E, p o r vezes, para lá dos espaços tene- gência, mas trata-se da incompreensão mais salutar e
brosos e confusos dos séculos, saúda a alma do mais proveitosa à comunidade. Ê o que cada um sabe,
seu povo, em quem reconhece a sua própria alma. por pouco que tenha tomado consciência das consequên-
Os seus dons e virtudes são estes: penetrar pelo cias temíveis que pode trazer este gosto da emigração
sentimento n a espessura do tempo e dele extrair aventureira, que por vezes toma populações inteiras, ou
um pressentimento do futuro, reencontrar vestígios se observa de perto o estado de uma nação que perdeu a
quase apagados, u m modo instintivo de decifrar o piedade para'com o passado e que o seu gosto cosmopo-
passado, por mais ilegível que pareça o manuscrito, a in- lita condena a uma mudança permanente e a uma pro-
teligência rápida dos palimpsestos e até dos polipsestos. cura incessante do novo, e sempre do novo. O sentimento
I3 esse o sentimento que inspira Goethe diante do monu- de profundo bem-estar que a árvore sente subir das
mento de Erwin von Steinbach, quando, na sua emoção raizes, o prazer de saber que não se é um ser puramente
tumultuosa, vê rasgar-se o véu de nuvens históricas que arbitrário e fortuito, mas que se vem de um passado
se desdobravam entre ele e a catedral; descobre então, d? que se é herdeiro, flor e fruto, e que por este motivo
pela primeira vez, esta obra alemã «que age pela vir- se está justificado do que se é, a isto podemos nós cha-
tude rude e forte d a sua alma alemã». Um sentido aná- mar hoje o verdadeiro sentido histórico.
logo, uma atracção igual agiram sobre os italianos do Sem dúvida, não é o estado mais favorável para
Renascimento e despertaram nos seus poetas o génio transformar o passado num puro saber. Voltamos a
itálico, «como um maravilhoso eco da lira antiga», encontrar aqui tudo o que já notámos a propósito da
como diz JacobBurckhardt. Mas esta religião do passado história monumental: o passado sofre, se a história
e da tradição atinge o auge do seu valor quando espa- ao serviço da vida se deixa governar pelos instintos
lha sobre a realidade rústica, modesta e mesmo mise- vitais. Se me permitem esta imagem, a árvore, apesar
rável em que vive um homem ou uma nação, um senti- de não ver a s suas raizes, sente-as, e instintivamente
mento simples e tocante de prazer e de satisfação. Ê avalia o comprimento e a força delas pelo comprimento
assim, por exemplo, que Niebuhr confessa com ingenui- e pela força dos ramos que está a ver. Se a árvore
dade que é feliz por viver nos pântanos e na charneca, se engana a este respeito, como não haveria de enga-
entre camponeses livres que têm uma tradição histórica, nar-se a respeito da floresta que a rodeia, da qual não
e que até a ausência da arte lhe não interessa. Como sabe nem sente nada senão na medida em que ela a opri-
é que a história serviria melhor a vida, senão vincu- me ou favorece? O tradicionalismo de um homem, de
lando fortemente à terra natal e aos costumes locais uma colectividade municipal, de uma nação inteira teve
populações menos favorecidas do que outras, fixando-as sempre um horizonte muito restrito; não vêem o con-
e desviando-as de irem para o estrangeiro à procura junto e o pouco que vêem, é excessivamente fragmen-
do melhor, que teriam de disputar aos outros? O que tado. Eles não podem avaliar nada, dão a tudo a
parece amarrar o indivíduo aos seus companheiros e ao mesma importância, e demasiada aos pequenos porme-
seu meio, ao hábito de uma vida penosa, àquele monte nores. Deixou de haver entre a s coisas do passado
escalvado, parece por vezes teimosia e falta de inteli- diferença de valor ou de proporções que permi-
tissem apreciá-las na sua relação recíproca, medi- Mesrno sem cair tão baixo, quando a história tradi-
das e proporções são todas referenciadas ao indi- cionalista não perdeu o terreno onde pode ainda enrai-
víduo ou à nação, cujo olhar se volta para o zar-se, se quer salvar a vida, está sujeita a muitos
passado num espírito de respeito pela tradição. Imedia- perigos quando se torna excessivamente poderosa e
tamente aparece u m perigo: admite-se como tendo direi- tende a invadir com a sua vegetação parasita a s outras
t o a igual respeito tudo o que é antigo e velho, ao ciências do ?assado. Sabe conservar a vida, não sabe
passo que o que n ã o respeita essas velharias, tudo o que fazê-la nascer; é esse o motivo por que deprecia sempre
é novo e está em crescimento, é repudiado e atacado. Os a vida em transformação, porque não tem o instinto
Gregos toleravam n a s artes plásticas o estilo hierático ao do devir, ao passo que a história monumental possui
lado de um estilo livre e grandioso; mais tarde, não ape- esse instinto. P assim que ela se opõe à resolução enér-
nas toleravam os narizes ponteagudos e os sorrisos gla- gica de optar pelo que é novo, que paralisa o homem de
ciais, mas até se orgulhavam disso. Quando o espírito de acção, que, enquanto tal, lesa e deve lesar certos
uma nação endurece a este ponto, quando a história passados. Pelo facto de uma coisa ter envelhecido pode-
se põe ao serviço d a vida passada a ponto de minar o -se exigir, actualmente, que seja imortal. Porque se se
que pretende sobreviver e, nomeadamente, a vida supe- calcular tudo o que uma antiguidade desta espécie -
rior, quando o sentido histórico, longe de alimentar costume ancestral, fé religiosa, privilégio político here-
ditário -recebeu de manifestações de respeito por
a vida, a mumifica, a árvore envelhece de modo anor-
parte dos indivíduos e das gerações no decurso da sua
mal, a partir do cimo na direcção das raízes e, a maior
existência, há-de parecer presunçoso e até vergonhoso
parte das vezes, a própria raiz acaba também por
substituir uma semelhante antiguidade por uma moder-
morrer. A história tradicionalista degenera logo que a
nidade qualquer e opor a este amontoado de piedade
vida presente deixa de a animar e vivificar, a piedade e de veneração a s unidades isoladas, em devir, ou' exis-
endurece, fica o pedantismo rotineiro, que roda egoísta t7ntes no presente.
e complacentemente à volta do seu próprio centro. E Vê-se claramente até que ponto o homem, ao lado
deparamos por vezes com o espectáculo repugnante de do modo monumental ou tradicionalista de considerar
uma fúria cega de coleccionador, empenhada em desen- o passado, tem frequentemente necessidade de um ter-
terrar tudo o que existiu no passado. c e i ~ omodo, o modo critico, e isso no interesse da vida.
Este gosto maníaco das coisas antigas envolve o Precisa de ter força e de usá-la por vezes, de quebrar
homem num cheiro a bafio. Os seus hábitos de anti- P dissolver um fragmento do passado, para poder viver.
quário transformam um talento, à s vezes notável, Consegue-o fazendo comparecer esse passado perante
uma aspiração nobre, numa curiosidade insaciável ou o seu tribunal, submetendo-o a um inquérito rigoroso
numa autêntica avidez de tudo o que é antigo, literal- e, no fim, condenando-o. Todo o passado merece conde-
mente de tudo. Frequentemente, decai até ao ponto de se nação porque, como acontece com todas a s coisas huma-
satisfazer com qualquer alimento e de se regalar com nas, nele se misturaram a força e a fraqueza do homem.
o pó das minúcias bibliográficas. Não é a justiça a julgar aqui, nem o perdão a pronunciar
o veredicto; é a vida que decide e só ela, a força obscura, mente àquele donde se vem, tentativa sempre perigosa
propulsiva, insaciavelmente ávida de si própria. O seu porque é difícil fixar um limite a esta recusa do passado
veredicto é sempre impiedoso, sempre injusto, porque e porque a s segundas naturezas são geralmente mais
nunca provém da fonte pura do conhecimento. Mas, na débeis do que a s primeiras. Contentamo-nos, frequente-
maior parte dos casos, não seria diferente se a justiça mente, com conhecer o bem sem o praticar, porque se
em pessoa o pronunciasse. «Porque tudo o que nasce conhece o que é melhor sem se poder fazê-lo. Por vezes,
merece perecer. E r a preferível então que nada nas- saímos vitoriosos e, mesmo para os combatentes, para
cesse.» É preciso muita força para poder viver e esque- aqueles que põem a história crítica a o serviço da vida,
cer até que ponto viver e ser injusto são o mesmo. h á uma grande consolação, a de saber que esta segunda
Lutero disse que o mundo nasceu de uma inadvertência natureza já foi uma primeira natureza e que toda a
de Deus, porque se Deus tivesse pensado na «artilharia segunda natureza vitoriosa é, por esse facto, uma pri-
pesada» não teria criado o mundo. Mas, por vezes, esta meira natureza.
mesma vida que exige o esquecimento tem necessidade
de prescindir momentaneamente dele. É então necessário
ver claramente até que ponto tal coisa, tal privilégio,
tal casta, tal dinastia são injustas e merecem perecer.
A crítica vira-se p a r a o antigo, mete-se a enxada à raiz,
abstrai-se cruelmente de qualquer espécie de respeito.
É sempre uma iniciativa perigosa, perigosa sobretudo
para a vida; e os homens ou a s épocas que servem a
vida deste modo, julgando e destruindo o passado, são
sempre homens e épocas perigosos e em perigo. Porque
uma vez que somos o fruto das gerações passadas,
somos também fruto dos seus desvios, das suas paixões,
dos seus erros e até dos seus crimes. Podemos condenar
esses erros e crer-nos isentos 'deles, mas isso não impede
a nossa origem neles. E, na melhor das hipóteses, chega-
remos a um conflito entre a nossa natureza herdada e
hereditária e o nosso conhecimento, a uma luta entre
uma nova e estrita disciplina e o que é inato em nós ou
nos foi inculcado pela educação; implantaremos em
nós um novo hábito, um novo instinto, uma segunda
natureza, que farão morrer a nossa primeira natureza.
É uma tentativa d e conseguir de algum modo, a poste-
riori, o passado que se gostaria de ter tido, contraria-
São estes os serviços que a história pode prestar
à vida. Qualquer homem e qualquer nação, segundo os
seus fins, as suas forças e a s suas necessidades, tem
necessidade de um certo conhecimento do passado sob a
forma de uma história, que pode ser monumental, tradi-
cionalista ou crítica. Mas não têm necessidade dela à
maneira de uma multidão de pensadores puros que enca-
ram a vida de fora, nem como indivíduos ávidos de saber
e só de saber. Todas as suas necessidades se orientam
para a vida e estão submetidas ao domínio e à alta
direcção da vida. fl
Que seja essa a relação natural que uma época,
uma civilização, uma nação, possam manter com a histó-
ria -uma relação provocada pela fome, regularizada
pela necessidade, dominada pela força plástica inerente
a estas colectividades -, que o conhecimento do passado
seja querido apenas enquanto está ao serviço do futuro
e do presente, não para enfraquecer o presente nem
para desenraizar de antemão um futuro que seria viável
-são verdades simples e evidentes, mesmo se não é
possível fornecer a sua demonstração imediata através
da história.
E agora, lancemos um olhar sobre a nossa época.
Recuaremos de medo e de espanto. E m que é que se
transformaram a clareza, a naturalidade e a pureza ção a esta economia desordenada, tormentosa e belicosa,
da relação entre a vida e a história? Como este pro- transforma-se p o u c ~a pouco numa segunda natureza,
blema se torna flutuante, confuso, disforme e inquietan- embora esteja fora de questão que esta segunda natu-
te aos nossos olhos! Será nossa a falta ou deverá reza é muito mais fraca, mais inquieta e mais radical-
atribuir-se à deformação da constelação da vida e da mente malsã do que a primeira. O homem moderno
história, por influência de um astro poderoso e hostil arrasta finalmente atrás dele a massa enorme e indi-
que tivesse vindo interpor-se entre elas? Outros hão-de gesta das pedras a construir do saber, a s quais, par
dizer que a nossa perspectiva é errada, mas nós vamos vezes, «trovejam no seu ventre», como se diz no conto.
apresentar a s coisas tal como as vimos. É verdade que Este borborinho é a prova d a qualidade mais singular
um astro brilhante e esplendoroso apareceu, que a cons- do homem moderno, o estranho contraste entre o seu
telação realmente s e modificou sob a acção da c2nciaJ intimo, a que nada de exterior corresponde, e o seu ser
pwqwe hoje exige-se que a história seja urna ciência. exterior, a que nada de interior corresponde - contradi-
J á não é a vida que reina e que refreia o nosso conheci- ção que não existiu nos povos antigos. O saber recebido
em massa, sem fome, até contra-vontade, deixa de agirt
mento do passado; todas a s barreiras cairam e tudo o
que já alguma vez existiu desmorona-se sobre o homem. como um factor de transformação exterior, de forma-
Por mais a t r á s q u e o devir tenha começado, por mais ção, continua escondido no mundo interior caótico que
ilimitado que seja este passado, todas a s perspectivas o homem moderno designa com um estranho orgulho
mudaram. Nenhuma geração viu diante dos seus olhos como a sua «intimidade» própria. Dizem que possuem
o espectáculo sem f i m que presentemente a história nos o conteúdo mas que não têm a forma; é uma contradição
oferece, história q u e se transformou na ciência do devir completamente insólita nos seres vivos. Se falta vida
universal. 13 verdade que, se ela oferece este espectáculo, à nossa cultura moderna, é porque é impossível imagi-
isso é conforme à perigosa ousadia da sua divisa: Fiat ná-la sem esta contradição, ou seja, não é uma cultura
veritas, pereat vita! autêntica, mas umá espécie de conhecimento do que é
Imaginemos agora a s consequências que isso pro- uma cultura. Contentam-se com a ideia de cultura,
voca na alma do homem moderno. O saber histórico, com o sentimento da cultura, e daí não resulta a escolha
deliberada de uma cultura. Ao contrário, o que está
que jorra de fontes inesgotáveis, não cessa de correr,
verdadeiramente dotado de força motora, o que se
os acontecimentos somam-se aos acontecimentos e pene- traduz em actos exteriormente visíveis, não significa
tram na história, acumulam-se factos estranhos e incoe- absolutamente mais nada do que uma convenção fria,
rentes, a memória abre todas a s suas portas sem chegar uma imitação lastimável, uma caricatura grosseira. Sem
a abrir-se o bastante, a natureza tenta acolher estes dúvida que o sentimento permanece no interior, como
hóspedes estranhos que ela quer colocar em ordem e no caso da serpente que comeu coelhos vivos e que
honrar, mas eles estão em conflito uns com os outros e foi depois deitar-se tranquilamente ao sòl, evitando
parece necessário dominá-los e domesticá-los, se não se qualquer movimento, além do indispensável. Ora este
quer morrer em consequência destes conflitos. A adapta- processo interior é a cultura autêntica. O voto de
todos aqueles que passam é que esta cultura não raçar. Resulta daí o hábito de não levar a sério as
morra de indigestão. Imagine-se que era um grego coisas reais, aí nasce a «fraqueza da personalidade»,
quem passava e encontrava este tipo de cultura. Veri- na sequência do que o real e o durável fazem pouca
ficaria que para o homem moderno cultura e cul- impressão. É-se cada vez mais negligente e indi-
tura histórica são inseparáveis, fazem uma só coisa ferente ao exterior, alarga-se a perigosa ruptura entre
e distinguem-se apenas pelo número de palavras que o conteúdo e a forma, até à insensibilização à barbárie,
servem para as designar. Se ele afirmasse então contanto que a memória seja permanentemente exci-
que é possível ser culto sem ter cultura histórica, tada por um afluxo constante de coisas novas, dignas de
a reacção seria u m menear de cabeça, não se acredi- serem conhecidas, e que as possa colocar em boa ordem
taria. Esse famoso pequeno povo, de uma antiguidade nas suas estantes. A cultura nacional, que é o contrário
bastante recente- refiro-me aos Gregos - conservava desta barbárie, foi uma vez definida, e com razão, como
tenazmente, no período do auge da sua força, o seu espí- a-unidade do estilo estético em todas as manifestações
rito não-histórico. Se um homem de hoje pudesse, por da vida de uma nação. Não se equivoquem com esta
virtude de qualquer sortilégio, regressar a essa época, definição e não creiam que se trata de opor a barbárie
exporia à irrisão pública o segredo ciosamente dissimu- ao estilo perfeito. A nação à qual se pode atribuir uma
lado da cultura moderna. É que nós não possuimos nada cultura deve ser uma unidade viva, bem real e não
de próprio; tornamo-nos algo de considerável, quero se pode dividir lamentavelmente num «dentro» e num
dizer, enciclopédias ambulantes, quando nos enchemos «fora», numa forma e num conteúdo. Quem se propuser
das épocas, dos costumes, das artes, das filosofias, das trabalhar pela cultura de uma nação deve procurar
religiões e dos conhecimentos dos outros, como diria destruir esta falsa cultura moderna em favor de uma
talvez esse velho Heleno se por acaso tivesse sido trans- cultura autêntica; é preciso ter a ousadia de reflectir
portado à nossa época. Mas o valor das enciclopédias nos meios de restaurar a saúde de uma nação contami-
está apenas no seu conteúdo e não no invólucro, na nada pela história, de lhe restituir os seus instintos e,
encadernação de coiro; é desta forma que a cultura simultaneamente, a sua probidade. -
moderna é essencialmente interior; no exterior, o enca- Só me interessa falar dos alemães da tempo pre-
dernador inscreve qualquer coisa como «Manual da sente, que sofremos, mais que outras nações, desta
cultura interior para os homens exteriormente bárba- fraqueza da personalidade e da contradição entre a
ros». E este contraste entre o interior e o exterior torna forma e o conteúdo. Entre nós, a forma passa habitual-
o exterior mais bárbaro do que deveria ser, se não se tra- mente por uma convenção, uma simulação e
tasse de um povo grosseiro, chamado a desenvolver-se de uma máscara; por esse facto, se não se chega
dentro, de acordo com as suas rudes necessidades. a odiá-la, pelo menos não se ama. Seria mais justo
djzer que nós temos um medo extraordinário da pala-
Porque, que método tem a natureza para dominar
vra convenção e também da coisa. Foi este medo que
uma grande abundância? O Único meio é digeri-la arrastou os alemães a abandonar a escola dos fran-
rapidamente, para rapidamente dela se desemba- ceses, porque eles queriam ser mais naturais e, por
conseguinte, mais alemães. Mas parece que calcularam -se delicadamente acolhedora, séria, forte, fervorosa, ,
mal esta «consequência»: tendo fugido à escola da boa e talvez mais rica do que a interioridade das
convenção, deixaram-se arrastar pela imaginação e imi- nações. Mas, no conjunto, é débil, porque a s suas
taram sem vigor, caprichosamente e numa semi-cons- belas fibras nunca se reuniram num feixe sólido,
ciência, o que até então tinham imitado laboriosamente de tal maneira que o acto que se vê não é o
e com uma certa felicidade. Comparando este tempo acto total nem a manifestação espontânea desta
com outras épocas do passado, vivemos hoje de um se- vida interior, mas uma tentativa grosseira e fraca
gundo convencionalismo francês incorrecto e desregra- de uma fibra isolada se fazer passar pelo todo.
do, revelado pelo nossQmodo de andar, de estar, de nos E por isso que não se pode julgar o alemão por uma
divertirmos, de nos vestirmos e de habitar. Pensandoque acção isolada, porque, mesmo depois de ter agido, a sua
regressavam B natureza deixaram-se possuir pelo não- individualidade continua escondida. É preciso, como se
-te-rales, pela negligência e por um mínimo de apresen- sabe, julgá-lo de acordo com os seus sentimentos e
tação. Tome-se, como exemplo, uma cidade alemã. O seu pensamentos, tal como os exprime nos seus livros. Mas,
convencionalismo, comparado com a originalidade das presentemente e por infelicidade, estes livros levam
cidades estrangeiras, tem aspectos negativos; tudo é a duvidar de que essa famosa interioridade esteja en-
deslavado, chato, m a l copiado, negligenciado. Cada qual quistada no fundo do seu pequeno santuário inacessível.
atém-se ao que pensa, mas nunca 6 uma escolha É terrível pensar que se tivesse de desaparecer algum
reflectida e enérgica, orienta-se pela pressa generali- dia não ficaria dela, como sinal distintivo da Alemanha,
zada e pela facilidade. Um fato cujo desenho não foi senão o exterior, essa exterioridade orgulhosa e gros-
nenhum quebra-cabeças, e de execução rápida, um mode- seira, humilde e inútil. Seria quase tão terrível como se
lo copiado d o estrangeiro da maneira mais negligente, essa interioridade continuasse a morar no seu templo
passa entre os alemães por contribuição para a moda sem se saber, mas falsificada, maquilhada e disfarçada
nacional alemã. Recusam ironicamente o sentido da de comediante, senão pior. É pelo menos isso o que
forma. Não temos nós o sentido d o comtetido? Não somos Grillparzer,' esse observador que sabia manter-se em
nós a famosa nação da interioridade? silêncio, à parte, parece concluir da sua experiência
Ora, esta interioridade tem um perigo bem conhe- dramática e teatral: «O nosso modo de sentir é total-
cido: o conteúdo, que por princípio não é visível do mente abstracto, diz ele; nem sei como ainda sabemos
exterior, corre o perigo de volatilizar-se, e não será como o sentimento se exprime entre os nossos contem-
possível vê-lo de fora, como não é possível dar conta da porâneos. Fazemos-lhe dar saltos como já não se usa
sua presença. Bem fazemos os possíveis por admitir que nos nossos dias. Shakespeare estragou-nos a todos nós,
o povo alemão está muito longe de um perigo destes, os os modernos.»
estrangeiros poderão sempre, com alguma razão, censu- Trata-se de um caso isolado, talvez dv generali-
rar-nos por a nossa vida interior ser excessivamente zação excessivamente apressada. Como seria terrível a
débil e mal orientada para se manifestar exteriormente generalização legítima, se os casos isolados se impu-
e assumir uma forma. Por outro lado, pode apresentar- sessem em grande número ao observador; como seria
lamentável uma f r a s e como esta: nós, alemães, senti- Troca o sentido profundo do seu destino pelo prazer
mos abstractamente, estamos todos corrompidos pela divino de criar e de ajudar e acaba solitário, cons-
história - esta frase destruiria pela base qualquer espe- ciente e saturado da sua sabedoria. Espectáculo dolo-
rança de uma cultura nacional ainda para nascer. Porque roso! Quem o contemplar reconhecerá o apelo de
toda a esperança desta espécie nasce da fé na auten- um dever sagrado, dirá que é absolutamente necessário
ticidade e n a imediaticidade do sentimento alemão, na agir, que é jmperioso restaurar a unidade superior da
sua interioridade intacta. Que se pode esperar ou crer natureza e da alma da nação, que é preciso desfazer
quando a fonte d a fé e da esperança foi conspurcada, à martelada a ruptura entre o interior e o exterior. De
quando o ser interior aprendeu a saltitar, a dançar, a que meios poderá servir-se? Mais uma vez, só lhe resta
simular, a exprimir-se através de abstracções e de cál- o seu profundo conhecimento. Exprimindo-o, difundin-
culos e se foi perdendo pouco a pouco? E como é que do-o, espalhando-o à s mãos cheias, espera criar uma
um génio grande e fecundo aguentaria continuar a necessidade e que desta necessidade venha a nascer,
viver num povo que já não está certo da sua interio- um dia, uma acção forte. E para não deixar subsistir
ridade colectiva e que se divide em pessoas cultas, a sombra de uma d6vida a respeito da fonte onde vou
cujo ser interior se deformou e se perdeu, e gente buscar o exemplo desta necessidade, deste infortúnio,
inculta, cuja interioridade não é possível encontrar? deste conhecimento, quero apresentar aqui expressa-
Como seria capaz d e suportar ter-se perdido a unidade mente o meu testemunho: desejamos a unidade alemã
do sentimento nacional se ele soubesse, além disso, que no seu sentido mais elevado, queremo-la com mais
esse sentimento foi falsificado e mascarado justamente ardor do que a unidade política; procuramos a unidade
na fracção d a população que se diz culta e que pre- do espirito alemão, da vida alemã, uma vez destruida
tende t e r direitos sobre os grandes artistas da nação? a antionomia entre a fmma e o confieúdo, entre a inte-
O facto de o juízo e o gosto de alguns indivíduos se ter rioridade e a convenção.
afinado e sublimado, não importa. O génio aflige-se
por não poder dirigir-se senão a uma seita e por não
se sentir necessário dentro da nação. E dispõe-se a
enterrar o seu tesoiro com tanto mais vontade quanto
é certo que o desgosta sentir-se protegido por
uma seita insignificante e pretensiosa, quando o seu
coração está cheio d e piedade para com todos. O ins-
tinto nacional deixou de vir ao seu encontro, é inútil
estender-lhe o s braços. Que lhe resta fazer senão dirigir
o seu ódio ardente contra o interdito, contra a s barreiras
que se ergueram dentro da pretensa cultura d a nação?
Pelo menos, condenará como juiz: o que para ele é
vivo e fecundo, é tido por aniquilação e degradação.
O excesso de história, qualquer que seja a .época,
parece-me hostil e perigoso à vida por cinco razões:
o excesso produz um contraste entre o interior e o
exterior, a que já me referi, e que enfraquece a perso- .
rialidade; o excesso de ciência histórica leva uma época
a imaginar que possui em mais alto grau do que qual-
quer outra a mais rara das virtudes, a justiça; por
causa deste excesso, perturbam-se os instintos nacionais
e o indivíduo e a comunidade não conseguem alcançar
a maturidade; é este excesso o responsável pela implan-
tação sempre perniciosa da crença no envelhecimento -
da humanidade, da ideia de que já viemos tarde, de que
somos epígonos; por causa de tal excesso, uma época
adopta a atitude perigosa da ironia a respeito de si
mesma, depois uma atitude de cinismo, mais perigosa \

ainda, e dentro do cinismo faz amadurecer gradual-


mente uma prática de egoísmo prudente, que paralisa e
acaba por destruir a s energias vitais.
Voltemos agora à nossa primeira proposição: o
homem moderno sofre do enfraquecimento da sua perso-
nalidade. Assim como o romano da época imperial
deixava de se sentir romano ao considerar toda a terra
sujeita ao seu domínio, da mesma forma que ele se
perdia na realidade estrangeira que invadia o império
e no carnaval cosmopolita dos deuses, dos costumes inteligência vacila e o seu caminho passa por desertos.
e das artes, também o homem moderno procura constan- O indivíduo torna-se então timorato e hesitante e perde
temente que os seus artistas, os historiadores, lhe a confiança em si; dobra-se sobre si próprio, sobre a sua
ofereçam u m festival da exposição universal; tornou-se «interioridade», isto é, neste caso, sobre um amontoado
espectador ávido de gozo e itinerante, em tal estado de coisas aprendidas que não têm qualquer acção sobre
que nem grandes guerras nem grandes revoluções pode- o exterior e sobre um saber que não se transforma em
rão modificá-lo um só instante que seja. Ainda a guerra vida. Visto de fora, apercebemo-nos de que a extirpação
não terminou e já se transformou cem mil vezes em pa- dos instintos pela história transforma os homens em ou-
pel impresso, já foi ofertada ao palácio insensível dos ama- tras tantas sombras e abstracções. Ninguém mais ousa
dores de história como a mais moderna das especiarias. ser ele próprio, todos trazem máscaras, disfarçam-se de
Parece ser quase impossível produzir um som cheio e for- homens cultos, de poetas, de políticos. Quando se ataca
te, mesmo dedilhando fortemente a s cordas; o som morre uma máscara destas, crendo que ela se leva a sério
logo, no instante seguinte esvai-se, feito história, apo- e não se trata de um simples fantoche - todas dão -
drece, sem força. E m termos de moral, já não conseguis mostras de grande seriedade -fica-se nas mãos com
pensar o sublime, o s vossos actos são explosões súbitas, trapos e ouropéis de cores variegadas. É preciso não dei-
não um ribombar prolongado de trovão. Os efeitos mais xar que abusem de nós, é urgente dizer-lhes: «Tirai
extraordinários descem aos Infernos sem acompanha- esses fatos sujos ou sede realmente aquilo que pensais
mento de coros nem de música. Porque a arte foge que sois». Não se pode tolerar que os homens graves e
logo que abrigais modestamente os vossos actos debaixo nobres se transformem em Dom Quixote, têm mais que
da tenda d a história. fazer do que baterem-se contra estas pretensas reali-
O homem que procura compreender, calcular, dades. Em todo o caso, devem vigiar e gritar «quem
apreender, no momento em que deveria fixar na sua vem lá?» a todas a s máscaras que aparecerem, e tirar-
memória, como u m longo sobressalto, o acontecimento -lhes o capuz que as cobre. Coisa estranha: era de crer
incompreensível que o sublime constitui, pode ser consi- que a história encorajasse os homens principalmente
derado inteligente, no sentido em que Schiller fala da a serem hmestos, mesmo que honestos imbecis; foi
inteligência do homem inteligente; h á coisas que uma sempre essa a sua função, mas não é isso que acon-
criança vê e que ele não vê. Não será capaz de ver o tece no nosso tempo. Cultura histórica e sobrecasaca bur-
pormenor único, exactamente o mais importante, não guesa andam de mãos dadas. Numa época em que se
o compreenderá, porque a sua inteligência é mais pueril fala como nunca, solenemente, da «personalidade livre»,
do que a de uma criança e mais vã que a de um sim- .
não se vêem personalidades, quanto mais personalidades
ples de espírito, apesar das numerosas rugas da sua livres, somente homens de tipo universal, ansiosamente
face manhosa e encanecida e das suas mãos hábeis agasalhados. O individuo retirou-se para dentro, nada se
para desfazer as redes mais complicadas. Resulta isto vê dele de fora, a ponto de se suspeitar de que possam
de que, tendo perdido e destruído o seu instinto, ele existir causas sem efeitos. Será necessária uma raça
não ousa soltar o freio do «animal divino» quando a sua de eunucos para guardar o grande harém da história
universal? A sua objectividade fica-lhes bem. Não cial e sem acção. Por pouco corajoso e resoluto que o
parece que a sua missão é velar pela história, impedir homem moderno fosse, por pouco que se não limitasse a
que dela saiam apenas histórias, e nunca acontecimen- ser homem de interioridade até no seu ódio, baniria a
tos, e que por sua influência nasçam personalidades «li- filosofia. Para já, contenta-se com velar pudicamente a
vres», isto é, sinceras consigo próprias e com outrem, por sua nudez. Decerto, continua-se a pensar, a escrever, a
palavras e por actos? Será graças a esta sinceridade
que o infortúnio e a miséria íntima do homem moderno
i imprimir filosofia; fala-se dela, ensina-se filosofia; den-
tro destes limites tudo é permitido, ou quase; mas o caso
virão à luz e que a a r t e e a religião poderão, como auxi- é diferente quando se trata de acção, ou daquilo a que se
liares preciosas, tomar o lugar da convenção e da mas- i chama vida. Nestz campo só uma coisa é permitida
carada, que pretendem esconder tudo; juntas implanta- e tudo o mais é simplesmente impossível. É esta a
rão uma cultura q u e há-de corresponder a necessidades I exigência da cultura histórica. Ê caso para perguntar
autênticas, em vez de se limitar a ensinar, como a
actual cultura geral, a iludir-se sobre estas necessida-
des e a reduzir-se a o estado de mentira ambulante.
I1 se estamos diante de homens ou de máquinas de pensar,
escrever e falar?
Goethe disse um dia de Shakespeare: «Ninguém
E m que situações tão contrárias à natureza, arti- mais do que ele desprezou a cor local, mas conhece
ficiais e indignas vem a cair, numa época que sofre maravilhosamente a cor local interior do homem, e sob
deste tipo de cultura geral, a mais verídica de todas este aspecto todos se parecem. Diz-se que d,escreveu
as ciências, a honesta deusa nua da filosofia! Neste admiravelmente os romanos. Não estou de acordo. São
mundo de uma uniformidade exterior forçada, ela é o todos ingleses, mas também são homens radicalmente
douto monólogo do viajante solitário, a presa individual humanos que facilmente vestem a toga romana.» Per-
inesperada, o segredo bem dissimulado ou o falatório gunto a mim próprio se será possível vestir à romana
anódino entre velhos universitários e crianças. Nin- os nossos literatos, os nossos tribunos, os nossos fun-
guém tem a ousadia de seguir, na sua vida interior, a cionários e os nossos políticos. Seria impossível, por-
lei da filosofia, ninguém quer levar uma vida filosófica, que não são homens mas manuais incarnados, e de
com aquela probidade simples e viril que obrigava um algum modo abstracções concretizadas. Mesmo que
Antigo, onde quer que estivesse e o que quer que tivessem carácter e originalidade, estariam tão pro-
fizesse, a comportar-se como estóico se com a Stoa 1 fundamente escondidos que não poderiam vir à luz
se tinha comprometido. Toda a actividade filosófica
moderna é política e policial, reduzida pelos governos,
as Igrejas, as universidades, os costumes e a fra-
1I do dia; se são homens, só Aquele que perscruta os cora-
ções e a s entranhas os terá como tal. Para todos os ou-
tros, são uma coisa absolutamente diferente, nem ho-
queza dos homens a uma simples aparência de eru-
dição. Contenta-se com suspirar : «Quando, pois.. .»
il mens, nem animais, nem deuses, mas seres de cultura,
inteiramente feitos de cultura, imagens, formas, sem
ou com reconhecer : «Era uma vez. ..».A filosofia não i conteúdo perceptível e, infelizmente, más formas, além
i
tem direito de existir no interior de uma cultura históri- do mais uniformes. É neste contexto que deve integrar-
ca se pretender ser algo diferente de um saber confiden- / -se e considerar-se o meu axioma: A história só é tolerá-
vel paya as personalidades fortes; abafa as pesonalida- tória a o Eterno Feminino, declaro expressamente
des fracas. 13assim porque ela desorienta o sentimento e que a considero o Eterno Masculino. Todavia, os
a sensibilidade quando não são suficientemente fortes que têm uma cultura histórica completa preocupam-se
para enfrentarem o passado. O homem que não tem a pouco com que ela seja uma coisa ou outra- em si,
ousadia de confiar em si próprio, mas que vai invo- não são homens nem mulheres, nem mesmo communia,
luntariamente procurar conselho junto da história mas neutros, ou, em termos mais rigorosos, são os
acerca da sua maneira de sentir, perguntando-se a todo Eternos Objectivos.
o momento, «Que é que eu devo sentir agora?», trans- A partir do momento em que a s personalidades se
forma-se gradualmente num actor, por medo, repre- esvaziaram da maneira que relatei e foram reduzidas
senta um papel e, com frequência, muitos outros; repre- a uma impersonalidade eterna, ou, como é costume dizer,
senta-os mal e sem graça. Pouco a pouco, vai desapare- à objectividade, nada mais pode agir sobre elas. Acon-
cendo toda a conformidade entre o homem e o sector teça o que acontecer no campo da acção, da poesia, da
histórico que está a investigar. Vemos impertinentes música, o homem culto, esvaziado interiormente pela -
novatos tratar o s romanos como iguais; esquadrinham cultura, despreza a obra e informa-se sobre a histó-
e exumam o s cadáveres dos poetas gregos e permitem-se ria do autor. Se já produziu algo anteriormente, é
a liberdade de os dissecar como se se tratasse de cwpora imperioso explicarem-lhe imediatamente os antece-
vilia, como serão u m dia os seus despojos literários. Ao dentes e o futuro provável da sua evolução. Compa-
ver um deles atacar Demócrito, a pergunta que sempre ram-no com outros, dissecam-no, interrogam-no sobre
surge nos meus lábios é esta: Porquê Demócrito? Porque a escolha do tema, sobre o modo de o tratar, desarti-
não Heráclito? ou Filon? ou Bacon? ou Descartes? E por- culam-no para o reconstruir sabiamente, censuram-no,
que há-de ser justamente um filósofo? Porque não um corrigem-no. Por mais surpreendente que o aconteci-
poeta ou um orador? E porquê um grego? Porque não mento seja, aparece logo um bando de historiadores
um inglês ou um turco? Não é o passado suficiente- para considerarem o autor segundo uma perspectiva
mente vasto para vos fornecer um tema que vos faça longínqua. Há ecos imediatos também sob a forma de
menos ridículos? Mas, como já afirmei, trata-se de uma «crítica», quando pouco tempo antes a crítica não
geração de eunucos; para um eunuco uma mulher vale tinha sequer sonhado tal possibilidade. Não resulta daí
, o mesmo que qualquer outra, nunca passa de uma qualquer efeito, mas sempre uma nova crítica, e esta
mulher, a mulher em si, eternamente inacessível. Pouco critica, por sua vez, também não produz efeito, mas
importa o que possais fazer, contanto que a história constitui o objecto de uma outra crítica. Todos con-
seja se mantenha «objectiva», sob a alta vigilância cordam em considerar que ter muitas críticas é um
daqueles que nunca poderão fazer história. E como o sucesso e que ter poucas ou não ter críticas é um
Eterno Feminino nunca vos arrastará para as alturas, fracasso. Mas, no fundo, mesmo quanto ao efeito
sois vós que o rebaixais até vós; sendo neutros, trans- produzido, nada mudou; glosa-se por momentos
formais a história numa coisa neutra. Mas para que não uma novidade, depois outra, e tudo continua como
se venha a pensar que é a sério que comparo a his- dantes. A critica histórica não permite que uma obra
possa ter acção, n o sentido próprio da palavra, isto é,
agir sobre a vida e a acção. Sobre a tinta mais negra
aplicam imediatamente o seu mata-borrão. Borram
com grossas pinceladas o mais gracioso dos desenhos,
fazendo-as passar por correcções. E tudo fica por aí.
A sua pena critica nunca desarma, porque já não são
senhores dela, é ela que os conduz. Este excesso de
efusões críticas, esta falta de autodomínio, aquilo a
que os romanos chamavam a impotentia, tudo isso
exprime a debilidade da pessoa moderna.

Deixemos de parte a debilidade. Voltemo-nos antes


para uma força de que o homem moderno se orgulha
e dirijamos-lhe uma questão, decerto não muito agradá-
vel: Terá ele o direito, por causa da sua «objectividade»
histórica bem conhecida, de se afirmar forte e justo e
mais justo do que os homens de outrora? Ê verdade que
esta objectividade tem origem numa necessidade e num
desejo maiores de justiça? Ou, tendo causas muito dife-
rentes, não se limitará a dar a aparência de que a jus-
tiça seria a causa deste efeito? Desencaminhar-nos-á
ao impor-nos um preconceito prejudicial, porque excessi-
vamente lisonjeiro, relativamentee à s virtudes do ho-
mem moderno? Sócrates pensava que era uma doença
próxima da loucura imaginar que se tem uma vir-
tude que, de facto, não se tem. E é certo que essa
presunção é mais perigosa do que a ilusão contrá-
ria de sofrer de um defeito ou de um vício que não se
tem. Esta última ilusão permite-nos ser melhores, mas
a presunção inversa torna o homem ou a época cada
vez pior, isto é, no caso considerado, mais injusto.
Na verdade, ninguém merece mais o nosso remeito
do que aquele que tem o instinto e a força de ser
justo. Porque na justiça se unem e se escondem as
mais altas e mais raras virtudes, como o mar inson-
dável que acolhe e absorve rios vindos de todos os confundem-se com a procura da verdade, que tem a sua
horizontes. A mão do justo, se ele está verdadeira- fonte na justiça.
mente apto a fazer justiça, não treme ao segurar a ba- Assim, parece que o mundo está cheio de «servido-
lança; amontoa inexoravelmente os pesos, seus olhos não res da verdade» e, contudo, a virtude da justiça está
se perturbam quando os pratos sobem ou baixam e a sua muito raramente presente, mais raramente ainda é
voz nem é dura nem branda quando pronuncia o vere- reconhecida, e quase sempre é objecto de ódio de morte,
dicto. Se fosse um demónio frio do conhecimento, espa- ao passo que o cortejo das pretensas virtudes entra
lharia à sua volta a atmosfera gracial de uma majestade sempre com grande pompa e solenidade. Há poucos
desumana e temível, inspiradora de medo e não de que servem verdadeiramente a verdade, porque são
respeito. Mas se ele, continuando a ser humano, pro- poucos os que têm vontade de serem integralmente
cura elevar-se da moleza da dúvida à certeza austera, justos e também são poucos, entre eles, os que têm a
da clemência indulgente ao imperioso «tu deves!», da força de ser justos. Não basta ter vontade, e os piores
virtude pouco frequente da generosidade à ainda mais males que se abatem sobre os homens provêm exacta-
rara virtude da justiça, se ele se assemelha por via disso mente de um instinto de justiça sem critério. Por isso
a tal demónio, ele que na origem não passava de um é que o bem público deveria exigir que se espalhasse, tão
amplamente quanto possível, a boa semente do juizo,
pobre homem, e, sobretudo, se tiver de sofrer permanen-
para que se deixe de confundir o fanático com o juiz,
temente por causa da sua humanidade e se devora tra-
o desejo-cego de julgar com a capacidade de julgar,
gicamente por uma virtude impossível, tudo isso guinda-o
consciente do seu direito. Os homens a quem se fala
a uma altura solitária, como o exemplar mais venerável
de verdade e de justiça ficam eternamente hesitan-
da espécie humana. Porque ele quer a verdade, não como tes sobre se é o fanático ou o juiz que lhes fala. Ê
um conhecimento frio e estéril, mas como verdade que preciso per$oar-lhes o terem sempre acolhido com
julga, ordena e pune, como uma verdade que não é particular benevolência os «servidores da verdade»,
propriedade egoísta do indivíduo, mas direito sagrado que não têm nem a vontade nem a força de julgar
de deslocar os limites de todas a s propriedades egoístas, e cuja tarefa é procurar o «puro e estéril conheci-
uma verdade, em suma, que é julgamento final e que, mento» ou, mais rigorosamente, a verdade de que
em nenhum caso, é presa fortuita e prazer de um caça- não h á nada a extrair. Há muitas verdades indife-
dor isolado. Mas só na medida em que o homem verídico rentes, h á problemas cuja solução não exige esforço
tem vontade absoluta de ser justo, é que o esforço para e, muito menos ainda, qualquer espécie de dedi-
alcançar a verdade, que é tão louca e universalmente cação. Neste campo do conhecimento indiferente e sem
glorificado, tem algo de grande, a o passo que para olhos perigo, um homem pode decerto chegar a ser um demó-
menos clarividentes um grande número de instintos nio frio do conhecimento. Apesar de tudo, mesmo se em
diversos, t a i s como a curiosidade, o medo do dissa- épocas favoráveis, cortes inteiras de investigadores e de
bor, a desconfiança, a vaidade e o amor do jogo- sábios se metamorfoseiam neste género de demónios, in-
instintos que não têm nada de comum com a verdade - felizmente continua a ser possível que uma seme-
lhante época sofra de penúria de uma grande e rigorosa julgar, a fraqueza só é capaz de suportar, a menos que
justiça, numa palavra, sofra da falta da essência queira fingir força e atribuir à justiça, no seu tribunal,
daquilo a que se chama o instinto da justiça. um simples papel de figurante. Resta uma espécie terri-
Debrucemo-nos agora sobre o bom historiador do vei de historiadores, pessoas sérias, severas e honestas,
nosso tempo. Será o homem mais justo do seu tempo? mas de inteligência limitada. Neles se encontram o dese-
13 verdade que ele desenvolveu tal delicadeza, tal sensi- jo sincero de serem justos e os modos solenes da magis-
bilidade que nada d o que é humano lhe é estranho. As tratura, mas só pronunciam sentenças erradas, aproxi-
épocas e a s personagens mais diversas acordam na sua madamente por razões idênticas àquelas que falseiam as
lira os mais diversos tons, transformou-se num ser sentenças dos júris ordinários. Como é pouco provável
passivo que vibra com qualquer vento e comunica a sua encontrar com frequência verdadeiros talentos histó-
vibração a outros s'eres passivos, até que toda a atmos- ricos! E já pomos de parte os egoístas e os partidários
fera da época esteja cheia do murmúrio destes sons perigosos, que encobrem a sua desonestidade com uma
delicados, aparentados uns aos outros e que misturam aparência de objectividade, e não falamos também das
as suas vibrações. Mas parece que só se notam a s cabeças desmioladas que escrevem história na ingénua
vibrações mais agudas dos tons originais e autênticos. confiança de que a sua época tem razão em todos os
A força rude e viril do original não se deixa adivinhar seus modos populares de pensar, e de que escrever de
através destes acordes agudos e etéreos. A melodia ori- acordo com a sua época é ser justo. E nesta crença que
ginal despertava frequentemente acções, terrores e des- vivem as religiões; nada mais há a dizer em ques-
graças; esta embala-nos e faz de nós gozadores sem ner- tões religiosas. Estes historiadores ingénuos qualificam
vos. Ê como s e se adaptasse a Sinfonia H'eróica para ser de «objectividade» o seu modo de apreciar as opiniões
tocada por duas flautas diente de fumadores de ópio. e os actos do passado de acordo com as opiniões corren-
É possível apreciar assim em que pode cair, no caso tes do presente; no presente está o cânone de todas a s
destes virtuosos, a exigência suprema do homem mo- verdades. O seu trabalho reduz-se a ajustar o passado
derno de uma justiça superior e mais pura; é uma vir- às banalidades do momento. Pelo contrário, qualificam
tude que ignora todas as complacências, todas a s flu- de «subjectivo» o modo de escrever história que não
tuações amáveis; é dura e terrível. Se a compararmos considera canónicas as ideias correntes.
a ela, a generosidade fica muito em baixo na escala Mesmo que se dê à palavra objectividade a sua
das virtudes, essa generosidade que é virtude de alguns significação mais elevada, não se estará a ser vítima de
raros historiadores. Mas a maior parte não consegue uma ilusão? Com esta palavra quer significar-se o
ir além da tolerância, da aceitação do que não se pode estado de espírito com que o historiador encara um
refutar; limitam-se a algumas rectificações, a um acontecimento, em todas a s suas causas *e consequên-
verniz benevolente e moderado, na hipótese astuciosa de cias, com tanta pureza que o dito acontecimento não
que o leitor não experimentado tomará por virtude da tem sobre ele, subjectivamente, qualquer efeito. Pen-
justiça o facto de o passado ser apresentado sem dureza sa-se então no estado estético, no tal desprendi-
e sem ódio. Mas só a força superior tem o direito de mento de todo o interesse pessoal em que o pintor,
quando se encontra envolvido por uma paisagem tene- mil pequenas causas.» Qualquer homem tem também
brosa, sob relâmpagos e trovões, ou no mar agitado, se
esquece inteiramente da sua pessoa para seguir tão-só
a sua visão interior. Exige-se, pois, do historiador o
a sua necessidade individual, de tal sorte que milhões
dr, linhas curvas ou rectas oorrem paralelas umas à s
outras, se entrecruzam, se auxiliam, se contrariam, ten-
.
recolhimento do artista e a sua completa absorção nas dem a progredir ou a recuar, e por isso tomam um
coisas. Mas é superstição acreditar que a imagem das aspecto de, acaso umas em relação à s outras, tornando
coisas, num homem nesta situação, reproduza o ser deste modo impossível demonstrar, excepto os efeitos
empírico das coisas. Ou será que, em momentos desses, dos fenómenos naturais, a necessidade universal, global,
as coisas tomam a iniciativa de vir desenhar-se, reflec- de todos os fenómenos. E agora, é essa necessidade que
tir-se, fotografar-se sobre um ser passivo? Seria mito- se quer pôr em evidência, como se fosse o resultado
logia e péssima mitologia! Seria esquecer que o momen- de uma visão «objectiva» das coisas. Esta conjectura,
t o criador do artista é aquele em que a sua alma expressa pelos historiadores como um artigo de fé,
está cheia de originalidade e de força, é o instante em só pode assumir uma forma. Schiller está perfei-
que a faculdade de compor atinge o auge; o resultado tamente a par do carácter nitidamente subjectivo
será um quadro artisticamente verdadeiro mas não desta hipótese quando diz do historiador: «Os
historicamente verdadeiro. Representar-se assim, objec- fenómenos, um após outro, escapam ao acaso cego,
tivamente, a história, é o trabalho misterioso do autor à liberdade sem lei e vêm, como articulação con-
dramático, pensar todas a s coisas nas suas relações, jugada de um mecanismo, tomar o seu lugar dentro de
integrar todos os pormenores na trama, sempre na hipó- um conjunto coerente q%e,nareaZidctde,só existe na irna-
tese de que é imperioso introduzir a unidade de plano, ginação do historiador.» Mas que se deve pensar desta
que afinal não existe. Ê assim que o homem moderno afirmação, enunciada com tanta fé, engenhosamente
integra todo o real numa teia e o domina; o que ele equilibrada entre o absurdo e a tautologia, de um céle-
exprime, nesse caso, é o seu sentido artístico e não o seu bre artista da história: «Tudo se passa como se todos
sentido da verdade e da justiça. A objectividade não os actos e actividades humanas estivessem sujeitos à
tem nada a ver com a justiça. Poder-se-ia imaginar totalidade secreta, muitas vezes pouco evidente, mas
Lima maneira de escrever história que não contivesse poderosa e irresistível das coisas»? Numa fórmula
uma gota sequer de verdade empírica comum e preten- tal não h á mais sabedoria enigmática ou enigma sem
desse o mais alto g r a u de objectividade. Grillparzer che- sabedoria do que na máxima do jardineiro de Goethe:
gou mesmo a dizer: «Que é a história, senão o modo por «Pode-se forçar a natureza, mas não obrigá-la» ;ou nesta
que o espírito do homem acolhe as acolntecimentos que inscrição de tenda de feira, de que fala Swift: «Está aqui
lhe são impenetráveis, a sua maneira de ligar factos o maior elefante do mundo, excepto ele». Porque, no
que só Deus sabe s e estão ligados, de substituir o inte- fim de contas, que oposição pode haver entre os factos
ligível pelo inteligível, de introduzir noções de fina- e os gestos humanos e o conjunto das coisas? Para
lidade externa num todo que só conhece a finalidade mais, impressiona-me verificar que historiadores como
interna e de admitir a presença do acaso quando agiram este de que citei uma frase não nos ensinam nada
quandc generalizam, traindo assim, pela sua obscurida- simulada, assim como a ausência de emoção e de força
de, o sentimento d a sua fraqueza. Noutras ciências, moral procura disfarçar-se sob a capa de uma atitude
a s generalidades s ã o o essencial, na medida em que de fria e severa contemplação. Em certos casos, a banali-
implicam leis; mas se frases como a que citei atrás dade da atitude mental e uma sabedoria vulgar, que só
pretendessem ter o valor de lei, seria necessário objectar dá a impressão de uma calma imperturbável pelo modo
então que o trabalho do historiador seria pura perda, fastidioso de se exprimir, ousam mostrar-se a fim
porque o que é verdadeiro em fórmulas destas, uma de faaerem crer num estado estético em que o sujeito
vez deduzido esse resíduo obscuro e insol6vel de que se torna silencioso e invisível. Faz-se apelo a tudo
falámos, é feito de coisas triviais, que qualqupr pessoa aquilo que não tem o perigo de impressionar e a
pode observar no circulo estreito da sua experiência. fórmula mais seca é a melhor. Chega-se ao ponto
Mas aborrecer nações inteiras e gastar anos a fio de de admitir que aquele que não tem qualquer r e h -
trabalho seria o mesmo que acumular nas ciências da çáo com um ~acofitecimento passado, é que é
natureza experiência sobre experiência, quando a lei competente para o descrever. 13 essa a relação que
poderia ter sido deduzida há muito deste tesoiro de existe entre os Gregos e os filólogos: não têm nada de
experiência. Segundo Zollner l, a ciência da natureza comum. Assim é a sua objectividade. Quando se trata
sofre justamente deste abuso absurdo da experimenta- de evocar o que há de mais alto e mais raro, a indife-
$50. Se o valor de u m drama consistisse apenas no seu rença afectada de que se faz gala, a arte de tudo expli-
pensamento principal e final, o drama seria o caminho car de modo anódino e prosaico, são simplesmente
mais longo, mais indirecto e mais penoso para chegar revoltantes, pelo. menos no caso em que é a vaidade do
ao fim; da mesma forma, espero que a história não escritor a inspirar esta indiferença que quer passar
limite a sua significação à s ideias gerais que seriam por objectividade. Quando são autores deste géiiero é
o seu fruto e a s u a flor. O seu valor está em variar bom partir do seguinte principio: o homem é tanto mais
com espírito um tema conhecido e talvez já gasto, vaidoso quanto mais falho de inteligência. Não, pelo
uma melodia banal, e elevá-la à posição de símbolo menos, sêde honestos. Não simuleis uma faculdade esté-
compreensivo, e em fazer pressentir no tema inicial um tica que seria a objectividade autêntica, não procureis
mundo de meditação, de força e de beleza. um falso semblante de justiça se não tendes a temível
Mas para isso é necessário, antes de mais, uma vocação de serdes justos. Como se a missão de uma
poderosa faculdade poética, o poder criador de planar época fosse ser justa para com tudo o que a precedeu.
por cima do real, d e mergulhar com amor nos dados As épocas e a s gerações não têm o direito de serem
empíricos, de criar imagens novas, conformes com tipos juises de todas as épocas e gerações passadas. Esta
dados; é necessária objectividade, mas só no que ela missão incómoda pertence exclusivamente aos indi-
tem de positivo, porque com muita frequência a objecti- víduos e aos mais raros de 'entre eles. Quem vos obriga
vidade é apenas uma palavra. A calma imperturbável do a julgar? E interrogai-vos também, para verdes se
olhar do artista, que brilha por dentro mas se apresenta poderieis ser justos, mesmo que o quisesseis. Deverieis,
impassível exteriormente, é substituída por uma calma como juizes, ser superiores àqueles que tendes de julgar,
quando não passais de recém-chegados. IF: justo que
os últimos tenham os Últimos lugares no banquete e I elevada que os outros homens, será incapaz de inter-
vós quereis os primeiros! Façai primeiro o que h á de
mais elevado e digno e dar-vos-ão um lugar, mesmo se
I pretar os acontecimentos importantes do passado. O
veredicto do passado é sempre o veredicto de um orá-
chegardes tarde. culo. Não podeis compreendê-lo se não fordes arqui-
É em função do que o presente tem de mais ele- tectos do futuro e conhecedores do presente. Actual-
vado e de mais digno que tendes o direito de julgar o mente, explica-se a influência prodigiosamente profunda
passado, é explorando ao máximo a s vossas nobres qua- de Delfos e a sua vasta esfera de acção principalmente
lidades que haveis de adivinhar aquilo que no passado pelo facto de os sacerdotes délficos terem um conheci-
merece ser conservado - o que é grande. Só é possível mento rigoroso do passado; o que é necessário afirmar
julgar entre iguais. De contrário, o passado será rebai- agora, é que só quem constrói o futuro tem o direito de
xado até a o vosso nível. Acreditai apenas na história julgar o passado. Ao olhardes para a frente, ao perse-
que provém dos cérebros mais raros, e haveis de desco- guirdes um objectivo elevado, reprimis também a exu-
brir a qualidade de espírito do historiador quando ele berância desse instinto analítico que destrói para vós
for obrigado a formular uma verdade geral ou a repetir
o presente e torna quase impossível toda a espécie de
uma verdade conhecida. O historiador autêntico deve
calma, de crescimento e de maturação tranquilos. Plan-
ter força para transformar numa verdade nova o que é
tai à vossa volta a barreira de uma alta e larga espe-
conhecido de todos, e para exprimir com tanta simpli-
cidade e profundidade, que a profundidade faça esque- rança, de uma esperança cheia de ambições. Formai
cer a simplicidade e a simplicidade faça esquecer a em vós mesmos a imagem do que deve ser o futuro e
profundidade. N ã o se pode ser, simultaneamente, um esquecei o preconceito que faz de Gós epígonos. Tendes
grande historiador e um idiota. Por outro lado, é pre- 'muito que meditar e que inventar ao reflectirdes no
ciso não desprezar os operários que transportam os futuro, mas não deveis pedir à história que vos indique
materiais da história, que os amontoam e separam, pela o porquê e o como. Se, pelo contrário, vos debruçardes
simples razão d e que nunca serão grandes historiado- sobre a vida dos grandes homens, descobrireis neles
res; mas também não se devem confundir com estes um imperativo supremo, o de amadurecerdes e de fugir-
Yltimos; é imperioso compreender que são operários des à influência paralisante da época que retira pro-
indispensáveis ao mestre-de-obras. E neste espírito que veito de impedir o vosso desenvolvimento, para vos
os franceses falam, ainda com mais ingenuidade que dominar e explorar. Se quereis ler biografias, evitai
os alemães, dos «historiadores de Thiers». Diz-se que a s que têm por refrão: «O Senhor Unte1 e o seu tempo»,
esses operários acabam por ser grandes sábios, mas e lede aquelas que têm como título: «Um homem em
nunca chegam a ser mestres. Um grande sábio e um luta com o seu tempo». Enchei a s vossas almas de
grande imbecil -é mais fácil metê-los no mesmo rol. Plutarco e tende a coragem de acreditar em vós pró-
Portanto, p a r a escrever história é preciso ser um prios, se acreditais nos seus heróis. Uma centena de
homem d e experiência e um homem superior. Quem indivíduos assim formados, por uma educação que não
O saber histórico, quando reina sem freio e leva
até ao fim a s suas consequências, desenraiza o futuro,
porque destrói as ilusões e priva a s coisas presentes
da atmosfera indispensável à vida. A justiça da his-
tória, mesmo real e bem intencionada, é uma virtude
temível, porque mina e destrói a vida. O seu veredicto
é sempre destruidor. Se, por detrás do instinto histórico,
não houver um instinto construtivo, se se destruir
não tendo em vista deixar um lugar vazio, para que o
futuro já vivo na esperança construa a sua casa sobre
um terreno desimpedido, se só reinar a jsutiça, o ins-
tinto criador enfraquece e desanima. Se se quisesse, por
exemplo, transformar em saber histórico de pura 6be-
diência à justiça uma religião, a qual se quisesse conhe-
cer a fundo, cientificamente, ela deixaria de existir no
termo de um semelhante processo. A razão é que, ao
Icngo do estudo, viria a lume tanta falsidade, tanta
grosseria, tanta desumanidade, absurdo e violência que
a piedosa ilusão indispensável a todos os seres vivos se
dissiparia necessariamente. Ora, o homem só pode criar
1 no amor, envolvido na ilusão amorosa, isto é, na crença
i absoluta na perfeição e na justiça. Se se obrigar o
homem a renunciar ao absoluto do seu amor, cortam-se-
f
;
I
-lhe a s raizes do seu vigor, ele seca, perde a sua probi-
dade. A acção da arte, neste caso, 6 o contrário d á os precederam, o espectador imparcial tem, por vezes,
acção da história, e é só quando a história pode ser trans- a impressão de que não se trata de modo nenhum
formada em obra de arte, portanto em pura criação da de cristianismo - mas, em que poderíamos nós pensar
arte, que ela pode conservar e até despertar instintos. quando vemos o cristianismo, definido pelo «maior
Mas semelhante estilo em história seria absolutamente teólogo do século», como «a religião que permite com-
contrário a o carácter analítico e prosaico da estética do preender por dentro todas a s religiões que existem e
nosso tempo; seria considerado como desvio. Todavia, a até algumas das possíveis», e quando nos dizem que
história que se limita a destruir sem se guiar por um «a Igreja verdadeira deve ser aquela que se transforma
instinto construtivo acaba por fazer dos seus instru- numa massa fluida e sem contornos cujas partes se
mentos seres desiludidos que nada têm de natural. situam ora aqui ora além, e onde tudo se mistura pacifi-
Porque são destruidores de ilusões e <<anatureza pune camente»? Mais uma vez, em que nos faz pensar isto?
com todo o rigor da tirania quem destrói as suas ou Pode-se, ao estudar o cristianismo, aprender como
as ilusões dos outros». E verdade que é possível fazer, ele adquiriu uma feição artificial e ilusória, à luz de um
por algum tempo, uma história anódina e inocente, tratamento historicizante, até que, por fim, um trata-
como se fosse u m a ocupação entre outras. mento ahtenticamente histórico, isto é, justo, o dissol-
A teologia moderna, por exemplo, parece ter estu- va num mero «conhecimento do cristianismo», o que
dado a história com toda a inocência, e hoje já não é o mesmo que tê-lo destruido. O mesmo fenómeno pode
parece pôr em dúvida que se pôs ao serviço, certamente ser observado em todos os seres vivos: uma vez disseca-
contra a sua vontade, da divisa de Voltaire: Esmagai dos deixam de viver, e levam uma existência dolorosa e
a Infame! Que ninguém suspeite da existência aí de doentia logo que sobre eles praticarmos qualquer expe-
instintos novos e vigorosos, a menos que se considere riência de dissecação histórica. Há alemães que acredi-
a pretensa Liga evangélica como mãe de uma nova tam na virtude terapêutica e reformadora da música
religião, ou o jurista Holtzendorf, editor e prefaciador alemã. Encolerizam-se e crêem que é uma injustiça para
da pretensa Bíblia protestante, como um João Baptista com aquilo que a nossa cultura tem de mais vivo, o facto
nas margens do Jordão. Por algum tempo ainda, talvez, de homens como Mozart e Beethoven estarem presen-
a filosofia hegeliana, que continua a enevoar algumas temente sepultados sob o douto amontoado de biogra-
cabeças, i r á ajudar a propagar estas ninharias inofensi- fias e serem torturados pela crítica, que os obriga a
vas, porque se distinguirá entre «a ideia do cristianis- responder a um sem número de perguntas indiscretas.
mo» e as suas «formas fenomenais» frequentemente im- O espírito, que não esgotara ainda toda a sua acção
perfeitas e se estará persuadido de que é um «capricho viva, não se sentirá abolido antes de tempo ou, pelo
da ideia» manifestar-se em formas cada vez mais depu- menos, paralisado, por se orientar a curiosidade para
radas, cada vez mais translúcidas e, por fim, quase invi- uma multidão de pormenores da vida e da obra e
síveis no cérebro do theologzcs liberaais vulgaris moder- se procurar problemas de conhecimento em vez de s e
no. Mas a o ouvir estes cristianismos quinta-essenciais tentar aprender a viver e a esquecer todos os proble-
exprimirem-se a respeito dos cristianismos impuros que mas? Imaginai que alguns destes modernos biógrafos
estavam presentes no momento em que nasceram o que nunca cheguem a amadurecer, porque isso s e i a
cristianismo e a reforma luterana; a sua curiosidade 1
um luxo que afastaria do «mercado do trabalho»
positiva e pragmática teria bastado para tornar im- uma grande massa de forças. Cegam-se aves para
I
possível qualquer irradiação do espírito à distância. cantarem melhor; não creio que actualmente os ho-
Assim, o animal mais pequeno pode impedir o cresci- mens cantem melhor do que os seus antepassados,
I
mento do mais forte carvalho se lhe comer as glandes. I mas sei que os cegam muito cedo; mas o meio, o meio
Tudo o que vive necessita de um ambiente, de um envol- infame de que se servem para os cegar, é o uso de uma
vimento vaporoso. Se se privar deste envolvimento de luz demasiado crua, excessivamente repentina e ins-
nuvens, se se condenar uma religião, uma arte ou um 1 tável. O jovem é perseguido a chicote através dos milé-
génio a gravitar como um astro sem atmosfera, não nios; jovens que ignoram por completo o que é uma
deveremos ficar admirados por vê-los secar, endurecer guerra, um acto diplomático, uma política comercial,
e tornarem-se estéreis. Assim acontece com todas a s são considerados aptos para estudar história política; o
coisas, «que nunca resultam sem alguma ilusão», como jovem percorre a toda a pressa o campo da história
diz Hans Sachs n o s Mestres Cantores. universal, como nós percorremos a correr os mus,ous e
Qualquer nação, como também qualquer indivíduo assistimos aos concertos. Sente-se bem que uma coisa
que quer amadurecer, tem necessidade de um véu de tem um som diferente da outra, age de modo diferente.
ilusão, de uma nuvem que o proteja e envolva, mas Chama-se ter o sentido histórico, possuir uma cultura
actualmente tem-se horror por qualquer maturação histórica, a perder progressivamente a impressão de que
lenta, porque se respeita mais a história do que a vida. SF. é em toda a parte um estrangeiro, a deixar de se
Mais: proclama-se com a r triunfante que «a ciência admirar, a aceitar tudo. Para falar com toda a clareza,
começa a dominar a vida». Pode acontecer que o a massa de saber que nos submerge é tal, os factos
venha a conseguir, mas é certo que a vida, assim domi- estranhos, bárbaros e violentos, «feitos em horríveis
nada, já não t e m grande valor, porque ela é muito coágulos», abatem-se com tal brutalidade sobre a alma
menos uma vida e garante menos vida para o futuro do dos jovens, que ela só consegue libertar-se pela apatia
que o fazia outrora esta mesma vida, dominada não pela consciente. Se a alma é mais forte ou mais delicada,
cisncia m a s pelos instintos e por algumas ilusões fortes. pode aparecer uma outra reacção: o desgosto. O jovem
E verdade que ninguém, como já disse atrás, deseja um I sente-se estranho em toda a parte e duvida de todos os
I

século de personalidades amadurecidas e perfeitas, de costumes e de todas a s ideias. Sabe agora que a s coisas
personalidades harmoniosamente desenvolvidas, mas têm sido diferentes ao longo das várias épocas e que
uma época de trabalho colectivo tão rentável quanto pouco importa o que ele é. Com uma indiferença melan-
possível. Isso significa simplesmente que os homens se cólica faz desfilar diante de si, umas após outras, as
devem treinar p a r a satisfazer a s necessidades deste í várias opiniões, e compreende a frase e a emoção de
tempo, para porem o mais rapidamente possível mãos Horderlin, a o ler a obra de Diógenes Laércio sobre a
à obra. S ã o obrigados a trabalhar na fábrica da utili- vida e a doutrina dos filósofos gregos: *Senti, mais
dade pública antes mesmo de estarem maduros, ou para uma vez, que me deixo impressionar mais tragi-
que pelas vidas dos homens, que habitualmente são os homens do passado; em todos os outros pontos
consideradas as Únicas reais.» diferem infinitamente -para falar com prudência -
Os Antigos provaram que este modo avassalador, ?h de todos os sábios de velha cepa. E, contudo, exigem
estonteante e violento de estudar história não é necessá- :I - para si honras e vantagens, como se o Estado e a opi-
rio à juventude; e os modernos demonstram que é ,I nião pública fossem obrigados a reconhecer a mesma
extraordinariamente perigoso. Observe-se, um pouco, i
I autenticidade à s moedas novas e às moedas antigas. Os
o estudante de história, herdeiro, por vezes desde a sua carroceiros concluíram entre si um contrato de trabalho
adolescência, de u m gosto precocemente embotado. Apro- e decretaram a inutilidade do génio; uma época ulterior
priou-se do «método» de trabalho, dos truques e do vai decerto dar-se conta de que os seus edifícios são r

tom superior do seu mestre; uma pequena parcela de amontoados de pedras, e não verdadeiros edifícios.
passado, cuidadosamente delimitada, caiu sob a sua Quanto àqueles que têm permanentemente na boca a
perspicácia e sob o método que lhe inculcaram. Já pro- palavra concentração e a divisa sagrada dos modernos,
duziu, ou, para usar um termo mais nobre, já «criou», «Divisão do trabalho.», «Em fila!», eis o que é urgente
tornou-se um servidor activo da verdade, passou para dizer-lhes, em termos claros e precisos: Se quereis
o campo d a história universal. Se desde a infância ele fazer avançar a ciência a toda a velocidade, haveis de
se sentia <realizado», muito mais se sente agora; arruiná-la rapidamente e levar à morte a galinha
basta agitá-lo p a r a recolher à s mãos cheias a massa que forçais, por processos artificiais, a acelerar a sua
crepitante da sua sabedoria. Mas essa sabedoria está postura. E verdade que a ciência progrediu a uma velo-
podre e todas a s maçãs têm bicho. Acreditem-me, cidade extraordinária nos últimos decénios. [Mas
quando os homens duvidaram, sofreram, produziram na olhai-os, estes sábios, estas poedeiras extenuadas! Não
fábrica da ciência antes de atingirem a maturidade, a são, decerto, naturezas «harmoniosas», mas caca-
ciência não tarda a cair em ruínas, como acontece com rejam mais do que nunca, porque põem mais do que
os escravos prematuramente utilizados nas fábricas. nunca. Os ovos são cada vez mais pequenos, muito
Lamento t e r de recorrer ao vocabulário dos negreiros e embora os livros sejam cada vez mais volumosos. O
dos patrões para designar relações em que não deveria resultado final e o mais natural é a «vulgarização» tão
haver vestígios de utilitarismo, e deveriam estar isen- apreciada da ciência, ou seja, a sua «feminização», a
tadas das necessidades da vida, mas vieram involunta- sua «infantilização», dado que se tem a desonra de
riamente aos lábios, para descrever a mais recente gera- retalhar para um «público heterogéneo» a veste da ciên-
ção de sábios, a s palavras da fábrica, do mercado do cia - neste momento, estamos a utilizar um vocabulário
trabalho, de oferta e de procura, da produtividade e de alfaiate para designar uma actividade de alfaiate.
outros vocábulos próprios do egoísmo. A honesta medio- Goethe considerava isso um abuso e exigia que a s
cridade é cada vez mais medíocre, a ciência cada vez ciências se manifestassem no exterior, apenas por meio
mais produtiva, n o sentido económico da palavra. No de uma p r d t i m mpwim. As antigas gerações de
fundo, os sábios mais recentes são sábios apenas num sábios tinham boas razões para pensar que este abuso
era grave e inoportuno. Por boas razões também, este
abuso não pesa n a d a aos jovens cientistas modernos,
porque, para além de um pequeno domínio bem delimi-
tado do saber, eles são o tal público heterogéneo, e têm
as mesmas exigências. Só têm a instalar-se comoda-
mente nas suas poltronas e abrir à curiosidade necessi-
tada desse público variado o seu limitado campo cientí-
fico. Tal acto de complacência será qualificado logo
a seguir de «condescendência modesta do cientista para 8
com o seu povo», quando, no fundo, o sábio condescendeu
consigo próprio, com o que nele há de povo não de
cientista. Façai u m a ideia de povo, nunca será dema- Pode parecer surpreendente e até contraditório que
siado grande nem demasiado nobre. Se tivesseis uma eu atribua a uma época tão pronta a desatar aos gritos
ideia elevada de povo, seríeis misericordiosos para com de triunfo ruidosos e indiscretos a respeito da sua
ele e evitaríeis oferecer-lhe, à laia de tónico, o vosso cultura histórica, uma espécie de consciência irónica
ácido histórico. Mas, no fundo, a vossa estima pelo povo de si, o pressentimento de que não é talvez ocasião para
é muito débil, porque não podeis ter um respeito sin- festas, o temor de que talvez, em breve, terá terminado
cero e motivado pelo seu futuro; e tendes atitudes pessi- todo o prazer que o conhecimento do passado pode dar.
mistas, de homens que vivem com o pressentimento de Goethe propôs-nos um enigma do mesmo género rela-
uma catástrofe e isso os torna indiferentes e negligentes tivamente a algumas personalidades, no seu notável
para com a felicidade de outrem. Contanto que a terra estudo sobre Newton. Ele descobre no fundo de s i
ainda nos suporte! E quando deixar de nos suportar, próprio, ou talvez nas alturas de si mesmo, «o obscuro
continuará a estar bem. IÉ: isto o que eles pensam, e pressentimento da sua injustiça», algo como a expres-
vivem a sua existência c o m irmia. são, inteligível por momentos, de uma consciência supe-
rior que o julga e que atingiu uma visão irónica da
natureza, e que vive necessariamente nele. I3 assim que
vamos encontrar nos historiadores, cujo espírito atin-
giu o maior e mais elevado desenvolvimento, a ideia,
frequentemente tão atenuada que é tão-só uma espécie
de cepticismo universal, de que é um grande absurdo e
uma superstição crer que a educação de um povo deve
ser essencialmente histórica, como é nos nossos dias.
Não é evidente que a s nações mais vigorosas, quer pelos
seus actos quer pelas suas obras, viveram de modo
diferente, educaram de outro modo a sua juventude?
Mas este absurdo, esta superstição, objecta-se com e da consciência medievais. O lema, que a época moderna
cepticismo, é precisamente o que nos convém, a: nós lhe opõe, o memento vivere, ressoa ainda com uma certa
que chegámos tarde, Últimos rebentos anémicos de raças timidez, não é proclamado em voz alta, tem ainda algo de
vigorosas e joviais, nós(a quem se aplica a profecia de quase desonesto. Porque a humanidade está ainda fir-
Hesíodo, segundo a qual há-de aparecer uma raça de memente ligada ao seu memento mwiJ que ela traduz
homens de cabelos grisalhos e Zeus aniquilará a espécie na sua necessidade universal de história. A ciência,
quando esse sinal se tiver tornado manifesto. A cultura apesar de já-ter batido fortemente a s asas, ainda não
histórica é, com efeito, uma maneira de nascer com os conseguiu voar em pleno céu. O profundo desespero de
cabelos grisalhos, e o s que apresentam este sinal desde a que ela se deixou possuir tomou este verniz histórico que
infância chegam necessariamente à crença na velhice da ensombra agora toda a educação e toda a cultura supe-
humanidade. Mas à velhice convém uma ocupação de rior. Uma religião que, de todas a s horas da vida huma-
velhos : olhar para trás, totalizar, concluir, procurar na, considera a Última a mais importante, que prediz o
uma consolação no passado através da recordação; é fim de toda a vida sobre a terra e que condena todos os
a cultura histórica. Mas a raça humana é resistente, não seres vivos a viver perpetuamente apenas o quinto acto
gosta que se considere a sua actividade numa perspecti- de uma tragédia, desperta certamente a s forças mais
va de milénios, nem mesmo de centenas de milénios, profundas e mais nobres da alma, mas é inimiga de
quer para t r á s quer para a frente, ou seja, ela recusa-se qualquer plantação nova, de qualquer tentativa ousada,
absolutamente a s e r considerada por este átomo, este de toda a ambição; entrava qualquer passo na direcção
infinitamente pequeno que é o indivíduo humano. Que de um desconhecido de que ela não gosta e de que nada
podem significar alguns milénios, o tempo de 34 vidas espera; sujeita-se, contra vontade, ao fluxo do devir, que
humanas, considerando 60 anos como média, para que no ela espera repudiar ou sacrificar em tempo devido, e no
inicio deste período se possa falar de «juventude» e no qual vê uma força que nos atrai para a existência, que
fim de «velhice» d a humanidade? Não haverá antes, no nos mente a respeito do valor da existência. O cristia-
fundo desta crença paralisante, uma humanidade em nismo gostaria de fazer de uma cultura sempre em pro-
vias de degenerescência, um mal-entendido a respeito gresso e que tem como palavra de ordem o mernento vi-
de uma concepção teológica cristã herdada da Idade vere o que os Florentinos fizeram, sob a influência dos
Média, a ideia da iminência do fim do mundo, do Juízo sermões de Savonarola, quando organizaram autos-de-fé
Final, esperado no terror? Não será esse o pensamento com quadros, manuscritos, espelhos e máscaras. E como
que se esconde numa necessidade excessiva de formular não tem possibilidade de realizar os seus projectos direc-
os juízos da história como se o nosso tempo, o Último tamente, isto é, pela força, consegue à mesma esse seu
possível, tivesse autoridade para pronunciar sobre o objectivo aliando-se à cultura histórica, frequentemente
passado o Juízo Final, que a fé cristã não espera do ho- sem esta se aperceber. E então, falando em nome desta
mem, mas do Filho d o Homem? Outrora, este memento cultura, repudia com um encolher de ombros tudo o que
m w i J dirigido ao indivíduo e à humanidade, era um está em devir e espalha por todo o lado o sentimento de
aguilhão cruel, uma espécie de espada afiada da ciência que tudo vem demasiado tarde, de que tudo se reduz
a acção de epígonos, em suma, de que todos nós conhecer que é incontestavelmente histórica; compete
nascemos com cabelos grisalhos. A ideia austera e à história resolver o problema da história, o saber
profunda d o não-valor do passado, a ideia deve necessariamente voltar o seu aguilhão contra si
de que o mundo está amadurecido para o Juizo, próprio - esta tripla obrigação é o imperativo do espí-
refugiaram-se neste pensamento céptico: em qual- rito dos «tempos novos», se é que eles têm algo de novo,
quer caso, é bom conhecer o passado, porque é de poderoso, de vital, de original. Ou será verdade que
demasiado tarde p a r a fazer melhor. O sentido histórico nós, alemães -para deixar de parte a s nações români-
impõe, deste modo, aos seus servidores uma atitude cas -, em todos os sectores superiores da cultura não
passiva e retrospectiva, e é quase só quando há esqueci- passamos de epígonos, porque não podemos ser mais
mento momentâneo ou intermitência deste sentido histó- nada, de acordo com o que Wilhelm Wackernagel expri-
rico que o homem, presa da febre histórica, consegue miu nesta definição digna de ser meditada: <<Nós,ale-
agir; depois, passada a acção, procura dissecá-la, blo- mães, somos, no fundo, uma nação de herdeiros; mes-
quear o seu efeito analisando-a, escalpelizando-a para mo na nossa alta ciência, na nossa religião, não
dela fazer história. Neste sentido, pode-se dizer que passamos de epígonos do mundo antigo. Até aque-
vivemos ainda na Idade Média, que a história entre nós les que se recusam, respiram continuamente a
é uma teologia camuflada, assim como o respeito teste- atmosfera do cristianismo e o espírito imortal da
munhado pelo profano à casta dos historiadores não é cultura antiga; e se fosse possível eliminar estes dois
outra coisa senão o respeito atávico manifestado para elementos do a r vital em que mergulha a nossa vida
com o clero. O que outrora se dava à Igreja dá-se agora, icterior, não ficaria grande coisa para alimentar a vida
mais parcimoniosamente, à ciência, mas foi a Igreja que do espírito.» Mesmo que gostemos de nos tranquilizar
conseguiu noutros tempos que lhe fosse tributado esse pelo pensamento de que a nossa vocação é sermos her-
respeito, e não o espírito moderno que, entre outras vir- de&os da Antiguidade, mesmo que decidamos levar
tudes louváveis, é, como se sabe, um tudo nada avarento muito a sério esta vocação, realizá-la com grandeza e
e um molengão em matéria de liberdade, virtude aris- reconhecer esta decisão como o nosso Único e caracterís-
tocrática. tico privilégio, somos obrigados a interrogar-nos sobre
É possível que esta opinião desagrade, talvez não se o nosso destino eterno consistirá em sermos discipu-
menos que a dedução que vê no memento m w i medieval 10s da Antiguidade decadente. Talvez um dia nos venha
e no pessimismo que o cristianismo manifesta relativa- a ser permitido apontar para um objectivo mais elevado
mente ao futuro da vida sobre a terra, a origem do e longínquo, talvez um dia possamos gabar-nos de ter
a.buso da história. pode tentar-se substituir por uma cultura alexandrina e romana, e possamos então pro-
explicação melhor esta que eu apresento, também por-nos uma tarefa mais grandiosa ainda, como a mais
ccjm alguma hesitação. Porque a origem da cul- nobre das recompensas: i r para além deste mundo ale-
tura histórica e d a sua hostilidade profunda, absolu- xandrino e procurar corajosamente os nossos modelos
tamente radical, para com o espírito de um tempo novo, no mundo grego arcaico da grandeza, do humano e do
de uma consciência moderna, esta origem, é preciso re- natural. Lá iremos encontrar a redidade de m a wl-
mento triste e paralisante considerarmo-nos os rebentos
por esta razão, i n f h i t a m m t e rica e viva. Se nós fosse- tardios de todos os tempos, mas o que é terrível e des-
mos apenas epígonos, como poderíamos, considerando truidor é que esta filosofia, por uma impudente revira-
esta cultura como herança que nos está destinada, volta, tenha divinizado o que chegou tarde, como se
continuar a não s e r nada de mais digno e grande do que ele fosse o sentido e o fim de toda a evolução anterior.
epígonos ? Estes reles mestres-escola identificaram-se com a histó-
Com isto quero dizer uma coisa, nada mais: mesmo ria universal. Este modo de pensar habituou os alemães
o pensamento d e se ser apenas epígono, se pensado a falar do «processo universal)) e a justificar o seu
com grandeza, pode garantir ao indivíduo e à nação próprio tempo como o resultado necessário desse pro-
grandes possibilidades de acção e uma visão do futuro cesso; como consequência, instalou a história no lugar
cheia de esperança, na medida em que nos sentirmos de todas a s outras forças espirituais, arte e religião,
herdeiros e descendentes de forças plásticas prodigiosas como senhora exclusiva, na medida em que ela é «a ideia
e em que virmos nesse facto a nossa honra, o estímulo que se realiza por si», a «dialéctica dos génios nacionais)}
que nos impele p a r a a frente. Portanto, nada de comum e o autêntico Juizo Final.
com os pálidos rebentos estiolados de raças vigorosas, A história, compreendida à maneira de Hegel, foi
que arrastam u m a vida incerta de antiquários e de denomidada, ironicamente, a acção de Deus sobre
coveiros. Esses rebentos tardios vivem uma existência a terra, não passando o próprio Deus de uma
irónica, o nada persegue o curso hesitante da sua vida, criação da história. Mas esse Deus, dentro dos crâ-
porque eles são memórias vivas, e, todavia, a sua memó- neos hegelianos, tornou-se transparente e inteligível
ria não tem sentido se eles não forem herdeiros. Assim, a si mesmo e subiu já dialecticamente todos os degraus
envolve-os o obscuro pressentimento de que a sua vida do seu devir até à revelação de si mesmo; de tal maneira
é um pecado, porque nenhuma vida futura virá justi- que para Hegel o cimo e o termo do processo universal
ficá-la. acaba por coincidir com a sua própria existência berli-
Mas s e virmos estes rebentos com vocação de anti- nense... Deveria mesmo ter dito que tudo o que viesse de-
quários trocar repentinamente a sua impertinência por pois dele não teria mais valor do que a coda do rondó
uma resignação irónica e dolorosa, se os imaginarmos universal ou, mais precisamente, seria supérfluo. Não o
a proclamar com voz estridente que a raça atingiu disse; em compensação, implantou nas gerações impreg-
o zénite, porque finalmente ela se conhece e se revelou nadas pelo seu pensamento a admiração pela «poeira
a s i mesma, tal espectáculo permitir-nos-ia decifrar, da história», que se metamorfoseia em cada instante na
~

como numa parábola, a significação enigmática admiração aberta pelo sucesso e conduz à idolatria do
que pode t e r para a cultura alemã uma certa filosofia real- culto idolátrico que generalizou a fórmula mitoló-
muito célebre. Creio que neste século não houve oscila- gica e autenticamente alemã de «fazer justiça aos fac-
ções nem viragens perigosas que a influência prodigiosa, tos». Mas quando se aprende a curvar a espinha e a bai-
sensível ainda hoje, desta filosofia, o hegelianismo, não xar a cabeça diante do «poder da história», acaba-se por
tenha tornado mais perigosas. Na verdade, é um pensa- aprovar com a cabeça, como um bonzo chinês, qualquer
poder, quer seja d o governo ou da opinião pública ou também o juiz destas flagrantes imoralidades. Por
da maioria do número, e por agitar os membros em obe- exemplo, é uma ofensa à moral Rafael ter morrido com
diência estrita a quem tem nas mãos os fios. Se qual- 36 anos; um ser como ele não deveria morrer. Mas se
quer sucesso é devido a uma necessidade racional, se quiserdes vir em auxílio da história e justificar o real,
qualquer acontecimento é uma vitória da lógica ou direis: Se tivesse vivido mais tempo, repetiria o tipo de
d a «Ideia», então punhamo-nos de joelhos perante beleza que criara e não criaria uma beleza nova, e outras
toda a espécie de sucessos. Quê? Desapareceram as razões do mesmo género. Tornais-vos, assim, os advoga-
mitologias soberanas? Estarão a s religiões a ago- dos do diabo, escolhendo para ídolo o sucesso, o facto
nizar? Olhai uns instantes para a religião do poder consumado, quando o facto é sempre absurdo e foi sem-
da história. Observai os sacerdotes da mitologia das pre mais parecido com um bezerro do que com um deus.
ideias e os seus joelhos esfolados. As próprias vir- Apologistas da história, é a ignorância que vos inspira
tudes, não marcham todas elas atrás desta nova crença? estas afirmações. Ê porque ignorais o que é uma
Ou não será abnegação quando o homem histórico se n a t u ~ anakurans como Rafael que vos é indiferente
deixa humilhar até ao estado de espelho objectivo? saber se ela existiu ou se já não existirá. A respeito
Não será magnanimidade renunciar a todos os d? Goethe, quiseram recentemente ensinar-nos que, aos
poderes do céu e da terra porque em todos estes 82 anos, já tinha esgotado todas a s suas virtualidades.
poderes se adora o poder em s i ? Não será jus- E, contudo, não me importaria de dar alguns anos desse
tiça t e r permanentemente nas mãos a balança das Goethe «esgotado» em troca de carradas inteiras
forças e examinar minuciosamente qual é a mais forte dessas vidas activas e hipermodernas, só para poder
e mais pesada? E que escola de conveniências é este beneficiar de encontros como os que Goethe teve com
modo de encarar a história! Julgar objectivamente Eckermann e assim livrar-me da doutrina dos legioná-
tudo, não s e irritar com nada, não amar nada, tudo rios do tempo presente. São muito poucos os vivos que
compreender, suaviza e torna maleável. E se o homem têm o direito de viver diante de tais mortos. Que tantos
educado nesta escola se irritar alguma vez em público, homens estejam ainda em vida quando essas personali-
isso será motivo d e júbilo, porque se sabe que ele dades raras já não vivem, é uma estupidez incorrigível,
o faz como artista; nele, a ira et studium é sempre um grave <<éassim» oposto ao «não deveria ser assim»
sine i r a et studio. da moral. Sim, oposto à moral. Porque qualquer que
Que sentimentos desactualizados tenho no coração seja a virtude de que se fala- justiça, generosidade,
contra este combinado de mitologia e de virtude! Mas bravura, sabedoria, piedade para com os humanos - o
poderemos rir-nos, eles é que têm de exprimir-se. Direi homem só é virtuoso quando se revolta contra a força
então que a história não cessa de repetir-se: «Era uma cega dos factos, contra a tirania do real e quando
vez.. .». A moral diz: <<Enecessário que seja assim.. .» se sujeita a leis que não são a s que regem situações
ou «Não deveria ser assim.. .». E a história transfor- históricas dadas. Nada sempre contra a corrente
mou-se no reportório das mais flagrantes imoralidades. da história, quer lutando contra a s suas paixões,
Enganar-nos-íamos se pensassemos que a história 6 que são para ele a realidade mais próxima e estúpida,
Se a história não passasse de «um sistema universal
de paixões e de erros», o homem deveria lê-la como
Goethe aconselhava a ler Werther: «Sê homem e não
me imites». Mas, felizmente, a história guarda também
a lembrança daqueles que foram grandes lutadores
contra a história, isto é, contra a força cega do real,
ela própria se amarra ao pelourinho pondo em evidên-
cia como personalidades verdadeiramente históricas
aquelas que se preocupam pouco com o «é assim» e que
obedecem orgulhosamente e com alegria ao «isto é que Será o nosso tempo fundador de uma raça?
deve ser». O que as atira incessantemente para a frente De facto, a veemência do seu sentido histórico é tal e
não é o desejo de sepultar a espécie, mas de fundar uma fala uma linguagem tão universal, tão desdenhosa
raça nova. E mesmo que fossem retardatários, h á uma de fronteiras, que a s épocas vindouras, neste ponto
maneira de viver que pode fazê-lo esquecer - a s gera- ao menos, hão-de celebrar a sua força inovadora, se
ções futuras considerá-los-ão como antepassados da acaso houver épocas futuras, no sentido em que a cultu-
sua raça. r a o entende. Mas neste momento aparece uma dúvida
grave: muito próximo do orgulho do homem moderno
há a sua auto-ironia, a consciência que ele tem de dever
viver numa ambiência historicizante e como que crepus-
cular, o seu temor de nada poder salvar, para o futuro,
das suas experiências e das suas forças juvenis. Daqui
vai-se mais longe, até ao cinismo,e justifica-se o curso
da história e da evolução universal do ponto de vista
preciso do homem moderno, em virtude deste cânone
cínico: foi preciso chegar ao ponto em que nos encon-
tramos, foi preciso que o homem se transformasse no
que hoje é, e ninguém tem o direito de se revoltar contra
esta necessidade. Os que não suportam o clima de iro-
nia refugiam-se no sentimento de bem-estar oferecido
pelo cinismo. O Último decénio oferece-lhes, além disso,
como presente, uma das suas mais belas invenções, uma
definição completa e plena do cinismo e da sua arte de
viver em harmonia com o seu tempo, sem qualquer
escrúpulo. A ísso chama ele «o abandono total da per- de caminhar, de subir no teu conhecimento, é a tua
sonalidade a o processo universal». Personalidade e pro- fatalidade. A terra firme afunda-se debaixo de ti, no
cesso universal! Processo universal e personalidade do incerto. Já não tens escoras para a vida, além de algu-
pulgão! Ouvir perpetuamente repetida a maior de todas mas teias de aranha que qualquer novo progresso des-
as hipérboles: o universo, o universo, o universo! Quan- trói. Mas basta de'falar seriamente de tudo isto, pois
do o sábio, por muito pouco honesto que ,seja, devia falar que h á maio de falar agradavelmente.
apenas do homem, do homem, do homem! Herdeiros O hábito furioso e irreflectido de escalpelizar todos
dos Gregos e dos Romanos? Herdeiros do cristianismo? os fundamentos sólidos, de os dissolver num devir fluido
Nada disso conta para os cínicos. Mas herdeiros do e fugidio, o modo como o homem moderno, essa grande
processo universal! Cumes e alvos do processouniversal! aranha colocada no centro da teia universal, tira o seu
Sentido e soluções de todos os enigmas do devir tais fio do passado para dele fazer história, tudo isto pode
como se apresentam ao homem moderno, fruto maduro ocupar e inquietar o moralista, o artista, o homem
da árvore do Conhecimento! Tendes motivo para vos or- piedoso, e também o homem de Estado. Para já, vamos
gulhar. 13 assim q u e se reconhecem os chefes de fila de divertir-nos vendo todas estas coisas no brilhante
todos os tempos, mesmo que cheguem tarde. Nunca espelho mágico do filósofo parodkta, na cabeça do qual
o pensamento se desenvolveu tanto, mesmo em sonho, o tempo chegou à contemplação de si próprio, irónica
porque agora a história do homem não é mais do que e distintamente, «até à infâmia», para dizer como
a continuação da história dos animais e das plantas; Goethe. Hegel ensinou-nos que «sempre que o espírito
até n a profundidade Última das espécies, o histo- avança, nós, os filósofos, avansamos com ele». Ora o
riador do universo encontra vestígios seus no plasma. nosso tempo deu um passo à frente, chegou à auto-
vivo; considerando milagroso o caminho imenso que o -ironia e eis que Eduard von Hartmann estava pre-
homem já percorreu, o olhar tem vertigens ao con- sente para escrever a sua famosa Filosofia do Incons-
templar o milagre mais surpreendente ainda, o homem ciente, ou melhor, a sua filosofia da ironia consciente.
moderno, capaz d e abarcar com o olhar o caminho Poucas vezes lemos uma invenção mais alegre, uma
perdido. Eleva-se orgulhosamente até ao cume da batota mais filosófica do que a de Hartmann. Se ele
dit pirâmide do processo universal; e, colocando aí o não nos informa, não nos ilumina a respeito do incons-
fecho de abóbada do seu conhecimento, parece procla- ciente, é que nós já deviamos ter morrido. A origem
mar à natureza circunstante: Eis-nos no fim! Nós e o fim da evolução universal, do primeiro sobressalto
somos o fim! Nós somos a natureza na sua perfeição! da consciência até ao regresso catastrófico ao caos, a
Europeu loucamente orgulhoso do século XIX, tu tarefa exacta da nossa geração na evolução universal,
deliras. Longe de completar a natureza, o teu saber tudo extraído da fonte inspiradora e engenhosamente
mata a tua própria natureza. Compara a altura do inventada do Inconsciente, e iluminado por reverbera-
teu saber com a humildade do teu poder. Sem dúvida, ao ções apocalípticas, tudo copiado com tal seriedade,
subires pelos raios de sol do teu conhecimento, elevas-te com uma tal honestidade e uma semelhança tão perfeita
até a o céu, mas desces também para o caos. O teu modo que poderia pensar-se que se trata de uma filosofia
autêntica a levar a sério, e não de uma filosofia para o operário levará uma vida confortável, com um horá-
r i r - um tal conjunto assegura ao seu autor a situação rio de trabalho que lhe há-de deixar tempo livre
de um dos primeiros filósofos parodistas de todos os para a sua formação intelectual, Intrujão, mil vezes
j.
tempos. Ofereçamos no seu altar uma madeixa de cabe- intrujão! Como exprimes bem a nostalgia da huma-
los, como se s e tratasse do inventor de uma panaceia,
para roubar a Schleiermacher esta fórmula admirativa. i nidade presente. Mas t u sabes também qual é o fan-
tasma que, se leavntará no fim desta idade viril da
Efectivamente, que panaceia haverá que seja mais humanidade, como resultado da formação intelectual
eficaz contra o abuso da cultura histórica do que a I
dada à mediocridade honesta: será a náusea. Ê evidente
paródia feita por Hartmann à história universal? 6
que tudo corre mal, lamentavelmente mal, mas tudo
Se se quisesse exprimir secamente o que Hartmann irá. lamentavelmente pior, <<évisível que o Anti-Cristo
anuncia do alto do s e u tripé, por entre o fumo da ironia ganha terreno)). Mas é preciso que seja assim, que
inconsciente, seria necessário dizer que ele anuncia aconteça assim, porque com tudo isto estamos no bom
qu? o nosso tempo deveria ser exactamente o que é, caminho, que leva à náusea de tudo o que existe.
se a humanidade ficasse realmente farta desta existên- «Caminhemos, pois, energicamente no caminho da evo-
cia, o que nós cremos de todo o coração. Essa temível lução universal, como operários na vinha do Senhor,
ossificação do tempo, esse perpétuo ranger de ossos, porque é o Único processo que conduz à redenção».
que David Strauss ingenuamente pintou como a mais A vinha do Senhor. O processo. A redenção. O que
bela das realidades, são justificadas por Hartmann não se pode ver e ouvir não é a cultura histórica que só
s6 a posteriori, ex causis efficientibus, mas também conhece o devir, que se disfarça propositadamente numa
a priori, ex causa finali. O brincalhão projecta sobre o paródia caricatura1 e que, através da máscara que lhe
nosso tempo uma luz de Juízo Final e resulta dai que cobre o rosto, enuncia sobre ela a s mais fantasistas
este tempo é muito bom, pelo menos para quem, dese- proposições? Porque o que é que o Último apelo deste
jando sofrer'o mais possível de tudo aquilo que a vida intrujão exige aos operários da vinha? E m que tra-
tem de indigesto, não deseja para muito próximo o balho devem eles progredir energicamente? Por outras
advento do último dia. E verdade que Hartmann chama palavras, o homem que beneficiou de uma cultura his-
«idade do homem» à época de que a humanidade se tórica, o moderno fanático do processo, quer nade,
aproxima. Mas se dermos crédito à sua descrição, é o quer se afogue no rio do devir, que pode fazer ainda
estado de bem-aventurança em que há tão-só uma «ho- se quiser recolher os frutos preciosos desta vinha,
nesta mediocridade» e em que a arte corresponde «ao a náusea? Bastar-lhe-á continuar a viver como viveu,
que é para o banqueiro a comédia-bufa que alegra os a amar o que amou, a odiar o que odiou e a ler os
serões». E a época em que já não h á necessidade de jornais que sempre leu. Há só um pecado para ele:
qénios, porque seria lançar pérolas a porcos ; para mais, viver de modo diferente do que viveu. Mas como
essa época ultrapassou o estádio em que há necessidade viveu? Di-lo com uma clareza lapidar uma página
de génios, porque atingiu uma fase mais avançada e célebre, com as suas máximas impressas em maiús-
mais importante, o estádio de evolução em que todo culas, que excitou o cego êxtase e o furor encan-
tado da escória d a cultura moderna, a qual julgou ler e canonizava o evangelho cómico de Hartmann, apli-
nestas frases a sua autojustificação iluminada pelo fogo cando toda a honestidade da «German mind» e até
de um apocalipse. Poraue este parodista inconsciente com a «seriedade cheia de esgares do mocho», como diz
exigia de qualquer indivíduo <<oabandono total da per- Goethe. Mas é preciso que o mundo avance, não basta
sonalidade à evolução universal cujo fim é a redencão sonhar com este estado ideal, é necessário merecê-lo
universal». Ou, d e modo mais claro, mais luminoso pela luta e pelo combate, e é pela hilaridade que passa
ainda: «Proclamaremos provisoriamente que a afirma- o caminho da redenção que nos há-de libertar dessa gra--.
ção do querer viver é a única legítima, pois só pelo aban- vidade hostil de mocho. Virá o tempo em que nos abste-
dono total à vida e à s suas dores, e não através de uma remos prudentemente de reconstruir pelo pensamento a
resignação fraca e d e um abandono egoísta se pode ser- evolução universal, ou, simplesmente, a história da hu-
vir a evolução universal ... O esforço para a negação manidade, o tempoem que não haverá consideração pelas
individual do querer viver é igualmente louca e igual- massas mas tão-só pelos indivíduos que formam como
mente inútil, mais louca ainda que o suicídio... O que uma espécie de ponte por cima da torrente drsor-
leitor avisado compreenderá, sem mais, qual é a forma denada do devir. Esses não constroem a evolução, vivem
que uma filosofia prática baseada sobre estes prin- fora do tempo, e, contudo, graças à história que Ihes
-. cípios pode assumir, e que só ela pode trazer, não possibilita uma colaboração, constituem a repíiblica de
o desacordo mas a plena reconciliação com a vida». génios de que falou Schopenhauer. Para lá dos interva-
O leitor avisado compreenderá ... E houve quem los desérticos do tempo, um génio chama outro, e sem
não compreendesse Hartmann. Como é divertido pensar se deixarem perturbar pela algazarra dos anões turbu-
que pôde s e r mal compreendido. Teriam os alemães lentos que grasnam por debaixo deles, prossegue o alto
modernos adquirido tanta finura? Um inglês atento diálogo dos espíritos. A missão da história é servir de
- acha que Ihes falta «delicacy of perception» e tem intermediário entre eles, permitir o nascimento do
mesmo a ousadia d e dizer: «In the German mind there homem de génio e dar-lhe forças. Não, o objectivo final
does seem t o be something splay, something blunt- da humanidade não está no seu termo, mas nos seus
-edged, unhandy a n d unfelicitous.» O grande parodista exempZares stupmiores.
protestará? Ê verdade que, na sua opinião, nós estamos Neste momento, onossocómico objectará com admii
R aproximar-nos desse estado ideal «em que a raça rável dialéctica, tão autêntica quanto são admiráveis
humana há-de construir conscientemente a sua histó- os seus admiradores, que como não é compatível com
ria». Mas é claro que estamos bastante mais longe a ideia de evolução atribuir ao processo uma duração
desse estado ainda mais ideal em que o homem há-de infinita no passado, porque nesse caso toda a evolução
ler conscientemente o livro de Hartmann. Uma vez che- iniaginável já teria transcorrido, o que não é eviden-
gados a esse ponto, ninguém deixará vir aos seus temente o caso (ai, o malandro!), também não podemos
lábios a palavra evolução universal sem um sorriso; atribuir a este processo uma duração ilimitada no futu-
porque lembrar-se-ão, nesse momento, do tempo em que ro; um e outro excluiriam a noção de uma evolução
se escutava, assimilava, contestava, honrava, difamava orientada para um fim (malandro, mais uma vez!)
e aproximariam a evolução do trabalho inútil das Danai- exagerado do devir, que prejudica a vida, o ser, contra
des. Mas o triunfo completo da lógica sobre o ilogismo a inversão inconsiderada de todas a s perspectivas. E
(mil vezes malandro!) deve coincidir com o fim tempo- será sempre necessário dizer, em louvor do autor da
ral do processo universal, o Juízo Final. Não, espírito Filosofia do Inconsciente, que ele foi o primeiro a
claro e altivo, enquanto o ilogismo reinar como hoje, ter sentido vivamente o que há de risível no conceito de
enquanto, por exemplo, se puder falar do processo «processo universal», e a tê-lo feito sentir mais viva-
i

universal no meio da aprovação geral, estaremos ainda mente ainda através da extraordinária seriedade da
longe do Juízo Final, porque ainda há alegria a mais sua descrição. Porque é que «o mundo» existe, por-
nesta terra, porque há um número excessivo de ilusões, que existe a humanidade? Preocuparmo-nos com isso,
por exemplo, a s que os teus contemporâneos têm a teu é só para nos divertirmos, porque a presunção do mais
respeito, não estamos ainda amadurecidos para sermos pequeno dos vermes da terra é o que há de mais
lançados no teu nada, porque continuamos a acreditar cómico e pitoresco na cena do mundo. Mas porque
que tudo seria mais alegre cá em baixo se começassem é que t u existes, tu, ser individual, pergunta-o a ti
a compreender-te, inconsciente incompreendido! Se, próprio, e se ninguém é capaz de to dizer, tenta jus-
todavia, um pesado desgosto nos assaltar, como o tificar a priori o sentido da tua existência pelo facto
profetizaste aos teus leitores, se tivesses razão na tua de lhe dares uma finalidade, porque não conheço
descrição do presente e do futuro- e ninguém mais melhor razão para viver do que morrer por uma
que tu desprezou nem exprimiu melhor esse desprezo por grande causa, por um desígnio impossível, animae
um e por outro - estou pronto a juntar o meu sufrá- magnae prodigus. Se, pelo contrário, as doutrinas
gio ao da maioria, nas formas propostas por ti, do devir soberano, da fluidez de todas as noções, de
para afirmar que o mundo deve acabar sábado à meia- todos os tipos, de todas as raças, a ideia da ausência de
-noite em ponto. Concluiremos que a partir de amanhã diferença essencial entre o homem e o animal - ideias
o tempo passou, que não voltará a aparecer mais que eu considero verdadeiras mas mortais -ainda vão
nenhum jornal. Talvez o efeito não venha a produzir-se, ser lançadas ao público durante uma geração, o que é
e entãd a nossa decisão terá sido vã; nesse caso, tere- possível concluir da fúria de educação actual, ninguém
mos ainda ocasião p a r a fazer uma bela experiência. se admirará que a nação morra por tanta miserável
Tomaremos nas mãos uma balança e colocaremos num mesquinhez, por tanta ossificação e egoísmo, e que
dos pratos o Inconsciente de Hartmann e no outro o comece a desagregar-se como nação. Em vez de uma
processo universal de Hartmann. Há pessoas que crêem nação hão-de surgir talvez, sobre a palco do futuro, asso-
que os pratos se equilibram, porque são fórmulas ciações de egoísmos individuais, fraternidades com o
igualmente más e duas brincadeiras. Logo que se com- fim de explorarem pelo banditismo todos aqueles que
preender a brincadeira de Hartmann, ninguém voltará não fazem parte delas, e outras criações do utilitarismo
a empregar o termo bárbaro «processo universal», vulgar. Continue-se, portanto, para preparar essas
excepto por brincadeira. Na realidade, já é tempo de criações, a escrever a história na óptica das
atirar a convocação d a s malícias satíricas contra o gosto massas, procurando nelas as leis que se deduzem

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das necessidades das massas, isto é, leis que regulam cia sobre a s massas; o sucesso do cristianismo, a sua
os movimentos das camadas inferiores, das camadas de «força histórica», a sua duração, tudo isso não prova
argila e de greda da sociedade. As massas merecem nada, felizmente, em favor da grandeza do seu fundador;
algum interesse apenas por estes três motivos: copiam a testemunhar, seria contra ele. Mas entre ele e o seu
vagamente os grandes homens, de acordo com clichés sucesso histórico interpõe-se uma camada de paixão mui-
gastos; oferecem uma resistência aos grandes; enfim, to terrestre e confusa, de erro, de necessidade Se prazer
são instrumentos dos grandes. Quanto ao resto, que vão e de domínio, de sentimento e de honra, forças a agir
para o diabo e a estatística com elas. O quê? A esta- constantemente no imperium romanum. Desta camada
tística provaria que h á leis na história! Leis? o cristianismo conservou o seu gosto pela terra, esse
Demonstra primordialmente que a massa é vulgar e de resto de terra que lhe permitiu continuar neste mundo
uma repugnante uniformidade. Poderá chamar-se lei aos e, de certa maneira, lhe deu consistência. A grandeza
efeitos de uma qualquer destas forças de gravidade a não deve depender do sucesso, e Demóstenes é grande
que se dá o nome de parvoíce, imitação simiesca, amor e não teve sucesso. Os mais puros e mais autênticos
e fome? Seja. Mas o princípio permanece: na me- adeptos do cristianismo entravaram e comprometeram
dida em que h á leis e m história, essas leis não têm o seu êxito secular, a sua pretensa força histórica, mais
qualquer valor e a história também não vale nada. Ora, do que o favoreceram, porque se colocavam frequente-
é justamente esse género de história que presentemente mente fora do «mundo» e não se preocupavam nada com
tem grande voga, a que considera os grandes instintos de <o processo da ideia cristã» ; essa a razão do seu anoni-
massa como o que há d e essencial e de mais importante mato dentro da história. Em termos cristãos, o diabo
na história e vê nos grandes homens apenas a expres- é o senhor do mundo, o mestre do êxito e do progresso.
são rigorosa dessas leis, como bolhas que se formam à E a verdadeira força dentro das forças histjricas e, fun-
superfície da inundação. damentalmente, há-de ser sempre assim, por mais desa-
Afirma-se que a massa há-de produzir a gran- gradável que isso soe a ouvidos acostumados a ouvir di-
deza, que o caos d a r á à luz a ordem; e, para vinizar o sucesso e a força da história. Essa força traba-
acabar, entoa-se o hino em louvor da fecundidade lhou muito para mudar o nome à s coisas e ?ara rebapti-
da massa. Dá-se o nome de «grande» a tudo que zar o diabo em pessoa. A hora presente corre um grave
agitou por momentos a massa, tudo o que foi, como se perigo. Os homens estão prestes a descobrir que o
diz, uma «força histórica». Mas não será isso confundir egoísmo do indivíduo, dos grupos e das massas serviu
claramente qualidade com quantidade? Se a massa sempre de alavanca aos movimentos da história; mas,
obtusa encontrou um pensamento adaptado a ela, por ao mesmo tempo, esta descoberta não inquieta nin-
exemplo, um pensamento religioso, se ela o defender guém; pelo contrário, decreta-se que o egoismo deve ser
teimosamente e o arrastar atrás de si ao longo de sécu- o nosso deus. Nesta crença nova estão os fundamentos
los, dir-se-á então, e só então, que o inventor e fundador da história futura sobre o egoismo, com uma intenção
de tal pensamento foi grande. E porquê? As qualidades bem definida; mas é preciso que o egoismo seja pruden-
mais nobres e mais excelentes não têm qualquer influên- te, que aceite certos limites para poder consolidar-se, que
tude a história-para ver o que é um egoí
mos ciosamente os direitos da nossa juventude;
uma missão muito especial no futuro sistema universal
não nos cansaremos de defender na nossa juventude
dos egoísmos. Deve passar a ser o patrão de todos
o futuro, contra aqueles que querem destruir a nossa
os egoísmos inteligentes, a fim de os proteger com toda
imagem do futuro. Mas até neste combate teremos de
a sua força militar e policial das terríveis erupções dos
fazer a seguinte constatação : f avovecerm-se expressa-
egoismos ininteligentes. Pela mesma razão, a história,
mente, encorajam-se, utilixarn-se os excessos do sentido
a. dos homens e a dos animais, introduz-se prudentemen-
histórico de que o presente sofre.
t 2 nas massas populares e nas massas operárias, perigo-
Mas é contra a juventude que são utilizados, para
sas porque não têm sabedoria, porque se sabe que uma
a guindar à maturidade viril do egoismo que se apre-
suspeita de formação histórica é susceptível de despe-
senta como objectivo; são utilizados para destruir
daçar a cobiça, os instintos obscuros e grosseiros e de
a resistência natural da juventude, por meio de uma
os conduzir pelos caminhos do egoismo requintado. E m
iluminação enganadora mágico-científica. Mais, sabe-se
suma, para falar como E. von Hartmann, «o homem
bem demais o que a história pode, dada a preponderbn-
projecta preparar n a pátria terrestre uma morada
cia que ela adquiriu. Pode extirpar os mais vigorosos
prudentemente orientada- para o futuro, habitável e prá-
instintos da juventude: o ardor, a insolência, a dedica-
tica». O mesmo escritor qualifica este período como
ção e o amor. Pode temperar o ardor do sentimento da
idade viril da humanidade, muito embora faça troça
justiça, recalcar ou reprimir o desejo de uma matura-
daquilo a que hoje s e chama viril, como se esta palavra
çãó lenta, opondo-lhe o desejo contrário de fazer
só conviesse a um egoismo avisado. Prediz que há-de
depressa, de ser Útil e fecundo; pode entregar à dúvida
vir depois uma idade de senilidade, só para zombar dos
corrosiva a probidade e a ousadia do sentimento. A
nossos velhos tão bem adaptados ao seu tempo, porque
história é mesmo capaz de tirar à juventude o seu mais
ele fala da maturidade reflectida com a qual eles con-
belo privilégio: a energia com que ela, no excesso
templam «todas as violentas contrariedades da sua vida
da sua fé, implanta em s i um grande pensamento, a fim
anterior e compreendem a inutilidade dos pretensos
de fazer crescer no seu seio um pensamento ainda maior.
objectivos dos seus esforços passados». Não, a uma
Um certo excesso de história é capaz de tudo isto, atra-
idade viril animada por este egoismo prudente e for-
vés do deslocamento das perspectivas e pela supressão
mado na cultura histórica, corresponde uma velhice
de uma atmosfera envolvente; só permite ao homem que
agarrada à vida com uma avidez repugnante, sem qual-
haja e sinta historicamente. Com a fuga aos horizontes
quer dignidade, depois um último acto no qual «esta
infinitos, o homem refugia-se em si mesmo, no mais
história, nas suas estranhas vicissitudes, desagua numa
exíguo dos domínios egoístas que haja e, fatalmente,
segunda infância, sem memória, sem olhos, sem dentes,
murcha e seca. Talvez alcance a prudência, mas nunca
sem gosto, sem nada 3>>.
a sabedoria. Aceita que falem com ele, calcula os
Os perigos que ameaçam a nossa vida e a nossa
factos e acomoda-se a eles; não se revolta, pisca
cultura provêm destes velhos decrépitos, sem dentes,
os olhos e procura a s suas vantagens ou a s do seu
partido para vantagem ou prejuízo de outrem. Esque-
ce-se do pudor supérfluo e transforma-se gradualmente
no adulto ou no velho descritos por Hartmann. M ~ éS
exactamente a isso que ele deve chegar, é justa-
mente.esse o sentido do «completo abandono da persona-
lidade ao processo universal», que é cinicamente exi-
gido dele-porque o termo é a redenção do mundo,
como nos assegura o malandro do Hartmann. Seja! A
vontade e o objectivo destes «adultos» e destes «velhos»,
segundo Hartmann, só pode ser a redenção do mundo,
mas o mundo estaria mais liberto se se livrasse deles, Pensando na juventude, grito: Terra, terra! Já
porque viria logo a seguir o reino da juventude. basta de procura apaixonada e de erros, de viagem
por sombrios mares desconhecidos. Aparece terra firme.
É urgente acostar, seja qual for a costa; o abrigo do
mais miserável porto de acaso vale mais do que ser ati-
rado para este infinito de cepticismo e de desespero.
Primeiro acostemos, encontraremos depois os portos
favoráveis e havemos de facilitar o desembarque aos
nossos descendentes.
Navegação perigosa e emocionante! Como estamos
longe do pacífico estado de contemplação em que vimos
aparelhar o nosso navio. Ao tentarmos descobrir os
gerigos da história, expusemo-nos mais do que ninguém
a esses mesmos perigos. Trazemos em nós os estigmas
dos males que cairam sobre os homens do nosso tempo,
como consequência do abuso da história, e estas pági-
nas, quer pelo seu exagero crítico, quer pelo universa-
lismo do seu humanismo e pela sua frequente passagem
da, ironia ao cinismo, do orgulho ao cepticismo, mos-
tram bem, devo confessá-lo, o seu carácter moderno, a
fraqueza da personalidade. E, contudo, tenho confiança
na força que me inspira e que, à falta de génio, conduz
o meu barco; confio na juventude que me guiou até
aqui; isto obriga-me a protestar contra a fo~rmaçáo
I
histórica imposta b juventude actaal; é por isso que - um saber falso ,e superficial. Falso e superficial, porque
o contestador exige que o homem moderno aprenda ? se tolerava a contradição entre a vida e o saber, porque
antes de mais a viver e só utilize a história se ela
estiver ao serviço da vida tal corno ele já a colnhece.
E preciso s e r jovem para compreender o sentido deste
protesto, e, tendo em conta a velhice antecipada da
I não se via o que a cultura das nações verdadeiramente
cultas tem de característico: a cultura só pode crescer
e desenvolver-se a partir da vida, ao passo que entre os
alemães é ,uma flor de papel decalcada sobre a vida,
juventude actual, é difícil ser bastante jovem para um xarope de açúcar deitado sobre um bolo e, por
adivinhar contra o que é que se protesta aqui. esta razão, mentirosa e estéril. Mas a educacão
Vou exemplificar : surgiu na Alemanha, ainda não da juventude, na Alemanha, parte j ~ s t a r h e n tdeita
~
há um sécula, entre alguns jovens, a intuição daquilo ideia falsa e estéril de cultura. A sua finalidade, que
a que se d á o nome de poesia. Será possível acre- parece muito pura e muito elevada, não é formar o
ditar que a s gerações precedentes e contemporâneas homem livre e culto, mas o sábio, o homem científico
nunca tenham falado dessa arte que Ihes parecia tão rapidamente utilizável, que se mantém afastado da
estranha e tão contrária à natureza? Sabemos, pelo con- vida para melhor a ver. O resultado, visto do
trário, que elas reflectiram com todas a s suas forças ângulo do empirismo vulgar, é o filisteu culto, empan-
sobre a poesia, a escreveram, a discutiram, amontoando turrado de estética e de história, o falador senil e pre-
palavras sobre palavras. A ressurreição de uma pala- sunçoso sempre pronto a discorrer sobre o Estado,
vra não significou a morte imediata dos produtores sobre a Igreja e sobre a arte, é o sensorium de mil
de palavras; em certo sentido, pode dizer-se que eles impressões sem originalidade, o ventre insaciável que,
ainda sobrevivem. Porque se, como diz Gibbon, só é pre- todavia, ignora o que são uma fome e uma sede
ciso tempo, muito tempo, para que um mundo desapa- honestas. Que uma educação que tem um tal objectivo
reça, só é preciso tempo, mas muito mais tempo ainda, e que chega a tal resultado seja uma educação contra
para que na Alemanha, no país do «pouco a pouco», a natureza, é o que só o homem que ela ainda não for-
morra uma noção falsa. Como quer que seja, há mou por completo pode sentir, é o que só pode ser pres-
talvez cem homens mais do que havia há cem anos que sentido pelo instinto da juventude, porque ela ainda está
saibam o que é a poesia, talvez haja mais cem daqui na posse do seu instinto natural que mais tarde há-de
a cem anos que tenham aprendido o que é a cultura ser quebrado pelo artifício e pela violência desta edu-
e que os alemães, apesar dos seus discursos e da sua cação. Mas quem, por sua vez, quiser pulverizar esta
bazófia, não tiveram cultura até agora. A satisfação educação deve ajudar a juventude a fazer-se ouvir, e
generalizada entre os alemães em relação à sua cultura deve precedê-la iluminando com uma claridade racio-
parecer-lhes-á tão grosseira e incrível como para nós nal a resistência meio-consciente que se exprime bem
o classicismo de Gottsched, ainda h á pouco tão unani- alto. Mas como atingir objectivo tão insólito?
memente aceite, o u o valor de Ramler igualado a Pín- Antes de mais, destruindo o preconceito da crença
daro. Vão talvez considerar que esta cultura não era na necessidade deste tratamento educativo. Espero que
mais do que uma espécie de saber relativo à cultura, não se pense que não há outra realidade possível para
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além da nossa lamentável realidade actual? Examine-se Platão julgou necessário que a primeira geração da
nesta linha a literatura escolar e pedagógica dos Últimos sua sociedade nova, no Estado ideal, fosse educada com
decénios e constatar-se-á com tristeza e estupefacção a ajuda de uma poderosa mentira de segurança; ensi-
que, apesar das flutuações dos programas e da violên- nava-se à s crianças que tinham vivido durante certo
cia das controvérsias, o projecto educativo continua tempo, como num sonho, debaixo da terra, e que lá
a ser o mesmo e que o resultado presente, o homem tinham si40 modeladas e formadas pelo autor da natu-
culto no sentido actual, é aceite sem reflexão como reza. 1mpÔssível revoltar-se contra este passado, impos-
fundamentd necessário de toda a educação futura. Esse sível opor-se à obra dos deuses. E r a necessário acre-
cânone monótono poderia formular-se assim: o jovem ditar nesta lei natural inquebrantável: quem nasce filó-
começa por ser informado a respeito da cultura, e sofo tem oiro nos membros, o militar tem prata e o ope-
não da vida; não poderá, em qualquer caso, começar rário ferro e bronze. Como não é possível, segundo Pla-
por viver e por fazer a s suas experiências. E esta tão, unir estes metais, assim também não será possível
informação relativa à cultura será insuflada e incor- modificar essencialmente a ordem das castas. A crença
porada no jovem sob a forma de conhecimento his- na aeterna ueritas desta ordem estabelecida era o funda-
tórico; quer dizer, encher-se-á a sua cabeça com uma mento da educação nova e do Estado novo. Também o
multidão prodigiosa de noções tiradas do conhecimento aiemão moderno crê na aeterna veritas do seu sistema
muito mediato d o s tempos e dos povos do passado, educativo, do seu género de cultura; e, contudo, esta
e não da intuição imediata da vida. A necessidade que crença poderá vir a desfazer-se como se desfez o Estado
ele sente de aprender por si mesmo, de fazer ele pró- platónico, se se opuser à mentira de necessidade uma
prio algumas experiências e de sentir formar-se nele verdade necessária: a Alemanha não tem cultura por-
um sistema coerente e vivo das suas experiências pes- que, dada a sua educação, não pode tê-la. Quer ter a flor,
soais, será abafada e como que intoxicada pela luxuosa mas sem raiz e caule, quere-a portanto em vão. 13 a ver-
perspectiva de poder, em poucos anos, acumular em dade pura, uma verdade desagradável e rude, mas
si a s experiências mais elevadas e mais memoráveis necessária.
dos tempos passados, justamente a s das épocas maio- E nesta verdade que é preciso educar a nossa
res. O mesmo método insensato leva os nossos jovens primeira geração; será ela quem mais terá a sofrer, por-
artistas à s colecções e à s galerias de arte em vez de os que terá de se educar por meio desta verdade, de se ele-
introduzir no atelier de um mestre e, sobretudo, no ate- var apesar dela, de se formar em novos hábitos, numa
lier Único da Única iniciadora, a natureza. Como se o nova natureza, a partir de um hábito antigo e primordial,
visitante apressado pudesse descobrir na história os de uma natureza antiga e primeira. De tal maneira que
processos e as técnicas das épocas passadas e o produto bem poderia dizer para consigo, em velha linguagem cas-
efectivo d a sua vida. Como se a vida não fosse um telhana: Defienda me Dios de my!-Que Deus me
ofício que é necessário aprender a fundo e exercer cons- defenda de mim, isto é, da natureza que me foi incul-
tantemente com rigor, para não produzir inábeis e fala- cada. Deverá saborear esta verdade gota a gota, como
dores! um remédio amargo e eficaz; é preciso que cada um dos
indivíduos desta geração triunfe de s i próprio e se passado o seu alimento tonificante. O mal é temível,
inflija um veredicto que seria mais suportável infligir mas se a juventude não tivesse uma clarividência inata
ao conjunto de u m a época. Não temos cultura, mais, ? sua
i natureza, ninguém saberia que se tratava de um
estamos perdidos para a vida, para um modo sim- mal e que se perdera um paraíso de saúde. Porém, com
ples e justo de ver e entender, de apreender com êxito o instinto salutar desta mesma natureza, a juventude
a verdade próxima e natural. Até agora não temos adivinha c,omopoderá ganhar de novo o paraíso, conhece
sequer a s bases de uma cultura, porque não esta- os sucos mágicos e os bálsamos que hão-de curar a
mos persuadidos de termos em nós uma vida autên- doença da história. Quais são os seus nomes? Não
tica. Desagregado e em ruína, dividido quase meca- se admirem que sejam nomes de venenos. Os contra-
nicamente num interior e num exterior, pulverizado venenos do hi-oricismo são o não-historicismo e o
de conceitos como de dentes de dragões que produ- super-hbtorickmo. Tais nomes fazem-nos voltar ao
ziriam mais conceitos, que são outros tantos dragões, começo das nossas reflexões e à sua atmosfera de
sofrendo d a doença das palavras e sem confiança nas serenidade.
minhas próprias sensações enquanto não tiverem o Designo com o nome de não-historicismo a arte e o
selo das palavras, eu próprio sou a fábrica de conceitos poder de esquecer e de encerrar-se num hwixonte limi-
e de palavras, um organismo sem vida mas com uma in- tado. Chamo super-históricas a s forças que afastam o
quietante actividade. Tenho talvez o direito de dizer olhar do devir e o orientam para aquilo que confere ao
Cogito ergo sum, m a s não Vivo ergo cogito. Foi-me con- devir um carácter de eternidade e de significação igual
cedido o «ser» vazio, e não a «vida» plena e verdejante; ao da arte e da relig2ão. A ciência-porque só ela fala-
o meu sentimento primitivo garante-me só que eu sou ria de venenos - vê nestas forças, nestes poderes, for-
um ser pensante, e não um ser vivo, que eu não sou um ças e poderes hostis, porque só considera verdadeiro e
animal, mas, quando muito, um cogital. Dêem-me pri- justo o estudo do real, isto é, o estudo científico que vê
meiro a vida, que eu dou-lhes uma cultura. É: o grito por todo o lado o devir, um estado histórico e nunca um
de todos os indivíduos desta primeira geração, que se existente, um eterno; vive num estado de hostilidade
reconhecem por este grito. Mas quem vai dar-lhes esta secreta contra os poderes irportalizantes da arte e da
vida ? religião, da mesma forma que odeia o esquecimento, a
Nem um deus nem um homem - a sua juventude. morte do saber, e que tenta suprimir os limites do hori-
Libertem-nos d a s suas cadeias e terão libertado zonte e lançar o homem num mar infinito e ilimitado
a vida, porque e l a estava escondida apenas, estava de ondas luminosas, o mar do devir tal como ela julga
presa, não estava nem seca nem morta: interroguem-se! conhecê-lo.
Mas esta vida libertada está doente, é preciso curá- Ainda se ele pudesse ai viver! Da mesma ma-
-la. Sofre de muitos males e não só da recordação das neira que a s cidades, com um tremor de terra, desa-
suas cadeias, sofre, e isso é o que mais nos interesa, da bam e voltam ao deserto, assim como o homem constrói
doença da história. O excesso da história atacou a a medo e furtivamente a sua casa em solo vulcânico,
faculdade plástica da vida, já não sabe ir buscar ao assim a vida desaba, enfraquece e desanima quando o

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tremw de conceitos causado pela ciência priva o homem a essência do seu senão, não poder utilizar qualquer no-
do fundamento da s u a segurança e da sua tranquilidade, ção, qualquer palavra de ordem partidária tirada da
que é a confiança em algo de durável e eterno. moeda corrente das idsias do tempo presente, e de crer,
Será que a vida deve prevalecer sobre o conheci- nas suas melhores horas, numa força que actua nela,
mento e sobre a ciência, ou é o conhecimento que deve que é uma força de luta, de dissidência, de divisão, e
.
prevalecer sobre a vida? Qual destas duas forças é num sentjmento cada vez mais exaltado da vida.
superior? Ninguém hesitará, decerto: a vida é superior Poder-se-á contestar que esta juventude tenha cultura,
e dominante, porque um conhecimento que destruisse a mas para que juventude constituiria isso uma censura?
vida destruir-se-ia também automaticamente. O conheci- Pode-se considerá-la exagerada e rude, mas ainda não
mento supõe a vida, ele tem pela conservação da vida o é suficientemente velha nem prudente para saber mode-
mesmo interesse que qualquer ser tem pela sua exis- rar-se. Sobretudo, não tem necessidade de fingir que
tência. A ciência tem, pois, necessidade de ser vigiada possui e defende uma cultura acabada e goza de todas
e controlada de cima. Deveria haver lugar, ao lado da a s vantagens e de todos os privilégios da juventude,
ciência, para uma higiene da vida, e um principio dessa especialmente de uma probidade corajosa e sem cálculo
higiene seria que o não-historicismo e o super-histori- e da consolação exaltante da esperança.
cismo são os tópicos naturais contra a invasão da vida E u sei que estes expectantes compreendem e vêem
pela vegetação parasita da história, contra a doença de perto todas estas generalidades e que hão-de trans-
da história. E possível que, nós próprios atacados pela formá-las pela sua própria experiência num pensamento
doença da história, venhamos a sofrer com os seus con- pessoal; os outros poderão considerá-los, por enquanto,
travenenos. Mas isto não é um argumento contra a apenas como vasos fechados e vazios; até que, sur-
terapêutica escolhida. , preendidos, vejam com os seus próprios olhos que os
É esta a missão da juventude, desta geração de lu- vasos estão cheios e que essas generalidades continham
tadores e de domadores de serpentes que anunciam uma e concentravam nelas ataques, exigências, instintos
cultura e uma humanidade mais felizes e mais belas, vitais e paixões que não podiam estar escondido,^ por
sem ter desta felicidade futura e desta beleza superior mais tempo. Repudiando aqueles que duvidam de que o
mais do que um pressentimento cheio de promessas. Esta tempo obscureça, quero -voltar-me agora para esta
juventude vai sofrer simultaneamente do mal e do
remédio, e todavia crê poder orgulhar-se de uma saúde 1 sociedade dos expectantes e contar-lhes, sob a forma de
parábola, a sua marcha e a sua cura e como escapa-
mais robusta e de uma natureza mais natural que as ram à doença da história; vou, pois, contar-lhes a sua
gerações precedentes, adultos e velhos cultos do tempo própria história até ao momento em que, tendo conquis-
prksente. Mas a s u a missão é agitar a ideia que o tempo 1 tado a saúde, poderão estudar de novo a história e
presente tem de «saúde» e de «cultura» e suscitar rX tornar Útil o passado subordinando-o à vida, no triplo
a crítica e o ódio contra estas noções híbridas e mons- pcnto de vista de que falámos: monumental, tradiciona-
truosas; e o sinal que garante esta saúde mais robusta lista e crítico. Serão então .mais ignorantes que as
será justamente o £acto de esta juventude, para exprimir pessoas cultas de agora, porque terão esquecido muito e

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terão mesmo perdido o desejo de lançar os olhos sobre a esta máxima uma interpretação prática, tiveram
tudo aquilo que os cultos querem saber; as suas marcas a felicidade insigne de enriquecer e alargar o tesouro
distintivas, aos olhos das pessoas cultas, serão a sua herdado dos seus antepassados, transformaram-se no
«incultura», a sua indiferença e a sua hostilidade para modelo e nas primícias de todos os povos civilizados
com muitos acontecimentos importantes e realmente do futuro.
válidos. Mas, no termo da sua cura, ter-se-ão tornado Esta parábola aplica-se a cada um de nós. Que ele
de novo homens e terão deixado de ser uma massa de organize o seu caos interior, reflectindo nas suas verda-
aparência humana; já é bastante! Que grandes esperan- deiras necessidades. A sua probidade, a sua natu-
ças! Não se r i o vosso coração, oh expectantes? reza &ria e sincera hão-de revoltar-se contra o
E como havemos de alcançar este objectivo? Logo hábito inveterado de repetir, aprender e imitar; com-
nos vossos primeiros passos, o deus délfico lembrar- preenderá que a cultura deve ser mais do que o
-vos-á o seu preceito: conhece-te a ti mesmo. E um pre- mamento da vida, ou seja, uma maneira de a disfarçar,
ceito difícil, porque este deus «não esconde nada, não porque qualquer ornamento esconde aquilo que enfeita.
anuncia nada, mas contenta-se com sugerir», como disse Assim, revelar-se-lhe-á a ideia grega de cultura, contrá-
Heraclito. Que vos sugere ele? ria à concepção romana, a ideia de uma cultura que é
!Houve séculos em que os Gregos estiveram num uma physk nova e enriquecida, sem distinção entre o
perigo análogo àquele em que nós nos encontramos, o interior e o exterior, sem dissimulação e sem convenção,
perigo de serem submergidos pelo estrangeiro e pelo cultura concebida como a união da vida e do pensa-
passado e de morrer por causa da «história». Nunca mento, da aparência e do querer. Aprenderá, por expe-
viveram numa segurança orgulhosa e inacessível: pelo riência própria, que foi a força superior da sua natu-
contrário, a sua cultura foi durante muito tempo um reza moral que deu aos Gregos o triunfo sobre todas a s
caos de formas e d e concepções estrangeiras: semíticas, civilizações, e que todo o progreso em simerida& deve
babilónicas, Iídias, egípcias, e a sua religião serviu de preparar e favorecer a cultura autêntica, mesmo que a
receptáculo a todas a s divindades do Oriente, um sinceridade prejudique por vezes, gravemente, a classe
pouco à maneira da religião e «cultura» dos alemães, culta que goza actualmente do respeito geral, mesmo
que são um caos constantemente agitado por todos os que provoque a ruína de uma cultura que não passa de
países e 9odo o passado. E, contudo, graças à máxima ornamento.
a,polínea, a cultura helénica não se transformou num
conglomerado. Os Gregos foram aprendendo a organizar
o caos, entrando em si próprios, de acordo com a doutri-
na délfica, isto é, reflectindo nas suas verdad,'w a s neces-
sidades e deixando morrer a s suas necessidades factícias.
Foi assim que tomaram nas mãos o seu destino e dei-
xaram de ser os herdeiros e os epígonos instruídos do
Oriente. Depois d e uma penosa luta interior, dando

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