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CARLOS ESTEVAM MARTINS A EVOLUGAO DA POLITICA EXTERNA BRASILEIRA NA DECADA 64/74 INTRODUCAO Na opiniao de um grande nimero de autores, a Ultima década da histéria brasileira ndo parece ter sido das mais criativas em matéria de politica externa. De fato, para muitos, talvez mesmo para a maioria, as linhas mes- tras daquela politica permaneceram as mesmas, desde os idos de 64 até os dias de hoje. E assim que pensa, por exemplo, Oliveiros Ferreira, quando afirma: “A politica externa brasileira nunca fugiu, nos dez anos que vao de Castelo a Geisel, de algumas constantes bdsicas. Sua origem € comum: militar; sua fonte, comum: seguramente os estudos do Conselho de Seguranga Nacional; seus fins, os mes- mos: construir, com a aceleragao posstvel, um Poder Nacional que faga do Brasil uma poténcia ouvida no concerto dos fortes e respeitada naquele dos fracos; seus objetivos, sempre pragmd- ticos: carrear recursos externos para fortalecer o Poder Nacional; oO campo em que Sse exerce, ou melhor, a idéia que se tem do campo em que se hd de atuar, imutdyel pelas origens e fontes: a teoria dos circulos concéntricos de atuagéo”’* . Curiosamente, porém, os que concordam com Oliveiros quanto a continuidade, ndo concordam, entretanto, quanto 4 definigéo do conteido da politica externa. Roberto Campos, por exemplo, afirma que ela foi expresséo do “pragmatismo”, doutrina essa que teria sido elaborada pelos tecnocratas e referendada pelos militares. Para Rui Marini ela tern consistido na pratica do sub-imperialismo. Talvez por excesso de aterro ao que se passa no mundo da economia, Maria da Conceig&o. Tavares nado chega a ver nela mais do que um epifendmeno, em tudo e por tudo subordinado as exigéncias do padrao vigente de acumulagao de capital. Quanto ao contetido, portanto, as interpre- tagdes mais conhecidas variam de alfa a omega. Formalmente, porém, todas coincidem na afirmagao de que a politica externa feita hoje é a mesma que se comegou a fazer a partir de 64. Nada mudou, reza a opinido undnime: ndo houve rupturas, inflexdes ou substituigdes dignas de registro. Neste trabalho, pretendo sustentar justamente a hipdtese oposta. Ao contrério da maioria, penso que houve mudangas, que essas mu- dangas so de grande importancia e que, por isso mesmo, ja esta mais do que na hora de os cientistas-sociais brasileiros comegarem a fazer essa constatagdo factual minima, a fim de que possam, num segundo momento, desencumbirem-se da tarefa que é precipuamente 55 a sua, qual seja, a de identificar os fatores que explicam a ocorréncia das transformag6es verificadas. Antes, porém, de passar ao tema substantivo, desejo fazer algumas observagdes de ordem metodoldgica. A primeira delas é a de que tratarei apenas do nivel mais rarefeito em que se pode conceber a pratica politica, a saber, aquele em que captamos as posigdes poli- tico-ideolégicas assumidas pelos atores: o nivel das definigdes do mundo, dos projetos e das pretensdes de cardter geral. Isso significa que ndo vamos nos preocupar aqui com o que de fato aconteceu nos niveis mais proximos ao da ago concreta. Em outras palavras, nao estudaremos, a nao ser incidentalmente, as fases de implemen- tacdo correspondentes ao planejamento politico, as taticas e manobras, aos atos de execugdo; nao faremos, tampouco, qualquer balanco sistemtico dos resultados objetivos realmente alcangados pela oe externa praticada nesses 10 ultimos anos. Ha quem diga que os fatos materiais so a nica coisa que realmente importa analisar. Nao concordo com esses “fandticos da objetividade”. Inclino-me a pensar que, em boa medida, os atores sociais se comportam em fungao da definigaéo do mundo e dos propo- sitos que configuram a sua posigdo politico-ideolégica. Havendo um minimo de liberdade (e o mundo nao é nenhuma prisao), é natural que surjam crengas mais ou menos ilus6rias ao nivel das consciéncias, assim como é natural que, dessas crengas, decorram certas agées. AgGes que, ex post factum, revelar-se-iam fadadas ao fracasso, mas que, nao obstante, existiram enquanto atividade real, enquanto tenta- tivas (frustradas) de mudar o mundo. Um dos criticos desse método, Eduardo Kugelmas”, alega que ele é inapropriado, porque confunde a realidade com a ideologia, ao tratar pronunciamentos oficiais como se o verbo (aquilo que o governo diz sobre a politica externa) fosse 0 mesmo que a coisa (a politica externa que o governo faz). Creio, no entanto, que Kugelmas labora em erro. Evidentemente, concordo que ninguém tem o direito de presumir que discursos equivalham a posigées politicas ou que posigdes politicas equivalham a atos reais. Nao obstante, penso que a situacio muda inteiramente de figura quando um cientista-social decide usar, de forma comparativa, os dados moles de que dispde (palavras profe- ridas) e passa a contrastar os pronunciamentos feitos numa certa época, pelos membros de um determinado governo, com os pronun- ciamentos feitos numa outra época, pelos membros de um outro governo. Se essas comparagGes o levam a descobrir diferengas impor- tantes e se, além disso, essas diferencas tendem a se acumular sistema- ticamente, formando agregados distintos, o cientista em aprego tem o 56

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