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No início do conhecimento, o homem explicou os eventos à sua volta como sobrenaturais,

mágicos, religiosos, e, assim como a arte, ciência, poesia, a voz também era vista da mesma
forma.
Egípcios acreditavam em pulmões com poderes mágicos, mas não tinham noção de sua relação
com a voz. Na antiga Babilônia (2000 a.C.) acreditavam que demônios eram os responsáveis
pelas doenças (não é uma novidade de programas noturnos de TV), o demônio Namtary era o
responsável por problemas na garganta.

Demônio da Babilônia

Na Grécia Antiga os filósofos surgiram com suas observações, deixando o misticismo de lado e
buscando utilizar o pensamento para entender o mundo. No século V a.C. , Hipócrates descrevia
qualidades e defeitos na voz, como rouquidão, aspereza, etc., faringe e laringe eram sinônimos
e ele especulou sobre o possível papel dos pulmões na voz, lábios e língua estariam envolvidos
na articulação.
No século III a.C. Aristóteles foi além, percebendo que vogais e consoantes eram produzidas de
forma diferente e imaginou que a voz fosse produzida na traqueia e na laringe pelo impacto do
ar. Aristóteles localizava a alma no coração e pulmões, e nesta época surgiu a frase usada até
hoje: “A voz é o espelho da alma”.

Nessa época não haviam notações musicais, como as que conhecemos hoje, nas
partituras,muito menos registros fonográficos (CDs, LPs, MP3, etc.), portanto, não há como saber
ao certo como era o canto e a música da época, mas encontramos algumas suposições
baseadas em documentos encontrados, que são bem interessantes, apesar de dificilmente
serem reais, ou ao menos perto da realidade.

Em Roma, no século II d.C. Caelius Aurelianos inclui um capitulo sobre rouquidão e os efeitos
dos abusos vocais em seu livro médico. Mas o maior interessado em doenças da laringe foi
Claudius Galeno (131 d.C.-220 d.C.), considerado o criador da laringologia (estudo da laringe).
Foi o primeiro a descrever a laringe com 3 cartilagens, alguns pares de músculos, e comparou o
instrumento a uma flauta, chamando a de principalissimum organum vocis.
Ilustração de Claudius Galeno

Então veio a Idade Média (xiiii), com as revelações de padres e da Igreja Cristã, que detinha todo
o conhecimento e ditava as regras. Mulheres não podiam cantar nos corais nas igrejas e homens
e crianças eram responsáveis pelas vozes mais agudas.

São Brás restaurava as vias respiratórias de crianças, e até hoje em sua memória é feita a
benção nas gargantas nas igrejas católicas.
O conhecimento sobre a voz humana não avançou nesta época, assim como ciência alguma,
mas papas frequentemente se tornavam patronos das artes. Gregório (o do canto gregoriano),
no século XVII se interessava pelo canto e o monge Guido d’Arezzo, ficou conhecido por nomear
as notas musicais (Ut - originalmente no lugar de Dó - Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, Si).

Os nomes das notas foram retirados do hino de São João Batista:


Ut queant laxis
Resonare fibris
Mira gestorum
Famulli tuorum
Solve polluit
Labii reatum
Sancti Ioannis
Tradução: "Para que os teus servos possam cantar as maravilhas dos teus atos admiráveis,
absolve as faltas dos seus lábios impuros, São João”.

Tomando lugar da antiga nomenclatura A, B, C, D, E, F, G (respectivamente Lá, Si, Dó, RÉ, Etc.)
que é usada ainda hoje em países de língua anglo-saxã como EUA e Alemanha (que ainda usa
o H para Si e B para Si bemol, mas essa é uma outra história).

Estamos na Idade Média, nessa época (que ficou conhecida como a Idade das Trevas), o Oriente
Médio se tornava o grande centro de conhecimento médico, e no século IX, Rhazes foi um dos
maiores doutores muçulmanos, ele recomendava exercícios respiratórios e treinos vocais nas
escalas musicais como terapia.
Outros grandes médicos da região se destacaram nos estudos da ciência vocal: Haly Abass, que
descreveu a dupla função de respiração e fonação da laringe; Avicenna, o Persa, mais famoso
médico árabe. Seu livro era referência mais de 500 anos depois de sua morte; Abdul Quasinu e
Maimonides também se destacaram.

Enquanto isso na Europa Ocidental todo o estudo médico era consultado em Galeno, Hipócrates
e Aristóteles (mencionados na parte 1), não havendo produção intelectual. Um dos poucos
conceitos que surgiram foi que a laringe era derivada do coração, que lançava uma grande artéria
até a garganta. Várias ilustrações da época retratam essa ideia.
Como opção de tratamento para eliminar corpos estranhos na garganta o paciente era pendurado
pelos calcanhares para que esse tossisse o mal (não tente isso em casa).

A notação musical já havia se desenvolvido mais no final da Idade Média, possibilitando aos
compositores desenvolver melodias mais elaboradas e inovações em suas escritas, exigindo
cada vez mais dos cantores. Os maiores registros da época são de obras sacras, mas algumas
canções populares sobreviveram graças ao uso desses temas como base para composições
para a Igreja.

Laringe e perna desenhados por Leonardo Da Vinci

Com o Renascimento o homem voltou a ser valorizado, bem como a ciência e o conhecimento.
Um dos grandes gênios da época foi Leonardo Da Vinci (1452-1519), que além de pintar a
Monalisa e enriquecer Dan Brown, dissecou mais de 30 cadáveres em hospitais e lançou novos
conhecimentos sobre anatomia, fisiologia e patologia do corpo e, o que nos interessa aqui, da
voz humana.
A renascença foi a época de ouro do canto coral, arranjos elaborados e ricos em polifonias e
contrapontos são cantados até hoje. (recomendo bravamente que você ouça Pierluigi da
Palestrina, William Byrd, Clement Janequin, etc. Posso fazer um post no futuro recomendando
alguns compositores antigos, se vcs quiserem).

Andrea Vesalius (1514-1565) se surpreendeu a achar erros no trabalho de Galeno (aquele do


século II d.C.), e foi duramente criticado por isso (não tanto quanto Galileu Galilei que quase foi
assado quando defendeu que a Terra não era o centro do universo, e sim o Sol, mas foi. Aliás,
o pai de Galileu, Vicenzo Galilei, escreveu sobre o canto solo, dizendo que era o melhor para
expressar sentimentos e emoções).

Lodovico Zacconi (1555-1627) notava diferença entre a "voce di petto" (voz de peito) e a "voce
di testa" (voz de cabeça), recomendando aos seus cantores que preferissem o uso da voz de
peito à de cabeça, que considerava “chata” e “irritante”, e muitos outros maestros e compositores
partilhavam a mesma opinião, criticando a "voce finta" (voz fingida, falsete).
O Barbeiro de Sevilha de Rossini

As denominações voz de peito e voz de cabeça vinham de sensações vibratórias que os cantores
tinham quando entoavam o som de determinadas maneiras, quando sentiam vibrações no peito
as chamavam assim, e o mesmo para vibrações em regiões na cabeça. Isso causou e ainda
causa grande confusão quando se pede pra jogar ressonância no peito, ressonância na cabeça,
etc. Veremos à frente que muita coisa mudou desde então.

Essas mudanças de qualidades de voz que sentimos quando vamos do grave ao agudo são
chamadas de registros vocais.

Nos avançoes científicos:


Hieronymus Fabricius ab Acquapendente (1537-1619) declarou que o que produzia o som eram
as pregas vocais e o espaço entre elas.

Giovanni Batista Morgagni (1682-1771) foi de extrema importância para o conhecimento da


laringe. Caspar Bauhinu (1550-1624), Thomas Willis (1621-1675) e Claude Perrault (1613-1688).

Denis Dodart (1634-1707) comparou a voz a um trompete, afirmando que os tons eram definidos
pela tensão dos lábios e suas estruturas internas.

Em 1600 temos a primeira ópera encontrada, Eurídice, de Jacopo Peri, membro da Camerata
Fiorentina, um grupo de estudiosos nas artes e ciências em Florença, Itália, que teorizou o que
seria o recitativo (trecho de ópera que é algo entre o declamado do teatro e o cantado das
canções), inspirados pelas ideias dos antigos gregos, e aí começou a profissionalização do
cantor fora da Igraja, que se viu obrigado a realizar proezas técnicas novas, escritas or aqueles
pesquisadores da Música Contemporânea da época. E a dificuldade foi só aumentando.

À partir do século XVII, com o chamado bel canto das óperas italianas de Rossini, Bellini e
Donizetti, o canto solo e virtuoso (técnico, difícil, rapido) foi mais desenvolvido.
Diversos tratados sobre técnica vocal foram escritos para este estilo, que atingiu seu auge no
século XIX.

Nesta época, ciência e arte tentaram andar lado a lado em busca do “canto belo”, e as técnicas
para conseguir cantar o que era proposto se desenvolviam. Óperas começaram a ser escritas
pensando em determinado cantor, com suas vozes e características específicas, o que
tornavam as músicas incríveis, porém a execução por outras pessoas muito mais complexas.

Em 1723 foi editado o tratado escrito por Pierfrancesco Tosi, cantor, professor de canto e
compositor. Tosi era castrato (cantores que eram castrados quando jovens, antes da muda vocal,
para preservarem a voz aguda – Assistam "Farinelli, il castrato". Filmaço) e escreveu para outros
castrati (plural de castrato). E nele defendia o treino de ambos os registros e a união entre eles,
creditando à falta deste treino a perda de “beleza vocal”.
Em 1741 Antoine Ferrein (1693-1769) comparou as pregas vocais com cordas de violinos, as
rotulando como “cordas vocais”, nome usado (erroneamente) ainda hoje. Ele observou que as
notas variam de acordo com as vibrações dessas cordas.

Do filme "Farinelli, il castrato"

Os castratti eram sempre os destaques das óperas, com suas vozes de contralto e as vezes
soprano. Aliás se pensarmos em classificação vocal, o tenores, em sua origem, eram aqueles
que tinham a voz grave, que deveriam manter o som (do italiano tenere). Depois surgiram outras
duas vozes, a dos Contratenores Bassus (que cantavam mais grave ainda, e se tornariam os
baixos de hoje) e os Contratenores Altus (que cantavam mais agudo, e daí surgiram os
contratenores falsetistas e os contraltos, que eram homens). Soprenos vieram da voz ainda mais
aguda que OS contraltos. Mezzos, barítonos e contraltos sendo voz feminina vieram depois.

No final do século XVIII os autores já falavam em 3 registros vocais para as mulheres e 2 para
homens.

Em 1816 Ludwig Mende (1779-1832) observou pela primeira vez a laringe de uma pessoa viva
– uma tentativa de suicídio com pescoço cortado (tem que aproveitar as oportunidades).
Carl Lehfeldt, em 1835, disse que o falsete (aquela voz aguda de desenho animado) vinha de
vibrações restritas às bordas das "cordas vocais".

Durante o século XIX muitas publicações surgiram, dando conta de inúmeros registros e tipos de
vozes.
Com a teoria mioelástica, Johannes Müller (1801-1858) confirmou que a voz é produzida pela
corrente de ar que vem dos pulmões acionando, de forma passiva, a vibração das pregas vocais.
Em 1814, Liskovius diz que o movimento das pregas vocais é horizontal, e não vertical como se
pensava.

Foi em 1829 que Manuel Garcia II, com 24 anos, após ter de se aposentar dos palcos por abuso
vocal, começou a lecionar canto. Anos depois ele teve a ideia de refletir a luz do Sol em sua
laringe para poder observá-la com um espelho de dentista, e em 1855 apresentou seu
laringoscópio, começava a evolução tecnológica no estudo da voz. Garcia foi renomado
professor de canto e acumulou fama e fortuna.
O grande avanço tecnológico no século XX, mais precisamente à partir da segunda metade do
século, facilitou o estudo científico e o conhecimento do funcionamento da produção vocal.

Surgiram, uma série de teorias sobre a fisiologia (funcionamento) da voz.

Na teoria neurocranáxica (1950, Husson) as pregas vocais são ativas e desassociadas do


mecanismo de intensidade (pressão subglótica, ou pressão de ar vinda dos pulmões). De acordo
com a prega vocal descrita por Goerttler, elas permaneciam fechadas e eram abertas pelos
músculos tireovocal e arivocal, teoria que não foi comprovada. Para Husson a classificação vocal
(tenor, baixo, soprano, contralto, etc.) de um cantor depende da capacidade do nervo recorrente
entrar em ação, ele que puxa os músculos citados por Goetller, quanto mais vezes o nervo
consegue ativat o músculo mais aguda a voz do cantor. A técnica vocal seria, então, baseada na
capacidade de concentração do cantor, dando pouca importância à respiração ou controle
muscular, era só pensar e se focar na ação que a voz fluía.

As teorias mucondulatórias (1962, Parelló) e mioelástica completada (1963, Van den Berg e
Vallancien) notaram a importância da mucosa da laringe na fonação. A vibração da prega vocal
é na verdade ondulação na mucosa que recobre as pregas vocais.

Em 1960, Cornut e Lafon, desenvolveram a teoria impulsional, onde 3 elementos influenciam no


funcionamento laringeo: força no fechameno glótico (fechamento das pregas vocais), pressão
subglótica (pressão do ar vindo dos pulmões) e força de atração das pregas vocais pela redução
da pressão da passagem de ar (efeito Bernouilli). Para eles, as pregas não vibram como cordas
de violino, mas alternando oclusões (fechamentos) e aberturas.

A teoria neuroscilatória (1968, Mac-Léod e Sylvestre) compara a laringe aos músculos das asas
dos insetos.

Foi Hirano, em 1970, quem considerou a existência de 3 registros vocais, o registro basal (fry),
o modal, subdividido em peito, cabeça e médio (uma combinação dos outros dois) e registro leve
(falsete). Em 1974, Hirano apresenta modelo analisando a influência da estrutura da prega vocal
na produção do som, distinguindo o músculo e a mucosa (camada maleável que recobre o
músculo vocal e vibra com a passagem do ar) e fazendo um elaborado estudo, referencia desde
então.
Esquema da prega vocal de Hirano (à esquerda), com
corpo (Músculo vocal ) e cobertura (Epitélio e Lamina Propria, camada superficial). Ainda existe
uma camada intermediária, de transição (Lamina Propria, camadas intermedária e profunda)

No mesmo ano, o cientista Harry Hollien denominou os registros pulso (fry), modal e elevado
(falsete), mas sem excluir a possível existência de outros registros, como o registro flauta (ou
assobio, ou whistle)

A teoria osciloimpedancial (1982, Dejonckère) como Hirano, distingue na estrutura da prega


vocal um corpo (músculo) e cobertura (mucosa) e a importância dessa diferença na oscilação da
prega.

Nos anos 80, o CoMeT (Collegium Medicorum Theatri), organização internacional formada por
médicos, cientistas, professores de canto e demais interessados na voz profissional artística (e
que em 2012 realizou seu Simpósio em São Paulo) publicou que esses registros vocais não
podem ser eliminados, sendo determinados fisiologicamente (gerados a partir de configurações
musculares ocorrentes na laringe). Seus efeitos podem ser minimizados os explorados de acordo
com o estilo musical cantado.

Agradecimento do CoMeT 2012, realizado em São Paulo

Desde então, cientistas como Ingo Titze (Alemanha) e Johan Sundberg (Suécia), vem publicando
estudos cada vez mais elaborados mostrando a relação entre o funcionamento de músculos
laríngeos e dos registros vocais, que independem do trato vocal, ressonância, ou qualquer outro
fator. A ciência comprova algumas teorias e desmente mitos, como o que dizia que os seios da
face (cavidades ocas dentro do crânio) serviam para amplificar o som. A tecnologia cada vez
mais avançada, com medições acústicas computadorizadas, ressonâncias magnéticas, câmeras
de velocidade ultra rápida ou exames menos invasivos utilizando eletrodos, facilita o estudo e o
conhecimento da voz, auxiliando o trabalho dos professores de canto e cantores que resolvem
se embrenhar nesse mundo que mistura ciência e arte, como imaginavam os gregos milhares de
anos atrás.

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