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Belo Horizonte/Grenoble
2014
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Jorge Luiz Gonzaga Vieira
Belo Horizonte/Grenoble
2014
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FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
CDU: 397.5(813.5)
Jorge Luiz Gonzaga Vieira
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Hugo Mari (Orientador) – PUC Minas
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Philippe Walter – Université Stendhal Grenoble 3, France
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Bernard Émerry – Université Stendhal Grenoble 3, France
_____________________________________________________________
Prof. Dr. Douglas Apratto Tenório – Universidade Federal de Alagoas - UFAL
_______________________________________________________________
Profa. Dra. Juliana Alves Assis – PUC Minas
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PRÁTICAS IDENTITÁRIAS E RESSIGNIFICAÇÃO DO UNIVERSO
IMAGINÁRIO DOS POVOS INDÍGENAS DO SERTÃO DE ALAGOAS
SUMÁRIO
Introdução 16
1.7.1.1 Geripancó......................................................... 66
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1.7.1.2 Kalankó............................................................ 68
1.7.1.3 Karuazu............................................................. 69
1.7.1.4 Katökinn................................................................... 70
1.7.1.5 Koiupanká......................................................... 72
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EPÍGRAFE
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DEDICATÓRIA
Aos meus pais Gerson (in memoriam) e Socorro pela vida, dedicação e
proteção que incansavelmente dedicam para a minha felicidade;
Aos meus filhos Emmanuel e Mayana e ao neto Nikolas pela minha realização
pessoal e perpetuação dos meus sonhos;
Ao eterno amigo e mestre Antônio Brand (in memorian) pelos ensinamentos,
apoio incondicional e responsabilidade pela minha inserção, no mundo da mais pura
ciência e da academia, orientada à defesa dos silenciados, à educação e formação
de novas gerações e à construção de uma sociedade pluriétnica e justa;
Ao amigo e professor Douglas Apratto, pelo acolhimento paternal, apoio e
vibração na realização deste doutoramento;
Aos povos indígenas, porque sem eles não teria experimentado a inesgotável
sabedoria histórica e espiritual.
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AGRADECIMENTOS
Esta é a parte mais difícil de ser escrita. Primeiro por entender que o
conhecimento é fruto de uma construção coletiva, nunca individual; em segundo
lugar, fazendo uma retrospectiva histórica, vemos quantos atores agiram
decisivamente para que este trabalho chegasse à fase atual. Desde a contribuição
dos movimentos e pastorais sociais, do movimento e povos indígenas até as
professoras e professores do ensino fundamental e médio, os dos cursos de
Filosofia e Teologia da Pontifícia Universidade Católica (PUC/RJ) e do Instituto de
Teologia do Recife – (ITER/PE), os do curso de Jornalismo na Universidade Federal
de Alagoas (UFAL), Instituto Cajamar/SP. Neste momento, não tem como não
lembrar os colegas que participaram de grupos de estudos, debates e reflexões
coletivas.
Como agradecer a todos e a todas que participaram desse processo de
aprendizagem e da formação pessoal, em nível ético, moral, político-ideológico e
acadêmico? Não é uma tarefa fácil, porque sempre se corre o risco de esquecer
pessoas e instituições. Por isso, quero, reconhecidamente, agradecer com afeto a
todos e todas que, individual e coletivamente, participaram direta ou indiretamente
de processo. Sintam-se presentes nesse trabalho.
Tudo foi conquistado com muita dificuldade. Poder estudar já foi uma grande
vitória. Terminar o ensino médio foi uma batalha. Chegar à Faculdade extrapolou
qualquer expectativa! O que dizer do Mestrado? E, agora, o Doutorado?!
Por isso, acima de tudo, quero agradecer a Deus. Foi a sua presença
companheira, amiga e firme que me fez chegar até aqui. Somente Ele sabe o quanto
tem sido duro enfrentar esta caminhada.
Aos meus pais, Gerson (in memoriam) e Socorro, trabalhadores rurais
analfabetos, que lutaram para educar os filhos numa consistente formação religiosa
e moral, com carinho e dedicação. Como são importantes em minha formação,
personalidade e trajetória de vida. Muitas opções que fiz, algumas, certamente não
estiveram de acordo, mas sempre permaneceram ao meu lado, rezando, cuidando,
orientando, opinando e se dedicando numa intransponível cumplicidade.
Aos meus filhos Emmanuel e Mayana, que sempre me incentivam para o
estudo, vibraram com a seleção do Doutorado e elaboração da Tese. Tenho mil
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razões para agradecer, por fazerem parte de minha vida e por tudo que significam
pra mim. E junto com eles o meu neto Nikolas, a Vanessa e o Murilo.
À Gemma Galgany, namorada, corajosa e solidária durante toda a realização
da pesquisa e defesa da Tese.
Às minhas irmãs, Cícera, Marta e Betânia. Especialmente à Marta pela total
dedicação e acompanhamento da situação de papai durante todo o período em que
não pude estar presente.
À querida professor e amiga Francisca (Chiquinha), pelo apoio intelectual,
carinho e disponibilidade na orientação e compromisso ético.
Aos amigos de caminhada nos úlitmos quarto anos, Manoel Hnerique e Luiz
Manoel, juntos e solidários nas dificuldades acadêmicas, hospedagens e viagens
entre Brasil e França e Belo Horizante.
À minha Igreja, por ter me educado na fé e para a vida acadêmica. Foi na
minha paróquia que alimentei a minha fé; no seminário, com a filosofia e teologia,
aprofundei. Com a Teologia da Libertação, me encontrei com os pobres e aprendi a
ter compromisso com os excluídos, os pequenos. Foi com eles que aprendi a
dialética entre a teoria e a prática.
Ao CIMI, por tudo que tem proporcionado. O Regional Nordeste, por onde
cheguei aos povos indígenas e à formação indigenista. Aos Fulni-ô, ponto de partida
dessa trajetória, pelos bons momentos que nos proporcionaram, com os
companheiros Saulo, Ivamilson, Prazeres e Auta, por tudo que aprendemos e
construímos juntos.
Aos meus compadres Ângelo e Evinha, pela torcida e apoio bibliográfico desde
o Mestrado, junto com o Augusto e Daniel, família que encontrei e pela qual fui
acolhido.
Aos compadres e afilhada de Água Branca, Zé Silva, Neide e Déborah pelo
acolhimento em sua casa durante os períodos da pesquisa de campo. E ao amigo e
companheiro Cloves, incentivador e apoiador dos pesquisadores da cultura
sertaneja.
Aos companheiros da política, deputado Judson Cabral e vereador Sílvio
Camelo, pelo apoio e incentivo nessa empreitada.
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Às minhas colegas professoras, Alyshia e Tânia, pelas correções dos textos em
francês e inglês, respectivamente.
À Analice Leandro, pelo trabalho dedicado e paciente das correções
ortográficas e da ABNT.
Aos meus alunos (as) pesquisadores (as) do Curso de Direito pelas
transcrições exaustivas e precisas das entrevistas com as lideranças indígenas:
Francisco, Joyciere, Paula, Taianny, Mirna, Crislene, Maria de Lara, Iago e Carol.
Ao povo Xokó, Sergipe, por ter sido o primeiro grupo indígena com que tive
contato. Aos povos de Alagoas, especialmente Geripankó, Kalankó, Katökin,
Karuazu e Koiupanká, meus agradecimentos pela amizade, conhecimento e
ensinamento, pois só através deles foi possível fazer esta caminhada.
No Doutorado, encontrei professores e professoras maravilhosas, sem eles não
teria chegado até aqui, a exemplo do professor Bernard Émery e da professora
Maria Eva, na Université Stendhal Grenoble-3, França; as professoras Márcia
Marques e Jane Quintiliano da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Minas), no
Brasil, pelo acolhimento e reflexões. Quão importantes foram as contribuições
teóricas e experiências para a elaboração desse trabalho. A cada palavra que ia
sendo escrita lembrava, especialmente, das reflexões dos professores Philippe
Walter e Hugo Mari. Levarei na bagagem para toda a minha vida.
À banca de Exame de Qualificação pelas valiosas contribuições. Quanto
trabalho professor William e professor Douglas! Senti-me grato e honrado em tê-los
como membros da Banca de Qualificação.
Nesse longo processo, tive dois grandes amigos. Os meus orientadores,
Philippe Walter e Hugo Mari, foram os guias dessa longa caminhada. O professor
Walter, com a sua prontidão costumeira e presteza, nos acolheu na universidade e
nos abriu os caminhos de entrada no universo francês, com passeios sobre
monumentos históricos, vilas medievais e conventos, especialmente com os
profundos estudos em seu gabinete sobre antropologia e imaginário e as valiosas
orientações. E o professor Hugo Mari, através das disciplinas, estudos, análise,
sínteses e pistas precisas e seguras durante as horas dedicadas às orientações.
Como orientador, logo expressou em um dos primeiros encontros os esquemas que
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eu devia seguir - as famosas “picadas”. O companheirismo e orientações dos dois
ficarão marcados como exemplo profissional e de sabedoria.
Para que esta trajetória fosse exitosa, contou com a presença de uma mulher
guerreira, obstinada, inteligente e com uma visão internacional, a professora Enaura
Quixabeira. Através do seu conhecimento e dos seus contatos, foi possível abrir as
portas da Université Stendhal Grenoble-3 para nós estudantes brasileiros. Com zelo
institucional, acadêmico e maternal, cobrou e acompanhou permanentemente o
andamento dos estudos, da produção científica e da qualidade, que foram
fundamentais para que eu chegasse até aqui. Com ela, estendo a minha eterna
gratidão à professora Maria Jeane, que, juntas, lutaram pela consolidação da
cotutela junto à PUC-MG. E, portanto, às universidades Stendhal Grenoble-3 e
Pontifícia Universidade Católica/MG pelo aprendizado e por tudo que representaram
em minha vida acadêmica e profissional.
À amiga e sempre simpática Profa. Dra. Pró-Reitora Acadênica de Pós-
Garduação e Pesquisa, Cláudia Medeiros, pelo competente acompanhamento e
empenho na finalização do processo, dedico incomensurável apreço. E junto à pró-
reitoria, ao Coordenador de Pós-Graduação Stricto Sensu, Prof. Dr. Giulliano
Anderlini, pela torcida, cuidado, agilidade e eficiência no encaminhamento
administrativo.
Aos meus coordenadores dos Cursos de Direito e Comunicação Social, prof.
Dr. Fernando Amorim e profa. Ana Cristina Brito, pelo pronto apoio e esforço em
adequar e distribuir as disciplinas com a carga horária dos colegas. A estes, pelo
sacrifício que fizeram para a presente realização.
E, finalmente ao Centro Universitário CESMAC, nas pessoas do Magnífico
Reitor, Dr. João Rodrigues Sampaio Filho, e do Vice-Reitor Prof. Dr. Douglas Apratto
Tenório, responsável pelo apoio financeiro e liberação para os estudos de
doutoramento. Aos senhores que conduzem esta bela instituição de ensino
genuinamente alagoana, o meu mais singelo e puro agradecimento por tudo que
isso representa para toda a minha vida, para o povo alagoano, especialmente os
povos indígenas. Mais não só por isso, os senhores são os mais fiéis seguidores do
espírito educacional do padre Téofanes Augusto de Araújo Barros, fundador desta
instituição, à semelhança dos trabalhadores que não tinham acesso ao ensino
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superior, eu, como filho de trabalhador rural, fui alçado à condição de Doutor pelas
vossas mãos.
O meu compromisso é o de sempre honrar e dignificar por todos os cantos,
como professor e profissional da comunicação a bela história desta instituição e de
quem os representa. Muito obrigado!!!
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RESUMO
O presente trabalho de Tese investigou as práticas identitárias e a ressignificação do
universo imaginário dos povos indígenas Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katökinn e
Koiupanká, localizados no Sertão do Estado de Alagoas. A pesquisa estudou o
processo de intervenção dos agentes da colonização portuguesa, holandesa,
espanhola e italiana sobre as organizações sociais, culturais, religiosas e dos
territórios ao longo dos 500 anos, com o recorte entre os séculos XVIII e XXI,
período que compreende o confinamento étnico administrado pelos missionários
católicas no aldeamento Pankararu Brejo dos Padres, município de Tacaratu, Estado
de Pernambuco, e o ressurgimento de grupos étnicos. Com o crescimento
populacional, redução dos territórios e acirramento de conflitos internos e com
fazendeiros, diversas famílias pankararu se dispersaram pelos Estados da
Federação. Em Alagoas, fixaram moradia na faixa serrana e baixa do sertão,
propícia ao cultivo de roça e criação de animais. Em 1872, em Relatório do
presidente da Província de Alagoas, Luiz Rômulo Peres Moreno decretou a extinção
das etnias, denominando-as de caboclo e, portanto, objetivando a transferência dos
territórios indígenas para terceiros. Em consequência disso, foram transformados em
mão de obra e passaram a trabalhar em fazendas e centros urbanos. Com o
ressurgimento de grupos indígenas, a partir da década de 1970, realizou-se uma
revisão da concepção greco-romana e cristã no campo filosófico e científico,
trabalhando uma nova abordagem da história, com base na teoria antropológica
etnogênese, do imaginário e da Análise do Discurso, como instrumentos possíveis
de diagnosticar e explicar a nova realidade pluriétnica. Com isso, constatou-se que
os povos pesquisados no presente estudo conseguiram manter as tradições
religiosas, afirmar a identidade étnica e reivindicar os direitos, diferenciando-se do
restante da população não indígena.
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RÉSUMÉ
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INTRODUÇÃO
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Com a aproximação, a população indígena foi submetida à condição de
mão de obra escrava, objetivando a implantação de uma economia voltada para
exploração das riquezas naturais, iniciada com o pau-brasil e continuada depois com
o cultivo da cana de açúcar e da pecuária.
O modelo eurocêntrico teve sua base de organização social no sistema
monolítico e monocultural, impondo-se sobre a diversidade de organização étnica
dos nativos e do poder político e religioso endógeno, atrelando-os ao controle da
estrutura externa, oposta ao modus vivendi indígena. No interior deste contexto,
franceses, holandeses e ingleses participam desse processo de intervenção social,
utilizando os nativos na disputa territorial, exploração das riquezas e do trabalho na
correlação de forças. A partir do cenário em que ocorreu, e ocorrem atualmente,
encontros, desencontros e confrontos entre os diversos mundos europeus e
indígenas.
No campo da revisão bibliográfica e da pesquisa de campo, é visto e
considerado o antes da colonização, reconstruído no presente com suas histórias,
suas culturas, suas religiões e seus valores, construídos e armazenados pelos
sujeitos indígenas milenarmente vivenciados na história deste território. E, na
perspectiva hermenêutica e epistemológica, é feita uma análise crítica do processo
de colonização imposto, a partir de 1500, às populações indígenas do Brasil, em
suas várias etapas e formas diversas.
Por razões metodológicas, o trabalho indica duas linhas de investigação:
de um lado, os interesses e visão dos exploradores europeus, ou visões, sobre os
territórios e os habiantes indígenas; e, por outro lado, a realidade sócio-política,
econômica, cultural e religiosa indígena no curso da trama entre europeus e nativos.
Nesse campo de ação, ocorreram, e continuam a ocorrer, mobilizações
sociais forçadas e conflituosas, encontros e desencontros de projetos e cosmologias
que se debatem. Neste cenário, culturas, mitos, ritos, valores e costumes se
enfrentam, se rejeitam, se misturam e se ressignificam.
Entre os invasores, encontram-se o conflito e a disputa política,
culturalmente ligada aos seus projetos e interesses. Para os nativos, deste ponto de
vista, também não se diferenciavam, visto que eram e são etnias diversas, com
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culturas e projetos diversos. Todavia, com perspectivas diametralmente opostas às
dos invasores.
Do ponto de vista econômico, a partir da análise sobre vencidos e
vencedores, os europeus impuseram às etnias nativas o seu modelo político,
econômico, cultural e religioso. E, em consequência dessa realidade, os vencedores
construíram e estruturaram seus projetos e interesses sobre o território brasileiro,
escravizando, matando e civilizando etnocentricamente a população nativa;
posteriormente, continuam o projeto com as etnias africanas, formando o segmento
mestiço e, consequentemente, a massa excluída econômica e socialmente.
Para além dos projetos de conquistas e de submissão, foi produzido o que
é denominado, em nível ideológico e geográfico, o povo brasileiro ou nação
brasileira – categoria genérica e indefinida culturalmente -, determinada por uma
circunscrição territorial por desapropriação, impondo idioma e cultura, fazendo
sucumbir oficialmente diferenças étnicas e idiomáticas, religiões, mitos, ritos,
costumes, valores e o domínio sobre os territórios.
Cientificamente, contrapondo-se a visão dualista e mecanicista que opera
de forma simplista, a divisória na forma estanque europeu e indígena, como se
fossem blocos homogêneos internamente e entre si, mas também, reconhecendo e
afirmando a essência do projeto imperialista de dominação sobre as populações
conquistadas. Na realidade, observa-se que na materialização do processo
sóciohistórico e cultural, todos os segmentos envolvidos são levados a se
apropriarem e se reconstruírem em suas respectivas cosmologias, valores e
estruturas sociais.
Na visão do europeu, registrada em documentos oficiais e textos literários,
consta que o nativo foi tratado e narrado como selvagem. E, em consequência desta
compreensão, fora-lhe imposto o modelo civilizatório, implantado politicamente pelos
representantes da Coroa Portuguesa e do Império e, posteriormente, pela classe
dominante brasileira.
No período republicano, considerando a convivência imposta nos moldes
do conquistador e, consequentemente, com o processo de mistura entre europeu,
indígena e negros africanos, o Estado brasileiro e seus idealizadores, formularam
sua política indigenista caracterizada pela herança colonial sobre os povos nativos,
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utlizando-se da categoria de selvagem e, posteriormente, de caboclo – terminologia
destinada a desqualificar e descaracterizar de forma pejorativa os povos nativos.
Ao longo dos seus mais de 180 anos de história no país, as
constituições brasileiras foram representativas não dos anseios dos
diversos segmentos historicamente excluídos da sociedade, mas dos
interesses das elites, vinculadas a uma visão essencialmente
europeia de país. (LACERDA, 2008, p. 13).
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Frente a isto, a lógica científica, principalmente nos campos da História e
da Antropologia, impulsionada por novas abordagens teóricas e nova base
constitucional, na década de 80, redireciona o seu foco teórico e passa a pesquisar
e produzir a partir de outro enfoque, que considera o sujeito da pesquisa – os
indígenas - no espaço e no tempo contextualizado histórico e culturalmente.
Por conta da nova abordagem, os conceitos de selvagem, caboclo e índio
das teorias acadêmicas, ou academicistas, produzidos e forjados em laboratórios
passados, foram superados pela realidade engendrada pelos sujeitos históricos que
resistiram à imposição do monoculturalismo dominante, instigando a criação novos
parâmetros e redirecionamento científico.
Considerando esta realidade, a presente pesquisa se depara e busca
investigar, a partir do viés teórico étno-histórico, dialogando com a teoria do
Imaginário e da Análise de Discurso (AD), analisar os povos indígenas do sertão do
Estado de Alagoas, dados como inexistentes oficialmente e pela população nacional
até o início da década de 1980, considerando os condicionamentos e interesses que
perpassaram a formulação teórica e a política de negação da sociedade nacional, a
construção do imaginário e o processo de ressignificação e afirmação da identidade
étnica Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katökinn1 e Koiupanká2.
O problema central do trabalho é identificar nos referidos povos, objeto da
pesquisa, o processo de negação da identidade e de passagem no anonimato e no
silencio étnico por mais de um século, período em que foram desterritorializados
continuamente, enfrentaram novas estruturas e grupos sociais, mas mantiveram as
raízes e tradições culturais e religiosas e, em pleno final do século XX, conseguiram
emergir reivindicando o reconhecimento da identidade étnica e dos direitos
constitucionais.
1
Grafia originalmente apresentada pela cacica Maria das Graças, a Nina, na revelação povo
para a sociedade nacional.
2
A grafia utilizada neste trabalho dos nomes indígenas é a estabelecida pela convenção da
Associação Brasileira dos Antropólogos (ABA), em 1953.
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Ao tratar do desenvolvimento da pesquisa, em primeiro lugar, faz-se
necessário expor a identidade do pesquisador, em razão da relação histórica do
mesmo com os povos pesquisados no processo de acompanhamento de
identificação e afirmação da identidade étnica e garantia dos direitos,
particularmente com os povos Kalankó, Karuazu, Katökinn e Koiupanká.
Em setembro 1978, na condição de coordenador de grupo jovem do
movimento católico denominado Treinamento de Liderança Cristã (TLC), da
paróquia de São Cristovão, Santana do Ipanema/Alagoas, motivado por religiosas
holandesas da Congregação Franciscana de Santo Antônio e por padres da diocese
de Palmeira dos Índios, Alagoas, mobilizei a comunidade cristã local para doar
donativos para o grupo indígena Xokó, localizado no município de Porto da Folha -
Sergipe, que se encontrava acampado na Ilha de São Pedro reivindicando a
demarcação do território.
Depois da graduação universitária, em 1986, já como membro do Conselho
Indigenista Missionário/CIMI, órgão da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil/CNBB, dediquei-me efetivamente ao trabalho missionário indigenista,
passando a morar e trabalhar com o povo Fulni-ô, no município de Águas Belas,
Pernambuco, de onde a equipe prestava assistência e apoio político também aos
povos do sertão da Bahia e do Estado de Alagoas.
Neste período, mantenho os primeiros contatos com o povo Geripankó, em
Pariconha, então distrito do município de Água Branca, Alagoas, onde existia uma
equipe missionária de padres, frades, religiosas e leigos/as, com trabalho pastoral
fundamentado nos documentos do Concílio Vaticano II (1962-1965) e das
Conferências do Episcopado Latino Americano de Medellin (1968) e Puebla (1979),
e metodologicamente orientado pelo método Ver, Julgar e Agir 3 e pela Teologia da
Libertação (BOFF, 1982; GUTIÉRREZ, 1979; RUBIO, 1977) sustentado na
espiritualidade de compromisso com os pobres (BOFF, 1980) e com a transformação
das injustiças encrustradas historicamente na realidade social do Continente.
(MUÑOS, 1979).
Até o início da década de 1990, a realidade indígena de Alagoas, para
efeito de estatística, parecia estar definida com o reconhecimento de seis povos:
3
Boff, Clodovis. Como trabalhar com os excluídos. São Paulo: Paulinas, 1994.
22
Kariri- Xokó, Xucuru-Kariri, Wassu-Cocal, Tingui-Botó, Karapotó e Geripankó. Neste
período, como missionário e assessor da organização indígena Articulação dos
Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo/APOINME, durante
contato com o povo Geripankó fui convidado para conhecer um grupo de pessoas
que afirmava ser indígena e que queria conhecer os procedimentos políticos e legais
para ter a identidade étnica reconhecida e os direitos garantidos. Atendendo a
solicitação, a visita à comunidade ocorreu em maio de 1998, quando o grupo se
apresentou com o etinônimo de Kalankó e, através do pajé Antônio Preto, informou
que iria apresentar a identidade indígena à sociedade nacional, o que aconteceu no
dia 26 de julho daquele ano.
Impulsionados pelo processo de movimentação local e mobilização
estadual, regional e nacional dos povos indígenas, os dois povos, Geripankó e
Kalankó, organizaram cursos de formação sobre direitos indígenas na Constituição
Federal de 1988, com o assessoramento da equipe missionária e jurídica do
Regional CIMI/Nordeste.
Observei que, durante a realização dos encontros, lideranças indígenas
participavam sem identificação de grupo até então, ato que somente um ano depois
aconteceu. Como resultado desse processo, obedecendo à sequência cronológica,
em abril de 2000, o grupo de famílias Karuazu assumiu a identidade étnica, sob as
lideranças do pajé Antônio Santos e do cacique Edvaldo dos Santos; em setembo do
mesmo ano, foi a vez do povo Katökinn, liderado pelo pajé Juvino Henrique dos
Santos, mais conhecido por Arvilino, e a cacique Maria das Graças, a Nina; e, em
dezembro de 2001, o povo Koiupanká, representado pelo cacique Zezinho e o Pajé
Antônio Silva.
Neste contexto, demonstro que o presente trabalho desenvolvido pelo
pesquisador tem sua origem na militância missionária e indigenista, orientado
metodologicamente pela prática da inculturação e expresso na convivência e
observação do cotidiano das práticas religiosas, da organização política, das
mobilizações e das manifestações reivindicatórias (OLIVEIRA, 1988), além do
assessoramento e acompanhamento das etapas de reconhecimento étnico e
formação da organização política em defesa dos direitos indígenas, da assistência
em saúde, educação e da recuperação dos territórios (NEDEL, 1984).
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Em consonância com o aspecto estritamente científico, em vista da
constatação de minha estreita relação histórica e política como sujeito pesquisador
com o objeto pesquisado, compreendo a necessidade do policiamento e a vigilância
de forma permanente e intransigente durante a pesquisa, com o devido
distanciamento objetivo e metodológico, para que o resultado da pesquisa não sofra
influência indevida em nível ideológico, político, religioso e social. Referindo-se
sobre a alteridade do cientista, afirma Eni P. Orlandi: “Ele não reflete, mas situa,
compreende, o movimento de interpretação inscrito no objeto simbólico que é seu
alvo. Ele pode então contemplar (teorizar) e expor (descrever) os eleitos da
interpretação”. (1998, p.61).
Postas as considerações acima, seguem didaticamente os procedimentos
metodológicos da pesquisa: iniciei com a preparação e elaboração do projeto,
obedecendo aos procedimentos estruturais da metodologia científica e do trabalho
acadêmico, com identificação e delimitação da relevância temática e importância
social, considerando efetivamente a originalidade e pertinência do assunto quanto à
identificação pessoal, o retorno para a sociedade e para a academia.
Com a aprovação do projeto de pesquisa, o trabalho se desenvolveu em
duas instâncias acadêmicas: na Université Stendhal Grenoble 3, França, sob a
orientação teórica e metodológica do Prof. Dr. Philipe Walter, em nível presencial
durante três etapas consecutivas, e online, durante quatro anos, com aulas dirigidas,
palestras, seminários e simpósios internacionais; e na Pontífícia Universidade
Católica/PUC-MINAS, o trabalho transcorreu sob a orientação teórica e
metodológica do Prof, Dr. Hugo Mari, com aulas presenciais das disciplinas
específicas da matriz curricular do curso de Linguística, seminários avançados e a
produção de artigos cientificos.
Durante o período em que transcorreu a pesquisa, como pesquisador
produzi e publiquei artigos científicos referentes à temática em revistas
especializadas; apresentei trabalhos em congressos acadêmicos, simpósios
internacionais e seminários temáticos, em níveis local, regional e nacional; participei
de eventos e atividades promovidas pelas instituições às quais estou vinculado
academicamente, como também de atividades realizadas por outras instituções
universitárias do Brasil.
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Quanto à pesquisa bibliográfica, realizei ampla revisão bibliográfica e
leituras de obras inusitadas sobre a temática, no campo da historiografia indígena,
antropologia e linguística, com leituras organizadas em fichamento e resumo, de
acordo com as orientações dos professores orientadores e das disciplinas cursadas.
Para a execução da pesquisa de campo, as ações foram planejadas e
realizadas obedecendo ao cronograma metodologicamente elaborado para atender
às demandas específicas do trabaho e do calendário religioso dos povos estudados.
Dentre as atividades realizadas, coloquei em prática a pesquisa participante,
observando e registrando os aspectos considerados importantes no comportamento
social, político e religioso dos membros das comunidades em seu habitat; os
encontros e reuniões promovidas por organizações governamentais e entidades não
governamentais, autoridades e agentes indigenistas; organização, planejamento e
execução das atividades políticas, e, especialmente, no período da realização dos
rituais religiosos.
25
Índio/FUNAI; o Estatuto do Índio, a Lei 6.001/73; a Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho/OIT, e os direitos indígenas na Constituição Federal de
1988, destacando-se a superação do instituto da Tutela e o reconhecimento da
Autonomia.
No segundo capítulo abordei a temática cultura, identidade e imaginário,
com o objetivo de fundamentar e conceituar os conteúdos do monoculturalismo e da
diversidade étnica em consonância com a identidade étnica e a teoria do imaginário,
na busca de compreender os mecanismos de dominação e propagação ideológica
dos interesses ocidentais sobre as populações nativas e a superação destas
enquanto processo de apropriação e ressignificação dentro do fenômeno
emergência étnica no Nordeste, objetivamente, o ocorrido com os povos indígenas
do sertão de Alagoas.
Em razão da relação étnica dos povos do Sertão de Alagoas, objeto da
presente pesquisa, e a etnia Pankaruru, em nível histórico, cultural, religioso e
político, apresentei um quadro sobre a realidade social e a estrutura política,
econômica, cultural e religiosa do aldeamento Brejo dos Padres e Entre Serras, em
Pernambuco; a participação missionária no processo de confinamento; a
desterritorialização geradora dos conflitos territoriais, étnicos e interétnicos; a
sobreposição dos núcleos urbanos sobre o território indígena e a luta pela
recuperação dos territórios; o calendário religioso das práticas e ritos e a importância
e apoio dos Pankararu no processo de formação e ressurgimento dos povos
indígenas do Sertão de Alagoas.
No terceiro capítulo, apresento o estudo e análise sobre os povos
indígenas Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katökinn e Koiupanká, considerando suas
origens históricas, culturais e religiosas no aldeamento Brejo dos Padres, os
conflitos e dispersão ocorridos ao longo do século XIX e XX; a territorialização na
região do Sertão de Alagoas, seguida da expulsão dos territórios; a negação das
identidades aliadas ao processo de silenciamento étnico. Ao longo deste período,
destaco a capacidade criativa desses grupos indígenas de manterem vivos os
rituais, tendo como referência, fonte e matriz a cultura Pankararu e, ao mesmo
tempo, a relação com a sociedade do entorno das comunidades, em permanente
fricção interétnica cultural, econômica e religiosa.
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Em nível nacional, no contexto da abertura política e redemocraticação do
Brasil, no final da década de 1970, e na década de 80 no processo constituinte,
ocorre a inserção das populações indígenas nas mobilizações e manifestações
políticas e na luta pelo reconhecimento dos direitos.
Até aquele período, imperava na sociedade a compreensão de que não
havia mais indígenas no Nordeste brasileiro, visto que as populações existentes
encontravam-se misturadas com a população sertaneja, restando-lhes apenas a
figuração e denominação de caboclo.
Contrariando a lógica oficial e a da sociedade nacional, os povos indígenas
do Nordeste retomaram a luta pela recuperação da terra, com o apoio de entidades
religiosas, não governamentais e pesquisadores.
Neste contexto, apresentei, neste capítulo, a análise sobre os povos
considerados extintos, sua emergência étnica reivindicatória do reconhecimento
étnico, dos direitos constitucionais e, principalmente, da demarcação dos territórios.
Identifico que o contato desses grupos indígenas, desde a origem
Pankararu até a região sertaneja alagoana e a convivência com a população local
não ocorreu de forma estanque e paralela. Observo que, nas diversas fases e
situações em que viveram e se encontram atualmente, colonizadores, invasores,
religiosos, coronéis, sertanejos e indígenas, a convivência ocorre entre permanentes
conflitos, negociação, adaptação, construção e desconstrução, apropriação e
ressignificação, respaldada na elaboração discursiva de aceitação e submissão ao
modelo imposto ou, considerando o novo cenário social e político, a construção e
reelaboração da afirmação étnica e da autonomia política.
Constatei com a pesquisa que, considerando a revisão bibliográfica, a
observação de campo e a análise das entrevistas com os membros da comunidade,
a afirmação étnica não é uma necessidade que parte do interior das comunidades e
da população indígena em geral, mas é colocada pela sociedade nacional e/ou por
instituições governamentais e não governamentais.
Em vista desta constatação, a metodologia utilizada para o
desenvolvimento do trabalho reconhece e coloca como princípio a autonomia dos
povos indígenas, tratando-os como sujeitos históricos e atores do prórpio processo
de ressignificação dos mitos, símbolos culturais e religiosos e da afirmação étnica.
27
Diante das constatações acima mencionadas, o trabalho demostrou que a
emergência étnica Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katökinn e Koupanká foi resultado
da opção e decisão política desses povos, tomadas em determinado espaço e
tempo, impulsionada pela conjuntura internacional e brasileira, com o objetivo do
reconhecimento de uma realidade histórica, anteriormente vivenciada dentro de suas
respectivas culturas, mitos, ritos e identidades construídas.
Ademais, para garantir o direito de se manifestarem livremente em suas
culturas e religiões e, junto a isto, conquistar os direitos garantidos legalmente pelo
Estado brasileiro para os segmentos étnicos, os grupos se assumiram como povos
diferenciados, afirmando a identidade e reivindicando os direitos constitucionais.
Neste cenário, constato dois momentos de um mesmo processo histórico
na vida destas populações: o cotidiano das comunidades; e a relação dos indígenas
com a população do entorno. No primeiro, os indígenas conduzem a vida cotidiana
cumprindo as mesmas atribuições, regras e tendo os mesmos comportamentos de
um sertanejo, exceto durante o calendário religioso; em vista disso, são confundidos
com a população do entorno, marcando a diferença durante os períodos de
celebrações religiosas.
Por outro lado, quando da participação em reuniões, seminários e eventos
políticos com autoridades governamentais, indigenistas e pesquisadores, em geral,
os indígenas se apresentam com roupas, adereços e pinturas típicas do estereótipo
exótico construído pela socidade nacional, com produções, comportamentos e
elaborações discursivas apropriadas ao interlocutor, demarcando com isso as
fronteiras culturais com a afirmação de uma identidade étnica que atenda as
expectativas do outro, o não indígena.
Na presente análise do trabalho, constato e demonstro que a identidade
indígena é mantida, alimentada, construída, reconstruída e ressignificada
permanentemente no imaginário destes povos e vivenciada pelos sujeitos históricos
em seu tempo e espaço próprio.
28
1. COLONIZAÇÃO PORTUGUESA E POVOS INDÍGENAS NO
NORDESTE BRASILEIRO: SÉCULOS XVIII – XXI
29
O desaparecimento do povo Caeté da região alagoana deveu-se a valentia
e reação deste povo contra os invasores de seus territórios e a colonização 4, que
culminou com a acusação de ser o responsável pela morte do primeiro bispo do
Brasil, Dom Pero Fernandes Sardinha5, em 15 de junho de 1556, tem como
consequência o acirramento dos conflitos com colonos e seus aliados, escravos e
indígenas de outras nações. Afirma o historiador Álvaro Queiroz: “Após o
assassinato do primeiro bispo, D. Pero Fernandes Sardinha, atribuído aos Caetés,
empreendeu-se uma das mais cruéis e violentas „guerras santas‟ de que se tem
notícia em nossa história”. (2010, p. 29). “A „Guerra dos Caetés‟ durou de três a
cinco anos, a partir de 1560. Naquela época, talvez somassem, esses índios, uns
oitenta mil, dos quais quase a metade retirou-se da Capitania de Pernambuco,
inclusive os do sul das Alagoas”. (Op. cit., p. 161).
Da guerra contra colonos, espoliação dos territórios, migração e
contaminação de doenças transmitidas pela população branca resultou o
desaparecimento do povo Caeté das terras alagoanas, como de outras populações
da família tupi – “... senhoras da costa oriental do Brasil no século do descobrimento,
quando desapareceram do seu mapa”. (Ibidem., p. 148).
Além do povo Caeté, encontravam-se registrados em documentos
históricos e, depois da emancipação política de Alagoas em 16 de setembro de
1817, nos relatórios anualmente apresentados pelos presidentes na Assembleia
Provicinal, a presença de outros grupos indígenas que circulavam ou viviam em
terras alagoanas. No Quadro I, organizado no livro do antropólogo Clovis Antunes
(1984, p. 15), encontram-se registrados 20 grupos indígenas: Abacariaras, Aconãs,
Caetés, Cariris (Kariris), Canapotiós, Ceococes, Moriquitos (Mosquitos?), Natu,
Prakiô, Pipianos (Pipiões), Prato (Pratto), Potiguaras, Romaris (Omaris), Shocó
(Xocó), Shucurus, Umãs (Umans), Vouvés, Wakona (“Shucuru, Cariri”), Tingui-Botó
(Tingui-Botó-Wakonã), Wassu6.
4
Rererindo-se ao castigo aplicado aos indígenas da Bahia pelo primeio Governador-Geral
do Brasil, Thomé de Souza, Jayme de Altavila afirma em relação ao grupo Caeté: “Idêntico
castigo aplicou Jerônimo de Albuquerque aos selvagens que impediam a colonização
eficiente do nosso território”. (1988, p. 20).
5
Ver LEMOS, João R. Dom Fernandes Sardinha – Um bispo, Mártir, em Coruripe.
Maceió, 2004.
6
O uso da grafia dos etinônimos obedeceu ao texto original do autor do livro.
30
Com a ação dos colonizadores (LEÓN-PORTILLA, 1987) e da
evangelização, os territórios anteriormente ocupados pelos indígenas foram
tomados, provocando a sua espoliação, escravização e dipersão da maioria dos
grupos7.
No Relatório do Governo Provincial dirigido à Assembleia Legislativa das
Alagoas, em 13 de junho 1862, pelo Bacharel Manoel Lourenço da Silveira, o
mesmo afirma: “nada originalmente consta dos archivos públicos sobre o facto
anterior da instituição de aldeiamentos dos índios, ora existentes”. (Apud
ALBUQUERQUE, 1984, p. 16). Logo em seguida, no mesmo documento-relatório,
reconhece a existência de 8 aldeias indígenas: Jacuípe, Cocal, Urucú, Limoeiro,
Santo Amaro, Atalaia, Palmeira dos Índios e Colégio ou Porto Real. O historiador
Queiroz, em sua obra Episódios da História de Alagoas, cita 10 grupos: “Na região
Norte de nosso território viviam os Potiguares e Tabajaras. No litoral e vale do São
Francisco, os Caetés, Kariris, Aconans, Coropotós e Moriquitos. Na parte Oeste, os
Xucurus, Vouvés e Pipiannos”. (Op, cit., p. 28).
Oficialmente, a extinsão dos aldeamentos indígenas (JÚNIOR, 2013) foi
decretada em 1872, sendo as terras transferidas para particulares e para o
patrimônio público. Apesar disso, os grupos indígenas continuaram existindo e
reivindicando os seus direitos, como atesta o professor e estudioso Clovis Antunes:
“apesar de serem extintos os aldeamentos na Província das Alagoas pelos anos idos
de 1872, os índios das Aldeias de Porto Real do Colégio e de Palmeira dos Índios 8
sempre lutaram pelo reconhecimento dos seus direitos, especialmente pela posse
das suas terras”. (Op. cit., p. 9).
Observa-se que, há mais de 500 anos, as populações indígenas do
Nordeste foram colocadas diante de projetos estranhos às suas culturas,
organizações sociais, políticas, econômicas e religiosas, expulsas de forma violenta
de seus territórios tradicionais e obrigadas permanentemente a se deslocarem para
outras regiões em busca de outros espaços e localidades. “Os invasores fizeram
7
LINDOSO, Dirceu. A utopia armada – Rebeliões de Pobres nas Matas do Tombo Real.
2ª ed. Maceió: Edufal, 2005.
8
MATA, Vera Lucia Calheiros. A Semente da Terra - Identidade e Conquista Territorial
por um Grupo Indígena Integrado. Maceió: EDUFAL, 2014.
31
contínuas guerras contra os indígenas, com a finalidade de prendê-los e vendê-los
como escravos”. (PREZIA; HOORNAERT, 1994, p. 72).
E completa Rodrigues: “Naturalmente, o maior número de línguas
indígenas desapareceu nas áreas que foram colonizadas há mais tempo e mais
intensamente, constituídas pela região Sudeste e pela maior parte das regiões
Nordeste e Sul do país”. (Op. cit., 1986, p. 19).
32
população do entorno e, assim, poder cobrar o reconhecimento dos direitos
constitucionais.
O conhecimento público da identidade étnica dos povos do sertão, as
mobilizações políticas e tradições religiosas passaram a ser veiculados pela mídia,
mesmo que ainda condicionada por uma visão estereotipada e caricaturizada pelo
silvícola amazônico, contrapondo-se à imagem e à realidade histórica, social,
econômica, política e religiosa das etnias e das populações indígenas do Nordeste.
No contexto do processo de desterritorialização e reterritorialização dos
Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katökinn e Koiupanká, a pesquisa identificou a
ressignificação do imaginário e a afirmação da identidade étnica, como também a
representação imagética construída pelas obras literárias e midiáticas, conteúdo
este que será analisado e explicitado com profundidade no último capítulo do
trabalho, limito-me aqui a constatar e apontar as bases históricas, econômicas e
sociais e os caminhos pelos quais a pesquisa trilhou.
Em vista disso, em nível da pesquisa bibliográfica referente ao período e
aos respectivos teóricos, a abordagem da temática ocorre no diálogo entre cultura e
literatura, destacando-se a fricção interétnica, a mestiçagem, as culturas híbridas e a
etnogênese. Seguindo a linha de investigação teórica, o estudo aponta o
desenvolvimento, o papel e os impactos da mídia no contexto da indústria cultural,
impulsionado pela globalização e emergência das identidades étnicas.
(MATTELART, 2005).
Por outro lado, os ritos e mitos Pankararu, Geripankó, Kalankó, Karuazu,
Katökinn e Koiupanká foram registrados na etnohistoriografia e na história oral dos
anciãos, com suas estruturas, formação e, posterior, reestruturação no processo de
ressignificação e afirmação da identidade étnica.
A origem e matriz cultural dos povos emergentes encontram seus
elementos fundantes no grupo Pankararu. Sua organização religiosa e base
mitológica estão fundadas nos espíritos dos antepassados, celebrados durante os
rituais religiosos e no cotidiano, como guias que protegem e orientam os membros
das comunidades.
A partir da organização Pankararu, a análise identifica a base social,
cultural e estrutural do imaginário identitário Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katökinn
33
e Koiupanká, os componentes do meio ambiente geográfico e simbólico que
possibilitaram a ressignificação mitológica Pankararu no contexto de
desterritorialização e reterritorialização do semiárido alagoano.
No campo especificamente cultural, a continuidade dos Encantados
Pankararu foi possibilitada pela volta permanente dos membros dessas
comunidades indígenas ressurgentes às fontes. Retomam, assim, a ligação e a
reconstrução da organização social e a afirmação da identidade étnica, mesmos
inseridos no longo processo de submersão à cultura sertaneja e ao imaginário
cristão.
O problema central desse processo apresenta-se nos elementos que
perpassam as relações interétnicas entre povos indígenas e a sociedade nacional,
submetidas aos conflitos e às negociações, que condicionaram a negação e
afirmação da identidade e a busca pela recuperação dos respectivos territórios
ocupados anteriomente pelos antepassados. Isto porque, encontra-se no imaginário
indígena do sertão, a relação intrínseca entre o território, os Encantados e a
identidade étnica. No ressurgimento ou etnogênese, a construção política e étnica
sustenta-se na religião dos espíritos dos Encantados que caracteriza a identidade
diferenciada em relação à população do entorno.
Constato, com isso, que os povos Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katökinn
e Koiupanká reconstruíram étnico, social e culturalmente o imaginário no processo
de reterritorialização, na relação direta com a mitologia Pankararu e a
reinterpretação simbólica, possibilitando a ressignificação no semiárido alagoano,
inseridos em uma sociedade nacional que os marginaliza e não os reconhece em
suas identidades diferenciadas.
A tensão entre os aldeamentos missionários, o expansionismo agropastoril
no sertão e da cultura da cana de açúcar no litoral, provocaram nas populações
indígenas uma relação ininterruptamente conflituosa. A manutenção da identidade
indígena recorreu à negociação com estes três segmentos, como forma de
resistência à submissão (BURSZTYN, 1984). O recurso à tradição oral,
fundamentado na memória dos mais velhos, manteve-se imbricado entre a
apropriação dos elementos da cultura indígena e da cultura sertaneja, da religião
católica e a dos afrodescendentes (SILVÉRIO; PINTO; ROSEMBERG, 2011).
34
Aspectos estes que se encontram presentes na organização e luta das comunidades
indígenas pela garantia dos direitos e recuperação dos territórios.
A íntima relação com os rituais e a formação com os guias – entidades
espirituais - Pankararu, possibilitaram a resistência frente à cultura do entorno, como
também a participação de lideranças indígenas no processo de redemocratização do
país na década de 1980 e a reivindicação do reconhecimento dos direitos pelo
Estado brasileiro.
Com o fim do regime militar, os anseios da sociedade civil
organizada pela construção de uma democracia plural e participativa
levaram à exigênica do fim do „entulho autoritário‟, expressão então
usada para denominar os requícios antidemocráticos ainda presentes
na legislação e nas práticas do poder público. (LACERDA, 2008, p.
31).
9
Denominação dos Encantados, que aparecem para alguns indígenas, em localidades
diversas. Esses indígenas assumem a obrigação de cuidar e zelar dos praiás.
35
temporalidades distintas parece ser um traço caracterísitco da
atuação „milenarista‟. (POMPA, 2002, p.167).
36
aldeamento e a diáspora dos grupos pertencentes ao povo Pankararu. E, no
segundo momento, em consonância com os interesseses dos colonizadores, é
contruída a política integracionista governamental para as etnias indígenas, que
perduraram legalmente até a promulgação da Consituição brasileira de 1988.
10
Termo utilizado oficialmente para definir a chegada das caravelas portuguesas, em 22 de
abril de 1500, ao Brasil. Portanto, sempre será utilizado neste trabalho referindo-se à
chegada dos portugueses, inclusive o que adveio com eles, e será empregado entre aspas
ou itálico para designar a invasão e não descobrimento de algo novo.
38
Com o obetivo de recuperação e superação da ausência nos relatos
históricos da presença dos povos indígenas anterior à chegada dos portugueses,
cabe lembrar o processo de ocupação territorial, povoamento da América e,
particularmente, do Brasil, envolvendo a presença de milhões de habitantes e
centenas de etnias já presentes no Continente.
Segundo Prezia e Hoornaert,
Ainda não há consenso entre os pesquisadores sobre quando e
como chegaram os primeiros grupos humanos na América. Alguns
acreditam que tenha sido há cerca de 12 mil anos, enquanto outros
defendem uma data bem mais recuada (cerca de 48 mil anos), como
Niède Guidon e os pesquisadores de São Raimundo Nonato, no
Piauí. (2000, p. 23).
40
Como instrumentos dessa política, os governantes engajavam os indígenas nas
fileiras militares e, através da disciplina e da formação, teriam a possibilidade de
inserí-los nos costumes e valores da sociedade brasileira.
Em nível geral, segundo Vasconcelos,
Os indígenas eram retirados de suas terras para servir ao serviço
militar e com isso abriam espaço cada vez mais para a ocupação
branca. O uso da mão-de-obra indígena era uma prática rotineira na
região. O engajamento desses índios às tropas brasileiras fazia-se
mediante presentes e promessas de concessão de terras. (1999, p.
43 e 87).
41
No contexto da empresa colonial, a monarquia portuguesa estava
representada pelos agentes do mercantilsmo e, acompanhando-os, os missionários
católicos. No cenário da ação colonizadora, as missões cumpriram um papel
ambíguo no trabalho junto às populações indígenas. Em nome da fé, os missionários
buscavam almas para o seu domínio religioso, transformando-os em católicos, mas
também em mão de obra, com a proteção violenta dos colonizadores. Padre Pinho,
em missão junto aos indígenas, revela: “(...) pero o qual nos denunciao de ajuntarse
em maiores povoações, porq. não era possível visitar tantas povoações”. (Francisco
Pinto, Carta ao P. Geral. 17 de janeiro de 1600, ARSI, Bras. 3 (1), ff.177-179 apud
POMPA, 2002, p 158). João Pacheco de Oliveira, tratando do papel das missões,
afirma: “eram núcleos coloniais que objetivavam a catequização dos indígenas e a
geração de riquezas para a Coroa e as próprias Ordens Religiosas”. (Op. cit., p. 24).
As atrocidades contra os indígenas, massacres, extermínio e escravização
foram cometidas desde o início da colonização, testemunhadas pelo frei Martinho de
Nantes; registradas em 1706:
Renderam-se todos, sob a condição de que lhes poupassem a vida.
Mas os portugueses, obrigando-os a entregar as armas, os amarram
e dois dias depois, mataram a sangue frio todos os homens de arma,
em número de quase quinhentos, e fizeram seus filhos e mulheres.
(...) Os portugueses entraram na cidade da Bahia como triunfadores,
apresentando-se ao governador, pedindo licença para a distribuição
dos escravos que haviam feito. (Apud CIMI, 2001, p. 41-42).
11
Figura que representava o poder econômico e político de uma determinada região,
expressa principalmente na posse de grandes extensões de terra.
43
Frente aos ataques e impacto econômico e sociocultural, referindo as
populações indígenas do Nordeste, e considerando ser a área de colonização
brasileira mais antiga, o antropólogo João Pacheco de Oliveira, afirma:
Para as etnias que sobreviveram só existiram dois caminhos: ou
buscavam temporariamente áreas de refúgio, algumas vezes
coexistindo com quilombos, até que viessem a ser incomodados por
novas pretensões territoriais das fazendas e dos pequenos
agregados urbanos; ou foram incorporados pelo processo civilizatório
– seja insulados (isto é, reunidas, reterritorializadas e disciplinadas
pelas missões religiosas), ou colhidas na sua capacidade (i.e.,
fragmentadas em famílias e coletividades acabocladas ou
destribalizadas). (1999, p. 24).
44
visão eurocêntrica e enraizada no projeto imperialista de dominação econômica,
cultural e religiosa das populações indígenas.
A partir da Análise do Discurso, identifiquei na estrutura textual a
formação literária de matriz europeia veiculada através dos discursos produzidos
pelos agentes da colonização e da evangelização. Além disso, observei que nos
discursos missionários encontra-se embutido o projeto de uma sociedade monolítica
e monocultural, com explícita negação do outro e da diversidade étnica.
Por fim, a análise discursiva demonstra que a leitura de um texto é
necessariamente contextualizada do ponto de vista histórico. No caso dos textos
referentes ao Brasil, deve-se compreendê-los a partir das condições em que foram
escritos, por quem foram escritos e o objetivo para o qual foram destinados. No
cenário da colonização, identifiquei uma literatura de origem variada, com elementos
unificadores da matriz greco-romano e cristã.
12
Terminologia inadequada do ponto vista histórico, visto que o território encontrado pelos
europeus no início do século XVI já se encontrava habitado pelo ser humano acerca de 40
mil anos, com suas organizações, culturas, religiões, costumes e tradições.
45
de tom colonialista, retoma todo um imaginário da tradição grega e também
medieval. O mesmo acontece com Léry, ao relatar sua “Viagem à Terra do Brasil”.
Estes textos constroem um imaginário sobre o Novo Mundo, um imaginário
que reúne aspectos heterogêneos da realidade. Estes relatos tornam-se fontes de
referência em certos textos, como os ensaios de Montaigne, escritos de poetas e
muitos outros. Estes conhecimentos sobre o Novo Mundo desencadeiam uma série
de reflexões na Europa, favorecendo assim a produção de um rico imaginário.
Entre 1612 e 1615, houve outra empresa colonizadora francesa, desta vez
no Nordeste do Brasil. Alguns religiosos, missionários capuchinhos franceses, como
Claude d‟Abeville e Yves d‟Évreux, relatam sua viagem e prática catequética entre
os indígenas.
Dois aspectos importantes se destacam nessas duas fontes de produção
do discurso: por um lado, enquanto o discurso dos viajantes se dirige mais aos
europeus, como tivesse como objetivo a confirmação ou crítica, dependendo da
perspectiva, ao modelo de sociedade, interesses políticos e econômicos; por outro, o
discurso dos missionários dirige-se em grande parte para os nativos, com objetivo
claro de conversão e inserção no modelo de cristandade.
Mesmo que os franceses tenham sido expulsos do Maranhão13, os
missionários franceses se fazem presentes em conventos capuchinhos e nas
missões entre os indígenas, sob o domínio do reino português14. Martinho de Nantes
chegou ao Brasil, em 1671, em Pernambuco, onde havia um convento de sua
ordem. Aproximadamente em 1706, o frei capuchinho Martinho de Nantes publica a
primeira edição da Rélation succinte et sincère. A sua presença tinha como objetivo
ajudar na pacificação de indígenas que habitavam junto às redondezas do rio São
Francisco, onde havia sérios confrontos entre indígenas e portugueses na disputa
pela terra.
O relato de Nantes não se reduzia, a exemplo do que aconteceu com
Abbeville e Évreux, às descrições detalhadas da viagem, da descoberta, das coisas
desconhecidas. Nantes se atém com prioridade na narração das missões entre os
13
QUEIROZ, Álvaro. A Igreja e os Sistemas de Governo na História, 2010.
46
indígenas, à narração dos conflitos envolvendo sesmeiros, governadores, superiores
religiosos e autoridades do reino.
Os relatos de viajantes e missionários propõem-se a satisfazer essa
curiosidade, a dar prazer aos leitores e a contentá-los com o conhecimento sobre o
Novo Mundo. Era necessário que os viajantes prestassem conta aos superiores
religiosos e aos franceses que faziam perguntas a respeito das Índias Orientais.
A escrita é para os europeus o conhecimento verdadeiro das coisas, em
primeiro lugar, através das Escrituras Santas, depois pelo intermédio da ciência.
Atribuindo aos indígenas a ignorância da escrita, os colonizadores dão um estatuto
aos conhecimentos deles, classificando-os como superstições e falsidades.
Entretanto, é através desses conhecimentos e do discurso indígena, que este é
integrado na tradição escrita.
E, de fato, os selvagens ensinam e recitam a seus filhos os
acontecimentos dignos de memória. E nisso passam os velhos a
maior parte da noite, depois que despertam, contando história aos
mais novos. Vendo-os, julgareis que são pregadores ou mestres em
suas cátedras. (Apud NUNES, 1994, p. 82).
15
Neste contexto, do ponto de visto teórico, compreende-se que uma leitura pode ser
valorizada a partir de vários princípios, como a coerência, o prazer, a verdade, a
comparação e os interesses políticos, religiosos e ideológicos. A leitura é uma atividade ao
mesmo tempo individual e social, mais social porque está sujeita às convenções linguísticas,
ao contexto social e à política.
47
Partindo dessa visão, interpreta-se que o filósofo coloca no indígena o referencial
questionador do modelo social da soceidade europeia medieval, ao mesmo tempo
em que aponta novas bases de pensamento.
No Brasil, as práticas de leitura estiveram, por longo tempo,
predominantemente ligadas à Igreja, como centro de difusão a escola. Neste
contexto, os discursos dos viajantes trazem uma série de elementos da memória
discursiva europeia; entretanto, não têm uma tradição de leitura com a qual eles
possam se confrontar, pois, não há discurso já instituído sobre os indígenas. A
escrita dos europeus dá-se no contato com o discurso dos nativos.
O fato de haver habitantes quando os colonizadores chegaram, traz
algumas opções para os europeus, entre as quais se destacam duas: conquistar o
território pela força, eliminando as culturas indígenas e suas memórias; ou travar
relações de contato que tragam benefícios para os reinos, num processo de
dominação e transformação política e cultural. As duas opções foram efetuadas,
dependendo das condições políticas, sociais, economias e históricas. E, com isso, a
prática dos missionários traz as condições para a realização de leituras no país a
partir da perspectiva do colonizador. Assim, a memória discursiva abre-se para o
indígena e para os leitores no Brasil.
No caso dos missionários franceses, a empresa colonizadora visa o
estabelecimento de uma colônia francesa no Brasil. Os missionários agem entre os
indígenas para que se forme uma “boa sociedade”, a união entre franceses e índios.
Nós abaixo-assinados, dando voluntariamente nossos bens e nossas
vidas em prol do estabelecimento da colônia francesa além da linha
equinocial, a serviço do rei, em obediência aos desejos de sua
majestade e às promessas de nossos chefes, reconhecendo que só
pela disciplina, pela união e a boa conduta entre os índios,
poderemos alcançar tão louvável e
generoso intento, prometemos, em benefício dessas ações
essenciais, fazer tudo o que depender de nossa coragem,
constância, observância das leis francesas, obediência, caridade e
bom entendimento e ainda tudo o mais que se faça necessário a
48
manter em paz e união uma boa sociedade. (A, 21, apud NUNES,
1994, p. 21).
49
Diz Platão no „Livro dos Convivas‟ que os primeiros homens foram
gêmeos e que se separaram quando Pandora descobriu o pomo da
desgraça. Parece-me que o mesmo querem dizer os nossos índios
tupinambá quando contam, o que ouvi dos mais velhos dentre eles,
que anteriormente ao dilúvio eram uma só a sua nação e a nossa,
que todos descendemos do mesmo pai mas que eles são os mais
velhos e nós os mais moços. Dizem que depois do Dilúvio nós fomos
separados deles e passamos a ser os mais velhos porque o avô
deles não quisera receber a espada do profeta que Deus lhe enviara.
(A, 7 apud NUNES, 1994, p. 89).
50
p. 363). Os missionários procuram forma d eadaptção da mensagem cristã à cultura
indígena, identicando a capacidade interpretativa, mas, com os companheiros, agem
com um discurso de desmoralização da figura do pajé, que produz no discurso um
efeito de apagamento da memória do indígena, com o abandono de suas crenças.
O missionário, em sua metodologia catequética, salienta as qualidades
naturais dos índios:
Mostram os selvagens sua caridade natural presenteando-se
diariamente uns aos outros com veações, peixes, frutas e outros
bens do país; e prezam de tal forma essa virtude que morreriam de
vergonha se vissem o vizinho sofrer falta do que possuem; e com a
mesma liberalidade tratam os seus aliados. (L, 330 apud NUNES,
1994, p. 95).
51
los, por exemplo, os missionários exigem marcas e provas de seu desejo. Importa
que eles recitem as orações e repita os textos religiosos.
Guardávamos uniformemente o método de não batizar nenhum
adulto antes que desses sinais e provas de seu desejo de tornar-se
cristão elo fidelidade às práticas respectivas, de forma que
queríamos ter cristãos pelas obras antes que pelo nome. (N, 40 apud
NUNES, 1994, p. 98).
52
se aterrarão e fugirão do Egito - são explicados, em seguida, de acordo com a
interpretação do missionário:
Discurso em verdade admirável! Quem são esses banidos e exilados
no Ocidente senão esses pobres índios Tupinambás da ilha do
maranhão e terras circunvizinhas que, para fugir à crueldade e à
tirania de seus inimigos, viram-se forcados a deixar sua pátria e as
regiões em que nasceram para refugiar-se nessas ilhas marítimas e
plagas próximas do mar em que se encontram agora? (A, 6 apud
NUNES, 1994, p.88).
E completa,
Assim como as sementes „caminham‟ e procuram outros zeladores,
muitos Pankararu costumam migrar para várias comunidades e,
inevitavelmente, levam suas crenças e valores ancestrais. Por ser
assim, talvez, subconscientemente, temos a necessidade de
„semear‟ cultura como forma de mantê-la cada vez mais viva, pois
mesmo que o „novo grupo‟ venha a dar-lhe uma outra conotação,
estará lá, sempre, uma parte da memória Pankararu. (Ibidem., p. 7).
Sobre o assunto, transcrevo entrevista que relata o meu diálogo com o pajé
António Karuazu:
57
internacional. E com o crescimento populacional e a estruturação de organizações
internas, fortaleceram a reconstrução da identidade étnica e novas formas de
articulação interétnica. A partir desse processo, a quantidade de povos e a
população não pararam de crescer (OLIVEIRA, 1999).
A desestruturação do território no aldeamento Brejo dos Padres ocorreu
com divisão das terras em lotes para as famílias Pankararu, tratada pelos indígenas
como o tempo de linhas. Para os estudiosos, talvez esse fato tenha sido o fator
determinante para impulsionar a diáspora Pankararu, junto com a perseguição de
fazendeiros e coronéis. Com a falta de terra, ocasionou a fome, doenças e o
acirramento dos conflitos internos, provocando a saída de muitas famílias.
58
E completa: ”Rio São Francisco que foi, inegavelmente, o caminho que
levou o EVANGELHO ao sul da Capitania de Pernambuco (Território alagoano),
entendendendo-se pelo sertão” (Op. cit., p. 23).
De forma inquestionável, identifica-se em todos os momentos da história
oficial a presença indígena, e, dependendo da perspectiva política ou religiosa, é
tratado como selvagem, infiel e objeto da civilização ou dominado servindo de
coadjuvante em atividades desenvolvidas por senhores de engenho, religiosos ou
bandeirantes.
Na história da colonização do território brasileiro, as etnias indígenas são
inseridas, e mais especificamente as localizadas no Nordeste, por cronistas,
religiosos, viajantes, historiadores e antropólogos no projeto colonial português como
objeto caracterizado pela exploração, escravização, assimilação, dominação,
servidão, militarização, catequese, cristianização, desapropriação dos territórios,
extermínio e mão de obra na perspectiva do aldeamento. (VIEIRA, 2009).
Neste contexto, a empresa colonial expressa duas faces da mesma moeda:
a dominação política e a religiosa. Dirceu Lindoso, afirma:
A tipologia das aldeias indígenas submeteu-se sempre aos
interesses dos colonizadores e aos objetivos da colonização. O que
interessava era a desapropriação das terras indígenas, onde seriam
implantadas as empresas coloniais. Acontece que essas terras
disponíveis se encontravam no espaço da precedência indígena, e
por isso era preciso modificar esse estado de precedência,
convertendo-o de estado social natural em estado social provocado,
isto é, em terras sesmeiras. (2005, p.132).
E continua:
Na carta que enviou a Tomé de Sousa, datada de 5 de julho de 1559,
o padre Manoel da Nóbrega mostra o que foi a política repressiva de
sujeição dos índios executada pelo governador-geral Men de Sá,
definindo-a como a conversão „por paz ou por guerra‟(Idem, p. 131).
17
“Nos meados do século XVI teve início a conquista do território alagoano ao íncola, que
resistiu de tacape em punho, aos invasores lusos”. (ALTAVILA, 1988, p.16).
18
Na visão dos religiosos, os indígenas são definidos como tabula rasa, que devem ser
incutido o conteúdo mínimo da civilização, para que possam viver de acordo com as leis,
regras e ritos cristãos. (POMPA, 2002, p. 259).
59
étnicos, restando apenas algumas refências étnicas diluídas com a denominação de
caboclo, nos municípios de Porto Real do Colégio e Palmeira dos Índios,
respectivamente, os grupos Kariri-Xokó e Xucuru-Kariri.
60
povos Krahô (GO), Krenak (MG), Kayapó (PA/MT), Xavante (MT),
Terena (MS) e alguns Xingüanos (MT) dirigiam-se para acompanhar
a sessão. (LACERDA, 2008, p. 56).
61
urbanos - na Cafurna de Baixo, e, depois, seguiam para Bom Conselho,
Pernambuco, a procura do apoio do padre Alfredo Dâmaso (SANTIAGO, 2000).
Essa realidade vai se manifestar com maior intensidade a partir da
segunda metade da década de 1970 e início de 1980. Apoiados na memória dos
mais velhos, participando de momentos coletivos, com apoio pesquisadores e
entidades não governamentais , aparecem em Alagoas para o cenário local e
nacional reinvindicando o reconheciemnto étnico e a demarcação da terra os povos
Wassul-Cocal, no município de Joaquim Gomes; Tingui-Botó, em Feira Grande;
Karapotó, em São Sebastião; e Geripankó, em Pariconha. E, a partir de 1998, no
Sertão de Alagoas, Kalankó, Água Branca; Karuazu e Katökinn, Pariconha; e
Koiupanká, Inhapi.
Utilizando o título do livro organizado pelo antropólogo João Pacheco de
Oliveira, estes povos fizeram a “Viagem da volta” (1999). Com o sofrimento
decorrente da inserção forçada na sociedade ocidental e o conhecimento que
adquiriram, seus objetivos estão voltados para a afirmação cultural, para a
organização das comunidades e recuperação dos territórios tradicionais.
No cenário alagoano dominado pela força do capital, do latifúndio
(TENÓRIO, 2009) e da monocultura açucareira - os povos praticam outras culturas19
-, a terra para estes povos tem importância fundamental no processo de afirmação
étnica, na reelaboração e continuidade das tradições religiosas. O espaço físico não
é somente um espaço geográfico para o indígena, mas é o lugar de reprodução
física e cultural. Para Silva, “a relação do índio com a terra e o sagrado inventa uma
coletividade étnica e reivindica a tradição de uma família, Geripankó-Pankararu”.
(Op. cit., p.79).
Os povos indígenas do Sertão de Alagoas buscam, através da recuperação
da memória dos mais velhos e do processo de formação sobre os direitos indígenas,
19
“Antes mesmo da chegada das caravelas de Cabral, o algodão já era conhecido em toda
a América do Sul, sendo cultivado pelos índios na Terra de Santa Cruz. Tanto em Alagoas,
que seria a capitania de Pernambuco, como nas capitanias vizinhas, manifestava-se como
produto nativo do exemplar arbóreo por eles utilizado na fabricação de material de caça, e
pesca, de cordas, de objetos caseiros, de redes de dormir, na alimentação e na cura de
certas moléstias”. (TENÓRIO, Douglas Apratto; LESSA, Golbery Luiz. O ciclo do algodão e
as vilas operárias. Maceió: Edufal, 2013).
62
conhecer e repassar para suas comunidades, especialmente crianças e jovens, os
direitos históricos e constitucionais.
Constato que, nos últimos decênios, os povos indígenas conseguiram
reverter o processo de depopulação e de desaparecimento das etnias. Fenômeno
este fortalecido a partir da articulação interétnica e das alianças com setores
estratégicos da sociedade, como os movimentos sociais e organizações não
governamentais. Além de numericamente ter ampliado a quantidade de etnias, os
povos do Sertão têm conquistado, paulatinamente, o reconhecimento da sociedade
e pressionado o governo Federal para que seja posto em prática o que determina a
Constituição Federal de 1988 sobre a garantia dos direitos, visto que são elementos
fundamentais na construção da autonomia.
64
de descendência Pankararu. Mais detalhadamente, como objeto de estudo da
pesquisa da presente, passo a descrever a história, a localidade e os principais
elementos sociais, políticos, econômicos, culturas e religiosos dos grupos
Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katökinn e Koiupanká.
1.7.1.1 Geripankó
65
índios. Quando passou para a aldeia, nós botamos o nome de
Geripankó. Aqui é a mesma família de lá de Pankararu. O nome é
que modifica. Até as brincadeiras dos índios são as mesmas. Lá tem
Menino do Rancho, aqui também. (SANTOS apud SILVA, p.78).
1.7.1.2 Kalankó
66
dissimular o ritual, em razão da perseguição, violência20 e discriminação praticada
pelas autoridades governamentais e policiais e pela população não indígena - dos
Geripankó e Pankararu.
Segundo Herbertta,
Em julho de 1998 apareceram então para a sociedade do entorno
pleiteando seus direitos no centro de Água Branca, o que repetem
todos os meses de julho desde então. A partir de 29 de julho de 2001
surgiram para a imprensa nacional no jornal Tribuna de Alagoas,
dançando e cantando o Toré, sua religião, afirmação de sua
indianidade, hábito cotidiano de seu povo. Escancarando agora para
os outros, sem medo, levantando a poeira do terreiro. (2003, p. 58).
20
HERBERTTA, Alexandre Ferraz. Peles braiadas: modos de ser Kalankó. Recife: Editora
Massangana, 2013.
21
As referidas datas remontam ao período da catequese ensinada pelos missionários da
Igreja Católica durante o período de aldeamento, na aldeia Brejo dos Padres.
67
no calendário para celebrar a luta da comunidade e fazer com que os seus membros
guardem na memória este momento.
1.7.1.3 Karuazu
68
1.7.1.4 Katökinn
69
cacica e recebe orientação para fazer seu arco e flecha. Índio que é
índio carrega seu arco. (2003, p. 55-56).
1.7.1.5 Koiupanká
22
A origem do etinônimo Koiupanká ainda é uma incógnita para os que não foram iniciados
no mundo religioso do grupo, inclusive indígenas. A explicação oficial é o nome da
Associação das Comunidades Koiupanká. Mas, em nível etnográfico, o termo tem a sua
origem etimológica na estrutura linguística dos etinônimos Pankararé e Pankararu, por isso
deram origem a Geripankó, Kalankó, Katökinn e Karuazu.
70
enquanto há outras famílias do grupo que, por falta de espaço, se encontram
morando em serras, periferias e grandes centros urbanos do país.
As observações da pesquisa de campo indicam que - não confirmadas
objetivamente, e provavelmente jamais reveladas por membros do grupo -, em nível
de organização cosmológica, a identidade do “dono do terreiro” – Encantado – está
ligada à cosmogonia Pankararé, grupo localizado no município de Nova Glória,
sertão da Bahia, e não ao grupo Pankararu. Entretanto, quanto aos rituais,
vestimentas, danças e cantos, as semelhanças com os rituais Pankararu são
recorrentes. Mesmo assim, identifica-se algumas variações na estrutura social do
grupo Koiupanká, a exemplo do calendário religioso, a ritualização do murici na
celebração do terreiro e a forte insistência de afirmação da autonomia frente à
organização social e política Pankararu.
Em nível histórico, indiscutivelmente, confirmam-se o pertencimento e as
relações de parentesco de Koiupanká ao grupo Pankararu, fatos assegurados nos
relatos dos mais velhos. Segundo dona Iracema, matriarca da família e guardiã da
religião, a família Bispo saiu do Brejo dos Padres para Alagoas no século XIX,
período em que ainda pertencia à Província de Pernambuco23.
Chegando à região, onde já viviam outras famílias Pankararu, Anselmo
Bispo de Souza encontrou uma pedra onde juntava água – segundo os indígenas,
de onde se origina a palavra inhapi -, e ao seu redor começou a preparar e cultivar a
roça. Mais tarde, aos poucos outros parentes chegaram e se juntaram para formar o
grupo Koiupanká.
Com o domímio dos coronéis sobre a região, as famílias perderam as
terras e foram transformadas em mão de obra para as fazendas e, em períodos
sazonais, nas usinas de cana de açúcar na condição de boias-frias24. Em
consequência da perda da terra, com o avanço agropastoril e o crescimento das
vilas, começaram a sofrer pressão e violência por parte da população do entorno. Os
rituais praticados regularmente tornaram-se ocultos. Em função disso, segundo o
23
Emancipação política de Alagoas, em 16 de setembro de 1817.
24
Termo utilizado popularmente para designar os trabalhadores que levam a alimentação
marmitex para o trabalho distante da residência e, em vista de ter sido preparada pela
manhã, no horário do almoço encontra-se fria.
71
cacique Zezinho Koiupanká, o instrumento utilizado no ritual, muitas vezes, era uma
caixa com palitos de fósforos em substituição ao maracá.
Os Koiupanká têm o ritual da cura na Mesa durante o ano, dirigido por
dona Iracema, matriarca e uma das principais lideranças religiosas da comunidade,
além da dança do toré e o ritual com os praiás.
O principal ritual, denominado Queimada do Murici, ocorre em três finais de
semana consecutivos. O ritual celebra a criação do povo, com os ritos do milho, da
mandioca e encerrando com o do murici. Inicia-se no primeiro final de semana
depois da Páscoa - Sábado de Aleluia e Domingo de Aleluia. Segundo os indígenas,
o milho representa a criação do homem; a mandioca, a mulher; e, o murici, a criação
do povo e alimento do fundador e dono do Terreiro.
O homem que se veste de praiá, representa a entidade do Encantado, nos
três dias que antecedem o ritual e durante as três semanas, se abstém de relação
sexual, ingestão de bebida alcoólica, se banha de água com ervas de cheiro e fica
recluso no Poró – lugar onde só é permitida a entrada de homem –que lá dança,
fuma e reza.
Durante os três finais de semana dos rituais, a dieta é preparada com o
alimento celebrado. O ritual começa com a colheita feita pelos homens e, depois, o
alimento é preparado pelas mulheres – anteriormente era preparada na casa do
cacique e, atualmente, na casa da comunidade. Na hora da refeição, primeiro o
alimento é abençoado pelos praiás e servido aos homens25, e depois as mulheres
distribuem para os todos os membros das comunidades e convidados.
O ritual é iniciado oficialmente às 19 horas do sábado e prolonga-se,
intercalado por vários atos religiosos, até o nascer do sol do domingo; às 08 horas
do domingo é reiniciado, com uma parada durante o almoço, recomeçando às 14
horas até o final da tarde, com o toré comunitário.
No último final semana do ritual Queimada do Murici, homens e
mulheres dançam e se penitenciam em círculo ao redor do terreiro por 9
vezes, carregando nas costas um feixe de cansanção (família da urtiga);
ao término, colocam os galhos no centro do terreiro e dançam
alucinadamente sobre os mesmos até exterminá -los.
25
Termo usado para os homens que se vestem de praiás.
72
1.8 Reterritorialização nos povos do Sertão de Alagoas
26
LÉVI-STRAUS, La pensée Sauvage. Paris: Librairie Plon, 1962.
27
DESCOLA, Philippe. L’Écologie des autres. L’anthropologie et la question de la
nature. Paris: Quae éditions, 2011.
73
haver “interligação orgânica entre o mundo natural, o sobrenatural e a organização
social” (DIEGUES e ARRUDA, 2001, p. 32). Não se trata de uma dependência, mas
de uma “imbricação”, na expressão de Posey, entre os “mundos natural, simbólico e
social” (1987, p.15).
Jesús Azcona (1993, p. 201-202), ao abordar a configuração do tempo e
dos espaços em sociedades indígenas, destaca que as exigências do espaço são,
em alguns casos tão poderosos e inflexíveis, como nas regiões árticas, exigindo dos
homens a invenção de incríveis formas de subsistência, íntima correspondência com
os imperativos impostos pelo espaço. Tempo e espaço emergem, não na relação
das coisas, mas na relação dos homens com as coisas. Segundo afirmação do
mesmo autor:
Cada sociedade aprende a construir seu próprio tempo e seu próprio
espaço, numa palavra, seu mundo [...] Deuses e heróis,
antepassados e descendentes, mortos e vivos, a caça e a pesca, a
semeadura e a colheita, as relações entre eles e com outros
permanecem unidos nesse tempo e nesse espaço que derivam da
relação do homem com as coisas (1993, p. 204).
74
íntima interdependência com a natureza, os homens e os deuses, ou seja, que a
natureza, o mundo dos homens e dos deuses formam um todo.
Entretanto, além das ações colonizadoras do passado e, consequemente,
a quebra do mundo místico e holístico das populações indígenas, no contexto atual,
não se pode deixar de considerar o impacto da globalização sobre as culturas locais.
Cultura local é aqui entendida como cultura particular de um grupo que, a partir de
relações cotidianas em espaços geográficos relativamente pequenos e delimitados,
estabelece códigos comuns e sistemas próprios de representação. Wallerstein
(1991, p. 184) observa, entretanto, que “cultura é por definição particularista”. Ou
seja, cultura é o conjunto de valores ou práticas de uma parte menor que o todo,
embora tendo como referência alguns critérios presumivelmente universais ou
universalistas. Ou, tendo como base a perspectiva de Lévi-Strauss, como um dos
elementos que perpassa a história da humanidade, o conflito entre o local e global.
(2011, p.48-50).
E afirma:
C‟est que chaque cultures particulière, et l‟ensemble des cultures
dont toute l‟humanité est faite, ne pouvent subsister et prospérer
qu‟en fonctionant selon um double rythme d‟ouverture et de
fermeture, tantôt déphasées l‟une par rapport à l‟autre, tantôt
coexistent dans la durée. (2011, p. 145).
28
Ver Lévi-Strauss, Claude. L’identité. 5ª Ed. Paris: PUF, 2008.
75
humano, o corpo como uma certeza materialmente sensível, diante
do universo difícil de apreender (1996, p. 251).
78
afirmação da identidade e fortalecimento da autonomia frente ao Estado nacional e à
sociedade não indígena.
O emergir etnicamente dos povos indígenas em Alagoas, colocaram novas
demandas políticas e acadêmicas até então ignoradas. O processo de etnogênese
das populações indígenas remete ao Estado brasileiro construir novas bases de
relacionamento com o diferente. E, cabe à academia, a tarefa de compreender
corretamente o processo civilizatório do passado, a construção das várias formas de
resistência ao longo da história e a formação do imaginário identitário indígena
permanentemente reconstruído no presente.
79
2. CULTURA, IDENTIDADE ÉTNICA E IMAGINÁRIO
80
ações humana e do próprio pensamento, é um fato tipicamente
grego. (2002, p. 20).
82
Europa no trato para com aqueles que não eram considerados um dos “seus”, pois
eram considerados bárbaros.
Para os parâmetros teóricos da época, surpreende positivamente a
questão posta. Quando o ambiente era favorável à espetacularização do grupo
tupinambá da parte da plateia diante de seres exógenos para seus padrões
culturais, a perspectiva era considerá-los exóticos e selvagens. Entretanto, o filósofo
coloca o contraponto, mesmo que de forma subliminar, compara o mundo dos
indígenas e o mundo do seu povo, sua moral, suas mazelas, espoliação cultural e
guerras.
Mesmo que a inquietação filosófica perpasse toda a trajetória iluminista
(FORTES, 2004), e desemboque na modernidade sem a devida pertinência que a
mesma comporta, mantém-se, então, a visão etnocêntrica ocidental em nível da
academia e da sociedade.
84
A história da ciência e, no século XX, da antropologia, vê-se traída pelos
seus próprios pressupostos, arrazoados diante da realidade social, cultural, étnico e
histórico dos grupos e dos povos. A antropologia, refém dos mesmos instrumentos,
também foi sucumbida, e, assim, teve que encontrar caminhos para além de sua
origem mecanicista e racionalista.
O século passado foi prodigioso para o labor antropológico na tomada de
iniciativas de saída e deslocamentos do berço materno, suscitando outros olhares na
busca de encontrar novas bases e novas categorias de estudo-pesquisa
contextualizada, como também na tentativa de alcançar a totalidade do arcabouço
de uma determinada cultura.
No século XX, a teoria estruturalista de Lévi-Strauss foi uma das
tendências teóricas que marcou a busca por novos campos de conhecimento. O
método de encontrar estruturas fixas na cultura, identificando seus elementos e as
relações manteve por longo tempo a compreensão de cultura como fronteira
delimitada, recortada estruturalmente. Mas, ao contrário, a pretensa segurança
teórica demonstrou a inconsistência antropológica diante de uma realidade
movediça das culturas, transformando-a em mendiga e itinerante. A aguçada e
sensível percepção teórica de Lévi-Strauss, o fez revisar e realinhar a própria teoria
estruturalista, em sua obra L’Anthropologie Face Aux Problèmes du Monde
Moderne. (LÉVI-STRAUSS, 2011).
Do ponto de vista epistemológico, o movimento e deslocamento do eixo
eurocêntrico fez com que a antropologia afundasse na crise, provocando no ser
antropólogo a necessidade de reordenamento de suas convicções e bases teóricas,
gerando um mal estar no meio acadêmico. Mesmo assim, mantêm-se os referenciais
teóricos e o campo de pesquisa. Ainda no campo da crítica científica, desde o seu
surgimento, a antropologia trata as culturas autóctones e indígenas como objeto de
pesquisa, identificadas como culturas exóticas e estranhas aos modelos europeu e
estadunidense, e não em seu existir próprio sócio-histórico.
A modernidade, fundada em bases racionalistas e técno-científica, com
princípios abstratos e universais, produz modelos de sociedades burocráticas,
hierárquicas, monoculturais e monolíticas. Os sujeitos do pensamento,
concomitantemente, gestam conhecimentos e produtos de alta precisão mecânica,
85
como também a própria autodestruição. Os mecanismos criados tornam-se
incapazes de dar respostas aos próprios desafios, proporcionando a crise da
chamada pós-modernidade. “As transformações associadas à modernidade
libertaram o indívíduo de seus apoios estáveis nas tradições e nas estruturas”.
(HALL, 2002, p. 25).
A antropologia não se encontra imune a esses pressupostos científicos. Ao
contrário, ao mesmo tempo em que se fundamenta e utiliza das mesmas categorias,
é levada pela crise da identidade enquanto ciência do estudo das culturas. Os
princípios totalitários se deparam com a pluralidade, obrigando a criação de outros
paradigmas, como também de construir novos referenciais teóricos que advenham
da diversidade cultural e étnica.
Com isso, no cenário de crise e mudanças da modernidade, observa-se
que a antropologia procurou responder e se adequar à nova realidade, na busca de
novos caminhos. Neste sentido, Claude Lévi-Strauss compara o antropólogo ao
astronauta:
O antropólogo é o astrônomo das ciências sociais: ele está
encarregado de descobrir um sentido para configurações muito
diferentes, por sua ordem de grandeza e seu afastamento, das que
estão imediatamente próximas do observador. (1967, p. 422).
87
No início do século, impulsionado pela disputa entre positivistas e
religiosos, o governo brasileiro criou o órgão indigenista, o Serviço de Proteção ao
Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais/- SPILTN, em 1910, ligado ao
Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC). (FREIRE, 2011). O órgão foi
dirigido pelo Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, que movido pelo objetivo
humanista de dar proteção à população indígena, implantou a política de
demarcação de reservas indígenas e de assistência em educação, saúde e
agricultura.
Da segunda metade do século XX em diante, o SPI é marcado pela
presença de antropólogos e sertanistas na formulação e execução da política
indigenista oficial, destacando-se pela simbiose entre a academia e o órgão
indigenista oficial. Ao mesmo tempo em que os principais expoentes da antropologia
desenvolviam suas pesquisas de campo, eram também os mesmos que ocupavam
as instâncias de governo, formulando e executando a política indigenista oficial.
No contexto de avanço da presença indígena no cenário nacional e
internacional, as últimas três décadas do século XX são marcadas por grandes
encontros de antropólogos, indigenistas, criação de entidades não governamentais e
realização de eventos, a exemplo da Conferência de Barbados, realizada de 25 a 30
de janeiro de 1971; em 1972, a criação do Conselho Indigenista Missionário/CIMI,
órgão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil/CNBB; a Associação Nacional
de Ação Indigenista/ANAI e Operação Anchieta/ OPAN; União das Nações
Indígenas/UNI.
No Brasil, a antropologia passa por profundos embates, enfrentamentos e
questionamentos quanto ao seu objeto, visto que, em nível de definição teórica,
tendo como base os princípios e categorias até então definidos, a pesquisa das
culturas indígenas apresentava-se delimitada e circunscrita aos povos que
conseguiram manter-se isolados e afastados da sociedade nacional, conservando os
signos, valores e símbolos a paartir do não contato com o não indígena. As etnias
habitantes da floresta amazônica, parques e reservas mantiveram-se distantes do
avanço das fronteiras agrícolas, transformadas em nichos ecológicos e biológicos
como objeto de estudo. Dentre outros, o parque do Xingu se destaca por sua
visibilidade exótica e espetacularização midiática, resultado de uma política
88
indigenista e da visão antropológica em curso. Identificados os povos isolados da
floresta e os povos do litoral, os estudiosos das culturas indígenas importaram
teorias para delimitar o objeto da antropologia. O antropólogo Darcy Ribeiro chegou
ao extremo de criar categorias para definir o grau de contato da sociedade indígena
com a sociedade nacional. (RIBEIRO, 1979, p. 231-242). Sobre o tema tratado pelo
referido antropólogo, João Pacheco de Oliveira afirma: “Darcy Ribeiro é ainda mais
incisivo. Utilizando-se de imagens fortes, fala em „resíduos da população indígena
do Nordeste‟, ou ainda em „magotes de índios desajustados‟, vistos nas ilhas e
barrancos do São Francisco”. (2004, p. 16-17).
De acordo com os critérios estabelecidos, os povos do Nordeste foram
considerados aculturados. O termo aculturação (FERREIRA, 2002), segundo Félix
M. Kessing surgiu nos EUA e tornou-se central para os antropólogos no final do
século XIX até metade do século XX, a exemplo do 14º Congresso de
Americanistas, realizado em 1904, em Stuttgart; no Brasil, sua presença se efetivou
em 1937, com a publicação dos Ensaios de Etnologia Brasileira, de Herbert Baldus,
que colocou o problema da mudança cultural (Apud VIEIRA, 2004). Em vista disso,
até a década de 1970, a população indígena do Nordeste foi denominada de
cabocla. Para Dirceu Lindoso: “cabocolo ou caboclo do mato aparece para designar
não só o índio da recusa colonial, os das correrias e corso nos descobertos da
conquista, como também o índio embaralhado das aldeias mistas e das aldeias-
presídios”. (2005, p. 155). Outra caracterização foi a de remanescente de índio –
conotação semântica de uma relação tênue com as etnias originárias do período
pré-colombiano.
Pode se dizer que a antropologia oficial e categorias aplicadas aos grupos
étnicos da região nordestina não conseguiram se confirmar academicamente, em
razão do próprio arcabouço teórico e a realidade social, econômico, cultural e
religiosa das populações indígenas do sertão e litoral, por estarem convivendo com
os grupos do entorno e da comunidade nacional por 500 anos.
A interação, como ocorre com qualquer grupo humano em contatos com
outros grupos sociais de culturas diferentes, a convivência com europeus, africanos,
etnias indígenas e outros de outros continentes, produziu transformações genéticas
89
e culturais,que se apropriaram e ressignificaram simbolicamente a estrutural social,
territorial, econômica, religiosa e a relação familiar.
Portanto, não é adequado e, é até improvável, aplicar as categorias
estruturalistas de relação de parentesco aportadas pelo antropólogo Lévi-Strauss em
populações que passaram por mudanças aceleradas em seu processo de
organização social. A relação dos laços de parentesco não se identifica, neste caso,
somente pela linhagem genética e étnica, mas, também, por outras relações sociais,
religiosas e políticas reconstruídas.
O impacto da empresa colonial sobre os territórios e as culturas desses
grupos fez com que os mesmos construíssem histórias, organizações e articulações,
enfrentassem forças e poder econômico e religioso adverso às suas próprias
estruturas, cosmovisão e cosmologia – no sentido dado pela antropóloga Aracy
Lopes, cosmologia são “teorias do mundo. Da ordem do mundo, do movimento do
mundo, no espaço e no tempo, no qual a humanidade é apenas um dos muitos
personagens em cena”. (Apud VIEIRA, 2004).
Constata-se, assim, que as outroras categorias antropológicas não
respondem mais à nova realidade material e histórica das populações indígenas,
principalmente para as que passaram por esse processo de enfrentamento. Elas
podem até funcionar enquanto fronteiras territoriais e culturais, com estruturas de
parentesco e simbólicas definidas. Mas, à medida que a arquitetura cultural mudou,
os referenciais teóricos não conseguem mais conceituar e sistematizar a realidade.
Observa-se que a miopia antropológica e/ou a política indigenista nela
fundamentada, ou vice e versa, encarregou-se de negar a realidade plural e a
diversidade étnica. A trajetória das ciências antropológica e históricas brasileiras e
seus respectivos expoentes teóricos se limitaram a pesquisar as culturas
consideradas intactas e preservadas – se é que existiram em algum momento na
história da humanidade -, transformando-as em objetos exóticos e limitando-se
contar a história oficial dos vencedores. Podemos citar como exemplo, o historiador
alagoano Álvaro Queiroz, que abordando as atuais populações indígenas de
Alagoas, afirma:
Hoje, formando grupos étnicos aculturados em completo declínio, os
indígenas das Alagoas conservam pouqíssimos traços e tradições
culturais característicos das suas raças de origem. Vivem em
situação difícil, trabalhando na agricultura de subsistência. Quando
90
há pragas na plantação ou alguma adversidade da natureza,
empregam-se em usinas de açúcar ou na construção civil. Parecem
ter perdido completamente a identidade própria, preferindo ser
chamados de caboclos, o que representa uma atenuante, uma
espécie de proteção racial. Para eles, ser caboclo significa sofrer
menos. (Op. cit, 2010, p. 31).
91
necessário romper radicalmente com as categorias de matriz naturalista, racionalista
e mecânica, para realizar um corte epistemológico.
A compreensão de Malinowiski de que enquanto a antropologia estava
desenvolvendo novo método e novas técnicas a cultura da população das ilhas
trobriandeses estaria perdendo suas características e tenderiam ao desaparecer,
sucumbe na própria base teórica que a sustenta. Como indicado por Serge
Gruzinski, no livro O pensamento Mestiço, à medida que o mesmo desconstrói
teoricamente a pretensa unicidade das culturas europeias, como também as
formuladas sobre as culturas autóctones, expressam, por outro lado, a diversidade
do tecido social e cultural dos sujeitos históricos e as identidades étnicas
diferenciadas da identidade da sociedade nacional.
As etnias indígenas do Nordeste, à margem de categorias estereotipadas e
estigmatizadas pelos referenciais do silvícola amazônico, o biotipo, os costumes, a
economia, as expressões culturais e manifestações religiosas, fora-lhes negado o
reconhecimento da identidade étnica diferenciada e dos respectivos direitos
históricos garantidos pela legislação brasileira. Afirma Almeida: “Jamais os senhores
de terra iriam permitir a possibilidade de uma sociedade indígena”. (1999, p.15).
A negação é resultado da política integracionista e da incapacidade da
ciência antropológica da época de identificar os elementos internos e submersos na
estrutura das culturas e realidades étnicas do Nordeste. No aporte científico para
responder a questão, constata-se que a realidade submersa, em que se
encontravam as culturas indígenas do litoral e do sertão, não se limitava ao âmbito
subjetivo de seus membros, mas, ao contrário, era resultado do silêncio a que foram
submetidos. “Os símbolos de sua origem haviam sido adotados no processo de
aculturação”. (RIBEIRO apud OLIVEIRA, 2004, p.17).
Dois pontos são importantes e devem ser destacados dentro desta reflexão
antropológica: por um lado, a limitação teórica do arcabouço etnológico, restrito à
razão mecânica, categórica e, quantitativamente, matemática; por outro lado, em
consequência da questão anterior, a percepção e a análise teóricas tornam-se
incapazes de captar o mundo real vivenciado historicamente pelos sujeitos
detentores e protagonista de projetos históricos, no caso, os povos indígenas.
92
Estruturalmente, a teoria coloca-se abstratamente sobreposta ao tecido social
produzido e vivenciado intrinsecamente no veio da realidade histórica.
Em vez de optar por um eixo ordenador central (como a história e as
formas de colonização, ou os nichos ecológicos e sua capacidade
diferenciada de atender às demandas das culturas e gerar processos
adaptativos), que lhes possibilitaria desenvolver um discurso teórico
e interpretativo, os autores associam variáveis de natureza teórica
muito distinta dentro de uma moldura que tem um caráter regional e
particularizante. (Op. cit., p. 18).
93
definições; ou, dito de outra forma, faz-se com que o outro se encaixe nas categorias
definidas pelo eu cultural considerado superior, e, portanto, definidor de parâmetros.
Para esta definição, a identidade do outro passa, necessariamente, pelo
reconhecimento do eu. Neste aspecto, é incapaz interpretar e reconhecer o
processo histórico do outro, o indígena do Nordeste brasileiro, até porque o eu do
dominador formulou e executou categorias de enquadramento do outro – os
indígenas - no eu – o europeu - resultando em que o saber antropológico não
conseguiu reconhecê-lo, por encontrar-se contaminado na origem pela base teórica,
as ações e argumentos. E, no máximo, conseguiu identificar elementos que
justificaram etnocentricamente a base cultural e teórica.
94
governamentais, da sociedade nacional e, particularmente, para diferenciar-se do
sertanejo nordestino, que reside no entorno das suas comunidades.
No comportamento dos indígenas, alguns aspectos chamam a atenção
para efeito de análise do fenômeno do contato entre os agentes da colonização, a
sociedade nacional e as populações nativas. No primeiro momento, os povos nativos
foram conduzidos para a assimilação da cultura lusitana – religião, crenças, valores,
costumes, idioma -, com o argumento do sujeito indígena poder ser considerado
humano; depois, com a apropriação, o indígena foi destituído da categoria índio, e
posto na condição de caboclo – sem identidade: não europeu e não indígena; na
etapa seguinte, no contexto do ressurgimento, quando o indígena decide afirmar a
própria identidade, novamente é obrigado a apropriar-se de elementos culturais que
outrora fora tirado.
Constata-se nesta análise que o referencial do ser cultural e da identidade
é sempre determinado pelo outro – em geral, o que representa o poder dominante –,
que determina o parâmetro de indianidade, caracterizado por aspectos exteriores e
exógenos aos modus vivendi e padrões culturais do eu indígena do Nordeste.
Mas a questão não se esgota aí, visto que a dimensão do eu indígena foi
ignorada como fronteira de autodeterminação do ethos e da identidade étnica -
poderia ter sido identificado e estudado enquanto fenômeno de ressurgimento
étnico.
Na perspectiva da Análise de Discurso, o ethos é tratado por Maingueneau
(2008b, p. 17) da seguinte forma:
O ethos é uma noção discursiva, ele se constrói através do discurso,
não é uma „imagem„ do locutor exterior à sua fala; o ethos é
fundamentalmente um processo interativo de influência sobre o
outro; é uma noção fundamentalmente híbrida (sócio-discursiva), um
comportamento socialmente avaliado, que não pode ser apreendido
fora de uma situação de comunicação precisa, integrada ela mesma
numa determinada conjuntura sócio-histórica. (MAINGUENEAU,
2008 b, p. 17).
Neste caso, outros aspectos devem ser abordados também nesta análise,
vistos por dois ângulos: um é a dependência indígena aos referenciais culturais da
cultura dominante, o outro determina o ser indígena; mas, também, por outro lado,
destacam-se dois fatores que se intercalam: a inesgotável capacidade dos indígenas
95
de se apropriarem dos elementos culturais do outro – colonizador ou etnias -, e criar
novos significados e representações; como também, expressa a segurança e
garantia de manutenção dos mitos, ritos e crenças no conjunto da identidade interna
e da representação política.
Entretanto, visto que a cultura e, portanto, a relação cultural não é estática,
observa-se que a apropriação de materiais externos ao grupo pode ocorrer
compulsoriamente – o outro dominante/colonizador sobre o eu dominado/indígena -,
ou ainda, com objetivos políticos. Independentemente da condição,
indubitavelmente, os elementos infiltram-se no seio das culturas em contato, alheio à
vontade do sujeito. Este, por sua vez, transforma-os em novos significados, para si e
para outro, dependendo das condições apresentadas e demandas exigidas de
representações.
A maioria das atividades desenvolvidas pelos indígenas contava com o
apoio de entidades indigenistas e religiosas, sob o olhar de antropólogos,
historiadores e pesquisadores.
Do ponto de vista político, a retomada da movimentação e mobilização
indígena, em nível nacional, se intensifica em torno da construção de hidrelétricas,
rodovias, ferrovias e hidrovias sobre os territórios indígenas, provocando
assassinato, gerando doença, fome e desmatamento da Amazônia. Ao mesmo
tempo em que esses acontecimentos são denunciados e repercutem em nível
internacional, internamente, final da década de 70, a Ditadura Militar29 dava sinais de
abertura política. Em nível eclesiástico, em 1978, na cidade de Medellín, na
Colômbia, os bispos católicos da America Latina e Caribe realizam a segunda
Conferência Episcopal Latino Americana/CELAM, e denunciam a exclusão social e o
sistema gerador das injustiças sociais na região.
Nesse cenário, a sociedade brasileira começa a organizar partidos
políticos, sindicatos de trabalhadores no campo e na cidade, associações de
moradores e movimentos sociais. Enquanto isso, bispos, em torno da CNBB,
promovem a organização de pastorais sociais, movimentos de leigos e apoiam as
reivindicações políticas dos movimentos sociais, como a luta pela Reforma Agrária,
29
Instaurada em 31 de março de 1964.
96
demarcação das terras indígenas, moradia, eleições diretas para presidente da
República e uma nova Constituição Federal.
Nesse contexto, os interlocutores dos povos indígenas são os militares,
órgãos governamentais, bispos, agentes de pastoral, militantes políticos e dos
movimentos. No campo governamental, destacam-se o Ministério do Interior e a
Funai - criada em 1967 -, como instâncias diretamente responsáveis pela assistência
e demarcação das terras indígenas. Do lado da sociedade, as lideranças indígenas
buscam apoio para as suas reivindicações junto às autoridades eclesiais, pastorais,
movimentos sociais e universidades.
O CIMI, órgão criado pela CNBB, em 1972, para prestar assistência aos
povos indígenas, inicia o trabalho missionário nas comunidades30, de onde denuncia
as atrocidades cometidas pelo governo, fazendeiros, garimpeiros, madeiros e
mineradoras contra as populações. (LACERDA, 2008, p. 18-240). Com isso, a
chamada questão indígena tornou-se uma bandeira de luta da sociedade contra a
Ditadura Militar (Op.cit., p. 25-26), aglutinando militantes políticos e de movimentos
sociais, religiosos e pesquisadores.
Em nível da conjuntura política, do lado institucional, imperava o poder dos
militares e as políticas de desenvolvimentistas; do outros, ressurgia segmentos na
sociedade denunciando as injustiças e reivindicando a redemocratização do país. A
disputa política repercutiu no movimento indígena, provocando no governo ações de
cooptação de lideranças, com empregos, cargos e projetos financeiros para as
comunidades, e perseguição às lideranças dos movimentos sociais e missionários,
chegando a assassinato de indígenas, padres, religiosas, sindicalistas e agentes dos
movimentos sociais.
No caso dos grupos indígenas não reconhecidos, o governo negava a sua
existência como povo etnicamente diferenciado, restando aos indígenas recorrer ao
apoio dos agentes de pastorais e pesquisadores de universidades. À medida que o
movimento indígena avançava na luta reivindicativa, os agentes governamentais
procuravam barrar a luta pela terra e pelo reconhecimento étnico, pressionando e
cooptando as lideranças.
30
O Renascer do povo Tapirapé – Diário das Irmãzinhas de Jesus de Charles de Foucaud,
2002.
97
Nesse cenário político, as lideranças indígenas, militares, missionários do
CIMI, hierarquia da Igreja, antropólogos, historiadores, militante político e
movimentos sociais, eram movidos por dois grandes polos de aglutinação das lutas:
governo x sociedade. No entanto, aos poucos os interesses políticos e ideológicos
foram se desenhando, e o palco de disputa ficou cada vez mais movediço.
Nesse contexto, os discursos são desenhados e explicitados em suas
particularidades. As lideranças indígenas conseguiram sair do anonimato,
identificando atores e respectivos interesses, e construíram os discursos de acordo
com o interlocutor: Governo Federal-FUNAI, CIMI, hierarquia católica e
pesquisadores.
Conforme afirma Orlandi, “a formação discursiva se define como aquilo que
numa formação ideológica dada – ou seja, a partir de uma posição dada em uma
conjuntura sócio-histórica dada – determina o que pode e deve ser dito”. (Op. cit., p.
43).
Os indígenas, como sujeitos do processo, perceberam nos interlocutores
os diferentes discursos, capitalizaram o discurso para os seus interesses. E,
segundo a mesma autora, referindo-se a Pêcheux, afirma: “não há discurso sem
sujeito e não sujeito sem ideologia: o indivíduo é interpelado em sujeito pela
ideologia e é assim que a língua faz sentido”. (Idem, p. 17).
Do CIMI, espera-se o apoio político e a radicalização; da Universidade, o
estudo científico; da hierarquia, o apoio oficial e o respaldo político; do governo,
emprego, assistência e proteção. Portanto, para o reconhecimento étnico e
demarcação da terra, tem o CIMI e os pesquisadores como aliados contra o
governo; quando os interesses conflitam com o CIMI ou com os pesquisadores,
assume a posição que mais lhe beneficie; quando o discurso é para cohseguir
emprego ou qualquer outro benefício, visto que o CIMI não concede benefícios
pessoais, alia-se ao governo e confronta com o CIMI.
Para melhor compreender, utilizo a definição de Orlandi quando à ação do
sujeito: “o sujeito discursivo funciona pelo inconsciente e pela ideologia”. E completa:
“O discurso é efeito de sentidos entre locutores” (Ibidem, p. 20-21). No caso dos
sujeitos discursivos - indígenas, governo, igreja, CIMI - todos agem e dão sentido de
98
acordo com a realidade sócio-histórica, a representatividade e o interesse político e
ideológico.
Os processos discursivos em Alagoas se reproduzem na forma e no grau
de acordo com o que ocorrem no cenário nacional. Os povos reconhecidos
anteriormente, Kariri-Xokó e Xucuru-Kariri, serviram de base para o canal com o
governo, com o discurso contrário às entidades indigenistas e movimentos sociais.
Os que emergiram posteriormente, sem exceção, buscaram o apoio das entidades
até o reconhecimento, aliarando-se ao governo logo após o reconhecimento. “O
interdiscurso disponibiliza o modo como o sujeito significa em uma situação
discursiva dada”. (Op. cit., p. 31).
No caso dos povos do Sertão, em razão do tempo, constata-se que os
processos discursivos se encontram em andamento. À medida que conhecem os
interlocutores e seus discursos, com base nos direitos constitucionais e nos
interesses específicos de cada liderança e povo, os discursos são produzidos e
dirigidos a cada interlocutor, em nível político e religioso.
Considerando que as condições de produção do discurso compreendem
sujeitos, situação e memória, identifica-se no discurso e na situação dada aos
sujeitos indígenas, a construção discursiva dirigida ao interlocutor. Em vista disso,
escreve Orlandi: “Podemos considerar as condições de produção em sentido estrito
e temos as circunstâncias da enunciação: é o contexto imediato. E se considerarmos
em sentido amplo, as condições de produção incluem o contexto sócio-histórico,
ideológico”. (Op. cit., p. 30).
Neste caso, implica nas duas condições, em sentido estrito e amplo, tanto
em nível conjuntural, a necessidade imediata do reconhecimento e da garantia dos
direitos; mas, também, em nível estrutural, considerando o processo de espoliação
dos territórios, massacre, guerra, conflitos e exclusão social vivenciado no confronto
e na relação histórica com o colonizador, poder econômico local e com as forças
governamentais.
O presente trabalho constata, ainda, que, para a população indígena,
apropriar-se e utilizar indumentárias, língua, instrumento ou discurso de outro grupo
social, autoridade governamental, entidade indigenista ou religiosa, antropólogo e
historiador para afirmar a identidade, é prática comum entre os povos e etnias.
99
Por trás da utilização e apropriação, os indígenas também usam o outro – o
não indígena – de acordo com os seus interesses. No jogo, identifica-se que o ator,
o sujeito indígena, usa sua habilidade para manejar os atores que tratam dos seus
interesses, sobreponde-se aos interesses de cada entidade, organismo,
personalidade e órgão governamental. O sujeito indígena se diferencia e manipula o
outro de acordo com os interesses imediatos ou estratégicos.
Na Análise do Discurso, discorrendo sobre as condições de produção,
Orlandi que chama um dos elementos de mecanismo imaginário, escreve:
Esse mecanismo produz imagens dos sujeitos, assim como do objeto
do discurso, dentro de uma conjuntura sócio-histórica. Temos assim
a imagem da posição sujeito locutor (quem sou eu para lhe falar
assim?), mas também da posição sujeito interlocutor (quem é ele
para me falar assim, ou para que eu lhe fale assim?), e também a do
objeto do discurso (do que estou lhe falando, do que ele me fala?
(Op. cit., p. 40).
100
pela ação política dos atores, ou seja, o objeto de estudo e das condições sócio-
históricas. No processo de reconhecimento étnico, os indígenas submeteram-se às
regras estabelecidas pela a ação dos atores - colonizador, missionário, indigenista,
militar, pesquisador -, como condição de negociação.
Por isso, suscito, do meu ponto de vista, duas relevantes questões sobre o
indígena: enquanto sujeito que age historicamente; e o objeto da ação dos atores
não indígenas. Esta polarização bipolar, aparentemente contraditória, só é
compreendida na condição de negociação, e que o indígena que é o sujeito principal
e também o objeto central da ação dos outros sujeitos. E nessa condição, se
submete às condições e regras impostas, mas obtém o reconhecimento étnico e
garantia dos interesses e direitos. O indígena sabe utilizar bem as ferramentas do
não indígena, manipulando e ressignificando de acordo com os seus objetivos. Para
compreender a questão, do ponto de vista da AD, Orlandi escreve: “Disso se deduz
que há uma relação entre o já-dito e o que se está dizendo que é a que existe entre
o interdiscurso e o intradiscurso, ou, em outras palavras, entre a constituição do
sentido e sua formulação”. (Op. cit., p. 32).
Entretanto, do ponto de vista da antropologia e da etnologia, constata-se
que as mesmas deixaram de cumprir o seu papel científico, de se afastar dos
interesses imediatos do sujeito – ator indígena - e do objeto da pesquisa - o indígena
estudado. Ao contrário, metodologicamente, as duas ciências tornaram-se
engajadas e militantes de uma causa, o reconhecimento étnico, agindo muito mais
como agentes da política indígena do que propriamente da ciência enquanto tal; um
engajamento político que se justifica politicamente, mas é desnecessário
cientificamente. A sustentação teórica da identidade étnica do ser indígena, nesse
caso, não se restringe e nem se limita às categorias postas pelo outro, seja a
sociedade ou os agentes governamentais, muito menos no jogo discursivo. O olhar
antropológico deve buscar a sua fundamentação científica para além das
expressões materiais ou discursivas, visto que, para os indígenas, a sua identidade
encontra-se nas formas de viver interiormente as expressões simbólicas, construídas
no interior do imaginário.
Por omissão ou cumplicidade, tornaram-se, uma antropologia e etnologia,
engajadas. Nessa perspectiva, negativamente, não conseguindo enxergar as
101
dimensões mais profundas do núcleo fundador e organizador das culturas e
identidades dos povos indígenas do Nordeste.
102
Consta nos relatos históricos que, antes da presença de portugueses,
franceses e holandeses, as populações nativas da costa brasileira, já eram
conhecidas por outros navegadores europeus e membros do povo Viking.
Independente de quem fez os primeiros contatos, a história da região e dos povos
nela habitada ainda é escrita na perspectiva da história oficial construída
secularmente pelo colonizador nas academias palacianas.
À semelhança da antropologia, a ciência historiográfica também carece de
um corte epistemológico. Do ponto de vista acadêmico, a pesquisa histórica e a
escrita dos livros padecem da mesma limitação congênita das outras ciências
ocidentais. A matriz teórica greco-romana ocidental, positivista e mecanicista,
condiciona os estudos ao viés do técnico-científico à visão hegemônica da cultura
ocidental.
O rompimento com os princípios e marcos da ciência mecânica parece não
ser uma tarefa posta pelos pressupostos categóricos da maioria dos pesquisadores
e cientistas. Pelos arrazoados arqueológicos, históricos e antropológicos a academia
tem como base ontológica a concepção da sociedade moderna e, ainda, parâmetros
da empresa civilizatória.
Entretanto, essa discussão epistemológica e a análise teórica não
significam o descarte da contribuição da ciência moderna e dos seus avanços
tecnológicos. A questão fundamental está na base do princípio norteador da
pesquisa. O objeto não deve ter como referência somente o que a colonização
provocou, independentemente do ângulo. Como já demonstrado no presente
trabalho, a questão coloca-se sobre as populações que se encontravam em época
milenar no território, por onde e quando chegaram; como se organizavam, ocuparam
as terras e desenvolveram suas culturas; como os grupos étnicos se formaram e se
constituíram como forças étnicas e interétnicas; as cosmologias que criaram e os
mitos que as sustem; as ciências medicinais e astronômicas que desenvolveram; as
produções artísticas e os projetos de mundo que formaram.
Com a intervenção das culturas europeias e do poder imperialista
dominante, as culturas e organizações étnicas foram impactadas e pressionadas a
desenvolverem em curso histórico e organizativo de contato, observação, medo,
103
resistência, confronto, negociação, adaptação, assimilação e reelaboração material
e simbólica.
Um cenário social foi construído sob o impacto das novas relações de
sujeição impostas pelos atores, sob a égide do binômio conquistador e conquistado.
É patente que as culturas europeias e indígenas não passariam incólumes
estruturalmente às mudanças impostas pelo contado.
Os europeus, mesmo considerando a base de sustentação cultural
ocidental – pensamento filosófico e religioso -, suas formas de organização étnica,
social, e política e os interesses econômicos são divergentes e conflitantes. Para
sobrevivência e manutenção dos interesses da metrópole, tiveram que negociar
entre si e com as populações conquistadas.
As populações nativas, por sua vez, também não foram simples
depositárias inertes dos desejos, interesses e política dos conquistadores e
dominadores europeus. Com uma constituição étnica multicultural e pluriétnica,
também negociaram entre si e com os europeus. Movidas por disputas étnicas e/ou
articuladas com os europeus, construíram organizações, grupos e forças políticas
em defesa dos interesses e das disputas internas ou dos colonizadores 31.
Nesta linha de investigação cultural, a análise sobre os grupos étnicos
nativos e os colonizadores, não pode limitar-se às categorias marxista opressor e
oprimido, vencedor e vencido. Na política imposta pela empresa colonial,
portuguesa, francesa ou holandesa, muitos grupos foram dominados, cooptados,
exterminados e integrados aos interesses e perspectivas dominantes; outros
resistiram, negociaram e ressurgiram. Por isso, o contato e ensinamento dos
costumes culturais, religiosos, organização econômica e política não foram
apropriados de forma automática e imóvel pelos nativos; e vice-versa. As
populações indígenas foram ativas no processo de colonização, mesmo
condicionadas ao modelo de sujeição e dominação, como também de não aceitação
e de enfrentamento político, organizativo e bélico.
Os primeiros períodos da formação do território brasileiro são marcados
pela imposição da lógica colonizadora e pela articulação e negociação entre
31
Ver GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras
2001.
104
europeus e indígenas. A imposição do modelo econômico (VIEIRA, 2008) e cultural
sobre os povos indígenas provocou a criação de novos referenciais entre os grupos
europeus e os grupos étnicos nativos.
Com a entrada das etnias africanas, fator importante no processo
organizativo do tecido social e produtivo, novos atores se compõem e recompõem
no processo. Grupos de origens diversas, com culturas, línguas, religiões, costumes,
valores e organizações diferentes foram postos juntos na mesma lógica da empresa
colonial. O contato entre as diversas vertentes culturais torna-se mais complexo,
bem como a dinâmica do processo político dos povos e organizações.
As culturas indígenas e africanas são determinadas e/ou se apropriam dos
costumes dos europeus, como também entre si, utilizam os costumes e recriam de
acordo com o novo contexto sócio-político-econômico e geográfico. Os signos e
símbolos encontram-se registrados, culturalmente, na economia, nas manifestações
religiosas, nos costumes, nos valores morais, na arquitetura e no cotidiano de
grupos indígenas, afrodescendentes e do povo brasileiro.
O Nordeste do contexto da invasão europeia, marcado pela imposição
cultural e religiosa, combates e guerras de sujeição e extermínio, apropriação dos
territórios e escravização da mão de obra indígena e africana, produz socialmente
segmentos detentores do poder político, econômico e religioso, por um lado, e a
massa dos despossuídos, por outro.
É neste cenário que os atores se movimentam no Nordeste. De um lado, os
segmentos representados na classe detentora do poder político, econômico e
religioso – as oligarquias -, produtoras e dirigentes do controle social oficial; do
outro, as massas submersas, compostas por negros, indígenas e brancos pobres,
detentoras de culturas, religiões, organização políticas. No jogo de interesses, a
classe dominante avança no processo de homogeneização cultural, decreta a
extinção das diferenças étnicas, apropria-se das terras e o indígena é relegado à
categoria de caboclo.
A configuração étnica nordestina é constituída por fatores compostos pelas
forças sociais, políticas e econômicas que estruturam as manifestações sociais e
culturais. A formação da cultura letrada, de origem europeia, limita-se por longo
tempo aos membros da Casa Grande, sendo extensiva a alguns poucos originários
105
das classes subalternas. E, por isso, a oficialidade dominante define e determina as
categorias, as fronteiras culturais, etnicidade indígena e o caráter de indianidade.
No Nordeste, pela origem e composição histórica, a negação do outro, o
indígena, é a negação de si mesmo, visto que o outro está em seu imaginário
cosmológico e permeia todo o seu mundo cultural e religioso. O arquétipo esconde e
guarda a ancestralidade da matriz indígena.
A decretação da extinção das culturas e das populações indígenas
resolveu pontualmente o problema imediato, a espoliação e expropriação das terras,
mas não conseguiu extinguir o ser indígena do imaginário cultural. Mesmos
desterritorializadas, sem desistirem de suas origens identitárias, as populações
indígenas sustentaram e se reproduziram culturalmente, no diálogo ou no confronto
com os valores culturais da sociedade nacional, a religião, a economia, a política, a
arte e suas manifestações sociais e ideológicas. No contexto da materialidade
dialética entre o ato dialogal e conflituoso, carregaram e mantiveram o eixo condutor
de suas identidades étnicas.
Só é possível entender o fenômeno do ressurgimento étnico no Nordeste, a
partir do drama vivenciado na história dos povos indígenas do Nordeste e refletido
no jogo de negociação com a cultura oficial dominante. As etnias foram niveladas ao
monoculturalismo regional, despojadas do ser indígena, da etnicidade e identificadas
com o ser sertanejo.
Por trás do jogo político, encontra-se dupla esperteza imperialista:
desconstruir o indígena de sua identidade própria, incutindo no seu ser elementos da
cultura do colonizador como meio de torná-lo humano, visto que, sob este olhar,
encontrava-se na condição de selvagem e de animalidade; em seguida, extinguí-lo
da condição étnica de indígena, diferença cultural e descaracterizado etnicamente
para justificar a desterritorialização.
106
economia mercantilista de mercado, na concepção marxista – modos de produção
capitalista. (LAJUGIE, 1981, p. 43-63).
No campo da economia também ocorreu o processo civilizatório, tendo
como consequência a estrutura do modo de produção capitalista interferindo nas
formas tradicionais das comunidades indígenas.
Este dado desconstrói estereótipos construídos pelas mais diversas e
variadas correntes e modelos antagônicas, destacando-se duas grandes vertentes:
colonialista e a romântica. No início da colonização, o indígena foi caracterizado
como preguiçoso, indolente, incapaz e inapto para o trabalho; posteriormente, o ser
amante da natureza, da harmonia e vivente da sociedade comunitária. (SAHLINS,
1977).
As duas concepções não se justificaram nem no período em que foram
formadas e, muito menos, aplicadas às populações indígenas do Nordeste,
particularmente aos povos do sertão de Alagoas. São concepções inconsistentes
teoricamente e inadequadas histórica e socialmente.
No primeiro caso, estava em jogo modelos de produção e de
desenvolvimento, a mercantilista; do lado, a economia caracterizava-se como meio
de exploração da natureza ou de sustentação e reprodução física e cultural dos
povos. Neste contexto, encontra-se também a concepção romântica, resultado de
uma construção imaginária, com fundamentação literária e bíblica - o paraíso
perdido do livro Gênesis (1,1-31; 2, 1-3; 3, 1-24, p. 3-8), desconexa com a realidade
histórica e econômica de cada povo, contextualizada no seu tempo e no seu espaço.
Visto que as vertentes não se adéquam à realidade histórica dos povos
indígenas pesquisados, busca-se encontrar outro caminho de análise para que
melhor se aproxime e se expresse a realidade econômica em que a população
indígena está inserida em suas comunidades, considerando as condições históricas,
sociais, econômicas e religiosas, suas contradições, interesses, mundo simbólico e
imaginário.
No contexto dos 500 anos e da conjuntura atual da globalização, cada
grupo indígena construiu e constrói relações econômicas dependendo do contato e
distância que manteve e mantém com a economia de mercado. Em todos os
momentos da história, os povos indígenas constituíram relação com a população do
107
entrono de suas comunidades, com as formas de produção e o comércio local. As
comunidades estão inseridas na comercialização, dentro das regras de mercado, de
compra e venda de gêneros alimentícios e de venda do excedente produzido nas
aldeias.
As relações não ocorrem de forma estática, limitadas às relações pontuais
com os membros da sociedade nacional. Elas acabaram entrando no cotidiano dos
indígenas, interferindo e transformando as formas coletivas de organização
econômica, segundo Marshall Sahlins, em A economía de la edade de piedra.
Mas as mudanças econômicas ocorrem não somente pela relação direta
com a economia mercantilista e capitalista, mas, também, em consequência da
desterritorialização forçada, provocada pela expropriação da terra e a consequente
falta de condições na natureza para a produção, a coleta e a pesca. Destituídos do
espaço necessário para desenvolvimento das atividades produtivas, foram obrigados
a buscar novas formas de manutenção das famílias; os homens assumiram
atividades de vaqueiros nos currais das fazendas, de diaristas nas roças dos
pequenos produtores rurais, em usinas de cana de açúcar e na construção civil; os
que permaneceram nas comunidades continuaram com a agricultura de subsistência
em pequenas glebas, ou em terras arrendadas ou como meeiros - agricultores e
proprietários de terra que utilizam o sistema de divisão da produção em condições
determinadas pelo proprietário da terra.
Apesar de encontrarem-se inseridos na economia capitalista, as relações
econômicas determinam as relações sociais e políticas, mas não as explicam
totalmente. As culturas indígenas tornaram-se subjulgadas pela cultura dominante,
mas não submergiram por completo da história, conseguindo construir alternativas
de resistência e manutenção da identidade étnica. Observa-se que durante os
períodos de rituais, os indígenas mantêm os laços de partilha na alimentação dos
visitantes e da comunidade, com a contribuição coletiva com gêneros alimentícios,
com produtos das roças e com dinheiro. As relações capitalistas vividas ao longo do
ano com a sociedade do entorno e internamente, são superadas durante os eventos
religiosos e entre os familiares.
108
2.4.2 Religião indígena e religião católica
109
pobres, que viabilizaou a Teologia da Libertação – usa o instrumental marxista na
análise dos fenômenos sociais. Em 1992, realizou a de Santo Domingo, com o tema
inculturação, propondo uma nova forma de evangelização.
A inculturação visa à assunção dos últimos como próximos e pioneiros.
Sua vida é o lugar preferencial da epifania de Deus. Se o ponto de partida da
inculturação é a presença no meio da vida fragmentada, o ponto de chegada é a
participação da vida integral. Vida fragmentada e vida integral são articuladas por
uma proposta, o Evangelho, e por um caminho a percorrer, a missão. (SUESS,
1996, p. 1).
Do ponto de vista social, o posicionamento da Igreja avança em relação às
práticas anteriores, marcadas pelo compromisso e convivência com o poder
dominante. No entanto, quanto às questões culturais, a mesma igreja tem
dificuldade em compreender e relacionar-se com o etnicamente diferente. Afirma o
teólogo Paulo Suess: “Continuam até hoje práticas com mentalidades baseadas
mais na eclesiologia do Vaticano I do que na Lumen Gentium e na Gaudium et Spes
do Vaticano II”. (2002, p. 7).
A maioria das Igrejas da América Latina, através das Conferências
Episcopais, demonstra na prática pastoral, documentos e congressos internacionais
o descompasso e a ambiguidade entre o discurso das autoridades eclesiásticas e à
realidade pastoral local. Persiste o modelo de evangelização baseado na imposição
das práticas católicas.
Na lógica de compromisso com os pobres, a CNBB criou o CIMI, como
órgão destinado a articular a ação missionária junto às instâncias eclesiásticas –
diocese, paróquia organismo de pastoral. Os missionários do CIMI esbarraram nas
velhas práticas pastorais de evangelização, situação em que os levou à ação
missionária direta com os povos indígenas. Os conflitos internos de origem pastoral,
teológica e ideológica resultaram no surgimento de uma nova prática pastoral
indigenista, marcada pela defesa das culturas indígenas, das diferenças étnicas e
dos direitos indígenas – terra, educação, saúde, autonomia –, fundamentado
teologicamente no princípio do direito à vida. (SUESS, 1989, 17-27).
Constata-se que, independente do alinhamento pastoral e teológico, com
laços políticos mais ou menos estáveis, os povos indígenas têm uma relação
110
diplomática e amigável com as estruturas e lideranças eclesiásticas católicas. Em
alguns povos do Nordeste, já se tornou comum o convite a padres e bispos para a
celebração eucarística na abertura dos rituais indígenas, a exemplo do Ouricuri -
denominação do espaço e ritual indígena, realizado em determinadas épocas do ano
pela maioria dos povos indígenas do Nordeste –, como também, em alguns casos
especiais, durante o ritual dos praiás.
Constata-se que, na região nordestina, a identificação formal dos
indígenas, majoritariamente, é com a religião católica. Entretanto, este fato expressa
um fenômeno que deve ser cuidadosamente analisado cientificamente. À primeira
vista, é praticamente unânime a compreensão do catolicismo como a religião dos
indígenas. Historicamente, do ponto de vista estritamente religioso, a formação
catequético-missionária conseguiu impregnar os ritos e cerimônias na vida e no
cotidiano dos aldeamentos indígenas. E, com isso, a proclamação identitária do
indígena com o catolicismo é dada um sentido político. Visto que a igreja católica
assumiu ao longo da colonização o papel de vanguarda e protetora da população
indígena, com todas as ambiguidades políticas que isso possa implicar em nível
pastoral e teológicoao longo da história, tornar-se católico significou o passaporte
para a humanização do ser selvagem, a ligação oficial entre o mundo indígena e o
mundo ocidental.
Neste aspecto, é determinante a polarização entre selvagem e civilizado,
infiel e fiel, no sentido de delimitar o pertencimento do ser ou não ser gente,
pertencer ou não a sociedade dos humanos. Na escrita do missionário Martinho de
Nantes, vê-se a comparação do indígena com o animal: “seriam macacos para imitar
o que vissem fazer ou papagaios repetir o que lhes ensinassem...” (Apud LINDOSO,
2005, p.124). Postura que, no século XX, vai mudar com a abertura da Igreja
Católica em relação ao reconhecimento e valorização das culturas indígenas e o
engajamento mais ativo de missionários na defesa dos direitos indígenas,
favorecendo o surgimento de um olhar mais aproximado dos membros da igreja
católica.
A absorção indígena dos ritos, signos e símbolos católicos e as práticas
cotidianas, analisada superficialmente e condicionada a interesses do proselitismo
religioso e ideológico e, ainda, desconsiderando os elementos acima mencionados,
111
pode levar a conclusão apressada e frágil da catolicidade indígena – no sentido
teológico cristão; ou, por outro lado, pode levar ao erro da negação pura e simples,
afirmando ser uma pura utilização oportunista em razão da força política e apoio da
igreja na luta dos povos indígenas na defesa dos direitos.
Percebe-se que as duas questões carecem de uma fundamentação
antropológica mais substancial. A própria dinâmica interna da religião e da cultura
não permite o mecanicismo newtoniano, objetivando a transposição ou conversão do
mundo indígena para o mundo cristão católico; ou, ainda, o sincretismo. Na
realidade, a relação entre os elementos da religião católica e os das religiões
indígenas, ocorre em um terreno extremamente movediço e poroso. Portanto, este
fenômeno nem deve ser visto como conversão dos infiéis selvagens ao cristão
civilizado, nem também um emaranhado de elementos confusos, conflitantes e
sincréticos. Ao contrário, esse fenômeno é resultado da apropriação de elementos
do catolicismo imposto pelo efeito colonizador e/ou assumido em consequência do
contato entre os sujeitos culturais, ressignificados no contexto histórico das disputas
de projetos políticos, étnicos e culturais.
A afirmação do ser católico pelos indígenas não significa a negação da
religião do seu grupo étnico. Como também, as religiões indígenas levaram para
dentro de suas respectivas culturas signos e símbolos de outras culturas e religiões,
indígenas, africanas, europeias, asiáticas.
Nos dias atuais, o fenômeno se repete com elementos religiosos
evangélicos de origem protestante e pentecostal que têm penetrado nas
comunidades indígenas do Nordeste de forma significativa. Na maioria dos casos,
identifica-se que o indígena utiliza a alcunha de ser católico para não permitir a
entrada, o crescimento e o êxito das igrejas protestantes em suas áreas. O uso dos
ser católico diante do fenômeno pentecostal, não expressa necessariamente uma
identidade religiosa e teológica, mas uma identidade social e política. Nesse sentido,
o título serve como escudo e proteção contra a penetração de elementos religiosos
até então estranhos ao mundo indígena; e, também, nos tempos recentes, como
aceitação da convivência relativamente pacífica entre a Igreja Católica e as religiões
indígenas.
112
Nas últimas décadas, com o crescimento tecnológico radiofônico e
televisivo nas comunidades, o número de evangélicos adeptos de denominações
protestantes pentencostais cresceu entre os indígenas. Além da penetração
midiática, o acesso de evangélicos às comunidades ocorre mais frequentemente
através doações de alimentos e roupas, aproveitando-se do estado de carência da
população indígena, especialmente em períodos de escassez alimentícia, carência
econômica e doenças.
A prática e visão pastoral das denominações cristãs seguem a linha da
conversão compulsória ao cristianismo, tendo Jesus Cristo como o único Salvador,
impondo o radical rompimento com o passado indígena. À semelhança da prática
pastoral católica dos primeiros séculos de missão, o conteúdo evangélico é de
demonização das práticas religiosas dos indígenas, os ritos, os mitos, as entidades
espirituais e as danças e cantos. Ao olhar evangélico, os dois mundos são
incompatíveis na vida do indígena. Segundo a indígena Roseli Ferreira da Silva:
Mas eu digo assim, como uma pessoa evangélica, jamais eu vou
escolher assim entre ser reconhecida pela minha cultura indígena e
que ninguém nunca vai me tirar isso, quem nasceu rei vai ser rei pra
vida inteira, se eu nasci indígena eu vou ser indígena até morrer,
entre continuar com a cultura ou a minha salvação eu
particularmente... (ENTREVISTA, 2013, p.10).
113
É relevante analisar o convite da igreja católica ao líder ou a comunidade
indígena para se apresentar durante os eventos religiosos. Neste aspecto, o teólogo
Paulo Suess, alerta para o caráter de continuidade da ação evangelizadora da
igreja, fundamentado teoricamente com a distinção entre aculturação – a não cultura
- e inculturação – respeito à autonomia do outro -, no caso, sobressaindo-se a
aculturação como negação da inculturação. (Op. cit., 1996, p.7).
2.4.3.1 Vestimenta
114
cultural, simbólica, que, para ele, surge como oportunidade ímpar para a delimitação
da fronteira cultural e afirmação da identidade étnica.
115
homem com 60 anos -, conquistaram o direitos à aposentadoria da previdência
social com um salário mínimo32 brasileiro, no valor de R$ 724,00, a partir do dia 1 de
janeiro de 2014. Para o economista Cícero Péricles, no Estado de Alagoas, em
razão da fragilidade econômica do Estado, o salário dos aposentados tem relevante
destaque na economia local e, também, nas comunidades indígenas. (PÉRICLES,
2005, p. 82).
Com isso, na maioria das famílias indígenas, os avós acabam tendo
destaque na economia de suas comunidades, ainda mais considerando a perda da
terra, o desemprego e a escassez de bens alimentícios, as relações sociais são
modificadas, como guardiões da memória e da sabedoria do povo, participam
ativamente da sustentabilidade familiar.
Mesmo considerando o impacto das mudanças sociais dentro das
comunidades indígenas em consequência das influências externas, observa-se que
os mais velhos continuam recebendo a atenção dos mais jovens, principalmente em
relação ao respeito à tradição cultural, familiar e religiosa. Há um tratamento
específico de respeito aos avós e, em geral, para com os idosos da comunidade,
como referência dos rituais religiosos e de cura.
Quanto à organização política, por tratar-se da relação com a sociedade
não indígena, a exemplo da luta pela demarcação dos territórios, são apropriadas
formas organizativas da sociedade nacional, inspiradas em vertentes ideológicas
conservadoras ou democráticas, como conselho, associação, participação e
representação comunitária. Em relação à participação do indivíduo como membro do
grupo, o critério político é determinante, na condição de assumir o compromisso com
as demandas reivindicatórias e mobilizações políticas do povo, conduzidas pelo
grupo dirigente.
32
O salário mínimo nacional foi instituído pelo decreto lei nº 399 de abril de 1938 do
presidente Getúlio, passando a vigorar em 1º de maio de 1940. As leis básicas que
garantem o direito à aposentadoria dos trabalhadores rurais estão na Constituição Federal
de1988, as leis nº 8.212/91, nº 8.213/91 e Decreto nº 3.048/99. Ao indígena é exigido
certidão fornecida pela Fundação Nacional do Índio – FUNAI -, certificando sua condição de
trabalhador rural.
116
2.4.3.3 Idioma
33
JONES, David M.; MOLYNEAUX, Brian L. Mythologies des Amérique, 2001.
34
Não há comprovação precisa se o nome do ritual é originário da palmeira ouricuri.
117
confecção de esteira, tapete, chapéu, saia e bolsa; a massa do coco é usada na
alimentação e produção de óleo. Para esses povos, tudo que está envolto ao
Ouricuri é segredo.
No período do ritual Ouricuri, 15 dias ao ano e em finais de semana,
convocado pelas lideranças religiosas, só participam os indígenas conhecedores do
ritual – significa que membros de comunidades indígenas que não conhecem o ritual
são também impedidos de participar.
Na entrada ou abertura oficial do ritual Ouricuri - termo utilizado pelos
indígenas no dia do ato celebrativo em que efetivamente se recolhem no Ouricuri -,
em alguns povos, a sociedade é convidada para participar, amigos, pesquisadores,
parentes não indígenas e até meios de comunicação, podendo permaner até o meio
dia. Todos são obrigados a respeitar as proibições determinadas pelo pajé, como
não cruzar o terreiro, não ultrapassar os limites de entrada do local reservado aos
homens, não fotografar ou filmar lugares e objetos relacionados ao sagrado.
No Sertão, os povos Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katökinn e Koiupanká,
os rituais são realizados de acordo com o calendário religioso determinado por cada
etnia, com período e regras definidas. Os rituais são realizados em dois momentos
distintos: os rituais de preparação correm somente entre os indígenas; e o público,
no qual os praiás e toantes dançam e cantam no terreiro, na presença de todos,
indígenas, convidados, pesquisadores e curiosos.
A linguagem que os indígenas usam para falar sobre os rituais é do
domínio da língua portuguesa, como festa ou brincadeira – divertimento e lazer;
coisa de criança –, isso remete à lembrança da prática catequética missionária de
infantilização dos indígenas; ou, ainda, do linguajar popular, usada pelo cacique
Genésio Miranda, chama forguedo – folguedo. (FERREIRA, 2001, p. 327).
35
Atualmente encontra-se na penitenciária cumprindo pena pelo assassinato de uma
pessoa.
119
diluídos entre os membros das comunidades – funcionários públicos e estudantes -,
estes ligado à política indigenista, baseados na disputa de grupos indígenas por
cargos na política de Estado.
Entretanto, para além da visão anterior sobre a unidade e coesão do grupo,
esses três pontos podem dar pistas para uma análise mais aprofundada e
específica, podendo revelar, assim, razões mais profundas do discurso de unidade e
coesão do grupo. Concepção que tem origem no princípio filosófico grego da
universalidade do ser social indivisível e absoluto, combinando com a visão cristã da
unidade como modelo de perfeição. (CHAUÍ, 2002, p. 20). Por outro lado, no campo
da AD, referindo-se ao lugar da interpretação, diria Eni Orlandi:
Que escuta ele deve estabelecer para ouvir para lá das evidências e
compreender, acolhendo, a opacidade da linguagem, a determinação
dos sentidos pela história, a constituição do sujeito pela ideologia e
pelo inconsciente, fazendo espaço para o possível, a singularidade, a
ruptura, a resistência? (1999, p. 59).
120
poder dominante, resguardando-se de intempéries, conflitos, perseguição e exclusão
a que foi historicamente submetido. A construção do discurso ocorre no contexto
histórico de uma relação de poder entre o dominador e dominado em nível religioso,
político e econômico.
A unidade, no sentido posto pela racionalidade ocidental, possivelmente
nunca existiu dentro das relações internas da população e, muito menos, nas
relações interétnicas. Em nível da composição dos grupos étnicos encontrados no
Brasil, identificam-se troncos linguísticos de diversos povos espalhados por todas as
regiões do território. Antes da chegada dos europeus, os povos estavam
estruturados e mantinham os contatos de acordo com as relações interétnicas e
linguísticas.
Na perspectiva de responder à expectativa dos interlocutores – agentes
públicos, autoridades governamentais, missionários e indigenistas-, as lideranças
indígenas se apropriam do discurso da unidade, como uma forma de manter
também o poder político sobre o grupo que lideram.
A intervenção política, religiosa e cultural europeia fez com que os povos
nativos mudassem o curso social, com o impacto e a instabilidade social obrigou-os
a construírem novas composições políticas e formações étnicas. O estado de
instabilidade migratória e de submissão ao coronelismo local, como relata o cacique
Genésio Miranda sobre a origem Geripankó,que é identificada pelo conflito e não
pela unidade. A história do primeiro casal indígena Geripankó que chegou à
Comarca de Água Branca é marcada por conflitos e disputas de terra. A migração
aconteceu por razões de terra, fome, doenças e conflitos internos em Pankararu; e,
em Água Branca, a terra que ocupa já se encontrava dominada pelo Major Marques,
por isso, mais uma vez, sofrem ameaça de expulsão, que, somente com a
intermediação do Barão de Água Branca, a permanência na terra é conquistada. Isto
favoreceu a migração de outras famílias para a localidade e aglomeração grupos
indígenas na região entre os estados de Alagoas e Pernambuco.
121
2.5.1.1 Expropriação da terra, submersão étnica e negociação política
36
Lei de Terras, como ficou conhecida, é a lei nº 601 de 18 de setembro de 1850.
122
condições, manteve os costumes, as tradições culturais e religiosas no subterrâneo
da oficialidade política e cultural.
A relação conflito e negociação mantém-se presente ao longo da relação
indígena com a sociedade nacional e suas instituições. Em determinados períodos e
situações, sobressai mais um ou outro, que, de acordo com os interesses e forças
políticas externas e internas, interferem na relação e composição organizativa dos
grupos.
Na área governamental, outro fator de negociação interna Geripankó
ocorre no processo de reconhecimento étnico com o órgão oficial, a FUNAI, em
1982. Até então, os geripankó encontravam-se na condição de caboclos do ouricuri,
como eram chamados na região. Para a sociedade, na prática, a cultura indígena
presente nos rituais religiosos, não era reconhecida, vista somente como algo que
tem alguma referência remota com os primeiros habitantes, o índio de 1500.
Com a abertura política do Brasil no final da década de 1970, os geripankó
foram contatados politicamente por lideranças do povo Xucuru-Kariri, localizado em
Palmeira dos Índios, para, juntos, lutar pelo reconhecimento étnico e pela
assistência. Segundo o cacique Genésio Miranda, ele foi o escolhido da comunidade
devido à experiência que tinha – trabalhou nos estados de São Paulo, Mato Grosso
Sul e chegou até a Bolívia. O pajé escolhido foi Elias Ferreira, que mesmo não tendo
nascido na comunidade, detinha o conhecimento religioso Pankararu, com a
justificativa que foi ele quem levantou o terreiro e os praiás, “aqui não tinha mais
isso”.
Genésio Miranda e Elias Ferreira, definidos nos cargos de cacique e pajé,
respectivamente, e acompanhados de outras lideranças indígenas de Alagoas,
começaram a viajar para Recife, sede Regional, e Brasília, a presidência da FUNAI,
com o objetivo de buscar o reconhecimento étnico e a demarcação da terra.
Entre idas e vindas da aldeia para as sedes administrativas do órgão
indigenista, o povo Geripankó conseguiu a demarcação de uma área de 200
hectares, (Relatório circunstancial da FUNAI), espaço destinado à habitação e
produção da população. A terra consolidou e deu visibilidade à organização e à
identidade étnica, delimitando a fronteira cultural na relação com a população do
entorno.
123
Considerando as informações acima, identifica-se que o povo Geripankó
encontrava-se no anonimato como grupo étnico e organização política, limitados às
práticas isoladas do ritual. Com o reconhecimento político da sociedade e órgão
governamentais e articulação com as lideranças indígenas de outros povos e
entidades indigenistas, com a garantia dos direitos constitucionais e a conquista da
gleba de terra, os rituais religiosos e a identidade étnica tornaram-se públicos.
A comunidade continua a reivindicação pela demarcação do restante do
território. O cacique Genésio Miranda apresenta os marcos do território Geripankó:
Aí foram feito limite assim, da Cadeia do João Curto, Serra da
Chapada, Cabeça da Grota D‟água, Bem Dizer, Serra do Simão,
descendo Pedra Letrero, Lagoa do Croatá, subindo a Serra do
Lunguinha pega a Serra do Cardoso, a Lagoa da Samombaia, lá
vortando direto a Lagoa do Ripelo, e lá vortando vem direto
embugando a ferrada que é aquele Oraçicum, e sobe a Cadeia de
João Curto, e eu tenho todo os documento, e tá no cartório de Doutor
Irácio de Melo, lá em Água Branca. (ENTREVISTA, 2013, p.12).
37
Fundação do município, 7 de abril de 1992.
124
A ação foi liderada pelo cacique Genésio Miranda, com o apoio de um
grupo indígena da comunidade, da organização Articulação dos Povos Indígenas do
Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo/APOINME e do CIMI. No Estado de
Alagoas, os povos indígenas estavam organizados na Microrregião Alagoas e
Sergipe38, mobilizados em torno da luta pela terra e da saúde.
O cacique Genésio Miranda, personagem central desse processo, coloca-
se sempre, na relação que tem com órgãos governamentais e autoridades políticas
da sociedade nacional, como analfabeto, ignorante, chegando até construir o
discurso de bobo ou de desentendido. Com isso, assumindo a infantilização e
ignorância dada pela sociedade não indígena, assim, ele se apropria e reconstrói
politicamente o discurso do interlocutor, o discurso da dependência e da negociação.
Com a construção de novas relações sociais, as autoridades geripankó
percebem a importância da organização de novos grupos indígenas na região,
aumentando a correlação de forças com os povos do Agreste e do Sertão no
processo de demarcação da terra. A correlação de forças é percebida e assumida
politicamente pelo cacique, trazendo para si a responsabilidade do apoio à
organização de novos grupos.
A dinâmica do processo social repercute nas forças internas e externas,
entre lideranças da comunidade e dos outros povos, com os políticos locais e frente
ao órgão indigenista oficial. Sentindo-se fragilizadas, lideranças dos outros grupos
internos, tendo à frente o presidente da Associação Comunitária, Severino
Nascimento, questionaram os laços de parentesco e de desvios de recursos dos
principais atores políticos sustentados politicamente pelo cacique Genésio.
Neste cenário, apresenta-se a movimentação de vários atores e interesses,
internos e externos. Além dos grupos indígenas internos que aparecem em disputa,
participam direto ou indiretamente, organização indígena interétnica, órgãos
governamentais, partidos políticos, autoridades do poder executivo e legislativo,
entidades indigenistas e religiosas.
Duas forças políticas se destacaram na disputa política em torno do
gabinete odontológico: indígenas e indigenistas de um lado; órgãos governamentais
do outro. Por trás da disputa, identifica-se a expressão ideológica das duas forças.
38
Relatório de Tânia Silveira e Jorge Vieira - membros do CIMI e assessores da APOINME.
125
2.5.1.2 Identidade Geripankó: parentesco, religião e disputa política.
127
ressignificam nos rituais que sustentam o fio condutor da afirmação da identidade
étnica do povo.
Segundo relato do pajé Geripankó, Elias Ferreira, à semelhança
Pankararu, os rituais iniciam depois que um indígena encontrar o primeiro fruto
maduro do umbu ou imbu - fruta nativa do semiárido. Depois que encontra, é
comunicado ao pajé, que marca o primeiro ritual para o final de semana seguinte,
sempre no mês de dezembro, Flechada do Imbu. Colocam-se os imbus em um saco
plástico, amarrado na extremidade de uma vara, pendura-se o saco na vara
arrarrada com cordão e, então, os praiás enfileirados, com uma distância inicial de
cinco metros, com um arco e uma flecha tentam acertar o saco. À medida que todos
os praiás tentam, mas não conseguem, o espaço é diminuído até que algum venha a
conseguir flechar e derrubar o saco. O praiá que conseguir tem o direito de chupar
ou dar para outra pessoa os imbus.
O ritual Puxada do Cipó é realizado com um grande cipó colhido na mata.
Os praiás - homens encobertos com indumentária fabricada com a fibra extraída do
cipó crauá ou caroá -, investidos dos espíritos dos Encantados, enfileirados fazem
três rodadas dançando e carregando o cipó, intercalados com indígenas vestidos em
trajes do cotidiano. Ao término das rodadas, os praiás se dividem em dois grupos,
seguidos pelo restante das pessoas, coloca o cipó na direção leste-oeste. Como
cabo de guerra, os dois grupos puxam com força o lado oposto do cipó até um grupo
vencer. Os grupos envolvidos, aparentando uma simples brincadeira – gritarias e
torcida -, representam as forças dos espíritos Encantados.
Segundo informações coletadas pela pesquisa, o grupo vencedor revela
significados positivos ou negativos para o povo, dependendo da direção em que o
mesmo se encontrar. Muitas variáveis podem ocorrer: se o cipó quebrar, o grupo
poderá sofrer com problemas climáticos, doenças; caso o grupo do norte vença – o
referencial norte é resultado de uma construção do imaginário indígena do sertão,
originado no pensamento dual eixo norte e sul; na realidade, o ponto cardeal é leste
-, o povo sofrerá grandes dificuldades na agricultura, com falta de chuva para plantar
e a colheita será fraca; no caso do sul, será um ano chuvoso, propício para a
plantação e para colheita abundante.
128
Seguindo o calendário Geripankó, no período imediatamente anterior à
Quaresma - segundo a tradição cristã, são os 40 dias que antecedem a Semana
Santa ou a Paixão de Cristo, quando Jesus Cristo foi crucificado na cruz e
ressuscitou no terceiro dia, a Páscoa -, realizam-se as Corridas dos Praiás, dança
composta de nove rodadas ininterruptas, durante o sábado e o domingo. Depois de
cumprirem a obrigação, os praiás se revezam durante o dia e a noite no terreiro,
parando somente em torno da meia noite para retornar no outro dia acerca das 8
horas. Em seguida, os toantes abrem as rodadas do toré até às 5h da manhã.
As Corridas dos Praiás são estruturadas em vários atos. Durante os três
primeiros finais de semana, ocorre o ritual Queimada do Cansanção, composto por
homens e mulheres compenetrados, carregando molhos de cansanção sobre os
ombros acompanhando o ritmo dos praiás; ao encerrar a dança em círculo e
simulando passar os galhos sobre as costas dos parceiros, todos pisam os galhos.
Ao final das celebrações, organizados e carregados por mulheres, balaios cheios
com gêneros alimentícios e frutas, principalmente o umbu, são colocados no terreiro
como oferendas para as entidades.
Em vários momentos, com bebidas apropriadas para o ritual, garapa e
imbuzada, homens e mulheres servem ao público presente. A garapa é feita de água
com açúcar ou rapadura, colocada em baldes ou potes de barro, é abençoada pelos
praiás antes da partilha. A imbuzada, ou umbuzada, é feita do fruto umbu, água e
açúcar – o termo usado imbuzada é utilizado pelos indígenas -, para se referir ao
líquido que depois de cozido é transformado em caldo grosso e adocicado.
Durante o ano, os grupos Pankararu realizam o ritual da Mesa. O trabalho
é conduzido pelo líder religioso, o pajé ou curandeiro, em torno de uma mesa –
espaço imaginário -, com a participação de homens, mulheres, jovens e crianças. O
pajé invoca os Encantados, os espíritos que orientam a vida, o destino e a cura da
população indígena. Segundo o pajé Elias, o ritual é realizado semanalmente, em
três sessões - terça-feira, quinta-feira e sábado. A Mesa tem como objetivo a cura de
doenças físicas e mentais, inclusive de participantes não indígenas. O pajé Elias
informou, ainda, que o trabalho para o indígena é uma obrigação do pajé, mas
quando feito para o branco, o trabalho é pago.
129
O ritual Menino do Rancho é realizado com os praiás, como pagamento de
promessa ao Encantado que concedeu a graça pela cura de uma criança do sexo
masculino. Formalmente, a explicação das autoridades sobre o ritual, é a de cura de
um menino, mas, apreende-se pelos elementos inseridos no ritual, que indicam a
entrega do menino no terreiro, a iniciação no mundo dos Encantados. Os pais ou
parentes da criança, ou a comunidade quando os familiares não têm condições,
assumem a obrigação de realizar o ritual e arcar com as despesas. “Toute société
primitive possède um ensenble cohérent de traditions mythiques, une „conception du
mond‟, et c‟est cette conception qui est graduellement révéllé au novice au cours de
son initiation”. (ELIADE, 1959, p. 13).
A Festa da Cruz, de origem cristã, é realizada durante três dias, em datas
variadas de acordo com o povo, e encerrada com a celebração da missa. Há uma
grande participação da comunidade, principalmente no encerramento.
Desperta a observação do pesquisador, a presença de cruzeiro instalado
sobre uma pedra no alto de um morro ao redor do aldeamento, presente em todas
as comunidades de origem Pankararu. São símbolos que demonstram a relação
desses povos com os símbolos, ritos e manifestações culturais católicas, praticados,
desde o período de colonização no antigo aldeamento de Brejo dos Padres e que
foram mantidos, mas reelaborados em novo contexto social.
A princípio, constata-se que a cosmologia indígena é composta por uma
infinidade de entidades espirituais, originados de seus antepassados, de religiões
afrodescendentes e cristãs católicas, mas ressignificados e transformados em ritos
próprios.
130
apossaram das terras localizadas no oeste do Estado de Alagoas, próximas à divisa
com o Estado de Pernambuco, no século XIX. Com tempo, as famílias kalankó
foram inseridas na estrutura da sociedade nacional, absorvendo costumes, valores e
formas de trabalho.
Depositária das tradições religiosas indígenas e da religião católica
aprendida através da formação missionária, em Água Branca, a população
masculina foi transformada em peão de fazenda, trabalhador braçal, arrendatário e
boia fria nas usinas de cana de açúcar, na região da Mata de Alagoas. Nos últimos
anos, pela escassez de alimentos e de trabalho, a população, majoritariamente os
homens, tem buscado trabalho na construção civil, principalmente como servente de
pedreiro.
O processo de afirmação da identidade étnica aconteceu em um contexto
de mobilização política dos povos indígenas frente às medidas econômicas
neoliberais e à política indigenista do então governo do presidente Fernando
Henrique Cardoso, na década de 1990, que afetaram diretamente os direitos dos
povos indígenas na Constituição Federal do Brasil.
O debate político e a mobilização social contra as medidas neoliberais
fomentaram a participação dos povos indígenas no cenário nacional. Afetada por
essas medidas, a economia do Estado Alagoas encontrava-se em profundo déficit
público, com a economia estagnada, falência do banco estatal, desemprego e não
pagamento dos salários do funcionalismo público. A crise social se abateu sobre o
Estado, provocando a discussão e formação política da população excluída.
131
numerosa. O argumento foi confirmado pelo pajé Elias Ferreira, mas com a
orientação de irem até Brejo dos Padres, aldeia Pankararu, para comprovar com os
parentes a origem indígena.
No discurso das autoridades Geripankó, confirma-se a coerência quanto o
apoio à organização de Kalankó como grupo autônomo; entretanto, diferencia-se
quanto à argumentação. Enquanto o argumento quantitativo do cacique é
determinante para formação do grupo – pode-se interpretar a sua convicção na
identidade étnica do grupo, fruto da convivência e participação nos rituais e relação
de parentesco -, para o pajé, a formação do grupo deve ser encontrada na relação
de parentesco com o tronco Pankararu.
Entretanto, esses argumentos discursivos não são contraditórios e nem
conflitantes quanto ao processo de organização e reconhecimento étnico, mas
expressam realidades diferentes dos dois personagens. Nos respectivos discursos,
identifica-se que a relação de parentesco do cacique Genésio Miranda com o tronco
Pankararu e com as primeiras famílias Geripankó, o investe de autoridade e o
qualifica a conceder prontamente a legitimidade do grupo para se organizar
autonomamente. No caso do pajé, é diferente, visto que, mesmo tendo o
conhecimento do sagrado e ser o responsável pela direção dos rituais, esses
elementos não o qualifica a reconhecer o grupo, transferindo a responsabilidade
para o tronco Pankararu, em razão de sua origem não estar no grupo Geripankó do
Ouricuri. Portanto, dentro da organização social do grupo, cada ator tem clareza do
seu papel, definido e reconhecido nas ações do cotidiano e na estrutura social do
grupo ao qual pertence. A rede de relações Geripankó, construída historicamente,
tem como base a relação de parentesco, o domínio e a manipulação do religioso, a
capacidade de constituir relações políticas e religiosas e compreender o
funcionamento das sociedades, indígenas e não indígenas.
Envolto na trama discursiva dos atores citados, os Kalankó ocupam o
espaço de afirmação da identidade étnica, sustentados nas relações de parentesco
com Pankararu e Geripankó. Os Kalankó fazem-se presentes nas Corridas dos
Praiás e no ritual do Menino do Rancho. O grupo, com o apoio do CIMI, do padre
Rosevaldo Caldeira de Souza da paróquia de Água Branca, partidos políticos,
movimentos social e sindical, firmou-se na sociedade com sua identidade indígena.
132
O ritual Kalankó segue a tradição Pankararu, com preparação espiritual e
abstinência de álcool e sexo durante os três dias que antecedem o ritual para os
homens dos praiás, durante o sábado e o domingo de Aleluia.
A data de apresentação da identidade indígena está marcada no
calendário religioso. Kalankó tem a obrigação de celebrar o ritual do reconhecimento
e o do Sábado de Aleluia. O pajé Antônio Preto dirige as cerimônias, incluindo o
ritual da cura.
A celebração deu visibilidade à identidade indígena e despertou a atenção
dos moradores da circunvizinhança, das autoridades civis e religiosas, dos
agricultores e fazendeiros. A reação da sociedade não indígena fundamenta-se na
concepção estereotipada de índio, o silvícola. O técnico agrícola e funcionário da
EMATER – Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de
Alagoas – e fazendeiro, José Roberto, referindo-se ao primeiro cacique Kalankó,
expressou: “O Tonho até pouco tempo trabalhava em minha fazenda como peão,
cuidava dos meus animais, e agora diz que é índio?!”. (ENTREVISTA, 1998).
2.5.3 Karuazu
133
relações com agentes de entidades não governamentais, órgãos públicos e
autoridades locais. Novas demandas foram postas quanto ao conhecimento e
relacionamento com os novos atores. Por exemplo, em nível da linguagem, são
obrigadas a aprender palavras e siglas, como FUNAI, CIMI, ANAÍ, DISEI - Distrito
Sanitário Especial Indígena -, para poder se comunicar com os novos interlocutores;
surgem novas categorias de trabalhadores, como servidor público, professor (a) e
agente de saúde.
As relações internas e externas, que não eram observadas, passaram a ter
uma nova visibilidade entre os membros da comunidade indígena, na disputa dos
grupos por cargos e liderança, como também no olhar da comunidade não indígena
em relação aos grupos étnicos.
A afirmação da identidade não se reduz ao ser identificado etnicamente
diferente, mas carrega consigo um caráter eminentemente político. No contexto do
Nordeste, a afirmação étnica dos povos do Sertão de Alagoas significou a conquista
da autonomia e a melhoria na autoestima.
2.5.4 Katökinn
134
segundo sua neta, Cidinha Katokinn, para poder continuar a realizar os rituais (cura,
mesa, Corridas dos Praiás, toré, Menino do Rancho, Rei do Peixe - praiá traseiro ou
coice do cordão, celebrado no quarto sábado de janeiro) e se filiar na Federação
Espírita de Alagoas.
Com o ressurgimento étnico, enquanto grupo diferenciado dos outros
povos originários de Pankararu, não somente os rituais tornaram-se abertos ao
público local e aos visitantes, como também possibilitou politicamente a formação e
fortalecimento da organização da luta em defesa dos direitos indígenas, assistência
à saúde, educação específica e a luta pela terra.
Com o falecimento do pajé Arvilino Katokinn, em 09 de outubro 2006, a sua
filha Nina - Maria das Graças Soares de Araújo, 52 anos -, tornou-se a principal
liderança da comunidade, assumindo a direção dos rituais e da defesa dos direitos
do povo.
A decisão de assumir a direção própria enquanto povo deu visibilidade às
manifestações culturais, religiosas e políticas Katokinn. Entretanto, e nível dos rituais
religiosos e político, os povos Karuazu e Katökinn mantêm relação permanente de
articulação e de participação nas atividades.
2.5.5 Koiupanká
135
calendário religioso Koiupanká inclui a participação no ritual Kalankó, realizado no
Sábado de Aleluia e, em seguida, a realização dos três finais de semana na
comunidade.
A liderança religiosa principal, dona Iracema Maria da Silva, 76 anos,
habita na aldeia Roçado, lugar onde se realizam as reuniões e se tomam as
decisões políticas.
A relação política de Koiupanká com a sociedade local ocorre entre
negociação e conflito, dependendo das questões e interesses políticos de ambos.
Na linha do tempo, o povo Koiupanká é um dos últimos a reivindicar o
reconhecimento étnico. Em pouco tempo, pela forma como tem se portado, as
lideranças têm conquistado o apoio dos outros povos e o respeito das instituições
governamentais. O cacique Zezinho, com os cantos do toré e a liderança política, foi
eleito vice-presidente do Conselho de Saúde Indígena de Alagoas, atualmente
exerce a função de assessor da Secretaria Especial de Saúde Indígena de Alagoas -
SESAI.
A habilidade política é marcada, profundamente, pela sutileza entre a
pressão política e a negociação. A relação com os órgãos públicos é marcada por
conflitos e tensão. O discurso é construído na defesa dos direitos da população.
136
Os evolucionistas descobriram a possibilidade de conhecer através de
instrumentos precisos do conhecimento científico. Malinowski deslocou o
conhecimento antropológico criando novas técnicas e novo método de pesquisa. No
século XX, a antropologia daá o seu grande voo, principalmente com o pensamento
do francês Claude Lévi-Straus, rompendo definitivamente com a divisão entre
sociedade primitiva e sociedade selvagem.
No final do século passado, surge o fenômeno social dos povos indígenas
do Nordeste, realidade que a antropologia clássica não conseguiu explicar. Foi
necessário se reinventar para poder penetrar em mundo até então desconhecido, ou
melhor, visto, mas não compreendido cientificamente.
O fenômeno da etnogênes reafirmou as bases de uma realidade que foi
negada socialmente e, em nome da ciência, dada como não existente. Os povos
indígenas, considerados extintos, emergiram politicamente e se mostraram como
sujeitos históricos, com autonomia reivindicando os direitos e o respeito por suas
histórias, suas culturas e identidades étnicas.
As forças sociais hegemônicas, bélicas e cientificistas que engendraram o
aniquilamento e desaparecimento de grupos indígenas na história da colonização do
Brasil, não deram conta de visibilizar as relações sociais complexas produzidas
pelos diversos atores em cena.
Para Karl Marx, o homem não passa de um “conjunto de relações sociais”
(Apud RABUSKE, 2001, p. 9). Usando como base teórica o materialismo histórico
dialético, com o objetivo de analisar e compreender as relações sociais dos povos
indígenas do Sertão de Alagoas, enquanto grupos sociais, te-se que a negação e
afirmação da identidade étnica, são processos que resultaram das relações
econômicas, políticas, religiosas e simbólicas intrinsecamente gestadas e
produzidas no seio da história.
Nesta perspectiva, indubitavelmente, os povos indígenas foram marcados
profundamente pelo processo histórico no contato interétnico entre culturas
indígenas, europeias, africanas e asiáticas. A homogeneização da diversidade foi
resultado da imposição imperialista dos agentes da colonização e das formas de
produção material entre as classes dominantes e dominadas, dialética e
historicamente produzidas.
137
No campo religioso, etimologicamente a conversão carrega em si o
princípio da contradição, visto que a mesma supõe um conteúdo gnóstico produzido
anteriormente, pois se o indígena é condiderado tabula rasa, como entender a
conversão do vazio. Implicitamente, portanto, o conteúdo discursivo missionário se
depara, ontologicamente, com as cosmologias indígenas.
É nesse contexto que acontece o confinamento indígena no aldeamento
Brejo dos Padres. Na ótica missionária, o aldeamento possibilita a execução da
formatação programática do modelo de sociedade europeia em substituição às
formas indígenas.
A leitura missionária também se tornou equivocada. Na construção
simbólica do indígena, os elementos da economia, da cultura e da religião foram
apropriados e ressignificados de acordo com a base de produção dos sujeitos. A
apropriação e/ou simulação do conteúdo das culturas em contato põe em cheque a
visão do agente colonial. Pois, o conteúdo foi reestruturado nas condições impostas
ao sujeito indígena, na lógica e perspectiva da construção social dos interlocutores.
À medida que os grupos indígenas ressignificaram as categorias culturais
do colonizador em consonância com as suas bases culturais, tiveram como objetivo
afirmar seus projetos étnicos e de sociedade.
Cliffor Geertz defende o conceito de cultura de que o homem é um animal
amarrado às teias de significados que ele mesmo teceu. A cultura vista como sendo
estas teias e suas análises, portanto, não age como uma ciência experimental em
busca de leis, mas como uma ciência interpretativa à procura de significados.
(GEERTZ, 1975, p.15).
Na perspectiva de Geertz, analisando a formação da identidade étnica dos
povos indígenas do Sertão, encontramos, em carater permanente, esse processo de
construção simbólica. A condição histórica posta conduziu à construção de uma rede
de relações sociais, analisadas e avaliadas na correlação de forças do poder
religioso, econômico, político e bélico.
Investigando o contexto sociocultural dos grupos étnicos do Sertão de
Alagoas, compreende-se como foi construído o imaginário desses povos. Na
perspectiva conceitual de Durand,
O imaginário não é mais do que esse trajeto no qual a representação
do objeto se deixa assimilar e modelar pelos imperativos pulsionais
138
do sujeito, e no qual, reciprocamente, como provou magistralmente
Piaget, as representações subjetivas se explicam „pelas
acomodações anteriores do sujeito‟ ao meio objetivo. (2002, p. 41).
Seguindo a mesma orientação, sublinha Pitta, “as imagens não vêm
prontas e transmitidas pela hereditariedade; muito pelo contrário, pela interação
desses reflexos e das pulsões às quais eles são ligados com o meio material e
social que as imagens se formam”. (2005, p. 23).
E, nessa investigação e compreensão do imaginário, Durand define como
trajeto antropológico:
Precisamos nos colocar deliberadamente no que chamamos o trajeto
antropológico, quero dizer, a incessante troca que existe ao nível do
imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as
intimações objetivas emanadas do meio cósmico e social. Essa
posição afastará de nossa pesquisa os problemas de anterioridade
ontológica, pois postularemos de uma vez por todas que há uma
gênese recíproca que oscila do gesto pulsional ao meio ambiente
material e social, e vice-versa. É nesse intervalo, nesse
caminhamento reversível que se deve instalar a investigação
antropológica. (DURAND apud PITTA, op. cit., 23-24).
140
foram superados pelos sujeitos históricos, que resistiram à imposição do
monoculturalismo dominante.
O imaginário, neste contexto, depara-se e busca seu espaço, a partir do
viés teórico étnico e histórico, considerando os condicionamentos e interesses que
perpassaram a formulação teórica e política da negação da identidade, com a
presença dos povos Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katökinn e Koiupanká no
processo de ressignificação identidade étnica.
A partir dessa argumentação teórica e política, a construção da identidade
indígena é produzida na trama da história, que envolve disputas pela terra e pela
visão de mundo, materializada nos interesses econômicos, políticos, religiosos,
culturais e ideológicos, entre indígenas e colonizadores.
Nessa linha de argumentação, considerando o ressurgimento das etnias no
sertão de Alagoas, observa-se coerente e lógico o processo de ressignificação,
diante da imposição do modelo hegemônico dominante, como também a
reelaboração discursiva na interlocução com os atores da sociedade nacional –
órgão de Estado, Igreja, movimentos sociais, instituições não governamentais -, na
conjuntura de abertura política brasileira, reivindicando o reconhecimento étnico.
Este fato demonstra a capacidade de conhecimento do indígena sobre a
realidade em que se encontra inserido, como também a habilidade política de suas
lideranças em analisar a conjuntura adequada para se manifestar e se organizar
para garantir os seus direitos.
O fenômeno da emergência étnica da década de 1980, considerando os
fatores que impulsionaram o rompimento com as bases tradicionais teóricas,
contrariou em todos os aspectos, a lógica estabelecida pela classe dominante e
pelas teorias científicas.
141
3. POVOS INDÍGENAS DO SERTÃO DE ALAGOAS: MEMÓRIA,
CONSTRUÇÃO E RESSIGNIFICAÇÃO DA IDENTIDADE ÉTNICA.
143
além do que o próprio anfitrião deixou as pessoas à vontade com suas histórias
pessoais e da comunidade, recheadas de piadas e brincadeiras.
Naquele dia iniciava mais um ritual do calendário anual do povo Geripankó.
Ao mesmo tempo em que a atenção estava voltada para as conversas de “Seu”
Genésio, observa-se também os indígenas passando à frente da casa em direção ao
terreiro onde estava o ritual. Entre conversas, perguntas e curiosidades, o cacique
era interrompido pelos filhos e netos pedindo a benção, costume tradicional da
religiosidade católica praticada pelas famílias da região, em respeito aos pais, avós,
padrinhos e madrinhas.
Neste contexto, com a sua permissão, gravei a entrevista, com o diálogo
fluindo, intercalado com as interrupções dos presentes, de sua esposa, Dona Maria,
de filhos e netos, além dos transeuntes.
144
Koiupanká, foi necessário entrevistar o próprio personagem, numa condição que o
deixasse o mais natural possível, no ambiente da comunidade indígena e familiar. O
trabalho ocorreu no sábado pela manhã do segundo final de semana do Ritual
Flechada do Imbu, da liturgia Pankararu.
O pesquisador e os acadêmicos do curso de Direito, além da referida
família39, foram acolhidos por “Seu” Genésio que se encontrava deitado na rede, no
aldeamento Ouricuri. Com a sua costumeira espontaneidade e atenção, levantou-se
e cumprimentou-nos, voltando-se para a sua rede. No ambiente descontraído e o
mais natural possível, pedi licença para gravar a conversa. Com o consentimento,
pedi para colocar o gravador no bolso da camisa. O conteúdo da gravação é o
objeto da análise do presente texto.
No contexto do diálogo-entrevista, dentre os variados assuntos tratados,
analisei a história pessoal, familiar e a da comunidade indígena, destacando a matriz
cultural e a chegada das primeiras famílias Geripankó na região, o processo de
indicação para o cargo de cacique, o engajamento na defesa dos direitos do povo e
dos outros grupos indígenas, as viagens aos centros administrativos e os contatos
com as autoridades políticas e governamentais, e, principalmente, a participação na
luta pelo reconhecimento étnico e a demarcação da terra.
Durante a entrevista, os estudantes e José Silva – funcionário público,
professor de geografia e militante do PT – interagiram na conversação. Em
determinado momento, perguntei ao cacique Genésio Miranda sobre a sua história
de vida. O cacique, diante da minha pergunta, ao invés de respondê-la, abriu o
diálogo e perguntou para o José Silva, com claro objetivo de obter a confirmação do
seu discurso sobre fatos relatados, principalmente sobre a terra, a violência, a
realidade social da região, os autoridades políticas e coronéis. E pede a
confirmação: “Lula Cabelereira40, quem vendeu pá, pá Lula Cabeleira foi Antônio
Carlos, que era dono da, era chefe da fábrica, num era Zé?”. (P. 3). Continuando o
relato expõe os acontecimentos envolvendo as autoridades locais e estaduais:
O delegado de Água Branca, sob as ordens de Arnon de Melo 41, já
tinha mandado desarmar Zé Torres várias vezes, e todas às vezes
39
É prática comum na região, amigos, estudantes, pesquisadores e curiosos visitarem as
aldeias no período dos rituais.
40
Prefeito e grande empresário no município Delmiro Gouveia/AL.
41
Governador e senador pelo Estado de Alagoas.
145
ele devolvia; a última vez, Alfrânio Poeta, meu tio - quem me conto
essa história, né, que era o chefe dos capangas dele, né. Então, meu
tio Alfredo falou várias coisas, que havia executado. E aí, disse que o
Zé Torres, né, e o Luís só foi morto porque várias vezes o delegado
de Água Branca, que era Batistino, tentou amigavelmente desarmá-
lo, pedir pra ele entregar as armas, porque ele tinha um grupo
armado forte, né; e aí, outro recado que o Zé Torres mandou, foi que
se ele quisesse, se o delegado e o governador quisesse tirar, tomar
as armas dele, primeiro mandasse uma filha ou uma sobrinha pra
tirar as calça, uns cabra bom tirava as calça, como o tio Alfredo, né,
que era pra puder ter cabra bom no meio e ter coragem, que, por
enquanto, esses aí não desarmava ele não. Aí então o Arnon de
Melo mandou reforço, segundo tio Alfredo, o Arnon de Melo, o
Batistino pediu reforço, e foi aí quando o governador mandou os
atiradores dele... (2013, p. 4).
147
No caso de Lampião42, o mesmo afirma não saber da participação de
indígenas no bando de cangaceiros43. Entretanto, tanto em um caso como no outro,
ao longo do discurso, detecto o seu conhecimento sobre os indivíduos envolvidos, o
cenário e os lugares da ação. A seguir, o cacique Genésio Miranda demonstra o seu
conhecimento sobre casos que envolvem conflito, perseguição, violência, relação
com as autoridades, coronéis e questões políticas.
Tava por aqui, não; eu ouvi falar, mas não tenho muito
conhecimento, não; rapaz, eu não me aprofundei a isso, não; eu sei
que é o seguinte: ói, quando veio esses camarada44 praqui,
chegaram ali, tinha uma casa ali desocupada, tava em construção a
casa; aí eu morava lá perto; aí, quando chegou esses camarada,
junto com esses Correia mermo, aí pronto, chegaram, aí colocaram
aí uma escola, aí eu oiei assim - eu veio dessa idade nunca estudei -,
era pra estudar adulto; e eu corri lá pra roça, arrumei lá com a muié;
quando foi na boquinha da noite que nos cheguemo, ela disse: ou
ajeitar o café pra nós; eu disse tá; aí entrei, não sei se eu tava
trocando de roupa, com pouco escutei falar na porta, oh de casa; eu
digo: oh de fora; faz favor vir aqui, que é a polícia -- e eu ia dizer bem
assim, e eu devo a peste de policia; quase que eu dizia, mas no
mermo tempo veio, não, num pode ser assim não; eu digo, é já;
aguardo aí um poquinho. Mas ainda vim no pensamento, e eu devo a
peste de polícia. Aí, quando eu saí na porta: o cabra veio assim, um
cabo de Pariconha, e o quebra pau. Eu cheguei, boa noite; ele, boa
noite. Aí, aí disse, o senhor sabe me dizer quem é o pessoal que tá
aí nessa casa? Eu digo, sei não senhor, que cheguei nestante da
roça, que eu saio segunda-feira só chego essa hora; esse pessoal
dai num conheço, não. Aí tinha uns cabra lá juntado, eu fui danado
corri, deve ter sido esses comunista. Aí, quando eles foram lá,
42
Virgolino Ferreira da Silva, segundo o Batistério nasceu em 04 de junho de 1898, mas
pelo Registro Civil foi no dia 07 de julho de 1897. (Apud FERREIRA e AMAURY, 1999, p.
53). A presença de Lampião na região do Sertão de Alagoas remete a presença da família
Ferreira no município de Água Branca e região – seus pais foram sepultados no Cemitério
de Santa Cruz do Deserto, município de Mata Grande, localidade vizinha às comunidades
Kalankó -, e também pela presença e convivência do bando com os moradores, inclusive
indígenas. Em 26 de junho de 1922, Lampião atacou a cidade e saqueou o palacete da
baronesa de Água Branca, dona Joana Siqueira Torres. (Op, cit., 1999 p. 86-97).
43
Grupo liderado por Lampião, formado por homens e mulheres do sertão nordestino, que
percorria vários estados dessa região. Para alguns, bandidos; enquanto que para outros,
justiceiros. Vera Ferreira e Antonio Amaury afirmam: “As causas do surgimento do cangaço
foram de natureza variada. A injustiça, a falta de esperança e a revolta não foram as únicas.
Isso é mais que certo. Mas foram as circunstâncias as mais importantes para que
começasse (sic) a surgir os cangaceiros”. (1999, p. 28).
44
A utilização do termo camarada é encontrada entre os militantes da esquerda comunista e
também no meio popular na região do sertão de Alagoas. Em vista disso, não foi possível
precisar a origem do uso entre os indígenas. Entretanto, é possível que o cacique tenha
recebido influência do contato com os sertanejos, com os militantes comunistas e durante as
viagens que realizou por outras regiões do país.
148
pegaram, tinham um monte de papel, lama, tudo coisa difícil; aí eles
ajuntaram, aí levaram; os cabra correram, né, aí foram e montaram
uma frontera lá em cima da serra acolá, de pedra assim da artura
mais ou menos... (MIRANDA, 2012, p. 19).
45
Refere-se a serra que ficou conhecida depois desses fatos por Serra do Perigoso.
149
coisa assim; sei que foi pegado uns seis cabra, esses foram comer
até jornal, não sei na onde, né. Aí Josué, pela história que eu ouvi
dizer, Josué levaram ele pra banda de, pra fora, né, e ele pra escapá,
se jogou no rio, o rio com uns dois mil metro ele trevessou no braço -
assim essa história que eu, ele mermo disse, foi como ele fugiu de
lá... (...) Zé Correia foi preso, Joaquim da Paciência desapareceu, Zé
Novaes também desapareceu, tudo foram pra lá, não sei que fim
levaram, não... (MIRANDA, p. 22-23).
150
Nesta parte da análise, a fala mantém a estratégia de ocultação dos
personagens, com a linha de não delatar pessoas que conhece, mas, quando
afirma, o faz genericamente: “era uns lá que vivia no mato mermo, fazendo e
acontecendo”; e, também, quando cita alguns nomes é como se os mesmos não
tivessem ligação com o fato em discussão. “Pegaram Zé Machado e Zé Capucho, e
levaram em detenção na penitenciária do Recife pra morrer de veio, né”.
Observam-se nesses relatos a continuidade de uma história de violência
em que os grupos indígenas foram envolvidos, como vítimas e sujeitos de defesa e
perseguição. Esses fatos se encontram armazenados no subconsciente e na
memória e são expressos e utilizados no presente pelos novos atores e
protagonistas da saga pela sobrevivência, pelo reconhecimento da identidade étnica
e pela garantia e conquista dos direitos indígenas na legislação brasileira.
Memória não pode ser concebida como uma esfera plena, cujas
bordas seriam transcendentais históricos, cujo conteúdo seria um
sentido homogêneo acumulado a um modo de reservatório. Ela é
muito mais complexa; é um espaço móvel de divisões, injunções,
deslocamentos, retomadas, conflitos e regularizações; um espaço de
desdobramentos, réplicas, polêmicas, contradições. E as palavras e
imagens têm um papel essencial nesse jogo do discurso, de suas
materialidades (GREGOLIN, p. 99).
152
Utilizando o estatuto dos implícitos com instrumento de análise do texto
acima, Achard indica que:
Do ponto de vista discursivo, o implícito trabalho então sobre a base
de um imaginário que representa como memorizado, enquanto cada
discurso, ao pressupô-lo, vai fazer apelo a sua (re)construção, sob a
restrição „no vazio‟ de que eles respeitem as formas que permeiam
sua inserção por paráfrase. Mas jamais podemos provar ou supor
que esse implícito tenha existido em algum lugar como discurso
autônomo. (1999, p. 13).
46
Presença do vaqueiro no Sertão entre os indígenas in LINDOSO, Dirceu. O Grande
Sertão – Os currais de boi e os índios de corso. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira (FAP),
2011.
47
Grupo Aconã, atualmente localizado no município de Traipu, Estado de Alagoas.
48
Festas: devido a perseguição de missionários e os membros da sociedade nacional,
utilizaram termos da língua portuguesa para dissuadir e poder praticar os rituais religiosos.
154
namorada de 13 anos e a avó. O que é comum para os sertanejos, inclusive entre os
indígenas, região castigada pela seca e ausência de políticas públicas, e sem
perspectiva econômica, o objetivo principal foi partir em busca de trabalho em outros
estados, a exemplo de São Paulo, Paraná e no atual Mato Grosso do Sul, chegando
até ultrapassar as fronteiras do Paraguai e da Bolívia.
Foi, que é frontera lá do Paraguai, eu atrevessava que só, era uma
graça, sabia como que é? Quando eu cheguei na frontera, duas hora
da madrugada, eu e meus companheiro, lá na firma que eu trabaiava
era uma firma de ferro, por nome Siderurgia, num é? E, um dia eu ia
lá pro movimento lá, eu encontrei uns cadáver lá, eu digo, oxe, o que
é isso? Axei dois cadáver assim, um aqui outro acolá, tava só o
cangaço, eu notei assim, que lá num é esse negoço de... Aí, quando
foi de tarde chegou o fiscal, aí “Seu” Miranda, eu digo pronto, dá pro
senhor arrumar essa mercadoria pra nos fazer um abate, porque se
não o carro fica parado; eu digo, dá; aí juntei a mercadoria, aí disse,
vou medir, aí... (P.17).
155
avó morava cedeu para que a tia continuasse residindo, demonstrando assim a sua
atitude benevolente para com a tia e o seu papel de liderança familiar.
Dexei morando na casa e fui me embora, quando foi em cinquenta e
cinco que eu cheguei aí num tirei minha tia da casa não, ela mas
meu fio você quer casar, eu digo não, eu tenho condições de arranjar
outro rancho, e a senhora mora nessa casa aí enquanto for viva,
enquanto tiver vida a casa é sua, e de fato ela só saiu da casa
quando ela morreu. Aí fiz uma casa ali, quando já tinha seis bugelo aí
eu vi a situação que não tinha nada que preste, né... (MIRANDA,
p.17).
49
As lideranças indígenas deviam se encontrar no Recife para, de lá, seguir viagem para
Brasília.
157
como as relações sociais se inscrevem na história e são regidas, em
uma sociedade como a nossa, por relações de poder. (1988, p. 42).
50
Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí e
Maranhão.
51
POMPA, Cristina. Religião como Tradição – missionários, Tupi e Tapuia no Brasil
Colonial. Bauru/SP: EDUSC, 2003.
52
OLIVEIRA, João Pacheco de. (Org.). A presença Indígena no Nordeste – processo de
territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória. Rio de Janeiro:
Contra-Capa, 2011.
158
é o português né, e a raça negra é o africano, né, aí entraram em
Pankararú. (MIRANDA, p. 13).
159
(interdiscursos) provindos de outro lugar é que abre possibilidades para novos
efeitos de sentido que se concretizam nos discurso. (FLORÊNCIO, 2009, p. 79).
Em primeiro lugar, observa-se que a história Pankararu ficou marcada com
a presença do homem não indígena, o português e o africano, no aldeamento,
resultado da organização missionária.
Nas palavras de Genésio Miranda, observa-se que a sua memória
armazena e resgata a história de violência orquestrada e executada pelos agentes
da colonização - Estado e Igreja - contra o povo Pankararu e seus descendentes,
destacando o período principalmente que compreende a presença dos não
indígenas e suas políticas indigenistas53.
(...) Eu to lhe dizendo que foi na revorta do Cavarcante, Mané
Cavarcante começo lá a destruir lá (...) Matando os índio e
destruindo as índia, aí num foi isso que criou a mundiça, criou
africano, gerou África, pronto foi isso, a África hoje num tem mais, a
gente não tem mais nação indígena não é tudo raça negra, alguns
que tem ainda a, aquela luzinha do índio mas, não é muito mais.
(MIRANDA, 2012, p. 13).
161
O Zé Carapina consegue se fixar na terra, trabalhar e criar as condições de
formar uma família, na localidade denominada de Ouricuri. O discurso revela a
constante instabilidade vivida pelos indígenas, com uma composição de
insegurança, ameaça de despejo e de violência praticada pelos coronéis – “vamo
correr que o revortoso54 lá tá acabando com tudo” e, ao mesmo tempo, da parte
indígena, a busca pela estabilidade e pela segurança. Por outro lado, ao mesmo
tempo em que utilizada a caracterização étnica da sociedade nacional, o caboclo,
contraria a lógica etnocêntrica do indígena preguiçoso, onde o mesmo aparece no
enredo estruturado em uma família e trabalhador.
Fica perto dumas grotas acolá, entre uma serra e outra... aí eles
vinheram praqui escoieram aí e ficou morando, um bocado de seis
meis apareceu dois buguelo, Francilino e Maria, aí ficaram morando,
ele era caboclo trabaiador com uma roça bem organizada. (2012, p.
11).
54
O termo refere-se a uma pessoa que provoca revolta.
162
Enquanto base histórica, o relato reproduz uma realidade encontrada e
expressa na relação entre as duas classes sociais na região sertaneja, o dominador
e dominado. Até os dias atuais, em geral, os coronéis de antigamente e os
latifundiários de hoje, cedem a terra para os trabalhadores fazerem roças, com base
no sistema de meeiros ou arrendatários, com prazo delimitado. Antes mesmo de
chegar o prazo marcado, os denominados proprietários põem suas rezes nas roças
dos meeiros e arrendatários, e destrói as plantações, restando aos trabalhadores o
prejuízo e a lamentação.
No caso em estudo, observa-se a habilidade indígena na negociação,
usando o argumento do compadrio e o da autoridade. Primeiro, mesmo que o Major
desejasse despejá-los, observa-se no discurso que o indígena conhece bem as
relações constituídas da região, sabe se movimentar politicamente, e a usa com
muita sabedoria, além de argumentar e utilizar a sensibilidade humana. Lê-se no
texto:
E no tempo do Barão, e o Major Marco era cumpadre do Barão.
Major Marco vinha aqui reparar a roça, era fio de criador esse Major
Marco, a fazenda era lá no Olho D‟água de Baixo. Aí vinha aqui.
Quando chegou aqui viu a roça do índio toda preparada, de feijão de
corda, fava, mio maduro, aí disse ei rapaz eu mandei você fazer isso
aqui? Era naquele tempo, né, eu num mandei você juntar aqui e
fazer tudo isso não, você chegou aqui escondido, mas chegar e fazer
uma benfeitoria dessa eu não aceito não. E ele disse: é Major, mas
eu só fiz isso, oi, eu tenho essas duas criança pra dá de comer. E ele
disse: eu não mandei você vir criar criança aqui; derruba a cerca pro
gado comer a lavoura. Ele disse: ah, faço isso não que é crime; ele
disse, apois, é crime! Vou lhe entregar pro compadre Barão. Aí
entregou, e o Barão disse, mandou chamar ele e ele foi, quando
chegou lá ele contou a história, é ele me deu apoio pra eu me
aguardar lá e aquilo lá tava parado, cerquei a casinha de rama de
madeira, ramado, e ao redor da casa a muié fez um plantiozinho,
agora que a lavoura tava bem prosperada ele manda derrubar a
cerca pro gado comer; eu achei que meus fio ia morrer de fome, que
já tinha abobra pra cozinhar pra eles comer, já tinha um miinho pra
eles; aí eu disse que, aí ela falou é verdade, ele falou ói compadre,
se ele fizesse isso era crime mermo... (p. 11).
163
indígenas; e, posteriomente, surge o Barão, como interlocutor de proteção do
indígena.
A relação saiu do campo de dependência e submissão para o patamar da
negociação com o proprietário da terra. No contexto regional e de negociação, logo
de início, surge um dado muito significativo: a relação de compadrio entre o Barão e
o Major; por outro lado, e o mais importante na escala de obediência, a hierarquia de
poder, o argumento utilizado de autoridade pelo indígena, o Major se submete ao
poder do Barão. Entra em cena o Barão reconhecendo que se o indígena se
submetesse ao Major estaria cometendo um crime e, mais, o Barão reconhece o
direito indígena à posse da terra. Genésio Miranda colocou o discurso do
reconhecimento nas palavras do Barão no diálogo com o Major. Observo que o
cacique Genésio permanentemente coloca na fala do opositor o reconhecimemento
da origem indígena, o direito à terra e o respeito ao despossuído, no caso, os
indígenas.
Falou, sabe o que ocê pode fazer agora? Ocê sabe endireitamente
quem é afinal a nação brasileira? Major Marco é, oi, o índio é nação
brasileira, que nasceram no Brasil e nasceram da terra do Brasil; que
diz que o índio não nasceu de gente, não, nasceu da terra, que nem
sapo, disse que índio é raça de sapo. Será que, é? (risos)
Justamente, pois é isso, né, o índio é dono do Brasil, é a nação
brasileira, é o índio, e o português já sabe como é, é popular...
(MIRANDA, p. 11-12).
55
Relatório FUNAI: Identificação e Delimitação Geripancó, município de Pariconha/AL.
Maceió, 1993.
164
É, vem de Portugal, né, e sabe como é que você pode fazer? Fazer
uma limitação, que venha que eu passo os documento. Aí, ele
quando ele chegou fez uma limitação, tem os documento, tem lá nos
livro histórico; tô com todo documento aí, dos ponto sagrado, né. Por
isso que tô bem sossegado, num tô nem esquentando a cabeça...
(MIRANDA, 2012, p. 12).
166
E completou, indicando os pontos que identificam os delimitam os limites
da terra:
168
No processo de formação do pajé se identificam as várias etapas,
delimitadas pela faixa etária. Ainda criança, como está escrito no relato, não tem
conhecimento de nada do conteúdo religioso, que se inicia na faixa dos 10 anos,
quando é conduzido pela família até a casa da tia, Maria Chulé, para receber a
semente da ciência.
Aí eu cheguei lá, Aí, me levou lá no cantinho da casa dela de palha e
foi e me entregou lá umas encomenda e me botou lá; aí, eu não
queria, sabia nem o que era que era. Aí, depois, ela falou pra mim
que, quando eu tivesse na meia idade, eu ia saber o que era e de
fato aconteceu isso ai mesmo. (P. 2).
As informações que são repassadas desde cedo pela mãe para a formação
da criança, são confirmadas com argumentos discursivos da verdade histórica. Para
não deixar dúvidas no que está dizendo, afirma: “Isso aí é, é, é, uma história que eu
tô contando de realidade e aconteceu e então até na verdade eu quando muito
pequeno, muito muleque, minha mãe falava essas coisas”. (ELIAS, p. 2).
À medida que crescia e amadurecia a personalidadde, compreendia e tinha
possibilidade de formar a própria opinião, tanto com a informação que aprendeu na
família e, também, na participação dos rituais Pankararu. Em nível da observação
dos rituais, ainda jovem: “participava de festa de solteiro, de festa de 15 anos,
sempre eu participava por lá e via tudo de lá como era, que era, mas, só que eu não
trabalhava com eles. Então, eu, mas eu sempre vinha avisando, eles então eram,
mas só que eu não trabalhava com eles”. (ELIAS, p. 4).
Percebe-se que a formação religiosa acontece introduzindo na cosmologia,
na compreensão da mitologia e das entidades espirituais dos antepassados,
inicialmente com a informação e prática dos ritos sagrados no âmbito familiar, depois
com as lideranças femininas, iniciado e acompanhado pelas mulheres e na
observação dos rituais Pankararu.
Identifico, então, que a formação de pajé é lenta e dolorosa, tanto durante o
processo quanto em nível do cargo de pajé no exercíicio das atividades e
responsabilidades. Neste contexto, faz-se necessário retomar o discurso do cacique
Genésio Miranda, quando da escolha de Elias para o cargo de pajé, considerando
que o mesmo não tinha nascido na comunidade do Ouricuri, e que por isso precisou
do reconhecimento do cacique.
169
Observo um conflito entre as duas perspectivas a partir das explicações
dadas pelo pajé Elias e pelo cacique Genésio para a escolha do cargo de pajé. O
pajé Elias, admite o fato de não ter nascido na comunidade Geripankó, mas explica
o processo de formação que recebeu e, por isso, considera-se preparado para o
exercício do cargo. Entretanto, o cacique Genésio reconhece que o pajé Elias tinha
conhecimento para assumir o cargo, mas foi ele quem deu o respaldo político.
Mesmo relutando e batalhando contra as entidades espirituais, e tendo
obedecido as etapas etárias, cumprido a formação religiosa e a organização social
do povo, com a maturidade, assume:
Como se diz desse tempo pra cá, as coisas se passaram, mas a
coisa ia ficando dura pra danado; aí, no final, que eu me casei e
sempre eu vendo essas visão, sempre eu vendo, acompanhando
essa visão, eu sempre reclamava que eu não queria que saísse de
fora de mim, que eu não queria, mas não teve jeito de maneira
nenhuma; até que chegou ao ponto, de eu já com 40 anos de idade,
é, aí me apertou mesmo, foi o jeito que teve de eu consegui entrar na
batalha, de entrar no trabalho pra esse povo. (ELIAS, p. 2).
171
A partir das observações de campo e da análise expressa nas entrevistas
com as lideranças religiosas e políticas, numa escala estritamente metodológica,
identifico as seguintes etapas e critérios para se tornar pajé: a relação de
parentesco, que o identifica enquanto membro e define o pertencimento ao grupo
social – mesmo, como é o caso, não tendo sido criado na comunidade; a indicação,
convocação e entrega aos Encantados; conhecimento da vida social e da ciência
sagrada – semente do Encantado; participar e formar-se na vida social e religiosa
Panakraru; e, finalmente, entrar na fase da maturidade pessoal, social e religiosa.
Aplicando as categorias de análise, escreve Gennep, “como acontece entre os
Bantos e os ameríndios, sobretudo os Pueblo e os ameríndios centrais, a vida social
e a vida cósmica são consideradas intimamente ligadas, é normal que existam ritos
de agregação do recém-nascido ao mundo cósmico, quero dizer, a seus principais
elementos”. (1997, p. 70).
Todo o processo de iniciação é assumido pelas mulheres, desde o
chamado, preparação e acompanhamento religioso, cabendo ao pai acompanhar a
criança como membro da família. No caso do pajé Elias, ele é enfático e direto ao
falar do pai: “eu não tenho nem lembrança dele; eu tenho lembrança de minha mãe”.
(ELIAS, 2012, p. 2). E, ao contrário, quando falava da tia Maria Chulé, que o pegou,
passou a semente do Encantado e o preparou para dar continuidade às tradições
culturais e aos trabalhos religiosos, ficou emocionado:
É, é, é justamente, você me falou a respeito aí se me bateu um, um
batido no meu coração, quando você falou no nome de minha tia
Maria Chulé, que eu falei pra você que todo esse conhecimento eu
consegui com minha tia Maria Chulé. Jorge, a minha história é muito
longa, mais eu quero chegar até o final, é, é sobre as minha
obrigação, minha história é muito longa. (ELIAS, p. 10).
172
Koiupanká, como já demonstrado e analisado, existem questões étnicas
diferenciadas, ligadas as novas interpretações e ressignificações religiosas e
políticas -, para consultas aos mais velhos, caracterizada pela volta aos troncos da
comunidade.
O processo de identificação, formação, conhecimento dos ritos e mistérios
religiosos, como analisado anteriormente, ocorre nos limites da vida e estrutura
social do grupo étnico ao qual pertencem os membros, seja em nível interno ou de
onde se originou, no caso, o povo Pankararu. O cacique Genésio Miranda mostra o
pertencimento
Lá a gente era beneficiado, diziam que a gente lá conseguia os
costume, as tradição, a cultura, e o benefício sempre vinha, né, mas
não dava o segmento aqui o que era lá não, né, isso aí eu num tinha
conhecimento não, sabia que eu tinha assistência lá... (MIRANDA,
2012, p. 23).
56
O trabalho ao qual se refere o pajé trata-se das práticas religiosas e do domínio da ciência
indígena.
173
mesmo não tendo sido criado na comunidade. Em vista do reconhecimento do
trabalho e de sua capacidade foi convocado pela comunidade.
Este dado indicado pelo cacique e pelo pajé, considerados as duas
principais lideranças políticas e religiosas do povo, expressa a afirmação religiosa e
política deles para dentro da organização social da comunidade e, também, para os
interlecutores da sociedade não indígena. Portanto, é um discurso construído de
representação e afirmação identitário na correlação de forças e de poder frente ao
outro e diante da sociedade nacional.
Eu nasci e não me criei dentro da área, mas minha família é daqui
toda de dentro da área; mas, aí, depois que eu me casei, eu vim
morar aqui no Figueiredo, e uma cidade que ficou pertinho do
Ouricuri e do meu povo. Então, eu fiquei trabalhando, ahh, já tava
com quarenta e poucos anos de trabalho; aí, então, a comunidade
acharam que só quem tinha condições de ser pajé era eu, porque eu
tenho muito respeito com a comunidade, muito respeito com o
grande e o pequeno e o sobre ahh oooo ooo dereito do índio, só
quem sabia era eu por causa das minhas obrigações que eu tinha e
meus trabalhos; e, então, a comunidade acharam que só eu tinha
condições e foram e me chamaram e modo eu ir lá no Ouricuri, lá, lá
na reunião da com o povo, lá então eu não sabia o que era, então eu
cheguei lá e tava o Zé Nezi, tava o a comunidade a raiz tudo com os
tronco mais veio - Deus já levou quase tudo, mas ainda tem ainda aí.
Então eles acharam que ai lançaram a conversa pra mim; aí, eu fui e
abri a boca, que eu poderia até acompanhar o Zé Nezi sobre a
comunidade e o povo. É, eu dei meu sim de pajé, mas se eu
soubesse que o peso era tão grande assim para um pajé dentro de
uma área, eu nunca tinha aceitado, mas, como eu já dei minha
palavra; e segurei minha palavra até hoje. (ELIAS, p.1-2).
Charaudeau coloca:
174
Aí chamaro Elia (...) Pankararú, aí mas chame ele, aí chamaro. Ele
disse, ah vô; eu disse, ói Elia, você vai, mas você vai torcer a oreia -
isso é bicho de sete cabeça e cada cabeça tem sete ponta, mas você
se confia e comigo vamo. (MIRANDA, 2012, P.25).
175
O assumir os respectivos cargos, analisa-se que a construção discursiva e
antropológica indica duas interpretações: primeiro nega a capacidade do outro – no
caso, os membros da comunidade – quanto às condições de assumir o cargo, por
não ter o conhecimento da cultura e da religião; mas, ao mesmo tempo, o poder é da
comunidade que o chama. “Isso é importante, mas eu num tenho essa necessidade
não que eu já sou beneficiado por Pankararú, meu nome tá lá no cadastramento, né,
e toda vez que chega os benefício eu recebo, agora os daqui precisa, ói vocês
merece rapaz, ah mais num sabe” (MIRANDA, 2012, p. 24-25). Por outro lado,
observa-se o poder religioso e político do cacique, quando traz para si o poder de
reconhecer o seu conhecimento sobre a cultura e a religião indígena, como também
sobre o seu trabalho. Segundo Genésio, os outros membros da comunidade não
tinham o conhecimento e nem o praticavam:
É, essa otra famia aí nunca praticaram, nunca viram nada disso, só
quando eu me pus de gente, já foi na, na possibilidade do meu avô,
que meu pai morreu nasci em trinta, meu pai morreu em trinta e dois,
minha mãe em trinta e seis me abandono, e eu fiquei mais meu avô e
minha mãe, quando foi em trinta e... (MIRANDA, 2012, p. 15).
176
Era, que nos até num se gostava, porque um dia queria me prender
lá no posto, mas eu de besta não tinha nada, né, ele, sim dexa eu
terminar, aí, ele disse Genésio, qual é, que nome é que você vai
botar na aldeia? Aqui era conhecido por Ouricuri, mas o Ouricuri se
chama no particular57(grifo do pesquisador), nas aldeia Ouricuri, e lá
no Uruguguai é Ouricuri mas tem que ter o nome da, do particular, aí
disse, e aí rapaz e agora? Ele disse, mas tem jeito, Pankararu tem
cinco nome, aí você escolhe um dos nome, só não pode nem
Pankararu, nem Brejo dos Padres, aí tá bom, né... (MIRANDA, p. 25-
26).
57
O termo é usado por algumas populações indígenas do Nordeste para designar o ritual
religioso e o lugar sagrado onde o mesmo é realizado.
177
Seguindo a mesma linha de compreensão, o representante da Associação
Brasileira dos Antropólogos (ABA)58, Henyo Trindade, completa: “(...) a entrada em
vigor da Convenção 169 da OIT torna desnecessários os laudos de identificação
étnica, permitindo que avance diretamente na consecução dos laudos de
identificação territorial” (TRINDADE, 2003, p.14).
Portanto, o cacique Genésio Miranda traz para si a responsabilidade do
reconhecimento étnico, tanto do primeiro grupo a ter o reconhecimento diferenciado
étnico e culturalmente, como, posteriormente, o apoio que dá aos grupos Kalankó,
Karuazu, Katökinn e Koiupanká.
A partir da pesquisa documental e de campo e da leitura das entrevistas
concedidas pelas lideranças, cabe identificar, por um lado, a existência dos grupos
étnicos Pankararu e os ponta de rama – forma com que se autodenominam os
descendentes espalhados pelo Brasil -, com suas culturas, tradições, práticas
religiosas e rituais - realidade que se encontra presente por toda a região semiárida
dos estados de Alagoas, Pernambuco e Bahia. Por outro lado, fica claro também
que o reconhecimento étnico nasce da necessidade, em primeiro lugar, da
sociedade nacional, dos órgãos governamentais, da própria legislação brasileira,
para dizer quem é o indígena, para poder reconhecer os seus direitos, delegando
aos grupos indígenas o ônus da prova do ser e pertencer a um grupo indígena
etnicamente diferenciado.
Constata-se, portanto, que, para o grupo indígena, a sua existência étnica
independe do reconhecimento público, para ele uma realidade historicamente
comprovada ao longo dos períodos de perseguição e negação da identidade étnica.
Mas, a partir da necessidade da sociedade, visto que a identidade étnica de um
grupo se expressa na relação com outro e com o diferente de si, os grupos
indígenas do Nordeste percebem a necessidade do reconhecimento e de adquirir os
direitos, e por isso procuram demarcar e expressar as fronteiras étnicas.
Por isso que eu digo, se a pessoa não tiver conhecimento, perde
isso, que nem hoje tem diversas liderança aqui, se apresentando
como cacique, pajé, sem tem um reconhecimento no Distrito Federal,
você acha que vai ser aprovado? (MIRANDA, 2013, p. 10).
58
Entidade científica de antropólogos que trabalham com questões indígenas, gênero,
negros, trabalhadores, populações urbanas, entre outros.
178
O cacique Genésio, mesmo tendo renunciado ao exercício administrativo
do cargo, questiona a postura dos seus sucessores por não terem a credibilidade
necessária para a representatividade da comunidade e nem o reconhecimento das
autoridades constituídas do Estado nacional.
Neste terreno movediço pela construção, conflito, criação e ressiginificação
dos signos e significados conduzidos pelas populações, identifica-se trajetória de
afirmação da etnicidade.
A análise ora em curso busca identificar estritamente o processo de
afirmação política desses grupos étnicos diante da sociedade e do Estado nacional,
seus órgãos e instituições de assistência. Observo que, nesse processo, as
populações foram, ao longo do tempo, obrigadas a negarem a identidade étnica e a
negociarem a convivência com a população e agentes da cultura que se encontra ao
entorno das comunidades. No confronto, acomodação e negociação, foram postos
no anonimato ou na descaracterização de caboclo, uma espécie de não membro da
sociedade nacional e também da sociedade indígena – um sujeito sem identidade,
do ponto de vista estabelecido pelos critérios da sociedade hegemônica do domínio
político, econômico e cultural.
E, portanto, o longo período de anonimato dessas culturas indígenas,
demonstraram a capacidade de sustentar, ressignificar e engendrar suas tradições
culturais, religiosas, organizações e práticas rituais, mesmo submetidas sócio,
cultural, religiosa, econômico e politicamente ao poder da sociedade dominante.
Nesta perspectiva, o estudo sobre o reconhecimento étnico Geripankó,
representa as várias dimensões desse processo de reconhecimento étnico, posto
não pela necessidade interna dos grupos indígenas, mas pela sociedade e estado
nacional. Em si, antropologicamente, e isso é válido para qualquer sociedade, a
necessidade da diferenciação e do reconhecimento étnico ocorre sempre pela
demanda posta pelo outro. Em geral, os povos indígenas do Nordeste, secularmente
relegados ao esquecimento, na década de 1970, impulsionados pelo processo de
democratização do Brasil, reivindicam o reconhecimento étnico no contexto da luta
pelos direitos sociais e políticos, como o direito à assistência de educação, saúde,
projetos de desenvolvimento econômico e, principalmente, a demarcação dos
territórios tradicionais.
179
O silenciamento imposto em determinadas situações não se sustenta, em
virtude do constante movimento do sujeito que, em sua dispersão
constitutiva, ultrapassa os limites do dizível, para produzir sentidos outros
que lhes são proibidos, mostrando, então, o movimento constituvo entre
tênues fronteiras de formação discursivas. (FORÊNCIO; MAGALHÃES;
SOBRINHO; CAVALCANTE, 2009, p. 83).
59
VIEIRA, Jorge Luiz Gonzaga. Padre Alfredo Dâmaso: apóstolo do indigenismo
moderno, 2014.
180
por missionários do CIMI, vindos do Secretariado localizado em Brasília, foi o povo
Xucuru-Kariri, em Palmeira dos Índios. Depois dos primeiros contatos, a pastoral
indigenista constituiu equipes missionárias nos estados da Paraíba, Sergipe, Bahia e
Pernambuco.
Os agentes de pastoral tiveram contato com as comunidades em busca de
informação sobre a realidade indígena, a localização e a identificação dos grupos
étnicos; ao mesmo tempo, os missionários mantinham contato com bispos, padres e
religiosas com o intuito obter apoio para a organização e logística da equipe, como
também para a divulgação da realidade indígena no Estado.
No campo da academia destacam-se os trabalhos sobre o povo Xucuru-
Kariri, “Os Índios Xucuru e Kariri em Palmeira dos Índios” e “A Terra Tilixi Txiliá -
Palmeira dos Índios nos Séculos XVIII e XIX”, escritos por Luiz de Barros Torres, de
Palmeira dos Índios; os trabalhos Wakona – Kariri- Xucuru e o Documentário: Índios
de Alagoas, do professor e antropólogo da Universidade Federal de Alagoas (UFAL),
Clóvis Antunes Carneiro de Albuquerque.
Nesse contexto, os povos indígenas do Nordeste se mobilizam pela
retomada da terra. Em Alagoas, 1979, liderados pelo cacique Manoel Celestino e o
pajé Miguel Celestino, os Xucuru-Kariri retomam a área Mata da Cafurna, ao mesmo
tempo em que o povo Kariri-Xokó, Porto Real do Colégio, liderado pelo cacique
Cícero Daruanda e o pajé Júlio Queiroz, retomavam a Fazenda Modelo. Esta
movimentação é apropriada pelo cacique Manoel Celestino, que se notabiliza nas
articulações políticas junto aos grupos indígenas e aos órgãos governamentais no
Estado e em nível nacional, a ponto de se autoproclamar “Cacique do Nordeste”. No
final da década de 70 e início da década de 80, como resultado da mobilização
emergem os povos Wassu-Cocal, Tingui-Botó e Karapotó, reivindicando o
reconhecimento étnico, a assistência e demarcação dos territórios.
Como o cacique Manoel Celestino Xucuru é casado com uma indígena da
etnia Pankararu, buscou apoio para as suas pretensões políticas, articulando
lideranças e viabilizando novos grupos indígenas. Segue o discurso de Manoel
Celestino construído pelo cacique Genésio:
Só é reconhecido Pankararu e Pankararé, mas aqui em Alagoas
Kariri-Xocó, Palmera dos Índio, era umas aldeia morta, sem
conhecimento, né, aí a gente tem que fazer uma comissão de umas
quatro ou cinco aldeia pra levar o conhecimento à Justiça Federal, e
181
lá no Brejo. Ela disse, não, mas lá no Brejo eles já são reconhecido,
são tutelado, mas rapaz e agora, aí ela disse, não Mané é o
seguinte, lá no Ouricuri, você não conhece? Ele disse conheço, ali
tudo é índio e ali tudo é minha famia, tenho um irmão que mora lá, e
o resto tudo é tio, é primo, tudo parente, às veze cinco famia se
resulta numa só, que é a maioria tudo irmão, aí ele disse, então eu
vou lá, disse vá, oi. (MIRANDA, 2013, p. 23-24).
182
Portanto, o reconhecimento étnico depende da iniciativa do próprio sujeito,
do respaldo dos anciãos e das lideranças indígenas e da demonstração da
exsitência pelas autoridades constituídas, que implica não somente o fato de saber
se é indigena ou não, mas a garantia dos direitos. Ou seja, o ser etnicamente
reconhecido pelos órgãos governamentais não se limita ao fato de dizer que é
indígena, mas implica na materialização das políticas públicas, como a demarcação
da terra, assistência em educação saudade, projetos de desenvolvimento.
Ainda, segundo Miranda:
183
arranjo, garanto de arrumar duas pessoas, mas pra quando, ele
disse ói, hoje é quinta-feira... (MIRANDA, 2013, p. 25).
184
De outro ponto de vista interpretativo, levanta-se ainda a possibilidade de,
também, os papéis entre o religioso e o político se inverterem, ou até perder poder
dentro do grupo ou do clã. Entretanto, identifica-se a importância religiosa e política
tanto no processo de reconhecimento e garantia dos direitos do povo Geripankó,
como também dos grupos emergentes no Sertão de Alagoas, demonstrado em suas
ações internas e no apoio ao reconhecimento dos povos Kalankó, Karuazu, Katökinn
e Koiupanká.
Quanto ao povo Geripankó, o cacique Genésio Miranda destaca-se com o
conhecimento que adquiriu sobre a história, a origem do grupo e os pontos físicos do
território, como também o domínio sobre os rituais e envolvimento com os
Encantados.
Sobre o primeiro Geripankó, Genésio Miranda reconstrói a trajetória,
descrevendo com precisão e detalhes da sua chegada à região, defendendo a sua
compreensão “a história que eu sei é essa que foi bem contada”, (2013, p. 8),
afirma:
Zé Carapina, aí pediu água deram água eles beberam, aí o Zé
Carapina pediu um apoio pra mode ele esconder ele, que isso aqui
tudo era deserto era mata bruta, tinha onça, tinha tudo, aí ele disse é
caboclo se você tiver coragem, vá lá pra aquelas duas serras, lá tem
água, num é muito boa não, tem outra aguada, não é grande, não é
muito boa também, só é pesada, mas da pra levar... (MIRANDA,
2013, p. 11).
188
entregava as obrigações para a comunidade e que ele iria ficar no
apoio.
Atualmente, o grande desafio para o povo é conquista do território
tradicional e garantia de uma assistência de saúde especificada.
(VIEIRA, 2002).
60
LIMA, Antonio Carlos de Souza; BARROSO-HOFFMANN, Maria (Orgs.). Além da Tutela
– base para uma nova política indigenista III. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2002.
190
pelos anciãos pertencentes à linhagem das famílias que deram origem ao grupo,
criteriosamente determinado pelo pertencimento, sabedoria, habilidade política na
relação com a sociedade nacional. No caso do pajé, além de obediência aos
critérios anteriormente postos, implica no conhecimento e no domínio da cosmologia
do grupo, permeado pelas entidades espirituais; enquanto que para o cacique,
requer também a habilidade política no trato com as instituições e órgãos da
sociedade não indígena.
Estabelecidos nos postos, os personagens tornam-se atores e sujeitos
políticos em nível interno e na relação com ou outros grupos indígenas, como
também na relação com as autoridades e órgãos da sociedade brasileira.
Nas falas do pajé Elias e do cacique Genésio sobre o reconhecimento
étnico pelos órgãos governamentais e na conquista dos direitos, como atores do
mesmo processo, sem uma análise adequada, aparecem como se fossem
contraditórias e em disputa pelo poder religioso e político na relação com a
comunidade. A razão dessa percepção, ainda superficial, seria identificada no relato
dos dois, já que foram eles, individualmente, que deram o reconhecimento ao grupo,
visto que os mesmos não conheciam e nem praticavam religião e “eram inocentes”.
Entretanto, aprofundando a análise da fala desses sujeitos, o discurso
torna-se coerente e é confirmado pelos dados da realidade. Referindo-se a
participação Geripankó na religião Pankararu antes do reconhecimento, afirma o
cacique Genésio: “É, essa otra famia aí nunca praticaram, nunca viram nada disso”.
E completa o pajé Elias: “Bom, foi assim na minha época aqui de meu trabalho, a
comunidade acharam que eu tinha condições de representar, porque só que na
época, só quem trabalhava com essas coisas de, de, trabalho para defender a
comunidade aqui só era eu”.
Uma série de argumentos respalda esta constatação. Como visto
anteriormente, o reconhecimento étnico não é uma preocupação interna ao grupo
indígena, mas é posto pela sociedade nacional61. No caso Geripankó, a organização
para o reconhecimento emergiu no contexto de abertura política do Brasil, articulada
por lideranças indígenas membros de outros grupos. Por essa razão, visto que o
referencial é o início dos contatos para o reconhecimento político, os dois atores
61
LAPLANTINE, François. Je, nous et les autres. Paris: Editions Le Pommier, 2010.
191
fazem a sua leitura do processo a partir de sua participação direta com a sociedade
não indígena.
É importante ressaltar que, primeiro, para eles, o reconhecimento étnico do
grupo não está em questão, confirmado e reafirmado em suas falas. O pajé Elias
Bernardo, por exemplo, diz: “no Ouricuri, lá, lá na reunião da com o povo, lá tão eu
não sabia o que era então eu cheguei lá e tava o Zé Nezi, tava a comunidade, a raiz
tudo com os tronco mais veio”. (2013, p. 1). E o cacique Genésio Miranda,
completa, relatando a conversa entre o cacique Manoel Celestino e a indígena Maria
Berta, diz o diálogo:
Aí, ela disse, não Mané, é o seguinte: lá no Ouricuri, você não
conhece? Ele disse, conheço. Ali, tudo é índio e ali tudo é minha
famia, tenho um irmão que mora lá, e o resto tudo é tio, é primo, tudo
parente, às veze cinco famia se resulta numa só, que é a maioria
tudo irmão. (MIRANDA, 2013, p.24).
62
Trata-se da indígena Maria dos Santos Santana – falecida -, residia na cidade de Água
Branca, mas participava dos rituais das Corridas do Imbu, Menino do Rancho e Mesa, e não
reivindicou o reconhecimento étnico e os direitos constitucionais como indígena.
192
algo que precisa ser conquistado – “ela nunca foi procurar o direito delas” – que
precisa ser buscado nas condições impostas pela sociedade brasileira e o Estado.
Os dois elementos, isto é, a pertença ao grupo e o direito advindo do ser
reconhecido oficialmente indígena pelos órgãos governamentais, são diferentes: são
duas realidades distintas, marcando as relações entre os mesmos sujeitos. Assim, o
reconhecimento do ser indígena não é, como visto, uma necessidade interna - o
vivenciar os mistérios, os Encantados, mitos e praticar os ritos -, mas uma demanda
da sociedade nacional e das instituições públicas e governamentais. Os indígenas
se submetem em razão de poder conquistar a visibilidade e os direitos
constitucionais.
Abre-se aqui um capítulo à parte nesta reflexão e análise sobre a relação
entre as populações indígenas e os agentes da sociedade nacional. Primeiro, do
ponto de vista do indígena, constata-se a profunda coerência e lógica quanto à sua
identidade étnica, o viver e pertencer religioso e o seu modus vivendi, caracterizados
pela autonomia e independência de ser e existir para si e para os membros do seu
grupo. A contradição se caracteriza por parte dos agentes da sociedade nacional,
iniciada no período da colonização e reproduzida historicamente por ela como
propulsora do imperialismo monocultural e ideologia dominante.
Inicialmente, produziu o discurso sobre as populações de cultura superior
sobre a selvageria nativa, seguido da imposição do aprendizado cultural, religioso,
valores e costumes. Os indígenas, submetidos ao confronto e aos conflitos entre as
duas organizações de mundo, foram se apropriando das estruturas externas na
perspectiva de outra/nova forma de sobrevivência, de convivência e até de barganha
de produtos, benesses e status na sociedade colonial e nacional. À medida que os
indígenas compreenderam e entraram compulsoriamente na sociedade do outro,
este mesmo, o outro, não o reconhece mais como tal, e acaba transformando-o em
objeto e depositário de suas categorias sociais.
Ao contrário do exposto acima sobre a sociedade não indígena, o pajé
Elias e o cacique Genésio agem coerentemente na mesma lógica e linha de ação
política referente ao apoio e reconhecimento interno e em relação aos grupos
étnicos não reconhecidos etnicamente.
193
Na lógica indígena, do ponto de vista da autonomia63, tanto internamente,
quanto na relação com as instituições e com os agentes públicos, se compreende
como sujeito histórico dos seus próprios interesses, de iniciativa pessoal ou do grupo
ao qual pertence. E, na relação com a sociedade, o indígena procura responder à
expectativa e demandas postas por ela, mas com o objetivo de alcançar os seus
interesses, os direitos garantidos na Constituição Federal e benefícios dos agentes
sociais64.
63
LACERDA, Rosane Freire. Diferença não é Incapacidade – o mito da tutela indígena.
São Paulo, 2009.
64
LIMA, Antonio Carlos de Souza; BARROSO-HOFFMANN, Maria (Orgs.).
Etnodesenvolvimento e Políticas Públicas – base para uma nova política indigenista.
Rio de Janeiro: Contra Capa, 2002.
194
como religião oficial, levando-a para os lugares e espaços onde estabeleciam suas
moradias.
Atualmente, como resultado desse processo, tanto o grupo Pankakaru que
permaneceu no Brejo dos Padres, como também os outros grupos que foram
expulsos ou migraram em busca de terra, apropriaram-se e ressignificaram as
formas, ao ponto de aceitarem a religião católica como a religião oficial. Como o
processo de acomodação e de hegemonia oficial da Religião Católica, tantos os
agentes católicos como os indígenas passaram a conviver com os ritos.
Com o advento do Protestantismo no Nordeste, as comunidades indígenas
não aceitaram inicialmente, passando a admiti-lo posteriormente. O pajé Elias
declarou não ver problema com as duas denominações, visto que, para ele, as duas
fazem parte de Deus. “É o seguinte, é, é, é porque o, o Encantado, ele é do, do pé
de Deus, sabe? É dos pé de nosso Pai Tupã e de nossa Mãe Tupã. Daí, as parte de
igreja, as parte de cura, de rezar, são coisas assim”. (ELIAS, p. 6). E completa, em
relação aos evangélicos: “a mesma coisa também, a mesma coisa também. Os
evangélicos é o seguinte: eles não rezam e não fazem as suas obrigações, as partes
dele, no nome de Jesus? Então, pronto, não tem problema”. (ELIAS, p. 6).
Os indígenas se apropriaram do poder religioso católico, assumido o poder
dentro da cosmologia Geripankó, utilizando como força e poder religioso,
demonstrando a capacidade de diálogo com o mundo não indígena. O outro é
assumido dentro de sua lógica.
65
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).
196
Destaca-se ainda a capacidade de leitura da conjuntura da realidade, à medida que
compreendem a importância para o fortalecimento interno do grupo e das lutas
indígenas na região.
Eu, mais Genésio, cacique Genésio, demos apoio em primeiro lugar,
demos apoio aos Kalankó, porque a gente conhecemos que família
Kalankó tudo é Pankararus, e daí por diante o, o, o Kalankó a gente
ficou sempre participando ajudando eles, eles foram acharam que
tinham condições de abrir terreiro, levantar foguedo, levantar os
praiá, os Encantados deles, tudo era parte de Pankararus, né? E,
entonce, hoje estão firmados por causa da força de Jeripankó, que
deu todo apoio, deu todo apoio. (ELIAS, p.13).
E, completa:
Depois veio o Karuazu, a gente deu a maior força a eles lá dar para o
Jeripankó, aqui dar a nossa força de cacique e pajé, Genésio
Miranda foi meu cacique aqui deu apoio “seu” Antônio Gliedo e,
entonce, a partir daí por diante, eles conseguiram as obrigações
deles e, entonce, o segundo foi o Katökinn, que é tudo família
Pankararus, é tudo família, tem muita família grande, a família
Pankararus é muito grande e, entonce, hoje em dia a gente ver as
famílias Pankararus faz apoia em todo canto, aí vai surgindo famílias,
aí não volta mais pra lá porque encontra um pedacinho de terra aqui,
aí as famílias vão encontrando um pedacinhos e vão ficando por
aqui, aí, dali pronto, não volta mais pro Brejo Pankararu e, entonce,
vai crescendo a família, aí, entonce, quando eles se revolta, aí, diz,
não, nós somos os índios reconhecidos e vamos trabalhar no ponto
produzido pelo órgão Federal e, entonce, aí, é a questão e, entonce,
onde tem em comparação eles procura onde têm Jeripankó, foi a
primeiro aldeia onde foi Jeripankó, foi Pankararus, tudo são famílias
de Pankararus e, entonce, Jeirpankó tem que dar o apoio a essas
famílias. (ELIAS, p.14).
197
3.3 Kalankó: ritual dos Praiás e a Páscoa Cristã
O presente texto tem como objetivo analisar o ritual dos Praiás e sua
relação com calendário litúrgico cristão, tendo como referência de análise o Povo
Kalankó. Os outros povos do Sertão de Alagoas, inclusive Pankararu, celebram seus
rituais, o da Fechada do Imbu e as Corridas do Imbu, no final do mês de dezembro
de cada ano e recomeçam no ano seguinte, exatamente no período que antecede a
Quaresma. Nesse período, o povo Kalankó participa das celebrações dos rituais
com os parentes, mas só realizam os seus rituais em dois momentos específicos: a
data do reconhecimento étnico e durante o Sábado e Domingo de Aleluia.
198
esperar, decidimos retomar essa área, colocando em arrisco a nossa própria vida”. E
completou, “essa data não é festa, mas, junto com os parentes e os nossos aliados,
é a celebração da luta pelas conquistas e dificuldades que encontramos durante
esse tempo”.
A comunidade da Januária é considerada pelos indígenas o centro do
território ocupado pelos antepassados, no século XIX. Com o tempo, as terras da
região foram desapropriadas pelos coronéis e, posteriormente, os sertanejos, e os
indígenas foram transformados em mão de obra escrava no trabalho das fazendas
de gado.
O cacique Paulo Kalankó destaca que aquele espaço é um lugar sagrado,
visto que foi onde viveram os primeiros parentes. E desabafou:
Tudo isso não foi fácil: sofremos até hoje discriminação dos
representantes dos órgãos públicos, dizendo que nós não somos
índios. Mas com a força dos Encantados, vamos vencer e conquistar
os nossos direitos, principalmente com a conquista do nosso
território. (ENTREVISTA, 2013).
68
Segundo a tradição bíblica, a quaresma tem origem no judaísmo – os 40 anos do deserto
-, assumido pelo cristianismo nos 40 dias que antecedem a Páscoa.
199
A ressurreição do Cristo não se comemora por acaso no retorno da
primavera. Ela encontra mesmo, neste instante de renovação, um
caráter de necessidade cósmica. A ressurreição da natureza
encontra sua justificativa sagrada naquela do Cristo. (WALTER,
2012, p. 115).
69
Palavra de origem tupi-guarani (y-ub-u) ou kariri (obbo e obo).
70
Caldo grosso preparado com o fruto do umbu verde, cozido com água ou com o caldo de
coco ralado.
201
Salvador para os cristãos e, para os povos indígenas, a celebração do alimento dos
Encantados – entidades espirituais e religiosas que dão sentido, identidade e
dirigem a vida Pankararu e, consequentemente, a dos povos do sertão de Alagoas.
Os povos Geripankó e Karuazu programam os rituais para depois do início
do ritual Pankararu; começam, e ocorrem paralelamente, coincidindo as datas dos
dois povos. Ao final da realização dos rituais, que se realizam em quatro finais de
semanas seguidos, encerram as atividades nos terreiros e, depois, os trabalhos
religiosos limitam-se aos rituais particulares de mesas e curas.
Os rituais Geripankó, Karuazu e Katökinn recomeçam coincidentemente no
período da Quaresma. O ritual Geripankó inicia-se com a reclusão exclusiva dos
moços – homens que participam dos praiás – no Poró – lugar de preparação
espiritualmente, com banhos de alecrim de cheiro71, fumo, abstinência sexual e
alcoólica -, obrigações que duram todo o período das atividades religiosas.
A cada final de semana, os praiás saem do Poró e entram no terreiro por
cerca das 19 horas do sábado. Conduzidos silenciosamente pelos toantes – pajé,
cacique e lideranças religiosas masculinas-, dirigem-se ao centro para dar início aos
três blocos de danças, cruzando o terreiro, intercalado com concentração de todos
os praiás em torno do toante, ladeados por duas jovens mulheres – segundo os
informantes, as mesmas devem encontrar-se preparadas espiritualmente e fora do
período de menstruação.
A escolha das mulheres para o terreiro, como muitas outras informações e
significados, mantém-se em segredo para os não indígenas e, até, para membros do
povo não iniciados na ciência religiosa do grupo étnico. Observo, entretanto, que,
em geral, as mulheres têm relação direta de parentesco com as lideranças religiosas
e políticas, especialmente pajé e cacique.
No sábado, o ritual com os praiás prolonga-se até a meia noite, com
paradas e saídas de alguns praiás que ficam de cócoras ao redor do terreiro ou se
dirigem ao Poró para descansar e fumar. Depois do recolhimento dos praiás,
começa a dança do toré com a participação dos membros da comunidade e até de
não indígenas. Há uma parada para o descanso dos indígenas e dos convidados.
71
Conhecido também por rosmaninho, comumente utilizado para banho, purificação e
atividades terapêuticas.
202
Por cerca das 7 horas da manhã do domingo as cozinheiras põem a alimentação em
pratos de barros, e os praiás, conduzidos pelas lideranças religiosas, dirigem-se até
a cozinha para pegá-los, cruzam por três vezes o terreiro e voltam para comer no
Poró. Depois dos praiás, todos os indígenas e visitantes têm a possibilidade de
pegar seu prato para se alimentar - a alimentação dos praiás e convidados é servida
em pratos de barros: pirão, arroz, carne de carneiro ou, na falta deste, de bovino.
Na páscoa judaica, a consumação ritual do cordeiro e do pão ázimo
já constituía o principal rito da festa. Para o cristianismo, é a
instauração da Eucaristia pelo Cristo, na véspera de sua Paixão que
serve de resposta cristã ao rito hebraico do cordeiro pascal.
(WALTER, 2012, p. 116).
204
galhos empilhados ao centro e pisados furiosamente pelos participantes até ser
extermínado.
Seguindo a mesma linha de observação e análise, o significado do Ritual
do Cansação segue duas perspectivas interpretativas. A primeira, por se encontrar
no período quaresmal cristão por sua característica penitencial, concentração e
contrição expressas no olhar e na face dos participantes, observa-se que o ritual
demonstra sofrimento e expiação. Por outro lado, essa situação coaduna-se com o
Ritual dos Penitentes, realizado durante a celebração da Semana Santa, quando um
grupo de homens, praticante do flagelo sobre seus corpos, vai até o cruzeiro e, à
meia noite da Sexta-feira da Paixão, encapuzados chegam à Igreja – o ritual não
pode ser visto por mulheres.
Considerando o contexto acima, observo que há uma linha de encontro e
de entrelaçamento entre os ritos cristãos e os ritos celebrados pelo povo Geripankó.
Os ritos cristãos foram transportados pelos missionários europeus e ensinados aos
povos indígenas, que, por sua vez, apropriaram-se e ressignificaram a partir da
cosmovisão e da realidade social e histórica por eles vivenciadas. Walter afirma:
“Ademais, na mitologia, não é raro ver os mitos e os ritos dialogarem de uma
civilização a outra”. (2012, p. 115).
E completa:
Era necessário que a Igreja mantivesse uma parte das práticas
pagãs para ser alçada da inanidade, mas também para que o próprio
sentido do cristianismo fosse mais bem assimilado. Os ritos da mesa
estão no centro desse dispositivo. (WALTER, 2012, p. 116).
205
contendo gêneros alimentícios e outros produtos. No último final de semana, o ritual
dos praiás se repete, com as obrigações da preparação, dança e oferendas, exceto
a queimada do cansanção.
Os rituais do povo Karuazu obedecem às mesmas regras e tradições
encontradas em Pankararu e Geripankó, a entrada dos homens ou moços no Poró,
a preparação, o período, a duração, o início até o encerramento das atividades do
calendário litúrgico; entretanto, o povo Karuazu não realiza o Ritual da Puxada do
Cipó.
Concluído o período da Corrida do Imbu, nos finais de semana seguidos,
os rituais se limitam às praticas de curas e mesa, exceto o dos Penitentes. Nina
Katökinn explica o significado da paralisação dos rituais em determinado período da
Quaresma: “a Coresma (sic) é como se ele tivesse (umbu) se recolhido. Mas durante
esse período aconteceu o ritual dos penitentes: a trajetória dos penitentes”.
(ENTREVISTA, 5 de abril de 2013). Nessa perspectiva, a parada das práticas dos
rituais do Umbu é porque o Encantado se recolheu – em respeito aos ritos católicos?
-, período que, coincidentemente, é o da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus
Cristo.
206
feira que antecede a Sexta-feira da Paixão, regras praticadas e seguida pelos
indígenas, principalmente os anciãos que se declaram católicos. E, por isso,
participam das celebrações realizadas pela Igreja Católica, inclusive com o
pertencimento a algumas das organizações internas, a exemplo Legião de Maria,
Apostolado da Oração, Renovação Carismática, às vezes louvando, tocando violão
e cantando nas celebrações, além de participar das celebrações eucarísticas,
procissões e cultos.
Para Nina Katökinn, esse é o período em que os trabalhos das atividades
da tradição religiosa indígena são paralisados em respeito às tradições cristãs,
especialmente católicas, quando os praiás se recolhem e o grupo dos homens
Penitentes assumem os rituais religiosos. E, somente, no Sábado de Aleluia é que
os praiás retomam os trabalhos dos Encantados.
No Sábado de Aleluia os praiás vão para o terreiro, das 19 horas até a
meia noite, encerrando o ritual ao amanhecer do Domingo de Aleluia com a
participação dos membros da comunidade dançando toré. Para Nina, a partir do
ritual, os indígenas retomam recomeçam todas as atividades religiosas do terreiro,
da mesa e da cura.
No povo Kalankó, os rituais ocorrem na comunidade da Januária72, lugar da
chegada dos primeiros ancestrais, onde está localizado o poró, o terreiro e as
residências do cacique e do pajé.
Os rituais obedecem às mesmas obrigações do povo Pankararu, com os
resguardo e abstinência sexual e alcoólica, banho e fumo durante três dias. No início
da noite do Sábado de Aleluia os praias Kalankó e Koiupanká, enfileirados, seguindo
o toante Kalankó, o pajé Antônio Preto, ladeado pelas lideranças religiosas Kalankó
e Koiupanká fazem a entrada no terreiro caminhando a passos lentos, para cruzar
por três vezes, tocando o maracá com o canto puxado pelo toante. Depois das nove
voltas de dança, os toantes se revezam, entre os Kalankó e Koiupanká. À meia noite
os praiás se recolhem no poró, ficando por algum tempo tocando, pisando forte no
chão, dançando e fumando. Logo depois os toantes voltam para o terreiro e
72
Nome da primeira ancestral do povo. Ainda não comprovado, mas há indícios de que
Januária seja uma ancestral cultuada pelas mulheres kalankó, em razão da forte presença
religiosa feminina na comunidade.
207
começam a tocar e cantar com os maracás; a comunidade, aos poucos, vai se
juntando e, freneticamente, embalam no toré até o amanhecer do dia seguinte.
No início da manhã, é servido pirão com carne de cordeiro e arroz.
Primeiro, é servido aos praiás; e, depois de cruzarem o terreiro, os pratos são
entregues aos presentes. Encontra-se a tradição de alimentar-se, durante os rituais
dos praiás, com carne de cordeiro, sacrificado no sábado, à noite. É uma prática do
ritual que tem origem no povo Pankararu, podendo ser complementada com carnes
de boi e de frango. É também uma tradição encontrada em outros povos, dentre eles
o judaico e escandinavo.
O festim carnavalesco ou o festim de Jol (Natal) nos antigos
escandinavos corresponde à mesma religiosidade animal sagrado do
clã (javali ou porco dos alemães, boi e porco dos celtas), como se
este rito permitisse realizar e renovar o tempo sagrado que dá
sentido a toda a sociedade. (WALTER, 2012, p. 115).
73
Povoado habitado por cerca de cinco mil pessoas.
209
lembra os grandes temas que acompanham a alternância das
estações. (WALTER, 2013, p.133).
210
No ato do ritual da Santa Cruz, combina-se, então, o rito indígena e o rito
eucarístico, originado de duas vertentes diferentes, assumidos e realizados de forma
intrinsecamente indissociáveis advindo de um processo de transmissão do conteúdo
pelos missionários católicos e de apropriação pelos indígenas.
74
Treze anos do ressurgimento étnico Karuazu para a sociedade nacional.
211
Do ponto de vista desta análise, foi utilizado o critério estritamente de
ordem metodológica. Iniciou-se a presente análise a partir dos elementos
identificados no fenômeno religioso, originário da raiz cultural Pankararu,
transportado, vivenciado e ressignificado pelos membros das comunidades Karuazu,
histórica e socialmente.
Observo que, mesmo a terra encontrando-se interligada na forma do ser
social do grupo aos elementos da cultura e do religioso, estes se sobressaem na
manutenção e resistência presentes no imaginário do grupo, como eixo fundador e
mantenedor da identidade étnica diferenciada da sociedade nacional. Enquanto que
a terra, como espaço vital para o modus vivendi, ocorre a mutação no processo de
ressignificação com a desterritorialização; mas conseguiram reterritorializar, tendo
como eixos o religioso e político.
212
FUNAI alega que tem que fazer outra eleição de novo, com esse povo todinho, aí a
gente vai...” (ANTÔNIO KARUAZU 2012, p. 3).
Durante a pesquisa de campo não foi possível identificar objetivamente as
razões que justificaram a mudança do cacique e a manutenção do pajé pela
comunidade, visto que os dois estão com o mesmo tempo no cargo. Aparecem duas
questões em torno das funções de cacique e do pajé. Em relação ao cacique, a
mudança foi justificada pelo pajé devido ao tempo em que está no poder e, portanto,
segundo ele, a comunidade apresentou a necessidade de renovação em função de
novas demandas. Enquanto que em relação ao pajé, a mudança não é apresentada,
mas aponta critérios para o exercício do cargo. Seguem as duas posições,
respectivamente:
Mudando de cacique Jorge, porque o tempo também, né? O tempo o
cacique já tá com treze ano, já tá veio de luta, não tá trabaiando ao
bem da comunidade, porque hoje o cacique tem que lutar, tem que
arrumar para o povo indígena e não tá... O pessoal agora quer mudar
para um cacique mais novo, para lutar, pra trazer as coisa pro povo
indígena. (ANTÔNIO KARUAZU, 2012, p. 3).
O pajé tem que ser um cabra muito ligado nesses homi, né? Não
pode ser uma pessoa farrista, mulerengo também, não pode. Pajé
tem que ter o maior respeito com seu povo, né? É um respeito com
seu povo. E religião que nós têm com eles também. (ANTÔNIO
KARUAZU, 2012, p. 15).
213
À semelhança dos outros povos do Sertão de Alagoas, Karuazu é originário
da etnia Pankararu, estado de Pernambuco, e migrou no século XIX impulsionado
pelas mesmas motivações já expostas no trabalho, como os conflitos internos, a
violência dos fazendeiros e a busca por terra para trabalhar e viver em paz.
É, o povo Karuazu é a origem do povo Pankararu. Ele é etnia da
Pankararu... Esse pessoal hoje... porque o pessoal naquela época,
Jorge, era um povo todo isolado, ninguém não queria saber de índio,
etnia nem nada. Quando vieram descobrir... aí, agora, vieram
descobrir que tudo é descendência do Pankararu. Na história tá todo
mundo descendendo do Pankararu. Essa é a história de quando a
gente chegou... Eu mesmo tenho muita história que contava, se eu
contar a histora que minha mãe contava... (ANTÔNIO KARUAZU,
2012, p. 4).
214
Mas a participação recíproca na se limita ao período das Corridas, visto
que durante o ano ocorrem os rituais dos penitentes, do Menino do Rancho e da
Mesa. São momentos de cumprimento de obrigações entre as partes envolvidas.
Em todos os rituais observo a importância fundamental dos Encantados,
que, à semelhança dos outros povos de origem Pankararu, orientam e dão sentido a
vida da comunidade, das famílias e dos indivíduos.
Como espíritos dos antepassados, são identificados através da semente,
que segundo os indígenas é uma ciência – o sentido dado é o segredo que só os
membros das comunidades indígenas conseguem entender e, no caso, são
encontrados pelas mulheres.
Aí já não pode achar a semente assim, não. Já teve uma história de
um Encantado, já ter acontecido, que quando você está dormindo, e
quando acorda ela já estava na sua mão fechada. Para o Encantado
mesmo ela é tão... se for uma semente verdadeira mesmo, você
pode perder, jogar fora... oxe! Com três dias ela tá aqui de novo.
Quer dizer que aquela ali é a semente verdadeira que tava
precurando, né?(ANTÔNIO KARUAZU, 2012, p.13).
215
muito tempo não, poucos dias ela...ela morreu! E foi a finada Maria
Berta. (ANTÔNIO KARUAZU, 2013, p.1).
220
uma mulher, a indígena Maria Berta, irmã do cacique Genésio. O mesmo ocorre com
o povo Katökinn, liderado pela Maria das Graças, a cacica Nina, que recebeu por
sonho o etinônimo do grupo. Com o povo Karuazu, os fatos se repetem tanto no que
se refere à condução política, como ao domínio religioso.
No relato do pajé Antônio, as mulheres - a avó, a mãe, a esposa – surgem
como guardiãs da cultura, dos ritos religiosos e da ciência dos Encantados. Parece
que se pode apontar aqui, nesse imaginário de funcionamento do universo indígena,
a existência de uma formação discursiva que teria o teor fundamental de
centralidade da mulher e de seu reconhecimento como uma instância fundamental
na condução das coisas dos indígenas. Assim, destaca-se nessa centralidade a avó:
Elieta. Aí ela chegou e... a minha avó naquele tempo vive de
Lampião, mamãe era pequenininha, e naquela época, Lampião... e
minha avó morava no Tanque, numa casinha de paia, pequenininha,
veio de lá de Pankararu e... aí ela vem de lá do Pankararu, no
Tanque em casinha de paia, aí chegava aqueles pessoal, aqueles
cara de Lampião, quando chegava... mas eles chegavam como
retirantes, nera? Ela que contava, que era como retirante pediam
apoio e ninguém dava apoio, aí minha avó pegou, „não venham
dormir aqui comigo‟ numa casinha de paia. Foi naquela época que
Lampião vinha direto pra lá e pra cá e eles diziam: „mexam não com
essa veinha, pois ela dá apoio a nós nessa casinha‟. Era a minha
avó. Foi naquela época ela tinha apoio. Aí mamãe era pequena e
contava esta histora, disse que viviam lá no Brejo, tempo ruim, não
tinha ganho não tinham nada, aí vieram tudo pra aqui pro Tanque
tudinho. (ANTÔNIO KARUAZU, 2013, p. 4).
E, por último, a esposa do pajé, a Galega. Ela tem uma presença muito
discreta durante as reuniõeas na comunidade, destacando-se socialmente no
acolhimento dos visitantes e na preparação da alimentação. Diferentemente do que
aparece nos momentos dos rituais e na relação com as visitas, a partir de uma
análise mais detalhada, observa-se a cumplicidade dela para com as atividades do
esposo, os rituais e viagens para realizar as obrigações em outras comunidades. O
que foi comprovado nos relatos do pajé, que demonstrou a sua importância dentro
do mundo religioso Karuazu. A relação do nome dos Encantados foi feito por sonho
à Galega. “Chegou e disse o nome dele à Galega!” (2013, p. 4). E completou:
Esse dono do terreiro daqui faz parte daquela família que foi o pai
dela que deu a semente à Galega, aí a gente respeita ela é prima da
gente, quer dizer a gente respeita também eles são parte por foi ele
quem deu a ela. Aí ontem ela chegou aqui e disse que tem um bode
e é do dono do terreiro daqui. Aí ela veio acertando mais eu pra ver
quando é o dia que nós vamo comer lá no Tainque, na casa dela! No
terreiro da casa dela! (ANTÔNIO KARUAZU 2013, p. 8).
224
índios querem se dividir tanto. Prejudicado é o povo, né?” ( ANTÔNIO KARUAZU,
2012, p.17).
Como pode ser observado no imaginário cosmológico indígena Pankararu
e de seus descendentes, a mulher indígena tem papel fundamental em toda a vida
das comunidades. Além do seu papel social, facilmente identificável no cotidiano, em
vistas das semelhanças com a sociedade ocidental, destaca-se também no
processo de formação social do ser indígena junto às crianças e aos jovens, na
autoridade de receber a Semente dos Encantados e passagem destes para os
responsáveis e zeladores.
225
Ao contrário do que viviam em Brejo dos Padres, encontraram outra
realidade na região do sertão no atual estado de Alagoas:
A região daqui era região boa, a nossa região... Muitos vieram de lá
pra cá, outros vieram de Pankararu e casaram aqui. Zé do Carmo,
tinha Cícero Caboclo, Pankararu também, tinha o veio Dão, o
Zezinho, Já tinha Dola, que é o tio da minha mulé... tudo descendo
de lá pra cá. Quando chegaram aí, casaram tudo aqui, uns casaram
com índias mesmo e nisso só vivendo aqui mesmo. (ANTÔNIO
KARUAZU, 2012, p. 4).
226
Com o impacto, o grupo indígena vivenciou um dos maiores e mais
rápidos processos de mudanças sociais, levado a negociar a convivência com a
população do entorno, com a aprendizagem de novas formas de atividades e a se
submeter às condições e formas de ocupação da terra.
O pajé Antônio Karuazu identifica as condições em que o grupo se
encontra atualmente, como também a perspectiva com a não conquista da terra,
definindo como encurralado e sem visualizar o futuro para os seus descendentes. A
terra como o espaço fundamental para a realização da integralidade do ser indígena,
com o espaço liitado, foram obrigados a se deslocar em busca de alternativas
econômicas fora da aldeia, retornando religiosamente para a comunidade no período
dos rituais.
Aí ficamos o pessoal encorralado, aí o pessoal ficamos encorralado e
ficamos em situação muito difícil e, né? E que a nós, nascido e
criados no nosso torrão aqui. Um povo indígena, né? Com nosso
povo... a história do meu avô, da minha avó e ficamo o pessoal aqui
encurralado, sem poder ir pra canto nenhum aqui. E esses, essas
criança que a gente tem, né? Criança nova também... eu já tô velho,
não posso trabalhar muito, mas tenho o quê? Tenho mãe e filho,
tenho meu neto, já tenho bisneto... E os outros, criança, vão ficar na
onde? Vão ficar um pessoal preso. (ANTÔNIO KARUAZU, 2013, p.
1).
227
pequenas glebas, é melhor viver nela do que sair, pois é nela que cultivam as
plantas medicinais, realizam os rituais e onde estão os Encantados.
Porque lá em Pankararu, até hoje, hoje é mais melhor porque tem
um aposento do pessoal, aquela barragem está para cair, colocou
muita gente pra fora, firmou muita gente lá em Pankararu, mas tá
ruim lá em Pankararu. Aqui, é mais melhor de se viver aqui, os povos
pra viver aqui vevi mais sossegado do que em Pankararu.
(ANTÔNIO KARUAZU, 2012, p. 4).
75
Polo – refere-se ao setor da Secretaria Especial de Saúde Indígena – SESAI -, instalado
próximo ou na comunidade indígenas para prestar atendimento em saúde à população
indígena.
76
IBAMA - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis –
órgão do Ministério do Meio Ambiente.
228
léguas de terra, pegou os trator desmatou todinho, quer dizer, que
aquele feito de monte de madeira ele largou foi fogo, largou fogo,
quer dizer que aquilo ali já perde muitas coisa pra, até pra nós
mesmo, que era madeira no terreno de Lula Cabeleira tudo ali.
(ANTÔNIO KARUAZU, 2012, p.2).
77
“O sertão nunca foi um espaço deserto”. (SILVA, 2007, p.29).
229
e, em sua grande maioria, inseridos no processo de proletarização nos grandes
centros urbanos, como pedreiro, carpinteiro e pintor para os homens e empregadas
domésticas para as mulheres.
Depois do aparecimento político para a sociedade, os mais velhos -
lideranças religiosas e políticas -, assumiram e organizaram a luta pela demarcação
do território, tornando-se a principalmente bandeira política da população indígena.
Essa luta aparece refletida nos discursos de seus representantes, muitas vezes, em
padrões de narrativas fatuais que expressam formas de vida, ações que
experienciam no cotidiano, lembranças impressas no seu imaginário. Todas elas,
entretanto, constituem um posicionamento efetivo sobre o processo político-social de
desmonte das comunidades indigenas.
230
acolhimento dos direitos constitucionais pelos órgãos governamentais e pela
sociedade em geral. Com o reconhecimento e a contuidade da mobilização, os
indígenas conseguiram a assistência em saúde, alimentação, casas de alvenaria,
redes de esgoto e elétrica, dentro outras conquistas.
Tratando-se da demarcação do território Karuazu, ao longo de 14 anos, o
processo avançou, apesar de permanente cobrança das lideranças, das articulações
e mobilizações em torno da temática. O pajé reconhece o apoio de alguns atores e
organizações não governamentais da sociedade – cita como principal aliado o
Conselho Indigenista Missionário/CIMI -, mas identifica que os órgãos
governamentais responsáveis constitucional e administrativamente só têm ficado em
promessa. De acordo com o artigo 231 da Constituição Federal de 1988 e do
decreto 1.775/96, cabe ao poder Executivo determinar à FUNAI a constituição do
Grupo Técnico (GT) para a realização da identificação do território tradicional, como
primeira fase técnica para a efetivação da demarcação da terra.
Porque temo apoio de Jorge, o Jursso Cabral78, o deputado, mas só
chega lá, só é, acontecendo isso, isso, só premessa e a gente fica
cansando de tanto ir atraize e as coisa não funciona. O antropólogo
Tomé nunca apareceu pra fazer o estudo da gente, o GT da terra. O
principal é o GT da terra, (ANTÔNIO KARUAZU, 2012, p. 1).
78
Refere-se ao deputado estadual Judson Cabral (PT/AL).
231
daqui de Alagoas” - e cobrar a imediata formação do Grupo Técnico para efetivação
da demarcação dos territórios indígenas, o que nem sempre tem mostrado
compreensão das autoridades – “nunca apareceu ninguém para dar essa posição a
nós”.
Canal do Sertão, né? Esse Canal do Sertão já tá aí trabaiando, já tá
aí uma parte pronta, e até aqui já cobremo, onde esse Canal vai
passar, qual é a serventia desse Canal do Sertão, né? Qual é
serventia, se é pros índios, ou pra quem é? Mas isso aí eu acho que
pros índios não vai ter não porque..., marquemos uma reunião lá em
Delmiro Golveia para nós saber a posição deles sobre esse Canal do
Sertão e nunca apareceu ninguém para dar essa posição a nós. Nós
como povo indígena, que mora aqui... Eu que vejo falar sobre o
Canal do Sertão, que ele disse que não conhece esses povo
indígena aqui do sertão daqui de Alagoas, o pessoal daqui, os índios
de Pariconha, eles dizem que não conhecem por área indígena aqui.
(ANTÔNIO KARUAZU, 2012, p. 1).
A constatação do pajé abre uma crítica à forma pela qual são tratados
pelas autoridades – “a demarcação da nossa terra está parada” -, diante de uma
situação que tende a agravar-se continuamente – “pra mim vai ficar mais difícil pra
nóis porque está chegando mais gente pra perto de nóis”. Diante dessa realidade, o
pajé lembra que os povos indígenas do Sertão têm feito para organizar a luta política
para demarcar a terra. Destaca a articulação interétnica entre os grupos indígenas
descendentes de Pankararu, o apoio das entidades não governamentais, a
reivindicação junto às autoridades locais e federais.
232
Comecemo os cinco povo unido, né? Aquelas informação, adiantou
muita coisa né? A luta indígena sobre a terra. Fomo a Brasília com
apoio do Jorge, do CIMI, do deputado Judson, né? Que deu
resultado no nosso GT, mas é que a FUNAI é devagar, fomo atrás do
GT. Isso Jorge, sem recurso e apoio não tem como. Nem recurso da
FUNAI nós tem, diz, eles né, que nem pra eles têm, pro mais pro
povo indígena. Eu mesmo fui pra Maceió resolver uma coisa lá e
chegou lá, nem um cafezinho tem pro cabra beber, a ação da
comunidade indígena de Maceió nem oferecer um apoio a nós, um
órgão daquele, só pro índio mesmo não dá um passo, porque desse
jeito o índio não dá mesmo, nem um almoço, nada. (ANTONIO
KARUAZU, 2012, p. 17).
233
nós fazemos foi abrir a picada pelos limites da terra. Pode se dizer que foi uma
retomada porque nós abrimos as picadas sem autorização de ninguém. Se a gente
fosse esperar para a FUNAI abrir estas picadas nunca que ia sair”. (Apud
PORANTIM, 2012, p.14).
Esta é a forma adotada pelos povos indígenas do Brasil, em particular do
Nordeste, para exercer a autonomia e afirmar a identidade étnica, garantido os
direitos históricos e constitucionais.
234
responsáveis pelo ato religioso, o transporte para participar de rituais em outras
comunidades e no apoio aos necessitados no cotidiano são organizados
coletivamente.
Ao longo dos séculos, de Pankararu a Karuazu, com a falta da terra e a
penetração da economia de mercado no entorno dos aldeamentos, parcelas
significativas dos indígenas foram paulatinamente transformados em mão de obra
para o trabalho na agricultura e na pecuária. Adaptados às formas de trabalho da
economia de mercado, de onde tiravam o sustento das famílias e com a
mecanização do campo, a mão de obra indígena tornou-se dispensável, obrigando-
os a descobrirem novas formas de trabalho.
Tratando-se das possibilidades de trabalho da economia de mercado, o
pajé Antônio compara a situação do indígena em Pankararu e em Pariconha,
demonstrando a dependência dos indígenas em vender a mão de obra no mercado.
Porque aqui tem ganho, Jorge. Tem ganho. Da pra ganhar, o pessoal
aqui aposentado, se tem um serviço, se tem um profissional, um
pedreiro já manda trabaiá, tem uma rocinha já coloca um para cuidar,
não come só, né? Lá em Pankararu quer nem saber, só quer saber
de quê? Uns já estão firme lá, e lá vão se interessar em colocar
alguém pra trabaiá? Claro que não! Aqui não! Aqui não falta ganho
pra cabra trabaiá. (ANTÔNIO KARUAZU, 2012, p. 5).
236
E o pajé afirma: “Isso aí não pode! Isso, quer que queira, tem que ter seu
terreno para você plantar sua cultura medicinal, para fazer o remédio, né? Isso que é
muito importante a gente ter aqui, ter a terra”. (ANTÔNIO KARUAZU, 2012, p.1).
237
o sistema de valores éeticos, em resumo, valores políticos e sociais, nos quais nos
situamos, as coisas se apresentam de outro modo e a contradição aparece”
(DURAND, 1999, p. 41).
A reivindicação do pajé tem um objetivo específico, o da manutenção dos
costumes e reprodução da cultura – “você perde muito coisa da sua cultura
indígena”.
Porque índio pra índio sempre se dá bem. É que lá, eles respeitam
nós, nós respeita o branco também, mas não é que nem índio contra
índio. Índio contra índio vevi mais melhor do que com branco. Com
branco sempre tem uma piada, né? „Ah aqueles índios querem terra.
Vão comprar terra pra ter terra‟. Sempre eles alegam isso, né? „Vão
comprar terra!‟ Aqui mermo tem um vizinho aqui, que tem um monte
de terra, tem essa terra aqui cheia de casa, beirando o terreiro... Nós
até falemo com o prefeito aqui pra comprar, esse terreno aqui pra
fazer uma escola, precisa fazer uma escola pra nossas crianças num
ficar estudando no meio dos branco. Porque o índio no meio dos
branco num é que nem você está na sua cultura, você perde muito
coisa da sua cultura indígena, porque no seu povo, você vai ter uma
professora índia, de manhã você tem que dá função a eles, sua
cultura de manhã na escola, meio-dia, a tarde, tudo se cria, para não
perder sua cultura. E nós falemo com o prefeito Fabiano – „vamo lá
comprar um terreno para vocês fazerem qualquer coisa para vocês‟.
O cara só porque soube que o prefeito pensava em comprar um
pedaço de terra de lá dele, o cara, ave Maria! Endoideceu.
Mandaram chamar lá que disse que queríamo tomar a terra dele... –
não, não vamo tomar a terra dele, foi o prefeito que mandou saber se
ele vendia pra fazer uma benfeituria pra nosso povo, porque hoje o
índio sempre não há sentimento de fraco não. Porque de qualquer
maneira nunca dá certo. (ANTÔNIO KARUAZU, 2012, p. 5).
79
Artigo 1º da Lei 6.001/73
238
negociada, mas se organizando e lutando para manter o espaço e o tempo indígena
separados do restante da sociedade não indígena. Esse é um dado fundamental,
que contrataria toda a perspectiva imposta pela sociedade nacional, que tenta
descaracterizar o indígena como caboclo: “... Nem índio e nem „branco‟. O que era
deixou de ser e o que não era veio a ser. Um ser sem identidade e sem história,
fruto exclusivo da vontade do poder em dominar e subjulgar”. (PORANTIM, 2012, p.
3).
239
Primeiro, obter o reconhecido dos outros povos e, depois, poder se
apresentar na sociedade nacional com a própria identidade.
Primeiro foi o conhecimento de outros povos, pois antes a gente só
sabia andar por aqui mesmo, pelo Brejo, no meio do mato. Hoje, já
temo conhecimento, fomo pra Maceió, pra Brasília. Agora o povo já
trata a gente indígena com respeito, né? Pra gente é uma coisa
muito importante. (ANTÔNIO KARUAZU, 2012, p. 17).
240
No final do século XIX, atravessando o rio Moxotó, chegaram à região
sertaneja grupos indígenas oriundos do sertão pernambucano, mais especificamente
do aldeamente Brejo dos Padres, localizado nos atuais municípios de Petrolândia,
Tacaratu e Jatobá, fugindo da violência e da fome, na busca de terra para trabalhar
e se reproduzirem física e culturalmente.
As primeiras famílias foram ocupando as serras de Água Branca, Inhapi e
Mata Grande e as regiões férteis da planície sertaneja. A cada família que se
localizava, mais parentes iam se juntando. Com o tempo, os coronéis – senhores
proprietários de grandes extensões de terra e de grande poder político – começaram
a expulsar e perseguir os indígenas, obrigando-os a se transformarem em mão de
obra nos currais e nas áreas agricultáveis. Aos poucos as terras foram reduzidas
dando lugar às fazendas de gado e povoamentos urbanos.
Os rituais indígenas foram perseguidos e demonizados, ficando reduzidos
a práticas familiares escondidas. Em alguns lugares, a exemplo do atual povo
Katökinn, para continuar praticando os rituais, o pajé foi obrigado a pagar taxa a
policiais militares e se inscrever em associações umbandista e espírita.
Mais de século, os grupos indígenas do sertão de Alagoas foram
considerados extintos, reservando-se ao anonimato ou agrupados à etnia
Pankararu. Depois do reconhecimento étnico Geripankó, em 1980, a organização
dos núcleos familiares e as lideranças mais antigas foram orientando os seus
parentes a se organizarem como povo, criando suas próprias estruturas
organizativas e seus rituais. Em 2001, o grupo liderado pelo pajé Arvilino e sua filha
Maria das Graças se organizou e começou o processo de reivindicação do
reconhecimento da identidade étnica.
O sonho de Nina de revelação do etinônimo Katökinn resgata a história do
seu povo, confirma a origem e a pertença ao grupo Pankararu, como também dá a
garantia de grupo etnicamente diferenciado dos demais existentes na região, na
ritualização do segredo do Encantado Rei dos Peixes. Utilizando também a Análise
do Discurso, coloco como base o conceito de Orlandi: “Está aí a possibilidade de o
sujeito transitar por diferentes formações discursivas, a de ser habitado por
diferentes discursos, pois isto é o resultado de um sujeito histórico que é afetado
241
pela memória”. (Op, cit., p. 80). O sonho é resgatado como memória histórica
discursiva e utlizado politicamente na perspectiva da afirmação étnica.
80
Juvino Henrique da Silva.
242
À medida que foram perdendo as terras, tornaram-se moradores da
periferia ou migraram em busca de terra e de emprego, transformando-se em
meeiros, arrendatários, bóia-frias, empregados domésticos e peões nas fazendas.
Na condição de caboclo, classificação dada pelas autoridades e população
do entorno das aldeias, passaram à condição de não indígena. Roberto Cardoso de
Oliveira, em uma perspectiva dos grupos étnicos amazônicos, define:
Porquanto se constitui para o branco numa população indígena
pacífica, „desmoralizada‟, atada às formas de trabalho impostas pela
civilização, e extremamente dependente do comércio regional. Em
suma, é o índio integrado (a seu modo) na periferia da sociedade
nacional, oposto ao „índio selvagem‟, nu ou semivestido, hostil e
arredio. (OLIVEIRA, 1963, p.117).
243
culturais, econômicas e políticas foram reconstruídas e ressignificadas
traumaticamente.
Confinados geográfica e culturalmente, a reconstrução religiosa dos mitos
e ritos dá-se no cativeiro, visto que não era mais possível celebrar e cultuar suas
entidades de forma espontânea e aberta, muito menos o ensinamento das tradições
aos filhos e netos. Na condição de opressão, o conflito operou decisivamente em
todos os níveis, seja na disputa pela terra ou pela sobrevivência, mas também no
campo simbólico. No campo religioso, as entidades indígenas se confrontavam e se
conflitavam entre os grupos étnicos internos, as entidades católicas, e,
posteriormente, as de origem africana.
A convivência com os elementos étnicos das mais diversas culturas,
considerando principalmente a imposição católica, visto que renegava os valores
indígenas e impunha os seus valores, a cosmologia indígena foi obrigada a
reestruturar-se na condição de negação da identidade e submissão ao modelo
imposto.
No contexto de abertura política às questões étnicas e sociais
impulsionadas pelas comemorações oficiais do governo brasileiro no período dos
500 anos, secularmente relegados à condição de caboclo e sertanejo ou
simplesmente de não identidade, os povos indígenas dos Nordeste foram buscar
nas entidades espirituais dos antepassados a memória para se afirmar como grupo
diferenciado da população regional.
A condição da linguagem é a incompletude. Nem sujeitos nem
sentidos estão completos, já feitos, constituídos definitivamente.
Constituem e funcionam sob o modo do entremeio, da relação, da
falta, do movimento. Essa incompletude atesta a abertura do
simbólico, pois a falta é também um lugar possível. (ORLANDI, 1988,
p. 52).
244
Genésio, foram orientados também a se juntarem ao povo Karuazu de Campinhos e
Tanque.
Segundo Nina, o seu pai não aceitou a se juntar aos Karuazu, por se
considerar diferente etnicamente, e resolveu apresentar o seu pajé, cacique e
conselho indígena. Ainda sem um nome de identificação, consultaram a memória
dos antepassados e Encantados. O etinônimo Katökinn apareceu através de sonhos
transmitidos pelos Encantados, ocorridos mediante várias etapas. Encontram-se
duas versões que foram registradas pelos relatos da indígena Nina.
O antropólogo Siloé Amorim, em sua dissertação Índios Ressurgidos: A
Construção da Auto-Imagem – Os Tumbalalá, Os Kalankó, Os Karuazu, Os Catókinn
e os Koiupanká, relata:
Na primeira apareceu parte do nome em tábua pintada de branco; na
segunda, pedindo orientação aos seus Encantados, Nina solicita
confirmação do nome da aldeia que aparece completo noutro sonho;
nos sonhos seguintes, recebe a aprovação do „rei‟ dos índios como a
cacica e recebe orientação para fazer seu arco e flecha. Índio que é
índio carrega seu arco. (AMORIM, 2003, p. 55-56).
245
indígenas kiriri, na segunda metade do século XVII. Entre outras obras, escreveu o
Catecismo Kiriri, com o objetivo de formar “o ser catecúmeno do sertão” (2011, p.
60). E ainda, como objetivo:
Enquadrar o sistema de parentesco tapuia-kiriri, acima esboçado
pelo padre Mamiane, a um sistema de parentesco único que fosse
um sistema de parentesco tapuia-cristão, representava uma grande
dificuldade. A própria ideia de Deus que aparece no sistema de
parentesco tapuia-cristão, o padre Mamiane expressa com o
vocábulo tupã, tirado da língua guarani, e que significa um fenômeno
natural - o raio, o relâmpago. Os índios do sertão, que fosse tapuia-
kiriri, não tinham a palavra Tupã, que significa raio, não existe no
kariri, para expressar a ideia de deus dos cristãos (LINDOSO, 2011,
p.68).
E completa o referido autor: “Esta foi uma invenção jesuítica dos padres-
linguístas, como padre Montoya, dos Sete Povos das Missões Orientais, e do padre
José de Anchieta, em sua catequização dos índios tupi-guarani da costa do mar que
vai da Cananeia às praias do sul do Espírito Santo”. (Idem).
Outro fato que serve também de sustentação para a afirmação acima,
ocorreu em período recente quando dos encontros dos povos indígenas de Alagoas,
organizados pela Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e
Espírito Santo (APOINME). Naquela ocasião, o indígena Cícero Santana, membro
do povo Xucuru-Kariri, diante da evocação das forças de tupã por alguns indígenas,
comentou espontaneamente o termo tupã de forma jocosa: “tupã é nome dos
cachorros dados pelos sertanejos”81.
O resgate e a análise histórica do termo no contexto catequético do padre-
linguista e do comentário do Xucuru-Kariri confirmam a não presença de tupã
enquanto designativo de uma entidade divina dentro da cosmologia kariri, visto que,
as expressões religiosas estão inseridas na totalidade da vida indígena. E, por isso,
só é possível compreender a utilização no contexto da catequese jesuítica e na
apropriação dos indígenas como forma de afirmação política na diferenciação étnica.
Na pesrpectiva da AD: “O sujeito, ao retornar a discursos pertencentes a outra(s)
formação(s) discursivas, sempre realiza escolhas relevantes ao seu discurso, ao
tempo em que se marca pela alteridade, pela historicidade, apesar da constante
81
O sertanejo denomina prioritariamente seus cães e candelas com nomes de peixes –
surubim e piaba - e por fenômenos da natureza, o caso tupã – sem nenhuma referência a
qualquer divindade.
246
busca pela unicidade”.(FLORÊNCIO; MAGALHÃES; SOBRINHO; CAVALCANTE,
2009, p. 79).
248
Nesta perspectiva, observa-se que no inconsciente das famílias em estudo
encontram-se a história da colonização, o confinamento no aldeamento Brejo dos
Padres, o conteúdo catequético missionário, o trabalho servil e a escravização, a
dispersão e retomada de reagrupamento étnico das famílias. Os grupos foram
arrancados do habitat e levados para um local comum, obrigados a conviverem com
grupos de troncos linguísticos e culturais os mais diversos, e, até, possivelmente
inimigos. A catequese dos missionários católicos, como parte do empreendimento
da Empresa Colonial, caminhava junto com a imposição do modelo de sociedade,
imposição do Deus cristão, dos santos católicos, dos ritos e do projeto de
expropriação das terras e preparação de mão de obra indígena, com o objetivo de
atender as demandas do sistema Colonial.
Os sonhos podem exprimir verdades implacáveis, sentenças
filosóficas, ilusões, desenfreadas fantasias, recordações, planos,
antecipações, e até visões telepáticas, experiências irracionais e
sabe Deus o que mais. (...) O modo específico de o inconsciente se
comunicar coma consciência é o sonho. (YUNG, 1987, p. 19).
Ao contrário do que possa parecer no texto, não pode e não se quer com
isso analisar o sonho de forma simplista e mecânica. O sonho representa uma
complexidade de fatores de uma determinada realidade histórica, social, religiosa,
249
cultural e ideológica absolvida pelo inconsciente e expressa subliminarmente por
caminhos que nem sempre conduzidos pela lógica da racionalidade cartesiana.
A visão meramente causalista é demasiada acanhada e não leva em
conta a essência do sonho, nem a da neurose. Ver no sonho
unicamente uma possibilidade de descobrir o fator etiológico é
colocar a questão de forma preconceituosa, e esquecer o principal da
função do sonho. (YUNG, 1987, p.15).
E, continua:
Olha, como meu avô falou que iria morar no fundo do mar, eu
acredito que eles estão neste local, eles estão em algumas pedras,
não sei se vocês já ouviram falar de locas, então eu acho que eles
habitam nesses lugares, matas fechadas, também tem, eu sei que
tem, porque inclusive muitas das vezes a gente tinha o
acompanhamento deles quando nois ia pra roça, fazer o plantio,
depois roça longe que a gente tinha que passar por dentro da mata
fechada, eles acompanhavam a gente, a gente não via, mas ouvia
eles assoviar, muitas das vezes falava alguma coisa que a gente
depois mesmo se sentia até agredido, entendeu? Com pedras, essas
coisas assim, falar algo que desagrade a eles, então eu acredito que
são vigários, matas fechadas, locas e águas, como nesse açude que
nós temos ali, ali tem batalhão ali dentro, tem pessoas que já
morreram ali, talvez por desobediência. (ENTREVISTA, 2013, p. 3).
254
uma vez por ano; mas quando o seu povo não faz o que ele quer, não aparece. A
última aparição aconteceu depois das Corridas do Umbu, no mês de fevereiro, às 3
horas da manhã, na localidade chamada Serrinha, Pernambuco, na presença de
mais de 5 mil pessoas. E sobre o espírito do antigo pajé Arvilino, falecido em 2006,
Nina diz que vai conversar com o pajé Geripankó Elias para que ele consulte os
astros para saber como está a vida dele do outro lado.
O segredo dos povos indígenas de não revelar seus mitos e significados
dos símbolos é a garantia de manutenção de suas práticas religiosas e
fortalecimento da identidade étnica diante da sociedade nacional.
A análise jungniana do sonho do etinônimo Katökinn e a análise
antropológica de Lévi-Strauss aplicada ao ritual do Rei dos Peixes demonstram a
profunda ligação étnica do grupo com o tronco pankararu, com seus ancestrais e
rituais religiosos, como também a garantia dos rituais e da mitologia na manutenção
do segredo. O sonho revela a profundidade do trauma histórico vivenciado pelos
grupos indígenas do sertão de Alagoas, desde o confinamento no aldeamento Brejo
dos Padres, a convivência com os missionários católicos, seus códigos e suas
entidades religiosas e míticas; a relação e conflitos com culturas africanas e
indígenas; os conflitos, as doenças e a fome; a dispersão e reterritorialização; a
servidão e proletarização; e a retomada da afirmação étnica frente à sociedade
nacional.
O ritual do Rei dos Peixes é a expressão da afirmação da identidade étnica
no contexto da sociedade envolvente, mesmo exposto às suas interferências. E,
portanto, o etinônimo Katökinn e o ritual do Rei dos Peixes simbolizam o resgate da
história negada e a continuidade do povo Katökinn, atualizada nos rituais e não
revelada aos não indígenas.
3.6 Kouipanká: análise do discurso do cacique Zezinho no processo de afirmação da
identidade étnica Koiupanká
255
particularmente o do Nordeste brasileiro, apresentado pela literatura, como também
demonstrar a capacidade de produção intelectual, política e social sobre sua história
e defesa de seus direitos. Assim, as condições materiais e históricas da produção do
discurso indígena na reconstrução e ressignificação de sua história a serviço da
afirmação étnica e ideológica.
O objetivo é analisar o discurso construído pelo indígena José João da
Silva, 56 anos, considerando algumas etapas de sua história de vida, com destaque
para o período de retomada da organização do grupo e o reconhecimento étnico,
entre 2001 e 2003, e, no exercício da função social como líder religioso, cacique
Koiupanká, presidente do Conselho do Distrito Sanitário Especial Indígena (DISEI) -
representando os povos indígenas dos estados de Alagoas e Sergipe - e assessor
da Secretaria Especial de Saúde Indígena (CISE).
Originário da etnia Pankararu, segundo relatos dos anciãos e do próprio
Zezinho, como é conhecido, Koiupanká funda-se na tradição Pankararu e Pankararé
e, ao mesmo tempo, reconstrói a própria identidade, ressignificando as danças,
cantos, costumes, valores, rituais e mitos.
No processo de afirmação da identidade étnica, Zezinho tornou-se um
personagem importante dentro das comunidades indígenas Roçado, Baixa do Galo
e Baixa Fresca. Com sua personalidade e discurso firme na sociedade nacional e
frente aos órgãos públicos, paulatinamente assume funções importantes dentro do
grupo e na representação dos interesses dos povos indígenas, consolidando o
reconhecimento étnico do grupo e a sua liderança.
Considerando o contexto histórico, social, cultural, religioso e político, tendo
com base entrevista concedida pelo cacique Zezinho Koiupanká, em janeiro de
2013, na aldeia Roçado, o seu discurso é fundamentalmente uma construção
política e social, delimitado no processo de afirmação da identidade étnica do povo,
produzido e verbalizado enquanto representação religiosa e política.
256
Fresca, Baixa do Galo e Aldeia Roçado, sendo que esta última é também o local
onde fica o terreiro religioso, o centro comunitário, a escola Anselmo Bispo – o
centro das decisões políticas. Outras famílias se encontram espalhadas pelas serras
e periferias das cidades próximas.
As relações de parentescos e a matriz cultural e religiosa estão ligadas ao
povo Pankararu, aldeia Brejo dos Padres. Como afirma o cacique Zezinho: “as
danças, os ritmos, a minha é de Pankararu que somos descendentes, só que nós
temos canto próprio, nós temos uma organização própria, nós temos um costume
não próprio, mas, mas ele tem algumas diferenças, né?” (ENTREVISTA, 2013, p.
17).
Por outro lado, levanta-se que a identidade cosmológica Koiupanká, em
que se identifica o Dono do Terreiro - como os indígenas referem-se ao seu
fundador - ou Encantado82, a possibilidade de ter relação com o povo Pankararé, do
município de Nova Glória, sertão da Bahia.
No período da colonização e das missões católicas, a área dos Pankararu
foi utilizada como espaço de confinamento de indígenas de várias etnias para a
catequização e preparação de mão de obra para o trabalho agropastoril ao longo
das margens do rio São Francisco e de seus afluentes. Esse trabalho procurava
abastecer a metrópole de couro e carne, enquanto que as missões tinham o objetivo
de tornar católicos os indígenas e ampliar o número de fiéis sob seu domínio. Muitos
povos com tradições culturais, línguas, costumes e valores diferentes foram
obrigados a conviverem numa mesma aldeia.
82
Espírito dos antepassados.
257
2000 e 2001, foram os povos Karuazu e Katökinn, respectivamente. No ano de
2001, o povo Koiupanká assumiu sua identidade e iniciou a luta pela demarcação de
seu território tradicional. Afirma Zezinho: “É. Por que quem tem que auto se
reconhecer é os próprios indígenas e reconhecer é, é... é os próprios índios”.
(ENTREVISTA, 2013, p. 18).
Segundo relatos dos anciãos, os membros da família Bispo foram os
primeiros a chegarem à região e encontraram no sertão uma pedra que juntava água
(daí a palavra inhapi) e começaram o trabalho de roça no seu entorno. Aos poucos
chegaram outros parentes, e a população foi aumentando. Com a chegada dos
coronéis83 e, posteriormente, o surgimento de núcleos urbanos, os Koiupanká foram
expulsos da terra e forçados a trabalhar nas fazendas e usinas. O mesmo ocorreu
com a maioria dos indígenas, isso é atestado pelo Zezinho Koiupanká:
É. Tempo de novo trabalhei, no sul de Alagoas, trabalhei em São
Paulo, trabalhei em Mato Grosso, trabalhei em vários lugar, no
Maranhão, né? No... Mato Grosso mesmo não foi em construção, foi
cortando cana por que minha vinda era assim no tempo novo...
(ENTREVISTA, 2013, p. 2).
E, completa:
83
Denominação dada a senhores detentores de grandes extensões de terra, que lhes dava
prestígio e poder sobre o restante da população.
258
3.6.3 Crenças e ritos Koiupanká
Koiupanká tem o ritual da cura, onde a Mesa é dirigida por dona Iracema,
matriarca e uma das principais lideranças da comunidade, realizado durante o ano.
Além disso, existem mais dois rituais: a dança do toré e a dos praiás. O toré pode
ser dançado em alguns momentos por todos, inclusive por não indígena convidado.
É uma dança tipicamente religiosa, que tem muitas finalidades, dentre elas, o
agradecimento, a festa, o louvor, a penitência e para selar amizades.
Os praiás são entidades religiosas, assumidas exclusivamente por homens,
chamados de Encantados ou o Homem. Cada um tem o seu dono, cuja
responsabilidade é de zelar pelas vestes e de determinar a participação, ou não, nos
momentos do ritual. Os praiás se apresentam totalmente cobertos, dos pés à
cabeça, com um maracá segurado na mão direita. As roupas são confeccionadas de
cipó colhido na região, chamado crauá ou croá, que fornecem longas fibras, de
grande resistência e durabilidade.
Um dos rituais mais importantes é Queimada do Murici (O Jornal, 2008)
que é realizado em três finais desemana consecutivos, iniciado longo após a Páscoa
Cristã, quando é celebrada a criação do povo, com os rituais do milho, da mandioca
e do murici. O ritual é iniciado, oficialmente, às 19 horas do sábado e prolonga-se,
intercalado por vários atos religiosos, até o nascer do sol, no domingo. Às oito horas
é reiniciado, parando para o almoço, e retornando às 14 horas até o final da tarde.
Segundo os relatos colhidos junto aos membros da comunidade, o milho
celebra a criação do homem; a mandioca84, a da mulher; e o murici, a criação do
povo, alimento do dono do terreiro85. Os homens que se vestem de Encantados –
espíritos dos antepassados -, nos três dias que antecedem o ritual e durante as três
semanas em que é realizado, se abstêm de sexo, bebida alcoólica, tomam banho de
ervas e ficam reclusos no Poró – lugar onde só é permitida a entrada de homens; lá
dentro eles fumam, rezam e dançam.
84
Mito encontrado entre os povos da região amazônica, registrado no texto de Couto de
Magalhães (1837-1898), em O Selvagem, com o nome de Mani-Oca – Casa de Mani –
sobre o nascimemnto da mandioca. (Op. cit., p. 126).
85
O Encantado é o tronco espiritual, fundador e celebrado pelos membros da comunidade
indígena.
259
A cada entrada dos praiás no terreiro, é feita uma abertura oficial: o pajé
conduz os praiás, tocando o maracá e fumando, cruza e dar três voltas pelo terreiro.
Quando a dança está em ritmo frenético, os pés dos praiás parecem flutuar. Em
alguns momentos da dança, entram duas mulheres protegendo os praiás postos nas
extremidades – as mesmas têm de estar rigorosamente dentro das regras de
abstinência e não menstruadas.
Nos dias dos rituais, toda a dieta é preparada com o alimento que está
sendo celebrado. O ritual começa com a colheita feita pelos homens, e depois o
alimento é preparado por mulheres, numa casa da comunidade. A alimentação é
abençoada pelos praiás para ser servida, primeiramente para os Homens
(Encantados) e depois para os presentes.
No último final de semana do ritual Queimada do Murici, os homens e
mulheres se penitenciam, enquanto circulam nove vezes o terreiro, carregando
sobre as costas um feixe de cansanção (urtiga). Ao término, colocam-no no centro
do terreiro e dançam sobre os galhos até exterminá-los.
86
Sul, no sentido dado pelos indígenas do sertão de Alagoas, significa o Leste, região
litorânea onde é desenvolvida a agricultura da cana de açúcar desde o período colonial.
261
eu... meus filhos pegou a mesma vidinha assim deles e... e hoje às
vezes as pessoa admira, a mãe mesmo admira que num sabe como
é que ele aprendeu sem ninguém ensinar, sem nem se quer
trabalhar de servente, sabe? Hoje trabalha em construção, tem um
sobrado aí que ele tá construindo, construiu um sobrado em Maceió,
né?! (ENTREVISTA, 2013, p. 2).
262
mesmo ano, o grupo indígena assumiu para a sociedade local e nacional a
identidade étnica. Antes, mesmo praticando os rituais e vivendo em grupo familiar, o
grupo não era reconhecido como indígena. Como explica Zezinho:
É... na verdade, é...eu nasci índio e vou morrer índio! Ou seja,
indígena porque na linguagem branca, é índio, né? Mas eu sempre
falo que sou indígena. E na época deu mais novo eu num tinha muita
infância, eu... eu além de não entender, tinha muito medo
principal...inclusive meus avós, os antepassados falava que índio só
tinha no Sul, né? Ou seja, lá pra Amazonas, lá pra dentro das mata!
E... e eles só conhecia, só se reconhecia como caboco, né? É outro
apelido... pra você ter ideia esse morro aí é...tem registrado no
museu por Serra dos Caboco. Porque na época o exército bateu pra
comprar essa serra aí, andou pesquisando e num sei o que, que
encontrou e Zeca a irmã, o meu bisavô, os outros disse que não
vendia não. Que era caboco e caboco não vendia terra.
(ENTREVISTA ZEZINHO KOIUPANKÁ, 2013, p.3).
263
nossa cultura, dos nossos Pankararu, nossos Pankararus. Mesmo
com todo massacre, perseguição, discriminação, mas ela nunca
abriu mão do que é. Então isso me orgulha muito da minha mãe.
(ZEZINHO KOIUPANKÁ, 2013).
264
3.6.6 Discurso: construção política e ideológica
266
Observa-se que as funções fazem-se presentes no processo de construção política
da identidade.
As três funções da linguagem, tal como primeiramente Bühler as
concebe, de representação (ou de símbolo), expressão (ou de sintoma)
e apelo (ou de sinal), são noções semânticas. No ato do discurso, o
enunciado desempenha as três funções à medida quês e relaciona com
o estado de coisas de que se fala (representação), com aquele que fala
(expressão) e aquele a quem se fala (apelo). (BÜHLER apud BARBI,
1999, p. 19).
Como afirma Barbi, “a grande novidade está na função textual, que tem a
ver com o estabelecimento de vínculos da linguagem com ela própria e com as
características da situação em que é usada. Essa função permite ao falante e ao
ouvinte construir „textos‟”. (1999, p. 20).
Como poder ser observado na fala de Zezinho, o texto – no sentido de
discurso – é construído para dar respostas ao interlocutor:
267
de um indivíduo, até porque não se sustentaria enquanto ato secreto, mas uma
produção do grupo social, expressão da história e das contradições e acomodações
sociais, políticas e ideológicas.
Sobre a religião eu me recuso de falar porque tem muito, muito
respeito a quem me deu o nome de Koiupanká. A origem de
Koiupanká e pediu pra não falar sobre a religião porque a religião dos
povos indígenas é... é uma coisa interna não todos, mas é uma coisa
interna. É... num é... eu falo uma coisa no modo de falar, mas é... é...
uma, uma... uma ciência que é só pra o povo indígena. (ZEZINHO,
2013, 12).
Ou seja, a religião é algo para ser vivenciado pelo próprio grupo social. A
religião, diz Zezinho:
Não. Imitação não! Imitação é... nem a imitação nem apresentação
(...). É. Religião se vive, num se usar, né! É... sabemos que a religião
é a nossa origem é a nossa... nossa identidade. (...) Pratica! Religião
não imita, a religião se pratica. A religião não é teoria é prática! Tem
que praticar. Quando você pratica religião, então você não tá
imitando. (ZEZINHO KOIUPANKÁ, 2013, p. 11, 15 e 16).
268
Mas ao mesmo tempo recorre à memória para fundamentar e defender da
identidade do ser indígena:
O critério é... é origem, tradição, cultura, né? E a prova da origem.
Porque se eu falar que sou descendente da Pankararu por que eu de
qualquer maneira... pode morrer quem morrer, mas eu tenho família
lá. Então essa é que é a prova. Esse é que é o critério. Eu falar que
sou de origem Pankararu, e qual a família mais próximo? Fulano de
tal. Então, você vai lá e pergunta aqui tem família tal? Tem. Fulano
de tal, pai de fulano, mãe de fulano, a tia, ou parente, ou tio, ou avô é
daqui? (ZEZINHO KOIUPANKÁ, 2013, P. 18).
272
direcionada por política indigenista integracionista, direcionada exatamente em
sentido contrário ao surgimento de novos grupos indígenas, principalmente para
aqueles considerados descaracterizados culturalmente, segundo os critérios
normativos legais.
Os cientistas brasileiros, principalmente no campo da História e da
Antropologia, foram tragados pela concepção da história positivista e da antropologia
tradicional, apontando o seu foco acadêmico para as populações localizadas nas
regiões de pouco contato com a cultura nacional, excluindo, assim, as populações
indígenas do litoral e interior do Sertão Nordeste. Ao mesmo tempo em que os
principais teóricos brasileiros realizavam os estudos e produziam suas teses,
sustentavam o poder político, criando critérios de delimitação de indianidade
correspondente ao grau de contato e ao biologismo.
Com a força ressurgente do movimento dos grupos étnicos do Nordeste no
final da década de 1970, indigenistas, missionários e intelectuais tornam-se canais
de apoio político, financeiro e produção teórica de explicação do fenômeno. A
pesquisa identificou que, neste contexto, os atores considerados pelos indígenas
como aliados, tornaram-se instrumentos de apoio a esses grupos, como também
canais de articulação com os órgãos governamentais e divulgação na sociedade
nacional.
Para atender a expectativa do outro - o indígena e o não indígena -, com o
estereótipo impregnado na sociedade nacional, os grupos indígenas fazem a leitura
da realidade social e apropriam-se de elementos culturais de outros povos para se
afirmarem etnicamente, com o apoio e compreensão política dos segmentos aliados.
Do ponto de vista político, essa movimentação cultural foi indiscutivelmente
importante para ser reconhecido etnicamente diferenciado. Entretanto,
metodologicamente pelo critério estritamente epistemológico, o deslocamento
antropológico para a descrição dos elementos diacríticos em parâmetros do
establisment cultural e étnico, o conhecimento antropológico deixou de identificar e
produzir a partir do próprio ser indígena, social, cultural e histórica.
A partir da memória e das falas indígenas, condicionadas pelas
contradições sociais e econômicas e pelos conflitos culturais e étnicos, utilizando
bases teóricas da Análise do Discurso e do Imaginário, identifico que os membros
273
dos povos indígenas Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katökinn e Koiupaná,
construíram habilmente as relações discursivas em cada contexto e com cada
interlocutor, objetivando garantir a permanência das tradições culturais, religiosas e
étnicas, e, quando identificaram a possibilidade, reivindicaram o reconhecimento da
identidade étnica e os direitos a isso atrelado.
Na pesquisa foi identificado que, para os indígenas, o ser indígena e o
estar indígena, são duas faces de um mesmo personagem histórico, mas com
perspectivas e respostas diferenciadas. O ser indígena é o modus vivendi na
comunidade e no cotidiano, nas celebrações, nos ritos religiosos, nas danças, nos
seres mitológicos. Este conhecimento, de certa forma, acontece à margem da
sociedade nacional, ignora o saber, o conhecer, o aceitar ou não do não indígena.
Enquanto que o estar indígena, é uma produção social e política para dar resposta
ao imaginário construído pelo não indígena, o outro – o branco. Constatei também
que o imaginário do ser indígena, para si – o indígena -, também foi construído, em
movimento duplo, mas unificado em um mesmo sujeito, à medida que manteve a
raiz e o eixo condutor da tradição Pankararu, apropriando-se dos elementos dos
outros – o indígena, o branco, o afrodescendente -, a cultura, a religião, as crenças,
os ritos, a ética, a moral. O imaginário do ser indígena para o Geripankó, Kalankó,
Karuazu, Katökinn e Koiupanká é o que é vivenciado em todas as suas dimensões,
subjetivas, psicossomáticas, culturais, religiosas e políticas.
O ser indígena para o outro e revindicar o reconhecimento da identidade
étnica, é uma opção e decisão política do sujeito. É garantido pelas lideranças,
mesmo sabendo da pertença pela relação de parentesco, conhecendo e praticando
os ritos religiosos e a cosmogonia, cabe ao sujeito procurar o direito de ser
reconhecido e ter acesso às garantias legais.
Com isso, pode-se afirmar que as práticas de representação identitárias e
ressignificação do imaginário foram sustentadas e recriadas no imaginário indígena
para sustentar-se enquanto pessoa, mas também para firmar-se enquanto sujeito
diferenciado diante do outro, o indígena e o não indígena.
274
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