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Avaliação em música: inferências e interferências prático-conceituais

Fábio Henrique Ribeiro

1. A avaliação e alguns dos seus problemas prático-conceituais

A prática infundada da avaliação ao longo das diversas correntes educativas tem deixado
lacunas conceituais que impedem sua aceitação por parte de alunos e a transformam em
ferramenta de poder nas mãos dos professores. A dificuldade em se distinguir e identificar
métodos, ferramentas e objetivos impedem uma prática avaliativa coerente com todo o processo
educativo. A atividade avaliativa tem se caracterizado como uma prática ausente de consistência
e coerência, que insiste em residir, separadamente, o conceito de avaliação em cada um dos seus
elementos constituintes, e não no seu conjunto. Toma-se apenas uma parte pelo todo em
detrimento da completude da avaliação, resumindo sua complexidade a meros métodos como
exames, produções de texto, seminários e relatórios entre outros, com objetivos diversos e até
contrários aos quais deveriam servir realmente.

Uma discussão sobre conceitos pode parecer inútil a quem se acostumou à prática não
reflexiva e às situações de urgência em se definir ou executar um programa curricular. Todavia,
defende-se aqui uma reflexão sobre os objetivos práticos do conceito a ser compreendido e
delimitado, uma vez que à prática influencia e é influenciada pela sua percepção conceitual. Se
um professor entende que teoria musical é o mesmo que percepção musical, logo terá sua prática
docente voltada para tal concepção.

Méndez (2002, p. 25) aponta algumas complicações práticas, resultantes de conflitos


conceituais, relativas à mescla de funções da avaliação. A obscuridade e incoerência dos
objetivos, recursos, metodologias e funções resultam em práticas fundamentadas em bases
hipotéticas sem qualquer justificativa válida. A avaliação e todo o processo educativo se passam
em um campo confuso onde se permutam significados e aplicações práticas entre os métodos e
ferramentas. Méndez (2002) e Luckesi (2003) apresentam o “exame” como exemplo clássico de
recurso metodológico que toma todo o significado da avaliação na concepção dos sujeitos da
educação, ignorando o processo pelo qual é composto. Eles não combatem ou tampouco
estigmatizam o exame como inútil ou ineficaz, entretanto, criticam o seu uso demasiado e
indiscriminado na sala de aula, onde a classificação não tem eficiência, por não estar contida em
seus principais objetivos. A aplicação dos exames, segundo Lukesi (2003), representa uma
administração de poder, de um modelo autoritário e de uma prática que privilegia a exclusão.
Para Méndez (2002) o exame rompe o equilíbrio entre o receber e o produzir, entre o avaliar e
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aprender simultâneos e congruentes. Com o distanciamento entre a avaliação e a aprendizagem,


o avaliado remete sua atenção à recepção de conteúdo como recurso de sua salvação.

A denominação avaliação surgiu a partir da proposta de diagnosticar o andamento da


aprendizagem do educando e torná-la mais eficiente (LUKESI, 2003, pg.15). O termo inicial,
“avaliação da aprendizagem”, foi cunhado pelo educador norte-americano, Ralph Tyler, em
1930. A generalização equivocada ao longo dos anos passou a dar uma conotação voltada a “toda
e qualquer atividade de aferição do aproveitamento escolar” (LUKESI, 2003, p.16).

Então, vários fenômenos diferentes passaram a ser denominados de


avaliação: o exame passou a ser denominado de avaliação, seleção
passou a ser denominada de avaliação e a própria avaliação, também,
permaneceu sendo denominada pelo termo avaliação. Nasceu, assim,
nossa noção e nossa prática equivocada do que é avaliação (LUKESI,
2003, p.16).

Uma possível justificativa para tal generalização do termo pode ser a apresentada por
Méndez (2002) que aponta desconexões entre a prática avaliativa e as concepções educacionais
às quais deve servir. Mesmo com todas as mudanças interpretativas no conceito, pouco se mudou
na prática avaliativa. Méndez (2002) afirma que as palavras não fazem reformas nem mesmo
criam realidades, mas apenas as expressam. A confusão conceitual presente no contexto
educativo nacional resulta de uma prática raramente refletida e engessada pelas estruturas
educacionais que pouco mudaram ao longo dos tempos e das correntes ideológicas da educação.

2. Avaliação em música

Em música, o problema da avaliação se acentua, devido à existência de


incompatibilidades entre as experiências musicais – subjetivas e coletivas – e os conceitos
utilizados para descrevê-las. Tais incompatibilidades são causadas por uma lacuna
epistemológica entre o pensamento musical e o conceitual (JOHNSON apud ANDRADE, 2003,
p. 76). As concepções sobre os conteúdos musicais se tornam ainda mais embaraçosas sob a
égide da subjetividade perceptiva e interpretativa que, supostamente, impedem uma mensuração
avaliativa e, então, as confusões conceituais já embaralham o processo educativo antes mesmo
que ele se inicie. Em uma pesquisa realizada com dezenove professores de piano na cidade de
Porto Alegre, Santos (2003) observou um distanciamento entre as concepções teóricas a respeito
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da avaliação e a prática avaliativa empregada pelos mesmos, apontando a necessidade de


equilíbrio entre a intuição e a explicação analítica:

A dimensão subjetiva da avaliação, presente no julgamento intuitivo, traz


todas as concepções teórico-práticas de quem está avaliando, bem como a
bagagem de experiências musicais e o desenvolvimento musical desse
avaliador. Para trazer a objetividade, é necessário que todo esse conjunto
de concepções do avaliador seja canalizado para o julgamento analítico
fundamentado no conhecimento da experiência musical (SANTOS, 2003,
p. 50).

A subjetividade abona, erroneamente, as práticas equivocadas de muitos professores que


tomam a música como um conjunto composto, essencialmente, por dimensões pessoais não
racionalizáveis e tampouco passíveis de uma avaliação razoável e justificável (DEL BEN, 2003;
SANTOS, 2003; ANDRADE, 2003).

Os professores, ao manterem uma concepção de música e de avaliação como coisas


subjetivas, focam seu trabalho no individualismo, dificultando o processo avaliativo. Ao analisar
as concepções de três professoras de música do ensino fundamental em escolas privadas em
Porto Alegre, Del Ben (2003) verifica que elas vêem a avaliação como algo “subjetivo,
individual ou muito pessoal” porque possuem a mesma impressão a respeito da vivência musical.
As definições correm o risco de residirem apenas no caráter técnico em vista da dificuldade de
compreensão e avaliação de conteúdos tão “subjetivos”. A tentativa de compreender a idéia de
qualidade musical traz à tona vários termos confusos, que geralmente procuram designar o
caráter expressivo, mas que pouco esclarecem ou justificam uma postura avaliativa. Swanwick
(2003) afirma que apesar de vários programas de estudos carregarem a expressão em sua
denominação, quase não apresentam objetivos de aprendizagem que a contemplem
(SWANWICK, 2003, p. 91).

Outro problema refere-se à multiplicidade de conhecimentos presentes na prática musical


e a dificuldade de muitos professores em reconhecê-los ou delimitá-los, acarretando uma
ausência de parâmetros avaliativos. Del Ben (2003) verificou na sua análise aqui já apresentada,
que as professoras pesquisadas, apesar de apontarem em seus discursos a necessidade da prática
para a aprendizagem musical, não concordam que o conhecimento está presente na prática, mas
fora dela. Elas entendem o conhecimento como apenas o que pode ser verbalizado. Tal
concepção resulta em práticas avaliativas com resultados parciais e pouco justificáveis, sem
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critérios e parâmetros delimitados, privilegiando aspectos quantitativos e ignorando a música


como discurso global e processual. Considerar a música como discurso é um dos princípios da
educação musical apresentados por Swanwick (2003), que defende uma prática concebida a
partir de intenções verdadeiramente musicais, integradas com os propósitos educacionais.

3. Clarificação de conceitos conduz a práticas avaliativas mais coerentes?

A inconsistência prática de muitos avaliadores está intimamente ligada à falta de clareza


no conceito de avaliação, instaurada no meio de uma mistura de funções e objetivos voltados
para as diversas aplicabilidades equivocadas do exame. “Não podemos omitir que a falta de
clareza no conceito tem implicações muito importantes em qualquer prática que aspire a ser
reflexiva e comprometida com a mudança” (MÉNDEZ, 2002, p. 72).

A literatura específica tem apresentado uma concepção de avaliação mais abrangente, que
não se limita aos seus métodos, visando coletar dados a serem analisados para uma posterior
tomada de decisão. Para Lukesi (2003), o ato de avaliar consiste em diagnosticar e depois
decidir. São dois processos indissociáveis, sem os quais a avaliação não se completa. O
diagnóstico, por sua vez se compõe pelos atos de constatar e qualificar. O constatar implica
uma identificação de algo, a fim de oferecer base material para sua posterior qualificação. O
qualificar implica uma atribuição de qualidade positiva ou negativa segundo um critério pré-
determinado. A posterior tomada de decisão deve ser tomada em função dos objetivos, sob um
arcabouço teórico e parâmetros considerados como satisfatórios. Em outras palavras, tomemos
como exemplo um carro de passeio ao ser avaliado por um empresário, dono de uma loja de
móveis, que pretende fazer entrega em domicílio dos seus produtos. Ele pode constatar que é um
carro bonito, com bom desempenho e acabamento, mas que não serve aos seus objetivos por não
ser um carro de carga, sendo portando desqualificado para o trabalho. Ele decide, então, procurar
outro carro. Trata-se de um exemplo externo às situações educacionais com um contexto menos
complexo, mas que pode esclarecer as principais ações presentes em um ato avaliativo.

Méndez (2002) refere-se à avaliação educativa como uma “atividade de investigação e de


reflexão compreendida entre a coleta contínua de informação valiosa por diversos meios e a
interpretação, a análise crítica e a valorização sobre o rendimento global do aluno” (MÉNDEZ,
2002, p. 74). Para ele, a prática é dependente do marco conceitual que lhe serve de referência e
deve ser assim realizada “se se quer manter a coerência epistemológica que deve sustentar a
coesão prática” (MÉNDEZ, 2002, p. 76). Entretanto, a realidade prática se mostra
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descomprometida com o seu marco conceitual, sofrendo poucas interferências, não passando do
âmbito discursivo.

Os problemas conceituais em música, como já apresentado, acarretam práticas infundadas


e ausentes de parâmetros significativos e justificáveis. Mas uma melhor concepção de tais
conceitos possibilitaria melhores práticas, com maior definição de objetivos e métodos? Não se
procura aqui uma resposta conclusiva para tal indagação, mas expor alguns pensamentos a
respeito dela.

Para Swanwick (2003) a concepção e a percepção do que é a música e do que ela faz
pode ser mais importante do que o método específico de ensino. Para ele, uma compreensão
clara de como se avaliar musicalmente e de maneira formal pode ajudar nos processos mais
informais da avaliação. É necessária uma compreensão da complexidade que envolve a
experiência musical, que não deve ser resumida a uma única dimensão. Tal postura ignora o
aspecto global da experiência musical ao procurar mensurar separadamente suas dimensões.
“Devemos evitar cair na tentação do nível pobre de significado embutido em notas e ser
cautelosos com a falsa impressão da exata quantificação que os números podem dar”
(SWANWIC, 2003, p. 84).

Del Ben (2003) concluiu em suas observações que a prática das professoras pesquisadas
sofria interferências de suas concepções acerca da subjetividade na música que parecia “impedi-
las ainda de definir um conjunto de saberes a ser desenvolvido pelos alunos e de investigar-se
[...]” (DEL BEN, 2003, p. 39). Afirma ainda a necessidade de se explicitar não só como se avalia
em música, mas também o que tem sido avaliado, quais as concepções a respeito do
conhecimento musical, da aprendizagem em música e das funções da música na educação.

4. Considerações finais

A avaliação tem enfrentado dificuldades de interpretação desde sua concepção inicial.


Mesmo com as diversas correntes ideológicas ao longo da história educacional, a prática
avaliativa não tem sido verdadeiramente ressignificada, mantendo-se à margem da sua
significação. Tem sido colocada frente aos seus sujeitos de forma segmentada e desconexa com o
processo educacional.

O ato de avaliar deve transcender seus métodos e funções, pois implica diagnosticar uma
determinada situação e tomar uma decisão sobre ela a fim de se alcançar um objetivo pré-
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determinado. A avaliação não se trata de um apêndice do processo de ensino-aprendizagem,


devendo ser compreendida e praticada dentro deste contexto.

As concepções avaliativas incoerentes e inconsistentes em educação musical se passam


da mesma forma que em outros campos, mas com agravantes específicos, explicitando, portanto,
a necessidade de uma melhor interpretação a respeito da própria experiência musical, de seus
conhecimentos, conteúdos e objetivos, para então verificar quais os melhores métodos
avaliativos a serem usados na busca dos objetivos teoricamente embasados e a priori
determinados.

5. Referências
ANDRADE, Margareth Amaral de. Avaliação do canto coral: critérios e funções. In:
HENTSCHKE, Luciana; SOUZA, Jusamara et al. Avaliação em música: reflexões e práticas.
Org. Luciana Hentschke e Jusamara Souza. São Paulo: Moderna, 2003. pp. 76- 90.
DEL BEN, Luciana. Avaliação da aprendizagem musical dos alunos: reflexões a partir das
concepções de três professoras de música do ensino fundamental. In: HENTSCHKE, Luciana;
SOUZA, Jusamara et al. Avaliação em música: reflexões e práticas. Org. Luciana Hentschke e
Jusamara Souza. São Paulo: Moderna, 2003. pp. 29 – 40.
LUKESI, Cipriano Carlos. A avaliação da aprendizagem na escola: reelaborando conceitos e
recriando a prática. Salvador: Malabares Comunicações e Eventos, 2003.
MÉNDEZ, Juan Manuel Álvarez. Avaliar para conhecer, examinar para excluir. Trad. Magda
Schwartzhaupt Chaves. 2. ed. Porto Alegre: Artmed Editora, 2002.
SANTOS, Cynthia Geyer Arrusul dos. Avaliação a execução musical: a concepção teórico-
prática dos professores de piano. In: HENTSCHKE, Luciana; SOUZA, Jusamara et al.
Avaliação em música: reflexões e práticas. Org. Luciana Hentschke e Jusamara Souza. São
Paulo: Moderna, 2003. pp. 41 – 50.
SWANWIC, Keith. Ensinando música musicalmente. Trad. Alda Oliveira e Cristina Tourinho.
São Paulo: Moderna, 2003.

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