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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

CARLOS DE ALMEIDA LEMOS

ANTÍSTENES DE ATENAS
OU SOBRE O PRAZER DA LINGUAGEM
( PERI THS TOU LOGOU XARITOS )

Rio de Janeiro
2007
CARLOS DE ALMEIDA LEMOS

ANTÍSTENES DE ATENAS
OU SOBRE O PRAZER DA LINGUAGEM
( PERI THS TOU LOGOU XARITOS )

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Filosofia, Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de
Doutor em Filosofia.

Orientador: Prof. Doutor Fernando José de Santoro Moreira

Rio de Janeiro
2007
Lemos, Carlos de Almeida

Antístenes de Atenas ou Sobre o Prazer da Linguagem/Carlos de


Almeida Lemos. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2007.

274 p. an.

Tese – Universidade Federal do Rio de Janeiro, IFCS

1. Sofística. 2. Prazer. 3. Linguagem. 4. Verdade. 5. Contradição.

6. Definição. 7. Cinismo Antigo. 8. Estoicismo (Dout. – UFRJ/IFCS).

1. Título
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

ANTÍSTENES DE ATENAS
OU SOBRE O PRAZER DA LINGUAGEM
( PERI THS TOU LOGOU XARITOS )

Tese submetida ao corpo docente do Programa de Pós Graduação em Filosofia da


Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob a orientação do Prof. Dr. Fernando José de
Santoro Moreira, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor.
Aprovada em ...... de ...... de 2007

________________________________________________
Prof. Dr. Fernando José de Santoro Moreira – UFRJ – Orientador

______________________________________________________
Prof. Dr. Emmanuel Carneiro Leão – UFRJ

_______________________________________________________
Prof. Dr. Fernando Augusto da Rocha Rodrigues – UFRJ

_______________________________________________________
Prof. Dr. Jacyntho José Lins Brandão – UFMG

_______________________________________________________
Profa. Dra. Izabela Aquino Bocayuva – UERJ

_______________________________________________________
Prof. Dr. Gilvan Luiz Fogel – UFRJ – Suplente

________________________________________________________
Prof. Dr. Jorge Augusto da Silva Santos – UFES – Suplente

Rio de Janeiro
2007
Dedico esta tese a meus pais,

Everardo e Dinah.

... memória que o tempo não apaga...


IN MEMORIAM

Germanus Strazzeri
À Carla, que generosamente me pôs à disposição a bibliografia
de Antístenes recolhida por seu companheiro Germanus.

A Carmen Lúcia Magalhães Paes, que me despertou para uma nova


perspectiva de compreensão da sofística.

A Helena e Alexandre.

Aos amigos do Café Filosófico, Zilde e Elisa, Herculano e Lourdes, Alex


e Maria Helena, Camargo e Conchita, Fred e Olga.

Aos amigos do Laboratório Ousia, Felipe, Rafael, Guilherme, Carol,


Rômulo, Suzana.

Ao Euclides e ao Eurico.

Às minhas amigas de Letras, Margarida, Maria Cecília, Simone.

À memória de Célia Therezinha.

À Martha, a menina do Circo.

À Vera, da palavra bem disposta.

Ao meu irmão, Fernando Lemos.


diaire/sewj yuxh=j te kai\ pneu/matoj

Paulo. Hb 4, 12.

proskekollhme/noj eij to\n pisto\n lo/gon th=j didaskali/aj,


dia\ na\ h)=nai dunato\j kai\ na\ protre/p$ dia\ th=j u(giainou/shj
didaskali/aj kai\ na\ e)cele/gx$ tou\j antile/gontaj.

Paulo, Tt 1, 9.

Quem não vê bem uma palavra não vê bem uma alma


Fernando Pessoa
RESUMO

LEMOS, Carlos de Almeida. Antístenes de Atenas ou Sobre o prazer da linguagem (Perí


tē½s toû Lógou Kháritos). Rio de Janeiro, 2007. Tese de Doutorado em Filosofia – Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

Partindo da tradição sofística de preocupação com a linguagem, Antístenes de Atenas elabora


um corpus de doutrina que tem por base a investigação dos nomes (epískepsis tōn onomátōn)
para chegar à enunciação própria (oikeîos lógos), que se opõe à definição essencial aristotélica
(ouk ésti tò tí éstin orísasthai) ancorada na diferença; enunciação que não admite a
possibilidade de contradição (ouk ésti antilégein). Tal investigação tem por finalidade
precisar os termos da moral, em última análise, fundamento de sua filosofia. Moral da ação,
dito com mais rigor, do esforço (pónos), ela não separa o exercício (áskēsis) do corpo do da
alma, enquanto esta se exercita através do discurso. Somente o conhecimento da enunciação
própria permite a “retórica heróica”, aquela que unifica a diversidade dos discursos. E mais:
como resultado do esforço de investigação dos nomes se produz, através dessa retórica
unificadora, o prazer da linguagem.
ABSTRACT

LEMOS, Carlos de Almeida. Antístenes de Atenas ou Sobre o prazer da linguagem (Perí


tē½s toû Lógou Kháritos). Rio de Janeiro, 2007. Tese de Doutorado em Filosofia – Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

Starting from the sophistic tradition of strong interest on language, Antisthenes of Athens
elaborates a corpus of doctrine which takes standing on the investigation of names (epískepsis
tōn onomátōn) to reach the proper enunciation (oikeîos lógos), that is opposed to the
aristotelic definition (ouk ésti tò tí éstin orísasthai) anchored on difference; enunciation that
does not admit the possibility of contradiction (ouk ésti antilégein). With such investigation
he seeks the goal of making precise the terms of moral, the foundation of his philosophy,
definitely. Moral of action, said more rigorously, of labor (pónos), it does not separate the
exercise (áskēsis) of the body from that of the soul, as this exercises itself by means of speech.
Only the knowledge of this proper enunciation allows the “heroic rhetoric”, that which unifies
the diversity of speeches. And more: as the outcome of the labor of investigation of names it
is yielded, through such unifying rhetoric, the pleasure of language.
ABREVIATURAS

AF Decleva-Caizzi,
Antisthenis Fragmenta

DL Diógenes Laércio,
Vidas e Opiniões de Filósofos Eminentes

OL Aldo Brancacci,
Oikei=oj Lo/goj – La
Filosofia del Linguaggio
di Antistene
SIGLAS DOS CÓDICES ARISTOTÉLICOS

E Códice Parisinus, grego do século X (1853)


J Códice Vindobonensis de filósofos gregos (100) do século X.
P Consenso dos códicos E e J.
b
A Códice Laurentianus 87, (12) do século XII.
Al Comentário de Alexandre de Afrodísia sobre a Metafísica, de Aristóteles.
Alp Interpretação ou paráfrase de Alexandre.
Sir Comentário de Siriano.
Ascl Comentário de Asclépio.
Os números 1 e 2 adicionados à sigla de um códice distinguem primeira e segunda mão.
TRADUÇÕES UTILIZADAS
As traduções de textos em italiano, francês, inglês e latim são de nossa autoria.

As traduções dos textos gregos são, em sua maioria, aquelas de edições reputadas em língua
portuguesa. Nelas, muitas vezes, são introduzidas variações que se tornaram necessárias
dentro da economia de nossa argumentação. Para dar alguns exemplos. Traduzimos, no texto
do Protágoras, de Platão, numa inversão, o termo dikaiosu/nh por “direito”, em lugar de
“justiça”, que é a sua tradução canônica; “direito” seria correspondente a di/kh. Tomamos
essa decisão para enfatizar o aspecto prático da visão sofística da sociedade em oposição ao
caráter formalista da posição socrática. Confessamos que além disso, há um intencional
anacronismo para aproximar o texto das discussões contemporâneas a nós sobre direito e
respeito como condições necessárias para a prática da cidadania. No texto da Metafísica a
respeito do qual os comentadores se dividem na atribuição de uma referência feita por
Aristóteles, que poderia ser a Antístenes ou a Platão, preferimos traduzir os verbos e)caire/w
e le/gw por “dispensar” e “acolher”, para reforçar o aspecto antitético das concepções
metafísicas dos dois discípulos de Sócrates, que não se encontraria na escolha da tradução dos
verbos por “eliminar” e “enunciar”, como decide Lucas Angioni.

De tal modo, indicamos as principais traduções usadas ao longo de todo o trabalho.

Os diálogos de Platão:
Teeteto e Crátilo, Carlos Alberto Nunes.
Fedro, Manuel Pulquério e Maria Teresa Schiappa de Azevedo.
O Banquete, José Cavalcante de Souza.
Fédon e Sofista, Jorge Paleikat e João Cruz Costa.
Protágoras e Górgias, Jaime Bruna.
Parmênides, Fernando A. Rodrigues.

As obras de Aristóteles:
Metafísica, Lucas Angioni.
Metafísica, Marcelo Perine da versão italiana de Giovanni Reale.
Ética a Nicômaco, Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W. D. Ross.
Tópicos, Leonel Vallandro e Gerd Bornheim.
A Política, M. Frazão.
Da Alma, C.H. Gomes.
Física I-II, Lucas Angioni.

As obras sobre Sócrates:


Platão, Defesa de Sócrates, Jaime Bruna.
Xenofonte, Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates, Líbero Rangel de Andrade da versão
francesa de Eugène Talbot.
Apologia de Sócrates, Líbero Rangel.
Aristófanes, As Nuvens, Gilda Maria Reale Starzynski.

Os fragmentos dos pré-socráticos:


Parmênides, Da Natureza, Fernando Santoro.
Parmênides, Acerca da Nascividade, Sérgio Wrublewski.
Heráclito, Fragmentos, Emmanuel Carneiro Leão.
Demócrito, Fragmentos, Anna L. A. de Almeida Prado.

Traduções de nossa autoria a partir de versões do grego em línguas estrangeiras modernas:


Antístenes, As declamações de Ájax e Odisseu, Marie-Odile Goulet-Cazé.
Isócrates, Contra os Sofistas, Aldo Brancacci.
Xenofonte, O Banquete, H. G. Dakyns.
Górgias, O Tratado do Não-ser, Barbara Cassin.
Górgias, Elogio de Helena, Barbara Cassin.
Parmênides, Sobre a Natureza ou sobre o Ente, Barbara Cassin.
Diógenes Laércio, Vidas e Opiniões de Filósofos Eminentes, C. D. Yonge.
Platão, Teeteto, Fernanda Decleva Caizzi.

Traduções de nossa autoria a partir da versão latina de G. Mullach:


Antístenes, Fragmentos.
SUMÁRIO

Introdução..................................................................................................................................15
O Problema: Antístenes e a sofística ..........................................................................................25
Parte 1 – As novas perguntas .....................................................................................................34
1.1 A formação de Antístenes.................................................................................................34
1.1.1 A tradição sofista.......................................................................................................34
1.1.2 O legado de Górgias: ser e linguagem........................................................................59
1.2 Os trabalhos de Antístenes................................................................................................68
1.2.1 Os escritos catalogados e os fragmentos ....................................................................68
1.2.2 A polêmica com Platão..............................................................................................84
1.3 O discípulo devoto de Sócrates. A virtude pode ser ensinada: uma teoria do prazer. .......101
Parte 2 – As respostas impossíveis ...........................................................................................134
2.1 Não é possível definir.....................................................................................................134
2.1.1 A definição de Aristóteles........................................................................................134
2.1.2 Que é que é a metafísica ..........................................................................................154
2.1.3 A enunciação própria (oikeîos lógos) .......................................................................178
2.2 Não é possível contradizer..............................................................................................196
2.2.1 A discursividade sofística ........................................................................................196
2.2.2 Uma “retórica heróica”: a politropia de Odisseu ......................................................211
Conclusão ................................................................................................................................233
Referências ..............................................................................................................................240
Fontes primárias...................................................................................................................240
Fontes secundárias ...............................................................................................................241
Anexos ....................................................................................................................................248
Nota Introdutória .....................................................................................................................248
Anexo A ..................................................................................................................................249
Catálogo Laerciano .............................................................................................................249
Anexo B ..................................................................................................................................254
Isócrates, Contra os Sofistas.................................................................................................254
Anexo C ..................................................................................................................................257
Sentenças sobre h(donh/ ........................................................................................................257
Anexo D ..................................................................................................................................262
As declamações de Ájax e Odisseu ......................................................................................262
A declamação de Ájax......................................................................................................262
A declamação de Odisseu.................................................................................................264
Anexo E...................................................................................................................................270
A Liberdade do Filósofo ......................................................................................................270
Fragmento do Banquete, de Xenofonte.............................................................................270
INTRODUÇÃO

O propósito de fazer uma pesquisa sobre Antístenes foi um risco em direção

ao desconhecido. Risco que se revelou uma viagem de descoberta de novas terras. Terras de

que já se tinha ouvido falar, mas que continuavam pouco exploradas. Terras suspeitadas, mas

ameaçadoras, pelo seu caráter aparentemente inóspito. Terras de que nunca se teve notícia e

que se acabaram revelando deslumbrantes. Caminhos. Caminhos que levaram a alguma parte.

Por enquanto, um pequeno empório numa praia do que pode ser uma ilha, um continente.

Quem sabe um outro mundo! Caminho...

Essa viagem se vislumbrou por um aceno dado por Pierre Aubenque em seu

livro Le Problème de l’être chez Aristote. Talvez não tenha sido um aceno, mas um ato de

sedução. E se o ardiloso (dólios) Odisseu serviu-se de estratagema para não sucumbir a um

perigo anunciado, que fazer diante da inesperada tentação do canto de sereia de um diálogo

ideal dos filósofos no tempo que se deparou sem nenhum aviso num ato de leitura?

O tempo do diálogo, como aquele da persuasão em geral, não é um tempo


homogêneo, em que o último momento seria necessariamente privilegiado em
relação aos precedentes porque ele os conteria todos. Ao contrário, a discussão
obedece a um ritmo secreto, em que se sucedem os períodos de maturação e os
de crise e dos quais todos os momentos estão longe de serem equivalentes: o
próprio do dialético sutil é captar aquele em que sua intervenção será decisiva.
Esta observação de bom senso tornara-se um lugar comum entre os retores e os
sofistas: o discurso improvisado é superior ao discurso escrito e a discussão ao
curso dogmático, pois estes cedem ao orador ou ao filósofo a possibilidade de
aproveitar a ocasião, o momento oportuno, o kairós. É característico que
Aristóteles aplique a mesma palavra ao diálogo ideal dos filósofos no tempo:
as dificuldades levantadas por Antístenes sobre a definição ‘não deixam de ser
16

oportunas’ (ékhei tinà kairón) 1: emprego que ilustra bem uma concepção
‘dialética’ da história, em que vemos o problema colocado por um, a aporia
levantada por outro, ora cair em contratempo, ora, ao contrário, trazer um
impulso decisivo, ainda que imprevisível, à discussão. 2

E de chofre já se apresentam dois interlocutores desse diálogo, Aristóteles e

Antístenes, que ainda se medem com rápidas palavras gentis, da parte de um, Aristóteles,

antes do que será um confronto de gigantes3, que foi a expressão usada por Platão para

designar o embate sobre a definição da essência. Conhecidos são Aristóteles e seu mestre,

mas quem é Antístenes? Pouco conhecido talvez; mas que já se apresenta no diálogo com

Aristóteles na mesma estatura dos dois. Quem é esse que coloca oportunamente problema de

tal magnitude contra uma das doutrinas centrais do Estagirita, a doutrina da definição? Por

que Aubenque o apresenta como o exemplo oportuno de uma concepção dialética da história

da filosofia? Mais adiante4 Aubenque vai dizer que Antístenes provavelmente foi discípulo de

Górgias. O sofista que teria pela primeira vez, ainda segundo Aubenque, se servido da palavra

kairós com o sentido de oportunidade. Estaríamos então para encetar viagem em direção a um

porto dominado por sofistas, esses temíveis professores de virtude, e mais, mestres do engano

para Platão, uma das vozes desse diálogo ideal dos filósofos? Seria Antístenes algum retor

terrível (deinós) que nos persuadiria que os argumentos pequenos são grandes e os grandes

pequenos e faria parecer moderno o que já era arcaico?5

Continuando a jornada, a história não dialética da filosofia nos apresentou

um outro Antístenes. O abridor de caminhos. O pai fundador de uma genealogia respeitável:

Antístenes – Diógenes de Sinope – Zenão de Cítio. Antístenes de Atenas (444-365 a.C.) teria

sido o fundador da escola cínica, que se caracteriza principalmente pela oposição radical e

1
Metafísica H 1043 b 25.
2
1983 , p. 91.
3
gigantomaxi/a. Sofista, 246 a.
4
1983, p. 100.
5
Fedro, 267 a.
17

ativa aos valores culturais vigentes, oposição nascida do discernimento de que é impossível

conciliar as leis e convenções morais e culturais com as exigências de uma vida segundo a

natureza. Mestre rigoroso, Antístenes tratava com rispidez seus alunos e não se esforçava por

mantê-los. Por sua pertinácia, Diógenes, um natural de Sinope, conseguiu a sua aceitação

como discípulo dele. Diógenes freqüentou a escola fundada por Antístenes nos arredores de

Atenas, conhecida como Cinosargo, e veio a ser a figura emblemática da escola cínica. Seus

traços se confundem com os de Antístenes na representação da imagem do cínico antigo como

um homem desleixado usando um manto surrado, um alforje e um cajado, como mostra de

sua austeridade e desprezo pelas convenções sociais. A herança cínica vai ser recebida através

de Zenão de Cítio pelos estóicos. É o cinismo que dá o tom à escola estóica, principalmente

naquilo que é a marca que a fez celebrada: a ética baseada no menosprezo ao prazer. A ética

do esforço e da impassibilidade.

No correr da viagem, no entanto, descobrimos que essas poderiam ser visões

fantásticas, monstros marinhos a assustar aventureiros noviços por mares ignotos. Nem um

sofista, nem um cínico, mas um, entre os muitos discípulos de Sócrates, que, por diferença de

dotes naturais, não tinham alcançado a grandeza de Platão, o discípulo maior. Estaria junto

com Aristipo, Euclides, Fédon, e outros muitos, entre os que são conhecidos como socráticos

menores. Faria ele então parte da tradição que nos chegou até hoje em filosofia, a doutrina

aristotélico-platônica, que começou a ganhar seu contorno com as indagações que Sócrates

fazia no mercado de Atenas, nas casas dos ricos que pagavam os sofistas para ensinar a

virtude a seus filhos, nos passeios fora dos muros da cidade. Muitos discípulos

acompanhavam sua prática da ciência dialética, alguns deixavam seus antigos mestres e se

tornavam seus devotos; um deles foi Antístenes, que abandonou Górgias e passou a seguir
18

Sócrates, seduzido pela proposta deste do ideal da autarquia do filósofo: para a felicidade

bastam a virtude e a sabedoria.

Porém quanto mais nos enfronhamos na pesquisa percebemos que, para nós,

havia uma pergunta (deve haver muitas outras) que não tinha, do nosso ponto de vista, a

resposta adequada. O que teria dado a Antístenes, de cujos escritos somente nos chegaram, a

rigor, uns duzentos e cinqüenta6 fragmentos, a proeminência que alcançou entre seus

contemporâneos, polemizando com Platão, e chegando até a transtornar Aristóteles, no

diálogo ideal dos filósofos no tempo a propósito da definição da essência, no momento

oportuno do nascimento, para usar a expressão de Aubenque, do “projeto de uma ontologia

como ciência autônoma”?7

Não teria sido por sua condição de socrático menor, porque, nos parece, ele

estaria, apesar das divergências, dentro do mesmo movimento de pensamento iniciado por

Sócrates, que teria amortecido a primitiva força do gênio grego: a racionalização. Tampouco

nos parece que, do ponto de vista cínico-estóico, sua importância, não pequena, seria aquela

de fundador de uma genealogia de pensadores que expandiriam suas doutrinas por sua própria

conta e risco. A resposta que encontramos, e que vamos procurar defender, é que, ao contrário

do que fizeram Platão e Aristóteles, que procuraram combater os sofistas com as armas de

uma razão fundada no ser essencial, Antístenes respondeu aos problemas sofísticos sem se

afastar daquele próprio fundamento das formulações introduzidas pelos sofistas eles mesmos

no grande movimento de pensamento da Atenas do século V: a investigação da linguagem e o

que, para Antístenes não se separava, o ensino da virtude. Combateu-os, se é que o fez, com

as armas que seu mestre Górgias lhe dera. Daí, talvez, o mal estar de Aristóteles, que bem

6
Contagem feita na coletânea editada por Decleva-Caizzi (1966).
7
1983, p. 133.
19

percebeu que, como bom sofista, Antístenes não poderia perder uma boa oportunidade. Na

Metafísica, a estatura de Antístenes se mostra em dois momentos decisivos: na argumentação

de Aristóteles em defesa do princípio de não-contradição8 e na exposição da concepção cara a

Aristóteles de definição pela diferença de essência.9 E ele não aparece como mero opositor a

dois gênios superiores a ele, mas com argumentos que o fazem um interlocutor respeitável. É

também opositor de Platão no que se refere à teoria das idéias, por ser esta teoria a solução de

Platão quanto à questão da essência e da definição.

Para captar de Antístenes tal feição sofista, por questão de método, vamos

nos fixar em quatro pontos:

1) A localização historial10 de Antístenes quanto à sofística.

2) Sua doutrina moral, que se sustenta em duas teses lingüísticas.

3) Primeira tese: a impossibilidade da definição essencial.

4) Segunda tese: a impossibilidade da contradição, e seu corolário, a

retórica polítropa.11

8
G 4 1006 a 6. Como passaremos a nos referir às citações da Metafísica, de Aristóteles.
9
H 3 1043 b 23-33.
10
Na temporalidade da existência humana, entendo “historial” como um percurso e não uma facticidade, nesta o
que se diz “histórico”.
11
Demos preferência às formas aportuguesadas, em detrimento das formas transliteradas, polytropía e
polýtropos, pela plasticidade da nossa língua aliada à familiaridade que temos com um infinito número de termos
portugueses com radicais gregos, como energia, dinamismo, cardíaco, psiquiatria, cinema... Foi Patzer e
Brancacci que, graças a suas percucientes análises, deram à concepção antistênica da retórica como politropia o
estatuto de doutrina dos modos de dizer original e sofisticada. Antístenes entendeu como politropia a arte de usar
o discurso adequado ao ouvinte. Seu representante máximo seria Odisseu, ao qual Homero logo no primeiro
verso da Odisséia atribui o epíteto de polítropo. Polýtropos tem vários significados: o daquilo que se move para
diversos sentidos (o significado próprio deste termo, já que o radical tropo indica direção), em decorrência: o que
vaga de um lado para o outro, hábil, astuto, esperto, velhaco, de disposição volúvel, muito diverso, ornamentado
com exagero. Homero, ao usar tal termo logo no primeiro verso, produz um intrincado e fascinante problema
hermenêutico. Quereria ele dizer que na Odisséia vai cantar o navegador que vagou de terra em terra, ou o herói
hábil e astucioso que conseguiu introduzir na cidade de Tróia o cavalo de pau, ou um velhaco que engana com
seu discurso variado adequado a cada situação?
20

Como resumo básico de sua doutrina, podemos dizer que essas atitudes de

Antístenes tinham como princípio a crença na subsistência positiva apenas das coisas, que por

natureza têm um nome apropriado. Concebia ele que havia dois tipos de coisas: as simples,

que são os elementos, e as compostas pelos elementos. Os elementos têm nomes e as coisas

compostas por elementos têm uma definição não essencial, mas composta de nomes como são

as coisas compostas de elementos.12 Essa concepção levou muitos autores, como Reale e

Decleva Caizzi, por exemplo, a considerar Antístenes um metafísico materialista. Esse

materialismo, julgam os autores, seria manifestado por sua negação de uma realidade

essencial, e sendo a realidade para ele constituída apenas de elementos, defendem que

Antístenes se refere como elementos àqueles que constituem a realidade material, enquanto

que, para Antístenes, são elementos tanto as coisas simples que são materiais, como os afetos

e as virtudes. Por esse efeito, Aristóteles confronta-se, num diálogo ideal no tempo com seus

antecessores, Platão e Antístenes. No que diz respeito à hipótese das idéias, Antístenes e

Aristóteles se colocavam do mesmo lado, opondo-se a ela: não há uma realidade separada da

essência. Enquanto que Aristóteles se mantinha ao lado de Platão no que diz respeito ao

entendimento de que essa essência seria um princípio formal a reger a composição dos

elementos, Antístenes sustentava que essa composição de elementos não se seguia de tal

princípio, já que isso implicaria uma definição essencial. Essas posições levaram, assim,

Aristóteles a conceber uma realidade em que a composição de elementos, concedendo a

Antístenes, é regulada por um princípio formal racional, concedendo por este lado a Platão.

De tal maneira, seria possível uma definição da essência, para o Estagirita: o composto de

elementos seria definido pelo gênero, que é a matéria, e pela diferença das formas.13

12
Teeteto, 201 d.
13
D 28 1024 b 4-6.
21

A negação da possibilidade da definição essencial, por Antístenes, assim

como também a sua defesa, por Aristóteles, estão indissoluvelmente ligadas à concepção de

linguagem dos dois filósofos. Para Aristóteles o nome significa, para Antístenes o nome

indica. Com essa distinção estamos diante de outro desafio desse filósofo desconcertante: sua

filosofia da linguagem. Antístenes entendia que o ensino da moral começa com a investigação

dos nomes. Se conhecemos, através da investigação dos nomes, a enunciação própria (oikeîos

logos) de cada virtude asseguramos um sólido fundamento para as reflexões morais, não

dando lugar ao relativismo em questões de ética.

Seja qual for a posição que adotemos quanto ao filósofo, considerá-lo

sofista, socrático ou cínico, essa disposição moral que liga a linguagem à prática da virtude,

que será temperada por sua concepção de retórica como politropia, deu a ele o caráter que

produzirá a fisiognomonia14 desse filho de ateniense com mãe trácia, um mestiço (nóthos)

portanto: a do filósofo moralista, que miscigenou sua formação sofista com a proposta da

autarquia socrática.

A estratégia que vamos usar para estudar o caráter sofista do pensamento

antistênico será a de partir da análise de sua concepção de prazer, tema que foi motivo de

discussão entre Protágoras e Sócrates a fim de investigar e decidir se a virtude é ou não

ensinável. Como responder à pergunta se o prazer em si não é bom?15 Sendo um filósofo

moralista, qual a posição de Antístenes quanto à concessão ao prazer? Seria, para ele, o prazer

mau ou bom? Pelo que restou de seus escritos, vê-se que ele teria manifestado duas opiniões

14
Diz-se fisiognomônico o que tenta julgar alguém por seu ar, aspecto ou fisionomia.
15
Protágoras, 351 e. th\n h(donh\n au)th\n e)rwtw½n ei¹ ou)k a)gaqo/n e)stin.
22

contraditórias: “antes enlouquecer que sentir prazer”16, mas disse também, “há um prazer

bom, aquele a que nos aproximamos sem arrependimento.”17

Relacionamos em seguida como os comentadores, das mais diversas

maneira, uns com caráter de tese, outros como posição metodológica, outros apenas

resvalando num contexto maior, se situaram respectivamente quanto às interpretações da

posição de Antístenes no atual status quaestionis.

Antístenes como parte do movimento sofista: Kerferd, Aubenque, Cassin,

Focardi, Prince, Dinucci.

Antístenes socrático: Rankin, Luzzatto, Brancacci, Giannantoni.

Antístenes na genealogia cínica: Höistad, Navia, Caizzi, Goulet-Cazé,

Strazzeri, Haddad.

Parece-nos útil que façamos nesta Introdução uma consideração breve sobre

a filosofia de Antístenes no quadro da recepção contemporânea da Antigüidade clássica. O

interesse atual pelo estudo do que seria a possível filosofia de Antístenes se encontra menos

no fato de se tentar reconstruir o pensamento daquele que teve, infelizmente, sua obra

relegada a alguns simples testemunhos, o que, na verdade, será sempre um empreendimento

vão, do que tentar, através da discussão de suas doutrinas possíveis, lançar de novo um olhar

sobre as questões que ainda hoje nos admiram. Isso sem nos arriscar a projetar um

pensamento moderno sobre a Antigüidade. Por outro lado dá-se a oportunidade de investigar

teses relevantes defendidas por Aristóteles e Platão à luz de suas contestações, que se

16
DL VI, 3. AF 108 A-F. manei¿hn ma=llon hÄ h(sqei¿hn.
17
Aten, XII, 513 A. AF 110. th\n h(donh\n a)gaqo\n eiånai fa/skwn prose/qhken th\n a)metame/lhton.
23

mostram valiosas para aqueles que hoje buscam um pensar que não se queira atrelado à

tradição aristotélico-platônica. Antístenes estaria comprometido com uma tradição paralela,

para não dizer subterrânea, que remontaria mesmo a Parmênides, através de Protágoras, e dos

sofistas passaria aos cínicos e estóicos? Essa sofística de inspiração eleática18 estaria fundada

na dificuldade da definição devida a uma concepção demasiado exigente do ente, que

corresponderia a uma justaposição de atributos ou composição de elementos, nos termos de

Antístenes.

Quanto ao aspecto filológico, o estudo de Antístenes não se limita aos

fragmentos coletados por Mullach, Humblé, Winckelmann, Caizzi, Gianantonni. Desde o

trabalho seminal de Ferdinand Dummler, Antisthenica, de 1882, é costume recorrer ainda aos

diálogos platônicos que podem aludir a ele. São, portanto, fontes de informação, além de

outros possíveis, os diálogos: Eutidemo, o paradoxo “não é possível a contradição”; Crátilo, a

teoria dos nomes naturais; Teeteto, a doutrina da composição de elementos e a famosa

definição de conhecimento como opinião verdadeira justificada pela definição; Sofista, a

impossibilidade da definição essencial; Hípias menor, a retórica como politropia; República, o

uso de Homero na educação dos jovens. Antístenes é personagem proeminente tanto no

Banquete como nos Memoráveis de Xenofonte.

Os dados biográficos a respeito de sua origem mestiça, seus feitos

guerreiros, sua relação com os seus mestres, Górgias e Sócrates, e seu discípulo, Diógenes de

Sinope, suas atividades como filósofo e retor em Atenas, sua rivalidade com Platão e sua

atuação no ginásio do Cinosargo, foram retirados das Vidas e Opiniões de Filósofos

Eminentes, de Diógenes Laércio.

18
V. Aubenque (1983), p. 144, n. 1.
24

“Só resta pois a narração do caminho...”19

Parmênides

19
VIII 1-2. mo/noj d' e)/ti mm=qoj o(doi=o / lei/petai...
O PROBLEMA: ANTÍSTENES E A SOFÍSTICA

Ferdinand Dümmler colocou Antístenes de Atenas numa posição central na

filosofia grega. Sustentava o autor, na sua dissertação Antisthenica20, que em muitos diálogos

de Platão havia uma série de alusões polêmicas a doutrinas defendidas por Antístenes. De

fato, é muito comum se encontrarem discussões sobre doutrinas de outros filósofos nos

diálogos platônicos sem que haja referência ao nome de quem as defendia. Os comentadores

de Platão em geral, interessados em fazer análises sobre esse ou aquele tema platônico, não se

atêm a esse aspecto. Por essa prática ser habitual, a investigação inovadora de Dümmler

introduziu uma nova vertente para o estudo da filosofia clássica e vários autores passaram a se

ocupar desse soi-disant socrático menor. Um ponto, no entanto, não foi considerado na

dissertação. Não houve interesse do autor em situar Antístenes dentro de qualquer dos

movimentos ou linhagem de pensamento da Atenas da passagem do séc. V para o IV, a

sofística, o socratismo, e logo adiante o cinismo. A dissertação apenas propunha um método

para o estudo do pensamento do filósofo, a saber, procurar nos diálogos as alusões obscuras e

averiguar se tal ou tal passagem diria respeito a ele. Do que se passava, então, para o estudo

da polêmica; por exemplo, a polêmica sobre a hipótese das idéias. Desde então, o método vem

sendo usado, levando, no entanto, a acirradas discussões sobre a pertinência ou não da

atribuição de uma passagem de algum diálogo de Platão a Antístenes. Com isso, o estudo de

Antístenes se enriqueceu, mas a sua posição em termos de doutrina continua constituindo um

problema. Em que medida os traços da formação sofística que permaneceram na produção de

20
Essa dissertação provocou no final do século XIX uma acirrada polêmica antiplatônica, tendo Antístenes como
a figura central. Seus defensores chegavam a julgar que todas as obras de Platão e Xenofonte seriam respostas ou
imitações que tinham Antístenes como objeto. Essas acusações, no entanto, não eram novas, pois, desde o início
da história das polêmicas antiplatônicas, a partir do tempo em que o próprio Platão vivia, este era acusado de
plagiar Antístenes, como comentaremos ao tratar do assunto de forma específica.
26

Antístenes e, através dele, passaram para o cinismo, podem levar a que se pense que há

realmente nele, devido a tal formação, a prática de uma filosofia concorrente à de Platão e

Aristóteles?

Vamos tentar agora colocar o problema: nossa tese é uma proposta de

solução da questão do papel de Antístenes nas discussões acirradas com Platão e mais tarde

como alvo das refutações de Aristóteles, particularmente, nos casos da contradição e da

natureza da retórica; papel que poderia se revelar marcadamente como o representado por um

sofista.

Em lugar de tomar como ponto de partida para a exposição do problema o

foco no aspecto genealógico, de que Antístenes seria um elo, de Sócrates aos estóicos, já

esboçado suficientemente para nosso fim na Introdução, optamos pela estratégia de partir,

através dos escritos que restaram, dos traços do que se supõe tenha sido o pensamento do

filósofo. Procuremos, então, listar as preocupações fundamentais que encontramos na sua

filosofia.21

1) As questões do uso correto (dos nomes, das imagens, do vinho...).

2) As questões da possibilidade de um ensino da virtude.

3) As questões políticas (a oposição entre lei e natureza, o exercício do

poder pelo rei).

4) As questões da natureza da realidade.

5) As questões lógicas (a propriedade e a oportunidade da linguagem).

21
V. Anexo A – Catálogo Laerciano.
27

Acreditamos que assim conseguimos resumir o quadro das preocupações

fundamentais da filosofia de Antístenes. No entanto, é exatamente esse quadro que constitui o

problema que se nos depara. Este, na verdade, não é um panorama dos problemas que são

temas da reflexão filosófica de Antístenes apenas. Ele reflete, antes, um pano de fundo

cultural de todo o pensamento grego na época em que floresceu, e mais, do pensamento dos

sofistas tardios, dos discípulos socráticos ou dos primeiros cínicos. Eles constituem os

problemas levantados pela sofística mais antiga. E que ainda estavam vigendo em sua época.

Colocados esses problemas pelo movimento sofista, cada um a sua maneira, ou se limitou (e

que limites extraordinários esses!) a expô-los ou propôs soluções para essas questões. Do

outro lado do espectro se colocou em aporia Platão, refugiando-se numa realidade

(república?) ideal. Mas para dar conta do mundo que produz tais questões, a duplicação da

realidade proposta por ele acarretou novas dificuldades, entre outras, a que nos interessa

pertinentemente, como comunicar uma idéia com a outra, para dar conta da diversidade do

mundo sensível. Em Sofista vemos o Sócrates platônico às voltas com a ciência dialética, que

permite reconhecer a participação das idéias entre si, o que, por sua parte, exigiria que cada

idéia fosse objeto de uma definição. Essa realidade ideal e essa dialética da participação vão

levar Aristóteles, reconhecidamente por ele mesmo, a sentir a necessidade de uma

sistematização rigorosa da definição para poder abandonar tal realidade ideal. É por demais

sabido que as filosofias de Platão e de Aristóteles, aparentemente, são uma ofensiva

impiedosa22 contra os efeitos da sofística. Os cínicos, por sua parte, se mantiveram na tradição

sofista e, se tomam as questões para si, suas posições intelectuais são poucos conhecidas. O

que ficou praticamente foi a atitude, se colocando em termos práticos num comportamento à

margem das questões, solucionando os problemas por ostentação de sua oposição, através do

22
Kerferd diz que Platão hostilizou os sofistas de forma quase arrasadora, produzindo como resultado um
paradoxo, o descrédito de pensadores que participaram, entre os anos de 450 a 400 a.C., do grande período de
mudanças sociais e políticas, e de intensa atividade intelectual e artística, que viria a ser a maior época, em todos
os aspectos, vivida por Atenas.
28

desprezo às convenções lógicas, políticas e pedagógicas de uma sociedade que os sofistas

procuravam reformar, ou pelo menos propor reformas, a partir do conhecimento do homem.

A questão, portanto, que se coloca com Antístenes é se ele assumiu a posição aporética de

Sócrates (o Sócrates platônico?), se constituindo assim num socrático menor; se ele se

restringiu a emular a força de Sócrates, para se tornar uns homens virtuosos, voltados para a

pobreza, o ascetismo, o vigor físico e a integridade moral, que o credenciou à fundador da

escola cínica; ou se manteve-se fiel ao questionamento intelectual dos sofistas, como reflete o

quadro que apresentamos de interesses de sua investigação filosófica, um Antístenes “sofista”

em busca de uma sociedade que tivesse o ensino da virtude como seu fundamento: uma moral

que buscava o equilíbrio entre prazer e esforço por meio da investigação da linguagem.

Antes de apresentar nossos argumentos para a adesão à posição de

Antístenes de fidelidade ao pensamento sofista, queremos fazer algumas considerações.

É inegável que Antístenes atacou os sofistas e, particularmente, Górgias, seu

primeiro mestre, como lemos no fragmento: “ao contrário, Arquelau (se ocupa da calúnia) ao

retor Górgias”.23 No seu tratado fisiognomônico, Sobre os sofistas, ele disse: “e pois aquelas

(as varejistas) engordam os bacorinhos à força”24. Não temos o contexto para reconhecer o

tipo de ataque que está sendo feito aos sofistas, porém, é patente a chave satírica para analisar

o sofista do ponto de vista fisiognomônico. Há um duplo sentido na venda que é feita pelas

varejistas. Em Diógenes Laércio temos a anedota do jovem que disse que pagaria a Antístenes

(talvez por suas lições) quando chegasse o barco pesqueiro e este o levou a uma vendedora de

farinha, com um saco vazio, pediu que ela o enchesse, após o que tomou o saco e saiu, a

mulher o chamou cobrando, e Antístenes respondeu: “Este jovem aqui vai pagar quando

23
Heródico ap. Aten. V, 220 D. AF 42. o( d’ ’Arxe/laoj Gorgi/ou tou= r(h/toroj (diabolh\n perie/xei).
24
Aten. XIV, 657 F. AF 16. kai\ ga\r e)keinai (ai( kaphli/dej) ta\ delfa/kia pro\j bian xorta/zousin.
29

chegar o barco pesqueiro”.25 Com certeza está na pauta a questão da cobrança dos sofistas por

suas lições de virtude. Poderíamos especular assim, que era esta a mercadoria vendida pelos

sofistas, e que não era aceito que fosse possível ensinar a virtude, o que constitui o tema do

diálogo Protágoras. No entanto, mesmo com os problemas da doxografia, pode-se ver que o

sentido da crítica era o mesmo de Platão, em Sofista: o fato de que os sofistas cobravam para

ensinar a virtude aos jovens ricos que podiam pagar.

Na verdade é exatamente de varejista que Platão26 chama um dos aspectos, o

terceiro, da prática dos sofistas, como se pode ver na seguinte relação:

1) Caçador interesseiro de jovens ricos.27

2) Negociante atacadista das ciências relativas à alma.28

3) Varejista.29

4) Produtor e vendedor dessa ciência.30

5) Atleta em discursos, reservando, para si, a arte erística.31

6) Purificador das opiniões que são obstáculo na alma para a ciência.32

No entanto, como se pode notar, no sexto aspecto, a ambigüidade se instala.

Apesar de ser um erístico mercenário, o sofista é o que purifica a alma das opiniões que são

entraves à ciência. O que podemos então pensar do ataque de Antístenes? Que o problema dos

sofistas era a questão comercial? Mas nesse ponto, Antístenes estaria incorrendo no mesmo

caso, pois é dito que ele próprio cobrava dos alunos que freqüentavam o Cinosargo. Sabemos

25
AF 190 o( neani/skoj dw/sei e)a\n to\ ploi=on au)tou= tw=n tari/xwn a)fi/khtai (DL VI, 9).
26
Sofista, 231 d-e.
27
plousi/wn e/)mmisqoj qhreuth/j
28
e)/mporo/j tij peri\ ta\ th=j yuxh=j maqh/mata
29
ka/phloj
30
au)topw/lhj peri\ ta\ maqh/mata
31
peri\ lo/gouj a)qlhth/j, th\n e)ristikh\n te/xnhn a)fwfisme/noj
32
docw=n e)mpodi/wn maqh/masin peri\ yuxh\n kaqarth\n au)to\n ei)=nai
30

que no próprio diálogo Sofista33, Sócrates vai considerar que é digno de acusação aquele

sofista que imita por opinião e não por ciência. Desta forma, pelo menos, esse ataque de

Antístenes contra os sofistas parece ser aquele que correspondia à má vontade de muitos

cidadãos que ficavam inquietos com esses mercadores de virtude. Pensavam que sabedoria e

virtude não constituíam uma mercadoria, a amizade e a gratidão poderiam ser a recompensa

suficiente. Porém, a coisa parece mais complexa, talvez não fosse tanto o fato de cobrar, mas

os problemas que vender tal mercadoria acarreta:

1) Quem compra pode querer ouvir do mestre aquilo que mais o agrade,

mas não era esse o caso, porque no diálogo Protágoras, o jovem Hipócrates tenta recorrer a

Sócrates para persuadir o grande sofista a aceitá-lo. E como vimos, na Introdução, o próprio

Antístenes relutava a receber qualquer aluno, e segundo Diógenes Laércio, eram poucos os

que conseguiam permanecer com ele.

2) É mais plausível que o problema fosse uma questão de acesso ao

conhecimento, dando oportunidade de assumir negócios de estado e poder, através da

capacidade retórica; o que poderia ser obtido por quem pudesse pagar.

3) Considerar a virtude uma posse e não uma arte.

Vamos dizer que a profissionalização da cultura foi um fenômeno típico do

Séc. V; na expressão de Platão, vender “o que é da alma”: a música, a pintura, o ilusionismo,

a poesia, a medicina.34 Quanto a Górgias em particular, tampouco o ataque de Antístenes foge

ao teor comum que era a acusação contra os retores de que usavam a retórica com malícia.

Considerados estes pontos que marcaram historialmente a difícil relação

entre a sofística e a filosofia ortodoxa, devemos procurar aqueles pontos em que o

33
268 a.
34
Sofista, 224 a.
31

pensamento de Antístenes se vincula firmemente à sua formação juvenil. O problema então

passa a ser a relação que Antístenes estabelece entre o ensino da virtude e a linguagem.

Indiscutivelmente a ética, que é o fim explícito de sua filosofia, tem fundamento sofístico,

mas ele guardou a concepção que prevalecia entre os gregos, que a sofística, através de suas

investigações sobre a linguagem, parecia ameaçar a idéia de que as ações devem acompanhar

as palavras, assim como estas devem acompanhar aquelas. Dherbey35 cita Tucídides36, que

coloca na boca de Péricles esta frase: “Há poucos desses entre os gregos, cujos discursos

aparecem em justo equilíbrio com os atos”. O discurso sofista é visto pela cultura grega,

naquele momento, como resultado de uma ambigüidade moral. A investigação da linguagem

empreendida pelos sofistas trouxe à luz a natureza dela que permite que se façam discursos

para dizer que a mesma coisa é boa e má, bela e feia. Para o grego da época, que unia

fortemente linguagem e ação, ver a linguagem de tal forma não passava de uma reversão de

valores, tanto dos fatos como das palavras. Aristóteles, quando retoma a refutação do

princípio de contradição em K37, vai apresentar o discurso antitético (antikeímenoi lógoi) de

Protágoras como um exemplo de impossibilidade de contradição, já que para alguns, segundo

este, a mesma coisa pode ser e não ser bela, boa. Antístenes, como disse logo acima, retoma a

tradição grega, testemunhada por Tucídedes, de rigor na linguagem e na ação; segundo

Festugière, é uma atitude que parte de uma consideração metafísica e vai levar Antístenes a

defender o paradoxo de que a contradição é impossível. Ele assim o faz como uma retomada

da ontologia que é de Parmênides, segundo este autor.

Diógenes Laércio38 atribui o paradoxo, no entanto, a Protágoras, enquanto

que um autor alexandrino, Dídimo, o Cego, diz ser de autoria de Pródico:

35
Prefácio à tradução francesa de I Sofisti, de Untersteiner, p. III (1993).
36
Guerra do Peloponeso, II, 41, 2.
37
K 6 1062 b 12 ss.
38
DL X 53.
32

Uma afirmação paradoxal de Pródico nos é transmitida no sentido de que não é


possível contradizer (ouk éstin antilégein)... isso é contrário à idéia e à opinião de
todos os homens. Pois todos os homens contradizem tanto nas suas transações
cotidianas como em questões de pensamento. Mas ele diz dogmaticamente que não é
possível contradizer. Pois, se duas pessoas se contradizem, ambas falam. Mas é
impossível que ambas estejam falando com referência à mesma coisa. Pois ele diz
que só a que está dizendo a verdade e que proclama as coisas tais como são
realmente é que está falando delas. A outra, que está se opondo a ela, não fala a
verdade. 39

As atribuições deixam de ser irrelevantes, pois o terreno em que pisamos é

de conjeturas, quando voltamos nossa atenção para o fato de que os filósofos citados são

todos ligados à sofística. Aristóteles, por isso, defendeu o princípio de não-contradição,

dizendo que os sofistas falam simplesmente por falar, pelo prazer de falar (lógou khárin).

Aqui, pensamos, é preciso enfatizar que presos a uma concepção ontológica que viabiliza a

discursividade, a sofística, por outro lado, reconhece que por essa razão a linguagem, ela

mesma, tem uma entidade própria, que permite ao discurso, através do uso variado dos

nomes, “a produção dos atos mais divinos.”40

Procuraremos mostrar como Antístenes se coloca frente aos desafios que a

sociedade de seu tempo apresentou, em que se uniu a crise moral de uma época de

transformações (a introdução da democracia) à crise lingüística com a subversão da

linguagem, própria para a irrupção da retórica. As palavras, no dizer de Górgias, não só

provocam o prazer e afastam a dor, mas penetram a opinião da alma e a persuadem.41 Instala-

39
Dídimo, o Cego, comentador bizantino, viveu nos últimos anos do século IV d.C.. Com. in
Eccl. 16.11-7. par[a/doc]o/j tij gnw¯mh fe/retai Prodi¿kou oÀti "ou)k eÃstin [a)n]tile/gein". [pw½j] …
le/gei tou=to; para\ th\[n gn]w¯mhn kaiì th\n do/can tw½n pa/ntwn e)sti¿n: pa/ntej ga\r di[ale/]…gontai
a)ntile/gousi[n k]aiì e)n toiÍj biwtikoiÍj kaiì e)n toiÍj fronoume/noij. dogmatikw½j [le/gei] … e)keiÍnoj
oÀti "ou)k eÃstin a)[nti]le/-gein". ei¹ ga\r a)ntile/gousin, a)mfo/teroi le/gousin: a)du/naton [de/] … e)stin
a)mfote/rouj [le/gei]n? ei¹j to\ au)to\ pra=gma. le/gei ga\r oÀti mo/noj o( a)lhqeu/wn kaiì w¨j eÃx?[ei ta\] …
pra/gmata a)gge/llwn au)ta\? ouÂtoj le/gei. o( de\ e)na[n]tiou/menoj au)t%½ ou) le/gei to\ pra=gma ou)k
a?!!!!!!![P]
40
Górgias, Elogio de Helena. DK 82 B 11, 8. qeio/tata eÃrga a)poteleiÍ:
41
Idem. DK 82 B 11, 10.
33

se assim, o discurso da nova época. Talvez não seja sem razão que o único escrito restante de

Antístenes, cuja autenticidade é pouquíssimo negada, seja uma peça de retórica: as

declamações de Ájax e Odisseu a propósito da disputa das armas de Aquiles. Nelas se opõem

as ações e as palavras. Ações que levaram Ájax ao suicídio, e palavras que reconduziram

Odisseu ao leito de Penélope.


PARTE 1 – AS NOVAS PERGUNTAS

1.1 A FORMAÇÃO DE ANTÍSTENES


1.1.1 A tradição sofista

Protágoras teria sido o introdutor de um método de ensino em que eram

feitas perguntas (erōtē¯seis) a um interlocutor com o objetivo de obter deste uma resposta

(apókrisis) conclusiva.

Sócrates, nas suas fantasiosas etimologias expostas no Crátilo, de Platão,

aproxima a raiz da palavra grega que significa “pergunta” (erō¯tēsis) não só ao herói (hē¯rōs)

como ao amor (érōs):

Todos [os heróis] nasceram ou do amor de um deus a uma mulher mortal, ou do de


uma deusa a um homem. Para te convenceres disso, basta considerares a expressão
na antiga linguagem da Ática; aí verificarás que de Eros provêm os heróis, com
apenas uma pequena troca do nome. Ou Herói quer dizer isso mesmo, ou está a
indicar que seus possuidores eram sábios e também hábeis retores e dialéticos,
sempre dispostos a formular perguntas, pois falar em ordem é falar. Por conseguinte,
como acabamos de dizer, na linguagem da Ática os heróis se nos apresentam como
retores e formuladores de perguntas, de forma que todo o gênero de heróis nada mais
é do que o gênero dos sofistas.42

Neste ponto do trabalho, podemos apenas dizer que a forma cômica como

Sócrates trata essa aproximação do método de perguntas e respostas ao amor (principalmente

42
398 d-e Pa/ntej dh/pou gego/nasin e)rasqe/ntoj hÄ qeou= qnhth=j hÄ qnhtou= qea=j. e)a\n ouÅn skopv=j
kaiì tou=to kata\ th\n ¹Attikh\n th\n palaia\n fwnh/n, ma=llon eiãsv: dhlw¯sei ga/r soi oÀti para\ to\
tou= eÃrwtoj oÃnoma, oÀqen gego/nasin oi¸ hÀrwej, smikro\n parhgme/non e)stiìn (o)no/matoj) xa/rin. kaiì
hÃtoi tou=to le/gei tou\j hÀrwaj, hÄ oÀti sofoiì hÅsan kaiì r(h/torej [kaiì] deinoiì kaiì dialektikoi¿,
e)rwta=n i¸kanoiì oÃntej: to\ ga\r "eiãrein" le/gein e)sti¿n. oÀper ouÅn aÃrti le/gomen, e)n tv= ¹Attikv= fwnv=
lego/menoi oi¸ hÀrwej r(h/tore/j tinej kaiì e)rwthtikoiì sumbai¿nousin, wÐste r(hto/rwn kaiì sofistw½n
ge/noj gi¿gnetai to\ h(rwiko\n fu=lon.
35

o amor como troca, através do uso do termo kháris) referir-se-ia não só ao interesse de

Antístenes pela investigação dos nomes, mas ainda à retórica heróica, e, por conseguinte, a

uma posição sofista caracterizada por Aristóteles43 como o prazer de falar.

Nesta passagem do Protágoras, de Platão, se vê bem no confronto entre

Sócrates e o famoso sofista que perguntar e responder era um jogo de decisão, em que se

buscava apaixonadamente marcar o ponto final.

Sócrates – Agora, Protágoras, para ter tudo, só me falta uma partezinha de nada, no
caso de te dispores a responder-me. Dizes que a virtude pode ser ensinada; se há
quem esteja em condições de convencer-me disso és tu. O que me deixou perplexo
enquanto falavas, completa em minha alma esse pouquinho que ainda falta. Disseste
que Zeus enviou aos homens o direito e o respeito; por outro lado, em muitas
passagens de tua fala fizeste referência ao direito, à temperança, à piedade, como se
tudo isso, em conjunto, não fosse senão uma única coisa: virtude. Explica-me isso
agora com mais particularidades, se a virtude é, de fato, algo completo, vindo a ser
partes dela o direito, a temperança e a piedade, ou se todas essas qualidades, como
disse há pouco, são apenas nomes diferentes de uma única coisa .É só isso que
desejo saber.
Protágoras – É muito fácil responder, Sócrates. A virtude é um todo, e aquelas
perguntadas são partes.44

A atribuição da introdução do método de perguntas e respostas a Protágoras

é muito discutida. Pois, como é sabido, tal método é a base do que conhecemos como a

tradição socrática em educação. E a própria situação dramática deste diálogo levaria a se

43
G 5 1009 a 21.
44
329 b-d. nu=n ouÅn, wÕ Prwtago/ra, smikrou= tinoj e)ndeh/j ei¹mi pa/nt' eÃxein, eiã moi a)pokri¿naio
to/de. th\n a)reth\n fv\j didakto\n eiånai, kaiì e)gwÜ eiãper aÃll% t% a)nqrw¯pwn peiqoi¿mhn aÃn, kaiì
soiì pei¿qo-mai: oÁ d' e)qau/masa/ sou le/gontoj, tou=to/ moi e)n tv= yuxv= a)poplh/rwson. eÃlegej ga\r
oÀti o( Zeu\j th\n dikaiosu/nhn kaiì th\n ai¹dw½ pe/myeie toiÍj a)nqrw¯poij, kaiì auÅ pollaxou= e)n toiÍj
lo/goij e)le/geto u(po\ sou= h( dikaiosu/nh kaiì swfrosu/nh kaiì o(sio/thj kaiì pa/nta tau=ta w¨j eÀn ti
eiãh sullh/bdhn, a)reth/: tau=t' ouÅn au)ta\ di¿elqe/ moi a)kribw½j t%½ lo/g%, po/teron eÁn me/n ti¿ e)stin
h( a)reth/, mo/ria de\ au)th=j e)stin h( dikaiosu/nh kaiì swfrosu/nh kaiì o(sio/thj, hÄ tau=t' e)stiìn aÁ
nundh\ e)gwÜ eÃlegon pa/nta o)no/mata tou= au)tou= e(no\j oÃntoj. tou=t' e)stiìn oÁ eÃti e)pipoqw½. ¹Alla\
r(#/dion tou=to/ g', eÃfh, wÕ Sw¯kratej, a)pokri¿nasqai, oÀti e(no\j oÃntoj th=j a)reth=j mo/ria/ e)stin aÁ
e)rwt#=j. Note-se este aspecto da elocução de Protágoras, que, para não repetir a lista das virtudes, as indica
através de uma forma do verbo grego e)rwta/w (perguntar), e)rwt#=j (perguntadas). Pode causar estranheza a
construção usada na tradução. Recorremos a isso para ressaltar que há consenso entre Protágoras e Sócrates, que
estão seguindo o método de perguntas e respostas, o que eles dizem explicitamente no correr do diálogo.
Observemos, ainda, que alguns dos temas centrais da discussão sofista estão presentes: se a virtude pode ser
ensinada, a questão da unidade das virtudes.
36

decidir que de fato devemos a Sócrates tal procedimento; em determinado ponto45, Sócrates,

que está relatando o encontro famoso entre ele e Protágoras, diz que este mal disfarçava a

irritação com a insistência das perguntas dele. Mas não só a situação dramática aponta para

isso. O método de perguntas e respostas era freqüentemente associado à habilidade de falar de

maneira breve (brakhilogía). Neste diálogo Sócrates, como se quisesse conduzir Protágoras a

se moldar ao método, diz a ele:

...quando te resolveres a conversar por maneira que possa acompanhar-te, estarei à


tua disposição, visto seres capaz, conforme corre por aí a teu respeito e tu próprio o
confirmas, de conduzir bem a discussão, tanto em períodos longos como com frases
concisas; por isso mesmo és sábio. Eu, quanto a mim, sou absolutamente inepto para
discursos desse tamanho. Quem me dera não ser assim! A ti, que és capaz das duas
coisas, é que competiria acomodar-te ao meu jeito, para que a conversação pudesse
prosseguir.46

Platão, em Sofista, vai dizer que tal método é uma marca da antilógica

sofística, o que é usado como a quinta definição do sofista. “Nas discussões individuais, os

argumentos se fragmentam em perguntas em vista de respostas e que outro nome podemos dar

comumente além de antilógica?”47. A tradição é lembrada por Laércio, segundo a qual

Protágoras foi o primeiro a desenvolver tal método de argumentação.

O primeiro que disse que em todas as coisas há duas razões contrárias entre si, das
quais se servia em suas perguntas, sendo o primeiro a praticá-lo... inventou os
debates de argumentos; e introduziu os sofismas, para os que gostam de tais coisas
nos argumentos... Foi ele quem, deixando o significado das coisas, induziu as
disputas de nomes; deixando-nos o gênero erístico, que ainda dura. Também foi o
primeiro que pôs em prática a forma socrática de falar; e o primeiro que usou do

45
Protágoras, 333 e.
46
Idem, 335 b-c. e)peida\n su\ bou/lv diale/gesqai w¨j e)gwÜ du/namai eÀpesqai, to/te soi diale/comai.
su\ me\n ga/r, w¨j le/getai periì sou=, fv\j de\ kaiì au)to/j, kaiì e)n makrologi¿# kaiì e)n braxulogi¿#
oiâo/j t' eiå sunousi¿aj poieiÍsqai (sofo\j ga\r eiå) e)gwÜ de\ ta\ makra\ tau=ta a)du/natoj, e)peiì
e)boulo/mhn aÄn oiâo/j t' eiånai. a)lla\ se\ e)xrh=n h(miÍn sugxwreiÍn to\n a)mfo/tera duna/menon, iàna h(
sunousi¿a e)gi¿gneto:
47
Sofista, 225 b. To\ d ¡ e/n i)di/oij au)= kai\ katakekermatisme/non e)rwth/sesi pro\j a)pokri/seij mw=n
ei)qi/smeqa kalei=n a)/lla plh\n a)ntilogiko/n;
37

argumento de Antístenes, com o qual pretende demonstrar que não se pode


contradizer, como disse Platão em seu Eutidemo. 48

Por mais que, no Protágoras, Platão dê a entender, pelo comportamento de

Sócrates, ser este o introdutor do método, o próprio Sócrates diz, como já vimos, que

Protágoras é sábio porque sabe usar o discurso longo e o método de perguntas e respostas

breves. O problema da atribuição é difícil, mas não parece haver dúvida que o método se

originou como uma exigência do próprio movimento sofista, de que, como vemos na

definição do imitador irônico dada pelo Estrangeiro de Eléia no final de Sofista, Sócrates não

podia nem ele mesmo se desvencilhar.

O método, pelo que dissemos, poderia ser assim caracterizado.

1) Era o aplicado nas reuniões informais em que se alternavam perguntas e

respostas breves.

2) Não era adequado para as reuniões públicas, em que seria reconhecida

mais a eficácia dos argumentos longos.

3) Não havia apenas uma preocupação com tema ou conteúdo, mas também

com um rigor formal de exposição.

Nas reuniões públicas a preferência era dada à extensão(mē½kos) dos

argumentos (como se lê em Sofista: “um argumento longo”49). Esse argumento longo

constituía uma declamação pública (epídeixis), durante as quais se falava de qualquer assunto

48
DL IX 51. Kaiì prw½toj eÃfh (DK 80 B 6a) du/o lo/gouj eiånai periì panto\j pra/gmatoj
a)ntikeime/nouj a)llh/loij: oiâj kaiì sunhrw¯ta, prw½toj tou=to pra/caj... 52. kaiì lo/gwn a)gw½naj
e)poih/sato kaiì sofi¿smata toiÍj pragmatologou=si prosh/gage: kaiì th\n dia/noian a)feiìj pro\j
touÃnoma diele/xqh kaiì to\ nu=n e)pipo/laion ge/noj tw½n e)ristikw½n e)ge/nnhsen... 53. ouÂtoj kaiì to\
Swkratiko\n eiådoj tw½n lo/gwn prw½toj e)ki¿nhse. kaiì to\n ¹Antisqe/nouj lo/gon to\n peirw¯menon
a)podeiknu/ein w¨j ou)k eÃstin a)ntile/gein ouÂtoj prw½toj diei¿lektai, kaqa/ fhsi Pla/twn e)n
Eu)qudh/m% (286 c).
49
Sofista, 225 b. mh/kh lo/gwn
38

ou se respondia a perguntas que fossem feitas na hora. Os sofistas as apresentavam com

grande sucesso nos estádios, teatros, prédios ou praças públicas. Essas declamações eram

únicas e se transformavam em “debates de argumentos” (lógōn agō½nes), conforme a

expressão usada por Laércio na citação acima. O efeito sobre os auditórios era imprevisível e

inconcludente. Segundo Platão, no Protágoras, este se orgulhava de sua preeminência:

Já travei luta de palavras com muitos homens; mas, se tivesse feito o que ora pedes,
para eu usar a dialética como meus contraditores pedem, jamais teria levado a
melhor, nem teria o nome de Protágoras brilho entre os gregos.50

Está introduzida então a diferença: a erística, segundo Laércio na citação

anterior, seria um disputa de nomes; já, segundo Platão, a antilógica não pode ser identificada

com a dialética. Há na antilógica algo que permite ao interlocutor que bem a usa levar a

melhor. Esta fala de Protágoras faz nascer ainda a dúvida se essa conversa então não seria a

busca da verdade, mas uma disputa pela vitória, outra caracterização da erística. No entanto,

não parece que a atividade dos sofistas se limitasse a essas apresentações espetaculares com

vistas ao sucesso, tanto no domínio público como no privado. Se ficarmos atentos ao caráter

doméstico do comportamento dos personagens do diálogo Protágoras, vamos notar que a

agitação de Hipócrates, com a esperança de ser aluno do sofista célebre, seria um sintoma de

que havia uma natureza didática na prática. O método de perguntas e respostas visaria

investigar a verdade e chegar ao conhecimento. E então, seria no interior da casa dos pais de

jovens ricos (no diálogo de Platão, a casa de Cálias) que se estabeleciam os contatos entre

mestre e discípulo; aí os jovens se estimulavam intelectualmente no convívio uns com os

outros. É bastante provável que os exercícios se voltassem para as práticas discursivas e os

alunos fossem preparados para o melhor desempenho na pólis, fosse usando a dialética, a

50
Protágoras, 335 a. e)gwÜ polloiÍj hÃdh ei¹j a)gw½na lo/gwn a)fiko/mhn a)nqrw¯poij, kaiì ei¹ tou=to
e)poi¿oun oÁ su\ keleu/eij, w¨j o( a)ntile/gwn e)ke/leue/n me diale/gesqai, ouÀtw dielego/mhn, ou)deno\j
aÄn belti¿wn e)faino/mhn ou)d' aÄn e)ge/neto Prwtago/rou oÃnoma e)n toiÍj àEllhsin.
39

antilógica ou a erística. Sobre que vamos discorrer mais adiante. Primeiro vamos tratar de um

aspecto da terceira alínea do quadro que esquematiza o método de perguntas e respostas

acima, os temas e conteúdos das lições dos sofistas; são estes temas e conteúdos que estamos

chamando as novas perguntas.

Novas perguntas realmente estavam sendo feitas no V° século antes de

Cristo em Atenas. Essas perguntas se alastravam tanto na política, como na educação, como

nas ciências e nas artes. Essa foi uma época de grandes mudanças sociais e políticas, pois

Atenas havia se transformado de uma cidade-estado em centro de um império que produzia

riquezas imensas na agricultura, na indústria e no comércio. Isso produziu uma afluência

muito grande e a necessidade de uma nova administração. Dois sistemas deveriam ser

mudados, o sistema educacional, para que os filhos dos novos ricos tivessem acesso ao

conhecimento, e o sistema político, uma forma de governo a que esses afluentes tivessem

acesso. Por outro lado, a ciência física precisava se desenvolver para que a produção de

riqueza aumentasse. O que vai produzir uma tensão enorme entre as classes que até então

dominavam e aqueles que estavam ansiosos por ascensão social. São os sofistas que vão

atender a todas essas demandas. São eles que serão chamados para educar os jovens ricos, são

eles que vão prepará-los para as atividades públicas, são eles que vão introduzir as novas

descobertas científicas51. Como o embate entre essas forças renovadoras e as forças

conservadoras seria travado não só no âmbito público, mas também dentro das casas (não se

pode esquecer a relação, não só etimológica, que a economia tem com a administração

doméstica), o papel do sofista se estendia abrangendo todos os ramos da atividade humana.

Daí, a ênfase no estudo do homem. “O homem é a medida de todas as coisas, na verdade dos

51
Na SUDA, Pródico é apresentado como físico e sofista. Foi contemporâneo de Demócrito e de Górgias e aluno
de Protágoras. É possível que tenha sido condenado a tomar cicuta por corrupção de jovens.
40

entes como o que é, e mesmo dos não-entes como o que não é”.52 Assim o homem é tornado o

centro do universo, tanto do cheio como do vazio, o personagem trágico do destino, e toda a

sua educação será voltada para ele mesmo: as questões da linguagem, a sua relação com a

convenção e a natureza, a sua posição quanto aos deuses. Em política, para vencer nos debates

torna-se necessária a arte da retórica, não basta falar de alguma coisa, mas é necessário falar

para ou com alguém. Se o novo homem de Atenas não soubesse falar assim entendido,

facilmente seria condenado no tribunal. Tudo isso é bastante sabido, quando se fala da

educação sofística. Há, porém, a questão do ensino das matemáticas e das ciências físicas que

tiveram uma parte relevante na formação do pensamento sofístico. No diálogo de Platão,

Protágoras apresenta a Hipócrates o seu plano de estudos da seguinte forma:

Na minha companhia, Hipócrates não terá de suportar as maçadas a que ficaria


sujeito se viesse a freqüentar outro sofista. Os demais sofistas abusam dos jovens;
quando estes já se julgam livres do estudo das artes, a seu mau grado os sofistas os
reconduzem para elas, ensinando-lhes cálculo, astronomia, geometria e música –
assim falando, lançou um olhar para Hípias – vindo ele, porém, estudar comigo, não
se ocupará senão com o que se propuser a estudar, quando resolveu procurar-me.
Essa disciplina é a prudência nas suas relações familiares, que o porá em condições
de administrar do melhor modo sua própria casa e, nos negócios da cidade, o deixará
mais do que apto para dirigi-los e para discorrer sobre eles.”53
O que Protágoras pretende é colocar o ensino da virtude acima do estudo

das ciências matemáticas (cálculo, astronomia, geometria e música). Essa é uma questão que

nos parece não receber a atenção merecida, a relação dos estudos humanísticos e os estudos

científicos e técnicos na educação sofística. Xenofonte reconhece que os jovens procuravam

Sócrates para “tornarem-se hábeis no falar e no agir”.54 Por outro lado, Hípias seria um sofista

52
Teeteto, 152 a. pa/ntwn xrhma/twn me/tron aÃnqrwpon eiånai, tw½n me\n oÃntwn w¨j eÃsti, tw½n de\ mh\
oÃntwn w¨j ou)k eÃstin (DK 80 B 1). Sext. Emp., Adv. math., VII, 60.
53
Protágoras, 318 d-319 a. ¸Ippokra/thj ga\r par' e)me\ a)fikomenoj ou) pei¿setai aÀper aÄn eÃpaqen
aÃll% t% suggeno/menoj tw½n sofistw½n. oi¸ me\n ga\r aÃlloi lwbw½ntai tou\j ne/ouj: ta\j ga\r
te/xnaj au)tou\j pefeugo/taj aÃkontaj pa/lin auÅ aÃgontej e)mba/llousin ei¹j te/xnaj, logismou/j
te kaiì a)stronomi¿an kaiì gewmetri¿an kaiì mousikh\n dida/skontej (kaiì aÀma ei¹j to\n ¸Ippi¿an
a)pe/bleyen) para\ d' e)me\ a)fiko/menoj maqh/setai ou) periì aÃllou tou hÄ periì ou hÀkei. to\ de\
ma/qhma/ e)stin eu)bouli¿a periì tw½n oi¹kei¿wn, oÀpwj aÄn aÃrista th\n au(tou= oi¹ki¿an dioikoiÍ, kaiì
periì tw½n th=j po/lewj, oÀpwj ta\ th=j po/lewj dunatw¯tatoj aÄn eiãh kaiì pra/ttein kaiì le/gein.
54
Memoráveis, 1 2 15. gene/sqai aÄn i¸kanwta/tw le/gein te kaiì pra/ttein.
41

interessado em geometria. Antifonte tentara resolver o problema da quadratura do círculo, que

preocupava o físico Anaxágoras, que tanto influenciou os sofistas, com a sua teoria de que em

tudo há parte de tudo. É possível que a palavra diámetros tenha sido de cunhagem sofista,

pois ela foi motivo de pilhéria para Aristófanes, em As rãs55. Como sabemos Aristófanes

criticou não só os estudos científicos de Sócrates, em As nuvens, mas aí também os “sofistas

de coisas celestes”, como Pródico56. Xenofonte57 atesta que o uso do termo kósmos, que

significa ordem, para designar o universo, era sofístico. É claro, por influência pitagórica. É

em Sofista que se encontra uma lista das matérias que seriam objeto do ensino dos sofistas

que não engloba somente o estudo da virtude política e pessoal. Os sofistas são primeiro

identificados como mestres que usam o método da antilógica: “Nós o chamamos o próprio

antilógico... não acontece que ele ensina aos outros esta mesma arte?”58 Então, como vimos

apresentando, o caráter do sofista é determinado pelo método. Porém, é claro que essa

linguagem tem um conteúdo. Isso é que reconhece Platão quando recapitula as definições do

sofista59, reconhecimento acompanhado de crítica, pois os sofistas se mostravam prontos a

discutir sobre qualquer assunto. A questão que está sendo colocada é importante, porque o

que está em jogo, como pano de fundo, são duas concepções de pólis: aquela proposta por

Platão, que divide a sociedade entre administradores, guardiões e artesãos, e a sugerida por

Protágoras, no diálogo homônimo60, a saber, que todos os cidadãos seriam dotados de direito e

respeito (dikaiosýne e aidō¯s), e portanto, estariam aptos a deliberar sobre a virtude política.

Há toda uma longa discussão, que não cabe no momento, sobre as implicações das idéias de

55
As rãs, 801.
56
As nuvens, 359-360.
57
Memoráveis, 1 1 11.
58
Sofista, 232 b. ’Antilogiko\n au)ton e)/famen ei)=nai/ pou... ou) kaiì tw½n aÃllwn au)tou= tou/tou
dida/skalon gi¿gnesqai;
59
Sofista, 232 b-d.
60
Protágoras, 320 b- 328d. “Mito e discurso de Protágoras”, como é conhecida a passagem.
42

Protágoras e as idéias expostas por Platão na República61; o que nos interessa é chamar a

atenção para a referência que faz Platão aos escritos de Protágoras na passagem de Sofista que

estamos comentando. Não era só, portanto, o método de perguntas e respostas que estava em

questão na antilógica sofística, mas também as questões relacionadas com a melhor forma de

conduzir a sociedade, que foram amplamente debatidas e influenciadas pelos argumentos

sofísticos. A pergunta que faz Platão é a seguinte: “se é possível ao homem saber tudo”.62 A

pergunta, que parece fazer eco à célebre frase de Protágoras, teria talvez como resposta do

próprio Protágoras a necessidade de o homem numa sociedade em que ele é chamado para

participar da sua condução ter todas as informações possíveis a respeito não só da política,

mas da teologia, da física, da ontologia, e sem dúvida nenhuma da indústria. Por tal razão, o

homem deveria “ser formado para discutir”63: sobre os deuses, tanto os que são obscuros para

muitos; quanto os que são visíveis, a terra, o céu e sobre suas constituições; a geração e a

essência; sobre as leis e a administração da cidade; e acerca do conjunto e sobre cada uma das

artes. 64

Estamos longe de ter qualquer certeza a respeito do tipo de administração da

cidade65 que os sofistas teriam proposto, talvez modelos cosmopolitas. O máximo que se

conhece é o que diz Aristóteles, na Política:

Enquanto aqueles que cuidam de um bom governo levam em consideração a virtude


e o vício nas cidades. Daí pode-se inferir além, que a virtude deve ser cuidado de
uma cidade que é chamada assim verdadeiramente, e não goza simplesmente do
nome, pois sem esse fim a comunidade se torna uma mera aliança que só difere em

61
Remeto ao capítulo “A Teoria da Sociedade”, do livro de Kerferd (2003), a que muito devemos neste capítulo.
Segundo a lista de Diógenes Laércio (DL IX, 55), Protágoras teria escrito uma obra com o título A República, e
já em fins do séc. IV a.C. corriam acusações de plágio por parte de Platão.
62
233 a. Ei) pa/nta e)pistasqai/ tina a)nqrw/pwn e)sti dunato/n
63
232 b. poiei=n a)ntilogikou/j
64
Sofista, 232 b- 233 a. peri\ tw=n qei/wn, o(/s’ a)fanh= toi=j polloi=j... o(/sa fanera/ gh=j kai\ ou)ranou=
kai\ tw=n peri\ ta\ toiau=ta... gene/sew/j te kai\ ou)siaj... peri\ no/mwn kai\ sumpa/ntwn tw=n
politikw=n... peri\ pasw=n kai\ kata\ mi/na e(kasten te/xnhn
65
República, 423 d. su/mpaj h( pólij
43

lugar das alianças em que os membros vivem à parte; e a lei é somente uma
convenção, ‘uma garantia de justiça para todos’, como diz o sofista Licofrão.66

Citando o sofista Licofrão, Aristóteles faz referência a uma cidade que

tivesse o incentivo à virtude e a condenação do vício como fundamentos, isso bastaria para

unir os cidadãos, que não necessitariam, por isso, de uma lei, que como convenção, só serviria

como “uma garantia de justiça para todos”. Parece que a questão seria mesmo a necessidade

dessa “garantia de justiça”, quando não é possível fazer todos os cidadãos perseguir a virtude

e fugir do vício. E isso é bastante evidente que era o problema da cidade, como demonstra a

obra de Platão, a República, que é uma discussão sobre que concepções de justiça

propiciariam a maior garantia. É sofista, portanto, a concepção da cidade voltada para a

virtude, já que o direito e o respeito, como disse Protágoras são as maiores dádivas de Zeus.

Não se sabe, entretanto, como os cidadãos regeriam suas relações, familiares, comerciais,

sociais, segundo os sofistas. Quais seriam suas obrigações nessas relações e qual seria sua

relação com a cidade. A concepção que os sofistas legaram que mais se aproxima de uma

proposta de modo de vida dentro da cidade é a de concórdia (homónoia). Tal concepção tem

uma trajetória histórica bastante majestosa. Sabe-se que a primeira manifestação conhecida a

respeito e desenvolvida extensamente está em Antifonte. Devia ser um tema bastante

discutido no momento (transição do V° para o IV° século a.C.) em que viviam intensamente

uma atividade pública Antifonte, Sócrates e Demócrito. Essa atividade deles era voltada para

um mesmo objetivo, responder à pergunta: como o homem pode vencer os limites de sua

ignorância a respeito do melhor e atingir uma vida harmoniosa, saudável e feliz, tanto como

66
III 9 1280b.5-12 periì d' a)reth=j kaiì kaki¿aj politikh=j diaskopou=sin oÀsoi fronti¿zousin
eu)nomi¿aj. v kaiì fanero\n oÀti deiÍ periì a)reth=j e)pimele\j eiånai tv= g' w¨j a)lhqw½j o)nomazome/nv
po/lei, mh\ lo/gou xa/rin. gi¿gnetai ga\r h( koinwni¿a summaxi¿a tw½n aÃllwn to/p% diafe/rousa
mo/non, tw½n aÃpwqen summaxiw½n, kaiì o( no/moj sunqh/kh kai¿, kaqa/per eÃfh Luko/frwn o(
sofisth/j, e)gguhth\j a)llh/loij tw½n dikai¿wn, a)ll' ou)x oiâoj poieiÍn a)gaqou\j kaiì dikai¿ouj tou\j
poli¿taj.
44

cidadão como indivíduo. Da vida de Sócrates muito se sabe, mas pouco se sabe sobre a vida

de Demócrito. Sobre Antifonte paira uma dúvida em relação a sua identidade, se é de uma ou

de duas pessoas a autoria dos escritos que nos chegaram atribuídos a um certo Antifonte. É o

mesmo ou não, o Antifonte de Ramnonte, membro da oligarquia conhecida como os

Quatrocentos67, e o Antifonte sofista, autor de Sobre a Verdade e Sobre a Concórdia? Seja

qual for a decisão que se tome, o importante é a preocupação com o ético e com o político que

este pensador compartilhava com seus contemporâneos, Sócrates e Demócrito. Sobre a

concórdia disse Antifonte:

A concórdia... se estende às cidades e às casas, as quais compreendem todas as


comunidades, tanto públicas como individuais; a todas as linhagens e a todos os
aparentados, tanto públicos como individuais; além disso ela inclui o acordo de cada
um consigo mesmo. Com efeito, quando um homem é governado por um único
sentimento e por um único pensamento, está de acordo consigo mesmo, porém,
quando se confronta consigo mesmo, oscila entre opiniões divergentes e seu
pensamento se desregra, sofre de um desacordo. E o que se mantém firme na mesma
disposição de espírito, enche-se de um sentimento de harmonia; e o que é
inconstante nas suas reflexões e arrastado ora por uma opinião, ora por outra, é
instável e seu próprio inimigo.68

De Demócrito conhecemos dois fragmentos sobre a concórdia, que

discutiremos logo adiante.

Mais tarde, através dos cínicos, veio a ser um ideal político muito

importante para os estóicos. Princípio fundador na teoria da monarquia helênica, a partir de

67
Devido a vários reveses na Guerra do Peloponeso, os cidadãos de Atenas acabaram por se insurgir, e em 411
a.C. um governo oligárquico conhecido como "O Conselho dos Quatrocentos" foi instaurado, complementado
nominalmente pela “Assembléia dos Cinco Mil”, que nunca foi convocada. Apesar disso a frota de Alcibíades,
então chamado de volta do exílio, continuou defendendo os ideais democráticos de Atenas. Com a revolta da
Eubéia os Quatrocentos acabaram por ser depostos.
68
Iambli., Ep. Peri\ o(monoi/aj. Estob. II, 33, 15 (DK 87 B 44 a) h( o(mo/noia... a)formhqeiÍsa dh\ ouÅn
e)nteu=qen e)piì po/leij kaiì oiãkouj koinou/j te sullo/gouj pa/ntaj kaiì i¹di¿ouj [oiãkouj], fu/seij te
kaiì suggenei¿aj pa/saj e)piporeu/etai koina/j te kaiì i¹di¿aj w¨sau/twj: eÃti de\ perie/xei kaiì th\n
e(no\j e(ka/stou pro\j e(auto\n o(mognwmosu/nhn: u(f' e(no\j me\n ga/r tij noh/matoj kaiì mia=j gnw¯mhj
kubernw¯menoj o(monoeiÍ pro\j e(auto/n, dixognwmonw½n de\ pro\j e(auto\n kaiì a)no/moia logizo/menoj
diastasia/zei: kaiì o( me\n e)piì th=j a)eiì au)th=j e)pime/nwn dianoh/sewj o(mofrosu/nhj e)stiì plh/rhj:
o( de\ aÃstatoj toiÍj logismoiÍj kaiì aÃllote u(p' aÃllhj do/chj fero/menoj a)sta/qmhto/j e)sti kaiì
pole/mioj pro\j e(auto/n.
45

Alexandre Magno; em Roma é que homónoia foi assimilada à concórdia. O termo está num

discurso de Sócrates nos Memoráveis de Xenofonte: “mas a concórdia na verdade é o maior

dos bens”69, quando ela está presente na Cidade as leis são obedecidas. No entanto, parece que

Sócrates, segundo Xenofonte, não diz o mesmo que Licofrão, para quem as leis seriam uma

necessidade por os homens não se unirem em torno da virtude e rejeitarem o vício. Parece-nos

de acordo com Licofrão a concepção de concórdia em Demócrito e Antifonte.

Demócrito no campo sofístico pode soar estranho. Baseamo-nos na tese de

Heinz Wismann que “o atomismo já é, enquanto tal, uma tradução em termos físicos do lógos

sofístico”.70 Aristóteles o coloca, na verdade, entre os “mal educados”, os apedeutas

(apaídeutoi), que defendem a não existência da contradição, a saber, Protágoras, Empédocles,

Parmênides, Anaxágoras, Homero, os sofistas, o que Barbara Cassin resume claramente no

quadro da posição de Aristóteles em defesa do princípio de não-contradição.71 Lembra ainda

Cassin que já encontramos em Demócrito a discussão sobre o ente e o não ente, e aproxima a

expressão gorgiana, que aparece no Tratado do Não-ser, oudén mâllon da expressão de

Demócrito registrada por Plutarco72: “o algo não é mais que o nada”73; essa discussão atomista

diz respeito ao problema clássico do atomismo, o problema do vazio.

Dos fragmentos de Demócrito sobre a concórdia, um deles mostra a

importância desta para a cidade: “Pela concórdia torna-se possível realizar grandes obras e,

69
4 4 16. : a)lla\ mh\n kaiì o(mo/noia/ ge me/gisto/n te a)gaqo\n
70
Apud Barbara Cassin (2005), p. 148, n. 10.
71
2005. “Gama em um Quadro”, p. 130.
72
Contra Colotes, 4. 1108 F.
73
2005, p. 276, n. 3. DK 68 B 156. mh\ ma=llon to\ de\n hÄ to\ mhde\n eiånai.
46

para as cidades, as guerras; de outra maneira, não”.74 Num outro fragmento mais importante,

expõe sua concepção política de concórdia:

Quando os poderosos ousam adiantar dinheiro aos que nada possuem, defendê-los e
prestar-lhes favores, aí já está incluída a compaixão: os homens não estarão sozinhos
e tornar-se-ão amigos, ajudar-se-ão mutuamente, haverá concórdia entre os cidadãos
e haverá outros bens quantos ninguém poderia enumerar.75

A concórdia, portanto, tem a ver com as relações entre os poderosos e a

massa dos cidadãos, o que constitui a especificidade do político. Pensamos que se unem assim

a concepção de cidade de Licofrão e a concepção de concórdia de Demócrito: somente a

cidade voltada para a virtude pode levar à concórdia entre os poderosos e os que nada

possuem. É bastante esclarecedora a abordagem de Cassin a respeito:

...para apreender o que está em jogo na Política [de Aristóteles], importa levar em
conta sua relação com a sofística. Como na Metafísica, a sofística constitui uma
arma importante da qual Aristóteles sabe fazer uso contra Platão. Com efeito, a
sofística constitui sem dúvida uma das primeiras reflexões sobre a especificidade do
político (politeútai tìs, ‘ou cidadania’, dizia Antifonte), com a diferença entre
natureza e lei, público e privado. Ela fornece, sobretudo, o modelo de um consenso
capaz de servir de antídoto à aquiescência que o cidadão platônico deve dar à
hierarquia fixista que estrutura organicamente a república. O plē¯thos politō½n76, que
define a cidade de Aristóteles e permite aproveitar, sem reduzir, todas as diferenças
entre os cidadãos, e mesmo todos os seus defeitos, é assim, sem dúvida alguma, a
herança da homónoia sofística. Contudo, o lógos não está presente na Política, de
Aristóteles, do mesmo modo que na política dos sofistas.77

No seu livro sobre a concórdia, Antifonte ressalta que ela deve ser buscada

não só pelas cidades, mas deve estar presente em todos os níveis, do vivente individual ao

74
DK 68 B 250. a)po\ o(monoi¿hj ta\ mega/la eÃrga kaiì taiÍj po/lesi tou\j pole/mouj dunato\n
katerga/zesqai, aÃllwj d' ouÃ.
75
DK 68 B 255. oÀtan oi¸ duna/menoi toiÍj mh\ eÃxousi kaiì proteleiÍn tolme/wsi kaiì u(pourgeiÍn kaiì
xari¿zesqai, e)n tou/twi hÃdh kaiì to\ oi¹kti¿rein eÃnesti kaiì mh\ e)rh/mouj eiånai kaiì to\ e(tai¿rouj
gi¿gnesqai, kaiì to\ a)mu/nein a)llh/loisi kaiì tou\j polih/taj o(mono/ouj eiånai kaiì aÃlla a)gaqa/,
aÀssa ou)deiìj aÄn du/naito katale/cai.
76
O plh/qoj politw=n é a massa dos cidadãos.
77
1999, p. 47,
47

cosmo ou universo. Quem conhece a ordem do universo, observa Untersteiner78, pode escutar

sua lei e realizar a concórdia em sua vida. Essa concórdia, em correspondência com o direito

(dikaiosýne), se produz nos indivíduos, nas cidades e em toda humanidade. Há um aspecto

que mais tarde será muito relevante no estoicismo, é que essa concórdia deve permitir que a

relação entre a ordem e a justiça tome uma aparência graciosa (kharízesthai), que fará a união

entre a ética individualista e a ética política. A concórdia rege todas as relações da vida. O

mito das Horas (Hō¯rai), sobre que Pródico tem um escrito célebre, descreve essa relação entre

a concórdia (entendida como Paz), a ordem e a justiça, pois, no mito, essas abstrações são

consideradas as deusas que formam as Horas: Paz ou Concórdia (Eirē¯ne), Ordem (Eunomía) e

Justiça (Díkē).

As Horas são filhas de Zeus e Têmis; são as guardiães das portas do céu e

servas dos deuses. Elas devem ser sempre mencionadas unidas, pois não pode haver paz sem

justiça, e estas não subsistem sem a ordem. A ninguém deveria parecer que se pode desprezar

a justiça, destruir a paz e viver na desordem, mas há quem argumente que se deve abandonar a

paz para lutar por justiça, assim como abandonar a justiça para manter a ordem. Praticamente,

no entanto, essas irmãs são veneradas por todos. Essa convergência entre as três fazem-nas

deusas da oportunidade, assim “hora” (hō¿ra) designa o tempo oportuno, como testemunha

Xenofonte, nos Memoráveis, com a expressão conhecida, “quando chega a hora”79

Pensamos que se trata de um tema marcadamente sofístico, já que diante da

possibilidade do discurso duplo (dissós lógos) podemos afirmar e negar algo, o que leva ao

78
1993, p. 71.
79
Memoráveis, 2, 1, 2. o(/tan w(/ra h(/k$.
48

conflito e à ambigüidade, é a intervenção das três deusas que dá termo às polêmicas; o que

ocorre com o discurso oportuno.

Em Píndaro se lê uma consonância com a concepção de concórdia em

Demócrito, que é a graça dos poderosos em direção aos menos favorecidos:

Os trabalhos da inveja podem ser contidos

se quem alcança o auge e vive em paz

escapa da terrível arrogância.80

Os discursos duplos, a que nos referimos, eram duplos argumentos usados

pelos que filosofavam sobre o bom e o mau.81 Esse tipo de discussão é característico do

método de Protágoras apresentado em sua Antilógica. Como já vimos anteriormente, a

possibilidade de afirmar e negar o mesmo, era o ponto de partida não só do método de

perguntas e respostas, mas também o caráter das declamações públicas (epideíxeis). Esses

discursos de oposições eram entendidos ora como dialéticos, ora como antilógicos, ora como

erísticos. A discussão da natureza e, em conseqüência da diferença, entre dialética, antilógica

e erística, parece ser o nó do método de argumentação sofístico. Pelo diálogo Sofista corre

subterraneamente à discussão ontológica e lógica, essa busca de caracterização do método

80
Píndaro, Odes Píticas, 11, 54-5. fqoneroiì d' a)mu/nontai. / <a)ll'> eiã tij aÃkron e(lwÜn / h(sux#= te
nemo/menoj ai¹na\n uÀbrin.
81
Segundo Kerferd (2003), p. 94, os dissoi/ lo/goi são descritos num texto encontrado no fim dos manuscritos
de Sexto Empírico, que começa com as palavras: “duplos argumentos (dissoi/ lo/goi) são enunciados na
Grécia por aqueles que filosofam, concernentes ao bom e ao mau”. Era comum no movimento sofista que fossem
elaborados discursos em que se opunham termos morais ou filosóficos considerados antagônicos, bom/mau,
verdadeiro/falso. Não sabemos se se tratava de dois discursos que eram compostos por um mesmo retor, um
condenando e o outro louvando, ou se era um discurso do tipo que é feito por Antístenes no banquete na casa de
Cálias, em que dois termos, riqueza/pobreza se opõem, mas numa mesma oração. Diógenes Laércio (VI 2) atesta
que era Antístenes hábil na composição desse tipo de discursos, pois, nos jogos ístmicos tinha resolvido compor
discursos condenatórios e elogiosos de atenienses, tebanos e espartanos, mas que veio a desistir devido ao grande
número de participantes de cada cidade.
49

verdadeiro de investigação. Nele, o desprezo de Platão pela erística e pela antilógica é uma

forma de ressaltar que a ciência que leva à verdade é a ciência dialética.82 O método de

perguntas e respostas, de tal forma, ora era considerado por uns, como dialético, ora

desprezado por outros como antilógico. Platão identificava ainda este procedimento com a

erística.

Tentaremos em seguida determinar com alguma precisão, até onde isso seja

possível, os três procedimentos. Começando pela erística, é sabido que o termo é derivado de

éris (luta, contestação). Platão o usava com o sentido de “buscar a vitória na argumentação”, é

à imagem da violência (biastikón)83 que ele recorre quando começa a definir, com

desaprovação e condenação, a erística. A erística não deveria ser caracterizada como um

método, mas como uma técnica, a saber, usar falácias, ambigüidades, prolixidades a fim de

reduzir o outro ao silêncio.

Quanto à antilógica, precisamos ter uma certa cautela, pois Kerferd afirma

que em muitos aspectos, a antilógica “é a chave do problema da compreensão da verdadeira

natureza do movimento sofista”. 84 Esse é um comentário dúbio, pois tanto pode significar que

a antilógica é o método por excelência para se chegar à verdade, como quer Protágoras na

reprodução de sua fala feita por Sócrates no Teeteto85, como também um método que torna

alguém hábil em refutar argumentos, não importa que seja através de argumentos verdadeiros

ou falsos, como diz Platão no Eutidemo86. Na realidade, a invectiva de Platão contra a

sofística se concentra com mais virulência na antilógica, Aristófanes ridiculariza esse

82
Sofista, 254 d. dialektikh/ e)pisth/mh
83
Idem, 225 a.
84
2003, p.108.
85
166 d.
86
272 a-b.
50

processo nas Nuvens87, acusando Sócrates de o ensinar88. De fato, Kerferd quer apontar para o

aspecto característico da antilógica, que a distingue da erística e da dialética platônica, e que a

faz o traço marcante da fisiognomonia do sofista, a saber, a antilógica constitui o uso acabado

do resultado do interesse e das investigações da sofística pela linguagem e o prazer de sua

prática. Dherbey ressalta que a “irrupção, na cultura grega, do trabalho dos sofistas sobre a

linguagem foi a princípio ressentida como uma agressão” 89; no entanto, esse comentário não

parece ser muito preciso, porque esse ressentimento não ficou apenas na época das primeiras

investigações de Protágoras e Pródico, mas chegou até Aristóteles, com suas plantas falantes e

falas prazerosas.90 Poderíamos dizer, para completar, que assim como ao cínico não podia

faltar o manto surrado, o alforje e o cajado, um sofista não podia deixar de argumentar e

receber dinheiro por isso. Com certeza, o que está em jogo ainda, e não menos importante, é a

questão da verdade; como herdeiros dos eleáticos os sofistas queriam saber se a verdade está

no ente, na percepção ou nos termos, todos três em constante mudança. E quanto a isso, tanto

os sofistas quanto Platão se viam diante do mesmo problema, o caráter instável da realidade

que percebemos. Platão mesmo no Fédon reconhece isso:

Sabes também, com efeito, que os que passam o tempo a praticar a antilógica
afirmam ter encontrado o cume da sabedoria e haver descoberto, como mais
ninguém, que em nenhuma coisa ou demonstração que seja, existe absolutamente
base segura ou certeza, mas sim que, em tudo o que existe, à semelhança d[o fluxo

87
886-1112.
88
Não vamos nos deter na compreensão de um Sócrates sofista, porém, devemos enumerar alguns pontos desta
questão. Segundo Kerferd (2003), pp. 96-100, não há dúvida nenhuma de que ele era considerado como tal pelos
seus contemporâneos e como os sofistas ele tinha abertamente comércio com os jovens das classes mais ricas;
como vemos no corpo do trabalho, seu método de perguntas e respostas é atribuído também a Protágoras; em
Sofista (268 a), quando o Estrangeiro faz a divisão dos sofistas entre o simples imitador (a(plou=n mimhth/n) e o
imitador irônico (ei)rwniko\n mimhth\n), não podemos deixar de pensar na ironia socrática.
89
Prefácio à edição francesa de Les Sophistes, de Mario Untersteiner (1993), p. II.
90
Plantas falantes: G 4 1006 a 14-5 (“pois semelhante a uma planta” / o(/moioj ga\r fut%=) e G 4 1008 b 11-2
(“como será diferente das plantas?” / ti/ a)\n diafero/ntwj e)/xoi tw=n ge futw=n;). Neste segundo caso há
variantes: “como será diferente dos seres puramente naturais? / ti/ a)\n diafero/ntwj e)/xoi tw=n pefuko/twn;
P Ab – “....das plantas?” /tw=n futw=n; sscr. E2 Ascp – “...de plantas?” / futw=n; Sirp – “...de planta?” /
futou=; Alp. Falas prazerosas: G 5 1009 a 21 (“pelo prazer de falar” / lo/gou xa/rin).
51

da maré] do Euripo, a parte inferior se mistura com a parte superior, jamais


permanecendo estável e em seu lugar. 91

Ao contrário dos sofistas, Platão não conseguiu lidar com o conhecimento

ao nível da percepção, do ente e dos termos. É surpreendente para todos os comentadores o

que Aristóteles diz com notável clareza na Metafísica, que a causa disso tinha sido sua

formação heraclítica através de Crátilo, o que o levou a buscar outra realidade além da

percebida, para nela ancorar a verdade e o conhecimento.

“[Platão], com efeito, tendo sido desde jovem amigo de Crátilo e seguidor das
doutrinas de Heráclito, segundo as quais todas as coisas sensíveis estão em contínuo
fluxo e das quais não se pode fazer ciência, manteve posteriormente essas
convicções... Platão adotou a doutrina socrática [das definições], mas acreditou que
as definições se referissem a outras realidades e não às realidades sensíveis. De fato,
ele considerava impossível que a definição universal se referisse a algum dos objetos
sensíveis, por estarem sujeitos a contínua mudança. Então, ele chamou essas outras
realidades idéias, afirmando que os sensíveis existem ao lado delas e delas recebem
seus nomes.” 92

Para Platão, assim, a antilógica e a erística não são procedimentos que

levem ao conhecimento, pois só lidam com o que está sujeito à mudança, a saber, o ente, a

percepção e os termos; somente a dialética pode levar ao conhecimento da verdadeira

realidade, que são as idéias. No Teeteto, Platão reconstrói uma fala de Protágoras, passagem

conhecida como Apologia de Protágoras, em que este descreve o conteúdo e o método de

argumentação que teria criado.

91
90 b-c. kaiì ma/lista dh\ oi¸ periì tou\j a)ntilogikou\j lo/gouj diatri¿yantej oiåsq' oÀti
teleutw½ntej oiãontai sofw¯tatoi gegone/nai kaiì katanenohke/nai mo/noi oÀti ouÃte tw½n
pragma/twn ou)deno\j ou)de\n u(gie\j ou)de\ be/baion ouÃte tw½n lo/gwn, a)lla\ pa/nta ta\ oÃnta a)texnw½j
wÐsper e)n Eu)ri¿p% aÃnw ka/tw stre/fetai kaiì xro/non ou)de/na e)n ou)deniì me/nei. Observe-se que
Platão, mesmo concedendo à antilógica, não dispensa o sarcasmo, ao usar um termo com a raiz do verbo
diatri/bw, que quer dizer “ocupar seu tempo com conversas”.

92
A 6 987 a 32-b 6. e)k ne/ou te ga\r sunh/qhj geno/menoj prw½ton Kratu/l% kaiì taiÍj
¸Hrakleitei¿oij do/caij, w¨j a(pa/ntwn tw½n ai¹sqhtw½n a)eiì r(eo/ntwn kaiì e)pisth/mhj periì au)tw½n
ou)k ouÃshj, tau=ta me\n kaiì uÀsteron ouÀtwj u(pe/laben: Swkra/touj de\ periì me\n ta\ h)qika\
pragmateuome/nou periì de\ th=j oÀlhj fu/sewj ou)qe/n, e)n me/ntoi tou/toij to\ kaqo/lou zhtou=ntoj
kaiì periì o(rismw½n e)pisth/santoj prw¯tou th\n dia/noian, e)keiÍnon a)podeca/menoj dia\ to\ toiou=ton
u(pe/laben w¨j periì e(te/rwn tou=to gigno/menon kaiì ou) tw½n ai¹sqhtw½n:
52

Segundo Untersteiner,93 a Apologia de Protágoras se desenvolve dentro da

famosa e controvertida concepção deste sofista de que a antilógica tem por objetivo levar o

interlocutor de um discurso fraco (hē¯tton lógos) para um discurso forte (kreîtton logos)94;

assim como o médico, através das drogas, faz o paciente, que sente algo como amargo, o que

para o que é sadio não parece, passar a sentir o contrário, ou seja da doença passar para a

saúde. Ele identifica a antilógica com a dialética, e contrário a Platão, só através deste

procedimento se pode chegar ao conhecimento. De tal forma, seguindo a Apologia, assim se

pode resumir sua concepção de dialética.

1. Tal método deve ser usado com cuidado quando aplicado aos jovens.

2. A prática da antilógica se dá com o uso do método de perguntas e

respostas.

3. A percepção varia infinitamente em cada homem.

4. A verdade é que o homem é a medida do que é e do que não é.

5. A sabedoria está em fazer ser e parecer bom para alguém o que antes era

ou lhe parecia mau, isto é, passar de um discurso fraco para um discurso

forte.

6. É o discurso que muda a condição da percepção, tanto na educação,

como na condução da cidade; do modo como na medicina agem as

drogas.

7. O sofista que educa deste modo merecer ser bem pago.

8. O método não admite a erística.

93
1993, tomo 1, p. 87.
94
Esta proposição de Protágoras nos chega através do testemunho de Aristóteles na Retórica, II 24 1402 a 23
(DK A 21): “levar uma possibilidade menor de conhecimento a um maior possibilidade de conhecimento” / kaiì
to\ to\n hÀttw de\ lo/gon krei¿ttw poieiÍn.
53

9. Esta é a verdadeira investigação dialética.

10. Usando este método de investigação se chega à identidade ou à

diferença entre sensação e conhecimento.

11. As palavras na dialética não devem ser usadas fora do seu uso natural. 95

Kerferd define assim a antilógica:

consiste em opor um lógos a outro lógos, ou em descobrir ou chamar atenção para a


presença de uma oposição em um argumento, ou em uma coisa ou situação. A
característica essencial é a oposição de um lógos a outro, por contrariedade ou por
contradição.96

A posição de Protágoras é, segundo o que o Sócrates testemunha no Teeteto,

levar o interlocutor, a partir da oposição dos argumentos, a reconhecer que há no dissós lógos

um discurso que é mais forte que o outro. Por exemplo, se um doente acha amargo um

alimento, e uma pessoa sadia acha doce, é função do médico levar o doente à saúde, ou seja, o

discurso da pessoa sadia é o mais forte; do mesmo modo agem os agricultores com as plantas

95
166 a-168 c. 1. e)peidh\ au)t%½ paidi¿on ti e)rwthqe\n eÃdeisen ei¹ oiâo/n te to\n au)to\n to\ au)to\
memnh=sqai aÀma kaiì mh\ ei¹de/nai / 2. oÀtan ti tw½n e)mw½n di' e)rwth/sewj skopv=j, e)a\n me\n o(
e)rwthqeiìj oiâa/per aÄn e)gwÜ a)pokrinai¿mhn a)pokrina/menoj sfa/llhtai / 3 e)ce/legcon w¨j ou)xiì
iãdiai ai¹sqh/seij e(ka/st% h(mw½n gi¿gnontai, hÄ w¨j i¹di¿wn gignome/nwn ou)de/n ti aÄn ma=llon to\
faino/menon mo/n% e)kei¿n% gi¿gnoito, hÄ ei¹ eiånai deiÍ o)noma/zein, eiãh %Òper fai¿netai / 4. me/tron ga\r
eÀkaston h(mw½n eiånai tw½n te oÃntwn kaiì mh/ / 5. kaiì sofi¿an kaiì sofo\n aÃndra pollou= de/w to\ mh\
fa/nai eiånai, a)ll' au)to\n tou=ton kaiì le/gw sofo/n, oÁj aÃn tini h(mw½n, %Ò fai¿netai kaiì eÃsti kaka/,
metaba/llwn poih/sv a)gaqa\ fai¿-nesqai¿ te kaiì eiånai / 6. o( de\ u(giai¿nwn sofo\j oÀti a)lloiÍa,
metablhte/on d' e)piì qa/tera: a)mei¿nwn ga\r h( e(te/ra eÀcij. ouÀtw de\ kaiì e)n tv= paidei¿# a)po\ e(te/raj
eÀcewj e)piì th\n a)mei¿nw metablhte/on: a)ll' o( me\n i¹atro\j farma/koij meta-ba/llei, o( de\
sofisth\j lo/goij... tou\j de/ ge sofou/j te kaiì a)gaqou\j r(h/toraj taiÍj po/lesi ta\ xrhsta\ a)ntiì
tw½n ponhrw½n di¿kaia dokeiÍn eiånai poieiÍn. e)peiì oiâa/ g' aÄn e(ka/stv po/lei di¿kaia kaiì kala\ dokv=,
tau=ta kaiì eiånai au)tv=, eÀwj aÄn au)ta\ nomi¿zv / 7. o( sofisth\j tou\j paideuome/nouj ouÀtw
duna/menoj paidagwgeiÍn sofo/j te kaiì aÃcioj pollw½n xrhma/twn toiÍj paideuqeiÍsin. / 8. poi¿ei
me/ntoi ou(twsi¿: mh\ a)di¿kei e)n t%½ e)rwta=n. kaiì ga\r pollh\ a)logi¿a a)reth=j fa/skonta
e)pimeleiÍsqai mhde\n a)ll' hÄ a)dikou=nta e)n lo/goij diateleiÍn / 9. e)n de\ t%½ diale/gesqai
spouda/zv te kaiì e)panorqoiÍ to\n prosdialego/menon / 10. kaiì e)k tou/twn e)piske/yv eiãte tau)to\n
eiãte kaiì aÃllo e)pisth/mh kaiì aiãsqhsij / 11. a)ll' ou)x wÐsper aÃrti e)k sunhqei¿aj r(hma/twn te
kaiì o)noma/twn, aÁ oi¸ polloiì oÀpv aÄn tu/xwsin eÀlkontej a)pori¿aj a)llh/loij pantodapa\j
pare/xousi.
96
2003, 110.
54

e os retores com as cidades, no último caso, levando-as a substituir as coisas más pelas coisas

belas e justas que cada cidade assim pensa.

Quanto à dialética, como já adiantamos, há uma intenção de pesquisa para

alcançar uma definição, ou seja, de se produzir uma ciência sobre as coisas estáveis. Não

podemos esquecer que todo o objetivo expresso pelo Estrangeiro, no Sofista, é encontrar,

através do uso da dialética, a definição do sofista, a saber a “idéia” do sofista. De tal forma, a

antilógica seria o método próprio para lidar com o mundo fenomênico, enquanto que a

dialética seria o método que levaria ao conhecimento necessário do que é firme e estável. É

verdade que Protágoras entendia a antilógica como uma investigação dialética, e que

Aristóteles vai dar à dialética outra aplicação. Mas, em resumo, se pode entender:

1. A erística é uma técnica, e não um método, para se ganhar um argumento

usando perguntas capciosas, alterando o uso natural das palavras, levando o interlocutor ao

silêncio.

2. A antilógica é o método de perguntas e respostas que busca o

conhecimento a partir da percepção.

3. A dialética é o método que leva à definição, “com base na divisão em

espécies”97, em termos aristotélicos, em idéias, em termos platônicos.

O pano de fundo da discussão é, portanto, a natureza da verdade. E Platão e

os sofistas estavam ambos preocupados com a verdade. Protágoras escreveu um livro Sobre a

Verdade, de que talvez sejam referências seguras as passagens de Sofista98, do Teeteto99 e do

Crátilo100.

97
Kerferd (2003), p. 111.
98
246 b.
99
161 c.
100
391 c.
55

De todos os interesses e investigações dos sofistas nada se iguala na

importância e no alcance às questões que levantariam sobre a natureza da linguagem. O

subtítulo do diálogo Crátilo é Sobre a Correção dos Nomes. Nele, Sócrates pede a

Hermógenes que discorra sobre a teoria de Protágoras sobre os nomes, a que este se nega por

não concordar com o sofista de que cada coisa tem por natureza um nome apropriado. Pensa

ele que a relação entre os nomes é resultado de uma convenção que regula seu uso. A

investigação da correção dos nomes se liga a Demócrito, que teria escrito uma Ortoépia

(Orthoépeia), e segundo o Crátilo, como vimos agora, Protágoras também teria se dedicado

ao tema. É com Pródico que essa investigação se torna mais evidente. Talvez fosse possível

afirmar que o problema da aplicação do nome naturalmente apropriado à coisa e as

conseqüências inescapáveis das teses, que não é possível definir, nem contradizer, tenham sua

origem com ele. Platão foi um crítico severo contra a teoria de Pródico, que considerava uma

violência contra a natureza da linguagem. Porém, Sócrates se diz discípulo dele e talvez sua

concepção de definição tenha tido como ponto de partida as investigações lingüísticas do

mestre, em particular os estudos da sinonímia. Como atesta esta passagem:

... oportunamente está Pródico presente à nossa discussão, pois é bem possível,
Protágoras, que a sabedoria de Pródico seja divina e muito antiga: vem do tempo de
Simônides, se não for ainda mais velha. Mas estou vendo que, apesar de conheceres
tantas coisas, a ignoras; não és como eu, que conheço bem, na qualidade de
discípulo de Pródico.101

No Protágoras, temos um pequeno exemplo do método de Pródico no

estudo das palavras que tenham sentido semelhante. É o próprio Pródico que fala no diálogo.

Diz ele, na passagem, que os amigos que estão interessados em resolver uma questão não se

101
Protágoras, 340 e-341 a. ei¹j kairo/n ge paratetu/xhken h(miÍn e)n toiÍj lo/goij Pro/dikoj oÀde.
kinduneu/ei ga/r toi, wÕ Prwtago/ra, h( Prodi¿kou sofi¿a qei¿a tij eiånai pa/lai, hÃtoi a)po\
Simwni¿dou a)rcame/nh, hÄ kaiì eÃti palaiote/ra. su\ de\ aÃllwn pollw½n eÃmpeiroj wÔn tau/thj
aÃpeiroj eiånai fai¿nv, ou)x wÐsper e)gwÜ eÃmpeiroj dia\ to\ maqhth\j eiånai Prodi¿kou toutoui¿+:
56

devem entregar à erística (erízein), mas praticar a contestação (amphisbētetikón) –

entendemos que se trata de uma antilógica – de que deverá sair vencedor o que apresentar o

argumento mais forte. A seguir, então, ele vai proceder como se estivesse aplicando seu

entendimento do que seja a elucidação da diferença que há numa sinonímia. Ele toma dois

termos que têm sentidos semelhantes, no entanto, ele aponta para a oposição que há entre eles,

um tem conceito positivo e o outro negativo, são essas características que vão dar a “diferença

específica” deles. Isso leva a satisfazer a exigência de uma extrema exatidão na escolha dos

termos. O que temos aí então é uma forma de divisão (diaíresis).

As pessoas presentes a semelhantes discussões devem ouvir imparcialmente as duas


partes, não, porém, de modo igual (o que não é a mesma coisa; ambos devem ser
ouvidos com a mesma atenção, mas não podemos conceder aos dois interesse igual,
porém maior ao que se revelar mais sábio, e menor ao de menor preparo. Eu
também, Protágoras e Sócrates, peço que vos mostreis mais condescendentes; cada
um poderá contestar o discurso um do outro, porém sem usar a erística), amigos
podem contestar com boa vontade os amigos, usam a erística os adversários e os
inimigos um dos outros (desse modo nossa reunião poderá prosseguir
admiravelmente; assim, vós, os oradores, recebereis de nós, ouvintes, estima e não
louvor) estima se processa sem engano na alma dos presentes, ao passo que o
louvor, por vezes, é apresentado com palavras juntas à opinião dos falsos (seria essa
a melhor maneira de nós, ouvintes, sentirmos alegria e não prazer) pois a alegria
vem a quem aprende alguma coisa e sai com o intelecto transformado pela
sabedoria, ao passo que só sente prazer quem come ou tem uma sensação agradável
no corpo.102

102
337 a-c. xrh\ ga\r tou\j e)n toioiÍsde lo/goij paragignome/nouj koinou\j me\n eiånai a)mfoiÍn toiÍn
dialegome/noin a)kroata/j, iãsouj de\ mh (eÃstin ga\r ou) tau)to/n: koinv= me\n ga\r a)kou=sai deiÍ
a)mfote/rwn, mh\ iãson de\ neiÍmai e(kate/r%, a)lla\ t%½ me\n sofwte/r% ple/on, t%½ de\ a)maqeste/r%
eÃlatton. e)gwÜ me\n kaiì au)to/j, wÕ Prwtago/ra te kaiì Sw¯kratej, a)ciw½ u(ma=j sugxwreiÍn kaiì
a)llh/loij periì tw½n lo/gwn a)mfisbhteiÍn me/n, e)ri¿zein de\ mh)/ a)mfisbhtou=si me\n ga\r kaiì di'
euÃnoian oi¸ fi¿loi toiÍj fi¿loij, e)ri¿zousin de\ oi¸ dia/foroi¿ te kaiì e)xqroiì a)llh/loij (kaiì ouÀtwj aÄn
kalli¿sth h(miÍn h( sunousi¿a gi¿gnoito: u(meiÍj te ga\r oi¸ le/gontej ma/list' aÄn ouÀtwj e)n h(miÍn toiÍj
a)kou/ousin eu)dokimoiÍte kaiì ou)k e)painoiÍsqe) eu)dokimeiÍn me\n ga\r eÃstin para\ taiÍj yuxaiÍj tw½n
a)kouo/ntwn aÃneu a)pa/thj, e)paineiÍsqai de\ e)n lo/g% polla/kij para\ do/can yeudome/nwn (h(meiÍj
t' auÅ oi¸ a)kou/ontej ma/list' aÄn ouÀtwj eu)frainoi¿meqa, ou)x h(doi¿mesqa) eu)frai¿nesqai me\n ga\r
eÃstin manqa/nonta/ ti kaiì fronh/sewj metalamba/nonta au)tv= tv= dianoi¿#, hÀdesqai de\ e)sqi¿onta/
ti hÄ aÃllo h(du\ pa/sxonta au)t%½ t%½ sw¯mati.
57

Os exemplos que estão nesta passagem são dois pares: o primeiro par é

estima (eudokímēsis)/louvor (épainos), o segundo é alegria (euphrosýnē)/prazer (hedonē¯).103

Nesses pares, os primeiros têm sentidos positivos e os segundos negativos. E ele explica: o

retor que vença a contestação deve ter a estima dos ouvintes, que vem da alma, enquanto o

louvor pode ser a falsidade na linguagem; os ouvintes seriam tomados de alegria e não de

prazer, porque a alegria nasce da aprendizagem com o aumento da compreensão, enquanto

que o prazer é apenas uma comoção corporal. A intenção clara é unir indissoluvelmente o

nome à coisa, pois é importante e valioso usar somente o nome certo em cada caso, não só no

terreno da lógica, mas como sustentação também da retórica, que, por natureza, compõe com

arte as palavras conforme os usos variados a que elas se prestam.

É evidente que o que está em jogo aqui são as contradições que se formam

através das percepções e que, para Pródico, devem ser evitadas no discurso; o que lhe levou a

produzir os escritos sobre a correção dos nomes que o tornou famoso, conforme o depoimento

de Platão no Protágoras. Parecem ter sido os sofistas os primeiros a enfrentar o problema do

confronto da verdade das percepções, que podem ser contraditórias, com a verdade do

discurso, que não deveria ser contraditório. Para os sofistas o problema era como relacionar a

linguagem com o mundo das percepções que lhe era totalmente distinto. Foram duas as

soluções propostas:

1. Opor dois discursos (dissói lógoi) opostos concernentes a cada coisa,

levando a linguagem a exibir a mesma estrutura do mundo.

2. Produzir um único discurso e expressar a oposição através da negação.

103
No diálogo os termos são verbais: eu)dokimoi=te, e)painoi=sqe, eu)frainoi/meqa e h(doi/mesqa. Os
comentadores se admiram que para os gregos a distinção entre nome e verbo não fosse tão nítida como
costumamos fazer. Pensamos que essa distinção seria de 2° grau para eles, o o/noma seria o termo geral expresso
pelo radical, e era sobre tal radical que eles trabalhavam.
58

Para tal, o discurso negativo, a saber, em lugar de opor doce/amargo, opor

doce/não doce, não se apresentava de grande valia, pois produzia a necessidade de que

houvesse um mundo que recebesse essas atribuições negativas. Problema que Parmênides

evitou ao propor o afastamento do caminho que dá ser ao não-ser. O que levará, como

sabemos, ao parricídio de Parmênides em Sofista, pois o Estrangeiro de Eléia ao tentar definir

o sofista, necessita dar, em certo sentido, o ser ao não-ser104 que são as imagens, isto é, o

terreno nebuloso em que circulam os sofistas. As soluções dadas pela sofística seriam a

impossibilidade da contradição e a impossibilidade de dizer o falso, não só pela recusa do

discurso negativo, mas também através do uso da linguagem de forma que atasse o nome

corretamente às coisas, usando para isso do método de investigação proposto por Pródico. De

tal maneira, para começarmos a circunscrever as posições de Antístenes, podemos resumir

que, diante do problema da linguagem em relação ao mundo, Sócrates procurou

exaustivamente a definição das coisas, e Platão propôs o conhecimento de um mundo de

formas estanques e imutáveis, mas luminosas em oposição ao mundo de sombras da sofística.

Antístenes aceita a solução da impossibilidade da contradição, que passará a ficar

indissoluvelmente ligada à sua filosofia da linguagem, e criticará veementemente a

possibilidade da definição e, em conseqüência, a doutrina das formas.

104
Em certo momento (239 b) parece haver uma alusão de Platão a Pródico, se fosse o caso, aí sim poderíamos
entender que há ironia, quando diz que para falar do não-ser devemos usar as regras corretas da linguagem
(o)rqologi/a). Seria “o sofista de cem cabeças” (240 c) uma alusão a Antístenes? Já que matar a hidra de cem
cabeças foi um dos trabalhos de Héracles, herói paradigmático do rival de Platão.
1.1.2 O legado de Górgias: ser e linguagem

Górgias, no Elogio de Helena, ressaltou que, mesmo com os problemas da

relação da linguagem com o ser, há uma função do discurso que é poderosa e capaz de

justificar até qualquer ato por mais ignominioso que seja, como talvez tivesse sido o de

Helena, de se deixar arrebatar por Alexandre, para o infortúnio dos grandes heróis gregos e

troianos. Ela mesma possível vítima do efeito letal de tal função. A função de persuadir. E se

alguém persuade com má intenção está cometendo injustiça, e quem é vítima da persuasão

não deve ser motivo de imprecação. Declama Górgias: “Aquele que persuade, na medida em

que constrange, comete então uma injustiça, mas quanto à persuadida, na medida em que foi

constrangida pelo discurso, é sem razão que dela se ouvem imprecações”.105 O que dá ao

discurso tal poder? Górgias expõe a natureza desse poder:

O discurso é um grande soberano que, por meio do menor e do mais inaparente dos
corpos, realiza os atos mais divinos, pois ele tem o poder de dar fim ao medo, afastar
a dor, produzir a alegria, aumentar a piedade... As encantações que os deuses
inspiram vêm, através das palavras do discurso, provocar o prazer, afastar a dor, pois
a força de um sortilégio, na medida em que penetra a opinião da alma, a atrai, a
persuade e a transforma como que por magia... Pois se diz o mesmo em poder do
discurso, na disposição da alma, na composição das drogas e na natureza dos corpos:
assim como tal droga faz sair do corpo um tal humor, e que umas fazem cessar a
doença, outras a vida, assim também, dentre os discursos, alguns afligem, outros
encantam, fazem medo, inflamam os ouvintes, e alguns, por efeito de alguma má
persuasão, drogam a alma e a enfeitiçam.106

105
DK 82 B 11 12. o( me\n ouÅn pei¿saj w¨j a)nagka/saj a)dikeiÍ, h( de\ peisqeiÍsa w¨j a)nagkasqeiÍsa
tw½i lo/gwi ma/thn a)kou/ei kakw½j.
106
DK 82 B 11 8. lo/goj duna/sthj me/gaj e)sti¿n, oÁj smikrota/twi sw¯mati kaiì a)fanesta/twi
qeio/tata eÃrga a)poteleiÍ: du/natai ga\r kaiì fo/bon pau=sai kaiì lu/phn a)feleiÍn kaiì xara\n
e)nerga/sasqai kaiì eÃleon e)pauch=sai 10 ai¸ ga\r eÃnqeoi dia\ lo/gwn e)pwidaiì e)pagwgoiì h(donh=j,
a)pagwgoiì lu/phj gi¿nontai: sugginome/nh ga\r th=i do/chi th=j yuxh=j h( du/namij th=j e)pwidh=j
eÃqelce kaiì eÃpeise kaiì mete/sthsen au)th\n gohtei¿ai. gohtei¿aj de\ kaiì magei¿aj dissaiì te/xnai
euÀrhntai, aià ei¹si yuxh=j a(marth/mata kai\ do/chj a)path/mata 14 to\n au)to\n de\ lo/gon eÃxei hÀ te
tou= lo/gou du/namij pro\j th\n th=j yuxh=j ta/cin hÀ te tw½n farma/kwn ta/cij pro\j th\n tw½n
swma/twn fu/sin. wÐsper ga\r tw½n farma/kwn aÃllouj aÃlla xumou\j e)k tou= sw¯matoj e)ca/gei, kaiì
ta\ me\n no/sou ta\ de\ bi¿ou pau/ei, ouÀtw kaiì tw½n lo/gwn oi¸ me\n e)lu/phsan, oi¸ de\ eÃteryan, oi¸ de\
e)fo/bhsan, oi¸ de\ ei¹j qa/rsoj kate/sthsan tou\j a)kou/ontaj, oi¸ de\ peiqoiÍ tini kakh=i th\n yuxh\n
e)farma/keusan kaiì e)cegoh/teusan.
60

Por termos outra intenção, alteramos a tradução de Cassin da passagem em

que se lê na nossa variante: “se diz o mesmo em poder do discurso, na disposição da alma, na

composição das drogas e na natureza dos corpos”. A saber, se estou falando de poder do

discurso, estou falando ao mesmo tempo de disposição da alma, de composição das drogas e

de natureza do corpo. Cassin traduz: “existe uma mesma relação entre poder do discurso,e

disposição da alma, dispositivo das drogas e natureza do corpo”. Para Cassin107, essa analogia,

do poder do discurso, da disposição da alma, da composição da droga, da natureza do corpo,

fundadora da retórica, é expressa através dos diversos usos do termo lógos, que pode

significar “relação” e “discurso”, modo definitivamente grego de dizer. Parece-nos que para

ela a questão se esgota no uso. Com isso a disposição da alma, a composição das drogas e a

natureza do corpo se atrelam ao dizer. Para nós há um maior rigor se pensarmos na posição de

Antístenes quanto à linguagem, à retórica, ao prazer que a linguagem produz, e ao prazer

como tal. Queremos dizer com rigor que talvez fosse para Antístenes a relação em questão

mais do que analógica. Antístenes submete o que está sendo chamado de relação a um

trabalho exaustivo para que se chegue ao prazer. O princípio é a investigação dos termos, é o

conhecimento dos termos que vai permitir que se realize a entalhadura da alma e a cura do

corpo, quando o prazer se aninha neles, só após o esforço de investigação é que se chegará ao

prazer da linguagem.

Se bem que a formação sofística de Antístenes parece nunca tê-lo deixado se

afastar da retórica, a autarquia socrática o teria levado talvez a repensar a natureza da

linguagem num passo mais adiante de Protágoras e Pródico. Na verdade, ele e Sócrates já

estão em outra geração, e começando outro século, o IV° século a.C. O prazer da linguagem,

e como conseqüência seu poder de persuasão, e a contrapartida inevitável de seu poder de

107
2005, p. 299 n. 15.
61

enfeitiçamento, para Antístenes, pede uma resposta à pergunta sobre a natureza da relação

entre ser e linguagem, como exigência pedagógica. Ou dito de outro modo, entre as coisas e

os termos. O que para Górgias seria um divertimento (paígnion)108, para Antístenes seria

retomado como uma educação (paideía). Dessa forma Antístenes não toma apenas de seu

primeiro mestre a poção mágica da fala, o seu aspecto encantatório, mas o modo como esse

poder, através da investigação do seu uso, pode levar à virtude. O que, afinal de contas, talvez

tenha sido o que o próprio Górgias realizou, através do discurso: tornar Helena virtuosa.

Górgias inicia a defesa de Helena dizendo que a ordem do discurso está na

verdade (kósmos lógoi alē¯theia). A preocupação com a verdade levou os sofistas a

perguntarem se não seria melhor deixar as coisas de lado e levar em consideração nas

discussões apenas o próprio discurso e sua ordem, já que as coisas, por não serem imediatas,

constituem um domínio problemático. Tomando distância das coisas, qual a profundidade ou

a espessura da linguagem? Para os sofistas, nenhumas. Segundo Aubenque, a sofística

desenvolveu uma teoria imanentista da linguagem: “a linguagem é para eles uma realidade em

si, que forma um só todo com o que ela exprime e não um signo que precisaria ser

ultrapassado em direção a um significado, não dado, mas problemático”.109 Vai ser Aristóteles

a distanciar a coisa do termo, introduzindo uma teoria da significação. Segundo Jaeger110,

Aristóteles teria sido o primeiro a “romper a ligação entre a palavra e a coisa, entre o lógos e o

ón”, a elaborar uma teoria da significação, isto é, da separação e, em conseqüência da relação

108
É com este termo que Górgias teria encerrado sua declamação em favor de Helena, conforme lição de Cassin,
que diz seguir Untersteiner (2005, p. 301 n 20).
109
1983, p. 100.
110
1923, p. 395-96.
62

entre a linguagem como signo e do ser como significado. Pois nem em Górgias, nem em

Antístenes se trata de significação.111

Essa ausência de distância entre as coisas e os termos leva à terceira tese do

Tratado do Não-ser, de Górgias, o que pode ser entendido como o paradoxo da

incomunicabilidade. Como é sabido, Górgias teria escrito um Tratado do não-ser, ou

conforme testemunho de Sexto Empírico, Sobre o não-ser ou sobre a natureza. Nele teria

desenvolvido três teses, é o que diz Sexto:

Górgias de Leontinos militava nas fileiras daqueles que aboliram o critério, mas ele
não procedia da mesma forma que os protagóricos. Em seu escrito, Sobre o não-ser
ou sobre a natureza, ele coloca em questão três preceitos que se seguem: um, o
primeiro, que nada é; o segundo, que mesmo se é, não pode ser apreendido pelo
homem; o terceiro, que mesmo se pode ser apreendido, não pode, entretanto, ser
formulado e explicado a seu próximo.112

A terceira tese, a da incomunicabilidade é assim expressa por Sexto:

Por outro lado, mesmo se é aprendido, [o ser] é incomunicável a outrem... Pois o


meio através do qual revelamos é o discurso, mas discursos não são as coisas que
subsistem e que são. Então, não são os entes que revelamos ao próximo, mas o
discurso, que difere das substâncias...Assim sendo, o discurso não é ‘comemorativo’
do de fora, é o de fora que se torna revelador do discurso113

111
Esse é um problema da reconstrução da filosofia da linguagem de Antístenes feita por Brancacci (1990): este
conservou a concepção de uma linguagem afastada das coisas, ao usar correntemente a concepção de
significação, marcadamente aristotélica.
112
2005, p. 283. DK 82 B 3 65.G. de\ o( LeontiÍnoj e)k tou= au)tou= me\n ta/gmatoj u(ph=rxe toiÍj
a)nhirhko/si to\ krith/rion, ou) kata\ th\n o(moi¿an de\ e)pibolh\n toiÍj periì to\n Prwtago/ran. e)n ga\r
tw½i e)pigrafo-me/nwi Periì tou= mh\ oÃntoj hÄ Periì fu/sewj tri¿a kata\ to\ e(ch=j kefa/laia
kataskeua/zei, eÁn me\n kaiì prw½ton oÀti ou)de\n eÃstin, deu/teron oÀti ei¹ kaiì eÃstin, a)kata/lhpton
a)nqrw¯pwi, tri¿ton oÀti ei¹ kaiì katalhpto/n, a)lla\ toi¿ ge a)ne/coiston kaiì a)nermh/neuton tw½i
pe/laj.
113
2005, pp. 288-9. DK 82 B 3 83 kaiì ei¹ katalamba/noito de/, a)ne/coiston e(te/rwi. 84 wÒi ga\r
mhnu/omen, eÃsti lo/goj, lo/goj de\ ou)k eÃsti ta\ u(pokei¿mena kaiì oÃnta: ou)k aÃra ta\ oÃnta mhnu/omen
toiÍj pe/laj a)lla\ lo/gon, oÁj eÀtero/j e)sti tw½n u(pokeime/nwn. 85 ei¹ de\ tou=to, ou)x o( lo/goj tou=
e)kto\j parastatiko/j e)stin, a)lla\ to\ e)kto\j tou= lo/gou mhnutiko\n gi¿netai.
63

O discurso não é uma significação, diz Aubenque114, a partir de Górgias é

um encontro. Assim como o discurso não tem nada a comunicar, o que só podemos esperar é

que o ouvinte tenha experiências das coisas que falamos. Se me refiro a uma cor, o ouvinte

deverá ter uma experiência de tal cor. Saber, por exemplo, o que seja verde ou vermelho. É a

percepção do outro que permitirá a ele reconhecer a ordem do discurso, reconhecer a verdade.

No entanto, Górgias era um orador muito bem sucedido. Pois se fazia entender e ser

admirado! Não era para um ser problemático, que pode ser percebido de modo contraditório,

que dirigia sua fala, mas para os ouvintes, ele não falava de algo, mas sim para alguém.

Porque o terreno era o das relações entre os discursos dos homens (a persuasão, a ameaça, a

sugestão) e não a relação entre as coisas e o discurso. Como falar então de verdade? Se o

discurso não é sobre as coisas, no entanto, ele fala de coisas. O compromisso de Górgias é

manifestamente com a verdade, pois é desta maneira que ele começa seu elogio a Helena:

“Ordem, para a cidade, é a excelência dos seus homens; para o corpo, a beleza; para
a alma, a sabedoria, para as coisas que fazemos, o valor; para o discurso, a
verdade.”115

Para Górgias o discurso é também uma coisa entre outras coisas, um ente

entre outros entes; como as coisas, o discurso não revela nada, não comunica nada, é a

experiência do ouvinte que vai permitir o efeito do discurso, daí a possibilidade da persuasão,

a possibilidade do prazer. Se o discurso depende da experiência do ouvinte para que sua

verdade seja revelada, ele deve ser uma disposição, ou uma composição, que permita ao

ouvinte caminhar por uma ou outra direção; esses discursos constituíram as artes duplas,

como testemunha Górgias: devido à natureza do poder do discurso “foram descobertas as

114
1983, p. 102.
115
DK 82 B 11 1 Ko/smoj po/lei me\n eu)andri¿a, sw¯mati de\ ka/lloj, yuxh=i de\ sofi¿a, pra/gmati de\
a)reth/, lo/gwi de\ a)lh/qeia:
64

artes duplas”.116 Cassin117 aproxima as artes duplas aos dissói lógoi, e comenta que há duas

compreensões do que sejam as artes duplas: seriam aquelas artes que têm a mesma natureza,

mas se distinguem por terem manifestações diversas, como a pintura e a escultura, o ritmo e a

dança, a poesia e a prosa; ou seria o uso da retórica, que permite dizer e fazer crer tanto numa

coisa como em seu contrário, o verdadeiro e o falso. Há quem entenda também, como

produzir dois discursos, um louvando e outro censurando um mesmo ato, ou uma mesma

pessoa. O que se confundiria com a dialética sofista, isto é, com uma arte que ensina a tornar

igualmente verossimilhantes o pro e o contra a respeito de um mesmo problema. Aubenque

tende a aceitar a tese de que os sofistas não se interessavam pela verdade, mas de dar

verossimilhança tanto ao verdadeiro como ao falso. No entanto, como já sublinhamos, a

preocupação com a verdade era fundamental na sofística, como diz Kerferd118: os sofistas

“estavam preocupados com a verdade tal como eles a viam”, a saber, segundo Górgias, como

reproduzimos mais acima, no elogio a Helena, a verdade está na ordem do discurso. Se há

preocupação com a verdade, as teses sofistas são filosóficas, para eles. Mas o discurso não é o

lugar obrigatório de toda discussão, o discurso pode ter outras funções, como a qualquer

momento reenviar o interlocutor às coisas, em que o termo trai a ordem do discurso para

simplesmente apontar uma coisa. Essa passagem do discurso ao ente, como Górgias se

esforçou de demonstrar, é extremamente problemática, para não dizer impossível. Investigar a

dificuldade da relação da linguagem com as coisas é o ponto de partida para qualquer

tentativa de entender o que é a verdade para os sofistas. Aristóteles vai dividir em dois grupos

os sofistas que se aferram a essa dificuldade. Há os que chegam a essa conclusão por um

embaraço natural (ek toû aporē½sai), e os que falam assim pelo “prazer de falar” (lógou

116
DK 82 B 11 10. dissaiì te/xnai euÀrhntai.
117
2005, p. 297 n. 11.
118
2003, p. 117.
65

khárin)119. Essa relação da linguagem com o prazer não será considerada por nós como uma

simples maneira de dizer, mas mostra não só a importância que dará Aristóteles ao prazer na

ética, como é fundamental para que se procure deslindar as inconsistências, nos termos de

Festugière120, de Antístenes quanto à sua atitude em relação ao prazer. Neste, o que é

evidentíssimo no Banquete de Xenofonte, em que Antístenes se entrega sem freios ao prazer

de falar, a natureza do discurso conforme a lição de Górgias, é própria a ele, sem qualquer

relação com um compromisso com as coisas em si, já que o poder da linguagem permite que

um homem sem eira nem beira, como ele e Sócrates reconhecem, diga, para deleite dos

amigos, que aquilo de que mais se orgulha é a sua riqueza.121

Para Aristóteles, o “provável discípulo de Górgias”122 estava no olho do

furacão da sofística, para muitos desenterrada em pleno século IV a.C. pelo Estagirita.123 Não

se pode diminuir a importância do fato que a discussão de Aristóteles com Antístenes ou com

os antistênicos, tanto no que diz respeito à questão do hedonismo na Ética, como à dos

paradoxos é sempre levada a termo com total respeito aos interlocutores.

Vejamos a seguir, como Antístenes se comportou diante do problema que

assombrou o seu mestre, a relação entre ser e linguagem. Antístenes, diante do problema,

elaborou três teses, não é possível contradizer, como corolário, dizer o falso, e definir a

119
G 5 1009 a 16-22. Cada um deles deve ser combatido, conforme Aristóteles, de modo diferente: os primeiros
através de respostas às suas convicções, para os segundos o remédio é a refutação (e)/legxoj) de sua
argumentação.
120
“La Doctrine du Plaisir des Premiers Sages à Épicure”, apud Gautier-Jolif, p. 775.
121
V. Anexo E – A Liberdade do Filósofo.
122
É expressão de Aubenque (1983), p. 100.
123
No entanto, concordamos, com reserva, com H. Maier (1936) no que diz respeito à caracterização de um
movimento erístico, que leva a identificar a erística como a marca da discussão sofística. Conforme citação feita
por Aubenque (1983), p. 97: “H. Maier explica, é verdade, por razões históricas esse ressurgimento da inspiração
sofística na filosofia de Aristóteles; corresponderia ao renascimento dos modos de pensamento erísticos que se
manifesta no IV° século nas escolas socráticas, entre os megáricos e os antistênicos”. O argumento de Maier
pode ser reforçado pelo texto da Metafísica (H 3 1043 b 23-5) em que Aristóteles atribui a tese da
impossibilidade da definição da essência como defendida pelos antistênicos.
66

essência. Neste trabalho, vamos privilegiar apenas a primeira e a última. A primeira tese de

Antístenes sustenta que não é possível enunciar proposições contraditórias sobre o mesmo

assunto, pois se alguém fala alguma coisa ele diz essa coisa, e se outro fala essa mesma

alguma coisa e não diz o mesmo que o anterior, eles não estão dizendo a mesma coisa. Falar

é sempre dizer alguma coisa. De fato é corrente nos referirmos a alguém dizendo que esse

alguém fala, fala e não diz nada. Dizer alguma coisa que é, pois o que não é, ninguém o pode

falar ou dizer. O que constitui a posição rigorosamente parmenídica de Antístenes. Ele só

reconhece o aspecto transitivo do verbo falar, falar nunca é falar de, o que levaria a uma

ocorrência fora do discurso. Não há passagem do discurso ao ser, mas uma aderência absoluta

entre termo e coisa, que não deixa lugar à contradição. Se cada termo se esgota assim nele

mesmo, tampouco, é a conseqüência inevitável, posso atribuir um termo a outro, pois se só

podemos dizer de uma coisa que ela é, o termo só pode indicar uma coisa e não outra, em

conseqüência, não posso definir, já que a definição implica atribuir um termo ao outro. Com

isso está totalmente inviabilizada a definição essencial, já que atribuir uma essência a uma

coisa implica atribuir um termo a outro termo124. O que levou Platão a comentar

ofensivamente, em Sofista125, que só podem pensar assim aqueles que começam tarde a

instruir-se.

Assim, nós temos, a partir de uma mesma concepção de linguagem, duas

atitudes. Górgias, da ausência de distância entre ser e discurso, conclui que é impossível

comunicar, porque discurso e ente produzem sensações distintas, um se dirige aos ouvidos e o

outro aos olhos. Sabemos o que os termos indicam, mas não podemos avaliar a sensação

daquilo que eles indicam. O que podemos fazer, como vimos, é tentar perfilar experiências.

Se tivermos sorte, no momento oportuno, compartilhamos experiências, senão estamos

124
Na Física, I 2 185 b 28, Aristóteles atribui a tese ao sofista Licofrão.
125
251 b.
67

fadados a uma persistente incomunicabilidade. O que ocorre então com a relação dos termos

com as coisas? Para Górgias há apenas um encontro, diz ele:

“Quanto ao discurso, afirma, ele se constitui a partir dos objetos que nos chegam do
de fora... Pois é do encontro com o sabor que se forma, em nós, o discurso que
emitimos sobre esta qualidade, e da incidência da cor, o discurso sobre a cor”.126

Já Antístenes, ao contrário, tira outra conclusão: que é impossível

contradizer. O que constituiria, portanto, uma comunicação perfeita entre uns e outros, pois se

não há possibilidade de contradição, não há possibilidade de discórdia. Parece-nos que a razão

da divergência estaria nos pontos de partida. O que podemos adiantar, neste estágio, é que

talvez Antístenes tenha, quem sabe motivado pelos escritos sobre a verdade, de Protágoras e

de Antifonte, que acreditavam na percepção humana como medida e a pacificação do homem

consigo mesmo, respectivamente, englobando nisso todas as experiências, uma visão menos

pessimista que a de Górgias. Por seu lado, este negava todas as experiências127, só restando

aos homens o jogo fortuito de um encontro através da sensação, ou de duas experiências

semelhantes que se reconhecem, o que permitiria, ajudados pelo prazer do discurso, entre

outros, os prazeres de persuadir e ser persuadido.

126
Sexto Empírico, Adversus Mathematicos. DK 82 B 3 85. oÀ ge mh\n lo/goj, fhsi¿n, a)po\ tw½n eÃcwqen
prospipto/ntwn h(miÍn pragma/twn suni¿statai... e)k ga\r th=j tou= xulou= e)gkurh/sewj e)ggi¿netai
h(miÍn o( kata\ tau/thj th=j poio/thtoj e)kfero/menoj lo/goj, kaiì e)k th=j tou= xrw¯matoj u(poptw¯sewj
o( kata\ tou= xrw¯matoj.
127
Devemos a interpretação exposta a Untersteiner (1993), II, pp. 51-57.
1.2 OS TRABALHOS DE ANTÍSTENES

1.2.1 Os escritos catalogados e os fragmentos

Diógenes Laércio128 enumera perto de sessenta títulos de escritos de Antístenes,

que só conhecemos atualmente por testemunhos e fragmentos. Decleva-Caizzi129 supõe que talvez

tenha havido uma edição desses escritos divididos em dez tomos conforme o conteúdo deles em

suas linhas gerais. A lista dos tomos com os títulos que os formavam constitui o que se conhece

como Catálogo Laerciano130 das obras do filósofo. Se ficássemos atentos a apenas alguns desses

títulos e os contrapuséssemos aos problemas formulados e discutidos pelos sofistas, como vimos

nos capítulos anteriores, poderíamos supor que estivéssemos diante de um deles, tivesse

Antístenes nascido anos antes. Até mesmo repetem os de obras de Protágoras, como Verdade e

Sobre aqueles no Hades. Por outro lado apontam para conteúdos que guardam o caráter das

preocupações sofísticas com a natureza da linguagem, o uso da retórica e a educação moral. Isso

levaria a supor que Antístenes se tivesse mantido preso à sua primeira formação não apenas pela

sua capacidade retórica, como é documentado, tanto pelos historiadores como por fragmentos de

suas obras que são reconhecidamente de sua autoria, entre eles, As Declamações de Ájax e

Odisseu. O interesse de Antístenes pela investigação da linguagem, pela retórica e pela moral,

que ele não reconhecia como compartimentados, mas indissoluvelmente conectados, poderia ser

reflexo tardio da atividade sofística que dominou Atenas no século V a.C. Essa atitude quanto à

linguagem, à retórica e a ética, tanto dos sofistas, como continuada por Antístenes parece-nos

128
DL VI 9.
129
1966, p. 77.
130
V. Anexo A – Catálogo Laerciano.
69

estar resumida por Brancacci nesta passagem sobre Protágoras, importantíssima para toda a

compreensão da filosofia da linguagem de Antístenes:

O problema é, pois, o da justeza da denominação, e a partir das palavras de Protágoras


pode-se inferir que o nomear (kaleîn) é correto quando realiza uma perfeita
conformidade entre o nome e a coisa, a tese ontológica sendo de todo modo
pressuposta... sabemos que o sofista censurava Homero e Simônides de haverem
utilizado formas lingüísticas e expressões que, do ponto de vista da correção dos nomes
(orthótēs tō½n onomátōn), deviam ser consideradas como falsas... não há nenhum traço em
Protágoras do conceito de convencionalidade forte; pode-se determinar uma atitude que
aponta nessa direção em Eutidemo e Dionisodoro, o que conduz, aliás, a conseqüências
desastrosas no plano ético. A orthótēs tō½n onomátōn garante, ao contrário, a ética, e
igualmente a comunicação, mas, ao mesmo tempo, repensada do ponto de vista histórico-teorético,
131
afasta da descoberta da noção de ‘significado’.

Poderíamos, partindo do ponto de vista desse interesse programático, tanto dos

sofistas como de Antístenes, dividir os seus possíveis escritos, segundo o Catálogo, em três

grandes grupos:

1. As “obras lógicas”, incluindo aí as obras pedagógicas, conforme o princípio

antistênico de que a investigação dos nomes é o princípio da sabedoria.

2. As “obras éticas”, incluindo aí as obras políticas e teológicas, pois o objetivo

dessas obras é atingir o estatuto de sophós (o que possui a sabedoria).

3. As “obras retóricas”, incluindo aí as declamações e exegeses homéricas,

enquanto os heróis constituem o modelo de sabedoria que quer atingir.

Corresponderiam aos seguintes tomos listados no Catálogo:

1. Tomos 6, 7.

2. Tomos 2, 3, 4, 5.

3. Tomos 1, 8, 9, 10.

131
2002, pp. 186-7.
70

Antes de avançar na análise dos títulos132 vamos dedicar algumas palavras ao

valor da lista transmitida por Laércio. Brancacci133 diz que o Catálogo não é uma pura e simples

lista sinóptica, mas parece constituir o sumário de uma edição erudita134. Brancacci nos informa

ainda que há apenas dúvidas sobre a autenticidade do tomo 10. Quanto à autenticidade dos

títulos, isto é, que tenham sido dados pelo próprio Antístenes, seria justificada pelo fato de já

começar a ser comum na época de Platão e Antístenes que os autores de obras em prosa

atribuíssem títulos a elas. Alguns particularmente, como Verdade, já tinham sido usados por

autores anteriores a ele; no caso desse título, Protágoras, como vimos, e Antifonte; homonímia

que poderia garantir sua fidelidade à sofística. Por outro lado, o gosto por estropiar

caricaturalmente nomes próprios, como Isógrafo e Paredes (tomo 1) e Pautão135 (tomo 6), que se

referem a Isócrates, Lísias e Platão, era característico de Antístenes. Porém não parece que todos

os títulos tenham sido dados pelo autor, mas por outros a partir do conteúdo; o que parece ter

ocorrido, no caso de Aristóteles, com a Metafísica. Isso nos parece suficiente para justificar a

atenção que a lista recebe dos comentadores.

132
Em sua dissertação, Patzer (1970) estuda o Catálogo, com vista a uma edição crítica.
133
OL 18.
134
Patzer adianta a hipótese de que o editor poderia ser um estóico que teria vivido no século II ou no I d.C.
135
Em grego: ) Isogra/fhj, Desi/aj e Sa/qwn. Isógrafo é atribuído a Isócrates por este ter o gosto pela simetria
calculada nos discursos. Tradução literal, a forma em português nos parece muito feliz, por ser familiar aos nossos
ouvidos ambos os radicais que formam a palavra. Ousamos traduzir Desi/aj por Paredes por duas razões. Uma
acompanha a intenção de Antístenes, que corrompeu o nome de Lísias (Lusi/aj) por uma alusão irônica ao fato que
Lísias, advogado, não era muito bem sucedido em livrar da cadeia seus clientes. Em grego se permite o jogo com os
dois verbos lu/w (soltar) e du/w (prender); com a troca, portanto, por Antístenes, do radical de um verbo (lu/-) por
outro (du/-), é tirada a conotação do nome original, que daria a entender que Lísias era hábil em livrar seus clientes.
O termo português, “parede”, poderia dar a entender a idéia de enclausurar, prender. Acrescenta-se que há o
sobrenome Paredes, e este graficamente tem uma aparência de nome grego, como por exemplo, Palamedes,
Diomedes. Concluímos que a tradução de Sa/qwn por Pautão consegue manter o caráter vulgar da deformação
satírica do nome de Platão. Antístenes cunhou o nome a partir do termo chulo grego, sa/qh, que indica o órgão
sexual masculino. Termo que é atestado por Aristófanes em Lisístrata, 1119. Brancacci (1993), p. 32.
71

Os títulos dos escritos do primeiro grupo são os que mais evidenciam o possível

caráter sofístico de seus conteúdos. Já é um lugar comum na análise do Catálogo considerar os

tomos 6 e 7 como obras lógico-dialéticas. Vamos seguir o Catálogo Laerciano, destacando

aqueles títulos que mostram a feição sofística das preocupações de Antístenes.

O tomo 6 apresenta uma coerência e uma ordem de disposição que tem

maravilhado os especialistas.

1. Verdade (alē/theia).

2. Sobre a dialética – Tratado antilógico (perì tou dialégesthai antilogikós136).

3. Pautão <ou> sobre a contradição (a,b,c) (Sathon <e> perì toû antilégein a

b g).

4. Sobre a conversação (perì dialéktou).

Não cremos que para um não especialista esses títulos possam aparecer como

algo ordenado e coerente. O que temos aí? O conteúdo desse tomo seria a natureza da verdade

(alē/theia); a prática de opor um discurso a outro, para se chegar à conclusão de qual é o

verdadeiro (dialégesthai); a contradição, já que o discurso verdadeiro não a admite (antilégein); o

método de se chegar a essa verdade, que é o método de perguntas e respostas (diálektos137). De

fato, há uma coerência: estamos diante do processo de investigação da verdade, através do

136
Entendemos que os adjetivos gregos terminados em –iko/j (protreptiko/j, fisiognwmoniko/j, e)rwtiko/j,
oi)konomiko/j) que aparecem na lista especificam a natureza do tratado.
137
O método de perguntas e respostas era conhecido por esse nome, como testemunha a passagem do Teeteto (146
b), em que Teodoro se recusa a seguir tal método por não estar habituado a “esse tipo de conversação” e já ter
passado da idade (e)gwÜ me\n ga\r a)h/qhj th=j toiau/thj diale/ktou, kaiì ou)d' auÅ suneqi¿zesqai h(liki¿an
eÃxw).
72

confronto de argumentos, confronto por meio de perguntas e respostas. Mas ainda não temos a

história toda, há três elementos complicadores:

1. O escrito sobre a dialética é um tratado de antilógica.

2. Pautão é o nome de Platão estropiado caricaturalmente.

3. O subtítulo desse último escrito se refere à contradição simplesmente.

A impressão de ordem e coerência que temos é possível porque ela corresponde

à tradição aristotélico-platônica. Através da dialética socrática, a saber, pelo método de perguntas

e respostas, se pode chegar á verdade, pela definição por gênero. Conforme Xenofonte:

Só os temperantes podem examinar o que há de melhor em todas as coisas, distribuí-las


por gênero na prática e em teoria, joeirar o bem e refugar o mal. Este – dizia Sócrates – o
meio de tornar os homens melhores, mais felizes e mais hábeis na dialética. Ajuntava vir
o nome de ‘dialético’ do hábito de dialogar em comum e distribuir os objetos por
gêneros.138

Os elementos complicadores, no entanto, introduzem uma nova ordem, se não

nova, mas outra ordem. São esses elementos que permitem destacar Antístenes dessa tradição. A

antilógica, como vimos, com o resumo da apologia de Protágoras, é uma dialética distinta da de

Platão (Sofista), que é aquela que leva à idéia. A de Protágoras opõe discursos, ambos

verdadeiros, pois toda percepção é verdadeira: “tudo o que aparece para alguém existe para essa

pessoa”139. É uma outra concepção de verdade. O próprio Sócrates, no Teeteto, faz profissão de

138
Memoráveis, IV 5 11-12. a)lla\ toiÍj e)gkrate/si mo/noij eÃcesti skopeiÍn ta\ kra/tista tw½n
pragma/twn, kaiì lo/g% kaiì eÃrg% diale/gontaj kata\ ge/nh ta\ me\n a)gaqa\ proaireiÍsqai, tw½n de\
kakw½n a)pe/xesqai. kaiì ouÀtwj eÃfh a)ri¿stouj te kaiì eu)daimonesta/touj aÃndraj gi¿gnesqai kaiì
diale/gesqai dunatwta/touj: eÃfh de\ kaiì to\ diale/gesqai o)nomasqh=nai e)k tou= sunio/ntaj koinv=
bouleu/esqai diale/gontaj kata\ ge/nh ta\ pra/gmata.
139
Teeteto, 161 c. w¨j to\ dokou=n e(ka/st% tou=to kaiì eÃstin.
73

fé, quando diz: “não somos disputadores, porém filósofos”.140 O nome estropiado de Platão é

testemunhado por Laércio em outra passagem que não a da lista, em que narra a anedota de que

Platão teria comentado, depois de Antístenes ter lido seu tratado sobre a impossibilidade da

contradição, que este ao dizer que a contradição é impossível estava se contradizendo141. A partir

de então, tornaram-se rivais.

Escreveu ele, também, um tratado Sobre opinião e conhecimento, que faria

parte do tomo 7 no Catálogo Laerciano. Esta parte, por seu lado, seria subdividida em quatro: a)

Sobre o morrer, b) Sobre a vida e a morte), c) Sobre aqueles no Hades142, Sobre a natureza –

este divido em Questões sobre a natureza A-B. Destacamos esse título da ordem do tomo 7, que

aparentemente não possuiria uma unidade de conteúdo, porque ele remete a pontos fundamentais

da filosofia de Antístenes, a saber:

140
164 c-d. ou) fa/skontej a)gwnistaiì a)lla\ filo/sofoi eiånai.
141
DL III 35. AF 36.
142
A discussão por Antístenes sobre as coisas no Hades, que o título revela, remete ao que, na nossa opinião, seriam
duas fortes influências sobre o seu pensamento, a saber, sua explicação metafísica sobre a constituição da realidade
por composição de elementos e a sua concepção moral de que a virtude pode ser ensinada. Essas são,
respectivamente, concepções de Demócrito e Protágoras; ambos escreveram obras com o título igual ao desse escrito
de Antístenes. Fato que nos leva a fazer essa correlação entre os três filósofos. Decleva-Caizzi sugere que há um
fragmento (AF 164. DL VI, 5) que possivelmente faria parte de tal obra: “Perguntado sobre a maior bem-aventurança
para os homens, disse, ‘morrer próspero” (e)rwthqei\j ti/ makariw/teron e)n a)nqrw/poij, e)/fh “eu)tuxou=nta
a)poqanei=n”). A passagem é difícil, pois se por um lado há um travo cínico na resposta de Antístenes, o uso da
expressão eutuxei=te (Sede feliz!) era muito comum no fim das inscrições funerárias, conforme testemunho de
Demóstenes (251, 24). Isso talvez exigisse que se mudasse a tradução do fragmento, que não significaria que morrer
na prosperidade seria a maior bem-aventurança, mas que a passagem para o Hades deveria trazer felicidade à alma
imortal. Esse sentido estaria mais de acordo com as palavras ditas por Sócrates em seus últimos momentos, conforme
é narrado por Fédon, em que aquele pede aos deuses uma “passagem feliz” (eu)tuxh= genesqai\) para o Hades
(Fédon, 117 c). Há ainda o fato de que Antístenes estivera presente à execução de Sócrates e acompanhou os
ensinamentos do mestre a respeito da relação da vida mundana e da vida eterna. Devemos ter em mente que, se bem
que Antístenes defendesse uma posição metafísica sensista, considerava que viver voltado para as coisas mundanas
só desenvolvia a parte animal do homem, que para se tornar completo devia dedicar seus esforços para alcançar algo
elevado.
74

1. Decleva-Caizzi143 remete esse tratado Sobre opinião e conhecimento, à

discussão entre Sócrates e Teeteto sobre a opinião e o conhecimento144 que será analisada quando

nos detivermos sobre o problema da definição.

2. Maier145 diz que é desse escrito que dependeria justamente a famosa

definição de conhecimento, como “opinião verdadeira justificada”146

3. Zeller147 ainda pensava que a fórmula do lógos, como o que mostra o que era

ou é, restituída por Laércio148, teria sido apresentada nesse escrito.

Se formos assim nos reportar à estrutura do diálogo Teeteto, veremos que aí

estão em confronto duas concepções de verdade, ou de conhecimento, a de Protágoras como

percepção, e a de Platão, como idéia. Platão, nesse diálogo, se refere diretamente a Protágoras,

quando trata da verdade, mas ao tratar do conhecimento, ele faz alusão a “certa pessoa”, que os

comentadores especulam se não seria Antístenes. Brancacci e Decleva-Caizzi consideram esse

escrito de caráter programático, já que seria uma posição em que a tradição eleática de

Parmênides se vê diante do problema do conhecimento e da verdade levantado por Górgias. Tudo

isso talvez fizesse mais sentido se se aceitasse também que é a Antístenes que Aristóteles está se

referindo quando diz que: “Quanto às tentativas feitas por alguns dos que tratam da verdade de

determinar as condições sob as quais se deve acolher algo como verdade, é preciso dizer que elas

nascem da ignorância dos Analíticos...” 149 As condições que alguns querem determinar para a

143
1966, p. 81.
144
Teeteto, 201 c-202 c. Conhecida entre os comentadores como Passagem do sonho.
145
1943, p. 228, n. 1.
146
Teeteto, 201 c. a)lhqh\j do/ca meta\ lo/gou.
147
1923, II, p. 303 n. 1.
148
DL VI 3. lo/goj e)sti\n o( to\ ti/ h(=n h)\ e)\stin dhlw=n.
149
G 3 1005 b 2-4. oÀsa d' e)gxeirou=si tw½n lego/ntwn tine\j periì th=j a)lhqei¿aj oÁn tro/pon deiÍ
a)pode/xesqai, di' a)paideusi¿an tw½n a)nalutikw½n tou=to drw½sin.
75

verdade a que se refere Aristóteles devem ser a definição de conhecimento proposta por

Antístenes, pois como observa Ross150, Antístenes teria evidentemente introduzido nas discussões

sobre a alē/theia, isto é, da natureza última da realidade, a pesquisa das condições segundo as

quais se devem acolher como verdadeiras as crenças. Para Aristóteles o lógos era semântico,

enquanto que para Antístenes, segundo a fórmula testemunhada por Laércio, o lógos era a

dimensão da revelação, daquilo que faz ver, que manifesta, que mostra (dēlō½n). Antístenes não

teria talvez uma concepção de verdade lógica, mas de uma verdade natural que tinha de ser

conhecida através do discurso que desvela a verdade, como enunciação própria ou como discurso

polítropo. Daí ser impossível dizer o falso. O paradoxo da impossibilidade da contradição tem

antes um fundamento retórico do que lógico. Porém, não há consenso entre os comentadores se

Aristóteles se refira a Antístenes nessa passagem. Os argumentos apresentados para contraditar

que se trata de uma controvérsia com Antístenes no referido passo estão no uso do presente

enkheiroûsi e drō½sin, quando Aristóteles ao se referir a Antístenes usa sempre o passado. Se a

argumentação se restringir apenas ao âmbito estilístico, deve-se observar que o radical tanto do

adjetivo como do verbo que Aristóteles usa para designar esses filósofos a que se opõe é o

mesmo em H 3 1043 24 (apaídeutoi) e em G 3 1005 b 3 (apaideusían). A agressividade de

Aristóteles pode ser mais bem avaliada quando se sabe do interesse de Antístenes pela paideía.

Então passaremos ao problema que é a raiz de toda a questão sofística: a relação

entre a linguagem, o pensamento e a realidade com vista à educação. Este tomo 7 é considerado o

conjunto da obra pedagógico-lingüística de Antístenes, pois nele estariam reunidos os escritos

150
1924, 1, p. 263.
76

sobre a concepção do uso dos nomes, o caráter propedêutico da pesquisa dos nomes, a função

técnica da erística e o objetivo ético do ensino. Parece resumir, na verdade, a concepção, que

Brancacci não se cansa de retomar em seu livro sobre a filosofia da linguagem de Antístenes, de

que a investigação da linguagem tem uma identificação íntima com a busca da virtude. Ensinar a

virtude é para Antístenes conhecer o nome adequado da coisa. Se for ensinado o nome adequado

da virtude, esta pode se tornar “uma arma que não pode ser perdida”151. O primeiro título na lista

pode ser considerado o título geral do tomo, Sobre a educação ou sobre os nomes, dividido em

a,b,c,d,e. a) Sobre o uso dos nomes – Tratado erístico152; b) Sobre perguntas e respostas; c)

Sobre opinião e conhecimento, já comentado; d) Opiniões – Tratado erístico; e) Sobre os

problemas da aprendizagem.

Para Antístenes, “o princípio da educação é a investigação dos nomes”153. A

primeira divisão é perfeita em sua ordem. Temos em primeiro lugar, o conteúdo, que é lógico, a

saber, a investigação dos nomes; em seguida, o método de perguntas e respostas, introduzido por

Protágoras, e a prática erística, que é o confronto de opiniões; finalizando com os problemas com

que a educação se defronta. A divisão do tratado sobre a opinião e o conhecimento, no entanto,

leva ao que parece uma quebra da unidade do tomo. Aí, como vimos pouco acima, se discute o

morrer, a vida mundana e a no Hades, e a natureza. Brancacci154 interpreta que não há quebra de

unidade, mas seriam esses títulos relativos às investigações filosóficas que não poderiam estar

desmembradas das investigações lógico-lingüísticas. Observe-se que, segundo testemunho de

151
DL VI 12. AF 71. a)nafai/reton o(/plon h( a)reth/
152
V. Anexo A – Catalogo Laerciano, nn 2 e 4.
153
Arrian. Epit. dis. I, 17, 10. AF 38. a)rxh\ paideu/sewj h( tw=n o)noma/twn e)pi/skeyij.
154
OL 23.
77

Temístio155, não se deve procurar a sabedoria nem em Platão nem em Aristóteles, mas em

Antístenes, que dizia que se deve sair do plano mundano e procurar fazer um juízo das coisas

divinas; pois para isso se conectam noûs e phrónēsis. Estes temas, a oposição entre as coisas

mundanas e as coisas celestes, e a de noûs e phrónēsis, constituem o fundamento da moral de

Antístenes. Eles serão tratados nos capítulos “A virtude pode ser ensinada” e “A enunciação

própria”. Podemos adiantar que essas oposições não se colocam num sistema fechado, mas ambas

as partes delas se conectam, como é característico de Antístenes. O homem deve conhecer as

coisas do mundo, a saber, a ciência física, mas se ficar apenas nesse âmbito não será um sábio.

Essa inseparabilidade das oposições talvez seja melhor compreendida se pensarmos no livro VI

da Ética a Nicômaco, de Aristóteles, em que este se dá exatamente ao esforço de tornar estanques

as virtudes intelectuais; nele phrónēsis é a virtude das deliberações quanto às coisas mundanas,

que variam, enquanto o noûs só está voltado para os princípios universais, que não variam. Em

Antístenes, como veremos na citação de um escólio homérico de Antístenes, no capítulo sobre a

enunciação própria, é o noûs que produz a phrónēsis, num movimento descendente, que contrasta

com o movimento ascendente das coisas mundanas para as coisas sublimes, na citação de

Temístio.

Podemos, então, perceber o caminho do conhecimento, que, para Antístenes, é

uma via de direção única, em que se conectam de modo preeminente phýsis, lógos e alē/theia.

Daí, todos os livros de que tratamos a seguir constituem o aprofundamento, análises e discussões

dos aspectos da linguagem que levam ou à virtude ou ao prazer, a saber, o conhecimento do uso

155
Temist. de virtute. AF 27.
78

correto dos nomes leva à virtude, enquanto que o conhecimento dos usos diversos dos nomes leva

ao prazer. Assim temos os grupos de obras sobre a virtude e de obras sobre ou de retórica.

O caráter dos escritos éticos (tomos 2, 3, 4, 5) de Antístenes poderia ser

sofístico, já que a persuasão aparece como o tema específico de um tratado (Sobre a justiça e a

coragem – Tratado de persuasão) e como o conteúdo de uma obra (Sobre a persuasão).

Juntam-se a isso os temas da virtude como a justiça e a coragem tão ao gosto das discussões entre

Protágoras e Sócrates. Há, no entanto, questões que precisariam ser esclarecidas, já que seria

necessário entender a posição moral de Antístenes. Não resta dúvida que a moral de Antístenes é

rigidamente prática, voltada para as necessidades vitais do homem, como sua natureza (Sobre a

natureza dos animais), sua vida sexual (Sobre a procriação ou sobre o casamento – Tratado

erótico) e sua economia (Sobre a vitória – Tratado de economia). Em todos esses aspectos da

vida humana, deve-se agir com sabedoria, porque o homem recebeu dos deuses uma disposição

superior aos outros animais, como Sócrates se esforça por mostrar nos Memoráveis, em que

Xenofonte descreve o que poderia ser o conteúdo do livro sobre a natureza do homem. Começa

Xenofonte apresentando como Sócrates persuadia seus discípulos, entre eles, claro, Antístenes, a

ingressarem na senda da virtude.156 Dizia ele que os homens deviam honrar o deus que lhes deu as

sensações para gozarem o mundo, a inteligência para não serem vítimas do acaso, a postura ereta

para guardarem-se do perigo, a linguagem para se exprimirem, a alma para adquirirem a ciência,

entre muitos outros dons. Enquanto que é em Laércio que vamos encontrar o que pensava sobre o

amor no casamento: “O sábio deve casar-se para ter filhos, escolhendo para esposa a mais bela

156
Memoráveis, I IV 1 ss: protre/yasqai me\n a)nqrw¯pouj e)p' a)reth\n.
79

mulher. E que ele deve amá-la, pois só o sábio conhece quem merece ser amado”.157 Quanto à

economia, se formos interpretar, segundo Joel158, que um fragmento também recolhido em

Laércio159 pertence a esse tratado, Antístenes toma como modelo para uma atitude tanto em

situação de guerra como na vida na cidade, o do camponês que limpa o campo das ervas más,

assim os generais devem se livrar dos maus soldados e a sociedade dos maus cidadãos. Aplicado

o modelo à economia, se entenderia que esta se constituiria em se cortarem as aplicações más, a

saber, não botar dinheiro bom em maus negócios, ou livrar-se de hábitos dispendiosos.

Acompanhando o Catálogo, nada se sabe de preciso sobre o tratado acerca do

bem. Porém, como ele faz parte do tomo 3, em que estão três obras políticas (Sobre a lei ou sobre

a constituição, Sobre a lei ou sobre o belo e o justo, Sobre a liberdade e a escravidão), e como

as obras que completam o grupo de escritos éticos dizem respeito a figuras políticas, Ciro e

Aspásia, e a um herói mitológico, podemos especular que, ao tratar do bem, Antístenes tivesse

em vista o mesmo fim que Aristóteles vai perseguir na Ética a Nicômaco, estudar o sumo bem

como parte da “arquitetônica maior e mais alta”160: a política. Lembremos ainda que Aristóteles,

em ambos os tratados do prazer, na Ética VII e X, sem nomeá-lo161 (o que faz, por outro lado, em

várias de outras obras), refere-se a Antístenes. No entanto, como não conhecemos o teor do

tratado de Antístenes pouco ou nada sabemos de sua compreensão do que fosse o bem. O

máximo que podemos saber é que, para Antístenes, o bem se relaciona com o esforço (pónos),

157
DL VI 11. AF 115. gamh/sein te teknopoii¿aj xa/rin, taiÍj eu)fuesta/taij sunio/nta gunaici¿. kaiì
e)rasqh/sesqai de/: mo/non ga\r ei¹de/nai to\n sofo\n ti¿nwn xrh\ e)ra=n.
158
1901, II, p. 1080.
159
DL VI 6. AF 104. aÃtopon eÃfh tou= me\n si¿tou ta\j aiãraj e)kle/gein kaiì e)n t%½ pole/m% tou\j
a)xrei¿ouj, e)n de\ politei¿# tou\j ponhrou\j mh\ paraiteiÍsqai.
160
1 2 1094 a 26-7 th=j kuriwta/thj kaiì ma/lista a)rxitektonikh=j.
161
VII 13 1153 b 19-21; X 1 1172 a 27-33. As passagens serão citadas no capítulo “A virtude pode ser ensinada:
uma teoria do prazer”.
80

conforme lemos no fragmento que restou do livro sobre Ciro: “e que o esforço se constitui no

bem, conforme os grandes Héracles e Ciro, tirados um dos gregos, o outro dos bárbaros”.162

É o que nos parece suficiente dizer sobre o grupo de obras éticas.

O talento retórico de Antístenes já foi motivo de comentário. Causa estranheza

que o nome de Antístenes tenha sido conhecido como de um retor em toda Grécia, e haja apenas

um tomo (o primeiro) agrupando suas declamações. Sorte que não poupou seu mestre Górgias, de

que só restaram as apologias de Helena e Palamedes. Há quem atribua isso à própria natureza da

declamação, que tem um objetivo imediato e urgente, que é o de persuadir um determinado

público num momento propício. No entanto, sabemos pelo Fedro163 que os retores escreviam suas

declamações, decoravam o texto e exercitavam a declamação. Segundo Blass, que editou as

declamações que nos restaram de Górgias, Antifonte, Antístenes e Alcidamas, o tratado sobre a

elocução e as figuras de discurso remete à teoria antistênica do herói polítropo que através do uso

do discurso variado conduz à unidade a multiplicidade que está nos ouvintes. Observemos ainda

que, ao passo que nas obras éticas os heróis paradigmáticos são Ciro e Héracles, nas obras

retóricas e exegéticas, o herói supremo é Odisseu, o polítropo, como o chama Homero logo no

primeiro verso da Odisséia:

Conta-me, ó Musa, sobre o homem polítropo, que vagou por muitos caminhos

depois de haver saqueado a cidadela sagrada de Tróia. 164

162
DL VI 2. AF 19. kaiì oÀti o( po/noj a)gaqo\n sune/sthse dia\ tou= mega/lou ¸Hrakle/ouj kaiì tou=
Ku/rou, to\ me\n a)po\ tw½n ¸Ellh/nwn, to\ de\ a)po\ tw½n barba/rwn e(lku/saj.
163
227 d-228 b.
164
ãAndra moi eÃnnepe, Mou=sa, polu/tropon, oÁj ma/la polla\ / pla/gxqh, e)peiì Troi¿hj i¸ero\n
ptoli¿eqron eÃperse
81

Encerrando o grupo, temos a dizer apenas que A apologia de Orestes, nesse

primeiro tomo, deve ser uma declamação do tipo gorgiano das apologias de personagens míticos

execrados que merecem uma redenção. As obras seguintes do tomo são satíricas ou polêmicas.

As últimas obras da lista (tomos 8, 9, 10) têm característica exegética, como

indica o título de uma delas. No entanto, esta obra parece ser de natureza satírica, já que os

exegetas, nele incluído Antístenes, se opunham, como fazem Sócrates e Protágoras, no diálogo

homônimo165, a respeito de um poema de Simônides de Ceos, cujas opiniões divergiam para saber

se o poeta se contradiz quando em um passo diz que “é difícil tornar-se bom” e adiante discorda

de Pitaco que disse que “é difícil ser bom”. Sócrates aí diz que a interpretação de Protágoras do

poema teve nele o efeito de um soco. A passagem é introduzida pela justificativa da prática

sofística da exegese, prática que parece ter sido mantida por Antístenes:

Sou de parecer, Sócrates, que, para qualquer pessoa, um dos pontos fundamentais da
educação é o conhecimento a fundo da poesia, a saber, a capacidade de discernir nas
obras dos poetas o que foi dito com acerto e o que não foi, bem como a de explicá-las e
de saber fundamentar, quando interrogado, suas conclusões.166

Como se detecta dos títulos, Antístenes se dedicou à exegese homérica. Não é o

caso, neste trabalho, nos estendermos a comentar os diversos temas homéricos que se

apresentam. Dois pontos, entretanto, mereceriam que nos detivéssemos um pouco.

1. O tratado sobre o prazer.

2. Os três últimos títulos corresponderiam a obras políticas.


165
Protágoras, 338 e-344 b.
166
Idem, 338 e- 339 a. ¸Hgou=mai, eÃfh, wÕ Sw¯kratej, e)gwÜ a)ndoiì paidei¿aj me/giston me/roj eiånai periì
e)pw½n deino\n eiånai: eÃstin de\ tou=to ta\ u(po\ tw½n poihtw½n lego/mena oiâo/n t' eiånai sunie/nai aÀ te
o)rqw½j pepoi¿htai kaiì aÁ mh/, kaiì e)pi¿stasqai dieleiÍn te kaiì e)rwtw¯menon lo/gon dou=nai.
82

Se bem que seja bastante significativo o número de fragmentos de Antístenes

sobre o prazer167, nada de preciso se pode dizer a respeito do tratado sobre o prazer. Ao contrário

do que seria de esperar, o tratado seria um trabalho exegético sobre parte da Ilíada, e não da

Odisséia, pois naquela o tema e os símbolos do prazer são mais freqüentes. Dümmler chega a

conjeturar que o tema seria a figura de Helena. O que parece levar os comentadores a decidir pela

Ilíada talvez fosse o fragmento em que Antístenes faz o que parece ser uma alusão à repreensão

de Afrodite dada por Diomedes, quando ela quer proteger seu filho Enéias em meio a uma

contenda. Diz Antístenes no fragmento: “até mesmo atravessaria de flechas Afrodite, se a

pegasse, porque tem destruído muitas de nossas belas e boas mulheres”. 168 Na Ilíada, se lê:

“Diomedes, do possante grito de guerra, vociferou contra ela:

ó filha de Zeus, fica de fora da guerra e da luta;

não te basta enganar as fracas mulheres?” 169

Decleva-Caizzi170 diz que “não é fácil reconstruir com precisão o pensamento

antistênico sobre o prazer; ele aceitava aquele que surge do esforço”171 e aquele de que não cabe

arrependimento172. No entanto o bordão mais citado referente ao prazer é aquele que diz: “antes

enlouquecer que ceder ao prazer”.173 E Antístenes se tornou o exemplo acabado do anti-hedonista.

167
V. Anexo C – Sentenças sobre h(donh/.
168
Clem. Alex. strom. II, 20, 107, 2. AF 109 A-B. th\n ¹Afrodi¿thn, le/gonta, kaÄn katatoceu/saimi, ei¹
la/boimi, oÀti polla\j h(mw½n kala\j kaiì a)gaqa\j gunaiÍkaj die/fqeiren.
169
5.347-9. tv= d' e)piì makro\n aÃu+se boh\n a)gaqo\j Diomh/dhj: / eiåke Dio\j qu/gater pole/mou kaiì
dhi+oth=toj: / hÅ ou)x aÀlij oÀtti gunaiÍkaj a)na/lkidaj h)peropeu/eij;
170
1966, p. 116.
171
Stob. antol. III, 29, 65. AF 113. V. Anexo C – Sentenças sobre h)donh/.
172
Aten. XII 513 A. AF 110. V. Anexo C – Sentenças sobre h)donh/.
173
AF 108 A-F. V. Anexo C – Sentenças sobre h)donh.
83

Para encerrar, a posição política de Antístenes defendia uma cidade em que a

virtude seria o cuidado do bom governante. A concepção de Licofrão, portanto. Nela a lei não

teria vigência sobre o sábio, pois este viveria segundo as leis da virtude e não as estabelecidas por

ela.174 E em tal cidade deveria estar presente a concórdia, pois só onde vigem a concórdia e a

virtude se pode levar uma vida prazerosa.175

174
DL VI 11. AF 101. kaiì to\n sofo\n ou) kata\ tou\j keime/nouj no/mouj politeu/sesqai a)lla\ kata\ to\n
th=j a)reth=j.
175
Stob. antol. III, 1, 28. AF 93. ouÃte sumpo/sion xwriìj o(monoi¿aj ouÃte plou=toj xwriìj a)reth=j h(donh\n
eÃxei. V. Anexo C – Sentenças sobre h)donh.
.
1.2.2 A polêmica com Platão

Platão desqualifica a sofística como arte do engano (tékhnē apatētikē/).

No diálogo Sofista, pergunta que outro nome possa dar à sofística senão o de

arte do engano176; o que volta a fazer, ao concluir o diálogo; tal arte além de estar baseada em

simulacros (phantásmata), como disse anteriormente, tem a disposição (diáthesis) de imitar os

entes (mimē/mata tō½n óntōn). 177

Platão reconhece, isso é patente através de quase todos os seus escritos, que os

problemas sociais, filosóficos e lingüísticos levantados pelos sofistas eram problemas que tinham

urgência ainda na Atenas do século IV a. C. e precisavam de uma solução. Não importa que as

soluções apresentadas por Platão possam vir a ser desastrosas para a vida social ou tenham sido

realmente arrasadoras para os sofistas, e, que até tenham essa marca paradoxal de que mesmo que

sejam consideradas inaceitáveis, não podem deixar de ser examinadas. Embora tudo isso, duas

coisas, entre outras possíveis, são devidas a ele como conseqüência do seu confronto com a

sofística. Deixou-nos o que se conhece com mais evidência dos temas e questões sofistas. E o

filósofo em geral cessa de apenas plantear problemas para abrir espaço à coragem de se

apresentar como lýōn (aquele que se propõe deslindar). Lançando Platão com esta coragem um

repto que Antístenes não recusou em aceitar. Segundo Brancacci178: “as fontes atestam, em

176
240 d. fw=men kai\ th\n te/xnhn ei)=nai/ tina a)pathtikh\n au)tou=.
177
264 d. e)gxwreiÍ dh\ mimh/mata tw½n oÃntwn eiånai kaiì te/xnhn e)k tau/thj gi¿gnesqai th=j diaqe/sewj
a)pathtikh/n.
178
Muito deste capítulo é devido ao artigo de Aldo Brancacci, “Antisthène et la Tradition antiplatonicienne” (1993).
85

termos explícitos, uma polêmica de conteúdo doutrinário contra Platão: tal polêmica, que deixou

traços de vários níveis na tradição, se formou em torno da teoria das idéias e do conceito de

definição”.179

Com eles as disputas cessam de ser entre a busca de um discurso mais forte,

como propunha Protágoras, para se tornarem o confronto entre propostas de solução de

problemas. Com isso se passa a trabalhar com hipóteses, condições, teorias. De tal forma, o

problema da relação da linguagem com a realidade, herdado dos sofistas, teve como proposta de

solução por Platão a hipótese da existência de uma realidade imutável, a teoria das idéias:

daremos nomes corretos às coisas se tivermos conhecimento de tal realidade. Segundo Kerferd,

observando ironicamente: Platão “resolveu o problema da linguagem correta alterando a

realidade para se ajustar às necessidades da linguagem”. 180

Antístenes também vai tomar para si a busca de uma solução para os problemas

da linguagem, assim como fará mais tarde Aristóteles. Os três em confronto com a sofística. Mas

se sofreu influência da sofística, o que se conhece de sua produção, principalmente através dos

importantes testemunhos que estão na Metafísica, e que serão estudados em detalhe, ele se

colocou na linha dos filósofos que, mesmo de forma aporética, queriam contribuir para que o

movimento de seu pensar produzisse uma irrupção, a saber, naquilo em que acontece a discussão

investigadora, que, em última análise, tem o ente como seu objeto próprio.

179
OL 173.
180
2003, p. 134.
86

Parece-nos, e isso tem produzido muita perplexidade entre os autores, que as

atitudes de Antístenes, mesmo aquelas mais marcadamente socráticas, como a sua posição

moralista, e aquelas mais prenunciadoras do cinismo, como uma possível condenação do prazer e

da riqueza, são profundamente devedoras de sua formação sofista juvenil. Dificilmente se pode

deixar de admirar, quando se tem diante o Catálogo Laerciano dos escritos de Antístenes, a

profusão de temas ligados às preocupações sofísticas, como vimos.

Giannantoni tenta desfazer o que chama de “lugar comum da historiografia

moderna”, a saber, que, conforme testemunho de Diógenes Laércio, ele fora discípulo de

Górgias. Sua argumentação é totalmente baseada na cronologia; vamos reproduzi-la na íntegra:

... Antístenes teria sido discípulo de Górgias antes de tornar-se discípulo de Sócrates e
que, por isso, teria sido primeiro sofista e mestre de retórica e depois filósofo e fundador
da escola cínica.
Mas essa reconstrução não se sustenta antes de tudo no plano dos fatos: se Antístenes
nasceu cerca de 445 a.C. ele não pode ter sido verossimilmente discípulo de Górgias
antes da chegada do sofista a Atenas em 427 a.C. Porém sabemos por Diógenes Laércio
que já em 426 ou 424 a.C. Antístenes estava em contato com Sócrates e esta
circunstância exclui um longo período gorgiano e retórico de Antístenes e sua entrada
tardia na filosofia.181

Para contestar a interpretação, quanto a essas datas de 426 e 424 devemos

esclarecer que são inferidas por Giannantoni, enquanto que Laércio, como é sabido não remete a

datas. De fato, se reporta a uma batalha de Tanagra182, ocorrida por essa época, em que ambos,

Sócrates e Antístenes teriam participado, e tendo o primeiro feito muitos elogios para os atos de

bravura praticados pelo último. No entanto, não está claro no texto de Laércio que eles se

conheceram na época, pois o elogio pode ter sido feito pelo nome granjeado por Antístenes em tal

181
1993, p. 20.
182
DL VI 1.
87

batalha. Leve-se em consideração ainda que Górgias esteve em Atenas por esses anos, em 427

a.C.

Nada podia impedir que Antístenes se interessasse aos vinte anos por se deliciar

com a admirada habilidade retórica de Górgias, se para isso tivesse dinheiro. Kerferd diz que “em

Atenas ele [Górgias] fez discursos epidíticos e teve alunos, o que lhe rendeu consideráveis somas

em dinheiro”.183 Nada impediria tampouco que Antístenes tivesse tido contato cedo com Sócrates,

mas só muito mais tarde se unisse a ele. Diógenes Laércio184 mesmo diz que Antístenes já tinha

alunos quando começou a seguir Sócrates. Não podemos esquecer ainda a incerteza que ronda a

cronologia da história antiga.

A nós nos parece que esses argumentos cronológicos sempre são insuficientes.

O próprio Giannantoni nesse artigo deve retomar adiante185 o problema da filiação filosófica de

Antístenes, já então com respeito a um argumento que é mais forte, e que constitui o nosso

campo: a inserção de Antístenes na problemática sofística, no que diz respeito às suas doutrinas

lingüísticas e retóricas. Opomos ao argumento cronológico de Giannantoni, o argumento

doutrinário. Nessa passagem Giannantoni manifesta sua opinião sobre a filosofia de Antístenes,

que, segundo ele, é unilateral, pobre e incompleta se comparada à de Sócrates. Como

conhecemos muito menos a filosofia de Sócrates (é a de Platão, a de Xenofonte, a de

Aristóteles?) do que a de Antístenes, que possui um robusto corpo de fragmentos e testemunhos,

como vamos encontrar os termos para compará-las? O que pode nos levar facilmente a concluir

pela consideração por parte de Giannantoni da total falta de importância da filosofia de

183
2003, p. 80.
184
DL VI 2.
185
1993, p. 31.
88

Antístenes, não só por pobre e dogmática, mas também pela infelicidade de não haver dele obras

que restaram.

No entanto, Giannantoni se refere àquilo que constitui, para nós, o fulcro da

importância de Antístenes: a aplicação de suas teorias lingüísticas e retóricas no ensinamento da

moral, a partir da concepção socrática de autarquia. Antístenes negando a possibilidade da

definição essencial e defendendo a tese de que não é possível contradizer, a partir daí,

desenvolveu sua concepção de enunciação própria (oikeîos lógos), para encontrar na investigação

dos termos (epískepsis tō½n onomátōn) o princípio da educação, bem entendido, da educação

moral.

Para encerrar a exposição do nosso desacordo, pensamos que há nesse

argumento de Giannantoni dois aspectos que revelam uma tomada de posição marcadamente

platônica. Ele se mantém fiel à distinção feita por Platão entre filósofo e sofista186, com a

desqualificação do segundo; e ainda seguindo Platão, ele não aceita que os filósofos “comecem

tarde”.187

Diógenes Laércio conta como foi a origem da rivalidade entre os dois

discípulos de Sócrates: numa das famosas reuniões em casa de um dos homens ricos de Atenas,

Antístenes fez a exposição da doutrina da impossibilidade da contradição, que desagradou a

Platão. Assim é a narrativa de Laércio:

186
Sofista, 253 c: “...corremos o risco, nós que procuramos o sofista, de haver, antes de encontrá-lo, descoberto o
filósofo?” kinduneu/omen zhtou=ntej to\n sofisth\n pro/teron a)nhurhke/nai to\n filo/sofon;
187
Segundo alguns autores, o que é negado, no entanto, por Brancacci, Platão, em Sofista (251 b), estaria fazendo
uma alusão a Antístenes, quando diz que a impossibilidade da predicação só é aceita por aqueles que têm pouca
bagagem intelectual porque “começaram tarde” (o)yimaqe/si).
89

Dizem também que Antístenes estando para ler algo que tinha escrito convidou este
(Platão) para estar presente. De forma que perguntado por ele o que estava para ler, disse
que era acerca da impossibilidade da contradição; ao que disse: ‘Como escreves o
mesmo acerca do mesmo?’, e demonstrou que era uma petição de princípio; irritado
escreveu um diálogo contra Platão, Pautão; daí tinham-se como estranhos um do
outro.188

Como já vimos, a doutrina da impossibilidade da contradição era uma doutrina

que já era apresentada por Protágoras e Pródico, e tinha por base uma concepção rigorosa da

linguagem, do ser e as conseqüências morais que isso produzia, refletidas nas manifestações

retóricas. Talvez fossem esses os pontos que levaram desconforto a Platão, que tinha em muito

baixa conta a atividade dos retores. O alvo da crítica de Antístenes, em contrapartida, foi a teoria

das idéias.

O que está em questão é o estatuto ontológico do pensado (epínoia). E esse

problema não é levantado especialmente por Antístenes, antes constitui uma questão filosófica

que perdura na história da filosofia. E o próprio Platão trata do problema no Parmênides. É esta a

natureza da crítica: para Antístenes pareceu abusivo, dar uma realidade ideal, que Platão chamou

de “qualidade” (hē poiótēs) ao que era puramente concreto, a coisa para que se voltava a

sensação, o “qual” (tò poîon). Isso levou a um outro passo na crítica, a negação da possibilidade

de definição. Já que a resposta à pergunta “qual”, é a natureza ou a espécie; isso, para Antístenes,

podia levar a que se entendesse que natureza e espécie tivessem uma existência real definida.

188
DL III 35. AF 36. le/getai d' oÀti kaiì ¹Antisqe/nhj me/llwn a)naginw¯skein ti tw½n gegramme/nwn
au)t%½ par-eka/lesen au)to\n (to\n Pla/twnaŸ paratuxeiÍn. kaiì puqome/n%, ti¿ me/llei a)naginw¯skein,
eiåpen oÀti periì tou= mh\ eiånai a)ntile/gein: tou= d' ei¹po/ntoj: "pw½j ouÅn su\ periì au)tou= tou/tou gra/feij;"
kaiì dida/skontoj oÀti pe-ritre/petai, eÃgraye dia/logon kata\ Pla/twnoj Sa/qwna e)pigra/yaj: e)c
ou diete/loun a)llotri¿wj eÃxontej pro\j a)llh/louj.
90

Vamos, em primeiro lugar expor a atitude de Platão, para que a compreensão da

crítica seja clara. Para Platão, a ausência de uma realidade da “qualidade” poderia levar a que se

falasse sobre o nada. É o problema que está no Parmênides, que vamos ver logo mais adiante, e

principalmente em Sofista:

Est.: Mais uma pequena observação.


Teet.: Qual?
Est.: O discurso, desde que ele é, é necessariamente um discurso sobre alguma coisa;
pois sobre coisa nenhuma é impossível haver discurso.
Teet.: Certamente.
Est.: Então qual coisa deve ser isso?
Teet.: Nada afinal?”189

Nesse diálogo, Sofista, Platão usa o termo poîon (qual), que, como vamos ver,

seria perfeitamente aceito por Antístenes. Mas já se sente na passagem citada o desconforto do

Estrangeiro de Eléia com o estatuto ontológico daquilo que responde à pergunta “qual?”: não

podemos enunciar um discurso que não seja sobre alguma coisa (tinós eînai lógon). A solução de

Platão será, segundo Brancacci190, recorrer à introdução de um “neologismo”, poiótēs. No

Teeteto, Sócrates, ao tentar mostrar a necessidade de haver um mundo de idéias, para que haja

conhecimento, o que não seria possível num mundo submetido à mudança ininterrupta, pois o

conhecimento pressupõe conhecimento de alguma coisa estável, observa que o termo poiótēs

causa uma certa incompreensão por parte de Teeteto. Citamos:

Analisa também o que eles [os seguidores de Heráclito] declaram: já não dissemos que
eles explicam a geração de quentura ou da brancura, ou seja, do que for, pelo movimento
de cada uma dessas coisas, no momento da sensação, entre o agente e o paciente, com o
que este se torna aquele que sente, não sensação, e o agente, por sua vez, se torna um
certo qual, não propriamente a qualidade. Decerto a expressão “qualidade” não só te

189
262 e: CE. )/Eti dh\ smikro\n to/de. QEAI. To\ poi=on; CE. Lo/gon a)nagkai=on, o(/tanper v)=, tino\j ei)=nai
lo/gon, mh\ de\ tino\j a)du/naton. QEAI. Ou(/twj. CE. Ou)kou=n kai\ poio/n tina au)to\n ei)=nai dei=; QEAI.
Pw=j d )ou)/;
190
1993, p. 34-5.
91

parece estranha como difícil de apreender em sua significação geral. Então, ouve por
partes.191

Platão encaminha a compreensão da novidade do vocábulo por um processo de

raciocínio paralelo que leve a uma conclusão que peça um termo que não está presente na

linguagem comum, a saber, poiótēs. O agente produz, por exemplo, algo quente que é sentido

pelo paciente. De tal forma, o paciente se torna aquele que sente algo quente, mas não se torna a

sensação de algo quente; por seu lado, o agente se torna um certo qual, no caso algo quente, mas

não a “qualidade” da quentura. Podemos ver assim que o raciocínio visa estabelecer a diferença

que há nos pares de termos como quentura (thermótēs) – quente (thermón) e brancura (leukótēs) –

branco (leukón); oposição que corresponderia ao estatuto puramente mental da “quentura” e da

“brancura” e à subsistência positiva do “quente” e do “branco”. M. Narcy192 observou que o

termo poiótēs aparece como “um nome forjado para designar esta ausência, no fenômeno da

sensação, da fixidez que conviria àquilo que se crê ser o objeto dela”.

É conhecida a resistência que a teoria platônica das idéias levantou desde o

primeiro momento. O próprio Platão expõe a dificuldade estrutural desta teoria em seu diálogo

Parmênides193: como dar sustentação ontológica à qualidade (hē poiótēs)? Ou nos termos de

Parmênides, no diálogo: óntos ēì mēì óntos? (a qualidade é um ente ou não-ente?) Na realidade em

movimento só temos a sensação de que alguma coisa está quente, por exemplo, mas falamos da

191
Teeteto, 182 a-b. Sko/pei dh/ moi to/de au)tw½n: th=j qermo/thtoj hÄ leuko/thtoj hÄ o(touou=n ge/nesin ou)x
ouÀtw pwj e)le/gomen fa/nai au)tou/j, fe/resqai eÀkaston tou/twn aÀma ai¹sqh/sei metacu\ tou=
poiou=nto/j te kaiì pa/sxontoj, kaiì to\ me\n pa/sxon ai¹sqhtiko\n a)ll' ou)k aiãsqhsin [eÃti] gi¿gnesqai,
to\ de\ poiou=n poio/n ti a)ll' ou) poio/thta; iãswj ouÅn h( "poio/thj" aÀma a)llo/koto/n te fai¿netai oÃnoma
kaiì ou) manqa/neij a(qro/on lego/menon: kata\ me/rh ouÅn aÃkoue.
192
Apud Brancacci (1993), p. 35 n.15. M. Narcy, “Qu’est-ce qu’une figure? Une difficulté de la doctrine
aristotélicienne de la qualité”, Concepts et catégories dans la pensée antique, Etudes publiées sous la direction de P.
Aubenque, Paris, 980, p. 205.
193
132 b.
92

quentura como algo que está fora da experiência sensível. Algo que está, portanto, apenas no

pensamento.

Tal questão se desdobra então em duas:

Como passar do que só está nas almas (en psykhaîs), a saber, o pensamento

(nóēma), para a realidade em movimento, em que a sensação está mudando sem cessar?

Impossível. Então a qualidade estaria só no pensamento.

O que leva a outra pergunta:

Se estiver só no pensamento, será então, pensamento de nada (nóēma oudenós)?

A solução de Platão (lýōn hò Plátōn):

Deve haver uma realidade imóvel que receba a qualidade, a forma (eîdos).

Muitos opositores da teoria das idéias param na solução à primeira questão da

subdivisão: a ‘qualidade’ estaria só no pensamento, como pensava Antístenes. Muitos

comentadores de Aristóteles, analisando a passagem (8 a 25) das Categorias, atestam a posição

de Antístenes. Transcrevemos, primeiro, a passagem: “Entendo por qualidade enquanto194 qual

coisa é dita; diz-se a qualidade em muitos sentidos”.195 Para Aristóteles, ao contrário de

Antístenes, as qualidades se encontram nas coisas, e sua presença nas coisas se explica pelo

hábito (héxis), como, por exemplo, justeza (dikaiosýnē) e temperança (sōphrosúnē), e pela

disposição (diáthesis), como, por exemplo, quentura (thermótēs) e doença (nósos); o hábito é

194
Um comentário a respeito de nossa tradução: nos tempos das discussões políticas no Brasil na década de 60,
houve um uso abusivo de tal expressão de uma qualidade, enquanto... Os oponentes nos acirrados debates se
qualificavam ao falar, dizendo, “estou falando enquanto professor” ou “estou falando enquanto cidadão”. Costuma-
se correntemente usar, no caso, a expressão na qualidade de.
195
Cat. 8 b 25-6 : Poio/thta de\ le/gw kaq' hÁn poioi¿ tinej le/gontai: eÃsti de\ h( poio/thj tw½n pleonaxw½j
legome/nwn.
93

duradouro, enquanto que a disposição é passageira. Assim a qualidade é dita da coisa em muitos

sentidos.

Entre outros comentadores, Simplício disse:

o ‘qual’ é mais conhecido e mais perto de nós do que a ‘qualidade’, se é verdade que
alguns eliminam a ‘qualidade’ como de fato subsistente, e que, ao contrário, ninguém
elimina o ‘qual’, e que Antístenes reconhece que vê o cavalo, mas não vê a cavalidade, e
que um se vê com os olhos, enquanto a outra é apreendida graças ao raciocínio, e que um
é considerado na ordem das causas, o outro segue como efeito, que um é corpo e
composto, a outra simples e incorpórea.196

Elias: “É oportuno também, a propósito da ‘qualidade’, tratar brevemente da

posição de Antístenes e de seus seguidores, que dizem: ‘vejo o homem, mas não vejo a

humanidade!’, e de tal modo suprimem totalmente a ‘qualidade’”.197

E de uma forma mais anedótica, ainda Simplício:

Alguns dos antigos suprimiam completamente a ‘qualidade’, admitindo somente a


existência do ‘qual’, como por exemplo, Antístenes, que, discutindo uma vez com
Platão, teve a dizer: ‘Ó Platão, vejo o cavalo, mas não vejo a cavalidade!’. E este de
volta: “Porque tens o olho com que se vê o cavalo, mas aquele com que se contempla a
cavalidade não te concedeste.198

196
Simplic. in cat. 8 b 25, p. 211, 15. AF 50 B. gnwrimw¯teron de\ kaiì prosexe/steron h(miÍn th=j poio/thtoj
to\ poio/n, eiãper th\n me\n poio/thta kaiì a)nairou=si¿ tinej, w¨j mhde\ u(festw½san oÀlwj, to\ de\ poio\n
ou)deiìj a)naireiÍ, kaiì to\n me\n iàppon o(ra=n o(mologeiÍ o( ¹Antisqe/nhj, th\n de\ i¸ppo/thta mh\ o(ra=n, kaiì to\
me\n e)n o)fqalmoiÍj o(ra=tai, h( de\ t%½ logism%½ katalamba/netai, kaiì to\ me\n e)n ai¹ti¿ou ta/cei
prohgeiÍtai, to\ de\ w¨j a)pote/lesma eÀpetai, kaiì to\ me/n e)sti sw½ma kaiì su/nqeton, to\ de\ a(plou=n kaiì
a)sw¯maton.
197
Elias in cat. 8 b 25 220, 27 ss. AF 50 C* oÀti eÃdei kaiì periì th=j poio/thtoj sunto/mwj dialabeiÍn di'
¹Antisqe/nhn kaiì tou\j periì au)to\n le/gontaj "aÃnqrwpon o(rw½, a)nqrwpo/thta de\ ou)x o(rw½", w¨j
a)nairou=ntaj th\n a(plw½j poio/thta.
198
A Simplic. in cat. 8 b 25, p. 208, 28. AF 50 tw½n de\ palaiw½n oi¸ me\n a)nv/roun ta\j poio/thtaj tele/wj, to\
poio\n sugxwrou=ntej eiånai, wÐsper ¹Antisqe/nhj, oÀj pote Pla/twni diamfisbhtw½n, "wÕ Pla/twn,
eÃfh, iàppon me\n o(rw½, i¸ppo/thta de\ ou)x o(rw½". kaiì oÁj eiåpen: "oÀti eÃxeij me\n %Ò iàppoj o(ra=tai to/de to\
oÃmma, %Ò de\ i¸ppo/thj qewreiÍtai, ou)de/pw ke/kthsai".
94

Ou mais críticos, como Amônio:

Por isso Antístenes sustentava que os gêneros e as espécies são pensamentos nus. Dizia
de fato: ‘vejo o cavalo, mas não a cavalidade, e ainda: ‘vejo o homem, mas não vejo a
humanidade’. Tais coisas dizia baseando-se apenas na sensação, incapaz de chegar, com
o pensamento, a um entendimento mais alto.199

Antístenes vai investigar a relação da linguagem com a única realidade que

conhece. A realidade que ele vê com os olhos do corpo. Aristóteles se estende na Metafísica

apontando as inúmeras insuficiências que encontrava na teoria das idéias. E não sabemos se a

teoria das idéias é uma concepção socrática ou é uma doutrina elaborada pelo próprio Platão. Lê-

se em Diógenes Laércio que, logo após a leitura que Platão fez de seu diálogo Lisis, em que

atribuiu ao mestre afirmações que este não reconheceu, Sócrates teria dito: “Por Héracles,

quantas mentiras este jovem contou a meu respeito!” 200

Podemos então ter o seguinte quadro:

A polêmica antiplatônica diz respeito

1) à subsistência positiva da idéia, afirmando o seu estatuto puramente

mental.201

2) como corolário, à noção de qualidade (poiótēs), que daria às coisas sensíveis,

que são mutáveis, uma estabilidade requerida para a determinação lingüística e para o

conhecimento

* Na edição dos fragmentos, Decleva Caizzi não cita a passagem de Elias, mas remete a ela. O passo reproduzido na
sua coletânea de fragmentos de Antístenes é tirado de Amônio, in Porf. isagog. p. 40, 6: o( toi¿nun ¹Antisqe/nhj
eÃlege ta\ ge/nh kaiì ta\ eiãdh e)n yilaiÍj e)pinoi¿aij eiånai le/gwn oÀti "iàppon me\n o(rw½, i¸ppo/thta de\ ou)x
o(rw½" kaiì pa/lin "aÃnqrwpon me\n o(rw½, a)nqrwpo/thta de\ ou)x o(rw½".
199
AF 50 C. Amon. in Porfir. isagog. p. 40, 7. o( toi¿nun ¹Antisqe/nhj eÃlege ta\ ge/nh kaiì ta\ eiãdh e)n yilaiÍj
e)pinoi¿aij eiånai le/gwn oÀti "iàppon me\n o(rw½, i¸ppo/thta de\ ou)x o(rw½" kaiì pa/lin "aÃnqrwpon me\n o(rw½,
a)nqrwpo/thta de\ ou)x o(rw½." tau=ta e)keiÍnoj eÃlege tv= ai¹sqh/sei mo/nv zw½n kaiì mh\ duna/menoj t%½
lo/g% ei¹j mei¿zona euÀresin e(auto\n a)nenegkeiÍn.
200
DL III 35. (Hra/kleij," ei¹peiÍn, "w¨j polla/ mou katayeu/deq' o( neani¿skoj.
201
OL 175-177.
95

3) à possibilidade de definição.

A posição de Antístenes quanto aos pontos 2 e 3 o coloca numa atitude

frontalmente contrária à de Sócrates apresentada por Aristóteles; o que pode ser observado, se

comprovado, com a atitude aristotélica nesta passagem da Metafísica:

Eles [os platônicos] consideram as idéias como universais e, além disso, como essências
cada uma e separadas... A razão, pela qual os filósofos que defendem as idéias como
essências universais reuniram na mesma realidade essas duas características opostas,
consiste em que eles não as consideravam como essências idênticas às coisas sensíveis.
De fato, eles pensavam que, no âmbito do sensível, cada coisa estava sujeita ao contínuo
fluir e que nenhuma delas permanecia, e portanto, pensavam que o universal existia
separado de cada coisa e que era algo diferente delas. Como já dissemos anteriormente,
esse modo de raciocínio foi iniciado por Sócrates mediante as definições; Sócrates,
porém, não separava de cada coisa as definições. E ele tinha plena razão nisso. Isso
resulta claramente das conseqüências: sem o universal não é possível chegar ao
conhecimento; ao contrário, a separação do universal é causa de todas as dificuldades em
que incorre a doutrina das idéias. 202

Segundo Aristóteles, portanto, Sócrates, que não admitiria as idéias separadas,

isto é, constituindo uma outra realidade, um mundo de idéias à parte, teria sido, através de sua

concepção de definição, quem levou Platão a concluir pela necessidade de haver algo estável para

que se pudesse ter conhecimento. Isso talvez fique mais claro se citarmos outra passagem de

Aristóteles:

“Platão, com efeito, tendo sido desde jovem amigo de Crátilo e seguidor das doutrinas
heraclitianas, segundo as quais todas as coisas sensíveis estão em contínuo fluxo e das

202
M 9 (N 1)1086 a 32- b 7. aÀma ga\r kaqo/lou te [w¨j ou)si¿aj] poiou=si ta\j i¹de/aj kaiì pa/lin w¨j
xwrista\j kaiì tw½n kaq' eÀkaston. tau=ta d' oÀti ou)k e)nde/xetai dihpo/rhtai pro/teron. aiãtion de\ tou=
suna/yai tau=ta ei¹j tau)to\n toiÍj le/-gousi ta\j ou)si¿aj kaqo/lou, oÀti toiÍj ai¹sqhtoiÍj ou) ta\j au)ta\j
[ou)si¿aj] e)poi¿oun: ta\ me\n ouÅn e)n toiÍj ai¹sqhtoiÍj kaq' eÀkasta r(eiÍn e)no/mizon kaiì me/nein ou)qe\n
au)tw½n, to\ de\ kaqo/lou para\ tau=ta eiånai¿ te kaiì eÀtero/n ti eiånai. tou=to d', wÐsper e)n toiÍj eÃmpro-
sqen e)le/gomen, e)ki¿nhse me\n Swkra/thj dia\ tou\j o(rismou/j, ou) mh\n e)xw¯rise/ ge tw½n kaq' eÀkaston:
kaiì tou=to o)rqw½j e)no/hsen ou) xwri¿saj. dhloiÍ de\ e)k tw½n eÃrgwn: aÃneu me\n ga\r tou= kaqo/lou ou)k
eÃstin e)pisth/mhn labeiÍn, to\ de\ xwri¿zein aiãtion tw½n sumbaino/ntwn dusxerw½n periì ta\j i¹de/aj
e)sti¿n.
96

quais não se pode ter conhecimento, manteve posteriormente essas convicções. Por sua
vez, Sócrates se ocupava de questões éticas e não da natureza em sua totalidade, mas
buscava o universal no âmbito daquelas questões, tendo sido o primeiro a fixar a atenção
nas definições. Ora, Platão aceitou essa doutrina socrática, mas acreditou, por causa da
convicção acolhida dos heraclitianos, que as definições se referissem a outras realidades
e não às realidades sensíveis.”203

Sem levar em consideração a precisão histórica ou não de Aristóteles, se foi

Sócrates ou foram os pitagóricos que se interessaram pela primeira vez pela definição, com essas

duas citações o que queremos, para caracterizar a posição de Antístenes contrária à de Sócrates, é

sublinhar que Aristóteles concorda com Sócrates, admitindo não só a definição, mas o caráter

subsistente do universal (a qualidade), não separado, mas coincidente em cada coisa.

Resumindo:

1) Teria sido de Platão, instado por sua formação heraclítica, a concepção de

universais (qualidades) separadas,

2) Sócrates buscou os universais (qualidades) nas suas investigações éticas.

3) Essas qualidades, universais, ou seja, essências, seriam passíveis de

definição.

A crítica de Antístenes à doutrina das idéias, pensamos, é do mesmo teor da de

Aristóteles, o que os afasta é a renúncia por parte de Antístenes da concepção de um princípio

formal na composição dos corpos sensíveis. O que será compreendido em parte por Aristóteles,

203
A 6 987 a 32 – 987 b 6. e)k ne/ou te ga\r sunh/qhj geno/menoj prw½ton Kratu/l% kaiì taiÍj
¸Hrakleitei¿oij do/caij, w¨j a(pa/ntwn tw½n ai¹sqhtw½n a)eiì r(eo/n-twn kaiì e)pisth/mhj periì au)tw½n ou)k
ouÃshj, tau=ta me\n kaiì uÀsteron ouÀtwj u(pe/laben: Swkra/touj de\ periì me\n ta\ h)qika\
pragmateuome/nou periì de\ th=j oÀlhj fu/sewj ou)qe/n, e)n me/ntoi tou/toij to\ kaqo/lou zhtou=ntoj kaiì
periì o(rismw½n e)pisth/santoj prw¯tou th\n dia/noian, e)keiÍnon a)podeca/menoj dia\ to\ toiou=ton
u(pe/laben w¨j periì e(te/rwn tou=to gigno/menon kaiì ou) tw½n ai¹sqhtw½n:
97

como veremos no devido momento. É preciso ter bem em vista que o que Antístenes nega não é a

possibilidade de toda definição, mas da definição essencial, que, ousamos dizer, é a herança

platônica na teoria hilemórfica.

É com formação sofista que Antístenes teve seu embate com Platão. Uma tese

de Górgias, exposta na segunda seção do tratado sobre o não-ser, permite identificar uma das

fontes teóricas possíveis da redução por Antístenes do universal platônico ao pensamento nu.204 É

a segunda tese do tratado: “mesmo se algo é, é incognoscível e inconcebível”.205

São três os argumentos dessa seção:

Ser pensado não implica ser ente. Se as coisas pensadas não são entes, o ente

não é pensado: se as coisas pensadas pudessem ser brancas, então as coisas brancas poderiam ser

pensamentos, assim também se os entes pudessem ser pensados, então os pensamentos poderiam

ser entes. O que é absurdo. Se os pensamentos não são entes, o ente não é pensado. E se tudo que

se pensasse fosse ente, se se pensa que um homem voa ou que carruagens correm no mar não

quer dizer que, de fato, um homem voa ou carruagens correm no mar. O ente não é pensado,

portanto.

204
É como expressamos as concepções que constam do vocabulário filosófico da antiguidade tardia como em
Simplício, In Aristot Cat, p 216, yilai\ mo/nai e)/nnoiai, ou Amônio, In Porphyr. Isagog., p. 40, 6-10, yilai=j
e)pi/noiaij, que se traduzem por “puros conceitos”. Salvaguardamos a nossa posição quanto ao ponto que diz
respeito à propriedade de atribuir a Antístenes concepções que não correspondam à sua doutrina. Queremos evitar
que essas expressões, e aquela que proponho, remetam diretamente a uma compreensão de que Antístenes entenderia
a ‘qualidade’ como um puro conceito. Como veremos no lugar próprio, a concepção do termo em Antístenes
constitui o fulcro de sua doutrina, fulcro não só lingüístico, mas com alcance principalmente moral.
205
DK 82 B 3 77. oÀti de\ kaÄn hÅi ti, tou=to aÃgnwsto/n te kaiì a)nepino/hto/n e)stin.
98

Ser pensado não implica ser ente ou não-ente. Se os pensamentos fossem entes,

os não-entes não seriam pensados: aos contrários cabem atributos contrários. O que é absurdo, já

que pensamos em não-entes como a Cila e a Quimera. O ente não é pensado, portanto.

Ser pensado não implica ser ente ou não-ente critério de subsistência do

pensado.

O argumento de Górgias é o seguinte:

Tal como as coisas vistas são ditas visíveis, porque são vistas; e as coisas audíveis,
audíveis, porque são ouvidas; e que não rejeitamos as coisas visíveis porque não as
ouvimos, nem eliminamos as coisas audíveis porque não as vemos (cada categoria, com
efeito, deve ser julgada pelo sentido que lhe é específico, e não por um outro); assim, as
coisas pensadas, mesmo se não são vistas pela visão nem ouvidas pela audição, também
serão, pelo único fato de serem apreendidas a partir do critério que lhes é próprio. Se,
com efeito, alguém pensa que carruagens correm sobre o mar, mesmo se não as vê, é,
mesmo assim, levado a crer que carruagens correm sobre o mar. Ora, isto é absurdo. O
ente não é, portanto, pensado ou apreendido. 206

Não decorre, portanto, do fato de ser pensada que uma coisa é ou não é. O que

passa no nosso pensamento não é o que é. O pensado não é dotado de existência objetiva. É o

raciocínio que Górgias quer demonstrar.

Ao rejeitar as ‘qualidades’ por serem para ele apenas pensadas, Antístenes

parece entender como Górgias. A ‘cavalidade’, por exemplo, seria simplesmente uma coisa

pensada, pois o ente é o cavalo. Seguir, como faz Platão, da coisa pensada a sua realidade

206
DK 82 B 3 81. wÐsper te ta\ o(rw¯mena dia\ tou=to o(rata\ le/getai oÀti o(ra=tai, kaiì ta\ a)kousta\ dia\
tou=to a)kousta\ oÀti a)kou/etai, kaiì ou) ta\ me\n o(rata\ e)kba/llomen oÀti ou)k a)kou/etai, ta\ de\
a)kousta\ parape/mpomen oÀti ou)x o(ra=tai (eÀkaston ga\r u(po\ th=j i¹di¿aj ai¹sqh/sewj a)ll' ou)x u(p'
aÃllhj o)fei¿lei kri¿nesqaiŸ, ouÀtw kaiì ta\ fronou/mena kaiì ei¹ mh\ ble/poito th=i oÃyei mhde\ a)kou/oito
th=i a)koh=i eÃstai, oÀti pro\j tou= oi¹kei¿ou lamba/netai krithri¿ou. 82 ei¹ ouÅn froneiÍ tij e)n pela/gei
aÀrmata tre/xein, kaiì ei¹ mh\ ble/pei tau=ta, o)fei¿lei pisteu/ein oÀti aÀrmata eÃstin e)n pela/gei
tre/xonta. aÃtopon de\ tou=to: ou)k aÃra to\ oÄn froneiÍtai kaiì katalamba/netai.
99

ontológica não encontra fundamento irrefutável. No entanto, o problema parece persistir, tanto

para Platão, como para Górgias e Antístenes, a saber, qual é o estatuto ontológico de cada coisa,

já que cada coisa é corruptível. Sem levar em conta agora o problema do conhecimento já

comentado, vamos ver como Platão tampouco tinha necessidade de usar a doutrina das formas

para dar consistência ontológica a cada coisa. Alexandre é bastante esclarecedor de como Platão

demonstra a necessidade da subsistência positiva das idéias. Diz ele:

“O argumento que funda a existência das idéias no fato de que se pensa se apresenta
como segue. Se, quando pensamos um homem, um ser terrestre ou um animal, pensamos
alguma coisa que está no número das realidades, e não em cada um deles – pois mesmo
depois de corrompidos pensamos neles – é evidente que, além de cada coisa sensível, há
o que pensamos, que essas coisas são ou não são; com efeito, não pensamos num não-
ente. Isso é a forma ou idéia”. 207

O que está em questão é a admissão da equação parmenídica – noeîn = eînai.

Aceita a equação, é inviabilizada qualquer possibilidade de pensar o não-ente.

Adiante, Alexandre vai recorrer à crítica de Aristóteles208, os platônicos

introduziram desnecessariamente idéias que têm o mesmo nome que é aplicado a cada coisa, sem

resolver os problemas tanto de pensar as coisas corruptíveis como as coisas imaginadas, como a

Quimera. Encerra Alexandre209 concluindo que o argumento acima tampouco demonstra a

existência das idéias.

(Aristóteles) diz que esse argumento estabelece que há idéias mesmo das coisas que se
corrompem e que são destruídas, por exemplo, de Sócrates e de Platão; e com efeito, as
pensamos e temos delas uma imagem que conservamos mesmo que já não existam; pois

207
In Aristot. Meta., p. 81, 25-82, 2 ¸O lo/goj o( a)po\ tou= noeiÍn kataskeua/zwn to\ eiånai i¹de/aj toiou=to/j
e)stin. ei¹ e)peida\n now½men aÃnqrwpon hÄ pezo\n hÄ z%½on, tw½n oÃntwn te/ ti noou=men kaiì ou)de\n tw½n kaq'
eÀkaston (kaiì ga\r fqare/ntwn tou/twn me/nei h( au)th\ eÃnnoiaŸ, dh=lon w¨j eÃsti para\ ta\ kaq' eÀkasta
kaiì ai¹sqhta/, oÁ kaiì oÃntwn e)kei¿nwn kaiì mh\ oÃntwn noou=men: ou) ga\r dh\ mh\ oÃn ti noou=men to/te. tou=to
de\ eiådo/j te kaiì i¹de/a e)sti¿n.
208
A 9 990 b 1-15.
209
1891., 82, 1-7.
100

há uma imagem das coisas que não existem mais. Mas pensamos também nas coisas que
não existem absolutamente, como o centauro e a quimera; por conseqüência, esse
argumento tampouco demonstra a existência das idéias.210

Ora, Antístenes vai partir deste ponto para assumir duas atitudes que são

fundamentais na sua doutrina da linguagem. Ele vai sustentar que cada coisa sensível tem um

nome que lhe é próprio por natureza, o que vai impedir a concepção de qualquer realidade que

não seja aquela que vemos, radicalmente antiplatônica; essa posição tem como conseqüência uma

adesão irrestrita à concepção da identidade de ser-pensar-dizer, ultra-parmenídica, segundo

Cassin211, e prima facie, frontalmente antigorgiana. Se Górgias tira dessa concepção de discurso,

isto é, a aderência total do termo à coisa, como já vimos, a conclusão de que é impossível

comunicar, Antístenes vai sustentar o paradoxo de que é impossível contradizer. As duas atitudes

de Antístenes vão ensejar a possibilidade de que a virtude seja ensinada, como veremos a seguir.

210
In Aristot. Meta., p. 82, 1-10. fhsiì dh\ tou=ton to\n lo/gon kaiì tw½n fqeirome/nwn te kaiì e)fqarme/nwn
kaiì oÀlwj tw½n kaq' eÀkasta/ te kaiì fqartw½n i¹de/aj kataskeua/zein, oiâon Swkra/touj, Pla/twnoj:
kaiì ga\r tou/touj noou=men kaiì fantasi¿an au)tw½n fula/ssomen kaiì mhke/ti oÃntwn sw¯zomen:
fa/ntasma ga/r ti kaiì tw½n mhke/ti oÃntwn. a)lla\ kaiì ta\ mhd' oÀlwj oÃnta noou=men, w¨j
¸Ippoke/ntauron, Xi¿mairan: wÐste ou)de\ o( toiou=toj lo/goj i¹de/aj eiånai sullogi¿zetai.
211
2005, p. 40.
1.3 O DISCÍPULO DEVOTO DE SÓCRATES . A VIRTUDE PODE SER ENSINADA: UMA
TEORIA DO PRAZER.

Sócrates encantou Antístenes por sua força moral. Disse este: a virtude é

suficiente (autárkēs) para a felicidade e não necessita de nada, exceto da força de Sócrates.212

Parece ser esse o único ponto na ética de Antístenes em que não há nenhum problema, enquanto

que sua relação com a doutrina e os métodos socráticos não pode ser dita concordante. E Rodier

diz mesmo que Antístenes admirava mais em Sócrates não o seu ensinamento, mas o seu

caráter213; o que o seduziu foram o desdém pelas convenções, a serenidade e a resistência de

Sócrates. Um ponto de discordância já vimos no capítulo anterior, a recusa da definição, ponto

central do socratismo que constitui a marca do que entendemos até hoje como racionalismo: a

realidade descarnada de suas ambigüidades estruturais através da definição. Essa postura de

Antístenes contra a definição levou a que muitos problemas surgissem para a reconstituição de

sua moral, assim como de sua posição em face do prazer. O problema mais urgente seria o fato

de ele afirmar que a virtude pode ser ensinada; isso implicaria a necessidade de a virtude ser um

conhecimento, pois só se pode ensinar o que se pode conhecer. O problema se torna mais

complexo quando nos colocamos diante de como o próprio Antístenes entende o que seja o

conhecimento. É sua posição diante do conhecimento que vai determinar a sua ética. Como

vamos tentar ver em seguida.

212
DL VI 11. AF 70. au)ta/rkh de\ th\n a)reth\n pro\j eu)daimoni¿an, mhdeno\j prosdeome/nhn oÃti mh\
Swkratikh=j i¹sxu/oj.
213
1926, p. 29.
102

“O princípio mesmo de sua doutrina moral, ainda segundo Rodier, está longe de

ter sido elucidado”. 214 A opinião corrente de muitos intérpretes, entre eles Rodier, é a de que a

sua ética é uma ética da ação e da sensação, totalmente desligada de cuidados a respeito do

conhecimento. O princípio de sua doutrina moral, então, deve ser buscado. Cremos que isso pode

ser feito a partir de três concepções de virtude atribuídas a ele por Laércio.

1. A virtude pode ser ensinada.

2. A virtude é uma espécie de trabalho.

3. A virtude não necessita de muitos discursos nem das ciências

matemáticas.215

Vejamos qual dessas poderíamos entender como a principal. Duas dessas

concepções (1 e 3) já nos são familiares. No capítulo sobre a tradição sofista, citamos passagens

do Protágoras, em que se faziam referências ao ensino da virtude e ao ensino das ciências

matemáticas. Lá vimos que Protágoras defende que a virtude pode ser ensinada e que os jovens

devem ser poupados da maçada de estudar as ciências matemáticas. Antístenes parece continuar

as concepções pedagógicas de Protágoras. Brancacci, se bem que em outros termos, reconhece tal

herança: “Antístenes retoma diretamente da tradição filosófica precedente – eleática e sofística –

mas interpreta à luz da sua elaboração particular do pensamento socrático”.216 Mas, como diz

214
1926, p. 25.
215
DL VI 11. AF 69, 70. 1. didakth\n a)pedei¿knue th\n a)reth/n.
2. th/n t' a)reth\n tw½n eÃrgwn eiånai,
3. mh/te lo/gwn plei¿stwn deome/nhn mh/te maqhma/twn.
Parece que vale explicar que ma/qhma, no plural maqh/mata, designa as ciências matemáticas, isto é, a aritmética, a
geometria e a astronomia. Se bem que Antístenes não as vê como necessárias para a virtude, no entanto, como já
comentamos, o homem que se quer sábio deve conhecê-las, mas não são elas suficientes para a sabedoria.
216
OL 97.
103

Brancacci, se Antístenes deu uma elaboração própria ao pensamento de Sócrates, o mesmo fez

com o de Protágoras, quanto à possibilidade de ensinar a virtude: a virtude só pode ser ensinada

se partirmos da investigação dos nomes; o que o aproxima de Pródico. De tal forma, o que parece

ser sua inovação é a concepção de virtude como trabalho, como ação, como esforço (pónos). Isso

o colocaria na ponta de uma outra tradição, a cínico-estóica. Sem deixar de reconhecer que o

cinismo deve sua atitude moral a Antístenes, acompanhamos Brancacci no seu entendimento de

que pela especificidade de sua formação socrática217 estamos convidados a corrigir a “imagem do

filósofo avalizada pela tradição que o assimilou ao cinismo posterior”.218

O que surpreende logo de saída, quando se quer saber afinal de que se trata

quando se estuda a moral antistênica, é o seu desprezo pela ciência. Discípulo devoto de Sócrates,

parece não ter tido muito zelo pelos estudos físicos, assim como seu mestre219, interessado antes

em investigar como agir para atingir a boa vida. Mas para Sócrates era o conhecimento que

determinava a prática e que dava valor à virtude. Se o conteúdo da virtude não está no

conhecimento, este então é supérfluo para o moralista. Os cínicos ostentarão um desprezo solene

quanto ao conhecimento, como se pode ver na passagem de Laércio sobre Diógenes de Sinope:

Os gramáticos anseiam por aprender tudo sobre os infortúnios de Odisseu, e ignoram os


seus próprios; os músicos tocam as cordas da lira afinadamente, mas não há harmonia
nos hábitos de suas almas; matemáticos têm seus olhos fixos no sol e na lua e descuidam
do que está sob seus pés; oradores se esmeram para falar com justiça, mas não para agir
assim...220

217
Diferentemente de todos os outros socráticos, aí inclusos Platão e Xenofonte, Antístenes seria o único que teria
desenvolvido através de vários escritos um conteúdo lógico-dialético, como é atestado pelo sexto e sétimo tomos do
Catálogo.
218
OL 35. Assimilação criticada também por Maier (1943) e Dudley (1937).
219
Em que pese a atribuição à Sócrates de um interesse pelas maqh/mata por Aristófanes, nas Nuvens (180-235), em
que este coloca aquele balançando no ar, pendurado numa cestinha para observar o sol.
220
DL VI 27-8. tou/j te grammatikou\j e)qau/maze ta\ me\n tou= ¹Odusse/wj kaka\ a)nazhtou=ntaj, ta\ d'
iãdia a)gnoou=ntaj. kaiì mh\n kaiì tou\j mousikou\j ta\j me\n e)n tv= lu/r# xorda\j a(rmo/ttesqai,
104

E o próprio Antístenes não disse que “os que nasceram temperantes nem

mesmo devem estudar as letras, para não se perverterem com coisas que lhes são alheias”?221

Observe-se que podemos notar nesta citação um dos termos da antítese

fundamental não só para a filosofia da linguagem mas também para a moral de Antístenes, aquela

de alheio (allótrios) a próprio (oikeîos). Para Decleva-Caizzi tal antítese é própria do

pensamento sofístico de Antístenes e explica, em parte, o pensamento do movimento cínico.222

Tudo aquilo que é adequado a uma coisa tem em si a dignidade de “bom”, o que é estranho,

alheio, resulta nocivo e, portanto, “mau”. Não se deve, segundo ela, considerar essa posição

como relativista, já que a intenção de Antístenes seria exatamente “superar a problemática

sofística do conhecimento e da impossibilidade do mesmo”.223 Brancacci considera ser essa

antítese da maior importância para a compreensão da noção de conhecimento em Antístenes. Diz

ele: “A oposição entre oikeîon e allótrion, e as distinções conceituais que volta e meia a

acompanham, constituem, pois, o fundamento mesmo da noção de conhecimento elaborada por

Antístenes”.224

Essa “condenação” do conhecimento por Diógenes de Sinope talvez devesse ser

modalizada. Observemos que os ataques não vão direto às ciências em si, mas sim aos que as

praticam ou as usam de certo modo. A admoestação dos cínicos em relação às ciências seria a

a)na/rmosta d' eÃxein th=j yuxh=j ta\ hÃqh: tou\j maqhmatikou\j a)poble/pein me\n pro\j to\n hÀlion kaiì
th\n selh/nhn, ta\ d' e)n posiì pra/gmata parora=n: tou\j r(h/toraj ta\ di¿kaia me\n e)spoudake/nai
le/gein, pra/ttein de\ mhdamw½j:
221
DL VI 103-4. AF 66. gra/mmata gou=n mh\ manqa/nein eÃfasken o( ¹Antisqe/nhj tou\j sw¯fronaj
genome/nouj, iàna mh\ diastre/fointo toiÍj a)llotri¿oij.
222
1964, p. 97.
223
Idem, p. 87, n 53.
224
OL 260.
105

respeito não delas em si, pois elas seriam cegas moralmente. Caberia aos seus cultores agir

segundo aquilo que falavam.

Rodier lembra, por sua parte, que o “não há contradição” (mēì eînai antilégein),

que reduz a proposição a uma identidade, também tornaria impossível um saber científico.225

Porém no Catálogo há títulos que levam a se supor a existência de algum interesse pela ciência

por parte de Antístenes, títulos como Sobre a natureza226 e Sobre opinião e conhecimento227. Se

bem que Rodier entenda que não há, pelo aspecto fragmentário de sua obra, a possibilidade de se

fazer uma idéia precisa da concepção de ciência de Antístenes, o que podemos, segundo ele, é,

através dos fragmentos e testemunhos, concluir que o conhecimento não é decididamente o

princípio de sua moral. No entanto, Rodier diz que há quem declare que, para Antístenes, como

para Sócrates, a virtude reside na sabedoria e na inteligência e se confunde com a reta vontade, a

força, o domínio de si, e a honestidade, o que vem a ser a teoria da unidade das virtudes: não

pode haver virtude se não há saber. Um ponto importante da crítica de Rodier é a ênfase que este

dá, o que Brancacci faz em outros termos, à forma parcial da aceitação por Antístenes da doutrina

moral de Sócrates. Este subordina sua força de vontade à inteligência, enquanto que Antístenes

coloca a força de vontade em primeiro lugar. A virtude está na força da vontade, no domínio de si

225
1926, p. 26. Há algumas observações a fazer quanto a essa interpretação de Rodier. Não queremos ir muito longe,
neste momento, pois ao tratar da impossibilidade da definição isso será desenvolvido convenientemente, mas há um
equívoco da parte de Rodier, pois não é propriamente o paradoxo da impossibilidade da contradição que
inviabilizaria a ciência, mas justamente a impossibilidade da definição. Quanto à conclusão de que ambos os
paradoxos de Antístenes (no caso de Rodier, ele só se refere à impossibilidade da contradição) levariam a pensar que
Antístenes só reconhecia as proposições tautológicas, temos dois comentários a fazer que fogem muito dos objetivos
de nossa tese, pelo seu caráter lógico: 1) um comentário de caráter metodológico, isto é, atribuir a Antístenes uma
posição quanto à natureza tautológica de um discurso, seria atribuir a ele uma concepção lógica moderna que se
inicia com a distinção por Kant entre proposições analíticas e proposições sintéticas; 2) o outro de caráter doutrinal, a
lógica de Antístenes, segundo Gillespie (1913), não é uma lógica de termos, como a de Aristóteles, mas da relação
do termo com a coisa; se fôssemos cair na armadilha do diacronismo, uma lógica da distinção entre conceito e
objeto, como proposta por Frege.
226
Sobre os temas físicos ou a respeito da natureza nada diremos, pois nos colocaríamos fora de nosso propósito.
Fazemos a referência para sublinhar o problema da atribuição de uma negação da ciência a Antístenes.
227
Trataremos extensamente da questão quando tratarmos da impossibilidade da definição.
106

e no esforço. Diz Rodier: “Antes dos estóicos, e bem mais decididamente, eles (os cínicos)

fizeram consistir o sumo bem na tensão da vontade”.228 Por isso levaram mais longe que qualquer

outra escola a reprovação da volúpia e das paixões, pois pela força de vontade podiam dominá-

las. O prazer mesmo deixa de ser um mal se ele não se impõe à vontade.229 Isso o leva a concluir

que Antístenes se esforçou por esvaziar a moralidade de todo conteúdo intelectual.

A crítica de Rodier é valiosa. Apesar de sua parcialidade intelectualista, ele

situa perfeitamente a posição moral de Antístenes, pois este mesmo teria dito, como vimos há

pouco, que a virtude não necessita das ciências matemáticas. E aponta para a verdadeira natureza

da moral de Antístenes, a moral do esforço; porém Rodier não reconhece que é um esforço físico

em conúbio com o esforço intelectual, como pensamos, a saber: em Antístenes não há

subordinações, nem hierarquias. Para nós, a dialética socrática (ou platônica?), que se eleva em

graus para chegar à idéia, cede lugar à dialética da oposição dos termos como princípio, seguindo

a lição de Pródico. Guardando os termos, mas alterando a conclusão de Rodier, nessa moral da

ação, o esforço era igual para agir com energia, tanto no plano físico, como no plano intelectual.

Não podemos esquecer que Héracles com sua força e sua virtude é o herói paradigmático dos

cínicos, como o é também para nosso filósofo. Um ponto importante do artigo de Rodier é sua

referência, feita de forma constrangida, à prática dos cínicos de levar os discípulos a decorar

trechos dos poetas, a exemplo dos sofistas. Isso evidencia não ser possível tentar analisar

qualquer aspecto da filosofia de Antístenes se não temos sua formação sofística como ponto

originário. A linguagem está sempre presente no ensino da virtude, é o esforço intelectual de

investigar a linguagem que consolida o esforço físico fundamental para o domínio de si. A

228
1926, p. 28.
229
AF 113. V. Anexo C – Sentenças sobre h(donh/.
107

virtude se aprende com o exercício da coragem e o exemplo da coragem dos heróis cantados pelo

poeta. E neste caso o herói paradigmático, para Antístenes é Odisseu.

O que domina o pensamento ético e pedagógico de Antístenes é a noção de

exercício (áskēsis). Há no termo “ascese”, em português, derivado do grego, uma questão que

complica a compreensão do seu uso no contexto cínico. Sobre essa noção devemos adiantar que

não se trata do sentido que damos a “ascese” no pensamento contemporâneo a nós, isto é, o

sentido apenas moral e, quase sempre, marcadamente místico. A palavra grega se refere ao

exercício físico, ao esforço dos atletas nos ginásios, à prática de uma arte; é um gênero de vida ou

a prática da filosofia. Diferentemente da posição dos cínicos, que consideravam a prática da

virtude moral como orientadora do exercício físico, visto como um fortalecimento para suportar o

rigor das exigências morais230, Antístenes acreditava que a áskēsis preparava simultaneamente o

homem não só para as coisas do mundo, as coisas corporais, mas também para o que é maior do

que elas. No diálogo Héracles, é narrada a participação do centauro Quirão e de Prometeu na

formação do herói. Quirão, segundo se lê no fragmento do anônimo latino, ensinou a Asclépio e a

Aquiles.

Aqui parece ser o Quirão que habitava o Pélio e na verdade superava todos os homens
em justiça e ele mesmo educou Asclépio e Aquiles; a quem procurou Héracles por amor,
com quem juntos fora à caverna honrar Pan; na verdade, não só não matou o centauro,
mas o obedecia, como diz Antístenes, o socrático. 231

230
Germanus Strazzeri (2001): “Agora vemos com clareza o que havíamos apenas entrevisto. Somente a alma,
através do nou=j e da fro/nhsij pode prever o que se deve fazer, as coisas úteis, e escolhê-las para que o corpo possa
realizar. Quando a alma, pelo contrário, é submetida ao governo das paixões, esta previsão é falha e só pode nos
levar ao fracasso. Daí a importância do exercício psíquico acima do somático, pois a alma é quem deve governar o
corpo, posto ser ela quem escolhe e prevê.” (p. 45 – o itálico é nosso)
231
Anon. Lat. II (Maass, comment. in Arat. rell. p. 264 s.). AF 24 C. Hic videtur Chiron esse qui in Pelio habitavit
iustitia quidem superans homines omnes et ipse correxit Asclepium et Achilleum; apud quem Herculem videtur
venisse propter amorem, cum quo et simul fuerat in antro honorificans Panem; solummodo quidem Centaurum non
ociidit, sed obaudibat ei, ut ait Antisthenes Socratensis.
108

Esse centauro era médico, tocava lira e era justo. Seu ensinamento então

compreendia a ciência das coisas do mundo: a medicina, a música, a astronomia. Quirão é assim

o primeiro mestre de Héracles; é aquele que instiga Héracles a se dedicar ao esforço (pónos). O

esforço é o bem, como é dito no diálogo Ciro.232 Sendo uma fera que ensina, esse seria um estágio

inicial de ensinamento da virtude, que pode, nesse caso, ser perdida e o homem ficar apenas com

as ciências que pertençam a ele na sua vida ordinária. Através do diálogo Héracles, tomamos

conhecimento da lição de Prometeu, o segundo mestre de Héracles, a saber: o esforço que não

contempla simultaneamente as coisas do mundo e as coisas celestes não leva à virtude que não

pode ser perdida, isto é, não forma o homem verdadeiramente sábio.

Prometeu disse a Héracles: Seu esforço é muito desprezível enquanto se ocupa


com as coisas do mundo, deixando de lado a consideração do que é maior que elas.
Na verdade, nunca será um homem completo até que aprenda aquelas coisas que
são mais elevadas que as humanas. Mas, se você aprender essas coisas, então
aprenderá as coisas humanas também. Contudo, se você aprender apenas o que é
daqui, vai vagar como as bestas. Aquele cuja diligência está voltada para as coisas
do mundo e que encerrou a razão e a prudência do espírito no que é fraco e
tacanho, não é um homem sábio, mas é como um animal que se compraz num
monte de esterco. Sublimes, na verdade, são todas as coisas celestes, e ocorre que,
sobre elas, temos um juízo divino. 233

Ao contrário do que vai ocorrer com os seguidores da escola cínica, o exercício

psíquico e o exercício corporal não seriam esforços isolados, mas uma coisa dependeria

intrinsecamente da outra: esses ensinamentos, o de Quirão (a ascese física) e o de Prometeu (a

ascese psíquica), não se contradizem (não seria antistênico, pois Antístenes não admitia a

232
DL VI 2. AF 19. o( pó/noj a)gaqo\n.
233
Giannantoni, G. (1990) v A 96 G. Ait enim Promethea Herculi ita locutum esse: “vilissimus est labor tuus, quod
res humanae tibi sunt curae, sed tamen curam eius, quod iis maioris momenti est, deseruisti. Perfectus enim vir non
eris, priusquam ea, quae hominibus sublimiora sunt didiceris, si ista disces, tunc humana quoque disces; si autem
humana tantum didiceris, tu tamquam animal brutum errabis”. Qui enim rebus humanis studet et mentis suae
prudentiam calliditatemque suam revus tam vilibus et angustis includit, is, non sapiens est, sed animali similis, cui
sterquilinium gratum est. Sublimes vero sunt omnes res coelestes et nos oportet sententiam de eis habere sublimem.
109

possibilidade de contradição). Poderíamos entender que Antístenes coloca no mesmo plano, ao

contrário da divisão aristotélica, os três momentos de pensamento, o pensamento poético (a

produção humana, a cultura), que seria o ensinamento de Quirão, o pensamento teórico (o

raciocínio, a lógica e a metafísica, a saber, conforme o texto, as coisas que são maiores que as

coisas do mundo), o ensino de Prometeu, que convergiria no pensamento prático, a saber, a

aprendizagem da virtude. O exercício levaria, assim, a uma elevação do homem, pois só através

do esforço (pónos), que é o bem, se podem alcançar os três estágios ascéticos:

1) A produção (phýsis) de si é uma coisa humana,

2) O raciocínio (logismós) é uma coisa elevada,

3) A virtude (aretē/) é o raciocínio divino.

Para Antístenes não haveria a possibilidade do famoso “paradoxo” socrático:

aquele que entende a virtude não cometerá nenhuma falta voluntariamente. Mas, como observou

Aristóteles, na Ética a Nicômaco, “essa opinião contradiz nitidamente os fatos observados”. 234

Antístenes tenta evitar o “paradoxo” com o que parece ser um passo adiante do mestre; para ele,

não seria questão de proceder ou não proceder conforme a virtude; o procedimento virtuoso não

seria um procedimento em conformidade com a virtude, como se fossem, procedimento e virtude

duas noções distintas, o ato virtuoso constitui a própria compreensão da virtude. Para descrever

tal estado Antístenes recorre a duas metáforas, uma delas já, de certa forma, antecipada:

1) A virtude é como uma arma que não pode ser perdida.235

2) A virtude é uma muralha que é firme, sem fendas.236

234
VII 2 1145 b 27-8. ouÂtoj me\n ouÅn o( lo/goj a)mfisbhteiÍ toiÍj fainome/noij e)nargw½j.
235
AF 71. Diocl. ap. DL VI, 12. anafai/reton o(/plon h( a)reth/. AF 23. DL VI, 105. a)napo/blhton u(pa/rxein.
236
Epif. adv. haeres. III, 26 (Diels, Dox. p. 591). AF 90. a)sa/leuta de\ ta\ th=j yuxh=j tei/xh kai\ a)rragh=
110

Quando se diz, por outra parte, que Antístenes era um moralista e não um

metafísico237, temos como dado que ele colocava os princípios morais à frente de todas as

matérias de que se deviam ocupar os filósofos. Isso é cômodo se o queremos alinhar com cínicos

e estóicos. Mas não acreditamos que se faça qualquer benefício tanto para ele como para cínicos e

estóicos pensar que Antístenes fosse um simples moralista, e que o ensino das virtudes visasse

apenas às finalidades que Diógenes, o cínico, via na educação: “Dizia [Diógenes] que a educação

é a temperança para os jovens, estímulo para os velhos, riqueza para os pobres, ornamento para

os ricos”.238

Que o objetivo final de sua filosofia é a moral está hoje bastante esclarecido,

mas por motivos que vão além do papel de um simples fundador de escola. Vemos em

Xenofonte, em seu discurso sobre a liberdade do filósofo, que viver segundo os princípios morais

é que faz a vida digna de ser vivida. “Junto de Sócrates eu mesmo adquiri essa riqueza”239, é disso

que diz ter orgulho. Essa riqueza é a virtude. Desta forma, se bem que não há nenhum interesse

em se ligar a uma tradição que ele está, indiscutivelmente fundando, e sejam lá os caminhos que

cada um de seus seguidores trilharam, sem deixar de ser um retórico ou um metafísico,

Antístenes foi, antes de tudo, um moralista.

A doutrina pedagógica antistênica talvez mais característica é a doutrina da

investigação dos nomes. É essa sua palavra de ordem pedagógica. É pela investigação dos nomes
237
Gauthier-Jolif, p. 775.
238
DL VI 68. th\n paidei¿an eiåpe toiÍj me\n ne/oij swfrosu/nhn, toiÍj de\ presbute/roij paramuqi¿an, toiÍj
de\ pe/nhsi plou=ton, toiÍj de\ plousi¿oij ko/smon eiånai. O termo paramuqi¿a acarreta um problema para a
tradução, pois pode significar um discurso tanto de exortação como de conforto, divertimento, e até de persuasão. Parece que o
sentido próprio seria o de exortação como estímulo, pois, me parece, que esta conotação está também em todos os outros sentidos,
daí a nossa opção.
239
Xenofon simp. III, 8. AF 117. Swkra/thj te ga\r ou(=toj par’ ou(= e)gw\ tou=ton (plou=ton) e)kthsa/mhn. V.
Anexo E – A Liberdade do Filósofo.
111

que se começa o ensino da moral. Não é sem motivo que o seu escrito sobre educação tem como

título, Sobre a educação ou sobre os nomes. Paideía e investigação dos nomes estão amarradas

por um mesmo nó. Em Arriano (Epiteto), citando Antístenes, se lê que “o princípio da educação é

a investigação dos nomes”.240 Há uma estreita ligação entre o momento lógico-lingüístico e o

momento ético-pedagógico.241 Por outro lado, como vimos, Antístenes não separa também o

exercício do corpo do exercício da alma. Como testemunha Estobeu: “os homens que procuram

tornar-se bons devem na verdade exercitar o corpo com a ginástica e a alma com o discurso”.242 O

bem mais precioso do homem, no entanto, é a alma, como vimos na passagem do Héracles; pois

é a posse da alma que caracteriza a natureza humana; portanto, esta deve ser cultivada, e o

objetivo da prática da filosofia é cultivar a alma. O cultivo da alma se faz através do exercício do

discurso. A saber, não é uma filosofia teórica que Antístenes propõe, mas uma prática do

discurso, uma atividade. Assim como a atividade do camponês é cultivar a terra, o filósofo tem

como atividade o cultivo da natureza do homem, que é dotado de alma. Esta aproximação da

educação à cultura do campo é uma característica do pensamento sofista; na apologia de

Protágoras, no Teeteto, é apresentada a sua opinião que se os sábios que cuidam do corpo são

médicos, se cuidam das plantas são lavradores. Diz ele:

“O que afirmo é que estes últimos trocam nas plantas, quando estas adoecem, as
sensações perniciosas por sensações benéficas e sadias, que é justamente como
procedem os retores sábios e prudentes, fazendo parecer justas às cidades as coisas boas
em substituição às más”.243

240
Arrian. Epit. diss. I, 17,10. AF 38. a)rxh\ paideu/sewj h( tw=n o)noma/twn e)pi/scejyij.
241
Na verdade, a divisão da filosofia em partes só tomará um aspecto específico a partir dos estóicos.
242
Est. antol. II, 31, 68. AF 64. deiÍ tou\j me/llontaj a)gaqou\j aÃndraj genh/sesqai to\ me\n sw½ma
gumnasi¿oij a)skeiÍn, th\n de\ yuxh\n <lo/goij>.
243
167 b-c. fhmiì ga\r kaiì tou/touj (gewrgou/j) toiÍj futoiÍj a)ntiì ponhrw½n ai¹sqh/sewn, oÀtan ti au)tw½n
a)sqenv=, xrhsta\j kaiì u(gieina\j ai¹sqh/seij te kaiì a)lhqeiÍj e)mpoieiÍn, tou\j de/ ge sofou/j te kaiì
a)gaqou\j r(h/toraj taiÍj po/lesi ta\ xrhsta\ a)ntiì tw½n ponhrw½n di¿kaia dokeiÍn eiånai poieiÍn.
112

A doutrina do cultivo da natureza humana toma contornos mais claros no

testemunho de Laércio que é o uso do discurso que fortalece a alma: “A prudência é a fortaleza

mais segura; pois não pode ser destroçada nem traída. É preciso construir essa fortaleza com os

próprios raciocínios inconquistáveis”.244 Os “raciocínios inconquistáveis”, vemos então,

constituem aquilo que faz com que a virtude seja firme e sem fendas.

A defesa de um caráter “racionalista” ou “intelectualista” da moral de

Antístenes, levada a efeito tanto por Brancacci245 como por Giannantoni, é motivada pela

necessidade de os dois autores justificarem a filiação de Antístenes a Sócrates. Mas em nota246,

Brancacci não pode deixar de reconhecer que a influência sofística sobre Antístenes deve ser

confrontada mesmo em sua feição polêmica. Nossa posição, como já desenvolvemos acima, é

que o “ascetismo” antistênico se mistura mal com o “racionalismo” baseado na definição, como o

processo por excelência no que entendemos por tradição do “racionalismo” socrático, que

confluiu para a tradição aristotélico-platônica. Em especial, para a ética aristotélica em que o

supremo bem se identifica com a atividade teorética. Antístenes, ao contrário, reserva ao noûs a

função de dominar os juízos a partir da distinção do que é próprio (oikeîos) do lógos e o que lhe é

estranho (allótrios), distinção que se estabelece a partir da diaíresis entre o que é bom (tagathá) e

o que é vergonhoso (tà aiskhrá). Como testemunha Laércio: “O que é bom é honroso e o que é

mau é vergonhoso”.247 É o noûs o responsável pelo equilíbrio, ou harmonia e coerência, moral.

Esse equilíbrio é entendido como a concórdia proposta por Antifonte, não só no nível cósmico,

mas também em cada homem (homónoia eautó). O que propõe Antístenes não é uma análise das
244
Diocl. ap DL VI 13. AF 88. TeiÍxoj a)sfale/staton fro/nhsin: mh/te ga\r katarreiÍn mh/te
prodi¿dosqai. AF 63. Idem.tei¿xh kataskeuaste/on e)n toiÍj au(tw½n a)nalw¯toij logismoiÍj.
245
Brancacci (1987); Giannantoni (1990).
246
OL 92, n 19.
247
Diocl. ap. DL VI 12. AF 73. ta)gaqa\ kala/, ta\ kaka\ ai)sxra/.
113

paixões, nem definição dos vícios e das virtudes, mas o exercício comum do corpo e da mente,

para a estabilização ou concórdia dos dois.

A sabedoria sublime Antístenes teria, segundo Laércio248, ensinado num ginásio

nos arredores de Atenas de nome Cinosargo. Ainda segundo Laércio, é do nome do lugar que

deriva o nome dos cínicos. A etimologia do nome Cinosargo é motivo de muita polêmica. Nele

teríamos os radicais do substantivo kýōn, kynós (cão) e do adjetivo argós (branco, brilhante,

rápido). Antístenes teria sido o haplokýōn (o cão por excelência)249. Segundo M.-F. Billot250, que

nos oferece preciosas informações sobre o ginásio, seus usuários, suas destinações, sua

importância na vida ateniense, essa etimologia legitimada pela tradição não se sustenta:

“De uma parte as falsas etimologias de Kynosargo eram evidentes demais, bastante bem
ancoradas na mentalidade religiosa para não favorecer, pelo menos, as anedotas que
permitiam a Antístenes de se ter, o primeiro de todos, querido e reconhecido Cão, Cão
por excelência, da mesma forma que suscitaram as surpreendentes braquilogias que
fazem derivar kyniké de Kynósarges”. 251

A razão da recusa dessa tradição por parte da autora está no fato de que a

relação de Antístenes com esse ginásio se liga à sua formação e não às conseqüências de seus

ensinamentos; em termos mais claros, Antístenes se teria estabelecido em Cinosargo como

atitude caracteristicamente sofística e em tal ginásio não se seguiu uma escola depois dele, nem

há documentos que testemunhem que o movimento cínico se ligou ao local, a não ser, é evidente,

a etimologia tradicional. Diz ela que Antístenes “seguia a prática já bem estabelecida,

248
DL VI 13.
249
Idem.
250
1993.
251
Idem, p. 116.
114

notadamente pelos sofistas, de ocupar lugares públicos”.252 Não houve uma “escola de

Antístenes” nos moldes que tomaram a Academia de Platão e o Liceu de Aristóteles, com um

ensino regular que permitiu, nas duas, uma sucessão estrutural de escolarcas. Se assim fosse o

nome de Diógenes teria sido ligado ao local, o que não ocorreu. E lembramos que, segundo

Laércio253, Antístenes o teria mesmo repelido, tendo continuado Diógenes a seguir o mestre por

pura pertinácia. O que teria levado Antístenes a esse local nos é dito pela autora. Cinosargo era o

ginásio que Atenas destinava aos nóthoi, aqueles que nasceram de pai ateniense e mãe

estrangeira, como Antístenes, filho de uma trácia; necessariamente passou a freqüentá-lo quando

jovem. Para a autora teria sido essa freqüência juvenil de Antístenes a Cinosargo que o

familiarizou com o ginásio. E mais, em Cinosargo havia ainda um Heracleion, templo de

Héracles, que era servido oficialmente por atenienses de tal condição. Héracles, o modelo de

virtude para Antístenes, também seria, de certo modo, um nóthoi, já que era filho de uma mortal

(Alcmena) e um deus (Zeus).

No entanto, se bem que a ligação de Antístenes com Cinosargo estivesse longe

de ser formal, sua atividade didática aí era manifesta na cena cultural ateniense. Por um lado,

Laércio nos dá notícia dessa atividade: era um mestre severo, que, dentro da tradição sofista,

cobrava por seus ensinamentos morais:

Perguntado por que tinha poucos discípulos, disse: “Porque os expulso com um
bastão de prata”. Se perguntado porque desaprovava seus discípulos duramente,

252
1993, p. 85.
253
DL VI 21.
115

dizia: “Também os médicos os maceram”. Ao ver fugindo um adúltero, falou:


“Poderias ter evitado tanto perigo por um óbulo”. 254

Por outro lado, temos outro testemunho de tal representatividade através da

reação violenta de Isócrates a um panfleto “programático” que circulava em Atenas anunciando

as lições de Antístenes. Na cultura sofística, o “programa” (epángelma) era o termo oficial para

designar o que um sofista pretendia ensinar. Através de um discurso, de natureza virulenta, cujo

título é Contra os Sofistas, Isócrates nos permite conhecer o conteúdo do ensino moral de

Antístenes. O discurso se abre nestes termos: “Se todos aqueles que se ocupam da educação

quisessem realmente dizer a verdade sem fazer promessas superiores aos objetivos que se

propõem atingir, não ouviriam os homens simples falando mal deles”.255

Isócrates, nesse trecho do discurso, aponta para duas marcas do movimento

sofista, a preocupação com a verdade, e Antístenes teria escrito um tratado com o título A

Verdade, e sua má recepção por parte de certa camada da sociedade ateniense. Vamos em seguida

recolher, passo a passo, no correr desse testemunho256, os pontos do ensinamento moral de

Antístenes, que, enquanto são objetos da crítica de Isócrates, nos permitem conhecer o teor de sua

pedagogia. Cada ponto recolhido será objeto de comentário. Antes, notemos a extraordinária

minúcia revelada por Isócrates quando se volta para o objeto de seu ataque.

254
DL VI 4. AF 184/185/182. e)rwtw¯menoj dia\ ti¿ o)li¿gouj eÃxei maqhta/j, eÃfh, "oÀti a)rgure/# au)tou\j
e)kba/llw r(a/bd%."e)rwthqeiìj dia\ ti¿ pikrw½j toiÍj maqhtaiÍj e)piplh/ttei, "kaiì oi¸ i¹atroi¿," fhsi¿, "toiÍj
ka/mnousin." i¹dw¯n pote moixo\n feu/gonta, "w¨j dustuxh/j:" eiåpe, "phli¿kon ki¿ndunon o)bolou=
diafugeiÍn e)du/naso".
255
Isocrat. adv. soph. 1. Ei¹ pa/ntej hÃqelon oi¸ paideu/ein e)pixeirou=ntej a)lhqh= le/gein kaiì mh\ mei¿zouj
poieiÍsqai ta\j u(posxe/seij wÒn eÃmellon e)piteleiÍn, ou)k aÄn kakw½j hÃkouon u(po\ tw½n i¹diwtw½n.
256
V. Anexo B – Isócrates, Contra os Sofistas.
116

Logo na abertura do discurso, Isócrates condena a moral da ação, dizendo ser

melhor deliberar por não fazer nada do que exercitar a mente através da filosofia. Aí se observa

que ele está se opondo à ética do esforço. Em primeiro lugar, este ensino era feito através de

disputas verbais, ou seja, da erística. O objetivo dessas disputas argumentativas era chegar à

verdade, pelo procedimento da investigação dos nomes, e daí concluir que era impossível dizer o

falso. O ataque de Isócrates vai diretamente contra uma tese de Antístenes, que é impossível dizer

o falso. De posse da verdade, pensava Antístenes, o homem pode deliberar e agir sem cometer

erro. Como vimos, a virtude é uma arma que não se pode perder. Isócrates entende essa atitude

como uma intenção de prever o futuro. E para criticar isso, recorre ao ataque a outro ponto capital

da filosofia de Antístenes, a exegese homérica. É através da exegese homérica que Antístenes

elabora sua concepção do sophós; este não tem uma falsa ciência, que conduz aos bens materiais,

o que constitui a ciência humana, que leva a descuidar daquilo que tem mais valor, que é a

ciência divina, conforme o fragmento do Héracles. Não fosse o título de seu discurso tão claro,

Isócrates acentua o caráter sofístico do ensinamento de Antístenes, ao dizer que a intenção destes

é persuadir os jovens que, através de seus ensinamentos da virtude, alcançarão a felicidade.

Agostinho, de fato, testemunha a doutrina de Antístenes que “antes de tudo a virtude da alma faz

o homem feliz”. 257

Segue-se, então a notória censura aos sofistas: cobrar por suas lições de

sabedoria. E mais, cobram por um preço vil a futura posse de bens tão grandiosos como a virtude

e a felicidade. Além disso, prometem a imortalidade. O que, de fato, é testemunhado por

Diógenes Laércio: “Os que desejam ser imortais devem viver piedosa e justamente”.258 E não só

257
August. de civ. Dei XVIII, 41. AF 111B. virtute animi potius hominem fieri beatum.
258
DL VI 5. AF 75. tou\j boulome/nouj a)qana/touj ei)=nai, dei=n zh=n eu)sebw=j kai\ dikai/wj.
117

isso, continua a reprovação de Isócrates, desconfiam de seus discípulos e pedem garantias do

pagamento, ou quem sabe, pagamento antecipado. E Isócrates chega ao ponto central do ataque,

que é identificar essa postura comercial dos sofistas como falta de prudência (phrónēsis), que é a

virtude por excelência do sophós. Como diz Brancacci, a prudência era o fundamento da

educação filosófica de Antístenes:

Tal exame dos nomes devia constituir de fato um momento, e também a base, da
complexa atividade racional ligada ao exercício da phrónēsis e voltada para a
investigação da verdade: verdade entendida seja como conhecimento lógico-
dialético, cujo fim é a formação de juízos sadios, funcionais ao fortalecimento da
alma, seja como saber moral, condição da aretē e da eudaimonía, uma e outra
apanágio do sophós. 259

Isócrates, certamente, não erra de alvo. A prudência é a virtude que nos leva a

deliberar com sabedoria nos negócios humanos, e a pergunta que ele faz é se é conveniente

cobrar, e mais, não confiar, nos discípulos a quem se quer transmitir a virtude. Aubenque lembra

que a prudência era uma virtude exaltada pela visão de mundo dos gregos260. Ele ainda observa

que Aristóteles hesitou entre considerar a prudência como uma ciência261 ou como uma virtude262.

E, prima facie, parece que podemos aproximar a desqualificação, por parte de Antístenes, das

ciências matemáticas para o ensino das virtudes e, em contrapartida, a escolha da investigação

dos nomes, para chegar a elas, à distinção que Aristóteles faz entre a sophía (já, na Ética a

Nicômaco, identificada com a ciência, que trata do necessário, enquanto que a prudência lida com

os negócios humanos contingentes) e a phrónēsis, citamos:

259
OL 118.
260
2002, p. 2.
261
M 4 1078 b 15.
262
VI 5 1140 b 1: ou)k a)\n ei(/n h( fro/nhsij e)pisth/mh.
118

É pois evidente que a sabedoria deve ser de todas as formas da ciência a mais
perfeita. Donde se segue que o sábio não apenas conhecerá o que decorre dos
primeiros princípios, senão que também possuirá a verdade a respeito desses
princípios. Logo, a sabedoria deve ser o intelecto combinado com a ciência – uma
ciência dos mais elevados objetos que recebeu, por assim dizer, a perfeição que
lhe é própria.
Dos mais elevados objetos, dizemos nós, porque seria estranho se a política ou
prudência fosse a forma mais elevada de ciência, uma vez que o homem não é o
que há de mais excelente no universo. Ora, se o que é saudável ou bom difere para
os homens e os peixes, mas o que é branco ou reto é sempre o mesmo, qualquer
um diria que o que é sábio é o mesmo, mas o que é prudente varia; pois é àquele
que observa bem as diversas coisas que lhe dizem respeito que atribuímos a
prudência, e é a ele que confiaremos tais assuntos. Por isso dizemos que até alguns
animais inferiores possuem prudência, isto é, aqueles que mostram possuir um
certo poder de previsão no que toca à sua própria vida.263

Porém, os dois, se se vêem diante do mesmo dilema sobre qual a ciência que

nos permitiria chegar à felicidade, a sabedoria ou a prudência, os caminhos que vão tomar, se não

são de todo opostos, pois sempre estarão no mesmo terreno, são traçados separadamente. É

evidente que tanto Antístenes como Aristóteles estão diante do problema do ensino da virtude.

Isso fica claro, quando atentamos que pouco antes do passo citado Aristóteles observa: “Por outro

lado, julga-se que toda ciência pode ser ensinada e seu objeto, aprendido. E todo ensino parte do

que já se conhece...”264 Quer dizer, só podemos ensinar aquilo que é possível conhecer. A questão

se desfaz se temos o conhecimento de objetos que não mudam, como o branco e o reto, porém,

como ter o conhecimento das coisas instáveis como o comércio humano? Aristóteles vai voltar a

ser explícito no fecho da Ética265, ao dizer que os sofistas tentaram em vão ensinar a prudência ou

a política. Por sua parte Antístenes entendeu, assim como Aristóteles, que as ciências

263
VI 7 1141 a 16-28. wÐste dh=lon oÀti a)kribesta/th aÄn tw½n e)pisthmw½n eiãh h( sofi¿a. deiÍ aÃra to\n
sofo\n mh\ mo/non ta\ e)k tw½n a)rxw½n ei¹de/nai, a)lla\ kaiì periì ta\j a)rxa\j a)lhqeu/ein. wÐst' eiãh aÄn h(
sofi¿a nou=j kaiì e)pisth/mh, wÐsper kefalh\n eÃxousa e)pisth/mh tw½n timiwta/twn. aÃtopon ga\r eiã tij
th\n politikh\n hÄ th\n fro/nhsin spoudaiota/thn oiãetai eiånai, ei¹ mh\ to\ aÃriston tw½n e)n t%½ ko/sm%
aÃnqrwpo/j e)stin. ei¹ dh\ u(gieino\n me\n kaiì a)gaqo\n eÀteron a)nqrw¯poij kaiì i¹xqu/si, to\ de\ leuko\n kaiì
eu)qu\ tau)to\n a)ei¿, kaiì to\ sofo\n tau)to\ pa/ntej aÄn eiãpoien, fro/nimon de\ eÀteron: ta\ ga\r periì au(to\
eÀkasta to\ euÅ qewrou=n fhsiìn eiånai fro/nimon, kaiì tou/t% e)pitre/yei au)ta/. dio\ kaiì tw½n qhri¿wn eÃnia
fro/nima/ fasin eiånai, oÀsa periì to\n au(tw½n bi¿on eÃxonta fai¿netai du/namin pronohtikh/n.
264
VI 3 1139 b 25-6. eÃti didakth\ aÀpasa e)pisth/mh dokeiÍ eiånai, kaiì to\ e)pisthto\n maqhto/n.
265
X 9 1181 a 1-19.
119

matemáticas (do branco e do reto) não seriam adequadas para o ensino da moral, que esta tem

outras exigências. E essas exigências são cardeais. E é nesse ponto que discordam. Enquanto que

para Aristóteles a prudência não pode ser o conhecimento divino, o melhor dos conhecimentos, já

que o homem não é o que há de melhor no mundo, para Antístenes, se o homem não se esforçar

para atingir o conhecimento da ciência que é mais que humana, que é divina, ele não deixa de ser

o que há de melhor no mundo, ele é igual às bestas. A oposição entre a ciência matemática e a

ciência moral é, portanto, muito clara, tanto para um filósofo como para o outro. O que os separa

é uma concepção metafísica distinta do homem. Para Antístenes o homem é o que se constrói

através do exercício do corpo e da alma, ele não tem um eîdos prévio a defini-lo, como para

Aristóteles.

O sophós para Antístenes não é o que só possui a ciência matemática, como

quer Aristóteles, mas aquele que não se contenta em permanecer apenas nela, conhecimento

humano, e procura elevar-se ao conhecimento divino. A teoria do sophós, de Antístenes, é

bastante característica; o próprio Isócrates distingue cuidadosamente a prudência da sabedoria,

quando, no discurso, reserva a prudência para os homens e a sabedoria para os deuses, na figura

de Homero. De tal forma, parece-nos, que, para Antístenes, radicalmente, as ciências

matemáticas de nada servem para a formação moral do homem. Ele nem mesmo, apesar de não

as descartar, as leva em consideração, como faz Aristóteles. É o exercício da prudência, virtude

humana, que permitirá a ascensão à virtude divina, a sabedoria. A teoria do sophós, de

Antístenes, se constrói por oposição entre a sophía e a amathía. Para ele, a segunda, a ignorância,

afasta de um lado a possibilidade de chegar ao conhecimento moral, de outro do que é belo e bom

(kalo-kagathía), a saber, a mais perfeita honestidade.


120

Nas Declamações, Antístenes opõe a sabedoria de Odisseu à ignorância de

Ájax. Enquanto que este não se eleva da sua bestialidade, não reconhecendo a diversidade da

realidade e das várias circunstâncias, e, portanto, não é corajoso, nem feliz, o primeiro, por sua

sabedoria sabe emitir o discurso polítropo, que unifica todas as diversidades. Por tal razão,

Antístenes se coloca em posição inversa de Aristóteles, quanto à definição, tanto de homem,

como de sábio, ou dito de outra forma, à posição racionalista de Aristóteles, confessadamente

herdada de Sócrates, Antístenes opõe a concepção do saber heróico, aquele que é o resultado não

só do conhecimento das coisas humanas, mas também das divinas. Com essa concepção ele

elabora as noções de ciência, verdade e educação, a partir do uso dos termos. Por isso, Odisseu é

seu modelo emblemático do sábio, e não Sócrates. O sábio é aquele que sabe de ciência certa

(eidénai), pois o sábio deve ser hábil, tanto na dialética, como no conhecimento moral. Ele é o

modelo de todas as virtudes, éticas, políticas, sem deixar, de modo nenhum, as ciências racionais

ou matemáticas.

Retomando o texto de Isócrates, a seguir o retor procura atingir Antístenes na

sua tese fundamental: é impossível contradizer. Essa tese de Antístenes não tem um interesse

simplesmente lingüístico, mas, como é típico da filosofia de Antístenes, ela é intimamente ligada

a sua doutrina moral. A impossibilidade da contradição depende do conhecimento do uso

adequado (oikeîos) do lógos e do uso que lhe é alheio (allótrios). O sábio investiga os nomes

exatamente para conhecer o que deve ser aceito e o que deve ser evitado. Por essa razão, a crítica

de Isócrates é devastadora no sentido de que ele reconhece perfeitamente a doutrina antistênica,

desta forma desmoraliza ao mesmo tempo as duas concepções de contradição, a lógica e a moral,

pois diz ele que Antístenes, em termos lógicos, se deixa levar por uma discussão vazia sobre

termos, e esquece com isso do aspecto contraditório de suas próprias ações.


121

Isócrates vai dar sua estocada mortal quando ataca o conceito de concórdia, que

é exatamente, aquele estado, tanto da pólis, como da alma, em que as opiniões são pacificadas.

Diz ele que aqueles que se prendem à opinião se dão muito melhor do que aqueles que pretendem

possuir a ciência. Com isso ele pretendeu demonstrar que a promessa da cura da alma, herança de

Antifonte, através do ensino da virtude, proclamada pelo panfleto programático de Antístenes,

como de qualquer outro sofista, pensaria ele, não passaria de conversa fiada.

Se bem que os textos de Antístenes nos tenham sido denegados em sua real

extensão, a doxografia, como neste caso do discurso de Isócrates, revela a importância dele no

momento cultural grego em que viveu. Citado uma vez apenas por Platão, Aristóteles lhe deu

toda a atenção, como ainda veremos, referindo-se a ele nominalmente diversas vezes. No entanto,

por mais paradoxal que pareça, já que o objetivo final dos dois é encontrar o caminho que leve à

felicidade, Antístenes nunca é citado na Ética. Porém, se supõe que duas passagens da obra se

referem a ele. Ambas fazem parte justamente da investigação que Aristóteles faz sobre os limites

obscuros entre a felicidade e o prazer. Trata-se de dois momentos dos tratados do prazer de

Aristóteles.

No livro VII:

Os que dizem que na roda ou em grandes infortúnios está alguém e mesmo assim é feliz,
porque é bom, ou não falam sério ou nada dizem.266

No livro X:

Alguns, com efeito, dizem que o prazer é bom, enquanto outros afirmam, pelo contrário,
que ele é absolutamente mau, uns, sem dúvida, na convicção de que é assim, e outros

266
VII 13 1153 b 19-21. oi¸ de\ to\n troxizo/menon kaiì to\n dustuxi¿aij mega/laij peripi¿ptonta
eu)dai¿mona fa/skontej eiånai, e)a\n vÅ a)gaqo/j, hÄ e(ko/ntej hÄ aÃkontej ou)de\n le/gousin.
122

julgando que terá melhor efeito em nossa vida denunciar o prazer como coisa má, ainda
que ele não seja. Porquanto muitos, segundo eles, se inclinam para ele e se escravizam
aos prazeres, e, por isso deveriam ser conduzidos na direção contrária, a fim de
alcançarem o meio termo.267

Aristóteles explicitamente está dialogando com filósofos que tinham uma

doutrina do prazer. Na primeira citação, Aristóteles contesta Antístenes sem argumentação que a

kalo-kagathía seja suficiente para a felicidade. É evidente que a tortura e o infortúnio não

produzem felicidade. Porém, é do mesmo modo evidente que a perfeita honestidade produz

comportamentos mais elevados àqueles que são submetidos a eles. O martírio e a pobreza podem

levar alguém à glória, o que é um motivo de antevisão de felicidade. Na outra citação, Aristóteles

contesta a possível doutrina do prazer de Antístenes resumindo-a. A possibilidade de que

Antístenes tenha mal falado do prazer como uma advertência àqueles que se escravizam a ele.

Vamos tentar a seguir investigar como isso pode ser visto nos fragmentos de Antístenes

dedicados ao prazer.268

A leitura de tais fragmentos mostra claramente que há inconseqüência nas

afirmações de Antístenes sobre o prazer. Segundo esses textos, parece que os prazeres, para ele,

podem ser bons e maus. Se for assim, por que preferir a loucura ao prazer? Por que deixá-los

ficar quando nos dominam? Por que o arrependimento é critério de juízo do prazer bom?

Algumas tentativas têm sido feitas para tentar interpretar o que seria uma teoria do prazer de

Antístenes. Vamos agora acompanhar os comentários de René Antoine Gauthier e Jean Yves

267
X 1 1172 a 27-33. oiá me\n ga\r ta)gaqo\n h(donh\n le/gousin, oiá d' e)c e)nanti¿aj komidv= fau=lon, oiá me\n
iãswj pepeisme/noi ouÀtw kaiì eÃxein, oiá de\ oi¹o/menoi be/ltion eiånai pro\j to\n bi¿on h(mw½n a)pofai¿nein
th\n h(donh\n tw½n fau/lwn, kaiì ei¹ mh\ e)sti¿n: r(e/pein ga\r tou\j pollou\j pro\j au)th\n kaiì douleu/ein
taiÍj h(donaiÍj, dio\ deiÍn ei¹j tou)nanti¿on aÃgein: e)lqeiÍn ga\r aÄn ouÀtwj e)piì to\ me/son
Alguns autores atribuem ainda a passagem a Speusipo.
268
V. Anexo C – Sentenças sobre h(donh/.
123

Jolif269 e de Enrique Utria270, que apontam e tentam dar conta da inconsistência de Antístenes nas

suas afirmações a respeito do prazer.271 Um bom número de fragmentos que são comentados por

eles está em outros grupamentos organizados por Decleva Caizzi na sua coleção. Além disso,

acrescentamos informações que possam ajudar o leitor a se familiarizar com os temas

antistênicos, ou fazemos observações que possam ser pertinentes do nosso ponto de vista.

Acompanhando Gauthier-Jolif, assim se resume a possível teoria do prazer de

Antístenes: é pelo esforço contínuo que se chega à virtude, pois “que o esforço se constitui no

bem, conforme os Grandes Héracles e Ciro, [exemplos] tirados um dos gregos, o outro dos

bárbaros”).272 Olhando como modelos os Grandes Héracles e Ciro, Antístenes segue a doutrina da

autarquia (autárkeia) do sábio proposta por Sócrates: “... a virtude é auto-suficiente para a

felicidade”273. Moral que dispensa a alegria e o descanso.274 O sábio para ser feliz só necessita da

virtude e da prudência. A prudência, disse ele, “é uma fortaleza inexpugnável, pois nem se

269
L’Éthique à Nicomaque. Tradução e comentários.
270
2005.
271
No caso dos primeiros, citamos na nossa reconstrução todo o fragmento, quando no comentário só há referência
da fonte, ou a citação é incompleta. A numeração dos fragmentos em Gauthier-Jolif corresponde à coleção de
fragmentos composta por Mullach (1928). Nós a substituímos pela numeração de AF.
272
Fragmento (AF 19) de um provável diálogo de Antístenes, Ciro (DL VI 17). V. Anexo A – Catálogo Laerciano.
Como complemento damos algumas informações sobre os heróis modelares de Antístenes. Quase objetos de sua
devoção eram o grego Héracles e o persa, portanto bárbaro para o gregos, Ciro. O que parece levar a isso é que
ambos os heróis marcaram suas vidas pelos grandes esforços que empreenderam. O herói grego, como é bastante
conhecido, se divinizou por esforços constantes na realização de tarefas tremendas, popularizadas como “os doze
trabalhos”. O herói persa, que, para Antístenes, era o modelo de rei que exerce a virtude aplicando-se no esforço de
levar o bem, a felicidade, portanto, a seus súditos. Ciro, o Grande, é um herói não só persa, mas hebreu, pois, registra
a história, foi ele que tirou esse povo do cativeiro da Babilônia. A Bíblia o apresenta como Ungido do Senhor, o
único estrangeiro a obter tal título judaico. Os feitos que Ciro, o Grande, realizou sob a inspiração do Senhor de
Israel, são narrados em Isaías (44, 28 e 45, 1-13) e Esdras (1, 1-11). Em Isaías (45, 2), o profeta diz que Ciro era
guiado pelo deus hebreu para endireitar os caminhos tortuosos, quebrar as portas de bronze e despedaçar as trancas
de ferro; uma alusão ao esforço envidado por Ciro em favor de Israel. De certa forma, também Ciro, o Grande, tem
um caráter mítico.
273
DL VI 11. AF 70. au)ta/rkh de\ th\n a)reth\n pro\j eu)daimoni/an.
274
AF 109 A – 109 B.
124

esfacela nem é abandonada”275. Nesse cenário de luta e esforço para adquirir a virtude e a

prudência, como achar lugar para o prazer? É só atentar então para a quantidade de

testemunhos276 para atestar que, para Antístenes, a ceder ao prazer seria melhor enlouquecer (abrir

mão do esforço e da luta que levam à virtude); disse ele: “O homem hercúleo pensa ser preferível

enlouquecer a sentir prazer”277; fragmento que se completa com a afirmação de que o prazer não

merece jamais nem mesmo que se estenda um dedo em seu favor.

Entretanto, observam Gauthier-Jolif, algumas vezes Antístenes tem sido

acusado de inconsistência, pois esse adversário intransigente dos prazeres vulgares não

desconheceu os prazeres da virtude. Seria, perguntamos, uma herança da posição socrática quanto

aos prazeres puros no final do Filebo?278 Seriam esses prazeres puros da alma que acompanham a

ciência e, quem sabe, as sensações, aqueles contemplados por Antístenes? Os autores que

acompanhamos, ao fazerem a observação que abre este parágrafo, exemplificam-na com o

fragmento AF 93279, onde se constata uma atitude mais transigente de Antístenes para com o

prazer, a saber, disse ele que, conforme a tradução desses comentadores que logo a seguir vamos

contestar, “festim sem companhia é sem prazer, como também riqueza sem virtude”. Nossa

contestação diz respeito ao termo usado no fragmento AF 93 em seu grego original, homónoia. O

275
Diocl. ap. DL VI, 13. AF 88. tei/xoj a)sfale/staton fro/nhsij: mh/te ga\r katarrei=n mh\te
prodi/dosqai
276
AF 108 A-F.
277
Euseb. praep. evang. XV, 13, 7. AF 108 E. ¸Hraklewtiko/j tij a)nh\r to\ fro/nhma, oÁj eÃfh tou= hÀdesqai
to\ mai¿nesqai kreiÍtton eiånai.
278
Filebo, 66 c: “aqueles prazeres que distinguimos e marcamos como sem pena, os quais chamamos prazeres puros
da própria alma, aqueles que acompanham a ciência e, às vezes, as sensações?” – aÁj h(dona\j eÃqemen a)lu/pouj
o(risa/menoi, kaqara\j e)ponoma/santej th=j yuxh=j au)th=j, e)pisth/maij, ta\j de\ ai¹sqh/sesin
e(pome/naj;
279
Estob. antol. III, I, 28. AF 93. ouÃte sumpo/sion xwriìj o(monoi¿aj ouÃte plou=toj xwriìj a)reth=j h(donh\n
eÃxei.
125

que diz Antístenes? sympósion khōrís homonoías. A tradução dos autores: “festim sem

companhia”. Para o propósito de resenhar as posições antistênicas, ora desfavoráveis, ora

favoráveis ao prazer, não há problema nenhum com tal tradução. A sensação de prazer que se tem

com os banquetes está perfeitamente expressa na tradução do termo grego homónoia por

“companhia”, mas se perde a reflexão sobre o conceito antifôntico de “concórdia” (homónoia).

Retomando os autores, estes citam a seguir os fragmentos AF 113 e AF 110.280

O primeiro deles traz uma marca interessante. Coloca o prazer em contraponto com o esforço. Só

devemos nos entregar ao prazer após cumprirmos nossas tarefas, entregar-se antes de cumpri-las

pode levar ao relaxamento. Adquirida a virtude através do esforço, seremos inexpugnáveis aos

ataques do vício. Podemos até mesmo gozar os prazeres de Afrodite, como ocorreu com o herói

Héracles, que amou Onfale e Hilas281 depois dos trabalhos, segundo a narrativa mitológica. Essa

máxima, segundo os autores, autorizaria a concluir o que é dito em AF 110, o critério para

reconhecer os prazeres sem pena é a ausência de arrependimento (metaméleia). Sabemos que o

próprio Aristóteles, em várias passagens da Ética a Nicômaco, afirma que tem a ver com o

arrependimento a definição dos atos virtuosos, pois, conforme ele, o arrependimento ocorre, por

exemplo, quando se age sem deliberação. Disse ele: “Tudo o que se faz por ignorância não é

voluntário, e só o que produz dor e arrependimento é involuntário”.282 Para Aristóteles o

arrependimento é necessário para caracterizar o homem virtuoso, só quem pode se arrepender

pode ser curado, daí que a intemperança é sempre um mal, porque o intemperante (akólastos) não

pode se arrepender. Disse Aristóteles: “Tal homem [akólastos] será necessariamente inacessível

280
V. Anexo C – Sentenças sobre h(donh/.
281
Onfale, rainha da Lídia, que o comprou como escravo. Hilas, jovem argonauta que é raptado por ninfas.
282
III 1 1110 b 18-19. To\ de\ di' aÃgnoian ou)x e(kou/sion me\n aÀpan e)sti¿n, a)kou/sion de\ to\ e)pi¿lupon kaiì
e)n metamelei¿#.
126

ao arrependimento e, por conseguinte, incurável, pois quem não pode arrepender-se não pode ser

curado”. 283 Voltemos a acompanhar Gauthier-Jolif.

A solução da inconseqüência de Antístenes apresentada pelos autores, que

fazem um roteiro bastante operacional de uma possível teoria do prazer de Antístenes, não nos

parece satisfatória. Antístenes não apresenta, segundo eles, uma caracterização da natureza do

prazer; para ele o que importa é a conduta moral. Dizem eles: “Antístenes não é um metafísico,

mas um moralista. Se ele condena os prazeres amolecedores que paralisam o esforço da virtude,

nada o impede de gozar da alegria do próprio esforço; ele não diz que a natureza própria do

prazer se opõe a que ele seja um bem”.284

De fato, Antístenes nada diz sobre a natureza do próprio prazer, se o prazer é

um processo ou uma atividade, conforme a distinção feita por Aristóteles: pensa-se [erradamente]

ser a atividade um processo.285 Os autores vão encaminhar sua análise dos hedonistas e dos anti-

hedonistas para atingir seu objetivo que é investigação da posição de Aristóteles quanto ao

prazer. E o Platão do Filebo também estaria incluído nas dificuldades em que os outros se

encontram quanto à verdadeira natureza do prazer. Todos os antecessores de Aristóteles

entenderiam o prazer como o preenchimento de uma falta. Daí as inconseqüências. Citamos:

“Aristóteles sentirá completamente essa inconseqüência e mostrará que a afirmação dos prazeres

283
VII 7 1150 a 22-23. a)na/gkh ga\r tou=ton mh\ eiånai metamelhtiko/n, wÐst' a)ni¿atoj: o( ga\r
a)metame/lhtoj a)ni¿atoj
284
Gauthier-Jolif, p. 775.
285
VII 12 1153 a 16-17. th\n ga\r e)ne/rgeian ge/nesin oiãontai eiånai
127

puros não tem sentido a não ser que se façam não preenchimentos, isto é, processos, mas

atividades, ou conseqüências de atividades”.286

A análise da posição de Antístenes nos parece correta. Mas por que a julgamos

insatisfatória, em certo sentido? Melhor, talvez, seria dizer incompleta. Parece-nos que a questão,

no que se refere a Antístenes, não poderia ser resolvida numa afirmação apressada de que ele não

era um metafísico, mas um moralista. Na verdade, por se tratar de uma obra conhecida por

fragmentos, pouco podemos saber se a afirmação se sustenta por uma argumentação. Que

Antístenes era um moralista é um consenso. Toda a sua obra é pautada no esforço de buscar a

virtude. Não teria um caráter metafísico, além do reconhecidamente moral, não ver obstáculo ao

arrependimento para validar o prazer, mesmo considerando que ele não fosse um metafísico? O

que tentamos insinuar, quando nos reportamos mais acima a Aristóteles e a questão do

arrependimento. Ou como reconhecem os autores, como citamos, a própria natureza do prazer

não se opõe a que ele seja um bem. Não poderia isso ser uma afirmação metafísica? É Platão que

vai pronunciar a condenação metafísica do prazer. É claro que, como um dos protagonistas da

polêmica antiplatônica do século IV a.C., o conceito metafísico de bem deve ser muito diverso

para os dois discípulos de Sócrates. Mas podemos perguntar: não seria um fundo metafísico que

teria levado Aristóteles a rechaçar as duas teses morais fundamentais de Antístenes: a virtude é

auto-suficiente e a virtude pode ser ensinada? Diógenes Laércio sintetiza admiravelmente a

crítica que Aristóteles faz da doutrina da autarquia, herdada de Sócrates:

E ele [Aristóteles] ensinou que a virtude não era auto-suficiente para conferir a
felicidade, pois haveria a necessidade dos bens corporais, e dos bens externos, pois o
sábio seria miserável se fosse cercado por aflições, pela pobreza, e outras circunstâncias

286
Gauthier-Jolif, p. 778.
128

parecidas. Mas, por outro lado, ele disse que o vício era auto-suficiente para causar
infelicidade, mesmo se os bens corporais e os bens externos estivessem presentes no
maior grau possível. Também afirmou que as virtudes não seguem reciprocamente uma
da outra, pois era possível para o homem prudente, justo e imparcial, ser incontinente ou
intemperante; e disse ainda que o sábio não era destituído de paixões, mas dotado de
paixões moderadas. 287

É num trabalho sobre um aspecto do cinismo (a relação animal-natureza) que

vamos encontrar uma outra tentativa de conciliar a inconsistência das afirmações de Antístenes

sobre o prazer. Como já antecipamos, vamos, usando o mesmo procedimento que tivemos ao

acompanhar Gauthier-Jolif, ver como Enrique Utria trata o assunto.

Para este, os vários testemunhos de um anti-hedonismo de Antístenes, sobre

que já estamos suficientemente informados, expresso pelo dito, “antes enlouquecer que sentir

prazer”, nos chegaram fora de contexto. Assim a afirmação de que a volúpia é o sumo mal288 não

pode ser avaliada em todo seu alcance. Além do problema da ausência de contexto, Utria

desqualifica, do nosso ponto de vista com precipitação, os testemunhos por sua natureza tardia. E

não só isso, que essas fontes são mal informadas. Na verdade, pensamos, esses são argumentos

que valem para todos os fragmentos e testemunhos de Antístenes.289 E com isso estaríamos

impedidos de trabalhar na reconstituição de uma tradição. No entanto, no caso dos fragmentos

sobre o prazer, esse argumento, pensamos, não deixa de ter um certo peso. Eles seriam

287
DL V 30-1. th/n te a)reth\n mh\ eiånai au)ta/rkh pro\j eu)daimoni¿an: prosdeiÍsqai ga\r tw½n te periì
sw½ma kaiì tw½n e)kto\j a)gaqw½n, w¨j kakodaimonh/sontoj tou= sofou= kaÄn e)n po/noij vÅ kaÄn e)n peni¿#
kaiì toiÍj o(moi¿oij. th\n me/ntoi kaki¿an au)ta/rkh pro\j kakodaimoni¿an, kaÄn oÀti ma/lista parv= au)tv=
ta\ e)kto\j a)gaqa\ kaiì ta\ periì sw½ma. ta/j t' a)reta\j eÃfh mh\ a)ntakolouqeiÍn: e)nde/xesqai ga\r
fro/nimo/n tina kaiì o(moi¿wj di¿kaion oÃnta a)ko/laston kaiì a)krath= eiånai. eÃfh de\ to\n sofo\n a)paqh=
me\n mh\ eiånai, metriopaqh= de.
288
Aul. Gel. noit. at. IX, 5, 3. AF 108 C. (voluptatem) summum malum.
289
E não só de Antístenes, mas de Heráclito, Parmênides, dos pré-socráticos...
129

importantes para fazer legítima conexão entre Antístenes, os cínicos e os estóicos, já que a

posição anti-hedonista é, prima facie, a marca das morais cínica e estóica.

Utria, dentre os fragmentos que se referem ao dito famoso, destaca um tomado

de Sexto Empírico290, que achou bom interpretar sua fonte juntando kakón para precisar que

Antístenes não critica o prazer em geral, mas o prazer “mau”. Isso, para Utria, mudaria bastante

as coisas, poderia levar a uma compreensão hedonista, pois a condenação de um gozo mau

implica a existência de um gozo bom. Essa interpretação de Sexto Empírico já poderia levar o

fragmento a ser colocado do lado daqueles que não condenam o prazer, mas que lidam com a

contradição dentro de sua doutrina, como Antístenes.

Poderíamos talvez dizer, partindo tanto de Gauthier-Jolif como de Utria, mas

não acompanhando seus percursos, que Antístenes pensava o prazer em três estágios:

1) O prazer pode ser bom e pode ser mau.291


2) O prazer bom é aquele que não dá lugar ao arrependimento.292

Como já vimos; e vamos ver em seguida:

3) O prazer mau pode ser curado a partir do arrependimento.293

Os dois últimos passos, que nós depreendemos, são apontados por Utria, mas a

conclusão que tira não vai se ater ao sentido de arrependimento, a saber, o arrependimento se dá

por um ato passado e não num processo. Isso poderia vir a ser uma complicação para a
290
Sexto Emp. adv. mat. XI, 73. AF 108 B. oiâon th\n h(donh\n o( me\n ¹Epi¿kouroj a)gaqo\n eiånai¿ fhsin: o( de\
ei¹pw¯n: manei¿hn ma=llon hÄ h(sqei¿hn kako/n.
291
AF 108 B.
292
Aten. XII, 513 A. AF 110. ¹Antisqe/nhj de\ th\n h(donh\n a)gaqo\n eiånai fa/skwn prose/qhken th\n
a)metame/lhton.
293
AF 112 A-B.
130

compreensão do posicionamento de Antístenes em relação à natureza do prazer. Acrescentamos

também que Antístenes não admitia a forma platônica, mas apenas as manifestações sensíveis, e,

a fortiori, não admitia a definição das naturezas ou essências. O fragmento de Ateneu é uma

fonte muito inquietadora, pois como diz Utria, seguindo Brancacci, Ateneu294 é uma fonte

excelente para Antístenes, pois teria meios de citar os escritos através de Heródico, que foi seu

contemporâneo. Utria, no entanto, não toma o termo arrependimento no aspecto de cura,

caracteristicamente aristotélico, que já contemplamos ainda pouco. Utria vai por outro caminho,

para o passado, ele interroga se essa posição de entender que o prazer bom é aquele que não dá

lugar ao arrependimento, não seria uma herança socrática conforme o que se lê no Protágoras295.

As coisas não são boas ou más em si, mas, através do tempo, elas se mostram boas ou más. São

as conseqüências que dirão se são boas ou más. Esse conseqüencialismo não agrada a Utria, que

abandona a tese por não achá-la socrática. Ele não quer saber da origem desse ametamélētos

hedonē¯ antistênico. Ele quer tratar da tese de Antístenes sobre o prazer bom enquanto bom.

Segundo ele, então, Antístenes não faz guerra ao prazer, mas ao prazer sem medida, excessivo, e

causa de sofrimento. Recorre como justificativa a dois fragmentos de Estobeu296, mas toma uma

liberdade de tradução, pois entende que a porta por onde entram os prazeres é a porta dos

sentidos. Tratar-se-ia dos prazeres corporais. O que dá uma descrição dos prazeres maus, que

seriam os corporais, mas não dá conta do arrependimento. Diz ele:

Propomos interpretar esses ‘prazeres que entram pela porta dos sentidos’ como todos
aqueles prazeres de tipo animal, simples e limitado, isto é, todos os prazeres ilimitados
que nascem do amor próprio no sentido rousseauniano, da comparação, da emulação.
Esses levam à loucura, à perda do controle de si, será necessário purgá-los pelo esforço,
pela ascese.297

294
AF 110.
295
351 c.
296
AF 112 A-B.
297
2005, p. 21.
131

Parece-nos que “os desejos insaciáveis produzidos por conta de prazeres

pequenos e efêmeros” podem perfeitamente ser entendidos como falta, carência que pede

preenchimento. E será essa a interpretação de Utria. Segue, então, a citação do fragmento AF

113. Utria considera que é uma prescrição terapêutica. O remédio é o esforço; sobre isso há

consenso.

Passar pela experiência dos desejos impudicos (anaidē¯s)298, que seriam

heleborizados, constituiria, pois, a preliminar ao prazer verdadeiro. A provação que constitui a

falta, o desejo frustrado até se tornar uma carência necessária, acabará por devolver ao prazer sua

alegria própria. Os incontinentes, comenta Utria, citando Dio Crisóstomo (VI° Discurso, 12) não

provam nenhum prazer ao fazer amor porque não sabem absolutamente esperar que sejam

transportados por um desejo natural. Utria faz então a contraposição clássica entre a paixão

momentânea (parón páthos), que segue os azares da vida e o que é suficiente para viver (arkéō);

na verdade, ele não diz contraposição, ele usa o termo adequação. Essa interpretação, ao recorrer

à presença do prazer, expressão característica de Aristipo, parece-nos levar mais para o

epicurismo, com essa idéia de um prazer no movimento da vida, que segundo o tempero do

epicurismo, deve levar à saúde do corpo e a tranqüilidade da alma. No entanto, Utria considera

que essa adequação corresponde ao elogio cínico da frugalidade. A finalidade de Antístenes,

segundo ele, é conservar vivo o prazer e até mesmo intensificá-lo. O que podemos dizer de outra

maneira: a abstenção de um prazer faz aumentar o gozo quando se volta a experimentá-lo, ou na

expressão popular, o melhor tempero da comida é o apetite aguçado pela fome. O prazer mais

agradável é o que resulta de uma ascese frugal. “Há pois de um certo modo um cálculo dos

298
Aqui tivemos dificuldade motivada por uma citação imprecisa de Diógenes Laércio feita por Utria.
132

prazeres em Antístenes”299, encerra Utria. Este nos deixa, no seu percurso, naquele ponto, naquela

fronteira borrada, entre epicurismo e estoicismo, que se chama ataraxía, aquele estado de

imperturbabilidade da alma que, para epicuristas e estóicos, é a mais alta forma de felicidade e o

fim supremo da vida.

A inconseqüência de Antístenes em relação ao prazer, merece uma apreciação

que não limitasse sua teoria à de um moralista estreito, sem qualquer vista para uma concepção

metafísica do prazer, e a partir dela condená-lo (é melhor enlouquecer a sentir prazer) ou absolvê-

lo (o prazer bom não dá lugar ao arrependimento). Pensamos que essa tenha sido a posição de

Gauthier-Jolif. Nem tampouco tirar sua não pequena responsabilidade como pressuposto cabeça

de escola, condenando o prazer sem piedade, deixando uma herança que terá não pouca

influência na história do pensamento e da ciência humana, o estoicismo.

Agora se faz necessária a colocação da teoria do prazer de Antístenes no quadro

geral das suas teses sobre a moral, a retórica e a linguagem. Sobre a primeira tese nos parece que

dissemos o suficiente. A segunda parte deste trabalho será dedicada a analisar as teses centrais da

filosofia de Antístenes, a impossibilidade da definição e da contradição: suas respostas

impossíveis para a construção do homem virtuoso, que só encontra a felicidade no prazer da

linguagem.

1) A tese moral: a virtude pode ser ensinada.300

299
2005, p. 22.
300
DL VI 11. AF 69. didakth\n a)pedei/knue th\n a)reth/n.
133

Segundo esta tese, o prazer, em princípio deve ser evitado, mas uma vez

provado (que tenha entrado pela porta), deve ser submetido a um tratamento através da educação,

do ensino da virtude, que se faz através do uso dos nomes.

2) A tese lingüística: não é possível definir a essência.301

Como de cada coisa só se pode afirmar sua enunciação própria (oikeîos lógos)

não se pode atribuir um nome a outro, o que é necessário para haver a definição, logo não se pode

dizer que o prazer é mau, ou que o prazer é bom, o bom é bom, o mau é mau, o prazer é o prazer

(com suas conseqüências, quer levem ou não ao arrependimento); só podemos dizer que isto ou

aquilo é bom, isto ou aquilo é mau, ou que isto ou aquilo é o prazer. A virtude estaria na

composição em que esses elementos se achem em concórdia.

3) A tese retórica: não é possível contradizer .302

A contradição em que entra Antístenes não seria uma teoria do prazer, mas uma

prática dentro da tradição sofística: afirmar, ao mesmo tempo, que o prazer é mau e bom é

exemplo da prática da dialética antilógica, que faz com que a mesma coisa pareça tanto má como

boa.

301
H 3 1043 b 25. AF 44 A. ou)k e)/sti to\ ti/ e)/stin o(ri/sasqai.
302
Aristóteles, Tópicos, I 11 104 b 19-21. AF 47 C. “Tese é uma suposição que constitui um paradoxo ante o que é
geralmente aceito em filosofia, como ‘não há contradição’, conforme diz Antístenes”. qe/sij de/ e)stin u(po/lhyij
para/docoj tw½n gnwri¿mwn tino\j kata\ filosofi¿an, oiâon oÀti ou)k eÃstin a)ntile/gein, kaqa/per e)/fh
‘Antisqe/nhj.
PARTE 2 – AS RESPOSTAS IMPOSSÍVEIS

2.1 NÃO É POSSÍVEL DEFINIR

2.1.1 A definição de Aristóteles

Aristóteles concebeu a definição (horismós) como definição por diferença

(diaphorá). Isso é dito explicitamente por ele: “pois a definição se dá a partir do gênero e das

diferenças”.303 E também: “pois na definição não há nada diverso do chamado gênero primeiro e

das diferenças”. 304


Essa teoria, que, em princípio, se quer mais científica que a proposta por

Platão, a diaíresis, para a definição305, não é, ela mesma, desprovida de embaraços. Esses dois

aspectos da definição, o gênero e a diferença306, apresentam embaraços que nos interessam, não

só porque dizem respeito direto ao que nos propomos defender, mas também porque temos o

suporte da honestidade de Aristóteles, que reconhece, ele mesmo, tais embaraços.

Por tal razão, este capítulo terá por objetivo expor as dificuldades da concepção

de definição de Aristóteles, a fim de que tenhamos as condições que nos permitam avaliar com

303
Tópicos, I 8 103 b 14-16. e)peidh\ o( o(rismo\j e)k ge/nouj kai\ diaforw=n e)stin.
304
Z 12 1037 b 29-30. ou)de\n ga\r e(\tero/n e)stin e)n t%= o(rism%= plh\n to\ prw=ton lego/menon ge/noj kai\ ai(
diaforai.
305
Sofista, 218 b e ss.
306
Embaraçosa é também a situação dos termos ei)=doj e morfh/. O primeiro, que vincula indissoluvelmente
Aristóteles ao pensamento acadêmico, não só teoricamente, mas emocionalmente, tem, por isso, uma forte
ressonância da teoria das idéias, radicalmente rejeitada pelo discípulo. Acresce-se a isso, a sua tradução por espécie,
solidamente fixada na tradição. E mais, o uso indiscriminado por parte de Aristóteles ora de um ora de outro para
designar a forma. Mesmo introduzindo um outro termo, morfh, com mais concretude, é impossível não se
vislumbrar nele a teoria do mestre. Por outro lado, mesmo que Aristóteles distinga cuidadosamente as coisas
sensíveis das coisas inteligíveis, essa herança vai macular tanto a teoria da definição, como a teoria hilemórfica, pois
levará a matéria, seja sensível ou inteligível, a uma incômoda condição de substrato concreto, o espaço lógico e
ontológico, da essência. O gênero seria, assim, aquilo que serve de matéria à especificidade da diferença, ou
substrato da forma. A tradição achou cômodo então que se falasse de substância.
135

certa nitidez a oposição de Aristóteles aos antistênicos, que não aceitavam a definição da

essência307, como se verá.

O termo grego génos indica propriamente origem ou nascimento, ou seja,

aquilo que é produto de geração. A definição está, portanto, ligada ao processo de geração, pois o

que será definido o será pelas diferenças que se detectam nas coisas que têm uma mesma origem,

seja a coisa originada pela arte, pela natureza ou por qualquer faculdade.308 No entanto, observa

Aristóteles em alguns lugares309, a geração não deve ser levada em conta quando se trata da

definição, pois o que é gerado não é nem a matéria em que a geração ocorre nem a diferença, mas

cada uma das coisas: assim uma esfera de bronze que temos diante de nós concretamente é que

foi gerada, mas a matéria que é o bronze e o aspecto, que pode ser no bronze o de uma esfera ou

de uma estátua, não são gerados. Essa dificuldade, que é levantada pelo próprio Aristóteles, é

uma entre algumas que se apresentam quando alguém se propõe a definir a essência. “Pois uma

definição é uma expressão que significa o que há de ser a coisa”310 E diz ainda Aristóteles: “...o

que há de ser a coisa pertence à forma (eîdos) e ao ato.”311

Quanto à dificuldade que surge na definição da essência pela diferença, que os

latinos nos legaram como específica, nos Tópicos312, é chamada a atenção para o fato de que uma

definição pode ser correta ou incorreta. Parte Aristóteles, para determinar o que é correto ou

incorreto na definição, do motivo pelo qual se formula uma definição: define-se para dar

307
H 3 1043 b 23-5.
308
Z 8 1033 b 7-8: gi/gnetai h)\ u(po\ te/xnhj h)\ u(pó\ fu/sewj h)\ u(po\ duna/mewj.
309
Z 8 1033 a 24 e ss.; H 3 1043 b 14 e ss.
310
Tópicos, VII 3 153 a 15-6. ga/r e)stin oÀroj lo/goj o( to\ ti¿ hÅn eiånai t%½ pra/gmati.
311
H 3 1043 b 1-2. to\ ga\r ti¿ hÅn eiånai t%½ eiãdei kaiì tv= e)nergei¿# u(pa/rxei.
312
VI 4 141 a 22 ss.
136

satisfação do que é dito (khárin tò lekhthén). A primeira norma de correção, e a mais importante,

é que a definição deve ser formulada em termos que sejam anteriores e mais inteligíveis

(protérōn kaì gnōrimōtérōn), pois são tais os termos que se usam em todo ensino e aprendizagem

(hoútō gàr pa½sa didaskalía kaì máthēsis ékheiŸ. Usando-se tais termos na definição se impede

que uma mesma coisa tenha várias definições, definições distintas pressupõem coisas distintas.

Assim, quem não define nesses termos não define em absoluto. Essa exigência, no entanto,

Aristóteles reconhece que é da maior dificuldade, pois essa definição pode ser feita a partir de

termos menos inteligíveis. A idéia geral, a saber, tanto para o mais como para o menos

inteligível, é a seguinte: as coisas são mais inteligíveis, quando tomadas em absoluto, em si;

menos inteligíveis quando tomadas para nós. De maneira absoluta o anterior é mais inteligível

que o posterior: o ponto é anterior à linha que é anterior ao plano que é anterior ao sólido. A

unidade é mais inteligível que o número. E a letra do que a sílaba. Para nós, todavia, acontece o

contrário, pois o sólido, por exemplo, é o que cai mais facilmente sob a nossa percepção. É

preferível, no entanto, que se procure tornar conhecido o posterior por meio do anterior; visto que

tal modo de proceder é mais científico (epistēmonikō¿teron).313 Se a definição for feita a partir do

que é mais conhecido para nós, por exemplo, definir o plano a partir do sólido, temos de estar

atentos, pois não se trataria, no caso, de uma definição essencial. De tal forma, devemos definir a

essência pelo que é anterior, o gênero e a diferença, pois são mais inteligíveis em si e anteriores à

espécie (ao aspecto, à forma). Assim, se a espécie é conhecida, o gênero e a diferença devem ser

necessariamente conhecidos (se conhecemos o “homem”, sabemos que é um “animal”), mas,

podemos conhecer o gênero e a diferença e não se seguir necessariamente que a espécie seja

313
Aristóteles aponta para essa mesma dificuldade na Metafísica (Z 3 1029 a 34-1029 b 12), mas recomenda que se
comece a investigação pelo menos inteligível para chegar ao mais inteligível.
137

conhecida.314 A espécie é o menos inteligível (agnōstóteron tò eîdos). Há três formas de falhar no

emprego de termos anteriores:

1) Definir o oposto por seu próprio oposto, por exemplo, o bem pelo mal, mas

é difícil definir termos relativos sem recorrer um ao outro.

2) Definir pelo próprio definido, por exemplo, o sol é o astro do dia, já

que o dia resulta do sol.

3) Definir pelo que é coordenado ou subordinado, por exemplo, o ímpar pelo

par, a virtude pelo bem.

Com a diferença como critério de definição, Aristóteles confere ao

procedimento definidor, como acabamos de ver, o caráter de fundamento lógico-metafísico do

conhecimento. O que, se por um lado conheceu a fortuna na história da filosofia até mesmo na

história da ciência classificatória da biologia moderna, tem sido, por outro lado, alvo de crítica

por causa de sua insuficiência, que acarreta problemas até hoje não solucionados. O problema

inquestionável das diferenças é que elas são infinitas. Não sabemos por que o aristotelismo, assim

como o platonismo, se aferraram, de maneira tão bem sucedida, a algo tão risível como tentar dar

feições definidoras à realidade mundana, tão marcada pelas diferenças, usando justamente como

critério essas próprias diferenças. Essa dificuldade é mais gritante quando Aristóteles empreende

as classificações biológicas em Partes dos Animais, em que era preciso encontrar entre tantas

diferenças de figuras, movimentos, partes, órgãos, modos de vida, modos de reprodução, dos

animais, aquela que produziria um quadro definido (definitório, na verdade) da profusão de

diferenças do mundo dos seres vivos. No entanto Aristóteles estava firme no seu projeto de

explicar o mundo de uma maneira que contrariasse a hipótese das idéias, de Platão, e a hipótese

314
Isso constituiria o princípio da ciência classificatória, apanágio e tormento de Aristóteles.
138

da mistura de elementos, de Antístenes. Corajosamente essas dificuldades já são enfrentadas logo

de início na investigação, como vemos claramente no próprio texto de Aristóteles.315

Com seu cuidado historial, ao tratar de investigar o estatuto da diferença, ele

cita que Demócrito só admitia a existência de três tipos de diferenças. Seriam as três maneiras

como se organizam os elementos (stoikheîa), que para ele são indivisíveis (átomoi). Cada um

desses elementos é uno e idêntico; juntos constituem o corpo material. Todas as diferenças que há

no mundo material, para Demócrito, são resultado da organização desses elementos, segundo sua

figura (skhē½ma), sua posição (thésis), sua ordenação (táxis). Em outra parte da Metafísica

Aristóteles ilustra essa teoria da diferença de Demócrito com letras, diz ele: “Assim A difere de N

pela figura, AN de NA pela ordenação e Z de N pela posição”. 316


Logo a seguir, no texto

criticando Demócrito, reconhece: “na verdade as diferenças parecem ser múltiplas”.317 Muito

curioso é o comentário de Reale à passagem: “Aristóteles, aqui, critica Demócrito por ter

indicado só uma parte das diferenças (itálico do autor); porém não pretende traçar uma ‘tábua’

das diferenças (itálico do autor). Ele se propõe, agora, a mostrar simplesmente que existem bem

mais do que três diferenças...”318 A curiosidade vai, na nossa opinião, por conta da crença acrítica

de Reale da posição de Aristóteles quanto à diferença. É claro que Aristóteles tem uma carta na

manga para tentar sair do embaraço em que se meteu. Mas antes, para contestar Demócrito, ele

elenca um bom número de diferenças: por mistura (hidromel), por liga (feixe), por colagem

315
H 2 1042 b 11 ss. Aristóteles se coloca explicitamente em diálogo com seus dois opositores quanto à questão da
definição, Demócrito e Antístenes. Reale considera que tal passagem “deve ser entendida no contexto da polêmica
contra os pensadores que se movem no mesmo plano de Antístenes e dos seus seguidores”. (2002. Tomo III, p. 434).
De tal forma não podemos, para tratar da polêmica sobre a definição, nos limitar, na própria expressão de Reale
(Idem, p. 437), ao “famoso fragmento de Antístenes” (H 3 1043 b 4-14...23-32. AF 44 A).
316
A 4 985 b 17-19. diafe/rei ga\r to\ me\n A tou= N sxh/mati to\ de\ AN tou= NA ta/cei to\ de\ Z tou= H
qe/sei.
317
H 2 1042 b 15. fai\nontai de\ pollai\ diaforai\ ou)=sai.
318
G. Reale (2002). Tomo III, p. 429.
139

(livro), por junção (cesta), pela posição (soleira), pelo tempo (almoço), pelo lugar (os ventos), e

ainda pela dureza, pela maciez, pela densidade, pela rarefação, pela secura, pela umidade... A

seguir vem uma passagem muito difícil de conciliar com o esforço que está fazendo para

simplificar a infinita variedade de diferenças: “o é é dito de muitos modos” 319, pois Aristóteles

sem usar o termo ousía (essência), como vinha fazendo, vai dizer que para cada coisa há uma

essência, pois há muitos modos de fazer a diferença, como segue, exemplificando com a soleira e

o gelo; o é (tò ésti) significaria, talvez, “o ser que é próprio de cada coisa”, “o que cada coisa é”,

a saber, as inúmeras, as muitas essências” que são próprias cada uma para cada coisa. Assim, a

soleira é a parte da moldura da porta que está no piso (essa é a diferença essencial da moldura da

porta que a distingue das partes laterais e superior da moldura da porta); o gelo é a água

condensada (essa é a diferença essencial do gelo, em relação aos outros estados da água, os

estados líquido e gasoso). Os dois exemplos de Aristóteles, sem querer ser maldoso, poderiam

servir também à teoria da diferença de Demócrito, pois o caso da soleira é uma diferença por

posição, reconhecida pelo próprio Aristóteles, como vimos, e, o que não sabemos se poderia ser

reconhecido por suas investigações, o caso do gelo é uma diferença de figura (haja vista os

cristais de neve). Tudo isso poderia nos levar a concluir que, aí, Aristóteles estaria, talvez,

apontando para a predicação.

“Dever-se-á encontrar, portanto, quais são os gêneros das diferenças”320, diz

Aristóteles. É outra passagem complicada. Em todo o passo, Aristóteles não se mostra muito

rigoroso tecnicamente, como já vimos quanto à essência, e agora, quanto ao uso do termo génos.

É evidente que génos, aqui, não está sendo usado no sentido em que é usado para explicar a

319
H 2 1042 b 25-6. to\ e)/sti tosautaxw=j le/getai.
320
H 2 1042 b 31-2. lhpte/a ou)=n ta\ ge/nh tw=n diaforw=n.
140

definição, como vimos. Aqui se vai partir das diferenças para encontrar os gêneros, a saber, como

reduzir as diferenças a um único gênero. E não encontrar as diferenças que definam com o gênero

a essência. Não sabemos se Aristóteles quer propor agora que se procurem os gêneros supremos,

o que nos faz aludir aos gêneros supremos platônicos: “o mesmo”, “o outro”, “o repouso”, “o

movimento”, “o ser”. É desconcertante que ele diga que ausência dos gêneros das diferenças é

causa do não-ser das coisas. Talvez ele entendesse, como Platão, que o não-ser tem uma certa

realidade, já que a realidade só se manifesta através de uma definição, é, quando a essência é dita.

A ausência da essência é o não-ser. Reale faz um comentário à introdução do não-ser com uma

feição ligeiramente platônica:

Existem coisas cujo ser [o mesmo, dizemos] é dado pela mistura (por exemplo o
hidromel); portanto o seu não-ser é a condição oposta [o outro], vale dizer, o não ser
misturadas (se a água não é misturada como o mel não existe o hidromel).
Provavelmente a frase pretende ser a exemplificação de um pensamento geral, que se
pode subentender facilmente: a presença daqueles gêneros de diferenças das quais se
falou é causa do ser das várias coisas, onde a ausência delas é causa do não-ser das
coisas...321

“Nessas diferenças é preciso buscar qual é a causa do ser de cada uma das

coisas”.322 O que ele pretende é unir as duas teorias, da matéria e forma, e do ato e potência. A

diferença será dada pelo ato na matéria, o que se predica da matéria é o próprio ato. Algumas

linhas abaixo ele vai dizer que o gênero deve servir de matéria e a diferença de forma. 323

Não nos aplicamos a tratar da definição de Aristóteles ociosamente, esse

cuidado de Aristóteles em distinguir todos os aspectos da definição está no contexto de sua

polêmica com os antistênicos e os platônicos. Aqueles, por serem, na expressão de Reale,

321
G. Reale (2002). Tomo III, p. 431. O itálico é do próprio autor.
322
H 2 1043 a 2-3. h( ou)si/a ai)ti/a tou= ei)=nai e(/kaston.
323
H 3 1043 b 32. dei= to\ me\n w(/sper u(/lhn to\ de\ w(j morfh/n.
141

“rudes”, só admitiam uma definição material e desconheciam o princípio formal defendido pelos

últimos. Já Aristóteles acha que o que se define é o composto de matéria e forma. É o que ele

parece querer dizer quando exemplifica a definição de casa:

1) Os que definem a casa dizendo que ela é pedra, tijolos e madeira, dizem o

que é a casa em potência, porque todas essas coisas são matéria.

2) Os que definem dizendo que é um refúgio para proteger coisas e corpos ou

alguma outra coisa desse tipo dizem o que é a casa em ato.

3) Os que unem ambas as definições exprimem a essência no terceiro

significado, como um composto de matéria e forma.

É preciso, portanto, levar em conta que a questão da definição é pensada no

interior, não só de uma crítica ao pensamento de Platão, mas também de Antístenes. Crítica que

procurou atingir a hipótese das idéias, com que ele se conciliava com Antístenes. A crítica da

concepção de definição procurou atingir ainda a definição pelo método da diaíresis (divisão),

neste caso, usada tanto por Platão, como por Antístenes. Para Aristóteles definir não era

unicamente apresentar a essência através de uma divisão. Definir era exprimir diretamente a

essência, pois é essa que constitui o ato que dá forma à matéria. É a través de uma definição que

expressamos a essência do composto. Assim em Tópicos, ele vai dizer que “a definição é um

enunciado que exprime o que era para ser”.324 E nos Segundos Analíticos, “com efeito a definição

porta sobre o que era para ser e a essência”.325 Há uma acentuada diferença na concepção de

essência nessas duas obras; enquanto nos Tópicos é ainda a diferença última, que se contrapõe ao

acidente, nos Segundos Analíticos, é aquilo que é fornecido como termo médio de um silogismo.

324
I 5 101 b 38. )Esti d))/’ o(=roj me\n lo/goj o( to\ ti/ h)=n ei)=nai shmai/nwn.
325
II 3 90 b 30-31. o(rismo\j me\n ga\r tou= ti/ e)sti kai\ ou)si/aj.
142

O importante é que Aristóteles está acreditando que entre as diversas diferenças que possam vir a

definir uma essência (ousía), há de fato, uma que é o que era para ser (tò tí ē½n eînai) a essência, e

essa essência é a forma. A questão será saber se essa essência pode ser material, como querem os

antistênicos, ou imaterial, como querem os platônicos. Aristóteles vai reconhecer que é

necessário dar lugar à matéria, esta necessidade se dá por causa do gênero, como substrato

material da essência, conforme já vimos, por outro lado é o princípio formal que permite

distinguir a espécie. A solução que encontra é considerar que a essência, no caso das coisas

materiais, é por um lado matéria, por outro, forma ou ato, e, em terceiro lugar, ambos estes.326 A

terceira opção é o que ele chama de composto (synthéton, sýnolon). Mas neste momento327 se vê

diante das armadilhas da linguagem: o termo “casa” tanto poderá exprimir o composto de matéria

e forma (como a junção material de pedras, tijolos e madeira segundo o princípio formal de

“casa”), como a forma desligada da matéria (a idéia de “casa”). A solução que ele encontra para

salvaguardar a concepção de definição pela diferença será fazer uma distinção precisa entre o

termo ou nome (ónoma), o enunciado (lógos) e a definição (horismós). Ora, assim como ocorre

com génos e eîdos328, o uso de tais palavras gregas está longe de se restringir a uma distinção

puramente técnica; é comum se entender lógos como definição e até mesmo como ónoma.

Esse problema da adequação do uso dos nomes (que é o objeto da investigação

da linguagem proposta por Antístenes), é exposto de forma, a nosso ver, obscura (como o

exemplo da Ilíada, a saber, se seguir de que todo nome pode ser substituído por uma enunciação,

326
H 2 1043 a 26-8.
327
H 3 1043 a 31.
328
Há quem considere que o uso de ei)=doj, para designar o princípio imaterial formal, competindo com morfh/, a
saber, a diferença que expressa o ato na matéria, o que os medievais chamariam de forma substancial, teria sido
fixado por Espeusipo. Hoje, numa leitura superficial de Aristóteles, diríamos que corresponderia ao que se entende
por espécie. Desde Porfírio se entende que a definição se faz pelo gênero e a diferença específica.
143

que Ilíada possa ser uma definição), nesta passagem da Metafísica, que parece ressoar

criticamente a questão do nome e da definição no Teeteto329.

Portanto, só é definição a enunciação que diz o que há de ser a essência. E simplesmente


não existe definição quando há um nome único para significar alguma coisa que o pode
ser por uma enunciação (do contrário todos as enunciações seriam definições; de fato,
poder-se-ia sempre pôr um nome único em lugar de qualquer enunciação, de modo que
até o nome Ilíada seria uma definição), mas só existe definição quando uma enunciação
exprime algo que é primeiro; e só é primeiro aquilo que não implica a predicação de
alguma coisa a outra coisa. Portanto, não poderá ter o que era para ser senão aquilo que
sejam espécies últimas de um gênero mas só daquelas: com efeito, é claro que só estas
não se predicam de outras por participação, nem por afecção nem como acidente.
Entretanto, para todas as outras coisas, desde que tenham um nome, haverá uma
enunciação que exprima o seu significado, enquanto isto está para aquilo; ou, em vez de
uma enunciação simples, algo exato. Destas coisas, porém, não haverá definição do que
era para ser essência.330

Aristóteles tem, na passagem citada, pelo menos, duas preocupações:

1) Propor o uso preciso do termo lógos, que é usado indiferentemente para

designar uma enunciação qualquer, a saber, uma série de nomes com

significado, ou uma enunciação que define uma coisa, por meio do gênero e

da diferença de espécie.

329
Não temos notícia de tal aproximação feita por comentadores de Antístenes. Costumam eles aproximar o texto do
Teeteto (201 e-202 c) ao fragmento AF 44 A. Cf. n. 12 deste capítulo. Trataremos dessa aproximação no capítulo que
segue.
330
Z 4 1030 a 6-17. wÐste to\ ti¿ hÅn eiånai¿ e)stin oÀswn o( lo/goj e)stiìn o(rismo/j. o(rismo\j d' e)stiìn ou)k aÄn
oÃnoma lo/g% tau)to\ shmai¿nv (pa/ntej ga\r aÄn eiåen oi¸ lo/goi oÀroi: eÃstai ga\r oÃnoma o(t%ou=n lo/g%,
wÐste kaiì h( ¹Ilia\j o(rismo\j eÃstaiŸ, a)ll' e)a\n prw¯tou tino\j vÅ: toiau=ta d' e)stiìn oÀsa le/getai mh\ t%½
aÃllo kat' aÃllou le/gesqai. ou)k eÃstai aÃra ou)deniì tw½n mh\ ge/nouj ei¹dw½n u(pa/rxon to\ ti¿ hÅn eiånai,
a)lla\ tou/toij mo/non (tau=ta ga\r dokeiÍ ou) kata\ metoxh\n le/gesqai kaiì pa/qoj ou)d' w¨j
sumbebhko/jŸ: a)lla\ lo/goj me\n eÃstai e(ka/stou kaiì tw½n aÃllwn ti¿ shmai¿nei, e)a\n vÅ oÃnoma, oÀti to/de
t%½de u(pa/rxei, hÄ a)ntiì lo/gou a(plou= a)kribe/steroj: o(rismo\j d' ou)k eÃstai ou)de\ to\ ti¿ hÅn eiånai.
144

2) Propor que os nomes só devessem designar coisas com exatidão e não ser

confundidos com enunciações definidoras.

Assim, uma enunciação é uma definição quando significa o que era para ser a

essência, com que Antístenes discorda, já que ele pensa a essência como indefinível, e o nome

exato é aquele das coisas que não podem ser definidas, o que Antístenes concederia, se fosse

aceito que a teoria exposta no Teeteto é de autoria dele. O grande problema em que se envolve

Aristóteles, entre outros, é a concepção de que as espécies últimas são uma herança platônica da

hipótese das idéias. Pois é o que parece ao dizer nesta passagem: “não se gera a essência de casa,

mas só o ser desta casa concreta; as formas existem ou não existem sem que delas exista processo

de geração e corrupção: ninguém as gera ou as produz”.331 Se por um lado Aristóteles se mantém

arraigado à concepção de uma forma não gerada e incorruptível, ele reconhece, como Antístenes,

que essa forma, que seria o que era para ser a essência, não é passível de definição. Diz ele:

Mas também não é possível definir qualquer idéia, porque cada idéia, como sustentam
alguns, é uma realidade separada. De fato, é necessário que a definição conste de nomes,
e quem define não poderá cunhar novos nomes, porque, nesse caso, a definição ficaria
incompreensível; tendo eles aplicações comuns a todas as coisas, portanto, é necessário
que se apliquem também a outros.332

É evidente que Aristóteles atribui a dificuldade da definição da essência (ou da

idéia, forma, ato) ao caráter de realidade separada que Platão dá à sua concepção de idéia. Mas a

331
Z 15 1039 b 24-7. (ou)de\ ga\r ge/nesij, ou) ga\r gi¿gnetai to\ oi¹ki¿# eiånai a)lla\ to\ tv=de tv= oi¹ki¿#Ÿ, a)ll'
aÃneu gene/sewj kaiì fqora=j ei¹siì kaiì ou)k ei¹si¿n: de/deiktai ga\r oÀti ou)deiìj tau=ta genn#= ou)de\ poieiÍ.
332
Z 15 1040 a 8-12. Ou)de\ dh\ i¹de/an ou)demi¿an eÃstin o(ri¿sasqai. tw½n ga\r kaq' eÀka-ston h( i¹de/a, w¨j
fasi¿, kaiì xwristh/: a)nagkaiÍon de\ e)c o)no-ma/twn eiånai to\n lo/gon, oÃnoma d' ou) poih/sei o(
o(rizo/menoj (aÃgnwston ga\r eÃstaiŸ, ta\ de\ kei¿mena koina\ pa=sin: a)na/gkh aÃra u(pa/rxein kaiì aÃll%
tau=ta.
145

questão não está aí, e Aristóteles não esconde que está diante de uma aporia.333 Pensamos que o

problema está não na concepção da idéia como realidade separada, mas simplesmente pelo fato

de que as idéias são simples e elementares, seriam nomes e não enunciações. E Aristóteles tem de

conceder que dos primeiros elementos não é possível definição.334 A pá de cal da definição pela

diferença, do ponto de vista de Antístenes, é a concepção de composição de Aristóteles, distinta

da sua, mais próxima da de Demócrito: o que se compõe não é uma matéria e algo pensado, mas

os elementos, de que as chamadas idéias são parte. As dificuldades não deixam de ser grandes,

nem se resolvem. Porém, se levarmos em conta, o caráter impositivo da forma, não resta dúvida

de que certas realidades dificilmente se deixam definir pelo princípio formal da diferença

específica. Por exemplo, a dificuldade de tratar o espinhoso caso da geração do mulo, como

observa Aristóteles:

Constitui uma exceção a geração contra a natureza: por exemplo, o caso do cavalo que
gera o mulo. Mas também aqui o processo é semelhante: a geração poderia ocorrer por
obra de algo comum entre o cavalo e asno, ou seja, um gênero próximo a ambos, que
não tem nome, intermediário entre os dois e, talvez, semelhante ao mulo.335

Aristóteles não enfrenta os que contestam com um argumento contra o princípio

formal, como seria de esperar, já que a dificuldade, tanto a metafísica, como a do caso de geração

contra a natureza, se liga ao princípio formal, e não ao gênero, porém, argumenta que ambos,

asno e cavalo, que têm formas diferentes, possuiriam um gênero comum próximo. A teoria

hilemórfica, apesar do seu charme discreto, encontra aporias insolúveis, quando se tenta conciliar

333
H 3 1043 b 24.
334
H 3 1043 b 30.
335
Z 8 1033 b 33-1034 a 2. aÄn mh/ ti para\ fu/sin ge/nhtai, oiâon iàppoj h(mi¿onon (kaiì tau=ta de\ o(moi¿wj: oÁ
ga\r aÄn koino\n eiãh e)f' iàppou kaiì oÃnou ou)k w©no/mastai, to\ e)ggu/tata ge/noj, eiãh d' aÄn aÃmfw iãswj,
oiâon h(mi¿onojŸ:
146

a materialidade do gênero com a imaterialidade da forma. Como observa Reale, na realidade,

trata-se de uma das mais delicadas questões da “usiologia” aristotélica.

Duas coisas nos surpreendem nessa tentativa vã de Aristóteles de conciliar

materialismo e formalismo, se ele estava vivendo uma polêmica que corria de forma apaixonada

em sua época. Conceder que a realidade material é constituída por composição de elementos, e

em seguida, descartar a matéria, e explicar platonicamente o próprio mundo físico. O caso da

geração contra a natureza só pode, talvez, ser explicado por uma mudança na composição dos

elementos genéticos. Conjeturar um gênero comum para o asno e o cavalo, a fim de não perder a

herança platônica, produziu tantas outras heranças na história da filosofia que não é de estranhar

o desconhecimento quase geral das contribuições de Antístenes na constituição da ciência do ser.

A insistência no exemplo de uma geração contra a natureza deve ser

esclarecida. De fato, se a união sexual de uma égua e um asno produz o mulo, deve haver algo

em comum entre as duas espécies. Os gregos que eram tão ligados às ciências da natureza, e que

procuravam explicar todos os fenômenos naturais, não podiam deixar de buscar uma explicação

para a origem do mulo. Esse não era um fenômeno que fosse ignorado pelos argutos

observadores que eram os gregos. Fosse qual fosse a explicação proposta, platônica, cínica ou

aristotélica, os filósofos estavam diante de um desafio para suas idéias sobre a ordem do mundo.

O que queremos lembrar é que essa idéia de uma possível comunidade genérica permitiu a

Antístenes, como narra uma anedota conservada por Diógenes Laércio, propor aos atenienses que

decidissem por voto que os asnos eram cavalos.336 Porém as conseqüências que se podem tirar da

situação narrada nos parece que vai muito além do caráter de anedota. A intenção retórica de

336
DL VI 8.
147

Antístenes tem uma estreita correlação moral: chamar a atenção para a irracionalidade do

processo de eleição dos estrategos, em que os eleitos eram tão diferentes do que seria aquilo que

se entende como um superior militar como é um asno de um cavalo. Note-se também que há uma

busca do uso correto dos nomes. Mas não só em Antístenes se acha o uso retórico do fenômeno.

No Fedro,337 em que se trata justamente da retórica, Sócrates recorre à semelhança genérica

enganadora entre asno e cavalo, para chamar atenção dos retores que usam a arte de persuadir

para exaltar o mal como se fosse o bem. Se ele encontra uma cidade em que seus habitantes estão

na situação daqueles que não distinguem asnos de cavalos, pode-se aquilatar o perigo que ele

representa.

É exatamente quando decide enfrentar a investigação dos animais que

Aristóteles vai encontrar os problemas mais sérios no seu procedimento de definição pela

diferença última. Esses problemas já são antevistos em Z 12. Para que haja definição é necessário

que se encontre entre tantas diferenças aquela última que determinará a essência de determinada

espécie e que esta forme com o gênero uma unidade. Sem essa unidade não há definição338.

Mesmo não vendo com bons olhos a diaíresis, é esse processo de divisão que será usado para

chegar a essa diferença última que determinará o que era para ser a essência. Diante da

multiplicidade devemos procurar a diferença última que dará unidade à definição. Diz

Aristóteles: “Ora, é preciso examinar, principalmente, as definições que se obtêm por via da

337
260 b-d.
338
Não vamos nos estender sobre a questão do uno e do múltiplo, pois esse é um problema que não se apresenta nos
escritos de Antístenes. Essa questão marcadamente acadêmica, como se pode detectar na discussão da predicação em
Sofista, não teria lugar na filosofia da linguagem de Antístenes, que, segundo Aristóteles, pensava que a predicação
não dizia respeito ao múltiplo, mas apenas ao uno, porque cada sujeito só teria um predicado único, no sentido mais
forte deste adjetivo, e(\n e)f’ e(no/j. (D 29 1024 b 33)
148

divisão”.339 Talvez tenha sentido a necessidade de esclarecer que assumir a divisão, não

significava que estava abrindo mão da sua concepção de definição, assim diz ele logo em

seguida: “E nas definições não está contido nada além do gênero primeiro e das diferenças”.340 O

exemplo de divisão dado é a divisão de animal, que pode ser bípede (e não bípede) – estamos

dando o exemplo da divisão e não a exemplificação que dá Aristóteles, já que esse não está

preocupado com o método da divisão em si, mas com seu método de definição por diferença. A

seguir observa que há diferenças nos pés, que podem ser divididos em pés com dedos separados e

não separados. Ora, o procedimento de divisão deverá ser detido em algum momento. Então, “se

existe uma diferença da diferença, só a diferença última será a forma”.341 Para encerrar a

exposição Aristóteles diz que “animal bípede” é o homem.

É conhecido que as coisas não se passaram assim, nem tal definição de homem

foi totalmente satisfatória, se é que há uma definição satisfatória de homem, nem o procedimento

por divisão foi colocado como mero assessório para chegar à definição da essência pela diferença

última. O procedimento por divisão pode ser visto presente ao longo dos escritos do Estagirita,

como se pode observar, à guisa de exemplo, nesta passagem da Política:

Eu disse que há muitas formas de governo e expliquei a que causas se deve essa
variedade. Por que há mais outras além das mencionadas, e quais são, e de que se
originam, não vou considerar agora, começando do princípio já admitido, que é ser cada
estado constituído não de uma, mas de muitas partes. Se estivéssemos falando das
diferentes espécies de animais, primeiro determinaríamos os órgãos que são
indispensáveis para cada animal (como, por exemplo, alguns órgãos dos sentidos e os
instrumentos para a recepção e a digestão dos alimentos, como a boca e o estômago,
além dos órgãos perceptivos e locomotores). Assumindo agora que não só há muitos
tipos de órgãos mas também pode haver diferenças neles (quero dizer, diferentes tipos de
bocas, de estômagos, e de órgãos perceptivos e locomotores) as combinações possíveis
dessas diferenças fornecerá necessariamente muitas variedades de animais (pois animais

339
Z 12 1037 b 27-9. deiÍ de\ e)piskopeiÍn prw½ton periì tw½n kata\ ta\j diaire/seij o(rismw½n.
340
Z 12 1037 b 29-30. ou)de\n ga\r eÀtero/n e)stin e)n t%½ o(rism%½ plh\n to\ prw½ton lego/menon ge/noj kaiì ai¸
diaforai¿:
341
Z 12 1038 a 25-6. e)a\n me\n dh\ diafora=j diafora\ gi¿gnhtai, mi¿a eÃstai h( teleutai¿a to\ eiådoj.
149

não podem ser os mesmos se têm diferentes tipos de bocas ou de orelhas). E quando
estiverem esgotadas todas as combinações, haverá tantos tipos de animais como há
combinações dos órgãos necessários. (O mesmo, então, é verdadeiro das formas de
governo que foram descritas; estados, como tenho dito repetidas vezes, são compostos,
não de um, mas de muitos elementos.)342

Apesar da má vontade de Aristóteles para com o procedimento por divisão

conforme aplicado por Platão, é evidente que o objetivo tanto dele como do seu mestre era o

mesmo: atingir com a definição a essência de algo, fosse o animal, fosse a cidade. Mas não teria

sido Platão o iniciador do interesse pela definição, Aristóteles diz que foi Sócrates que primeiro

fixou a atenção nas definições343; e não só, Sócrates, segundo ele, “buscava a essência das coisas

e com razão: de fato, ele tentava seguir o procedimento silogístico, e o princípio dos silogismos é,

justamente, a essência”.344

Estamos agora com um problema de genealogia, quando se trata do

problema do procedimento por divisão. É evidente que Aristóteles, através do seu uso da

diaíresis, procura se colocar na linha genealógica de Sócrates. Reale345, sempre tão

condescendente com Aristóteles, se surpreende com essa “peculiar interpretação” de ter sido o

342
IV 4 1290 b 21-39. oÀti me\n ouÅn politeiÍai plei¿ouj, kaiì di' hÁn ai¹ti¿an, eiãrhtai: dio/ti de\ plei¿ouj tw½n
ei¹rhme/nwn, kaiì ti¿nej kaiì dia\ ti¿, le/gwmen a)rxh\n labo/ntej th\n ei¹rhme/nhn pro/teron. o(mologou=men
ga\r ou)x eÁn me/roj a)lla\ plei¿w pa=san eÃxein po/lin. wÐsper ouÅn ei¹ z%¯ou provrou/meqa labeiÍn eiãdh,
prw½ton aÄn a)podiwri¿zomen aÀper a)nagkaiÍon pa=n eÃxein z%½on (oiâon eÃnia/ te tw½n ai¹sqhthri¿wn kaiì to\
th=j trofh=j e)rgastiko\n kaiì dektiko/n, oiâon sto/ma kaiì koili¿an, pro\j de\ tou/toij, oiâj kineiÍtai
mori¿oij eÀkaston au)tw½nŸ: ei¹ dh\ tosau=ta eiãh mo/non, tou/twn d' eiåen diaforai¿ (le/gw d' oiâon
sto/mato/j tina plei¿w ge/nh kaiì koili¿aj kaiì tw½n ai¹sqhthri¿wn, eÃti de\ kaiì tw½n kinhtikw½n mori¿wnŸ,
o( th=j suzeu/cewj th=j tou/twn a)riqmo\j e)c a)na/gkhj poih/sei plei¿w ge/nh z%¯wn (ou) ga\r oiâo/n te
tau)to\n z%½on eÃxein plei¿ouj sto/matoj diafora/j, o(moi¿wj de\ ou)d' wÓtwnŸ, wÐsq' oÀtan lhfqw½si tou/twn
pa/ntej oi¸ e)ndexo/menoi sunduasmoi¿, poih/sousin eiãdh z%¯ou, kaiì tosau=t' eiãdh tou= z%¯ou oÀsai per
ai¸ suzeu/ceij tw½n a)nagkai¿wn mori¿wn ei¹si¿n (to\n au)to\n dh\ tro/pon kaiì tw½n ei¹rhme/nwn politeiw½n.
kaiì ga\r ai¸ po/leij ou)k e)c e(no\j a)ll' e)k pollw½n su/gkeintai merw½n, wÐsper eiãrhtai polla/kij.
343
A 6 987 b 3.
344
M 4 1078 b 23-25. e)keiÍnoj (Swkra/thj) d' eu)lo/gwj e)zh/tei to\ ti¿ e)stin: sullogi¿zesqai ga\r e)zh/tei,
a)rxh\ de\ tw½n sullogismw½n to\ ti¿ e)stin:
345
2202, p. 46.
150

mestre de Platão o primeiro a se interessar pela definição, ainda mais quando ao tratar dos

pitagóricos Aristóteles diz que foram estes que primeiro começaram a falar de essência e

definição. Mas não é uma questão de prioridades que nos interessa. Na verdade essas relações

entre as diversas correntes de pensamento dos séculos V e IV, serão sempre, para nós, fluidas.

Talvez fosse interessante investigar não a genealogia do Sócrates platônico, mas a do Sócrates

sofista, quando o que estava em questão era a diaíresis. Para tal seguimos a lição de Kerferd.346 O

método de procedimento por divisão teria sido inventado por Damon, sofista do círculo de

Péricles e amigo de Sócrates. Isócrates disse de Damon que este foi o homem mais sábio de seu

tempo. Quem, no entanto, o utilizou de maneira conseqüente com suas intenções, foi, segundo

Platão, Pródico. Este estava interessado na busca do nome correto, especialmente associada a

Protágoras. Esse método consistia em pôr dois nomes um contra o outro a fim de abstrair deles o

sentido básico que partilhavam e descobrir as sutilezas de sentido em que diferiam. As palavras

não eram definidas como num dicionário, mas se perguntava em que aspecto uma palavra era

diferente da outra. Antístenes usou o método nessa aplicação, enquanto Sócrates, e depois Platão,

vão usar uma variante do método. Sócrates pergunta simplesmente: O que é isto, justiça? O que é

isto, coragem? Não está tentando descobrir outra diferença. Enquanto Pródico estava interessado

no sentido da palavra, assim como Antístenes, Sócrates estava interessado na coisa real. Pródico

queria investigar qual a palavra era apropriada e não outra, de sentido quase equivalente. Já

Sócrates investiga a coisa, e não é propriamente o nome que procura, mas uma fórmula

consistindo em uma série de palavras, um lógos, a saber, uma definição. Esse procedimento é

minuciosamente exposto através de todo o diálogo Sofista. Antes de atacar o objeto da

investigação o Estrangeiro de Eléia acha mais aconselhável buscar, primeiro, a definição do

346
2003 p. 129.
151

pescador de anzol, como um exercício.347 Começar pelas pequenas coisas para chegar às

grandiosas, como ele diz. Para começar a busca é necessário que antes se estabeleçam os nomes

(onómata) e os objetos (prágmata) da investigação; porém, enfatiza o Estrangeiro, não é

suficiente concordar com o nome, mas é fundamental se preocupar com a definição (lógos). O

objetivo final é desmascarar o sofista através de sua definição última: o sofista é aquele cuja

imitação se apóia na opinião. Esse é um procedimento que, antes dele, não mereceu a atenção que

devia, critica o Estrangeiro. Esse passo é muito importante! Não só por essa crítica velada (como

de costume com uma simples alusão sem dar nome aos bois) que Platão faz, mas principalmente

porque ele expõe, de maneira explícita, o que entende por diaíresis: é o método de divisão “dos

gêneros segundo a espécie”.348 Dessa forma, o sofista é do gênero dos imitadores que são da

espécie opinativa. Esse posicionamento será a base da concepção aristotélica, com a virada para a

diferença, que deveria ser buscada no substrato material, a fim de evitar compromisso com o que

ele aparentemente desprezava no platonismo, a saber, a existência separada da idéia (da

essência).

Já Antístenes dava ênfase à correspondência do nome e da coisa. A definição

seria um discurso longo para expressar as coisas compostas, como se vê na Passagem do Sonho

do Teeteto. Vale dizer que a relação que interessava a Antístenes era a que poderia dar um

fundamento objetivo à linguagem, também ele dentro da tradição sofista vinda de Pródico, mas

em outra vertente. A correspondência que importava não era a dos prágmata com o lógos, mas

dos prágmata com os onómata. Parece que, se houve uma herança do uso da diaíresis deixada

por Pródico, ela teria sido mal usada por ele, segundo Platão, pois a definição não seria seu

347
218 c.
348
267 d. tw=n genw=n kat’ ei)/dh diaire/sewj.
152

objetivo, mas já nele a sua preocupação talvez fosse de natureza especificamente lingüística. Sua

preocupação, dentro da tradição sofística, era entender como assegurar a relação de

correspondência entre nome e objeto. Se houvesse uma efetiva subsistência dos prágmata, ela

garantiria a relação objetiva dos nomes e das coisas. Não era a essência que Antístenes buscava

para fundamentar sua postura ética, mas exatamente queria buscar uma linguagem tão rigorosa na

sua correspondência com o objeto concreto que levaria à busca de um uso preciso para os nomes

que designavam as virtudes. Isso talvez seja o que muitos tratam como o “materialismo” e o

“nominalismo” antistênicos. No entanto, isso se reduzia, no fundo, a uma ênfase forte sobre a

identificação de nome-coisa, por natureza, como se lê no Crátilo349. Mas isso não é apenas uma

estratégia particular de Antístenes, a curiosidade sobre a relação da fala com as coisas era uma

característica da mentalidade grega (não podemos deixar de nos referir à fidelidade canina da

língua grega aos radicais das palavras; talvez fosse impensável para um grego haver uma palavra

como a portuguesa “caldo”, cujo radical significa quente, poder ser usada também para indicar

um caldo frio). Pode ser nele também um traço de sua ascendência eleática. Era tão forte a

preocupação com tal correspondência que muitos exemplos podem ser encontrados nos próprios

diálogos platônicos. A busca do nome rigoroso só seria possível se a própria coisa tivesse uma

positiva subsistência, sem ter qualquer possibilidade de ser explicada por essências exteriores a

ela. Daí a postura frontalmente oposta ao platonismo (e mais tarde, espinho no caminho

aristotélico) com a negação da possibilidade de definir a essência.

Nas suas obras biológicas, Aristóteles teve de enfrentar a positiva subsistência

da especificidade dos seres vivos. As diferenças são tamanhas que seria uma exigência para a

349
383 a.
153

correção da observação aplicar o método da divisão. Nos Segundos Analíticos350 considera o

procedimento capaz de produzir conhecimento, sendo parte importante da caça (imagem, como

vimos, que dá a partida para a definição do sofista), pois ela permite observar semelhanças e

diferenças (como faz o Estrangeiro em Sofista), para se conseguir os predicados para a construção

da definição.

350
II 13 96 a 22.
2.1.2 Que é que é a metafísica

Aubenque com grande clareza nos oferece a pintura do quadro metafísico do

debate entre Antístenes, Aristóteles e Platão, que ocupa praticamente toda a primeira metade do

seu tratado sobre o problema do ser em Aristóteles:

Talvez não seja exagerado dizer que a especulação de Aristóteles teve por objeto
principal responder aos sofistas... Vendo a insistência com que Aristóteles retoma
argumentos que aparentemente já tinham sido refutados e a paixão que põe no combate a
filósofos que professa desprezar, pressente-se a importância real, ainda que
inconfessada, da corrente de pensamento sofístico na constituição de sua filosofia.
Totalmente outras são suas relações com o platonismo: a polêmica antiplatônica é mais
nitidamente circunscrita e é conduzida com uma segurança e um contentamento de si
que fazem pensar que Aristóteles estava bem perto de considerar sua crítica como
definitiva. Ao contrário, as aporias levantadas pelos sofistas renascem apenas resolvidas,
se impõem como uma obsessão e suscitam essa ‘admiração’ sempre renovada que
permanece, para Aristóteles como para Platão, como o ponto de partida da ciência e da
filosofia.351

Isso configuraria, para nós, a perspectiva histórica para se contemplar o

pensamento de Antístenes. É evidente que, se essa perspectiva produz uma clareza de foco na

abordagem de Antístenes, isso não quer dizer que só possamos vê-lo por essa ótica. Pelo

contrário, uma vez que se reconhecesse sua importância na história do pensamento metafísico

ocidental, poderíamos passar para as especulações éticas e pedagógicas; e não ao contrário, como

vem sendo feito regularmente.

351
1983, p. 94.
155

Parece-nos que Aristóteles quis dar a ele uma relevância especial352; colocou-o

como seu interlocutor até certo ponto respeitável quando trata da definição da essência.

Aristóteles considera que os antistênicos têm alguma oportunidade (ékhei tinà kairón)353 na sua

tese de que a essência se reduz à soma dos elementos materiais. Essa passagem é considerada por

alguns comentadores, entre eles um dos editores da Metafísica, Schwegler, como tendo sentido

irônico.354 No entanto, não parece ser essa a intenção de Aristóteles. A discussão é levada adiante

por Aristóteles dentro da maior seriedade doutrinal. É um momento do diálogo dos filósofos.

Aubenque vê a “história da filosofia” de Aristóteles como um diálogo dos

filósofos entre si.355 A concepção de história em Aristóteles, segundo Aubenque, se baseia não na

verdade absoluta que tal filósofo consegue apreender, mas sim na oportunidade (kairós) da

realização de uma possibilidade. A multiplicidade dos sistemas filosóficos não se orientaria numa

sucessão, mas como uma pluralidade de admirações solitárias e singulares justapostas. O que

importa, então, numa história da filosofia não são as respostas aos diversos problemas que se

impõem, mas por que certos problemas permanecem. Os princípios são eternos ou corruptíveis?

Como do não-ser pode proceder o ser? E a pergunta central da investigação: “Afinal, aquilo que

não só há muito tempo como também agora e sempre se investiga e constitui impasse – que é o

ente –, é isto: qual é a essência”.356 Se a filosofia é uma atividade que se limita a investigar e

resolver problemas (admirações) e aos filósofos não resta outra coisa senão a solidariedade na

352
Já nos referimos anteriormente à eclosão aparentemente tardia da problemática sofística em Aristóteles. Não
importa a posição de Aubenque em relação à tese de Maier, é ao Antístenes sofista que ele se dirige, pois não diz ele,
ao introduzir Antístenes no debate, ser este “provavelmente discípulo de Górgias”? (1983, p. 100)
353
H 3 1043 25.
354
Apud Reale (2002), p. 437.
355
V. Introdução.
356
Z 1 1028 b 2-4. kai\ dh\ kai\ to\ pa/lai te kai\ nu=n kai\ a)ei\ zhtou/menon kai\ a)ei\ a)poroou/menon, ti/ to\
o)/n, tou=to e)sti ti/j h( ou)si/a.
156

pesquisa, a história da filosofia não seria uma soma de conhecimentos e muito menos o processo

de surgimento da verdade. A história da filosofia se realiza no diálogo. Como diz Aristóteles:

Por uma parte, devemos buscar a resposta por nós mesmos, por outra, interrogar os
pesquisadores e, se alguma diferença se manifesta entre as opiniões dos homens
competentes e as nossas, levaremos em consideração umas e outras, mas seguiremos
apenas as mais exatas.357

Não há uma hierarquia entre as doutrinas, como se houvesse uma vantagem

da mais recente doutrina, que seria a mais verdadeira, sobre as precedentes. Há um grupo,

Aristóteles evoca a idéia de synédrion (assembléia), que, num momento oportuno decide

por essa ou aquela doutrina. A direção que deve ser seguida para perseguir a verdade se

destaca nesse confronto. A concordância de um grande número de filósofos já é sinal de

verdade. Nada indica em que sentido, sugerido pela seqüência temporal da história, deve

operar-se a síntese dos conhecimentos; não há síntese, o filósofo deve escolher, por um ato

intemporal, entre soluções que são equivalentes. A introdução propriamente histórica do

livro A toma, assim, o aspecto de uma descrição (e de fato Aristóteles não tem preocupação

cronológica) de um paradigma atemporal. Isso não quer dizer que esse diálogo é um diálogo

de surdos; no caso de Aristóteles, como bom socrático, é da própria dialética que se trata.

Se há progresso, não é um progresso linear, que procede por acumulação, mas um progresso

propriamente “dialético”, que se aproxima da verdade através da discussão. O tempo do

diálogo não é homogêneo, tem um ritmo secreto, em que se alternam momentos de

estabilidade e momentos de crise. O dialético deve perceber a oportunidade em que sua

357
L 8 1073 b 13-17. to\ de\ loipo\n ta\ me\n zhtou=ntaj au)tou\j deiÍ ta\ de\ punqanome/nouj para\ tw½n
zhtou/ntwn, aÃn ti fai¿nhtai para\ ta\ nu=n ei¹rhme/na toiÍj tau=ta pragmateuome/noij, fileiÍn me\n
a)mfote/rouj, pei¿qesqai de\ toiÍj a)kribeste/roij.
157

intervenção será decisiva. O impulso decisivo é imprevisível. Aristóteles parece, segundo

Aubenque, duvidar que a filosofia possa se aproximar de uma verdade absoluta e imutável,

a história seria o horizonte indefinido da investigação e do trabalho humanos. A história da

filosofia nada mais seria que o desdobramento das hesitações e contradições pelas quais o

filósofo deve passar diante da mesma questão que se repete. Haveria, então, em Aristóteles,

uma evolução na concepção de história, da segurança confiante do livro A, onde se tem uma

concepção finalista e otimista da filosofia, à aceitação de que uma filosofia acabada não é

possível, mas que essa não poderia passar além da investigação.

Aristóteles, porém, não era um cético358, como pode transparecer essa

famosa interpretação aporética da metafísica defendida magistralmente por Aubenque. Por

mais sedutora que seja a interpretação de que Aristóteles teria permanecido na investigação

e de que a metafísica seria a expressão da impossibilidade de se chegar a uma resposta à

pergunta de Z, há em Aristóteles, do nosso ponto de vista, um esforço de salvaguarda da

racionalidade através da invenção da lógica e da distinção precisa do que é filosofia e o que

não é. Como podemos ler:

.
Eis uma prova do que dissemos: os dialéticos e os sofistas exteriormente têm o mesmo
aspecto do filósofo (a sofística é uma sapiência apenas aparente, e os dialéticos discutem
sobre tudo, e o ser é comum a tudo), e discutem essas noções, evidentemente, porque
elas são o objeto próprio da filosofia. A dialética e a sofística se dirigem ao mesmo
gênero de objetos aos quais se dirige a filosofia; mas a filosofia difere da primeira pelo
modo de especular e da segunda pela finalidade da especulação. A dialética move-se às
cegas nas coisas que a filosofia conhece verdadeiramente; a sofística é conhecimento
aparente, mas não real.359

358
Sexto Empírico, nas Hipotiposes Pirrônicas, I, 1, afirma mesmo que Aristóteles era dogmático.
359
Γ 2 1004 b 17-26. oi¸ ga\r dialektikoiì kaiì sofistaiì to\ au)to\ me\n u(podu/ontai sxh=ma t%½
filoso/f%: h( ga\r sofistikh\ fainome/nh mo/non sofi¿a e)sti¿, kaiì oi¸ dialektikoiì diale/gontai periì
a(pa/ntwn, koino\n de\ pa=si to\ oÃn e)stin, diale/gontai de\ periì tou/twn dh=lon oÀti dia\ to\ th=j
filosofi¿aj tau=ta eiånai oi¹keiÍa. periì me\n ga\r to\ au)to\ ge/noj stre/fetai h( sofistikh\ kaiì h(
158

Como então situar Antístenes na história da metafísica?

Aristóteles, ao confrontar ser e linguagem, necessitou de armar-se como defesa

contra as inúmeras armadilhas desta, bem conhecidas dos sofistas, de um verdadeiro arsenal de

prescrições e precauções, a fim de que o ser não se desencaminhasse nos meandros da

significação. Para isso estabeleceu firmemente as condições para a predicação, isto é, para o

discurso categorial; as condições para a definição, para que a essência, contra Platão, não se

perdesse num enxame de essências360. Antístenes teria apontado para as fraquezas e inanidade

dessas artimanhas. Para este, o ser resiste a qualquer armadilha da linguagem, pois o ser só será

dito se de fato ele estiver manifesto na realidade material. Assim ele se coloca ontologicamente

na posição diametralmente oposta à de Platão, que, por seu lado, procurou não relacionar ser e

linguagem, mas elaborou uma ontologia da comunidade das formas como solução para o

problema da predicação. Se o ser, para Antístenes, é só o que posso tocar e é uno, não há

possibilidade de predicação, pois não posso unir a unidade com a multiplicidade. Dessa forma as

essências são os próprios elementos materiais, não sendo possível definir, como concorda

Aristóteles, pois, “dos elementos primeiros dos quais [a essência] é composta não é possível

definição”361.

A metafísica de Antístenes seria, portanto, uma metafísica do concreto que está

indissoluvelmente ligado ao nomear e ao enunciar. São muitos os comentadores, no entanto,

como pode ser visto em alguns pontos deste trabalho, que entendem a compreensão da

dialektikh\ tv= filosofi¿#, a)lla\ diafe/rei th=j me\n t%½ tro/p% th=j duna/mewj, th=j de\ tou= bi¿ou tv=
proaire/sei: eÃsti de\ h( dialektikh\ peirastikh\ periì wÒn h( filosofi¿a gnwristikh/, h( de\ sofistikh\
fainome/nh, ouÅsa d' ouÃ.
360
(smh=noj ou(siw=n), expressão cunhada pelo Pseudo-Alexandre (524, 31) para criticar a teoria da participação
platônica. Apud Aubenque (1983), p. 149.
361
H 3 1043 b 30-1. e)c w)=n [stoixei/wn] d’ au(/th prw/twn, ou)ke/ti [o(r
/ oj].
159

concretude de Antístenes, como marca de uma filosofia materialista, sem lugar para um

pensamento metafísico. Seria isso talvez que pensasse Platão, quando, em Sofista, se refere, com

o habitual sarcasmo, ao materialismo crasso de alguns pensadores:

Alguns procuram trazer à terra tudo o que há no céu e no invisível, tomando, num
simples aperto de mão, a rochas e carvalhos. E, na verdade, é em virtude de tudo o que,
dessa forma, podem alcançar que afirmam obstinadamente que só existe o que oferece
resistência e o que se pode tocar. Definem o corpo e a essência como idênticos e logo
que outros pretendam atribuir ser a algo que não tenha corpo mostram por estes um
soberbo desprezo nada mais querendo ouvir.362

Já que filósofos, dialéticos e sofistas, todos cuidam do ser, para Aristóteles a

filosofia teria como objetivo conhecer o ser na sua realidade última. Aristóteles estava

convencido de que há um conhecimento do ser real e verdadeiro, de uma ciência do ser: “existe

algo próprio do ser enquanto ser e é sobre isso que o filósofo deve buscar a verdade”.363 O ser

não seria só a aparência e um simples objeto de opinião, como julgava que era a posição sofista,

nem um mundo de realidades separadas364, como pensava Platão. A condição de possibilidade de

tal ciência estaria firmada em três exigências, a saber:

362
246 a. Oi¸ me\n ei¹j gh=n e)c ou)ranou= kaiì tou= a)ora/tou pa/nta eÀlkousi, taiÍj xersiìn a)texnw½j
pe/traj kaiì dru=j perilamba/nontej. tw½n ga\r toiou/twn e)fapto/menoi pa/ntwn diisxuri¿zontai tou=to
eiånai mo/non oÁ pare/xei prosbolh\n kaiì e)pafh/n tina, tau)to\n sw½ma kaiì ou)si¿an o(rizo/menoi, tw½n de\
aÃllwn eiã ti¿j <ti> fh/sei mh\ sw½ma eÃxon eiånai, katafronou=ntej to\ para/pan kaiì ou)de\n e)qe/lontej
aÃllo a)kou/ein.
363
G 2 1004 b 15-7. ou(/tw kai\ t%= o)/nti $(= o)/n e)/sti tina\ i)/dia, kai\ tau=t’ e)sti\ peri\ w)=n tou= filoso/fou
e)piske/fasqai to\ a)lhqe/j.
364
Segundo Aubenque (1983, p. 36, n 2), separação (xwrismo/j) tem dois sentidos em Aristóteles: o que é separado
da matéria e o que subsiste por si e não necessita de outra coisa para existir. Em Platão os dois sentidos coincidem, a
idéia é separada da matéria e a única realidade subsistente. Esse o ponto cardeal da discordância de Aristóteles, que
na divisão das ciências teoréticas, recorre ao critério de separação: os seres subsistentes, mas não separados da
matéria são objetos da física; os seres separados da matéria, mas não subsistentes são objetos da matemática; apenas
o objeto da teologia é separado da matéria e subsistente. Em termos de teologia o discípulo se manteve fiel ao
mestre. Tal noção constitui o fulcro da polêmica metafísica: a existência ou não de realidades separadas. Antístenes
não pode ser acompanhado nessa questão por ausência de fragmento sobre a noção. Poderíamos entender que sua
160

O enunciado (lógos) significativo;

A definição;

A contradição.

O que nos permitiria dizer que equivaleria tal ciência, dadas as exigências

apontadas, a uma teoria da linguagem, já que é na linguagem que se realizam a significação,

a definição e a contradição. Para levar adiante seu projeto de uma ciência do ser, Aristóteles

teve de se debater, entre outras, com duas figuras assombrosas, Platão, com sua concepção

idealista da realidade, e Antístenes, com sua concepção naturalista da linguagem. O

primeiro se opondo ferozmente ao segundo, e vice-versa, e Aristóteles aos dois, ostentando

a atitude científica que vai ser a adotada pelos homens de ciência até hoje, de inabalável

auto-suficiência.

A intervenção de Antístenes se dá por sua concepção da linguagem: ele se

coloca na posição que defende a impossibilidade da significação (não é possível dizer o

falso), da definição e da contradição. Os comentadores consideram que é uma alusão a

Antístenes a posição de Crátilo quanto ao estatuto da relação entre o nome e as coisas,

apresentada no diálogo platônico do mesmo nome. No diálogo, Crátilo sustenta a tese de

que “cada coisa tem por natureza um nome apropriado”. 365 Contra sua tese se coloca

Hermógenes, que sustenta que “a justeza dos nomes [não] se baseia em outra coisa que não

posição contrária à existência de qualidades, como já vimos, é uma prova de que não teria aceitado essa expressão
que é característica do platonismo.
365
383 a. o)no/matoj o)rqo/thta eiånai e(ka/st% tw½n oÃntwn fu/sei pefukuiÍan.
161

seja convenção e acordo... nenhum nome é dado por natureza a qualquer coisa, mas pela lei

e o costume”.366

A posição de Antístenes seria então que há uma relação inseparável por

natureza entre nome e coisa. De tal forma, cada coisa tem seu próprio nome, que não poderíamos

usar para nomear outra coisa, que é o que ocorre quando se predica ou define; por exemplo, este

homem é músico, ou seja, os nomes “homem” e “música” são atribuídos à mesma e não a cada

coisa. Isso impediria qualquer possibilidade de se definir uma essência eterna, como quer Platão

e, como vamos ver adiante, também Aristóteles. Vamos fazer a exposição da posição de

Antístenes seguindo Decleva Caizzi367, que parte de um fragmento célebre de Antístenes, tirado

da Metafísica, que consideramos, na doxografia de Antístenes, aquele que revela a sua

importância na história da filosofia, pela relevância que Aristóteles dá a sua posição a respeito da

definição no momento da elaboração do projeto da ciência do ser. Antes de passar à citação do

texto queremos fazer um comentário que considero muito relevante, que são os parênteses

colocados por Aristóteles (onde retoma a discussão com o platonismo, mas em termos de

concordância, dizendo que, de fato, a essência deve ser eterna) em meio a sua argumentação com

Antístenes. Decleva Caizzi entende que tais parênteses são uma retomada remissiva ao livro

precedente (Z) que interrompe o desenrolar da argumentação. Discordamos da autora; ao

contrário, a retomada de Aristóteles da investigação sobre a essência do livro Z, é decisiva para a

história da ciência do ser, pois para Aristóteles a decisão vai para uma essência que é eterna,

produzindo com isso a necessidade de uma série de salvaguardas para que a linguagem possa

expressar tal essência. As Categorias constituem justamente uma tentativa de suprir a

366
384 d. w¨j aÃllh tij o)rqo/thj o)no/matoj hÄ sunqh/kh kaiì o(mologi¿a... ou) ga\r fu/sei e(ka/st%
pefuke/nai oÃnoma ou)de\n ou)deni¿, a)lla\ no/m% kaiì eÃqei.
367
1964, p. 50-5.
162

necessidade que se apresenta para a linguagem de estabelecer todas as distinções possíveis ao

nomear as coisas para poder tratar de uma multiplicidade que envolve tal essência una e eterna.

Para Antístenes, não há propriamente tal essência, e os nomes se unem naturalmente às próprias

coisas. Sendo assim, tais parênteses apontam, do nosso de vista, para o fato de que Aristóteles

estava certo de que seu projeto teria de se ver a braços com a teoria das idéias e a filosofia da

linguagem de Antístenes. Passemos à citação da famosa passagem de Aristóteles:

Um exame cuidadoso revela que a sílaba não resulta só das letras e da composição, nem
a casa é só tijolos e a composição. E dizemos isso corretamente: de fato, nem a
composição nem a mistura são aquilo de que se constituem a composição e a mistura. O
mesmo vale para todas as outras coisas. Por exemplo, se a soleira é o que é pela posição,
a posição não decorre da soleira, antes, esta decorre daquela. E tampouco o homem é
simplesmente o animal e o bípede, mas, dado que estes são matéria, deve haver algo
além deles, algo que não é elemento nem deriva de elemento, mas [a essência] que,
sendo dispensada a matéria, eles acolhem. E se isso, então, for sua causa, a saber,
essências, acolheriam isso como a própria essência. 368
(É necessário que essa essência seja eterna, ou que seja corruptível, mas isenta de
processo de corrupção, e que possa ser gerada sem processo de geração...)
De tal modo369 a dificuldade levantada pelos antistênicos e outros apedeutas tem certa
pertinência. Eles sustentam que não é possível definir a essência, por ser a definição
constituída por uma longa série de palavras, mas só é possível ensinar a qualidade da
coisa; assim, por exemplo, não é possível definir o que é a prata, mas pode-se dizer que é
semelhante ao chumbo. De modo que existe uma essência da qual é possível uma
definição e uma enunciação, e essa essência é composta (seja ele sensível ou inteligível);
mas, dos elementos primeiros dos quais é composta não é possível uma definição, dado
que a noção definidora implica sempre a referência a outra coisa (da qual o primeiro
termo deve servir de matéria e o segundo de forma)370

368
O problema da interpretação das frases a)ll' [h( ou)si¿a]: oÁ e)cairou=ntej th\n uÀlhn le/gousin e th\n
ou)si¿an [ou]) le/goien será examinado no capítulo seguinte.
369
V. p. 177.
370
H 3 1043 b 4 ss. AF 44 A. – ou) fai¿netai dh\ zhtou=sin h( sullabh\ e)k tw½n stoixei¿wn ouÅsa kaiì
sunqe/sewj, ou)d' h( oi¹ki¿a pli¿nqoi te kaiì su/nqesij. kaiì tou=to o)rqw½j: ou) ga/r e)stin h( su/nqesij ou)d'
h( miÍcij e)k tou/twn wÒn e)stiì su/nqesij hÄ miÍcij. o(moi¿wj de\ ou)de\ tw½n aÃllwn ou)qe/n, oiâon ei¹ o( ou)do\j
qe/sei, ou)k e)k tou= ou)dou= h( qe/sij a)lla\ ma=llon ouÂtoj e)c e)kei¿nhj. ou)de\ dh\ o( aÃnqrwpo/j e)sti to\
z%½on kaiì di¿poun, a)lla/ ti deiÍ eiånai oÁ para\ tau=ta/ e)stin, ei¹ tau=q' uÀlh, ouÃte de\ stoixeiÍon ouÃt' e)k
stoixei¿ou, a)ll' [h( ou)si¿a]: oÁ e)cairou=ntej th\n uÀlhn le/gousin. ei¹ ouÅn tou=t' aiãtion tou= eiånai kaiì
ou)si¿aj, tou=to au)th\n aÄn th\n ou)si¿an le/goien. (a)na/gkh dh\ tau/thn hÄ a)i¿+dion eiånai hÄ fqarth\n aÃneu
tou= fqei¿resqai kaiì gegone/nai aÃneu tou= gi¿gnesqai... ) wÐste h( a)pori¿a hÁn oi¸ ¹Antisqe/neioi kaiì oi¸
ouÀtwj a)pai¿deutoi h)po/roun eÃxei tina\ kairo/n, oÀti ou)k eÃsti to\ ti¿ eÃstin o(ri¿sasqai (to\n ga\r oÀron
lo/gon eiånai makro/nŸ, a)lla\ poiÍon me/n ti¿ e)stin e)nde/xetai kaiì dida/cai, wÐsper aÃrguron, ti¿ me/n
e)stin ouÃ, oÀti d' oiâon katti¿teroj: wÐst' ou)si¿aj eÃsti me\n hÂj e)nde/xetai eiånai oÀron kaiì lo/gon, oiâon
163

Os autores371 divergem na atribuição doxográfica da totalidade desse texto.

Alguns (Zeller, Barlen) consideram que apenas as linhas 24-5 (“De tal modo a dificuldade

levantada pelos antistênicos e outros apedeutas tem certa pertinência. Eles sustentam que não é

possível definir a essência.”) expressam a tese antistênica: não é possível definir a essência (tó tì

éstin). Outros (Gillespie, Festugière) interrompem o texto na palavra “chumbo” (kattíteros). E há

aqueles (Fritz, Oehler) que mesmo admitindo que a terminologia seja aristotélica, aceitam o texto

todo.

Deve-se chamar a atenção do leitor que Aristóteles já está no primeiro

parágrafo se referindo, sem citar ainda, aos antistênicos. Diz Decleva Caizzi: esses

seguidores de Antístenes, “para definir a substância [essência], operavam uma espécie de

decomposição do que lhes parecia estar nela contida, reduzindo a um conjunto de elementos

equivalentes, e como tais, observa Aristóteles, reduzidos ao papel indiferenciado de

matéria”. 372 Portanto, quando, nesse parágrafo, Aristóteles se refere à composição, está se

referindo à composição de elementos materiais e não à composição de matéria e forma,

como Aristóteles vai confirmar ao cabo do texto.

Reale373 comenta a passagem da seguinte maneira: os seguidores de

Antístenes pensam que:

th=j sunqe/tou, e)a/n te ai¹sqhth\ e)a/n te nohth\ vÅ: e)c wÒn d' auÀth prw¯twn, ou)ke/ti, eiãper tiì kata\ tino\j
shmai¿nei o( lo/goj o( o(ristiko\j kaiì deiÍ to\ me\n wÐsper uÀlhn eiånai to\ de\ w¨j morfh/n.
371
Apud Decleva Caizzi (1964, 51, n. 4)
372
1964, p. 51.
373
2002, Tomo III, p.438.
164

a) os elementos, por sua simplicidade, não podem ser definidos, só podem

ser nomeados, a definição seria uma longa série de nomes de elementos;

b) se não se pode dizer o que uma coisa é, pode-se dizer como a coisa é;

c) ou então, enunciar esses elementos que constituem a composição.

O que se joga na controvérsia é, portanto, que tipo de composição está-se

tratando. Se se tratar de uma definição de uma composição de elementos, no sentido dado pelos

antístênicos, de fato nós teremos um discurso longo, ou como traduz Reale, “uma longa série de

palavras”.374 Assim, para os seguidores de Antístenes, como as coisas são compostas de

elementos, definir Sócrates, por exemplo, seria produzir um discurso longo: Sócrates é animal,

bípede, homem, ateniense, sábio, filósofo, músico, gramático, soldado, casado, feliz...375

Existe todavia para Aristóteles um enunciado que, para aqueles que se

propõem a fazer uma decomposição, pode ser considerado uma definição (hóros kaì lógos)

– se se decompõe em matéria e forma. E a forma é a essência e a causa do ser. Porém,

Aristóteles reconhece que os antistênicos têm certa oportunidade (ékhei tiná kairón) ao

acreditarem que a definição dos elementos é impossível. O importante, para nós, é que se

entenda que os antistênicos estabelecem rigorosamente a necessidade de um aspecto

diferencial entre o nome e o enunciado, e que o enunciado não diz a essência, como

veremos adiante quando tratarmos da Passagem do Sonho do Teeteto, que se costuma

aproximar desta de Aristóteles que agora examinamos.

374
H 3 1043 b 25-6. to\n ga\r o(/ron lo/gon ei)=nai makro/n. Ou então: “a definição é pois um discurso longo”.
375
Em G 4 1007 a 29-31, Aristóteles diz que os sofistas “devem sustentar, necessariamente, que não é possível
definir a essência de qualquer coisa e que tudo existe como acidente” – w(/st’ a)nagkai=on au)toi=j le/gein o(/ti
ou)qeno\j e)/stai toiou=toj lo/goj, a)lla\ pa/nta kata\ sumbebhko/j.
165

Mas a posição de Antístenes é antiessencialista. Não estamos certos se tó tì

éstin pode ser entendido, em Antístenes, como essência. A coisa fica mais complicada no que diz

respeito à posição de Antístenes quanto à enunciação, à definição e à essência, pelo fato histórico

de que ele, conforme o testemunho de Diógenes Laércio, ser considerado o primeiro a dar uma

definição de logos. E, como veremos em seguida, sua definição de logos tem uma incômoda

semelhança com a expressão aristotélica tò tí ē½n eînai (que se entende das mais diversas

maneiras: qüididade, o que há de ser, o que havia de ser, o que era para ser, e quase sempre

essência). No que vem a ser o único testemunho de Diógenes Laércio da filosofia da linguagem

de Antístenes376, diz ele que este “foi o primeiro a dar uma definição de discurso, dizendo:

discurso é aquilo que mostra o que uma coisa era ou é.377 Cremos que podemos apontar nessa

definição aquilo que constitui um dos grandes embaraços para os comentadores da filosofia

clássica, a presença do imperfeito ē½n, que aparece também na fórmula antistênica. Alexandre de

Afrodísia, ao comentar a fórmula aristotélica tò tí ē½n eînai, diz que “não é suficiente tó ē½n, como

alguns pensam, entre os quais o primeiro parece ter sido Antístenes, e depois alguns dos

estóicos”378 para produzir uma definição genérica (como concebe o próprio Aristóteles com sua

fórmula). O imperfeito levaria a se entender que o discurso ao dizer o que era uma coisa num

passado que se estende até o presente, como expressa o aspecto verbal “imperfeito”, estaria

apontando para aquelas propriedades que permanecem no tempo e não propriedades apenas

acidentais. O que era no passado e continua sendo, é algo que pode vir a definir uma coisa, dizer

376
Para Aubenque (1983, p. 466), a importância desse texto de Laércio, no que diz respeito à fórmula aristotélica,
tem escapado aos comentadores.
377
DL VI 3. AF 45. Prw=toj te w)ri/sato lo/gon ei)pw/n: lo/goj e)sti\n o( to\ ti/ h)=n h)\ e)sti dhlw=n.
378
Alex. Afrod. in Top, 101 b 39. AF 46. ou)k aÃra auÃtarkej to\ hÅn, wÐj tinej h(gou=ntai, wÒn dokeiÍ prw½toj
me\n ¹Antisqe/nhj eiånai, eiåta de\ kaiì tw½n a)po\ th=j Stoa=j tinej. Apud Decleva Caizzi, 1964, p. 52.
166

a que gênero a coisa pertence. Parece que Antístenes, segundo Alexandre, pensaria mais numa

definição técnica: o lógos diz o que a coisa é ou (ē) era. Aubenque379 interpreta esse ē como a

alternativa latina vel, ou seja uma equivalência e/ou e não uma disjunção (aut). Se a definição de

discurso de Antístenes for técnica, é de se supor que a noção de definição como uma série de

palavras (makrós lógos – um enunciado longo) seria admitida por Antístenes, por não ser

genérica, ou seja, não diz a essência..

Hizel observou que:

os elementos que compõem as coisas são em certo sentido anteriores aos compostos que
deles resultam, a intervenção de um elemento temporal, além de indicar a prioridade dos
elementos, mostra também a nós, hoje, o limite implícito numa enunciação que não pode
se destacar da coisa como fenômeno, diante da esfera extratemporal, por exemplo, o
gênero platônico. 380

Se lembrarmos, como já foi exposto, que a relação entre nome e coisa, para

Antístenes, é estreitíssima, sua concepção da linguagem seria como se ela fosse um espelho

fiel das coisas, se articulando em dois planos:

a) o dos nomes, que indicariam cada um uma única realidade;

b) o do lógos (discurso ou enunciação) que se baseia na decomposição dos

elementos ou na analogia (“como o chumbo” – oîon kattíteros).

Se o nome reflete, em última análise, a essência de cada coisa, a

predicação é impossível. Retomemos a narrativa do confronto entre Antístenes e Platão,

feita por Simplício:

379
1983, p. 465-6.
380
Apud Decleva Caizzi, 1964, p. 53.
167

– Ó Platão, vejo o cavalo, mas não vejo a cavalidade!E este de volta: – Porque tens o
olho com que se vê o cavalo, mas aquele com que se contempla a cavalidade não
te concedeste.381

Como bom discípulo, Diógenes de Sinope também contestou a teoria

platônica das idéias, tendo recebido a mesma resposta que Platão teria dado ao mestre,

conforme se lê em Diógenes Laércio:

Quando Platão discursava sobre suas “idéias”, usando palavras como “mesidade” e
“tacidade”, interrompeu: “Eu, ó Platão, vejo a mesa e a taça, mas não vejo
mesidade nem tacidade” A que Platão respondeu: “Isso é bastante natural, pois
tens olhos com que uma taça e uma mesa são contemplados, mas não tens o
intelecto, pelo qual são vistas a mesidade e tacidade.382

Não se pode afirmar se as anedotas são ilustrações da crítica de Antístenes

à doutrina platônica das idéias ou se, ao contrário, a resposta de Platão seria semelhante a

que foi dada no Parmênides, a saber, que a cavalidade (a qualidade) “surge na alma”.383 A

posição de Platão é clara: o objeto da definição não é o particular, mas o universal (se é que

se pode falar em universal em Platão384), e seu objetivo é situar a coisa num gênero.

381
Simpl. in cat. 8 b 25. AF 50 A. wÕ Pla/twn, eÃfh, iàppon me\n o(rw½, i¸ppo/thta de\ ou)x o(rw½" kaiì oÁj eiåpen:
"oÀti eÃxeij me\n %Ò iàppoj o(ra=tai to/de to\ oÃmma, %Ò de\ i¸ppo/thj qewreiÍtai, ou)de/pw ke/kthsai".
382
DL VI 53. Pla/twnoj periì i¹dew½n dialegome/nou kaiì o)noma/zontoj trapezo/thta kaiì kuaqo/thta,
"e)gw¯," eiåpen, "wÕ Pla/twn, tra/pezan me\n kaiì ku/aqon o(rw½: trapezo/thta de\ kaiì kuaqo/thta
ou)damw½j:" kaiì oÀj, "kata\ lo/gon," eÃfh: "oiâj me\n ga\r ku/aqoj kaiì tra/peza qewreiÍtai o)fqalmou\j
eÃxeij: %Ò de\ trapezo/thj kaiì kuaqo/thj ble/petai nou=n ou)k eÃxeij."
383
132 b. e)ggi¿gnesqai aÃlloqi hÄ e)n yuxaiÍj:
384
Quando se quer interpretar a natureza das idéias platônicas, vemo-nos diante do seguinte problema: são as idéias
platônicas universais ou paradigmas? É um desafio a que tentaram responder diversos autores, entre eles, John
Malcolm (1991). Este tenta dar um diagnóstico do fracasso em se fazer tal distinção através da natureza da relação
modelo (paradigma) e cópia. Até que ponto os traços da cópia acompanham os traços do modelo? Malcolm recorre
na sua argumentação à imagem de um metro-padrão, isto é, pergunta qual a relação que há entre a extensão do
metro-padrão e a do objeto por ele medido. Se as idéias forem entendidas como paradigmas, elas seriam particulares
ideais. É como supõe Aristóteles, em Z 15 1040 a 8-9. Diz Aristóteles: sendo um particular não pode admitir
definição (Ou)de\ dh\ i¹de/an ou)demi¿an eÃstin o(ri¿sasqai. tw½n ga\r kaq' eÀkaston h( i¹de/a, w¨j fasi¿, kaiì
xwristh/:). Se forem entendidas como universais, seriam qualidades gerais, cujo estatuto ontológico despertou a
notória questão dos universais: se eles existem antes da, depois da, ou na coisa. Para Platão, as idéias não estariam
em nenhuma dessas relações, pelo contrário, as idéias seriam aquilo que existe verdadeira e eternamente, portanto,
168

Recusar, como faz Antístenes, a propriedade, qualidade (poiótēs) implica na recusa da

definição genérica.

Decleva Caizzi, como, aliás, fazem comumente alguns outros

comentadores de Antístenes, diz que este não distingue385, como no caso da anedota, o nome

próprio do nome comum, nem a predicação acidental da predicação essencial. Ora,

convenhamos que, como mostra Aubenque386, se digo que Sócrates é sábio, há uma

dificuldade real em saber, se essa predicação é acidental ou essencial, já que se tirarmos a

sabedoria de Sócrates nada resta. Quanto aos nomes próprios, pensamos que não fosse o

caso de que Antístenes não distinguisse, mas sim, de que ele tenha da linguagem a

concepção de que esta é absolutamente de natureza indicial.387 A saber, todos os nomes

seriam próprios: a enunciação própria (oikeîos lógos) é a concepção fundamental da filosofia da

linguagem de Antístenes.

Passemos ao texto platônico, a Passagem do Sonho do diálogo Teeteto, que se

costuma confrontar com o de Aristóteles. Tratar da filosofia de Antístenes através da doxografia

aristotélica não apresenta os mesmos problemas que fazê-lo através dos textos platônicos, pela já

sem relação espaço-temporal com as coisas. Há quem entenda, por outro lado, que as idéias platônicas seriam
universais antes da coisa, principalmente, na lógica moderna. Sendo um universal, as idéias admitem definição.
385
De fato, nos parece que a concepção de distinção talvez fosse uma coisa das mais distantes na filosofia de
Antístenes, não só na sua filosofia da linguagem, mas na retórica (nas “Declamações de Ájax e Odisseu”, Ájax
distingue a retórica da ação, enquanto Odisseu, modelo de retórico para ele, despreza essa distinção), e também na
ética, em que não é possível distinguir a ascese (exercício) física da ascese moral.
386
1983, 464.
387
Como pressuposto metodológico procuramos o mais que possível evitar uma contaminação diacrônica na nossa
investigação. De tal forma, ao usar uma concepção tão marcadamente de uso lingüístico moderno como indicial,
queremos dizer em primeiro lugar que não estamos elaborando uma análise semiótica da filosofia da linguagem de
Antístenes; o que pretendemos com o uso do termo é estabelecer que nos parece que ao unir, tal Crátilo,
naturalmente nome e coisa, Antístenes dá a essa relação o caráter de que é dotado o índice em geral: aquilo que
indica é da mesma natureza do que é indicado. No entanto, não podemos nos furtar de observar que o gesto de
apontar, solução de Crátilo para o fluxo heraclítico (G 5 1010 a 10-15), é, na semiótica moderna, um exemplo de
índice.
169

consabida honestidade de Aristóteles na atribuição das doutrinas, que aceita ou que contesta, a

um filósofo preciso, e da malícia de Platão, que usa a mordacidade de seu Sócrates para ocultar a

autoria das doutrinas que enfrenta. No entanto, tais cuidados com Platão se revelam mais por

aspectos historiográficos e filológicos do que propriamente no aspecto doutrinal, já que, mesmo

que não se possa dizer com certeza se tal doutrina referida por Platão é ou não de autoria

antistênica, o teor é quase sempre indiscutivelmente ligado à problemática de Antístenes; porém,

é fato que há certas passagens em que detalhes da exposição da teoria do oikeîos lógos no

diálogo platônico deixam pouca margem à dúvida, pois nele se lê uma das exposições de

doutrina de outro filósofo mais claras e precisas feitas por Platão:

Sócrates – Então que vá um sonho em troca de outro. Eu também acreditei ter ouvido de
certa pessoa que os elementos primitivos de que nós e as outras coisas somos compostos
não admitem definição. Em si e por si a cada um deles só se pode nomear e não é
possível atribuir-lhe nada mais, nem que é, nem que não é, pois isso já implicaria
atribuir-lhe o ser e não-ser, e não se deve juntar mais nada, se se quer falar só dele. Não
se deve atribuir a ele nem “o mesmo”, nem “aquilo”, nem “cada um”, nem “só”, nem
“isto”, nem outras expressões desse tipo. Porque semelhantes expressões se atribuem a
todas as coisas, sendo diferentes das coisas a que se juntam, quando o importante para
esses elementos, se fosse possível defini-los, e se cada um tivesse sua definição
particular, seriam com uma enunciação própria, sem acréscimo de qualquer natureza.
Ora, é impossível que qualquer um desses elementos primitivos seja dito com uma
definição; só podem ser nomeados (é só o que têm, nome). Diferentemente se passa com
os compostos desses elementos: como se entrelaçam, assim seus nomes entrelaçados se
tornam enunciação; o ser da enunciação consiste exatamente numa combinação de
nomes. Desse modo as letras388 são indefiníveis e desconhecidas porém percebidas pelos
sentidos), ao passo que as sílabas são conhecíveis e definíveis e objeto de opinião
verdadeira. Quando alguém forma uma opinião verdadeira de qualquer coisa sem uma
enunciação, sua alma fica de posse da verdade sobre essa coisa, mas não a conhece;
aquele que não pode dar nem receber uma enunciação é ignorante em relação àquele
objeto; quando a ela acrescenta uma enunciação, está em condições de tornar-se tudo o
que disse, e possui a ciência de modo completo, Foi isso que ouviste em sonhos, ou foi
coisa diferente?389

388
Em grego, como já vimos, quando lemos o texto de Aristóteles, stoixei=on indica tanto o elemento como a letra.
389
201d-202 c. ãAkoue dh\ oÃnar a)ntiì o)nei¿ratoj. e)gwÜ ga\r auÅ e)do/koun a)kou/ein tinw½n oÀti ta\ me\n
prw½ta oi¸onpereiì stoixeiÍa, e)c wÒn h(meiÍj te sugkei¿meqa kaiì taÅlla, lo/gon ou)k eÃxoi. au)to\ ga\r kaq'
au(to\ eÀkaston o)noma/sai mo/non eiãh, proseipeiÍn de\ ou)de\n aÃllo dunato/n, ouÃq' w¨j eÃstin, ouÃq' w¨j
ou)k eÃstin: hÃdh ga\r aÄn ou)si¿an hÄ mh\ ou)si¿an au)t%½ prosti¿qesqai, deiÍn de\ ou)de\n prosfe/rein, eiãper
au)to\ e)keiÍno mo/non tij e)reiÍ. e)peiì ou)de\ to\ "au)to\" ou)de\ to\ "e)keiÍno" ou)de\ to\ "eÀkaston" ou)de\ to\
"mo/non" ou)de\ "tou=to" prosoiste/on ou)d' aÃlla polla\ toiau=ta: tau=ta me\n ga\r peritre/xonta pa=si
170

Há, inicialmente, algumas observações a fazer sobre esse texto que se aproxima

tanto do de Aristóteles, que são:

a) não é uma definição de tó tì éstin; pois, como lemos no texto de Platão, “o

ser da enunciação consiste exatamente numa combinação de nomes”, um “discurso longo”

(makrós lógos) conforme Aristóteles.390

b) lógos e ónoma não se identificam, assim como não se distinguem391, mas o

primeiro toma o caráter de definição quando uma série de palavras exprime os componentes de

cada coisa392; o que Aristóteles considerava como redução do princípio formal ao elemento

material, como já comentado;

c) há a pressuposição de uma distinção entre as partes do discurso que

“circulam”, a saber, “auto”, “hekeîno”, “hékaston”, “mónon”, “toûto”, e as que não o fazem, ou

seja, entre o discurso genérico e a enunciação necessária.

prosfe/resqai, eÀtera oÃnta e)kei¿nwn oiâj prosti¿qetai, deiÍn de/, eiãper hÅn dunato\n au)to\ le/gesqai kaiì
eiåxen oi¹keiÍon au(tou= lo/gon, aÃneu tw½n aÃllwn a(pa/ntwn le/gesqai. nu=n de\ a)du/naton eiånai o(tiou=n
tw½n prw¯twn r(hqh=nai lo/g%: ou) ga\r eiånai au)t%½ a)ll' hÄ o)noma/zesqai mo/non (oÃnoma ga\r mo/non
eÃxein) ta\ de\ e)k tou/twn hÃdh sugkei¿mena, wÐsper au)ta\ pe/plektai, ouÀtw kaiì ta\ o)no/mata au)tw½n
sumplake/nta lo/gon gegone/nai: o)noma/twn ga\r sumplokh\n eiånai lo/gou ou)si¿an. ouÀtw dh\ ta\ me\n
stoixeiÍa aÃloga kaiì aÃgnwsta eiånai, ai¹sqhta\ de/: ta\j de\ sullaba\j gnwsta/j te kaiì r(hta\j kaiì
a)lhqeiÍ do/cv docasta/j. oÀtan me\n ouÅn aÃneu lo/gou th\n a)lhqh= do/can tino/j tij la/bv, a)lhqeu/ein
me\n au)tou= th\n yuxh\n periì au)to/, gignw¯skein d' ouÃ: to\n ga\r mh\ duna/menon dou=nai¿ te kaiì
de/casqai lo/gon a)nepisth/mona eiånai periì tou/tou: proslabo/nta de\ lo/gon dunato/n te tau=ta
pa/nta gegone/nai kaiì telei¿wj pro\j e)pisth/mhn eÃxein. ouÀtwj su\ to\ e)nu/pnion hÄ aÃllwj a)kh/koaj;
390
H 3 1043 b 26.
391
Em grego, conforme se deduz de Bailly, o nome isolado é um lo/goj, mas se indica algo é o)/noma.
392
Brancacci (OL 232, n 11) diz que essa interpretação não reflete a posição antistênica; talvez, pensamos, prima
facie, por temor do aspecto materialista envolvido em tal doutrina, mas principalmente porque Brancacci quer
ressaltar o aspecto polêmico com Platão, a saber, a recusa antistênica da qualidade, e não o da leitura crítica posterior
de Aristóteles, este sim, interessado em defender sua concepção de definição genérica. De qualquer forma, a
nomenclatura e o teor da discussão não deixam dúvida da proximidade contextual das passagens de Platão e
Aristóteles em torno da posição, de certa forma, antiessencialista de Antístenes.
171

De tal forma, tanto do texto de Aristóteles como do de Platão, se pode concluir,

que de cada coisa só podemos dizer o seu nome, como ironiza o Estrangeiro de Eléia:

Estrangeiro – Como sabes, ao falarmos do ‘homem’ damos-lhe múltiplas denominações.


Atribuímos-lhe cores, formas, grandezas, vícios e virtudes; em todos esses atributos,
como em inúmeros outros, não afirmamos apenas a existência do homem, mas ainda do
bom, e outras qualificações em número ilimitado. O mesmo se dá com todos os objetos:
afirmamos, igualmente, que, cada um deles é um, para a seguir considerá-lo múltiplo e
designá-lo por uma multiplicidade de nomes.
Teeteto – É verdade.
Estrangeiro – E creio que assim fazendo estaremos servindo aos jovens e a alguns
velhos, que começam tarde a instruir-se, um verdadeiro banquete. Está ao alcance de
qualquer um dar a resposta imediata: é impossível que o múltiplo seja um e que o uno
seja múltiplo. E, na verdade, aprazem-se em não permitir que o homem seja chamado
bom, mas apenas que o bom seja chamado bom, e o homem homem. Creio que
freqüentemente encontras, Teeteto, pessoas cujo zelo se inflama a respeito deste assunto:
muitas vezes, pela pobreza de sua bagagem intelectual, pessoas de idade mais que
madura, se extasiam a esse propósito, crendo, certamente, haver feito uma descoberta de
grande sabedoria.393

Está aí a discussão da predicação, como em Aristóteles, de que é exemplo,

“Sócrates” e “Sócrates músico”.394 Platão, no entanto, se refere à inconciliabilidade, de origem

eleática (e Antístenes era um seguidor do eleatismo), do uno e do múltiplo. O problema de

Antístenes estava na relação entre linguagem e realidade e não numa análise do ser enquanto tal.

Essa observação, de autoria de Decleva Caizzi395, não é consistente, pois o diálogo Sofista não é

só uma análise do ser enquanto tal, mas também uma análise do discurso e, particularmente, da

393
Sofista, 251 a-c. {CE.} Le/gomen aÃnqrwpon dh/pou po/ll' aÃtta e)ponoma/zontej, ta/ te xrw¯mata
e)pife/rontej au)t%½ kaiì ta\ sxh/mata kaiì mege/qh kaiì kaki¿aj kaiì a)reta/j, e)n oiâj pa=si kaiì e(te/roij
muri¿oij ou) mo/non aÃnqrwpon au)to\n eiånai¿ famen, a)lla\ kaiì a)gaqo\n kaiì eÀtera aÃpeira, kaiì taÅlla
dh\ kata\ to\n au)to\n lo/gon ouÀtwj eÁn eÀkaston u(poqe/menoi pa/lin au)to\ polla\ kaiì polloiÍj o)no/masi
le/gomen. {QEAI.} ¹Alhqh= le/geij. {CE.} àOqen ge oiåmai toiÍj te ne/oij kaiì tw½n gero/ntwn toiÍj
o)yimaqe/si qoi¿nhn pareskeua/kamen: eu)qu\j ga\r a)ntilabe/sqai pantiì pro/xeiron w¨j a)du/naton ta/
te polla\ eÁn kaiì to\ eÁn polla\ eiånai, kaiì dh/pou xai¿rousin ou)k e)w½ntej a)gaqo\n le/gein aÃnqrwpon,
a)lla\ to\ me\n a)gaqo\n a)gaqo/n, to\n de\ aÃnqrwpon aÃnqrwpon. e)ntugxa/neij ga/r, wÕ Qeai¿thte, w¨j
e)g%Õmai, polla/kij ta\ toiau=ta e)spoudako/sin, e)ni¿ote presbute/roij a)nqrw¯poij, kaiì u(po\ peni¿aj
th=j periì fro/nhsin kth/sewj ta\ toiau=ta teqaumako/si, kaiì dh/ ti kaiì pa/ssofon oi¹ome/noij tou=to
au)to\ a)nhurhke/nai.
394
D 29 1024 b 30-1.
395
1964, p. 64.
172

predicação. E essa análise do discurso passa pela relação entre linguagem e realidade. Como diz o

Estrangeiro, em outro passo “O discurso, desde que ele é, é necessariamente um discurso sobre

alguma coisa, pois sobre o nada é impossível haver discurso”.396

Como esperamos que tenha sido possível ver, se desenrola o diálogo de que

participam Antístenes, Platão e Aristóteles sobre temas recorrentes na filosofia: a natureza da

linguagem e a realidade do ser. Se a linguagem pode dizer o ser, que tipo de realidade tem o ser,

material ou formal? Haverá respostas para que se possa afirmar com certeza que existe uma

ciência do ser enquanto tal?

Lembremos de que se trata no Teeteto de outra famosa definição atribuída a

Antístenes, a de conhecimento, em que o conhecimento é ligado à opinião: “conhecimento é

opinião verdadeira de acordo com a enunciação”.397 Há ainda nessa passagem do Teeteto alguma

coisa que é inquietante. Teeteto não diz que está apresentando uma definição sua de

conhecimento, mas diz ele que reproduz o que viu alguém dizer. Essa, na verdade, é uma das

muitas passagens em que alguns especialistas sobre Antístenes vêem uma discussão de Platão

com Antístenes, evitando aquele, como de costume, citar o nome de seu ferrenho opositor. E

estamos, do nosso ponto de vista, exatamente dentro da polêmica histórica. Segundo H. Maier,

citado por Brancacci398, deste escrito depende a definição de ciência como opinião verdadeira.

Decleva Caizzi pensa que o título do tratado no Catálogo Laerciano, Sobre opinião e

conhecimento, lembra o argumento do Teeteto. No entanto faz restrições à tese de que tal texto

seja a reconstrução de uma teoria de Antístenes, pois acha que Platão está se referindo, como faz

396
262 e. Lo/gon a)nagkaiÍon, oÀtanper vÅ, tino\j eiånai lo/gon, mh\ de\ tino\j a)du/naton.
397
201 c-d. th\n me\n meta\ lo/gou a)lhqh= do/can e)pisth/mhn eiånai.
398
OL 33.
173

também em Sofista399, genericamente aos materialistas.400 Não lhe parece claro se as doutrinas

expostas se referem a Antístenes e não a outros. O que soa estranho, pois ela própria remete ao

Catálogo. Sócrates tem o ar de tomar uma atitude de consideração quando diz referindo-se ao

argumento que sustenta a definição de ciência que Teeteto viu alguém dizer, cujo nome Platão

não revela: ”É o que precisamos estudar melhor, para não trairmos por maneira nada viril um

argumento tão grande e respeitável”.401

Decleva Caizzi, diante de ambos textos doxográficos, a polêmica de Aristóteles

com os antistênicos e a Passagem do Sonho no Teeteto, comenta: “com efeito, os dois textos

concordam bastante bem se os examinarmos de perto”.402 A crítica que se faz a Antístenes,

segundo a autora, é que ele ignorava o princípio formal. Na verdade, não é que ele ignorasse o

princípio formal, ele negou a existência de um princípio formal com sua negação da qualidade.

Nesses textos, tanto Aristóteles quanto Antístenes concordam que há de se

lidar, na questão do estatuto da realidade, com a relação dos nomes com as coisas. Concordam

ainda que as coisas ou são elementos primeiros ou primitivos ou são compostas desses elementos.

Para ambos as coisas que são elementos simples não podem ser definidas. Só podemos definir as

coisas compostas. A definição é constituída por uma longa série de nomes, como diz Aristóteles

na polêmica, ou, o que é a mesma coisa, uma combinação de nomes, como teria dito Antístenes,

se aceitarmos que a doutrina da Passagem do Sonho seja dele. As letras e/ou os elementos, só são

percebidos pelos sentidos. As sílabas admitem uma definição, pois são compostas por elementos

(letras). Assim, o nome (ónoma) indica tanto coisas que são elementos primitivos como as coisas

399
246 a.
400
1964, p. 61.
401
203 e.
402
1964, p. 63.
174

compostas, porém, estas possuem uma definição (lógos). Porém discordam a respeito da

realidade e da linguagem. Aristóteles entende que a realidade não resulta apenas na soma de

elementos, por exemplo, a casa não resulta só dos tijolos reunidos mais composição desses

mesmos tijolos, mas sim que essa reunião de elementos resulta da definição formal (ou princípio

formal) dessa composição. A saber, as coisas compostas (hoì synthétoi), não são uma reunião

exclusiva de elementos materiais, mas sim uma reunião, ou composição, de matéria e forma. Na

definição o primeiro termo deve servir de matéria (hýle) e o segundo de forma (morphē¿). É a

teoria hilemórfica aristotélica.

Os antistênicos, assim como Aristóteles, entendem que a realidade como somos

compostos e tudo o mais, é constituída ao se reunirem (syntíthēmi) elementos primitivos. Porém,

para eles, os nomes não apresentam o problema apontado pelo Estagirita, porque os nomes não

indicam ora uma coisa, ora um ato, ora uma forma. É com esse problema que Aristóteles vai

introduzir a discussão com eles: “Não se pode ignorar que às vezes não é claro se o nome

significa a essência composta [a coisa] ou o ato e a forma”.403 Cada elemento, para os

antistênicos, tem um nome a que nada mais se acrescenta; e esse nome não indica nada mais além

do elemento.

Barbara Cassin404 nota que a concepção do nome como o sujeito do ato de

significar é uma inovação de Aristóteles. O sujeito da significação, depois de Aristóteles, deixou

de ser aquele que profere a palavra e passou a ser a palavra; diz ela, “não é mais um homem, mas

‘homem’ que significa alguma coisa”. Para ela, trata-se de um fato que pode passar despercebido,

403
H 3 1043 a 29-31. DeiÍ de\ mh\ a)gnoeiÍn oÀti e)ni¿ote lanqa/nei po/teron shmai¿nei to\ oÃnoma th\n
su/nqeton ou)si¿an hÄ th\n e)ne/rgeian kaiì th\n morfh/n.
404
1989, pp 29-33.
175

a abordagem nova do discurso empreendida por Aristóteles, a saber, a descoberta da natureza

semântica do discurso. Antes dele, o uso normal de sēmaínein estava firmado na designação de

uma coisa ou de um estado do mundo. Ela cita o fragmento de Heráclito: “O Autor, de quem é o

oráculo de Delfos, não diz nem subtrai nada, assinala o retraimento”.405 É a voz oracular que dá o

significado e não as palavras que emite que têm significado. Aristóteles retira assim da

significação sua conotação designativa, indicial, sua eficácia objetiva. Agora os interlocutores

não vão indicar com os nomes as coisas, e conferir se estão falando da mesma coisa, eles devem

se por de acordo por uma convenção de uso sobre o significado dos nomes que empregam. Esse é

um emprego, segundo a autora, que traz pesadas conseqüências para o proferidor: “fixar o uso

das palavras não é aparentemente senão um caso de convenção, mas é confiar desde então às

palavras a significação”. A partir do momento em que significar é uma propriedade das palavras

e não uma ação que tem por instrumento o discurso, o que importa é a relação que as palavras

têm entre elas, ou melhor, entre a relação de cada palavra com o lógos que a explicita. A saber, o

lógos se torna definição.406

Brancacci407 entende que a tese da impossibilidade da definição é de caráter

fundamentalmente antiplatônico, porém afasta totalmente uma interpretação da tese como uma

negação completa da possibilidade de toda e qualquer definição; de fato, a Antístenes são

atribuídas duas famosas e importantes definições dentro da história da filosofia, a de

conhecimento e a de discurso, como, oportunamente, estamos vendo. Esse autor, que não

acompanha essa aproximação tradicional entre os dois textos, chama a atenção, com pertinência

para nós, para o fato textual da manutenção da passagem entre parênteses no texto da polêmica,

405
DK B 93. o( aÃnac, ou to\ manteiÍo/n e)sti to\ e)n DelfoiÍj, ouÃte le/gei ouÃte kru/ptei a)lla\ shmai¿nei.
406
G 7 1012 a 23-4. o( ga\r lo/goj ou)= to\ o)/noma shmei=on o(rismo\j e)/stai.
407
OL 233.
176

que justificamos acima, pois pensa que o hō¿ste (de tal modo) inicial da referência aos seguidores

de Antístenes indica com clareza que a passagem aristotélica deve ser recolocada no contexto

antiplatônico; a conjunção de tal modo ligaria o que vai ser dito ao que é dito entre parênteses e

não é, portanto, uma ligação com o que é dito antes dos parênteses.

Pensava Antístenes, contra Platão, que, em lugar de dar um fundamento

metafísico para uma linguagem rigorosa, como pretende atingir em Sofista, ao contrário, com a

teoria das idéias, entificando o tí ésti acarreta consigo a indefinibilidade, e, portanto, a sua

própria irracionalidade. Para Brancacci, ontologicamente, a essência (ousía) é um simplex (e

acrescentamos, é, portanto, um elemento), não podendo ser expressa por um discurso definitório,

pois a pluralidade dos nomes não pode ser atribuída aos simples, aos elementos. Um enunciado

complexo não poderá nunca corresponder à unidade do tí ésti. Como vimos no capítulo anterior,

Aristóteles entende também que não é possível definir a idéia, porque cada idéia é uma realidade

separada.

Parece-nos que, para Antístenes, ónoma e lógos constituem dois momentos da

linguagem, que devem ser usados oportunamente se não quisermos cair nas armadilhas

preparadas seja pelo vício seja pelo prazer. Entendendo ónoma e lógos, para isso, como

necessários para a compreensão da passagem da unidade do nome para a complexidade da

definição. A saber, a definição instaura a racionalidade, já que diante da letra só se pode ter um

objeto de opinião através dos sentidos, a sílaba, ou seja, a composição dos elementos, leva a um

discurso longo que pode definir o que seja a coisa, sem recorrer a algo que, por natureza, é

indefinível, a idéia. E se posso definir (enunciar) aquela opinião que tenho sobre algo, tenho
177

conhecimento. Isso é importantíssimo no sistema filosófico antistênico, porque a definição, como

instrumento não só de ciência, mas também, retórico, é fundamental para a transmissão (o ensino)

das verdades morais.


2.1.3 A enunciação própria (oikeîos lógos)

Victor Goldschmidt408 foi quem aplicou a expressão filosofia da linguagem à

filosofia de Antístenes, para sublinhar nela a centralidade de uma reflexão sobre a linguagem, a

saber, sobre o lógos, entendido como instrumento único de acolhimento, atuação e transmissão da

verdade. Pode-se dizer, no estágio atual da pesquisa sobre a filosofia de Antístenes409, em linhas

bastante gerais, que ela se unifica em torno de uma concepção radical de discurso – lógos: para

cada coisa só há uma enunciação que lhe é própria (oikeîos lógos).410

A expressão oikeîos lógos chegou-nos, até o ponto em que nossas fontes

estejam corretas, através da Passagem do Sonho do Teeteto, como vimos; de um outro famoso

fragmento da Metafísica (D 29 1024 35); do comentário de Alexandre a essa passagem da

Metafísica, que serão objeto de estudo adiante; e de um escólio homérico atribuído a Antístenes

por H. J. Lulofs.

Citamos a belíssima passagem:

408
1940.
409
Entre outros se destaca a importante investigação de Aldo Brancacci, que procura dar uma configuração unificada
da filosofia de Antístenes, dispersa em fragmentos e na doxografia, e principalmente tentando refutar as
interpretações que atribuem a Antístenes uma metafísica materialista e uma concepção tautológica da lógica, além de
distinguir sua moral, de caráter pedagógico, da moral cínica, de caráter admonitório, como foi introduzido por
Diógenes de Sinope.
410
Reale (2002) traduz a expressão por noção única, o que nos pareceu, além de muito geral, retirar o caráter
lingüístico. Brancacci por significado próprio. Parece-nos que Brancacci não leva em consideração as questões da
significação em Antístenes a que a escolha do termo significado possa remeter. Escolhemos traduzir por enunciação
devido ao caráter de manifestação que tal termo carrega, o que condiria com a definição antistênica de lo/goj, em
que tal caráter é apresentado como a marca da discursividade: lo/goj e)sti\n o( to\ ti/ h)=n h)\ e)sti dhlw=n.
Antístenes diz: lo/goj e)sti\n dhlw=n, o lógos é manifestante, “enunciante”.
179

Dizer que Atena calça belas sandálias não manifesta outra coisa senão que as potências
ativas da prudência são robustas e corajosas. E até mesmo portar a arma da prudência
subjuga os chefes e faz o rebelde entender. Pois o prudente através da enunciação
própria castiga o indisciplinado. E até mesmo descer Atena do céu não quer dizer outra
coisa senão que a prudência desce do intelecto. 411

Se para cada coisa só há uma enunciação que lhe é própria, dois interlocutores

que discordem ao usar a mesma enunciação não estão dizendo a mesma coisa412. Daí ele construir

famosos paradoxos: é impossível contradizer; é impossível dizer o falso. É essa concepção de

discurso que vai dar feição à sua metafísica (não há uma realidade essencial – ousía –, a realidade

é constituída por composições de elementos, assim não há definições essenciais, apenas

definições qualitativas que constituiriam um discurso longo), à sua lógica (se não há definição

essencial, não posso predicar nada de nada413, a enunciação diz a própria coisa), à sua ética (os

conceitos morais indicam uma única coisa, não podem ser objetos de usos diversos).

411
1900. toì le¯gein thìn 'Aqena½n kala¯ pe/dila foreiÍn ou¹k aÃllo dhloiÍ hä oàti thÍj fronh¿sewj ai¹
e¹nerghtikaiì duna¯meij stibaraiì kaiì aÓlkimoi¿ ei¹si. toì deì e¹pe¿xein eÃgxoj e¹n %Âtini dama¯zei touìj
hàrwaj toì plhktikoìn u¸poshmai¿nei thÍj fronh¿sewj. o¸ ga\r fro/nimoj dia\ tou½ oi¹kei¿ou lo¿gou plh¿ttei
toìn a¹taktouÍnta. toì deì thìn 'Aqena½n e¹c ou¹ranouÍ katelqeiÍn ou¹k aÃllo ai¹ni¿ttetai hÔ oàti h¸ fro¯nesij
e¹k touÍ nouÍ kate¿rxertai.
412
Alexandre(1891), 435, 6-13. Asclépio (1888), 353, 18 ss.
413
Aristóteles, na Física, 185 b 25-32, cita Licofrão, um discípulo de Górgias, que teria a mesma posição que a de
Antístenes em relação à lógica: “E até mesmo os posteriores aos antigos perturbaram-se cuidando que a mesma coisa
não se lhes tornasse ao mesmo tempo uma e muitas. Por isso, uns suprimiram o ‘é’, como Licofrão, ao passo que
outros requintaram a enunciação: não ‘o homem é branco’, mas sim ‘branquejou-se’, e nem ‘é caminhante’, mas sim
‘caminha’, a fim de que não fizessem o um ser muitos, ao aplicar-lhe o ‘é’ - como se o um e o ente se dissessem de
uma só maneira.” – e)qorubou=nto de\ kaiì oi¸ uÀsteroi tw½n a)rxai¿wn oÀpwj mh\ aÀma ge/nhtai au)toiÍj to\
au)to\ eÁn kaiì polla/. dio\ oi¸ me\n to\ e)stiìn a)feiÍlon, wÐsper Luko/frwn, oi¸ de\ th\n le/cin meterru/qmizon,
oÀti o( aÃnqrwpoj ou) leuko/j e)stin a)lla\ leleu/kwtai, ou)de\ badi¿zwn e)stiìn a)lla\ badi¿zei, iàna mh/
pote to\ e)stiì prosa/ptontej polla\ eiånai poiw½si to\ eÀn, w¨j monaxw½j legome/nou tou= e(no\j hÄ tou=
oÃntoj.A segunda posição será a assumida pelos estóicos com sua concepção de acontecimento, os chamados
“incorporais”. Diz Bréhier (1928): “O atributo não designa nenhuma qualidade real..., é sempre ao contrário
expresso por um verbo, o que quer dizer que é não um ser, mas uma maneira de ser...). Para nós, Aristóteles, se foi
ele mesmo que o fez, teria escrito as Categorias numa tentativa desesperada de dirimir os equívocos a que a
predicação pode levar.
180

O percurso de sua filosofia, do ponto de vista de sua concepção de linguagem,

parece ser este, que vem a ser um resumo de tudo o que já dissemos antes:

a) Na base está uma interpretação de sentido positivo e dogmático por parte de

Antístenes dos temas e conceitos ligados à prática da dialética – dialégesthai. Dos temas, o

principal é o da possibilidade de a virtude ser ensinada; quanto aos conceitos, o mais importante é

o de autarquia do filósofo, a saber, a virtude e a sabedoria bastam para a felicidade;

b) paralelamente a isso, há a herança das posições antilógicas e erísticas dos

sofistas;

c) a partir desses dois pontos Antístenes instaura sua noção de conhecimento –

baseada na concepção de uma natural identidade entre o nome e as coisas por ele nomeadas;

d) dessas posições quanto à linguagem e ao conhecimento emerge a figura do

sophós, entendido como medida e garantia do uso correto (orthē¿ khrē¿sis) do instrumento

dialético e da sua aplicação retórica;

e) como conseqüência se dá o rigor ético414, pois para Antístenes a fortaleza moral

se alcança através da correção da linguagem;

414
É tal rigor ético que de Antístenes passará para o cinismo posterior a Diógenes de Sinope, e reaparecerá da forma
mais radical no estoicismo, principalmente através da figura do sofo¿j como ideal estóico supremo. Segundo
Brancacci (OL 114): “... os cínicos abandonaram a e)pi/skeyij tw=n o)noma/twn e em geral qualquer interesse pelos
estudos lógico-lingüísticos: o sofo/j é pois para eles modelo de virtude, e fonte de todos os valores, num sentido
formal, não pela posse de um saber objetivo”.
181

f) o rigor lingüístico unido ao rigor ético dá conta do racionalismo extremado de

Antístenes e é, por seu lado, sua resposta ao problema, conforme foi colocado pelos sofistas, da

relação do homem com a realidade que o cerca;

g) o pensamento de Antístenes assim voltado para a linguagem e a ética terá,

então, como nó constitutivo um princípio que será comum às doutrinas que defendeu em diversos

âmbitos (como a educação, a exegese de textos homéricos, a retórica, a lógica, a metafísica), a

saber, a noção geral de oikeîon, aquilo que é único e próprio, rigorosamente determinado;

h) essa exigência de determinação se origina no reconhecimento da unidade e da

objetividade do uso dos nomes;

i) há, assim, uma estreita conexão entre investigação dos nomes, teoria da

definição (lógos) e gênese dos conceitos morais. É a pesquisa lógico-lingüística que determinará

os conceitos morais;

j) filosofia da linguagem e ética se tornam homogêneas, ou antes, aspectos

interdependentes de uma mesma posição doutrinária, de um mesmo conceito de filosofia.

Para ele, portanto, não há separação entre o conhecimento do sábio e a virtude

moral. A união entre conhecimento e moral se dá através da linguagem. Se o homem produz o

lógos adequado ao conhecimento e à moral ele é um sábio (sophós).


182

Qual então a concepção de conhecimento do filósofo de Atenas? Conhecer,

para Antístenes, é o resultado da investigação dos nomes. Arriano (Epiteto)415, na passagem que

segue abaixo, testemunha a posição de Antístenes de que é o discernimento que a investigação

dos nomes produz que leva o homem ao assentimento seguro da verdade. Arriano começa

argumentando que é preciso possuir um meio para que se possa conhecer alguma coisa, esse meio

é a lógica, mesmo que por ela mesma, seja infrutífera.

Nesse caso, então, se não aprendermos completamente e examinarmos acuradamente o


critério de todas aquelas coisas pelas quais outras coisas mais são aprendidas, estaremos
aptos a examinar acuradamente e aprender tudo o mais? ‘Não, mas um medidor feito de
madeira é apenas madeira, e uma coisa que não produz qualquer fruto’. Mas é uma coisa
que pode medir os grãos. ‘A lógica também não produz qualquer fruto’. Quanto a isso na
verdade veremos: mas então mesmo que um homem conteste isso, basta que a lógica
tenha o poder de distinguir e examinar outras coisas, podemos dizer, de pesá-las e medi-
las. Quem diz isso? É apenas Crisipo, Zenão e Cleantes?416 E Antístenes não o diz
também? E quem é que escreveu que a investigação dos nomes é o princípio da
educação? E Sócrates não o diz também? E sobre quem Xenofonte escreveu dizendo que
ele começou com a investigação dos nomes, para saber o que cada nome significava? É
então uma coisa grande e admirável entender ou interpretar Crisipo? Quem diz isso?
Então o que é essa coisa admirável? Entender os desígnios da natureza. Então você
mesmo apreende isso por sua própria capacidade? E de que mais você precisa? Pois se é
verdade que todos os homens erram involuntariamente417, e você aprendeu a verdade,
necessariamente você deve agir retamente. ‘Mas na verdade eu não apreendo os
desígnios da natureza.’ Então quem nos diz quais são eles? Dizem que é Crisipo. Vou
em frente e investigo o que esse intérprete da natureza diz. Começo a não entender o que
ele diz e procuro um intérprete de Crisipo. ‘Bem, considere como isto é dito, exatamente
como se fosse dito na língua romana.’ Então por que esse desdém com o intérprete? Não
há nenhum desdém que possa ser dirigido a Crisipo, se ele apenas interpreta os desígnios
da natureza, mas não os segue ele mesmo, e muito mais é assim com o intérprete. Pois
por ele mesmo não temos nenhuma necessidade dele, mas sim a fim de poder entender a
natureza. Por acaso necessitamos de um adivinho por causa dele mesmo ou porque
pensamos que através dele conheceremos o futuro e entenderemos os sinais dados pelos

415
É através de Arriano que conhecemos o pensamento de Epiteto.
416
Nessa passagem de Arriano há uma alusão à genealogia do estoicismo grego, que tem como iniciador, Sócrates,
foi configurado por Antístenes, com as idéias de uso da aparição, de identidade de linguagem e moral, de sofo¿j
como estado supremo da vida humana, entre outras, e, finalmente, constituído por Zenão de Citio, Cleantes e
Crisipo.
417
Trata-se aqui, “os homens erram involuntariamente”, de um dos dois famosos paradoxos socráticos, que serão
rigorosamente seguidos por Antístenes. I. Como conseqüência da associação socrática de conhecimento e virtude,
Sócrates considerava que ninguém jamais erra sabidamente. II. Pensava ainda que ninguém sabe o que diz se não
conhecer bem o uso dos nomes. Aristóteles, na Ética a Nicômaco (VII, 2, 1145 b 26-28), discute a posição de
Sócrates: “Ninguém, depois de julgar – afirmava [Sócrates] –, age contrariando o que julgou melhor; os homens só
assim procedem por efeito da ignorância. Ora, essa opinião contradiz nitidamente os fatos observados...” – ou)qe/na
ga\r u(polamba/nonta pra/ttein para\ to\ be/ltiston, a)lla\ di' aÃgnoian. ouÂtoj me\n ouÅn o( lo/goj
a)mfisbhteiÍ toiÍj fainome/noij e)nargw½j.
183

deuses? Por acaso necessitamos das vísceras dos animais por elas mesmas ou porque
através delas sinais são dados? Olhamos com admiração para gralhas e corvos, ou para
Deus, que através deles dá sinais?418

Tal investigação419 teria por finalidade estabelecer os usos (khrē½seis) de cada

nome. Ao conhecer esse uso, estaríamos de posse do conhecimento da própria coisa que o nome

indica e estaríamos aptos a produzir uma enunciação própria – oikeîos lógos. Porém, nada é tão

418
Arrian. Epit. diss. I, 17 e)ntau=qa ouÅn to\ tw½n aÃllwn krith/rion kaiì di' ou taÅlla katamanqa/netai
mh\ katamemaqhko/tej mhd' h)kribwko/tej dunhso/meqa/ ti tw½n aÃllwn a)kribw½sai kaiì katamaqeiÍn;
kaiì pw½j oiâo/n te; "nai¿: a)ll' o( mo/dioj cu/lon e)stiì kaiì aÃkarpon." a)lla\ metrhtiko\n si¿tou. "kaiì ta\
logika\ aÃkarpa/ e)sti." [AF 38. kaiì periì tou/tou me\n o)yo/meqa. ei¹ d' ouÅn kaiì tou=to doi¿h tij, e)keiÍno
a)parkeiÍ oÀti tw½n aÃllwn e)stiì diakritika\ kaiì e)piskeptika\ kaiì w¨j aÃn tij eiãpoi metrhtika\ kaiì
statika/. ti¿j le/gei tau=ta; mo/noj Xru/sippoj kaiì Zh/nwn kaiì Klea/nqhj; ¹Antisqe/nhj d' ou)
le/gei; kaiì ti¿j e)stin o( gegrafwÜj oÀti "a)rxh\ paideu/sewj h( tw½n o)noma/twn e)pi¿skeyij"; Swkra/thj d'
ou) le/gei; kaiì periì ti¿noj gra/fei Cenofw½n, oÀti hÃrxeto a)po\ th=j tw½n o)noma/twn e)piske/yewj, ti¿
shmai¿nei eÀkaston;] åAr' ouÅn tou=to/ e)sti to\ me/ga kaiì to\ qaumasto\n noh=sai Xru/sippon hÄ
e)chgh/sasqai; kaiì ti¿j le/gei tou=to; ti¿ ouÅn to\ qaumasto/n e)stin; noh=sai to\ bou/lhma th=j fu/sewj.
ti¿ ouÅn; au)to\j dia\ seautou= parakolouqeiÍj; kaiì ti¿noj eÃti xrei¿an eÃxeij; ei¹ ga\r a)lhqe/j e)sti to\
pa/ntaj aÃkontaj a(marta/nein, su\ de\ katamema/qhkaj th\n a)lh/qeian, a)na/gkh se hÃdh katorqou=n.
a)lla\ nh\ Di¿a ou) parakolouqw½ t%½ boulh/mati th=j fu/sewj. ti¿j ouÅn e)chgeiÍtai au)to/; le/gousin oÀti
Xru/sippoj. eÃrxomai kaiì e)pizhtw½ ti¿ le/gei ouÂtoj <o(> e)chghth\j th=j fu/sewj. aÃrxomai mh\ noeiÍn ti¿
le/gei, zhtw½ to\n e)chgou/menon. "iãde e)pi¿skeyai, pw½j tou=to le/getai, kaqa/per ei¹ ¸Rwmai+sti¿." poi¿a
ouÅn e)nqa/d' o)fru\j tou= e)chgoume/nou; ou)d' au)tou= Xrusi¿ppou dikai¿wj, ei¹ mo/non e)chgeiÍtai to\
bou/lhma th=j fu/sewj, au)to\j d' ou)k a)kolouqeiÍ: po/s% ple/on tou= e)keiÍnon e)chgoume/nou; ou)de\ ga\r
Xrusi¿ppou xrei¿an eÃxomen di' au)to/n, a)ll' iàna parakolouqh/swmen tv= fu/sei. ou)de\ ga\r tou= qu/tou
di' au)to/n, a)ll' oÀti di' e)kei¿nou katanoh/sein oi¹om / eqa ta\ me/llonta kaiì shmaino/mena u(po\ tw½n
qew½n, ou)de\ tw½n spla/gxnwn di' au)ta/, a)ll' oÀti di' e)kei¿nwn shmai¿netai, ou)de\ to\n ko/raka
qauma/zomen hÄ th\n korw¯nhn, a)lla\ to\n qeo\n shmai¿nonta dia\ tou/twn.
419
A lógica de Antístenes não é uma lógica predicativa, já que ele não admite que o nome de uma coisa seja dito para
nomear outra coisa, pois há um único nome para cada coisa. Assim em Antístenes, o predicado (o único nome) é o
que se diz e o sujeito é a coisa real. Então não temos “Sócrates é branco”. O que temos é “Esta coisa ou isto é
branco” e “Isto é Sócrates”. Assim, segundo tal lógica, não atribuímos (predicamos), mas particularizamos um
elemento e damos o nome de sua nota característica, “Sócrates”, “branco”. Temos assim, uma referência (isto) e algo
que nos faz conhecer o seu sentido (o que é isto). Barbara Cassin (2005, p. 49-51), sem entrarmos nos aspectos
hermenêuticos que estão sendo discutidos, estabelece uma genealogia do problema do sentido e da referência que
perpassa a filosofia da linguagem. Começaria com Górgias, passando por Antístenes, pelos estóicos, chegando à
filosofia analítica. A investigação dos nomes, que é o princípio do conhecimento, poderia ser entendida como o
esforço da passagem dos objetos, das coisas reais, que a lógica moderna entende como referência, para o reto
conhecimento do que sejam essas coisas. Vamos tentar esclarecer com exemplos. Se usarmos o texto de Arriano,
podemos tomar como exemplo, “Crisipo”, “víscera”, “corvo”, ditos de objetos reais, “Este é Crisipo”, “isto é
víscera”, “isto é corvo”; os termos em si não nos causam nenhuma admiração. É o que está dito no texto. No entanto
os termos podem tomar diversos usos: cada um deles deixa de indicar um objeto e passam a sinalizar para outra
coisa: intérprete, sinal e Deus. Esses objetos causam interesse porque nos dão a revelação de algum sentido da
natureza. Há aí também a posição de Antístenes quanto à educação, que não pode ficar só nas coisas materiais.
184

simples assim. O ponto de partida de Antístenes não é o discurso próprio, mas sim a questão

sofística da natureza do lógos. O discurso é o instrumento dos sofistas. Ele é todo poderoso na

boca dos retores e dos sofistas. Como diz Platão, no Fedro420, a força da palavra dá aparência

maior ao que é pequeno e vice-versa. O Elogio de Helena, de Górgias, é o caso paradigmático da

imposição das leis do discurso sobre uma necessidade de referências às próprias coisas421. É o que

entendemos por discurso múltiplo. Antístenes reconhece a existência do discurso múltiplo. O

estudo dos discursos múltiplos será objeto de seus escólios homéricos e seus estudos de retórica.

Como ele entende que há uma identidade natural entre nome e coisa e por isso só posso dizer

algo se digo o que a coisa é, a diversidade não está no discurso, pois sempre digo o que a coisa é.

420
267 a.
421
Colocado em termos de sentido e referências, podemos dizer que os sofistas se davam a liberdade do uso do
sentido sem dar conta do referente. Há uma bem humorada passagem nos Memoráveis (III, 14, 2), de Xenofonte, em
que um dos inefáveis jovens presentes aos banquetes de Platão e Xenofonte altera seu comportamento alimentar ao
confundir sentido, que era o que estava sendo discutido por Sócrates, com a referência, que era sua opção de apenas
comer carne, usada por Sócrates como um simples exemplo para desencadear uma discussão: “Tendo notado que um
dos convivas não comia pão e só se servia de carne, e encaminhando-se casualmente a conversa para a propriedade
dos termos, a que gênero de ações deve aplicar-se cada epíteto: - Poderíamos examinar, amigos meus - propôs
Sócrates - por que sói chamarem-se certos homens de carnívoros. Toda gente come carne com pão, desde que a
tenha. Mas parece-me não ser este o motivo por que se chamam certas pessoas de carnívoras. - Claro que não - disse
um dos comensais. Sócrates - E quem come carne sem pão, não por necessidade, como os atletas, mas por prazer,
será carnívoro, sim ou não? - Quem mais havia de sê-lo, disse um. -E quem com pouco pão come muita carne,
perguntou outro. -Acho - opinou Sócrates - que também deve chamar-se carnívoro. E quando os outros pedirem aos
deuses abundância de frutos, ele deverá pedir abundância de carne. Enquanto assim falava Sócrates, o jovem,
percebendo-se alvo da conversação, começou a servir-se de pão, mas sem deixar de atafulhar a boca de carne.
Advertindo-o, disse Sócrates: - Atentai nesse jovem, vós que estais perto dele; serve-se de pão para comer carne ou
de carne para comer pão?” – KatamaqwÜn de/ pote tw½n sundeipnou/ntwn tina\ tou= me\n si¿tou
pepaume/non, to\ de\ oÃyon au)to\ kaq' au(to\ e)sqi¿onta, lo/gou oÃntoj periì o)noma/twn, e)f' oià% eÃrg%
eÀkaston eiãh, ãExoimen aÃn, eÃfh, wÕ aÃndrej, ei¹peiÍn, e)piì poi¿% pote\ eÃrg% aÃnqrwpoj o)yofa/goj
kaleiÍtai; e)sqi¿ousi me\n ga\r dh\ pa/ntej e)piì t%½ si¿t% oÃyon, oÀtan parv=: a)ll' ou)k oiåmai¿ pw e)piì
tou/t% ge o)yofa/goi kalou=ntai. Ou) ga\r ouÅn, eÃfh tij tw½n paro/ntwn. Ti¿ ga/r; eÃfh, e)a/n tij aÃneu tou=
si¿tou to\ oÃyon au)to\ e)sqi¿v, mh\ a)skh/sewj, a)ll' h(donh=j eÀneka, po/teron o)yofa/goj eiånai dokeiÍ hÄ
ouÃ; Sxolv= g' aÃn, eÃfh, aÃlloj tij o)yofa/goj eiãh. kai¿ tij aÃlloj tw½n paro/ntwn, ¸O de\ mikr%½ si¿t%,
eÃfh, polu\ oÃyon e)pesqi¿wn; ¹Emoiì me/n, eÃfh o( Swkra/thj, kaiì ouÂtoj dokeiÍ dikai¿wj aÄn o)yofa/goj
kaleiÍsqai: kaiì oÀtan ge oi¸ aÃlloi aÃnqrwpoi toiÍj qeoiÍj euÃxwntai polukarpi¿an, ei¹ko/twj aÄn ouÂtoj
poluoyi¿an euÃxoito. tau=ta de\ tou= Swkra/touj ei¹po/ntoj, nomi¿saj o( neani¿skoj ei¹j au(to\n ei¹rh=sqai
ta\ lex-qe/nta to\ me\n oÃyon ou)k e)pau/sato e)sqi¿wn, aÃrton de\ pros-e/labe. kaiì o( Swkra/thj
katamaqw¯n, ParathreiÍt', eÃfh, tou=ton oi¸ plhsi¿on, o(po/tera t%½ si¿t% oÃy% hÄ t%½ oÃy% si¿t%
xrh/setai.
185

Como validar a existência do discurso múltiplo? Para Antístenes, o discurso sempre será único, o

que o torna múltiplo é a necessidade de se produzir diferentes discursos de acordo com cada

situação que se apresenta ou do interlocutor. Esses discursos diferentes, para ele, só são possíveis

porque o que profere o discurso sabe exatamente que só há um discurso adequado para cada

coisa, e, por sabê-lo, pode variá-lo dependendo das circunstâncias.

Atente-se aqui que Antístenes não tem a mesma noção de coisa que a de

Aristóteles, conforme as Categorias, objetos com propriedades, ou melhor, uma essência mais os

acidentes. Para ele tanto homem, como prata, como velho, são elementos. Daí, eu não poder dizer

que “o homem é velho”, como se a essência fosse “o homem” e “velho” o acidente. A nossa

fantasia se forma a partir daquilo que se manifesta a ela, isso receberá um nome, que manifestará

um elemento. Trataremos mais adiante do uso dos nomes e do uso da fantasia. No momento o

importante é saber que a concepção de discurso – lógos de Antístenes está ligada à manifestação

do que aparece a alguém. Em outras palavras, aquilo que se faz notar. Não é uma posição de

contemplação, teórica, ou de abstração, mas o que manifesto no acontecimento de notar. Noto

assim o homem, ou então, não o homem, mas o velho, ou não o velho, mas a prata nos cabelos. E

então se digo o homem, digo o que algo é ou era, mas como manifestação e não como atribuição.

Em outras palavras não predico, não categorizo. Não defino. Assim temos os pontos que vão

constituir os problemas para a compreensão, ou antes, para a interpretação da metafísica de

Antístenes:

a) A que realidade os nomes se ligam? Para Antístenes a ligação de um nome é

primordialmente com a imagem mental?


186

b) Qual o estatuto ontológico das imagens?

c) Se só temos acesso a imagens e nomes, como dar conta do constituinte

último da realidade, a essência (ousía)?

O que estaria em questão, na constituição fundadora da metafísica, entre Platão,

Antístenes e Aristóteles, não seria, talvez, o problema hilemórfico, mas o do estatuto ontológico

da imagem mental (phantasía). Em Sofista422, o Estrangeiro pergunta a Teeteto se não é evidente

que há verdade e falsidade tanto no pensamento, como na opinião, como na imagem mental.

Aristóteles423 considera que pela imagem mental discernimos e nos situamos na verdade ou no

erro. E para Antístenes, segundo Arriano, não é o uso correto da imagem mental que nos liberta?

Essa nossa hipótese teve como ponto de partida, justificado pela tradição do reconhecimento da

influência de Antístenes no estoicismo, a concepção estóica de phantasía, como aquela impressão

na mente do próprio objeto existente enquanto existente. É exatamente essa idéia que se forma na

alma, para usar os termos platônicos, que assombrará os três filósofos fundadores. Platão

esconjurará as idéias para um outro mundo, servindo de alvo para a crítica de Antístenes, crítica

que o eternizará. Aristóteles não viu como se desfazer das idéias e as trouxe para o mundo

sensível na qualidade de formas inteligíveis. As conseqüências dessas aporias na linguagem são

notórias: Platão fez das idéias os referentes inequívocos dos nomes; Aristóteles precisou da

manobra das Categorias; sem as idéias, Antístenes teve de se agarrar a um discurso único

(oikeîos lógos)

422
263 d.
423
De Anima, 428 a.
187

Decleva Caizzi atribui uma posição materialista à concepção metafísica de

Antístenes de uma realidade composta de elementos materiais. Antístenes, de forma alguma, está

preocupado, quando se trata da realidade e dos nomes que a manifestam, com o aspecto material

das coisas, mas sim no uso que fazemos das afecções que as coisas produzem na nossa alma,

porque isso será o ponto de partida para a investigação que levará ao conhecimento rigoroso dos

conceitos morais. Por outro lado, o aspecto realmente material será entendido como corpo, esse

sim sujeito ao trabalho que lhe é próprio para seu fortalecimento. Mesmo assim não há uma

separação entre o corpo e alma, não podemos exercitá-los separadamente, há que exercitar os

dois. Vamos tentar trabalhar a posição, defendida por Brancacci, que não aceita a idéia de que

Antístenes reduzia tudo a elementos materiais. Sua metafísica seria entendida como materialista e

sensista, desconhecendo o princípio formal, que é o único inteligível. Essa é mesmo a idéia com a

qual se descreve Antístenes nos manuais de filosofia.424

Como comenta Reale:

[Os filósofos seguidores de Antístenes] “falam do modo como falam, reduzindo tudo a
elementos materiais, e fazem daquilo que é forma425uma parte material; mas isso não é
possível porque a mistura e a composição (dos elementos), consideradas justamente
enquanto mistura e composição, são princípios formais, e como princípios formais não
podem derivar nem ser constituídos pelos elementos dos quais são, respectivamente, a
mistura e a composição. Em suma: a posição dos acima citados filósofos reduz aquilo
que é princípio formal a mero elemento material, e nisso consiste o erro deles!”

Retomemos o trecho da passagem da Metafísica comentado no capítulo

anterior, em que Aristóteles dialoga com os antistênicos apedeutas a respeito da definição.

Veremos agora, em particular, como o materialismo de Antístenes se torna um problema de

424
Na Historia de la Filosofía, de Hirschberger (1977, p. 83) se lê: “Antístenes é, com efeito, no terreno
epistemológico um sensista e em metafísica um materialista”.
425
Os itálicos são do autor.
188

interpretação textual e até mesmo de estabelecimento do próprio texto. Por tal razão, vamos citar,

primeiramente, o trecho conforme a lição de Alexandre426. Traduzimos assim:

E tampouco o homem é simplesmente o animal e o bípede, mas, dado que estes são
matéria, deve haver algo além deles, algo que não é elemento nem deriva de elemento,
mas [a essência] que, sendo dispensada a matéria, eles acolhem. E se isso, então, for sua
causa, a saber, essências, acolheriam isso como a própria essência.427

Os problemas estão nas frases: “mas [a essência] que, sendo dispensada a

matéria, eles acolhem” [hē ousía] hò exairoûntes tēìn hýlēn légousin, ou seja, se hē ousía deve ou

não ser colocado entre colchetes e qual o objeto (hò e tē¿n hýlēn)a ser atribuído a cada um dos

verbos (exairoûntes e légousin); e “[não] acolheriam isso como a própria essência” tēìn ousían

[ou] légoien, ou seja, se se deve ou não introduzir a negação ou, que seria uma conseqüência da

opção por um ou outro objeto de cada um dos verbos.

Quanto ao caso de [hē ousía], ser colocada a palavra entre colchetes quer dizer

que não faria parte do texto e entra apenas para tornar claro que Aristóteles quer dizer com esse

“algo que não é elemento nem deriva de elemento”, esse algo é a essência. Jaeger428 considera que

a omissão de hē ousía em nada prejudica a compreensão, já que Aristóteles não precisaria

antecipar o que ele vai dizer na linha 14, ou seja, tēìn ousían légoien. E seu comentário logo une

a isso a interpretação do objeto de légousin, que seria hò, diz ele: “ou melhor, o verbo hò...

légousin aqui circunscreve a noção de toû eídous, como já entendia Alexandre”.

426
1891. AF 44 B.
427
H 3 1043 b 10-14. AF 44 A. ou)de\ dh\ o( aÃnqrwpo/j e)sti to\ z%½on kaiì di¿poun, a)lla/ ti deiÍ eiånai oÁ
para\ tau=ta/ e)stin, ei¹ tau=q' uÀlh, ouÃte de\ stoixeiÍon ouÃt' e)k stoixei¿ou, a)ll' [h( ou)si¿a]: oÁ
e)cairou=ntej th\n uÀlhn le/gousin. ei¹ ouÅn tou=t' aiãtion tou= eiånai kaiì ou)si¿aj, tou=to au)th\n aÄn th\n
ou)si¿an le/goien. Esta é a versão do fragmento, em que Decleva Caizzi segue Alexandre, cuja comentário vem a
ser o fragmento 44 B.
428
1985, p. 170.
189

A questão se dá, portanto, quanto a determinar quais os respectivos objetos

diretos dos verbos exairoûntes (dispensar) e légousin (acolher): se o pronome hò [hē ousía]

(essência) e tēìn hýlēn (matéria), ambos acusativos, portanto, objetos diretos, se prendem a um ou

outro verbo. Observemos que o pronome hò tem como antecedente stoikheîon (elemento) por ser

neutro, mas se entende que aquilo que não é elemento nem deriva de elemento (oúte dè

stoikheîon oút' ek stoikheîou) é a ousía, daí este termo aparecer ou não nas edições entre

colchetes. A decisão por esse ou aquele dos objetos levaria a comprensões opostas do texto; se o

objeto de exairoûntes for tomado como sendo tēìn hýlēn e o de légousin for hò [ousía], o trecho

seria assim entendido: “dispensando a matéria acolhem a essência”; se o objeto de exairoûntes

for tomado como sendo hò [ousía] e o de légousin for tēìn hýlēn, o trecho seria entendido como:

“dispensando a essência acolhem a matéria”.

Na segunda frase, a questão, uma conseqüência do problema da primeira frase,

é saber se se atribui a negação ou ao verbo légoien. Se interpretamos como “dispensando a

essência”, obviamente deve ser introduzida a negação.429

Para nós, o problema doutrinal que está em questão é o seguinte:

a) Aristóteles está tratando da essência das coisas materiais como ato e forma;

429
Nos manuscritos Ab P Alp lemos le/goien; ou) le/goein aparece em E, em nota à margem (gra/fetai).
190

b) ele, na passagem, está a lidar com os antistênicos, e estes não admitem a

essência como forma (qualidade), que tudo é uma questão de composição de elementos, e nesse

aspecto concorda com eles que as coisas materiais são resultado de tal composição;

c) assumir a essência das coisas materiais como ato e forma, no entanto, o leva

a concordar também com os platônicos a respeito da necessidade de um princípio formal, pois

para ele, a configuração da realidade apenas através de composição de elementos não explicaria a

permanência da forma, como vai considerar no parágrafo entre parênteses: “É necessário que essa

essência seja eterna...”430

Assim, para alguns autores, a introdução no texto do termo ousía, entre

colchetes, se tornaria necessária para que se entenda que Aristóteles vai expor os dois aspectos

que se encontram nas coisas sensíveis, o aspecto material elementar e o aspecto formal imutável.

Isso colocaria Aristóteles diante de dois adversários com os quais concordava em certo aspecto.

Se lemos: “dispensando a matéria, acolhem a essência”, nesse caso Aristóteles estaria se

referindo aos platônicos; se lemos: “dispensando a essência, acolhem a matéria”, nesse caso

Aristóteles estaria se referindo aos antistênicos.

O problema textual da introdução ou omissão de ou na frase tēìn ousían...

légoien se forma pela necessidade de comprovar o materialismo de Antístenes: tēìn ousían ou

légoien, a saber, os antistênicos “não acolhem a essência (ousía)”. O princípio formal é que

unifica os elementos e esse princípio é a essência . Já nos fragmentos de Antístenes publicados

430
H 3 1043 b 14. a)na/gkh dh\ tau/thn h)\ a)i/dion ei)=nai.
191

por Decleva-Caizzi há a omissão de ou: tēìn ousían légoien, a saber, os platônicos “acolhem a

essência”.431

Num certo sentido, para nós, não é de se estranhar essa dificuldade no texto já

que Aristóteles, nesse momento, está realmente discutindo não só com Antístenes, mas também

com Platão, que logo a seguir, como vimos suficientemente, entra em questão através de

parênteses sobre a eterna investigação e eterno problema, que é o ser? Ou melhor, que é ousía?

A teoria hilemórfica foi a tentativa de Aristóteles de conciliação das doutrinas,

mas a sua filiação a Platão, torna este também um dos contendores. Resumindo a passagem da

Metafísica de Aristóteles em que se dá o confronto dos três filósofos, de forma radicalmente

simplificadora se poderiam esquematizar as três doutrinas como segue. A doutrina de Antístenes

prescindiria do princípio formal, reduzidas as coisas a uma composição de elementos materiais,

que não indicam propriamente a ousía. A doutrina de Platão considera que a ousía é

necessariamente eterna e constitui o princípio formal absoluto; sendo necessariamente eterna,

431
De tal modo teríamos, até o ponto em que haja algumas anotações à margem (gra/fetai) ou variantes não
pertinentes ao problema, duas lições para H 3 1043 b 10-4 que podem se opor. 1) A de Alexandre (Al) e do Códice
Laurentianus (Ab): ou)de\ dh\ o( aÃnqrwpo/j e)sti to\ z%½on kaiì di¿poun, a)lla/ ti deiÍ eiånai oÁ para\ tau=ta/
e)stin, ei¹ tau=q' uÀlh, ouÃte de\ stoixeiÍon ouÃt' e)k stoixei¿ou, a)ll' [h( ou)si¿a]: oÁ e)cairou=ntej th\n uÀlhn
le/gousin. ei¹ ouÅn tou=t' aiãtion tou= eiånai kaiì ou)si¿aj, tou=to au)th\n aÄn th\n ou)si¿an le/goien. Lição que
é seguida por Jaegger e Decleva Caizzi, e que aponta para os platônicos. Esta lição é conhecida como a dos
intérpretes antigos, entre os quais, Aquino.
2) A dos Códices Parisinus (E) e Vindobonensis (J) e do consenso de E e J (P): ou)de\ dh\ o( aÃnqrwpo/j e)sti to\
z%½on kaiì di¿poun, a)lla/ ti deiÍ eiånai oÁ para\ tau=ta/ e)stin, ei¹ tau=q' uÀlh, ouÃte de\ stoixeiÍon ouÃt' e)k
stoixei¿ou, a)ll' h( ou)si¿a: oÁ e)cairou=ntej th\n uÀlhn le/gousin. ei¹ ouÅn tou=t' aiãtion tou= eiånai, kaiì
ou)si¿a tou=to, au)th\n aÄn th\n ou)si¿an ou) le/goien. Que traduzimos: “E tampouco o homem é simplesmente o
animal e o bípede, mas, dado que estes são matéria, deve haver algo além deles, algo que não é elemento nem deriva
de elemento, mas a essência, que, sendo dispensada, eles acolhem a matéria. E se isso, então, for sua causa, e isso é
essência, não acolheriam a própria essência. Lição que é seguida por Schwegler, Reale, Angioni, e que aponta para
os materialistas. Esta interpretação é conhecida como a dos modernos.
192

prescinde do princípio material. Para Aristóteles, há de fato elementos primeiros (prō¿ton stoi-

kheîon) e a ousía é necessariamente432 eterna, mas ligada, na qualidade de um princípio formal,

em composição (synthéton) com um princípio material; tenho um princípio material, ou seja, a

matéria, ou melhor, ainda, um gênero, matéria que será especificada pelo princípio formal,

permitindo assim a definição, lógos.

Porém, tal resumo simplificador do que já tem sido dito é enganador, pois não

traz nele em sua inteireza a dimensão da linguagem. Na verdade, a descrição por mais cristalina

que for das três doutrinas que constituem maravilhas do engenho humano de interpretar a

realidade se tornará baça quando se vir às voltas com a opacidade da linguagem. Todo esse

agenciamento ad gustum de matéria, forma, elementos e ousía se embaralha quando se defronta

com a linguagem, que faz do ser um efeito do dizer433. Não é, portanto, sem razão que o antigo

discípulo de Górgias colocará como princípio do conhecimento a investigação da linguagem. Não

é tampouco, contemporaneamente a nós, sem razão que Aubenque, quando vai tratar da

linguagem e do ser, coloca em cena de maneira privilegiada Antístenes e o coloca na genealogia

de Górgias.

De tal sorte, para Antístenes, não é a essência da coisa que é dita, essência que

se acompanha, conforme a lição das categorias de Aristóteles, de notas acidentais ou de

qualidades (poiótēs). Não há uma dada coisa que é passível de ser definida pelo discurso. Para

Antístenes só definimos qual (poîos) é a coisa, como testemunha Aristóteles no fragmento

transcrito acima. É esse “qual” que temos como uma imagem mental (phantasía) que se forma a

432
V. n 23.
433
Barbara Cassin, 1998, p. 66.
193

partir daquilo que afeta a alma, aquilo que na coisa nos aparece, como o próprio termo indica,

aquilo que se nota na coisa.434

A investigação do nome, que é o princípio da aprendizagem, do conhecimento,

se faz observando o uso dos nomes (khrē½sis tō½n onomátōn) e o uso da manifestação das coisas, a

saber, das imagens (khrē½sis tō½n phantasiō½n)

Uso é um conceito filosófico marcadamente antistênico, segundo numerosos

fragmentos. O título de um tratado lógico-dialético de Antístenes oferece o testemunho da sua

atenção ao problema da análise dos termos; estamos nos referindo ao Sobre o uso dos nomes435.

Quanto ao uso da manifestação das coisas, ou da aparência, da imagem, citamos Arriano, que diz

que foi Diógenes de Sinope que atribuiu a expressão a Antístenes.

Assim se adquire a liberdade. Daí costumava dizer que: “desde que Antístenes me
tornou livre, não sou mais escravo”. Como Antístenes me tornou livre? Ouça o que ele
diz: “Antístenes me ensinou o que me pertencia a mim e o que não era; posses não
pertencem a mim, nem parentes, serviçais, amigos, nem reputação, nem lugares
familiares, nem modo de vida, tudo isso pertence aos outros”. O que então pertence a
você? “O uso das imagens mentais, isso é manifesto para mim, que eu possuo isso livre
de obstáculos, de compulsão, pessoa nenhuma pode colocar embaraços no meu caminho,
pessoa nenhuma pode me forçar a usar aparições de forma diferente da que eu quero.”
Quem então tem algum poder sobre mim? Filipe ou Alexandre, ou Perdicas ou o Grande
Rei? Como eles têm tal poder? Pois se um homem está para ser dominado por outro
homem, ele já deve estar há muito tempo dominado pelas coisas.436

434
A lógica chamará de nota característica.
435
V. Anexo A – Catálogo Laerciano.
436
Arrian. Epit. diss. III, 24. AF 118. [ouÀtwj e)leuqeri¿a gi¿netai. dia\ tou=to eÃlegen oÀti "e)c ou m'
¹Antisqe/nhj h)leuqe/rwsen, ou)ke/ti e)dou/leusa". pw½j h)leuqe/rwsen; aÃkoue, ti¿ le/gei: "e)di¿dace/n me
ta\ e)ma\ kaiì ta\ ou)k e)ma/. kth=sij ou)k e)mh/: suggeneiÍj, oi¹keiÍoi, fi¿loi, fh/mh, sunh/qeij to/poi,
diatribh/, pa/nta tau=ta oÀti a)llo/tria." so\n ouÅn ti¿; "xrh=sij fantasiw½n. tau/thn eÃdeice/n moi oÀti
a)kw¯luton eÃxw, a)nana/gkaston: ou)deiìj e)mpodi¿sai du/natai, ou)deiìj bia/sasqai aÃllwj xrh/sasqai
hÄ w¨j qe/lw.] ti¿j ouÅn eÃti eÃxei mou e)cousi¿an; Fi¿lippoj hÄ ¹Ale/candroj hÄ Perdi¿kkaj hÄ o( me/gaj
basileu/j; po/qen au)toiÍj; to\n ga\r u(p' a)nqrw¯pou me/llonta h(tta=sqai polu\ pro/teron u(po\ tw½n
pragma/twn deiÍ h(tta=sqai"
194

Note-se na citação como a finalidade da investigação do uso é sempre atingir a

virtude. Conhecido o reto nome de tal manifestação, eu tenho a oportunidade de proferir um

discurso que só produz raciocínios irrefutáveis (análōtoi logismoí), que constituem um bem que

não se pode perder. Esse discurso é o que Antístenes vai considerar o discurso por excelência, a

enunciação própria. Essa concepção de discurso tem como conseqüência apenas que não há

contradição possível se usamos os termos próprios a cada coisa.

Aubenque437 observa que Aristóteles quando vai tratar da significação, no De

interpretatione, não está interessado, para nós pelo menos prima facie, na relação entre nomes e

coisas (entes), mas na relação dos sons com as imagens na alma, os sons seriam símbolos de

“impressões das coisas na alma”.438 Aristóteles vai dizer então que essas impressões, “esses

estados da alma são as imagens”.439 Parece-nos que ao colocar a investigação do uso dos nomes e

do uso das imagens mentais, no princípio da educação, Antístenes não avança desse patamar para

o patamar da relação entre nomes e coisas, daí não ser de estranhar que tenham trilhado caminhos

diversos na concepção do objeto de uma ciência do ser em geral. A ênfase dada por Antístenes é

na relação entre os corpos e as almas, o conhecimento dos corpos, das coisas, não é o objeto da

ciência, o objeto da ciência é a alma. No caso do homem, se a alma é fortalecida pelos análōtoi

logismoí, o corpo também deve acompanhar esse fortalecimento440. Há um fragmento de

437
1983, p. 107.
438
De Interp. I 16 a 5. paqh¿mata th½j yuxh½j.
439
Idem. I 16 a 7. kaiì wÒn tau=ta o(moiw¯mata pra/gmata.
440
No seu trabalho primoroso sobre o cinismo, “Educação e Política. ÃAskhsij e xarakth/r: as duas faces da
moeda cínica”, (p. 34-35), Germanus Strazzeri assim expressa essa doutrina da complementaridade do exercício
físico e do exercício do raciocínio: “[Há] a necessidade de um exercício completo, isto é, nem excessivamente
somático, nem exclusivamente psíquico. Pois os efeitos são deletérios, ou teremos como resultado um homem forte e
apto aos atos corajosos, mas sem poder deliberar sobre estes mesmos atos, ou teremos um homem incapaz de fazer
195

Antístenes num vaso que diz: “quem deseja tornar-se virtuoso deve exercitar o corpo com a

ginástica e a alma com os raciocínios”441

É preciso enfatizar que só quem conhecer o oikeîos lógos pode aventurar-se

com sucesso a produzir os discursos múltiplos. A aprendizagem que conduz a tal discurso eleva o

homem, e foi a que Héracles recebeu de Prometeu, é a aprendizagem divina. O conhecimento da

enunciação própria, por sua parte, é que permite a Odisseu ser um ardiloso produtor de discursos

múltiplos em múltiplas situações.

algo corajoso ou virtuoso, contudo dotado de grande poder de determinação de objetivos e de argumentação sobre
este, dificultando quem o escuta de perceber que, por trás de sua virtude discursiva, nada de concreto será realizado.”
441
PKöln 66 II 2. dei= tou\j me/llontaj a)gaqou\j a)/ndraj gi/nesqai to\ me\n sw=ma gumnasi/oij a)skei=n,
<th\n> de\ yuxh\n lo/goij. Para ilustrar essa importância do fortalecimento da yuxh¿, temos o seguinte testemunho
no Banquete de Xenofonte: Sócrates – Agora cabe a ti, ó Antístenes, nos dizer como te orgulhas da tua riqueza com
bens tão parcos. Antístenes – Porque, senhores, acredito que a riqueza e a pobreza não estão nas propriedades dos
homens, mas em suas almas... Vale notar que tal riqueza propiciou-me ser livre. Pois assim é também Sócrates, junto
de quem eu mesmo adquiri isso, ele me engrandeceu sem número ou peso, mas o tanto que pudesse carregar doou-
me largamente. Eu mesmo agora nada invejo, mas para todos os amigos exibo a abundância de quem mais nada
inveja e compartilho com quem quiser a riqueza que tenho em minha alma. V. Anexo E – A Liberdade do Filósofo.
2.2 NÃO É POSSÍVEL CONTRADIZER

2.2.1 A discursividade sofística

Barbara Cassin, ao se propor traduzir o poema sobre a natureza ou sobre o ente

de Parmênides, diz:

Tento... traduzir de forma constante légein por ‘dizer’, e lógos por ‘discurso’ ou por
‘dizer’: é preciso que se entenda subjacente a essa tradução a discursividade de um
percurso, e, pois, uma afinidade com a via do ser como percorrível e a percorrer. Eles
estão incontestavelmente do lado da verdade. 442

A via, o caminho, o percurso, só é percorrível porque está incontestavelmente

do lado da verdade. Como se trata do caminho do ser, o caminho da verdade, dizer seria dizer a

verdade, não sendo possível dizer o falso; sem dúvida, o que não pode ser dito, o não-ser. Ao

impor o discurso ao caminho, estava ela interditando443 a contradição?

A única ocorrência do verbo légein ligado a noeîn, e os dois ligados a eînai, que

resta do poema, está no fragmento VI, 1.: “Precisa que o dizer o pensar e o que é seja”.444 É a

conhecida “unidade trinitária”445 de Parmênides: ser, pensar, dizer.

442
1998, p. 155.
443
“Interdição” não é um nome ingênuo. Sabe-se a radicalidade do interdito, tanto no terreno da justiça como da
religião. A interdição é a abolição universal do direito: é a redução ao nada.
444
xrh\ to\ le/gein to noi=em t’ e)on e)/mmenai. Usamos a tradução do poema feita pelo professor Fernando Santoro
(2006).
445
A expressão é atribuída a Hoffmann por Barbara Cassin (1998, p. 156).
197

Em grego446 proferir (dizer) é dito por meio de três termos que se usam de

acordo com o nível da relação do proferimento com o que profere:

1. phēmí, quando o que profere tem autoridade, quando profere o discurso da

convicção, quando profere uma declaração sagrada: poder-se-ia entender

como “revelar”;

2. légō, quando o que profere conhece aquilo que profere, quando expõe um

argumento, poder-se-ia entender como “dizer”;

3. épō, quando o que profere apenas quer anunciar ou comunicar algo a

alguém, poder-se-ia entender como “palrar”.

É importante essa distinção porque Parmênides joga o tempo todo no poema

com essa relação entre o que profere (a deusa) e a oportunidade do proferimento (revelação,

interdição, anúncio). O que acarreta problemas de tradução. É óbvio que sempre será impossível

encontrar um termo literal, mas, como ocorre, em toda tradução, certos termos algumas vezes têm

de ser traduzidos não literalmente, mas por meio de uma das camadas da língua, a saber, os

recursos fônicos, morfológicos ou sintáticos. Essa distinção dos três níveis de relação do ato de

proferir e proferimento vai surgir, por exemplo, na passagem crítica do discurso do ser (légō)

para o discurso da opinião (épō) em VIII, 50-2:

Aqui cesso para ti um discurso fiável e um pensamento


acerca da Verdade; a partir daqui aprende opiniões
de mortais, ouvindo o mundo enganoso de minhas palavras.447

446
Segundo H. Fournier. Apud Barbara Cassin, (1998), p. 154.
447
e)n t%= soi pau/w pisto\n lo/gon h)de\ no\hma / a)mfij a)lhqei/hj: do/caj d’ a)pó\ tou=de brotei/aj /
ma/nqane ko/smon e)mw=n e)pe/wn a)pathlo\n a)kou/wn.
198

Nessa passagem, lógos e nóēma se reportam explicitamente à verdade. O lógos

é, portanto, fiável. Se o jovem pode fiar no lógos, o mesmo não se dá com a opinião dos mortais.

A opinião é enganadora, que já não diz, mas apenas palra (epéōn).

Até onde sabemos, para analisar a definição possivelmente antistênica de

ciência como metà lógou alēthē½ dóxan448, talvez não se tenham levado em conta essas distinções

do uso dos nomes gregos para indicar o ato de proferição. Nessa definição parece haver um

procedimento em que essas particularidades da língua grega entram em jogo. A concepção de

ciência de Antístenes parece ser a protagórica, de que conhecimento é sensação, ou opinião. Mas

essa opinião, se for verdadeira, a verdade só pode ser proferida pelo lógos (que é fiável) e não

pelo épos (que é enganador). Haveria uma conciliação em Antístenes das duas partes, da verdade

e da opinião, do poema através da linguagem? Isso seria possível se Antístenes partisse de uma

confiança inabalável em légein e lógos. E parece que tal ocorreu, tal confiança o teria levado a

interditar toda e qualquer falsidade, toda e qualquer contradição.

Barbara Cassin enfatiza que a deusa ordena ao jovem de se afastar da via

contraditória da opinião e julgar através do lógos (krînai dè lógōi), em VII, 1. Mas não como um

apelo à razão, mas sim, pensamos, evitar na decisão (krísis) a linguagem da opinião, pois esta

pode palrar sobre o ser como sobre o não-ser. Daí, talvez, Antístenes pensar que se duas pessoas

estão aparentemente em contradição, não falam da mesma coisa. Estão no campo do épos e não

do lógos. O que seria marcadamente antistênico (com o pano de fundo do poema), já que não

448
Teeteto, 201 c-d.
199

haveria separação entre verdade e opinião, mas se distinguiriam pela diaíresis, segundo a lição de

Pródico, o que levaria a decisão ao arbítrio da linguagem.

É assim no arbítrio da linguagem que se faz a interdição no poema do caminho

da opinião, das aparências. O lógos só pode dizer que “há ser mas nada não há” (VI, 1-2).449 Este

o caminho da verdade.450 O não-ser é impensável e indizível. A aceitação da contradição é uma

forma de se assumir o não-ser451. De fato, se não posso dizer o não-ser toda contradição se torna

impossível. E Aristóteles concede no fragmento de Metafísica D, que logo citaremos, que isso é

justamente o que ocorre. No entanto, ele, em detrimento de Antístenes considera isso uma forma

simplista de ver as coisas.

Continuando o percurso do poema, pensamos então que só há dois caminhos:

1) O da verdade – o ser é e o não-ser não é.

2) E o da opinião – que pode ser falso: o ser não é, o não-ser é; ou verdadeiro:

o ser é e o não-ser não é.

No primeiro caminho, que é o do conhecimento da deusa (em Antístenes é o

divino a que deve subir o homem para sair de sua condição de besta), ser, pensar, dizer são uma

trindade inseparável. No segundo caminho, que é o da opinião, o conhecimento dos mortais (em

Antístenes é o conhecimento humano) deverá ser posto de acordo, se for uma opinião verdadeira,

449
e)/sti ga\r ei)=nai, / mhde\n d’ ou\k e)/stin
450
Optamos que há dois caminhos para o conhecimento, como defendem Cordero (1991) e Santoro (2006). Esta
leitura nos favorece na interpretação que fazemos da conciliação de opinião e verdade intentada por Antístenes.
451
Com todos os conhecidos embaraços em que se meteu Platão com o parricídio: “em certo sentido, o não-ser é; e
que, por sua vez, o ser, de certa forma, não é”. to/ te mh\ o)\n w(j e)/sti kata/ ti kai\ to\ o)\n au)= pa/lin w(j ou)k
e)/sti p$ (Sofista, 241 d).
200

com o lógos (metà lógou). De tal forma, a decisão não será do lógos no sentido racional, mas

como enunciação própria, pois só esta diz mesmo o ser, “pois o mesmo é a pensar e a ser” (III).452

Ou como na palavra da deusa (palavra em que o ser é revelado, o termo usado é pephastiménon,

forma de phēmí), em VIII, 34-6):

O mesmo é o que é a pensar e o pensamento de que é.


Pois sem o ente, no qual está apalavrado,
não encontrarás o pensar.453

Barbara Cassin, diante das dificuldades que se apresentam para identificarem-se

ser, pensar, dizer, diz que estamos diante de uma “ontologia da gramática” e do “heroísmo do

ente”.454 É a distinção, na linguagem, entre “ente” e “é” (a diferença ontológica) que permite tal

identidade. Torna uno o discurso múltiplo, torna possível a retórica heróica, diríamos nos

reportando à relação da linguagem e do ente em Antístenes.

Segundo a autora, a gramática torna o ente heróico desta forma:

O que importa, do meu ponto de vista, é que o ‘ente’ implica, encerra, mantém em si, a
enunciação do ‘é’. Só o ente está e estará455 em posição de ser, de modo que pensar o ‘é’,
é se representar esta entidade, esta identidade, que é o ente, isto é, imaginá-lo num
espaço e num tempo não dóxicos. 456

A enunciação (lógos) do “é”, um discurso fiável da verdade, é possível porque é

o discurso do ente, que pode imaginar o “é” fora da dóxa. Porém, voltando a VIII, 50-2, não

452
to\ ga\r au)to\ noei=n e)sti/n te kai\ ei)=nai.
453
Santoro (2006). tau)to\n d’ e)sti noei=n te kai\ ou(\neken e)/sti no/hma. / ou) ga\r a)n
/ eu tou= e)o/ntoj, e)n %(=
pefatisme/non e)/stin, / eu)rh/seij to\ noei=n.
454
1998, p. 163.
455
Tivemos de usar, por “ontologia da gramática”, estar, porque, em português, a expressão em posição de (tradução
do francês à même de) não pode ser dita com o verbo ser.
456
1998, p. 164.
201

podemos esquecer que a deusa não se detém no lógos, ela, como não podia deixar de fazer,

entende que tinha de ensinar a opinião dos mortais. Ensino que é feito, não nos termos do lógos,

mas do épos apatēlós, o palrar enganoso. “Enganoso”, adjetivo terrível com que Platão

desqualifica a arte dos sofistas. Agora a deusa não revela, mas ensina. A introdução do épos

carrega alguns problemas para Barbara Cassin.457 Esta considera “brutal” o entendimento de

Aubenque da oposição (fiável/enganoso) entre lógos e épos como uma antítese458. Não

concordamos que não haja uma oposição, como quer a autora, nem que seja épos elevado à

condição de lógos, como pensa Aubenque459. Na unificação do poema, o jogo dos termos gregos

de proferimento, nos parece, têm uma função muito importante. É a variação constante nos níveis

da linguagem que vai permitir que o percurso não se detenha na fixidez do ser. E mais, que a

intercessão da deusa ganhe significado no aspecto pedagógico-moral do poema. Quanto aos

comentários dos autores, pensamos que, em primeiro lugar, se Aubenque coloca os termos como

“uma clara antítese”, há um equívoco no uso dos nomes, a saber, épos e lógos não se

contradizem, já que têm algo em comum, ambos são atos de proferição. Se for visto como

antítese é sim “brutal”, mas, se não for, a aceitação da oposição entre os campos não invalida a

interpretação de Barbara Cassin: épos está ligado ao momento em que designa a epopéia

homérica. Concordamos com ela que o tom épico do poema da linguagem do ser não pode deixar

de ser uma marca fundamental. E isso é importante, quando se trata de Antístenes, pois é através

desse épos homérico que ele vai sair do rigor da enunciação própria, que acaba sendo um peso

insuportável (dysbástaktos) para os que não são sophós460, para dar lugar ao discurso múltiplo que

unifica de Odisseu.

457
1998, p. 169.
458
1987, p. 119.
459
Ibidem Idem, n. 52.
460
OL 116.
202

No caminho da opinião, em que tudo sempre muda, está o nome, como lemos

em XIX, 3:

os homens estabeleceram-lhes um nome, assinalando a cada uma.461

Queremos comentar o termo epísēmos; este, pensamos, não quer dizer

exatamente um assinalamento, mas uma marca. É, por exemplo, o cunho de uma moeda.

Considera-se que sendo o caminho da opinião os nomes carecem de importância, são meros

nomes. Não nos parece que os nomes sejam sinais das coisas, nem que sejam resultado de uma

opinião falsa. Como se lê no Teeteto, “Só como imóvel, de fato, é que o todo deverá chamar-

se”.462 Ao se tratar de Antístenes, o nome não pode ser considerado um sinal, nem tampouco pode

ser menosprezado. Nessa concepção de mundo em que tudo é mistura de elementos e que cada

elemento tem um nome naturalmente apropriado, o nome é o índice da coisa, sem o qual nos

perderíamos na variedade das composições mundanas. As coisas brotam e acabam, as

composições mudam, só o nome cunhado na coisa estabelece seu valor. As coisas anônimas ou

são desprezadas ou temidas. É o cunho do nome que estabiliza o caminho enganoso da opinião.

De tal sorte, se pode pensar, seguindo Barbara Cassin463, que no poema, ser e

dizer se manifestam464 simultaneamente, o que seria a “ontologia”. Ou o que já se poderia dizer

sofístico: o ser só se manifesta ao ser dito. O mundo só se produz através das palavras. O que
461
toi=j d’ o)/nom’ a)/nqrwpo kate/qent’ e)pi/shmon e(ka/st%
462
180 e. oiâon a)ki¿nhton tele/qei t%½ pantiì oÃnom' eiånai. Este verso de Parmênides, citado por Platão,
apresenta uma variante: ou)/lon a)ki¿nhton t’ e)/menai: t%= pa/nt’ o)/nom’ e)/stai, atestada por Simplício, in Ph, 9,
87. Esta lição é seguida por Barbara Cassin e Fernando Santoro, nas suas traduções e edições do poema.
463
1998, pp. 173-4.
464
O termo francês é uma forma do verbo déployer.
203

permite, antistenicamente, dizemos nós, combinar palavras e mundos. O princípio de não-

contradição aristotélico é um exemplo de embaraço dentro dessa mistura; a ontologia se confunde

com a própria linguagem e sua intimidade, como fraseia Barbara Cassin. É evidente que as

palavras podem ser combinadas tanto para dizer o falso, como para dizer o verdadeiro, no

caminho da opinião. Mas aqueles que conhecem os cunhos impressos nas coisas pelos nomes não

passarão nunca por moedeiros falsos.

É sobre o problema de dizer o falso que Aristóteles está discutindo, quando cita

os paradoxos de Antístenes de que não é possível dizer o falso, nem contradizer:

... uma enunciação falsa é aquela que, justamente enquanto falsa, é enunciação de coisas
que não são: por isso toda enunciação é falsa quando referida a coisa diversa daquela
acerca da qual é verdadeira: a definição do círculo, por exemplo, é falsa se referida ao
triângulo. Em certo sentido, de cada coisa existe uma única enunciação, que é a de sua
essência; noutro sentido, existem muitas, porque cada coisa e a coisa com certa afecção
são, de certo modo, idênticas: assim, por exemplo, “Sócrates” e “Sócrates músico”; mas
a enunciação falsa é, absolutamente falando, enunciação de nada. Por isso, Antístenes
considerava, de maneira simplista, que de cada coisa só se podia afirmar sua enunciação
própria, uma enunciação única de uma coisa única; do que deduziu que não é possível a
contradição e, até mesmo, que é praticamente impossível dizer o falso.465

Esse texto é objeto do seguinte comentário de Alexandre:

Dizendo isso, [Aristóteles] acusa Antístenes que tolamente sustentava que não se
pudesse formular nenhuma enunciação sobre outra coisa que a que fosse a própria coisa,
levado ao erro pelo fato de que a enunciação falsa não é enunciação de nada em sentido
absoluto; de fato, se não é enunciação em sentido absoluto e próprio, nem por isso não é
de fato. Antístenes pensava que tudo o que é se pudesse exprimir apenas com a
enunciação própria, e que só havia uma para cada coisa, a própria, e que aquele que

465
D 1024 b 26 ss. pra/gmata me\n ouÅn yeudh= ouÀtw le/getai, hÄ t%½ mh\ eiånai au)ta\ hÄ t%½ th\n a)p' au)tw½n
fantasi¿an mh\ oÃntoj eiånai: [AF 47 A. lo/goj de\ yeudh\j o( tw½n mh\ oÃntwn, v yeudh/j, dio\ pa=j lo/goj
yeudh\j e(te/rou hÄ ou e)stiìn a)lhqh/j, oiâon o( tou= ku/klou yeudh\j trigw¯nou. e(ka/stou de\ lo/goj eÃsti
me\n w¨j eiâj, o( tou= ti¿ hÅn eiånai, eÃsti d' w¨j polloi¿, e)peiì tau)to/ pwj au)to\ kaiì au)to\ peponqo/j, oiâon
Swkra/thj kaiì Swkra/thj mousiko/j (o( de\ yeudh\j lo/goj ou)qeno/j e)stin a(plw½j lo/gojŸ: dio\
¹Antisqe/nhj %Óeto eu)h/qwj mhqe\n a)ciw½n le/gesqai plh\n t%½ oi¹kei¿% lo/g%, eÁn e)f' e(no/j: e)c wÒn
sune/baine mh\ eiånai a)ntile/gein, sxedo\n de\ mhde\ yeu/desqai.]
204

indicava alguma coisa, e não pertencia àquilo de que era dito ser, era alheio à coisa. Daí
tentou demonstrar que não se pode contradizer; é preciso de fato que aqueles que
contradizem sobre alguma coisa digam coisas diversas, e não é possível formular
diversos sobre a mesma coisa, pelo fato de que uma só é a enunciação de cada coisa.”466

Em resumo, se duas pessoas se contradizem, elas não estão falando da mesma

coisa. Outra conseqüência de não se poder dizer o falso, é que nem mesmo quase não se pode

mentir, pois se dizemos algo que é uma mentira, é mentira apenas para quem ouve, pois o ouvinte

naturalmente (ou ingenuamente?) toma o lógos do interlocutor como o lógos próprio da coisa.

A crítica a Antístenes é feita apontando para a sua dificuldade, como já

dissemos, de distinguir entre predicação acidental e predicação essencial. Ao contrário, nos

parece que, se, para ele, o nome e a coisa são por natureza estreitamente ligados, sua conclusão é

perfeitamente cabível; na linguagem não há lugar para o falso, o contraditório, o definitório.

Proclo, nos comentários ao Crátilo, também dá testemunho da tese de

Antístenes: “Antístenes dizia que não se pode contradizer: cada enunciação diz, expõe a

verdade; de fato quem diz, diz alguma coisa, quem diz alguma coisa diz o que é, quem diz o que

é, diz a verdade.” 467

466
Alex. Afrod. in met. 1024 b 32 p. 434. AF 47 B. ei¹pwÜn de\ tau=ta ai¹tia=tai ¹Antisqe/nhn eu)h/qwj
le/gonta periì mhdeno\j aÃllou le/gesqai¿ tina lo/gon hÄ periì e)kei¿nou ou oi¹keiÍo/j e)sti,
parakrousqe/nta u(po\ tou= to\n yeudh= lo/gon mhdeno\j a(plw½j eiånai lo/gon: ou) ga\r ei¹ mh\ a(plw½j e)sti
mhde\ kuri¿wj, hÃdh kaiì ou)k eÃstin. %Óeto de\ o( ¹Antisqe/nhj eÀkaston tw½n oÃntwn le/gesqai t%½ oi¹kei¿%
lo/g% mo/n% kaiì eÀna e(ka/stou lo/gon eiånai: to\n ga\r oi¹keiÍon: to\n de/ ti shmai¿nonta kaiì mh\ oÃnta
tou/tou periì ou le/getai eiånai, a)llo/trio/n ge oÃnta au)tou=. e)c wÒn kaiì suna/gein e)pei-ra=to oÀti mh\
eÃstin a)ntile/gein: tou\j me\n ga\r a)ntile/gontaj peri¿ tinoj dia/fora le/gein o)fei¿lein, mh\ du/nasqai
de\ periì au)tou= diafo/rouj tou\j lo/gouj fe/resqai t%½ eÀna to\n oi¹keiÍon e(ka/stou eiånai:
467
Proclo in Plat. Crat. c. 37. AF 49. oÀti ¹Antisqe/nhj eÃlegen mh\ deiÍn a)ntile/gein: pa=j ga/r, fhsi¿, lo/goj
a)lhqeu/ei: o( ga\r le/gwn ti le/gei: o( de/ ti le/gwn to\ oÄn le/gei: o( de\ to\ oÄn le/gwn a)lhqeu/ei.
205

O testemunho de Proclo contrasta com o de Aristóteles. Em Aristóteles o que

está em jogo no paradoxo de Antístenes é a existência de uma só enunciação para cada coisa. Já

em Proclo, toda enunciação diz a verdade, sendo assim dois discursos diversos são ambos

verdadeiros, sem levar em conta se o discurso é próprio ou não. Esse problema é aquele em que

se debatia ou se comprazia toda a sofística. E o próprio Aristóteles lida com ele no livro G, na sua

demonstração da validade do princípio de não-contradição.

Quando Aristóteles quer mostrar que o princípio de não-contradição é

indemonstrável, diz que, uma vez que tal princípio é daquelas coisas que não são

demonstráveis468, só pode refutar aqueles que, “por ignorância, consideram que também tal

princípio deva ser demonstrado”.469 Giannantoni470 reporta essa passagem como um fragmento de

Antístenes. Vamos tentar esboçar o que está em jogo na discussão de tal atribuição.

O livro G é escrito como uma refutação aos sofistas; já nos referimos em outra

parte à possibilidade de que o interesse de Aristóteles em refutar a impossibilidade da contradição

tenha surgido por um recrudescimento em época próxima à sua das questões sofísticas. Por outro

lado, não parece que a tese da impossibilidade da contradição fosse produto do pensamento de

Antístenes471, pois, como vimos, a contradição foi objeto da atenção dos sofistas desde tempos

anteriores. Se formos, entretanto, observar a prática discursiva de Aristóteles, teremos talvez

468
G 4 1006 a 8-9. “É impossível que exista demonstração de tudo: nesse caso ir-se-ia ao infinito e,
conseqüentemente não haveria nenhuma demonstração”. oÀlwj me\n ga\r a(pa/ntwn a)du/naton a)po/deicin eiånai
(ei¹j aÃpeiron ga\r aÄn badi¿zoi, wÐste mhd' ouÀtwj eiånai a)po/deicinŸ.
469
G 4 1006 a 5-6. a)ciou=si dh\ kaiì tou=to a)podeiknu/nai tine\j di' a)paideusi¿an:
470
1990, V A 157 vol II, p. 198.
471
No entanto, como vimos, Aristóteles, em Tópicos (I 11 104 b 21) atribui a tese da impossibilidade da contradição
a Antístenes.
206

razão em reportar a Antístenes a refutação que Aristóteles desenvolve: este tem sempre o cuidado

de discutir dentro dos termos do interlocutor. Assim, para colocar Antístenes como interlocutor

visado por Aristóteles, apresentemos algumas possibilidades:

1. Antístenes foi autor de uma obra sobre a contradição, causa de sua dissensão

com Platão.

2. O próprio Aristóteles apresenta, nomeadamente, o pensamento de Antístenes

ligado à contradição.472

3. É o mesmo o motivo que Aristóteles atribui às teses de Antístenes que

questiona: a ignorância (apaideusía, apaídeutos).473

4. A referência a um tratado sobre a verdade474; sabemos que

Antístenes tratou do assunto.

Se isso for verdadeiro, seria a Antístenes que ele estaria se referindo quando diz

que vai refutar não aqueles que estão convencidos das dificuldades, mas que discutem pelo prazer

da linguagem (lógou khárin).475 Para Barbara Cassin, a discussão dos sofistas era sobre as coisas,

mas não era porque fossem à busca de concretude, era porque falavam das coisas. Seriam

retóricos. Mas não algo voltado para o literário e sim para o “discursivo”. A forte ligação entre

ser e linguagem leva a autora a dizer: “É uma tomada de posição tão forte acerca da ontologia e

da metafísica em geral, que ela bem poderia revelar-se filosoficamente não superável”.476 Cassin

aponta então para a terceira tese de Górgias do Tratado do Não-ser: se o ser pode ser conhecido,

472
Em Tópicos, já citado, e no fragmento citado de D.
473
G 3 1005 b 4, G 4 1006 a 6, H 3 1043 b 24.
474
G 3 1005 b 3. “... alguns dos que tratam da verdade”. tine\j peri\ th=j a)lhqei/aj. Ross (1924)e Giannantoni
(1990) propõem essa atribuição.
475
G 6 1011 b 2.
476
2005, p. 16.
207

é incomunicável. Górgias está instituindo as condições de possibilidade de formulação da

discursividade sofística. É preciso entender-se a linguagem de tal forma que ela permita que se

fale das coisas. A única maneira seria unir ser, linguagem e verdade de tal forma que tornasse

impossível dizer o falso ou contradizer. Citamos Barbara Cassin:

Nesse ponto da reflexão sobre o Tratado do Não-ser, o comentador geralmente não pode
deixar de apelar para a confirmação fornecida pela citação de Antístenes, dada por
Proclo em comentário ao Crátilo, de Platão.477 Antístenes dizia que não se deve
contradizer: ‘Pois todo discurso, diz ele, assevera (alētheúei); de fato, aquele que diz diz
algo; ora, aquele que diz algo diz o ente; ora, aquele que diz o ente assevera.478

É, para Barbara Cassin, Antístenes que produz essa que é a “fórmula

emblemática da discursividade sofística”: a equivalência parmenídeo-sofistica entre ser e

verdade.479 Essa fórmula, nos parece, mostra que a análise do pensamento sofístico de Antístenes

se impõe: como uma forma de enfrentar a espinhosa tarefa da filosofia de lidar com a

incomunicabilidade, com a contradição, com a demonstração e com o falso. Em última análise, a

razão de ser da filosofia. A transição da segunda para a terceira tese do mestre Górgias, é o

momento de Antístenes, que entende que é possível conhecer e transmitir tal conhecimento,

exatamente, como vimos, quando temos o domínio do uso da enunciação, não apenas

retoricamente, mas filosoficamente.

477
Segundo Barbara Cassin, os comentadores divergem quanto à passagem do Crátilo que é comentada por Proclo.
Poderia ser, segundo Aubenque, 429 b, a saber,que os nomes, “uma vez que são nomes”, são aplicados com acerto,
dizem o ser. Cassin, no entanto, considera que seja 429 d. Nesta diz Crátilo: “De que modo, Sócrates, dizendo
alguém o que diz, poderá não dizer o que é? Dizer o falso não será dizer o que não é?” Queremos acrescentar que, a
seguir, no diálogo, Crátilo vai mostrar a atitude que fez o seu nome: “Penso que não se pode nem falar”. O contexto
do diálogo, no entanto, nos parece não indicar que a atitude de Crátilo de optar pelo silêncio se deva ao fluxo
heraclítico, mas é a impossibilidade de dizer o falso. Se não se pode dizer a verdade, o melhor é calar.
478
2005, p. 39-40. A citação de Proclo, que constitui um fragmento de Antístenes, AF 49, feita anteriormente, aqui se
repete em outra tradução, a do texto de Barbara Cassin.
479
Idem, p. 41 e p. 44.
208

Assim, todos os discursos, como todas as sensações480, valem e se equivalem. O

dito de Antístenes é tomado como equação sofística, ultra-parmenídica, segundo Barbara

Cassin.481 Equivale, assim, à tese protagórica: “O homem é a medida de todas as coisas”.482 Da

parte da verdade, segundo o Teeteto: “se conclui disso que há perfeita identidade entre

conhecimento e sensação”.483 Da parte da linguagem, se conclui com Górgias: “o discurso é um

grande soberano”.484

Porém a força dessa fórmula de Antístenes, escancarando a posição sofística

quanto à “unidade trinitária”, ser-pensar-dizer, é uma fortaleza que pode ser atacada, algo muito

pouco antistênico.

Vejamos como se refuta o sofista, primeiro Aristóteles, depois Proclo:

Aristóteles parece que vai refutar o sofista aparentemente em seu próprio

terreno: “... pode-se demonstrar, por via de refutação... desde que o adversário diga algo”.485

Porém, para que a refutação funcione é preciso que aquele que diz obedeça uma condição

necessária: produzir um discurso significativo. É o que lemos mais adiante no livro G: “O ponto

480
Barbara Cassin observa em nota que Antístenes faz a cama de Protágoras de uma maneira inteiramente diferente
da de Aristóteles. 2005, p. 39 n.36.
481
Idem, p. 40.
482
152 a. pa/ntwn xrhma/twn me/tron aÃnqrwpon eiånai.
483
160 e. aiãsqhsin e)pisth/mhn gi¿gnesqai.
484
DK 82 B 11 8. lo/goj duna/sthj me/gaj e)sti¿n.
485
12. e)/sti d’ a)podei=cai e)legktikw=j... a)\n mo/non ti le/g$ o( a)mfisbhtw=n.
209

de partida, em todos esses casos, não consiste em exigir que o adversário diga que algo é ou que

não é... mas algo que tenha um significado para si e para os outros”.486

O neoplatônico Proclo também aparentemente está refutando o sofista em seu

próprio terreno, ecoando o Sofista: posso dizer acerca do ser e dizer o falso e o não-ser. Conforme

se lê no contexto da citação de Antístenes: “Deve-se, então, dizer contra ele que o falso também

é, e que nada impede que aquele que diz o ente diga o falso; e, além disso, aquele que diz diz

acerca de algo, e não diz algo”.487

No entanto, nem Aristóteles, nem Proclo, estão refutando Antístenes, apenas

estão introduzindo na filosofia da linguagem indicial e retórica de Antístenes (poder-se-ia dizer

dos sofistas) algumas distinções gramaticais (semaínein, perí tinos), que, na nossa opinião, em

nada alteram a equação sofística radical. Nesta não se trata, nos parece, de questões semânticas,

como quer Aristóteles, nem sintáticas, como quis Platão, em Sofista. A argumentação de Barbara

Cassin, favorável às refutações de Aristóteles e de Proclo, têm o seguinte teor: quanto a

Aristóteles o próprio julgamento dele de Antístenes – este se engana em só admitir o nome e a

enunciação própria, pois se pode falar de algo “por meio de algo diferente”488; quanto à Proclo

recorre a uma distinção da lógica contemporânea a nós: “... é a necessidade de atenção à sintaxe,

como a única que permite ter uma concepção do discurso que não seja imediatamente

referencial”.489

486
G 4 1006 a 18-21. a)rxh\ de\ pro\j a(/panta ta\ toiau=ta ou) to\ a)ciou=n h)\ ei)=nai\ ti le/gein h)\ mh\ ei)=nai...
a)lla\ shmai/nein ge/ ti kai\ au(t%= kai\ a)/ll%.
487
AF 49. r(hte/on ouÅn pro\j au)to\n oÀti eÃstin kaiì to\ yeu=doj kaiì ou)de\n kwlu/ei to\n to\ oÄn le/gonta
yeu=doj le/gein: kaiì eÃti o( le/gwn peri¿ tinoj le/gei, kaiì ou)xiì tiì le/gei.
488
2005p. 43.
489
Idem, p. 42.
210

A julgar por tais refutações, não seria de estranhar que “as aporias suscitadas

pelos sofistas [renasçam] apenas resolvidas”, como é agradável a Aubenque dizer.490 Há nessas

refutações aspectos que, com certeza, não passariam despercebidos aos autores:

1) Não podemos refutar (muito menos argumentar) com categorias diferentes, a

saber, a função indicial491 refutada pelas funções sintáticas e semânticas.

2) Antístenes dá à função significativa (polissemia) um papel marcadamente

retórico, mas não literário e sim moral.

3) E, acima de tudo, a definição de uma essência é totalmente inaceitável para

Antístenes, pois me parece que o que pede Aristóteles ao sofista é dizer a essência.

Concordamos, no entanto, com Barbara Cassin, quando diz:

A eficácia própria à linguagem sofística consiste em implicar a realidade de seu


objeto492, em impedir qualquer alternativa a essa realidade: a impossibilidade de dizer o
que não é constitui a fonte de todos os paradoxos sofísticos referentes à impossibilidade
do pseûdos, da mentira e do falso.493

E, a fortiori, da contradição.

490
1983, p. 94.
491
Barbara Cassin usa diacronicamente a distinção sentido-referência. Nós, por outro lado, relutamos em entender,
quando aplicamos, indicial como referência. Parece-nos que a referência é um aspecto de significação, enquanto que
o indicial está irrevogavelmente unido à coisa: não podemos revogar o nome vinho (seja então oi)=noj, vinum) da
bebida feita da uva..
492
O que dissemos em outra parte: a crença de Antístenes na “subsistência positiva das coisas”.
493
2005, p. 99.
2.2.2 Uma “retórica heróica”: a politropia de Odisseu

Brancacci diz que a característica doutrina do sábio, de Antístenes, é

principalmente não uma busca da sabedoria, mas uma luta contra a ignorância (amathía). Na sua

declamação, Odisseu diz a Ájax: “Estás doente de inveja e de ignorância, que são males

extremamente contrários entre si: uma te faz desejar as coisas belas, a outra te afasta delas”.494

Diz Brancacci:

A amathía, de fato, impede por um lado de atingir o saber moral e, por outro, afasta
totalmente de tudo o que é belo e bom: o demonstram os casos de Ájax , incapaz de
elevar-se da brutalidade da sua natureza e de colher a complexidade do real e das várias
situações que ele apresenta; exatamente porque amathē¿s, ele não é nem andreîos nem
muito menos eudaímon.495

Como diz ainda o herói a Ájax:

É um erro humano aquele que tu sofres: porque és forte, julgas ser também corajoso, não
fazes juízo de que a força pura e simples não é o mesmo que a sabedoria e a coragem na
guerra, e que a ignorância é o mal maior para aqueles que são afetados por ela.496

Os poemas homéricos eram usados na educação grega da época da cultura oral

como modelo de comportamento geral, o que produzia uma dupla busca: determinar qual fosse o

melhor entre os heróis homéricos e precisar a qualidade específica com que se distinguiam uns

dos outros. O sofista Hípias497 resume isso com a tese de que, na guerra de Tróia, Aquiles era o

494
AF 15, 13. fqo/non de\ kaiì a)maqi¿an noseiÍj, kakw½n e)nantiw¯tata au(toiÍj: kaiì oÁ me/n se e)piqumeiÍn
poieiÍ tw½n kalw½n, hÁ de\ a)potre/pei.
495
OL 115.
496
AF 15, 13. a)nqrw¯pinon me\n ouÅn ti pe/ponqaj: dio/ti ga\r i¹sxuro/j, oiãei kaiì a)ndreiÍoj eiånai. ou)k
oiåsqa oÀti sofi¿# periì po/lemon kaiì a)ndrei¿# ou) tau)to/n e)stin i¹sxu=sai; a)maqi¿a de\ kako\n me/giston
toiÍj eÃxousin.
497
Hípias menor, 364 c.
212

mais valoroso (áriston), Nestor o mais sábio (sofō¿taton) e Odisseu o mais hábil em enganar

(polytropō¿taton).

Antístenes se afasta dessa postura de ver Odisseu como um hábil enganador e

procura em sua exegese homérica reconhecer o sentido exato do epíteto498 polýtropos. Ele faz

uma interpretação do vocábulo homérico na base do uso lingüístico, constituindo o fundamento

da valorização do anē¿r polýtropos, como aquele que, dispondo de polloí trópoi tō½n lógōn (as

várias direções ou modos dos discursos), se revela mestre na arte de discutir (dialégesthai) e

conversar com os homens (syneînai), pondo-se assim como modelo de sábio e protótipo da figura

do bom retor.

Esse uso lingüístico mostra que muitos dos termos variam nas suas acepções.

No caso de trópos, este pode indicar, entre muitas outras acepções, tanto o caráter moral, a

direção do comportamento, como o emprego das palavras em direção ao interlocutor.499 É através

498
Há dois tipos de epíteto, o epíteto de natureza e o epíteto característico. Exemplos do primeiro: a neve fria, a noite
escura; exemplos do segundo: o sábio Nestor, a fiel Penélope. É preciso que se entenda que o epíteto característico,
que é o que nos interessa agora, não é uma adjetivação inocente. Ele pode chegar a substituir o onomástico; o que era
uma prática comum na vida política romana em nomes como Africano, Britânico; substituíam os onomásticos, como
Cipião, Cláudio. O epíteto, em termos retóricos, quase sempre substitui o nome de alguém que se quer enaltecer ou
difamar. Em latim, cognomen. Em grego, e)pi/qetoj. E mais ainda, Homero começa seu poema sobre Odisseu sem
citar o onomástico do herói, mas seu epíteto: polu/tropoj. O ponto a que queremos chegar é que, mesmo se
tratando de retórica, o nome deve ser adequado e a enunciação própria. Podemos entender, talvez, que o jogo da
retórica só é possível, segundo Antístenes, porque o retor sabe a natureza dos nomes, sua adequação, e o seu oposto.
No caso retórico do epíteto, vamos lembrar que e)pi/qetoj, nome acrescentado, tem como contraposição a)lhqino/j,
nome verídico. Há em Antístenes , ao contrário de Platão que nutria uma desconfiança agressiva contra a retórica,
uma concepção de que há um chão verídico na retórica. Sem esse chão, a retórica se torna um exercício ou
enfadonho, ou pernóstico, ou inútil.
499
Em português tomamos o termo tropo, originado do termo grego tro¿poj, exatamente como neste último caso,
para indicar o uso figurado dos termos a fim de satisfazer o objetivo ou a direção do discurso que é produzido.
213

de uma diaíresis500 que o termo tem seu uso unificado. O que unifica os diversos usos dados ao

termo tropos é seu uso próprio, a saber indicar direção501. O termo polýtropos, aquele que dispara

discursos para todas as direções, não quereria dizer aquele que engana, mas o que mudou seu

comportamento dependendo daquele a quem se dirige. Odisseu é ardiloso com os inimigos,

franco com Agamêmnon, como vamos ver logo em seguida quando analisarmos o fragmento de

uma exegese feita por Antístenes . No uso do discurso é aquele que fala a linguagem que precisa

ser usada para esse ou aquele interlocutor. Segundo Detienne502, o personagem de Odisseu seria

uma forma arcaica e mítica da retórica grega. É nesse sentido que a polytropía de Odisseu se

torna função da sophía do herói.

O herói polítropo, Odisseu, vai servir de modelo, através de sua capacidade de

usar o instrumento lingüístico, com a infinita variedade de modos que oferece, para realizar a

educação moral, conforme a concepção do discípulo de Górgias. Vamos estudar a retórica de

Antístenes do ponto de vista da sofística. No entanto, esse prolongamento da retórica sofística se

submeterá às exigências da pregação moral de Sócrates, identificada com o dialégesthai. Os

comentadores, como Luzzatto e Blass503 entre outros, por essa razão, se dividem na interpretação

da natureza da dialética antistênica, se ela é o conhecido exame (exétasis) socrático, que se

estende até apurar quem é sábio, ou, quem, ao contrário não é, embora julgue sê-lo, como

defende Luzzatto; ou, conforme Blass, se ela é a retórica polítropa, que, baseada na investigação

500
Observe-se que, no caso da divisão (diai¿resij) em Antístenes, há um movimento regressivo, ele toma as partes
da divisão para chegar ao uno. De tal forma, parte de modo (tro¿poj) de comportamento e modo de falar para o uso
geral do termo modo (indicando direção), a saber, o comportamento e a fala variam conforme o objeto a que se
dirigem. Enquanto que a diai¿resij, em Platão, parte do uno que se divide, assim, por exemplo, a arte da caça se
divide em caça do inanimado e caça do animado (Sofista, 219 e).
501
Na linguagem da botânica, se diz tropismo o movimento da planta em direção a um estímulo exterior.
502
Detienne (1962, p. 54).
503
Blass (1887-1898, p. 308).
214

dos nomes, como Antístenes entende a exétasis504, explica a atribuição ao sábio de uma

habilidade que é ao mesmo tempo retórica e dialética, posto que pelo conhecimento dos diversos

trópoi, pode instruir os homens através do discurso apropriado para cada um.

Odisseu é o modelo do sábio, aquele que conhece perfeitamente os meios para

atingir os fins propostos. No Fedro, as duas concepções de dialética estão colocadas frente a

frente: é no ponto em que Sócrates se refere à interpretação da dialética como retórica; diz ele que

essa dialética é a arte retórica de Nestor e de Odisseu e completa com o sólito sarcasmo, que

ambos compuseram nos “momentos de ócio em Ílion”.505 É possível que Platão esteja desferindo

suas setas à retórica heróica de Antístenes.

Há um artigo de Maria Tanja Luzzatto506 que contesta que o tema da politropia

de Odisseu seja de natureza retórica, mas sim exemplo da dialética socrática. Sua posição,

portanto, está do lado da tradição aristotélico-platônica. Começamos nossa discussão

apresentando seus argumentos. São dois os textos de Antístenes em que a retórica é a questão: um

das citações de Antístenes num Escólio à Odisséia, de Porfírio; e outro o das Declamações de

Ájax e Odisseu.

O primeiro texto:

Homero, disse Antístenes, não louva mais que recrimina Odisseu, chamando-o polítropo.
Mas Homero não fez, pois, polítropos Agamêmnon e Ájax, antes simples e generosos, e

504
No platonismo, quando Sócrates pergunta o que é justiça, por exemplo, a ciência dialética que está sendo aplicada
tem por fim chegar à idéia, e obter assim uma definição da essência; ao contrário em Antístenes, a pergunta tem por
fim estabelecer entre os usos diversos dos nomes, aquele que é o próprio da coisa. Em ambos os casos, no entanto,
está sendo desenvolvido o segundo paradoxo de Sócrates: não se deve falar senão quando se sabe do que se está
falando.
505
261 b. aÁj e)n I¹ li¿% sxola/zontej sunegraya/thn.
506
1996.
215

tampouco Nestor, o sábio, Deus meu! Representou-o ardiloso e de disposição mutável,


porém, simples para com Agamêmnon e com todos sem exceção, e pronto a manifestar,
não a esconder, seus bons conselhos ao exército. E Aquiles estava longe de acolher em si
atitude de tal natureza que estimava odiosa como a morte.
‘Aquele que uma coisa esconde no peito e outra diz’507
Como solução realmente, disse Antístenes: Que pois? Talvez se deva acreditar que fosse
Odisseu um perverso porque é chamado polítropo? Assim mesmo o poeta o chamou
enquanto o considerava sábio. De fato, modo indica tanto a disposição como o uso do
discurso. Diz-se de bons modos o homem cuja disposição se dirige para o bem, modos
de falar diz-se das figuras de estilo; também se usa modo em relação à voz e à variedade
de melodias, como o caso do rouxinol.
“que gorjeando sem parar emite modulados cantos” 508
Se pois os sábios são terríveis na dialética e sabem exprimir o mesmo pensamento de
muitos modos, podem muito bem esses que sabem muitos modos de expressão em torno
da mesma coisa chamar-se polítropos. Se os sábios são bons e voltados para os outros
homens, Homero disse de Odisseu que era um ser sábio e polítropo, porque sabia
conversar com os homens de muitos modos509. [Assim se narra que também Pitágoras,
convidado a dialogar com jovens, compôs discursos juvenis, e para as mulheres
adaptados às mulheres, e para os arcontes arcônticos e para os adolescentes discursos
adolescentes; porque achar o modo da sabedoria conveniente a cada um é sabedoria. Ao
contrário, é sinal de ignorância adotar um único modo de discurso para aqueles que não
são semelhantes. É o que se dá com a medicina, em que a arte seja bem executada, a
terapia do doente deve ser polítropa através da variedade de predisposições do paciente.
Modo é pois o que muda na disposição, o que é mutável e instável. A politropia do
discurso é o uso do discurso variado que gera nos variados ouvidos um modo único. Pois
é próprio para cada um. Pelo qual o adaptar-se a cada um reduz a variedade do discurso
à unidade: levada a cada um igualmente. Ao contrário, por ser uniforme, inadaptado para
ouvidos diferentes produz o polítropo rejeitado por muitos como discurso rejeitado por
eles].510

507
Ilíada, IX, 313.
508
Odisséia, XIX, 521.
509
Essa é uma passagem difícil, não só em termos filológicos, que vamos tentar desenvolver mais tarde, mas também
pela ambigüidade nela do termo tro/poj, que aí pode querer indicar tanto a variedade de discurso como de
disposição de Odisseu. Goulet Cazé (1992, p. 17), opta por traduzir o termo por “comportamento”, o que se entende
por disposição de caráter.
510
Porfir. schol. ad Od. I, 1. AF 51. ou)k e)paineiÍn fhsin ¹Antisqe/nhj àOmhron to\n ¹Odusse/a ma=llon hÄ
ye/gein le/gonta au)to\n polu/tropon. ou)k ouÅn to\n ¹Agame/mnona kaiì to\n Aiãanta polutro/pouj
pepoihke/nai, a)ll' a(plou=j kaiì genna/daj, ou)de\ to\n Ne/stora, to\n sofo/n, ou) ma\ Di¿a do/lion kaiì
pali¿mbolon to\ hÅqoj, a)ll' a(plw½j t%½ ¹Agame/mnoni suno/nta kaiì toiÍj aÃlloij aÀpasi kaiì ei¹j to\
strato/pedon, eiã ti a)gaqo\n eiåxe, sumbouleu/onta kaiì ou)k a)pokrupto/menon. kaiì tosou=ton a)peiÍxe
tou= to\n toiou=ton tro/pon a)pode/xesqai o( ¹Axilleu/j, w¨j e)xqro\n h(geiÍsqai o(moi¿wj t%½ qana/t%
e)keiÍnon, "oÀj x' eÀteron me\n keu/qv e)niì fresi¿n, aÃllo de\ eiãpv". lu/wn ouÅn o( ¹Antisqe/nhj fhsi¿: ti¿ ouÅn;
aÅra ge ponhro\j o( ¹Odusseu/j, oÀti polu/tropoj e)rre/qh, kaiì mh/, dio/ti sofo/j, ouÀtwj au)to\n
prosei¿rhke; mh/pote ouÅn tro/poj to\ me/n ti shmai¿nei to\ hÅqoj, to\ de/ ti shmai¿nei th\n tou= lo/gou
xrh=sin; euÃtropoj ga\r a)nh\r o( to\ hÅqoj eÃxwn ei¹j to\ euÅ tetramme/non, tro/poi de\ lo/gou ai¸ poiaiì
pla/seij: kaiì xrh=tai t%½ tro/p% kaiì e)piì fwnh=j kaiì e)piì melw½n e)callagh=j, w¨j e)piì th=j a)hdo/noj: "hÀ
te qama\ trwpw½sa xe/ei poluhxe/a fwnh/n". ei¹ de\ oi¸ sofoiì deinoi¿ ei¹si diale/gesqai, kaiì
e)pi¿stantai to\ au)to\ no/hma kata\ pollou\j tro/pouj le/gein: e)pista/menoi de\ pollou\j tro/pouj
lo/gwn periì tou= au)tou= polu/tropoi aÄn eiåen. ei¹ de\ oi¸ sofoiì kaiì <a)nqrw¯poij suneiÍnai> a)gaqoi¿ ei¹si,
dia\ tou=to/ fhsi to\n ¹Odusse/a àOmhroj sofo\n oÃnta polu/tropon eiånai, oÀti dh\ toiÍj a)nqrw¯poij
h)pi¿stato polloiÍj tro/poij suneiÍnai. ouÀtw kaiì Puqago/raj le/getai pro\j paiÍdaj a)ciwqeiìj
poih/sasqai lo/gouj diaqeiÍnai pro\j au)tou\j lo/gouj paidikou/j, kaiì pro\j gunaiÍkaj gunaiciìn
216

Antes de discorrer sobre a posição de Luzzatto, vamos chamar a atenção para

um lugar comum nas discussões sobre a retórica sofista, a comparação da retórica com a

medicina. Essa comparação não é ociosa, nem meramente elucidativa. Ela serve para mostrar que

a verdadeira natureza da retórica sofista é lidar com a cura, por isso sua finalidade educativa.511 E

como na medicina, o remédio (phármakon) tanto pode curar como ter efeitos maléficos.512

Nesse artigo extraordinário, de erudição preciosa e observação penetrante,

Luzzatto defende a tese de que esse famoso fragmento de Antístenes, colhido em Porfírio, não se

liga à tradição pitagórico-gorgiana da retórica grega, mas está fincado na cepa dura da dialética

socrática. Não vamos entrar nos finíssimos reparos que faz às diversas edições do texto, nem

acompanhar as análises filológicas percucientes, que fundamentam uma proposta não só

hermenêutica das doutrinas de Antístenes, mas de revisão da sua biografia; em outro artigo513, a

posição tomada por ela é de que há uma insídia ao se unir Antístenes a Górgias, aí acusa a

tradição biográfica de caluniar os socráticos, ao ligar Antístenes ao seu antigo mestre, de quem

teria herdado o prazer da retórica. Pensa ela que o tratado Sobre a elocução514, ao contrário do

que é defendido por muitos comentadores antistênicos, não teria como objeto o estudo da

a(rmodi¿ouj, kaiì pro\j aÃrxontaj a)rxontikou/j, kaiì pro\j e)fh/bouj e)fhbikou/j: to\n ga\r e(ka/stoij
pro/sforon tro/pon th=j sofi¿aj e)ceuri¿skein sofi¿aj e)sti¿n: a)maqi¿aj de\ eiånai to\ pro\j tou\j
a)nomoi¿wj eÃxontaj t%½ tou= lo/gou xrh=sqai monotro/p%. eÃxein de\ tou=to kaiì th\n i¹atrikh\n e)n tv= th=j
te/xnhj katorqw¯sei, h)skhkui¿aj th=j qerapei¿aj to\ polu/tropon dia\ th\n tw½n qerapeuome/nwn
poiki¿lhn su/stasin. tro/poj me\n ouÅn to\ pali¿mbolon to\ tou= hÃqouj, to\ polumeta/bolon kaiì
aÃstaton. lo/gou de\ polutropi¿a kaiì xrh=sij poiki¿lh lo/gou ei¹j poiki¿laj a)koa\j monotropi¿a
gi¿netai. eÁn ga\r to\ e(ka/st% oi¹keiÍon. dio\ kaiì to\ a(rmo/dion e(ka/st% th\n poikili¿an tou= lo/gou ei¹j eÁn
sunagei¿rei to\ e(ka/st% pro/sforon. to\ d' auÅ monoeide\j a)na/rmoston oÄn pro\j a)koa\j diafo/rouj
polu/tropon poieiÍ to\n u(po\ pollw½n a)po/blhton w¨j au)toiÍj a)po/blhton lo/gon.
511
Fedro, 270 b: “... há, de certo modo, idêntica maneira de proceder na medicina e na retórica... Em ambas é
conveniente distinguir um modo, o do corpo numa e o da alma na outra”. ¸O au)to/j pou tro/poj te/xnhj
i¹atrikh=j oÀsper kaiì r(htorikh=j.
512
Górgias, 456 a-457 b.
513
1998.
514
V. Anexo A – Catálogo Laerciano.
217

elocução, dos tropos ou modos, mas sim do diálektos (método de perguntas e respostas), tema de

outro provável escrito de Antístenes. Essa ênfase na formação socrática de Antístenes leva a

autora até ao ponto de aproximá-lo de Platão, quando analisa os textos de Antístenes em

comparação com o Hípias menor, na discussão sobre o valor dos heróis gregos, Aquiles e

Odisseu.

Colocamos em questão a sua posição, pelo menos, em dois pontos:

Primeiro, no que diz respeito à biografia, não há como negar que Antístenes foi

de fato discípulo de Górgias. Sua adesão a Sócrates é bastante tardia. Xenofonte e Diógenes

Laércio expõem claramente sua capacidade de retor, como já vimos suficientemente. Segundo, a

polêmica entre Platão e Antístenes não é facilmente modalizável, dada não só a posição central

que ela ocupa na biografia deste “pensador socrático menor”, mas principalmente por se tratar da

sua atitude metafísica crucial para a discussão que vai ocupar Aristóteles, a respeito do

desconhecimento por parte do Antístenes do princípio formal. De tal forma, no que diz respeito

ao pensamento antistênico, para nós, não há como negar sua fidelidade ao movimento sofista.

Pensamos que o que o atraiu na dialética socrática e que lhe deu sua fisionomia própria foi a

possibilidade que nela encontrou de ultrapassar o relativismo e ameaça de ceticismo que tomou

conta daquele movimento. Encontrou ele, de fato, em Sócrates, aquilo que procurou sempre:

levar a indagação filosófica para um fim ético dentro dos próprios meios de cada domínio, fosse a

metafísica, fosse a filosofia da linguagem, fosse a própria retórica, fosse a poética, porém, para

ele, domínios sem fronteiras. O que na filosofia de Aristóteles foi rigorosamente

compartimentalizado, com a introdução da idéia de que cada gênero tem sua própria ciência e

método.
218

Vamos, agora, nos deter na posição de Luzzatto. Pergunta ela se a concepção de

politropia como o fundamento da retórica que permite pôr em ato as estratégias estilísticas e

psicológicas destinadas a um auditório, é consistente, filologicamente e historicamente, com o

texto de Porfírio, ou, como quer a autora, a politropia é uma discussão dialética entre sábios a

respeito de determinado objeto, pois, mesmo colocando em dúvida a segunda parte do

fragmento515, como citação de Antístenes, é isso que é dito explicitamente.

O que está sendo objeto de exegese no fragmento é o primeiro verso da

Odisséia.

Do homem polítropo fala-me, ó Musa, por ter, em muitos modos,


divagado, depois que saqueou a cidadela sagrada de Tróia. 516

Toda a discussão gira em torno do sentido de polítropo. Se já na abertura do

poema, ao apresentar o herói, Homero não usa o seu onomástico, Odisseu, mas o epíteto

polítropo, estaria o poeta apresentando-o favorável ou desfavoravelmente? Uma coisa nós

podemos comentar, antecipadamente, que o fato de o poeta dizer que vai contar a história de um

“homem polítropo”, e não dizer que vai contar a história de Odisseu, já, de princípio é uma

atitude retórica. Homero começa caracterizando, apresentando a disposição de caráter do herói.

Para a autora:

515
Trecho entre colchetes.
516
Odisséia, 1-2. ãAndra moi eÃnnepe, Mou=sa, polu/tropon, oÁj ma/la polla\ / Pla/gxqh, e)peiì Troi¿hj
i¸ero\n ptoli¿eqron eÃperse. A ambigüidade do personagem já estaria expressa na escolha por Homero do verbo
que define a politropia, pla/gxqh. É uma forma verbal de pla/zw. Este verbo tem dois sentidos, de errar por
lugares e produzir discursos modelares, neste último sentido pode se alternar com pla/ssw (pla/ttw). Optamos
pelo verbo divagar na tradução porque tanto pode se referir a divagar por lugares, como divagar pelo discurso.
Pode-se dizer que as pessoas que muito viajam conhecem muitas línguas e dialetos. Quando uma pessoa é muito
viajada tende a falar muito. O importante no caso é a relação de identificação entre a ação de Odisseu e sua
capacidade verbal.
219

O fato, pois, que o significado de polýtropos querido por Antístenes seja inteiramente
tirado de Homero e estranho à língua esclarece a verdadeira natureza do nosso texto: não
certamente um fragmento de retórica, mas uma aplicação inédita e característica da
antistênica epískepsis tō¿n onamátōn no sulco da mais antiga exegese homérica.517

A sua posição é explicitamente aristotélica. Diz ela que a atitude de ressaltar o

aspecto retórico de Antístenes é uma “devastadora ofensiva antiaristotélica”.518 Essa ofensiva

seria afirmar que, ao contrário da retórica estudada por Aristóteles, que privilegiaria apenas a

técnica do discurso judiciário, que se rege pelo recurso às paixões que vão levar os jurados a

condenar ou absolver o acusado, Antístenes seria herdeiro do grande legado do movimento de

pensamento que começou com Pitágoras na Sicília, passando por Górgias, e chegou a Atenas. O

tratado Sobre a elocução ou sobre as figuras de discurso teria como objeto o estudo da elocução

ou modos de dizer. Teria sido Antístenes que apresentou o ponto essencial da retórica que é a

divisão do estilo em elevado, médio e baixo. Nesse tratado o segundo título faria referência à

correspondência entre variedade de ouvintes e variedade de discursos, de que é paradigma a

politropia de Odisseu. Para a autora essa tese só se sustentaria pelo único fragmento que restou,

cuja atribuição a Antístenes é pouco contestada: As declamações de Ájax e de Odisseu.519 Assim

os defensores dessa tese conferem à politropia o estatuto de uma doutrina da elocução original e

sofisticada que não se limita ao socratismo, mas está fincada no mais antigo pitagorismo, e de

que o próprio socratismo não esteve isento.

A autora vai se opor com argumentos filológicos a tal tese, até aqui resumida. O

fragmento de Porfírio em questão, citado acima, é tirado de sua obra Homēriká Zētē¿mata. Ela

argumenta que é estranha a ordem dos assuntos, que o fragmento não pode ser todo ele, por

517
1996, p. 325.
518
Idem, 277.
519
V. Anexo D – Declamações de Ájax e Odisseu.
220

questão de estilo, de Antístenes, e ainda que há muitos aspectos neoplatônicos. A conclusão a que

chega é que houve um equívoco dos defensores do caráter retórico do texto, que consideraram

como um texto unitário “duas distintas exegeses separadas de mais de seiscentos anos de estudos

sobre Homero”.520 O ponto básico do argumento da autora é que se trata de um texto de Porfírio

em que nem mesmo as citações de Antístenes podem ser confirmadas em sua integridade. O que

garante que há alguma coisa de Antístenes foi a introdução de expressões como ouk epaineûn

phēsin Antisthénēs, lýōn oûn ho Antisthénēs phēsí. Outro ponto é o fato de que seria uma citação

extremamente longa para o comum do uso porfiriano. Só com essas restrições se pode ter alguma

certeza que de fato estamos diante de uma exegese de Antístenes:

Esse fragmento de exegese antistênica, continua ela, é um modelo do método

de investigação, zē¿tēma, dos textos homéricos na cultura clássica do século V, por meio de

aporía, o problema, e lýsis, a solução. Na primeira citação logo acima (ouk epaineûn phēsin) é

apresentada a aporia: como explicar ter Homero dado o epíteto de polítropo a Odisseu? Na

segunda citação (lýōn oûn ho Antisthénēs phesí) se dá a lýsis, a solução, explicitamente

introduzida pelo verbo lýōn (deslindar). Quando se encerra a solução, para ela está encerrada a

citação e começa o texto de autoria de Porfírio, em que prossegue o discurso sobre polítropo.

Para ela, o texto é claríssimo e Porfírio não quereria nos enganar. Assim ela resume a natureza do

zē¿tēma antistênico que nos teria chegado via Porfírio:

Para Antístenes, de fato, o significado do epiteto era função de uma discussão sobre a
aretē¿ de Odisseu, e fazia parte com toda probabilidade de uma série mais longa de
argumentos pró e contra o herói. Em outras palavras, enquanto a Porfírio interessa
exclusivamente a solução de um problema lexical (que por isso vem a assumir, no texto

520
1996, p. 288.
221

que lemos, a máxima evidência) Antístenes e o seu interlocutor estão discutindo as


qualidades morais de Odisseu em relação aos outros protagonistas dos dois poemas.521

De fato, concordamos com Luzzato: o que se coloca como objetivo final no

zē¿tēma antistênico é a discussão do aspecto moral, do ē½thos. Diz ela: “O valor do epíteto raro e

exclusivo colocado pelo poeta com evidência programática no primeiro verso da Odisséia é

argumento que não podia ser desperdiçado”.522 Essa mesma discussão sobre o caráter de Odisseu

se encontra no diálogo Hípias menor523, de Platão. A tese que Antístenes combate é a defendida

por Hípias no diálogo platônico. Com este se pode recuperar o contexto originário de uma crítica

que lança raízes nas antigas exegeses homéricas, nelas se detecta o debate sofístico sobre a

educação moral dos jovens. Hípias sustenta que polítropo é o antônimo de aploústatos kaì

alēthéstatos (franco e verdadeiro) e diz o mesmo que “falso”. Com esse termo Homero pretendia

mostrar a dubiedade de Odisseu, em ambos poemas, Ilíada e Odisséia. No diálogo platônico a

oposição entre Aquiles e Odisseu é manifestada pelas atitudes distintas dos dois heróis, um franco

e outro falso. O mesmo se dá no fragmento de Antístenes. De tal forma se especula se Antístenes

estaria debatendo com o sofista Hípias. A autora conclui com a perigosa identificação de

objetivos de Platão e de Antístenes: a exposição da tese hipiana contra Odisseu, e a simpatia

socrática pelo herói polítropo. O que há de importante é que ambos, de fato, para nós, estavam

interessados em discutir o ponto de vista sofístico sobre a virtude, e com isso respondem a

Hípias. Mas a divergência com Platão começa no caminho proposto de uma discussão da virtude

dentro do próprio terreno sofístico, a retórica, e portanto prático, intentada por Antístenes,

enquanto o socrático melhor dotado se dirigia para uma ciência dialética que buscaria encontrar

as formas da virtude. O ponto de partida dos dois discípulos, vamos dizer assim, mais bem

521
1996, p. 291.
522
Ibidem, idem.
523
364 b-365 e.
222

sucedidos, de Sócrates, foi exatamente igual, um acerto de contas com a tradição sofista do

ensino da virtude, mas em termos doutrinários se colocaram completamente em campos opostos.

Passemos agora ao segundo texto: as Declamações de Ájax e de Odisseu.

Queremos chamar a atenção neste momento, porque diz respeito à retórica, esta passagem do

diálogo Teeteto, que precede a exposição de sua teoria, já vista, da realidade como composição

(que pode ser definida, que tem um lógos) de elementos (que não podem ser definidos, e só têm

onómata). Seja permitido que a transcrevamos em sua extensão:

Sócrates – Não vai ser longa essa investigação. Uma arte inteirinha está a indicar que
conhecimento não é isso.
Teeteto – De que forma? E que arte é essa?
Sócrates – A dos grandes mestres da sabedoria, que denominamos oradores e advogados.
Não é com sua arte e ensinando que eles convencem os outros, mas levando-os, por meio
da sugestão, a admitir tudo o que eles querem. Acreditas mesmo, que haja profissionais
tão habilidosos, a ponto de demonstrarem a verdade do fato, para quem não foi
testemunha ocular de alguma violência ou roubo de dinheiro, no pouquinho de tempo
que a água corre na clepsidra?
Teeteto – De jeito nenhum posso acreditar nisso; o que eles fazem é persuadir.
Sócrates – E persuadir, no teu modo de pensar, não é levar alguém a admitir alguma
opinião?
Teeteto – Sem dúvida.
Sócrates – Nesse caso, quando os juízes são persuadidos por maneira justa, com relação
a fatos presenciados por uma única testemunha, ninguém mais, julgam por ouvir dizer,
após formarem opinião verdadeira; é um juízo sem conhecimento; porém ficaram bem
persuadidos, pois sentenciaram com acerto.
Teeteto – Isso mesmo.
Sócrates – No entanto, amigo, se conhecimento e opinião verdadeira (nos tribunais)
fossem a mesma coisa, nunca o melhor juiz julgaria sem conhecimento. Mas agora
parece que são coisas diferentes.”524

524
201 a-c. {SW.} Ou)kou=n tou=to/ ge braxei¿aj ske/yewj: te/xnh ga/r soi oÀlh shmai¿nei mh\ eiånai
e)pisth/mhn au)to/. {QEAI.} Pw½j dh/; kaiì ti¿j auÀth; {SW.} ¸H tw½n megi¿stwn ei¹j sofi¿an, ouÁj dh\
kalou=sin r(h/tora/j te kaiì dikanikou/j. ouÂtoi ga/r pou tv= e(autw½n te/xnv pei¿qousin ou) dida/skontej
a)lla\ doca/zein poiou=ntej aÁ aÄn bou/lwntai. hÄ su\ oiãei deinou/j tinaj ouÀtw didaska/louj eiånai,
wÐste oiâj mh\ parege/nonto/ tinej a)posteroume/noij xrh/mata hà ti aÃllo biazome/noij, tou/toij
du/nasqai pro\j uÀdwr smikro\n dida/cai i¸kanw½j tw½n genome/nwn th\n a)lh/qeian; {QEAI.} Ou)damw½j
eÃgwge oiåmai, a)lla\ peiÍsai me/n. {SW.} To\ peiÍsai d' ou)xiì doca/sai le/geij poih=sai; {QEAI.} Ti¿
mh/n; {SW.} Ou)kou=n oÀtan dikai¿wj peisqw½sin dikastaiì periì wÒn i¹do/nti mo/non eÃstin ei¹de/nai,
aÃllwj de\ mh/, tau=ta to/te e)c a)koh=j kri¿nontej, a)lhqh= do/can labo/ntej, aÃneu e)pisth/mhj eÃkrinan,
o)rqa\ peisqe/ntej, eiãper euÅ e)di¿kasan; {QEAI.} Panta/pasi me\n ouÅn. {SW.} Ou)k aÃn, wÕ fi¿le, eiã
ge tau)to\n hÅn do/ca te a)lhqh\j {SW.} Ou)kou=n tou=to/ ge braxei¿aj ske/yewj: te/xnh ga/r soi oÀlh
223

A situação daquele que julga sem ter sido testemunha ocular do evento é uma

questão não só retórica, mas moral e lingüística. Tal é a situação que envolve Ájax e Odisseu nas

declamações. Eles estão diante de juízes que vão decidir a quem conceder a posse das armas de

Aquiles em mãos dos troianos. Juízes que não estiveram presentes aos fatos. Citamos parte da

declamação de Ájax:

(1) Dado o caso, queria que aqueles a nos julgar fossem principalmente os que estavam
presentes aos acontecimentos; pois que os que me vêem com os olhos me vêem em
silêncio, para estes então nada mais haveria a dizer; agora, partidos os que
testemunharam as próprias ações; vós, na verdade, não julgais nada do que foi visto.
Qual justiça é essa de juízes que não sabem dos acontecimentos a não ser através de
discursos? O que acontece resulta de uma ação. (2) Eu, carregando, cuidei realmente do
corpo de Aquiles, e este aqui presente, das armas, sabendo eu que os troianos não
desejavam mais as armas do que se apropriarem do cadáver. Pois desta maneira se
apropriariam deste, tendo chegado ao corpo como resgate do de Heitor a ser recuperado;
na verdade estas armas não ofereceriam aos deuses, mas as esconderiam, temendo este
bom homem a minha frente, que antes já havia pilhado a estátua da própria deusa ao
abrigo da noite, como se mostrasse aos Aqueus que fazia uma boa coisa.525

Os troianos querem, por seu lado, negociar a troca dos corpos de Aquiles e

Heitor. Ájax quer obter as armas, argumentando que ele é que cuidou do cadáver de Aquiles,

procurando assim comover os troianos, que estão interessados em recuperar o corpo do

compatriota Heitor. Colocamo-nos assim diante da terceira aporia gorgiana do Tratado do Ser e

do Não-ser, que talvez se pudesse dizer tenha sido a questão em torno da qual se moveu

shmai¿nei mh\ eiånai e)pisth/mhn au)to/. {QEAI.} Pw½j dh/; kaiì ti¿j auÀth; {SW.} ¸H tw½n megi¿stwn
ei¹j sofi¿an, ouÁj dh\ kalou=sin r(h/tora/j te kaiì dikanikou/j. ouÂtoi ga/r pou tv= e(autw½n te/xnv
pei¿qousin ou) dida/skontej a)lla\ doca/zein poiou=ntej aÁ aÄn bou/lwntai. hÄ su\ oiãei deinou/j tinaj
ouÀtw didaska/louj eiånai, wÐste oiâj mh\ parege/nonto/ tinej a)posteroume/noij xrh/mata hà ti aÃllo
biazome/noij, tou/toij du/nasqai pro\j uÀdwr smikro\n dida/cai i¸kanw½j tw½n genome/nwn th\n a)lh/qeian;
{QEAI.} Ou)damw½j eÃgwge oiåmai, a)lla\ peiÍsai me/n. {SW.} To\ peiÍsai d' ou)xiì doca/sai le/geij
poih=sai; {QEAI.} Ti¿ mh/n; {SW.} Ou)kou=n oÀtan dikai¿wj peisqw½sin dikastaiì periì wÒn i¹do/nti
mo/non eÃstin ei¹de/nai, aÃllwj de\ mh/, tau=ta to/te e)c a)koh=j kri¿nontej, a)lhqh= do/can labo/ntej, aÃneu
e)pisth/mhj eÃkrinan, o)rqa\ peisqe/ntej, eiãper euÅ e)di¿kasan; {QEAI.} Panta/pasi me\n ouÅn. {SW.}
Ou)k aÃn, wÕ fi¿le, eiã ge tau)to\n hÅn do/ca te a)lhqh\j (kaiì dikasth/ria) kaiì e)pisth/mh, o)rqa/ pot' aÄn
dikasth\j aÃkroj e)do/cazen aÃneu e)pisth/mhj: nu=n de\ eÃoiken aÃllo ti e(ka/teron eiånai.
525
AF 24. V. Anexo D – As Declamações de Ájax e Odisseu.
224

Antístenes: como mostrar pelo discurso o que foi percebido pelos sentidos? Como Górgias

argumenta:

De fato, se os entes são visíveis, audíveis e, de maneira geral, sensíveis, eles que,
precisamente, subsistem do lado de fora, mas que, dentre estes, os visíveis sejam
apreendidos pela visão, os audíveis pela audição, e não contrariamente, então como
podem ser revelados a outrem? Pois o meio através do qual revelamos é o discurso, mas
discursos não são as coisas que subsistem e que são. Então, não são os entes que
revelamos ao próximo, mas o discurso, que difere das substâncias.526

Por tal razão não é a Ájax que as armas são devolvidas, pois os juízes não viram

sua ação, mas ao polítropo Odisseu, que, por sua sabedoria pode produzir o discurso que se deve

apresentar a um juiz para se obter o que se deseja. É a mesma questão em ambos textos, o de

Platão e o de Antístenes. Por um lado, há uma realidade, uma ação que foi executada e que não

foi contemplada pelo juiz. Do outro lado, há uma outra realidade que se baseia apenas no

discurso, a realidade dos tribunais, o que é dito ao juiz. É para corrigir o descompasso entre a

sensação e o discurso, fonte de toda incomunicabilidade para Górgias, que Antístenes propõe as

duas concepções do discurso, a enunciação própria e a politropia. Porém, são duas faces da

mesma moeda. O que me garante a realidade concreta é o nome apropriado. Mas para falar dessa

realidade tenho de usar a linguagem adequada para um julgamento favorável.

A situação descrita no Teeteto serve de prólogo ao discurso que mostra o que a

coisa é, a enunciação própria que acompanha naturalmente a própria coisa (a Passagem do

Sonho); a declamação de Ájax mostra a retórica. O erro de Ájax foi achar (por sua ignorância,

segundo Odisseu) que bastava relatar os fatos, a saber, usar a enunciação própria, para persuadir

526
DK 82 B 3 83-4. ei¹ ga\r ta\ oÃnta o(rata/ e)sti kaiì a)kousta\ kaiì koinw½j ai¹sqhta/, aÀper e)kto\j
u(po/keitai, tou/twn te ta\ me\n o(rata\ o(ra/sei katalhpta/ e)sti ta\ de\ a)kousta\ a)koh=i kaiì ou)k
e)nalla/c, pw½j ouÅn du/natai tau=ta e(te/rwi mhnu/esqai; wÒi ga\r mhnu/omen, eÃsti lo/goj, lo/goj de\ ou)k
eÃsti ta\ u(pokei¿mena kaiì oÃnta. Tradução de Barbara Cassin (2005, pp. 288-9).
225

os juízes. A primeira concepção é necessária para que as opiniões verdadeiras estejam de acordo

com a enunciação, porém, isso não basta para o sábio, assim então identificado com o polítropo,

ele tem de saber falar aos homens. Porém para que ele possa usar a arma da persuasão, tem de

dominar o trópos, a fim de saber qual direção dar ao discurso na ocasião oportuna. Assim, a

oposição entre o uno e o diverso dos discursos tem de deixar de ser contraditória, para se tornar

relação de opostos contrários que se completam. É nesse ponto que dialética e retórica são

tangentes. Só com a recuperação do prazer da linguagem, apenas possível com o discurso

polítropo, que se chega ao convencimento moral. Para Antístenes, este é o procedimento seguro

de transmitir a verdade, conforme mostra na sua declamação sobre a riqueza no Banquete, de

Xenofonte.527 Nessa passagem Xenofonte, numa reelaboração livre, reproduz o estilo de

Antístenes que foi tão admirado pelos antigos, como, por exemplo, Teopompo.528

De todos os fragmentos de Antístenes, se formos confiar na fidedignidade de

Xenofonte, este é o que mais revela o caráter de Antístenes. Nele surpreendemos o filósofo

totalmente à vontade entre seus pares e entregando-se às práticas próprias de homens kaloí

kagathói (belos e bons). Tais práticas constituíam a concepção máxima de prazer a que se podiam

entregar esses homens, o banquete. Neste se comia, se bebia, se apreciavam a dança e o canto, e

principalmente eles se ocupavam do debate literário ou filosófico. Essa era uma atividade em que

os homens se colocavam no mesmo nível da atividade dos deuses, que se reúnem em banquete.

527
V. Anexo E – A Liberdade do Filósofo.
528
Teopompo foi, na época, um retor que tinha em grande conta Antístenes, dizendo deste que era admirável como
atraía, quando falando nas reuniões, qualquer um pela conversa harmoniosa (DL VI, 14). Ele chega a ponto de dizer
que Platão plagiou muitos dos escritos de Antístenes: “Com efeito, no seu tratado Contra o Ensinamento de Platão,
diz: ‘Poder-se-ia achar que a maior parte de seus diálogos são inúteis e falsos, e que eles não são dele: tirados na
maior parte das diatribes de Aristipo, deles ainda há alguns que vêm dos escritos de Antístenes...’”. e)n t%= kata\
th=j Pla/twnoj diatribh=j ‘tou\j pollou/j, fhsi/, tw=n dialo/gwn au)tou= a)xreióuj kai\ yeudei=s a)/n tis
eu(/roi: a)llotri/ous de\ tou\j plei/ouj, o)/ntaj e)k tw=n ’ Aristi/ppou diatribw=n, e)ni/ouj de\ ka)k tw=n
’Antisqe/nouj (AF 4. Teopompo ap. Aten. XI, 508 c-d; v. A, 42)
226

Como se lê em Homero, citado por Heraclides do Ponto: “a alegria e o regozijo são o fim mais

agradável, quando, presente ao banquete, se escuta o aedo e à volta estão cheias as mesas.529 E os

deuses também têm a vida fácil530, isto é, sem dor”.531 No Fedro532, o mito do mundo das idéias

mostra os deuses se dirigindo ao banquete de onde contemplarão as idéias. “Essa é a vida dos

deuses”,533 diz Platão.

A passagem do Banquete, de Xenofonte, pede que nos debrucemos sobre ela

com atenção, dada a quantidade de temas que aí se acham. Antes de tratarmos da passagem

propriamente, vamos descrever a situação dramática. Ela é introduzida por comentários dos

convivas sobre a apresentação dos jovens acrobatas e dos números musicais, que excederam em

beleza e talento; e principalmente fizeram “adormecer a dor e despertar os prazeres”.534 Com

ressonâncias tão fortemente gorgianas, como no Elogio de Helena, em que diz que as palavras do

discurso provocam o prazer e afastam a dor.535 Sócrates, encantado com eles, se sente desafiado.

Como podem homens que se consideram os melhores, é uma vergonha, ainda não fizeram nada

para animar o festim? 536 Todos pedem que Sócrates diga que tipo de conversa terão. Sócrates

então lembra que Cálias havia dito que, se os que foram chamados por ele para o banquete

529
Odisséia, IX, 5-8. ou) ga\r e)gw¯ ge/ ti¿ fhmi te/loj xarie/steron eiånai / hÄ oÀt' e)u+frosu/nh me\n eÃxv ka/ta
dh=mon aÀpanta, / daitumo/nej d' a)na\ dw¯mat' a)koua/zwntai a)oidou= / hÀmenoi e(cei¿hj, para\ de\
plh/qwsi tra/pezai.
530
Idem, IV, 805. ou) me/n s' ou)de\ e)w½si qeoiì r(eiÍa zw¯ontej.
531
Fragmento 55. Apud Brancacci (1999, p. 105).
532
246 e248 a.
533
248 a. Kaiì ouÂtoj me\n qew½n bi¿oj.
534
III, 2 1. ta\j me\n lu/paj koimi¿zein, th\n d' a)frodi¿thn e)gei¿rein.
535
DK 82 B 11, 10. e)pagwgoiì h(donh=j, a)pagwgoiì lu/phj gi¿nontai.
536
III, 2 ou)k ai¹sxro\n ouÅn ei¹ mh/d' e)pixeirh/somen suno/ntej w©feleiÍn ti hÄ eu)frai¿nein a)llh/louj; O
que parece ser uma fórmula introdutória da atividade reflexiva nos banquetes, pois fórmulas semelhantes se lêem no
Protágoras (347 d), na Apologia (41 c) e no Banquete (176 e), de Platão.
227

aceitassem o convite, prometia “fazer uma declamação pública para exibir sua sabedoria”.537

Cálias aceita naturalmente e propõe que não só ele, mas os outros discorram sobre um bem de

que tenham conhecimento próprio – epístasthe agathón. Sócrates imediatamente afasta a

possibilidade de contradição (antilégei) e introduz a questão, que conhecimento que tem mais

valor para cada um – ti hékastos ēgeîtai pleístou áxion epístasthai.538 A que Cálias prontamente

se dispõe a responder: – Eu, de minha parte, certamente, digo sobre o que mais me orgulho. Pois

penso ser suficiente fazer os homens melhores.539 Antístenes então entra em cena com a pergunta:

– Ensinando qual das duas, uma profissão de artesão ou a conduta bela e boa?540 Depois de uma

rápida troca entre Antístenes e Cálias, sobre que virtude ensinar, a sabedoria, a coragem, a

justiça, Cálias demonstra que caiu na armadilha de Sócrates, pois diz a Antístenes que a seu

tempo vai dizer seu segredo, quando todos tiverem dito de que mais se orgulham. Na verdade,

Cálias não reconhece que Sócrates está agindo como o sofista irônico541, conforme define em

Sofista, de Platão, o Estrangeiro de Eléia: aquele que interroga “em reuniões particulares,

537
III 3 3. e)pidei¿cein th\n au(tou= sofi/an. A prática da e)pi?/deicij era uma das formas com que os sofistas
exerciam seu trabalho intelectual. Kerferd (2003, p. 53) nos dá a informação de que essa prática não só tinha lugar
em espaços públicos como templos, estádios ou teatros, mas também em casas particulares, e o exemplo de casa
particular que apresenta é justamente a de Cálias.
538
III 3 4.
539
Idem. EgwÜ me\n toi¿nun, eÃfh, le/gw u(miÍn e)f' %Ò me/giston fronw½. a)nqrw¯pouj ga\r oiåmai i¸kano\j eiånai
belti¿ouj poieiÍn.
540
Idem. Po/teron te/xnhn tina\ banausikh\n hÄ kaloka)gaqi¿an dida/skwn;
541
Nunca é desnecessário dizer que a ironia aqui não tem apenas um caráter de figura de linguagem, em que se diz o
contrário do que se pensa, com intuito, às vezes, depreciativo, mas trata-se do método socrático, a ironia socrática, de
fazer perguntas, como se não soubesse a resposta. Nos Memoráveis (1.2.36), de Xenofonte, Cálicles se irrita
justamente com Sócrates pela insistência na aplicação do método: “Tens bem o costume de fazer muitas perguntas
sobre o que já sabes”. eiãwqaj ei¹dwÜj pw½j eÃxei ta\ pleiÍsta e)rwta=n: De fato, ironia (ei¹rwnei¿a) está ligada à
questão da verdade. Na Ética a Nicômaco (II 7 1108 a 19-23) Aristóteles diz: “No que toca a verdade, o
intermediário é a pessoa verídica e ao meio termo podemos chamar veracidade, enquanto a simulação que exagera é
a jactância e a pessoa que se caracteriza por esse hábito é jactanciosa; e a que subestima é a dissimulação, a que
corresponde o dissimulado”. periì me\n ouÅn to\ a)lhqe\j o( me\n me/soj a)lhqh/j tij kaiì h( meso/thj a)lh/qeia
lege/sqw, h( de\ prospoi¿hsij h( me\n e)piì to\ meiÍzon a)lazonei¿a kaiì o( eÃxwn au)th\n a)lazw¯n, h( d' e)piì to\
eÃlatton ei¹rwnei¿a kaiì eiãrwn <o( eÃxwn>.
228

dividindo seu discurso em argumentos breves, obrigando seu interlocutor a se contradizer”.542 É o

que vai ocorrer com Cálias. Ele não pratica um ato virtuoso ao dar dinheiro aos homens para

fazê-los mais virtuosos e, portanto, melhores, conforme a autarquia socrática. Diante de um

Antístenes estupefato, Cálias expõe seu argumento: Em lugar de debater sobre a justiça, faço os

homens mais justos, dando-lhes dinheiro. Com dinheiro, eu forneço a eles os meios de satisfazer

suas necessidades, e, com isso, eles não correm o risco de praticar o mal. Antístenes pergunta, se,

pelo menos, são agradecidos. Cálias responde que pelo contrário chegam a tratá-lo ainda pior

que antes. A que Antístenes retruca com ar de triunfo: podes fazer os homens justos para com

todos, menos para ti. A resposta de Cálias é em tom sofístico e Cálias chega mesmo a dar a

Antístenes o epíteto de sofista:

Como te espantas com isso, disse Cálias, os carpinteiros e os pedreiros não passam seu
tempo construindo casas para tantos outros, mas para eles próprios não podem construir
e vivem abrigados em alojamentos? E dê-se por vencido, ó sofista, e refutado.543

Os outros convivas revelam e defendem suas opiniões e a que surpreende é a

apresentada na resposta de Antístenes, o que vai propiciar a ele a oportunidade de produzir uma

epídeixis , da qual Xenofonte procura dar uma reprodução que parece ser fiel. De tal forma,

Cálias não cumpre o prometido, mas vai ser Antístenes, en bon sophiste, que fará sua exibição.

Este é o teor da passagem: aquilo de que Antístenes mais se orgulha é da sua

riqueza (epi ploútōi). Sócrates se surpreende como uma pessoa de tão poucos recursos possa se

542
268 b. to\n de\ i¹di¿# te kaiì braxe/si lo/goij a)nagka/zonta to\n prosdialego/menon e)nantiologeiÍn
au)to\n au(t%.
543
IV 4 5. Kaiì ti¿ tou=t', eÃfh o( Kalli¿aj, qaumasto/n; ou) kaiì te/ktona/j te kaiì oi¹kodo/mouj pollou\j
o(r#=j oiá aÃlloij me\n polloiÍj poiou=sin oi¹ki¿aj, e(autoiÍj de\ ou) du/nantai poih=sai, a)ll' e)n
misqwtaiÍj oi¹kou=si; kaiì a)na/sxou me/ntoi, wÕ sofista/, e)legxo/menoj.
229

jactar de possuir riqueza. É uma oportunidade para Antístenes compor um discurso de duplo

sentido, em que ambiguamente condena e louva a riqueza. O discurso está dividido em três

partes:

Os males da riqueza.

Os bens da pobreza

A liberdade (a felicidade) do filósofo.

A riqueza e a pobreza não estão no que o homem possui, mas na sua alma544. A

riqueza leva à avareza, sentimento de quem é rico, mas se considera pobre; a fortuna não

contempla igualmente até mesmo quem é herdeiro de uma riqueza de família; quanto aos tiranos,

estes são capazes das maiores atrocidades, roubando, escravizando, destruindo cidades, para

acumular bens. Mas os bens da pobreza são ter com que matar a fome, o que beber para saciar a

sede, e ter um lar onde se agasalhar. Quanto às necessidades impostas pelo desejo, é possível

satisfazê-las com o que estiver à mão. Não há trabalho vil se ele me provém o sustento. Quanto

aos prazeres mais refinados posso trocar a riqueza da minha alma pelo convívio com os

poderosos. E principalmente, estou livre de avançar nos bens do outro.545 Riqueza entendida dessa

forma libera a alma. Isto foi dado por Sócrates, que não me deu muito nem pouco.546 Essa riqueza

da virtude e da sabedoria pode ser dispensada entre todos sem nunca se esgotar. Essa riqueza, por

outro lado, permite o lazer necessário para o prazer de ouvir as palavras de Sócrates.

544
Este discurso é um exemplo da defesa da pobreza e da condenação do prazer, que vão constituir o núcleo das
escolas cínica e estóica. No entanto, em outra chave.
545
Vê-se que neste ponto Antístenes e Cálias se encontram, como ponto de partida: a intenção de fazer os homens
melhores. Eles se contradizem nas soluções. Porém, na verdade, eles não se contradizem. Estão falando de coisas
diferentes. Cálias acredita que a assistência aos desvalidos o torna virtuoso, enquanto que Antístenes acredita que é
conhecendo realmente o que seja a pobreza e a riqueza é que ele pode ensinar a virtude aos outros homens, como fez
Sócrates com ele.
546
Não se deve pensar que aqui está Antístenes propondo um me/son aristotélico. A proposta de Antístenes é a
pesquisa dos nomes para chegar ao estado de entendimento da realidade e não de preconceito a respeito dessa mesma
realidade.
230

À maneira de coda:

De tal forma o Sympósion (Banquete) é o momento do prazer da linguagem,

aquele em que pelo vinho se extrai a verdade. É na situação simposíaca que se dá o máximo de

bem para os homens, pois nela a convivência com os homens, na expressão característica,

anthrō¿pois syneînai, animados pelo vinho, oferece a oportunidade do diálogo para cada um que,

através do exame, a quer desvelar. Quando Sócrates, na Apologia, quer descrever os prazeres que

encontrará no Hades, é à situação simposíaca que recorre. Para discutir a justiça, terá a

companhia de Minos, Radamanto, Éaco e Triptólemo, que foram justiceiros em vida.

Compartilhará com Palamedes e Ájax uma condenação iníqua. Submeterá a exame Agamêmnon

e Odisseu. Resume então: “com eles teria a felicidade prodigiosa da discussão dialética, do

compartilhamento e do exame”.547 O tema do banquete como o lugar do comércio com os homens

(anthrō¿pois syneînai) a fim de praticar a dialética (dialégesthai) que examina perpetuamente

(exetázein) a verdade, se acha ainda no Protágoras: “Uma companhia como a nossa, de homens

como professamos ser, sem futilidades nem brincadeiras, não requer ajuda de outra voz”548; e no

Banquete, de Platão “Hoje então usemos nossa companhia para falar, e se me permitem, vou

dizer o que proponho examinar.”549 No Banquete, de Xenofonte, Sócrates repreende os convivas

de nada fazerem para que a companhia regozije: “Como podem homens que se consideram os

melhores, é uma vergonha, ainda não fizeram nada para animar o festim?”550

547
41 b-c. oiâj e)keiÍ diale/gesqai kaiì suneiÍnai kaiì e)ceta/zein a)mh/xanon aÄn eiãh eu)daimoni¿aj.
548
347 d. a)lla\ au)tou\j au(toiÍj i¸kanou\j oÃntaj suneiÍnai aÃneu tw½n lh/rwn te kaiì paidiw½n tou/twn
dia\ th=j au(tw½n fwnh=j.
549
176 e. h(ma=j de\ dia\ lo/gwn a)llh/loij suneiÍnai to\ th/meron: kaiì di' oiàwn lo/gwn, ei¹ bou/lesqe,
e)qe/lw u(miÍn ei¹shgh/sasqai.
550
III 2. ou)k ai¹sxro\n ouÅn ei¹ mh/d' e)pixeirh/somen suno/ntej w©feleiÍn ti hÄ eu)frai¿nein a)llh/louj;
231

Segundo Brancacci551, há uma conexão estreita entre a dialética (dialégesthai) e

a politropia, que usa o discurso variado (khrē½sis poikílē lógou). O que não foi entendido por

Luzzato. Essa conexão é que constitui a ponte e elemento unificador entre a investigação dos

nomes e sua aplicação na retórica. É também o ponto de ruptura com Sócrates, a saber, o

platônico, com seu menosprezo à retórica. Em Antístenes, à dialética e ao convívio com os

homens (dialégesthai kaí anthrō¿pois syneînai), se insere, mesmo mantendo o interesse pela

técnica de perguntas e respostas, a forma retórica (rhētorikón eîdos) no diálogo literário cultivado

por ele. Essa exigência da retórica é justamente uma necessidade que nasce do comércio com os

homens.

O tema do comércio com os homens, muito difundido na cultura filosófica de

sua época, como se pode ver na definição que dá Sócrates para a retórica, no Górgias: “arte hábil

por natureza no comércio com os homens”552, sofre transformações com Antístenes. Sócrates já

reunia os três temas, o dialégesthai, o syneînai e o exetázein, e o método de perguntas e respostas,

mediante o qual seria possível apurar quem é sábio e quem, ao contrário, não o é, mesmo

sustentando sê-lo. Antístenes faz uma reelaboração autônoma do conceito de exetázein com sua

doutrina da investigação dos nomes (epískepsis tō½n onomátōn), em que busca o nome por

natureza apropriado para a coisa; com isso é reelaborada também a concepção de sophós. Se bem

que tanto ele como Platão mantinham a ligação estreita entre dialética e comércio com os

homens, essa ligação agora se reveste de novo significado:

551
OL 153.
552
463 a. fu/sei deinh=j prosomileiÍn toiÍj a)nqrw¯poij:
232

a) do ponto de vista pedagógico, o sábio está preparado para o comércio com os

homens porque, possuindo o conhecimento adquirido através da investigação dos nomes,

encontra a oportunidade de transmitir aos outros o que sabe;

b) do ponto de vista retórico, tal comércio implica a posse de estilos e formas

diversas de discurso, o que lhe permite mediar adequadamente o ensinamento junto aos homens.

O objetivo de Antístenes, com isso, ao manter o interesse sofístico pela

linguagem e pela retórica, o prazer de falar (lógou khárin), como acusa Aristóteles, era

justamente erradicar o indiferentismo ético de tal retórica. Através da leitura do Banquete, de

Xenofonte, temos notícia de que Antístenes era extremamente hábil em alimentar o comércio

entre os homens, o agathós proagōgós553 (o bom negociador), principalmente na aproximação

de enamorados, alfinetava Sócrates. Na verdade, o interesse de Antístenes seria tornar possível

nos homens a realização da amizade (philía) e da concórdia (homónoia), indo além do plano

privado, para se prolongar no plano público, determinando a concórdia e a amizade, a saber, a

justiça na vida da cidade.

Como lhe era prazeroso dizer: “Nem banquete sem concórdia, nem riqueza sem

virtude traz prazer”.554

553
IV,64.
554
Estob. antol. III, 1, 28. AF 93. ouÃte sumpo/sion xwriìj o(monoi¿aj ouÃte plou=toj xwriìj a)reth=j h(donh\n
eÃxei.
CONCLUSÃO

Tirar conclusões a respeito do pensamento de Antístenes será sempre uma

tarefa inacabada. Muitíssimas considerações sobre qual teria sido o caráter de sua obra esbarram

na notória escassez de fontes primárias, que acarreta a dificuldade de se reunirem provas e

argumentos. Por outro lado há inumeráveis outras dificuldades, entre elas:

a) a amplitude dos temas que parece ter abordado: democracia antiga, política,

virtude da mulher, a questão de gêneros, lógica, interpretação de Parmênides, crítica literária,

exegese homérica, educação, oposição natureza-convenção, teologia, ética, música, prática

judiciária, para não citar ainda outros mais555;

b) a impossibilidade de medir o alcance do seu pensamento: se bem que, de

todos os testemunhos que se têm de Antístenes, os mais seguros sejam de Aristóteles, Platão e

Xenofonte, que conviveram com ele ou mantiveram contato próximo no tempo com suas idéias, e

que os temas discutidos fossem da máxima relevância, não são suficientes para avaliar a

qualidade e a importância dele como filósofo;

c) a falta de um conhecimento direto de seus interesses e preocupações através

das fontes primárias, pois nunca sabemos se as citações que constituem os fragmentos refletem

exatamente aquilo que ele expressava no movimento de vida na Atenas clássica do século IV

a.C., ou trata-se de interesses e preocupações dos autores que o citam em outras épocas;

d) o caráter enigmático do próprio socratismo: não sabemos qual a natureza e o

conteúdo dos ensinamentos de Sócrates, que levaram a que seus discípulos se desgarrassem nas

555
Essa lista nos foi sugerida por resenha de Susan Prince (2001).
234

mais diversas tendências, nem tampouco sabemos se a busca da forma ideal encontra nele sua

resolução ou se seu encontro é uma realização de Platão;

e) a indisponibilidade de um estudo genético de seus escritos tem como

conseqüência a impossibilidade de ser autorizado um estudo de uma possível caracterização de

fases nas suas obras, a saber, sofística, socrática, cínica;

f) a condição dos pensamentos sofista e cínico, meio à margem da filosofia

ortodoxa, de caráter aristotélico-platônico, não permite distinguir com clareza, por exemplo, a

corrente que passa das idéias sofistas, principalmente aquelas influenciadas por Anaxágoras e os

atomistas, a saber, há em tudo uma parte de todas as coisas porque tudo é combinação de

elementos, para a atitude cínica, e mais, de modo conspícuo, a antítese natureza-convenção.

Nada disso, porém, tem impedido que o interesse por Antístenes leve à

investigação da sua posição mais característica nesse diálogo ideal dos filósofos no tempo. O

caráter fragmentário, surgido pelas vicissitudes da história das idéias, tampouco pode ser

empecilho, haja vista a dificuldade que temos também quando deparamos com muitos filósofos

que não tiveram suas obras perdidas, e foram eles mesmos que produziram escritos numa

literatura fragmentária ou enigmática; e não poucos comentadores se ocuparam deles e

produziram interpretações conflitantes, mas sempre provocadoras. Se o que possuímos de

Antístenes é raro, só o levantamento da crise já justifica a proposta de investigá-lo. Se há autores

distribuídos por meio de uma ou outra decisão, não podemos dizer que há contradições entre eles.

Não disse mesmo o discípulo de Górgias que não é possível contradizer? Se isso for correto, cada

comentador produzirá o Antístenes que ele pode dizer. Cada modo deste Antístenes polítropo...
235

Este foi o Antístenes que compusemos a partir dos elementos dispersos nesses

preciosos restos de linguagem: Antístenes primordialmente sofista. Para compô-lo apresentamos

os argumentos que a seguir rememoramos.

O argumento doxográfico – o Catálogo Laerciano, que pelo título das obras

leva a entendê-las como de natureza sofística.

O argumento histórico – interlocução com Platão e Aristóteles, comprovada por

ambos, em que a posição de Antístenes se alinha com posições sofísticas; daí o embate entre o

último com os primeiros.

O argumento filológico – textos (Declamações de Ájax e de Odisseu) de

temática e dicção sofistas.

O argumento doutrinário – a meta pedagógica suprema de caráter sofístico:

ensinar a virtude.

Antístenes era um mestiço (nóthos). Seu pensamento era miscigenado. Nele

vamos achar traços de uma ou outra escola de pensamento, fosse sofístico, socrático ou cínico.

No Catálogo encontramos títulos que apontam prima facie para o cinismo, como Sobre o Cão, já

que o cão é o animal de cujo nome (kýōn, kynós) teria se originado o nome da escola; Sexto556

acena para a possibilidade de que deste escrito tenha sido criado o termo cinismo. No entanto,

Aristóteles557 usa o epíteto Cão para designar Diógenes de Sínope; que de modo conforme,

acenaria também para a criação do termo. Há quem considere, no entanto, que o título faz parte

de outro escrito de Antístenes, Sobre Odisseu e Penélope, e o cão designaria Argos, que

556
Purrw/neioi ‘Upotu/pweij, I, 68
557
Retórica, III, 10.
236

reconheceu Odisseu sob disfarce, antes mesmo de Penélope. O cão, como é sabido, é símbolo de

fidelidade, símbolo, pois, de uma virtude moral. Isso colocaria o escrito entre aqueles de exegese

homérica. E a exegese era uma atividade a que os sofistas se dedicavam. Nada impede, por outro

lado, que o texto tenha ambos os caracteres, sofístico e cínico. Panécio, para tornar a coisa mais

provocadora, coloca o escrito entre os lógoi sōkratikoí. De fato, como se lê no Protágoras, em

dado momento, Sócrates e Protágoras partem da análise de um poema de Simônides, enquanto

discutiam se a virtude pode ser ensinada. Estamos no terreno do socratismo, então. Porém é nesse

diálogo que Protágoras diz que “um dos pontos fundamentais da educação é o conhecimento a

fundo da poesia, a saber, a capacidade de discernir nas obras dos poetas o que foi dito com acerto

e o que não foi, bem como a de explicá-las e de saber fundamentar... suas conclusões”.558 E mais

adiante Sócrates revela que foi aluno de um sofista, Pródico.559

Poderiam ainda ser apontadas como de caráter cínico duas ideologias, que são

distintas, mas têm um núcleo comum: o ensino da virtude. Uma é a ideologia da “educação

dupla”, a educação deve ser dada através do esforço (pónos), que não deve se restringir ao corpo,

mas também a alma. É pelo exercício (áskēsis), que se educa tanto o corpo (a educação humana)

como a alma(a educação divina)560; tal ideologia tem como modelo Héracles, que todo homem

devia emular. A outra, que parte dessa ideologia, é a concepção do rei-escravo, de que o mesmo

Héracles, e ainda Odisseu e Ciro, são os retratos, a concepção de que o rei não é o que detém o

poder, no que ele não diferiria do tirano, mas o que é um governante moralmente perfeito voltado

558
338 e-339 a.
559
341 a.
560
Strazzeri (2001): “Agora vemos com clareza o que havíamos apenas entrevisto. Somente a alma, através do
noÔw e da frÒnhsiw pode prever o que se deve fazer, as coisas úteis, e escolhê-las para que o corpo possa realizar.
Quando a alma, pelo contrário, é submetida ao governo das paixões, esta previsão é falha e só pode nos levar ao
fracasso. Daí a importância do exercício psíquico acima do somático, pois a alma é quem deve governar o corpo,
posto ser ela quem escolhe e prevê.” (p. 45 – o itálico é nosso)
237

para a felicidade dos súditos. Xenofonte561 relata um diálogo socrático, em que Sócrates discute

com Aristipo a forma de educação de um jovem destinado a governar, apresenta então a

concepção do rei-escravo, que viria a ser adotada pelos cínicos, e para expô-la recorre a um

discurso sobre a virtude que ouviu do sofista Pródico sobre o jovem Héracles, o famoso discurso

“Héracles na Encruzilhada”.

De tal forma, se formos pensar num Antístenes cínico, teríamos, entre outros,

dois cenários: ou ele, se tivesse tal intenção, agiria como um pensador que estava querendo

fundar uma escola em novos moldes, o que não ocorre segundo as fontes, pois todos os

pressupostos já são encontrados nas propostas pedagógicas dos sofistas; ou ele exporia as novas

doutrinas tendo em vista a formação do jovem através apenas da condenação das convenções da

sociedade, característica marcante da seita cínica, o que não aparece em escritos e testemunhos

conhecidos. Pelo contrário, Antístenes, pelo que se lê no Banquete, de Xenofonte, era um homem

voltado para a vida em sociedade, e, conforme testemunhos, homem de trato afável. E se de fato,

chegou a andar andrajoso, conforme testemunha Laércio foi vivamente repreendido por Sócrates:

“Vejo seu desejo de glória através da capa”.562 Sócrates talvez quisesse mostrar que o fato de que

ele procurasse se vestir pobremente não era testemunho de virtude, como era o seu caso.

Antístenes cobrava uma taxa aos alunos em sua escola. E usava o dinheiro como metáfora para

medir os amigos: “Há tal homem cuja amizade eu preferiria a duas minas, outro por quem não

daria meia mina, outro por quem daria até dez minas, outro por quem daria todas as riquezas e

561
Memoráveis, II I.
562
DL VI 8. o(rw½ sou dia\ tou= tri¿bwnoj th\n filodoci¿an.
238

rendas”.563 No Banquete, de Xenofonte, ao ser perguntado de que se orgulhava, respondeu que de

sua riqueza, para admiração dos convivas conhecedores de sua parcimônia.

É no Banquete564 que temos a mais longa passagem sobre a posição de

Antístenes quanto à liberdade do filósofo, a que bastam a sabedoria e a virtude. Onde Antístenes

se entrega ao prazer da concórdia, que só ela traz prazer ao banquete, e discursando que a

riqueza, sem virtude, não é nada. Num exemplo do homem que fala pelo prazer da linguagem.

Essa passagem é o exemplo mais marcante do caráter dos escritos de Antístenes, que o coloca no

movimento de pensamento sofístico, mas nele se acham também os prenúncios dos motivos que

iriam ser os lemas da escola cínica. Prince pensa que qualquer que seja nossa inclinação a aceitar

Antístenes como o primeiro cínico, ele “mesmo agia e escrevia dentro dos termos de seu passado

imediato, não de sua futura recepção”. 565

Para Decleva Caizzi, é no Banquete, de Xenofonte, que Antístenes aparece

claramente sofista e contemporaneamente amigo de Sócrates. Observa ainda que a biografia de

Antístenes se torna mais compreensiva, ao contrário do que pensa Luzzato, acrescentamos, não é

nenhuma insídia, quando se acrescenta a consideração do Sócrates platônico como dentro da

sofística nos seus confrontos como adversário irredutível. No entanto, Decleva Caizzi alerta, na

nossa opinião, corretamente:

A distinção rígida entre um período sofístico e um período socrático


remonta a fontes antigas, talvez até peripatéticas, certamente estóicas. Dado que a biografia
vem sendo construída segundo esquemas, é inevitável a tendência à simplificação das
relações... As anedotas com as quais sua bíos é formada foram reunidas em torno aos dois

563
Memoráveis, II, V.
564
IV, 34-44. AF 93. V. Anexo E – A Liberdade do Filósofo.
565
2001.
239

períodos pressupostos, o gorgiano e o socrático-cínico, para parecer assim que os dois


momentos não têm nada em comum. 566

Essa distinção rígida, impede, ainda segundo ela, que se possa estudar com a

extensão que o tema merece as questões da linguagem, não só no aspecto da lógica e do

conhecimento, mas da relação da linguagem com a virtude, com a moral, e particularmente com o

prazer. Foi o que tentamos vislumbrar.

Procuramos, assim, demonstrar que Antístenes se manteve ligado à sua

formação sofística, não só na qualidade de seu estilo retórico, mas também na natureza dos temas

filosóficos a que procurou dar um enfoque próprio. O seu reconhecimento em relação a Sócrates

se mostra ligado principalmente à força moral que aquele lhe passou. O legado que deixou levou

a que seus continuadores se reunissem em escolas, o cinismo e o estoicismo, que desenvolveram

temas de sua filosofia, não só socráticos, como o do desprezo à riqueza, mas também sofísticos,

como o da oposição natureza/convenção, tema este com o acompanhamento inseparável do

conceito de concórdia, marcadamente antifôntico, e conseqüentemente sofista.

566
1966, p.119.
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ANEXOS

NOTA INTRODUTÓRIA

Consideramos que, para a comodidade do leitor pouco familiarizado com a filosofia de


Antístenes, seria de grande uso que acompanhassem nossa tese os textos e fragmentos de
Antístenes que pensamos ser os mais característicos desse pensador tão pouco conhecido e, para
nós, instigante. Ele nos faz pensar, leitores do século XXI, questões e soluções que encontraram
na nossa contemporaneidade tentativas de respostas que muito se aproximam das dele, como,
entre outras, os problemas da subsistência da essência, da natureza da linguagem, dos objetivos
éticos da educação, que contemplamos neste trabalho, e outros que aqui não tratamos, como a
proposta de uma lógica não predicativa, mas referencial.
Pensamos, ainda, que cada anexo deveria ter uma nota introdutória específica para justiçar a
razão de nossa escolha.
ANEXO A

NOTA INTRODUTÓRIA

Neste Anexo A, apresentamos o Catálogo Laerciano. Este é constituído da lista de títulos dos seus escritos, que nos
revelam muito sobre o caráter de sua produção filosófica variadíssima, que vai de escritos lógicos, como o tomo
sexto, a obras de exegese de Homero, como os tomos oito e nove. O Catálogo Laerciano dos escritos de Antístenes
constitui uma informação preciosa para o estudo do filósofo. Mais que as notícias biográficas e as informações sobre
seu pensamento que Diógenes Laércio apresenta, o Catálogo é uma fonte preciosa para balizar sua produção
filosófica. Ele revela que os interesses de Antístenes eram múltiplos e diferenciados. Numa análise mais acurada se
pode observar que os títulos se agrupam segundo duas grandes linhas de investigação, os escritos filosóficos e os
escritos retóricos. Esse posicionamento estaria na base da divisão que muitos comentadores antigos faziam das obras
de Antístenes em filosóficas e retóricas. A expressão literária delas seria o diálogo para as obras filosóficas, o que
seria o caso da Verdade, e a declamação sofístico-retórica, como no caso das Declamações de Ájax e Odisseu. Isso
foi observado por muitos autores antigos; e não foi o próprio Antístenes que disse que se se quer destinar um filho a
Deus, deve-se prepará-lo em filosofia, mas se for para viver entre os homens, deve-se prepará-lo em retórica?567 Os
antigos se admiravam da enorme quantidade de livros que escreveu. Trata-se de sessenta e três títulos, alguns com
indicação de divisão em livros. Se formos comparar com os quase trinta títulos dos diálogos platônicos, sem
considerar as cartas e os diálogos de autenticidade duvidosa, é espantosa a sua fecundidade. A diversidade dos temas
tratados só é rivalizada por Aristóteles e Demócrito. Logo após a apresentação dos títulos dos tratados, nas Vidas e
Opiniões de Filósofos Eminentes, o próprio Laércio testemunha que Tímon, o cético acerbo, diante de tal
prolixidade, teria dito dele, sarcasticamente, que era um pantophyē½ phlédoná (sabichão tagarela).568

CATÁLOGO LAERCIANO569

“De [Antístenes] se mencionam tratados em dez tomos; no primeiro tomo temos os seguintes
títulos:

peri\ le/cewj h)\ peri\ xarakth/rwn:


Sobre a elocução ou sobre as figuras de discurso;
Ai\/aj h)\ Ai)/antoj lo/goj:
Ájax ou a declamação de Ájax;
) Odusseu\j h)\ [peri\] ) Odusse/wj <lo/goj>:
Odisseu ou [sobre] a <declamação> de Odisseu;
) Ore/stou a)pologi/a:
A apologia de Orestes;

567
Est. ant. II, 31, 76. AF 173.’Antisqe/nhj e)rwthqei/j u(pó/ tinoj, ti/ dida/cei to\n ui(o/n, ei)=pen “ei) me\n
qeoi=j me/llei sumbiou=n, filo/sofon, ei) de\ a)nqrw/poij, r)h/tora”.
568
DL VI 18. AF 2.
569
DL VI 15-18. AF 1
250

peri\ tw=n dikogra/fwn <h)\> ) Isogra/fhj kai\ Desi/aj:


Sobre os defensores <ou> Isógrafo e Paredes;
pro\j to\n )Isokra/touj )Ama/rturon:
Em resposta a Ausência de Testemunha, de Isócrates;

no segundo tomo:
peri\ z%/wn fu/sewj:
Sobre a natureza dos animais;
570
peri\ paidopoii/aj h)\ peri\ ga/mou e)rwtiko/j :
Sobre a procriação ou sobre o casamento – Tratado erótico;
peri\ tw=n sofistw=n fusiognwmoniko/j:
Sobre os sofistas – Tratado fisiognomônico;
peri\ diakaiosu/nhj kai\ a)ndrei/aj protreptiko\j prw=toj, deu/teroj, tri/toj: peri\
Qeo/gnidos d’ e ):
Sobre a justiça e a coragem
– Tratado de persuasão (1,2,3)
– Sobre Teógnis (d, e);

no terceiro tomo:
peri\ a)gaqou=:
Sobre o bem;
peri\ a)ndrei/aj:
Sobre a coragem;
peri\ no/mou h)\ peri\ politei/aj:
Sobre a lei ou sobre a constituição;
peri\ no/mou h)\ peri\ kalou= kai\ dikai/ou:
Sobre a lei ou sobre o belo e o justo;
peri\ e)leuqeri/aj kai\ doulei/aj:
Sobre a liberdade e a escravidão;
peri\ pi/stewj h)\ peri\ e)pitro/pou h)\ peri\ tou= pei/qesqai:
Sobre a crença ou sobre o protetor ou sobre a persuasão;
peri\ ni/khj oi)konomiko/j :
Sobre a vitória – Tratado de economia ;

no quarto tomo:
Ku=roj:
Ciro;

570
Entendemos que os adjetivos terminados em -iko/j indicam a natureza do tratado e não sua finalidade. Essa é uma
questão muito controversa, principalmente quando se trata do que interpretamos como tratados erísticos. Entender de
tal forma dá a Antístenes seu caráter sofístico, mas os comentadores, entre eles Gomperz, consideram que um autor
não daria a um escrito seu o caráter de erístico, porque este é um termo injurioso. Parece-nos, no entanto, que ao
traduzir de tal forma, os títulos do Catálogo ganham coerência e unidade. V. OL 31-2.
251

)( Hraklh=j o) mei/zwn h)\ peri\ i)sxu/oj:


Hércules, o grande, ou sobre a força;

no quinto tomo:
Ku=roj h)\ peri\ basilei/aj:
Ciro ou sobre o poder real;
'Aspasi/a;
Aspásia;

no sexto tomo:
'Alh/qeia;
Verdade;
peri\ tou= diale/gesqai a)ntilogiko/j:
Sobre a dialética – Tratado antilógico;
Sa/qwn <h)\> peri\ tou= a)ntile/gein a' b' g':
Pautão <ou> sobre a contradição (a,b,c);
peri\ diale/ktou:
Sobre o método de perguntas e respostas;

no sétimo tomo:
peri\ paidei/aj h)\ o)noma/twn a' b' g' d' e':
Sobre a educação ou sobre os nomes (a,b,c,d,e);
peri\ o)noma/twn xrh/sewj [h)\] e)ristiko/j:
Sobre o uso dos nomes – Tratado erístico571;
peri\ e)rwth/sewj kai\ a)pokri/sewj:
Sobre pergunta e resposta;
peri\ dochj kai\ e)pisth/mhj a' b' g' d':
Sobre opinião e conhecimento (a,b,c,d);
peri\ tou= a)poqanei=n:
Sobre o morrer;
peri\ zwh=j kai\ qana/tou:
Sobre a vida e a morte;
peri\ tw=n e)n #(/dou:
Sobre aqueles no Hades;
peri\ fu/sewj a' b':
Sobre a natureza (a,b);
e)rw/thma peri\ fu/sewj a', e)rw/thma peri\ fu/sewj b':
Questões sobre a natureza – a, Questões sobre a natureza – b;
do/cai [h)\] e)ristiko/j:
Opiniões – Tratado erístico;
peri\ tou= manqa/nein problh/mata:
Sobre o problema da aprendizagem;
571
Cf. n. 2. Seguindo tal critério, torna-se necessária a eliminação da conjunção.
252

no oitavo tomo:
peri\ mousikh=j:
Sobre a música;
peri\ e)chghtw=n:
Sobre os exegetas;
peri\ ( Omh/rou:
Sobre Homero;
peri\ a)diki/aj kai\ a)sebei/aj:
Sobre injustiça e impiedade;
peri\ Ka/lxantoj:
Sobre Calcas;
peri\ katasko/pou:
Sobre espionagem;
peri\ h(donh=j:
Sobre o prazer;

no nono tomo:
peri\ ) Odussei/aj:
Sobre a Odisséia;
peri\ th=j r(a/bdou:
Sobre o bordão;
) Aqhna= h)\ peri\ Thlema/xou:
Atenas ou sobre Telêmaco;
peri\ ( Ele/nhj kai\ Phnelo/phj:
Sobre Helena e Penélope;
peri\ Prwte/wj:
Sobre Proteu;
Ku/klwy h)\ peri\ 'Odusse/wj:
Ciclope ou sobre Odisseu;
peri\ oi)/nou xrh/sewj h)\ peri\ me/qhj h)\ peri\ tou= Ku/klwpoj:
Sobre o uso do vinho ou sobre a bebedeira ou sobre o Ciclope;
peri\ Ki/rkhj:
Sobre Circe;
peri\ 'Amfiara/ou:
Sobre Anfiaraus;
peri\ [tou=] 'Odusse/wj kai\ Phnelo/phj:
Sobre Ulisses e Penélope;
peri\ tou= kuno/j:
Sobre o cão;

no décimo tomo:
( Hraklh=j kai\ Mi/daj:
253

Hércules e Midas;
( Hraklh=j h)\ peri\ fronh/sewj h)\ i)sxu/oj:
Hércules ou sobre a prudência e a força;
Ku/rioj h)\ e)rw/menoj:
Senhor ou amante;
Ku/rioj h)\ kata/skopoi:
Senhor ou espiões;
Mene/cenoj h)\ peri\ tou= a)/rxein:
Menexeno ou sobre o governo;
'Alkibia/dhj:
Alcibíades;
'Arxe/laoj h)\ peri\ basilei/aj.
Arquelau ou sobre o poder real.
E isso, pois, é o que escreveu”.
ANEXO B

NOTA INTRODUTÓRIA

Este Anexo B nos dá conta, através de uma crítica virulenta de Isócrates, das atividades de Antístenes em Cinosargo.
Era costume que fossem distribuídos “programas” (epángelmai) pelos mestres dessas escolas de virtude. Neles se
propalavam os benefícios para a sabedoria e a felicidade que estudar com eles traria. Essa prática era característica
dos sofistas, que cobravam por seus ensinamentos, daí o título deste discurso de Isócrates, Contra os Sofistas. Nele
Isócrates critica o teor do ensinamento moral de Antístenes, baseado na ação, no esforço e na investigação dos
nomes, para se chegar à verdade e à prudência. Isócrates denuncia que tudo isso não passava de conversa fiada e não
cura da alma, como era prometido.

ISÓCRATES, CONTRA OS SOFISTAS

Se todos aqueles que se ocupam da educação quisessem realmente dizer a

verdade sem fazer promessas superiores aos objetivos que se propõem atingir, não ouviriam os

homens simples falando mal deles. Agora, ao contrário, aqueles que têm a audácia de gabar-se

com excessiva desconsideração fizeram com que pareçam ter deliberado melhor aqueles que

preferiram permanecer inativos do que aqueles que se ocupam da filosofia. Quem, de fato, não

nutriria ódio e desprezo, em primeiro lugar, por aqueles que passam todo o seu tempo em

disputas verbais, que pretendem investigar a verdade, mas já no início de seu programa se põem a

dizer o falso? Creio, de fato, ser para todos evidente que o prever o futuro não é próprio da

natureza humana, e que, ao contrário, estamos tão longe de tal prudência que Homero, o maior

em sabedoria, representou, às vezes, os deuses como deliberantes sobre o futuro; não certamente

porque conhecesse suas idéias, mas porque queria mostrar-nos que para os homens isto é

impossível. Chegaram a tal ponto de arrogância que procuram persuadir os jovens que, onde eles

freqüentam, adquirirão a prática graças ao conhecimento que os tornarão felizes. E, erigidos a


255

mestres e senhores de bens tão grandiosos, não se envergonham de pedir três ou quatro minas por

isso. Também, se vendessem qualquer outro bem por um preço muito inferior ao seu valor, não

poderiam contestar esse comportamento de caráter muito pouco prudente; quando, ao contrário,

avaliam por um preço pequeno o inteiro conjunto da virtude e da felicidade, pretendem, como se

tivessem inteligência, tornar-se mestres dos outros. Dizem, pois, não terem necessidade de bens,

e também chamam a riqueza de prata e ouro desprezíveis, aspirando só um pequeno ganho,

prometem tornar imortais aqueles que os acompanham. Mas, desconfiam, o que é ainda risível

acima de tudo, daqueles de quem devem receber dinheiro, pedem garantia dos discípulos de

quanto lhes é devido, assim fazendo cuidam de sua segurança, mas agem contrariando seu

programa... E como não achar ilógico que aqueles que levam a virtude e a prudência aos outros

não tenham confiança nos discípulos?... Quando então, os homens simples, considerando tudo

isso, vêem que aqueles mesmos que ensinam a sabedoria e transmitem a felicidade carecem de

muitas coisas e cobram pouco dos discípulos; quando percebem que esses que catam afirmações

contrárias nos discursos, não reconhecem ações contrárias; e além disso fingem conhecer o

futuro, sem serem capazes nem de dizer nem de aconselhar sobre o que é necessário para o

presente; quando se dão conta que aqueles que se apóiam na opinião estão muito mais em

concórdia consigo mesmos e se dão melhor que aqueles que proclamam possuir a ciência, então,

de bom direito, creio, desprezam tais passatempos, considerando-os pura conversa fiada e

ninharia, não certamente cura da alma.


256

KATA TWN SOFISTWN

Ei¹ pa/ntej hÃqelon oi¸ paideu/ein e)pixeirou=ntej a)lhqh= le/gein kaiì mh\ mei¿zouj poieiÍsqai ta\j
u(posxe/seij wÒn eÃmellon e)piteleiÍn, ou)k aÄn kakw½j hÃkouon u(po\ tw½n i¹diwtw½n: nu=n d' oi¸ tolmw½ntej
li¿an a)periske/ptwj a)lazoneu/esqai pepoih/kasin wÐste dokeiÍn aÃmeinon bouleu/esqai tou\j
r(#qumeiÍn ai¸roume/nouj tw½n periì th\n filosofi¿an diatribo/ntwn. Ti¿j ga\r ou)k aÄn mish/seien aÀma
kaiì katafronh/seien prw½ton me\n tw½n periì ta\j eÃridaj diatribo/ntwn, oiá prospoiou=ntai me\n th\n
a)lh/qeian zhteiÍn, eu)qu\j d' e)n a)rxv= tw½n e)paggelma/twn yeudh= le/gein e)pixeirou=sin; Oiåmai ga\r
aÀpasin eiånai fanero\n oÀti ta\ me/llonta progignw¯skein ou) th=j h(mete/raj fu/sew¯j e)stin, a)lla\
tosou=ton a)pe/xomen tau/thj th=j fronh/sewj wÐsq' àOmhroj o( megi¿sthn e)piì sofi¿# do/can ei¹lhfwÜj
kaiì tou\j qeou\j pepoi¿hken eÃstin oÀte bouleuome/nouj u(pe\r au)tw½n, ou) th\n e)kei¿nwn gnw¯mhn ei¹dwÜj
a)ll' h(miÍn e)ndei¿casqai boulo/menoj oÀti toiÍj a)nqrw¯poij eÁn tou=to tw½n a)duna/twn e)sti¿n. OuÂtoi
toi¿nun ei¹j tou=to to/lmhj e)lhlu/qasin, wÐste peirw½ntai pei¿qein tou\j newte/rouj w¨j, hÄn au)toiÍj
plhsia/zwsin, aÀ te prakte/on e)stiìn eiãsontai kaiì dia\ tau/thj th=j e)pisth/mhj eu)dai¿monej
genh/sontai. Kaiì thlikou/twn a)gaqw½n au(tou\j didaska/louj kaiì kuri¿ouj katasth/santej ou)k
ai¹sxu/nontai treiÍj hÄ te/ttaraj mna=j u(pe\r tou/twn ai¹tou=ntej: a)ll' ei¹ me/n ti tw½n aÃllwn kthma/twn
pollostou= me/rouj th=j a)ci¿aj e)pw¯loun, ou)k aÄn h)mfisbh/thsan w¨j ou)k euÅ fronou=ntej
tugxa/nousin, su/mpasan de\ th\n a)reth\n kaiì th\n eu)daimoni¿an ouÀtwj o)li¿gou timw½ntej, w¨j nou=n
eÃxontej dida/skaloi tw½n aÃllwn a)ciou=sin gi¿gnesqai. Kaiì le/gousi me\n w¨j ou)de\n de/ontai
xrhma/twn, a)rguri¿dion kaiì xrusi¿dion to\n plou=ton a)pokalou=ntej, mikrou= de\ ke/rdouj o)rego/menoi
mo/non ou)k a)qana/touj u(pisxnou=ntai tou\j suno/ntaj poih/sein. áO de\ pa/ntwn katagelasto/taton,
oÀti para\ me\n wÒn deiÍ labeiÍn au)tou\j, tou/toij me\n a)pistou=sin oiâj me/llousi th\n dikaio-su/nhn
paradw¯sein, wÒn d' ou)depw¯pote dida/skaloi gego/nasin, para\ tou/toij ta\ para\ tw½n maqhtw½n
mesegguou=ntai, pro\j me\n th\n a)sfa/leian euÅ bouleuo/menoi, t%½ d' e)pagge/lmati ta)nanti¿a
pra/ttontej. [...] tou\j de\ th\n a)reth\n kaiì th\n swfrosu/nhn e)nergazome/nouj pw½j ou)k aÃlogo/n e)stin
mh\ toiÍj maqhtaiÍj ma/lista pisteu/ein; [...] ¹Epeida\n ouÅn tw½n i¹diwtw½n tine\j aÀpanta tau=ta
sullogisa/menoi kati¿dwsin tou\j th\n sofi¿an dida/skontaj kaiì th\n eu)daimoni¿an paradido/ntaj
au)tou/j te pollw½n deome/nouj kaiì tou\j maqhta\j mikro\n prattome/nouj, kaiì ta\j e)nantiw¯seij e)piì
me\n tw½n lo/gwn throu=ntaj, e)piì de\ tw½n eÃrgwn mh\ kaqorw½ntaj, eÃti de\ periì me\n tw½n mello/ntwn
ei¹de/nai prospoioume/nouj, periì de\ tw½n paro/ntwn mhde\n tw½n deo/ntwn mh/t' ei¹peiÍn mh/te
sumbouleu=sai duname/nouj, a)lla\ ma=llon o(monoou=ntaj kaiì plei¿w katorqou=ntaj tou\j taiÍj
do/caij xrwme/nouj hÄ tou\j th\n e)pisth/mhn eÃxein e)paggellome/nouj, ei¹ko/twj, oiåmai, katafronou=sin
kaiì nomi¿zousin a)dolesxi¿an kaiì mikrologi¿an a)ll' ou) th=j yuxh=j e)pime/leian eiånai ta\j toiau/taj
diatriba/j.
ANEXO C

NOTA INTRODUTÓRIA

O Anexo C é bastante explícito. Nele apresentamos os fragmentos, com exceção do fragmento 93, reunidos por
Decleva Caizzi a partir da unidade temática, a saber, fragmentos sobre o prazer. Considerado quase universalmente
como um anti-hedonista, a leitura destes fragmentos revela um Antístenes muito mais cheio de nuances no que diz
respeito ao prazer. Sua proposta pedagógica seria a de talhar os prazeres, conforme se pode ler no fragmento 112 A;
dizemos nós, como um escultor talha suas estátuas. Para Aristóteles572, a denúncia de Antístenes do prazer como
coisa má, ainda que ele não seja, teria o objetivo pedagógico de conduzir com isso a maioria das pessoas que se
inclinam para o prazer e são suas escravas, na direção contrária.

SENTENÇAS SOBRE HDONH

93 – ESTOB. antol. III, I, 28. Nem banquete sem concórdia, nem riqueza sem

virtude traz prazer.

ouÃte sumpo/sion xwriìj o(monoi¿aj ouÃte plou=toj xwriìj a)reth=j h(donh\n eÃxei

108 A – DIOG. L. VI, 3. E dizia repetidas vezes: antes enlouquecer que sentir

prazer.

eÃlege te sunexe/j: manei¿hn ma=llon hÄ h(sqei¿hn.

108 B – SEXTO EMP. adv. math. XI, 73. Como, na verdade, Epicuro diz ser bom

o prazer; aquele, ao contrário disse: antes enlouquecer que sentir um mau prazer.

oiâon th\n h(donh\n o( me\n ¹Epi¿kouroj a)gaqo\n eiånai¿ fhsin: o( de\ ei¹pw¯n: manei¿hn ma=llon hÄ
h(sqei¿hn kako/n.

572
EN X 1 1172 a 28-32.
258

108 C – AUL. GEL. noit. at. IX, 5, 3. O socrático Antístenes diz que (a volúpia) é

o sumo mal; é dele, na verdade, este dito: antes enlouquecer que sentir prazer.

Antisthenes Socraticus (voluptatem) summum malum dicit; eius namque hoc verbum est: manei¿hn
ma=llon hÄ h(sqei¿hn.

108 D – CLEM. ALEX. strom. II, 20,121,I. E Antístenes, ao contrário, abraçou a

opinião de que seria melhor enlouquecer que sentir prazer.

kaiì ¹Antisqe/nhj de\ manh=nai ma=llon hÄ h(sqh=nai ai¸reiÍtai

108 E – EUSEB. prep. evang. XV, 13, 7. Ouvido justamente de Antístenes,

partidário de Sócrates. Um homem hercúleo pensa ser preferível enlouquecer a sentir prazer,

disse. E mesmo aconselhava aos discípulos jamais estender um dedo em favor do prazer.

Swkra/touj toi¿nun a)kousth\j e)ge/neto ¹Antisqe/nhj. ¸Hraklewtiko/j tij a)nh\r to\ fro/nhma,
oÁj eÃfh tou= hÀdesqai to\ mai¿nesqai kreiÍtton eiånai: dio\ kaiì parv/nei toiÍj gnwri¿moij mhde/pote
xa/rin h(donh=j da/ktulon e)ktei¿nein

108 F – TEODORETO. graec. aff. cur.573 XII, 47. E, ao contrário, Antístenes, o

cínico (ele também socrático) dizia ser preferível enlouquecer a sentir prazer. E mesmo

aconselhava aos discípulos que não estendessem nem mesmo um dedo em qualquer tempo por

causa do prazer
573
Græcarum affectionum curatio (Remédio para as doenças dos gregos) foi a última e provavelmente também a
mais completa das numerosas apologias produzidas na antigüidade grega, segundo Bardenhewer, Patrologia, 3ª ed.,
1910, p. 327. Teodoreto, bispo de Ciro, que a escreveu em doze volumes antes de 437, participou ativa e
positivamente nos processos de heresia, defendendo entre outras causas a liberdade do uso do termo qeoto/koj
(genitora de Deus) atribuído a Maria.
259

kaiì ¹Antisqe/nhj de\ o( Kuniko\j (Swkratiko\j de\ kaiì ouÂtojŸ tou= hÀdesqai to\ mai¿nesqai
kreiÍtton eiãrhken eiånai: dio\ kaiì paraineiÍ toiÍj gnwri¿moij mhde\ da/ktulon e)kteiÍnai¿ pote eÀneka
h(donh=j.

109 A – CLEM. ALEX. strom. II, 20, 107, 2. Eu, ao contrário, aprovaria o que

disse Antístenes: “até mesmo atravessaria de flechas Afrodite, se a pegasse, porque tem destruído

muitas de nossas belas e boas mulheres”. Enfim disse ser o amor um vício da natureza; e os que

se deixam vencer possuídos por ele chamam essa doença de deus. Com isso é mostrado que os

tolos são vencidos pela ignorância do prazer, que é preciso não admitir até mesmo sendo

chamado deus, isto é, mesmo dado o encontro vindo do deus pela necessidade da procriação.

e)gwÜ de\ a)pode/xomai to\n ¹Antisqe/nh, "th\n ¹Afrodi¿thn, le/gonta, kaÄn katatoceu/saimi, ei¹
la/boimi, oÀti polla\j h(mw½n kala\j kaiì a)gaqa\j gunaiÍkaj die/fqeiren". to/n te eÃrwta kaki¿an
fhsiì fu/sewj: hÂj hÀttouj oÃntej oi¸ kakodai¿monej qeo\n th\n no/son kalou=sin. dei¿knutai ga\r dia\
tou/twn h(tta=sqai tou\j a)maqeste/rouj di' aÃgnoian h(donh=j, hÁn ou) xrh\ prosi¿esqai, kaÄn qeo\j
le/ghtai, toute/sti kaÄn qeo/qen e)piì th\n th=j paidopoii¿aj xrei¿an dedome/nh tugxa/nv.

109 B – TEODORETO. graec. aff. cur. III, 53. Por exemplo, justamente,

Antístenes, discípulo de Sócrates e mestre de Diógenes, tinha em elevada estima a prudência e

aversão ao prazer, a ponto de dizer claramente sobre Afrodite: “eu, ao contrário, até mesmo

atravessaria de flechas Afrodite, se a pegasse, porque tem destruído muitas de nossas belas e boas

mulheres”. E ainda deu certamente ao amor o nome de vício da natureza, que os que se deixam

vencer possuídos por essa doença chamam deus. Por ela entendia seguramente antes enlouquecer

que sentir prazer.

e)gwÜ de\ a)pode/xomai to\n ¹Antisqe/nh, "th\n ¹Afrodi¿thn, le/gonta, kaÄn katatoceu/saimi, ei¹
la/boimi, oÀti polla\j h(mw½n kala\j kaiì a)gaqa\j gunaiÍkaj die/fqeiren". to/n te eÃrwta kaki¿an
fhsiì fu/sewj: hÂj hÀttouj oÃntej oi¸ kakodai¿monej qeo\n th\n no/son kalou=sin. dei¿knutai ga\r dia\
260

tou/twn h(tta=sqai tou\j a)maqeste/rouj di' aÃgnoian h(donh=j, hÁn ou) xrh\ prosi¿esqai, kaÄn qeo\j
le/ghtai, toute/sti kaÄn qeo/qen e)piì th\n th=j paidopoii¿aj xrei¿an dedome/nh tugxa/nv.

110 – ATEN. XII, 513 A. Antístenes afirmava, ao contrário, haver um prazer bom,

aquele a que nos aproximamos sem arrependimento.

¹Antisqe/nhj de\ th\n h(donh\n a)gaqo\n eiånai fa/skwn prose/qhken th\n a)metame/lhton.

111 A – AGOST. de civ. Dei VIII , 3. Assim, por outro lado, em posições

opostas entre si, os socráticos produziram sentenças sobre este fim, a saber (porque dificilmente

se crê terem podido tornar-se discípulos de um único mestre), um diz ser a volúpia o sumo bem,

como Aristipo; outro a virtude, como Antístenes.

sic autem diversa inter se Socratici de isto fine sententias habuerunt, ut (quod vix
credibile est unius magistri potuisse facere sectatores) quidam summum bonum esse diceretn voluptatem,
sicut Aristippus; quidam virtutem, sicut Antisthenes.

111 B – AGOST. de civ. Dei XVIII, 41. Aí Antístenes assevera que antes de tudo

a virtude da alma faz o homem feliz...

ibi Antisthenes virtute animi potius hominem fieri beatum adseverans...

111 C – DIOG. L. IX, 101. Já que o mesmo, na verdade, é considerado bom,

como o prazer por Epicuro; ao contrário, mau, por Antístenes.

e)peiì to\ au)to\ u(f' ou me\n doca/zetai a)gaqo/n, w¨j h( h(donh\ u(po\ ¹Epikou/rou: u(f' ou de\ kako/n,
u(p' ¹Antisqe/nouj.
261

112 A – ESTOB. antol. III, 6, 43. Antístenes disse que não se deixem entrar os

prazeres pela porta, senão é necessário não deixá-los ir embora pela porta; será preciso

certamente que sejam talhados ou heleborizados.

Antisqe/nhj eÃlegen ta\j mh\ kata\ qu/ran ei¹siou/saj h(dona\j a)nagkaiÍon mh\ kata\ qu/ran
pa/lin e)cie/nai: deh/sei ouÅn tmhqh=nai hÄ e)lleborisqh=nai.

112 B – ESTOB. antol. III, 18, 26. Pela porta, diz Antístenes, não deixem entrar

os gozos, será preciso que sejam ou sangrados ou heleborizados ou levados à fome

completamente, pagando, em maus negócios, os desejos insaciáveis produzidos por conta de

prazeres pequenos e efêmeros.

ta\j mh\ kata\ qu/ran, fhsiìn o( ¹Antisqe/nhj, ei¹siou/saj a)polau/seij deh/sei hÄ sxasqh=nai hÄ
e)lleborisqh=nai hÄ pa/ntwj limagxonhqh=nai, kaka\j a)moiba\j e)kti¿nonta th=j progegenhme/nhj
a)plhsti¿aj eÀneka mikra\j kaiì o)ligoxroni¿ou h(donh=j.

113 – STOB. antol. III, 29, 65. É preciso perseguir os prazeres depois dos

esforços, mas não persegui-lo antes dos esforços.

h(dona\j ta\j meta\ tou\j po/nouj diwkte/on, a)ll' ou)xiì ta\j pro\ tw½n po/nwn.
ANEXO D

NOTA INTRODUTÓRIA

Sobre o Anexo D temos pouca coisa a dizer. Pareceu-nos que estas Declamações deveriam ser incluídas nos Anexos
por se tratar do único escrito de Antístenes que nos restou, e cuja autoria é raramente contestada.

AS DECLAMAÇÕES DE ÁJAX E ODISSEU

A declamação de Ájax

(1) Dado o caso, queria que aqueles a nos julgar fossem principalmente os que

estavam presentes aos acontecimentos; pois que os que me vêem com os olhos me vêem em

silêncio, para estes então nada mais haveria a dizer; agora, partidos os que testemunharam as

próprias ações, vós, na verdade, não julgais nada do que foi visto. Qual justiça é essa de juízes

que não sabem dos acontecimentos a não ser através de discursos? O que acontece resulta de uma

ação. (2) Eu, carregando, cuidei realmente do corpo de Aquiles, e este aqui presente, das armas,

sabendo eu que os troianos não desejavam mais as armas do que se apropriarem do cadáver. Pois

desta maneira se apropriariam deste, tendo chegado ao corpo como resgate do de Heitor a ser

recuperado; na verdade estas armas não ofereceriam aos deuses, mas as esconderiam (3),

temendo este bom homem a minha frente, que antes já havia pilhado a estátua da própria deusa

ao abrigo da noite, como se mostrasse aos Aqueus que fazia uma boa coisa. Aspiro receber as

armas para restituí-las aos amigos, enquanto que este para vendê-las, pois, de fato, não ousaria

servir-se delas. Não, nenhum covarde poderia servir-se de armas insignes, pois o covarde sabe
263

que as armas revelam sua covardia. (4) De fato, então tudo isso é quase igual. Pois os

organizadores desta disputa, que se mostram como reis, confiaram a outros decidir acerca da

virtude, esses que nada viram vão julgar o que não viram. Eu mesmo sei isto, que um rei

considerado não confiaria a outros decidir acerca da virtude, não mais que um bom médico não

cederia a outro o diagnóstico da doença. (5) E mais, se fosse enfrentar um homem de minha

classe, ser vencido não faria diferença; agora não pode haver diferença maior do que a entre mim

e esse. Pois nada faz manifestamente, enquanto eu não ousaria agir às escondidas, eu ainda não

suportaria ouvir que falassem mal de mim, nem que me fizessem mal, esse se deixaria pender

pelos pés se disso tirasse proveito. (6) E ainda permitiria ser chicoteado pelos escravos, levar

pranchadas nas costas, socos no rosto, e em seguida vestido de andrajos penetrar na noite as

muralhas do inimigo e cometer um roubo sacrílego. Tudo isso reconheceu ter feito, e poderá até

persuadir dizendo que fez bem. E vem agora o flageladinho, o profanador, se apresentar como

merecedor das armas de Aquiles? (7) Eu, de minha parte, vos digo assim, vós que decidis e

julgais sem ter visto, não decidais acerca da virtude tendo em vista os discursos, porém mais os

atos. Pois a guerra não se decide com discurso, mas com atos; contra os inimigos não há

contradição, é, em silêncio, ou vencer o combate ou ser escravizado. Observai e tende em vista

essas coisas; se não julgais bem, sabei que o discurso nada traz contra a força do ato, (8) um

homem não pode socorrer-vos com discursos, tende o conhecimento exato de que há dificuldades

nos atos se se dizem muitos discursos longos. Então ou dizei que não dais ouvido ao que digo, e

saí, ou julgai corretamente. Se julgais, não vos [conduzais} às escondidas, mas manifestamente, a

fim de que compreendais que mesmo os que julgam estão sob direito se não julgam corretamente.

Continuando, sabei que não decidis a partir do que é dito, mas baseados na opinião. (9) Eu, de

minha parte, confio que vós tireis a conclusão a partir de mim e do que é meu, e proíbo a todos de
264

se basearem na opinião, e isso acerca desse homem que veio para Tróia não com boa, mas com

má vontade, e acerca de mim, designado sempre como o primeiro, sozinho, sem muralha.

A declamação de Odisseu

(1) O discurso por que me ponho de pé não é só para ti, mas também para todos

os outros; pois eu mais que vós prestei serviços ao exército. Com ele lamento Aquiles, fosse ele

vivo, mas agora morto, é a vós que me dirijo. Vós não levastes nenhum combate em que eu não

estivesse convosco. Quanto a mim, perigos que passei sozinho nenhum de vós compartilhou. (2)

E certamente, nos combates comuns, mesmo se lutásseis bem, nada de importante resultou. Nos

perigos que enfrentei sozinho, na verdade, se vencesse, seria alcançado o fim para que viemos

aqui, mas se fracassasse, eu seria apenas um homem entre as perdas. Pois não viemos aqui a fim

de lutar contra os troianos, mas para retomar Helena e nos apoderar de Tróia. (3) E tudo isso

dependia dos perigos que enfrentei sozinho. Não era oracular que seria impossível tomar Tróia,

se primeiro não se trouxesse a estátua da deusa que tinha sido roubada de nós, e quem é que

trouxe a estátua aqui senão eu? Este ser que tu consideras sacrílego. Tu não tens bom juízo,

aquele que recuperou a estátua da deusa e não Alexandre, o que a roubou de nós, chamas de

sacrílego. (4) Que Tróia seja tomada são todos teus votos, mas a mim, que achei como tomá-la,

chamas de sacrílego? E certamente seria belo tomar Ílion e seria igualmente belo encontrar a

causa disso. Quando os outros são gratos a mim, tu me reprovas. Pois, por ignorância, não fazes

juízo dos meus benefícios. (5) Eu, de minha parte, não reprovo tua ignorância. Involuntariamente,

pois, tu e todos os outros sentis assim. Porém, a minha reprovação vai por não te persuadires que
265

te salvei com meus feitos e por ameaçardes de fazer mal aos presentes, se votassem por mim

quanto às armas. E muitas vezes farás muitas ameaças, antes de fazer o menor ato. Mas se for

verdade que é necessário tirar conclusões a partir de índices, parece-me que, por causa de tua má

cólera, vais te fazer mal a ti mesmo. (6) E a mim, por ter feito mal aos inimigos, reprovas a

covardia; mas tu eras tolo em se esforçar vã e manifestamente, ou, por que estavas com todos

então, julgavas ser o melhor? Em seguida me falas acerca da virtude? Primeiro, tu não fazes juízo

de como é preciso lutar, mas como um selvagem levado pela cólera, um dia, por inepto, te

matarás transpassado. Não fazes juízo de que o homem bom não deve sofrer qualquer mal nem de

si próprio, nem do companheiro, nem dos inimigos? (7) Como as crianças, tu te agradas que te

digam que és corajoso. Para mim tu és o mais covarde de todos e o que teme mais a morte; aquele

que, de saída, porta armas indestrutíveis e invulneráveis, que, dizem, te tornam invulnerável.

Então, o que farias se um inimigo portando as mesmas armas te atacasse? Que belo e maravilhoso

seria, se nenhum dos dois pudessem fazer nada. Então vês a diferença entre portar tais armas e

ficar sentado no interior das muralhas? Para ti só não há muralhas, pelo que tu revelas; tu és o

único então assim a voltear garantido por uma muralha de sete couros de boi574; (8) eu, ao

contrário, sem armas, não vou para perto da muralha dos inimigos, mas para o interior mesmo da

muralha, e acordadas as sentinelas dos inimigos, pego suas armas, e sou general e guardião, tanto

para ti como para todos os outros, sei o que se passa aqui e entre os inimigos, sem enviar

qualquer outro para estudar o terreno, mas eu mesmo, como os pilotos vigiam noite e dia a fim de

livrar do perigo os marinheiros, assim também eu te livro do perigo e a todos os outros. (9) Não

há situação perigosa de que tenha fugido, mesmo achando-a vergonhosa, se nela pudesse fazer

mal ao inimigo; não era por desejo de me mostrar para os que me viam que ousava; mas fosse

574
Referência ao escudo de Ájax, formado de sete couros de boi revestidos por uma placa de bronze (Ilíada, 220 e
ss.)
266

como escravo, como mendigo, como flagelado, se pudesse fazer mal ao inimigo, poria a mão

sobre ele, e não para ser visto. Não é parecer, mas atacar sempre, dia e noite, o que quer a guerra.

Eu não apresento as armas, quando convido os inimigos para a luta, mas para o modo que for

desejado, seja por um ou por muitos, estou sempre pronto. (10) Quando estou cansado de lutar,

não entrego, como tu, as armas a outros, mas no momento em que os inimigos cessam de lutar, os

ataco à noite, portando de tais armas a que lhes causará os maiores danos. Nada jamais a noite me

impediu, como tu, contente, tantas vezes cessassem as lutas; mas quando tu roncas, nesse

momento mesmo te livro do perigo e produzo sempre o mal para os inimigos, portando essas

armas de escravo, esses andrajos, esses chicotes, graças aos quais tu dormes em segurança. (11)

Tu te achas corajoso porque carregou o cadáver? Se tu não pudesses carregar, dois homens o

carregariam, então esses igualmente disputariam conosco acerca da virtude. Eu, na verdade, faria

para eles o mesmo discurso. Tu, o que terias a dizer para disputar com eles? Se fossem dois não

te preocuparias de concordar que és mais covarde que eles, mas teria vergonha se fosse um? (12)

Não entendes que não é o cadáver que os troianos tinham por fim levar, mas as armas? Pois

aquele, na verdade, iam devolver, das armas iam fazer uma oferta sagrada aos deuses no templo.

Não carregar os cadáveres não é vergonhoso, mas é não entregá-los para as cerimônias fúnebres.

Tu fizeste o que já estava realizado. Eu retirei aquilo que seria motivo de reprovação. (13) Estás

doente de inveja e de ignorância, que são males extremamente contrários entre si; uma te faz

desejar as coisas belas, a outra te afasta delas. É um erro humano aquele que tu sofres; porque és

forte, julgas ser também corajoso, não fazes juízo de que a força pura e simples não é o mesmo

que a sabedoria e a coragem na guerra, e que a ignorância é o mal maior para aqueles que são

afetados por ela. (14) Suponho, na verdade, que um dia então surja um poeta sábio acerca da

virtude, a mim me produzirá como muito sofredor, muito arteiro, muito esperto e destruidor de
267

cidades que sozinho tomou Tróia, a ti, como eu mesmo suponho, comparando aos asnos

indolentes e aos bois de pasto, permitindo aos outros que os acorrente ou ponha sob jugo.

AIAS H AIANTOS LOGOS

1 ¹Eboulo/mhn aÄn tou\j au)tou\j h(miÍn dika/zein oiàper kaiì e)n toiÍj pra/gmasi parh=san: oiåda ga\r oÀti
e)me\ me\n eÃdei siwpa=n, tou/t% d' ou)de\n aÄn hÅn ple/on le/gonti: nu=n de\ oi¸ me\n parageno/menoi toiÍj
eÃrgoij au)toiÍj aÃpeisin, u(meiÍj de\ oi¸ ou)de\n ei¹do/tej dika/zete. kai¿toi poi¿a tij aÄn di¿kh dikastw½n mh\
ei¹do/twn ge/noito, kaiì tau=ta dia\ lo/gwn; to\ de\ pra=gma e)gi¿gneto eÃrg%. 2 to\ me\n ouÅn sw½ma tou=
¹Axille/wj e)ko/misa e)gwÜ fe/rwn, ta\ de\ oÀpla oÀde, e)pista/menoj oÀti ou) tw½n oÀplwn ma=llon
e)pequ/moun oi¸ Trw½ej a)lla\ tou= nekrou= krath=sai. tou= me\n ga\r ei¹ e)kra/thsan, v)ki¿santo/ te aÄn to\
sw½ma kaiì ta\ lu/tra tou= àEktoroj e)komi¿santo: ta\ de\ oÀpla ta/de ou)k aÄn a)ne/qesan toiÍj qeoiÍj a)ll'
a)pe/kruyan, 3 dedio/tej to/nde to\n a)gaqo\n aÃndra, oÁj kaiì pro/teron i¸erosulh/saj au)tw½n to\
aÃgalma th=j qeou= nu/ktwr wÐsper ti kalo\n e)rgasa/menoj e)pedei¿knuto toiÍj ¹AxaioiÍj. ka)gwÜ me\n
a)ciw½ labeiÍn iàn' a)podw½ ta\ oÀpla toiÍj fi¿loij, ouÂtoj de\ iàn' a)podw½tai, e)peiì xrh=sqai¿ ge au)toiÍj ou)k
aÄn tolmh/seie: deilo\j ga\r ou)deiìj aÄn e)pish/moij oÀploij xrh/saito, ei¹dwÜj oÀti th\n deili¿an au)tou=
e)kfai¿nei ta\ oÀpla. 4 sxedo\n me\n ouÅn e)stin aÀpanta oÀmoia. oià te ga\r diaqe/ntej to\n a)gw½na
fa/skontej eiånai basileiÍj periì a)reth=j kri¿nein e)pe/treyan aÃlloij, oià te ou)de\n ei¹do/tej dika/sein
u(pisxneiÍsqe periì wÒn ou)k iãste. e)gwÜ de\ e)pi¿stamai tou=to, oÀti ou)deiìj aÄn basileu\j i¸kano\j wÔn periì
a)reth=j kri¿nein e)pitre/yeien aÃlloij ma=llon hÃper a)gaqo\j i¹atro\j diagnw½nai nosh/mata aÃll%
parei¿h. 5 kaiì ei¹ me\n hÅn moi pro\j aÃndra o(moio/tropon, ou)d' aÄn h(tta=sqai¿ moi die/fere: nu=n d' ou)k
eÃstin oÁ diafe/rei ple/on e)mou= kaiì tou=de. oÁ me\n ga\r ou)k eÃstin oÀ ti aÄn dra/seie fanerw½j, e)gwÜ de\
ou)de\n aÄn la/qr# tolmh/saimi pra=cai. ka)gwÜ me\n ou)k aÄn a)nasxoi¿mhn kakw½j a)kou/wn, ou)de\ ga\r
kakw½j pa/sxwn, oÁ de\ kaÄn krema/menoj, ei¹ kerdai¿nein ti me/lloi: 6 oÀstij ge mastigou=n pareiÍxe
toiÍj dou/loij kaiì tu/ptein cu/loij ta\ nw½ta kaiì pugmaiÍj to\ pro/swpon, kaÃpeita peribalo/menoj
r(a/kh, th=j nukto\j ei¹j to\ teiÍxoj ei¹sdu\j tw½n polemi¿wn, i¸erosulh/saj a)ph=lqe. kaiì tau=ta
o(mologh/sei poieiÍn, iãswj de\ kaiì pei¿sei, le/gwn w¨j kalw½j pe/praktai. eÃpeita tw½n ¹Axille/wj
oÀplwn oÀde o( mastigi¿aj kaiì i¸ero/suloj a)cioiÍ krath=sai; 7 e)gwÜ me\n ouÅn u(miÍn le/gw toiÍj ou)de\n
ei¹do/si kritaiÍj kaiì dikastaiÍj, mh\ ei¹j tou\j lo/gouj skopeiÍn periì a)reth=j kri¿nontaj, a)ll' ei¹j ta\
eÃrga ma=llon. kaiì ga\r o( po/lemoj ou) lo/g% kri¿netai a)ll' eÃrg%: ou)d' a)ntile/gein eÃcesti pro\j tou\j
polemi¿ouj, a)ll' hÄ maxome/nouj krateiÍn hÄ douleu/ein siwpv=. pro\j tau=ta a)qreiÍte kaiì skopeiÍte:
w¨j, ei¹ mh\ dika/sete kalw½j, gnw¯sesqe oÀti ou)demi¿an eÃxei lo/goj pro\j eÃrgon i¹sxu/n, 8 ou)d' eÃstin
u(ma=j oÀ ti le/gwn a)nh\r w©felh/sei, eiãsesqe de\ a)kribw½j oÀti di' a)pori¿an eÃrgwn polloiì kaiì makroiì
lo/goi le/gontai. a)ll' hÄ le/gete oÀti ou) cuni¿ete ta\ lego/mena, kaiì a)ni¿stasqe, hÄ dika/zete o)rqw½j.
kaiì tau=-ta mh\ kru/bdhn [fe/rete], a)lla\ fanerw½j, iàna gnw½te oÀti kaiì au)toiÍj toiÍj dika/zousi dote/a
di¿kh e)sti¿n, aÄn mh\ dika/swsin o)rqw½j. kaÃpeit' iãswj gnw¯sesqe oÀti ou) kritaiì tw½n legome/nwn a)lla\
docastaiì ka/qhsqe. 9 e)gwÜ de\ diagignw¯skein me\n u(miÍn periì e)mou= kaiì tw½n e)mw½n e)pitre/pw,
diadoca/zein de\ aÀpasin a)pagoreu/w, kaiì tau=ta periì a)ndro/j, oÁj ou)x e(kwÜn a)ll' aÃkwn a)fiÍktai ei¹j
Troi¿an, kaiì periì e)mou= oÁj prw½toj a)eiì kaiì mo/noj kaiì aÃneu tei¿xouj te/tagmai.
268

ODUSSEUS H ODUSSEWS LOGOS

1 ou) pro\j se/ moi mo/non o( lo/goj, di' oÁn a)ne/sthn, a)lla\ kaiì pro\j tou\j aÃllouj aÀpantaj: plei¿w ga\r
a)gaqa\ pepoi¿hka to\ strato/pedon e)gwÜ hÄ u(meiÍj aÀpantej. kaiì tau=ta kaiì zw½ntoj aÄn eÃlegon
¹Axille/wj, kaiì nu=n teqnew½toj le/gw pro\j u(ma=j. u(meiÍj me\n ga\r ou)demi¿an aÃllhn ma/xhn
mema/xhsqe, hÁn ou)xiì kaiì e)gwÜ meq' u(mw½n: e)moiì de\ tw½n i¹di¿wn kindu/nwn ou)deiìj u(mw½n ou)de\n cu/noide.
2 kai¿toi e)n me\n taiÍj koinaiÍj ma/xaij, ou)de\ ei¹ kalw½j a)gwni¿zoisqe, ple/on e)gi¿gneto ou)de/n: e)n de\
toiÍj e)moiÍj kindu/noij, ouÁj e)gwÜ mo/noj e)kindu/neuon, ei¹ me\n katorqw¯saimi, aÀpanta u(miÍn e)peteleiÍto,
wÒn eÀneka deu=ro a)fi¿gmeqa, ei¹ d' e)sfa/lhn, e)mou= aÄn e(no\j a)ndro\j e)ste/rhsqe. ou) ga\r iàna maxoi¿meqa
toiÍj Trwsiì deu=r' a)fi¿gmeqa, a)ll' iàna th/n te ¸Ele/nhn a)pola/boimen kaiì th\n Troi¿an eÀloimen. 3
tau=ta d' e)n toiÍj e)moiÍj kindu/noij e)nh=n aÀpanta. oÀpou ga\r hÅn kexrhme/non a)na/lwton eiånai th\n
Troi¿an, ei¹ mh\ pro/teron to\ aÃgalma th=j qeou= la/boimen to\ klape\n par' h(mw½n, ti¿j e)stin o( komi¿saj
deu=ro to\ aÃgalma aÃlloj hÄ e)gw¯; oÁn su/ ge i¸erosuli¿aj kri¿neij. su\ ga\r ou)de\n oiåsqa, oÀstij to\n
aÃndra to\n a)nasw¯santa to\ aÃgalma th=j qeou=, a)ll' ou) to\n u(felo/menon par' h(mw½n ¹Ale/candron,
a)pokaleiÍj i¸ero/sulon. 4 kaiì th\n Troi¿an me\n a(lw½nai aÀpantej euÃxesqe, e)me\ de\ to\n e)ceuro/nta
oÀpwj eÃstai tou=to, a)pokaleiÍj i¸ero/sulon; kai¿toi eiãper kalo/n ge hÅn e(leiÍn to\ ãIlion, kalo\n kaiì to\
eu(reiÍn to\ tou/tou aiãtion. kaiì oi¸ me\n aÃlloi xa/rin eÃxousi, su\ de\ kaiì o)neidi¿zeij e)moi¿. u(po\ ga\r
a)maqi¿aj wÒn euÅ pe/ponqaj ou)de\n oiåsqa. 5 ka)gwÜ me\n ou)k o)neidi¿zw soi th\n a)maqi¿an – aÃkwn ga\r
au)to\ kaiì su\ kaiì aÃlloi pepo/nqasin aÀpantej – a)ll' oÀti dia\ ta\ o)nei¿-dh ta\ e)ma\ s%zo/menoj ou)x
oiâo/j te eiå pei¿qesqai, a)lla\ kaiì prosapeileiÍj w¨j kako\n dra/swn ti tou/sde, e)a\n e)moiì ta\ oÀpla
yhfi¿swntai. kaiì polla/kij ge a)peilh/seij kaiì polla/, priìn kaiì smikro/n ti e)rga/sasqai: a)ll'
eiãper e)k tw½n ei¹ko/twn ti xrh\ tekmai¿resqai, u(po\ th=j kakh=j o)rgh=j oiãomai¿ se kako/n ti sauto\n
e)rga/sesqai. 6 kaiì e)moiì me/n, oÀti tou\j polemi¿ouj kakw½j e)poi¿hsa, deili¿an o)neidi¿zeij: su\ de\ oÀti
fanerw½j e)mo/xqeij kaiì ma/thn, h)li¿qioj hÅsqa. <hÄ> oÀti meta\ pa/ntwn tou=to eÃdrasaj, oiãei belti¿wn
eiånai; eÃpeita periì a)reth=j pro\j e)me\ le/geij; oÁj prw½ton me\n ou)k oiåsqa ou)d' oÀpwj eÃdei ma/xesqai,
a)ll' wÐsper uÂj aÃgrioj o)rgv= fero/menoj ta/x' aÃn pote a)pokteneiÍj seauto\n kak%½ peripesw¯n t%.
ou)k oiåsqa oÀti to\n aÃndra to\n a)gaqo\n ouÃq' u(f' au(tou= xrh\ ouÃq' u(f' e(tai¿rou ouÃq' u(po\ tw½n polemi¿wn
kako\n ou)d' o(tiou=n pa/sxein; 7 su\ de\ wÐsper oi¸ paiÍdej xai¿reij, oÀti se/ fasin oiàde a)ndreiÍon eiånai;
e)gwÜ de\ deilo/tato/n ge a(pa/ntwn te kaiì dedio/ta to\n qa/naton ma/lista: oÀstij ge prw½ton oÀpla
eÃxeij aÃrrhkta kaiì aÃtrwta, di' aÀper se/ fasin aÃtrwton eiånai. kai¿toi ti¿ aÄn dra/seij, eiã tij soiì
tw½n polemi¿wn toiau=ta oÀpla eÃxwn prose/lqoi; hÅ pou kalo/n ti kaiì qaumasto\n aÄn eiãh, ei¹
mhde/teroj u(mw½n mhde\n dra=sai du/naito. eÃpeita oiãei ti diafe/rein toiau=ta oÀpla eÃxwn hÄ e)nto\j
tei¿xouj kaqh=sqai; kaiì soiì mo/n% dh\ teiÍxoj ou)k eÃstin w¨j su\ fv/j: mo/noj me\n ouÅn su/ ge e(ptabo/eion
perie/rxv teiÍxoj proballo/menoj e(autou=: 8 e)gwÜ de\ aÃoploj ou) pro\j ta\ tei¿xh tw½n polemi¿wn a)ll'
ei¹j au)ta\ ei¹se/rxomai ta\ tei¿xh, kaiì tw½n polemi¿wn tou\j profu/lakaj e)grhgoro/taj au)toiÍj
oÀploisin ai¸rw½, kaiì ei¹miì strathgo\j kaiì fu/lac kaiì sou= kaiì tw½n aÃllwn a(pa/ntwn, kaiì oiåda ta\ t'
e)nqa/de kaiì ta\ e)n toiÍj polemi¿oij, ou)xiì pe/mpwn kataskeyo/menon aÃllon: a)ll' au)to/j, wÐsper oi¸
kubernh=tai th\n nu/kta kaiì th\n h(me/ran skopou=sin oÀpwj sw¯sousi tou\j nau/taj, ouÀtw de\ kaiì
eÃgwge kaiì se\ kaiì tou\j aÃllouj aÀpantaj s%¯zw. 9 ou)d' eÃstin oÀntina ki¿ndunon eÃfugon ai¹sxro\n
h(ghsa/menoj, e)n %Ò me/lloimi tou\j polemi¿ouj kako/n ti dra/sein: ou)d' ei¹ me\n oÃyesqai¿ me/ tinej
eÃmellon, glixo/menoj aÄn tou= dokeiÍn e)to/lmwn: a)ll' eiãte dou=loj eiãte ptwxo\j kaiì mastigi¿aj wÔn
me/lloimi tou\j polemi¿ouj kako/n ti dra/sein, e)pexei¿roun aÃn, kaiì ei¹ mhdeiìj o(r%¯h. ou) ga\r dokeiÍn o(
po/lemoj a)lla\ dra=n a)eiì kaiì e)n h(me/r# kaiì e)n nuktiì fileiÍ ti. ou)de\ oÀpla e)sti¿ moi tetagme/na, e)n
oiâj prokalou=mai tou\j polemi¿ouj ma/xesqai, a)ll' oÀntina e)qe/lei tij tro/pon, kaiì pro\j eÀna kaiì
pro\j pollou\j eÀtoimo/j ei¹m' a)ei¿. 10 ou)d' h(ni¿ka ka/mnw maxo/menoj, wÐsper su/, ta\ oÀpla e(te/roij
paradi¿dwmi, a)ll' o(po/tan a)napau/wntai oi¸ pole/mioi, to/te au)toiÍj th=j nukto\j e)piti¿qemai, eÃxwn
269

toiau=ta oÀpla aÁ e)kei¿nouj bla/yei ma/lista. kaiì ou)de\ nu\c pw¯pote/ me a)fei¿leto, wÐsper se\
polla/kij maxo/menon aÃsmenon pe/pauken: a)ll' h(ni¿ka aÄn r(e/gxvj su/, thnikau=ta e)gwÜ s%¯zw se/,
kaiì tou\j polemi¿ouj a)eiì kako/n ti poiw½, eÃxwn ta\ doulopreph= tau=ta oÀpla kaiì ta\ r(a/kh kaiì ta\j
ma/stigaj, di' aÁj su\ a)sfalw½j kaqeu/deij. 11 su\ d' oÀti fe/rwn e)ko/misaj to\n nekro/n, a)ndreiÍoj oiãei
eiånai; oÁn ei¹ mh\ h)du/nw fe/rein, du/o aÃndrej aÄn e)fere/thn, kaÃpeita ka)keiÍnoi periì a)reth=j iãswj aÄn
h(miÍn h)mfisbh/toun. ka)moiì me\n o( au)to\j aÄn pro\j au)tou\j hÅn lo/goj: su\ de\ ti¿ aÄn eÃlegej a)mfisbhtw½n
pro\j au)tou/j; hÄ duoiÍn me\n ou)k aÄn fronti¿saij, e(no\j d' aÄn ai¹sxu/noio o(mologw½n deilo/teroj eiånai; 12
ou)k oiåsq' oÀti ou) tou= nekrou= toiÍj Trwsiìn a)lla\ tw½n oÀplwn eÃmelen oÀpwj la/boien; to\n me\n ga\r
a)podw¯sein eÃmellon, ta\ de\ oÀpla a)naqh/sein ei¹j ta\ i¸era\ toiÍj qeoiÍj. tou\j ga\r nekrou\j ou) toiÍj ou)k
a)nairoume/noij ai¹sxro/n, a)lla\ toiÍj mh\ a)podidou=si qa/ptein. su\ me\n ouÅn ta\ eÀtoima e)ko/misaj: e)gwÜ
de\ ta\ o)neidizo/mena a)feilo/mhn e)kei¿nouj. 13 fqo/non de\ kaiì a)maqi¿an noseiÍj, kakw½n e)nantiw¯tata
au(toiÍj: kaiì oÁ me/n se e)piqumeiÍn poieiÍ tw½n kalw½n, hÁ de\ a)potre/pei. a)nqrw¯pinon me\n ouÅn ti
pe/ponqaj: dio/ti ga\r i¹sxuro/j, oiãei kaiì a)ndreiÍoj eiånai. ou)k oiåsqa oÀti sofi¿# periì po/lemon kaiì
a)ndrei¿# ou) tau)to/n e)stin i¹sxu=sai; a)maqi¿a de\ kako\n me/giston toiÍj eÃxousin. 14 oiåmai d', e)a/n pote/
tij aÃra sofo\j poihth\j periì a)reth=j ge/nhtai, e)me\ me\n poih/sei polu/tlanta kaiì polu/mhtin kaiì
polumh/xanon kaiì ptoli¿porqon kaiì mo/non th\n Troi¿an e(lo/nta, se\ de/, w¨j e)g%Õmai, th\n fu/sin
a)peika/zwn toiÍj te nwqe/sin oÃnoij kaiì bousiì toiÍj forba/sin, aÃlloij pare/xousi desmeu/ein kaiì
zeugnu/nai au(tou/j.
ANEXO E

NOTA INTRODUTÓRIA

O discurso sobre a liberdade do filósofo que nos é restituído por Xenofonte, no Banquete, representa o que temos de
mais vivo sobre o caráter de Antístenes, tanto como homem quanto filósofo. Por essa razão o Anexo E poderá levar
ao leitor uma imagem do que teria sido a participação de Antístenes nos embates filosóficos que levaram à
constituição da metafísica e da ética ocidentais. Este fragmento mostra ainda, e acima de tudo, o prazer de falar.

A LIBERDADE DO FILÓSOFO

Fragmento do Banquete, de Xenofonte

III, 8.

Sócrates – Bem, ó Antístenes, de que te orgulhas?

Antístenes – Da minha riqueza.

Hermógenes – Então ele tem muito dinheiro?

Antístenes – Juro que nem um óbolo!

Hermógenes – Então possuis muitas terras?

Antístenes – O bastante para este Autolico se empoar com ela.

IV, 34-44.

Sócrates – Agora cabe a ti, ó Antístenes, nos dizer como te orgulhas da tua

riqueza com bens tão parcos.


271

Antístenes – Porque, senhores, acredito que a riqueza e a pobreza não estão nas

propriedades dos homens, mas em suas almas. Pois vejo, na verdade, muitos cidadãos certamente

possuidores de muitos bens que se consideram pobres, e se submetem ao esforço e ao perigo para

aumentá-los. Noto que irmãos, herdeiros iguais, um tem mais que o bastante para suas despesas e

o outro é total indigente. Observo que tiranos têm tanta fome de bens que chegam a empreender

as mais terríveis atrocidades; pois é por necessidade talvez que se rouba, se assalta, se escraviza;

há tiranos que destroem casas inteiras, massacram aldeias, e muitas vezes escravizam cidades

completas a fim dos bens. Quanto a mim, então, eu tenho muita pena pela doença cruel que os

aflige. Pois, na minha opinião, sofrem como se o muito que têm para comer bastante não os farte.

Assim eu mesmo, na verdade, tenho tanto riqueza que mal posso desfrutá-la: tenho o necessário

para comer até não ter fome, igualmente para beber até não ter sede, para me cobrir do frio

quando saio como nem mesmo o próprio Cálias com toda sua riqueza; assim também quando

estou em casa as paredes quentes parecem ser certamente uma veste, os caniços do teto

certamente um grosso manto, como também tenho um colchão tão bom que dá um trabalho

enorme me acordar. Quanto aos prazeres de Afrodite, a necessidade do meu corpo se satisfaz com

quem se apresentar, como também abraço com amor quando assedio quem dificilmente o seria

por outro. Assim então, todos esses prazeres para mim parecem ser tão agradáveis, na verdade

produzem tanto agrado, que não acolheria a cada um, mas a poucos; tanto que para mim parecem

ser mais doces que proveitosos. De todos os bens de valor na minha riqueza, me fossem eles

roubados agora, considero ser este o melhor: não vejo qualquer trabalho vil que não sirva para

fornecer o meu sustento. Quando quero me entregar à vida agradável, não vou ao mercado

comprar gêneros caros (que dão muita despesa), mas faço bom uso da minha alma. Quando se

trata de prazer, é muito melhor esperar a vontade antes de procurar a comida, ou provar bebidas

caras, como agora, por acaso, este vinho da Tássia, que bebo sem sede. Mas, de fato, parece ser
272

mais justo o que tem por escopo a frugalidade do que a quantidade de bens. Pois o que está mais

contente com o que tem mete menos a mão no que lhe é alheio. Vale notar que tal riqueza

propiciou-me ser livre. Pois assim é também Sócrates, junto de quem eu mesmo adquiri isso, ele

me engrandeceu sem número ou peso, mas o tanto que pudesse carregar doou-me largamente. Eu

mesmo agora nada invejo, mas para todos os amigos exibo a abundância de quem mais nada

inveja e compartilho com quem quiser a riqueza que tenho em minha alma. E mais, o bem mais

belo: me vedes sempre estar ocioso a assistir o que vale assistir, a ouvir o que vale ouvir e, o que

eu considero mais precioso, a passar o dia ociosamente com Sócrates. Ele, que não admira mais

os que contam o ouro, mas os que se completam com uma boa companhia.

Xenofonte simp. III, 8 AF 117. Ti¿ ga\r su/, eiåpen, e)piì ti¿ni me/ga froneiÍj, wÕ ¹Anti¿sqenej; ¹Epiì plou/t%,
eÃfh. o( me\n dh\ ¸Ermoge/nhj a)nh/reto ei¹ polu\ eiãh au)t%½ a)rgu/rion. o( de\ a)pw¯mose mhde\ o)bolo/n. ¹Alla\
gh=n pollh\n ke/kthsai; ãIswj aÃn, eÃfh, Au)tolu/k% tou/t% i¸kanh\ ge/noito e)gkoni¿sasqai. 9
¹Akouste/on aÄn eiãh kaiì sou=. IV, 34 ¹All' aÃge dh/, eÃfh o( Swkra/thj, su\ auÅ le/ge h(miÍn, wÕ
¹Anti¿sqenej, pw½j ouÀtw braxe/a eÃxwn me/ga froneiÍj e)piì plou/t%. àOti nomi¿zw, wÕ aÃndrej, tou\j
a)nqrw¯pouj ou)k e)n t%½ oiãk% to\n plou=ton 35 kaiì th\n peni¿an eÃxein a)ll' e)n taiÍj yuxaiÍj. o(rw½ ga\r
pollou\j me\n i¹diw¯taj, oiá pa/nu polla\ eÃxontej xrh/mata ouÀtw pe/nesqai h(gou=ntai wÐste pa/nta me\n
po/non, pa/nta de\ ki¿ndunon u(podu/ontai, e)f' %Ò plei¿w kth/sontai, oiåda de\ kaiì a)delfou/j, oiá ta\ iãsa
laxo/ntej o( me\n au)tw½n ta)rkou=nta eÃxei kaiì peritteu/onta th=j dapa/nhj, o( de\ tou= panto\j e)ndeiÍtai:
36 ai¹sqa/nomai de\ kaiì tura/nnouj tina/j, oiá ouÀtw peinw½si xrhma/twn wÐste poiou=si polu\ deino/tera
tw½n a)porwta/twn: di' eÃndeian me\n ga\r dh/pou oi¸ me\n kle/ptousin, oi¸ de\ toixwruxou=sin, oi¸ de\
a)ndrapodi¿zontai: tu/rannoi d' ei¹si¿ tinej oiá oÀlouj me\n oiãkouj a)nairou=sin, a(qro/ouj d'
a)poktei¿nousi, polla/kij de\ 37 kaiì oÀlaj po/leij xrhma/twn eÀneka e)candrapodi¿zontai. tou/touj me\n
ouÅn eÃgwge kaiì pa/nu oi¹kti¿rw th=j aÃgan xaleph=j no/sou. oÀmoia ga/r moi dokou=si pa/sxein wÐsper eiã
tij polla\ eÃxoi kaiì polla\ e)sqi¿wn mhde/pote e)mpi¿mplaito. e)gwÜ de\ ouÀtw me\n polla\ eÃxw w¨j mo/lij
au)ta\ kaiì [e)gwÜ aÄn] au)to\j eu(ri¿skw: oÀmwj de\ peri¿esti¿ moi kaiì e)sqi¿onti aÃxri tou= mh\ peinh=n
a)fike/sqai kaiì pi¿nonti me/xri tou= mh\ diyh=n kaiì a)mfie/nnusqai wÐste eÃcw me\n mhde\n ma=llon
Kalli¿ou tou/tou tou= plousiwta/tou r(igou=n: 38 e)peida/n ge mh\n e)n tv= oi¹ki¿# ge/nwmai, pa/nu me\n
a)leeinoiì xitw½nej oi¸ toiÍxoi¿ moi dokou=sin eiånai, pa/nu de\ paxeiÍai e)festri¿dej oi¸ oÃrofoi, strwmnh/n
ge mh\n ouÀtwj a)rkou=san eÃxw wÐst' eÃrgon me/g' e)stiì kaiì a)negeiÍrai. aÄn de/ pote kaiì a)frodisia/sai
to\ sw½ma/ mou dehqv=, ouÀtw moi to\ paro\n a)rkeiÍ wÐste aiâj aÄn prose/lqw u(peraspa/zontai¿ me dia\ to\
mhde/na 39 aÃllon au)taiÍj e)qe/lein prosie/nai. kaiì pa/nta toi¿nun tau=ta ouÀtwj h(de/a moi dokeiÍ eiånai
w¨j ma=llon me\n hÀdesqai poiw½n eÀkasta au)tw½n ou)k aÄn eu)cai¿mhn, hÂtton de/: ouÀtw moi dokeiÍ 40 eÃnia
au)tw½n h(di¿w eiånai tou= sumfe/rontoj. plei¿stou d' aÃcion kth=ma e)n t%½ e)m%½ plou/t% logi¿zomai eiånai
e)keiÍno, oÀti eiã mou/ tij kaiì ta\ nu=n oÃnta pare/loito, ou)de\n ouÀtwj o(rw½ fau=lon 41 eÃrgon o(poiÍon ou)k
a)rkou=san aÄn trofh\n e)moiÍ pare/xoi. kaiì ga\r oÀtan h(dupaqh=sai boulhqw½, ou)k e)k th=j a)gora=j ta\
ti¿mia w©nou=mai (polutelh= ga\r gi¿netaiŸ, a)ll' e)k th=j yuxh=j tamieu/omai. kaiì polu\ ple/on diafe/rei
pro\j h(donh/n, oÀtan a)namei¿naj to\ dehqh=nai prosfe/rwmai hÄ oÀtan tiniì tw½n timi¿wn xrw½mai, wÐsper
273

kaiì nu=n t%½de t%½ Qasi¿% oiãn% e)ntuxwÜn ou) 42 diyw½n pi¿nw au)to/n. a)lla\ mh\n kaiì polu\ dikaiote/rouj
ge ei¹ko\j eiånai tou=j eu)te/leian ma=llon hÄ poluxrhmati¿an skopou=ntaj. oiâj ga\r ma/lista ta\
paro/nta a)rkeiÍ hÀkista tw½n a)llotri¿wn 43 o)re/gontai. o)re/gontai. aÃcion d' e)nnoh=sai w¨j kaiì
e)leuqeri¿ouj o( toiou=toj plou=toj pare/xetai. Swkra/thj te ga\r ouÂtoj par' ou e)gwÜ tou=ton
e)kthsa/mhn ouÃte a)riqm%½ ouÃte staqm%½ e)ph/rkei moi, a)ll' o(po/son e)duna/mhn fe/resqai, tosou=to/n
moi paredi¿dou: e)gw¯ te nu=n ou)deniì fqonw½, a)lla\ pa=si toiÍj fi¿loij kaiì e)pideiknu/w th\n a)fqoni¿an
kaiì metadi¿dwmi t%½ boulome/n% tou= e)n tv= e)mv= yuxv= 44 plou/tou. kaiì mh\n kaiì to\ a(bro/tato/n ge
kth=ma, th\n sxolh\n a)eiì o(ra=te/ moi parou=san, wÐste kaiì qea=sqai ta\ a)cioqe/ata kaiì a)kou/ein ta\
a)ciakousta kaiì oÁ plei¿stou e)gwÜ timw½mai, Swkra/tei sxola/zwn sundihmereu/ein. kaiì ouÂtoj de\ ou)
tou\j pleiÍston a)riqmou=ntaj xrusi¿on qauma/zei, a)ll' oiá aÄn au)t%½ a)re/skwsi tou/ touj sunwÜn
diateleiÍ. ouÂtoj me\n ouÅn ouÀtwj 45 eiåpen.

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