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É possível dizer algo novo sobre essencialismo

de gênero?
The Metaphysics of Gender. construção social, instituída, que somente existe
à medida que é constantemente realizada,
repetida de forma estilizada sob a determinação
WITT, Charlotte. das normas sociais ao longo do tempo, criando
a ilusão do gênero como algo permanente.4
Oxford; New York: Oxford University Press, Considerando esse contexto controverso,
2011. 153 p. The Metaphysics of Gender, de Charlotte Witt,
redireciona o debate sobre essencialismo ao
apresentar a proposta original de ‘uniessencialismo
de gênero’, que, segundo a autora, contribui para
O problema do essencialismo de gênero a discussão político-feminista a partir do momento
aparece de forma recorrente no debate em que mostra como mulheres estão submetidas
feminista. Mas décadas de filosofia feminista a normas sociais opressivas, que restringem suas
parecem não se aproximar de algum consenso posições sociais. A política feminista precisa
sobre se de fato há alguma essência associada enfocar o modo como a sociedade está
à noção de gênero. Por isso, há uma tendência normativamente estruturada e criticar essas
atual de considerar o problema secundário para normas opressivas. Assumindo uma posição
a filosofia e a política feminista. Natalie Stoljar marxista, Witt sugere que a política feminista deve
afirma que empregar a expressão ‘essencialismo estar voltada para a mudança social (p. 47).
de gênero’ hoje em sala de aula é considerado No Prefácio do livro, Witt antecipa a pergunta
abuso e chega a ocasionar uma espécie de que reaparece no primeiro capítulo e que,
terrorismo intelectual.1 segundo ela, justifica pelo menos em parte a
Seguindo essa linha interpretativa, Mari obra: você seria a mesma pessoa ou indivíduo se
Mikkola questiona a relevância de discussões sobre pertencesse a um gênero diferente? A resposta
essencialismo de gênero. Ela afirma que talvez o recorrente a essa questão é ‘não’. Como essa
feminismo tenha pouco a ganhar com tal resposta parece óbvia aos interlocutores, Witt
debate, e, embora em um sentido descritivo seja deseja investigar em que sentido o gênero é
correto dizer que o essencialismo de gênero é essencial aos indivíduos de tal modo que, se
central na teoria feminista, isso não significa dizer pertencessem a outro gênero, não seriam mais
que ele deveria ser (ought to) central em um a mesma pessoa. A autora afirma estar interessada
sentido normativo, uma vez que a descrição na centralidade do gênero para as experiênciais
coerente sobre essencialismo tem pouco a individuais, ou seja, na importância do gênero
oferecer em termos éticos e políticos.2 Por outro para determinar o indivíduo social – e por que a
lado, algumas feministas, a exemplo de Alison pessoa é esse indivíduo social e não qualquer
Stone, defendem a importância da discussão outro. Nesse sentido, Witt desenvolve o argumento
acerca de essencialismo de gênero dentro do de que gênero é uniessential para os indivíduos
feminismo, oferecendo uma descrição sociais (p. xiii). Mas o que isso significa exatamente?
psicoanalítica sobre a identificação individual por Ao longo dos capítulos da obra a autora constrói
meio do gênero.3 Outras autoras, por sua vez, sua resposta a essa questão.
como Judith Butler, consideram que gênero não No primeiro capítulo, Witt distingue dois tipos
é um atributo essencial das pessoas, mas uma de essencialismo: essencialismo de tipo e

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essencialismo individual. No essencialismo de tipo, social é, assim, um agente social: ele ocupa
rejeitado por Witt, defende-se existir uma posições sociais e age por meio delas, sendo
propriedade, ou mais de uma, compartilhada capaz de estabelecer e alcançar objetivos de
pelos membros de um grupo. No essencialismo forma intencional (p. 60-61). O gênero se aplica
individual sustenta-se que há uma propriedade, a esse indivíduo social, porque a função repro-
ou mais de uma, que torna aquele indivíduo o dutiva socialmente mediada é relacional, ou seja,
indivíduo que ele é. Para entender como essa é especificada em relação a um outro, dentro
propriedade funciona, Witt recorre a um modelo de um determinado contexto social e histórico,
aristotélico de unificação, segundo o qual a que envolve um complexo conjunto de normas
essência é a causa substancial do indivíduo (p. sociais. Por isso, gênero é essencial para indivíduos
14). Essencial para o indivíduo social ser quem é, sociais.
é seu gênero. A propriedade essencial também A função de gênero é a posição social mais
explica a existência de um indivíduo acima da importante por determinar que tipo de normas
soma de suas partes constituintes pelo modo serão aplicadas ao indivíduo na sociedade.
como unifica e organiza o indivíduo. O gênero é Gênero é, portanto, o ‘megapapel social’ (mega
a propriedade que exerce essa função, ou seja, social role), prioritário a todos os demais papéis
constitui ontologicamente o indivíduo social sociais que o indivíduo ocupa. Gênero, diferente
unificado. Em outros termos, as posições sociais de outros papéis sociais, existe ao longo de toda
ocupadas simultaneamente pelo indivíduo são a vida do indivíduo, atravessa todas a culturas e
unificadas por sua função de gênero (p. 18). tempos, mesmo que seu conteúdo normativo
Com base na tese de que gênero é unies- varie de uma cultura para outra. Em virtude disso,
sencial para o indivíduo social, Witt define, então, Witt argumenta no capítulo quatro que o gênero
no segundo capítulo, gênero a partir da função é o ‘princípio de unidade normativa’ do indivíduo,
de reprodução de mulheres e de homens social- isto é, as várias posições sociais ocupadas pelo
mente mediada. O argumento do essencialismo indivíduo e os diversos papéis sociais são
de gênero não está, portanto, assentado em unificados e determinados normativamente por
eventuais propriedades distintas de homens e meio do ‘megapapel social’. Nesse sentido,
mulheres, mas na função social de reprodução gênero é a posição social cujas normas têm
(engendering function). A partir dessa função são priroridade, articulam e unificam todas as demais
associados papéis distintos que normatizam a posi- posições sociais: ser mãe, ser imigrante, ser
ção que cada indivíduo vai ocupar na socieda- médica, por exemplo, são diferentes posições
de. ‘Ser homem’ e ‘ser mulher’ implica um sociais, às quais papéis sociais específicos são
conjunto distinto de normas definindo atividades atribuídos, que se unificam em um indivíduo social,
apropriadas, que ancoram uma ampla gama por intermédio da posição de gênero de ‘ser
de normas influenciadas pelo gênero. Os papéis mulher’. A unidade do agente social é, portanto,
atribuídos à posição de ‘ser homem’ e ‘ser mulher’ uma unidade funcional e normativa entre
são reconhecidos pelos demais indivíduos que posições sociais e seus respectivos papéis sociais.
avaliam e cobram uma resposta adequada a Indivíduos sociais são unificados pelas normas de
tais papéis (p. 19). Witt defende, assim, uma teoria gênero, pois gênero é essencial para eles (p. 79).
atributiva da normatividade social, de acordo A articulação dessa concepção de essen-
com a qual os indivíduos não escolhem voluntaria- cialismo de gênero com a situação normativa e
mente seus papéis, nem precisam se identificar a ontologia do self é o objeto do quinto capítulo
com a posição social que ocupam. Os papéis de The Metaphysics of Gender. A situação
sociais são atribuídos aos indivíduos e normatizados normativa do self diz respeito ao modo como o
de acordo com a posição social de ‘ser homem’ self se insere na concepção atributiva de papéis
e ‘ser mulher’ (p. 43). sociais, ou seja, a relação entre a determinação
No terceiro capítulo, Witt esclarece sua social e a capacidade autorrefletiva do self. A
concepção ontológica tripartite de ‘indivíduo ontologia do self, por sua vez, refere o problema
social’, ‘organismo humano’ e ‘pessoa’. O unies- da relação do self com a concepção tripartite
sencialismo se aplica à noção de indivíduo social, do ser. No que tange à questão normativa, Witt
cuja existência relacional depende da realidade argumenta que a autorreflexão do self na
social. É o indivíduo social que está submetido à construção de sua identidade prática é mediada
normatividade de gênero, não o organismo pelos seus papéis sociais de gênero nas respec-
humano, nem a pessoa. É ele que ocupa uma tivas posições sociais ocupadas, que podem ser
posição social, regulada por normas e à qual explícitos e conscientes ou implícitos e não
certos papéis sociais são atribuídos. O indivíduo conscientes (p. 110-117). Sobre a ontologia, Witt

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argumenta que o self é produto da trindade social’ que funciona como princípio unificador;
unificada no sentido de que ele só é possível se a possibilidade da mudança social a partir do
as três instâncias ontológicas estiveram presentes, modelo atributivo da normatividade social e da
pois elas compartilham entre si propriedades concepção de ‘agente’ oferecida; e a própria
constitutivas e se integram na formação da relevância do debate sobre essencialismo de
identidade prática (p. 120). Portanto, o self é: a) gênero para o feminismo.6
corporificado (organismo humano), por precisar No entanto, um ponto que merece breve
de uma base material para agir; b) autorreflexivo atenção refere-se à existência de formas de
(pessoa), podendo aceitar ou rejeitar papéis realização de gênero distintas das tradicionais
sociais; e c) relacional, pois precisa ser um agente ‘ser mulher’ e ‘ser homem’. Na compreensão de
(indivíduo social) que ocupa posições sociais Witt, o reconhecimento social é uma condição
normatizadas pelo gênero. Essa concepção de necessária para ocupar posições sociais de
self, no entender de Witt, ajusta-se aos escritos gênero (p. 29). Por ‘reconhecimento social’ a
feministas contemporâneos, que criticam o self autora entende um conjunto complexo de nor-
como agente autônomo, livre de quaisquer mas, que variam culturalmente, composto tanto
restrições corporais, de relações com os outros e pela confirmação das instituições públicas, por
isolado de uma situação social (p. 118). meio de documentos, como certidão de nasci-
No Epílogo da obra, Witt refere as eventuais mento, passaporte, carteira de habilitação,
consequências de uma concepção uniessencia- quanto pelo reconhecimento interpessoal, atra-
lista de gênero para a política feminista. Witt escla- vés da participação em associações, clubes,
rece que não aborda a noção de gênero como igrejas, entre outras instituições (p. 45). Witt exem-
algo constitutivo para mulheres enquanto parte plifica o processo de mudança das condições
de um grupo, ou algo essencial para uma suposta materiais e sociais de realização de gênero
essência feminina inalterável. A autora trabalha citando as famílias de gays e lésbicas, nas quais
com a importância do gênero para a constituição a função de gênero é realizada de forma não
individual – do indivíduo que uma mulher é. Essa patriarcal, embora elas ainda não contem com
concepção uniessencialista de gênero permite reconhecimento social completo. Witt reconhe-
entender como certos papéis sociais, vinculados ce a necessidade de ações políticas para que
a posições sociais ocupadas, podem oprimir mu- esse reconhecimento torne-se completo, o que
lheres e situá-las numa posição de desvantagem pressupõe a atuação individual na mudança da
em relação aos homens. Embora homens e mu- normatividade social por meio da rejeição de
lheres ocupem muitas posições sociais seme- certos papéis sociais.
lhantes, às mulheres acabam sendo atribuídos A proposta de Witt abre a possibilidade de
papéis sociais distintos, muitas vezes opressivos, que indivíduos transgêneros constituírem um terceiro
as colocam numa posição social inferior. Uma vez gênero, desde que sejam socialmente reconhe-
identificados tais papéis sociais, é preciso promover cidos como ocupantes de uma posição social
mudanças na organização das práticas sociais – distinta de ‘ser mulher’ e ‘ser homem’; por
função da política feminista – para que as estruturas exemplo, ‘ser um indivíduo transgênero’ (p. 41).
sociais não oprimam mulheres, garantindo Dessa forma, embora a proposta de Witt apoie-
igualdade de poder nas relações (p. 132). se numa concepção dualista de gênero, ela não
A obra de Witt tem sido objeto de revisões exclui a possibilidade de outras formas de gênero
críticas na comunidade filosófico-feminista. Em emergirem na sociedade, desde que instrumen-
trabalhos recentes, Ásta Kristjana Sveinsdóttir, Ann tos sociais de reconhecimento sejam efetivados.
E. Cudd e Mari Mikkola 5 levantam diferentes O modelo de gênero de Witt, portanto, não se
pontos controversos em The Metaphysics of compromete com uma estrutura social patriarcal
Gender. Em linhas gerais, as críticas questionam: e auxilia a compreender o funcionamento das
a necessidade de uma concepção ontológica estruturas de gênero na sociedade contemporâ-
tripartite dos indivíduos; a justificação da categoria nea, além de esclarecer o modo como gênero
de ‘indivíduo social’ enquanto necessário para está imbricado na existência social.
dar sentido ao argumento do essencialismo; a Em suma, recorrendo à noção de uniessen-
concepção de ‘pessoa’ como um ser autorrefle- cialismo e explicando como uma variedade de
xivo, mas que não necessita de um mundo social; papéis sociais ocupados é unificada por meio
a fundamentação de ‘gênero’ na ideia de da função de gênero para formar um indivíduo,
função reprodutiva socialmente mediada e a Witt consegue fornecer uma explicação meta-
relevância dessa função para os indivíduos; a física inovadora acerca da centralidade do
possibilidade de gênero não ser o ‘megapapel gênero para as experiências sociais.7

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Notas Metaphysics of Gender”. Symposia on Gen-
1
Natalie STOLJAR, 1995, p. 261. der, Race and Philosophy, v. 8, n. 2, p. 1-10,
2
Mari MIKKOLA, 2012, p. 1-2. 2012. Disponível em: <http://sgrp.typepad.com/
3
Alison STONE, 2012, p. 13-14. sgrp/spring-2012-symposium-witt-on-the-
4
Judith BUTLER, 1988, p. 519. metaphysics-of-gender.html>. Acesso em: 15
5
Ásta Kristjana SVEINSDÓTTIR, 2012, p. 1-5; Ann E. CUDD, jun. 2012.
2012, p. 1-7; Mari MIKKOLA, 2012, p. 1-10. STOLJAR, Natalie. “Essence, Identity, and the
6
As respostas a essas críticas foram tecidas por Charlotte Concept of Woman”. Philosophical Topics,
Witt, mas não há espaço aqui para reconstruí-las e v. 23, n. 2, p. 261-293, 1995.
analisá-las. Confira: Charlotte WITT, 2012, p. 1-9. STONE, Alison. “Gender, Essentialism and Individu-
7
A realização desta resenha foi motivada pelas discussões als: A Response to Witt, The Metaphysics of
no seminário Gender and Essentialism, realizado no primeiro Gender”. In: Conference “Feminist Philosophy
semestre de 2012, sob coordenação da professora doutora
and Essentialism”. Berlin, 19-20 jul. 2012. [Não
Mari Mikkola, na Humboldt Universität zu Berlin. Agradeço
publicado].
gentilmente a todos os colegas a disciplina e também à
CAPES e ao DAAD, pelo financiamento do doutorado
SVEINSDÓTTIR, Ásta Kristjana. “Comments on
sanduíche na referida universidade. Charlotte Witt’s The Metaphysics of Gender”.
Symposia on Gender, Race and Philosophy,
Referências v. 8, n. 2, p. 1-5, 2012. Disponível em: <http://
BUTLER, Judith. “Performative Acts and Gender sgrp.typepad.com/sgrp/spring-2012-
Constitution: An Essay in Phenomenology and symposium-witt-on-the-metaphysics-of-
Feminist Theory”. Theatre Journal, v. 40, n. 4, gender.html>. Acesso em: 15 jun. 2012.
p. 519-531, dez. 1988. WITT, Charlotte. “The Metaphysics of Gender:
CUDD, Ann E. “Comments on Charlotte Witt’s The Reply to Critics”. Symposia on Gender, Race
Metaphysics of Gender”. Symposia on and Philosophy, v. 8, n. 2, p. 1-9, 2012.
Gender, Race and Philosophy, v. 8, n. 2, p. 1- Disponível em: <http://sgrp.typepad.com/
7, 2012. Disponível em: <http://sgrp.typepad. sgrp/spring-2012-symposium-witt-on-the-
com/sgrp/spring-2012-symposium-witt-on- metaphysics-of-gender.html>. Acesso em:
the-metaphysics-of-gender.html>. Acesso 15 jun. 2012.
em: 15 jun. 2012.
MIKKOLA, Mari. “How Essential is Gender Essentia- Tânia A. Kuhnen
lism? Comments on Charlotte Witt’s The Universidade Federal de Santa Catarina

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