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marxista Resennas Os leitores devem lembrar-se de que o ntimero 10 de Critica Marxista, editado no ano de 2000, publicou um artigo da historiadora Ellen Wood. Esse artigo, intitulado “As origens agrarias do capitalismo”, jA sintetiza- va, em certa medida, as conclusées do livro que ora resenhamos. O livro traz, entretanto, outros desdobramen- tos que merecem atengao. Encontramos em sua primeira parte um resumo breve, porém escla- recedor, das principais contribuigdes dos participantes do conhecido “de- bate sobre a transigao”', bem como das tendéncias atuais da historiogra- fia a propésito das origens do capita- lismo. O balango final dessa parte aponta novas quest6es para a histéria econémica marxista. **Professora do Instituto de Economia da Unicamp. LIGIA OSORIO SILVA* A origem do capitalismo ELLEN MEIKSINS WooD Tradugao de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001, 143 paginas “Pensar em alternativas futuras ao capitalismo exige que exploremos concep¢ées alternativas de seu pas- sado.” Esta frase da Introdugio ex- pressa com clareza a intengao da au- tora: entender a especificidade do sis- tema capitalista com 0 objetivo de alertar os povos empenhados em me- lhorar suas condigdes materiais de existéncia para a impossibilidade de repetirem a experiéncia historica dos pafses dominantes. Com efeito, a con- tribuicdio que a economia de merca- do capitalista pode dar ao desenvol- vimento das nacées pobres da Afri- ca, da Asia e da América Latina vem se mostrando menor a cada década, enquanto os maleficios que advém de sua adogiio (destruigaio dos recur- sos naturais, envenenamento da atmos- 1.0 debate da transi¢&o foi provocado pelas criticas de Paul Sweezy ao livro de Maurice Dobb A evolugao do capitalismo e desenrolou-se na revista Science & Society, entre 1950-3. Varios foram 6s participantes do debate; o essencial das contribuicdes esta em R. Hilton (ed.) La transicién del feudalismo al capitalismo, S* ed., Barcelona, Grijalbo, 1987. CRITICA MARXISTA © 171 fera, dos rios e dos mares, destruigao da camada de oz6nio, mudangas perniciosas nos habitos alimentares) © as conseqiiéncias que acarretam (dis- seminagao da fome, das epidemias, das enchentes etc.) aumentam sem cessar. Sem mencionar a piora siste- matica da distribuicio da riqueza a nivel planetério, pois est cada vez, mais claro que 0 movimento atual do capitalismo é excludente’. Nesta perspectiva, a autora em- penha-se em mostrar que o capitalis- mo nao foi uma conseqiiéncia natural ¢ inevitavel da natureza humana, ou da antiga tendéncia social de “comer- ciar, permutar e trocar” (Adam Smith). Ao contrario, foi o produto tardio € localizado de condigées histéricas mui- to especiais. Para construir uma critica contun- dente visio do capitalismo como uma decorréncia “natural”, o primeiro alvo de Wood sao as explicagées que presumem a presen¢a do capitalismo, em estado latente, nas sociedades “pré- capitalistas”, precisando, para desa- brochar, apenas que sejam removi dos os obstaculos de ordem politica ou ideolégica. Nesta linha de racioci- nio, a explicagao mais difundida das origens do capitalismo é 0 chamado modelo mercantil do desenvolvimento econémico, que considera 0 capita- lismo © resultado da expansao dos mercados e da crescente mercantiliza- ¢40 da vida econémica. Elaborada de forma sisteméatica por Henri Pirenne, esta explicagao sugere que o renasci- mento do comércio, ocorrido gracas ao crescimento das cidades e 4 remo- ¢ao dos entraves que pesavam sobre 0s comerciantes, liberou as forgas la- tentes do capitalismo que estavam presentes nos “intersticios do feuda- lismo”. Nesta explicacao o capitalis- mo aparece associado as cidades ¢ & figura hist6rica do burgués, pressu- pondo-se que cidades e comércio se- jam, por natureza, antitéticos ao feu- dalismo, e que 0 crescimento de ambos implica a crise e a desorganizacao do modo de produgao feudal. A critica de Maurice Dobb ao modelo mer- cantil sustenta a insuficiéncia dos ar- gumentos de Pirenne, uma vez que, em certas circunstancias hist6ricas, 0 desenvolvimento do comércio serviu para reforgar as relagdes feudais e nao para dissolvé-las. Dobb defendeu a necessidade de examinar o desenvol- vimento das relacdes de producdo no interior do modo de produciio feudal, onde estaria a chave para o entendi- mento da crise do sistema. Partindo da idéia de Dobb, de que a crise do feudalismo nfo se explica apenas pe- lo desenvolvimento do comércio, Wood procura incorporar a contribui cao de Paul Sweezy ao debate. Em primeiro lugar, concorda com Sweezy em que é necessério tratar 0 declinio do feudalismo e o surgimento do capitalismo como dois processos * Frangois Chesnais. A mundializacao do capital, traduicao de Silvana Fo, Sao Paulo, Xama, 1996, p. 33. 172 * A ORIGEM DO CAPITALISMO. independentes. Do contrério, se con- siderarmos a dissolugao do feudalis- mo suficiente para explicar a ascen- so do capitalismo, nao estarfamos de novo muito proximos dos pressupos- tos do modelo mercantil? A énfase pode ser colocada no campo e nao na cidade, na luta de classes entre senho- res € camponeses e nao na expansao do comércio. Mas um pressuposto essen- cial permaneceria idéntico: 0 capita- lismo surgiu quando os grilhdes do feudalismo foram retirados. De al- gum modo, portanto, o capitalismo 4 estaria presente nos intersticios do feudalismo, simplesmente & espera de ser libertado. Em segundo lugar, concorda com a critica de Sweezy 4 interpretacao convencional da teoria marxista da “via realmente revolucionaria” para 0 capitalismo industrial. Numa passa- gem de O capital (Livro Il), Marx su- gere que os capitalistas industriais, na Inglaterra, teriam surgido das fileiras dos pequenos produtores (artesfios), € que esta seria a “via realmente revolu- ciondria”, Sweezy nao cré na plausibi- lidade histérica desta tese. Cré, ao con- trario, que encontramos a génese do capitalista industrial no “comerciante € empregador de mao-de-obra assalaria- da”. Wood esté de acordo com esta observag&o porque ela reforga seu argumento, expresso ao longo do tex- to de diversas manciras, de que hé uma diferenga qualitativa e nao apenas quantitativa entre a pequena produgaio mercantil para o mercado e 0 modo de produgao capitalista, diferenga que requer uma explicagao. Retomando a discussao nos anos 70, Robert Brenner’ faz avancar 0 debate propondo a seguinte questao: de que modo as antigas formas de ‘“propriedade politicamente constitui- da” foram substituidas, na Inglaterra, por uma forma puramente econémica, e como foi que isso acionou um pa- dro caracteristico de crescimento eco- némico auto-sustentado? Sua respos- ta (polémica) leva 4 conclustio de que o capitalismo foi nos primérdios um fendmeno inglés. Os senhores e os camponeses, nas condigGes peculiares da Inglaterra, dispararam involunta- riamente a dindmica capitalista. A conseqiiéncia nao pretendida foi uma situago em que os produtores fica- ram sujeitos aos imperativos do mer- cado. Na Inglaterra do século XVII, uma propor¢iio excepcionalmente grande da terra estava nas maos dos Jatifundiarios e era trabalhada por ar- rendatarios cujas condi¢ées de posse da terra assumiram, cada vez mais, a forma de arrendamentos pagos em di- nheiro, cujos valores nao eram fixa- dos pela lei ou pelos costumes, mas respondiam as condigdes do mercado. As condigdes de posse da terra eram tais que um niimero crescente de ar- rendatarios ficou sujeito aos impera- tivos do mercado — nao a oportunida- de de produzirem para o mercado € passarem de pequenos produtores a *No artigo “Estrutura Agraria de classes desenvolvimento econdmico na Europa pré-industrial” (Past & Present, 1976). CRITICA MARXISTA * 173

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