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MARCOS

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Original em inglês:

New Testament Commentary: Mark

Author: William Hendriksen

TRADUTOR: CARLOS BIAGINI

Baker Book House

Grand Rapids, Michigan, 1979


Marcos (William Hendriksen) 2
CONTEÚDO

Abreviaturas

Introdução
I. Quem escreveu este evangelho?
II. Consideramos primeiro o “onde” e logo o “quando”
III. Por que foi escrito?
IV. Quais são suas características?
V. De que forma está organizado?

I. SEU COMEÇO OU INAUGURAÇÃO: Mc. 1:1–13

MARCOS 1
Mc. 1:1–8 - O ministério de João Batista
Mc. 1:9–11 - O batismo de Jesus
Mc. 1:12–13 - A tentação de Jesus no deserto

II. SEU DESENVOLVIMENTO OU CONTINUAÇÃO: Mc. 1:14–10:52

A. O GRANDE MINISTÉRIO NA GALILEIA: Mc. 1:14–45


Mc. 1:14, 15 - Começo do grande ministério na Galileia
Mc. 1:16–20 - A chamada de quatro pescadores
Mc. 1:21–28 - A cura de um homem com espírito imundo
Mc. 1:29–34 - A cura da sogra de Pedro e de muitos outros
Mc. 1:35–39 - A oração de Cristo antes do amanhecer; a
exclamação de Simão e a resposta de Cristo;
o ministério, a pregação de Cristo e a
expulsão de demônios por toda Galileia
Mc. 1:40–45 - A cura de um leproso
Marcos (William Hendriksen) 3
MARCOS 2
Mc. 2:1–12 - A cura de um paralítico
Mc. 2:13–17 - A chamada de Levi
Mc. 2:18–22 - A pergunta a respeito do jejum
Mc. 2:23–28 - O Filho do homem faz valer Sua autoridade
como Senhor até do sábado; arrancando
espigas no sábado
MARCOS 3
Mc. 3:1–6 - O Filho do Homem faz valer sua autoridade como
Senhor até do sábado; a mão seca
Mc. 3:7–12 - Jesus ensina e cura grandes multidões junto ao
mar
Mc. 3:13–19 - Eleição dos Doze
Mc. 3:20–30 - Foram os milagres de Cristo prova do domínio
ou da ruína de Belzebu?
Mc. 3:31–35 - A mãe e os irmãos de Jesus
MARCOS 4
Mc. 4:1–9 - Parábolas: Palavras introdutórias e a Parábola de
semeador
Mc. 4:10–12 - O propósito das parábolas
Mc. 4:13–20 - Explicação da parábola do semeador
Mc. 4:21–25 - Diversas declarações de Jesus
Mc. 4:26–29 - A parábola da semente que cresce em segredo
Mc. 4:30–32 - A parábola da semente de mostarda
Mc. 4:33–34 - O uso que Cristo faz das parábolas
Mc. 4:35–41 – Jesus acalma uma tempestade
MARCOS 5
Mc. 5:1–20 - Na terra dos gerasenos: a bondade em contraste
com a crueldade
Mc. 5:21–43 – Dois milagres: A restauração à vida da filha de
Jairo e A cura da mulher que tocou o manto de
Jesus
Marcos (William Hendriksen) 4
MARCOS 6
Mc. 6:1–6a - Jesus é rejeitado em Nazaré
Mc. 6:6b–13 - A missão encomendada aos Doze
Mc. 6:14–29 - A perversa festa de aniversário de Herodes e
A morte horripilante de João Batista
Mc. 6:30–44 - A alimentação dos cinco mil
Mc. 6:45–52 - Andando sobre a água
Mc. 6:53–56 - Curas em Genesaré
MARCOS 7
Mc. 7:1–23 - Contaminação cerimonial versus contaminação
verdadeira

B. O RETIRO E OS MINISTÉRIOS NA PEREIA: Mc. 7:24–37


Mc. 7:24–30 - A fé da mulher siro-fenícia é recompensada
Mc. 7:31–37 - A cura de um surdo-mudo
MARCOS 8 (8:1 – 9:1)
Mc. 8:1–10 – A alimentação dos quatro mil
Mc. 8:11–13 - Censura pela exigência de sinais
Mc. 8:14–21 - A levedura dos fariseus e de Herodes
Mc. 8:22–26 - A cura de um cego em Betsaida
Mc. 8:27–30 - A confissão de Pedro e a estrita ordem de Cristo
Mc. 8:31–9:1 - A primeira predição da paixão e da ressurreição
MARCOS 9 (9:2–50)
Mc. 9:2–13 - Transfiguração de Jesus no topo de um monte
Mc. 9:14–29 - Cura de um rapaz epilético
Mc. 9:30–32 - Segunda predição da paixão e a ressurreição
Mc. 9:33–37 - Quem é o maior?
Mc. 9:38–41 - Quem não é contra nós é por nós
Mc. 9:42–50 - Protejam os pequeninos e não cedam à tentação
MARCOS 10
Mc. 10:1–12 - Ensino a respeito do divórcio
Mc. 10:13–16 - Jesus e as crianças
Marcos (William Hendriksen) 5
Mc. 10:17–31 - O perigo das riquezas e a recompensa do
sacrifício
Mc. 10:32–34 - Terceira predição da paixão e da ressurreição
Mc. 10:35–45 - O pedido dos filhos de Zebedeu
Mc. 10:46–52 - A cura do cego Bartimeu em Jericó

III. SEU CLÍMAX OU CULMINAÇÃO - Mc. 11:1 – 16:8

A. A SEMANA DA PAIXÃO - Mc. 11:1 – 15:47

MARCOS 11
Mc. 11:1–11 - Entrada triunfal em Jerusalém
Mc. 11:12–14 - Maldição da figueira
Mc. 11:15–19 - Purificação do templo
Mc. 11:20–25 - A lição da figueira seca
Mc. 11:27–33 - A autoridade de Cristo: pergunta e contra
pergunta
MARCOS 12
Mc. 12:1–12 - A parábola dos lavradores maus e seus efeitos
Mc. 12:13–37 - Perguntas capciosas e respostas com autoridade.
Além disso, a pergunta de Cristo
Mc. 12:38–40 - Denúncia contra os escribas
Mc. 12:41–44 - A oferta de uma viúva
MARCOS 13 - Discurso de Cristo sobre os últimos tempos
Mc. 13:1–4 - A ocasião. Predição da destruição do templo
Mc. 13:5–13 - O começo dos ais ou dores de parto
Mc. 13:14–23 - A grande tribulação
Mc. 13:24–27 - A vinda do Filho do Homem
Mc. 13:28–31 - A lição da figueira
Mc. 13:32–37 - A necessidade de estar sempre preparado, à
vista da incerteza sobre o dia e a hora da
vinda de Cristo
Marcos (William Hendriksen) 6
MARCOS 14
Mc. 14:1, 2 - O propósito de Deus contra a confabulação
humana
Mc. 14:3–9 - A unção em Betânia
Mc. 14:10, 11 - O acordo entre Judas e os principais
sacerdotes
Mc. 14:12–21 - A Páscoa
Mc. 14:22–26 - A instituição da Ceia do Senhor
Mc. 14:27–31 - Jesus prediz a negação de Pedro
Mc. 14:32–42 - Getsêmani
Mc. 14:43–50 - A traição e arresto de Jesus
Mc. 14:51, 52 - O jovem que fugiu
Mc. 14:53–65 - O juízo diante do Sinédrio
Mc. 14:66–72 - A tríplice negação de Pedro

MARCOS 15
Mc. 15:1 - A decisão do Sinédrio de matar a Jesus. Jesus é
conduzido diante de Pilatos
Mc. 15:2–5 - Pilatos interroga Jesus
Mc. 15:6–15 - Jesus é sentenciado à morte
Mc. 15:16–20 - A zombaria
Mc. 15:21–32 - O Calvário: A crucificação de Jesus
Mc. 15:33–41 - O Calvário: A morte de Jesus
Mc. 15:42–47 - A sepultura de Jesus

B. A RESSURREIÇÃO
MARCOS 16
Mc. 16:1–8 - O Senhor ressuscitado; as mulheres surpreendidas

O PROBLEMA RELACIONADO COM MARCOS 16:9–20


BREVES NOTAS SOBRE O EPÍLOGO LONGO (Mc. 16:9–20)
Marcos (William Hendriksen) 7
Mc. 16:9–11 - A aparição de Cristo a Maria Madalena
Mc. 16:12, 13 - A aparição a dois de Seus discípulos
Mc. 16:14–18 - A Grande Comissão e os sinais
Mc. 16:19, 20 - A ascensão de Cristo

Bibliografia Seleta

Bibliografia Geral
Marcos (William Hendriksen) 8
ABREVIATURAS
A. Abreviaturas de livros

ARV American Standard Revised Version


AV Authorized Version (King James)
BAGD Bauer, Walter. A Greek-English Lexicon of the New Testament
and Other Early Christian Literature. Traduzido por W.F. Arndt,
F.W. Gingrich y F.W. Danker. Chicago: The University of Chicago
Press, 1979
BDF Blass, F; A. Debrunner y R.W. Funk. A Greek Grammar of the
New Testament and Other Early Christian Literature. Chicago: The
University of Chicago Press, 1961
BJ Biblia de Jerusalén. Bilbao: Desclée de Brouwer, 1975
BP Biblia del Peregrino. Bilbao: Ediciones mensajero, 1993
CB La Biblia. La Casa de la Biblia. Salamanca: Sígueme, 1992
CI Sagrada Biblia. F. Cantera y M. Iglesias. Madrid: BAC, 1975
CNT W. Hendriksen, Comentário do Novo Testamento
GNT The Greek New Testament, editado por Kurt Aland, Matthew
Black, Bruce M. Metzger e Allen Wikgren, edição 1966.
HA Nuevo Testamento Hispano Americano. Sociedades Bíblicas en
América Latina
ISBE International Standard Bible Encyclopedia
LT La Biblia. J. Levoratti e A.B. Trusso. Madrid-Buenos Aires:
Ediciones Paulinas, 1990
MM Moulton, J. H. e G. Milligan. The Vocabulary of the Greek
Testament illustrated from the Papyri and Other Non-Literary
Sources. Grand Rapids: Eerdmans, 1930
NAS New American Standard Bible (New Testament)
NBE Nueva Biblia Española. A. Schökel e J. Mateos. Madrid:
Cristiandad, 1975
NC Sagrada Biblia. E. Nácar y A. Colunga. Madrid: BAC, 1965
Marcos (William Hendriksen) 9
NEB New English Bible
NTG Novum Testamentum Graece, editado por D. Eberhared Nestle,
y revisado por E. Nestle e Kurt Aland, 25ª. edição, 1963
NTT Nuevo Testamento Trilingüe. J. M. Bover e J. O’Callaghan.
Madrid: BAC, 1977
NVI Nova Versão Internacional
Robertson Robertson, A. T. A Grammar of the Greek New Testament
in the Light of Historical Research. Nashville: Broadman, 1934
RSV Revised Standard Version
SB Struck and Billerbeck, Kommentar zum Neuen Testament aus
Talmud und Midrasch
SH The New Schaff-Herzog Encyclopedia of Religious Knowledge
TDNT Kittel, G. y G. Friedrich. Theological Dictionary of the New
Testament. Grand Rapids: Eerdmans, 1964–1976
Thayer Thayer’s Greek-English Lexicon of the New Testament. Grand
Rapids: Zondervan, 1962.
VM Versión Moderna. Sociedades Bíblicas en América Latina
WDB Westminster Dictionary of the Bible
AHWB Atlas histórico Westminster de la Biblia. El Paso: CBP, 1971

B. Abreviaturas de Revistas

BTr Bible Translator


EQ Evangelical Quarterly
Exp The Expositor
JBL Journal of Biblical Literature
JR Journal of Religion
JSS Journal of Semitic Studies
TT Theologisch tijdschrift
WTJ Westminster Theological Journal
Marcos (William Hendriksen) 10
INTRODUÇÃO AO EVANGELHO SEGUNDO SÃO MARCOS
I. Quem escreveu este evangelho?

De acordo com o título e a tradição unânime, o nome do escritor é


Marcos. Por boas razões, supõe-se que cada vez que se menciona este
nome no Novo Testamento sempre se refere à mesma pessoa. É chamado
Marcos em At. 15:39; Cl. 4:10; Fm. 24; 2Tm. 4:11; 1Pe. 5:13. Para ser
mais exatos, este era seu nome no mundo romano de fala grega. Em
grego se escrevia Markos e em latim Marcus. Naturalmente que, sendo
judeu (Cl. 4:10, 11), Marcos era seu apelido; seu “outro nome. Seu nome
original ou judeu era João (At. 12:12, 25; 15:37).
O Novo Testamento não nos provê uma biografia completa deste
homem. A tradição contém coisas de valor, mas o que diz dele não é
consistente em todos os pontos. Não nos é dado uma resposta definida e
uniforme a perguntas tais como: Quando Marcos escreveu o seu
Evangelho, foi a influência de Pedro tão decisiva e predominante, que
Marcos veio a ser só um secretário do apóstolo: “Pedro ditando, Marcos
escrevendo”? Não seria muito mais razoável pensar que a influência de
Pedro foi moderada, sendo Marcos o verdadeiro escritor? Neste caso
Pedro seria a principal fonte de informação de Marcos, mas de modo
algum a única. Outras interrogantes: Terminou Marcos seu livro
enquanto Pedro ainda vivia ou ele p fez depois de sua morte? Era Marcos
o homem que Jesus descreveu como levando um cântaro de água (Mc.
14:13)? Esteve entre os setenta missionários (Lc. 10:1)? Era literalmente
de “dedos curtos”, ou tal descrição tem que ver só com seu Evangelho, o
qual carece de uma introdução e conclusão como as que encontramos
nos outros Evangelhos? Fundou Marcos a igreja de Alexandria? Morreu
de morte natural ou sofreu martírio?
A seguir esboçaremos os fatos da vida de Marcos dos quais
podemos estar seguros ou que ao menos possuem um elevado grau de
probabilidade:
Marcos (William Hendriksen) 11
Embora provável, não é totalmente seguro identificar a Marcos com
aquele “um jovem” cuja interessante história é relatada no Evangelho de
Marcos (Mc. 14:51, 52). O que se relata ocorreu na noite antes da
crucificação. Jesus e Seus discípulos saíam do cenáculo. Estava este
aposento em casa de Maria, mãe de Marcos, onde também ele vivia?
Sendo assim, temos a seguinte situação: eram provavelmente as 11 da
noite (veja-se CNT sobre Mt. 26:31) e este “um jovem” estava
dormindo. De repente despertou. Haveria já rendido seu coração ao
Salvador? Talvez sentiu o desejo de acompanhar a Jesus. O fato é que
tomou um lençol, envolveu-se nele e saiu correndo atrás do Mestre.
Quando o guarda do templo o detém, consegue escapar à custa de perder
o lençol que fica em poder daqueles que tentaram capturá-lo (cf. Gn.
39:12). Se esta reconstrução não resultar muito atrevida, significaria que
sendo Marcos ainda bastante jovem, foi um dos “seguidores” de Cristo,
assim como sua mãe. Não pertenceu ao grupo dos Doze, nem conversou
pessoalmente com Jesus. Bem como muitos outros eruditos, datamos o
incidente de Mc. 14:51, 52 a princípios de abril do ano 30 d.C. Para
maiores detalhes veja-se sobre Mr. 14:51, 52.
Jesus logo partiria desta terra ao céu, e Se preocupou em não deixar
os Seus discípulos sem um líder. Num sentido muito real, tal líder foi
Pedro (veja-se CNT sobre Mt. 16:18). Depois de Cristo subir ao céu,
Deus usou, na festa do Pentecostes, a comovedora mensagem de Pedro
para reunir a não menos de três mil “ovelhas” em seu redil (At. 2:41).
Não é provável que a pregação de Pedro também exercesse uma
poderosa influência sobre João Marcos? Veja-se 1Pe. 5:13.
Os anos 30 a 44 guardam silêncio. Nada diz a Escritura sobre o que
sucedeu com João Marcos, até que em Atos 12:12–17 encontramos um
incidente que pôde ter sido de grande importância para ele. Os fatos
ocorrem provavelmente no ano 44 d.C. É-nos dito que Pedro é libertado
milagrosamente da prisão, e que imediatamente vai “à casa de Maria,
mãe de João, cognominado Marcos” (v. 12). Esta Maria não é,
naturalmente, a mãe de Jesus, nem Maria Madalena, nem Maria de
Marcos (William Hendriksen) 12
Betânia, nem Maria, mãe de Tiago e de José. Trata-se de Maria, a
abastada mãe de Marcos. Sua casa tinha um corredor ou vestíbulo e
também um cenáculo grande o suficiente para reunir um bom número de
pessoas. Tinha pelo menos uma servente, Rode. Maria não só era rica,
mas também generosa. Entregava-se de todo coração à causa de Cristo e,
portanto, estava disposta a emprestar sua casa cada vez que a
comunidade cristã a necessitasse. João Marcos era filho de uma mãe
como essa. Embora não possamos ter certeza de que nessa oportunidade
João Marcos achava-se em Jerusalém, parece que foi assim, visto que se
diz definidamente que pouco tempo depois Paulo e Barnabé tomaram
consigo a “João, cognominado Marcos” (At. 12:25) e que partiram com
ele de Jerusalém a Antioquia. Supondo que Marcos esteve em Jerusalém
na oportunidade descrita em At. 12:12–17, o jovem deve sido ficado
profundamente impressionado pela forma tão maravilhosa em que Pedro
foi libertado da prisão. Como o texto é claro em dizer que “muitas
pessoas” se reuniram em casa de sua mãe “viúva”, podemos supor com
bastante certeza que Marcos conheceu várias das primeiras testemunhas
dos feitos centralizados em Jesus. Como já o indicamos, não se sabe até
que ponto Marcos tinha conhecido a Jesus, e a tradição antiga não é de
muita ajuda neste ponto. Não existe evidência sólida de que depois do
ano 44 d.C. tenha havido alguma relação estreita entre Marcos e Pedro.
A evidência de uma relação entre ambos só aparece no final da vida de
Pedro. Portanto, deixemos Marcos por um momento, mais tarde
voltaremos a ele.
Tampouco nos é entregue um relato biográfico sobre a influente
figura de Pedro. Não obstante, os Evangelhos e o livro de Atos nos
relatam vários eventos de sua vida. O que se relata em Atos 1–5 são fatos
ocorridos em Jerusalém entre os anos 30 e 32 (inclusive), provavelmente
em sucessão imediata. O apóstolo Paulo converteu-se no ano 34, e
passados três anos (37 d.C.), visita Pedro em Jerusalém (Gl 1:18). Por
esse tempo, os apóstolos enviam Pedro e João a Samaria, onde
fortalecem a fé dos seguidores de Cristo e repreendem Simão, o mago.
Marcos (William Hendriksen) 13
Logo voltam para Jerusalém (At. 8:14–25). Esta excursão é seguida logo
pela visita de Pedro a Lida e Jope (At. 9:32, 43). Atos 10 relata a muito
importante missão de Pedro em Cesareia. Esta foi a experiência que lhe
abriu os olhos para ver quão universal era a misericórdia de Deus.
Voltando a Jerusalém, Pedro defende seu proceder em Cesareia, pois o
criticaram, dizendo: “entraste em casa de homens incircuncisos e
comeste com eles” (At. 11:1–18). O livro de Atos não fala do reinado do
imperador Cláudio (41–54 d.C.) senão até chegar a At. 11:28. Em
consequência, é bem possível que a visita de Pedro a Cesareia e sua volta
a Jerusalém não se estendessem para além do ano 41d.C. O próximo
evento na vida de Pedro diz respeito ao seu encarceramento e
maravilhosa libertação. Já nos referimos a este fato, quando dissemos
que tudo o que passou deve ter sido algo muito significativo para
Marcos. Este evento parece insinuar o tempo em que ocorreu. Se esta
inferência for correta, o incidente deve ter ocorrido precisamente antes
da morte do rei Herodes Agripa I, no ano 44 (At. 12:23). Atos 15:7–11
provê mais uma referência quanto a Pedro. Esta passagem resume o
discurso que Pedro pronunciou diante do Sínodo de Jerusalém, que
geralmente é datado em torno do ano 50. Pedro deve ter viajado de
Jerusalém a Antioquia da Síria, justamente antes do começo da segunda
viagem missionária de Paulo, datada de 50/51–53/54. 1 Foi neste lugar e
tempo em que Paulo “repreendeu” a Pedro (Gl 2:11–21). Acaso ficou
Pedro por algum tempo na Ásia Menor ou mais tarde voltou para alguns
dos lugares desta região? Como quer que tenha sido, 1 Pedro faz
evidente seu interesse pelas igrejas da Ásia Menor.
Depois do capítulo 15 de Atos, Lucas não volta a mencionar Pedro.
Por certo, todo o Novo Testamento em geral guarda silêncio. É verdade
que se dizem coisas como a de que alguns coríntios preferiam a Cefas (=
Pedro) em prejuízo de Paulo (1Co. 1:12, 22), que Cefas costumava levar

1
Para a evidência que apoia todas estas datas, veja-se W. Hendriksen, Bible Survey, pp. 62, 64, 70, 71;
também CNT sobre o Gl 2:1.
Marcos (William Hendriksen) 14
sua esposa em suas viagens missionárias (1Co. 9:5) e que Jesus pouco
tempo depois de Sua ressurreição apareceu a tal apóstolo (1Co. 15:5).
Mas este tipo de afirmações não invalidam de modo algum o fato de que
o Novo Testamento não oferece indicação alguma sobre o paradeiro de
Pedro a partir dos anos 50/51 até o final de sua vida, que foi
possivelmente pelo ano 64 d.C. O próprio Senhor havia predito que
Pedro selaria seu testemunho com o martírio (Jo. 21:18, 19; veja-se CNT
sobre esta passagem; cf. 2Pe. 1:14; I Clemente V; Tertuliano, Antidote
for the Scorpion’s Sting XV; Orígenes, Contra Celso II. xIV; e Eusébio,
História Eclesiástica, III. i).
Portanto, a teoria de que Pedro reinou como Papa em Roma por
vinte e cinco anos, do ano 42 a 67, carece de base bíblica. É a igreja
Romana a que sustenta essa tradição. Na realidade, se essa tradição fosse
verídica, quando Paulo escreveu sua Epístola aos Romanos (em ou ao
redor do ano 58), Pedro teria sido achado no apogeu de seu reinado.
Entretanto, na extensa lista de saudações que Paulo dirige aos crentes de
Roma de maneira individual (Rm. 16:3–15), nem sequer menciona
Pedro.
Agora, com relação à presença de Pedro em Roma, não há razão
para escolher nenhum dos dois extremos. Por um lado, devemos
abandonar fantasias como a dos vinte e cinco anos de episcopado
romano de Pedro e a identificação de sua tumba. Por outro lado, o
mesmo se deve fazer com a declaração de que Pedro jamais tenha estado
em Roma. Como no ano 58, Paulo escreve aos Romanos “esforçando-
me, deste modo, por pregar o evangelho, não onde Cristo já fora
anunciado, para não edificar sobre fundamento alheio” (Rm. 15:20),
alguns concluem que Pedro jamais pôde ter estado em Roma antes do
ano 58. Este é um argumento, por certo, falacioso. A igreja de Roma
tinha sido fundada muito tempo atrás, conforme o indica claramente a
mesma epístola. Provavelmente a igreja originou-se quando os
“visitantes vindo de Roma; judeus e prosélitos” voltaram aos seus lares
Marcos (William Hendriksen) 15
com prazerosas novas, depois de terem ouvido o sermão que Pedro
pregou em Jerusalém para a festa do Pentecostes (At. 2:10b, 14ss).
Referente ao significado de Rm. 15:20, quando Paulo diz que quer
pregar o evangelho onde Cristo não seja conhecido, referia-se a Espanha,
lugar que desejava visitar via Roma (veja-se Rm. 15:24). De modo que
Pedro, a quem Jesus ao edificar Sua igreja tinha atribuído um papel de
muita importância (Mt. 16:18), bem pôde ter feito uma visita anterior a
Roma, especialmente em consideração aos judeus cristãos residentes ali.
Segundo já observamos, os relatos do Novo Testamento nos deixam
com uma lacuna de vários anos quanto à vida de Pedro. Nada nos é dito
sobre onde esteve durante os anos 33 a 36; 42 e 43; 45 a 49; ou 52 a 62.
Pelo que diz Colossenses 4:11 (cf. Fm. 23, 24), é evidente que não esteve
em Roma durante os anos da primeira prisão de Paulo (talvez 60 a 62),
porque Paulo certamente não teria escrito Colossenses 4:11b, se Pedro
tivesse estado em Roma por aquele tempo. Mas isto ainda deixa a
possibilidade de muitos anos a partir do ano 33, tempo durante o qual
pôde ter estado fortalecendo a igreja de Roma com sua presença,
orações, pregação e direção. Finalmente, isto nos leva à uma data
próxima no final da vida de Pedro e de Paulo, quando reaparece
novamente evidência de uma íntima relação entre a. Pedro e Marcos e b.
Paulo e Marcos. Falaremos disto mais adiante.
A última data que mencionamos em conexão com Marcos foi o ano
44 d.C. Nesse ano não achamos Marcos na companhia de Pedro, e sim
de Barnabé e Paulo. Lembrar-se-á que estes dois homens foram enviados
a Jerusalém numa missão de socorro, e que tinham levado Marcos
consigo a Antioquia da Síria. Quando impulsionada pelo Espírito Santo,
a igreja comissionou a Barnabé e a Paulo para começar o que logo se
chamou a primeira viagem missionária de Paulo (At. 13:1–3), estes
homens levaram Marcos como “auxiliar” (At. 13:5). É evidente que
Marcos estava subordinado aos outros dois. Era um assistente. Não se
diz o que é que incluía exatamente este papel. Naturalmente nos vêm à
mente várias tarefas; por exemplo, talvez seria uma espécie de
Marcos (William Hendriksen) 16
administrador que organizava os detalhes relacionados com o itinerário
de viagem, assegurando a provisão de alimentos e alojamentos, enviando
mensagens; e, sobretudo, servindo como catequista, quer dizer,
continuando com o que os outros dois tinham começado. Como
catequista relatava a história da peregrinação de Cristo na terra e Seu
final triunfante, sublinhando a mensagem central da vida e ensinos de
Cristo, perguntando e respondendo perguntas, etc. Se para aquele então
Marcos já tinha escrito seu Evangelho, maior razão para considerá-lo
como a pessoa indicada para levar a cabo a tarefa de mestre ou
catequista.
Existiam também outras razões para considerar Marcos como a
pessoa mais adequada como auxiliar. Não era o filho de uma mulher tão
hospitaleira como Maria? Não resulta natural supor que ao ser
comissionados a ir ajudar Jerusalém (At. 11:29, 30; cf. 12:25), Barnabé e
Paulo tivessem sido alojados na casa dela, tendo oportunidade de ter
comunhão tanto com a mãe como com o filho? Além disso, não era
Barnabé primo mais velho de Marcos (Cl. 4:10)? Não é possível que
Marcos e seus pais (quando seu pai era vivo) trasladaram-se de Chipre a
Jerusalém, o que era o caso de Barnabé (At. 4:36, 37)? Além disso, não
era João Marcos bilíngue e não eram acaso também bilíngues seus
superiores, ou ainda poliglotas?
Os três missionários cruzaram até o Chipre via Selêucia, o porto da
cidade de Antioquia sobre o rio Orontes (At. 13:14). Tendo pregado a
palavra de Deus nas sinagogas de Salamina, os missionários
atravessaram toda a ilha, até chegar a Pafos na costa sudoeste. Ali o
famoso mago Barjesus lhes opôs e sem êxito tratou de impedir que o
procônsul Sérgio Paulo escutasse o evangelho. O mago e falso profeta
foi castigado com a cegueira, e dali eles se dirigiram a Ásia Menor.
Então sucedeu algo inesperado: quando chegaram a Perge, na Panfília,
Marcos os abandonou e voltou para Jerusalém (At. 13:13; cf. 15:36–
41)! Isto pôde ter ocorrido no ano 47. Não nos é revelado qual pôde ter
sido a razão exata pela qual Marcos se apartou deles. Foi porque lhe
Marcos (William Hendriksen) 17
desagradou o fato de que seu primo Barnabé cedesse a Paulo a
liderança? Contraste-se “por intermédio de Barnabé e de Saulo” (At.
11:30; 12:25; 13:2, 7), com “Saulo, também chamado Paulo” (At. 13:9),
“Paulo” (At. 13:16), e “Paulo e Barnabé” (At. 13:43, 46, 50, etc.). Sentia
falta de seu lar? Sentia-se preocupado pela segurança de sua mãe? Tinha
receios pela oferta de salvação que se fazia a judeus e gentios sem
distinção?
Têm sido oferecidas todas estas respostas. Ou seria talvez as
dificuldades vinculadas ao o trabalho missionário numa terra estrangeira,
os rigores da região montanhosa, seus terrores e perigos? (cf. 2Co.
11:26). O autor do presente comentário pensa que se alguma destas
respostas é factível, a última é a mais razoável. De acordo com At.
15:38, Paulo considerou Marcos como um desertor, alguém cujo coração
se acovardou por causa do “trabalho” que era preciso enfrentar. E não
implica At. 15:40 que se a igreja tomou partido com alguém deles, fê-lo
ficando do lado de Paulo? Em todo caso, o relato inspirado não nos deixa
a impressão de que Marcos fosse totalmente inocente quando voltou para
casa, deixando Paulo e Barnabé em momentos difíceis.
Depois da primeira viagem missionária e da conferência de
Jerusalém, Barnabé teve a ideias de levar Marcos na segunda viagem,
mas Paulo recusou categoricamente aceitar a ideia. Assim que,
“Barnabé, levando consigo a Marcos, navegou para Chipre” (At.
15:39b). Depois de At. 15:39, Lucas não volta a mencionar a Marcos, e
nem mesmo ao querido Barnabé (15:25).
Isto significa que o livro de Atos (e na realidade, todo o Novo
Testamento), não entrega nenhuma informação a respeito de Marcos,
nem sequer implícita, em relação aos dois longos períodos que
respectivamente cobrem os anos 31 a 43 e 52 a 59. Simplesmente, não
sabemos onde esteve nem o que fazia. Os incidentes que temos descrito
pertencem inteiramente aos anos 30, 44–47, 50/51. E as únicas
referências até aqui são Mc. 14:51, 52 (provavelmente); At. 12:12, 25;
13:5, 13; 15:37–39.
Marcos (William Hendriksen) 18
Oferece a “tradição” extra-canônica alguma informação confiável a
respeito de Barnabé e Marcos depois que atracaram a ilha de Chipre?
Realmente não existe, porque o livro chamado Os Atos de Barnabé é
uma obra espúria. Este é um escrito atribuído a Marcos (!), embora foi
escrito com data muito posterior. Segundo este documento, depois que
Barnabé sofreu o martírio em Chipre, Marcos plantou a bandeira de
Cristo em Alexandria. Fontes do mesmo tipo afirmam que chegou a ser o
primeiro bispo da igreja de Alexandria — uma tradição bastante popular
—, posição que ocupou até o oitavo ano do reinado de Nero. Visto que
Nero governou de 54 a 68, seu oitavo ano seria o 61. Entretanto, os
renomados pais alexandrinos Clemente e Orígenes nada dizem
absolutamente a respeito de alguma atividade ou de sequer a presença de
Marcos em Alexandria.
Voltando agora às Escrituras, única fonte de confiança, a única
coisa que dão a entender claramente com relação a Barnabé são duas
coisas: Primeiro, o que nos informa mediante os relatos a respeito dos
primeiros anos (veja-se At. 4, 9, 11–15; e segundo Gálatas, que quando
Paulo escreveu 1 Coríntios 9:6 (ao redor do ano 57 d.C.), Barnabé, primo
mais velho de Marcos, obviamente ainda vivia. Por certo, o nome
“Barnabé” também se encontra em Colossenses 4:10, mas somente para
indicar sua relação com Marcos: eram primos.
Ao redor da data mencionada acima, ou seja, “o oitavo ano do
reinado de Nero”, ou talvez um ano depois, Paulo escreve as epístolas
conhecidas como Colossenses e Filemom. Um dos que o acompanham é
Marcos, quem havia tornado a ganhar a confiança de Paulo. Durante seu
primeiro encarceramento, o apóstolo faz um comentário a respeito dos
judeus: “Aristarco, meu companheiro de prisão, e Marcos, primo de
Barnabé … Jesus, que se chama Justo, os quais são da circuncisão. Estes
unicamente são os meus cooperadores para o reino de Deus, os quais se
têm tornado a minha consolação” (Cl. 4:10, 11, TB; cf. Fm. 24; veja-se
CNT sobre estas passagens). Embora Paulo, em certo sentido, rejeitasse
Marcos (William Hendriksen) 19
Marcos em outro tempo, aqui Marcos aparece como um consolo para ele,
um colaborador valioso, altamente estimado e bem amado!
Pedro se achava em Roma, quando Paulo saiu da prisão e visitou
várias congregações de seu estendido domínio espiritual (veja-se CNT, 1
e 2 Timóteo e Tito, pp. 48, 49). Ali Pedro escreveu a carta que se
conhece como a “Primeira epístola de Pedro”, a qual se dirige aos
expatriados ou estrangeiros dispersos pelo Ponto, Galácia, Capadócia,
Ásia e Bitínia, escolhidos segundo a previsão de Deus o Pai (1Pe. 1:1,
2a). Ao despedir-se em sua carta, diz a todos: “Saúda-vos a igreja que
está em Babilônia, eleita convosco, e o mesmo faz meu filho Marcos”
(1Pe. 5:13, TB). A data é talvez ao redor do ano 63. Não pode ter sido
mais tarde que o ano 64, porque provavelmente foi no final desse ano
que Pedro sucumbiu, vítima da ira de Nero. Não nos é indicado o próprio
termo “meu filho” que a instrução e supervisão paternais de Pedro
vinham há muito tempo? Não é possível que mesmo antes de Pedro ter
escrito isto, tivesse havido frequentes contatos entre ele e João Marcos?
Não é verdade que Pedro era precisamente aquele que soube por
experiência própria que sempre há esperança para aqueles que de um
modo ou outro sucumbem à tentação de não ser totalmente leais a Cristo
e à Sua causa? Parece, pois, que a soberana graça de Deus usou a
“carinhosa tutela de Barnabé” (F. F. Bruce), a firme disciplina de Paulo e
a poderosa influência de Pedro, para triunfar sobre a vida de Marcos.
É claro, então, que durante alguns anos — provavelmente 61–63 ou
64 — o ministério de Marcos se desenvolveu em Roma, a capital do
mundo. Ao que parece, depois do martírio de Pedro, Marcos voltou a ser
assistente de Paulo. O apóstolo enviou Marcos e Timóteo para
realizarem uma excursão pelas igrejas da Ásia Menor. Possivelmente no
ano 66 e um pouco antes de sua morte, Paulo escreve a última epístola
que conhecemos de sua pena. Como Timóteo e Marcos ainda se
encontravam na Ásia Menor, Paulo escreve a Éfeso (veja-se CNT, 1 e 2
Timóteo e Tito, p. 53). Em sua carta diz a Timóteo “Toma contigo
Marcos e traze-o, pois me é útil para o ministério” (2Tm. 4:11b). Em
Marcos (William Hendriksen) 20
contraste com Demas, que foi aquele que o abandonou (2Tm. 4:10a),
Marcos voltou para Paulo!
Afinal de contas, quem foi Marcos? Não foi um grande líder, mas
antes, um seguidor. Não foi um perito arquiteto, e sim um auxiliar. Não
foi um homem irrepreensível, e sim aquele que teve que lutar para poder
vencer suas fraquezas; não era sedentário, e sim um viajante constante;
não era acima de tudo contemplativo, e sim um homem de ação, alguém
que se deleitou em descrever a Cristo em ação, para o bem da salvação
dos pecadores para a glória de Deus.
Embora seja verdade que Marcos escreveu o Evangelho mais breve
de todos, que nunca alcançou a popularidade dos outros três evangelistas
e que nunca é citado com a mesma frequência que aos outros, devemos
cuidar-nos contra tê-lo em pouco. Na igreja primitiva costumava-se
associar os quatro Evangelhos com quatro rostos: rosto de homem, de
leão, de bezerro e de águia. Estes eram os rostos dos seres viventes
descritos em Ezequiel 1:6, 10 (cf. Ap. 4:7). O rosto de “homem” com
frequência era associado (embora nem sempre) com Mateus; o “bezerro”
com Lucas, a “águia” com João. Quanto a Marcos, as autoridades não se
puseram de acordo. Embora todos descobriram neste Evangelho um
quadro verdadeiro de Cristo, ao lê-lo alguns lembravam o veloz voo da
águia, outros ao poderoso leão, outros ao homem humilde e outros ao
bezerro sacrifical. 2 Num sentido, todos estavam certos!
A seguir apresentamos a evidência que respalda a afirmação de que
Marcos realmente foi o escritor deste Evangelho, o mais breve.
Eusébio escreveu a começos do quarto século d.C. Em sua história
eclesiástica (Madri: BAC, 1973), II.xiv. 6–xv.2, declara: “Efetivamente,
pisando os pés [os de Simão, o mago] durante o império de Cláudio [41–
54 d.C.], a providência universal, santíssima e muito amante dos
homens, ia levando pela mão até Roma, como contra um tão grande
açoite da vida [quer dizer, contra Simão, o mago, quem tinha fugido a

2
Veja-se A. B. Swete, The Gospel according to St. Mark (Londres, 1913), pp. xxxvi–xxxviii.
Marcos (William Hendriksen) 21
Roma onde se erigiu uma estátua em sua honra] o firme e grande
apóstolo Pedro, porta-voz de todos os outros por causa de sua virtude.
Como nobre capitão de Deus, equipado com as armas divinas, Pedro
levava do Oriente aos homens do Ocidente a boa nova da própria luz, da
doutrina que salva as almas: a proclamação do reino dos céus.
“Assim é como, por habitar entre eles a doutrina divina, o poder de
Simão [o mago] extinguiu-se e se reduziu a nada em seguida, junto com
ele mesmo. Pelo contrário, o resplendor da religião brilhou de tal
maneira sobre as inteligências dos ouvintes de Pedro, que não ficavam
satisfeitos ouvindo-o uma vez, nem com o ensino não escrito da
pregação [querigma] divina, mas sim com todo tipo de exortações
importunavam a Marcos — de quem se diz que é o Evangelho e que era
companheiro de Pedro — para que lhes deixasse também um memorial
escrito da doutrina que pessoalmente lhes tinha irradiado, e não o
deixaram em paz até que o homem o acabou, e desta maneira se
converteram em causa do texto chamado Evangelho de Marcos.
“E dizem que o apóstolo, quando por revelação do Espírito soube o
que se fez, alegrou-se pela boa vontade daquelas pessoas e aprovou o
escrito para ser lido nas igrejas. Clemente cita o fato no livro VI de seus
Hypotyposeis, e o bispo do Hierápolis, chamado Papias, o apoia também
com seu testemunho. De Marcos faz menção Pedro em sua primeira
carta; dizem que esta a compôs na própria Roma e que ele mesmo
[Pedro] dá-o a entender nela ao chamar tal cidade, metaforicamente,
Babilônia, com estas palavras: Aquela que se encontra em Babilônia,
também eleita, vos saúda, como igualmente meu filho Marcos”.
Orígenes viveu um pouco antes (seu apogeu durante 210–250 d.C.).
Eusébio o cita como segue: “O segundo foi o Evangelho de Marcos,
quem o fez como Pedro o tinha indicado, o qual, em sua Carta católica,
proclama-o até como filho dele, com as seguintes palavras: Aquela que
se encontra em Babilônia, também eleita, vos saúda, como igualmente
meu filho Marcos” (op. cit., VI.xxv.5).
Marcos (William Hendriksen) 22
Podemos retroceder ainda mais, e mencionar Clemente de
Alexandria (em seu apogeu durante 190–200 d.C.), mestre de Orígenes.
Eusébio cita a obra de Clemente, Hypotyposeis, com estas palavras:
“Que o Evangelho de Marcos teve a seguinte origem: achando-se Pedro
em Roma, pregando publicamente a doutrina e explicando o Evangelho
pelo Espírito, os que estavam presentes — e eram muitos — exortaram a
Marcos, visto que o seguia desde fazia longo tempo e se lembrava do
que havia dito, a que o pusesse por escrito. Depois de o fazer, distribuiu
o Evangelho a quantos o pediam. E ao inteirar-se Pedro, nem o impediu
nem o estimulou” (VI.xiv.6, 7).
Tertuliano (em seu apogeu durante 193–216), em seu tratado
Contra Marcião, diz: “Pode dizer-se que o Evangelho que Marcos
publicou pertence a Pedro, cujo intérprete foi Marcos” (IV.5).
Irineu foi contemporâneo de Clemente de Alexandria e de
Tertuliano. Eusébio cita sua obra Contra as heresias III.i.1, dizendo: “…
Pedro e Paulo estavam em Roma, evangelizando e pondo os alicerces da
Igreja. Depois da morte destes [lit. depois da partida destes], Marcos, o
discípulo e intérprete de Pedro, transmitiu-nos por escrito, ele também, o
que Pedro tinha pregado” (V.viii.2, 3).
O Fragmento do Muratori consiste numa lista incompleta dos livros
do Novo Testamento. O fragmento está escrito num latim pobre e deve
seu nome ao cardeal L. A. Muratori (1672–1750), que o descobriu na
Biblioteca Ambrosiana de Milão. O fragmento pertence aos anos 180–
200 d.C. e tem bastante importância para a história do cânon do Novo
Testamento. Infelizmente é só um “fragmento” incompleto que perdeu o
que o original continha referente a Mateus. Contudo, definidamente dá
por sentada a existência e reconhecimento dos quatro Evangelhos. A
linha fragmentada que resta e que agora constitui o princípio da lista, diz
o seguinte com relação ao Evangelho de Marcos: “… no qual não
obstante se achava presente, e assim o colocou”. Em vista de todos os
outros testemunhos citados (Eusébio, Orígenes, Clemente de Alexandria,
Tertuliano, Irineu, etc.) seria muito precipitado sustentar que o autor
Marcos (William Hendriksen) 23
desta lista de livros não se estivesse referindo ao Evangelho segundo
Marcos.
Nos meados do segundo século d.C., Justino Mártir escreve: “E
quando se diz que a um dos apóstolos pôs o novo nome de Pedro e, além
disso, que a outros dois irmãos lhes pôs o nome do Boanerges, que
significa filhos do trovão, isto é um anúncio do fato de que, etc.”
(Dialogue with Trypho CVI). Isto mostra claramente que Justino tinha
lido o Evangelho segundo Marcos, porque é o único lugar onde se acha o
termo Boanerges, e onde, em imediata sucessão, menciona-se aquele que
a Simão, Tiago e João lhes acha posto outro nome (Mc. 3:16, 17).
É provável que já na primitiva data de 125 d.C., os quatro
Evangelhos estivessem reunidos numa coleção para seu uso nas igrejas,
indicando-se seus títulos. “Segundo Marcos” foi o título do mais breve
dos quatro.
Papias, discípulo do “presbítero João” (com toda probabilidade o
apóstolo João), parece ter nascido entre os anos 50 e 60 d.C., e ter
morrido pouco depois de mediados do segundo século. Ao investigar a
respeito da peregrinação de Cristo sobre este mundo, Papias se
interessava mais na “voz viva” ou testemunho oral dos primeiras
testemunhas que ainda viviam, que em documentos escritos (veja-se
Eusébio, op. cit., III.xxxix.1–4). Baseado, então, no que Papias diz ter
aprendido de João, Eusébio o cita um pouco mais adiante, dizendo:
“Marcos, intérprete que foi de Pedro, pôs cuidadosamente por escrito,
embora não em ordem, quanto lembrava do que o Senhor fez. Porque ele
não tinha ouvido o Senhor nem o tinha seguido, mas, como disse, a
Pedro mais tarde, o qual comunicava seus ensinos segundo as
necessidades [de seus ouvintes] e como quem faz uma composição das
sentenças do Senhor, mas de sorte que Marcos em nada errou [ou: não
fez mal] ao escrever algumas coisas tal como as lembrava. E é que pôs
toda sua preocupação numa só coisa: não descuidar nada de quanto tinha
ouvido nem enganar nisso no mínimo que fosse” (III.xxxix.15).
Marcos (William Hendriksen) 24
Portanto, não existe evidência que contradiga o veredito da
tradição, segundo a qual foi João Marcos, primo de Barnabé, quem
escreveu o mais breve dos amplamente reconhecidos quatro Evangelhos.
A evidência estende-se através de vários séculos, desde Eusébio até o
próprio Papias. Vem de todas as regiões: Ásia, África e Europa. Em
outras palavras, a tradição procede do Este (Papias de Hierápolis,
Eusébio de Cesareia), do sul (Clemente de Alexandria, Tertuliano de
Cartago), e do Oeste (Justino Mártir e o autor do Fragmento do Muratori,
de Roma). Às vezes uma testemunha representa duas regiões: o Este e o
Oeste (Irineu da Ásia Menor, Roma e Lyon); o Sul e o Este (Orígenes de
Alexandria e Cesareia). Ortodoxos e heterodoxos, textos gregos antigos e
versões anteriores acrescentam seu peso à mesma conclusão.
Não há dúvida de que há pontos nos quais a tradição varia. Por
exemplo, o papel preciso de Pedro em conexão com a composição do
Evangelho de Marcos ou a data em que o Evangelho foi escrito (a
respeito do qual, veja-se a seção II). Não obstante, todos as testemunhas
concordam em que a pregação de Pedro em Roma teve parte
significativa na produção desta obra. Embora seja razoável pensar que
Marcos tenha consultado várias fontes, tanto orais como escritas, a
tradição estabeleceu sem dúvida que ele foi o “intérprete de Pedro”.
Além disso, o conteúdo do livro confirma esta conclusão. Marcos
registra fielmente os pecados e fraquezas de Pedro, mas omite os
louvores que lhe são dados em outra parte (p. ex., em Mt. 16:17). Às
vezes Marcos menciona Pedro pelo nome (5:37; 11:21; 16:7), quando
Mateus não o faz. Além disso, o Evangelho de Marcos se caracteriza por
sua vivacidade, rapidez de movimento e atenção aos detalhes,
características que se associam facilmente com um Pedro ativo, vivaz e
entusiasta. Veja-se, p. ex., Mc. 1:16–31, 35–38; 5:1–20; 9:14–29; 14:27–
42, 54, 62–72. Em Mc. 1:36 menciona-se os discípulos com estas
palavras: “Simão e seus companheiros”.
Se a única coisa que tivéssemos fosse o Evangelho de Marcos, seria
impossível chegar à conclusão de que se escreveu como resultado (em
Marcos (William Hendriksen) 25
alto grau, ao menos) da pregação de Pedro. Por outro lado, a tradição
nos diz que, sem lugar a dúvida, esta foi a forma em que se escreveu.
Com base neste testemunho é possível, conforme se demonstrou, achar
no próprio Evangelho evidência que confirmam esta conclusão.

II. Consideremos primeiro o “onde” e logo o “quando”

O que se acaba de dizer quanto à relação do Evangelho de Marcos


com Pedro pode-se dizer com referência à sua conexão com Roma.
Embora em nenhum lugar o Evangelho indica ou prova de maneira
definida seu lugar de origem, há evidência interna que confirma as
declarações de Eusébio, Clemente de Alexandria, Irineu, etc. quanto a
que foi escrito em Roma e para os romanos.
O fato de que Marcos tenha traduzido ao grego termos e expressões
semitas como Boanerges (Mc. 3:17), talitá cumi (Mc. 5:41), corbã (Mc.
7:11), Efatá (Mc. 7:34), e Aba (Mc. 14:36), mostra que escrevia para
leitores que não eram judeus. Além disso, o escritor explica os costumes
dos judeus (Mc. 7:3, 4; 14:12; 15:42). Quanto à origem romana deste
Evangelho, observe-se como às vezes traduz do grego ao latim. Por
exemplo, Marcos menciona que as duas lepta (= moeda de cobre) que a
viúva pobre lançou na arca das ofertas eram equivalentes a um
quadrante romano (“quadrante”, Mc. 12:42), e que o aule (“palácio”)
onde os soldados levaram a Jesus era o pretório (residência oficial do
governador, Mc. 15:16).
Marcos é também o único Evangelho que nos informa que Simão
de Cirene era “pai de Alexandre e de Rufo” (Mc. 15:21), aqueles que
evidentemente era bem conhecidos em Roma (veja-se Rm. 16:13).

Marcos descreve a Cristo como um Rei ativo, enérgico, rápido em


Seus movimentos, batalhador, conquistador, um Vencedor sobre as
forças destruidoras da natureza, sobre as enfermidades, os demônios, e
até a morte. A forma em que Marcos fala de Cristo resultaria
Marcos (William Hendriksen) 26
especialmente interessante aos romanos, gente que por sua cobiça de
poder tinha subjugado o mundo. Marcos descreve um Rei que excede a
todo conquistador terrestre. Seu reino é muito mais extenso, sua
armadura muita mais efetiva, e seu governo imensamente mais
duradouro que qualquer que possa originar-se aqui embaixo. Além disso,
Suas vitórias são muito mais honrosas, porque concede aos conquistados
participação na glória de Suas conquistas. O Rei de Marcos é o Rei
Salvador. É o Vencedor que não Se deleita no sofrimento dos vencidos,
mas sofre em lugar deles e para conseguir seu bem-estar eterno (10:45).
Mais difícil é responder à pergunta: quando foi escrito este
Evangelho? Provavelmente é prudente dizer que deve ter sido composto
dentro do período que começa quinze anos antes de mediados do
primeiro século e que termina quinze anos depois de mediados do
primeiro século. Marcos era muito jovem para escrever seu Evangelho
antes do ano 35. Pedro deve ter morrido ao redor do ano 65, depois do
que já não teria podido aprovar “o escrito para ser lido nas igrejas”. 3
Começando com a última metade do período em questão —
portanto, os anos 50–65 — já temos demonstrado que ao redor do ano 63
Pedro e Marcos se achavam juntos em Roma. Em consequência, esta
parece a data ideal para a composição do Evangelho de Marcos. No
entanto, esta data não está isenta de dificuldades. Segundo já se expôs
(veja-se a seção sobre o problema sinótico na Introdução ao Evangelho
segundo Mateus, no CNT), Marcos provavelmente foi escrito antes de
Mateus, e Mateus antes de Lucas. O Evangelho de Lucas, por sua vez,
foi seguido por Atos. Esta cronologia faz com que surja a interrogante de
se não se estaria empurrando parte desta atividade literária muito perto

3
Segundo uma interpretação popular das palavras de Irineu citadas mais acima, Marcos escreveu o
seu Evangelho depois da morte de Pedro. Entretanto, Irineu confirma a quase unânime tradição de que
este Evangelho foi escrito em Roma pelo “intérprete de Pedro”. Além disso, existe muita controvérsia
quanto ao sentido das palavras de Irineu quanto a poder arrojar alguma luz sobre a data em que se
escreveu o Evangelho de Marcos. São muitas as perguntas que se levantam a respeito: Como é
possível que eles tenham fundado a igreja de Roma, ou é acaso que Irineu usa a expressão pondo os
alicerces num sentido pouco usual? O que quer dizer com “a partida destes”?
Marcos (William Hendriksen) 27
do terrível período da guerra dos judeus contra os romanos, com sua
sequela de amargas contendas entre os vários partidos existentes entre os
próprios judeus. Nem Lucas nem Atos indicam que estivesse ocorrendo
algo desta natureza quando estes livros foram escritos.
Sugeriu-se como data os últimos anos da década de cinquenta. O
resumo histórico que apresentamos sobre os eventos de importância nas
vidas de Pedro e de Marcos demonstrou que, pelo que à Escritura
concerne, não existe objeção à hipótese de que em algum momento entre
os anos 52 e 59, Pedro e Marcos tivessem estado juntos em Roma
(excetuando, segundo já se indicou, o ano 58, quando Pedro não se
achava naquela cidade).
Entretanto, tem-se dito que é possível fixar a data em que foi escrito
o Evangelho de Marcos entre os anos 35–50, ou ainda melhor 40–50,
distanciando-nos assim dos anos 50–65. As seguintes considerações
parecem favorecer este ponto de vista:
Primeiro, de acordo com a declaração de Eusébio que citamos mais
acima, foi durante o reinado de Cláudio (41–54 d. C.) que “a providência
universal … ia levando pela mão até Roma … o firme e grande apóstolo
Pedro” e que Marcos, “companheiro de Pedro”, escreveu um registro dos
ensinos de Pedro que chegou a ser o Evangelho segundo Marcos. O que
Marcos escreveu foi a pedido dos ouvintes de Pedro”.
Em segundo lugar, os unciais mais antigos (manuscritos com letras
maiúsculas) e os cursivos (manuscritos de escritura comum) têm
cabeçalhos que nos informam que o Evangelho segundo Marcos foi
escrito 10 ou 12 anos depois da ascensão de Cristo; portanto, entre os
anos 39 e 42.
Em terceiro lugar, o sacerdote espanhol O’Callaghan examinou um
pequeno fragmento de papiro encontrado na cova Nº. 7 perto de Qumran,
e afirma que tal papiro contém Mc. 6:52, 53. O papiro pertence ao
material ao qual se atribui uma data ao redor dos anos 50 d.C., o que
implicaria que o Evangelho foi composto numa data bastante anterior à
data do papiro (50 d.C.). Em consequência, uma data ao redor do
Marcos (William Hendriksen) 28
começo do reinado do imperador Cláudio poderia não estar longe da
realidade. Além disso, demonstrou-se que Pedro e Marcos bem puderam
ter passado algum tempo juntos em Roma naquele período.
A descoberta e identificação deste papiro que contém a passagem-
chave de Marcos, despertou grande interesse entre os estudiosos do
Novo Testamento. As observações que se fazem sobre este fato vão
desde “nada mudou” até “as probabilidades matemática de que o Dr.
O’Callaghan esteja certo são astronômicas”. Da minha parte, recomendo
a leitura dos excelentes artigos por William White, Jr., “O’Callaghan’s
Identifications: Confirmation and Its Consequences”, WTJ, 35 (Outono
1972): pp. 15–20, e “Notes on the Papyrus Fragments from Cave 7 at
Qumran”, WTJ, 35 (Inverno 1963), pp. 221–226.
Conclusão: Quando foi escrito Marcos 1:1 – 16:8? Resposta: em
algum momento entre os anos 40–65 d.C., com o peso da evidência
favorecendo agora a parte mais anterior deste período. Seria muito
precipitado falar de maneira mais definida. Nunca é sábio apressar
conclusões (Is. 28:16b). Referente a Mc. 16:9–20, veja-se o comentário
sobre essa seção.
Podría surgir la siguiente objeción: “Pero si el Evangelio fue escrito
en una fecha tan temprana, Marcos lo compuso cuando todavía era un
poco inmaduro espiritualmente, pues el acto de abandonar a sus
compañeros Pablo y Bernabé ocurrió tan sólo unos años después. ¿No es
verdad que esta situación rebajaría el aprecio que pudiéramos tenerle al
libro escrito por Marcos?”.
No entanto, se aplicarmos esta classe de crítica ao Evangelho
segundo Marcos, também deveríamos fazê-lo a todos os casos.
Estaríamos dispostos a rejeitar os primeiros Salmos de Davi porque
quando os escreveu seu pecado com Bate-Seba e seu subsequente
arrependimento encontravam-se a anos de distância? Olharemos com
desdém ao poderoso e eficaz sermão que Pedro pregou no Pentecostes
porque uns vinte anos mais tarde o homem que o pregou teve um
“comportamento imperdoável” em Antioquia (Gl 2:11–21)? Teremos
Marcos (William Hendriksen) 29
que descartar uma epístola escrita por um irmão do Senhor porque seu
autor teve que confessar que “todos tropeçamos em muitas coisas” (Tg.
3:2)? E lançaremos pela janela o livro de Apocalipse porque quando
João recebeu estas revelações ainda cometia erros em sua conduta
pessoal (Ap. 19:10; 22:8, 9)? Claro que não! O que se aplica a todos os
livros da Bíblia é válido também para Marcos: não atribuímos perfeição
aos homens que os escreveram, e sim atribuímos inspiração plenária ao
produto que, sob a direção do Espírito, eles nos deram.
Por conseguinte, devemos dar lugar à possibilidade de que este
Evangelho tenha sido escrito durante a primeira parte do período 40–65
d.C. Esta data anterior não é de modo nenhum segura. Veja-se P. Garnet,
“O’Callaghan’s Fragments: Our Earliest New Testament Texts?” EQ
XLV, Nº. 1 (janeiro-março 1973): pp. 6–12. Quando escreveu Marcos
este Evangelho? A resposta prudente seria “em alguma data entre o
período 40–65 d.C.”.

III. Por que foi escrito?

A primeira parte desta Introdução demonstrou que, segundo a


tradição, este Evangelho foi escrito em virtude de que os ouvintes de
Pedro em Roma insistiram em que lhes fosse dado um resumo da
pregação de Pedro. Entretanto, isto não significa que todo aquele que
estiver fora dos limites da capital romana tem sido proibido de ler este
livro. Segundo se vê claramente em Mc. 1:37; 10:45; 12:9; 13:10 (e até
em 16:15, seja ou não autêntico), o objetivo deste Evangelho foi alcançar
a todo mundo de fala grega: sua mensagem foi, é, e seguirá sendo de
significação universal.
Uma pergunta bem ao caso seria: Foi o propósito de Marcos só
prover informação ou queria também produzir transformação? Foi seu
propósito, como alguns sustentam, registrar um relato ou incentivar o
leitor a viver para a glória de Deus? Dito de outra forma, como via ele a
Jesus? Via-o só como um personagem interessante, cuja história e obras
Marcos (William Hendriksen) 30
poderosas precisam ser relatadas porque são fascinantes e porque
satisfazem a curiosidade das pessoas? Ou foi que, acima de tudo,
considerou Jesus como o poderoso e vitorioso Rei Salvador, diante de
quem todo ser humano deve render-se com fé sincera? Por certo que esta
última! Sempre se deve ter em mente que Marcos foi “o intérprete de
Pedro”. Agora, toda vez que Pedro pregava, também exortava ao
arrependimento. Sua pregação chegava ao seu clímax na exortação (At.
2:36–40; 10:43), a fim de que mediante o arrependimento e a fé os
homens fossem salvos, para a glória de Deus (At. 11:18). Se este foi o
propósito da pregação de Pedro, foi também de Marcos. Portanto, o
Evangelho de Marcos tem o duplo propósito de ser definidamente
doutrinal e inteiramente prático. Por certo que é uma narração, mas uma
narração com o mais nobre propósito (Mc. 10:45; 12:28–34; 16:16).
Agora, a disposição que tem alguém para render-se a Jesus depende
do que pense dEle. Em outras palavras, a fé sempre está relacionada com
a doutrina. Nem mesmo a narração se acha desprovida de implicações
doutrinais. Primeiro, a Cristologia implícita em todo o Evangelho de
Marcos é que Jesus é perfeitamente humano. O Senhor come (Mc. 2:16),
bebe (15:36), sente fome (11:12), toca as pessoas (1:41) e é tocado por
elas (5:27), entristece-se (3:5) e Se indigna (10:14). O cansaço O leva a
dormir, é despertado (4:38–39), pede que lhe provejam um barco para
que o povo não O aperte (3:9). Por algum tempo exerce um ofício, tem
mãe, irmãos e irmãs (6:3). Como homem, o Seu conhecimento é limitado
(13:32), de modo que se vira para ver quem O tocou (5:30), aproxima-Se
de uma figueira com a esperança de achar fruto amadurecido (11:13).
Possui corpo (15:43) e espírito humano (2:8). Até morre (15:37)!
Entretanto, o Evangelho de Marcos também O descreve como
perfeitamente divino. O “Filho do homem” (Mc. 2:10, 28; etc.) é
também o “Filho de Deus” (1:1; 3:11; etc.). Marcos descreve Alguém
que tem domínio supremo sobre as enfermidades, os demônios e a
morte. Como tal, cura todo tipo de enfermidades, expulsa demônios
(1:32–34), dá vista aos cegos, faz ouvir os surdos, etc. (8:22–26; 10:46,
Marcos (William Hendriksen) 31
52), purifica o leproso (1:40–45) e até levanta os mortos (5:21–24, 35–
43). Exerce poder sobre o reino da natureza em geral, visto que acalma
ventos e ondas (4:35–41), caminha sobre a água (6:48), faz com que uma
figueira se seque (11:13, 14, 20), e multiplica uns poucos pães, de modo
que milhares de pessoas satisfaçam sua fome (6:30–44; 8:1–10). Seu
conhecimento do futuro é tão específico e amplo, que prediz o que
acontecerá a Jerusalém, ao mundo, aos Seus discípulos (cap. 13) e a Si
mesmo (8:31; 9:9, 21; 10:32–34; 14:17–21). Sabe o que há no coração
dos homens (2:8; 12:15) e conhece suas circunstâncias (12:44). Sua
autoridade é tão sobressalente que pronuncia o perdão como somente
Deus e ninguém mais o pode fazer (2:1–12, especialmente versículos 5 e
6). O topo de Sua majestade revela-se em que depois de ser morto, volta
à vida (16:6)!
Pelo que acabamos de ver, devemos responder com um vigoroso
Sim à pergunta de se Marcos descreve a Jesus como objeto da fé. Desde
o começo e segundo a profecia, apresenta “Jesus Cristo o Filho de Deus”
como o Senhor cuja vinda é anunciada por um arauto que Lhe prepara o
caminho (Mc. 1:1–3).
Jesus é aquele a Quem os anjos servem (Mc. 1:13). Seu sangue é o
resgate oferecido a favor de muitos (10:45, cf. 14:24). Batiza com o
Espírito Santo (1:8), é o Senhor até do sábado (2:28), nomeia os Seus
próprios embaixadores (3:13–19), tem o legítimo direito de ser aceito
pela fé, incluindo os de “sua própria nação” (ideia implícita em Mc. 6:6).
Tem autoridade para mandar que os homens O sigam e O recebam (Mc.
8:34; 9:37), é Aquele a quem Davi chama “Senhor” (ideia implícita em
Mc. 12:37), e Aquele que virá outra vez na glória de Seu Pai (Mc. 8:38),
nas nuvens com grande poder e glória, quando enviar os Seus anjos
recolher os Seus escolhidos (Mc. 13:26, 27).
De acordo com este evangelista, Suas duas naturezas (humana e
divina) acham-se em perfeita harmonia. Ao estudar algumas passagens,
não se pode passar desapercebido este fato (Mc. 4:38, 39; 6:34, 41–43;
8:1–10; 14:32–41; etc.).
Marcos (William Hendriksen) 32
O anelo de Marcos é que os homens de todo lugar recebam a Jesus
Cristo, quem é o “Filho do homem” e o “Filho de Deus”, que recebam a
este Rei vitorioso como Salvador e Senhor.

IV. Quais são suas características?

As três características mais óbvias são as de brevidade, viveza e


ordem. Por brevidade entendemos que este Evangelho é muito mais
conciso que os outros. Na Bíblia que tenho diante de mim, Lucas cobre
aproximadamente 40 páginas, Mateus 37, João 29, e Marcos somente 23.
Lucas tem 1147 versículos, Mateus 1068, Marcos (1:1–16:8) tem só 661.
Marcos contém só uma parábola que não se acha em nenhum outro
lugar: a da semente que cresce em segredo (4:26–29). Além disso,
compartilha três parábolas com Mateus e Lucas: o semeador (Mc. 4:3–9,
18–23), a semente de mostarda (Mc. 4:30–32) e os lavradores maus (Mc.
12:1–9). Compare-se isto com as dez parábolas que são peculiares ao
Evangelho de Mateus, seis que compartilha com Lucas, e três com
Marcos e Lucas. Mateus tem dezenove parábolas no total. Lucas tem
dezoito parábolas que só ele registra. Se a este número for acrescentado
as outras nove já mencionadas, chegamos a um total de vinte e sete
parábolas que aparecem em Lucas. 4 Como Marcos omite parábolas que
são bastante extensas, a omissão faz com que este Evangelho seja
grandemente mais curto que os demais, mesmo quando o resto do
material tenha a mesma extensão.
Outro aspecto igualmente importante em relação a isto, é que
Marcos só registra um dos seis grandes discursos que se acham em
Mateus. Só relata o sexto discurso que trata das últimas coisas (Mt. 24 e
25; cf. Mc. 13), e ao fazê-lo, o faz com mais brevidade. Marcos só inclui

4
Não obstante, as parábolas podem ser catalogadas de maneira diferente. Veja-se CNT sobre Mateus,
pp. 29–32.
Marcos (William Hendriksen) 33
partes dos outros discursos, as que com frequência espalha por seu
Evangelho. Mas veja-se também Marcos 4.
Tudo isto significa que a brevidade de Marcos se relaciona
especialmente com as palavras de Jesus. Contudo, não são poucos os
versículos de Marcos que encerram tais palavras, visto que chegam a
278 (alguns versículos têm só uma ou duas delas). As palavras de Jesus
acham-se especialmente nos capítulos 2, 4, 7, 9, 10, e 12. Lucas tem 588
versículos que contêm palavras de Cristo, Mateus tem 640. Em
consequência, estas palavras cobrem o 60% dos 1068 versículos de
Mateus, 51% dos 1147 versículos de Lucas. Mas em Marcos cobrem só
o 42% de seus 661 versículos. Marcos é francamente o Evangelho da
ação. A omissão de tantos ditos de Jesus faz com que este curto
Evangelho possa reter uma série de histórias de milagres quase tão longa
como em Mateus, que é muito mais extenso. Cada um dos primeiros
onze capítulos de Marcos contém o relato de pelo menos um milagre
(Mc. 1:21–28, 29–31, 32–34, 39, 40–45; 2:1–11; 3:1–6; 4:35–41; 5:1–
20, 21–43; 6:30–44, 45–52, 53–56; 7:24–30, 31–37; 8:1–10, 22–26;
9:14–29; 10:46–52; e 11:12–14, 20, 21). Os que se registram em Mc.
7:31–37; 8:22–26 encontram-se unicamente em Marcos. Além disso, em
vários casos, o que se apresenta em Marcos é mais detalhado e gráfico
que o dos outros Sinóticos.
Isto nos conduz à segunda característica deste Evangelho, quer
dizer, a viveza. O estilo 5 de Marcos é faiscante. Não foi acaso intérprete
do vivaz, profundamente emotivo e animado Simão Pedro?
5
Para o vocabulário e estilo do original observe-se o seguinte:
a. H. B. Swete, op. cit., pp. 409–424 tem uma lista das palavras usadas no Evangelho de Marcos.
Em tal lista, as que vão precedidas por um asterisco não se usam em nenhum outro lugar do Novo
Testamento. Destas há aproximadamente 80, sem contar os nomes próprios.
b. Quanto ao estilo, em geral pode-se dizer que Marcos não só tem um estilo mais difuso, mas
também o mais vivo. Mateus tem um estilo mais sucinto e delicado. Lucas é o mais variado dos três
sinóticos.
c. O caráter gráfico da forma de escrever de Marcos se observa no seguinte: vê-se em suas
descrições do olhar de Cristo em várias ocasiões (Mc. 3:5, 34; 10:23; 11:11); nos atos e gestos de
Cristo (Mc. 8:33; 9:35, 36; 10:16, 32); na descrição das emoções e sentimentos do Senhor (Mc. 3:5;
Marcos (William Hendriksen) 34
Portanto, tendo estudado o Evangelho segundo Mateus, não se pode
passar por alto a Marcos pensando, “Este livro não contém quase nada
que não tenha sido dito pelo publicano convertido em escritor”. Por

6:34; 7:34; 8:12, 33; 10:14, 21; 11:12); e na descrição das pessoas que O rodeiam (Mc. 1:29, 36; 3:6,
22; 11:11, 21; 13:3; 14:65; 15:21; 16:7). Às vezes Marcos menciona o número de pessoas, animais,
etc. presentes. Nestas ocasiões os outros Evangelhos quase omitem estes detalhes ou os expressam de
maneira diferente (Mc. 5:13; 6:7, 40; 14:30). As indicações de lugar e tempo abundam neste
Evangelho (Mc. 1:16, 19, 21, 32, 35; 2:1, 13, 14; 3:1, 7, 13, 20; 4:1, 10, 35; 5:1, 20; 7:31; 12:41; 13:3;
14:68; 16:5, por dar só uns exemplos).
d. Outra das características que aumenta a viveza do estilo de Marcos é que com frequência muda o
tempo gramatical dos verbos que usa. Além disso, Marcos com frequência usa um tempo distinto ao
achado em Mateus e/ou Lucas. Exemplos: ἐγγίζουσιν (= “se aproximavam”, Mc. 11:1) versus ἤγγισεν
(= “ao aproximar-se”, Lc. 19:29); no mesmo versículo aparece ἀποστέλλει (= “ele envia”) versus
ἀπέστειλεν (= “ele enviou”). O mesmo sucede com φέρουσιν (= “levaram”, Mc. 11:7) versus ἤγαγον
(= “trouxeram”, Lc. 19:35); no mesmo versículo ἐπιβάλλουσιν (= “põem em cima”) versus
ἐπιρίψαντες (= “puseram em cima”, um verbo sinônimo). Em geral poderia dizer-se que em muitos
casos onde Marcos usa o tempo presente, Mateus e Lucas usam o aoristo ou o imperfeito. Veja-se J.
C. Hawkins, Horae Synopticae, pp. 143–153.
e. Outra diferença chamativa entre Marcos, por um lado, e Mateus e Lucas, por outro, é a
preferência que estes dois últimos têm pela partícula δέ contra a forte inclinação de Marcos pelo uso
de καί. É assim como nas passagens já citadas para mostrar as diferenças de estilo quanto aos tempo
verbais (Mc. 11:1–8, comparado com Lc. 19:29–35), Lucas usa καί cinco vezes para iniciar uma
cláusula ou frase, conquanto Marcos uma dúzia de vezes. Nestes mesmos sete versículos, Lucas usa δέ
três vezes (também uma vez no v. 36 e uma vez no v. 37), mas Marcos só uma vez (também uma vez
no v. 8). Sobre este ponto veja-se também Mc. 16:9–20.
f. Em conexão com o generoso uso que Marcos faz de καί deve mencionar-se também que é
característico que Mateus e Lucas com frequência coloquem um particípio onde Marcos usaria um
verbo finito com καί. Em tais casos, os dois favorecem a subordinação, enquanto Marcos a
coordenação. A respeito da influência semítica em Marcos veja-se Robertson, pp. 106, 118, 119, BDF
§ 321, 353. E veja-se Mc. 13:19, 20.
g. Uma característica que aumenta a faiscante forma de expressão de Marcos é o uso frequente do
advérbio εὑθύ: em seguida, imediatamente (umas quarenta vezes: Mc. 1:10, 12, 18, etc.). Também é
preciso mencionar o uso frequente do discurso direto (em lugar do indireto): “Silêncio! te acalme!”
(Mc. 4:39); “Sai deste homem, espírito maligno!” (Mc. 5:8); “Como te chamas?” (Mc. 5:9); “Manda-
nos aos porcos; deixe-nos entrar neles” (Mc. 5:12).
h. Em vista de tudo o que se mencionou, não é estranho que o estilo de Marcos seja enfaticamente
vernáculo. Eis aqui um homem comum que fala à gente comum, em sua maioria sem educação. Usa
um estilo que chama a atenção, uma linguagem que é ao mesmo tempo dele e deles. Não surpreende,
então, que faça uso frequente de diminutivos, tais como θυγάτριον (Mc. 5:23; 7:25); κοράσιον (Mc.
5:41, 42; 6:22, 28); κυνάριον (Mc. 7:27, 28). Marcos adora usar o duplo negativo popular (Mc. 1:44;
5:3; 16:8); não tem medo de empregar uma frase pleonástica (τότε ἐν ἐκειίνῃ τῇ ἡμέρᾳ, Mc. 2:20); e
adora os verbos compostos (Mc. 1:16, 36; 2:4; 5:5; 8:12; 9:12, 15, 36; 10:16; 12:17; 14:40; 16:4, etc.).
Marcos (William Hendriksen) 35
certo, se falarmos de material totalmente novo que não aparece de modo
algum em Mateus ou Lucas, existe muito pouco. Em geral mencionam-
se apenas 31 versículos de Marcos (Mc. 1:1; 2:27; 3:20, 21; 4:26–29;
7:3, 4; 7:32–37; 8:22–26; 9:29; 9:48, 49; 13:33–37; 14:51, 52). Por outro
lado, também é verdade que, em muitíssimas passagens ou parágrafos,
Marcos oferece alguns toques pitorescos que não se acham nos outros.
Não só se trata das passagens recém-mencionadas, porque estas
pinceladas que acrescentam vida ao relato se veem em outros lugares.
Eis aqui alguns exemplos: No deserto, onde Jesus foi tentado, o Senhor
“estava com as feras” (Mc. 1:13). A pregação de João Batista não foi só
negativa. Não só falou sobre arrependimento à concorrência, mas
também acrescentou: “crede no evangelho” (Mc. 1:15). Quando os
pescadores deixaram o seu pai no barco para seguir a Jesus, não o
deixaram recarregado de trabalho, mas o deixaram “com os empregados”
(Mc. 1:20). Ao curar a sogra de Pedro, Jesus não só a tocou, mas
também meigamente “tomou-a pela mão” (Mc. 1:31). Naquela tarde, ao
pôr do sol, “toda a cidade estava reunida à porta” da casa de Pedro (Mc.
1:33). “Tendo-se levantado alta madrugada, saiu, foi para um lugar
deserto e ali orava”. Foi onde Pedro e seus companheiros O encontraram,
para lhe dizer que todos O buscavam (Mc. 1:35–37).
A casa onde Jesus proclamava a mensagem se encheu a ponto de
não poder conter mais quantidade de gente; melhor dito: “tantos que nem
mesmo junto à porta eles achavam lugar” (Mc. 2:2).
Num sábado, o Senhor Se encontrava numa sinagoga. Seus
inimigos O olhavam com olhos críticos para ver se nesse dia curaria a
um homem que tinha a mão seca. Nessa oportunidade, “Olhando-os ao
redor, indignado e condoído com a dureza do seu coração” (Mc. 3:5).
Foi “ao anoitecer” quando os discípulos tomaram a Jesus “tal como
estava” e foram com Ele no barco (Mc. 4:35, 36). Logo “Jesus … estava
… dormindo sobre um travesseiro” (Mc. 4:38). Ele diz ao mar: “Acalma-
te, emudece!” (Mc. 4:39). Pergunta a seus discípulos, “Como é que não
tendes fé?” (Mc. 4:40).
Marcos (William Hendriksen) 36
Marcos relata a história da cura do endemoninhado gadareno com
muito mais detalhe que Mateus e Lucas. Marcos lhe dedica vinte
versículos (Mc. 5:1–20), Lucas quatorze (Lc. 8:26–39) e Mateus sete
(Mt. 8:28–34). Por exemplo, Marcos diz em seu relato que ninguém era
capaz de atá-lo, e acrescenta, “Andava sempre, de noite e de dia,
clamando por entre os sepulcros e pelos montes, ferindo-se com pedras”.
Os três Sinóticos nos informam que quando Jesus autorizou os
demônios, estes saíram do homem e entraram nos porcos. Ao ser
possessos, os animais se precipitaram barranco abaixo no mar. Marcos
acrescenta que eram “cerca de dois mil” (v. 13) porcos que se afogaram.
O que é certo com relação à cura do endemoninhado, também é válido
no caso da mulher que tocou o manto de Jesus: Não é Mateus (três
versículos, 9:20–22) nem Lucas (seis versículos, Lc. 8:43–48) aquele
que relata a história completa, mas sim Marcos (dez versículos, Mc.
5:25–34). Observe-se especialmente o que Marcos diz a respeito dos
médicos! (Mc. 5:25), o qual é omitido pelo “Dr.” Lucas (Lc. 8:43).
Outros detalhes registrados exclusivamente por Marcos encontram-se em
Mc. 5:29b, 30. Embora Marcos fosse o “intérprete de Pedro” não é
Marcos senão Lucas aquele que inclui a Pedro no relato (Lc. 8:45).
Jesus não pôde fazer “nenhum milagre” em sua própria aldeia (Mc.
6:5). Depois se informa que Herodias “E Herodias o odiava, querendo
matá-lo, e não podia. Porque Herodes temia a João …” (Mc. 6:19, 20).
Quando os apóstolos voltam de sua viagem missionário e informam a
Jesus, ele lhes diz: “Venham comigo vocês sozinhos a um lugar
tranquilo e descansem um pouco” (Mc. 6:30, 31). Em conexão com a
alimentação dos cinco mil, diz-se que a multidão reclinou-se em grupos
“de cem e de cinquenta” (Mc. 6:40; cf. Lc. 9:14). Depois Jesus envia os
discípulos a atravessar de barco à margem oposta. Mais tarde vê que os
discípulos faziam grandes esforços para “remar” (Mc. 6:48; cf. Mt.
14:24).
Jesus entrou “numa casa, queria que ninguém soubesse” (Mc. 7:24).
Quando a mulher siro-fenícia acudiu a Jesus não levou consigo a sua
Marcos (William Hendriksen) 37
filhinha que estava gravemente doente. A mulher roga ao Senhor que
tenha piedade dela e que a cure. Marcos deixa tudo isto claro dizendo
que a mulher “Voltando ela para casa, achou a menina sobre a cama,
pois o demônio a deixara” (Mc. 7:30).
Quando os fariseus discutem com Jesus e Lhe pedem que lhes
mostre um sinal do céu, Jesus “arrancou do íntimo do seu espírito um
gemido” (Mc. 8:12). Os discípulos “no barco, não tinham consigo senão
um só” pão (Mc. 8:14; cf. Mt. 16:5).
Os três discípulos (Pedro, Tiago, e João) discutiam entre si as
palavras de Jesus (Mc. 9:9), e perguntavam-se o que significaria “o
ressuscitar dentre os mortos” (Mc. 9:10). Estes mesmos discípulos,
depois de descer do monte da transfiguração, observaram uma grande
multidão que rodeava os outros discípulos e que “os escribas discutiam
com eles” (Mc. 9:14). Ao ver Jesus, a multidão foi “tomada de surpresa”
(Mc. 9:15). Marcos oferece uma descrição detalhada dos sintomas da
epilepsia e da forma em que o menino foi curado (Mc. 9:18–27). Este
evangelista registra também as notáveis palavras do pai do menino, “Eu
creio! Ajuda-me na minha falta de fé!” (Mc. 9:24). Por essa data Jesus
não quis que se divulgasse que viajaria através dos lugares separados da
Galileia (Mc. 9:30). Jesus pergunta aos Seus discípulos o que discutiam
no caminho. Respondem-lhe com silêncio (Mc. 9:33, 34; cf. Mt. 18:1;
Lc. 9:46, 47a). Jesus tomou o garotinho “nos braços” (Mc. 9:36). Lucas
9:49, 50 entrega uma razão que explica por que, um exorcista alheio ao
grupo de Jesus, não devia ser proibido de seguir fazendo o que fazia. A
isto, Marcos acrescenta outra razão (Mc. 9:41; em contraste com Mt.
10:42).
O jovem rico corre até Jesus e se ajoelha diante dEle (Mc. 10:17).
“Jesus, fitando-o, o amou” (Mc. 10:21). Quando diz ao jovem o que tem
que fazer, este “retirou-se triste” (Mc. 10:22; cf. Mt. 19:22; Lc. 18:23).
Então Jesus “olhou ao redor” e, vendo que Seus discípulos estavam
surpreendidos, esclareceu o que havia dito a respeito da grande
dificuldade que experimentam os ricos em seus intentos para entrar no
Marcos (William Hendriksen) 38
reino de Deus (Mc. 10:23a, 24). O Mestre assegura aos que estão prontos
a sacrificar tudo por Ele, que receberão entre outras coisas “terrenas”,
embora tudo isto “com perseguições” (Mc. 10:30). A caminho de
Jerusalém “Jesus ia adiante dos seus discípulos. Estes se admiravam”
(Mc. 10:32; cf. Lc. 9:51b). Não foi só a mãe de Tiago e de João a que fez
um pedido egoísta (veja-se Mt. 20:20), mas também estes dois discípulos
(Mc. 10:35). O nome do cego que foi curado em Jericó era Bartimeu.
Não só era cego, mas também “mendigo” (Mc. 10:46). Marcos 10:49, 50
oferece vivos detalhes quanto à forma em que animaram Bartimeu e a
respeito de sua resposta.
Os discípulos acharam “o jumentinho preso, junto ao portão” (Mc.
11:4). Quando Cristo fez Sua entrada em Jerusalém, a multidão
exclamou: “Bendito o reino que vem …” (Mc. 11:10; cf. Mt. 21:9; Lc.
19:38). Referente à purificação do templo, Marcos diz: “Não permitia
que alguém conduzisse qualquer utensílio pelo templo” (Mc. 11:16).
“Ouve, ó Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor!” (Mc.
12:29). O escriba respalda de todo coração o resumo que Cristo dá da lei,
o que motiva palavras de aprovação da parte de Cristo (Mc. 12:32–34).
“Mestre! Que pedras, que construções!” (Mc. 13:1; cf. Mt. 24:1; Lc.
21:5). “Pedro, Tiago, João e André lhe perguntaram em particular …”
(Mc. 13:3, é evidente que este detalhe ele recebeu de Pedro). “Um irmão
entregará à morte outro irmão, e o pai, ao filho …” (Mc. 13:12; mais
vívido que Mt. 24:10; Lc. 21:16). “Quando, pois, virdes o abominável da
desolação situado onde não deve estar” (Mc. 13:14).
Notemos os seguintes detalhes: Em conexão com a unção em
Betânia, Marcos relata que a mulher “quebrando o alabastro, derramou o
bálsamo …” (Mc. 14:3). Quanto às testemunhas que declararam contra
Cristo, quando este foi julgado diante do Sinédrio, diz-se que “os
depoimentos não eram coerentes” (Mc. 14:56). Quando Pedro nega a
Jesus, “e logo cantou o galo pela segunda vez …” (Mc. 14:72; cf. Mt.
26:74b, 75; Lc. 22:60).
Marcos (William Hendriksen) 39
O sedicioso Barrabás também tinha “cometido homicídio” (Mc.
15:7). A multidão pediu a Pilatos que soltasse um prisioneiro (Mc. 15:8).
Pilatos perguntou, “Que farei, então, deste a quem chamais o rei dos
judeus?” (Mc. 15:12; cf. Mt. 27:22). Simão de Cirene era “pai de
Alexandre e de Rufo” (Mc. 15:21; cf. Rm. 16:13). “Ao cair da tarde, por
ser o dia da preparação, isto é, a véspera do sábado”, quando José de
Arimateia “se atreveu” a apresentar-se diante de Pilatos e lhe pedir o
corpo de Jesus (Mc. 15:42, 43; cf. Mt. 27:57, 58; Lc. 23:50–52; Jo.
19:38). O que Pilatos fez antes de lhe conceder esta petição, detalha-se
em Mc. 15:44.
Foi no dia sábado, depois do pôr do sol, quando Maria Madalena,
Maria, mãe de Tiago e Salomé, compraram especiarias para ungir o
corpo de Cristo (Mc. 16:1; cf. Mt. 28:1). “Diziam umas às outras: Quem
nos removerá a pedra da entrada do túmulo?” (Mc. 16:3). O anjo disse às
mulheres, “Não vos atemorizeis; buscais a Jesus, o Nazareno” (Mc.
16:6). Depois lhes diz que vão dizer lhe aos discípulos “e a Pedro” (Mc.
16:7, outro recordatório da íntima relação existente entre Marcos e
Pedro; cf. Mt. 28:7). Mas “de medo, nada disseram a ninguém” (Mc.
16:8).
Por último, pareceria que, além de sua brevidade e viveza, o
Evangelho de Marcos é superior quanto à ordem cronológica. Desde
Marcos 1:1 a 6:13, os fatos que Marcos e Lucas relatam desenvolvem-se
de maneira notavelmente paralela. Lucas é o mais longo dos sinóticos,
assim que se em Lucas queríamos localizar um dos relatos de Marcos, só
devemos somar 3 (às vezes 4) capítulos ao número do capítulo onde
ocorre a narração de Marcos. Por exemplo, o relato da cura da sogra de
Pedro está no primeiro capítulo de Marcos (vv. 29–31). Se ao 1
somamos 3, atracamos o capítulo quatro de Lucas, onde se registra o
mesmo evento nos versículos 38–39. Veja-se CNT sobre Mateus pp. 14,
15. Não obstante, deve-se ter em mente que Lucas 7 não registra nenhum
paralelo com Marcos. Tampouco Marcos 7 se acha duplicado em Lucas.
Marcos (William Hendriksen) 40
Em contraste com Marcos, Lucas não se interessava na ordem
cronológica. Por exemplo, Lucas situa o rechaço que Cristo sofreu em
Nazaré no início de seu relato sobre o ministério de Jesus na Galileia,
apesar de que a própria história daquele rechaço (veja-se Lc. 4:23)
pressupõe que quando ocorreu, Jesus já tinha realizado considerável obra
na Galileia. Mateus (Mt. 13:53–58) e Marcos (Mc. 6:1–6) não relatam
este incidente, senão até ter chegado a quase a metade de seus
respectivos livros. De modo similar, ao chegar na metade de seu
Evangelho, Lucas faz várias indicações cronológicas tão indefinidas
(veja-se Lc. 11:1, 14, 29; 12:1, 13; 13:10, 18; 9:51 mas veja-se também
13:22; 17:11), que nos dá a entender claramente que, embora escreva
“ordenadamente” (Mc. 1:3), só busca uma distribuição cronológica
muito geral do material que dirige. Finalmente, quando Lucas coloca o
momento em que se identifica ao traidor (Mc. 22:21–23) depois da
instituição da Ceia do Senhor (Mc. 22:14–20; o que deve contrastar-se
com Mt. 26:20–29; Mc. 14:17–25; cf. Jo. 13:30), é óbvio que não
apresenta seu material em ordem cronológica. E por que teria que fazê-
lo? Lucas teve boas razões para relatar os fatos tal como o fez. Sua
narração ordenada de maneira temática é tão inspirada como o é o relato
de Marcos, que organiza seu material de uma forma muito mais
cronológica.
Quanto a Mateus, também é bastante claro que não procurou
apresentar os primeiros milagres na ordem em que ocorreram (cap. 8 e 9;
veja-se CNT sobre Mateus pp. 29–32). A maldição da figueira com a
respectiva lição que Jesus tirou do incidente, ocorreu parte na segunda-
feira da Semana de Paixão, e parte na terça-feira. Marcos chama a
atenção a este fato cronológico (Mc. 11:11, 12, 19, 20), mas Mateus o
ignora, pois deseja dar a conhecer toda a história de uma vez, num relato
coordenado e ininterrupto (Mt. 21:18–22). Naturalmente que tinha
razões justificadas para fazê-lo. Mas isto confirma a conclusão de que se
desejarmos uma ordem cronológica, devemos ir ao Evangelho de
Marcos, antes que a Mateus ou Lucas.
Marcos (William Hendriksen) 41
Algo muito significativo com relação a isto é o fato que em geral,
quando Mateus se afasta da ordem seguida por Marcos, Lucas o
conserva; e quando é Lucas aquele que se separa da ordem de Marcos,
Mateus o segue. Prova disto se oferece no CNT sobre Mateus, pp. 45–
48.
Pode ver-se que se dá uma clara relação entre Marcos e Mateus,
começando da história de João Batista (Mc. 6:14–29), para continuar
imediatamente na alimentação dos cinco mil (Mc. 6:30–44), e seguindo
até o final em ambos os Evangelhos (veja-se CNT sobre Mateus, p. 33,
34). Uma relação parecida existe entre Marcos e Lucas, começando do
relato em que Jesus recebe as crianças (Mc. 10:13–16) até o final de
ambos os livros (veja-se CNT sobre Mateus, p. 16).
Isto não quer dizer, entretanto, que cada seção de Marcos tem seu
paralelo em Mateus ou em Lucas ou em ambos. Marcos 6:14–16:8 pode-
se dividir em 62 perícopes ou seções que levam seu próprio título cada
uma. Dessas 62 seções, cinco não têm paralelo em Mateus (refiro-me às
seções de Mc. 7:31–37; 8:22–26; 9:38–41; 12:41–44; 14:51, 52). Das 42
seções em que Marcos 10:13–16:8 pode-se dividir, 8 não têm paralelo
claro em Lucas (as seções são Mc. 10:35–45; 11:12–14; 11:20–25;
11:28–34; 13:32–36; 14:3–9; 14:51, 52; 15:16–20. Com relação a Mc.
11:28–34, veja-se CNT sobre Mateus, p. 849, nota 763). Isto significa
que a maioria das seções de Marcos (de Mc. 10:13 em diante), têm
paralelo tanto em Mateus como em Lucas, desenvolvendo-se os três
relatos ao mesmo tempo.
Não se pretende que Marcos tenha sempre disposto as prováveis
seções básicas de seu Evangelho em estrita ordem cronológica. De vez
em quando as indicações de tempo são um tanto indefinidas (Mc. 10:13,
17; 12:1; 14:10). Por outro lado, Marcos não nos oferece um relato sobre
o Nascimento de Jesus. Tampouco cobre o primeiro nem o último
ministério na Judeia. Definidamente não foi o propósito de Marcos
apresentar uma “biografia” ou “vida de Cristo”. Tampouco tratou de
oferecer um resumo dos discursos de Cristo, apresentando-os na ordem
Marcos (William Hendriksen) 42
6
em que foram pronunciados. Tudo o que quer dizer é que, diferente de
Mateus e Lucas, a ênfase cronológica de Marcos nos proporciona uma
guia. Observe-se as muitas indicações definidas referente a tempo e lugar
(Mc. 10:32, 46; 11:1, 11, 12, 15, 19, 20, 27; 13:1, 3; 14:1, 3, 12, 17, 22,
26, 32, 43; 15:1, 22, 33, 42; 16:1, 2; estas, além das que se acham nos
primeiros nove capítulos).
Em conclusão, se buscarmos um evangelho que se caracterize por
ser breve, vívido e com ordem cronológica, nós o encontraremos
especialmente no Evangelho segundo Marcos! 7

V. De que forma está organizado?

O Evangelho segundo Marcos omite o nascimento de Jesus.


Entretanto, o primeiro capítulo expressa a verdade dAquele que afirma
“para isso é que eu vim” do céu (veja-se Mc. 1:38b). Jesus não apenas
nasceu, Ele veio do céu. Não existe uma boa razão para crer que Mc.
1:38 tenha outro significado básico que o de João. 6:38. Jesus veio do
céu com um propósito, e Marcos nos diz com toda clareza que seu
objetivo era “pregar” (Mc. 1:38), “chamar … pecadores” ao
arrependimento (Mc. 2:17), “dar sua vida em resgate por muitos” (Mc.
10:45). Isto é semelhante a “salvar o que se havia perdido” (Lc. 19:10);
“salvar os pecadores” (1Tm. 1:15). Paulo diz, “Jesus Cristo … se fez
pobre por amor de vós, para que, pela sua pobreza, vos tornásseis ricos”
(2Co. 8:9).
O Pai “enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados”
(1Jo. 4:14). Por isso, um bom título (veja-se Jo. 17:4b) para a história
que é narrada em qualquer dos Evangelhos seria:

6
Portanto, mesmo quando a citação de Papias (via Eusébio; veja-se mais acima, na p. 20) não é
inteiramente clara, pode-se dar-lhe uma interpretação que esteja em harmonia com os fatos.
7
A prioridade relativa do Evangelho de Marcos com relação a Mateus e a Lucas já foi analisada no
CNT sobre Mateus, pp. 44–50. Na mesma obra, veja-se também a seção dos três Evangelhos Sinóticos
sob o simbolismo de três rios, pp. 33–39.
Marcos (William Hendriksen) 43
A obra que lhe deste para fazer

As divisões gerais para os três Sinóticos poderiam ser as mesmas,


vale dizer, a obra (ou o trabalho):

I. Começada
II. Continuada
III. Consumada

Usando uma fraseologia levemente diferente:


I. Seu principio ou inauguração
II. Seu progresso ou continuação
III. Seu clímax ou consumação

Quanto às subdivisões de Marcos, sob cada um destes títulos gerais,


veja-se a tábua de Conteúdo e os esboços que se dão no começo de cada
capítulo.
Marcos (William Hendriksen) 44

I. SEU COMEÇO OU INAUGURAÇÃO:


Mc. 1:1–13
Marcos (William Hendriksen) 45
MARCOS 1
Mc. 1:1–8 - O ministério de João Batista
Cf. Mt. 3:1–12; Lc. 3:4–18; Jo. 1:6–8, 15–28

Embora em muitos aspectos os Evangelhos se assemelham entre si,8


cada um deles tem um ponto de partida diferente. Mateus começa sua
história com o relato da ascendência, concepção e nascimento de Jesus,
acrescentando como foi que Lhe puseram o nome de Jesus. Pelo
contrário, Lucas começa com uma dedicatória e com o relato do
nascimento de João Batista.
Por sua vez, João começa nos lembrando que “o Verbo” (= Cristo)
já existia “no princípio”, isto é, existia desde a eternidade. Esse Verbo Se
fez carne. Qual é o ponto de partida de Marcos e por que? Já se indicou
que Marcos apresenta a Cristo como Rei ativo, enérgico, rápido em suas
ações, guerreiro e conquistador. Agora, a chegada de um rei em geral é
precedida por um arauto, cuja função é lhe preparar o caminho e
proclamar sua vinda. Não surpreende, pois, que o Evangelho de Marcos
comece com uma descrição do arauto, para que aquele que estuda este
Evangelho fique impressionado desde o princípio com o caráter daquele
de quem se anuncia ou proclama.

1. Princípio do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus.


Embora no original a palavra “principio” não é precedida de artigo,
também poderia ser traduzido “o princípio”. Contudo, mais importante é
o assunto de se as palavras “Principio (ou: o princípio) do evangelho de
Jesus Cristo, Filho de Deus” devem a. construir-se de maneira
independente, como o título de todo o Evangelho, ou se deveriam b.
considerar-se em estreita relação com o que vem imediatamente depois,
8
As referências que damos dos outros Evangelhos são só a modo de comparação, e não se indica o
grau ou quantidade de semelhança. Portanto, as referências dadas não querem dizer que em sua
totalidade Mc. 1:1–8 é paralelo ou similar ao que se diz nos outros evangelhos.
Marcos (William Hendriksen) 46
quer dizer, com “Conforme está escrito … Eis aí envio diante da tua face
o meu mensageiro, o qual preparará o teu caminho … Apareceu João
Batista …”. 9 Em defesa da teoria que toma as palavras como título de
todo o livro, argumenta-se que de acordo com Atos 1:1, Lucas também
considera seu “primeiro tratado” como o princípio do evangelho. Mas
pelo fato de que Marcos talvez não pensava escrever dois livros, é
duvidoso que esta analogia seja válida. Em deterioro da teoria do título,
os argumentos que apresentamos a seguir favorecem o vincular
estreitamente Marcos 1:1 com 1:2–4.
Primeiro, se Mar 1:1 tivesse tido o propósito de ser uma inscrição
ou título de todo o livro não teria sido mais natural escrever “O
evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”, em lugar de “Princípio do
evangelho …”?
Segundo, não é verdade que a palavra “como” (em “conforme está
escrito … ”) indica que o versículo 1 se acha estreitamente relacionado
com o que segue imediatamente (nos vv. 2–4) com referência às
profecias que se cumpriram em João Batista?
Terceiro, deve-se ter em mente que com toda probabilidade Marcos
foi “o intérprete de Pedro”. E quando Pedro proclamou as boas novas em

9
Em favor da primeira posição vem Vincent Taylor, The Gospel According to St. Mark (Londres,
1953), p. 152. Também J. A. C. Van Leeuwen, Het Evangelie naar Markus (Korte Verklaring,
Kampen, 1935), p. 20. Em favor da primeira posição estão também G.C. Morgan, The Gospel
According to Mark (Nova York, etc., 1927), p. 12; e R.C.H. Lenski, The Interpretation of St. Mark’s
and St. Luke’s Gospels (Columbus, 1934), p. 15 da primeira parte deste volume. Embora A. B. Bruce,
The Synoptic Gospels (The Expositor’s Greek Testament, vol. 1, Grand Rapids, sem data), p. 341,
defende a ideia de que as palavras em questão devem tomar-se como uma inscrição para todo o
Evangelho, também considera que se obtém bom sentido, se as conecta com os vv. 2, 3, ou com o v. 4.
E. P. Groenewald, Die Evangelie volgens Markus (Kommentaar op Die Bybel, Nuwe Testament, Vol.
11, Pretória, 1948), p. 21, também favorece a ideia da inscrição (“opskrif’); e assim o fazem muitos
outros.
É muito interessante o ponto de vista de C. R. Erdman, El evangelio de Marcos (Grand Rapids: TELL,
1974), quem concede a possibilidade de que a teoria do título seja correta (p. 22), mas depois liga a
frase com o que se diz de João Batista, (p. 23).
Daqui daí em diante, as citações destes autores se indicarão usando a abreviação conhecida Op. cit.
(opera citato), que quer dizer “na obra citada”.
Marcos (William Hendriksen) 47
casa de Cornélio, também conectou seu princípio com João Batista (At.
10:37). 10
Por último, acaso não é verdade que também Jesus declarou que foi
João Batista quem começou a proclamar que o governo real de Deus
tinha chegado em Seu Filho? (veja-se Lc. 16:16).
Com base em todas estas considerações, parece que o significado
mais lógico do versículo 1 é: “As boas novas a respeito de Jesus Cristo,
Filho de Deus, iniciaram-se com João Batista. Foi João quem, conforme
foi predito, preparou o caminho para o advento de Cristo”.
Houve um tempo em que a palavra euangelion (= evangelho) servia
para indicar a recompensa que se outorgava a quem trazia boas novas.
Mas gradualmente começou ser usado para apontar às próprias boas
novas. Este é obviamente seu significado aqui em Marcos 1:1. O
evangelho é a mensagem de salvação que se dirige a um mundo perdido
no pecado. A parte mais importante destas boas novas não é o que nós
temos que fazer, mas o que Deus já tem feito em Cristo. Uma explicação
mais ampla se encontrará no CNT sobre Filipenses, pp. 94–99.
Agora, este evangelho tem que ver com “Jesus Cristo, Filho de
Deus”. Tanto Marcos como João Batista (anunciado nos vv. 2 e 3) têm
em comum que sempre dirigem a atenção do povo não a eles mesmos,
mas ao Seu Senhor. É assim que Marcos nunca menciona-se a si mesmo
pelo nome, nem no princípio de seu escrito nem em nenhum outro lugar,
nem sequer em Mc. 14:51, 52. Quão parecida é sua humildade à de João
Batista (Jo. 3:30)! Marcos 1:1 dá ao Salvador um título eminente. Seu
nome é Jesus, porque efetivamente “ele salvará” (veja-se Mt. 1:21;
11:27–30; Jo. 14:6; At. 4:12). Ao nome pessoal Jesus se acrescenta o
nome oficial de Cristo, que é o equivalente grego da palavra hebraica
Messias, que significa Ungido (veja-se Is. 61:1; cf. Lc. 4:16–21). Indica
que o portador de tal título foi ungido pelo Espírito Santo. É a unção do
10
Tem-se assinalado que a pregação de Pedro, segundo se mostra em At. 10:34–43, era quase idêntica
à que encontramos no Evangelho de Marcos. Veja-se F. F. Bruce, Commentary on the book of Acts
(The New International Commentary on the New Testament, Grand Rapids, 1964), p. 226.
Marcos (William Hendriksen) 48
Espírito a que separa, comissiona, habilita e ordena a Cristo aos ofícios
de Profeta, Sacerdote e Rei, a fim de levar a cabo o trabalho de salvar o
Seu povo para a glória do Deus Triúno.
Depois de “Jesus Cristo”, acrescenta-se o título “o Filho de
Deus”. 11 Em seu Evangelho, Marcos não só aplica vez após vez este
título a Jesus (além de Mc. 1:1, veja-se também Mc. 3:11; 5:7; 9:7;
14:61, 62; 15:39), mas o título harmoniza com o fato de que através de
todo seu livro, Marcos constantemente atribui a Jesus qualidades e
atividades divinas, mostrando assim que o escritor considera que o
Salvador é efetivamente o Filho de Deus no pleno sentido trinitário (e o
resto das Escrituras confirma este fato. Cf. Is. 9:6; Mt. 28:18; Jo. 1:1–4;
8:58; 10:30, 33; 20:28; Rm. 9:5; Fp. 2:6; Cl. 1:16; 2:9; Hb. 1:8; Ap. 1:8).
Seria muito inconsistente que alguém dissesse que Jesus era sábio e bom,
para logo afirmar que não era Filho de Deus num sentido único, porque
se Jesus não era efetivamente Deus, então suas pretensões eram falsas, e
se eram falsas, de modo algum teria sido sábio e bom. A negação da
deidade de Jesus destrói os próprios alicerces sobre os quais se edifica a
esperança do cristão. 12
De maneira que, o princípio do evangelho — não o Evangelho de
Marcos, mas as boas novas — que fala de Jesus Cristo, o Filho de Deus,
ocorreram tal e
2. Conforme está escrito na profecia de Isaías: Eis aí envio
diante da tua face o meu mensageiro, o qual preparará o teu
caminho.
Marcos nos diz que vai citar Isaías, e isto é o que faz precisamente,
mas não imediatamente. Primeiro, no versículo 2 Marcos cita Malaquias

11
Embora as palavras “Filho de Deus” estão omitidas no importantíssimo manuscrito Sinaítico (ou
Álef) e em outros manuscritos de menor importância, as palavras encontram-se no não menos valioso
uncial Vaticano (ou B) e também no códice Beza (D), e na realidade na grande massa dos
manuscritos” (A. T. Robertson). Parece não existir nenhuma razão sólida para as omitir na tradução.
12
A respeito do tema da negação da deidade de Cristo, veja-se também CNT sobre Mateus, p. 66–69.
Quanto ao debate entre J. R. Straton y C. F. Potter, Was Christ Both God and Man? (livro sobre os
debates entre o Straton e Potter, Nova York, 1924).
Marcos (William Hendriksen) 49
3:1; e logo, no versículo 3 cita Isaías 40:3. A primeira citação esclarece a
segunda. O leitor ou ouvinte primeiro medita no dito por Malaquias e
depois fixa sua atenção nas palavras de Isaías. Isto lhe permite entender
que a “voz” da qual fala a segunda citação não é uma abstração, mas
aponta ao “mensageiro” do Senhor.
Não é só Marcos aquele que usa este método de mencionar pelo
nome uma só de suas fontes, quando na realidade está usando mais de
uma. Mateus faz o mesmo, e com boas razões (veja-se CNT sobre Mt.
27:9, 10). Outro exemplo, 2 Crônicas 36:21 atribui a “Jeremias” palavras
tiradas de Levítico 26:34, 35 e de Jeremias 25:12 (cf. 29:10). Aos que
encontram um problema neste proceder, fazemos-lhes duas perguntas:
Primeira, que direito temos para impor nosso próprio método de citação
aos escritores das Bíblia? Segunda, se por implicação Marcos promete
dar-nos uma coisa (Mc. 1:2a), e logo nos dá duas — uma citação de
Malaquias 3:1 mais uma de Isaías 40:3 — por que nos queixamos?
Quanto às palavras citadas, “Eis aí envio diante da tua face o meu
mensageiro, o qual preparará” (cf. Mt. 11:10; Lc. 7:27), veja-se a
tradução que a LXX faz de Êxodo 23:10. 13 Isto é substancialmente o que
se acha no original hebraico de Malaquias 3:1. O significado de
Malaquias 3:1 é, com toda probabilidade, “Ponha atenção, eu o Senhor
envio o meu mensageiro, para que seja seu precursor, pois você é o
Messias”. Além disso, na análise final o precursor a quem se faz
referência opera num sentido espiritual. Sua tarefa é preparar os corações
dos homens para receberem o Messias. Deste modo, o precursor “aplaina
o caminho” para a primeira vinda do Messias. Mas já que Deus desce a
Seu povo nas duas vindas do Emanuel, fica claro que até a segunda
vinda de Cristo se acha incluída no contexto de Malaquias. Na realidade,
como era comum nos profetas, ainda não se faz uma clara distinção entre
os dois adventos do Senhor. Contudo, Marcos aplica a profecia

13
Entretanto, na segunda linha a LXX lê: “para que te guarde em teu caminho”.
Marcos (William Hendriksen) 50
especialmente à primeira vinda, segundo se demonstra claramente no
versículo 4 (veja-se Mt. 11:13, 14).
Antes de mencionar o nome do arauto e sem nenhuma palavra de
transição, Marcos cita Isaías 40:3, que diz:
3. voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor,
endireitai as suas veredas.
Estas mesmas palavras se acham em idêntica forma em Mateus 3:3
e em Lucas 3:4. Embora idênticas nos três Sinóticos, estas palavras
diferem da forma em que aparecem em Isaías 40:3, tanto no Antigo
Testamento hebraico como na tradução grega da LXX. Poderia explicar-
se a notável identidade que há entre Mateus, Marcos e Lucas, supondo
que Mateus, o ex-publicano, fez sua própria paráfrase das passagens do
Antigo Testamento que se cumpriram no Novo. Esta tradução junto com
outras notas, teria circulado extensamente antes de qualquer dos quatro
Evangelhos ser escrito. 14
Isaías 40:3–5 descreve simbolicamente a chegada do Senhor com o
fim de guiar a procissão dos judeus que voltariam jubilosamente à sua
pátria depois de longos anos de cativeiro. O caminho devia ser preparado
no deserto da Síria, no lance entre Babilônia e Palestina. Era preciso
preparar o caminho para a vinda do Senhor. Assim que a grande voz, um
arauto lhe diz ao povo:
“Preparai o caminho do SENHOR;
endireitai no ermo vereda a nosso Deus”.
Os quatro Evangelhos aplicam a figura do arauto a João Batista em
sua qualidade de arauto de Cristo. Quando o Batista diz “Eu sou a voz
…”, declara que está de acordo com esta interpretação (Jo. 1:23). O

14
Esta é a leitura do texto hebraico. Contudo, nos Evangelhos e no texto da LXX encontramos uma
leitura bastante diferente. Entendemos que a frase “no deserto” modifica a “voz do que clama”, e não
a “preparai o caminho”, como o exige no hebraico a acentuação massorética de Is. 40:3. A construção
tal como aparece no texto hebraico também se apoia no paralelismo: “no deserto preparai” está em
paralelismo com “endireitai … na solidão”. Entretanto, a diferença que vemos entre os Evangelhos e o
texto hebraico não é gravitante, porque é natural supor que aquele que clama no deserto, como porta-
voz dAquele que o envia, deseja que se aplaine o caminho no deserto.
Marcos (William Hendriksen) 51
próprio Jesus estava de acordo (Mt. 11:10). Os judeus voltaram para seu
país a fins do sexto século a.C., mas essa volta do cativeiro só foi um
tipo daquela libertação muito mais gloriosa que estava reservada para
todos os que recebem a Cristo como seu Salvador e Senhor. Em outras
palavras, o que Isaías diz a respeito da voz que clama, não teve seu
cumprimento pleno até que o arauto e o próprio Messias apareceram na
história. 15
Embora saibamos que Marcos refere-se a João Batista nos
versículos 2 e 3, não menciona seu nome até chegar ao versículo
4. Apareceu João Batista no deserto, pregando batismo …
O apropriado de que se aplique Isaías 40:3 à pessoa de João Batista
é evidente pelo seguinte: a. João pregava no deserto (Mc. 3:4); e b. a
tarefa que lhe tinha sido atribuído desde sua infância (Lc. 1:76, 77) e
mesmo antes (Lc. 1:17; Ml. 3:1), foi justamente a de ser arauto do
Messias, um que lhe prepararia o caminho. João devia ser a “voz” do
Senhor para o povo, tudo isto mas nada mais que isto (cf. Jo. 3:22–30).
Como tal, não só devia anunciar a vinda e presença de Cristo, mas sim
insistir com o povo a preparar o caminho do Senhor. Isto queria dizer
que, em virtude da graça e poder de Deus, deviam efetuar uma mudança
completa de suas mentes e corações. Deviam endireitar seus veredas,
isto é, deviam prover ao Senhor acesso livre aos seus corações e vidas.
Deviam endireitar todo o torcido, tudo o que não harmonizasse com a
santa vontade de Deus. Deviam tirar todos os obstáculos que tinham
amontoado no caminho; obstruções tais como a justiça própria e a
presumida complacência em si mesmos (“Temos por pai a Abraão”, Mt.
3:9), a cobiça, a crueldade, a calúnia, etc. (Lc. 3:13, 14).
João pregava no deserto” (Mc. 1:4), “o deserto da Judeia” (Mt. 3:1),
frase que indica as onduladas e más terras localizadas entre as agrestes

15
Não deve nos surpreender que o que se diz de Jeová no Antigo Testamento se refira a Cristo no
Novo. Para casos similares que mostram uma transição desde Jeová a Cristo, veja-se Êx. 13:21, cf.
1Co. 10:4; Sl 68:18, cf. Ef. 4:8; Sl 102:25–27, cf. Hb. 1:10–12; e Is. 6:1, cf. Jo. 12:41. É no Emanuel
que Jeová deve habitar com Seu povo.
Marcos (William Hendriksen) 52
colinas da Judeia pelo oeste, e o Mar Morto e o sob o Jordão pelo este,
estendendo-se rumo ao norte até chegar mais ou menos ao ponto onde o
rio Jaboque desemboca no Jordão. É na realidade uma desolação, uma
vasta extensão ondulante de terra estéril e com gesso, coberta de calhaus,
partes de pedras e rochas. Isoladamente se vê um ou outro matagal, com
serpentes que deslizam por baixo. Não obstante, segundo Mateus 3:5 (cf.
Jo. 1:28) é evidente que o território onde se desenvolvia a atividade de
João se estendia até a ribeira leste do Jordão. Marcos afirma que afinal
de contas, tanto na pregação de Isaías como na de João, “o deserto”
através do qual devia abrir-se caminho para o Senhor é o coração do
homem; coração que está sempre inclinado a todo o mal.
O que se enfatiza com relação a João é que batizava, que era o
Batista. Agora, o novo e surpreendente não era o fato de que batizava,
porque o povo já conhecia o batismo de prosélitos. O surpreendente era,
antes, que o rito que era sinal e selo (Rm. 4:11; cf. Cl. 2:11, 12) de uma
transformação fundamental de mente, coração, e vida fosse requerido até
dos filhos de Abraão! Também eles deviam converter-se, pois Marcos
prossegue: pregando batismo de arrependimento 16 .… Poderia dizer-se
também, “com miras à conversão” (Mt. 3:11). Para ser claros, um adulto
deve converter-se primeiro, antes de que possa receber devidamente o
batismo. Não obstante, também é verdade que por meio do batismo se
estimula poderosamente a conversão. Como poderia ter um efeito
diferente a devota reflexão na graça de Deus que adota, perdoa e
purifica?
A palavra que eu traduzi como “conversão” (nota 16) — traduzida
“arrependimento” na RA e em muitas outras traduções — indica uma
mudança radical da mente e do coração que resulta numa mudança
completa da vida (cf. 2Co. 7:8–10; 2Tm. 2:25). O arrependimento é
indubitavelmente um elemento básico da conversão. Tal conversão é

16
Hendriksen traduz: “batismo de conversão”. Ou: “volta de 180° quanto a mente e coração”. Veja-se
a explicação.
Marcos (William Hendriksen) 53
para remissão de pecados. Quando João batizava, chamava o povo a
confessar os seus pecados (Mt. 3:6). A lei de Deus, a consciência, o
lavamento com água, as palavras do Batista, tudo imprimia na pessoa a
necessidade de confessar-se e ser purificados de seus pecados. O entrar e
sair do Jordão lembrava-lhes que o antigo e pecaminoso “eu” devia ser
enterrado, para que os batizados fossem levantados à uma vida nova.
A palavra “remissão” significa perdão ou demissão. É uma
expressão muito alentadora que nos lembra passagens tais como Levítico
16 (os dois bodes); Salmo 103:12 (“como longe está o oriente do
ocidente”); Isaías 1:18 (“ainda que os vossos pecados sejam como a
escarlata …”); 44:22 (“Desfaço as tuas transgressões como a névoa …”);
55:6, 7 (“…é rico em perdoar”); e Miqueias 7:18 (“Quem, ó Deus, é
semelhante a ti, que perdoas a iniqüidade e te esqueces da transgressão
…”). A importância deste favor divino, sem o qual é impossível obter a
vida eterna, enfatiza-se também em muitas passagens do Novo
Testamento (cf. Mc. 3:29; Lc. 24:47; At. 2:38; 5:31; 10:43; 13:34, 38;
19:4; 26:18; Ef. 1:7; Cl. 1:14). O próprio João Batista ensinou que para
tirar o pecado era necessário o derramamento do sangue do Cordeiro (Jo.
1:29). Isto estava em completa harmonia com o ensino de Cristo e dos
apóstolos, conforme o indica Marcos e outros escritores do Novo
Testamento (Mc. 10:45; cf. 14:24; Mt. 20:28; 26:28; Lc. 22:20; Jo. 6:53,
56; Rm. 3:25; Hb. 9:22; 1 P. 2:24; Ap. 1:5; 5:6, 9).
Embora Marcos nos informe que “João Batista veio”, não nos diz
quando foi sua primeira aparição pública. A indicação de Mateus quanto
a tempo é também muito indefinida (“naqueles dias”). Para uma
cronologia mais precisa veja-se Lucas 3:1, 2. Bem como Jesus (Lc.
3:23), João tinha uns trinta anos quando fez sua primeira aparição
pública. João era uns seis meses mais velho que Jesus (Lc. 1:26, 36), e o
Senhor provavelmente começou o Seu ministério mais ou menos no final
Marcos (William Hendriksen) 54
17
do ano 26 d.C. Parece que foi no verão daquele mesmo ano que João
Batista começou a pregar às multidões e a batizar.
5. Saíam a ter com ele toda a província da Judéia e todos os
habitantes de Jerusalém.
Multidões saíam para ver e ouvir João, quem não se apartava delas.
Não viviam como ermitão ou recluso. Estava disposto a que as multidões
viessem a ele para ouvi-lo. Na realidade queria servi-las. A este respeito
era diferente dos membros da comunidade de Qumran, daqueles que
ouvimos muito desde que foram descobertos os manuscritos do Mar
Morto. De maneira muito notória, estes homens viviam isolados do
mundo. Diferente deles, o Batista recebia as multidões, não só os
homens mas também as mulheres (Mt. 21:31, 32). Não tratava de ocultar
suas convicções.
Contudo, não é verdade que o relato deixa claro que havia uma
diferença entre ele e Jesus? É verdade que multidões — e na realidade
multidões ainda maiores (Jo. 3:25–30) — acudiriam a Jesus (Mc. 1:32;
2:1, 2, 13; 3:8; 4:1; 5:21; 6:33, 55, 56; 10:1). O Senhor também as
receberia com grande empatia, com coração aberto (9:36). Até chamaria
e convidaria as pessoas (Mc. 8:34; 10:13, 14, 49; cf. Mt. 11:28). Mas
muito mais, o Senhor tomaria a iniciativa e iria ao encontro do povo
(Mc. 1:38; Mt. 14:14). Acaso não tinha vindo do céu para buscar e salvar
os pecadores (Lc. 19:10)?
Quanto às multidões que saíram para ver e ouvir João, são descritas
em linguagem um pouco figurada. A expressão “a região” pode
considerar-se como uma sinédoque, uma figura mediante a qual um
objeto (neste caso, a multidão) é chamado pelo nome de outro com o
qual se acha intimamente associado (neste caso, a região). Como se diz
que a região “saía”, a outra alternativa é considerar o termo “região”
como uma personificação (cf. Sl 114:3, 4; Hc. 3:10). Ao menos uma

17
Para a evidência que apoia esta data, veja-se W. Hendriksen, Bible Survey (Grand Rapids, 1961),
pp. 59–62, 69.
Marcos (William Hendriksen) 55
coisa é clara, que “região” aponta aos habitantes (cf. Jr. 22:29), ou seja,
ao povo da Judeia. Isto harmoniza com “os habitantes de Jerusalém”.
Quanto a “toda” (“toda a região … toda o povo”), trata-se de uma
hipérbole, e como tal inteiramente legítima (cf. Jz. 7:12; 2Sm. 1:23; 1Rs.
14:23; Sl 6:6).
Mateus acrescenta, “e toda a província ao redor do Jordão”. Não
somente os habitantes da Judeia em geral, incluindo os de Jerusalém,
mas também os que viviam a ambos os lados do Jordão, acudiam a João.
Devem ter sido milhares e milhares de pessoas, uma multidão, logo
outra, ainda outra, e assim, etc. O Batista tampouco permanecia
exatamente no mesmo lugar, e sim começando dos arredores do Mar
Morto, parece ter seguido pelo vale do Jordão até chegar a “Betânia, do
outro lado do Jordão” (Jo. 1:28), e um pouco depois, a “Enom, perto de
Salim”. Isto quer dizer que cruzou o rio e chegou a um lugar do lado
ocidental que tinha sete fontes, um lugar de fácil acesso às pessoas de
quatro províncias: Galileia, Samaria, Decápolis, e Pereia (Jo. 3:23). Não
é estranho, então, que alguns dos primeiros discípulos de Cristo,
batizados evidentemente por João, vivessem na Galileia (Jo. 1:35–42).
Quanto às palavras e, confessando os seus pecados, eram batizados
por ele no rio Jordão, veja-se o comentário ao versículo 4.
Descreve-se o modo de vestir e de viver de João. Em palavras do
versículo
6. As vestes de João eram feitas de pelos de camelo; ele trazia
um cinto de couro e se alimentava de gafanhotos e mel silvestre.
A vestimenta longa e solta de João, tecida com pelo de camelo,
lembra-nos o manto de Elias, embora haja certa diferença na descrição
(cf. Mt. 3:4 com 2Rs. 1:8). Esta roupa austera pôde haver-se considerado
como símbolo do ofício profético. Zacarias 13:4 (cf. 1Sam. 28:14)
parece assim indicar. De qualquer maneira, aquele traje tosco resultava
adequado para o deserto. Era durável e econômico. Jesus fez menção
especial do fato de que João não luzia roupa fina (Mt. 11:8). O cinturão
de couro grampeado à cintura, não só impedia que o vento levantasse ou
Marcos (William Hendriksen) 56
destroçasse o seu manto, mas servia para ajustá-lo e facilitar a ação. Com
relação a isto, veja-se CNT sobre Efésios 6:14.
O alimento de João era tão singelo como o era sua roupa. Mantinha-
se com gafanhotos e mel silvestre, evidentemente a comida que lhe era
possível achar no deserto. A classe de mel que encontrava de maneira
silvestre não apresenta problemas. Não servia só para adoçar (o açúcar
como nós o conhecemos era coisa raro), mas era um alimento. No
deserto era possível encontrar mel sob as rochas ou nas fendas das
rochas (Dt. 32:13). O papel que jogou o mel silvestre nas histórias de
Sansão (Jz. 14:8, 9, 18) e Jônatas (1Sm. 14:25, 26, 29) é muito
conhecido para entrar em explicações.
Mas gafanhotos! Com apenas pensar em comê-los a gente
estremece. Tirar-lhes as asas e as patas, assar ou cozer seus corpos,
acrescentar-lhe sal e …! Entretanto, é claro por Levítico 11:22 que o
Senhor permitiu — e assim estimulou — os israelitas a comer quatro
tipos de insetos que em nosso país chamaríamos “gafanhotos”. Hoje em
dia ainda há certas tribos da Arábia que os desfrutam. E por que não? A
declaração latino, De gustibus non disputandum est (“gosto não se
discute”), ainda está vigente. Os que gostam de camarões, almejas,
ostras, rãs, e caracóis não deveriam escandalizar-se se alguém gosta de
gafanhotos.
Entretanto, não é necessário pensar que o versículo 6 nos dá um
resumo completo da dieta do Batista. O ponto central que se quer
comunicar é que mediante sua forma de vida singela, evidente na
alimentação e o vestido, João tinha se constituído numa protesto vivo
contra toda forma de egocentrismo e autoindulgência. João atacava a
frivolidade, a indiferença e a falsa segurança com que muitas pessoas se
apressavam para sua destruição.
É verdade que tudo o que João podia fazer era exortar os seus
ouvintes para fazê-los sentir a urgente necessidade de conversão. Se
considerarmos o batismo como um símbolo da purificação que Deus
opera na vida da pessoa (Is. 1:16–18; Ez. 36:25), João só podia realizar o
Marcos (William Hendriksen) 57
rito exterior. Para que os batizados recebessem a essência do que o
batismo significa, requeria-se o poder e a graça de Um mais poderoso
que João. Portanto, não surpreende que Marcos prossiga:
7, 8. E pregava, dizendo: Após mim vem aquele que é mais poderoso
do que eu, do qual não sou digno de, curvando-me, desatar-lhe as correias
das sandálias. Eu vos tenho batizado com água; ele, porém, vos batizará
com o Espírito Santo.
Nestes versículos, Marcos nos informa que a dupla descrição
comparativa que João nos entrega a respeito de Jesus, indica a. que Jesus
é superior em majestade, “mais poderoso que eu” (v. 7), e b. que sua
atividade é igualmente superior (v. 8). O Batista creu necessário realçar
este contraste entre ele e seu Mestre, porque logo o povo começou a
perguntar-se se talvez não seria João o Cristo (Lc. 3:15; cf. Jo. 1:19, 20;
3:25–36). João 1:19–27 também relata que João rejeitou sem reserva tal
conceito, muito errôneo e repreensível. É verdade que Jesus nasceu
depois de João e que começou o Seu ministério público depois de João
(Lc. 1:26, 36; 3:23). Mas entre Cristo e João Batista existia uma
diferença qualitativa. A diferença entre o Infinito e o finito, entre o
Eterno e o temporal, entre a Luz original do sol e a refletida pela lua (cf.
Jo. 1:15–17).
A fim de sublinhar o contraste que havia entre ele e seu Senhor,
João usa uma ilustração tirada dos costumes de seu tempo. Quando um
amo chegava a casa esgotado de uma viagem e com suas sandálias
cheias do pó do caminho, o servo ou escravo trataria, por todos os meios
possíveis, fazê-lo sentir-se confortável. Naturalmente que este serviço
era também oferecido aos convidados de honra de seu amo. O não fazê-
lo teria levantado críticas muito justas (Lc. 8:44–46). No presente caso,
só fica em relevo o ato de desatar e tirar as poeirentas sandálias da
pessoa honrada. Com leves variações, o Novo Testamento registra em
essência a mesma figura. Quer se fale de desatar as correias das sandálias
(Lc. 3:16; Jo. 1:27), ou inclinar-se (só Marcos acrescenta este detalhe) e
desatar as correias (Mc. 1:7), desatar o calçado (At. 13:25), ou ainda tirar
Marcos (William Hendriksen) 58
as sandálias (Mt. 3:11), a ideia básica é que o subordinado se inclina a
fim de soltar as correias do calçado, levando-o logo para limpá-lo.
Quando o Batista diz que não é digno de desatar as correias das
sandálias de Jesus, está mostrando profunda e autêntica humildade. Isto
será melhor apreciado se tivermos presente que, de acordo com uma
antiga tradição judaica, a diferença entre um “discípulo” e um “servo”
(ou “escravo”) era que o discípulo estava pronto para realizar qualquer
serviço que um criado fizesse, exceto desatar as sandálias de seu mestre.
De modo que, o que aqui se implica são três etapas ascendentes de
humildade:
a. O discípulo está disposto para prestar quase qualquer serviço.
b. O escravo ou o mais humilde dos servos está disposto a prestar
qualquer serviço.
c. O Batista considera-se indigno de prestar o serviço de desatar as
correias do calçado de seu Mestre. Com relação a isto, veja-se CNT
sobre Filipenses 2:3, 5–8 e 1 Timóteo 1:15.
Além disso, João batizava com água, Jesus batizaria com o Espírito.
Jesus faria com que Seu Espírito e seus dons (At. 1:8) fossem
derramados sobre Seus seguidores (At. 2:17, 33), que caíssem sobre eles
(At. 10:44; 11:15). Agora, cada vez que se batiza alguém que foi tirado
das trevas à maravilhosa luz de Deus, o tal também é indubitavelmente
batizado com o Espírito Santo. Entretanto, segundo as palavras do
próprio Senhor Jesus Cristo (At. 1:5, 8), e lembradas pelo apóstolo Pedro
(At. 11:16), esta predição se cumpriu em sentido muito especial no
Pentecostes e na era que com esta data se iniciou. No Pentecostes, a
vinda do Espírito enriqueceu as mentes dos seguidores de Cristo com
uma iluminação sem precedentes (1Jo. 2:20). Suas vontades foram
fortalecidas como nunca antes com entusiasmo contagioso (At. 4:13, 19,
20, 33; 5:29) e seus corações foram inflamados de um afeto ardente que
não tinha precedente algum (At. 2:41–47; 3:6; 4:32).
Marcos (William Hendriksen) 59
Mc. 1:9–11 - O batismo de Jesus
Cf. Mt. 3:13–17; Lc. 3:21, 22; Jo. 1:32–34.

9. Naqueles dias, veio Jesus de Nazaré da Galiléia e por João foi


batizado no rio Jordão.
Embora a regra é que Marcos descreva os eventos de maneira mais
detalhada que Mateus, às vezes sucede o contrário, como no presente
caso. Marcos dedica só três versículos a este fato e nada diz a respeito da
objeção que João levantou quando Jesus Se apresenta para ser batizado.
Lucas também omite este detalhe e usa só dois versículos para relatar a
história do batismo de Cristo. Para conhecer toda a história do batismo
de Cristo devemos acrescentar os cinco versículos de Mateus 3:13–17.
A frase de Marcos “naqueles dias”, provavelmente quer dizer “no
topo da atividade batismal de João” (cf. Lc. 3:21). Observe-se a seguinte
diferença: enquanto Mateus declara que em sua primeira aparição
pública, Jesus veio “da Galileia” (ao Jordão), Marcos é mais específico e
diz, “de Nazaré da Galileia”. É possível que Marcos proceda assim pelo
fato de estar escrevendo para os gentios, aqueles que poderia não estar
bem informadas a respeito da geografia da Palestina. Mas não se lhe
deve dar muita importância a isto. A frase “Nazaré da Galileia” também
se acha em Mateus (Mt. 21:11). Ao falar do batismo de Cristo, Mateus
não tinha necessidade de acrescentar “de Nazaré”, porque é onde deixou
a Jesus uns versículos antes (veja-se 2:22, 23, onde se menciona Nazaré
e Galileia). José, pai legal de Jesus, trabalhava como carpinteiro em
Nazaré (Mt. 13:55), e foi onde Jesus cresceu e chegou a ser um adulto,
sendo conhecido como “o carpinteiro” (Mc. 6:3). Aos trinta anos (Lc.
3:23), Jesus deixa Nazaré e empreende sua viagem rumo ao Jordão.
Em linguagem simples, Marcos declara que Jesus “por João foi
batizado no rio Jordão”. Terá sucedido que Jesus desceu até a margem
do rio Jordão, de modo que seus pés foram cobertos pela água, e que
logo João Batista derramou ou aspergiu água sobre a cabeça do Mestre?
Marcos (William Hendriksen) 60
A verdade é que ao Espírito Santo não teve por bem deixar-nos qualquer
detalhe sobre o modo do batismo.
Mas poderia surgir a seguinte inquietação: Sabemos que a água do
batismo simbolizava a necessidade de ser purificado da imundície, quer
dizer, do pecado. Agora, se Jesus não tinha pecado, como é possível que
Aquele que era sem pecado se submetesse ao batismo? Ofereceram-se
várias respostas. Talvez a mais simples poderia ser a melhor: Afinal de
contas, Jesus sim teve pecado, isto é, o nosso. Isaías 53:6 aponta em essa
direção, ao dizer: “Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas;
cada um se desviava pelo caminho, mas o SENHOR fez cair sobre ele a
iniqüidade de nós todos”. Isto se confirma pelo seguinte fato: não muito
tempo depois, João viu vir Jesus e, então, disse aos que o escutavam,
“Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo. 1:29). Por
conseguinte, ao que parece Jesus exigiu que João O batizasse, porque
tinha tomado a solene resolução de carregar a culpa daqueles pelos quais
havia de morrer. Num sentido, com o batismo Jesus cumpria parte da
tarefa de entregar Sua vida pelas ovelhas (cf. Mt. 20:28; Mc. 10:45; Jo.
10:11; 2Co. 5:21; 1Pe. 3:18). Por último, como o batismo simboliza
render a vida ao Senhor, teria feito sentido todos os outros batismos, se
Cristo não tivesse rendido sua vida? Foi o sacrifício do Salvador aquele
que estabeleceu a base para o perdão dos pecados, um perdão expresso e
selado pelo batismo em favor de todos os que confessam sinceramente
sua indignidade e decidem prosseguir sua futura viagem “de novidade de
vida”.
10, 11. Logo ao sair da água, viu os céus rasgarem-se e o Espírito
descendo como pomba sobre ele. Então, foi ouvida uma voz dos céus: Tu
és o meu Filho amado, em ti me comprazo.
Aqui a Trindade Se revela de maneira gloriosa. Depois de ter sido
batizado, imediatamente assim que o Filho começa a sair da água, de
improviso os céus se abrem amplamente e o Espírito desce sobre Ele. O
próprio Jesus vê algo semelhante à uma pomba que, representando ao
Espírito, vai descendo diretamente sobre Ele. Embora nem todos os
Marcos (William Hendriksen) 61
intérpretes concordem, pensamos que o sujeito do verbo “viu” refere-se a
Jesus. 18 Ao submeter-se ao batismo, Jesus tinha confirmado Sua
promessa eterna de levar sobre si os pecados do mundo (Jo. 1:29).
Portanto, como se estivesse profundamente impressionado pela
disposição que Seu Filho tinha para levar o pecado, o Pai proclama, “Tu
és o meu Filho amado, em ti me comprazo”. De maneira comovedora se
expõe a doutrina da Santa Trindade em ação. Os três são Um e isso é o
que dá alento e consolo a todo crente.
Quanto a alguns detalhes, leve-se em conta as seguintes
observações:
Primeiro, surge a seguinte pergunta quanto ao Filho: Jesus era (e é)
divino. Portanto, era desnecessário que o Espírito Santo O ungisse e O
capacitasse para levar a cabo Sua obra?
Resposta: Em Sua encarnação, o Filho divino adotou a natureza
humana, a qual precisa ser fortalecida. Tendo sido capacitado pelo
Espírito, como Mediador divino e humano, foi capacitado a funcionar
em seu tríplice ofício de Profeta, Sacerdote, e Rei. É assim que obteria a
salvação do povo de Deus, para a glória do Deus Triúno. Com relação à
unção, veja-se também Salmo 45:7; Isaías 61:1ss.; 11:1, 2; Mateus
11:27; 28:18; Lucas 4:18; João 3:34; Atos 10:38.

18
Van Leeuwen, Op. cit., p. 25, favorece a ideia de que o sujeito de “viu” é João Batista. É verdade
que João viu tudo o que sucedeu (Jo. 1:32; cf. Mt. 3:16), mas em Mc. 1:10 “viu” pode muito bem
apontar o seu antecedente mais próximo: Jesus.
Quanto às outras passagens, é difícil pensar no próprio Jesus “vendo” o objeto à maneira de pomba
descendo sobre Si e permanecendo naquela posição por algum tempo. O fato de o próprio Jesus ver a
descida da “pomba” entende-se facilmente, como também o fato de que alguém que estivesse perto —
no caso presente João Batista e provavelmente outros — visse o objeto descer e posar-se sobre a
cabeça de Cristo. Portanto, parece que a. em Mt. 3:16 o sujeito de “viu o Espírito de Deus que descia
como pomba e que se posava sobre ele” (minha tradução) é João Batista (cf. Jo. 1:32); mas que b. em
Mc. 1:10 o sujeito de “viu” é o próprio Jesus. Esta dupla conclusão é confirmada pelo fato de que no
contexto de Mateus (Mt. 3:17) o Pai Se dirige a João, não a Jesus (“Este é meu Filho …”); conquanto
no contexto de Marcos (Mc. 1:11) o Pai Se dirija a Jesus, não a João (“Tu és o meu Filho …”).
Naturalmente que a diferença é de pouca importância. Por certo, o que aqui ocorreu era importante
não só para Jesus, mas também para João e para qualquer que tivesse estado presente.
Marcos (William Hendriksen) 62
Segundo, referente ao Espírito: “Por que foi a terceira pessoa da
Trindade representada à maneira de pomba?” Resposta: Talvez com o
propósito de dar a entender a pureza, bondade, serenidade e graça
características que identificam o Espírito Santo. Tanto a opinião popular
como as Escrituras (Sl 68:13; Ct. 6:9; Mt. 10:16) associam estas
qualidades com a pomba.
Sugeria a água do Jordão a necessidade de purificação?
Simbolizado na forma de uma pomba que repousava sobre o Filho, o
Espírito Santo muito bem poderia ter indicado que em Si mesmo e por Si
mesmo, Jesus era o habitado pelo Espírito puro e santo. Mas não apenas
isso, mas também bondoso e pacífico. Os pecados pelos quais devia
morrer não eram Seus próprios, e sim os que Lhe foram imputados.
Terceiro, referente ao Pai: A quem pertencia a voz que exclamou
“Tu és o meu Filho amado, em ti me comprazo? Não se diz quem é
aquele que fala 19 nem tampouco é necessário, porque a própria
fraseologia (“meu Filho Amado”) identifica ao que fala como o Pai.
Além disso, Jesus é o Amado do Pai não só em sua qualidade
messiânica oficial, mas também como Filho por geração eterna, como
Aquele que compartilha plenamente a essência divina junto ao Pai e o
Espírito (Jo. 1:14; 3:16; 10:17; 17:23). Não é possível que exista um
amor mais elevado que o amor que o Pai prodigaliza ao Filho. De acordo
com o adjetivo verbal (agapetos: amado) usado aqui, trata-se de um
amor profundamente enraizado, absolutamente íntegro, tão grande como
o é o coração do próprio Deus. É também tão inteligente e organizado
como o é a mente de Deus. É tenro, vasto, infinito! 20

19
Com relação ao tema da complacência ou boa vontade de Deus, de modo algum a presente
passagem é a única onde se omite o nome de quem a exerce; veja-se, p. ex., Lc. 2:14; Fp. 2:13; e Cl.
1:19, onde o contexto deixa claro a quem se refere. O texto de Ef. 1:3, 5 deixa muito claro de quem se
fala quando se menciona a complacência: “Bendito o Deus e Pai … nos predestinou para ele …
segundo o beneplácito de sua vontade” (CI).
20
Sobre a diferença entre ἀλαπάω e φιλέω e seus respectivos derivados, veja-se CNT sobre João, nota
458.
Marcos (William Hendriksen) 63
No original, as palavras “meu Filho Amado” estão construídas de
tal modo (literalmente “meu Filho, o Amado”), que com a repetição do
artigo se sublinha igualmente o substantivo “Filho” como o adjetivo
“Amado”. Na realidade, por meio de colocar o adjetivo depois do
substantivo e com o artigo definido repetido (“meu Filho, o Amado”),
obtém-se uma espécie de clímax. 21
Além de possuir todas as qualidades que já Lhe atribuímos, este
amor também é eterno, quer dizer, não tem tempo, eleva-se muito acima
das barreiras temporais. Embora alguns não concordem, consideramos
correta a tradução “em quem tenho complacência”. 22 No sereno retiro da
eternidade, o Filho era o objeto do inesgotável deleite do Pai (cf. Pv.
8:30). E embora mediante o batismo o Filho confirmasse o seu propósito
de derramar Seu sangue em favor de um mundo perdido em pecado, este
fato não diminui em nada aquele amor. Isto é o que o Pai está dizendo ao
Filho. Diz também a João … e a todos nós.
Esta é uma passagem cheia de consolo! Aqui não apenas o Filho e
João encontram consolo, e sim cada filho de Deus. Não se trata de que só
o Filho ama tanto os Seus seguidores que está preparado para sofrer por
eles as dores do inferno, mas sim o Espírito também coopera plenamente
fortalecendo-O para essa tarefa, e o Pai, em vez de olhar com desagrado
para Aquele que toma tal tarefa, acha-se tão agradado com Ele, que abre
os próprios céus para que na terra se ouça sua voz de prazerosa
aprovação. 23 Os três se acham igualmente interessados em nossa
salvação, e os três são Um.

21
Véase Robertson, pp. 369, 370.
22
Este é um excelente exemplo do aoristo atemporal. Veja-se Robertson, p. 837; assim também em
Mt. 17:5; Mc. 1:11 e Lc. 3:22.
23
A respeito do tema do batismo de Cristo, veja-se também: A. B. Bruce, “The Baptism of Jesus”,
Exp, 5ta. serie 7 (1898), pp. 187–201; e W. E. Bundy, “The Meaning of Jesus’ Baptism”, JR, 7 (1927),
pp. 56–71.
Marcos (William Hendriksen) 64
Mc. 1:12, 13 - A tentação de Jesus no deserto
Cf. Mt. 4:1–11; Lc. 4:1–13

Ao submeter-Se voluntariamente ao batismo, Jesus afirmou Sua


total disposição em realizar a tarefa que Lhe foi atribuída, ou seja, sofrer
e morrer em lugar do Seu povo. É, portanto, lógico que imediatamente
comece a aflição, que aqui toma a forma de uma tentação. Quando Adão
foi tentado, fracassou. Assim que Cristo, “o segundo Adão” (1Co. 15:45)
agora deve ser tentado. Para os que creem no Senhor, a vitória de Jesus
sobre o tentador anula as consequências que vieram pelo primeiro
pecado de Adão.
De que até o imaculado Jesus pudesse ser tentado, é um mistério
impossível de explicar de maneira perfeitamente clara. A única coisa que
podemos dizer é que Cristo foi tentado em Sua natureza humana, visto
que Deus não pode ser tentado (Tg. 1:13). Jesus não só era Deus, mas
também homem. Assim que, não deveria nos surpreender que depois de
um jejum de quarenta dias (Mc. 4:2 segundo Mateus e Lucas) o convite
para transformar as pedras em pão fosse tentadora. Por certo que isto não
soluciona todos os problemas, porque a escrutinadora e sensível mente
de Cristo deve ter discernido imediatamente que as proposições de
Satanás eram malignas. O assunto da tentação do Salvador está
encerrado em mistério. Mas não é verdade que o mesmo sucede com a
doutrina em geral?
De que Cristo realmente foi tentado ensina-se não somente aqui em
Marcos e as passagens paralelas, mas também em Hebreus 4:15, onde se
diz que Jesus “foi ele tentado em todas as coisas, à nossa semelhança,
mas sem pecado”, quer dizer, sem sucumbir ao pecado. Entretanto,
Hebreus 4:15 não pode significar que Jesus experimentou o mesmo
processo psicológico de ser tentado que experimenta o ser humano em
geral. No caso do homem, incluindo crentes, primeiro aparece a
tentadora voz ou o sussurro interno de Satanás que insiste com ele a
pecar. Mas também experimenta seu próprio desejo interno (“a
Marcos (William Hendriksen) 65
concupiscência”) que o empurra a ceder à tentação de aceitar a
insinuação do diabo. Assim que, no caso do homem, “seus próprios
maus desejos o arrastam e seduzem” (Tg. 1:14) ao pecado. No caso de
Cristo, o assunto foi diferente. Na tentação de Cristo, Satanás proveu o
estímulo externo, um estímulo que não teve sua origem na alma do
Senhor, mas foi a voz do Maligno. Mas o Senhor carecia da corrupção
ou estímulo interno que incita o pecador a cooperar com aquele que o
prova. Contudo, a tentação foi real. O Senhor sentiu a necessidade, teve
consciência de que Satanás o incitava a satisfazer essa necessidade,
soube que devia resistir ao tentador e lutou dentro do conflito.
Para um comentário mais completo de cada uma das tentações de
Jesus, veja-se CNT sobre Mateus 4:1–11 (veja-se também Lc. 4:1–13). O
relato que Marcos oferece da tentação é tão breve, que não convém
interpretar a apresentação de Mateus (muito mais completa e
cronológica) à luz de algumas primeiras impressões que se obtenham das
limitadas palavras de Marcos. Nem Marcos nem Lucas proveem uma
história que passo a passo ofereça um relato consecutivo. Por outro lado,
Mateus apresenta uma sequência histórica, como se entende claramente
por Mat. 4:2 (“depois”), 4:5, (“logo”), 10 (“então” em RA) e Mt. 4:11
(“Com isto, o deixou o diabo …”). O mesmo se pode deduzir pela
relação interna ou de pensamento que existe entre a primeira e a segunda
tentação.
É à luz destes fatos que prosseguimos com a exposição do relato de
Marcos no versículo:
12. E logo o Espírito o impeliu 24 para o deserto.
Considere-o seguinte:
“E logo …”. Não há intervalo entre a glória do batismo de Cristo
(“Tu és meu Filho Amado”) e as penalidades da tentação. Ocorria aqui o
mesmo que sucederia mais adiante em conexão com a transfiguração de
Cristo: Jesus é o Rei e, ao mesmo tempo, o Servo sofredor, pelo qual se

24
O: o enviou (para ir) ao deserto.
Marcos (William Hendriksen) 66
move de maneira repentina da plena luz às trevas, da sorriso
complacente do Pai ao engano depreciativo de Satanás.
“…o Espírito o impeliu”. Aqui outros traduzem “o empurrou” (CI,
NBE, cf. BJ), “tirou-o” (BP) ou algo similar. É verdade que o verbo que
se usa no original, com frequência significa lançar fora ou expulsar. De
fato, neste mesmo capítulo (Mc. 1), a palavra refere-se à expulsão de
demônios (Mc. 1:34, 39, 43). Jesus também lançou fora ou expulsou do
templo os mercadores (Mt. 21:12); e os lavradores maus lançaram o
herdeiro fora da vinha (Mt. 21:39). Entretanto, quando a palavra se
traduz assim, não é fácil separar dela a ideia de que se está usando uma
força externa a fim de empurrar um objeto relutante, mas esta não
poderia ser a conotação no caso do Senhor. Por conseguinte, seria
melhor traduzir: “o impeliu” (RA), encheu-o de desejo interno, moveu-o
a. Outra possibilidade é reconhecer o fato de que o mesmo verbo grego
usa-se também num sentido mais suave: libertar, enviar, levar (Jo. 10:4;
At. 16:37).
“… para o deserto”. Aqui surgiu a seguinte pergunta: Mas acaso
Jesus não estava no deserto quando foi batizado? Não era no deserto
onde João batizava (Mc. 1:4)? Sugeriu-se, então, que “o deserto” ao qual
foi levado Jesus era muito mais austero e inóspito que o mencionado no
versículo 4. Embora a presença de “feras” (v. 13) poderia dar apoio a
esta teoria, não seria mais razoável ver a solução em Lucas 4:1? Em
outras palavras, o significado poderia ser que Jesus foi levado do Jordão
para o deserto. É inútil tratar de adivinhar a localização precisa da região
desértica onde Cristo jejuou e foi tentado. Foi uma colina de pedra
calcária que há perto de Jericó? Ninguém sabe.
Há um fato que não deve ser esquecido: embora o deserto seja
espantoso, especialmente quando se permanece ali por quarenta dias sem
alimentos, ao mesmo tempo foi o lugar onde Jesus pôde desfrutar da
comunhão com Seu Pai celestial sem que nada o distraísse. Foi também
o lugar de preparação para o desempenho de sua tarefa como Mediador!
(cf. Mc. 1:35; Lc. 5:16.).
Marcos (William Hendriksen) 67
13. onde permaneceu quarenta dias …
Vem-nos à mente imediatamente a experiência de Moisés no monte
Horebe (Êx. 34:2, 28; Dt. 9:9, 18) e a de Elias no mesmo monte (1Rs.
19:8). Eles não apenas jejuaram, mas também Jesus. Somos informados
que Jesus estava sendo tentado por Satanás no deserto. O verbo que
aqui se traduz “tentado” pode ter um sentido favorável: pôr alguém à
prova, a fim de fortalecê-lo espiritualmente. Foi neste sentido que o
Senhor “tentou” Abraão (Gn. 22:1–19; Hb. 11:17; veja-se também Jo.
6:6). Mas como se acrescenta a frase “por Satanás”, fica claro que neste
caso o sentido é que o príncipe do mal fez todo o possível por seduzir
Jesus a pecar. Marcos diz, “tentado por Satanás”; Lucas, “pelo diabo”;
Mateus, “pelo diabo … o tentador”. A palavra grega diabolos significa:
diabo, caluniador, acusador (Jó 1:9; Zc. 3:1, 2; cf. Ap. 12:9, 10) e pela
influência da LXX também quer dizer: adversário (1Pe. 5:8), o que
estritamente falando é o significado de Satanás.
É evidente que Marcos cria na existência de um “príncipe do mal”
pessoal. 25 Assim creram também todos os outros escritores do Novo
Testamento: Mateus (Mat. 4:1, 3, 5, 8); Lucas (Lc. 4:2, 3, 6, 13; 8:12);
Pedro (At. 10:38; 1Pe. 5:8); Paulo (Rm. 16:20; Ef. 4:27; 6:11); o escritor
de Hebreus (Hb. 2:14); Tiago (Tg. 4:7); João (Jo 13:2, 27; 1Jo. 3:8, 10,
12; 5:18, 19; Ap. 12:9; 20:2, 7, 10); e Judas (Jd. 9). O mesmo se pode
dizer de Jesus (Mt. 6:13; 13:39; 25:41; Mc. 3:23, 26; 4:15; 8:33; Lc. 4:8;
10:18; 11:18; 13:6; 22:3, 31; Jo. 8:44). Poder-se-iam acrescentar outras
referências.
Devido ao fato de que Marcos descreve a Cristo como o Rei
vencedor, é apropriado que ele seja quem chama Satanás (=adversário) o
tentador. A batalha, então, vai ser entre o Rei e Seu adversário.
Muitos interpretam a cláusula “onde permaneceu quarenta dias,
sendo tentado por Satanás” como se queria dizer que Jesus foi tentado ao
longo de todos os quarenta dias. Inclusive se argumenta que o grego não

25
Entretanto, Marcos nunca usa o termo diabolos (=diabo), sempre usa Satanás.
Marcos (William Hendriksen) 68
permite nenhuma outra interpretação. Agora, quando se considera esta
cláusula isoladamente e sem considerar o relato de Mateus (que é muito
mais detalhado e cronológico), deve-se admitir que a linguagem que usa
o original admite que seja entendido nesse sentido. Ao mesmo tempo,
também se deve dizer que este não é o único ponto de vista possível. Às
vezes isto é reconhecido até pelos que favorecem a teoria de uma
tentação contínua de quarenta dias. 26 O argumento em defesa de uma
tentação de quarenta dias seria inexpugnável, se a cláusula lesse como
segue: “Quarenta dias esteve sendo tentado, estando no deserto”. Mas tal
como está, o original pode significar: “Quarenta dias esteve no deserto,
onde era tentado”. 27
Rejeitando a teoria dos quarenta dias de tentação e em favor da
segunda construção, pode-se argumentar que:
a. Mateus 4:2, 3, ensina claramente que a tentação por Satanás
começou no final dos quarenta dias de jejum.
b. O relato condensado de Marcos deve interpretar-se à luz do relato
amplo e cronológico que se acha em Mateus, não vice-versa.
Mas mesmo que se adotasse a teoria dos quarenta dias de tentação
contínua, deve-se tomar cuidado de não preencher este período de todo
tipo de produtos da imaginação. Deve ter-se em mente que se houve uma
série de tentações anteriores às três que conhecemos, as Escrituras não
dão nenhum detalhe a respeito.
Só Marcos entrega a seguinte descrição adicional do que sucedeu
enquanto Jesus estava no deserto: estava com as feras … O vale do
Jordão e o deserto adjacente eram conhecidos como guarida de hienas,
chacais, panteras e até leões, os que na antiguidade de maneira nenhuma
eram escassos na Palestina, 28 o que se faz evidente pelo fato de que o
26
Assim, por exemplo, A.B. Bruce afirma que Jesus foi tentado “presumivelmente o tempo todo” (Op.
cit., p. 343). O advérbio “presumivelmente” ou “provavelmente” deixa a porta aberta para uma
interpretação diferente!
27
O mesmo rege com relação a Lc. 4:1b, 2a, onde se deve preferir a tradução de NVI, RA, NBE, em
lugar da tradução que se encontra em LT, VM e CB.
28
Veja-se J.G. Wood, Story of the Bible Animals, Filadelfia, s.f., pp. 19–41.
Marcos (William Hendriksen) 69
Antigo Testamento mencionam leões em dois terços de seus livros. A
região onde Jesus jejuou e foi tentado era, portanto, um lugar
abandonado e perigoso. Um lugar diametralmente oposto ao paraíso
onde foi tentado o primeiro Adão. 29
Marcos conclui a descrição do que sucedeu a Jesus neste tempo
escrevendo: mas os anjos o serviam. A função destes “espíritos
dedicados ao serviço” (Hb. 1:14) é a de prestar serviço de diversas
maneiras (veja-se CNT sobre 1 e 2 Timóteo e Tito, pp. 209, 210). Em
conexão com a história da tentação, qual foi exatamente o momento em
que os anjos prestaram este serviço a Cristo? Neste caso a resposta se
acha outra vez no relato de Mateus, que é mais detalhado e mais
ordenado cronologicamente. Mateus diz: “Com isto, o deixou o diabo, e
eis que vieram anjos e o serviram” (Mt. 4:11). Os anjos O serviram
quando o diabo tinha sido totalmente vencido. O que este serviço
implicava exatamente não se menciona. Talvez o melhor é dizer que, em
geral, o Pai enviou os anjos para prover às necessidades de Seu Filho,
quaisquer que estas tenham sido. Parece razoável inferir que isto também
incluía provisão para o corpo. 30
Marcos não diz nada a respeito do triunfo de Cristo sobre Satanás.
Quanto a isto também dependemos de Mateus 4:1–11 (cf. Lc. 4:1–13).
Mas não sugere o ministério dos anjos que Cristo venceu? Não foram
enviados pelo Pai como recompensa por Sua obediência?

29
G.C. Morgan (Op. Cit., p. 27) imagina uma experiência como a de Francisco de Assis com os
pássaros, e afirma que os animais se reuniram ao redor de Jesus como seu amigo. Mas isto não está
em harmonia com o contexto, o qual enfatiza as dificuldades e as condições terríveis que rodeavam o
Senhor (observe-se as palavras “deserto”, “tentado”, e “feras”). É verdade que μet basicamente
significa entre, na companhia de, mas tal companhia de modo algum é sempre boa e amigável (Mt.
24:51; Lc. 12:46).
30
Alguns sustentam que Marcos tira a ideia das feras e anjos do Sl 91:11–13, onde a promessa de
vitória sobre o leão e o áspide vem imediatamente depois da proteção angélica. Véase S.E. Johnson, A
Commentary on the Gospel according to St. Mark (Londres, 1960), p. 41. Mas não é verdade que esta
analogia é um tanto forçada? O relato de Marcos não fala a respeito de proteção angélica nem de
vitória sobre as feras.
Marcos (William Hendriksen) 70
Nestes dois versículos observamos: a ação do Espírito Santo, a
obediência de Cristo, a presença de feras, a tentação de Satanás, e no
final o serviço que os anjos Lhe prestaram. O fundo do relato sugere a
ausência total de toda ajuda humana e o amor e cuidado providenciais
do Pai, quem enviou os Seus anjos para servi-Lo. A ausência de seres
humanos e a presença destes sete mostram a majestade da figura central:
Jesus Cristo, o grande Rei que ao mesmo tempo era o Servo sofredor.
Tendo obtido a vitória, agora o Senhor pode começar o Seu
ministério de pregar, ensinar, curar e expulsar demônios. Tudo isto O
conduzirá ao triunfo final sobre a morte, o qual obterá ao terceiro dia
com Sua gloriosa ressurreição. Uma seção de grande significado do
Evangelho de Marcos se fecha neste ponto.
Esta primeira seção de Marcos consiste de três parágrafos, os quais
tratam de três temas:
a. O ministério de João Batista (1:1–8),
b. o batismo de Jesus (1:9–11), e
c. a tentação de Jesus no deserto (1:12, 13).
Ministério de João. Tempo: A primeira parte do ministério de João
que aqui se considera, estendeu-se desde mediados do ano 26 d.C. até o
fim desse ano (ou pouco depois). Lugar: o deserto da Judeia e o rio
Jordão. O ministério de João dava cumprimento às profecias (Ml. 3:1 e
Is. 40:3; que Mc. 1:2, 3 cita nessa ordem). O Batista insiste com o povo a
passar por uma mudança espiritual, para que seus pecados sejam
perdoados. Também batizou, porque o batismo era sinal e selo deste
perdão. À luz dos versículos 2–4, o significado do versículo 1
(“Princípio do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”) pareceria ser:
“As boas novas a respeito de Jesus Cristo, Filho de Deus, começaram
com João Batista. Tal como foi predito, foi João quem preparou o
caminho para o advento de Cristo”. Sua pregação consistia em proclamar
a necessidade de uma genuína conversão e fé nAquele diante de quem
“nem sequer sou digno de me inclinar para desatar as correias de suas
sandálias”, dizia João. A fim de mostrar que ele, João Batista, era
Marcos (William Hendriksen) 71
incapaz de dar ao povo o que necessitava, acrescenta, “Eu vos batizei
com água, mas ele vos batizará com o Espírito Santo”. Estas palavras de
João se cumpriam cada vez que um pecador passava das trevas à luz,
mas se cumpriram especialmente durante a dispensação que começou
com o derramamento do Espírito no Pentecostes.
A resposta ao ministério de João foi assombrosa: Da Judeia,
incluindo Jerusalém, grandes multidões saíam constantemente para
escutar a João. Muitos deles confessavam seus pecados e se batizavam
no rio Jordão. João Batista levava uma forma de vida simples, vestindo
roupa feita de pelo de camelo com um cinturão de couro ao redor de sua
cintura, comendo gafanhotos e mel silvestre. Isto como também o ardor e
franqueza com que chamava as pessoas, devem ter contribuído para
conseguir um resultado favorável, com o qual se preparava o caminho
para que a mensagem de Cristo entrasse nos corações e vidas do povo.
O batismo de Jesus. Tempo: provavelmente ao redor de dezembro
do ano 26 d.C. (ou pouco depois). Lugar: o rio Jordão, o lugar exato não
se conhece. Jesus inaugurou seu ministério solicitando ser batizado por
João. Depois de ser batizado, os céus se abriram e o Espírito Santo
desceu como pomba sobre Ele. Uma voz Lhe falou: “Tu és o meu Filho
amado, em ti me comprazo”.
É verdade que a água do batismo indicava a necessidade de tirar o
pecado. É um fato também que Jesus foi e é o Imaculado. Como então
pôde ser batizado? Resposta: afinal de contas, Ele sim tinha pecado, quer
dizer, o nosso (Is. 53:6; 2 Cor. 5:21).
A tentação de Jesus. Imediatamente depois do batismo, o Espírito
tirou Jesus do Jordão a O levou para o deserto. Ali passou quarenta dias
e foi tentado por Satanás. A região onde teve lugar a tentação era
desolada e perigosa; Jesus estava em meio das feras. Não obstante,
triunfou e foi recompensado, segundo se entende pelo fato de que os
anjos, enviados pelo Pai, O serviam.
Jesus Se submeteu de maneira voluntária ao rito do batismo e
também obedeceu livremente a vontade do Pai e a direção do Espírito
Marcos (William Hendriksen) 72
quando foi tentado por Satanás. Por tudo isto, Jesus, o segundo Adão,
cumpriu a lei que o primeiro Adão transgrediu. Mediante esta obediência
estava indicando claramente que tinha tomado sobre Si o pecado de
todos nós e que estava tirando “o pecado do mundo” (cf. Jo. 1:29). Por
conseguinte, estava preparado para começar Seu ministério de ensinar,
pregar, curar, expulsar demônios e, sobretudo, sofrer e morrer por todas
as “ovelhas” perdidas que poriam sua confiança nEle (veja-se Is. 53:6,
11; Jo. 10:11, 14, 15, 27, 28).
Marcos (William Hendriksen) 73

II. SEU DESENVOLVIMENTO OU


CONTINUAÇÃO: Mc. 1:14 – 10:52
Marcos (William Hendriksen) 74
A. O GRANDE MINISTÉRIO NA GALILEIA: Mc. 1:14-45

Mc. 1:14, 15 - Começo do grande ministério na Galileia


Cf. Mt. 3:2; 4:12; 11:2; 14:3–5; Mc. 6:17–20
Lc. 3:19, 20; 4:14, 15; Jo. 3:24; 4:1–3, 43, 44

14. Depois de João ter sido preso, foi Jesus para a Galileia …
Começa aqui uma nova seção do Evangelho de Marcos. Por um
lado, temos o batismo e a tentação de Cristo (Mc. 1:9–13); por outro,
Sua chegada a Galileia (v. 14). Entre estes dois eventos pôde muito bem
ter passado mais ou menos um ano.31 Mas apesar da distância temporal,
o que o evangelista está prestes a narrar está ligado em sentido com o
ocorrido anteriormente. O que Marcos relata agora está estreitamente
relacionado com o que precede. A preparação e inauguração da obra que
o Pai tinha encomendado ao Filho para fazer tinha chegado ao seu termo.
O começo foi cumprido: João Batista, o arauto, tinha apresentado a
Cristo diante de Israel. Além disso, o próprio Jesus tinha pedido para ser
batizado, e Seu batismo confirmava sua decisão de tomar sobre os Seus
ombros o pecado do mundo. Por último, Jesus tinha demonstrado ser
digno, porque triunfou sobre Satanás no deserto. Isto O transformou em
representante de Seu povo, o segundo Adão que venceu onde o primeiro
Adão tinha fracassado. Portanto, agora nada podia impedi-Lo de realizar
a tarefa que lhe tinha sido atribuída e que voluntariamente assumiu.
O tempo em que Cristo partiu da Judeia para a Galileia (veja-se Jo.
4:1–3, 43) tinha certa relação com o encarceramento de João Batista. O
Mestre abandonou a Judeia e empreendeu viagem para a Galileia,
quando João foi detido (Mc. 1:14) e quando os fariseus, com quartel
31
Este cálculo se baseia no suposto de que a viagem a Galileia, com a qual Jesus começou o grande
ministério galileu que Marcos menciona aqui, é o mesmo de Jo. 4:3, 43. Em João esta viagem foi
seguida pouco depois pelo que provavelmente foi a segunda Páscoa do ministério público de Cristo
(Jo. 5:1). Em consequência, a festa da Páscoa do ano 28 d.C. foi precedida, um ano antes, pela
primeira Páscoa que se menciona em Jo. 2:13, 23. Veja-se também CNT sobre o Evangelho segundo
João, pp. 38, 39, 191, 200, 201; e meu Bible Survey, pp. 61, 62, 69.
Marcos (William Hendriksen) 75
general em Jerusalém, inteiraram-se de que Jesus ganhava e, mediante
Seus discípulos, batizava mais discípulos que João. O Senhor estava
consciente de que Sua grande popularidade nas regiões campestres da
Judeia traria tão intenso rancor da parte dos líderes religiosos dos judeus,
que no curso natural dos fatos este ódio causaria uma crise prematura.
Jesus entregaria voluntariamente Sua vida logo que chegasse o momento
assinalado para Sua morte (Jo. 10:11, 14, 15, 18; 13:1). Nesse momento,
e não antes, Ele teria que fazê-lo. Além disso, a Galileia também tinha
ovelhas perdidas que deviam ser trazidas ao redil.
Assim, Jesus veio para a Galileia pregando o evangelho de Deus,
quer dizer, apregoando ou proclamando as boas novas de salvação como
dom gratuito de Deus para os homens, uma salvação que do começo ao
fim é obra de Deus. Sem dúvida, todo verdadeiro servo de Deus dará a
conhecer o relato, mas Deus (em Cristo) ocupou-Se em prover os fatos
do relato que teria que ser contado. Foi Ele quem proveu o caminho da
salvação, fora do qual todo homem está eternamente perdido. Estas boas
novas, portanto, constituem com toda propriedade “o evangelho de
Deus”. Que melhor comentário poderíamos achar que a seguinte lista de
passagens: Jo. 3:16; Rm. 8:3, 32; 2Co. 5:20, 21; Gl 4:4, 5; Ef. 2:8–10;
Tt. 3:7?
15. dizendo: O tempo está cumprido, …” (cf. Gl 4:4; Ef. 1:10). O
tempo apropriado ou a oportunidade favorável 32 tinha chegado para o
cumprimento das promessas redentoras de Deus e para a promulgação do
evangelho. A hora para o cumprimento de Isaías 9:1, 2 33 tinha chegado.
Em consequência, Jesus diz: e o reino de Deus está próximo. Observe-
se “reino de Deus”, onde Mateus geralmente diz “reino dos céus”.
Basicamente o significado é o mesmo. Então, o que Jesus está dizendo é

32
Note-se que se diz: “καιρός está cumpridi”. Diferente de χρόνος, καιρός considera o tempo da
perspectiva da oportunidade que brinda e não simplesmente como um passo do passado ao presente e
ao futuro. Assim, καιρός não indica só duração. Veja-se R.C. Trench, Synonyms of the New Testament
(Grand Rapids, 1948), # lvii.
33
Veja-se CB, mas não se tome em conta a má tradução de Is. 9:1 que entrega Reina-valera 1909.
Marcos (William Hendriksen) 76
que o reinado de Deus começaria a fazer-se sentir nos corações e vidas
do povo de uma forma muita mais poderosa, como nunca antes. Havia
grandes bênçãos preparadas para todos aqueles que, pela soberana graça,
confessariam e abandonariam seus pecados, para começar a viver para a
glória de Deus.
Em sua conotação mais ampla, as expressões “o reino de Deus”, “o
reino dos céus” ou simplesmente “o reino” (esta última quando o
contexto deixa claro que se refere ao reino de Deus) indicam o reinado,
governo ou soberania de Deus, quando são reconhecidos-nos corações,
quando estão operações na vida do povo de Deus, quando levam a cabo a
completa salvação dos crentes, quando os converte em igreja e
finalmente num universo redimido. Passemos agora a ilustrar estes
quatro conceitos:
a. O reinado, governo ou soberania reconhecida de Deus. Este pode
ser o significado em Lucas 17:21, “O reino de Deus está dentro de vós”,
e é o significado em Mateus 6:10, “Venha o teu reino, seja feita a tua
vontade …”
b. Completa salvação, quer dizer, todas as bênçãos espirituais e
materiais para a alma e o corpo. Isto vem quando Deus é o Rei em
nossos corações, e é reconhecido e obedecido como tal. O contexto
mostra que este é o significado em Marcos 10:25, 26, “É mais fácil …
que um rico entre no reino de Deus. E … disseram, Então, quem pode
salvar-se? ”
c. A igreja: a comunidade de pessoas em cujos corações Deus é
reconhecido como Rei. Reino de Deus e igreja quando usados neste
sentido são quase equivalentes. Este é o significado em Mateus 16:18,
19, “… sobre esta rocha edificarei a minha igreja … te darei as chaves
do reino dos céus.”
d. O universo redimido: o novo céu e a nova terra com toda sua
glória; algo ainda futuro: a realização final do poder salvador de Deus.
Assim é em Mateus 25:34, “… herança o reino preparado para vós”.
Marcos (William Hendriksen) 77
Estes quatro significados de reino não estão separados nem alheios
um do outro. Todos procedem da ideia central do reino de Deus, sua
supremacia na esfera do poder salvador. O reino ou reinado (a palavra
grega tem ambos os significados) dos céus é como o desenvolvimento
gradual da semente de mostarda; portanto, presente e futuro (Mc. 4:26–
29). É presente: estude-se Mt. 5:3; 12:28; 19:14; Mc. 10:15; 12:34; Lc.
7:28; 17:20, 21; Jo. 3:3–5; 18:36. É futuro: estude-se Mt. 7:21, 22;
25:34; 26:29.
Jesus falou da obra de salvação como o reino ou reinado do céu, a
fim de indicar o caráter, origem e propósito sobrenatural de nossa
salvação. Nossa salvação começa no céu e deve redundar para a glória
do Pai que está no céu. Portanto, ao usar este termo Cristo defendeu
aquela verdade, tão preciosa para todos os crentes, que tudo está
subordinado à glória de Deus.
Em consequência, Mateus 4:14–16; 11:4, 5 e Lucas 4:18–21 seriam
um excelente comentário às palavras: “O tempo está cumprido, e o reino
de Deus está próximo”. É fácil entender por que Jesus diz “está
próximo”, porque quando estas palavras foram ditas o trabalho de Cristo
de pregar, ensinar, e curar na Galileia e seus arredores logo começava.
Jesus prossegue: arrependei-vos * e crede no evangelho. Compare-
o que disse João Batista: “Arrependei-vos, porque o reino dos céus está
próximo” (Mt. 3:2; veja-se também Mc. 1:4) com o que disse Jesus:
“arrependei-vos e crede no evangelho; arrependei-vos …”. O significado
é o mesmo. Na realidade, no Evangelho de Mateus as mesmas palavras
são atribuídas tanto a João (Mt. 3:2) como a Jesus (Mt. 4:17).
Basicamente, então, o evangelho de ambos era o mesmo. João foi fiel em
sua tarefa de preparar o caminho.
Algumas versões traduzem “arrependei-vos” (NVI, RA, RC, TB), o
que enfatiza só o aspecto negativo da mudança que se requer. Embora
esta tradução não seja a melhor, devemos reconhecer que, sem lugar a

*
Hendriksen traduz “convertei-vos,” segundo ele uma melhor tradução. – N. do Tradutor.
Marcos (William Hendriksen) 78
dúvida, também se pede arrependimento. Algumas vezes fica de relevo a
verdadeira tristeza pelo pecado e a sincera resolução de romper com a
antiga maldade (Lc. 3:13, 14). Mas a palavra usada no original 34 olhe
para frente, não só para trás. Significa “convertei-vos”, 35 submetam-se a
uma mudança radical de coração e de vida, uma volta total de vida. O
lado positivo da conversão se sublinha nas palavras que seguem “crede
no evangelho”. 36 Tal fé inclui conhecimento, assentimento, e confiança.
Em palavras do Catecismo de Heidelberg: “A verdadeira fé não é só um
conhecimento indefectível, pelo qual tenho por certo tudo o que o
Senhor nos revelou em Sua palavra, mas também uma verdadeira
confiança que o Espírito Santo infunde em meu coração pelo Evangelho,
dando-me a segurança de que não só a outros, mas também a mim
mesmo, Deus outorga a remissão de pecados, a justiça e a vida eterna, e
isso por pura graça e somente pelos méritos de Jesus Cristo”. Uma
pessoa aceita uma mensagem quando age de acordo com ela.

Mc. 1:16–20 - A chamada de quatro pescadores


Cf. Mt. 4:18–22; e para Mc. 1:17b e Mt. 4:19b, veja-se Lc. 5:10b 37

16-18. Caminhando junto ao mar da Galiléia, viu os irmãos


Simão e André, que lançavam a rede ao mar, porque eram
pescadores. Disse-lhes Jesus: Vinde após mim, e eu vos farei

34
O verbo aparece na forma de μετανοεῖτε, que é o imperativo presente, 2da., pes. pl. de μετανοέω. O
verbo ocorre cinco vezes em Mateus (Mt. 3:2; 4:1–17; 11:20, 21; 12:41), duas vezes em Marcos (Mar.
1:15; 6:12), nove vezes em Lucas, cinco vezes em Atos, uma vez em 2Co. 12:21, e onze vezes no
livro de Apocalipse. O substantivo cognato é μετάνοια e também ocorre com frequência, começando
em Mt. 3:8.
35
O correto é “convertei-vos” (CB, BJ, cf. LT). Cf. “voltem-se para Deus” (VP).
36
Não aceito o raciocínio de Lenski (Op. cit., pp. 43, 44) de que porque πιστεύετε segue a μετανοεῖτε,
o último verbo refere-se só à contrição. Uma palavra não perde tão facilmente seu significado básico.
Acrescenta-se πιστεύετε para pôr de relevo o aspecto positivo de μετάνοια.
37
Quanto a razões que mostram por que Lc. 5:1–11 não pode ser considerado em sua totalidade como
um verdadeiro paralelo de Mt. 4:18–22 e Mc. 1:16–20, veja-se CNT sobre Mt. 4:18–22.
Marcos (William Hendriksen) 79
pescadores de homens. Então, eles deixaram imediatamente as redes
e o seguiram. 38
O maravilhoso evangelho do reino não era somente para os homens
que viveram no tempo do ministério terrestre de Cristo, era para toda
época. Então não deve nos surpreender que no começo de Seu
ministério, Jesus escolhesse homens que, mediante seu testemunho oral e
escrito, perpetuassem Sua obra e proclamassem Sua mensagem. Não era
nada novo que um mestre tivesse, não só um público geral, mas também
um grupo de discípulos. Não teve discípulos Sócrates? Não os teve João
Batista? Os rabinos? Os discípulos de Cristo seriam os elos entre Ele e a
igreja. Pense-se, por exemplo, na importância que homens como Mateus,
João e Pedro tiveram na formação dos Evangelhos, que são nossa
principal fonte de informação a respeito de Jesus Cristo. Em
consequência, enquanto caminhava junto ao mar da Galileia, convida
certos homens para que sejam Seus seguidores.
Devemos entender, não obstante, que o chamado que Jesus
estendeu a estes quatro homens aqui em Mc. 1:18–22 não foi o primeiro
que receberam. Um ano antes, André e outro discípulo que não se
nomeia, muito possivelmente João, tinham recebido o convite de “vinde
e vede”. Nessa oportunidade foram ver onde Jesus vivia, e assim
chegaram a ser Seus seguidores espirituais. Foi André quem trouxe a
Jesus para seu irmão Simão. João provavelmente fez o mesmo com seu
irmão Tiago. Veja-se CNT sobre Jo. 1:35–41.
Assim que agora, um ano mais tarde, segundo Marcos 1:16–20
estes mesmos quatro discípulos se convertem em companheiros do

38
A fraseologia de Mc. 1:16–18 e Mt. 4:18–20 é quase idêntica. Só se notam diferenças de uso.
Assim, Marcos diz: “Caminhando junto ao”; Mateus: “Caminhando junto ao”; Marcos: “viu Simão e
André, seu irmão”; Mateus: “viu dois irmãos, Simão, chamado Pedro, e André”. Mateus usa o
substantivo “redes” enquanto que a forma verbal de Marcos implica o substantivo. Mateus diz: “…e
eu vos farei pescadores de homens”; Marcos: “…e eu farei que sejais pescadores de homens”. No v.
20 Mateus tem οἱ δε εὐθέως, enquanto que o versículo paralelo de Marcos (v. 18) diz: καὶ εὑθύς. Uma
semelhança tão estreita, embora com ligeiras diferenças, apoia a teoria de que a. existe conexão
literária entre Marcos e Mateus; b. Contudo, cada evangelista possui seu próprio estilo.
Marcos (William Hendriksen) 80
Senhor de uma forma mais permanente e mais que nunca se dão conta
que estão sendo treinados para o apostolado, quer dizer, para ser
“pescadores de homens”.
Os homens que Jesus escolheu como companheiros íntimos
precisavam ser treinados para o apostolado. Simão, o inconstante, deve
ser transformado em Pedro a rocha. Sucedia algo similar com relação a
todos. Não só no princípio, mas também certo tempo depois, os
discípulos manifestaram uma profunda carência de penetração espiritual
(Mc. 4:10, 13; 8:4, 16–21, 32, 33; 9:10–13; 10:10, 24–27); de fervente
compreensão (Mc. 6:35, 36; 10:13, 14); de humildade (Mc. 9:33, 34); de
espírito de perdão espontâneo e alegre (Mc. 10:41); de oração
perseverante (Mc. 9:28, 29); e de coragem inquebrantável (Mc. 14:50,
66–72). Em todo caso, requeria-se deles certa valentia para ser
seguidores de Cristo, pois deviam enfrentar a oposição de muitos,
incluindo a dos líderes religiosos. Para maiores detalhes quanto aos
Doze, veja-se sobre Mc. 3:16–19a.
Em conexão com isto, há um fato que não devemos passar por alto:
decidiram estar do lado de Jesus, o que realça a grandeza do Senhor, pois
é poderoso para influir sobre as mentes e os corações dos homens, de
modo que quando os chama, eles O seguem imediatamente. A amplitude
de Sua bondade e a magnitude de Seu poder se deixam ver também aqui.
Não é maravilhoso que estivesse disposto e que tivesse a habilidade de
tomar e transformar aqueles rudes pescadores sem educação,
prevalecendo sobre todos os preconceitos e superstições que tinham? O
Senhor os transformou em instrumentos para a salvação de muitos,
converteu-os em líderes que, mediante seus testemunhos, transtornaram
ao mundo inteiro.
Os quatro que se mencionam nos versículos 16–20 são:
Pedro, o impetuoso (Mt. 14:28–33; Mc. 8:32; 14:29–31, 47; Jo.
18:10), que chega a ser o líder dos Doze e que se menciona em primeiro
lugar em todas as listas dos apóstolos (Mt. 10:2–4; Mc. 3:16–19; Lc.
6:14–16; At. 1:13).
Marcos (William Hendriksen) 81
André, irmão de Pedro, aquele que sempre está trazendo pessoas a
Jesus (Jo. 1:40–42; 6:8, 9, cf. Mt. 14:18; Jo. 12:22).
Tiago, filho de Zebedeu, o primeiro dos Doze em levar a coroa de
mártir (At. 12:1, 2).
João, seu irmão, chamado “aquele a quem ele amava” (Jo. 13:23;
19:26; etc.). Indubitavelmente, o Senhor amava a todos “os seus”
intensamente (Jo. 13:1, 2), mas o apego e compreensão que havia entre
Jesus e João era mais tenro.
Há outros detalhes interessantes sobre os versículos 16–18. Quando
Jesus ia pelas ribeiras do mar da Galileia, vê a dois homens, a Simão e a
seu irmão André, lançando as redes ao mar. Quando essa rede é lançada
acima do ombro, ao cair na água se estende formando um círculo. Logo,
por causa dos partes de chumbo que leva, submerge rapidamente,
aprisionando os peixes. Estes dois irmãos estavam ocupados em seu
trabalho diário, porque eram pescadores.
“Eram pescadores”. Esta é a classe de pessoas que o Senhor
escolheu como fundamento da igreja (Ap. 21:14, 19, 20). Segundo as
normas do mundo não eram sábios, nem poderosos, nem nobres. Deus
escolheu a insensatez do mundo, para envergonhar os sábios (1Co. 1:26,
27).
É importante observar que quando o Senhor diz “Vinde após mim”,
exerce sua soberania sobre Simão e André. Mostra que tem o direito de
demandar deles serviço para o Seu reino. Devem estar prontos para
segui-Lo imediatamente à voz de Seu chamado.
Simão e André eram de Betsaida (Jo. 1:44), mas Simão (isto é,
Pedro) mudou-se recentemente a Cafarnaum (Mt. 4:13; 8:5, 14, 15; Mc.
1:21, 29, 30; Lc. 4:31, 33, 38). Estes homens já conheciam Jesus, porque
tinha transcorrido um ano do inesquecível acontecimento registrado em
João 1:35–42. Daí que quando Jesus lhes diz, “Vinde após mim, e eu vos
farei pescadores de homens”, eles deixaram imediatamente suas redes e
O seguiram, alentados pela promessa de seu Senhor de prepará-los para
Marcos (William Hendriksen) 82
uma tarefa superior à honrosa ocupação que agora tinham. Em lugar de
pescar peixes para servir à mesa, recrutariam aos homens para o reino.
Convém-nos observar que mediante a promessa “eu vos farei
pescadores de homens”, Jesus coloca Seu selo de aprovação sobre as
palavras do escritor inspirado de Provérbios, que diz: “Quem ganha
almas é sábio” (Pv. 11:30); confirma as palavras de Daniel 12:3 - “Os
que a muitos conduzirem à justiça, [resplandecerão] como as estrelas,
sempre e eternamente”; acrescenta sua própria autoridade a notável
declaração de Paulo, “Fiz-me tudo para com todos, com o fim de, por
todos os modos, salvar alguns” (1Co. 9:22); e antecipa Seu próprio
convite glorioso: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e
sobrecarregados, e eu vos aliviarei” (Mt. 11:28).
Outros dois discípulos de Jesus receberam o mesmo mandamento e
a mesma promessa:
19, 20. Pouco mais adiante, viu Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu
irmão, que estavam no barco consertando as redes. E logo os chamou.
Deixando eles no barco a seu pai Zebedeu com os empregados, seguiram
após Jesus.
Diferente de Pedro e André (vv. 16–18), estes dois não estavam
pescando. Não estavam com os outros dois irmãos, mas se encontravam
a certa distância. Tiago e João se achavam com seu pai no barco. Em vez
de pescar estavam remendando suas redes, preparando-se para a próxima
saída para pescar. Quando Jesus os vê, repete o que momentos antes fez
com relação aos outros dois: imediatamente os chamou para O seguirem.
Em consequência, também lhes pede para entrar em uma mais íntima
relação com Ele. Em outros termos, chama-os para que, mediante a
presença contínua de seu Mestre, comecem sua aprendizagem para o
apostolado.
Imediatamente deixam o seu pai e começam a seguir a Jesus.
Agora, embora a ação de segui-Lo já estava preparada pelo ocorrido um
ano atrás, tal ação não pode mencionar-se de passagem. Foi realmente
muito notável. No espírito de Mt. 13:55 e Jo. 1:47; 6:42, puderam ter
Marcos (William Hendriksen) 83
dito: “Não é este o filho do (já falecido?) carpinteiro da próxima Nazaré?
Acaso não é ele também um carpinteiro? Por que temos que ser seus
aprendizes”? Além disso, é preciso levar em conta uma teoria que muitos
sustentam e que não se pode rejeitar levianamente. Parece correto
afirmar que Salomé (mãe de Tiago e de João) era irmã da mãe de Jesus
(veja-se CNT sobre Jo. 19:25). Se isto for certo, eles poderiam ter
acrescentado: “E não são seus irmãos Tiago, José, Simão, e Judas? Não é
acaso apenas nosso primo? Por que temos que segui-Lo?”. O fato de que
não hajam dito nada semelhante, mas imediatamente tenham deixado a
seu pai para unir-se a Jesus, não só fala bem deles, mas também
especialmente exibe o caráter magnético e majestoso de seu Mestre!
Poderia surgir a pergunta “Não foi precipitada a ação destes
homens? Não era uma desconsideração para com seu pai (Zebedeu), o
abandoná-lo no meio do diário afã?”. Resposta: a. Não se exclui que
nesta etapa, na qual se dava uma crescente relação entre eles e seu
Mestre, Tiago e João ajudassem o seu pai de vez em quando, enquanto
Jesus tinha seu centro de operações em Cafarnaum. b. Marcos — não
Mateus — nos informa que Tiago e João deixaram seu pai no barco
“com os trabalhadores”. De modo que, cada vez que os filhos de
Zebedeu não podiam estar com seu pai, ele podia depender dos
trabalhadores para preencher o vazio. Tudo estava bem previsto. c.
Acima de todas estas considerações está o fato de que quando Jesus
chama, deve dar-se uma pronta obediência. É Jesus quem Se encarrega
dos “mas”. Ele tem a solução.
Quanto a Zebedeu, embora Marcos volte a mencionar em seu
Evangelho (Mc. 3:17; 10:35) que era o pai de Tiago e João, não se volta
a nomeá-lo como alguém dedicado à pesca. Morreu pouco depois? Será
esta a razão de por que não se atribui a Zebedeu nenhuma participação
na história que narra o pedido de seus filhos (Mc. 10:35) e da mãe deles
(Mt. 20:20)? Tudo isto é possível, mas o Evangelho de Marcos deixa
bem claro que não temos que concentrar nossa atenção em Zebedeu, em
sua esposa Salomé, nem em seus filhos Tiago e João, e sim no Senhor,
Marcos (William Hendriksen) 84
somente nEle. Nossa atenção deve ficar na majestade, poder, e amor de
Cristo.

Mc. 1:21–28 - A cura de um homem com espírito imundo


Cf. Lc. 4:31–37

Durante a tentação no deserto, Jesus derrotou Satanás (Mc. 1:12,


13; cf. Mt. 4:1–11). Agora, não nos surpreende que o príncipe do mal se
proponha fazer todo o possível para opor-se a Cristo e ao Seu reino.
Procura o Ungido entrar nos corações dos homens? Satanás envia os seus
servos, os demônios, para tomar controle desses corações. Na realidade,
tinha o costume de fazê-lo, mas agora o fazia mais do que nunca. Por
outro lado, isto fazia com que o Conquistador “expulsasse” estes
demônios. Assim atava, reprimia ou limitava severamente o poder do
“homem forte, Belzebu” (Mc. 3:22–27; cf. Mt. 12:22–29; Ap. 20:1–3).
Desta forma, os corações abririam-se para receber o evangelho. A
atividade missionária que já foi claramente predita (Mc. 1:17)
substituiria o engano satânico.
Depois de dois versículos introdutórios (Mc. 1:21, 22), Marcos
apresenta seu primeiro relato sobre a expulsão de demônios (vv. 23–28).
Lucas segue o mesmo procedimento: uma introdução em Mc. 4:31, 32,
seguida pelos versículos 33–37.
21. Depois, entraram em Cafarnaum, e, logo no sábado, foi ele
ensinar na sinagoga.
Agora se esclarece que a parte da margem pela qual Jesus
caminhava, quando chamou os quatro discípulos, achava-se perto de
Cafarnaum. Jesus tinha o costume de assistir à sinagoga (Lc. 4:16), e
logo se acostumou a ensinar nela (Jo. 18:20). O mesmo ocorre na
presente ocasião. Primeiro deve ter lido no hebraico a porção da lei
prescrita para essa ocasião, depois alguém a traduziu ao aramaico. Jesus
deve ter manifestado Seu desejo de falar e, tendo obtido a permissão para
Marcos (William Hendriksen) 85
fazê-lo, de pé leu uma porção dos profetas: logo Se assentou e explicou a
passagem lida aplicando-a às necessidades dos ouvintes.
22. Maravilhavam-se da sua doutrina …
Enquanto Jesus falava, o povo ficou pasmado. Estavam literalmente
“fora de si”, quer dizer, “aturdidos” pelo assombro e a admiração. Foi
uma condição que os manteve sobressaltados.
Quais foram algumas das razões que produziram tal reação no
auditório? Uma delas bem pôde ser que ele era um carpinteiro (Mc. 6:3)
e, entretanto, mostrava uma incrível sabedoria. Mas o que especialmente
os impressionou foi isto: porque os ensinava como quem tem
autoridade e não como os escribas (cf. Mt. 7:28b, 29). Considerem-se
os seguintes pontos de contraste entre o método de ensino de Cristo e o
dos escribas.
a. Ele falou a verdade (Jo. 14:6; 18:37), enquanto os sermões dos
escribas se caracterizavam por raciocínios evasivos (Mt. 5:21ss).
b. Ele ensinou coisas de tremendo significado, assuntos a respeito
da vida, a morte e a eternidade. Eles com frequência desperdiçavam o
tempo em assuntos corriqueiros (Mt. 23:23; Lc. 11:42).
c. Sua pregação tinha um sistema, pelo contrário o Talmude
demonstra que eles divagavam com frequência.
d. Ele despertava a curiosidade, fazendo uso abundante de
ilustrações (Mc. 4:2–9, 21, 24, 26–34; 9:36; 12:1–11). O ensino deles era
quase sempre árido e aborrecido.
e. Ele falava mostrando amor para com as pessoas, como aquele
que se preocupava do destino eterno de seus ouvintes, e os guiava ao Pai
e seu amor. Eles careciam de amor, o que passagens como Marcos 12:40
tornam evidente.
f. Finalmente, e isto é o mais importante, aqui diz especificamente
que Ele falava “com autoridade”, porque Sua mensagem vinha
diretamente do coração e a mente do Pai (Jo. 8:26). Sua mensagem
procedia da própria alma e das Escrituras. Pelo contrário, eles tomavam
ideias de fontes falíveis, um escriba citando a outro. Eles procuravam
Marcos (William Hendriksen) 86
tirar água de cisternas quebradas. Ele a tirava de Si mesmo, sendo Ele a
fonte de água viva (Jr. 2:13).
23a. Não tardou que aparecesse na sinagoga um homem
possesso de espírito imundo.
Passagens como Marcos 1:32–34; 6:13 e Lucas 4:40, 41, provam
que é falso que os escritores do Novo Testamento agissem como todos
os povos primitivos, atribuindo todas as enfermidades e anormalidades
físicas a presença e ação dos espíritos malignos. Além disso, a evidência
assinala que é incorreto afirmar que a possessão demoníaca seja
simplesmente outro nome para a loucura. O fato é que o termo
“possessão demoníaca” descreve uma condição na qual um ser distinto e
maligno (Marcos: “espíritu inmundo”; Lc. 4:33 “possesso de um espírito
de demônio imundo”), alheio à pessoa possuída, toma controle dela. Para
detalhes mais amplos a respeito de possessão demoníaca, veja-se no
CNT sobre Mt. 9:32–34.
Muitos sustentam a teoria de que a possessão demoníaca persistiu
através dos séculos e que a temos presente hoje em dia. Orígenes (ativo
em 210–250 d. C.) afirmou que a pessoa podia expulsar demônios
invocando o nome de Jesus e o nome dos mártires (!).Durante a Idade
Média houve aqueles que asseguravam que o fazer o sinal da cruz era um
método eficaz para expulsá-los. Os que hoje defendem esta teoria,
apelam à citada obra de H.W. White, Demonism Verified and Analyzed.
O livrinho de W.P. Blatty, O Exorcista (novela de terror sobre possessão
demoníaca) foi altamente ponderado. Certo periódico informou de uma
expulsão demoníaca que foi o resultado de cinco horas de instrução
telefônica!
É evidente até à simples vista que em algumas destas pretendidas
expulsões, a superstição joga um papel de importância. Além disso, não
existe segurança alguma de que os que creem na possessão demoníaca
como algo que ocorre no presente sejam capazes cientificamente de
traçar uma clara distinção a. entre certas condições anormais da mente
(por exemplo, a dissociação) e a invasão que um demônio pode fazer de
Marcos (William Hendriksen) 87
alguma pessoa; e b. entre a influência demoníaca e possessão demoníaca.
Na Igreja Católica Romana, antes de que se permita um sacerdote passar
a realizar um exorcismo, é-lhe exigido que faça um cuidadoso exame,
para verificar se trata-se de um verdadeiro caso de possessão demoníaca.
E mesmo neste caso, deve receber autorização de seu bispo antes de
seguir adiante.
O já falecido Dr. J.D. Mulder, homem de alta reputação e com
vastos conhecimentos em teologia, medicina e prática psiquiátrica,
escreveu uma série de artigos sobre “Enfermidades mentais e possessão
demoníaca”. Nestes artigos escreveu o seguinte, “Trabalhei por seis anos
como missionário médico entre os navajos, tribo de índios
profundamente empapados pelo temor aos maus espíritos, a feitiçaria e
assuntos semelhantes. Ao mesmo tempo, os dez últimos anos estive em
contato diário com perturbados mentais de todo tipo … Entretanto, a
conversação diária com estes … pacientes e um estudo cuidadoso de
seus mais íntimos pensamentos, convenceram-me que, embora pudesse
haver influência demoníaca, estava sempre ausente o quadro de
possessão que o Novo Testamento apresenta. Em consequência, estou
totalmente de acordo com o professor Schultze, quando escreve:
‘Atrevo-me a sugerir que a possessão demoníaca foi um fenômeno
limitado quase exclusivamente (se não inteiramente) ao período de
manifestações divinas especiais durante a época da nascente igreja do
Novo Testamento’ ”. 39
Marcos prossegue:
23b, 24. Que temos nós contigo, 40 Jesus Nazareno?
Fazendo uso das cordas vocais do desventurado, o demônio
literalmente disse: “O que (há) entre nós e tu”, quer dizer, “O que temos
39
The Banner (revista publicada pela Igreja Cristã Reformada, Grand Rapids, Michigan, EUA),
edições de 24 de março e de 7 de abril, 1933. Depois de sua valiosa experiência como missionário
médico, o Dr. Mulder foi por muitos anos superintendente de Pine Rest Christian Hospital (Grand
Rapids), uma instituição para pessoas com problemas mentais.
40
A respeito de τί ἡμῖν καὶ σοί veja-se M. Smith, “Notes on Goodspeed’s ‘Problems of New
Testament Translation’ ”, JBL, 64 (1945), pp. 512, 513.
Marcos (William Hendriksen) 88
em comum?”; em outras palavras: “O que tens tu que ver conosco?”; em
consequência: “Por que nos incomodas?” (veja-se também Mc. 5:7; cf.
Mt. 8:29). Observe-se: “O que tens tu que ver conosco?”. Um demônio
fala por todos os outros, porque se dá conta que o que suceder com ele,
será a porção de todos os outros demônios.
Ao que está prestes a expulsá-lo, chama-o, literalmente, “Jesus
Nazareno”. O ter sido criado em Nazaré sugeria começos humildes e, no
caso do Messias apontava ao Seu estado de humilhação (Mt. 2:23). Além
disso, Natanael uma vez perguntou: “De Nazaré pode sair alguma coisa
boa?” (Jo. 1:46). Esta pergunta a fez movido pela rivalidade que havia
entre sua aldeia e a de Nazaré ou, com maior probabilidade, porque
pensava em nada bom quanto à categoria messiânica. Contudo, não
devemos pensar que cada vez que Jesus o chama “Nazareno” trata-O
com desdém. Na realidade até o próprio Jesus usa o termo com relação a
Si mesmo (At. 22:8). 41
A forma em que o demônio dirigiu-se ao Senhor, chamando-O
“Jesus Nazareno”, foi tão somente a designação pela qual era conhecido,
e não uma falta de respeito. Isto é claro pelas palavras que acrescenta:
“Vieste para perder-nos? Bem sei quem és: o Santo de Deus! As
palavras “vieste”, dificilmente poderiam significar: “vieste de Nazaré”,
porque Jesus não precisava vir de Nazaré para esmagar o poder dos
emissários de Satanás. É melhor entender a expressão no sentido de
“vieste ao mundo do céu …”. Em consequência, o demônio pergunta se
aquele que tinha vindo para buscar e a salvar os perdidos (Lc. 19:10)
também devia destruir agora mesmo os demônios (cf. Mt. 8:29),
lançando-os ao abismo ou masmorra onde Satanás está preso (Ap. 20:3).
Quando o demônio declara “sei”, não está mentindo. Há certas
coisas que o príncipe do mal e seus servidores conhecem (veja-se Tg.
2:19). Além disso, parte deste conhecimento os faz tremer, eles enchem
41
O significado é o mesmo, seja que “Nazareno” se escreva Ναζαρηνός (a forma usada por Marcos;
veja-se além de Mc. 1:24; 10:47; 14:67; 16:6) ou Ναζαραῖος (a forma usada em Mt. 2:23; 26:71; Jo.
18:5, 7; 19:19). Lucas tem ambas as formas.
Marcos (William Hendriksen) 89
de temor. Sabem que para eles não há salvação, mas apenas um horrível
castigo. O demônio está pensando nesta terrível realidade, ao notar que
naquele instante se acha diante de Seu grande oponente, a quem
corretamente o chama “o Santo de Deus”. Sabe que a santidade não pode
tolerar o pecado. “… espírito imundo … Santo de Deus”. Que contraste!
(em conexão com “o Santo”, veja-se Lc. 4:34; Jo. 6:69; Ap. 3:7). Jesus
foi “santo”, não só no sentido de que não tinha pecado em Si mesmo,
que estava cheio de virtude e que era a causa de virtude em outros, mas
especificamente também no sentido de ter sido ungido e, portanto, posto
à parte, separado para a realização da mais excelsa tarefa (Is. 61:1–3; Lc.
4:18, 19; 19:10; Jo. 3:16; 10:36; 2Co. 5:21).
Quando os radicais negam a deidade de Cristo, exibem menos
entendimento que os demônios; porque estes a reconhecem
constantemente. Por certo que não o fazem no espírito correto, pois
substituem a reverência pelo descaramento; a alegria pela amargura; a
gratidão pela baixeza. Mas apesar de tudo, fazem-no. Chamam a Jesus
de “o Santo de Deus” (Mc. 1:24), “o Filho do Altíssimo” (Mc. 5:7), “o
Filho de Deus” (Mt. 8:29).
25. Mas Jesus o repreendeu, dizendo: Cala-te e sai desse
homem. Jesus não aceita o reconhecimento que vem de um demônio
inteiramente corrupto. Além disso, o demônio não tem direito algum a
entremeter-se (mas veja-se também sobre vv. 33, 34). De modo que,
Jesus lhe dá uma dupla ordem cortante e peremptória: “Cala-te e sai
desse homem.”. 42
O demônio obedece imediatamente, não podia fazer outra coisa.
Obedece, embora seja evidente que de muito má vontade:
26. Então, o espírito imundo, agitando-o violentamente e
bradando em alta voz, saiu dele.

42
Os verbos são φιμώθητι, que é um imperativo aoristo, voz passiva, 2ª. pes. sing. de φιμόω, “cala-
te”, “silêncio”, (cf. 4:39) e ἔξελθε que é o impera. aor. 2ª. pes. sing. de ἐξέρχομαι.
Marcos (William Hendriksen) 90
Aqui a Reina-Valera (1909) diz, “E o espírito imundo, lhe fazendo
pedaços”. Mas isto, além de estar em conflito com “saiu dele sem lhe
fazer mal” (Lc. 4:35), tampouco concorda com o fato de que se usa a
mesma palavra grega (Mc. 9:26; Lc. 9:39; e cf. Mc. 9:20; Lc. 9:42) em
conexão com um epilético (veja-se Mt. 17:15), em cujo caso não se fala
de lacerações, e sim de convulsões. Portanto, Marcos 1:26 não fala de
rasgadura. Em consequência, a tradução deve ser: “… provocou
convulsões no homem”. Logo, usando pela última vez as cordas vocais
do homem, o demônio saiu (literalmente): “gritando com um grande
grito”.
27. Todos ficaram espantados e diziam uns para os outros: —
Que quer dizer isso? É um novo ensinamento dado com autoridade.
Ele manda até nos espíritos maus, e eles obedecem.
Aqui se relata como as pessoas reagiram diante de tudo o que tinha
ocorrido na sinagoga. A emoção que se descreve (“ficaram espantados”)
é sinônima ao expresso no versículo 22 (“ficaram muito admiradas”).
Quando os presentes começaram a perguntar-se uns aos outros “Que
quer dizer isso?”, referiam-se tanto ao ensino de Cristo quanto à
expulsão do demônio. Quanto ao primeiro, deram-se conta que tanto o
conteúdo como o método (veja-se sobre v. 22) do ensino que naquele
sábado tinham ouvido na sinagoga era diferente de tudo o que ouviram
antes nesse lugar. Quanto ao segundo, a mesma autoridade e poder que
Jesus exibiu em Seu ensino, foram mostrados também nas ordens que
deu aos demônios. De modo que, tiveram que render-se, sendo
totalmente incapazes de resistir. Deve notar-se que, embora o relato em
si fala de um só demônio, as pessoas em seguida tiram a conclusão
correta de que o que foi feito a um espírito imundo podia ser feito a
todos.
Os ouvintes não sabiam o que fazer com tudo isso. Estavam
profundamente impressionados com as palavras e as obras de Jesus.
Entre eles perguntavam-se quem era ele, mas não achavam resposta.
Marcos (William Hendriksen) 91
28. E a fama de Jesus se espalhou depressa por toda a região da
Galiléia.
Os acontecimentos daquele sábado na sinagoga foram tão
surpreendentes, que sem demora alguma cada um os contou ao seu
vizinho, e este a outro, etc. As notícias não se confinavam a Cafarnaum.
“Em questão de instantes”, por assim dizer, as novas se estenderam por
toda a Galileia, ou segundo a expressão de Lucas: “Os rumores … se
divulgavam por todos os lugares da região” (Lc. 4:37).

Mc. 1:29–34 - A cura da sogra de Pedro e de muitos outros


Cf. Mt. 8:14–17; Lc. 4:38–41

29. Logo depois, Jesus, Simão, André, Tiago e João saíram 43 da


sinagoga e foram até a casa de Simão e de André.
Da sinagoga foram diretamente à casa de Simão (Pedro). Disto não
há lugar a dúvidas (cf. Mt. 8:14; Lc. 4:38). Pedro estava casado, e sua
sogra vivia em sua casa. Marcos, entretanto, fala da casa de Simão e
André”. É evidente que André, irmão de Simão, vivia com eles na
mesma casa.
Contudo, há um problema com os sujeitos de “saíramu … foram”.
Segundo a leitura que se adote, os verbos gregos poderiam traduzir-se de
duas formas: “saíram … entraram” ou “saiu … entrou”. Sabemos que
Jesus tinha assistido à sinagoga, ali tinha ensinado e realizado um
milagre surpreendente (vv. 21–28). Sabemos também que Simão, André,
Tiago e João há pouco tinham sido chamados para ser pescadores de
homens (vv. 1–20) e que com Jesus tinham entrado em Cafarnaum. Não
é possível supor que eles assistiram aos cultos da sinagoga dessa cidade?
Agora, se esta hipótese for correta, não é lógico pensar que no versículo
29, os verbos gregos devem traduzir-se “saíram … entraram”, pois
apontam a Jesus e a estes quatro discípulos? Não obstante, se alguém der

43
De acordo com outra leitura variante: saíram … entraram.
Marcos (William Hendriksen) 92
outro olhar ao texto, notará que esta interpretação é impossível, porque
se diz que entraram na casa de Simão e André “com Tiago e João”. Entre
as soluções que se ofereceram, estas duas são as melhores:
a. Marcos foi o intérprete de Pedro, pelo que reproduz quase
literalmente o que escutou Pedro dizer num sermão ou discurso. A única
coisa que mudou foi a pessoa gramatical, da primeira à terceira pessoa.
Pedro teria dito algo assim: “E imediatamente, saímos [quer dizer, Jesus,
André e eu] da sinagoga e entramos com Tiago e João em minha casa”.
Se esta é a solução correta, os verbos devem traduzir-se: “saíram …
entraram” e se referem a Jesus, a Simão e André. 44
b. Em lugar de “saíram … entraram” a leitura variante lê “saiu …
entrou”. Esta leitura tem considerável apoio nos manuscritos 45 e é a que
se deve adotar. Neste caso os verbos apontam a Jesus. É Ele quem,
tomando consigo a Tiago e a João, entra em casa de Simão e André.
Qualquer que seja a interpretação, agora achamos a Jesus, Pedro,
André, João e Tiago em casa de Pedro e seu irmão.
30. A sogra de Simão achava-se acamada, com febre; e logo lhe
falaram a respeito dela.
Embora Mateus e Marcos dizem que a sogra de Pedro estava
“prostrada com febre” ou “estava de cama, com febre”, o médico Lucas
(cf. Cl. 4:14) diz-nos que “achava-se enferma, com febre muito alta” (Lc.
4:38) ou que “sofria um severo ataque de febre”. 46 Sem demora
informam a Jesus da situação, talvez chegando a casa ou mesmo antes.
Lucas nos diz que os discípulos — sem dúvida especialmente Pedro e
André — não só lhe falaram a respeito dela, mas também lhe pediram
que a ajudasse.

44
Esta solução é sugerida por Van Leeuwen, Op. cit., p. 33.
45
A leitura ἐξελθών ἦλθεν (“saiu … e entrou”) está apoiada pelo uncial B e, com uma ordem sintática
distinta, por D. Também a apoiam outros unciais e vários cursivos importantes. Adotam esta leitura
BP, CB, LT, BJ. Swete considera a tradução “saíram … e entraram” como “dificilmente passível”.
46
Veja-se A.T. Robertson, Luke the Historian in the Light of Research (Nova York, 1923), pp. 90–
102: “The Use of Medical Terms by Luke”. ἦν συνεχομένη πυρετῷ μεγάλῳ (Lc. 4:38).
Marcos (William Hendriksen) 93
31. Ele, aproximando-se da enferma e tomando-a pela mão, a
levantou [TB].
É muito interessante observar como os diferentes evangelistas
descrevem o que fez Jesus. Como lhe é característico, Mateus (Mt. 8:3,
15; 9:29; 17:7; 20:34) declara que Jesus “tocou” a mão dela. Que toque
mais tenro e poderoso! (veja-se CNT sobre Mt. 8:3). Tendo escutado
muitas vezes Pedro contar com emoção o que tinha sucedido, Marcos diz
de maneira muito gráfica: “tomando-a pela mão, a levantou”. O Dr.
Lucas menciona o que lhe deve haver chamado a atenção, quer dizer,
que a posição de Jesus, o grande Médico, era justamente a de um médico
típico: “Inclinando-se ele para ela para ela …” (Lc. 4:39). Não fez ele o
mesmo ao atender os seus pacientes? Lucas acrescenta: “repreendeu a
febre”. Jesus mandou a febre que a deixasse. Febre, ventos, ondas, para
Jesus não há diferença. Ele exerceu absoluto controle sobre todos eles.
De modo que aqui lhe fala com a febre como o faria com os indômitos
ventos e as tempestuosas ondas (no original usa-se o mesmo verbo em
cada caso; cf. Lc. 4:39 com Mc. 8:24).
Resultado: e a febre a deixou, passando ela a servi-los.
Jesus já a tinha levantado. Mas agora de repente “a febre a deixou”,
como o declaram os três evangelistas. Além disso, ela nem sequer disse:
“Foi-se a febre, mas me sinto totalmente esgotada”. Nada disso! Tão
somente um momento antes que Jesus a tomasse pela mão e
repreendesse a febre, suas bochechas estavam tintas, a pele quente, a
transpiração copiosa, a garganta seca (ou, segundo o tipo de febre, pôde
ter sofrido violentos calafrios). Um instante depois (veja-se Lc. 4:39, “e
logo se levantou …”) todo sintoma de febre tinha desaparecido
completamente. Não só tinha uma temperatura normal, mas também a
invadia tal impulso de energia que ela mesma insistia em levantar-se. Na
realidade, levantou-se e começou a realizar trabalhos de ativa anfitriã.
Começou a atender a todos os que se achavam presentes: a Jesus, Pedro,
André, Tiago, João, e talvez até a sua filha, se ela se achava presente; ou
Marcos (William Hendriksen) 94
talvez como hábil assistente, “mamãe” ajudava à “filha” nesta amostra
de hospitalidade.
As notícias a respeito da expulsão do demônio (vv. 23–26) e da
vitória sobre a terrível febre (vv. 29–31) estenderam-se tão rápido, que
no povoado de todos os arredores despertou a esperança de recuperação
para seus seres queridos. Resultado:
32. À tarde, ao cair do sol, trouxeram a Jesus todos os enfermos
e endemoninhados..
Mateus diz “Chegada a tarde” (Mt. 8:16), Lucas “ao pôr-se o sol”
(Lc. 4:40). Marcos usa o genitivo absoluto, literalmente “tendo chegado
a tarde”, ou “à tarde”. Também acrescenta: “ao cair do sol”.
De acordo com a forma hebraica de falar, havia duas tardes (veja-se
Êx. 12:6 no original). A primeira começava às 3 da tarde, a segunda às 6
da tarde. De modo que, quando Marcos diz “à tarde”, acrescentando
imediatamente “ao cair do sol”, o que quer dizer é que o povo esperou
que terminasse no sábado para trazer “todos os enfermos”; literalmente:
“todos os que estavam mal”. A isto se acrescenta “e endemoninhados”,
mostrando claramente que se faz uma distinção entre a. doentes que não
estavam endemoninhados, e b. indivíduos endemoninhados que puderam
ou não estar doentes fisicamente. Referente à possessão demoníaca veja-
se mais acima, sobre os versículos 23–26. O fato de que trouxeram uma
grande quantidade de pessoas a Jesus, fica claro pelo versículo:
33. Toda a cidade estava reunida à porta.
Poderia dizer-se que a casa de Pedro foi invadida. “Toda a cidade”
refere-se, naturalmente, a Cafarnaum (v. 21). Mateus (Mt. 8:16) e Lucas
(Lc. 4:40) também enfatizam o fato de que a multidão de doentes e
endemoninhados, junto com os que os traziam ou acompanhavam para
que Jesus aliviasse suas necessidades, era realmente grande.
Não terminava o poder de Cristo para curar, nem se esgotava Seu
amor e simpatia:
34. E ele curou muitos doentes de toda sorte de enfermidades;
também expeliu muitos demônios
Marcos (William Hendriksen) 95
Nesta parte Marcos é muito breve. À luz do contexto precedente,
Marcos dá a entender que Jesus curou a toda (veja-se v. 32; cf. Mt. 8:16;
Lc. 4:40) a grande quantidade (v. 34) de doentes que Lhe traziam, sem
importar a natureza de sua doença. Como é de esperar de um médico,
Lucas descreve a procissão de doentes que eram trazidos um por um a
Jesus. Por sua vez, o Senhor lhes prestava a devida atenção e
carinhosamente colocava as mãos sobre cada um para curar a todos (Lc.
4:40). Em harmonia com Mateus e Lucas, Marcos declara que Jesus
expulsava muitos demônios. Mateus acrescenta que Jesus expulsava os
demônios “com a palavra”, quer dizer, mediante uma ordem eficaz (Mt.
8:16).
Cuando Marcos agrega: não lhes permitindo que falassem,
porque sabiam quem ele era., isto não deve interpretar-se como
querendo dizer que os espíritos imundos nunca disseram nada. Lucas
explica o significado. Primeiro os demônios exclamaram, “Tu és o Filho
de Deus” (cf. mais acima sobre Mc. 1:24), mas imediatamente eram
repreendidos por Jesus, sendo assim impedidos de seguir falando mais a
respeito disto.
Agora, o que estes demônios diziam usando as cordas vocais dos
possessos era verdade. Na realidade “sabiam quem era Jesus”, vale dizer,
o Filho de Deus, o Messias esperado por tanto tempo. Do mesmo modo,
o que a menina endemoninhada de Atos 16:17 exclama era vedade; e tão
certo que suas palavras (“estes homens são servos do Deus Altíssimo, os
quais vos proclamam o caminho de salvação”) foram usadas como texto
do sermão de um serviço de ordenação, sob o título: “As palavras do
diabo!”. Entretanto, apresentam-se duas interrogantes. A primeira é: Por
que é que estes demônios proclamam com gritos esta verdade? Estavam
acaso fascinados com a irresistível personalidade de Cristo? 47 Ou , antes,
estavam motivados por um ímpio e sádico desejo de criar problemas a
Jesus? Tenhamos em conta que os demônios talvez saberiam que se a

47
Cf. H.N. Ridderbos, Zelfopenbaring en Zelfverberging (Kampen, 1946), p. 52.
Marcos (William Hendriksen) 96
multidão aceitasse prematuramente a verdade com referência à
identidade de Cristo, isto poderia terminar com o programa que Ele
traçou, levando-O à morte antes do que devia. Contudo, ainda não se deu
uma resposta indisputável. A segunda pergunta é: Por que Jesus lhes
mandava calar? Já se sugeriu uma possível resposta, mas veja-se também
sobre o versículo 44.
Enquanto Marcos e Lucas terminam seus parágrafos com esta
proibição dirigida aos demônios, Mateus (8:17) vê nas curas realizadas
pelo Mestre o cumprimento da profecia de Isaías 53:4, que diz:
“Certamente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas
dores levou sobre si”.

Mc. 1:35–39 - A oração de Cristo antes do amanhecer; a exclamação


de Simão e a resposta de Cristo; o ministério, a pregação de Cristo e
a expulsão de demônios por toda Galileia.
Cf. Lc. 4:42, 44; e com Mc. 1:39 cf. Mt. 4:23–25

Jesus não só era divino, mas também humano, assim que depois de
um dia longo e exaustivo, sentiu a necessidade de orar. Deste modo,
35. Tendo-se levantado alta madrugada, saiu, foi para um lugar
deserto e ali orava.
Teria passado Jesus a noite em casa de Pedro, e ao levantar-se
aquele discípulo descobriu que seu mestre foi embora? Isto é possível,
mas não podemos estar seguros. O que sim sabemos é que “muito cedo
quando ainda era de noite”, isto é, quando ainda estava escuro 48 e quase
não começava a clarear a manhã (Lc. 4:42), Jesus Se levantou, saiu da
casa (a sua ou a de Pedro) e foi embora a um lugar solitário ou deserto, a
um retiro tranquilo. Ali derramou o Seu coração em oração a Seu Pai
celestial. Pôde muito bem ter sido em ação de graças pelas bênçãos já

48
Note-se πρωῒ ἔννμχα λίαν que literalmente seria “muito cedo na noite” (cf. Mar. 16:2).
Marcos (William Hendriksen) 97
recebidas e para Lhe pedir a força necessária para realizar a excursão
pela Galileia que estava prestes a começar.
Jesus atribuía grande importância à oração. Orou quando foi
batizado (Lc. 3:21); orou antes de escolher os Doze apóstolos (Lc. 6:12);
em conexão com e depois da alimentação milagrosa dos cinco mil (Mc.
6:41, 46; cf. Mt. 14:19, 23); quando estava prestes a fazer uma pergunta
importante aos Seus discípulos (Lc. 9:18); no monte onde foi
transfigurado (Lc. 9:28); justamente antes de estender o carinhoso
convite, “Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados
…” (Mt. 11:25–30; Lc. 10:21); no momento antes de ensinar aos
discípulos a oração do Senhor (Lc. 11:1); na tumba de Lázaro (Jo. 11:14,
42); por Pedro, antes de O negar (Lc. 22:32); na noite da instituição da
Santa Ceia (Jo. 17; cf. 14:16); no Getsêmani (Mc. 14:32, 35, 36, 39; cf.
Mt. 26:39, 42, 44; Lc. 22:42); na cruz (Lc. 23:24; 49 Mc. 15:34; Mt.
27:46; Lc. 23:46); e depois de Sua ressurreição (Lc. 24:30). Estas
referências devem ser consideradas como exemplos de uma vida de
oração e ação de graças muita mais ampla.
Umas poucas citações escolhidas dos Evangelhos nos mostram
quão genuínas, íntimas, confiantes e desinteressadas eram as orações do
Senhor. Suas orações buscavam a glória de Deus.
“Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste
estas coisas aos sábios e instruídos e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó
Pai, porque assim foi do teu agrado” (Mt. 11:25, 26).
“Pai, graças te dou porque me ouviste. Aliás, eu sabia que sempre
me ouves, mas assim falei por causa da multidão presente, para que
creiam que tu me enviaste” (Jn. 11:41, 42).
“Pai, é chegada a hora; glorifica a teu Filho, para que o Filho te
glorifique a ti …”. “Pai santo, guarda-os em teu nome …”. “É por eles
que eu rogo … para que eles sejam um …” (João 17, oração sacerdotal
de Cristo, por Ele, por Seus discípulos imediatos e pela igreja universal).

49
Dando por sentado que esta passagem é autêntica.
Marcos (William Hendriksen) 98
“Meu Pai, se possível, passe de mim este cálice! Todavia, não seja
como eu quero, e sim como tu queres … Meu Pai, se não é possível
passar de mim este cálice sem que eu o beba, faça-se a tua vontade” (Mt.
26:39–42 e seus paralelos em Marcos e Lucas).
“Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem …” “Pai, nas tuas
mãos entrego o meu espírito!” (Lc. 23:34, 46).
Jesus também inculcou a oração aos Seus seguidores (Mc. 9:29;
13:18, 33; 14:38; cf. Mt. 7:7–11; Lc. 18:1–8), e lhes mostrou como
deviam e como não deviam orar (Mt. 6:6–8). Em conexão com isto
também lhes ensinou o que conhecemos como “O Pai Nosso” (Mt. 6:9–
15).
Visto à luz deste contexto, o versículo 35 adquire significado.
36, 37. Procuravam-no diligentemente Simão e os que com ele
estavam. Tendo-o encontrado, lhe disseram: Todos te buscam.
Se Jesus passou a noite em casa de Simão, isto explicaria por que
Simão o menciona com tanta proeminência: “Simão e os que com ele
estavam”. Mas também é provável que, dada sua personalidade, Simão
(isto é, Pedro) fosse o líder do começo. “Os que com ele estavam”, fala-
se de André, Tiago e João? Com base nos versículos 16–20 pareceria
natural, mas também pôde ter havido outros (veja-se Jo. 1:43–45).
Estes homens buscavam Jesus diligente e ansiosamente. Estavam
decididos a encontrá-Lo. 50 Observe-se a expressão sinônima em 2Tm.
1:17: “(Onesíforo) me procurou solicitamente até me encontrar.” Assim
também, a busca teve êxito no caso de Simão e seus condiscípulos.
Acharam a Jesus. Sua intenção era trazer imediatamente a Cafarnaum,
onde “todos”, quer dizer, uma grande multidão — reunida talvez
novamente diante da casa de Pedro — buscava Jesus. Muito animados,
os discípulos fazem saber isto a Jesus.

50
O prefixo κατά é perfectivo. O verbo καταδιώκω usa-se com frequência em sentido hostil:
perseguir, caçar ou seguir o rastro, mas aqui tem a acepção de buscar, com a ansiosa determinação
de encontrar a Jesus a todo transe.
Marcos (William Hendriksen) 99
O resultado, porém, foi surpreendente. Jesus não permitirá que a
multidão ou mesmo os Seus discípulos Lhe digam para onde deve ir.
Além disso, em Seu grande amor deseja distribuir Seus favores entre
muitos. Cafarnaum O verá em outra ocasião, porque por um tempo será
Seu centro de operações. Mas não deseja limitar-se àquela única cidade.
Daí que segue:
38. Jesus, porém, lhes disse: Vamos a outros lugares, às povoações
vizinhas, a fim de que eu pregue também ali, pois para isso é que eu
vim. 51
O fato de Jesus dizer “vamos” indica que deseja que Seus
discípulos vão com Ele na excursão pelos povos e aldeias da Galileia.
Não os está treinando para o apostolado?
Jesus nada diz a respeito de realizar milagres nestes lugares. De que
realmente os fez é evidente pelo versículo 39b (cf. Mt. 4:23, 24), mas
toda a ênfase é posta na “pregação das boas novas” (Lc. 4:43). Os
milagres cumpriam um propósito subordinado; serviam para confirmar
Sua mensagem e mostrar quem era. Jesus acentua a livre proclamação
do amor de Deus revelado na salvação dos pecadores e refletido em suas
vidas. Sublinha a pregação que ensina que os seres humanos são salvos
sem que estejam obrigados a obedecer todas as regulações rabínicas, e
que proclama que o ser humano entra no reino somente com base no
sangue que devia ser derramado (cf. Mt. 11:28–30; Mc. 10:45). Por meio

51
O verbo é Αγωμεν que é um presente subj. at. 1ra. pes. pl. de ἄγω, cujo significado básico é trazer,
dirigir, conduzir, guiar, transportar. Deste sentido básico se deriva a ideia de transportar-se a si
mesmo, ou seja ir (para este uso intransitivo, veja-se Mc. 14:42; Jo. 11:7, 15, 16; 14:31). O advérbio
ἀλλαχοῦ (= a outro lugar) ocorre só aqui no Novo Testamento. Compare-se πανταχοῦ (= por todas as
partes) no v. 28. A palavra ἐχομένας é um particípio pres. médio, acus. pl. fem. de ἔχω, e significa
agarrando-se a, aferrando-se a, e assim dá-se a ideia de povos próximos, vizinhos (nos papiros οἱ
ἐχόμενοι são os vizinhos). A mesma palavra pode ter também um sentido temporal: seguindo
imediatamente, próximo (em tempo). Cf. Lc. 13:33; At. 13:44; 20:15.
A κωμόπολις é literalmente a aldeia (κώμη) cidade (πόλις); e em consequência, o povoado. Mas na
passagem paralela, Lucas usa a palavra cidades (Lc. 4:43).
Finalmente, κηρύξω aoristo subj. at. 1ra. pes. sing. de κηρύσσω; em consequência, “para que
anuncie como arauto, para que pregue, proclame”.
Marcos (William Hendriksen) 100
de tal pregação, Jesus cumpria o verdadeiro propósito pelo qual deixou o
céu e veio à terra. Portanto, prossegue desta maneira: pois para isso é
que eu vim. “Eu vim” não só de Nazaré, ou de Cafarnaum, mas
certamente do céu (cf. Jo. 1:11, 12; 6:38; 8:42; 13:3; 8:37).
39. Então, foi por toda a Galiléia, pregando nas sinagogas deles
e expelindo os demônios.
A lógica é clara, o “vamos a outros lugares” vem seguido de
“Então, foi por toda a Galiléia”; e “para que também pregue ali” vem
seguido por “pregando nas sinagogas e expulsando os demônios”
(referente à possessão demoníaca e ao exorcismo, veja-se o comentário a
1:21–28, 32–34; e CNT sobre Mt. 9:32).
É muito chamativa a expressão “por toda a Galileia”. Esta era a
Galileia com sua mescla de judeus e gentios. Embora não se mencionem
curas, estas se insinuam pela expulsão de demônios, porque com
frequência ambas estavam ligadas. E com relação a tais obras de
misericórdia, bem podemos supor que as distinções nacionalistas em
todo caso não triunfaram. O espírito do Mestre deixa ver-se com clareza
em passagens tais como Mt. 8:1–13; Mc. 7:24–30; Lc. 4:25–27. O
verdadeiramente era e é, “o Salvador do mundo” (Jo. 4:42; 1Jo. 4:14).
Não obstante, quando se faz menção específica de “pregar nas
sinagogas” faz-se referência a uma instituição judaica definida. Jesus
agiu seguindo a norma do “judeu primeiro, e também o grego” (Rm.
1:16).

A sinagoga nos tempos do Novo Testamento

Não sabemos exatamente em que período se originou a sinagoga,


mas se sabe que nos dias do Novo Testamento já era considerada uma
antiga instituição amplamente estendida (At. 15:21). Contudo, não foi
senão até os dias do cativeiro babilônico que a sinagoga chegou a ocupar
um lugar permanente na vida do povo judeu. Algumas autoridades creem
que não começou a existir senão até depois do cativeiro; portanto, talvez
Marcos (William Hendriksen) 101
surgiu em tempos de Esdras, quem fazia ênfase na importância e no
sagrado da lei de Deus. Como é, a destruição do templo e a grande
distância que havia entre o templo de Jerusalém e os lares de muitos,
fizeram necessária a construção de sinagogas. Brotaram em todas as
partes. Às vezes havia várias numa única cidade. De acordo com uma
declaração no Talmude de Jerusalém, no tempo da destruição de
Jerusalém (70 d.C.) havia 480 sinagogas em Jerusalém, o que,
naturalmente, é um exagero.
O que deu tanta importância à sinagoga é o fato de que
proporcionava muitos serviços. Acima de tudo era considerada como o
lugar onde se lia e explicava ao povo a santa lei de Deus. Quando isto se
fazia corretamente, trazia grandes bênçãos. Mas quando se fazia mau uso
deste privilégio, de maneira tal que a explicação da lei degenerava na
imposição de ordenanças rabínicas exageradamente detalhadas e além
das demandas de Deus, as bênçãos jamais se faziam presentes.
A existência simultânea de templo e sinagoga não criava nenhum
problema. Embora ambas eram um lugar para o ensino (Jo. 18:20), o
templo dava ênfase nas ofertas e a sinagoga no ensino. Prova de que o
templo e a sinagoga não eram rivais é que antes da destruição do templo
existia uma sinagoga na mesma colina do templo e Teodósio operava
numa dupla qualidade, como sacerdote no templo e como chefe da
sinagoga.
As sinagogas variavam de maneira e desenho. Geralmente sua
construção era de pedra. Até data muito recente pensou-se que não
sobrevivia nenhuma sinagoga do século primeiro. Sabia-se que o que
ficava da sinagoga de Cafarnaum (Tel Hum) era de data posterior,
embora o lugar bem pôde ter sido o mesmo que o da sinagoga onde Jesus
ensinou. 52 Mas sob a direção do arqueólogo Y. Yadin descobriu-se uma
sinagoga numa escavação sobre a rocha de Casa de campo, perto da

52
Para fotografias das ruínas das sinagogas de Cafarnaum do terceiro século, veja-se L. H.
Grollenberg, Atlas of the Bible (Nova York, etc., 1956), p. 126, lâminas 365–367.
Marcos (William Hendriksen) 102
53
margem ocidental da parte estreita do Mar Morto. É uma estrutura
retangular, cujo teto descansa sobre duas fileiras de colunas. Data do
tempo do segundo templo.
A importância da sinagoga estava em que, além de ser o lugar onde
eram celebrados os cultos regulares de adoração, servia também para
muitas outras coisas. Era o lugar onde alguém podia ir derramar seu
coração em oração e ação de graças. Era também uma escola primária,
tinha quartos que podiam ser usados para comunicar instrução à
juventude, ou tinha uma escola anexa. Com frequência era usada como
lugar de estudo do rabino. Às vezes o edifício provia alojamento para o
rabino e/ou estrangeiros que buscavam albergue.
Do ponto de vista do cristianismo, o mais importante de tudo era o
que se chamou “a liberdade da sinagoga”. O significado disto se vê no
breve resumo da ordem do culto que prevalecia. Provavelmente era
como segue:
1. Ação de graças ou “bênçãos” pronunciadas em conexão com
(antes e depois) o Shema: “Ouve, Israel, o SENHOR, nosso Deus, é o
único SENHOR. 5 Amarás, pois, o SENHOR, teu Deus, de todo o teu
coração, de toda a tua alma e de toda a tua força” (Dt. 6:4, 5).
2. Oração, à qual a congregação respondia com um “Amém”.
3. Leitura de uma passagem do Pentateuco (no hebraico, seguido
pela tradução em aramaico).
4. Leitura de uma passagem dos profetas (traduzido de igual modo).
5. Sermão ou exortação.
6. A bênção pronunciada por um sacerdote, a qual a congregação
respondia: “Amém”. Quando não havia um sacerdote presente, a bênção
era substituída por uma oração final.
Até onde é possível rastrear esta liturgia nas Escrituras, como apoio
bíblico, veja-se as seguintes passagens: Nm. 6:22–27; Dt. 6:4, 5; 1Cr.

53
Para encontrar a localização veja-se E.G. Kraeling, Rand McNally Bible Atlas (Nova York, etc.
1956), p. 251.
Marcos (William Hendriksen) 103
16:36; Ne. 5:13; 8:6; Lc. 4:16–27; At. 13:15; e 1Cor. 14:16. Algumas
passagens do Talmude e outras fontes judaicas também são de valor, mas
por terem sido escritos numa data mais tardia não se pode confiar sempre
neles quanto a mostrar exatamente a forma em que os cultos se levavam
a cabo nos dias de Jesus e os apóstolos.
A “liberdade da sinagoga” queria dizer que qualquer pessoa
presente no culto (quer dizer, qualquer u que fosse considerado apto pelo
chefe ou chefes da sinagoga), tinha o privilégio e até era alentado a
proferir o sermão (veja-se Lc. 4:16, 17; At. 13:15). É fácil compreender
como este costume fez possível que Jesus, Paulo e outros cristãos
proclamassem o evangelho à congregação reunida. O sermão pregado
por Jesus na sinagoga de Nazaré acha-se resumido em Lucas 4:21–27; e
aquele que Paulo deu na sinagoga de Antioquia da Pisídia está registrado
em Atos 13:16–41. Jesus aproveitou amplamente este privilégio
(segundo se vê claramente em Mt. 4:23; 9:35; 13:54; Mc. 1:21; 6:2; Lc.
4:44; 13:10; Jo. 6:59; 18:20), o mesmo que Paulo (além de At. 13:15,
veja-se 9:20; 13:5; 14:1; 17:1, 10, 17; 18:4, 19) e Apolo (cf. At. 18:26).
Os prosélitos eram pessoas que tinham rejeitado a idolatria e imoralidade
do paganismo e tinham adotado o judaísmo como sua religião. Visto que
não só os judeus, mas também os prosélitos do mundo gentil assistiam às
sinagogas que estavam nas regiões onde Paulo realizava suas obras
missionárias, é evidente que a sinagoga foi usada por Deus como um dos
meios mais importantes e poderosos para a extensão do evangelho tanto
entre judeus como gentios!
A fim de entender melhor o que para Jesus significava pregar nas
sinagogas da Galileia (Mc. 1:39) ou em qualquer outro lugar, devemos
acrescentar alguns outros fatos. Como o indicam claramente algumas
ruínas existentes, as sinagogas davam para Jerusalém. Isto quer dizer que
foram construídas de tal modo que, quando o pregador dirigia-se à
congregação e quando, no final do serviço, os fiéis saíam da sinagoga,
faziam-no olhando à Cidade Santa. Assim que as sinagogas da Galileia
Marcos (William Hendriksen) 104
eram orientadas rumo ao sul; as do lado leste do Jordão, rumo ao oeste;
as do sul de Jerusalém, rumo ao norte; e as do oeste, rumo ao este.
Para Jesus isto significava que quando Ele pregava em qualquer
sinagoga, enquanto falava, Ele o fazia olhando rumo ao lugar onde havia
de ser crucificado. Para Ele era impossível não pensar na cruz! 54

Mc. 1:40–45 - A cura de um leproso


Cf. Mt. 8:2–4; Lc. 5:12–16

40. Aproximou-se dele um leproso rogando-lhe, de joelhos: …


Precisamente quando e onde ocorreu o milagre relatado aqui não se
informa em nenhum lugar. Não obstante, é natural supor-se que foi
durante a excursão pela Galileia, a qual Marcos acaba de referir-se (v.
39). Em apoio a isto, considere-se também “Vamos a outros lugares, às
povoações vizinhas” (v. 38, cf. “a outras cidades”, Lc. 4:43), seguido
pela declaração de que a purificação do leproso ocorreu enquanto Jesus
estava “numa das cidades” (Lc. 5:12). Se esta conclusão for correta, esta
cura provavelmente ocorreu antes da chamada dos Doze ao apostolado
(Mc. 3:13–19; Lc. 6:12–16) e antes do Sermão da Montanha (Mt. 5:1–
8:1; Lc. 6:12–16). 55
Em conexão com “E um leproso lhe aproximou” há aqueles que
nega que as traduções “leproso” e “lepra” sejam corretas. Sustentam que
não se trata de lepra propriamente tal (enfermidade do Hansen) mas sim
de vitiligo, leucodermia, e/ou outro tipo de enfermidade da pele. Em

54
Para a disposição dos móveis, o lugar onde se sentavam os fiéis, a localização do leitor e o
pregador, etc., veja-se a ilustração em Zondervan’s Pictorial Dictionary (Grand Rapids, 1963), p. 819,
junto com o artigo de W.W. Wessel. Muito informativos são também os artigos de W. Schrage sobre
συναγωγή, etc., no TDNT, vol. 7, pp. 798–852. Veja-se também o excelente tratado de H. Mulder, De
Synagoge in de Nieuwtestamentische Tijd (Kampen, 1969).
55
Mt. 8:2 não está em conflito com este ponto de vista. Não faz referência ao tempo. Além disso, os
milagres registrados em Mt. 8:2–9:34 se acham ordenados por tema e não cronologicamente. Quanto a
um ponto de vista diferente quanto ao tempo em que ocorreu o limpamento do leproso, veja-se Lenski,
Op. cit., p. 57.
Marcos (William Hendriksen) 105
conexão com isto terei que citar ao Dr. L.S. Huizenga, quem estudou e
praticou tanto teologia como medicina. Baseado num estudo detalhado
de todo o material bíblico pertinente e em sua própria experiência com
leprosos, o Dr. Huizenga declara: “Creio que Moisés descreve uma
enfermidade definida, uma enfermidade que corresponde ao que hoje
chamamos lepra, embora os sintomas podem não ser os mesmos”
(Unclean! Unclean!, Grand Rapids, 1927, pp. 145, 146; veja-se seu
argumento completo em pp. 143–147). Há algo que deve ficar
perfeitamente claro: Jesus não menosprezou a ninguém pelo fato de ser
leproso, nem cego, surdo, etc. Veio ao mundo para ajudar, para curar e
para salvar. Alguns com severidade e sem amor julgavam que os
sofrimentos físicos provinham de algum pecado particular da pessoa
doente. Por exemplo, um leproso tinha por necessidade que ser uma
pessoa moralmente má. Cristo condenou categoricamente esta classe de
juízos (Lc. 13:1–5; Jo. 9:1–7).
Além disso, o ministério de cura de Cristo deve constituir um alento
para toda pessoa ou organização que verdadeiramente se envolve na
tarefa de prover ajuda e cuidado dos necessitados: os diáconos e as
diaconisas, operários e instituições de ajuda, missionários médicos,
enfermeiras, o voluntariado dos hospitais, etc. Disto não se deve inferir
que a responsabilidade de prestar ajuda e cuidado dos afligidos recai
somente em certos grupos e especialistas. Pelo contrário, é um dever que
corresponde a todos e, sem lugar a dúvida, a todo crente (Pv. 19:17; Mt.
10:8; 25:31–46; Mc. 9:41; 2Co. 8:8, 9; 9:7; Gl 6:10; Ef. 4:32–5:2; Fp.
4:17; 1Tm. 5 4). 56
Este leproso “aproximou-se dele [Jesus]” perto o bastante para ser
tocado pelo Mestre. Isto é surpreendente, especialmente à luz de Levítico
13:45, 46: “…habitará só; a sua habitação será fora do arraial”.
Compare-se com isto “saíram-lhe ao encontro dez leprosos, que ficaram
de longe” (Lc. 17:12). Este homem deve ter escutado bastante a respeito

56
Veja-se I. Van Dellen, The Ministry of Mercy (Grand Rapids, 1946).
Marcos (William Hendriksen) 106
das obras poderosas e misericordiosas de Cristo para compreender que
aqui havia Alguém a quem alguém podia aproximar-se com esperança.
Naturalmente que não sabia se a ajuda que desejava podia ser concedida
até a um homem “cheio de lepra” (Lc. 5:12). Mas não havia nada mau
em pedir. Ele o faz de maneira muito humilde: “de joelhos” (segundo
Marcos), logo inclina seu rosto ao solo (“prostrou-se com o rosto em
terra”, Lc. 5:12), e lhe suplica: “Se quiseres, podes purificar-me”. De
acordo com Mateus 8:2 ainda se dirige a Jesus como “Senhor”. Este
apelativo deve ter significado muito mais que “Sr.”. De outro modo, não
poderia ter feito a confissão que fez: “podes purificar-me”. Está seguro
de que Jesus tem este poder. Ao dizer “Se quiseres” não está seguro de
que haja este desejo em Jesus, mas submete-se à soberana disposição de
Cristo. Mas lhe roga e lhe implora que ele também possa ser objeto da
misericórdia e do poder curativo de Cristo.
41. Jesus, profundamente compadecido, … O único que
menciona isto é Marcos. Literalmente, a tradução deveria ser “tendo sido
comovido dentro de si” (em suas “vísceras”). Quanto a esta compaixão
ativa de Jesus, compaixão que se expressa em atos, veja-se também Mt.
9:36; 14:14; 15:32; 18:27; 20:34; Mc. 6:34; 8:2; Lc. 7:13. Entretanto,
não basta estudar somente as passagens em que aparece o mesmo verbo.
Veja-se também passagens de importância similar e que às vezes contêm
fraseologia sinônima, como por exemplo: “Ele tomou sobre si as nossas
enfermidades e as nossas dores levou sobre si” (Is. 53:4; Mt. 8:17; cf.
Mc. 2:16; 5:19, 34, 36, 43; 6:31, 37; 7:37; 9:23, 36, 37, 42; 10:14–16,
21, 43–45, 49; 11:25; 12:29–31, 34, 43, 44; 14:6–9, 22–24; 16:7).
Poderiam ser citadas passagens similares de Lucas e João. Ficamos
assombrados diante do grande número de vezes em que esta compaixão
de Jesus, esta ternura ou expressão de Seu coração em palavras e atos de
bondade, é mencionada Evangelhos. Constantemente está tomando a
condição dos afligidos como uma “preocupação muito pessoal”. Jesus
vivia em meio de um povo que dava grande ênfase a assuntos legais
corriqueiros, e nisto seus líderes eram peritos. No meio desta
Marcos (William Hendriksen) 107
superficialidade, Jesus sobressai como Aquele que põe ênfase “nos
assuntos importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a fé” (Mt. 23:23).
As angústias das pessoas são Suas próprias angústias. Ama tenra e
intensamente os afligidos e Se mostra solícito para ajudá-los. 57
Estendeu a mão, tocou-o e disse-lhe: Quero, fica limpo! 58
Repetidamente e com fraseologia variada, os Evangelhos falam do toque
curativo das mãos de Jesus (cf. 7:33; Mt. 8:3, 15; 9:29; 17:7; 20:34; Lc.
5:13; 7:14; 22:51). Entretanto, às vezes é o doente quem toca a Jesus
(Mc. 3:10; 5:27–31; 6:56). De qualquer modo, os doentes foram curados.
Com relação ao poder curativo por meio do contato físico, é evidente que
do Salvador emanava poder curativo e se transmitia à pessoa que o
necessitava (Mc. 5:30; Lc. 8:46). Naturalmente que não era magia! O
poder curativo não se originava em Seus dedos ou em Sua roupa. Vinha
diretamente do Jesus divino e humano, da Sua vontade todo-poderosa e
do Seu coração imensamente bondoso. O toque de Jesus tinha poder
curativo porquanto Ele Se compadecia e “pode compadecer-se [agora] de
nossas fraquezas” (Hb. 4:15). Não deve passar desapercebido ao leitor
que, de acordo com Marcos 1:41, quando Jesus estendeu Sua mão para
tocar o leproso, Ele o fez “profundamente compadecido”. A necessidade
e fé do leproso achou resposta imediata no grande desejo que Jesus tinha
de o ajudar. Esta prontidão era tal que o poder e o amor se enlaçavam
entre si.

57
Aqui em Mc. 1:41, como também na lista de passagens que começam com Mt. 9:36, o verbo é
σπλαγχνίζομαι. Na presente passagem ocorre a forma σπλαγχνισθείς que é um particípio aor. nom.
sing. masc. Os antigos tinham o mesmo direito de falar figuradamente das vísceras (coração, fígado,
pulmões) como nós o temos de falar do coração. Paulo escreve (literalmente): “E o seu entranhável
afeto cresce mais e mais para convosco” (2Co. 7:15); “Porque foram refrescadas as vísceras dos
santos por meio de ti” (Fm. 7); “Refresca minhas vísceras em Cristo” (Fm. 20). Veja-se também CNT
sobre João 1:8, nota 39.
58
O verbo é καθαρίσθητι = um imperativo aor. pas. 2ª. pes. sing. de καθαρίζω. Usa-se o aoristo, não
porque se refira a um único ato. Poderia usar-se o aoristo, mesmo se estivesse falando de cem atos. O
assunto não é o número de ações (uma ou muitas), e sim o ponto de vista: o que Jesus ordena aqui é a
realização de um simples fato ou condição. Veja-se CNT sobre João 2:20, nota 64.
Marcos (William Hendriksen) 108
Diz-se às vezes que entre as palavras do leproso e as de Jesus houve
perfeita correspondência. Isto é verdade no sentido de que as duas
expressões não estão em conflito, mas que se acham em perfeita
harmonia, revelando até certa identidade em fraseologia. Mas também se
poderia dizer que as palavras do Senhor vão além da simples
“harmonia”. Indubitavelmente que as palavras do leproso “podes
purificar-me” acham eco na resposta de Jesus “Naturalmente que posso!”
implícita em Seu ato de cura. Mas as palavras do leproso, “se quiseres”,
são substituídas por aquele veloz e esplêndido “Quero”. Aqui ao
“querer” se acrescenta o “poder”, tira-se o “se” e se adiciona o “Quero,
fica limpo!” Tudo isto transforma uma condição de enfermidade
horrenda numa de saúde robusta.
42. No mesmo instante, lhe desapareceu a lepra, e ficou limpo.
Lucas 5:13 indica que a lepra o deixou; Mt. 8:3 diz que ficou limpo;
Marcos menciona ambas as coisas. As curas realizadas por Jesus eram
completas e instantâneas. 59 A sogra de Pedro não teve que esperar até o
dia seguinte para ser curada de sua febre. O paralítico começa
imediatamente a caminhar, levando sua maca. A mão seca é restaurada
imediatamente. O endemoninhado que, momentos antes tinha agido
enlouquecido cortando-se com as pedras, é curado imediatamente e de
maneira total. O mesmo é dito com relação à mulher que tocou o manto
de Jesus. Até a filha de Jairo, que já estava morta, é imediatamente
restaurada à vida, de modo que se levanta e começa a caminhar. Que os
curandeiros de hoje imitem isto! Que curem toda enfermidade
imediatamente! Sim, que levantem mortos, porque se sua pretensão de
poder fazer o que Jesus fez e o que mandou os Seus apóstolos a fazer
está vigente hoje, deveriam ressuscitar também os mortos (Mt. 10:8).
Entretanto, mesmo aqui não tiveram êxito. 60 Na realidade, nem sequer
puderam desfazer-se da morte pela mera negação de sua existência. 61
59
É Mc. 8:23–25 uma refutação do que dizemos? Veja-se sobre essa passagem.
60
Sobre a cura pela fé, veja-se W. E. Biederwolf, Whipping Post Theology (Grand Rapids, 1934).
61
Veja-se A.A. Hoekema, The Four Major Cults (Grand Rapids, 1963), p. 188.
Marcos (William Hendriksen) 109
62
43, 44. Fazendo-lhe, então, veemente advertência, logo o despediu
44 e lhe disse: Olha, não digas nada a ninguém; mas vai, mostra-te ao
sacerdote e oferece pela tua purificação o que Moisés determinou, para
servir de testemunho ao povo.
El verbo “advertindo-o severamente (RC)” é interessante.
Começando, talvez, pela ideia do bufo de um cavalo impaciente ou,
simplesmente de maneira geral pela ideia do ruído que se faria ao estar
enfurecido, é fácil ver quão pronto isto muda a “admoestar
severamente”, como se vê aqui e em Mt. 9:30. Também pode significar:
“censurou” ou “repreendeu”. Foi assim como os discípulos repreenderam
a Maria de Betânia, ao não compreender a linguagem de amor que se
expressava em sua generosidade (Mc. 14:5). Em João 11:33, 38 o
contexto dá a entender que o verbo tem um significado muito amplo:
“estremeceu-se em espírito e se comoveu”.
Jesus não quis que o homem divulgasse como e quem lhe tinha
purificado. Não nos foi revelado a razão (ou razões) desta proibição.
Uma talvez poderia ser que o Mestre desejava ser conhecido como
“aquele que traz as boas novas” e não como o “praticante de milagres”.
Antes de mais nada é a palavra, é a mensagem o que salva, quando o
Espírito Santo a aplica ao coração (veja-se Mc. 1:38). Além disso,
também quer evitar que um entusiasmo exagerado com relação a Jesus
como praticante de milagres, O leve à uma crise prematura. O Senhor vai
morrer pelo Seu povo. Mas a “hora” decretada para isto ainda não tinha
chegado. De modo que o homem foi enviado a ir a Jerusalém para
mostrar-se ao sacerdote. Isto incluía a obrigação de levar a oferta
requerida (Lc. 14:1–7). Esta oferta consistia em duas aves vivas, limpas.
Uma devia ser sacrificada. A outra ave devia ser banhada em seu sangue
e logo solta. O homem curado devia ser também aspergido com o sangue
da ave morta; não só uma vez, mas sete vezes. Finalmente era declarado
são. Ao ouvir os sacerdotes que Jesus era quem tinha curado este homem
62
ἐμβριμησάμενος es un participio aor. nom. sing. masc. de ἐμβριμάομαι. El verbo significa resoplar
(como un caballo). Probablemente imita algún sonido (onomatopeya).
Marcos (William Hendriksen) 110
de maneira tão completa e instantânea, teriam recebido um testemunho
irrefutável do poder e amor de Jesus. Dar-se-iam conta também que,
embora Ele condene as tradições humanas que tornavam nula a santa lei
de Deus, Jesus não era desobediente à lei.
45. Mas, tendo ele saído, começou a apregoar muitas coisas e a
divulgar o que acontecera; de sorte que Jesus já não podia entrar
publicamente na cidade, mas conservava-se fora em lugares desertos.
“…começou a apregoar”. É este “começou” (26 vezes em Marcos)
um auxiliar redundante?
O omitir o constantemente, não destruiria o estilo gráfico de
Marcos? (mas cf. 6:7, nota 233).
No versículo 40 vemos o leproso comportando-se muito
corretamente. No versículo 45, vemo-lo comportando-se muito mal.
Mediante esta ação de indesculpável desobediência privou a muitas
cidades das bênçãos que lhes teriam chegado, se Jesus tivesse podido
entrar nelas (cf. Lc. 11:52b). E de todas as partes iam ter com ele. A
obra de Jesus não foi totalmente interrompida. Os homens se dividem em
dois grupos: a. Os que esperam que o mensageiro venha a eles; b. Os que
saem a buscá-lo e a escutar quem traz a mensagem. Este último grupo
vem a Jesus de todos os arredores.
Não devemos pôr nossa atenção no leproso, e sim nAquele que
outorgou o favor e que esteve disposto a derramar tão inestimável
bênção sobre um homem tão indigno.

Resumo do Capítulo 1:14–45

O material que se acha sob este cabeçalho pode dividir-se como


segue:
a. O começo do grande ministério na Galileia (Mc. 1:14, 15). Por
um lado, temos o batismo e a tentação de Cristo; por outro, sua chegada
a Galileia. Entre estes dois eventos pôde ter transcorrido um ano, o qual
foi ocupado principalmente na Judeia. No final desse ano, sua
Marcos (William Hendriksen) 111
popularidade cresceu a tal grau, que não teria sido prudente permanecer
mais tempo em Jerusalém e seus arredores, visto que era o centro de
operações dos líderes religiosos judeus. João Batista tinha sido lançado
no cárcere. Mesmo antes que isso ocorresse, a multidão que seguia a
Jesus chegou a ser maior que a que seguia a João. Assim que, quando
João foi totalmente tirado do meio, era natural que Jesus fosse o único
líder respeitável que restava. Resultado: imensas multidões escutam o
Mestre e muitos creem nEle; aumenta a da parte de escribas, fariseus e
sacerdotes; Jesus decide trasladar-se para o norte, quer dizer, a Galileia.
Chegado lá, sua mensagem é: “O tempo está cumprido e o reino de Deus
está próximo”. Anunciou que o reino de Deus começaria a fazer-se sentir
de maneira muito mais poderosa que nunca nas vidas e corações dos
homens, com grandes bênçãos à disposição de muitos, especialmente
para os que se convertiam a Deus e criam no evangelho.
b. A chamada de quatro pescadores (vv. 16–20). Indo junto à
margem do mar da Galileia, Jesus chama Pedro e André, os quais se
achava pescando quando ouviram que Jesus lhes dizia: “V Vinde após
mim, e eu farei que sejais pescadores de homens”. Eles obedeceram
imediatamente. O mesmo fizeram também Tiago e João, os quais a curta
distância dos outros, estavam remendando suas redes. Deixaram seu pai
Zebedeu no barco com os trabalhadores e seguiram a Jesus. Embora já
conheciam a Jesus, os quatro começaram agora seu intenso treinamento
para o apostolado.
c. A cura de um homem com espírito imundo (vv. 21–28). Jesus
ensina na sinagoga de Cafarnaum. As pessoas estão maravilhadas pelo
conteúdo e método do ensino. Naquele sábado havia na sinagoga um
homem com espírito imundo. “Que temos contigo, Jesus Nazareno?”,
disse o demônio, fazendo uso das cordas vocais do homem. “Vieste
destruir-nos?”. O espírito imundo parecia temer que agora Jesus poderia
lançá-lo a ele e a seus companheiros (outros demônios), no lugar onde
Satanás se acha prisioneiro. Jesus ordenou o demônio a deixar o homem.
Derrubando o homem com convulsões e o levando a dar fortes chiados, o
Marcos (William Hendriksen) 112
demônio saiu dele. Reação da parte dos presentes na sinagoga ao ensino
de Cristo e a expulsão do demônio na sinagoga: assombro total.
Restringir o poder de Satanás (“amarrar o homem forte”) e abrir o
coração dos homens para a recepção do evangelho (“atividade
missionária”) são conceitos que nos Evangelhos e em todo lugar se
acham intimamente relacionados (p. ex., Ap. 20:1–3).
d. A cura da sogra de Simão e de muitos outros (vv. 29–34).
Achamos a Jesus, Pedro, André, Tiago e João em casa de Pedro. A sogra
de Simão (= Pedro) está prostrada com febre muito alta. Pediu-se a ajuda
do Mestre. Jesus “inclinando-se sobre ela” (Lucas), “tocou-a” (Mateus),
“chegando-se a ela, tomou-a pela mão e levantou-a” (Marcos).
Imediatamente a febre a deixou de maneira tão completa que começou a
atender aos convidados. A notícia do que Jesus fez na sinagoga e o que
fez depois, espalhou-se tão rápido que no fim do sábado o povo começou
a lhe trazer os que se achavam doentes e/ou possessos por demônios.
Jesus libertou a toda aquela gente de suas aflições. Mas Ele não permitiu
aos demônios que falassem. Por que não? Uma razão pôde ter sido que
não desejava ser conhecido principalmente como um praticante de
milagres. Desejava que se desse especial consideração a Suas palavras
antes que se maravilhassem diante de Suas obras.
e. A oração de Cristo antes do amanhecer, etc. (vv. 35–39). Depois
de um dia tão longo e exaustivo, Jesus sentiu a necessidade de buscar a
comunhão tranquila com seu Pai. Assim que muito cedo pela manhã
deixou a casa (de Pedro? a sua?) e Se dirigiu a um lugar solitário onde
orou. Os Evangelhos nos dizem que Jesus orou em muitas ocasiões, que
insistiu com Seus seguidores a orar, e ainda lhes ensinou a orar.
Entretanto, os momentos devocionais de Cristo foram interrompidos
pelas exclamações de Pedro (e seus companheiros): “Todos te buscam!”.
Pedro e os outros queriam levar Jesus imediatamente de volta a
Cafarnaum. Mas Jesus recusou. Desejava distribuir Seus favores entre as
pessoas de todos os povos e aldeias. Não queria possivelmente inculcar
aos habitantes de Cafarnaum que os que tinham recebido deveriam
Marcos (William Hendriksen) 113
começar a dar? “Vamos a outros lugares, às povoações vizinhas, a fim de
que eu pregue também ali, pois para isso é que eu vim”, querendo dizer:
vim do céu à terra. A isto segue a pregação e expulsão de demônios
através da Galileia.
f. A cura de um leproso (vv. 40–45). Provavelmente, enquanto
Jesus fazia seu gira pela Galileia (mencionada no v. 39), um leproso vem
a Ele. Apesar do que diz Levítico 13:45, 46, o leproso se aproximou o
bastante para ser tocado por Jesus. Caindo de joelhos, rogou ao Mestre,
“Se quiseres, podes purificar-me”. O Evangelho de Marcos relata que o
coração de Jesus se compadeceu diante desse homem tão
angustiosamente aflito. Aquele que cura disse: “Quero, fica limpo!”. No
momento a lepra o deixou e ficou completamente são. Não só isso, mas
também Jesus procurou que a vida pública e religiosa daquele homem
em Israel fosse completamente restaurada. Com tal fim envia-o a
Jerusalém para que possa levar as ofertas estipuladas na lei mosaica, para
que seja declarado são e para que possa tomar seu lugar na sociedade
sem que ninguém se esquive dele. Esta mesma cura daria testemunho ao
sacerdócio com referência à grandeza de Cristo e Sua obediência à lei
divina. Por razões não declaradas, Jesus adverte homem que não
divulgue o que lhe havia sucedido: como e quem o havia curado. A
misericórdia de Jesus luz de maneira muito mais triunfante sobre o fundo
escuro da desobediência do leproso limpo.
Marcos (William Hendriksen) 114
MARCOS 2
Mc. 2:1–12 - A cura de um paralítico
Cf. Mt. 9:2–8; Lc. 5:17–26

Se o primeiro capítulo do Evangelho de Marcos for comparado com


o segundo capítulo, notar-se-á que há um contraste notável entre eles. O
primeiro é um capítulo de glória, o segundo de oposição. Por certo que
mesmo no primeiro capítulo Jesus achou oposição, mas esta veio da
parte de Satanás e de seus demônios (Mc. 1:13, 23–26, 32, 34, 39), não
da parte dos homens. O Espírito desce sobre Jesus (Mc. 1:10), o Pai O
chama “meu Filho amado” (Mc. 1:11), e o povo enche-se de assombro
diante de Suas palavras e obras (Mc. 1:27).
Quanto à esfera humana, a descrição dos conflitos começa nos
capítulos 2 (veja-se especialmente os vv. 6, 7, 16 e 24) e 3 (vv. 2, 6, e
22). A luta aumenta em intensidade. No princípio, os escribas só
“arrazoavam em seu coração” contra Jesus (Mc. 2:6, 7). Logo se
queixam dEle com Seus discípulos (Mc. 2:16). Depois se tornam mais
atrevidos e levam o protesto ao próprio Jesus; não ainda por causa do
que Ele faz, mas pelo que permite os seus discípulos fazer (Mc. 2:24).
Porém, no terceiro capítulo começam a planejar como destruí-Lo (v. 6),
e O acusam de estar em aliança com o diabo (v. 22).
Naturalmente que este era um conflito inevitável; enquanto Ele
enfatizava o amor, eles o legalismo; Ele a santa lei de Deus, eles a
tradição que anulava a lei de Deus; Ele a liberdade, eles a escravidão;
Ele a atitude interna, eles as obras externas. Como odiavam ter que Lhe
ceder o lugar de prestígio, sua influência sobre a multidão!
1. Dias depois, 63 entrou Jesus de novo em Cafarnaum, e logo
correu que ele estava em casa.

63
διʼ ἡμερῶν = “tendo intervindo entre meio (alguns) dias” ou “(alguns) dias havendo-se interposto”;
em consequência, “uns dias depois”. Robertson, pp. 580–584, tem uma interessante discussão sobre
Marcos (William Hendriksen) 115
Jesus retornou de sua viagem pela Galileia (Mc. 1:38, 39). Acha-se
de volta à “sua própria cidade” (Mt. 9:1). Está “em casa”, ou conforme
interpretam a frase alguns, “numa casa”. Com relação a isto, alguns
supõem que se trata da casa onde Jesus, sua mãe Maria, e outros
membros da família, vivem agora. Não obstante, deve-se tomar cuidado
para não entrar em conflito com Mateus 13:54–56 (cf. Lc. 4:16). Refere-
se a frase a uma casa que Ele mesmo possuía em Cafarnaum? Esta
possibilidade não pode ser descartada, e Mateus 8:20 (“… o Filho do
homem não tem onde recostar a cabeça”; veja-se CNT sobre esta
passagem) não se opõe necessariamente a este ponto de vista. Refere-se
à casa de Pedro, uma interpretação bastante popular? 64 Mas se Marcos
estivesse pensando na casa de Pedro, não teria entregue uma referência
mais definida? (veja-se Mc. 1:29). Poderia pensar-se na possibilidade de
que alguns amigos Lhe houvessem provido uma casa enquanto realizava
Sua obra nos arredores de Cafarnaum. Seja como for, num sentido
bastante real, Jesus a considerava como “sua casa”. E “todos” se
inteiraram de que estava em casa, porque a notícia se espalhou
velozmente. 65
2. Muitos afluíram para ali, tantos que nem mesmo junto à
porta eles achavam lugar.
À vista do assombro que tinham causado as palavras e obras de
Cristo (Mc. 1:21–34; 38–45), bem podemos entender por que a casa se

διά. O significado da raiz de διά é provavelmente δύο (= dois), que termina em “de dois em dois” ou
“entre”.
64
Veja-se Vincent Taylor Op. cit., p. 193; A. B. Bruce, Op. cit., p. 350; A. Edersheim, The Life and
Times of Jesus the Messiah (Nova York, 1897), vol. 1, p. 502. Por outro lado, Lenski definidamente
opõe-se a este ponto de vista, Op. cit., p. 62.
65
Provavelmente o melhor é considerar que ἠκού (lit. “foi ouvido”; trad. “correu-se a voz”) forma a
oração principal, e que ἰσελθῶν (“quando tinha entrado”) age como oração subordinada. Quanto a ὅτι
ἐν οἴκῳ ἐστίν (lit. “que está em casa”), existem duas possibilidades: a. considerar a frase como
discurso indireto, embora em tal caso nós usaríamos o tempo passado (“que estava em casa”); b.
considerar a ὅτι como recitativa, o qual se representaria em espanhol usando as aspas do discurso
direto (informou-se: “ele está em casa”). Quanto à última possibilidade, veja-se A. Plummer, The
Gospel according to Matthew (Cambridge Greek Testament for Schools and Colleges. Cambridge,
1914), p. 80.
Marcos (William Hendriksen) 116
encheu de gente. Sem dúvida que um bom número dos amigos e
discípulos de Jesus se achavam presentes, com genuíno interesse na
verdade. Também deve ter havido muitos “olheiros” que ardiam de
curiosidade, tratando de ouvir o que Jesus diria e especialmente para ver
o que faria. Por último, os dissimulados rabinos (os fariseus e doutores
da lei, segundo Lc. 5:17) estavam cheios de inveja, intensamente
perturbados pela forma em que Jesus atraía as grandes multidões. Estas
pessoas “importantes” tinham vindo não só das aldeias da Galileia, mas
também até da Judeia e de Jerusalém! Resultado: não restava mais lugar,
nem mesmo junto à porta. Quando se entrava numa casa, o comum era
que a porta desse acesso direto à casa. Somente os mais acomodados
tinham um “portão” extra e um corredor de entrada. Nas casas mais
modestas, a “porta” dava acesso direto à rua. Mas nesta ocasião a entrada
estava obstruída. Tampouco havia polícia que abrisse caminho.
E anunciava-lhes a palavra. De maneira tão própria e única (veja-
se Mc. 1:22), Jesus trazia o evangelho aos Seus ouvintes (cf. Mc. 4:14ss.,
33; 16:20). Afinal de contas, para isto tinha vindo do céu à terra (Mc.
1:38), quer dizer, para trazer a mensagem de alegria, liberdade, salvação
plena e gratuita (cf. Lc. 4:17–22). Dos Seus lábios brotavam palavras de
graça, claras e singelas.
Mas produz-se uma interrupção, um ruído que vem de acima:
3. Alguns foram ter com ele, conduzindo um paralítico, levado
por quatro homens.
Este homem era, por certo, um desventurado. A enfermidade que
sofria caracteriza-se por uma extremada falta de energia e movimento, a
qual é causada geralmente pela incapacidade que possuem os músculos
para funcionar, devido a lesão nas áreas motoras do cérebro e/ou na
medula espinhal. Além das passagens paralelas em Mateus e Lucas,
veja-se também Mt. 4:24; 8:5–13; At. 8:7; 9:33. No presente caso,
qualquer que tenham sido as partes lesadas pela paralisia e o grau de
avanço da enfermidade, um fato fica claro: a pessoa afetada se achava
impossibilitada de mover-se por si mesma e precisava ser carregada por
Marcos (William Hendriksen) 117
outros. Quatro homens (parentes ou amigos?) ofereceram-lhe este
serviço, conforme o indica Marcos.
4. E, não podendo aproximar-se dele [Jesus], por causa da multidão,
descobriram o eirado no ponto correspondente ao em que ele estava e,
fazendo uma abertura, baixaram o leito em que jazia o doente.
Estas cinco pessoas mostravam uma coragem e engenho digno de
admiração. Mas a fé que tinham em Jesus era ainda mais admirável,
visto que dela emanava a confiança que tinham no êxito de sua
iniciativa. Se a casa onde a multidão se reuniu tinha uma escada exterior,
deve ter sido por aí que os quatro subiram ao teto com sua preciosa
carga. Se era a casa adjacente a que tinha a escada, primeiro deveriam ter
subido ao teto daquela casa, para logo cruzar de um eirado ao outro. De
uma forma ou outra, conseguiram colocar-se diretamente sobre o lugar
onde Jesus estava falando à multidão.
E agora como transpassar o teto! A cobertura exterior de uma casa
era geralmente plana. Tinha vigas com travessas recobertas com folha
seca, ramos, etc., sobre os quais se estendia uma grossa capa de barro ou
argila misturada com palha cortada e amassada a golpes. Este tipo de teto
não era difícil de “destelhar” (esta é a palavra usada no original: “eles
destelharam o teto”). 66
Depois de fazer uma abertura no teto, os quatro desceram a maca
sobre a qual estava deitado o paralítico (cf. a forma em que Paulo foi
baixado do muro em Damasco, At. 9:25; 2Co. 11:33). A “maca” era
certo tipo de leito usado pelos pobres, talvez um colchão delgado
enchido com palha. Sendo que eram quatro os homens que desceram a
maca, supomos que o fizeram amarrando cordas nos quatro cantos da
cama. Foi assim que o doente foi posto exatamente à frente de Jesus.
66
Cria-se uma dificuldade desnecessária, quando se imagina que a “telhas” (de Lucas 5:19) estavam
instaladas numa firme armação de quadros pequenos. Além disso, a abertura do teto não precisava ser
tão grande quanto a altura do homem! Mediante o manejo cuidadoso das cordas até um doente de
estatura normal pode ser baixado lentamente através de uma pequena abertura. “Tudo se consegue
quando se quer”. Referente à forma da construção de um teto, veja-se o artigo “House” na ISBE, vol.
3, p. 1437.
Marcos (William Hendriksen) 118
Baixando Sua vista, Jesus vê o paciente; e olhando para cima, observou
os quatro “amigos” que demonstraram ser “amigos de fato”.
Não se diz que do teto os quatro gritassem alguma coisa a Jesus.
Nenhum dos evangelistas nos conta tampouco que o próprio homem
doente tenha dito alguma coisa. No que concerne ao paralítico, é até
possível que a enfermidade o impedisse de falar. Mas embora nenhum
dos cinco falou, confiaram! E isto era o importante. Sua confiança
comoveu o próprio coração do Senhor; de modo que lemos:
5. Vendo-lhes a fé, Jesus disse ao paralítico: Filho, os teus
pecados estão perdoados.
O inferir disto que Jesus pensou que a causa de sua enfermidade
eram seus pecados, como se costuma fazer, 67 não tem base alguma,
embora seja verdade que entre os judeus era comum a crença de que “se
um indivíduo sofria uma grande aflição, devia-se a que era um grande
pecador” (Jó 4:7; 22:5–10; Lc. 13:4; Jo. 9:2). Com relação a crenças
similares entre os não judeus, veja-se At. 28:3, 4. Conforme o provam os
evangelhos, Jesus combateu este erro. Mas quanto a este paralítico, a
única coisa que efetivamente sabemos é que o Senhor teve uma grande
preocupação pelo seu pecado. Tampouco é informado se o próprio
homem cria que seu pecado era a causa desta enfermidade. Entretanto,
Jesus sabia que os pecados deste homem o afligiam intensamente. O
homem estava aflito pelas muitas formas em que suas atitudes,
pensamentos, palavras e atos tinham transgredido a vontade de Deus.
Segundo Mateus, Jesus Se dirige meigamente a este homem chamando-o
de filho. Segundo os três evangelistas, Jesus literalmente lhe diz: “os teus

67
Veja-se Vincent Taylor, Op. cit., p. 195; e J. Schmidt, The Gospel according to Mark (The
Regensburg New Testament, tradução ao inglês, 1968, Nova York), p. 59. W. Barclay argumenta em
seu muito interessante e educativo comentário, The Gospel of Mark (The Daily Study Bible,
Philadelphia, 1956), pp. 40, 41, que a paralisia pôde ter sido causada pela própria convicção de pecado
que o homem tinha. Mas o texto não sugere isto.
Marcos (William Hendriksen) 119
68
pecados estão perdoados,” pois a ordem das palavras no original faz
com que toda a ênfase recaia no amor perdoador.
Esta declaração de perdão não só foi de inestimável bênção para o
paralítico, mas também foi motivo de felicidade para seus benfeitores.
Sem dúvida que eles se alegraram na alegria que ele sentia. Ainda mais,
foi uma lição para todos os presentes. A todos ficou claro o fato de que
este Médico estimava mais as bênçãos espirituais que as materiais, e que
reclamava possuir “autoridade”, quer dizer, o direito e o poder para curar
não só o corpo mas também a alma.
Jesus jamais considerou o pecado com leviandade. Alguma vez
disse a alguém, “Tem algum complexo de culpa? Esquece-o”. Ao
contrário, considerou o pecado como um desvio indesculpável da santa
lei de Deus (Mc. 12:29, 30), como algo que tem o poder de afogar a alma
(Mc. 4:19; cf. Jo. 8:34) e como um assunto que tem que ver com o
coração e não só com os atos externos (Mc. 7:6, 7, 15–23). Mas também
ofereceu a única solução verdadeira. Compreendia muito bem que o
conselho “Livre-se de seu complexo de culpa, pois uma pequena
crueldade, promiscuidade ou infidelidade, não é nada mau”, não
soluciona nada senão cria mais problemas. Também sabia que ao ser
humano é totalmente impossível livrar-se do sentido de culpabilidade,
pretendendo compensar seus pecados com boas obras. Sabia que esta
filosofia conduziria unicamente a um trágico fracasso e a um espantoso
desespero. Em vez disso, Jesus tinha vindo proclamar e, acima de tudo,
prover a simples e única solução para o pecado, a saber, o perdão. E Ele
mesmo pôs a base para esta por meio da expiação que fez pelo pecado
(Mc. 10:45; 14:22–24, cf. Jo. 1:29). Portanto, ao dizer ao paralítico, “os
teus pecados estão perdoados”, não só comunica a este homem as novas
do perdão de Deus (como fez Natã ao penitente Davi, cf. 2Sm. 12:13), e
sim com autoridade cancela a dívida do paralítico. O Senhor apagou seus
68
Seja que, entre as variantes, adote-se ἀφίενται (presente ind. pas.) tanto para Mc. 2:5 como para Mt.
9:2, ou se prefira ἀφέωνται (perfeito ind. pas., cf. Lc. 5:20), o significado resulta mais ou menos o
mesmo: os pecados deste homem foram nesse momento permanentemente perdoados.
Marcos (William Hendriksen) 120
pecados completamente e para sempre (cf. Sl 103:12; Is. 1:18; 55:6, 7;
Jr. 31:34; Mq. 7:19; Jo. 1:9). Além disso, tal perdão nunca vem sozinho.
É sempre “perdão e algo mais”. Em Cristo, Deus dissipa a tenebrosidade
do inválido e o abraça com os braços de Seu amor protetor e adotivo (cf.
Rm. 5:1).
6, 7. Mas alguns dos escribas estavam assentados ali e arrazoavam
em seu coração: Por que fala ele deste modo? Isto é blasfêmia! Quem
pode perdoar pecados, senão um, que é Deus?
Um poeta holandês chamou a culpa do homem “a raiz de todos os
problemas humanos”. Um psicólogo britânico chamou o sentido de
sentir-se perdoado “a força mais curativa do mundo”. E quão
frequentemente os especialistas nos informam que muitos pacientes
poderiam receber alta das instituições de enfermidades mentais, se tão só
pudessem convencer-se de que sua culpa foi apagada! Pensar-se-ia,
portanto, que todos aqueles que ouviram Jesus dizer ao paralítico, “Filho,
os teus pecados estão perdoados” unir-se-iam ao regozijo do homem
perdoado. Mas não foi assim, pois os escribas tinham vindo para ver se
podiam achar algum erro em Jesus. Em seus corações não havia lugar
para participar da alegria deste homem terrivelmente afetado, quem
nestes momentos escutava palavras de alento e alegria. De maneira
altamente depreciativa, estes inimigos dizem algo decididamente
desfavorável. Entretanto, não o dizem em voz alta, mas somente dentro
de seus corações. Mas os corações são muito importantes. Acaso não são
a fonte principal das inclinações, como também dos sentimentos e dos
pensamentos? Não é o coração do homem aquele que mostra o tipo de
pessoa que realmente é? (veja-se Mc. 3:5; 6:52; 7:14–23; 8:17; 11:23;
12:30, 33; Ef. 1:18; 3:17; Fp. 1:7; 1Tm. 1:5. Cf. Pv. 23:7).
Assim que, em seus corações os escribas dialogam, lançam
pensamentos e respondem. O que dizem é isto: “Por que fala assim este
homem? Está blasfemando!”. Adota para Si prerrogativas que só
pertencem a Deus. Isto O torna culpado de blasfêmia, quer dizer, de uma
irreverência insolente. Rouba a Deus a honra que a ninguém mais
Marcos (William Hendriksen) 121
pertence, porque: “Quem pode perdoar pecados, senão um, que é
Deus?”.
Os escribas tinham razão ao considerar a remissão de pecados uma
prerrogativa divina (Êx. 34:6, 7a; Sl 103:12; Is. 1:18; 43:25; 44:22; 55:6,
7; Jr. 31:34; Mq. 7:19). Claro que há um sentido em que nós também
perdoamos, quer dizer, quando de todo coração decidimos não tomar
vingança, e sim amar a quem nos ofendeu, promover seu bem-estar e
nunca mais trazer o assunto à memória (Mt. 6:12, 15; 18:21; Lc. 6:37;
Ef. 4:32; Cl. 3:13). Mas basicamente, segundo se descreveu, só Deus
perdoa. Só ele tem o poder de tirar a culpa e declarar que realmente foi
apagada. Mas agora o pensamento dos escribas chega à uma bifurcação
que lhes mostra dois caminhos: a. Jesus é o que por implicação pretende
ser, quer dizer, Deus; ou, b. Ele blasfema, no sentido de que sem direito
pretende para Si os atributos e prerrogativas da deidade. Os escribas
adotaram a posição b. e assim tomam a direção errada.
O contexto que segue implica que não só cometeram este trágico
erro, mas também o complementaram raciocinando mais ou menos como
segue: “É fácil dizer, ‘Teus pecados te são perdoados’, visto que
ninguém está em condições de provar o contrário. Ninguém pode olhar o
coração de seu próximo ou aproximar-se do trono do Todo-Poderoso, e
descobrir suas decisões judiciais quanto a quem recebe e quem não
recebe o perdão. Por outro lado, dizer a este homem, ‘Levanta-te e anda’
seria muito mais difícil, porque se não se produz a cura, o que é
provável, aqui estamos todos para presenciar sua vergonha”. Portanto, na
opinião deles, Jesus é um blasfemo e um impertinente.
O Mestre desfaz estas duas falsas conclusões por meio destas
palavras:
8-11. E Jesus, percebendo logo por seu espírito que eles assim
arrazoavam, disse-lhes: Por que arrazoais sobre estas coisas 69 em vosso
coração? Qual é mais fácil? Dizer ao paralítico: Estão perdoados os teus

69
Ou: abrigais tais pensamentos.
Marcos (William Hendriksen) 122
pecados, ou dizer: Levanta-te, toma o teu leito e anda? Ora, para que
saibais que o Filho do Homem tem sobre a terra autoridade para perdoar
pecados — disse ao paralítico: 70 “Te digo, te levante, toma sua maca e
vete a sua casa”.
Jesus percebeu o que estes escribas pensavam. Suas deliberações
secretas não foram desconhecidas para Jesus (cf. Mt. 17:25; Jo. 1:47, 48;
2:25; 21:17). Se não tivesse sido Deus, não Lhe teria sido possível
penetrar tão profundamente em seus corações e pensamentos secretos (Sl
139; Hb. 4:13). Jesus os repreende com sua pergunta: “Por que
raciocinais assim?”. O “diálogo” deles era perverso (cf. Mt. 9:4), porque
O acusavam falsamente. Eles eram os perversos. Acaso não tinham
vindo com o propósito de buscar a forma de destruí-Lo (cf. Mc. 3:6)?
Deveriam examinar seus próprios corações!
Quanto ao que é mais fácil, dizer ao paralítico, “Estão perdoados os
teus pecados” ou “Levanta-te, toma o teu leito e anda”, não requerem
ambas as coisas a mesma medida de poder onipotente? Segundo o
raciocínio dos escribas, para que Jesus pudesse lhes provar sua
autoridade” (seu direito e poder) na esfera do espiritual, devia operar um
milagre na esfera do físico. Então, que vejam este milagre!
De modo que, diz-lhe ao paralítico: “Levanta-te, toma o teu leito e
vai para tua casa”. A obediência a esta ordem provaria que o humilde
mas glorioso “Filho do homem” tem autoridade divina aqui na terra.
Portanto, antes que a porta da graça seja fechada, tem autoridade para
perdoar pecados.
Marcos usa pela primeira vez o termo “Filho do homem”. No total,
ocorre quatorze vezes neste Evangelho: duas vezes no começo (Mc.
2:10, 28), sete vezes no meio (Mc. 8:31, 38; 9:9, 12, 31; 10:33, 45) e
cinco vezes rumo ao fim (Mc. 13:26; 14:21; 14:41; 14:61). É a forma em

70
O fato de que Mc. 2:10 e seus pares (Mt. 9:6 e Lc. 5:24) mostrem um estilo tão parecido, incluindo
até o parêntese na metade da cláusula, assinala em direção de uma dependência literária. Veja-se a
discussão do problema sinótico no CNT sobre Mateus. Quanto a Mc. 2:8 “em vosso coração”, veja-se
sobre Mc. 8:12.
Marcos (William Hendriksen) 123
que Cristo Se designa a Si mesmo, encobrindo mais que revelando algo
de Si mesmo. Encobrindo especialmente para aqueles que não se acham
inteiramente familiarizados com o Antigo Testamento. O uso desta
expressão conduziu à pergunta: “Quem é esse Filho do Homem?” (Jo.
12:34). A frase caracteriza a Jesus como Aquele que sofre, como Aquele
que seria traído e sacrificado (Mc. 9:12; 14:21, 41); tudo isto em
conformidade com o decreto divino, voluntária e vicariamente (Mc.
10:45). Seu sacrifício voluntário em lugar de Seu povo seria
recompensado (Mc. 8:31; 9:31; 10:33, 34). Depois de Sua morte levanta-
Se novamente. Tendo partido desta terra, um dia voltará em glória,
sentado à destra do Todo-Poderoso (Mc. 14:62), cumprindo a profecia de
Dn. 7:13, 14. Tão intrinsecamente glorioso é Ele, que Sua glória se
remonta para trás, através de toda Sua vida terrestre. Na realidade
sempre foi — até em Seus sofrimentos — o glorioso Filho do homem.
Estando ainda na terra, tem o direito de perdoar pecados (Mc. 2:10) e é
Senhor de tudo, incluindo até o sábado (Mc. 2:28). Para mais a respeito
de este tema, veja-se CNT sobre Mt. 8:20.
O presente relato mostra com clareza a glória do Filho do homem.
Jesus lhe tinha ordenado ao paralítico que se levantasse, etc. Resultado:
12. Então, ele se levantou e, no mesmo instante, tomando o leito,
retirou-se à vista de todos.
O homem creu que Aquele que lhe ordenava levantar-se, tomar seu
leito e ir para casa também o capacitaria a obedecer a ordem. Assim que
“à vista de” todos os que olhavam, obedeceu imediatamente a tríplice
ordem e foi embora para casa (que, talvez, estivesse aí mesmo em
Cafarnaum?). Marcos narra o efeito que a gloriosa transformação que
experimentou este homem produziu naqueles que ouviram o que Jesus
disse e que viram o que aconteceu: a ponto de se admirarem todos e
darem glória a Deus, dizendo: Jamais vimos coisa assim! Marcos nos
fala a respeito do assombro de todos. Jamais em sua vida tinham
presenciado algo semelhante. De acordo com Mateus, a multidão “se
maravilhou”. Lucas em seu relato diz que todos “estavam sobressaltados
Marcos (William Hendriksen) 124
de assombro … e cheios de temor”, levando-os a exclamar, “Hoje vimos
maravilhas”.
Os três Evangelhos observam que a multidão glorificava a Deus:
“todos” (assim Marcos e Lucas) atribuem-lhe a Deus a honra e esplendor
que Lhe é devido. Como ocorre com frequência, este “todos” é muito
geral e não significa que os escribas zombadores e críticos houvessem de
repente experimentado uma mudança genuína de coração e mente.
Marcos 2:16, 24; 3:2, 6, 22 deixa claro que homens deste tipo seguiram
hostis e se endureceram cada vez mais. Não obstante, a resposta de
glorificar a Deus foi o suficientemente geral para justificar o uso da
palavra “todos”. E não há dúvida de que entre os muitos que O exaltaram
estavam alguns em quem as palavras e obras de Cristo tinham produzido
uma impressão permanente e salvadora. Provavelmente havia outros que
em seu entusiasmo pronunciavam também palavras de louvor ao
Altíssimo (cf. Dn. 4:34; 6:26, 27), mas cujos corações continuavam sem
o novo nascimento (cf. Mc. 7:6).

Mc. 2:13–17 - A chamada de Levi


Cf. Mt. 9:9–13; Lc. 5:27–32

Conforme o indica Mateus 9:9, depois da cura do paralítico veio a


chamada de Levi, o publicano.
13. De novo, saiu Jesus para junto do mar, e toda a multidão
vinha ao seu encontro, e ele os ensinava. Como ocorreu quando
chamou os primeiros quatro discípulos (Mc. 1:16), Jesus de novo
caminhava pela margem do mar da Galileia. Não nos deve surpreender
que ao sair da casa cheia de gente (Mc. 2:2), o Mestre dirigisse Seus
passos rumo à agradável e refrescante brisa da praia. Mas logo que a
multidão soube onde Se achava, começou a juntar-se outra vez ao Seu
redor, e este processo de aproximação de Jesus como centro de atração
continuou por algum tempo. Por sua vez, Ele não lhes pediu que fossem
embora, antes, começou a lhes ensinar, e aqui Ele é descrito no momento
Marcos (William Hendriksen) 125
que lhes fala. A cena nos lembra algo daquela descrita em Mc. 6:30–34.
Ali também Jesus, buscando repouso e refrigério para Ele e Seus
discípulos, afasta-Se das multidões só para as encontrar de novo reunidas
no lugar que tinha escolhido para seu descanso. Uma multidão ou pessoa
(Mc. 7:24) necessitada despertava sempre a compaixão de Jesus (veja-se
Mt. 9:36). Tendo terminado de ensinar, Jesus volta ao Seu passeio pela
praia.
14. Quando ia passando, viu a Levi, filho de Alfeu, sentado na
coletoria e disse-lhe: Segue-me! Ele se levantou e o seguiu.
Marcos e Lucas chamam a este homem Levi (nome que se explica
em Gn. 29:34), mas ele se chama a si mesmo Mateus (Mt. 9:9ss.), que
significa “dom de Jeová”. Quando foi mudado seu nome de Levi a
Mateus? Foi Jesus quem lhe deu este novo nome quando o coletor de
impostos chegou a ser Seu discípulo, da mesma forma que o Senhor
mudou o nome de Simão a Cefas (= Pedro, Mc. 3:16; Jo. 1:42)? Também
é possível que desde o começo este novo discípulo tenha tido dois
nomes, o que também pôde ter ocorrido no caso de Tomé (Jo. 11:16) e
Bartolomeu (Mt. 10:3; Mc. 3:18; Lc. 6:14; At. 1:13; cf. Jo. 1:45–49;
21:2).
É difícil negar que Levi e Mateus sejam a mesma pessoa, conforme
o demonstra a comparação dos três relatos dos Sinóticos. Além disso,
Lucas chama “publicano” a Levi (Lc. 5:27), e na lista dos Doze (segundo
se vê em Mt. 10:3) menciona-se a “Mateus o publicano”.
O nome do pai era Alfeu, o qual não deve confundir-se (como se
costuma suceder) com o pai de Tiago, o menor, e de José, quem tinha o
mesmo nome (Mc. 3:18; cf. 15:40). Se outro membro dos Doze tivesse
sido irmão de Levi (ou Mateus), isto com certeza teria sido mencionado,
como foi no caso de Pedro e André, de Tiago e João.
Ao ir pela praia, Jesus vê Levi que estava sentado em (quer dizer,
em ou perto da entrada de) o posto da arrecadação, lugar onde se
cobravam os impostos de toda mercadoria que passava pela via
internacional entre a Síria e o Egito.
Marcos (William Hendriksen) 126
Levi era coletor de impostos ou “publicano”. Alguns romanos,
geralmente de posição equestre, pagavam grandes somas de dinheiro à
tesouraria romana, para que fossem nomeados para arrecadar o imposto
público sobre importações e exportações pertencentes a uma província.
Estes “empreiteiros”, como foram chamados, costumavam subarrendar o
privilégio a “publicanos chefes” como Zaqueu (Lc. 19:2), os quais por
sua vez designavam “publicanos” de menor posição para que efetuassem
a própria arrecadação.
O termo “publicano”, que o princípio provavelmente foi o
equivalente de “empreiteiro”, começou a usar-se num sentido secundário
para designar os cobradores de impostos de qualquer posição. Nesta
parte do Império Romano os principais postos de arrecadação se
achavam em Cesareia, Cafarnaum e Jericó.
Em geral, os publicanos cobrariam o que pudessem tirar grandes
somas do mercado. Isto lhes deu fama de chantagistas. Além disso, os
judeus consideravam os publicanos judeus como traidores. Eram tidos
como infiéis ao seu próprio povo e à sua religião. Acaso não estavam a
serviço do opressor estrangeiro? Afinal de contas, estavam servindo e
enriquecendo o imperador romano, a um pagão. A baixa estima em que
eram tidos vê-se em passagens tais como as seguintes: Mc. 2; 15, 16; cf.
Mt. 9:10, 11; 11:19; 21:31, 32; Lc. 5:30; 7:34; 15:1; 19:7. Os
“publicanos” e os “pecadores” eram mencionados juntos. Não obstante,
Jesus agora se volta para um odiado publicano, para fazê-lo um de Seus
discípulos.
Deve-se ter em mente que a estas alturas Jesus já tinha reunido em
torno de Si os seguintes discípulos: Simão e André, Tiago e João (Mc.
1:16–20); e de acordo com o Evangelho de João também a Filipe e
Natanael (Jo. 1:35–51). Não se indica se também outros teriam sido
chamados. Se não, então Levi (= Mateus) foi o sétimo discípulo de Jesus.
A chamada dos Doze como grupo ocorreu um pouco depois (cf. Mc.
2:13, 14 com 3:13–19; Lc. 5:27, 28 com 6:12–16), um pouco antes da
pregação do Sermão da Montanha (Lc. 6:17–49). Mateus não se
Marcos (William Hendriksen) 127
interessa na ordem cronológica, assim que registra tal sermão nos
capítulos 5–7 de seu Evangelho.
Quando Jesus lhe disse, “Segue-me”, Levi levantou-se
imediatamente e O seguiu. Em seu próprio Evangelho (bem como em
Marcos), Mateus entrega um registro sóbrio da forma imediata e decisiva
em que obedeceu a Jesus. Se quisermos mais detalhes que contem o
grande sacrifício que significou para ele seguir a Jesus, devemos dirigir-
nos a Lucas 5:28, onde se diz que Mateus “deixou tudo”. Abandonou seu
lucrativo negócio e confiou em que Deus proveria para suas
necessidades. É evidente que ao agir assim seu sacrifício foi maior que o
dos quatro mencionados em Marcos 1:1–20. A estas alturas ainda era
possível para Simão, André, Tiago e João dedicar-se a pescar de vez em
quando. Diferente de Mateus, cujo sacrifício foi total.
Sua generosidade e a veemência com a que seguiu a Jesus fizeram-
se evidentes pelo fato de que em sua casa honrou a Jesus com um
banquete.
Em resumo, vos Sinóticos descrevem ao Levi dá seguinte maneira:
Mateus, judeu coletor de impostos, ao serviço de Roma; e como tal
Aborrecido pelos judeus, especialmente pelos escribas. Entretanto,
foi humilde e hospitaleiro; veja-se especialmente Lc. 5:28, 29;
Talentoso e inspirado escritor, conhecedor do hebraico, o aramaico
e o grego; conhecia bem o Antigo Testamento, o qual cita com muita
frequência;
Ecumênico, no sentido de Mt. 28:19, refletia a mente de Cristo; e
Obediente ao seu Mestre, acudindo prontamente ao seu chamado.

Foi na casa de Levi onde Marcos apresenta Jesus como um


convidado:
15. Achando-se Jesus à mesa na casa de Levi, estavam
juntamente com ele e com seus discípulos muitos publicanos e
Marcos (William Hendriksen) 128
71
pecadores; porque estes eram em grande número e também o
seguiam.
Ele foi Levi quem, por certo, ofereceu o banquete em sua casa é
evidente por Lucas 5:29. O antecedente imediato (“e o seguiu”) no final
do versículo 14 estabelece que o sujeito de “à mesa” (v. 15) é Jesus.
Assim que, foi em casa de Levi onde Jesus estava reclinado. Ali também
muitos coletores de impostos e pecadores comiam junto com o Mestre e
Seus discípulos. Naquele tempo, para a pessoa comer ela se reclinava
sobre colchões, sofás ou divãs ao redor de mesas baixas, apoiados sobre
o cotovelo esquerdo. Pelo menos, esse era o costume durante uma festa.
Cf. Mc. 6:26; 14:18; 16:14; e veja-se CNT sobre Jo. 13:23.
Publicanos e pecadores! 72 Segundo a opinião dos fariseus, um
“pecador” era aquele que se negava a submeter-se à interpretação que os
fariseus davam da santa lei de Deus, a Torá. Nesse sentido até o próprio
Jesus e Seus discípulos eram pecadores, quer dizer, pecadores no sentido
em que os fariseus definiam essa palavra. Os fariseus exigiam que as
pessoas se submetesse a um rito de purificação religiosa no qual se
lavavam as mãos antes de comer, exigiam que guardassem certas leis
que eles tinham inventado com relação ao sábado. Mas ocorria que nem
o Mestre nem Seus seguidores se conduziam conforme este tipo de
interpretação rabínica da lei. Na realidade, não estamos longe da verdade
se dissermos que aos olhos dos fariseus todos os que não eram fariseus
eram “pecadores”: “Quanto a esta plebe que nada sabe da lei, é maldita”
(Jo. 7:49). Portanto, certamente que os fariseus chamariam “pecador” a
uma pessoa que tivesse sido objeto da graça de Deus, a um verdadeiro
discípulo do Senhor Jesus Cristo.
No entanto, aqui devemos ter muito cuidado. Segundo seu uso nos
Evangelhos, o termo não deve ser interpretado de maneira muito
favorável, como se todos estes “pecadores” que se reclinavam junto a

71
Ou: “gente de má reputação”; e assim através dos Evangelhos. Veja-se a explicação.
72
Sobre ἁμαρτωλός, veja-se K. H. Rengstorf, TDNT, vol. 1, p. 328.
Marcos (William Hendriksen) 129
Jesus em casa de Mateus fossem “santos” (no sentido de ser gente
excepcionalmente virtuosa). Talvez o contrário estaria mais perto da
verdade. Os publicanos e pecadores não só violavam a interpretação
rabínica da lei de Deus, mas também a própria lei divina. Jesus não
justifica nem comuta sua forma de vida. Antes, os aborda como a
doentes que precisam ser curados (v. 17), como ovelhas perdidas que
devem ser achadas (Lc. 15:1–4; 19:10). Tinha vindo do céu para libertar
esta gente de seus pecados e misérias.
Mateus entende isto e honra a Jesus com um banquete. Abriga a
esperança, naturalmente, de que todos estes desprezados publicanos e
pecadores também cheguem a ser como ele, um seguidor espiritual de
Cristo.
Embora existam explicações divergentes das palavras que se acham
no final do v. 15, parece-me que se forem lidas à luz do contexto, não é
tão difícil de encontrar a explicação correta. A chave está na repetição da
palavra “muitos”. Observe-se: “…também estavam sentados à mesa com
Jesus e com seus discípulos muitos publicanos e pecadores, porque eram
muitos e o tinham seguido” [Mc. 2:15, RC]. O segundo muitos é
provavelmente uma espécie de resumo, e significa que os publicanos, e
em geral a gente que se pontuava de pecadora, eram muitos e tinham
começado a lhe seguir” (Bruce). A palavra “pois” pode ser explicada
desta forma: “Pode parecer estranho que muitos coletores de impostos e
pecadores, gente desprezada, estivessem reclinados à mesa com Jesus; e
não obstante, é a verdade: achavam-se reclinados com Ele porque tinham
começado a vê-Lo como um Amigo (cf. Mt. 11:19; Lc. 7:34), como
Alguém a quem começavam a seguir”. 73

73
A pontuação do texto — veja-se GNT — que sugere que o sujeito de καὶ ἠκολούθουν αὑτῷ está em
καὶ οἱ γραμματεῖς κτλ dá um sentido muito improvável, como se estes inimigos de Jesus estivessem
presentes no banquete, e como se tivessem começado a seguir ao Senhor! Vincent Taylor tem razão
em rejeitar esta construção, visto que se a expressão “começavam segui-lo” se interpreta
favoravelmente, está em conflito com o v. 16; e se for interpretada em sentido desfavorável,
respondemos que em vintena de casos em Marcos que se usa ἀκολευθέω, jamais usa o verbo em
sentido desfavorável.
Marcos (William Hendriksen) 130
16. Vendo os escribas dos fariseus que ele comia com os pecadores e
publicanos, perguntaram aos discípulos dele: Como é que ele come com os
publicanos e pecadores? [TB]
Assim como nem todo sacerdote era saduceu (veja-se em Jo. 1:24),
tampouco todo escriba era fariseu (cf. Lc. 5:30, “seus escribas”); porém
no presente caso somos informados definidamente que os críticos eram
escribas de profissão e que pertenciam à seita religiosa dos fariseus. 74
Estes escribas farisaicos estavam sempre preparados e desejosos de
encontrar falhas em Jesus, mas em geral não tinham a dignidade de
criticá-Lo face a face. É muito provável que estes escribas se
aproximaram dos discípulos quando o banquete tinha terminado e os
convidados saíam do lugar. Foi nesse momento que perguntaram, 75
“¿Como é que ele come com os publicanos e pecadores?” Acaso comer
com uma pessoa não implica uma amável camaradagem? (veja-se CNT
sobre Mt. 8:11). E acaso os rabinos não tinham estabelecido a regra, “Os
discípulos dos eruditos não devem reclinar-se à mesa na companhia dos
‘am hā-’āreç”? Eles usavam a expressão ‘am hā-’āreç para referir-se ao
“povo da terra”, ao “vulgo”, ao “povo que não conhece a lei” (veja-se Jo.
7:49).
Sua falta de compaixão e sua atitude santarrã (Lc. 18:9) não
permitia que estes críticos entendessem que há ocasiões quando a
camaradagem com publicanos e pecadores está perfeitamente em ordem,
e tão em ordem que seria impróprio evitar tal camaradagem. Ao
associar-se com esta gente de má reputação, Jesus saía ao encontro de
uma necessidade, tal como Ele mesmo o declara:

Por outro lado, Taylor (junto com Bolkestein, Groenewald e Van Leeuwen em seus comentários) crê
que o segundo “muitos” refere-se aos discípulos de Jesus, como se Marcos estivesse informando ao
leitor que por esse tempo Jesus já tinha outros discípulos, além dos mencionados em Mc. 1:16–20 (cf.
BP). Mas esta interpretação não faz justiça à repetição da palavra “muitos”. Em resumo, adiro-me à
estrutura e interpretação que encontramos em NVI, RA, NTT, CB, CI, BJ, LT.
74
Sobre os fariseus e os saduceus, sobre sua origem, o antagonismo que havia entre eles e sobre a
forma em que cooperaram para matar a Jesus, veja-se CNT sobre Mt. 3:7.
75
Aqui ὅτι é provavelmente uma elipse de τί ὅτι, o que significa “o que (é) isso?” e assim “por que?”.
Cf. Mt. 9:11 e Lc. 5:30 que têm διὰ τί, isto é “por causa do quê?” ou “por quê?”
Marcos (William Hendriksen) 131
17. Tendo Jesus ouvido isto, respondeu-lhes: Os sãos não
precisam de médico, e sim os doentes.
Jesus tomou nota da crítica dos escribas. Assim que, Ele mesmo
lança neles a resposta precisa por meio do que pôde ter sido um
provérbio familiar. Quando Jesus intimava com pessoas de baixa
reputação, não o fazia acotovelando-se com eles como companheiro de
maldades. A Jesus não se podia aplicar o provérbio, “Dize-me com quem
comes e te direi quem és”. Antes, Sua intimidade era como a do médico
que, sem contaminar-se de modo nenhum com as enfermidades de seus
pacientes, aproxima-se deles a fim de lhes trazer cura! Além disso, eram
precisamente os fariseus os que deviam haver entendido isto. Não são
eles os que se consideravam sãos e que tinham os outros como doentes?
Se os publicanos e pecadores estão tão enfermo, não precisam ser
curados? Em que consiste o trabalho do médico, em curar sãos ou curar
doentes? Os doentes, naturalmente!
Jesus acrescenta: Não vim chamar justos, e sim pecadores. Isto é
o que basicamente se lê em Mateus e em Lucas. Contudo, em Mateus
estas palavras são precedidas por uma citação de Oseias 6:6 e
introduzidas pela conjunção “porque”. Em Lucas se acrescenta a frase
“(pecadores) ao arrependimento”.
A passagem deixa claro que o convite à salvação, plena e gratuita,
não se oferece aos “justos”, quer dizer, àqueles que se consideram
dignos, e sim aos que se consideram indignos e que estão em grande
necessidade. Foram os pecadores, os perdidos, os estraviados, os
mendigos, os sobrecarregados, os famintos e os sedentos a quem Jesus
veio para salvar (vejam-se também Mt. 5:6; 11:28–30; 22:9, 10; Lc.
14:21–23; cap. 15; 19:10; Jo. 7:37, 38). Isto está em harmonia com toda
a revelação especial, tanto no Antigo como no Novo Testamento (Is.
1:18; 45:22; 55:1, 6, 7; Jr. 35:15; Ez. 18:23; 33:11; Os. 6:1; 11:8; Rm.
8:23, 24; 2Co. 5:20; 1Tm. 1:15; Ap. 3:20; 22:17). É uma mensagem
cheia de alento e pertinente para todas as épocas!
Marcos (William Hendriksen) 132
Mc. 2:18–22 - A pergunta a respeito do jejum
Cf. Mt. 9:14–17; Lc. 5:33–39

18. Ora, os discípulos de João e os fariseus estavam jejuando.


O relato de Marcos carece de toda referência específica quanto a
tempo ou ordem cronológica. 76 Isto é certo tanto desde o começo como
ao final do relato. Quanto a Mateus, não é totalmente seguro que a
palavra “então” ligue esta história com a que a precede imediatamente,
como se os dois eventos — o banquete de Mateus e a pergunta sobre o
jejum — seguissem um ao outro em sucessão imediata. 77 A conjunção
“e”, que Lucas usa (Lc. 5:33) não é mais definida que o “então” de
Mateus. Existe, entretanto, um dado cronológico que está claro. Acha-se
em Mateus 9:18 [TB]: “Enquanto assim lhes falava, veio um chefe da
sinagoga …”. A probabilidade é que, enquanto a chamada de Mateus e o
banquete ocorreram antes da eleição dos Doze e da pregação do Sermão
da Montanha (veja-se Mc. 3:13–19; Lc. 6:12–9), o assunto a respeito do
jejum (que veio seguido de perto pelo duplo milagre registrado em Mc.
5:25–43) ocorreu depois da eleição dos Doze e o Sermão da Montanha.
A lei de Deus sugere que se jejue uma vez por ano, ou seja, no dia
da expiação (Lv. 16:29–34; 23:26–32; Nm. 29:7–11; cf. At. 27:9). Com
o correr do tempo, os jejuns começaram a multiplicar-se (embora nem
sempre consistiam numa abstinência total de alimentos; veja-se o texto
em cada caso), e assim lemos a respeito deles em outras ocasiões
também: do nascer do sol até o seu ocaso (Jz. 20:26; 1Sm. 14:24; 2 S.
1:12; 3:35); durante sete dias (1Sm. 31:13), três semanas (Dn. 10:3);
quarenta dias (Êx. 34:2, 28; Dt. 9:9, 18; 1Rs. 19:8); no quinto e sétimo
mês (Zc. 7:3–5); e até no quarto, quinto, sétimo e décimo mês (Zc. 8:19).
76
Cf. N. B. Stonehouse, Origins of the Synoptic Gospels (Grand Rapids, 1963), p. 66.
77
Mateus usa o advérbio de tempo τότε umas noventa vezes. Entretanto, mesmo quando com
frequência indica sucessão cronológica, isto nem sempre significa necessariamente sucessão imediata.
“Então” quer dizer “depois”, mas sem indicar nada definido quanto ao tempo exato (Mt. 3:13; 12:22);
“então” também pode querer dizer “imediatamente depois” (Mt. 2:7; Jo. 13:27). Para outros usos,
veja-se qualquer bom Léxico; como p. ex., BAGD, p. 823.
Marcos (William Hendriksen) 133
O clímax chegou quando se começou a jejuar “duas vezes por
semana”, 78 o que motivou a jactância dos fariseus (Lc. 18:12).
Portanto, não surpreende que por alguma razão os fariseus se
achassem jejuando outra vez. Quando jejuavam luziam mal-humorados,
com seus rostos gastos a fim de que todo mundo visse que jejuavam.
Jesus condenou rotundamente esta maneira de jejuar (Mt. 6:16).
Mas por que se achavam jejuando também os discípulos de João?
Têm sido sugeridas várias razões. João fez sua primeira aparição pública
provavelmente no verão do ano 26 d.C. A fins do ano 27 foi
encarcerado. Jesus deve ter pregado o Sermão da Montanha em algum
momento entre a primavera e o verão do ano 28. Pouco tempo depois —
talvez no começo do ano 29 — João foi decapitado. Por conseguinte, não
é impossível que o jejum dos discípulos de João fosse uma forma de
expressar sua dor pelo encarceramento ou a morte de seu mestre. Não é
necessário crer que os fariseus e os discípulos de João estivessem
jejuando pela mesma razão. Contudo, deve admitir-se que também é
possível que ambos os grupos realmente estivessem jejuando pela
mesma razão. Devemos ter em mente que em certo sentido João era um
asceta (Mt. 11:18; Lc. 7:33). Enfatizava o pecado e a necessidade de
abandoná-lo. Assim que, não é inconcebível que ele tivesse favorecido o
jejum como expressão de luto pelo pecado, a mesma razão que os
fariseus provavelmente davam para a maioria de seus jejuns (cf. Mt.
6:16).
Vieram alguns 79 e lhe perguntaram [a Jesus]: Por que motivo
jejuam 80 os discípulos de João e os dos fariseus, mas os teus
discípulos não jejuam? Quanto a “vieram”, a pergunta é: “A que grupo
refere-se a terceira pessoa plural do vieram?”. Lucas 5:33 é tão
indefinido quanto Marcos 2:18. Em ambos os casos se poderia colocar

78
Jejuava-se na segundas-feira e quarta-feira, de acordo com a Didaquê. VIII.1.
79
Ou: e algumas pessoas vieram.
80
Ou: Por que estão jejuando os discípulos de João e os discípulos dos fariseus, mas os teus discípulos
não estão jejuando?”.
Marcos (William Hendriksen) 134
“vieram alguns” [RA] em lugar de “e vieram”. Se pensa-se num
antecedente definido, então Marcos 2:18 poderia estar falando dos
“escribas que eram fariseus” (literalmente, “os escribas dos fariseus”) do
v. 16; e Lucas 5:33 estaria apontando aos “fariseus e seus escribas” do v.
30. Entretanto, é muito duvidoso que em qualquer dos dois casos o
contexto esteja provendo um antecedente. Por outro lado, Mateus 9:14
estabelece claramente que os que perguntaram foram “os discípulos de
João”. Sendo que nessa oportunidade não só eles, mas também os
fariseus estavam jejuando, é concebível que o grupo dos que
perguntavam incluísse também aos fariseus.
Não é um problema que os que se descrevem como jejuando sejam
“os discípulos de João”. Mesmo depois do encarceramento de João seus
discípulos continuaram como um grupo separado que se distinguia dos
seguidores de Jesus. Existia, entretanto, uma relação de camaradagem e
cooperação entre os dois grupos, segundo se evidencia em passagens
como Mateus 11:2, 3; 14:12, e provavelmente até na passagem que agora
estudamos, Marcos 2:18. Mas surge um problema com relação à frase
“os discípulos dos fariseus” (veja-se também Lc. 5:33). Considerados
como grupo “os fariseus” não eram mestres propriamente ditos e,
portanto, não tinham discípulos. Não obstante, o problema poderia ser
mais aparente que real. Quando Marcos escreve “discípulos dos
fariseus”, pôde ter querido dizer “discípulos dos escribas que eram
fariseus”, como em Mc. 2:16. O ponto principal é que os discípulos de
João e presumivelmente os discípulos destes escribas fariseus estavam
jejuando, conforme o ensino e/ou o exemplo de seus líderes. Mateus 9:14
declara que os fariseus jejuavam “muitas vezes”. Por outro lado, os
discípulos de Cristo não participavam destes jejuns. A pergunta surgiu
devido a este notável contraste.
Em favor dos que levantaram a pergunta, deve-se dizer que não
passaram por alto a Jesus, mas que se dirigiram a Ele direta e
francamente. Além disso, embora havia certa crítica na pergunta que
Marcos (William Hendriksen) 135
levantaram, não se tratava de uma acusação velada mas mordaz, porém
de uma honesta pergunta que demandava informação.
Em todo caso, a pergunta não se justificava realmente, porque se
estes homens tivessem sido melhores estudantes das Escrituras teriam
sabido a. que o único jejum que com esforço da imaginação poderia
derivar-se da lei de Deus era aquele que se levava a cabo no dia da
expiação, e b. que de acordo com o ensino de Isaías 58:6, 7 e Zacarias
7:1–10, o que Deus demandava não era um jejum no sentido literal, e
sim amor para com Deus e a humanidade.
19. Respondeu-lhes Jesus: Podem, porventura, jejuar os
convidados para o casamento, enquanto o noivo está com eles?
Nos três sinóticos a pergunta se expressa de tal maneira que a
resposta tem que ser “Não”. Entretanto, Marcos faz com que a resposta
seja mais clara, informando que Jesus acrescentou: Durante o tempo em
que estiver presente o noivo, não podem jejuar. Aqui Jesus compara
Sua bendita presença na terra com uma festa de bodas. Vez após vez a
Escritura compara a relação entre o Senhor e Seu povo, ou entre Cristo e
Sua igreja, com o amor que existe entre o marido e a esposa (Is. 50:1ss.;
54:1ss.; 62:5; Jr. 2:32; 31:32; Os. 2:1ss.; Mt. 25:1ss.; Jo. 3:29; 2Co. 11:2;
Ef. 5:32; Ap. 19:7; 21:9). Literalmente, o v. 19 fala dos filhos da
“câmara nupcial”, o que significa “os companheiros do noivo”. Estes
eram amigos do noivo. Permaneciam perto dele. Eram convidados à
bodas, estavam encarregados dos arranjos e deviam fazer todo o possível
para promover o êxito das festividades.
É como se Jesus dissesse: Os amigos do noivo jejuando enquanto
transcorre a festa! Que absurdo! Assim incongruente seria que os
discípulos do Senhor fizessem luto enquanto seu Mestre leva a cabo
obras de misericórdia e pronuncia belas palavras de vida. Que
incongruência!
Entretanto, Jesus acrescenta,
20. Dias virão, contudo, em que lhes será tirado o noivo; e, nesse
tempo, jejuarão.
Marcos (William Hendriksen) 136
Esta é uma das primeiras predições da morte de Cristo na cruz. A
predição que indica que o noivo, Cristo, será tirado acha-se também nas
passagens paralelas (Mt. 9:15; Lc. 5:35). Lembra-nos imediatamente
Isaías. 53:8 [TB]: “Pela opressão e pelo juízo foi ele arrebatado”. É
notável como os Evangelhos apresentam o próprio Jesus citando ou
aludindo com frequência a algum texto de Isaías. 81 No Evangelho
segundo Marcos temos os seguintes textos:

Marcos cf. Isaías


4:12 6:9, 10
7:6, 7 29:13
11:17 56:7
12:1 5:1, 2
13:8 19:2
13:24, 25 13:10; 34:4

A presente passagem (Mc. 2:20) não é a única que contém ao


menos uma alusão a Isaías 53 (veja-se também Mc. 9:12; cf. Is. 53:3; e
Mc. 15:4, 5; cf. Is. 53:7). A expressão de Isaías “foi ele arrebatado”, o
que ocorre “pela opressão e pelo juízo”, refere-se, naturalmente, à uma
morte violenta; observe-se o contexto: “Angustiado … aflito … levado
ao matadouro … cortado [cf. Dn. 9:26] da terra dos viventes”. É natural
supor que aqui em Marcos o significado é parecido.
Mediante a expressão “virão dias”, que vem seguida da frase muito
chamativa “naquele dia” (contraste-se com a expressão menos definida
de Lucas: “naqueles dias”, e a completa omissão da parte de Mateus),
Jesus está dizendo que Sua morte violenta que se aproxima trará dias de
luto para Seus discípulos. Então, naquele tempo em particular (“naquele
dia”), será apropriado que jejuem como expressão de dor, o que
81
Entre as passagens bem conhecidas estão os que se acham em Mt. 11:5 (cf. Is. 35:5, 6); Lc. 4:18, 19
(cf. Is. 61:1, 2); e 22:37 (cf. Is. 53:12). Bem conhecida é a passagem a respeito do nascimento virginal
(Mt. 1:23; cf. Is. 7:14; 8:8), mas este texto é uma citação de Mateus, não de Cristo.
Marcos (William Hendriksen) 137
certamente ocorreu. João 16:1–22 assinala que o luto não duraria por
muito tempo.
Esta passagem é muito prático e está cheio de consolo,
especialmente para o dia de hoje. Isto se deve a que a verdade central
que Jesus revela aqui é que os que reconhecem a Cristo como seu Senhor
e Salvador, não devem ter uma atitude de tristeza, mas sim seu coração e
mente devem estar cheias de alegria. Se é verdade que a verdade de Deus
conosco” (Emanuel) significa alegria para os crentes, a realidade de
Deus em nós” (que é a situação em e depois do Pentecostes) desperta em
cada filho de Deus uma alegria inefável e cheia de glória. Cristo veio ao
mundo para brindar alegria abundante, e mediante Sua morte sacrifical
trouxe-nos salvação plena e gratuita (veja-se Lc. 2:10, “novas de grande
alegria”; Lc. 24:52 “eles … voltaram para Jerusalém com grande
alegria”; Jo. 15:11: “e sua alegria seja cumprida”; 17:13: “para que
tenham minha alegria cumprida em si mesmos”). Os apóstolos
aprenderam essa lição (Rm. 5:11; 15:13; Gl 5:22; toda a epístola aos
Filipenses; 1Pe. 1:8; 4:13; 1Jo. 1:4; 2Jo. 12).
Por meio de duas ilustrações tomadas da vida diária, Jesus deixa
claro quão inapropriado teria sido que os discípulos jejuassem agora,
como se com a vinda de Cristo lhes houvesse trazido uma grande
calamidade. Com Sua vinda Jesus trouxe cura aos doentes, libertação aos
endemoninhados, alivio aos afligidos, purificação aos leprosos, comida
aos famintos, restauração aos aleijados e, sobretudo, salvação aos
perdidos no pecado. Este nova ordem de coisas que não encaixa no
antigo molde do jejum ordenado por homens. A primeira figura é a que
segue:
Marcos (William Hendriksen) 138
82 83 84 85
21. Ninguém costura remendo de pano novo em veste
velha; porque o remendo novo tira parte da veste velha, e fica maior
a rotura.
Se sobre uma veste velha coloca-se um remendo de lã firme ou
tecido novo, o resultado será que (especialmente se o objeto for molhado
e o remendo encolhe) o tecido velho onde se fez a costura se romperá.
Marcos diz que o tecido novo — firme e resistente — tirará do velho, e
isto tornará pior a ruptura. O remendo que devia solucionar um problema
termina criando um problema maior.
A segunda figura reforça a primeira:
22. Ninguém põe vinho novo em odres velhos; do contrário, o
vinho romperá os odres; e tanto se perde o vinho como os odres. Mas
põe-se vinho novo em odres novos.
O que Jesus quer dizer é que a salvação que trazia não harmonizava
com jejuns que careciam de alegria. Os odres velhos não se adaptam ao
vinho novo que se ainda se acha em fermentação. Tal classe de vinho
romperia os odres, resultando na perda deles e do vinho. De igual
maneira, este é um vinho novo de redenção e riquezas para todo aquele
que esteja disposto a aceitar estas bênçãos, incluindo até os publicanos e
os pecadores. Por isso, este vinho deve deitar-se em odres novos, quer
dizer, em odres firmes e resistentes, 86 odres de gratidão, liberdade e
serviço espontâneo para a glória de Deus.
82
Marcos escreve ἐπεράπτει, “cose sobre”, onde Mateus e Lucas têm “põe sobre”. A palavra de
Marcos basicamente significa: dar pontos sobre. Cf. “rapsódia”, que é uma canção alinhavada, uma
poesia épica.
83
Em grego, a palavra ἐπίβλημα, algo colocado sobre, ou seja, um “emplastro”, ou “remendo”,
poderia também significar colcha, abrigo, manta, vendagem, etc. Quanto a “manta”, veja-se Is. 3:22
LXX.
84
O verbo básico é κνάπτω, carder ou pentear lã, preparar tecido. Então ἄγναφος (aqui ἀγνάφου,
genit. sing.) significa: não preparado; portanto “novo”.
85
A palavra ῥάκος (aqui ῥάκους, genit. sing.) indica uma parte de tecido. Às vezes refere-se a um
“trapo” (cf. Jr. 38:11 = LXX 45:11).
86
Note-se que aqui e no versículo precedente (“o novo do velho”), o original usa o adjetivo καινός,
“novo” com ênfase na qualidade; em contraste com νέος (como em “vinho novo”), que quer dizer
“novo” com referência ao tempo.
Marcos (William Hendriksen) 139
Mc. 2:23–28 - O Filho do Homem faz valer Sua autoridade como
Senhor até do sábado; arrancando espigas no sábado
Cf. Mt. 12:1–8; Lc. 6:1–5

Como já se indicou, o Evangelho de Mateus afirma de maneira


clara que a questão relacionada com o jejum foi seguida por um duplo
milagre: a. a volta à vida da filha de um chefe, e b. a cura da mulher que
tocou o manto de Jesus. Marcos e Lucas tendo dado a conhecer o
problema sobre o jejum, agora voltam o relógio para trás e relatam duas
controvérsias a respeito do sábado. Os três Sinóticos contam as duas
histórias em sucessão imediata: a história aproxima arrancar espigas no
sábado e a história a respeito da cura do homem da mão “seca” em outro
sábado. 87 Pelo fato de que nem Marcos nem Lucas indicam que haja
alguma relação cronológica entre a questão sobre o jejum e a história a
respeito de arrancar espigas no sábado, obviamente não existe conflito
cronológico algum.
Há muita incerteza quanto ao tempo exato em que ocorreram os
conflitos a respeito do sábado. Os quatro evangelhos contêm três destas
narrações, registrando acontecimentos que poderiam ter tido muito
estreita relação com referência ao tempo em que ocorreram. Muito digna
de consideração é a teoria que diz que os três episódios sucederam em
estreita sequência entre a primavera e meados do verão do ano 28 d.C.
(veja-se Jo. 5:1, 16; logo Mt. 12:1; finalmente, Lc. 6:11, 12). Penso que
poderiam ter sucedido na seguinte ordem: a. A cura no lago, ao redor do
tempo da Páscoa (Jo. 5:1–18), b. o arrancar espigas (Mt. 12:1–8; Mc.
2:23–28; Lc. 6:1–5), e c. a cura do homem com a mão seca (Mt. 12:9–
14; Mc. 3:1–6; Lc. 6:6–11). O último destes conflitos parece ter sido
seguido pela eleição dos Doze e a pregação do Sermão da Montanha
(veja-se Lc. 6:11–49; cf. Mc. 3:6, 13–19).

87
Não é muito acertada a forma em que aqui se fez a divisão de capítulos em Marcos (entre Mc. 2:28
e 3:1). Nem a Mateus (Mt. 12:1–14) nem a Lucas (Lc. 6:1–11) foi imposta esta estranha separação
daquilo que deveria ficar junto.
Marcos (William Hendriksen) 140
88
23. Ora, aconteceu atravessar Jesus, em dia de sábado, as
searas, e os discípulos, ao passarem, colhiam espigas.
Embora não se indique nenhuma relação cronológica entre este
parágrafo e o precedente, Marcos bem pôde ter tido em mente uma
relação lógica. Acaba de descrever a Jesus sublinhando o fato de que os
que vivem agora em Sua presença deveriam fazer festa em vez de luto,
alegrar-se em vez de lamentar-se. O evangelista passa agora a descrever
o Mestre no ato de mostrar que a alegria, não a tristeza, deveria ser a
característica da celebração do sábado.
Evidentemente o grão estava amadurecendo. Este processo variava
segundo a altura sobre o nível do mar em que estivessem os campos. O
processo ocorria durante um período que se estendia da primavera até
meados do verão. No quente vale do Jordão, na Palestina, a cevada
amadurecida no mês de abril; na Transjordânia e a região a leste do mar
da Galileia, o trigo se colhe em agosto. O texto não indica o tempo exato
em que Jesus e seus discípulos passaram pelos campos de grão em
espiga. O lugar é ainda mais indefinido que o tempo. A. T. Robertson
sugere que o evento teve lugar “provavelmente na Galileia vindo de
volta de Jerusalém”. Esta teoria pode ser tão boa como qualquer outra. 89
Mas não é mais que uma conjetura.
A tradução “campos de grão em espiga” se apoia fortemente no
contexto. Literal e etimologicamente a referência é simplesmente a “o
que foi semeado”. Entretanto, o contexto mostra que quando passavam
pelos campos, o tempo da colheita tinha chegado ou estava para chegar.
Mateus informa que os discípulos tinham fome (Mt. 12:1). Os
Sinóticos contam de forma variada o que fizeram para aliviar a fome.
Marcos declara que ao atravessar os campos, estes homens começaram a
arrancar 90 espigas de grão. Mateus acrescenta, “e comê-las”. O comer
está implícito em Mc. 2:26. Lucas é mais completo neste ponto que
88
A respeito de ἐγένετο αὑτὸν παραπορεύεσθαι, veja-se BAGD, p. 158, sob 3e.
89
Harmony of the Gospels (Nova York, 1930), p. 44.
90
O particípio τίλλοντες expressa a ideia central.
Marcos (William Hendriksen) 141
qualquer dos outros, e lê, “Seus discípulos arrancavam e comiam as
espigas de grão, esfregando-as entre as mãos”. O que faziam era
totalmente legítimo. Enquanto que o viajante não colocasse a foice nas
espigas do campo alheio, era-lhe permitido arrancar espigas (Dt. 23:25).
Não obstante, os que odiavam a Cristo e buscavam alguma desculpa
para condená-Lo, reagiram de maneira imediata e adversa, segundo se vê
pelo versículo
24. Advertiram-no os fariseus: Vê! Por que fazem o que não é
lícito aos sábados?
Aqui aparece uma partícula grega que deve ser traduzida de
maneira variada conforme o exija o contexto.91 No presente caso
desaprova fortemente a ação dos discípulos. Segundo o modo de ver dos
fariseus, essa ação demandava uma correção imediata; em consequência,
“Olhe” ou “Olhe agora”. Tanto em Marcos como em Lucas os fariseus
fazem uma pergunta: “Por que fazem o que não é lícito aos sábados?”.
Mas em Lucas a pergunta está dirigida a Jesus, “Por que fazem …?”. Em
ambos os casos a pergunta implica claramente uma acusação, uma
denúncia. O que Marcos sugere, Mateus 12:2 o diz claramente. Mateus
omite a forma de pergunta e nos informa da direta declaração dos
fariseus, “Seus discípulos fazem o que não está permitido no sábado”.
Tanto Jesus como Seus discípulos estão evidentemente implicados. Os
discípulos arrancando espigas e Jesus aprovando o que eles faziam. Por
isso, não existe aqui nenhuma discrepância real. A crítica dirigida contra
Jesus, era também contra todo o grupo
Os fariseus raciocinavam desta maneira: Acaso não está proibido
trabalhar no sábado (Êx. 20:8–11; 34:21; Dt. 5:12–15)? Não prepararam
os rabinos uma lista de trinta e nove trabalhos principais, cada um
subdividido em seis categorias menores, todas as quais estavam
proibidas no sábado? E, segundo a lista, não figurava o arrancar espigas
91
A palavra Ἴδε faz ressaltar tudo aquilo que introduz. A tradução nem sempre pode ser a mesma,
pois é o contexto o que determina seu sentido em cada caso: “Vê!” em Mc. 2:24; “Eis (ou: Eis aqui)”
em Mc. 3:34; 11:21; 16:6; “Olha!” em Mc. 13:1, 21 [TB]; “Vede” Mc. 15:35; “Vê” em Mc. 15:4.
Marcos (William Hendriksen) 142
92
de grão sob a categoria de colher? E aqui se achavam estes discípulos
ocupados nesta atividade vedada, e Jesus nada fazia a respeito!
Obviamente o que sucedia era que os inimigos de Cristo estavam
sepultando a verdadeira lei de Deus sob um sem-número de torpes
tradições feitas por homens (Mc. 7:8, 9, 12, 13; cf. Mt. 15:3, 6; 23:23,
24). A lei divina em nenhum sentido proibia o que nesse momento
faziam os discípulos.
25, 26. Mas ele lhes respondeu: Nunca lestes o que fez Davi, quando
se viu em necessidade e teve fome, ele e os seus companheiros? Como
entrou na Casa de Deus, no tempo do sumo sacerdote Abiatar, e comeu os
pães da proposição, os quais não é lícito comer, senão aos sacerdotes, e
deu também aos que estavam com ele?
“Nunca lestes?”. É como se dissesse, “Vocês se orgulham de ser os
que fazem valer a lei, e seus escribas se consideram tão versados nela
para poder ensinar a outros; entretanto, vocês não conhecem o fato de
que até esta mesma lei permitiu que suas restrições cerimoniais fossem
postas de lado em caso de necessidade (observe-se que as palavras entre
aspas, “o que fez Davi, quando se viu em necessidade” só se acham em
Marcos). Alguma vez leram a respeito de Davi e os pães da
proposição?”. A alusão é ao pão consagrado, ao “pão da presença”. No
hebraico é lehem happanîm (Êx. 25:30), que Lucas 6:4 traduz literal e
corretamente. Consistia em doze pães colocados sobre uma mesa de um
metro de comprimento por 45 cm. de largura e 70 cm. de altura. A mesa
estava coberta de ouro puro, rodeada de uma moldura de ouro e equipada
com quatro anéis de ouro, um anel em cada canto. Através destes anéis
passavam varas para poder transportá-la. A descrição desta peça do
mobiliário do tabernáculo acha-se em Êx. 25:23, 24. Nos tempos antigos
esta mesa estava no Lugar Santo, não muito longe do lugar da morada de
Deus: o Lugar Santíssimo. O pão era colocado em duas filas. Os doze
pães representavam as doze tribos de Israel e simbolizavam a comunhão

92
Veja-se Sabbath 7:2, 4; SB, vol. 1, pp. 615–618; e A.T. Robertson, The Pharisees and Jesus (Nova
York, 1920), pp. 87, 88.
Marcos (William Hendriksen) 143
constante do povo com seu Deus. É como se Deus convidasse os
israelitas para Sua mesa, e os consagrasse para Ele. Mediante esta oferta
dos pães da proposição, eles reconheciam com gratidão sua dívida para
com Ele.
Todos os sábados eram trocados se os pães por pães frescos (1Sm.
21:6). Os pães que se retiravam eram comidos pelos sacerdotes. Eram
“para Arão e seus filhos”, quer dizer, para o sacerdócio. Por certo que
não eram para todo o povo (Lv. 24:9). Entretanto, diz-se que “nos dias
do Abiatar, o sumo sacerdote” (veja-se mais abaixo), o faminto Davi
entrou na “casa de Deus” (veja-se Jz. 18:31; cf. 1Rs. 1:7, 24); entrou no
(átrio do) santuário em Nobe, que era o lugar sagrado onde se guardava a
arca (1Sm. 21:1; 22:9). Quando Davi entrou, deram-lhe deste pão
consagrado. Ele o compartilhou com seus companheiros que estavam
igualmente famintos. Todos comeram, mesmo quando segundo a lei
divina o pão tinha sido designado para os sacerdotes, e nada mais que
para eles. O importante é isto: se, quando surgiu a necessidade, Davi teve
direito a passar por alto uma provisão cerimonial divinamente ordenada,
Jesus, em condições semelhantes, não tinha o direito de deixar de lado as
regulações humanas inteiramente injustificadas? Não tinha mais direito o
eminente Antítipo, quer dizer, Jesus, o Ungido de Deus num sentido
muito mais elevado que Davi? Afinal de contas, as regulações rabínicas
eram em grande medida aplicações errôneas da santa lei de Deus. Isto
era a verdade no caso presente.
Muito se tem comentado a respeito do fato de que Marcos apresenta
Jesus dizendo que o evento em conexão com Davi e seus homens teve
lugar “nos dias — ou: nos tempos — de 93 Abiatar o sumo sacerdote”.
Mas ocorre que, segundo 1 Samuel 21:1, não Abiatar, mas sim
Aimeleque quem deu a Davi o pão sagrado.

93
A preposição ἐπί tem este significado às vezes. Cf. Mt. 1:11; Lc. 3:2; 4 27; At. 11:28, etc.
Marcos (William Hendriksen) 144
Soluções propostas

1. Tanto pai e filho levavam ambos os nomes: Aimeleque e Abiatar.


Cf. 1Sm. 22:20; 2Sm. 8:17. Na primeira destas passagens Abiatar é “um
dos filhos de Aimeleque”; na segundo (veja-se também 1Cr. 18:16)
Aimeleque é “o filho do Abiatar”. 94
Avaliação. Embora isto pareceça solucionar o problema, é duvidoso
que existisse este intercâmbio de nomes em escritos tão estritamente
relacionados, que no cânon hebraico eram um só livro. Para nós são 1
Samuel e 2 Samuel. Além disso, não é acaso possível que Aimeleque
tivesse tido um filho chamado Abiatar, quem por sua vez tivesse tido um
filho chamado Aimeleque?
2. O texto hebraico não está em ordem (observe-se o contraste entre
1Sm. 22:20 e 1Cr. 24:6). 95 A passagem do Novo Testamento (Mc. 2:26)
poderia ser a glosa de um copista. 96
Avaliação. Embora em nosso intento para solucionar o problema
deva dar lugar a qualquer solução que não atribua erro ao escritor
original, não se pôde provar que o texto hebraico não esteja em ordem
(cf. Avaliação 1), e as variantes no texto de Mc. 2:26 (veja-se Aparato
Crítico) não solucionam o problema.
3. A declaração de Marcos pode ser um erro primitivo. 97
Avaliação. Se isto significar que o próprio Marcos originou o erro,
ou que o aceitou como verdade e o repetiu, deve ser rejeitado. Ao
escrever seus livros divinamente inspirados os escritores não cometeram
erros.
4. Ambos, o pai Aimeleque e o filho Abiatar, achavam-se presentes
quando Davi foi a Nobe, e ambos deram o pão a Davi. Pouco depois o
94
Esta solução já foi proposta por alguns dos pais da igreja, e foi sugerida como uma possibilidade
por (entre outros) Lenski, Op. cit., p. 81; A. B. Bruce, Op. cit., p. 356; e A. T. Robertson, Word
Pictures in the New Testament, vol. 1, 1930, p. 273.
95
J. A. C. Van Leeuwen, Op. cit., p. 42; E. R. Groenewald, Op. cit., p. 65.
96
Esta é uma das duas solucione sugeridas pelo Vincent Taylor, Op. cit., p. 217.
97
A outra sugestão do Vincent Taylor, acha-se na mesma página que acima.
Marcos (William Hendriksen) 145
pai foi assassinado; o filho chegou a ser o sumo sacerdote e registrou os
fatos. 98
Avaliação. Embora seja impossível falar de alguma maneira
definitiva, a solução proposta é a melhor que encontrei. Em apoio dela
observe-se o seguinte:
Evidentemente toda uma família de sacerdotes cooperava em Nobe
(1Sm. 22:15). Quando o rei Saul ouviu que o seu inimigo Davi lhe
tinham dada dos pães da proposição e a espada de Golias, sua ira se
desencadeou principalmente contra Aimeleque. Entretanto, não
exclusivamente sobre ele senão contra todo o sacerdócio de Nobe (1Sm.
22:17). Oitenta e cinco sacerdotes foram assassinados. Abiatar escapou,
fugiu onde Davi estava (1Sm. 22:20) e chegou a ser o sumo sacerdote,
trabalhando subsequentemente como tal junto com Zadoque. Portanto, é
claro que o homem ao qual Mc. 2:26 chama “sumo sacerdote”
certamente estava vivo e ativo quando Davi entrou no átrio99 da casa de
Deus. A ação ocorria “em sua época”.
É verdade que no momento em que deu o pão a Davi e aos seus
homens e estes o comeram, Abiatar não era ainda o sumo sacerdote.
Entretanto, isto não prova que Marcos — realmente Jesus, porque
Marcos está registrando Suas palavras — estava errado quando disse “no
tempo do sumo sacerdote Abiatar”. Não é de modo algum raro designar
um lugar ou pessoa por um nome que ainda não lhe pertence senão até
tempo depois. Assim Gn. 12:8 menciona “Betel” embora nos dias de
Abraão ainda se chamava “Luz” (Gn. 28:19). Hoje em dia nós fazemos o
mesmo. Dizemos, “Sucedeu no Maine (Michigan)”, quando queremos
dizer, “Sucedeu em Berlim, que hoje em dia chama-se Maine”. Ou, “A
casa foi vendida ao pastor Aranguiz”, embora sabemos muito bem que
quando Aranguiz comprou a casa ainda não era pastor. As Escrituras

98
Esta é a sugestão alternativa de Lenski, Op. cit., p. 81.
99
1Sm. 21:1 pareceria sugerir que não avançou além disso.
Marcos (William Hendriksen) 146
contêm muitos exemplos de expressões abreviadas — veja-se CNT sobre
João, p. 219 — assim como também nossa conversação diária.
Portanto, a solução sugerida (4) pode ser a correta. A certeza é
impossível neste assunto.
É gratuito supor com os críticos que Mateus e Lucas omitiram o
dito por Marcos porque se deram conta de que era um erro. O fato é que
sob a guia do Espírito, cada escritor dos Evangelhos fez sua própria
seleção de materiais. Nem sempre é claro entender exatamente por que
certo material que se acha num Evangelho não aparece em outros. O fato
de que às vezes algumas das mais preciosas palavras de Cristo
encontram-se apenas num Evangelho acha-se demonstrado pela
passagem que segue e que só Marcos registra:
27. E acrescentou: O sábado foi estabelecido por causa do
homem, e não o homem por causa do sábado.
Deus criou primeiro o homem, não o sábado (Gn. 1:26 – 2:3). Foi
instituído para ser bênção para o homem: para mantê-lo em boa saúde,
para fazê-lo útil e feliz, para fazê-lo santo, de modo que meditasse com
tranquilidade nas obras de seu Criador, para que possa “deleitar-se no
Senhor” (Is. 58:13, 14) e esperar com prazerosa antecipação o repouso
que resta para o povo de Deus (Hb. 4:9).
Os rabinos tinham criado muitos regulamentos minuciosos e às
vezes absurdos, restrições chatas e onerosas que incluíam a que proibia
matar a fome arrancando espigas no sábado. Desta forma, os rabinos
estavam transformando o sábado num cruel tirano e o homem em
escravo desse tirano … como se o propósito de Deus tivesse sido na
realidade fazer “o homem para o sábado”, em lugar do “sábado para o
homem”.
Jesus conclui dizendo:
28. De sorte que o Filho do Homem é senhor também do
sábado.
Quando Jesus disse, “O sábado foi estabelecido por causa do
homem”, afirmava que foi Deus quem o fez como é. Foi o Senhor e
Marcos (William Hendriksen) 147
nenhum outro que instituiu os princípios para a observância do sábado.
Toda autoridade foi dada ao Filho (Mt. 11:27, 28:18), quem é um com o
Pai (Jo. 10:30), em quem o Pai acha complacência (Mc. 1:11) e a quem o
Pai enviou ao mundo (Mc. 1:38; 9:37). Tudo isto faz com que a frase
“De sorte que” — ou: “Assim que”— dê um sentido excelente quando
vem seguida pelas palavras, “Senhor é o Filho do homem do sábado”
(ordem literal segundo o original). Maior é Ele que o templo (Mt. 12:6),
que Jonas (12:41), que Salomão (12:42) e deste modo também, que o
sábado!
Quanto a um estudo detalhado do termo “Filho do homem”, veja-se
sobre Mc. 2:10 e sobre Mateus 8:20. Naturalmente que se Jesus, como o
Filho do homem, é Senhor sobre tudo, não é então Senhor até do sábado?
Observe-se a palavra “também”, que neste relato encontra-se só em
Marcos. Como Senhor soberano, Ele tem autoridade para estabelecer
princípios que rejam esse dia. Em consequência, ninguém tem direito de
censurá-Lo quando permite aos Seus discípulos satisfazer sua fome
arrancando e comendo espigas!

Resumo do Capítulo 2

É quase impossível esquecer a ordem do conteúdo do Evangelho de


Marcos. Isto é evidente até do capítulo 1. A aparição e ministério de João
Batista, o batismo de Jesus por João e a tentação de Cristo se descrevem
na primeira parte deste capítulo (Mc. 1:1–13). Logo, depois de
transcorrer considerável tempo, Jesus chegou à Galileia com a
mensagem, “O tempo está cumprido, e o reino de Deus está próximo;
arrependei-vos e crede no evangelho”. Jesus chama os Seus primeiros
quatro discípulos e lhes promete fazê-los pescadores de homens. A
seguir se descreve um sábado muito ocupado na vida de nosso Senhor:
ensina no culto da sinagoga; também cura um endemoninhado.
Imediatamente depois entra em casa de Simão e André, e cura a sogra de
Simão. Portanto, Sua fama se propaga a tal ponto que depois do pôr do
Marcos (William Hendriksen) 148
sol (para nós o mesmo dia), cura a muitíssimos afligidos. Não é raro que
depois de um dia tão longo e fatigante sentisse a necessidade de um
longo período de comunhão com Seu Pai. Assim que, muito cedo no dia
seguinte, Simão e seus companheiros O encontram orando num lugar
solitário. Estão desejosos de levá-Lo imediatamente com eles a
Cafarnaum, pois Simão lhe diz: “Todos te buscam”. Entretanto, os
planos de Cristo são diferentes. Acompanhado pelos Seus discípulos, os
que nesta altura já se uniram a Ele, começa sua viagem pela Galileia.
Viaja de povoado em povoado, e de aldeia em aldeia, pregando nas
sinagogas e expulsando demônios. Nesta excursão também purifica um
leproso (Mc. 1:14–45).
É fácil memorizar o cap. 2. A excursão pela Galileia terminou.
Jesus volta a entrar em Cafarnaum. Numa casa repleta de gente
comunica bênção à alma e ao corpo de um paralítico (vv. 1–12). Do
ambiente sufocante e tenso (pensemos nos fariseus e seus sinistros
planos) da casa repleta e opressivamente apinhada, o Mestre sai a
caminhar pela refrescante brisa marinha da Galileia. Está à vista o posto
de Levi, o coletor de impostos. Esse “publicano” chega a ser discípulo de
Cristo e Lhe prepara um banquete. Muitos publicanos se acham
presentes. A associação íntima de Jesus com esta gente desprezível é
adversamente criticada por escribas fariseus. Eles escutam a divina
resposta, “Os sãos não precisam de médico, e sim os doentes; não vim
chamar justos, e sim pecadores”. Embora provavelmente não haja
estreita relação cronológica entre este banquete sob o hospitaleiro teto de
Levi e a questão sobre o jejum relatado a seguir, a transição lógica é
muito natural. Jesus assinala que os que têm o noivo consigo não
costumam a jejuar. Cristo dá uma dupla ilustração: um remendo de
tecido novo nunca fica bem sobre uma veste velha; e: o vinho novo não
se lança em odres velhos. Por meio destas ilustrações, Jesus faz ver que
para aqueles que O receberam a tristeza foi substituída pela alegria, o
temor pela liberdade. Também significa que se devia abandonar o antigo
temor e preocupação operados pelos regulamentos rabínicos. De modo
Marcos (William Hendriksen) 149
que, Marcos termina este capítulo com a narração de uma controvérsia a
respeito do sábado (arrancar espigas nesse dia), a qual vai seguida
imediatamente (Mc. 3:1–6) por outra seção similar (a mão seca). Tudo
está ordenado de maneira muito natural e em Marcos, em alto grau
cronológico.
As quatro seções do cap. 2 podem resumir-se como segue:
a. A cura de um paralítico (vv. 1–12). Tendo voltado para
Cafarnaum de sua gira pela Galileia, Jesus prega a palavra numa casa
repleta de gente. Um paralítico é baixado por quatro homens pelo teto
aos pés de Jesus. O compreensivo médico, tanto da alma como do corpo,
profundamente comovido pela fé dos cinco e percebendo que o que
principalmente afligia a esta desgraçada pessoa era sua culpabilidade aos
olhos de Deus, pronuncia Seu perdão pleno e gratuito. Os escribas
buscam como encontrar alguma falta em seu inimigo Jesus, e O acusam
de blasfêmia dentro de seus corações, porque pensam: “Quem pode
perdoar pecados, senão um, que é Deus?” Pronunciar perdão é muito
fácil. Que faça algo em favor do homem fisicamente aflito! Se for
incapaz de fazer isto, também é falsa Sua pretensão de abençoar a alma
daquele pobre homem. Este era seu raciocínio. De maneira instantânea e
completa, Jesus liberta o paralítico de sua enfermidade, e assim “o Filho
do homem” prova Sua pretensão diante do assombro de todos.
b. A chamada de Levi (= Mateus), o “publicano” ou coletor de
impostos (vv. 13–17). Caminhando pela praia, Jesus vê-se
imediatamente rodeado de uma grande multidão. Ensina-lhes e depois
chama Levi para ser um de Seus discípulos. O chamado, “Segue-me”, é
obedecido imediatamente. Não só isto, mas também o publicano
sacrifica sua lucrativa posição e até prepara um banquete em honra de
Jesus. Muitos publicanos estão presentes também. Os fariseus lançam a
uma pergunta aos discípulos: “Como é que ele come com os publicanos
e pecadores?” Ao responder às críticas dos fariseus, Jesus lhes lembra
que tinha vindo justamente para chamar os pecadores, não os
(pretendidos) justos.
Marcos (William Hendriksen) 150
c. A pergunta sobre o jejum (vv. 18–22). Uma vez os discípulos de
João Batista estavam jejuando, assim como os fariseus. Então
perguntaram a Jesus por que os Seus discípulos não jejuavam.
Respondeu-lhes que em sua qualidade de “companheiros do noivo” seria
muito impróprio e impossível que eles jejuassem. Entrega duas
ilustrações: não se coloca um remendo de tecido novo sobre uma veste
velha e gasta; o vinho novo não se lança em odres velhos, duros e
rígidos. Por meio destas ilustrações, Jesus sublinha a lição de que a nova
mensagem que traz é nova ao compará-la com o ensino velho e legalista
dos escribas. Esta nova mensagem requer uma recepção nova, de fé e
liberdade, não de temores e jejum.
d. O Filho do homem faz valer Sua autoridade como Senhor
também do sábado (vv. 23–28). Este mesmo espírito de fé e liberdade, de
alegria em lugar de tristeza, deve ser característico do sábado também.
Os discípulos estavam acossados pela fome e, por isso, foram arrancar
espigas. Quando os fariseus censuram a Jesus por permitir que Seus
discípulos arranquem (e comam) espigas naquela dia, responde-lhes que
o sábado foi feito para o homem, não o homem para o sábado. Diz-lhes
que “o Filho do homem” é Senhor também do sábado. Em circunstâncias
normais teria sido pecado que Davi comesse dos pães da proposição.
Mas se em tempo de necessidade foi lícito para Davi passar por alto um
estatuto divino (veja-se Lv. 24:9; 1Sm. 21:1–6), não tinha o Senhor do
sábado o direito de deixar de lado uma regulação meramente humana?
Ainda não enfatizamos um aspecto muito significativo do capítulo
2. Resulta ser o capítulo no qual, quer direta ou indiretamente, Jesus
atribui a Si mesmo quatro nomes, títulos, designações ou descrições de
grande significado. Alguns dos capítulos restantes do Evangelho de
Marcos também realçam a glória do Filho por meio de apelativos que
Ele usa com referência a Si mesmo. Começando então, com o cap. 2
note-se os seguintes:
O Filho do homem (Mc. 2:10, 28; e veja-se sobre Mc. 2:10), o
Médico (Mc. 2:17), o Marido (Mc. 2:19–20), o Senhor até do sábado
Marcos (William Hendriksen) 151
(Mc. 2:28), aquele que ata a Belzebu, quer dizer, Satanás (Mc. 3:22, 23),
o Senhor (Mc. 5:19, 20; 11:3), o Profeta (Mc. 6:4), o Compassivo (Mc.
8:2; cf. 1:41), o Cristo (Mc. 8:29, 30), o Filho do Pai (Mc. 8:38), o
Resgate por muitos (Mc. 10:45), o Filho amado do dono da vinha (Mc.
12:6, 7), a Pedra desprezada que veio a ser a pedra angular (Mc. 12:10),
o Filho e Senhor de Davi (Mc. 12:35, 37), o Mestre (Mc. 14:14), o Pastor
(Mc. 14:27), o Filho do Bendito (Mc. 14:61, 62), o Rei dos judeus (Mc.
15:2).
Marcos (William Hendriksen) 152
MARCOS 3
Mc. 3:1–6 - O Filho do Homem faz valer sua autoridade como
Senhor até do sábado; a mão seca
Cf. Mt. 12:9–14; Lc. 6:6–11

Esta história acha-se nos três sinóticos (Mt. 12; Mc. 3; Lc. 6).
Todos relatam: a. que num sábado Jesus em algum lugar assistiu à
sinagoga (cf. “foi à igreja”) e viu um homem que tinha uma mão
paralisada; b. que também estavam presentes alguns fariseus com o fim
de achar motivos para acusar a Jesus; c. que o Senhor disse ao homem
que estendesse sua mão; d. que a obediência a este mandato deu como
resultado sua completa cura; e e. que os fariseus deliberaram sobre o que
se devia fazer nesta situação.
Nas distintas versões dos Evangelhos há uma variedade muito
interessante quanto a outros detalhes, mostrando que seus escritores não
eram meros copistas. Não existem contradições. Ao combinar os
diversos detalhes mencionados nas três apresentações, obtemos a
seguinte narração, vívida e dramática:
Um novo sábado começou. Jesus entra na sinagoga e começa a
ensinar (Lc. 6:6). No culto há um homem com uma mão seca ou
paralisada. Somos informados que é sua mão direita (Lc. 6:6; cf. Cl.
4:14). Os inimigos de Jesus, a saber, os fariseus — e escribas (Lc. 6:7)
— observam-no muito de perto (Mc. 3:2; Lc. 6:7), com o fim de Lhe
fazer uma acusação. Mas Jesus conhece seus pensamentos (Lc. 6:8), e
lhes induz a expressar o que estão pensando. Então perguntam: “É lícito
curar no sábado”? (Mt. 12:10). Jesus volta-se para o homem, dizendo
que se levante e que se aproxime (Mc. 3:3; Lc. 6:8). Jesus pergunta a
seus adversários, “É lícito nos sábados fazer o bem ou fazer o mal?
Salvar a vida ou tirá-la?” (Mc. 3:4a; Lc. 6:9). Como eles ficaram sem
responder, Jesus os olhe com indignação, entristecido pela dureza de
seus corações (Mc. 3:4b, 5a). E prossegue, “Qual dentre vós será o
Marcos (William Hendriksen) 153
homem que, tendo uma ovelha, e, num sábado, esta cair numa cova, não
fará todo o esforço, tirando-a dali? Ora, quanto mais vale um homem que
uma ovelha? Logo, é lícito, nos sábados, fazer o bem” (Mt. 12:11, 12).100
Jesus então lhe diz ao homem, “Estende a mão”. Tão completa foi a cura
que a mão (direita) ficou “sã como a outra” (Mt. 12:13). Seus
adversários estavam furiosos (Lc. 6:11). Quando abandonaram a
sinagoga (Mt. 12:14; Mc. 3:6), não só discutiram entre si o que deviam
fazer contra Jesus (Lc. 6:11b), mas também ficaram em contato com os
herodianos (Mc. 6:6a), para urdir um complô junto com eles. O
propósito era maligno: destruir a Jesus (Mt. 12:14; Mc. 3:6b).
Voltando para relato do texto de Marcos, lemos:
1. De novo, entrou Jesus na sinagoga e estava ali um homem
que tinha ressequida uma das mãos.
Não se informa onde estava localizada esta sinagoga. Tratava-se,
talvez, da que estava em Cafarnaum? Marcos e Lucas relatam esta
história em estreita relação com a da eleição dos Doze e a subida ao
monte (Mc. 3:13–19; Lc. 6:12–49). Este “monte” ou “colina” não estava
muito longe de Cafarnaum (Lc. 7:1; cf. Mt. 8:5), e, por isso, é bem
possível que se tratasse de uma sinagoga num lugar vizinho ao que Jesus
tinha como centro de atividades. Mas não podemos estar seguros.
Um homem com uma mão aleijada entra na sinagoga nesse sábado.
O Evangelho apócrifo segundo Hebreus diz que o homem era um
pedreiro, que solicitava de Jesus que lhe curasse para não ter que passar
sua vida mendigando. Seja como for, o ponto principal é que se trata de
um sábado. Naquele tempo havia diferenças de opinião entre os
discípulos de Shammai, que tinham uma interpretação muito estrita da
observância do sábado, e os de Hillel, cujo ponto de vista era mais
indulgente. Os mais rigorosos dominavam em Jerusalém, e os mais
tolerantes na Galileia. Não obstante, ambos os grupos apoiavam sem

100
Naturalmente que a resposta afirmativa à sua própria pergunta já estava implícita na própria
pergunta.
Marcos (William Hendriksen) 154
reserva a norma de que no sábado só se permitia curar se a vida de um
homem se achasse realmente em perigo. 101 Atrever-se-ia Jesus a opor-se
a esta regra que os fariseus consideravam como um princípio básico e
bem estabelecido que não devia violar-se?
É inútil especular sobre a causa que produziu a paralisação da mão
do homem. Há aqueles que pensam que a forma da palavra original
usada aqui em Mc. 3:1 (traduzida “seca” ou “paralisada”) indica que o
defeito da mão não era congênito, mas o resultado de uma enfermidade
ou acidente. 102 Isto talvez seja entrar em muitos detalhes. Poderia ser
assim, mas não se pode provar. Muito mais importante é o que segue no
versículo
2. E estavam observando a Jesus para ver se o curaria em dia
de sábado, a fim de o acusarem.
Em seu foro íntimo, os antagonistas desejavam que Jesus pisoteasse
esta norma com relação ao sábado Quais eram estes adversários?
Segundo Mateus 12:14 e Marcos 3:6 eram os fariseus; ao que Lucas
acrescenta “os escribas”. Olham a Jesus muito de perto e O observam
escrupulosamente com um propósito ímpio (veja-se também Lc. 14:1;
20:20). 103 Queriam ver se Jesus realmente curaria este homem no
sábado. Se assim o fizesse, eles estariam em condições de acusá-Lo por
realizar uma cura desnecessária nesse dia.
Jesus, entretanto, não se retrai do propósito de mostrar Sua bondade
a este homem:
3. E disse Jesus ao homem da mão ressequida: Vem para o
meio!
O Senhor toma claramente a iniciativa. Confronta-se todas as
maquinações secretas e dissimuladas que pudessem haver, e desafia a
101
Veja-se S. BK., Vol. I, pp. 622–629.
102
Assim, por exemplo, Swete, op. cit., p. 50; Robertson, Word Pictures, Vol. I, p. 275. Mas veja-se
Vincent Taylor, op cit., p. 221. A palavra ἐξηραμμένην é o particípio perf. passivo de ξηραίνω. Mt.
12:10 e Lc. 6:6 usam o adjetivo ξηρά. Mas também Marcos em 3:3.
103
Em data mais tardia, os judeus da cidade de Damasco vigiariam as portas da cidade “de dia e de
noite”, com os mesmos propósitos sinistros de impedir que Paulo escapasse (At. 9:24).
Marcos (William Hendriksen) 155
vigilância furtiva e os planos ocultos. Além disso, talvez desejava
despertar a compaixão da concorrência em favor daquela pessoa aleijada.
Assim que diz ao homem que se levante e fique onde todos possam vê-
lo.
4. Então, lhes perguntou: É lícito nos sábados fazer o bem ou
fazer o mal? Salvar a vida ou tirá-la?
Não eram os fariseus e os escribas os mesmos que sempre estavam
afirmando que eles sabiam o que era “permissível”, “lícito” e, portanto,
“justo”? Que deem então sua sábia opinião! Naturalmente que até uma
criança tivesse sabido qual devia ser a resposta a pergunta de Cristo. Se
for lícito fazer o bem — sobre isso veja-se também Lc. 6:9, 33, 35; 1Pe.
2:14, 15, 20; 3:6, 17; 4:19; 3Jo. 11 — qualquer dia comum da semana,
não tem que ser justo fazer o bem no sábado? Além disso, não sabiam
que o Antigo Testamento demandava e sublinhava que se devia fazer o
bem com relação a Deus (amá-Lo, servi-Lo e deleitar-se nEle) e com
relação ao próximo (alimentá-lo, vesti-lo e deixar de oprimi-lo)? E não
estava tudo isto num contexto de jejum e respeito ao sábado? Que
estranho resulta que aqueles críticos não lembrassem os claros e diáfanos
ensinos de Isaías 56:6; 58:6–14! Deus tinha insistido com Israel a usar o
sábado com o mesmo propósito com que Jesus o estava usando neste
momento e sempre. Não obstante, os que se supunham que eram peritos
na lei achavam falta nEle. Entretanto, Jesus foi ainda mais fundo e pôs
de manifesto a perversidade de Seus críticos de maneira inequívoca;
porque não só perguntou se no sábado estava permitido fazer o bem ou
salvar a vida, mas acrescentou, “… fazer o mal … matar?”
Evidentemente, se é impróprio fazer o mal ou matar nos outros seis dias
da semana, não será imensamente mais impróprio dedicar-se a essas
sinistras atividades no dia especificamente apartado para honrar a Deus e
mostrar misericórdia ao próximo? Não obstante, estes inimigos se
achavam precisamente ocupados em fazer o mal e matar naquele dia
santo! Com suas intenções já estavam danificando o Messias, ao enviado
pelo Pai. Estavam ocupados em planejar como matá-Lo! (veja-se o v. 6
Marcos (William Hendriksen) 156
como evidência; e cf. Mt. 5:21, 22; 1Jo. 3:15). Tomara que se tivessem
arrependido e confessado sua maldade naquele momento! Mas eles
ficaram em silêncio. 104
5. Olhando-os ao redor, indignado e condoído com a dureza do
seu coração, disse ao homem: Estende a mão.
Marcos entrega uma descrição muito vivaz. Escreve como se
estivesse relatando as próprias palavras pronunciadas por uma
testemunha ocular, coisa que era o que, sem dúvida, estava fazendo,
visto que Pedro foi testemunha ocular. 105
Marcos declara que a forma em que Jesus olhou aos Seus críticos
foi “indignado”. Quanto a esta palavra “indignação” ou “ira” veja-se Mt.
3:7; Lc. 3:7; 21:23, Jo. 3:36; e as muitas referências à ira divina nas
epístolas e no Apocalipse. De maneira similar, mais adiante Jesus Se
indignaria ao notar que os discípulos tentavam impedir que lhe
trouxessem os pequeninos, para que Ele os tocasse (Mc. 10:14).
Não faz falta assinalar que nada mau havia em tal indignação, ou
em tão intensa aversão e desaprovação. Na realidade só se trata de uma
consequência necessária do amor. Segundo o relato de Marcos 3, os
fariseus apreciavam mais o ritualismo de fabricação humana que o
cuidado que Deus quer que tenhamos para com o ser humano. É evidente
que para eles era mais importante a rígida aderência à uma regra rabínica
que a felicidade de uma criatura humana. Por outro lado, Jesus Se
condoía desta pessoa aleijada. Daí que estivesse terrivelmente indignado
com aqueles ritualistas de tão duro coração. Mas mesmo assim, Sua
104
Note-se o tempo imperfeito ἐσιώπων.
105
A expressão usada por Marcos, καὶ περιβλεψάμενος αὑτούς, literalmente diz: “e havendo olhado
em redor a eles”. Esta expressão parece-se à que se encontra em Mc. 3:34 e 10:23 e que em ambos os
casos refere-se à forma em que Jesus olhou aos Seus discípulos. Em Mc. 5:32 a referência é ao olhar
que dirigiu à multidão ao seu redor para ver quem Lhe havia tocado; e em Mc. 11:11 descreve-se a
Jesus como olhando ao redor a tudo o que havia no templo. No monte da transfiguração, os discípulos
“havendo olhado em redor” não viram ninguém com eles senão a Jesus somente (Mc. 9:8). Com a
exceção de Mc. 5:32 (o imperfeito), Marcos sempre usa o particípio aoristo. Além do Evangelho de
Marcos, esta palavra e a vívida referência ao olhar de Cristo se acham somente em Lc. 6:10a, onde
Lucas imita Marcos, de quem provavelmente tomou tais palavras.
Marcos (William Hendriksen) 157
indignação estava temperada pela tristeza: estava profundamente triste
pelo endurecimento de seu coração, quer dizer, por sua estupidez,
insensibilidade e obstinação espiritual (cf. Rm. 11:25; Ef. 4:18). Estamos
certos ao dizer que Jesus “se compadeceu” inclusive daqueles rígidos
tradicionalistas? (cf. Lc. 23:24). Como quer que seja, é significativo que
segundo os tempos verbais usados no original, o olhar de indignação foi
momentâneo, conquanto a profunda tristeza foi contínua e duradoura. 106
Um frio silêncio se estendeu entre as filas dos críticos. Contendo a
respiração, outros também observam, perguntando-se o que sucederá
agora. O ambiente da sinagoga está carregado de nervosismo e
expectação. O homem da mão “seca” ainda está ali, de pé, à vista de toda
a concorrência. Jesus está prestes a levar a cabo o milagre que a situação
requer. Deve agir agora, não mais tarde. Porque se espera até o dia
seguinte, sua conduta se interpretará como sinal de que Ele admite que é
mau realizar atos de cura em dias de sábado (com exceção dos casos de
vida ou morte). Semelhante demora teria aumentado o erro. Isto não
devia ocorrer. Aquele era o momento preciso. Assim que, depois de
olhar fixamente ao seu redor, Jesus disse ao homem aleijado, “Estende
(ou: estira) a mão”. Ele obedece imediatamente: Estendeu-a, e a mão
lhe foi restaurada. A cura foi instantânea e completa (cf. 1Rs. 13:6).
Não fez falta alguma outro tratamento nem exames médicos. De uma
forma que resulta muito misteriosa para a compreensão de qualquer
mortal, o Salvador tinha concentrado Sua mente na situação deste pobre
homem, e mediante Seu poder e compaixão tinha desejado e realizado a
cura; e isto não se fez “em algum canto escuro” mas à vista de todos os
presentes.
Que efeito teve isto sobre os legalistas? Resposta:

106
Vários expositores creem que Mateus e Lucas omitiram a frase “com indignação” porque não
desejavam atribuir esta emoção a Jesus. Mas uma explicação mais razoável da diferença entre Marcos
e os outros dois evangelistas poderia ser a seguinte: que o relato de Marcos é o resultado da pregação
entusiasta e emotiva de Simão Pedro, o que faz com que Marcos seja em muitos casos o mais
detalhado e animado.
Marcos (William Hendriksen) 158
6. Retirando-se os fariseus, conspiravam logo com os
herodianos, contra ele, em como lhe tirariam a vida.
Os fariseus não só abandonaram a sinagoga; fizeram-no mal-
humorados. Estavam furiosos (Lc. 6:11). O fato de que um aleijado
tivesse sido libertado de seu grave impedimento não lhes afetou no
mínimo que seja. Não se alegraram por este homem, nem lhes produziu
uma atitude amistosa para com Aquele que cura. O que os incomodou foi
que eles e seu tradicionalismo tivessem sofrido uma derrota humilhante
aos olhos de toda a concorrência. Que imensa diferença entre a
indignação de Cristo, totalmente desinteressado (Mc. 3:5) e seu
ressentimento totalmente egoísta! Além disso, como indica a palavra
“imediatamente”, aqueles homens não perderam tempo para planejar a
destruição de seu adversário. Imediatamente começaram suas intrigas,
escolhendo como sequazes — incrivelmente — os muito ímpios e
mundanos partidários de Herodes Antipas e sua família. Uma estranha
aliança entre os santarrões e os sacrílegos! (veja-se também 12:13 e Mt.
22:16).

Não obstante, um pouco de reflexão bem pode conduzir à conclusão


de que aquela ímpia associação não era tão estranha. A vida e os ensinos
de Jesus encerravam uma denúncia da mundanalidade, e, portanto, do
modo de vida que caracterizava os herodianos. Além disso, os
herodianos eram amantes da política do status quo, e não veriam com
bons olhos que grandes multidões seguissem a Cristo, porque isto
poderia conter em si a semente da rebelião e a revolução política. Assim
que, se os herodianos desejam estar incluídos no complô para levar a
cabo a destruição de Jesus, sua cooperação seria bem recebida e
apreciada pelos fariseus. Qualquer coisa era válida a fim de livrar-se de
Jesus!
Marcos (William Hendriksen) 159
Mc. 3:7–12 - Jesus ensina e cura grandes multidões junto ao mar
Cf. Mt. 12:15–21

7. Jesus retirou-se com os seus discípulos para o mar, e uma grande


multidão vinda da Galileia o seguia [NVI].
Até aqui Marcos mencionou quatro conflitos 107 — quer seja diretos
ou indiretos — entre Jesus e os fariseus (Mc. 2:6–11; 2:15–17; 2:23–28;
3:1–6). Os mais inflamados destes foram o primeiro, quando em seu foro
íntimo os adversários acusaram a Jesus de blasfêmia, e o quarto, quando
começaram a forjar a forma em que poderiam matá-Lo. Ao finalizar a
primeira confrontação, Jesus Se dirigiu à praia. Não temos que nos
surpreender, portanto, de que também agora, depois do quarto choque,
Ele Se retire para a praia. Em ambos os casos é do interior de um edifício
(casa repleta, sinagoga) de onde Se retira rumo à margem do mar; na
primeira vez, depois de curar a um paralítico; agora, depois de restaurar
uma mão paralisada. Devemos ter em mente também que o momento
para a confrontação decisiva com as autoridades religiosas ainda não
tinha chegado. Segundo o relógio do Pai, o Calvário se acha ainda a certa
distância. No momento, a praia se adapta melhor que a sinagoga ao
propósito do Mestre.
Os discípulos acompanham Jesus à praia. Pelo Evangelho de
Marcos sabemos que Simão, André, Tiago, João, e Mateus haviam aceito
a chamada para ser discípulos de Cristo (Mc. 1:16–20; 2:13, 14).
Segundo João 1:35–51, Filipe e Natanael também tinham sido
acrescentados ao grupo. Todos eles se achavam presentes com Jesus
neste momento? Algum outro? Os cinco que Marcos menciona, sem
Filipe e Natanael? O que quer que seja, é claro que os Doze não tinham
sido designados ainda como corpo apostólico. Visto que o ministério
galileu ainda prosseguia, não nos surpreende que uma grande multidão
da Galileia seguisse a Jesus. Deve ter-se em mente que já muitos

107
Mas alguns dizem “cinco”, porque incluiriam Mc. 2:18–22.
Marcos (William Hendriksen) 160
doentes, endemoninhados e aleijados tinham recebido a bênção do poder
e o amor de Cristo para curar, resgatar e restaurar (veja-se Mc. 1:29–34,
39–42; 2:1–12; 3:1–6). Tudo isto teria que continuar (veja-se vv. 10–12).
As boas novas relativas ao que estava sucedendo na Galileia
continuavam chegando a outros lugares, tanto dentro da nação como fora
dela:
8. Quando ouviram a respeito de tudo o que ele estava fazendo,
muitas pessoas procedentes da Judeia, de Jerusalém, da Idumeia, das
regiões do outro lado do Jordão e dos arredores de Tiro e de Sidom foram
atrás dele [NVI].
Os informes seguiam chegando, porque Cristo seguia fazendo Sua
obra. Assim que as pessoas vinham em grande número e de vários
lugares diferentes. Vinham da Judeia, o que incluía Jerusalém e a parte
sul. Também vinham da fronteira sul da Palestina, quer dizer, da
Idumeia, a qual tinha sido conquistada por João Hircano e cuja
população tinha sido forçada “a observar as leis dos judeus” (Josefo,
Antiguidades XIII. 257). Vinham também da região que está ao leste, do
outro lado do Jordão (chamada Transjordânia ou Pereia), a qual se
estendia de além de Macaeros ao sul, quase até Pella ao norte, região
“em sua maior parte deserta e agreste”, mas misturada com “trechos de
muito bom solo apto para todo cultivo” (Josefo, Guerra judaica III. 44–
47. Com relação a isto veja-se também 10:1; e cf. Mt. 4:15, 25; 19:1; Jo.
1:28; 3:26; 10:40). Vieram inclusive da Fenícia, a região ao redor de
Tiro e Sidom, contígua ao mediterrâneo, a noroeste da Galileia (cf. Mc.
7:24, 31; veja-se também 1Cr. 14:1; 22:4; Sl 45:12; 83:7; 87:4; Mt.
11:21, 22; At. 21:3–7). As pessoas vinham a Cristo de todos os lugares,
principalmente por causa de seus ininterruptos milagres, pois muitos
buscavam cura para eles e/ou seus familiares.
A magnitude daquela multidão e o grande desejo da gente de
aproximar-se o bastante para O tocar, causaram um problema:
9, 10. Então, recomendou a seus discípulos que sempre lhe
tivessem pronto um barquinho, por causa da multidão, a fim de não
Marcos (William Hendriksen) 161
o comprimirem. Pois curava a muitos, de modo que todos os que
padeciam de qualquer enfermidade se arrojavam a ele para o tocar.
Jesus já tinha curado a muitos. Por isso as pessoas estavam
convencidas de Seu poder e boa disposição para os libertar de seus
“açoites” ou enfermidades (cf. Mc. 5:29, 34; Lc. 7:21; e veja-se o
reconfortante Hb. 12:6). Portanto, não queriam esperar que Jesus os
tocasse, e se amontoavam (literalmente “caíam”) sobre Ele a fim de O
tocar. Quanto ao significado de um ou outro tocar veja-se em Mc. 1:41;
cf. 5:27–31; 6:56.
Portanto, como medida de segurança, Jesus disse a Seus discípulos
que tivessem um barco preparado. O texto original usa um diminutivo.
Marcos faz uso frequente dos diminutivos (veja-se nota 5). Aquele usado
aqui se traduz geralmente como “barquinho”. Não obstante, tais
diminutivos de modo algum implicam sempre pequenez quanto a
tamanho, embora no caso presente o bote era provavelmente pequeno.
Mas o “barquinho” de Mc. 3:9 pôde ter sido da mesma dimensão que o
barco de Mc. 4:1. 108 Neste caso é difícil determinar se a ênfase recai no
tamanho ou na familiaridade com o objeto indicado. Seja como for, se
Jesus o estimava conveniente, podia fazer uso de um barco ancorado a
certa distância da margem. Deste modo, não apenas protegeria a Si
mesmo, mas também poderia falar sem impedimentos às grandes
multidões que havia na praia. Jesus diz aos Seus discípulos que tal barco
“devia estar preparado”109 para Ele, a fim de que pudesse usá-lo se e

108
Bem como o grego (incluindo também o grego moderno), o alemão, o holandês, o francês e o
português têm vocábulos diminutivos simples. O idioma inglês, porém, é pobre em tais expressões.
Em muitos casos um diminutivo composto soaria estranho. Compare-a palavra grega (tanto koinê
como moderna) πλοιάριον com a francesa nacelle; a alemã Schifflein; a sul-africana schuitjie; a frísia
skipke; e as holandesas scheepje, bootje, schuitje. Embora tais diminutivos às vezes indicam pequenez
física, em outros contextos a ênfase recai na familiaridade, no afeto e no carinho. Compare o
português “filhinho” que às vezes se usa ao dirigir-se à uma pessoa de um metro e oitenta! Assim
também “garotinha” com frequência indica mais afeto íntimo que tamanho. (cf. “mãezinha”, “vovó”,
etc.).
109
προσκαρτερῇ = pres. subjuntivo, 3a. pes. sing. de προσκαρτερέω. Neste contexto o significado de
“devia estar preparada” ou “devia estar sempre à ordem” é bastante clara. Há uma grande diferença de
Marcos (William Hendriksen) 162
quando fosse necessário. Não se indica se o Senhor realmente chegou a
fazer uso do barquinho naquele caso, como o teria que fazer em Mc. 4:1.
A passagem a respeito deste “barquinho” não deve ser descartada
como se fosse algo que não tem significado prático, como se faz com
frequência. Pelo contrário, é extremamente prático. Mostra-nos que Jesus
não só era divino, mas também humano. Em seu estado de humilhação
fez um uso prudente das precauções e medidas de segurança contra
possíveis perigos. Ao fazer isto, não nos está ensinando uma lição que
todos faríamos muito bem em atender? Nem sempre se dá a importância
devida a este ensino. Pense-se, por exemplo, no estudante que se está
preparando para o ministério, mas que descuida o estudo das Escrituras
nos idiomas originais; ou no futuro e entusiasta “missionário” que prega
o evangelho em sua própria língua nativa num recanto muito transitado
de um país estrangeiro, o povo que não entende nem uma palavra do que
diz; ou num homem que não se cuida da previsão médica nem para ele
nem para sua família, porque (segundo ele) “confia totalmente em
Deus”. Por certo que não se deve sublinhar Mt. 6:19–34; Fp. 2:13; 4:6, 7,
às custas de Gn. 41:33–36; Is. 38:21; Mt. 4:7; 10:16, 23; Mc. 3:9; Lc.
14:28–32; 16:8, 9; Fp. 2:12. Quando Deus criou o corpo humano, dotou-
o de muitas defesas adicionais! No caso particular ao que se refere
Marcos 3:9, é bem possível que o mencionado barquinho não se
utilizasse. O importante é que estava ali, preparada e disponível. Aquele
barquinho nos ensina uma grande lição!
Jesus não só curou a toda aquela gente doente, mas também
expulsou demônios:
11. Também os espíritos imundos, 110 quando o viam,
prostravam-se diante dele e exclamavam: Tu és o Filho de Deus!

opinião com relação ao significado do mesmo verbo em outras passagens do Novo Testamento (At.
1:14; 2:42, 46; 6:4; 8:13; 10:7; Rm. 12:12; 13:6; Cl. 4:2), segundo se torna evidente quando se
consulta léxicos e comentários.
110
A descrição é muito gráfica. Note-se como ὅταν vem seguido pelo imperfeito ἐθεώρουν na cláusula
subordinada, indicando aqui repetição. Os verbos da cláusula principal também estão em tempo
imperfeito: “estavam (ou: seguiam) caindo” e “estavam (ou: seguiam) gritando”.
Marcos (William Hendriksen) 163
Referente à possessão demoníaca veja-se Mc. 1:23a. Estes espíritos
eram chamados “imundos” porque moral e espiritualmente são sujos,
ímpios por si só, e porque impulsionam aqueles em quem habitam a
cometer pecado. Diz-se aqui que os possessos pelos demônios caíam e
gritavam aos pés de Jesus. Não vale a pena dar resposta à opinião de que
quando os espíritos gritavam “Tu és o Filho de Deus”, usavam o termo
“Filho de Deus” no sentido de anjo (Gn. 6:2), ou Israel (Os. 11:1), ou
crente (Rm. 8:17). Evidentemente, ao gritar “Tu és o Filho de Deus”,
referiam-se a Jesus como Filho de Deus num sentido único, Filho de
Deus como ninguém jamais foi nem o será (cf. Mc. 1:24). Também se
deve rejeitar a ideia de que este ponto não é histórico, mas sim é
meramente uma expressão da teologia de Marcos.
12. Mas Jesus lhes advertia severamente que o não expusessem
à publicidade.
Mais literalmente, “Mas ele seguia lhes advertindo (ou: lhes
encarregando) 111 estritamente que não lhe dessem a conhecer”. Qual foi
exatamente a razão pela qual Jesus não permitiu aos demônios que
revelassem Sua identidade? Sugeriram-se várias respostas a respeito:
1. A pessoa e a obra do Salvador são tão santas e sublimes que não
seria próprio permitir a demônios depravados e sujos que as proclamem.
2. O título “Filho de Deus” implica ao menos que Jesus era o
Messias tão longamente esperado. Entretanto, a maioria do povo
concebia a pessoa do Messias num sentido nacionalista: Alguém que os
livraria do jugo opressor dos estrangeiros. De modo que, antes de
revelar-se publicamente como Messias ou de permitir que O
proclamassem em tal sentido, Jesus devia deixar claro primeiro a
natureza de Seu ofício Messiânico, quer dizer, o fato de que era
necessário que sofresse e morresse pelos pecados do Seu povo, etc. A

111
Note-se ἐπετίμα de ἐπιτιμάω. Aqui advertir; com μή: advertir que não; em consequência, proibir.
Frequentemente este verbo tem o significado de repreender (Mc. 1:25; 4:39; 8:32; etc.). Basicamente
o significado é adjudicar uma τιμή (pena) ἐπί (sobre). A palavra πολλά usa-se aqui como advérbio.
Veja-se também em Mc. 9:26.
Marcos (William Hendriksen) 164
hora para proclamar isto publicamente, ou para deixar que o
proclamassem, ainda não tinha chegado.
3. Os escribas diziam ao povo que Jesus e os demônios eram
aliados (Mc. 3:22). Portanto, se Jesus permitia aos demônios que O
proclamassem, não pareceria que Ele mesmo estava confirmando as
acusações destes escribas?
Qual destas explicações é a correta? Ou que combinação de
explicações? Ou talvez há outra? Simplesmente não o sabemos. As
possíveis explicações que se enumeraram mostram ao menos que não
devemos nos surpreender pela resistência de Cristo a que os demônios O
proclamassem “Filho de Deus”.

Mc. 3:13–19 - Eleição dos Doze


Cf. Mt. 10:1–4; Lc. 6:12–16

13. Depois, subiu ao monte e chamou os que ele mesmo quis, e


vieram para junto dele.
Mais uma vez, a transição é muito natural. Com tantos doentes para
curar, tantos endemoninhados para libertar e tanta necessidade de pregar
(veja-se Mc. 3:7–12, 14, 15), era natural que Jesus autorizasse a alguns
de Seus seguidores a compartilhar o trabalho que Ele mesmo realizava,
fazendo com que Seu próprio poder e compaixão também agisse neles.
Além disso, a hostilidade dos dirigentes religiosos tinha chegado a ser
tão intensa (Mc. 3:6) que a cooperação com eles era já impossível: o
povo de Deus tem que organizar-se separadamente. Além disso, desde o
começo do ministério terrestre de Cristo, estavam aguardando-O a morte
e (depois da ressurreição) Sua partida desta terra. Na realidade, tinha
vindo com o propósito expresso de dar Sua vida em resgate por muitos
(Mc. 10:45). Sentia, portanto, a necessidade de designar testemunhas
para reunir e guiar a igreja militante depois de Sua partida física, com a
colaboração deles e mediante Sua obra neles.
Marcos (William Hendriksen) 165
De modo que, Jesus subiu “ao monte”. Em Mateus (veja-se Mt. 8:1)
e em Lucas (Lc. 6:12, 17) a descrição tem tanto cor local, que parece
referir-se a uma elevação específica, sem importar se hoje a
chamaríamos “monte” ou “colina”. Daí que a tradução “o monte” parece
neste caso ser melhor que colinas”. 112 De qualquer maneira, é verdade
que nem aqui nem em Mateus 5:1, onde aparece a mesma expressão, é-
nos dito qual é o monte aludido. Para as pessoas daquele tempo era
provavelmente bem conhecido, de modo que entenderam exatamente o
que os escritores dos Evangelhos quiseram dizer com “o monte”. Parece
ser que foi nas cercanias de Cafarnaum. Para uma ampliação desta
questão, veja-se CNT sobre Mt. 5:1, 2. E quanto à uma introdução do
Sermão da Montanha pregado ali, veja-se o mesmo comentário, pp. 271–
274.
Tão importante considerava Jesus este nomeação dos Doze e a
pregação do sermão, que naquele mesmo monte passou toda a noite
anterior em oração (Lc. 6:12). Ato seguido, 113 chamou os que quis. Sua
vontade soberana prevalece. Eles O escolheram só depois que Ele os
escolheu a eles! A noite em que O traíram, disse aos Seus discípulos:
“Não fostes vós que me escolhestes a mim; pelo contrário, eu vos escolhi
a vós outros e vos designei para que vades e deis fruto …” (Jo. 15:16;
veja-se também 1Jo. 4:10, 19). Resultado: foram com Ele, deixando tudo
o que era preciso deixar. Na realidade, vários deles (Mc. 1:16–20; 2:13,
14; Jo. 1:35–51) já se tinham associado com Ele estreitamente, e outros
já eram Seus seguidores, embora num sentido mais geral (Lc. 6:13).
14, 15. Então, designou doze para estarem com ele e para os
enviar a pregar e a exercer a autoridade de expelir demônios.

112
Assim também Lenski (“naturalmente, um monte concreto”) e esta ou outra tradução muito
semelhante em LT, BP (“montanha”), CB, CI, BJ, NC (“monte”), etc.
113
Embora não estejamos de acordo com aqueles expositores que atribuem um significado intensivo
ou enfático a αὑτός (“ele mesmo”), continua sendo verdade que os que tomaram a iniciativa não foram
os discípulos, mas sim Jesus.
Marcos (William Hendriksen) 166
É evidente que Marcos faz aqui um resumo. O conteúdo inteiro da
comissão acha-se em Mateus 10: trata-se da Comissão aos Doze, que
deve datar-se um pouco mais tarde. Estes doze discípulos, com toda
segurança deveriam estar na companhia de Cristo durante uma
temporada antes de que este os enviasse a proclamar as boas novas a
outros. Segundo o relato de Marcos, a tarefa para a qual Jesus designou
(cf. 1Rs. 12:31; At. 2:36; Hb. 3:2) a estes homens foi tríplice: associação
e educação, missão, e expulsão de demônios. Mateus acrescenta um
quarto ponto.
Associação e Educação. Designou-os, em primeiro lugar, para estar
uma temporada com seu Mestre, vendo-O e ouvindo-O, e aprendendo
tudo o que quis lhes ensinar. Para eles, tal relação significava uma
educação espiritual.
Missão. Em segundo lugar, e em estreita relação com o precedente,
a nomeação foi para ser arautos; quer dizer, para pregar. Os que recebem
devem transformar-se em doadores. Os discípulos devem converter-se
em apóstolos. Têm que promulgar a mensagem de salvação por meio de
Jesus Cristo. Num sentido foram investidos com Sua autoridade. Tão
real foi esta autoridade que Jesus chegou a dizer: “Quem vos recebe a
mim me recebe; e quem me recebe recebe aquele que me enviou” (Mt.
10:40). Cf. Mc. 6:11; Jo. 20:21–23. Primeiro foram enviados às ovelhas
perdidas da casa de Israel (Mt. 10:5, 6); logo, a todas as nações (Mt.
28:19), e a todo mundo (Mc. 16:15).
Expulsão de demônios. Em terceiro lugar, Jesus lhes designou para
114
ter autoridade (o direito e o poder) para expulsar demônios. Referente
à possessão demoníaca, veja-se Mc. 1:23.
Restabelecimento do corpo — tanto a cura como a ressurreição —
estavam incluídas, conforme vemos em Mateus 10:8.

114
Não é uma grande diferença que aqui se use o infinitivo (ἔχειν) em lugar de uma cláusula com ἵνα,
como ocorre nas duas orações precedentes.
Marcos (William Hendriksen) 167
16–19. Eis os doze que designou: Simão, a quem acrescentou o
nome de Pedro; Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão, aos quais
deu o nome de Boanerges, que quer dizer: filhos do trovão; André,
Filipe, Bartolomeu, Mateus, Tomé, Tiago, filho de Alfeu, Tadeu,
Simão, o Zelote, e Judas Iscariotes, que foi quem o traiu.
O próprio mesmo de que Jesus designasse exatamente doze
homens, nem mais nem menos, indica que tinha em mente o novo Israel,
porque o antigo Israel também tinha doze tribos e doze patriarcas. O
novo Israel ia ser formado com pessoas reunidas dentre todas as nações,
judeus e gentios (cf. Mt. 8:10–12; 16:18; 28:19 Mc. 12:9; 16:15, 16; Lc.
4:25–27; Jo. 3:16; 10:16; Ap. 21:12, 14).
A lista dos nomes dos Doze acha-se quatro vezes no Novo
Testamento (Mt. 10:2–4; Mc. 3:16–19; Lc. 6:14–16; At. 1:13, 26). Em
Atos 1:15–26 é relatada a forma em que Judas Iscariotes foi substituído
por Matias. Com esta exceção, os doze nomes indicam indubitavelmente
as mesmas pessoas em cada uma destas quatro listas.
Com relação às três listas consignadas nos Sinóticos, observe-se o
seguinte: Teoricamente, se os doze nomes forem considerados como se
em cada lista se tratasse de três grupos de quatro, os que se mencionam
são os mesmos em cada grupo. Entretanto, nem sempre estão ordenados
em idêntica sequência. Diferente de Mateus e Lucas, no primeiro grupo
de quatro, Marcos separa os nomes dos dois irmãos Simão (= Pedro) e
André. A ordem de Marcos é: Simão, Tiago, João e André. O de Mateus
e Lucas é: Simão, André, Tiago e João. No segundo grupo a ordem de
Lucas coincide com a de Marcos: Filipe, Bartolomeu, Mateus e Tomé.
Neste grupo Mateus coloca Tomé antes que seu próprio nome: Filipe,
Bartolomeu, Tomé e Mateus. No grupo final, a ordem de Mateus é a
mesma que a de Marcos: Tiago filho de Alfeu, Tadeu, Simão o zelote, e
Judas Iscariotes. Aqui Lucas, invertendo a ordem dos dois do centro,
tem: Tiago filho de Alfeu, Simão, o Zelote, Judas o (filho) de Tiago —
este Judas deve referir-se a Tadeu — e Judas Iscariotes.
Marcos (William Hendriksen) 168
Observe-se que Marcos não ordena os doze nomes em pares, como
o faz Mateus. Menciona-os todos numa lista ininterrupta. Não está muito
claro por que razão separou Marcos os nomes dos dois irmãos, Simão e
André. Sugestões: Talvez os nomes de Simão, Tiago e João mencionam-
se em imediata sucessão porque com frequência Jesus os escolheu
justamente a eles, e não o resto, para que O acompanhassem. Ou talvez
menciona a André em imediata relação com Filipe, porque entre eles
existia uma estreita relação (veja-se Jo. 12:21, 22). Ou separou os nomes
dos dois irmãos Simão e André, a fim de indicar que na família de Cristo
a relação espiritual era ainda mais importante que a física (veja-se este
mesmo capítulo, Mc. 3:31–35). Mas a verdade é que não sabemos por
que Marcos separou os nomes destes dois irmãos.
Seguindo a ordem de Marcos, digamos algo quanto a cada um dos
Doze:
Simão. Era filho de Jonas ou João. Era pescador de ofício, e com
seu irmão André viveu primeiro em Betsaida (Jo. 1:44) e depois em
Cafarnaum (Mc. 1:21, 29). Tanto Marcos como Lucas informam que foi
Jesus quem deu a Simão o novo nome de Pedro (para outros detalhes de
este fato veja-se Jo. 1:42). Este novo nome significa rocha, e não tem o
fim de descrever o que Simão era no momento em que foi chamado,
antes, fala do que pela graça devia vir a ser. No princípio e por algum
tempo, Simão foi tudo menos um modelo de estabilidade ou de
imperturbabilidade. Pelo contrário, Pedro sempre oscilava entre uma
posição e outra totalmente oposta. Mudava da confiança à dúvida (Mt.
14:28, 30); de confessar com toda segurança de que Jesus é o Cristo, a
repreender ao próprio Cristo (Mt. 16:16, 22); da veemente declaração de
lealdade, à negação abjeta (Mt. 26:33–35, 69–75; Mc. 14:29–31, 66–72;
Lc. 22:33, 54–62); de um “Não me lavarás os pés jamais”, a um “não só
meus pés, mas também as mãos e a cabeça” (Jo. 13:8, 9; veja-se também
Jo. 20:4, 6; Gl 2:11, 12). Não obstante, pela graça e o poder do Senhor,
Simão, o inconstante foi transformado num verdadeiro Pedro. Referente
ao papel de Pedro na igreja depois da ressurreição, veja-se CNT sobre
Marcos (William Hendriksen) 169
Mt. 16:13–20. Em consequência, quando nesta anterior data — porque
aqui Marcos reflete João 1:42 — Jesus deu a Simão seu novo nome, Ele
o fazia como um ato de amor, de um amor desejoso de passar por alto o
presente e inclusive o futuro próximo, e de olhar a um futuro longínquo.
Que maravilhosa e transformadora é a graça de nosso Senhor!
A tradição atribui a Pedro a autoria de dois livros do Novo
Testamento: 1 e 2 Pedro.
Como dissemos na Introdução, não em vão Marcos foi chamado “o
intérprete de Pedro”.
Tiago, filho de Zebedeu, e João, irmão de Tiago. Marcos menciona
estes dois pescadores não só aqui e em Mc. 1:19, 20 (veja-se sobre essa
passagem), mas também mais adiante (Mc. 9:2; cf. 10:35–45). Também
há várias referências a eles nos outros Evangelhos. Provavelmente,
devido à sua natureza impetuosa, Jesus chamou estes dois irmãos de
Boanerges. Esta é uma palavra aramaica que Marcos, que é o único
evangelista que a registra, a traduz para seus leitores não judeus como
“filhos do trovão”. O nome hebraico seria benē reghesh. 115 O fato de que
ambos tivessem realmente uma natureza impetuosa talvez se possa
inferir de Lucas 9:54–56 (cf. Mc. 9:38). Tiago foi o primeiro dos Doze
em cingir a coroa de mártir (At. 12:2). Conquanto ele foi o primeiro em
chegar ao céu, seu irmão João com toda probabilidade foi o último que
ficou na terra. Com relação à vida e caráter de João, considerado por
muitos (creio que corretamente) como “o discípulo a quem Jesus amava”
(Jo. 13:23; 19:26; 20:2; 21:7, 20) veja-se CNT, Evangelho de São João,
pp. 19–22. A tradição atribui a João cinco livros do Novo Testamento:
seu Evangelho, três epístolas (1, 2, 3 João), e o livro do Apocalipse.
André. Este também era pescador, e levou o seu irmão Pedro a
Jesus (veja-se CNT sobre Jo. 1:41, 42). Quanto a outras referências sobre
André veja-se mais acima em Mc. 1:16, 17, 29; estude-se também

115
Todavía no se soluciona el enigma con respecto a las vocales en Boa, como parte de la expresión
Boanerges.
Marcos (William Hendriksen) 170
Marcos 13:3; João 6:8, 9; 12:22. Veja-se também a declaração a seguir a
respeito de Filipe.
Filipe. Foi, ao menos por um tempo, concidadão de Pedro e André,
quer dizer, também era de Betsaida. Depois de responder à chamada de
Jesus, achou Natanael, e lhe disse: “Achamos aquele de quem Moisés
escreveu na lei, e a quem se referiram os profetas: Jesus, o Nazareno,
filho de José” (Jo. 1:45). Quando Jesus ia alimentar os cinco mil,
perguntou a Filipe, “Onde compraremos pães para lhes dar a comer?”.
Filipe respondeu-lhe: “Não lhes bastariam duzentos denários de pão,
para receber cada um o seu pedaço” (Jn. 6:5, 7). Aparentemente, Filipe
esquecia que o poder de Jesus ultrapassava toda possibilidade de cálculo.
Extrair deste incidente a conclusão de que Filipe era uma classe de
pessoa mais fria e calculista que os outros apóstolos, seria basear muito
em muito pouco. Em geral Filipe aparece nos Evangelhos sob uma luz
favorável. Assim, quando os gregos se aproximam dele com o pedido,
“Senhor, queremos ver a Jesus” (Jo. 12:21, 22), ele foi e o disse a André,
e ambos (André e Filipe) levaram o pedido a Jesus. Deve admitir-se que
Filipe nem sempre entendeu imediatamente o significado das palavras
profundas de Cristo — os outros as entenderam? — mas a seu favor deve
dizer-se que com perfeita sinceridade manifestou sua ignorância e pediu
maior informação, o que se vê também em João 14:8, “Senhor, mostra-
nos o Pai, e isso nos basta”; ao que recebeu a bela e reconfortante
resposta: “…Quem me vê a mim vê o Pai” (Jo. 14:9).
Bartolomeu significa “filho de Tolmai”. Este é claramente o
Natanael do Evangelho de João (Jo. 1:45–49; 21:2). Foi ele quem disse a
Filipe, “De Nazaré pode vir algo bom?” Filipe lhe respondeu, “Vem e
vê”. Quando Jesus viu Natanael aproximando-se, disse, “Eis aqui um
verdadeiro israelita, em quem não há dolo”. Este discípulo-apóstolo era
uma das sete pessoas a quem o Cristo ressuscitado apareceu perto do mar
de Tiberíades. Dos outros seis só se menciona Simão Pedro, Tomé e os
filhos de Zebedeu.
Marcos (William Hendriksen) 171
Mateus. A respeito deste discípulo já comentamos de forma
detalhada (veja-se mais acima em Mc. 2:14–17).
Tomé. As referências com relação a este apóstolo se combinam para
indicar que a característica deste homem era o desânimo e a devoção.
Sempre o embargava o temor de perder o seu amado Mestre. Esperava o
mal e lhe era difícil crer nas boas notícias quando estas lhe chegavam.
Não obstante, com toda sua ternura e condescendente amor, o Salvador
apresentou-Se diante de Tomé depois da ressurreição, e foi Tomé quem
exclamou: “Senhor meu e Deus meu!” Para mais informação a respeito
de Tomé, veja-se CNT sobre João 11:16; 14:5; 20:24–28; 21:2.
Tiago, filho de Alfeu. Marcos (15:40) chama-o “Tiago, o menor”, o
que segundo a interpretação de alguns significa “Tiago, o pequeno em
estatura”. Não temos mais informação positiva a respeito dele. É
provável, entretanto, que fosse o mesmo discípulo ao que se refere Mt.
27:56; Mc. 16:1; e Lc. 24:10. Se isto é correto, o nome de sua mãe seria
Maria, uma das mulheres que acompanharam a Jesus e que se achavam
perto da cruz. (veja-se CNT sobre Jo. 19:25). Já se mostrou que o Alfeu,
que era pai de Mateus, provavelmente não deveria ser identificado com o
Alfeu, pai de Tiago, o menor (veja-se mais acima em 2:14).
Tadeu (chamado Lebeu em certos manuscritos de Mt. 10:3 e Mc.
3:18) com toda probabilidade é “Judas, não o Iscariotes” de Jo. 14:22
(veja-se sobre essa passagem; cf. At. 1:13). João 14 pareceria dizer que
seu desejo era que Jesus Se mostrasse ao mundo, significando
provavelmente: apresentar-Se em público.
Simón, Zelote. “Zelote” é um apelido aramaico que significa
fanático. Na realidade, Lucas também o chama “Simão, Zelote” (Lc.
6:15; At. 1:13). Com toda probabilidade é-lhe dado este nome aqui
porque tinha pertencido anteriormente ao partido dos zelotes, partido que
em seu ódio contra os governantes estrangeiros, que exigiam tributos,
não cessava de fomentar a rebelião contra o governo romano (veja-se
Josefo: Guerra Judaica II. 117, 118; Antiguidades XVIII. 1–10, 23. Cf.
At. 5:37).
Marcos (William Hendriksen) 172
Judas Iscariotes. Geralmente este nome se interpreta com o
significado de “Judas o homem de Queriote — ” lugar ao sul da Judeia.
(Alguns, entretanto, preferem a interpretação, “o homem da adaga”). Os
Evangelhos se referem a ele muitas vezes (Mt. 26:14, 25, 47; 27:3; Mc.
14:10, 43; Lc. 22:3, 47, 48; Jo. 6:71; 12:4; 13:2, 26, 29; 18:2–5). Às
vezes é descrito como “Judas, aquele que o traiu”, “Judas, um dos
Doze”, “o traidor”, “Judas, filho de Simão Iscariotes”, “Judas Iscariotes,
filho de Simão”, ou simplesmente “Judas”. Este homem, embora
totalmente responsável por seus próprios atos ímpios, foi instrumento do
diabo (Jo. 6:70, 71). As pessoas que não estavam de acordo com os
ensinamentos de Cristo, simplesmente se separavam do Senhor (Jo.
6:66), mas Judas permaneceu como se estivesse perfeitamente em
harmonia com Jesus. Era uma pessoa egoísta em sumo grau e não pôde
— ou, diremos melhor, não quis? — entender o gesto generoso e belo de
Maria de Betânia quando ungiu a Jesus (Jo. 12:1ss.). Era incapaz de
entender que a linguagem fundamental do amor é a generosidade.
Foi o diabo quem instigou Judas a trair a Jesus, quer dizer,
impulsionou-o a entregá-Lo em mãos do inimigo. Era ladrão; entretanto
foi a ele a quem foi confiada a bolsa do pequeno grupo, com resultado
previsível (Jo. 12:6). Pintores como Leonardo da Vinci registraram o
momento dramático da instituição da Ceia do Senhor (Mt. 26:20–25; Jo.
13:21–30) quando Jesus surpreendeu os Doze, dizendo: “Um de vós há
de me trair”. Embora Judas já tinha recebido dos principais sacerdotes as
trinta moedas de prata como recompensa pelo ato que tinha prometido
realizar (Mt. 26:14–16; Mc. 14:10, 11), teve a incrível audácia de dizer,
“Sou eu, Mestre?” Judas serviu de guia ao destacamento de soldados e à
equipe armada da polícia do templo que prenderam Jesus no jardim do
Getsêmani. Mediante um pérfido beijo dado ao seu Mestre, simulando
que ainda era um discípulo leal, este traidor apontou à polícia quem era
Jesus (Mt. 26:49, 50; Mc. 14:43–45; Lc. 22:47, 48). Quanto à forma em
que Judas se suicidou, veja-se sobre Mt. 27:3–5; e cf. At 1:18. Qual foi a
causa de que este discípulo privilegiado chegasse a ser o traidor de
Marcos (William Hendriksen) 173
Cristo? Foi acaso o orgulho ferido, a ambição frustrada, a profunda
cobiça, o temor de ser expulso da sinagoga (Jo. 9:22)? Sem dúvida
alguma, todas estas razões se achavam incluídas, mas não poderia ser a
razão fundamental o fato de que entre o coração totalmente egoísta de
Judas e o coração imensamente generoso de Jesus existia um abismo
imenso? Isto significaria que, ou Judas devia implorar ao Senhor que lhe
outorgasse a graça da regeneração e a renovação total, petição que o
traidor impiamente recusou fazer, ou devia oferecer sua cooperação para
desfazer-se de Jesus (vejam-se também Lc. 22:22; At. 2:23; 4:28). Uma
coisa é certa: A espantosa tragédia da vida de Judas é prova, não da
impotência de Cristo, mas da impenitência do traidor! Ai daquele
homem!
O que realça a grandeza de Jesus é que Ele tomou esta classe de
homens e os fundiu numa comunidade de surpreendente influência, que
não só demonstraria ser um valioso elo com o passado de Israel, mas
também o fundamento sólido do futuro da igreja. Sim, o Senhor realizou
um milagre múltiplo nestes homens, com todas suas falhas e fraquezas.
Mesmo quando prescindamos de Judas Iscariotes e nos concentremos
nos outros, impressiona-nos a majestade do Salvador, cujo magnético
poder, incomparável sabedoria, e inigualável amor eram tão
surpreendentes que foi capaz de reunir ao Seu redor, e unir numa família,
a homens de ambientes e temperamentos completamente diferentes, e às
vezes até opostos. Incluído neste pequeno grupo estava Pedro, o otimista
(Mt. 14:28; 26:33, 35), e também Tomé, o pessimista (Jo. 11:16; 20:24,
25); Simão, o ex-zelote que odiava os impostos e desejava derrocar o
governo romano, e também Mateus, que voluntariamente ofereceu seus
serviços como coletor de impostos ao próprio governo romano; Pedro,
João, e Mateus, destinados a adquirir renome através de seu escritos, e
também Tiago, o menor, que permanece nas sombras apesar de que
também ele cumpriu sua missão.
Jesus os atraiu com os laços de Sua ternura e inefável compaixão.
Amou-os ao máximo (Jo. 13:1), e na noite antes de ser traído e
Marcos (William Hendriksen) 174
crucificado encomendou-os ao Pai, dizendo: “Manifestei o teu nome aos
homens que me deste do mundo. Eram teus, tu mos confiaste, e eles têm
guardado a tua palavra … Pai santo, guarda-os em teu nome, que me
deste, para que eles sejam um, assim como nós … Não peço que os tires
do mundo, e sim que os guardes do mal. Eles não são do mundo, como
também eu não sou. Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade.
Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo. E
a favor deles eu me santifico a mim mesmo, para que eles também sejam
santificados na verdade” (Jo. 17:6–19, em parte).

Mc. 3:20–30 - Foram os milagres de Cristo prova do domínio ou da


ruína de Belzebu?
Cf. Mt. 12:22–32; Lc. 11:14–23; 12:10

A estas alturas, depois da chamada dos Doze, poderíamos ter


esperado algumas frases do Sermão da Montanha (cf. Lc. 6:12–49). Mas
visto que Marcos é predominantemente o Evangelho da ação — veja-se
o compartimento III. da Introdução — não se especializa em material
discursivo. 116
O relato de Marcos prossegue abruptamente:
20. Então, ele foi para casa. Não obstante, a multidão afluiu de
novo, de tal modo que nem podiam comer.
Não há indicações sobre quando sucedeu este incidente exatamente
(vv. 20, 21). Deve ter ocorrido em algum momento durante o Grande
Ministério Galileu, mas não há nenhum elo cronológico definido. Não
obstante, bem pode haver uma conexão lógica entre Marcos 3:20–30 e o

116
Marcos ha tomado algunas frases del Sermón del Monte y las ha esparcido por su evangelio:
Marcos cf. Mateo Marcos cf. Mateo
1:22 7:28, 29 9:43–47 5:29, 30
4:21 5:15 10:4 5:31
4:24 7:2 10:21 6:20
7:22 6:23 11:24 7:7
9:38 7:22 11:25 6:14
Marcos (William Hendriksen) 175
que passou antes, em Mc. 2:1–3:9. Marcos já relatou que a hostilidade
das autoridades religiosas tinha avançado até o ponto de planejar a morte
de Jesus (Mc. 3:6). Por outro lado, Jesus tinha estabelecido o
fundamento da igreja em sua manifestação neotestamentária mediante a
chamada dos Doze (cf. Mt. 16:18, 19; Ap. 21:14). Mas agora se adiciona
algo mais à aflição do Varão de dores. Já não é só que Seus inimigos (os
fariseus e escribas) incomodem-No, mas agora também Seus “amigos”
começam a Lhe causar dificuldades.
No sentido já explicado (veja-se Mc. 2:1), Jesus Se achava de novo
“em casa”, em Cafarnaum, seu quartel general. E tal como numa ocasião
anterior a multidão era tão grande que a entrada estava bloqueada (Mc.
2:4; cf. Mc. 1:33), assim também agora a multidão era tão enorme que
Jesus e Seus discípulos — observe-se “eles” — eram impedidos
inclusive de poder comer. 117
Resultado: 21. E, quando os parentes 118 de Jesus ouviram isto,
saíram para o prender; porque diziam: Está fora de si. Quais eram
aquelas pessoas que pensaram que Jesus tinha perdido o juízo 119 e que,
portanto, queriam pô-Lo sob seu cuidado protetor? 120 A frase utilizada
no original para descrevê-los 121 é um tanto ambígua.
117
Literalmente: “comer pão”. Mas esta expressão foi-se desenvolvendo até tomar um significado
mais geral: “comer, comer uma comida”. Veja-se a LXX sobre Gn. 37:25; 2Sm. (= 2 Reis) 12:20; e
quanto ao Novo Testamento, cf. Mc. 7:2; Lc. 14:1.
118
Ou: os que estavam associados com ele. Veja-se o comentário.
119
O aoristo ἐξέστη pode ser considerado como atemporal.
120
κρατῆσαι aor. infin. de κρατέω. Este verbo é usado também com relação à detenção de João Batista
ordenada por Herodes (Mt. 14:3; Mc. 6:17); para o intento das autoridades religiosas de lançar mão
em Jesus (Mt. 21:46; 26:4; Mc. 12:12; 14:1); para a detenção em si de Jesus (Mt. 26:48, 50, 55, 57;
Mc. 14:44, 46, 51); para prender a Paulo (At. 24:6) e ao dragão (Ap. 20:2). Num sentido mais geral,
pode significar agarrar ou lançar mão a (uma ovelha com o fim de resgatá-la, Mt. 12:11; a um
devedor, com propósitos maus, 18:28; aos pés de Jesus, 28:9). Às vezes significa tomar da mão (num
contexto de cura, Mt. 9:25; Mc. 1:31; 9:27; ou aponta à restauração da vida. Mc. 5:41). Outros usos
gerais são: obter, sujeitar, apoiar, ter em mente, refrear, reter. Com uma variedade tão ampla de
significados a importância do contexto particular é evidente. No caso presente o significado
provavelmente é: mediante uma forte persuasão tomar a Jesus sob custódia protetora. Deve-se ter em
mente que os que desejavam fazer isto eram “amigos”, não inimigos.
121
σἱ παρ αὑτοῦ
Marcos (William Hendriksen) 176
Significa basicamente “os que estão do seu lado”. Aqueles que
favorecem a teoria de que se trata da família imediata de Jesus (quer
dizer, sua mãe Maria e seus irmãos), 122 afirmam que se deve levar em
conta as seguintes considerações:
a. A frase “os que estão do seu lado” significa “família” (pais e
outros parentes) em Provérbios 21:21 e numa passagem do escrito
apócrifo da Susana 33 (veja-se o contexto, v. 30).
b. João 7:5 diz: “Nem mesmo os seus irmãos criam nele (Jesus)”.
c. Em Marcos o contexto (os vv. 31–35), menciona “a mãe de Jesus
e seus irmãos”.
d. O ambiente de tensão no parágrafo final do capítulo é melhor
explicado supondo que foi a família imediata de Jesus a que originou —
ou ao menos deu crédito à opinião de que “está fora de si”.
Considerações como estas fazem com que em Marcos 3:21 algumas
traduções leiam “parentes” (RA, TB, BJ, NVI, CI) ou “familiares” (BP).
Por certo, a frase usada no original às vezes tem este significado, como
já se fez notar mais acima.
Embora a maioria das versões em português tenham adotado a
tradução “familiares”, ou “parentes”, algumas versões inglesas preferem
“amigos” (AV, ARV, RSV, Living Bible, R. Young). F.C. Grant 123
afirma: “A melhor tradução é provavelmente seus amigos”.
Mas qual seja a opinião que se tenha sobre a tradução “familiares”
ou “parentes”, parece que não é seguro concluir que a passagem (Mc.
3:21) tem que interpretar-se como se Maria e os irmãos de Jesus foram
os que chamaram Jesus de demente. Com relação aos argumentos usados
para apoiar esta teoria (veja-se a.-d. mais acima), observe-se o seguinte:
A respeito de a. É certo, mas também tem outros significados. Em 1
Macabeus 9:44; 11:73; 12:27; 13:52; 15:15 o significado é

122
Veja-se Vincent Taylor, op. cit., pp. 235–237; C. R. Erdman, op. cit., p. 65; H. B. Swete, op. cit., p.
63; M. H. Bolkestein, Het Evangelie naar Marcus, Nijkerk, 1966, pp. 88, 89; e muitos outros.
123
The Gospel according to St. Mark (The Interpreter’s Bible), Nova York e Nashville, 1951, Vol.
VII, p. 689.
Marcos (William Hendriksen) 177
provavelmente “seus homens”, “seus enviados”, “sua companhia”, “seus
aderentes ou seguidores”. Josefo, Antiguidades I. 193 reflete Gênesis
17:27, onde estão incluídos muitos mais que os que pertenciam à família
mais imediata de Abraão. Nos papiros, a expressão usada no original
também tem muitos significados diferentes, em concordância com o
contexto específico de cada caso individual (veja-se F. Field, Notes on
the Translation of the New Testament, Cambridge, 1899, p. 25. A
palavra pode significar vizinhos, agentes, amigos, etc.).
A respeito de b. É verdade que João 7:5 ensina que até os irmãos de
Jesus “não criam nele”, mas o contexto mostra claramente que eles não
O consideravam mentalmente desequilibrado. Teriam dito a Jesus
“Mostre-te ao mundo”, se o tivessem tido por louco? Se estes irmãos
estavam ou não incluídos em Jo. 3:21, não o sabemos. João 7:5 não é
prova de que o estavam.
A respeito de c. “Embora as palavras … ‘os seus’ podem significar
‘sua família’, é duvidoso que Marcos tivesse querido anunciar o
versículo 31 desta forma” (F. C. Grant). Não é de confiança a teoria que
afirma que os versículos 31–35 resumem a história começada no
versículo 21. Indubitavelmente que existe uma relação entre os
versículos 20–30, por um lado, e os versículos 31–35, por outro. Mas
essa relação é provavelmente de um caráter diferente. Vejam-se os vv.
31–35.
A respeito de d. Este ponto tem que ver tanto com os irmãos de
Jesus como com sua mãe. Referente aos irmãos, veja-se mais acima o
dito “a respeito de b.” Com relação a Maria: mesmo quando é verdade
que ela às vezes cometeu erros e que suas críticas e intentos de interferir-
nos planos de Cristo foram reprovados com firmeza (veja-se Lc. 2:49;
Jo. 2:4; e assim provavelmente também Mc. 3:31–35), entretanto não
temos razões para duvidar que a relação entre Maria e Jesus não fosse
sempre de ternura e respeito recíproco (Lc. 2:51; Jo. 2:5; 19:26, 27).
Deus revelou a Maria o que ocorreria com seu “filho primogênito” (veja-
se mais abaixo nos vv. 33–35), e não existe razão para crer que a fé que
Marcos (William Hendriksen) 178
Maria tinha nessa revelação desaparecesse até ao ponto de chegar a
considerar Jesus demente. São os que pensam de outro modo os que
devem provar que o assunto era de outra maneira. 124
Quais foram, então, aqueles “amigos” ou “associados” convencidos
de que Jesus tinha perdido o juízo? Simplesmente não o sabemos!
Puderam ter sido pessoas com quem Jesus foi criado em Nazaré,
incluindo possivelmente alguns parentes. Ou puderam ter sido “pessoas
com boa disposição para com Jesus, um círculo de discípulos um pouco
mais amplo”. 125 Muitas passagens mostram que houve um grupo assim e
que provavelmente incluía um grande número de pessoas (cf. Mt. 11:12;
Mc. 12:34; 14:3, 12–16, 51, 52; 15:43; Lc. 6:13, 17; 10:1; 23:50–56).
Qual pôde ter sido a razão para que estes “amigos”, “associados”,
ou “seguidores” considerassem que Jesus tinha chegado à demência? Há
muitas explicações que surgem espontaneamente.
Poderiam ter pensado: “Às vezes o Mestre age de forma muito
estranha; por exemplo, naquela vez quando todos os de Cafarnaum
desejavam que voltasse para a cidade, ele disse, ‘Vamos a outro lugar,
aos povos vizinhos’ (1:36–38). Além disso, sempre Se está opondo à
classe dirigente, representada pelos escribas e fariseus. Isto não é o que
geralmente fazem os que aspiram ser líderes. Outorga o perdão como se
Ele mesmo fosse Deus! (2:7) Por outro lado, relaciona-se muito com …
todo tipo de gente, pecadores e publicanos (2:15, 16). Que horror! Além
disso, Seu ensino, também, é estranho”. Quanto ao último, veja-se p. ex.
Mc. 2:17, 19, 27, 28. A estes textos mais adiante se acrescentariam
passagens tão desconcertantes como as que se acham em Mc. 8:34, 35;
9:43–50; 10:23, 24. Por causa destes e de outros ensinos semelhantes —
em boca de um carpinteiro! — não teria que sentir-se ofendida a gente de
Nazaré? (veja-se Mc. 6:3).

124
E. P. Groenewald, op. cit., p. 79, embora creia que os irmãos de Jesus se achavam entre os que O
consideravam mentalmente desequilibrado, não se atreve a atribuir esse mesmo sentimento a Maria!
125
Veja-se A. B. Bruce, op. cit. p. 360.
Marcos (William Hendriksen) 179
Devemos ter em mente tudo isto, e ainda mais, quando tratamos de
definir por que os amigos de Jesus O consideravam fora do normal uso
de Sua razão. Não obstante, talvez o contexto imediato nos dê a razão
principal pela qual estes amigos de Jesus chegaram a esta conclusão. O
contexto indica que a observação “está fora de si” foi causada pela boa
disposição de Cristo para ir de multidão em multidão, ensinando,
curando, expulsando demônios (Mc. 1:32–34, 2:2). No presente caso, a
Sua atividade entre uma tão grande multidão não Lhe deixava tempo
nem para comer (Mc. 3:20). Parece que o que ocasionou aquela
exclamação foi que, aos olhos de seus amigos, Jesus estava sendo
negligente com Sua própria necessidade de repouso, férias e renovação
física. Acrescente-se a este fato que quando Jesus outorgava vista aos
cegos, audição os surdos, saúde aos doentes, e liberdade aos
endemoninhados, Ele o fazia de todo coração! Ele Se compadecia como
nenhum ser humano se compadeceu jamais, antes ou depois dEle. “Em
toda angústia deles ele foi angustiado” (Is. 63:9). NEle se cumpriu a
profecia, “Certamente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as
nossas dores levou sobre si” (Is. 53:4). Acaso não é possível que tudo
isso tivesse feito Seus amigos pensar, “É exageradamente duro consigo
mesmo”, e dizer, “perdeu o equilíbrio mental; consome-lhe o fanatismo
religioso”?
Admitindo que este juízo fosse falso e injusto (não importa se fosse
bem-intencionado), não é acaso explicável a reação deles? Se inclusive
os Doze, que desfrutaram do benefício da estreita e constante comunhão
com Jesus, com frequência se confundiram (Lc. 9:45; 18:34; Jo. 12:16),
bem podemos imaginar que amigos menos íntimos de Jesus puderam
concluir que Sua conduta era estranha para as normas humanas normais.
Portanto, eles O viram como uma pessoa mentalmente extraviada.
Tempo mais tarde, os seguidores de Cristo também foram acusados de
loucura. Assim sucedeu a Paulo (At. 26:24). Francisco de Assis foi
chamado “o filho louco do Bernadone”, apesar de que sempre teve à sua
vista a vida e mandamentos de Jesus. Quando Martinho Lutero defendeu
Marcos (William Hendriksen) 180
a supremacia da Palavra de Deus acima das tradições dos homens,
inclusive alguns de seus primeiros simpatizantes o consideraram como
néscio e possuído pelo diabo (cf. 1Co. 1:18; 3:19).
Embora possamos supor que os “amigos” de Jesus buscavam o Seu
bem, os Seus inimigos, não:
22. Os escribas, que haviam descido de Jerusalém, diziam: Ele
está possesso de Belzebu. 126 E: É pelo maioral dos demônios que
expele os demônios.
Provavelmente o Sinédrio tinham enviado os escribas para espiar a
Jesus. Descendo de Jerusalém — que estava a 800 metros sobre o nível
do mar — foram até a Galileia, cujo grande lago está a 200 metros
abaixo do nível do mar. Entretanto, é possível que estes peritos da lei
considerassem sua descida em direção a Cafarnaum como uma descida
não só física, mas também ideológica, pelo fato de que Jerusalém era o
baluarte da ortodoxia judaica.
Chegaram ao lugar quando Jesus acabava de curar um
endemoninhado cego e mudo. Como consequência deste milagre
múltiplo, “Toda a multidão se admirava e dizia: É este, porventura, o
Filho de Davi?” (Mt. 12:22, 23; cf. Lc. 11:14). Marcos faz um paralelo
com Mateus 12:24–32 e Lucas 11:15–23, e continua a história deste
ponto. Em seus principais aspectos o relato é o mesmo em todos os
Sinóticos.127
126
Literalmente, “tem a Belzebu”.
127
Entretanto, Marcos acrescenta alguns poucos detalhes que não se acham (ou não se acham dessa
forma exata) nos outros Evangelhos: que os investigadores eram escribas (Mateus: fariseus); que Jesus
os convocou e lhes falou em parábolas; que lhes perguntou, “Como pode Satanás expulsar a
Satanás?”; e que lhes disse que qualquer que profira blasfêmia contra o Espírito Santo é culpado de
um pecado eterno. Além disso, a nota explicativa que se acha no final do relato de Marcos (v. 30) só
se encontra neste Evangelho. Por outro lado, Mateus e Lucas incluem detalhes que não estão em
Marcos. Ambos mostram que Jesus conhecia os pensamentos de Seus críticos; que lhes perguntou,
“Em virtude de quem expulsam vossos filhos aos demônios?” (seguido por uma cláusula que começa
com “portanto”); e que lhes disse, “Aquele que não é comigo, é contra mim …” e “Mas se pelo
Espírito” — Lucas: pelo dedo — “de Deus expulso demônios, certamente é chegado a vós o reino de
Deus”. Na realidade, através desta história há diferenças menores — veja-se especialmente Lc. 11:21,
22 — de modo que se vê muito claro que cada evangelista tem seu próprio estilo.
Marcos (William Hendriksen) 181
Os escribas não estavam dispostos a permitir que o povo
continuasse maravilhado, até o ponto de acariciar algumas ideias
messiânicas com relação a Jesus. Assim que dão uma explicação muito
conflitiva e diferente das expulsões de demônios e de outros milagres
que Jesus fazia. Está possuído por Belzebu, e expulsa demônios pelo
poder que lhe subministra o príncipe ou governante dos demônios!
Quando estes homens falam de Belzebu, em quem estavam
pensando? As opiniões diferem. No Antigo Testamento lemos a respeito
de Baal-Zebube = Beelzebub. Mas qualquer que tivesse sido a causa para
mudar o nome Beelzebub a Belzebu, 128 há um fato claro: Belzebu é
definitivamente o príncipe dos demônios. Belzebu é Satanás. Isto fica
provado se for comparado o versículo 22a com o versículo 22b e com o
versículo 23. Além disso, cf. Mt. 9:34 com 12:24; e 12:26 com 12:27.
Os escribas e fariseus lançaram uma acusação maligna contra Jesus.
Movia-os a inveja (cf. Mt. 27:18). Sentiam que começavam a perder sua
influência, e isto não o podiam suportar. Quão diferente foi a atitude de
João Batista! (Jo. 3:26, 30). O vergonhoso desta acusação faz-se também
evidente pelo fato de que considerassem Belzebu não como um espírito
imundo que exercia sua sinistra influência sobre Jesus desde fora, mas
que se afirmava que Belzebu estava dentro da alma de Jesus.
Literalmente diziam: tem um espírito imundo, quer dizer, está possuído
pelo demônio (Mc. 3:22, 30; cf. Jo. 8:48). A acusação, então, equivale a
isto: que Jesus estava possuído por Satanás, e que em aliança com

128
Em Ecrom adorava-se a Baal sob o nome de Baal-Zebube (2Rs. 1:2, 3, 6; na LXX trata-se de IV
Reis 1:2, 3, 6, βααλ μυῖαν) isto é, ao Senhor do mosquito grande, e por isso protetor contra esta peste.
O rei Acazias enviou mensageiros a consultar a Baal-Zebube sobre se ele se recuperaria dos resultados
de sua queda, mas foi-lhe dito que por causa desta deslealdade a Jeová morreria. As passagens do
Novo Testamento mudam Baal (= Beel) zebub a zebul. Agora, Beelzebu significa “senhor da
morada”. A razão desta mudança de letras não é clara. Pode ter sido nada mais que um acidente de
pronúncia popular. Outra explicação é que aqui pode haver um jogo de palavras, porque zebul
assemelha-se a zabel: esterco. Assim, os que desprezavam a Baal de Ecrom podiam, mediante uma
ligeira mudança na pronúncia, zombar dele, levando a ideia a que não era mais que um “senhor do
esterco”.
Marcos (William Hendriksen) 182
Satanás expulsava demônios por meio do poder derivado daquele
espírito imundo.
A resposta de Cristo vem nos versículos 23–30, e pode dividir-se
assim: a. refutação da acusação (vv. 23–26); b. explicação das expulsões
de demônios e outros milagres de Cristo (v. 27); c. exortação (vv. 28–
30).
Refutação, versículos:
23–26. Então, convocando-os Jesus, lhes disse, por meio de
parábolas: Como pode Satanás expelir a Satanás? Se um reino estiver
dividido contra si mesmo, tal reino não pode subsistir; se uma casa estiver
dividida contra si mesma, tal casa não poderá subsistir. Se, pois, Satanás
se levantou contra si mesmo e está dividido, não pode subsistir, mas
perece. 129
Nos três relatos, a acusação dos antagonistas faz-se em terceira
pessoa. O que há em seus pensamentos se expressa às costas de Cristo.
De modo que, Jesus chama Seus caluniadores diante de sua presença,
para lhes dar a oportunidade de apresentar suas acusações diante
dAquele a quem ridicularizavam e para que escutem Sua refutação, se
assim o desejarem. É fácil entender por que não aproveitaram esta
oportunidade: não puderam responder à Sua refutação.
Jesus mostra que a acusação é ridícula, e o demonstra por meio de
parábolas. No presente contexto, o termo “parábolas” significa
“comparações ilustrativas breves”. Jesus diz que se a acusação fosse
verdade, Satanás estaria expulsando a Satanás. Como pode ser isso? Não
haviam os escribas descrito a Satanás como príncipe ou governante de
um reino? Usando os próprios termos deles e fazendo uso de
“parábolas”, Jesus lhes responde que se a acusação fosse verdadeira, o
governante estaria destruindo seu próprio reino; o príncipe seu próprio
principado. Primeiro estaria enviando a seus servidores (os demônios) a
produzir um descalabro no coração e vida dos homens, destruindo-os em

129
Literalmente: “mas tem um fim”, o que quer dizer: está condenado; seus dias estão contados.
Marcos (William Hendriksen) 183
corpo e alma, com frequência pouco a pouco. Mas depois Satanás estaria
proporcionando o poder necessário para derrotar os seus fiéis servos e
expulsá-los vergonhosamente das vidas dos homens. Isto seria um ato de
vil ingratidão para com seus demônios e uma estúpida ação suicida.
Nenhum reino pode manter-se dividido desta maneira contra si mesmo.
Sob semelhantes condições qualquer casa iria também à ruína. Se isto é
realmente o que Belzebu está fazendo, “Não pode permanecer em pé,
mas sim chegou a seu fim”, é o que Jesus diz literalmente.
Explicação. Depois de refutar a acusação dos fariseus, Jesus
apresenta a verdadeira explicação de Suas vitórias sobre os demônios e
seu senhor:
27. Ninguém pode entrar na casa do valente para roubar-lhe os
bens, sem primeiro amarrá-lo; e só então lhe saqueará a casa.
A pergunta retórica de Mateus 12:29 se transforma aqui numa
declaração positiva. Em ambos os casos se transluz a mesma ideia. Na
vida real o ladrão não recebe ajuda voluntária do dono da casa. Pelo
contrário, a fim de levar o que quer, o ladrão imobiliza ao dono da casa.
Depois disto a saqueia. Por meio de Seus atos e palavras, Jesus arrebata a
Satanás aqueles tesouros que este considera seus e sobre os quais esteve
exercendo seu sinistro controle (Lc. 13:16). O Senhor expulsa os servos
de Belzebu (aos demônios), e assim restaura aquilo que Satanás destruiu
nas almas e corpos dos seres humanos com sua atividade nefasta. Jesus
já começou a atar a Satanás por meio de Sua encarnação, Sua vitória
sobre a tentação do diabo no deserto, Sua autoridade diante dos
demônios e por meio de todas as Suas obras. Este é um processo de
imobilização ou limitação do poder do mal que se fortaleceu muito mais
mediante a vitória de Cristo na cruz (Cl. 2:15) e na ressurreição, a
ascensão, e a coroação (Ap. 12:5, 9–12). Jesus realizou, está realizando,
e realizará, não mediante o poder de Belzebu, naturalmente, mas pelo
poder do Espírito Santo (veja-se os vv. 28, 29). O diabo está sendo
despojando de todos os seus bens. O diabo ficará sem suas propriedades,
quer dizer, sem as almas e os corpos dos seres humanos que domina. Isto
Marcos (William Hendriksen) 184
ocorrerá não só mediante curas e expulsões de demônios, mas também
por meio de um poderoso programa missionário que primeiro alcançará
os judeus e logo às nações em geral (Jo. 12:31, 32; Rm. 1:16). Não é esta
a chave para entender Ap. 20:3? 130 Observe-se também como em Lucas
10:17, 18 a queda de Satanás como “um raio caído do céu” é relatada
com relação à volta e relatório dos setenta missionários.
Fica claro, então, que os milagres de Cristo, longe de ser prova do
domínio de Satanás, como se o maligno fosse o Grande Capacitador, são
pelo contrário uma profecia de sua inevitável destruição. Esse reino já se
está desmoronando e em seu lugar surge, de uma forma nova e
maravilhosa, o reino glorioso que existiu através dos tempos. E Belzebu,
com tudo o seu poder e atividade, nada pode fazer para impedi-lo,
porque está preso. A vinda e obra de Cristo reduziram seu poder
substancialmente.
Exortação.
28, 29. Em verdade vos digo que tudo será perdoado aos filhos
dos homens: os pecados e as blasfêmias que proferirem. Mas aquele
que blasfemar contra o Espírito Santo não tem perdão para sempre,
visto que é réu de pecado eterno.
A seção paralela de Lucas (11:14–23) não contém esta séria
advertência; mas veja-se Lc. 12:10. Seu paralelo em Mateus 12:31, 32 é
muito parecido. 131
Jesus introduz sua exortação com um profundo e intenso: “Em
verdade vos digo”. Este “Em verdade” aparece aqui pela primeira vez no
Evangelho de Marcos. A palavra Amém é uma palavra hebraica que se

130
Veja-se meu livro: Más que vencedores: Una interpretación del libro de Apocalipsis (Grand
Rapids: TELL, 1970), pp. 228–231.
131
Há umas poucos variações que não afetam o essencial. Marcos diz “os filhos dos homens”, onde
Mateus diz “homens”, mas a expressão “filho do homem” pode ter o significado de “homem”. Veja-se
CNT sobre Mt. 8:20. Marcos [Mc. 3:28, RC] diz “todos os pecados serão perdoados aos filhos dos
homens, e toda sorte de blasfêmias”, onde Mateus diz, “todo pecado e blasfêmia”. Mateus especifica o
que em Marcos está implícito, quer dizer, que entre os pecados que se perdoam se acham aqueles que
se cometem contra “o Filho do Homem”.
Marcos (William Hendriksen) 185
refere em geral a ideias de fato e fidelidade. A palavra acompanha a
declarações que afirmam ou confirmam uma verdade solene. No Antigo
Testamento o único Amém encontra-se em Dt. 27:15, 16–26; 1Rs. 1:36;
1Cr. 16:36; Ne. 5:13; Sl 106:48; e Jr. 28:6. O duplo Amém se acha em
Nm. 5:22; Ne. 8:6; Sl 41:13; 72:19; e 89:52. No Novo Testamento a
palavra Amém é um acusativo adverbial, que combina as ideias de
veracidade e solenidade. A tradução “Em verdade vos digo” (RA), não
está errada, mas hoje em dia se considera um pouco arcaica. Há diversas
opiniões sobre se “Eu lhes asseguro” (NVI) contribui à mesma plenitude
de significado, ou se perdeu algo da força e solenidade geralmente
associada com “Em verdade”. Cada vez que esta palavra aparece no
Novo Testamento — e o leitor pode examinar isto por si mesmo por
meio de uma Concordância — não só introduz uma declaração que
expressa uma verdade ou fato (como, p. ex., 2 + 2 = 4), mas também
aponta a um fato importante e solene, um fato que em muitos casos
difere da opinião e expectação popular, ou que ao menos causa certa
surpresa. É por esta razão que eu adotei a tradução “Solenemente vos
declaro”. 132
As palavras que seguem a esta solene introdução afirmam que
“todas as coisas”, ou seja, todos os pecados, e especificamente neste
contexto, todas as blasfêmias serão perdoadas aos filhos dos homens. A
referência é, certamente, a todos os pecados dos quais os homens se
arrependam sinceramente. Isto se aplica também a Mt. 12:31; Lc. 12:10.
Claro que em nenhuma destas passagens menciona-se a condição do
arrependimento. Entretanto, é evidente que está implícito em Mc. 1:15;
2:17; 6:12; cf. Mt. 4:17; 12:41; Lc. 5:32; 13:3, 5; 15:7; 17:34. Veja-se
também Sl 32:1, 5; Pv. 28:13; Tg. 5:16; 1 Jo. 1:9. Esta regra é válida
também no que respeita àquele pecado tão odioso, quer dizer, a
blasfêmia. Mas é preciso levar em conta que às vezes as Escrituras usam
esta palavra num sentido mais amplo do qual nós lhe conferimos. Para

132
Cf. Williams: “Solenemente digo”.
Marcos (William Hendriksen) 186
nós a “blasfêmia” poderia definir-se como “irreverência desafiadora”.
Pensamos, por exemplo, em delitos tais como amaldiçoar a Deus ou
amaldiçoar o rei que reina pela graça de Deus, ou na degradação pertinaz
das coisas que se consideram santas, rebaixando-as ao plano do secular,
ou na pretensão de dar ao secular ou puramente humano a honra que
pertence só a Deus. Em grego, não obstante, a palavra “blasfêmia”
recebe também um sentido mais geral, ou seja, o uso de uma linguagem
insolente contra Deus ou contra o ser humano, o qual inclui a difamação,
o insulto, a afronta (Ef. 4:31; Cl. 3:8; 1Tm. 6:4). Em consequência,
quando Jesus nos assegura que “todas as coisas serão perdoadas aos
filhos dos homens, todos os seus pecados e qualquer blasfêmia que
proferirem”, está usando a palavra “blasfêmia” em seu sentido mais
geral. Entretanto, quando faz a exceção — “mas qualquer que proferir
blasfêmia contra o Espírito Santo não receberá perdão jamais” — está Se
referindo a um pecado que mesmo em nosso idioma seria considerado
como “blasfêmia” (cf. Mc. 2:7; Lc. 5:21; Jo. 10:30, 33; Ap. 13:1, 5, 6;
16:9, 11; 17:3).
Não obstante, para toda irreverência obstinada, exceto uma, há
perdão. Se assim não fosse, como teria sido possível perdoar o pecado de
Pedro (Mc. 14:71) e como teria podido restabelecê-lo (Jo. 21:15–17)?
Como se teria perdoado a Saulo (= Paulo) de Tarso (1Tm. 1:12–17)? Por
outro lado, para a “blasfêmia contra o Espírito Santo” não há perdão
jamais. Tal pessoa é culpada de “um pecado eterno”; quer dizer, seu
pecado jamais será apagado.
Ainda resta uma pergunta: Como devemos entender de que a
blasfêmia contra o Espírito Santo é imperdoável? Quanto aos outros
pecados, não importa quão ofensivos ou grosseiros sejam, há perdão para
eles. Houve perdão para Davi, quem cometeu adultério, foi desonesto e
mandou assassinar um homem (2Sm. 12:13; Sl 51; cf. Sl 32); também
foram perdoados os “muitos” pecados da mulher de Lucas 7; ao filho
pródigo se perdoou a vida libertina que levou (Lc. 15:13, 21–24); houve
perdão para a tríplice negação de Pedro acompanhada de maldições (Mt.
Marcos (William Hendriksen) 187
26:74, 75; Lc. 22:31, 32; Jo. 18:15–18, 25–27; 21:15–17) e para a
perseguição sem misericórdia que Paulo desatou contra os cristãos antes
de sua conversão (At. 9:1; 22:4; 26:9–11; 1Co. 15:9; Ef. 3:8; Fp. 3:6).
Mas para aquele que “fala contra o Espírito Santo” não há perdão.
Por que não? Aqui, como sempre quando o texto em si mesmo não
é imediatamente claro, o contexto deve ser nosso guia. O contexto nos
informa que os escribas atribuíam a Satanás as obras que o Espírito
Santo realizava por meio de Cristo. Além disso, cometiam esse pecado
de uma maneira obstinada e deliberada. Apesar de todas as evidências
em contrário, seguiam afirmando que Jesus expulsava demônios pelo
poder de Belzebu. Não só isto, mas além disso, também havia uma
progressão no pecado, conforme o demonstra claramente a comparação
de Mc. 2:7; 3:6; com 3:22. Agora, ser perdoado implica que o pecador
deve ter uma atitude de sincero arrependimento. Entre os escribas
mencionados aqui, não havia nem um ápice de tristeza genuína. Em
lugar de penitência havia endurecimento, em lugar de confissão, complô.
Deste modo, por sua própria dureza criminal e totalmente
indesculpável, condenavam-se a si mesmos. Seu pecado era
imperdoável, porque resistiam percorrer a senda que conduz ao perdão.
Para o ladrão, o adúltero, o homicida há esperança. A mensagem do
evangelho pode fazê-lo exclamar, “Ó Deus, tem misericórdia de mim,
pecador”. Mas quando um homem se endureceu, de modo que está
decidido a não prestar atenção alguma aos impulsos do Espírito, nem
sequer a escutar Seus rogos e advertências, colocou-se a si mesmo no
caminho que leva à perdição. Cometeu o pecado “de morte” (1Jo. 5:16;
veja-se também Hb. 6:4–8).
Todo aquele que estiver verdadeiramente arrependido, por muito
vergonhosas que tenham sido suas transgressões, não se deve desesperar
(Sl 103:12; Is. 1:18; 44:22; 55:6; Mq. 7:18–20; 1Jo. 1:9). Por outro lado,
não existe desculpa para ser indiferente, como se o relacionado com o
pecado imperdoável não fosse preocupação alguma para o membro
regular da igreja. A blasfêmia contra o Espírito Santo é o resultado de
Marcos (William Hendriksen) 188
um progresso gradual no pecado. Se a pessoa não se arrepender de
entristecer o Espírito (Ef. 4:30), ela começará a resistir ao Espírito (At.
7:51). Se persistir nesta conduta, a pessoa apaga o Espírito (1Ts. 5:19). A
verdadeira solução acha-se no Salmo 95:7b, 8a: “Hoje, se ouvirdes a sua
voz, não endureçais o coração.” (cf. Hb. 3:7, 8a).
Marcos agrega:
30. Isto, porque diziam: Está possesso de um espírito imundo.
Esta é uma dessas declarações explicativas achadas frequentemente
no Evangelho de Marcos (cf. Mc. 4:33, 34; 7:3, 4; 7:19b; 15:16). A
palavra “eles” (implícito) refere-se aos escribas, chamando a atenção ao
que estes homens diziam, segundo se registra no versículo 22. Não se
pode aceitar a ideia de que as palavras blasfemas, “Está possesso de um
espírito imundo” poderiam sugerir que aqueles inimigos de Jesus não
consideravam Belzebu como Satanás, mas antes, como algum outro
espírito imundo. Não é este o significado, como tampouco o é que João
4:24 pudesse dar a entender que Deus é meramente um entre muitos
espíritos, como se todos estivessem no mesmo nível. A identificação de
Belzebu = Satanás já ficou demonstrada. E, naturalmente, ele também é
um “espírito imundo”, o pior de todos.

Mc. 3:31–35 - A mãe e os irmãos de Jesus


Cf. Mt. 12:46–50; Lc. 8:19–21

31. Nisto, chegaram sua mãe e seus irmãos e, tendo ficado do


lado de fora, mandaram chamá-lo.
Não foi revelado o motivo exato pelo qual a mãe e os irmãos de
Jesus apareceram em cena tratando de fazer contato com Ele. É provável,
entretanto, que os versículos 21, 22 projetem alguma luz sobre isto. Se
assim fosse, então a explicação mais benévola, e talvez a mais natural,
seria que os comentários perturbadores a respeito de Jesus — por
exemplo, que Seus adversários O consideravam endemoninhado e que
inclusive Seus amigos pensavam que tinha perdido o juízo — tinham
Marcos (William Hendriksen) 189
induzido a mãe de Jesus e os seus irmãos, por afeto natural, a tratar de
subtraí-lo dentre a multidão para Lhe proporcionar um retiro onde
pudesse repousar e recuperar-se fisicamente. Como já se assinalou, esta
interpretação não é aval ao que expositores afirmam que Maria e seus
outros filhos compartilhavam o ponto de vista dos “amigos” (v. 21),
pensando que Aquele ser tão querido estava ou ia caminho da demência.
Quanto à identidade destes irmãos de Jesus, a evidência favorece a
interpretação de que Jesus e estes homens eram fruto do mesmo ventre, o
de Maria. Os argumentos em apoio desta posição são os seguintes:
a. Em outros lugares também somos informados claramente que
Jesus tinha irmãos e irmãs, com os quais evidentemente Ele formava
uma só família (Mt. 12:46, 47; Mc. 6:3; Lc. 8:19, 20; Jo. 2:12; 7:3, 5, 10;
At. 1:14).
b. Lucas 2:7 nos informa que Jesus foi o “primogênito” de Maria.
Embora em si mesmo este segundo argumento não seja suficiente para
provar que Jesus tinha irmãos carnais, nascidos da mesma mãe, não
obstante, em combinação com o argumento a. a evidência chega a ser
quase concludente.
c. Por último, Mateus 1:25 deixa claro que primeiro Jesus veio ao
mundo, e que depois José e Maria entraram nas relações que usualmente
se associam com o casamento. Depois do nascimento de Jesus, José e
Maria tiveram filhos, que em consequência foram irmãos e irmãs de
Jesus. 133 Os nomes dos irmãos estão consignados em Marcos 6:3 (cf. Mt.
13:55). Tudo isto faz com que a obrigação de ter que apresentar provas
recaia totalmente sobre aqueles que negam estes fatos.
Tão grande era a aglomeração (v. 20; cf. Lc. 8:19) que foi
impossível que a família de Jesus chegasse até onde Ele estava. Assim
que enviaram a alguém para O chamar.

133
É claro, portanto, que a doutrina da “virgindade perpétua” de Maria não tem apoio no Novo
Testamento. Quanto a Ez. 44:2, “Esta porta estará fechada”, e Ct. 4:12, “Jardim fechado és tu, minha
irmã, noiva minha”, é muito difícil entender como podem ser usadas estas passagens do Antigo
Testamento para apoiar esta doutrina!
Marcos (William Hendriksen) 190
32. Muita gente estava assentada ao redor dele e lhe disseram:
Olha, tua mãe, teus irmãos e irmãs estão lá fora à tua procura.
O quadro é muito vivo. Quase se pode ver e ouvir como a
mensagem vai passando da mãe e os irmãos de Jesus, a um mensageiro
determinado, e dele às pessoas sentadas mais perto do Mestre, e deles ao
próprio Jesus. De maneira muito natural e totalmente humana Jesus
recebe nesse momento a notícia de que Sua mãe e irmãos estão à Sua
procura e desejam que saia.
Jesus utiliza a interrupção para tirar um proveito dela. Sempre fez
isto com as interrupções. Interromperam-no enquanto orava (Mc. 1:35),
ao falar a uma multidão (Mc. 2:1ss.), dormindo num barco (Mc. 4:37ss.),
conversando com seus discípulos (Mc. 8:31ss.), ou viajando (Mc.
10:46ss.), e sempre soube como transformar uma interrupção num
trampolim para proclamar grandes ensinos ou para a realização de
alguma grande obra.
Assim sucedeu também aqui, segundo se vê nos versículos
33–35. Então, ele lhes respondeu, dizendo: Quem é minha mãe e
meus irmãos? E, correndo o olhar pelos que estavam assentados ao
redor, disse: Eis minha mãe e meus irmãos
Embora a relação entre Jesus e Sua mãe era de uma tenra
preocupação, como já foi explicado com relação ao versículo 21, nunca
permitiu que ela O separasse de fazer o que sabia que Seu Pai celestial
desejava que fizesse, segundo já vimos (veja-se mais acima, no v. 21, em
“A respeito de d.”). Tampouco permitiu que Seus irmãos O desviassem
(veja-se Jo. 7:2ss.). Ao dizer, “Quem é minha mãe e (quem são) meus
irmãos?” ensina que o que vale para Ele vale para todos: todos devem
esforçar-se para fazer a vontade de Deus (cf. Mt. 10:37; Lc. 14:26).
Neste sentido, os laços físicos não são tão importantes como os
espirituais.
Marcos relata que enquanto Jesus respondia Sua própria pergunta,
olhava aos que estavam sentados — todos estavam provavelmente numa
casa — em círculo ao Seu redor.
Marcos (William Hendriksen) 191
Mateus acrescenta que estendeu Sua mão indicando os Seus
discípulos. Com este significativo olhar e gesto, o Mestre particularizou,
“Eis aqui minha mãe e meus irmãos”. Este “irmãos” não se deve
interpretar como se Jesus reconhecesse só os varões como membros de
Sua família espiritual. Provavelmente disse, “minha mãe e meus irmãos”
para corresponder a “tua mãe, teus irmãos e irmãs estão lá fora à tua
procura”. É evidente que nenhuma pessoa fica excluída da família de
Cristo por causa de seu sexo, como o indicam as palavras que
imediatamente seguem: Portanto, qualquer que fizer a vontade de
Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe.
Com toda probabilidade, tanto as palavras como o gesto de bondosa
inclusão, iam dirigidos primeiro aos Doze (embora dificilmente podiam
aplicar-se a Judas Iscariotes em sentido favorável). Ao que parece eles
estavam sentados mais perto de Jesus. Com sua resposta imediata ao
chamado de Jesus, sem lhes importar os sacrifícios exigidos (Mt. 19:27–
29; Lc. 5:28; 9:58; 14:26), os apóstolos tinham demonstrado que sua
intenção fundamental era indubitavelmente levar a cabo a vontade de
Deus em sua vida. Não é de estranhar, então, que Jesus assinalasse a eles
e publicamente reconhecesse que eles estavam incluídos em Sua família
espiritual. E, visto que a palavra “qualquer” é muito ampla, é indubitável
que também estavam incluídos outros “discípulos” além dos Doze.
Quanto a Maria, embora se deva reconhecer sua solicitude afetuosa,
também tem que admitir-se que se equivocava. Em certo sentido estava
repetindo aquela interferência pecaminosa manifestada numa ocasião
anterior (Jo. 2:3). Portanto, se com relação a Marcos 3:31–35 temos
razão ao falar de um ambiente de “tensão”, entendemos que o que
realmente produziu esta tensão foi esta interferência pecaminosa, e não a
suposta opinião de Maria e os irmãos de Jesus de que Jesus estava fora
de Si. Mas assim como naquela ocasião anterior Maria viu rapidamente
seu erro e foi fortalecida na fé (veja-se Jo. 2:5) pelas palavras de ternura
e a severa repreensão que Jesus lhe dirigiu (Jo. 2:4), no presente caso a
palavra do Salvador (Mc. 3:33–35) teve nela o mesmo efeito saudável. A
Marcos (William Hendriksen) 192
fé de Maria chegou a expressões belas como as que se acham em Lc.
1:38; 1:46–55; 2:19; e 2:51. Por isso, não há nenhuma razão para duvidar
que, em virtude da graça de Deus, a fé de Maria triunfou acima de todo
reverso temporal. Segundo Atos 1:14 é evidente que saiu realmente
vitoriosa. Os irmãos de Jesus compartilharam esta vitória (veja-se essa
mesma passagem).
Cristo fez uma afirmação muito generosa (Mc. 3:33–35), visto que
era óbvio que Seus discípulos não haviam de modo algum alcançado o
pináculo da perfeição espiritual. Por exemplo, os Doze eram homens de
“pequena fé”, e assim permaneceram por longo tempo (veja-se mais
acima, nos vv. 16–19). Entretanto, não Se envergonhou de chamá-los
“irmãos” (Hb. 2:11).
Observe-se o inclusivo de seu “qualquer” (que faz a vontade de
Deus). Abrange o negro e o branco, o vermelho, o moreno, o amarelo; o
varão e a fêmea; o velho e o jovem; o rico e o pobre; o servo e o livre; o
educado e o ignorante; o judeu e o gentio. Mas observe-se também a
exclusividade: estão incluídos aqueles, e só aqueles, que fazem a vontade
de Deus. A essência do que Deus requer entende-se facilmente pelo
exame das seguintes passagens do evangelho de Marcos: Mc. 4:9, 20, 21,
24; 5:19, 34; 6:31, 37; 8:34–38; 9:23, 35–37, 41; 10:9, 14, 29–31, 42–45;
11:22–26; 12:17, 29–31, 41–44; 13:5, 10, 11, 13, 23, 28, 29, 37; 14:6–9,
22–26, 38; 16:6, 7, 15.
Deve-se sublinhar, entretanto, que ninguém é capaz de “fazer a
vontade de Deus” exceto pelo poder e a graça soberana de Deus. Esta
não é somente uma doutrina paulina (Ef. 2:8; Fp. 2:12, 13), é também o
ensino de Cristo. Como nos diz Marcos, Deus — podemos dizer também
Jesus Cristo — é o grande capacitador (Mc. 1:17). O que salva é o poder
de Deus (Mc. 10:27) e o sacrifício vicário e expiatório de seu Filho Jesus
Cristo (Mc. 10:45; 14:24). Em última instância, o homem é incapaz em
si mesmo. Depende totalmente da misericórdia e da compaixão do
Senhor (5:19; 6:34; 8:2). Não é este o fato que explica a ênfase no ensino
Marcos (William Hendriksen) 193
de Cristo, segundo se reflete em Marcos, da necessidade de fé genuína e
oração perseverante? (Mc. 1:35; 5:36; 9:23, 29; 1:22–24).

Resumo do Capítulo 3

Este capítulo contém cinco seções que se podem resumir como


segue:
a. Continuação das controvérsias em torno do sábado (vv. 1–6).
Nesta seção o Filho do Homem continua fazendo valer Sua autoridade
como Senhor do sábado. A atenção aparta-se dos campos de trigo e se
concentra na sinagoga. Jesus toma parte ativa no culto do sábado (Lc.
6:6). Entre os adoradores há alguns fariseus, hostis a Jesus. Também está
presente um homem com uma mão seca. Os fariseus esperam que Jesus
busque curar este homem, com a intenção de poder acusá-Lo e destruir
Aquele que cura pelo delito de curar desnecessariamente num dia em
que, conforme as regras dos rabinos, não estava permitido. O que Jesus
ia fazer era justamente restabelecer aquela mão. A situação real, então,
era esta: os fariseus estavam tratando de fazer o mal, destruir. Jesus
procurava fazer o bem, restabelecer. De modo que, depois de pedir ao
homem que se pusesse de pé num lugar onde todos pudessem vê-lo,
Jesus, que tinha lido o pensamento de Seus adversários mesmo antes de
que o expressassem, perguntou-lhes, “É lícito no sábado fazer o bem ou
fazer o mal, salvar a vida ou matar?” A resposta foi um silêncio
persistente e mal-humorado. Com santa indignação Jesus olhou a cada
um deles alternadamente, até que completou o círculo. Logo ordenou ao
homem que estendesse sua mão. Não tocou a mão do homem, nem
tampouco disse, “Mão, recebe a cura”, nem nada disso. Não obstante, a
mão foi totalmente restabelecida imediatamente. Tão furiosos estavam os
fariseus que, abandonando a sinagoga, entraram em seguida em consulta
com os herodianos com a intenção de matar a Jesus.
b. Multidão heterogênea na praia (vv. 7–12). Numa ocasião
anterior, depois de ter curado o homem paralisado, Jesus se tinha
Marcos (William Hendriksen) 194
retirado à margem do Mar da Galileia (Mc. 2:1–13). Assim o faz agora
também, depois da cura da mão paralisada. Quanto mais curava, tanto
mais aumentava a multidão. De todas as partes da Palestina, e até de
fora, as pessoas iam a Ele, na maioria dos casos para que as curasse ou as
libertasse dos demônios que as dominavam. Tanto se aglomerou a
multidão ao redor de Jesus, que este ordenou aos Seus discípulos que
sempre tivessem preparado um barquinho para Ele, a fim de usá-lo em
qualquer momento de necessidade … lição válida em toda circunstância.
Quanto aos demônios, Jesus lhes proíbe, por razões próprias, que
revelem Sua identidade como “Filho de Deus”.
c. Eleição dos Doze (3:13–19). Entretanto, Jesus considerava as
multidões uma bênção e não uma moléstia. Não tinha vindo ao mundo
para buscar e salvar os perdidos? Portanto, nomeia os Doze a fim de que,
começando já então, mas especialmente depois de Sua partida da terra,
eles pudessem proclamar a mensagem de Cristo e realizar Suas obras de
graça.
d. Jesus contra Belzebu (3:20–30). Não só Seus inimigos (vv. 1–6,
22), mas inclusive Seus bem intencionados “amigos”, quer dizer, alguns
dos que num sentido ou outro estavam associados a Ele, começam a Lhe
produzir dificuldades. Quando observam que mesmo estando em casa,
por causa da aglomeração, nem Ele nem Seus discípulos tomavam
descanso para ir comer, declaram, “Está fora de si”, querendo dizer
talvez que Se está consumindo pelo “fanatismo religioso”. Embora estes
amigos bem intencionados estivessem errados, o juízo de Seus inimigos
jurados, os escribas, foi muito mais ímpio e cruel. Tinham tomado nota
das abundantes curas e expulsões de demônios, especialmente do
relatado em Mt. 12:22, 23; Lc. 11:14, e tinham descido de Jerusalém,
dizendo, “Está possuído por Belzebu”, e “É pelo príncipe dos demônios
que expulsa os demônios”. Sentiam-se amargurados ao ouvir falar a
respeito do entusiasmo da multidão, que começava a se perguntar se
talvez Jesus seria o Messias. Ele refuta Seus argumentos (“Como pode
Satanás expulsar a Satanás?”). Logo dá a verdadeira explicação de Seus
Marcos (William Hendriksen) 195
milagres (Ele atou o homem forte, Satanás = Belzebu, e portanto tem
autoridade e poder para tirar os seus bens: as almas e corpos dos
homens). Por último, solenemente lhes adverte que não há perdão para
os que permanecem até o fim em sua impenitência e endurecido coração.
e. A mãe e os irmãos de Jesus (3:31–35). Devido, possivelmente,
aos perturbadoras rumores a respeito de Cristo — que Seus adversários
O olhavam como endemoninhado e que inclusive alguns de Seus amigos
pensavam que se achava mentalmente extraviado — Sua mãe e Seus
irmãos tentaram pôr-se em contato com Ele, com a provável intenção, de
levá-lo com eles, separá-Lo da vista do público e Lhe proporcionar um
retiro para descansar e recuperar-se. Mas apesar do bem intencionado
deste propósito, isso equivalia a uma interferência pecaminosa no plano
preestabelecido das atividades de Cristo. A Maria e aos irmãos de Jesus
era preciso fazer entender que Seus passos não Se podiam determinar
pelos laços físicos, mas somente pela vontade de Deus. Daí que o
capítulo termine de uma maneira bela: “E, correndo o olhar pelos que
estavam assentados ao redor, disse: Eis minha mãe e meus irmãos.
Portanto, qualquer que fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e
mãe”.
Marcos (William Hendriksen) 196
MARCOS 4
Mc. 4:1–9 - Parábolas: Palavras introdutórias e a Parábola do
semeador
Cf. Mt. 13:1–9; Lc. 8:4–8

1. Voltou Jesus a ensinar à beira-mar. O significado é: De novo,


como o fez anteriormente (Mc. 2:13; 3:7). Refere-se à margem do Mar
da Galileia. Marcos não diz o momento exato em que se reatou o ensino
junto ao mar, mas veja-se Mateus 13:1. E reuniu-se numerosa
multidão a ele, de modo que entrou num barco, onde se assentou,
afastando-se da praia. E todo o povo estava à beira-mar, na praia.
Embora em algumas ocasiões anteriores a multidão era “grande” (Mc.
3:7; cf. 1:34; 2:2, 15; 3:8, 10), desta vez a multidão se descreve como
“numerosa”. 134 Resultado: Nesta ocasião sabemos (contraste-se com Mc.
3:9) que Jesus realmente entrou no barco, e que logo remaram a certa
distância da praia. Da terra a grande multidão olhava rumo ao mar 135
quer dizer, para Jesus, quem por Sua vez olhava à multidão.
De modo que, desta vez o Senhor usou um barco como púlpito. Este
ponto não se deve passar por alto levianamente. Um dos fatos
sobressalentes do ministério terrestre de Cristo é a rica variedade de
recursos que usou para alcançar os Seus ouvintes. Em muitas ocasiões
deve ter pregado e ensinado nos cultos regulares da sinagoga (Mc. 1:21,
39; 3:1; 6:2); e na Judeia também no templo (Jo. 18:20). Cria que a
pessoa devia assistir com regularidade ao culto de adoração (Lc. 4:16).
Isto indica que o costume de mudar a assistência à igreja por reuniões
em grupos pequenos não é boa, salvo em circunstâncias especiais que
surgem de doenças ou por força maior. Por outro lado, esta regularidade
não Lhe impediu de aproveitar outras oportunidades para anunciar as
134
Note-se, πλεῖστος superlativo de πολὑς. Este superlativo usa-se aqui em sentido elativo.
135
Embora πρὸς τὴν θάλασσαν pode traduzir-se, “junto ao mar”, não obstante “olhando ao mar” (cf.
Jo. 1:1) é também possível, e talvez preferível à vista da viveza característica de Marcos.
Marcos (William Hendriksen) 197
boas novas. Não Se limitava ao templo ou à sinagoga, mas Se dirigia às
multidões em qualquer lugar. Falou com o povo de um monte (Mt.
5:1ss), numa casa (Mc. 2:1ss), junto ao mar (4:1a), no deserto (8:1–4),
sentado num barco (4:1b) e inclusive a um grupo reunido num cemitério
(Jo. 11:38ss). Não havia “afetação” nem formalismo no Mestre. Sem
perder de vista os princípios — porque nunca houve pecado nEle (Jo.
8:46) — sempre Se adaptava às circunstâncias, ou as circunstâncias a Ele
(cf. 1Co. 9:19–22).
O mesmo se pode dizer com relação à Sua flexibilidade para
selecionar um auditório, ou permitir que um auditório O escolhesse
como pregador. Falou com qualquer pessoa que queria ouvi-Lo:
multidões, os Doze, indivíduos separadamente; publicanos e pecadores;
não só homens, mas também mulheres; não só judeus, mas também
gentios; aos pobres como também aos ricos. Proclamou as boas novas a
todos.
Finalmente, conforme indica a presente seção, em Suas pregações e
ensinos fez uso abundante de ilustrações e parábolas, quer dizer, de
“histórias terrestres com significado espiritual”. Na realidade, um estudo
das palavras e discursos de Cristo, revela que Seu estilo abrangeu uma
ampla gama de métodos para despertar o interesse. Não obstante, todas
as Suas palavras foram “de coração a coração”. Não houve sorrisos
artificiais, gestos estudados nem palavras estereotipadas. Tudo era
autêntico. “Jamais homem algum falou como este homem!” (Jo. 7:46). A
consequência foi que ordenou, comissionou, admoestou, exortou,
explicou, perguntou, consolou, refutou, e predisse.
Por isso, ninguém dirá de seu pastor “é óbvio que está perto de
Jesus”, se o contato espiritual que tal pastor tem com os seres humanos
(destinados à eternidade!) reduz-se à entrega de um ou dois sermões por
semana. O mesmo ocorre se tal pastor se limita a ler à sua congregação
sermões que não desafiam, que não contêm tenras admoestações,
ilustrações nem um clímax final. Se o pastor só entregar seu sermão e
depois se retira ao seu estudo durante o resto da semana, ninguém dirá
Marcos (William Hendriksen) 198
que conhece a Jesus (cf. At. 4:13). A mesma pergunta deve ser feita ao
“leigo” cujo coração não está cheio de um quente amor por Cristo e que
não escuta com ânsias a Palavra e cuja boca não conhece o que é
transbordar de louvor e testemunho.
2. Assim, lhes ensinava muitas coisas por parábolas. Marcos só
apresenta uma pequena seleção destas parábolas (vv. 2b–32); Mateus nos
entrega uma seleção muita mais ampla (quase todo o cap. 13). Isto não
quer dizer que o grupo de sete parábolas a respeito do reino que se
encontram em Mateus sejam o registro completo de todas as parábolas
que Jesus falou naquela ocasião. Marcos primeiro apresenta a parábola
do semeador, a da semente que cresce em segredo, e a da semente de
mostarda. Depois conclui seu relato sobre este tema dizendo, “Com
muitas parábolas lhes falava a palavra …” (vv. 33, 34); e muda então
para outro tema. Depois de no decorrer do seu doutrinamento, Marcos
informa que Jesus começou a primeira série de parábolas dizendo,
3. Ouvi: Eis que 136 saiu o semeador a semear.
A palavra introdutória “Ouvi”, serve para chamar a atenção dos
ouvintes, e neste sentido só se acha em Marcos, e não em Mateus nem
em Lucas. Logo usa a frase que literalmente diz: “Eis que” ou “Olhai”. A
palavra usada no original tem a particularidade de promover o mesmo
efeito de interesse que a nossa “uma vez” ou “em certa ocasião”. 137 No
caso que nos ocupa, o foco de atenção não é o fato de que o semeador
tenha saído a semear, mas a história completa.
Em lugar de “o semeador” sugeriu-se a tradução “um agricultor”.
Entretanto, ao seguir o relato com esse critério, quando chegamos ao
versículo 14 teríamos que dizer “o agricultor semeia a palavra”. Mas isto

136
Ou talvez “Eis aqui” ou “Olhai” (em lugar de “Certa vez” ou “Em certa ocasião”).
137
A primeira destas duas alternativas (“uma vez”) é a tradução proposta por Phillips e por Norlie; a
segunda (“em certa ocasião”), é a sugerida por J. A. Alexander, The Gospel According to Matthew
(Nova York, 1867), p. 353.
Marcos (William Hendriksen) 199
revela imediatamente o inadequado de tal tradução, porque não é um
agricultor aquele que semeia a palavra, e sim o Filho do Homem. 138
4. E, ao semear, uma parte caiu à beira do caminho.
Era costume semear o trigo ou a cevada à mão. Mas os resultados
poderiam ser muito diferentes, dependendo do lugar onde caia a
semente. À medida que aquele homem semeava, era inevitável que parte
da semente caísse no caminho por onde ele passava ao cruzar o campo.
Visto que o lugar onde caiu não estava arado, e muitos o tinham pisado,
o solo estava muito duro para que uma semente o “penetrasse”. Assim
que ficava sobre a superfície, com o seguinte resultado: e vieram as aves
e a comeram. As aves agiram com rapidez e avareza. Tragaram a
semente e imediatamente foi parar no sistema digestivo; assim,
literalmente “elas (as aves) engoliram-na”.
5. Outra caiu em solo rochoso, onde a terra era pouca, e logo
nasceu, visto não ser profunda a terra.
É típico da Palestina ou Israel que grande parte de seu solo
cultivável se ache sobre uma capa rochosa. Em tal situação, em seu
processo de germinação, a semente tem só um caminho a seguir, quer
dizer, para cima. De modo que em lugar de arraigar-se primeiro
firmemente, a semente “brotou para cima imediatamente”.
6. Saindo, porém, o sol, a queimou; e, porque não tinha raiz,
secou-se.
Por causa da falta de profundidade da terra, esta semente não pôde
lançar raiz; é por isso que quando o sol saiu, queimou-se segundo
Mateus e Marcos. Lucas 8:6 nos diz a causa intermediária que a levou a
secar-se: (porque não tinha raiz) esta semente “careceu de umidade”.
Razão havia para que se queimasse e morresse.

138
Além disso, o original usa duas palavras — σπείρων e σπεῖραι — derivadas da mesma raiz; na
realidade duas formas da mesma palavra. A primeira é um substantivo derivado de um gerúndio; a
segunda, um infinitivo aoristo. Por último, mas não sem importância, a transição da parábola a seu
significado real faz-se muito mais fácil mediante a tradução “semeador … a semear” que com
qualquer outra tradução.
Marcos (William Hendriksen) 200
7. Outra parte caiu entre os espinhos; e os espinhos cresceram e
a sufocaram, …
Aquela terra estava infestada de raízes de espinheiros. Pelo fato de
que geralmente o que cresce mais rápido é o indesejável, e que cada
parcela de terreno tinha só o espaço necessário para uma quantidade
determinada de vida vegetal, não é raro que a erva daninha, cujo
crescimento é mais rápido, logo começasse a afogar a vitalidade da
nobre espiga. Marcos explica o resultado como segue: e não deu fruto.
8. Outra, enfim, caiu em boa terra e deu fruto, que vingou e
cresceu, produzindo a trinta, a sessenta e a cem por um.
Observe-se a mudança que faz Marcos do singular ao plural, da
semente coletiva às sementes individuais. Seria que neste caso o
evangelista (e Jesus antes dele) desejava dar ênfase especial à
diversidade da produção? Marcos descreve esta produção em ordem
ascendente: trinta, sessenta, cem; contraste-se com Mateus 13:8 (ordem
descendente). Descreve a cena mediante o uso do imperfeito (levavam,
produziam)!
A parábola conclui com uma sincera admoestação:
9. E acrescentou: Quem tem ouvidos para ouvir, ouça. Os
ouvidos têm que ser usados para ouvir, quer dizer, para escutar
atentamente e valorar o que alguém escuta. Através de todo o ensino de
Cristo, tanto na terra como do céu, seria difícil descobrir uma exortação
que Ele repetisse mais, de uma forma ou outra, que a do versículo 9
(veja-se também v. 23; cf. 8:18 tanto em Marcos como em Lucas; 13:9
tanto em Marcos como no Apocalipse; além disso Mt. 13:43; Lc. 8:8;
14:35; Ap. 2:7, 11, 17, 29; 3:6, 13, 22). Esta repetição não deve nos
surpreender. Não é acaso a falta de receptividade a que conduz
diretamente o pecado imperdoável se se persistir nela? As consequências
da falta de interesse para ouvir, ou ouvir e não obedecer, dão-se a
conhecer mediante a explicação de Jesus sobre a parábola (vv. 13–20).
Marcos (William Hendriksen) 201
Mc. 4:10–12 - O propósito das parábolas
Cf. Mt. 13:10–17, 36; Lc. 8:9, 10

A admoestação, “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça”, não foi


desatendida.
10. Quando Jesus ficou só, os que estavam junto dele com os
doze o interrogaram a respeito das parábolas.
Jesus agora Se achava sozinho, no sentido de que Se tinha
despedido da multidão e ido para casa. Entretanto, não se achava
totalmente sozinho. Com Ele estavam os Doze. Mas observe-se: “os que
estavam junto dele junto com os Doze”. O significado parece ser que,
além dos doze discípulos já conhecidos, achavam-se também presentes
alguns que pertenciam ao grupo mais geral dos seguidores constantes.
Marcos descreve este grupo heterogêneo no momento em que perguntam
a Jesus a respeito das parábolas. É significativo o uso do plural. Marcos,
antes de nos dizer que Jesus ficou “só”, relata só uma parábola, a do
semeador; conquanto Mateus primeiro registra quatro parábolas: o
semeador, o joio, a semente de mostarda, e a levedura. Depois destas
quatro parábolas, Mateus informa (Mt 13:36) que Jesus Se despediu da
multidão e foi embora a casa (ou “entrou na casa”), onde os discípulos
Lhe faziam perguntas. Entretanto, se fixarmos a atenção nas palavras
que Marcos usa para referir-se às perguntas que os discípulos fizeram a
Jesus e a resposta que Ele lhes deu (Mc. 4:10–12), devemos voltar
novamente a Mateus 13, mas desta vez aos vv. 10–17, especialmente os
vv. 10, 11, 13–15. O relato de Lucas (8:9, 10) parece ser um breve
resumo.
Os que estavam com Jesus desejavam saber duas coisas: a. por que
fazia uso de parábolas para falar com as multidões (cf. Mt. 13:10), e b.
qual era o significado de uma parábola em particular; por exemplo, o do
joio (Mt. 13:36), ou (aqui em Mc. 4:13) a do semeador.
Marcos (William Hendriksen) 202
11. Ele lhes respondeu: A vós outros vos é dado conhecer o
mistério do reino de Deus; mas, aos de fora, tudo se ensina por meio
de parábolas.
A palavra “mistério” é muito interessante. Fora do cristianismo, no
âmbito pagão, referia-se a um ensino ou cerimônia secreta relativa ao
religioso, mas oculta para a gente comum, e conhecida (ou praticada) por
um grupo de iniciados. Na tradução grega de Daniel 2 na LXX, onde a
palavra aparece não menos de oito vezes (como singular nos vv. 18, 19,
27, 30 e 47b; e como plural nos vv. 28, 29, e 47a), refere-se a um
“segredo” que deve ser revelado, a um enigma que deve ser interpretado.
No livro de Apocalipse, onde aparece quatro vezes (Ap. 1:20; 10:7; 17:5,
7), a melhor maneira de explicá-lo seria talvez definindo-o como “o
significado simbólico” daquilo que necessitava explicação. A palavra
aparece vinte e uma vezes nas epístolas de Paulo (Rm. 11:25; 16:25;
1Co. 2:1, 7; 4:1; 13:2; 14:2; 15:51; Ef. 1:9; 3:3, 4, 9; 5:32; 6:19; Cl. 1:26,
27; 2:2; 4:3; 2Ts. 2:7; 1Tm. 3:9, 16). Aqui se pode definir como uma
pessoa ou verdade que teria permanecido desconhecida se Deus não a
tivesse revelado; um segredo revelado ou aberto. Assim por exemplo, se
não se tivesse dado a conhecer, não teríamos sabido que em toda época
há um remanescente de judeus (também de gentios) que será salvo, até
que enfim, mediante a fé em Jesus Cristo “todo Israel” será recolhido; e
que este processo continuará até a volta de Cristo, quando o número
completo de gentios destinados à salvação tenha sido recolhido também
(Rm. 11:25). Do mesmo modo, se não tivesse sido revelado, não
poderíamos saber que “nem todos dormiremos”, etc. (1Co. 15:51). Um
“mistério”, ou segredo revelado muito parecido é o próprio Cristo, com
toda Sua gloriosa riqueza, habitando realmente mediante Seu Espírito na
vida e coração de gentios e judeus, unidos num corpo, a igreja (Ef. 3:4–
6; Cl. 1:26, 27). E como teria sido possível descobrir, sem a revelação
divina, que um dia o espírito de iniquidade se encarnará no “homem de
iniquidade”? (2Ts. 2:7).
Marcos (William Hendriksen) 203
Assim que, em geral podemos definir um “mistério” bíblico como
um segredo divinamente revelado, como uma pessoa ou coisa que sem
revelação não teria sido descoberta. Esta definição serve muito bem para
o contexto da presente passagem do Evangelho de Marcos (4:11) e seus
paralelos (Mt. 13:11; Lc. 8:10), únicos casos nos Evangelhos onde se usa
este vocábulo. Aqui o mistério é a poderosa manifestação do reinado
(“reino”, “majestade”) de Deus na vida e coração dos humanos. Tal
reino, em relação à vinda de Cristo, foi acompanhado de poderosas obras
tanto no plano físico como no espiritual. Jesus declara que o Pai estava
revelando o mistério de que, sem dúvida alguma, era o próprio Deus e
não Satanás quem fazia todas estas obras poderosas. Este mistério tinha
sido “dado”, quer dizer, “graciosamente revelado” aos que estavam com
Jesus naquele momento; na realidade, era revelado a todos os que O
haviam recebido com fé genuína. Aos de fora (literalmente: “aos que
estão fora”) “tudo lhes vem em parábolas”; quer dizer, apresentava os
ensinos de Cristo por meio de parábolas. Pelo que segue é claro que
quando Jesus fala aqui a respeito “dos de fora” está pensando
especialmente nos endurecidos fariseus e seus seguidores, homens de
corações impenitentes (cf. Mt. 13:13, 15), porque prossegue:
12. Para que, vendo, vejam e não percebam; e, ouvindo, ouçam
e não entendam; para que não venham a converter-se, e haja perdão
para eles.
Marcos resume desta forma a essência do texto citado por Cristo
(Is. 6:9, 10). Lucas 8:10 é mais breve. Uma declaração mais completa se
acha em Mateus 13:13–15. 139

139
O resumo de Marcos (cf. a tradução da LXX): “Para que vendo …, e ouvindo …”, preserva a
ênfase da subjacente construção hebraica de Is. 6:9, 10. Os plurais imperativos seguidos por
infinitivos absolutos no hebraico estão no grego de Marcos representados por particípios presentes
seguidos por subjuntivos. No hebraico toda a passagem (vv. 9, 10) consiste numa série de ordens
enfáticas, introduzidas por, “E disse: Anda e diga a este povo”. Logo segue: “Ouçam e ouçam, mas
não entendam, E vede e vede, mas não percebam [Ou: “Ouçam, por certo, mas não entendam, Vede
por certo, mas não percebam]. Engrossa o coração deste povo, e agrava seus ouvidos, e cega os seus
olhos; não seja que vejam com seus olhos, e ouçam com seus ouvidos, e entendam com seu coração,
Marcos (William Hendriksen) 204
Então, o que Jesus diz, é: “Para os de fora tudo vem em parábolas,
para que vejam e vejam, mas não percebam … não seja que se
convertam e sejam perdoados”. Mas, como pode ser isto possível? Não
resulta chocante? Pode ser verdade que o bondoso e misericordioso
Salvador, o mesmo que estendia constantemente tenros convites,
tomasse tanto trabalho para impedir que as pessoas percebessem e
entendessem a verdade? Pode-se dizer que realmente fizesse um esforço
para impedir que os homens se voltassem a Deus e fossem perdoados?
Fizeram-se várias tentativas para resolver este problema. Entre elas
estão as seguintes:
1. Afirma-se que se interpretarmos a partícula usada no grego como
querendo dizer “a fim de que” ou “de modo que”, estaríamos
interpretando mal o texto. 140 Ou se sugere que talvez o próprio Marcos
interpretou erroneamente a palavra aramaica que Jesus provavelmente
usou.
Resposta. Marcos representa a Jesus como dizendo não só “para
que” mas também “não seja que”. A combinação de que … não seja que
mostra que a partícula “para que” se interpreta melhor como indicando
propósito.
2. Esta expressão é uma versão falsa e inaceitável de uma
declaração genuína de Jesus. 141 Além disso, às vezes adiciona-se que em
vista de passagens tais como Mateus 11:28–30 e Apocalipse 3:20, Jesus
jamais pôde ter dito as palavras que se lhe atribuem em Marcos 4:11, 12.
Resposta. Não existe prova da teoria que considera esta expressão
como falsa e inaceitável. Além disso, é justo referir-se a Mateus 11:28–
30, mas esquecer o versículo 25, ou a Apocalipse 3:20 e deixar de lado o

convertam-se e sejam curados”. É evidente que Marcos abrevia, deixando fora toda referência a
“Engrossa o coração deste povo e agrava seus ouvidos …” Entretanto, retém, “… não seja que se
convertam e sejam perdoados”, uma forma legítima de dizer “… Não seja que se convertam e sejam
curados”.
140
Cf. A. T. Robertson, Word Pictures, Vol. I. p. 286. Sustenta que se a ἵνα (aqui em Mc. 4:12) de dá
o sentido causativo de ὅτι (em Mt. 13:13) o problema desaparece.
141
Véase Vincent Taylor, op. cit., p. 257
Marcos (William Hendriksen) 205
versículo 16? E por outro lado, acaso o resumo de Marcos não reflete
verdadeiramente o dito em Isaías. 6:9, 10?
3. Se as palavras de Cristo foram as que Marcos registra, devem ter
sido ditas em brincadeira. Evidentemente Jesus quis que Suas palavras
fossem tomadas exatamente em sentido oposto ao literal. Isto é claro
pelo fato de que Mateus muda diametralmente o significado da
declaração, fazendo com que Jesus diga “porque (em lugar de que)
vendo não veem …” 142
Resposta. Se aceitarmos que ao pronunciar o Mestre as palavras, “A
vós outros vos é dado conhecer o mistério do reino de Deus” falava
seriamente, declarando o que conhecia como um fato, não como uma
brincadeira, então o que segue, tão estreitamente ligado a estas palavras,
deve ser considerado também como um fato. E quanto ao pretendido
conflito entre Mateus, por um lado, e Marcos e Lucas, por outro, por que
não podem ambos estar certo?
A verdadeira explicação, na opinião deste autor, é a seguinte: as
duas partículas, porque e para que (tanto se significarem “a fim de que”
— o que eu prefiro — ou “de modo que”) são corretas. Por escolha
própria, os fariseus impenitentes e seus seguidores recusaram ver e
ouvir. Por isso, é-lhes dito agora em parábolas, como castigo por seu
rechaço, “para que vendo, vejam e não percebam, e ouvindo, ouçam e
não entendam, não seja que se convertam e sejam perdoados”. Devem
“confrontar as consequências de sua própria cegueira e dureza” (Calvino
sobre esta passagem). 143 Deus tinha dado àquelas pessoas uma excelente
oportunidade. Deus é soberano para tirar o que o homem não quer
melhorar, e entenebrecer o coração de quem se nega a escutar. Endurece
os que se endureceram. Se Deus submeter inclusive o entenebrecido
pagão à concupiscência de seu próprio coração, por deter com injustiça a
verdade (Rm. 1:18, 26), não castigará com maior severidade o

142
Veja-se E. Trueblood, The Humor of Christ (Nova York, Evanston, Londres, 1964), pp. 91, 92.
143
Veja-se também H. B. Swete, op. cit., p. 76.
Marcos (William Hendriksen) 206
impenitente diante de quem a Luz do mundo está confirmando
constantemente a fidelidade de Sua mensagem? E se abençoar os que
aceitam o misterioso, não amaldiçoará os que rejeitam o evidente? É
claro, então, que Mateus 13:13 está em harmonia com Marcos 4:12. Na
realidade, o “porque” do primeiro ajuda a explicar o “para que” do
segundo.
Quando por decisão própria, e depois de repetidas ameaças e
promessas, a pessoa rejeita o Senhor e desdenha Suas mensagens, então
Ele lhes endurece, para que os que não quiseram arrepender-se, não
possam arrepender-se e ser perdoados (veja-se também CNT sobre Mt.
13:10–15 e Jo. 12:37–41).

Mc. 4:13–20 - Explicação da parábola do semeador


Cf. Mt. 13:18–23; Lc. 8:11–15

Marcos já nos disse que, depois de despedir das multidões, Jesus


ficou sozinho com os Doze e outros seguidores, e que este grupo
heterogêneo lhe fez perguntas a respeito das parábolas (4:10). Lucas, de
maneira mais específica, acrescenta que estes discípulos perguntaram a
Jesus o significado da parábola do semeador (Lc. 8:9). Isto explica o que
a seguir lemos em Marcos 4:
13. Então, lhes perguntou: Não entendeis esta parábola e como
compreendereis todas as parábolas?
Se não entenderem a parábola do semeador, como poderiam chegar
a compreender 144 qualquer parábola? Isto significa que o Mestre
desejava que escutassem cuidadosamente, de modo que também
pudessem captar o significado de outras parábolas. Logo Jesus passa a
explicar a parábola:

144
Os dois verbos empregados no original são οἶδα (aqui οἴδατε) e γινώσκω (aqui γινώσεσθε). O
primeiro indica conhecimento por intuição ou perspicácia; o segundo, reconhecimento, observação,
experiência, e/ou relações. Veja-se CNT sobre Jo. 1:10, 11, 31; 3:11; 8:28, 55; 16:30; 21:17.
Marcos (William Hendriksen) 207
145
14. O semeador semeia a palavra.
Esta é uma das passagens-chave para o entendimento desta história
ilustrativa. É preciso tê-lo sempre em conta. A presente parábola fixa
nossa atenção em dois objetos: no semeador e na semente. Não obstante,
esta parábola não identifica o semeador, porque sublinha mais a função
que cumprem os tipos de terreno que a função do semeador. Porém, na
parábola do joio somos informados de forma definitiva que o semeador é
o Filho do Homem (Mt. 13:37), a saber, é o próprio Jesus (Mt. 16:13–
15). Portanto, quanto ao semeador de Marcos 4:13–20, devemos dizer
que embora a parábola não identifique a Jesus em nenhum lugar, não há
razão para negar que se trate de Jesus, quem Se identifica a Si mesmo
como o Semeador. Mediante uma legítima prolongação da figura (veja-
se Mt. 10:40) podemos dizer que o Semeador não só é o próprio Jesus,
mas também qualquer pastor, missionário, evangelista, ou quem quer
que dê um testemunho sincero e que verdadeiramente proclame a
mensagem do Filho de Deus. Quanto à semente, já nos foi dito — e isto
se acha implícito no termo mesmo — que “o semeador” semeia a
semente (Mc. 4:3ss.). Assim que, quando Jesus agora diz, “O semeador
semeia a palavra”, a conclusão deve ser que a semente simboliza a
palavra, a mensagem que vem de Deus (veja-se também Mt. 13:19; Lc.
8:11).
Pode acrescentar-se a estes dois pontos um terceiro: a “terra” ou
“solo” sobre o qual cai a semente é claramente o coração do homem, ou,
se preferir-se, o próprio homem. Sem dúvida, isto é o que se indica em
Mateus 13:19a, “o que lhes foi semeado no coração”. Em cada um dos
quatro casos registrados na parábola, a “terra” (quer dizer o coração ou a
pessoa) é diferente. se poderia falar do coração insensível (Mc. 4:15), do
coração impulsivo (vv. 16, 17), do coração laborioso (vv. 18, 19), e do
coração bom, sensível, ou preparado (v. 20). Substitua-se a palavra
“coração” por “pessoa” e o significado fica essencialmente o mesmo. O

145
Ou: “a mensagem”; e assim por toda a parábola.
Marcos (William Hendriksen) 208
“coração” indica a “pessoa” ou o “ouvinte” tal como é no profundo de
seu ser. Portanto, o que segue é correto: “Qual é, então, a lição? O
Salvador nos deu a resposta em Sua própria interpretação da história. A
semente é a palavra de Deus, ou a palavra do reino; e o terreno são os
corações humanos. De modo que, reduzida a uma regra geral, o ensino
da parábola é que o resultado do ouvir o evangelho, sempre e em todo
lugar, depende da condição do coração daqueles a quem lhes apregoa. A
índole do ouvinte determina o efeito da palavra nele”. 146

Corações insensíveis
Jesus prossegue:
15. São estes os da beira do caminho, onde a palavra é semeada;
e, enquanto a ouvem, logo vem Satanás e tira a palavra semeada
neles.
Significado: as pessoas representadas pela semente semeada no
caminho (veja-se v. 4) são a classe de pessoas que deixam que Satanás, o
grande adversário (veja-se mais acima a respeito de 1:13), arrebate-lhes a
mensagem que foi semeado nelas. Jesus não pretende de modo algum
desculpar estas pessoas, como se só Satanás fosse o responsável pelo que
sucede com a mensagem divina que lhes foi entregue. O versículo 15 não
anula o versículo 9! Mas no versículo 15, diz-se que estes ouvintes
frívolos cooperam com o príncipe do mal, ao tratar com tanta
superficialidade a palavra de Deus.
Esta gente não faz nada com a mensagem, não a aproveitam para
seu próprio bem. Portanto, tendo ouvido a mensagem, qualquer efeito
favorável que pudesse ter produzido neles, fica “imediatamente”
aniquilado. Qual é a causa de sua reação negativa? Talvez má vontade
para com o mensageiro, ou possivelmente hostilidade a esta mensagem
em particular, ou simplesmente, que não querem ser incomodados (At.
24:25). O espírito de indiferença pode ter penetrado neles, talvez pouco a

146
W. M. Taylor, The Parables of Our Savior, Expounded and Illustrated (Nueva York, 1886), p. 22.
Marcos (William Hendriksen) 209
pouco, até chegar a ser total, chegando seu coração a ser tão duro como o
caminho sobre o qual se espalhou a semente da parábola.
O Senhor, falando com Ezequiel, deu a seguinte descrição dos que
ouviam o profeta: “Eis que tu és para eles como quem canta canções de
amor, que tem voz suave e tange bem; porque ouvem as tuas palavras,
mas não as põem por obra” (Ez. 33:32). Cf. Mt. 7:26.

Corações impulsivos
16, 17. Semelhantemente, são estes os semeados em solo rochoso, os
quais, ouvindo a palavra, logo a recebem com alegria. Mas eles não têm
raiz em si mesmos, sendo, antes, de pouca duração; em lhes chegando a
angústia ou a perseguição por causa da palavra, logo se escandalizam.
A descrição dos ouvintes de coração insensível é seguida pela dos
impulsivos.
Observe-se que neste caso particular, tanto Marcos como Mateus
fazem uso da palavra “imediatamente” duas vezes. Referimo-nos a
pessoas que agem sem refletir. Logo aceitam a palavra, inclusive com
alegria! E então, logo se apartam. São enganados, apanhados, pela
aflição e a perseguição. Isto é o que os induz a deixar o que no começo
tinham abraçado com tanto entusiasmo. 147 Se tivessem sido crentes
autênticos não teriam sido enganados de maneira definitiva.
Por causa da mensagem do evangelho, o crente pode achar-se no
meio da aflição, quer dizer, no meio de todo tipo de pressões externas
que vêm de um ambiente não cristão, ou em meio de perseguições e de
sofrimento real causado deliberadamente pelo inimigo. Quando tudo isto
ocorre por causa da mensagem, a perseverança é a marca do cristão
verdadeiro. Naturalmente que a perseverança que aqui se exalta
implicitamente deve ser genuína, deve praticar-se não por amor a nós

147
Note-se o verbo σκανδαλίζονται, que significa literalmente: “estão apanhados, induzidos ao
pecado”; portanto, “apartaram-se”. O σκάνδαλον é basicamente a ceva de uma armadilha ou laço. É o
palito que dispara a armadilha. Significados derivados: armadilha (Rm. 11:9); sedução, tentação (Mt.
18:7); causa de ofensa, pedra de tropeço (1Co. 1:23).
Marcos (William Hendriksen) 210
mesmos, mas por amor a Cristo. Deve ser uma atitude positiva a sofrer
por amor ao Senhor, a Sua palavra, a Seu povo, e a Sua causa. Quando
falta este amor, a paciência é inútil (veja-se 1Co. 13:3b). Quando está
presente, produz alegria de coração, segurança da salvação (veja-se Mt.
5:11, 12; Jo. 16:33; At. 5:41; Rm. 8:18, 31–39; Fp. 1:27–30; 1Pe. 4:14;
Ap. 2:9, 10).
Mas as pessoas simbolizadas pela semente que caiu em solo
rochoso (veja-se sobre vv. 5, 6) careciam dessa persistência. Nunca
levaram a sério os exemplos de Rute, Jônatas, Estêvão, e Paulo. A
palavra “lealdade” não existia em seu vocabulário.
Como exemplo deste tipo de “amigos” volúveis, não é lógico supor
que entre a multidão que gritava “Hosana” (Mc. 11:9, 10 e paralelos)
houve também alguns que poucos dias mais tarde gritaram, “Crucifica-o,
crucifica-o”? Deve ter-se em mente que os seguidores de Cristo sofreram
perseguição não só depois de Sua ressurreição (At. 4:3; 5:18; 6:11, 12;
7:54–60; 8:1; etc.), mas inclusive antes (como o demonstra
definitivamente Jo. 9:22, 34, e bem pode estar incluído também em Mt.
5:10–12; 10:23, 25, 28; Lc. 6:22; 12:4). Nem todos os afetados por tal
perseguição suportaram a prova. Para alguns, as palavras de 1 João 2:19
vêm ao caso: “Saíram de nós, mas realmente jamais pertenceram a nós”.
Quanto a crentes genuínos, veja-se João 10:27-28, “As minhas ovelhas
ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem. Eu lhes dou a
vida eterna; jamais perecerão, e ninguém as arrebatará da minha mão”.
Os que antes tinham sido meros aderentes externos, que nunca
foram seguidores genuínos porque sua profissão não brotava de
convicções internas (eram “sem raiz”), não entendiam que o verdadeiro
discipulado implica a entrega, a negação de si mesmo, o sacrifício, o
serviço e o sofrimento. Passavam por alto o fato de que o caminho que
leva ao céu é o caminho da cruz.
Marcos (William Hendriksen) 211
Corações apreensivos
18, 19. Os outros, os semeados entre os espinhos, são os que ouvem a
palavra, mas os cuidados do mundo, a fascinação da riqueza e as demais
ambições, concorrendo, sufocam a palavra, ficando ela infrutífera.
Esta passagem descreve o caso de pessoas cujo coração assemelha-
se ao terreno infestado de raízes e plantas espinhosas. Um campo tão
“sujo” é uma séria ameaça para o crescimento de qualquer planta útil.
Igualmente, os corações cheios dos transportes laboriosos do dia,
obscurecidos por sonhos de riquezas, e (Marcos acrescenta) o desejo de
outras coisas, desbaratam toda influência benéfica que, não sendo assim,
poderia agir na recepção da mensagem do reino. Tais corações se acham
muito ocupados. Não têm tempo para a meditação serena e sincera da
palavra e a mensagem do Senhor. Se num coração como este tentasse
entrar alguma reflexão ou pensamento sério da Palavra de Deus, seria
imediatamente afogado.
Os cuidados se referem à ansiedade constante com relação a
atividades terrestres, aos assuntos que pertencem à época em se vive.
Estes cuidados enchem a mente e o coração de negras pretensões. Se
estas pessoas forem pobres, enganam-se pensando que seriam felizes se
fossem ricos.
Mas se forem ricos, enganam-se imaginando que, se fossem mais
ricos poderiam sentir-se satisfeitos, como se as riquezas materiais
pudessem de algum modo garantir a felicidade. Na realidade, o encanto
que emana das riquezas é um encanto enganoso.
Segundo Marcos, aos dois tipos de espinheiros já mencionados,
Jesus acrescenta um terceiro: os desejos de outras [ou: das demais]
coisas. Sob este cabeçalho não há dúvida que se inclui todos os outros
desejos maus. 148 Tais desejos ou cobiças são maus, a. porque o que se
deseja é mau; por exemplo, o desejar drogas perniciosas, ou relações
íntimas com a esposa de outro homem; b. porque mesmo quando o que
148
Para encontrar um estudo etimológico do termo ἐπιθυμια (note-se o plural aqui: ἐπιθυμίαι) veja-se
CNT sobre 1 e 2 Timóteo e Tito, nota 147.
Marcos (William Hendriksen) 212
alguém deseja ter ou fazer seja perfeitamente lícito, o desejo pode ser
excessivo; por exemplo, jogar futebol ou xadrez até o ponto de
descuidar tudo o mais. Mas Jesus Se referia especialmente aos prazeres
pecaminosos, o que parece deduzir-se do breve resumo de Lucas; “afãs e
riquezas e prazeres da vida” (Lc. 8:14). Assim interpretado, vemos que a
enumeração de Lucas corre paralelamente à de Marcos.
Indubitavelmente, quando Jesus Se referiu aos espinheiros que
afogaram a semente que começava a germinar, não excluiu nada do que
corresponde a esta categoria geral. Fica incluída qualquer coisa que
esteja dentro da esfera das posses, o poder (ou prestígio) e o prazer, que
destrói o efeito da boa semente da palavra. “Porque nada do que o
mundo oferece vem do Pai, mas do mundo mesmo. E isto é o que o
mundo oferece: os maus desejos da natureza humana, o desejo de possuir
o que agrada aos olhos, e o orgulho das riquezas” (1Jo. 2:16, VP).
Nos dias de Amós, as pessoas supostamente religiosas se
perguntavam: “Quando passará o mês, e venderemos o trigo; e a semana,
e abriremos os celeiros [ou: abriremos o mercado do trigo] do pão, e
esgotaremos a medida, e subiremos o preço, e falsearemos com engano a
balança …?” (Am. 8:5). O enganoso encanto das riquezas foi o
espinheiro que afogou todo o bem que a mensagem de Deus pôde ter
realizado. Abundam outros exemplos tanto das Escrituras como da vida
diária.
As pessoas aqui referidas não podem receber ricas bênçãos nem
tampouco podem ser elas mesmas bênção para outros. A palavra, quanto
a elas se refere, não pode produzir fruto. Não há problema algum no
semeador. Tampouco há problema algum na semente. É que nesta classe
de gente todo anda mal. Deveriam pedir ao Senhor que os livre dos
trabalhos em excesso corrosivos e sonhos mundanos e ilusórios, de modo
que a mensagem do reino possa começar a ter livre curso em seu coração
e vida. Então sua mente, resgatada dos trabalhos em excesso exaustivos e
das fantasias ilusórias, estará em condições de refletir com entendimento
Marcos (William Hendriksen) 213
sobre passagens tão preciosas como Pv. 30:7–9; Is. 26:3; Mt. 6:19–34;
19:23, 24; Lc. 12:6, 7, 13–34; 1Tm. 6:6–10; e Hb. 13:5, 6.

Corações sensíveis
20. Os que foram semeados em boa terra são aqueles que ouvem a
palavra e a recebem, frutificando a trinta, a sessenta e a cem por um.
Ao chegar a esta gente, a mensagem do reino cai em boa terra, a
classe de terra que não é nem dura, nem superficial nem apreensiva, mas
é receptiva e fértil.
Esta gente ouve porque quer ouvir. Meditam no que ouvem porque
têm confiança em que fala. E assim chegam a alcançar um certo grau de
entendimento genuíno. Levam a mensagem à prática e dão fruto: a
conversão, a fé, o amor, a alegria, a paz, a paciência, etc.
Até o Antigo Testamento sublinha a importância do fruto espiritual
como sinal do verdadeiro crente: Sl 1:1–3; 92:14; 104:13. Esta linha de
pensamento continua nos Evangelhos (Mt. 3:10; 7:17–20; 12:33–35; Lc.
3:8; Jo. 15) e no resto do Novo Testamento (At. 2:38; 16:31; Rm. 7:4; Gl
5:22; Ef. 5:9; Fp. 4:17; Cl. 1:6; Hb. 12:11; 13:15; Tg. 3:17, 18).
Não obstante, nem todos os cristãos experimentam o mesmo grau
de frutificação. Nem todos são igualmente penitentes, fiéis, leais,
valorosos, humildes, etc.; daí que nem todos sejam igualmente eficazes
em conduzir outros a Cristo. No caso de alguns crentes, a semente (a
mensagem) rende trinta por um, quer dizer, trinta vezes mais do que foi
semeado; em alguns sessenta, e em outros cem. Mateus tem a ordem
oposta (100, 60, 30). Quanto à fiel reprodução da mensagem de Cristo,
cada evangelista emprega seu próprio estilo; mas não há nenhuma
diferença essencial.
Considere-se Timóteo, Tito e Paulo: três eminentes homens de
Deus, nos quais a semente do evangelho tinha brotado e produzido fruto.
Depois de sua conversão, os três tiveram em comum uma invariável
lealdade à causa do evangelho, uma disposição para realizar as tarefas
difíceis do reino, e um amor pelas almas; um amor que brotava do amor
Marcos (William Hendriksen) 214
a Deus, o próprio Deus que os amou primeiro. Não obstante, havia
diferenças entre os três. Timóteo — um excelente cristão, por certo! (Fp.
2:19–23) — precisava ser estimulado. Era de caráter tímido. Aos
coríntios foi dito que quando Timóteo chegasse, se preocupassem de que
estivesse entre eles “sem temor” (1Co. 16:10; e veja-se também 2Tm.
2:22a). Tito, por outro lado, é homem que não somente pode receber
ordens, mas também pode agir por decisão própria (2Co. 8:16, 17). É um
homem de recursos, de iniciativa pessoal para uma boa causa. Achamos
nele algo da agressividade de Paulo. Entretanto, nem Timóteo nem Tito
se comparam com Paulo. Qualquer pessoa que ler 2 Coríntios 11:23–28
se convencerá disso. Paulo escreveu as palavras de 1 Coríntios 15:10
sem exagerar, atribuindo toda a glória a Deus.
A comparação que aqui fazemos entre Timóteo, Tito e Paulo não é
para insinuar que Timóteo produziu só trinta por um, Tito exatamente
sessenta, e Paulo cem. Só tem o propósito de dar uma certa evidência em
favor da verdade fundamental de que esta parte final da parábola deixa
estabelecido: que existem diferenças mesmo entre aqueles cuja vida é
espiritualmente frutífera. Que cada um faça o melhor que puder para
produzir muito fruto (Jo. 15:5). Mas sempre é preciso lembrar que, em
última instância, todo bom pensamento, disposição, palavra, ato, e
caráter têm sua fonte em Deus e em Sua soberana graça (Rm. 11:36;
1Co. 4:7), embora a parábola também sublinha que a disposição para
ouvir corretamente o evangelho depende da condição do coração
daqueles que recebem a Palavra, estabelecendo-se assim a
responsabilidade humana. Veja-se também a explicação da parábola da
semente que cresce em segredo (Mc. 4:26–29).

Mc. 4:21–25 - Diversas declarações de Jesus


Para o v. 21 cf. Mt. 5:15; Lc. 8:16; 11:33.
Para o v. 22 cf. Mt. 10:26; Lc. 8:17; 12:2
Para o v. 23 cf. Mt. 11:15; 13:9, 43; Mr. 4:9; Lc. 8:8, 18a; 14:35.
Para o v. 24a veja-se mais acima, sobre o v. 23.
Marcos (William Hendriksen) 215
Para o v. 24b cf. Mt. 7:2; Lc. 6:38.
Para o v. 25 cf. Mt. 13:12; 25:29; Lc. 8:18b; 19:26.

Neste parágrafo encontram-se vários ditos de Jesus que, segundo se


indica mais acima, também se consignam em outros lugares. É natural
pensar que Jesus repetisse algumas de suas famosas palavras.
A relação entre o versículo 21 e o precedente não é muito clara. O
mesmo sucede também com a relação dos versículos deste novo
parágrafo (21–25).
Isto não significa que as declarações são aqui agrupadas de maneira
artificial. Mas embora faremos um intento para mostrar sua coerência
interna, quer dizer, as relações de pensamento entre os diversos
versículos, deve-se admitir desde agora que não se pode alcançar uma
certeza absoluta em tal empenho.
21. Também lhes disse: Vem, porventura, a candeia para ser
posta debaixo do alqueire ou da cama? Não vem, antes, para ser
colocada no velador?
“Também lhes disse”. A quem? Provavelmente ao mesmo grupo do
versículo 10, e não ao público em geral. Compare o “também lhes disse”
dos versículos 21 e 24 com o “Disse ainda” do versículo 26 e “Disse
mais” do versículo 30. No segundo caso, Marcos volta para a ocasião em
que o Senhor falava desde um barco às multidões.
Na parábola do semeador, Jesus tinha sublinhado a necessidade de
dar fruto, que é o resultado da semente que cai em boa terra, quer dizer,
da palavra que penetra em corações bem preparados. Os corações férteis
se assemelham a lâmpadas luminosas. Se esta é a ideia correta quanto à
relação dos parágrafos, então Jesus está sublinhando a mesma verdade
fundamental por meio de uma figura diferente. O que faz é ensinar que o
coração e a vida devem ser frutíferos, que devem brilhar de maneira tal
que beneficiem a outros, para a glória de Deus.
Os Evangelhos nos informam das condições prevalecentes naquela
época, segundo as quais a conclusão que parece aqui a mais justificada é
Marcos (William Hendriksen) 216
que a ideia fundamental toma agora um rumo ligeiramente distinto. O
que é que faz com que o coração e a vida brilhem? Resposta: A palavra
de Deus fazendo valer sua influência dentro desses corações e vidas.
Essa palavra está simbolizada pela semente (Mt. 13:19; Mc. 4:14; Lc.
8:11); também por uma lâmpada (Sl 119:105). Essa palavra e essa
lâmpada era o que os rabinos estavam escondendo sob uma espessa
nuvem de tradições humanas (Mt. 15:3; cap. 23) e ações hipócritas (Mt.
6:1–18; 23:15). Essa palavra deve manifestar seu poder mais uma vez. A
lâmpada deve brilhar com toda a antiga pureza de sua luz, a fim de ser
uma bênção aos homens (veja-se Mt. 5:15, 16; Lc. 8:16b). Esta
interpretação ilumina o que Jesus diz sobre as consequências de pôr a
lâmpada debaixo do alqueire ou da cama, em lugar de sobre o castiçal.
Observe-se que se usa o artigo (“a ou “o”) diante do nome de cada
objeto mencionado. Isto não é raro, porque: a. a lâmpada, o alqueire, a
cama, e o castiçal eram objetos familiares de um lar galileu típico; b. nos
lares dos pobres possivelmente só havia uma lâmpada, só um alqueire,
etc.
Quanto à lâmpada, imagine um objeto de olaria à maneira de pires
fundo, que a um lado tem uma manga e que, no outro lado, leva uma
extensão como uma boquilha com uma abertura para a mecha. Havia
dois buracos em sua parte superior, um para pôr o azeite, o outro para o
ar. Claro que nem todas as lâmpadas eram iguais. Quanto aos diferentes
tipos, consulte-se uma enciclopédia; melhor ainda, visite-se algum
museu.
A pergunta que Jesus faz é dupla. Tanto o grego como a tradução 149
que apresentamos deixa claro que a primeira parte requer a resposta
“Não”; a segunda exige um “Sim” como resposta. Quem pensaria jamais

149
Veja-se também NAS, Williams, Beck, Lenski. Todas são excelentes. Algumas das outras não são
tão exatas ou não tão claras sobre esta passagem. Não fazem ressaltar tão claramente como o faz o
grego, que μή (aqui μήτι) requer a resposta “Não”, e que οὑ (aqui οὑχ) antecipa um “Sim”.
Marcos (William Hendriksen) 217
150
em acender uma lâmpada e logo pô-la debaixo de um alqueire? Ou
quem a poria debaixo da “cama”, que era uma espécie de colchonete que
quando não se usava era enrolado. Fazer tal coisa com uma lâmpada
seria absurdo. Uma lâmpada acesa deve estar no castiçal! Este castiçal
era em geral um objeto muito simples. Podia ser um suporte fixado na
coluna do centro da habitação (a coluna que sustentava a grande viga
transversal do teto plano), ou simplesmente uma pedra sobressalente da
parte interior da parede, ou uma parte de metal colocado visivelmente
para esse fim.
O sentido é, naturalmente, que os crentes também devem deixar sua
lâmpada brilhar. Devem deixar que a palavra de Deus tenha pleno
controle sobre sua própria vida: seu ser interior, suas disposições,
pensamentos, palavras, ensinos, escritos, e atos. Nunca devem calar-se,
mas devem testificar (veja-se Sl 66:16; 107:2; Mt. 5:16; 2Tm. 4:2; 1Jo.
2:12–14). Deus dispôs que o mistério revelado a Seus filhos devia ser
manifestado. Está escondido só para os que persistem em rejeitar sua
chamada. Assim, conquanto o ensino de Marcos 4:11, 12 não se
contradiz, agora a ênfase recai no que deve suceder em primeiro termo: o
semeador deve semear a semente; a lâmpada deve ser posta onde possa
brilhar; o mistério deve manifestar-se, não se deve encobrir.
Mas, seja manifestado ou encoberto, qualquer coisa que se faça com
ele, não passará desapercebida:
22. Pois nada está oculto, senão para ser manifesto; e nada se
faz escondido, senão para ser revelado.
Os homens buscam encobrir as coisas, mas nisto sempre
fracassarão, porque Deus exibe tudo à luz. Um dia, tudo o que agora está
oculto será revelado (veja-se Ec. 12:14; Mt. 12:36; 13:43; 16:27; Lc.
8:17; 12:2; Rm. 2:6; Cl. 3:3, 4; Ap. 2:23; 20:12, 13).

150
Grego μόδιος do Latim modius, uma medida de capacidade = 16 sectarii, mais ou menos 8,75
litros.
Marcos (William Hendriksen) 218
Agora, esta é uma verdade que é com frequência passada por alto.
Os homens pensam que podem sair triunfantes com seus maus
pensamentos, planos, palavras e ações. Entretanto, Deus trará tudo isso à
luz. Não nos devemos surpreender de que, segundo o relato de Marcos,
Jesus prossiga dizendo:
23. Se alguém tem ouvidos para ouvir, ouça.
Este versículo é basicamente igual ao versículo 9, embora sua
forma varie levemente (v. 9: “Quem tem”; v. 23 “Se alguém tem”).
Portanto, veja-se o comentário ao v. 9.
Logo se acrescenta outro pensamento, embora muito relacionado:
24. Então, lhes disse: Atentai no que ouvis.
Os Evangelhos sublinham três coisas a respeito da responsabilidade
que se deve ouvir, e aqui (vv. 21–25) estas três coisas se enfatizam em
relação aos seguidores de Cristo:
a. Que devem escutar ou ouvir (Mc. 4:9, 23), destacando o ouvir em
oposição a recusar-se a ouvir;
b. O que devem ouvir (v. 24); o que devem ouvir em oposição ao
que não devem ouvir; e
c. Como devem ouvir (Lc. 8:18); atentamente, judiciosamente, em
oposição a como não se deve ouvir.
Com relação a “cuidado”, ou “ponham atenção”, “estejam em
guarda”, veja-se também Mc. 13:33; Lc. 8:18. Se uma pessoa tender a
fixar sua atenção no que não deveria ouvir — por exemplo, intrigas
maliciosas — sentir-se-á inclinada a julgar e a condenar a outros
temerariamente. Medirá equivocadamente as pessoas, condenando-as.
Deve ter em mente que: Com a medida com que tiverdes medido vos
medirão também, … Se a pessoa que se preocupa em medir é amável,
seu juízo será favorável, ela se deleitará em reconhecer méritos onde os
encontrar, e se alegrará em outorgar favores (veja-se Lc. 6:38). Por outro
lado, se tiver a atitude contrária, facilmente cairá no costume de julgar
severamente, sem bondade (veja-se Mt. 7:1–5; especialmente v. 2). Seja
como for, a medida que usar será a que outros usarão com ela. Se der
Marcos (William Hendriksen) 219
generosamente, receberá com mais generosidade: e ainda se vos
acrescentará. Isto nos lembra Mateus 6:33, onde o original usa o mesmo
verbo, 151 e tal como aqui, em sentido favorável: “todas as coisas lhes
serão acrescentadas”, quer dizer, “eles serão outorgadas como um dom
extra”.
Os dons de Deus sempre são muito generosos. Continuamente está
acrescentando dom sobre dom, favor sobre favor, bênção sobre bênção.
Não apenas dá “de” Suas riquezas — como o faria um multimilionário
ao dar umas moedas à beneficência — mas sim “conforme a” Suas
riquezas, as riquezas de Sua graça (Ef. 1:7). Deus comunica “graça sobre
graça” (Jo. 1:16). Não só perdoa, mas também perdoa abundantemente
(Is. 55:7). Deleita-se na misericórdia (Mq. 7:18). “E será que, antes que
clamem, eu responderei; estando eles ainda falando, eu os ouvirei” (Is.
65:24; cf. Dn. 9:20–23). Quando ama, ama o mundo; e quando dá, dá o
Seu Filho unigênito (Jo. 3:16). Aquele Filho, além disso, não só
intercede por Seu povo, mas também está “vivendo sempre para
interceder por eles” (Hb. 7:25). Na realidade, “Ele dá, e dá, e volta a
dar”.
“Mais ainda lhes será dado”. Quando o servo de Abraão pediu de
beber a Rebeca, ela não só apagou sua sede mas também, além disso,
deu de beber aos camelos (Gn. 24:13, 14, 18–20, 42–46).
Isto é só um pálido reflexo do que Deus, em Cristo, está fazendo
constantemente:
Não só outorga a Salomão seu desejo de sabedoria, mas também
além disso, promete-lhe riquezas e longos dias (1Rs. 3:9–15).
Não só acede à petição do centurião de curar a seu servo, mas
também além disso, pronuncia uma bênção sobre ele (Mt. 8:5–13).
Não só responde à súplica de Jairo, devolvendo a vida à sua filha,
mas também além disso, preocupa-se de que a filha receba algo de comer
(Mc. 5:21–24, 43).

151
προστεθήσεται, fut. indic. pas. 3ra. pes. sing. de προστίθημι.
Marcos (William Hendriksen) 220
O Cristo ressuscitado não só cumpre Sua promessa de encontrar-se
com os discípulos na Galileia (Mt. 26:32; 28:7, 16–20), mas além disso,
sai-lhes ao encontro e os abençoa estando ainda em Jerusalém (Lc.
24:33–48).
Não só perdoa ao pecador — como um governante pudesse
outorgar perdão — mas além disso o adota como filho e lhe concede paz,
santidade, alegria, segurança, liberdade de acesso, e o torna mais que
vencedor (Rm. 5–8).
Esta interpretação da cláusula final do versículo 24 vê-se apoiada
pelo que imediatamente segue no versículo
25. Pois ao que tem se lhe dará; e, ao que não tem, até o que tem
lhe será tirado.
Nos assuntos espirituais é impossível permanecer imóvel e quieto.
Uma pessoa ganha ou perde, avança ou retrocede. Ao que tem, ser-lhe-á
dado. Os discípulos (com exceção de Judas Iscariotes) haviam “aceito a
Jesus”. Referindo-se a eles, mais adiante Jesus diria ao Pai: “guardaram
sua palavra” (Jo. 17:6) e “Não são do mundo” (Mc. 17:16). É verdade
que esta fé era acompanhada de muita fraqueza, erros, e imperfeições.
Mas o começo já foi feito. Portanto, conforme a norma do céu, foi-lhes
assegurado que seguiriam progredindo, avançando em conhecimento,
amor, santidade, alegria, etc. e em todas as bênçãos do reino do céu,
porque a salvação é uma corrente cada vez mais profunda (Ez. 47:1–5).
Toda bênção é uma garantia de maior bênção futura, “Porque de sua
plenitude tomamos” (Jo. 1:16). A teoria segundo a qual Jesus (ou
Marcos) referia-se só a um aumento de conhecimento ou talvez de
percepção, é improvável. Certamente, esse discernimento está incluído,
porém nada existe no contexto que limite rigidamente as bênçãos que
aqui se prometem.
Por outro lado, ao que não tem, ser-lhe-á tirada inclusive a
aparência do conhecimento, desse entendimento superficial dos assuntos
espirituais, que em algum momento tivesse tido. Não temos uma
analogia disto na esfera do conhecimento, por baixo do nível
Marcos (William Hendriksen) 221
estritamente espiritual? Por exemplo, se uma pessoa aprender um pouco
de música, para tocar algumas melodias singelas, mas realmente não o
bastante para poder dizer, “domino este ou aquele instrumento”, e logo
deixa totalmente a prática, logo descobrirá que a pouca destreza que num
tempo teve, desvaneceu-se. Assim também no espiritual, o homem que
recusa fazer devido uso de seu único talento, até isto perderá (Mt. 25:24–
30).

Mc. 4:26–29 - Parábola da semente que cresce em segredo

Pelos versículos 33, 34 (cf. Mt. 13:31, 34) parece que quando Jesus
pronunciou as duas parábolas consignadas em Marcos 4:26–32 (como
também a de 4:3–9), estava falando com as multidões. Quer dizer,
Marcos volta aqui para a situação existente quando Jesus falou de dentro
de um barco às pessoas (v. 1).
Entre a parábola do semeador (a que tanta proeminência dá-se nos
sinóticos e que Marcos também relata antes que as demais, cf. vv. 3–9), e
a da semente que cresce em segredo (que se acha só em Marcos) 152 há
uma estreita relação. A primeira sublinha a responsabilidade humana: a
semente não pode brotar, crescer e dar fruto se não cair em boa terra.
Significado: a palavra ou mensagem de Deus, o evangelho, produz fruto

152
Alguns creem que tanto a parábola da semente que cresce em segredo como a parábola do joio, têm
uma só fonte comum e que foram originalmente uma. Esta teoria se baseia na circunstância de que
várias palavras são utilizadas em ambas as parábolas:
Marcos 4 Mateo 13
καθεύδω v. 27 v. 25
βλαστάω,-άνω v. 27 v. 26
πρῶτον v. 28 v. 30
χόρτος v. 28 v. 26
σῖτος v. 28 v. 30
καρπός v. 29 v. 26
θερισμός v. 29 v. 30
Mas pelo fato de que as duas parábolas estão baseadas no que sucede ou pode suceder ao semear-se os
campos, é natural que exista certo grau de semelhança verbal. Além disso, as histórias em si mesmas
são diferentes, e assim também as razões para relatá-las. A teoria é, portanto, inaceitável.
Marcos (William Hendriksen) 222
só quando o coração responde favoravelmente. Este é um aspecto da
verdade que não se deve descuidar jamais. Entretanto, às vezes sucede.
Por exemplo, um pregador pergunta à sua congregação, “O que pode
fazer uma pessoa para ser salva?” e logo cria um ambiente de incerteza
guardando silêncio alguns instantes … depois do qual prossegue, “eu
lhes direi isso: não pode fazer nada absolutamente! Deus faz tudo”. Não
deveria também mostrar a outro lado da moeda? Quando o carcereiro
perguntou, “Senhores, o que devo fazer para ser salvo?”, Paulo e Silas
não disseram, “Você não pode fazer nada”. O que disseram foi, “Crê no
Senhor Jesus Cristo e serás salvo, tu e a tua casa” (At. 16:30, 31).
É verdade, não obstante, que o homem por si mesmo nada pode
fazer. Só mediante o poder que Deus comunica, o homem é capaz de
voltar-se a Ele com verdadeira fé. Não pode converter-se a menos que
em primeiro lugar seja regenerado (Jo. 3:3, 5; veja-se também Jr. 31:18;
1Co. 4:7; Ef. 2:8; Fp. 2:12, 13; 4:13). A presente parábola põe todo o
acento neste aspecto da verdade, ou seja, na soberania de Deus. Ensina
que assim como é Deus somente, e não o agricultor, quem entende
completamente e é, na realidade, o Autor do crescimento físico, assim
também só Deus, não o homem, entende perfeitamente e é o Autor do
crescimento espiritual, e do estabelecimento e progresso do reino de
Deus no coração, vida, e em outras esferas.
É por Sua vontade que a semente espiritual, a palavra ou mensagem
do evangelho, estabelece sua crescente e poderosa influência no coração
dos homens e assim também na sociedade em geral. Que consolo é este!
pois agora esperamos com paciência uma colheita cuja chegada é segura.
A vitória está assegurada: o plano de Deus deve ser, e será levado a
cabo.
Em consequência, a parábola deixa claro três ideias. Tão
estreitamente unidas estão que as três na realidade formam uma unidade.
São como segue:
1. Para o homem o crescimento é um mistério (vv. 26, 27).
2. A semente revela seu poder (v. 28).
Marcos (William Hendriksen) 223
3. A colheita significa vitória (v. 29).
Assim ocorre no reino da natureza; e assim também sucede no reino
da graça, porque o crescimento do reino é também um mistério. A
palavra do reino (cf. Mt. 13:19; 24:14) revela seu poder, que virá a ser
evidente no dia da colheita, o juízo final, que virá indubitavelmente no
tempo estabelecido.

1. Para o homem o crescimento é um mistério


26, 27. Disse ainda: O reino de Deus é assim como se um homem
lançasse a semente à terra; depois, dormisse e se levantasse, de noite e de
dia, e a semente germinasse e crescesse, 153 não sabendo ele como.
Jesus descreve outra vez “o reino de Deus” (veja-se sobre Mc.
1:15). Diz que o reinado de Deus sobre o coração e a vida, com a
conseguinte influência em todas as esferas, é misterioso quanto ao seu
crescimento. Com este reinado ocorre o mesmo que sucede com um
homem que lança semente num campo. Depois de lançar a semente à
terra, chega o entardecer. Para os judeus isto significava o começo de um
novo dia. Pouco depois e cansado pelo trabalho do dia, o homem vai
dormir, e segue dormindo até o amanhecer. Pela manhã ele se levanta.
Quanto à semente que tinha semeado no dia anterior, entende
perfeitamente que nada pode fazer a respeito. Não tem controle sobre o
processo de germinação e de crescimento. Quando a noite cai mais uma
vez, de novo vai dormir. Outra vez se levanta pela manhã. Esta rotina de
dormir e levantar-se, dormir e levantar-se, noite e dia, dia e noite, segue,
segue e segue.
Enquanto isso a semente está germinando e crescendo. O agricultor
não sabe exatamente como se realiza este crescimento. Tampouco sabe o
químico nem o especialista agrícola mais douto. Nunca puderam
compreender com exatidão como é que a semente pode transformar um

153
No original, a disseminação ou espalhamento da semente contempla-se como se fosse um só ato:
daí que se use o aoristo subjuntivo. Mas para os verbos “dormir”, “levantar-se”, “brotar” e “crescer”,
usa-se o presente subjuntivo, visto que estas supostas ações são vistos como processos contínuos.
Marcos (William Hendriksen) 224
pouquinho de terra — diremos “morta”? — em uma célula viva, e não
em qualquer célula, mas em células precisamente semelhantes às da
planta de onde se originou a semente.
A única coisa que o agricultor pode fazer é confiar. É claro que ele
tem que enterrar a semente, arrancar a erva daninha, lavrar a terra,
fertilizá-la, e talvez fazer um canal para levar água ao seu campo. Todas
estas coisas são importantes. Mas não pode fazer com que a semente
germine e cresça. Quanto a isto, a única coisa que pode fazer é dormir
noite após noite, e levantar-se novamente cada dia. O resto tem que ficar
tudo a cargo da semente; na realidade a cargo dAquele que criou a
semente, que a entende totalmente e que a ativa. O agricultor deve
confiar e orar. Deve esperar pacientemente.
No plano espiritual isto também é válido. Com relação ao
estabelecimento e crescimento do reino de Deus, o “não posso” e o
“ignoro” são tão verdadeiros como o é com relação à germinação e
desenvolvimento da semente física. Com relação a “não posso” veja-se
1Co. 3:6, “Eu plantei, Apolo regou; mas Deus deu o crescimento”.
Quanto ao ignoro” veja-se Jo. 3:8, “O vento sopra onde quer, ouves a sua
voz, mas não sabes donde vem, nem para onde vai; assim é todo o que é
nascido do Espírito”.

2. A semente manifesta seu poder


28. A terra por si mesma frutifica: primeiro a erva, depois, a
espiga, 154 e, por fim, o grão cheio 155 na espiga.
“Por si mesma” (literalmente: “automaticamente”) significa “sem
causa visível”, e “sem a contribuição da intervenção humana”. Isto nos
lembra a porta da cidade que se abriu diante de Pedro “por si mesma”
(At. 12:10, o único outro caso no Novo Testamento onde aparece esta
palavra).

154
Ou: a cabeça.
155
Ou: o fruto.
Marcos (William Hendriksen) 225
O segredo do crescimento, por assim dizer, foi confiado à terra.
Entretanto, este termo “terra” por metonímia deve aqui significar “a
semente enterrada na terra”. A esta semente Deus confiou o segredo, de
modo que ela agora, digamos assim, “sabe” exatamente o que tem que
fazer-se, quando e como.
Quanto ao homem, se depois de alguns dias de ter semeado vai ao
campo para lançar um olhar, não verá sinal algum de vida. Mas depois
de certo tempo ao olhar novamente, ficará surpreso ao ver muito muitos
plantinhas onde antes não havia nada visível. Então exclama, “Que poder
oculto havia em coisas tão pequenas!”
Assim é também no que respeita ao reino, o reino de Deus. Um
pastor fiel espalha a semente ano após ano. Explica, descreve, convida,
exorta, consola, adverte, insiste, faz visitas pastorais. Apesar de tudo, no
princípio o esforço parece inútil. Mas de repente, as brisas do Senhor
começam a soprar sobre os campos (corações) de sua congregação (cf.
Ct. 4:16). A palavra mostra seu poder. Tinha estado ativa antes, mas os
resultados não tinham sido muito evidentes. Mas agora, homens e
mulheres, velhos e jovens, cultos e analfabetos, ricos e pobres,
confessam com júbilo sua fé e a manifestam em sua vida. O Espírito está
operando poderosamente, sempre com relação à palavra e o evangelho.
Os crentes têm paz e segurança de salvação em seus corações. Põem o
olhar no futuro rumo à herança reservada para eles no céu.
Mas isto de modo algum é tudo. Estas pessoas se sentem
agradecidas. Portanto, compreendem que em todo lugar todas as coisas
devem ser feitas se para a glória de seu maravilhoso Deus (Sl 150; Jo.
17:1–4; Rm. 11:36; 1Co. 6:20; 10:31; Jd. 24, 25; Ap. 4:11; 5:12–14;
19:1–8). Também se põem a fazer tudo o que estiver ao seu alcance para
ser instrumentos nas mãos de Deus para a salvação de outros. Precioso
encargo! (Pv. 11:30; Dn. 12:3; Mt. 11:28–30; 23:37; 1Co. 9:22). Além
disso, preocupam-se com que a vontade de Deus, tal como é revelada em
Sua palavra, seja reconhecida e obedecida em toda esfera: família, igreja,
governo (a todo nível), educação, arte, ciência, literatura, comércio,
Marcos (William Hendriksen) 226
indústria, etc., etc. Assim é como o reino de Deus chega a estabelecer-se
na terra.
Observe-se o desenvolvimento indicado aqui: da folha, à espiga, até
chegar ao grão cheio na espiga. 156 No mundo vegetal esta transição de
uma etapa a outra é tão gradual que verdadeiramente pode considerar-se
imperceptível. Tratemos de precisar o momento em que a folha se
transforma em espiga, ou esta produz uma fileira de grãos. Não se pode
fazer. Não obstante, embora imperceptível, o desenvolvimento também é
inevitável. Sob condições normais ninguém pode deter o crescimento.
Quem não viu lugares onde uma planta faz aparecer sua cabeça entre as
pedras de uma calçada ou um muro e às vezes inclusive através de um
encanamento?
Algo muito parecido sucede no caso do reino dos céus. Talvez não
seja possível descrever claramente o crescimento em santidade que
ocorre de um dia para outro; não é possível descrever tal progresso do
reinado de Deus na vida das pessoas. Não obstante, a verdade é que “O
caminho de justos é como a luz da aurora, que vai aumentando até ser
dia perfeito” (Pv. 4:18). Isto não só é verdade com relação à vida do
crente individual; é-o também no que respeita à influência do evangelho.
156
No original estes três substantivos são acusativos de χόρτος, στάχυς e σῖτος. O primeiro, fácil de
associar com pasto, erva, no Novo Testamento refere-se frequentemente à erva verde do campo (Mc.
6:39; cf. Mt. 14:19; Jo. 6:10; veja-se também Ap. 8:7; 9:4). Pode, entretanto, também referir-se às
flores silvestres (Mt. 6:30; Lc. 12:28; Tg. 1:10, 11). O paralelismo em 1Rs. 1:24 faz ressaltar este
significado de maneira chamativa. Aqui em Mc. 4:28 (cf. Mt. 13:26) a palavra aponta ao grão em sua
etapa inicial, quase de erva; portanto, grão verde, folha. Nós mesmos falamos da família das
gramíneas como a mais importante entre todas as famílias de plantas e que incluem cereais tais como:
arroz, trigo, cevada, milho, centeio, e aveia.
O segundo destes três substantivos refere-se à espiga ou a cabeça do grão, quer dizer, à parte da
planta que carrega o grão (cf. Mc. 2:23; também Mt. 12:1; Lc. 6:1). A raiz stac poderia ser uma
modificação desta (cf. ἵστημι), o que a relacionaria com o inglês to stand (pôr-se ou estar de pé). Isto
descreveria as espigas ou espigas de milho de grão como direitas, sobressalentes, proeminentes. Mas
esta etimologia é muito incerta. Paulo incluiu o Estaquis de Roma entre aqueles crentes a quem enviou
saudações (Rm. 16:9).
O terceiro substantivo é trigo, e em geral refere-se aqui ao grão amadurecido em sua espiga ou vagem.
Em outra literatura grega indica também aquilo que se faz com base ao grão; portanto, o pão. A
sitología é a ciência da dietética e a nutrição.
Marcos (William Hendriksen) 227
Através dos séculos, pouco a pouco, o reino se espalha de uma nação a
outra, e de forma crescente faz com que seu poder seja sintido em todas
as esferas da vida (veja-se CNT sobre Mt. 24:14). Isto revela claramente
o poder da palavra (Is. 40:6–8; 1Pe. 1:24, 25; Hb. 4:12).

3. A colheita significa vitória


29. E, quando o fruto já está maduro, logo se lhe mete a foice,
porque é chegada a ceifa. 157
Logo que (a condição de) o fruto o permita, 158 significa quando o
tempo apropriado chegue; então, e não antes.
A descrição da colheita ou tempo de colheita — a palavra usada no
original pode significar ambos — é muito dramática. Logo, sem demora
alguma, o homem (do v. 26)159 mete a foice, porque o momento que
estava esperando por fim chegou. Os agricultores que esperarem muito,
sofrerão perdas.
Assim sucede na natureza, e assim também no plano espiritual. A
cena que se descreve é verdadeiramente apocalíptica (veja-se Jl. 3:13;

157
Ou: o tempo da ceifa chegou.
158
παραδοῖ, aor. subj. de παραδίδωμι. Este verbo não tem aqui seu significado comum de entregar ou
passar algo de alto a baixo (ou inclusive de encarregar, encomendar). Antes, neste caso significa
permitir, admitir. Algo similar, porém não idêntico é o uso que se faz deste verbo em 1Pe. 2:23
(“cedeu”, “encomendou-se”).
159
Um bom número de expositores creem que o sujeito de “mete a foice” refere-se a Cristo. Os
argumentos a favor poderiam ser: a. de acordo com a própria explicação que Jesus dá à parábola do
joio (Mt. 13:37), o semeador nessa história é o Filho do Homem. Assim que, por que não também
nesta parábola? b. Em Ap. 14:14–16, aquele que dirige a foice é também o Filho do Homem. Assim
que, por que não aqui também?
Por outro lado, deveriam considerar-se também os seguintes pontos: a. Mc. 4:26 não diz “o
semeador”, mas sim simplesmente “um homem”. b. O fato que Jesus descreva a Si mesmo como
dormindo noite após noite e levantando-se dia após dia, soa algo estranho; e que diga que Ele mesmo
não sabe como brota e cresce a semente parece, por dizer o mínimo, como se tivesse sido introuzido
nesta parábola um elemento alheio à ideia central.
Em consequência, creio que o melhor procedimento seria não atribuir a Cristo cada uma das coisas
que se diz deste “homem” nesta parábola. Isto deixa, então, lugar para crer que o Filho do Homem
descrito em Apocalipse 14:14–16 simboliza indubitavelmente a Cristo, o Juiz e Vencedor. E a ação
descrita nessa passagem é a mesma que se indica aqui em Marcos 4:29.
Marcos (William Hendriksen) 228
Ap. 14:14–16). A lição é: a vitória é segura; a colheita aproxima-se e
certamente chegará no momento exato estabelecido no plano eterno de
Deus. Então o reino de Deus será revelado em todo seu esplendor (Ap.
11:15; 17:14).
“Sede, pois, irmãos, pacientes, até à vinda do Senhor. Eis que o
lavrador aguarda com paciência o precioso fruto da terra, até receber as
primeiras e as últimas chuvas. Sede vós também pacientes e fortalecei o
vosso coração, pois a vinda do Senhor está próxima” (Tg. 5:7, 8).

Mc. 4:30–32 – A parábola da semente de mostarda


Cf. Mt. 13:31, 32; Lc. 13:18, 19

Ao tratar o problema sinótico (CNT sobre Mateus, Introdução II,


A), assinalávamos que uma das razões pelas quais Mateus, Marcos e
Lucas são tão parecidos quanto a conteúdo, poderia ser que entre eles há
uma relação literária. Quer dizer, tanto Mateus como Lucas
provavelmente usaram o Evangelho de Marcos; e os três usaram as
primeiras notas de Mateus; Lucas talvez usou também o Evangelho de
Mateus (p. 53). Vimos também que uma das razões para que os três
sejam tão diferentes pôde ter sido que ao usar as fontes (tanto orais como
escritas), cada evangelista exerceu seu próprio critério, guiado pelo
Espírito, manifestando seu próprio caráter, cultura e ambiente geral, e
tudo isto com vista à realização de seu próprio plano e propósito
específico (p. 54).

Uma ilustração tanto da variedade como da unidade, acha-se na


parábola da semente de mostarda.

Mateo 13 Marcos 4
v. 31 v. 30
Marcos (William Hendriksen) 229
Outra parábola lhes propôs, dizendo: Disse mais: A que assemelharemos
o reino de Deus? Ou com que
parábola o apresentaremos?

31
O reino dos céus é semelhante a um É como um grão de mostarda, que,
grão de mostarda, que um homem quando semeado, é a menor de
tomou e plantou no seu campo; todas as sementes sobre a terra;

v. 32 v. 32
o qual é, na verdade, a menor mas, uma vez semeada, cresce e se
de todas as sementes, torna maior do que todas as hortaliças
e, crescida, é maior do que as e deita grandes ramos, a ponto de as
as hortaliças, e se faz árvore, de aves do céu poderem aninhar-se à
modo que as aves do céu vêm sua sombra.
aninhar-se nos seus ramos.

O que variedade de expressão! Não obstante, não há discrepância


alguma! E a semelhança é tão surpreendente como a variedade.
Lucas 13 também contém esta parábola, como segue:

v. 18
E dizia: A que é semelhante o reino de Deus, e a que o compararei?
v. 19
É semelhante a um grão de mostarda que um homem plantou na sua horta; e
cresceu e fez-se árvore; e as aves do céu aninharam-se nos seus ramos.

Aqui tampouco há discrepância nem conflito entre Lucas e os


outros. Damo-nos conta, além disso, da grande semelhança que há entre
Lucas 13:18 e Marcos 4:30. Por outro lado, Mateus 13:31a é totalmente
diferente. É possível que Lucas, embora retendo seu próprio estilo,
tivesse à mão o Evangelho de Marcos quando escreveu? São também
Marcos (William Hendriksen) 230
muito parecidos Lucas 13:19 e Mateus 13:31b, 32. Lucas assemelha-se a
Mateus muito mais que a Marcos. Acaso fazia uso do que Mateus tinha
escrito, talvez suas notas ou talvez inclusive seu Evangelho? Embora
assim fosse, sobressai o fato de que em meio de uma agradável variedade
de apresentação, há igualmente uma grata harmonia. Na seleção de suas
fontes, orais e escritas, como em tudo o que pertence aos seus escritos,
cada evangelista era guiado pelo Espírito Santo, embora empregasse o
estilo adequado a seu propósito.
Na parábola do semeador (vv. 3–9, 13–20), a ênfase é posta na
responsabilidade humana; na da semente que cresce em segredo (vv.
26–29), é realçada a soberania divina. Quando estas duas operam
juntamente — fazendo com que o homem esteja ocupado em sua própria
salvação porque Deus opera dentro dele (Fp. 2:12, 13) — o resultado é o
crescimento abundante, segundo se mostra na parábola da semente de
mostarda.
Por certo, esta ideia de crescimento, êxito e boa colheita já se pôs
de relevo nas parábolas precedentes (vejam-se vv. 8, 20, 28, 29). Mas há
duas diferenças. Aqui, na parábola da semente de mostarda, a. este fato
recebe toda a ênfase; e b. sublinha-se ainda mais o fato que de pequenos
começos chegam a produzir-se grandes resultados. A ideia central da
nova parábola é esta: o reino de Deus, por pequeno e insignificante que
pareça em seus começos, seguirá crescendo e chegará a ser
progressivamente uma bênção para todos os que entrem nele. 160

30. Disse mais: A que assemelharemos o reino de Deus? Ou com


que parábola o apresentaremos?

160
Tem se interpretado o texto como querendo dizer que o grão de mostarda é o próprio Jesus, ou que
Jesus escolheu esta semente para ilustrar o que é o reino por causa do sabor picante que tem, ou que o
jardim onde a semente foi plantada representa Israel. Todo este tipo de interpretações estranhas devem
descartar-se por não ter base, e por ser especulações caprichosas que têm pouco ou nada que ver com
o verdadeiro significado da parábola. Com isto não queremos negar que Cristo e o reino são coisas
inseparáveis (cf. Rm. 8:31–39; Ap. 17:14).
Marcos (William Hendriksen) 231
161
O que aqui temos é uma pergunta retórica para despertar o
interesse. Observe-se a surpreendente semelhança que há, quanto a
forma, com uma dupla pergunta similar que se acha em Isaías 40:18 e
com a de Lucas 7:31.
Não foi uma pergunta que Jesus suscitasse por achar-se numa
situação difícil, como se estivesse confuso sobre qual seria sua seguinte
ilustração quanto ao reino e seu crescimento. Era um recurso usado pelos
rabinos para despertar a atenção da concorrência. De tão extrema
importância era para o Senhor o surpreendente e maravilhoso tema do
reino e seu crescimento, que desejava que todos escutassem atentamente.
Seus endurecidos inimigos seguiriam endurecidos; para falar a verdade,
endurecer-se-iam ainda mais (v. 12), mas embora a lição lhes passou de
largo, seria salvificamente aproveitada por outros.
Sob a figura simbólica de uma semente de mostarda, a parábola
descreve em primeiro lugar a pequenez do reino no começo da nova
dispensação:
31. É como um grão de mostarda, que, quando semeado, é a
menor de todas as sementes sobre a terra.
Entre as sementes que se semeiam no jardim (Lc. 13:19), a de
mostarda era geralmente a menor. Por isso, usa-se proverbialmente para
indicar tudo o que em seus começos é muito miúdo (Mt. 17:20; Lc.
17:6). De igual modo, nos dias da peregrinação de Cristo sobre a terra, o
reino de Deus esteve representado por uma pequena companhia de
verdadeiros crentes. Comparado com toda a população do império
romano, ou com todos os que habitavam a Palestina naquele então, ou
até com as grandes multidões que seguiam a Jesus por razões egoístas, o
verdadeiro “reino” de Cristo (veja-se 1:15) era realmente insignificante a
olhos humanos. Além disso, seu prestígio imediato era pequeno. Parecia
um pequeno rebanho de ovelhas indefesas: “Não temais, pequeno
rebanho …” (Lc. 12:32). Seu pastor foi “desprezado e rejeitado pelos

161
ὁμοιώσωμεν y θῶμεν são aoristos subjuntivos deliberativos.
Marcos (William Hendriksen) 232
homens” (Is. 53:3). Era como uma simples pedra (Dn. 2:34; cf. também
Lc. 17:17; Jo. 6:66; At. 28:22; 1Co. 1:26; Ap. 3:8).
Não obstante, aquele “pequeno rebanho” terá que converter-se na
multidão que ninguém pode contar que vemos em Apocalipse 7:9. A
“pedra” estava predestinada a converter-se num monte tão grande que
encheria toda a terra (Dn. 2:35).
32. Mas [a semente], uma vez semeada, cresce e se torna maior
do que todas as hortaliças e deita grandes ramos, a ponto de as aves
do céu poderem aninhar-se 162 à sua sombra.
O broto que aparece na semente de mostarda cresce cada vez mais
até chegar a ser um arbusto, que por sua vez cresce e chega a maior
altura que todas as demais plantas que brotam das sementes semeadas no
jardim. Finalmente, tem toda a aparência de uma árvore e, falando de
forma algo imprecisa, poderia dizer-se que é uma árvore. Marcos
interpreta corretamente as palavras de Cristo, dizendo que deita ramos
tão grandes que as aves do céu podem aninhar ou proteger-se à sua
sombra. Até hoje esta espécie cresce vigorosamente na Palestina.
Alcança até três metros, e às vezes até mesmo cinco. No outono, quando
os ramos ficam rígidos, os pássaros de várias espécies acham nelas
abrigo contra as tormentas, repouso para seu cansaço, e sombra contra o
calor do sol. 163
De maneira similar, o reino de Deus, uma vez estabelecido,
estende-se e segue estendendo-se. Quanto aos pássaros que acham
resguardo à sombra da árvore (cf. Ez. 17:22–24; Dn. 4:10, 21), não
indica isto que o reino chega a ser uma bênção para os homens de todo
clima, raça, e nação? Na verdade,

162
Ou: acampar, repousar, viver.
163
As aves também acham deliciosas e pequenas sementes negras que tiram da vagem, mas este
detalhe não se inclui na parábola. Quanto a uma descrição muito interessante da ação dos pássaros
com relação à semente de mostarda, veja-se A. Pormelee, All the Birds of the Bible (Nova York,
1959), p. 250.
Marcos (William Hendriksen) 233
“Em torno do trono do Deus de Abraão
Milhares de filhos agora já estão”. 164
Anne H. Shepherd (Trad. adaptada)

Transcorridos quarenta anos depois da morte de Cristo, o evangelho


tinha alcançado todos os grandes centros culturais do mundo romano
conhecido, e além disso tinha chegado a muitos outros lugares afastados.
Desde então foi estendendo-se, ganhando homens de todas as raças, e
incluindo todas as esferas da vida. Assim sucede também hoje. E assim,
“De triunfo em triunfo, guiará as suas hostes”.
Portanto, para os que a escutaram, esta parábola diz: “Tenham
paciência, exerçam sua fé, perseverem na oração, e sigam trabalhando. O
programa de Deus não pode fracassar”. O mesmo diz aos que vieram
depois. Hoje ela está dizendo com maior força ainda, porque esta história
ilustrativa é na realidade uma profecia, e esta profecia já se cumpriu em
parte! Quanto ao relacionado com seu cumprimento veja-se CNT sobre
Mateus 24:14.
De humildes começos vieram grandes resultados (veja-se Sl.
118:22, 23; Is. 1:8, 9; 11:1ss.; 53:2, 3, 10–12; Ez. 17:22–24; Zc. 4:10). O
domínio da graça de Cristo, por muito desprezado que seja a princípio, e
por muito insignificante que pareça com os olhos humanos, segue para
frente “vencendo e para vencer” (Ap. 6:1, 2; 17:14). Esse reino se
estabelecerá de maneira cada vez mais extensa e firme. Fá-lo-á porque é
o reino de Deus!
O que aqui temos, então, é uma surpreendente ilustração dos versos:
“Do arroio surge o rio caudaloso,
da bolota, um carvalho muito frondoso”.
David Everet — Lines Written for a School Declamation.
(adaptação)

164
Uma ilustração chamativa acha-se em W. Barclay, op. cit., pp. 108–110.
Marcos (William Hendriksen) 234
Em tudo isto há uma importante lição implícita: Bem-aventurado
aquele que toma parte ativa em promover o crescimento do reino;
começando sempre por nossa casa (Mc. 5:19), mas sem nunca esquecer-
se de todo o mundo” (Mc. 16:15).

Mc. 4:33, 34 - O uso que Cristo faz das parábolas


Cf. Mt. 13:34, 35

33. E com muitas parábolas semelhantes lhes expunha a


palavra, conforme o permitia a capacidade dos ouvintes. Marcos nos
diz aqui que estas três parábolas são só uns exemplos de muitas que o
Senhor pronunciou. A tal ponto alcançou os Seus ouvintes por meio de
suas parábolas, que elas atraíram e mantiveram a atenção da multidão,
embora ainda nem todos as compreendiam bem. Isto está em harmonia
com o proferido nos versículos 11, 12.
34. E sem parábolas não lhes falava; … Isto significa
provavelmente que cada vez que Jesus falava com a multidão incluía em
Seu discurso uma parábola, ou inclusive mais de uma. Prossegue: tudo,
porém, explicava em particular aos seus próprios discípulos. O que
se diz aqui está totalmente em harmonia com o versículo 10 (veja-se
também Mt. 13:10, 36).
Não nos surpreende que este evangelista consigne um número
menor de parábolas que Mateus e Lucas. Segundo se indicou antes —
veja-se II e IV da Introdução — Marcos escrevia aos romanos, gente a
quem interessava a ação, o poder, a conquista. Por conseguinte,
descreve a Cristo como Rei ativo, enérgico, veloz na ação, Conquistador,
Vencedor sobre as forças destrutivas da natureza, sobre as enfermidades,
os demônios, a morte, e as trevas morais e espirituais, o Único e
exclusivo Libertador. Assim que, depois de relatar estas três parábolas,
Marcos agora se dirige rapidamente ao relato de uma ação que inspira
temor reverente.
Marcos (William Hendriksen) 235
Mc. 4:35–41 - Jesus acalma uma tempestade
Cf. Mt. 8:18, 23–27; Lc. 8:22–25

Ao combinar os três relatos obtemos a seguinte colação, na qual


indicamos em itálico o que só se encontra em Marcos. Estas diferenças,
graficamente ressaltadas, pelo que não se encontra em Mateus nem em
Lucas, confirmam a teoria de que Marcos ouviu o relato de uma
testemunha ocular, ou seja, de Pedro:
Ao entardecer (de um dia cheio de atividade, Mc. 4:1ss.), Jesus
ordenou aos Seus discípulos que fossem com Ele à margem oposta (a
oriental) do mar da Galileia. De modo que, deixando atrás a multidão,
levaram-nO no barco tal como estava. Havia outros barcos com ele.
Enquanto navegavam ele pegou no sono (Lc. 8:23a).
Desencadeou-se uma violenta tempestade, de modo que as ondas
alagavam o barco, e os homens estavam em perigo. Mas ele estava na
popa, dormindo sobre o travesseiro.
Eles despertaram e lhe disseram, Mestre “não te importa que
perecemos?” 165
Ele lhes disse, “Por que estais aterrorizados, ó homens de pequena
fé?” (Mt. 8:26).
Jesus levantou-se e repreendeu o vento e o mar (as ondas furiosas).
E disse ao mar, “Acalma-te, emudece!” Logo o vento se acalmou e as
rugidores cheire cessaram. Sobreveio uma grande calma.
Perguntou a seus discípulos, “Por que tendes medo? ¿ Como é que
não tendes fé?” “Onde está a vossa fé?” (Lc. 8:25).
Os homens estavam espantados, e diziam uns aos outros, “Quem —
ou: Que classe de pessoa — é esta, que até o vento e o mar lhe
obedecem?” … “que manda até aos ventos e às águas, e lhe obedecem?”

165
ἀπολλύμεθα. Os três evangelistas relatam o grito histérico, “perecemos”. Em Marcos, entretanto, a
expressão ocorre num contexto de recriminação.
Marcos (William Hendriksen) 236
Se omitirmos Mateus 8:26, e nos limitamos ao relato de Marcos,
temos seis parágrafos, ou seja:
Tema: Uma tempestade acalmada. Esboço: 1. embarcar ao
entardecer, 2. uma furiosa tempestade, 3. um clamor frenético, 4. um
milagre assombroso, 5. uma recriminação carinhosa, 6. um profundo
efeito.

1. Embarcar ao entardecer
35, 36. Naquele dia, sendo já tarde, 166 disse-lhes Jesus:
Passemos para a outra margem. 167 E eles, despedindo a multidão, o
levaram assim como estava, no barco; e outros barcos o seguiam.
Tinha sido um dia muito ocupado para Jesus. De um barco afastado
da praia, tinha estado falando em parábolas às multidões. Depois “em
casa” (ou: numa casa) havia comunicado ensino particular aos Seus
discípulos. Não é de surpreender-se que ao entardecer estivesse cansado
e esgotado.
De modo que volta para a praia, e diz aos Seus discípulos,
“Passemos para a outra margem”. Queria cruzar do agitado lado
ocidental (de Cafarnaum), ao lado oriental ou “país dos gadarenos”
(veja-se Mc. 5:1). Visto que não só era totalmente divino, mas também
totalmente humano, necessitava descanso. Devia afastar-se de toda
aquela gente: não somente lotavam a praia; rodeavam-nO inclusive com
outros barcos!
Marcos afirma que os discípulos levaram Jesus (com eles) no barco.
Ele tomou a iniciativa dando a ordem, “Passemos para a outra margem
…”. Mas os discípulos eram os marinheiros, os navegantes. 168 De modo

166
ὀψίας γενομένης, genitivo absoluto.
167
O verbo διέλθωμεν é um aor. subj. 1ª. pes. pl. hortativo de διέρχομαι.
168
Swete (op. cit., p. 88) opina que Mt. 8:23 e Lc. 8:22 “passaram por alto” o fato de que Jesus já se
achava a bordo (Mc. 4:1), mas esta opinião só se poderia sustentar se não for levado em conta que
segundo Mt. 13:36 (cf. Mc. 4:34b) Jesus tinha abandonado o barco e entrado na casa antes de
reembarcar.
Marcos (William Hendriksen) 237
que tomaram a Jesus “tal como estava” (cf. 2Rs. 7:7), cansado, esgotado,
necessitado de descanso e sono (veja-se v. 38, e cf. Lc. 8:23a).

2. Uma furiosa tempestade


37, 38. Ora, levantou-se grande temporal de vento, 169 e as ondas se
arremessavam contra o barco, de modo que o mesmo já estava a encher-
se de água. E Jesus estava na popa, dormindo sobre o travesseiro.
No original, Marcos e Lucas explicam este distúrbio atmosférico
falando de um lailaps, isto é, um redemoinho (cf. Jó 38:1; Jo. 1:4) ou
uma tormenta que desata furiosas rajadas, uma temível borrasca. Mateus
o chama “uma grande sacudida” ou “maremoto”. Deve ter sido um
fenômeno violento, uma rugidora tempestade. Repentinamente este
lailaps se precipitou sobre o lago. 170
O mar da Galileia está situado a norte do vale do Jordão. Tem uns
vinte quilômetros de longitude por uns doze quilômetros de largura. Fica
a mais ou menos 210 metros sob o nível do Mediterrâneo. Seu leito é
uma depressão rodeada de colinas, especialmente no lado este com seus
escarpados verticais. É fácil de entender que quando as frias correntes de
ar se precipitam do monte Hermom (3000 metros), ou de outras regiões,
por entre as levantadas colinas e se chocam com o ar quente da concha
do lago, o ataque é extremamente impetuoso. Os fortes ventos açoitam o
mar com fúria, levantando grandes ondas que investem contra qualquer
barco que se encontre em suas águas. Neste caso, o pequeno barco de
pescadores, acossado pelas elevadas ondas, estava alagando e era
brinquedo dos enfurecidos elementos.
Ventos rugidores, ondas furiosas.… “Mas ele (Jesus) estava na
popa, sobre o travesseiro, dormindo”. Assim diz o original, colocando a
palavra “dormindo” no final da oração, criando assim um efeito
dramático, um contraste muito chamativo. A forma verbal “(estava) …

169
Ou: temível borrasca, redemoinho, furiosa tempestade.
170
Note-se a aliteração em Lc. 8:23: λαῖλαψ … λίμνην. E ainda mais importante é não passar por alto
κατέβη, “precipitou-se, caiu”.
Marcos (William Hendriksen) 238
dormindo” descreve a Jesus dormindo tranquilamente. Lucas 8:23 dá a
impressão de que Jesus pôs-se a dormir logo que (ou quase logo que) o
barco abandonou a praia. Logo se achava dormindo profundamente,
mostrando que devia estar cansadísimo, e dando a entender também que
Sua confiança no Pai celestial — Seu próprio Pai — nunca falhava. Nem
o rugir dos ventos, nem o embate e fragor das ondas, nem mesmo o girar
e descer do barco, que rapidamente fazia água, foram capazes de
despertá-Lo.
Não devemos imaginar que aquele dormir era como se a cabeça de
Jesus estivesse apoiada precisamente numa travesseiro muito suave.
Observe-se: “sobre o travesseiro”, não “sobre um travesseiro”. Talvez
havia uma “almofada” pertencente ao barco, a único a bordo. Ou
também pôde ter sido um descansa cabeças de couro; talvez inclusive de
madeira (uma parte do bote), em cujo caso “travesseiro” seria melhor
tradução que “almofada”. Conforme a sua etimologia, a palavra usada no
original só significa realmente que era algo “para a cabeça”, para seu
descanso; portanto, um travesseiro.

3. Um frenético clamor
38b. Eles o despertaram e lhe disseram: Mestre, não te importa
que pereçamos?
Embora os relatos dos Evangelhos mantenham uma unidade básica,
as exclamações dos espavoridos discípulos são apresentadas de
diferentes maneiras. Mateus diz, “E vieram seus discípulos e
despertaram, dizendo: Senhor, salva-nos, que perecemos!”; Lucas,
“Mestre, Mestre, que perecemos!”; Marcos, “Mestre, 171 não te importa

171
Assim se traduz também Διδάσκαλε na VP, NBE, BJ, RV60, etc. Cf. alemão “Meister”, holandês
“Meester”. No caso presente, a atitude dos discípulos bem pôde ter sido uma combinação de terror,
reverência e recriminação. Que a reverência não estava totalmente ausente é evidente pelo uso que
Mateus faz da palavra κύριε e Lucas da palavra Επιστάτα para relatar a forma em que os discípulos se
dirigiram a Jesus. Portanto, para buscar o melhor equivalente em nosso idioma da palavra Διδάσκαλε
em Marcos, a tradução “Mestre” não se deve desprezar levianamente.
Marcos (William Hendriksen) 239
de que perecemos?”. É razoável supor que numa situação de tão terrível
desespero, os discípulos gritariam uns uma coisa, e outros outra.
É difícil atribuir qualquer outro significado à exclamação, “Mestre,
não te importa que pereçamos” exceto o de ser uma crítica adversa a
Jesus, como se tudo o que pudesse suceder aos Seus discípulos não Lhe
importasse. Honestamente, tão aguda observação não pode nem sequer
chamar-se com justiça uma recriminação “suave”. Não havia nada suave
nisto. Significava, “Temos tão pouco valor para ti? Com a morte nos
olhando de frente, como podes dormir? Não te importa que nos trague
este mar enfurecido?”.
Não obstante, antes de julgar estes homens tão duramente, devemos
ter em mente os seguintes fatos: a. Estavam totalmente atemorizados: em
semelhante situação até as pessoas que normalmente são leais e
valorosas dizem às vezes coisas que depois lamentam; e b. sua amargura
não se acha isenta de certo grau de confiança. Se isto não fosse verdade,
eles — alguns eram marinheiros de ofício — não se teriam dirigido a um
“carpinteiro” para que lhes socorresse. Sem dúvida que sua fé distava
muito de ser perfeita, mas até a “pequena fé” é fé, e tem esperança de
purificar-se e crescer.
Segundo Mateus, a chamada angustiosa dos discípulos despertou a
Jesus, quem lhes disse, “Por que sois tímidos, homens de pequena
fé?” 172 Ele não estava assustado. Ao contrário, achava-se em pleno
controle da tempestade, mesmo quando os ventos ainda rugiam e as
águas ferviam (veja-se CNT sobre Mt. 13:34, 35).

172
Alguns afirmam que Marcos e Lucas deram a verdadeira ordem dos acontecimentos, porém não
assim Mateus. Não vejo nenhuma razão para aceitar tal opinião. Nem Marcos nem Lucas estavam
presentes durante a tormenta, mas Mateus sim estava. Além disso, não é natural supor que aquela falta
de fé foi para Jesus um assunto tão importante, que considerou necessário referir-se a ela antes e
depois de realizar o milagre? E não é também verdade que os discípulos foram embargados pelo temor
duas vezes; primeiro por causa da tempestade, e segundo por causa da presença Daquele que acalmou
a tempestade? Veja-se Lc. 8:24, 25.
Marcos (William Hendriksen) 240
4. Um assombroso milagre
39. E ele, despertando, repreendeu o vento e disse ao mar:
Acalma-te, emudece! O vento se aquietou, e fez-se grande bonança.
Segundo Mateus 8:26 Jesus levantou-se e “repreendeu os ventos e o
mar”. Segundo Lucas 8:24 “repreendeu o vento e a fúria das águas”. E
conforme a Marcos 4:39, “repreendeu o vento”, e disse ao mar que se
calasse. O verbo “repreendeu” 173 é o mesmo nos três casos. Há aqueles
que sustentam que este verbo sugere um objeto animado. Dizem que esta
inferência vê-se reforçada por Marcos 4:39, que se traduz então,
“Acalma, emudece!” Mas, começando por esta última, é preciso dizer
que uma palavra nem sempre retém sua conotação básica ou primária.
“Cala! Sossega!” é a melhor tradução de Marcos 4:39. Quanto à
expressão, “repreendeu”, deve ter-se em mente que Marcos não diz,
“Jesus repreendeu o demônio”, ou “os demônios”, ou “os espíritos maus
que estavam no vento”. Simplesmente diz, “repreendeu o vento”.
Pareceria, então, que se trata simplesmente de uma forma figurativa e
poética de falar (cf. Sl 19:5; 98:8; Is. 55:12; etc.). Assim ocorre também
em Lucas 4:39, onde somos informados que Jesus “repreendeu” a febre
que afligia a sogra de Pedro. O importante da expressão “repreendeu o
vento” (e seus paralelos nos outros Evangelhos) é que Jesus faz valer
Sua autoridade sobre os elementos da natureza, de modo que houve uma
profunda (literalmente “grande”) calma.
Marcos contém um paralelismo progressivo muito impressionante.
Jesus fala separadamente ao vento e ao mar. Ao vento repreende; ao mar
diz, “Acalma-te, emudece!” O resultado é indicado também
separadamente; o vento se acalmou e o mar sossegou.
O que chama especialmente a atenção é que não só se acalmou o
vento imediatamente, mas também o mesmo fizeram as águas. É bem
sabido que, em geral, depois que os ventos diminuem visivelmente, as
173
ἐπετίμησεν aor. indic. 3a. pes. sing. de ἐπιτιμάω. Tem o sentido de recriminação em passagens tais
como Mt. 8:26; 16:22; 17:18; 19:13; Mc. 4:39; Lc. 4:39; 9:42, 55; 19:39; 23:40; mas às vezes
significa advertir, dizer às pessoas que não façam algo, proibir (Mt. 12:16; 12:20; Mc. 3:12; Lc. 9:21).
Marcos (William Hendriksen) 241
ondas seguem rolando por algum tempo, elevando-se e desabando-se
como se não queriam seguir o exemplo das já dominadas correntes de ar
que há sobre elas. Mas neste caso os ventos e as ondas se sincronizam na
sublime sinfonia de um silêncio solene. Sobre as águas se posa algo
comparável à calma de um anoitecer sob um céu estrelado.
Repentinamente, a superfície do mar se tornou lisa como um espelho.

5. Uma carinhosa recriminação


40. Então, lhes disse: Por que sois assim tímidos?! Como é que
não tendes fé?
Antes de prosseguir com a explicação deste versículo, devemos
assinalar que às vezes é preciso comentar não só o que a Escritura diz,
mas também o que omite. É preciso inferir que os discípulos tinham
acusado o Mestre de ser indiferente e de mostrar um coração
incomprensivo, de não preocupar-se por eles (v. 38). Não é maravilhoso
e muito consolador precaver-se do fato de que Jesus nunca os repreendeu
por essas palavras desagradáveis e desconsideradas: “Não te importa que
pereçamos”? Este é o próprio Senhor que mais adiante ia dar resposta às
negações de Pedro, acompanhadas de maldições. Sua resposta,
entretanto, não seria uma aguda repreensão, mas um olhar cheio de dor,
mas ao mesmo tempo cheio de amor; e posteriormente (depois da
ressurreição) um interrogatório penetrante, esquadrinhador, mas cheio de
bondade: “Simão, filho de João, amas-me mais do que estes outros?… tu
me amas?… Tu me amas? [tens-me afeto?]”
Lucas 8:25 deixa bem claro que os discípulos estavam atemorizados
não só antes, mas também depois do milagre. Assustaram-se pela
tormenta. Mas logo se encheram de temor pela presença dAquele que de
forma tão repentina, completa e dramática tinha acalmado a tempestade
(veja-se casos similares de pavor provocado pelo conhecimento de estar
na presença da Majestade, em Is. 6:5 e Lc. 5:8). De modo que Jesus lhes
pergunta, “Por que tendes — não por que tinham — medo?” Como se
dissesse, não lhes ensinou este apaziguamento da tempestade e as ondas,
Marcos (William Hendriksen) 242
em resposta a seus histéricos clamores, que este seu Mestre não só é
muito poderoso, mas também muito amoroso? Portanto, não deveriam
responder com plena confiança, como a de uma criança?
O que Jesus realmente disse foi, “Ainda não tendes fé? (veja-se
também Mc. 8:17–21; 9:19). Eram “homens de pequena fé”, quer dizer,
homens muito tímidos para descansar no consolo e na confiança que
deveriam ter obtido da presença, promessas, poder e amor de seu Mestre
(Mt. 6:30; 8:26; 14:31; 16:8; Lc. 12:28); eram muito vacilantes para
perceber que o amoroso cuidado do Pai lhes era outorgado por meio do
Filho.
Ainda sem fé; quer dizer, sem fé apesar de tudo o que viram, ouvido
e experimentado? A partícula “ainda” não deve passar inadvertida. Ao
usá-la, Jesus lhes está ensinando que as experiências da vida acontecem
aos homens com um propósito determinado. Devem ser aproveitadas
para crescer em santificação. José entendeu isto (Gn. 50:19–21).
Também Davi (2Sm. 23:5; Sl 116); o homem cego de nascimento (Jo.
9:25; 30–33); e Paulo (1Co. 15:9, 10; Fp. 2:7–14; 4:11–13). Igualmente
Labão aprendeu algo por experiência, mas aplicou seu conhecimento de
forma egoísta (Gn. 30:27b).

6. Um profundo efeito
41. E eles, possuídos de grande temor, … Por causa de tudo o que
Jesus tinha revelado com relação a Si mesmo, mas provavelmente mais
por causa do poder que tinha manifestado, aqueles homens “temeram
(com) grande temor”, diz Marcos literalmente. 174 O “espanto” que aqui
se menciona era uma combinação de temor e reverência. Mateus 8:27 diz
que os homens “se maravilharam” (ou: assombraram)”. Lucas 8:25 fala
de temor e assombro. Os discípulos começam a notar: a grandeza de

174
Embora Marcos escreva para os romanos, ele mesmo é judeu, e o demonstra ao expressar-se no
estilo semítico típico (cf. 1 Macabeus 10:8; Jonas 1:10). A outra possibilidade é que esteja relatando
algo que extraiu que alguma fonte judaica, a qual lhe supriu deste detalhe da história. Marcos
conservou fielmente a fraseologia, mas traduziu o seu conteúdo ao grego. Cf. Lc. 2:9.
Marcos (William Hendriksen) 243
Jesus é muito mais sublime do que se tinham imaginado. Não só exerce
controle sobre as multidões que O escutam, as enfermidades, os
demônios, mas inclusive também sobre os ventos e as ondas: diziam uns
aos outros: 175 , 176 Quem é este que até o vento e o mar lhe obedecem?
Grande parte do mal que existe no mundo pode ser corrigido. Há
mães que enxugam as lágrimas, técnicos que operam máquinas,
cirurgiões que eliminam tecidos doentes, conselheiros que solucionam
problemas familiares, etc. E quanto a modificar o clima? Naturalmente
que se fala muito disso, mas para agir sobre o clima é necessário o poder
divino. É Jesus quem manda sobre os elementos do clima, obtendo que
inclusive o vento e o mar Lhe obedeçam. 177
Parece-nos que, no momento ao menos, os discípulos se achavam
profundamente impressionados pelo poder, majestade e glória de seu
Mestre. “Quem é este então?” (Mc. 4:41; Lc. 8:25) perguntavam-se.
Segundo as expressões de Mateus 8:27 o significado seria: “Que classe
de pessoa é esta?” ou “Que homem é este?”
A resposta a esta pergunta não nos é dada aqui (veja-se também
Jonas 4:1; Marcos 12:37; cf. Mt. 22:45). A narração termina de forma
muito apropriada, fixando a atenção sobre a pessoa de Jesus Cristo, de
modo que todo aquele que a ler pode dar sua própria resposta, possa
professar sua própria fé, e acrescentar sua própria doxologia.

Resumo do Capítulo 4

As oito seções deste capítulo podem resumir-se como segue:


a. A parábola do semeador (vv. 1–9). Foi pronunciada antes de que
Jesus abandonasse um concorrido edifício, talvez uma casa ou sinagoga,
dirigindo-se à praia (Mc. 2:2, 13; 3:1, 7). Assim também aqui (Mc. 3:20;

175
Ou: começaram a dizer-se.
176
Note-se a mudança significativa do aor. ἀφοβήθησαν ao imperf. ἔλεγον.
177
Note-se o verbo no singular: ὑποκούει o vento e o mar aqui se consideram separadamente, como o
foram também no v. 39.
Marcos (William Hendriksen) 244
4:1; cf. Mt. 13:1). Nesta ocasião, a multidão que se tinha reunido ao
redor de Jesus era tão grande que Ele subiu a uma barco e se sentou nele,
afastando-Se um pouco da praia, olhando à multidão. Em Seu ensino
desde o mar, o Mestre fez uso generoso das parábolas. Na realidade, a
parte do livro que aqui se resume pode intitular-se o capítulo das
parábolas de Marcos, visto que seis de suas oito seções as relatam, ou ao
menos se referem a elas.
Em primeiro lugar, Jesus relata a parábola do semeador. “Escutai”,
diz o Mestre, e prossegue, “Em certa ocasião o semeador saiu a semear”.
A semente caiu em várias classes de terreno: duro, rochoso, infestado de
espinhos, e bom. Só o último dos quatro produziu uma colheita; a
semente produziu trinta, sessenta, e cem por um.
b. Propósito das parábolas (vv. 10–12). Depois, numa casa e a
pedido de um grupo de discípulos mais amplo que os Doze, Jesus explica
por que falava em parábolas; ou seja, para revelar a verdade aos que a
aceitam, e escondê-la dos que obstinadamente se opõem a ela, a fim de
que estes últimos “confrontem a culpa de sua própria cegueira e dureza”
(Calvino).
c. Explicação da parábola do semeador (vv. 13–20). Jesus mostra
que os quatro tipos de solo significam respectivamente: corações
insensíveis, impulsivos, apreensivos, e sensíveis. Só a última classe de
coração dá fruto. A “chave” real da parábola é o dever do homem de
responder devidamente à palavra ou mensagem do reino. A ênfase recai
definitivamente na responsabilidade humana (vejam-se 4:9, 23, 24;
8:18).
d. Diversas declarações de Jesus (vv. 21–25). Os corações férteis se
assemelham a lâmpadas que iluminam. A palavra do reino e a vida em
harmonia com ele, não devem ocultar-se, mas manifestar-se, imitando
assim a Deus que um dia revelará tudo o que os homens procuraram
esconder. Então (e em certo sentido incluso antes de então), à medida
que uma pessoa tenha usado para dar, será a medida em que vai receber;
com a exceção, entretanto, de que a obra de salvação é assunto de pura
Marcos (William Hendriksen) 245
graça: Deus sempre está outorgando um dom após outro. Por outro lado,
até aquela aparência de conhecimento, aquela superficial relação
espiritual que em outro tempo se teve, será tirada daquele que não possui
o maior dos tesouros por causa de sua própria falta de vontade para
escutar e levar a sério a mensagem.
e. A parábola da semente que cresce em segredo (vv. 26–29). Esta
parábola ressalta a soberania de Deus, que se apresenta com relação à
salvação do homem, e seu efeito em todas as esferas da vida. Jesus faz
ver que para o homem o crescimento é um mistério: a semente brota e
cresce “sem ele saber como”. Também significa que a semente manifesta
seu poder; “de si a terra produz frutos”; e que a colheita (ou: tempo da
colheita) significa vitória: “Logo que a (condição de) o grão o permita,
em seguida ele — o semeador, agora também ceifeiro — mete a foice
porque a ceifa chegou”. A verdade é que o poder para germinar e crescer
que se encerrou na semente foi outorgado por Deus. O homem nada pode
fazer depois de espalhar a semente. Só pode dormir e levantar-se, dormir
e levantar-se, mas a colheita está assegurada. O reino de Cristo, seu
majestoso reino, estender-se-á e um dia será manifestado em todo seu
esplendor.
f. A parábola da semente de mostarda (vv. 30–32). Quando o
homem se ocupa com sua salvação devido ao fato de que Deus está
operando dentro dele — vejam-se as duas parábolas precedentes —
então o crescimento abunda. Os grandes resultados vêm de pequenos
começos. Assim sucede com a mostarda, que no princípio é uma semente
muito pequena, e finalmente alcança uma grande altura e lança ramos tão
grandes que as aves do céu podem habitar à sua sombra. O mesmo
ocorre com o reinado de Deus em Cristo, que no começo só foi
reconhecido por um grupo muito pequeno, mas logo se estendeu e
continuará estendendo-se, até ser uma bênção aos homens de todas as
raças, e inclui todas as esferas da vida, para a glória de Deus.
g. O uso das parábolas (vv. 33, 34). Por meio de parábolas e
expressões parabólicas que Jesus incluía em todos os Seus discursos
Marcos (William Hendriksen) 246
públicos, alcançou a Seus ouvintes até o ponto que Suas historia
ilustrativas e figuras retóricas conseguiram atrair e fixar a atenção de
toda a concorrência. Quando Se achava em casa (ou: numa casa), só com
os Seus discípulos, costumava explicar-lhes tudo.
h. Uma tempestade acalmada (vv. 35–41). Marcos descreve
primeiro o embarque ao entardecer. Depois de um dia muito ocupado,
Jesus, a pedido Seu, sobe a bordo com Seus discípulos. O grupo dirige-se
rumo à margem (oriental) oposta. Levanta-se uma furiosa tempestade, os
ventos uivam, as ondas se estrelam e se precipitam sobre o barco, que
começa a alagar. Jesus, enquanto isso, está na popa, Sua cabeça apoiada
num travesseiro, dormindo profundamente. Ouvem-se gritos frenéticos,
“Mestre, não te importa que pereçamos?” Ocorre um assombroso
milagre: Jesus Se levanta, repreende o vento, e diz ao mar: “Acalma-te,
emudece!” O vento se apazigua. Sobrevém uma grande calma. Ao
chegar a este ponto, Marcos menciona a tenra e carinhosa recriminação
de Cristo (Mateus o faz inclusive antes): “Por que sois assim tímidos?!
Como é que não tendes fé?” Quer dizer, ainda depois de todos os
milagres que Me vistes realizar, das palavras que ouvistes de Meus
lábios, e da vida que vivi em vossa presença? Acaso toda esta
experiência não vos ensinou nada?
O Mestre nem sequer lhes repreende com dureza por se haverem
dirigido a Ele com aquela atitude de forte censura. Marcos relata o
profundo efeito do milagre com as seguintes palavras: “E eles, possuídos
de grande temor, diziam uns aos outros: Quem é este que até o vento e o
mar lhe obedecem?”
Marcos (William Hendriksen) 247
MARCOS 5
Mc. 5:1–20 - Na terra dos gerasenos: A bondade em contraste com a
crueldade
Cf. Mt. 8:28–9:1; Lc. 8:2–39

A relação entre a história precedente (Mc. 4:35–41) e esta narração


(Mc. 5:1–20) é fácil de lembrar. Da descrição do mar enfurecido (Mc.
4:37), o evangelista passa para a de um homem feroz (Mc. 5:3–5).
Humanamente falando ambos eram indomáveis, mas Jesus dominou os
dois.
Era de noite quando o Senhor e Seus discípulos cruzaram o mar.
Atracaram à margem oriental, quer dizer, “fronteira da Galileia” (Lc.
8:26). Não é razoável supor que ao chegar ao versículo 14 ou 15 do
relato de Marcos, o evangelista relatasse o que sucedeu no dia seguinte?
As três narrações variam muito em amplitude e riqueza de
pormenores. Marcos contém maior número de detalhes. Segue-lhe
Lucas. O relato de Mateus é muito breve. O seguinte resumo é comum
para os três:
Jesus chega à margem oriental na companhia dos Doze, e de
repente sai-Lhe ao encontro um homem endemoninhado (ou: dois
endemoninhados, segundo Mateus). Ao ver Jesus, ele ou os
endemoninhados O abordam desta maneira: “Que tenho eu contigo,
Jesus, Filho do Deus Altíssimo?” Os demônios temem que Jesus tenha
vindo para os atormentar. Nas cercanias há uma vara de porcos pastando.
Precisamente antes de renunciar ao poder que tinham sobre o homem
(ou: os homens), os espíritos imundos pedem permissão para entrar nos
porcos. É-lhes concedido seu pedido, e o resultado é que toda a piara
agora endemoninhada, precipita-se no mar pelo penhasco, afogando-se.
Os que cuidavam dos animais voltam para a cidade e contam o sucedido.
O povo sai para ver Jesus, e Lhe rogam que abandone sua região.
Marcos (William Hendriksen) 248
Em cada um dos três Evangelhos acrescentam-se certos detalhes:
Mateus menciona que eram dois homens em vez de um, e que eram tão
violentos que era perigoso transitar por seu caminho. Também
acrescenta que temiam que Jesus tivesse vindo para torturá-los “antes do
tempo estabelecido”; e diz que a piara “pastava a certa distância” do
ponto onde teve lugar a confrontação de Jesus com os endemoninhados.
Por sua vez, Lucas acrescenta que o homem endemoninhado era
“da cidade” — aparentemente tinha vivido ali —; que por longo tempo
tinha andado despido; que os demônios faziam manifesta sua presença
no homem por meio de arrebatamentos de ira “que lhe vinham muitas
vezes”; que o tinham custodiado o homem e que os demônios levavam-
no ao deserto. Também nos é dito que os demônios rogavam a Jesus que
os mandasse “ao abismo”, e que o homem já libertado se achava sentado
“aos pés de Jesus” e que posteriormente proclamou “por toda a cidade” o
que o Senhor fez por ele.
Marcos explica com realismo que todos os esforços prévios para
subjugar o endemoninhado tinham fracassado; que de dia e de noite
gritava e se cortava com pedras; que aquele porta-voz dos demônios
queria que Jesus jurasse que não o atormentaria; que a piara era de uns
dois mil porcos; e que todos ficaram atônitos ao escutar o relato do
homem curado quando falava das grandes coisas que Deus fez por ele.
Finalmente, só Marcos e Lucas consignam a pergunta de Jesus, “Qual é
o teu nome?”, e registram a resposta a essa pergunta; assim como
também a petição que o homem curado e agradecido faz a Jesus, no
sentido de que lhe deixasse ir com Ele em suas viagens, e a resposta de
Jesus.
Voltando agora para Marcos 5:1–20, observamos que esta seção
pode ser dividida convenientemente em cinco breves parágrafos. Estes
cinco parágrafos enfocam respectivamente a atenção em: o homem; os
demônios; os porcos; os porqueiros; e Jesus.
Expresso de maneira mais ampla:
Marcos (William Hendriksen) 249
O homem infeliz encontra-se com Jesus. Descrição do homem (vv.
1–5).
Os demônios que controlam este homem. Sua confrontação com
Jesus. Identificação dos demônios e sua expulsão (vv. 6–10).
Os demônios precipitam os porcos pelos penhascos até o mar, onde
perecem (vv. 11–13).
Os porqueiros e o povo ao qual se informa. A petição do povo de
que Jesus abandone a região (vv. 14–17).
A petição do homem curado e a resposta de Jesus. Significado desta
resposta (vv. 18–20).
Além disso, o primeiro parágrafo descreve um homem que
necessita ajuda. Outros parágrafos (primeiro, segundo e quarto) mostram
que ninguém ajudou este desventurado, exceto Jesus. A crueldade
caracterizava os demônios, os porqueiros, e as pessoas em geral. Em
vivo contraste com esta atitude ressalta a bondade de Jesus, segundo se
descreve no segundo, terceiro (sim, também no terceiro!) e quinto
parágrafo.

1. O homem infeliz encontra-se com Jesus. Descrição do homem.


1. Entrementes, chegaram à outra margem do mar, à terra dos
gerasenos.
Segundo o CNT, o original diz gadarenos em Mateus 8:28,
gerasenos aqui em Marcos 5:1 e gergesenos em Lucas 8:26. Em cada
caso, as diversas leituras se reconhecem com uma nota de rodapé. Para
localizar o lugar onde Jesus atracou, resulta útil uma descrição como a
que se dá nos Evangelhos (Mt. 8:28, 32; Mc. 5:2, 13; Lc. 8:27, 33).
Sabemos que era uma região de covas usadas como sepulcros, e que uma
alta colina descia bruscamente até a própria margem da água. Esta
descrição não se ajusta a Gerasa, cidade situada a uns quarenta e oito
quilômetros ao sudeste do Mar da Galileia. Mas a descrição do lugar
coincide com Khersa, que muito bem poderia identificar-se com a cidade
onde habitavam os gerasenos. Podemos supor que a cidade de Gadara
Marcos (William Hendriksen) 250
era, por assim dizer, a capital de todo o distrito. Estava situada a uns
poucos quilômetros a sudeste do lago, embora chegava até a margem.
Então as diversas designações geográficas começam a adquirir sentido.
Além disso, Khersa estava situada na margem oriental, a uns dez
quilômetros diagonalmente (pelo lago) rumo a sudeste de Cafarnaum.
Em tal lugar existe efetivamente uma colina que desce abruptamente até
o mar. Também há muitas covas — visíveis até hoje — adequadas para
ser utilizadas como sepulcros. 178
2. Ao desembarcar, logo veio dos sepulcros, ao seu encontro, um
homem possesso de espírito imundo.
A confrontação de Jesus com este homem tem lugar perto da
própria margem, no preciso momento em que Jesus sai do barco. A
expressão “um homem possesso com espírito imundo” significa “um
endemoninhado”, coisa que é evidente em todo o relato (vejam-se
especialmente os vv. 8–12, e se afirma explicitamente nos relatos
paralelos de Mt. 8:28; Lc. 8:27). “Imundo” significa “perverso” (cf. Lc.
7:21; 8:2 com 4:33–36). Os espíritos imundos são moralmente sujos. São
malignos por si só, e são fonte de maldade e destruição para aqueles
sobre quem exerce controle. Para mais detalhes sobre possessão
demoníaca veja-se Mc. 1:23 e CNT sobre Mt. 9:32–34.
Não se sabe por que razão Mateus menciona dois endemoninhados,
enquanto Marcos e Lucas falam de um só, 179 mas nem hoje em dia
surpreende achar este tipo de diferenças num relatório como este. Tem
sido sugerido que o endemoninhado a quem Marcos e Lucas fazem
referência era o líder e porta-voz dos dois, mas isto não é mais que uma
hipótese. Deve notar-se, entretanto, que estes dois evangelistas não
afirmam que foi somente um endemoninhado que se encontrou com

178
Veja-se o artigo de A. M. Ross, “Gadara, Gadarenes”, no Zondervan Pictorial Bible Dictionary
(Grand Rapids: Zondervan,1963), p. 293; e J. L. Hurlbut e J. H. Vincent, A Bible Atlas (Nova York,
etc., 1940), p. 101.
179
Cf. também Mt. 20:29 (“dois homens cegos”) com Mc. 10:46 e Lc. 18:35.
Marcos (William Hendriksen) 251
Jesus naquele dia. Ninguém, portanto, tem direito de falar que Mateus
contradiz o dito por Marcos e Lucas.
O endemoninhado “veio ao encontro” de Jesus no momento em que
desembarcava; quer dizer, “imediatamente”, “logo”. Acrescente-se a este
fato, que nos versículos 3b–5 Marcos descreve este homem como uma
pessoa muito violenta (cf. Mt. 8:28), e tal inferência se justifica pela
forma impetuosa em que desdobrou sua ferocidade lançando-se sobre
Jesus. Parece que saindo dos sepulcros desceu como um raio para
encontrar-se com os recém-chegados.
E para cúmulo, despido! Veja-se Lc. 8:27.
Os sepulcros constituíam o “lar” deste homem, e são novamente
mencionados nos versículos 3 e 5. Na realidade, segundo se vê no
original, os versículos 3–5 devem ser considerados juntos, e dão uma
descrição muito realista desta pessoa “feroz”:
3–5. o qual vivia nos sepulcros, e nem mesmo com cadeias alguém
podia prendê-lo; porque, tendo sido muitas vezes preso com grilhões e
cadeias, as cadeias foram quebradas por ele, e os grilhões, despedaçados.
E ninguém podia subjugá-lo. Andava sempre, de noite e de dia, clamando
por entre os sepulcros e pelos montes, ferindo-se com pedras.
Definitivamente trata-se aqui de um endemoninhado e não só de um
maníaco. O quadro que Marcos pinta é aterrador. Descreve a um homem
que é vítima da maldade demoníaca associada com a indiferença e a
impotência humanas. Mas enfim, a onipotência e bondade divinas vêm
em seu auxílio e sai triunfante. A bondade de Jesus contrasta
surpreendentemente com a insensibilidade cruel dos demônios e os
homens.
Como já se indicou, o homem que aqui se descreve tinha vivido na
cidade. Mas possuído por demônios, agora vivia entre “os sepulcros”.
Este termo refere-se provavelmente a câmaras mortuárias abandonadas,
escavadas nos lados dos escarpados. Habitualmente, de vez em quando,
durante a noite e o dia, seus gritos estridentes ressoavam pavorosamente
de caverna em caverna perto do rochoso litoral, enchendo de terror o
Marcos (William Hendriksen) 252
coração de qualquer viajante que se aventurasse a aproximar-se. A
maioria das pessoas evitava aqueles lugares (Mt. 8:28b). Além disso, em
meio de seus horríveis gritos, o endemoninhado aumentava seu mal
cortando seu corpo despido com as afiadas arestas das pedras quebradas.
Que atitude tinham para com ele os vizinhos? Parece que a única
coisa que lhes preocupava era sua própria segurança e proteção. Por esta
razão, sempre o estavam atando de pés e mãos. Mas não importa quantas
vezes recorressem a esta medida de proteção, nunca estavam tranquilos
porque ele rompia as correntes, e os correntes dos pés saltavam em
pedaços. Na realidade, ninguém absolutamente foi capaz de dominá-
lo. 180

180
Estes três versículos contêm vários pontos sobre vocabulário e gramática que merecem ser
mencionados:
O substantivo κατοίκησις (v. 3, acus. — ιν) só ocorre aqui no Novo Testamento. É o lugar onde a
gente “se instala”, é o lar ou habitação de uma pessoa. Sobre a base da palavra grega, cf. as palavras
vizinhança, paróquia.
εἰχεν ἐδύνατο, ἴσχυεν (vv. 3, 4). Estes imperfeitos mostram que Marcos está descrevendo a cena.
Descreve coisas de forma deliberada, e as concebe tal como se realmente estivessem ocorrendo. Com
relação a isto observe-se também a perífrase ἠν κράζων καὶ κατακόπτων (v. 5).
οὑδὲ … οὑδείς: doble negação, estilo popular; realmente tríplice, porque Marcos ainda acrescenta
οὑκέτι (v. 3). Em conjunto, isto nega com muita força a hipótese de que alguém fosse capaz de atar
este endemoninhado com segurança.
ἅλοσις “cadeia, grilhões” (cf. Lc. 8:29; At. 12:6, 7; 21:33; 28:30); a forma que se usa primeiro é o
dativo instrumental (sing. no v. 3; pl. no v. 4); logo no v. 4 aparece o acusativo pl. No v. 4, também
πέδη ocorre primeiro como dat. pl. instrumental, e logo como ac. pl. Para esta palavra cf. πούς, “pé”,
“pedal”.
Podemos talvez pensar num par de argolas de metal ao redor dos tornozelos cujos passadores se
amarravam com uma cadeia. Pôde ter sido qualquer tipo de “armadilha de ferro”. Mas veja-se
Robertson, Word Pictures, I, p. 295.
No começo do v. 4, διά aparece seguido de um acusativo (“efetivamente, por certo” ou “porque”), e
introduz a evidência da declaração anterior: o passado explica o presente. Procurou-se muitas vezes
atar o homem pelas mãos e pés mas sempre fracassou o intento.
Também no v. 4, δεδέσθαι (de δέω cf. Mc. 3:27 e muitas outras passagens do Novo Testamento, cf.
também “diadema”); διεσπάσθαι (de διασπάω; cf. At. 23:10; também a palavra inglesa “span”); e
συντετρίφθαι (de συντρίβω; cf. Mc. 14:13; também Mt. 12:20; Lc. 9:39; Jo. 19:36; note-se
“tribulação”) são infinitivos perfeitos. Indicam o que se fez no passado, mais o resultado: o homem
tinha sido preso, sendo deixado em condição imóvel. Do mesmo modo, as cadeias estavam quebradas
e os correntes despedaçadas, com o resultado de que os partes quebradas de cadeias e correntes, a
vista de todos, assinalavam a impossibilidade de ter ao endemoninhado dominado permanentemente.
Marcos (William Hendriksen) 253
2. Os demônios controlam este homem. Sua confrontação com
Jesus. Identificação dos demônios e sua expulsão.
6, 7. Quando, de longe, viu Jesus, correu e o adorou, exclamando
com alta voz: Que tenho eu contigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo?
Às vezes se argumenta que o versículo 6 contradiz o versículo 2.
Segundo o versículo 2, quando Jesus sai do barco o endemoninhado se
acha ali mesmo, enquanto segundo o versículo 6 ainda se encontra a
bastante distância. 181 Mas sem dúvida esta argumentação equivale a criar
um conflito onde não existe nenhum. É totalmente legítimo interpretar o
relato de Marcos como significando que antes que o barco chegasse à
margem, o endemoninhado “de longe” observou atentamente o barco
que se aproximava, depois se aproximou correndo, e saiu ao encontro de
Jesus no momento em que este descia do barco. 182
Talvez algo mais difícil de compreender seja a conduta do
endemoninhado. Aparentemente é muito contraditória: primeiro o vemos
lançando-se com ânimo hostil; logo cai aos pés de Jesus e O adora; para
mudar em seguida outra vez de atitude e lançar imediatamente um
sinistro grito. Se dissermos que, afinal de contas, o que se espera de um
endemoninhado é justamente uma conduta irracional, provavelmente só
entregamos uma solução pela metade. Também se deve assinalar que
quando este homem começou a correr rumo ao grupo formado por Jesus
e os apóstolos, ainda não tinha reconhecido o seu líder. Quando este
homem — na realidade os demônios que havia nele, representados por
seu porta-voz — reconheceu-O de uma forma que vai além do
entendimento humano, sua primeira reação diante da majestade de Cristo

No v. 5, διὰ παντός indica “a intervalos durante a noite e o dia”.


181
Veja-se Vincent Taylor, Op. cit., p. 280.
182
Outra objeção que se costuma levantar é esta: a expressão “de alguma distância” (ou: “de longe”) é
pouco significada, visto que Marcos as usa vez após vez (veja-se também Mc. 8:3; 11:13; 14:54;
15:40). Resposta: Isto de modo nenhum sugere que se trata de uma mera frase feita. Não só Mateus
(Mt. 26:58; 27:55) e Lucas (Lc. 16:23; 18:13; 22:54; 23:49) usam-na também, mas sim onde quer que
apareça em algum dos Evangelhos (e em qualquer outro lugar; veja-se Ap. 18:10, 15, 17) ajusta-se à
situação que se descreve. Sua utilização jamais pode ser chamada artificial.
Marcos (William Hendriksen) 254
183
foi de um temor reverencial que O induziu a prostrar-se. Mas logo o
demônio que falava em nome dos demais refletiu no fato de que Jesus
era, afinal de contas, seu grande Adversário, Aquele que tinha vindo à
terra com o propósito expresso de “destruir as obras do diabo” (1Jo. 3:8).
Então, fazendo uso dos órgãos vocais do desventurado, deu rédea solta a
seus sentimentos de ódio, frustração e desespero com uma exclamação:
“Por que me incomodas, Jesus, Filho do Deus Altíssimo?”
A conduta deste endemoninhado é muito parecida com a que se
descreve em Mc. 1:23, 24. Note-se em ambos os casos o estridente e
encolerizado grito, a confissão da deidade de Cristo, e o temor de que
inclusive naquele mesmo momento Jesus tivesse o propósito de torturar
os seus infernais adversários (veja-se sobre Mc. 1:23, 24).
Embora às vezes os humanos fazem tudo o que podem para negar a
deidade de Cristo, não ocorre assim com os demônios; note-se o Mestre
recebe um título sublime da parte do porta-voz dos espíritos imundos que
habitavam naquele homem. Chama-o nada menos que Jesus, “Filho do
Deus Altíssimo”! Jesus era e é exatamente isto. Cf. Gn. 14:18, 19; Is.
6:3 (à luz de Jo. 12:41); Lc. 1; 32, 35, 76; 6:35; 8:28; Hb. 7:1.
É possível que imediatamente depois desta exclamação Jesus lhe
dissesse, mais de um vez, ao demônio que representava a outros: “Sai do
homem, espírito imundo” (veja-se sobre o v. 8). Em vez de obedecer
imediatamente, o demônio respondeu, “Conjuro-te por Deus que não
me atormentes!”. 184 A essência desta insolência se reflete de forma
mais suave na passagem de Lucas, “Rogo-te que não me atormentes”.
Isto significava: não nos ordenes ir “ao abismo” (Lc. 8:28, 31).
Mateus deixa passar em silêncio a petição do demônio para que
Cristo Se comprometesse mediante juramento. Mateus omite o
juramento em harmonia com Mt. 5:33–37 (veja-se CNT sobre essa
passagem). Mateus interpreta o chiado com o significado de, “vieste a
183
No presente caso, não é necessário interpretar a palavra usada no original no sentido amplo de
render adoração sincera e humilde (como em Mt. 2:2, 11).
184
O verbo vai seguido de dois acusativos, tanto aqui como em At. 19:13.
Marcos (William Hendriksen) 255
nos torturar antes do tempo?”. A esfera dos demônios sabe que ao chegar
o dia do juízo final, a liberdade relativa que desfrutam para percorrer o
mundo e o céu circundante (veja-se CNT sobre Ef. 2:2; 6:12) cessará
para sempre e está determinado para eles seu castigo final e mais terrível.
O representante que estava falando com Jesus compreende que nesse
mesmo instante se acha diante dAquele a quem o destinou ao juízo final,
e teme que naquele momento — “antes do tempo estabelecido” — Jesus
pudesse lançar ele e os seus companheiros “ao abismo” ou “masmorra”,
isto é, ao inferno, lugar onde Satanás está retido. As repetidas ordens de
Cristo de sair daquele homem tão terrivelmente atormentado, gerou e
intensificou aquele temor nestes espíritos imundos, segundo se afirma
claramente no versículo
8. Porque Jesus lhe dissera: Espírito imundo, sai desse homem!
O relato segue:
9. E perguntou-lhe: Qual é o teu nome? Por que razão Jesus Se
desentende da petição do demônio (v. 7b) e lhe pergunta seu nome?
Entre os comentaristas pode-se encontrar estas respostas:
a. Vários evitam totalmente solucionar este difícil enigma.
b. Outros 185 opinam que Jesus, bem como outros exorcistas, cria
que o conhecimento do nome do demônio encerrava o poder para
expulsá-lo. Imediatamente após conhecer o nome do demônio, seu poder
ficava destruído.
Objeção. Sem dúvida alguma que isto parece ser um intento de
reduzir o poder de Jesus ao de qualquer exorcista. Além disso, se a teoria
fosse certa, esperaríamos que nos demais casos de expulsão demoníaca
registrados nos Evangelhos teria havido referências a perguntas sobre o
nome do demônio.
c. Outros 186 afirmam com muita segurança que Jesus pergunta pelo
nome com o fim de que Seus discípulos etc. compreendessem que não se

185
Veja-se W. Barclay, Op. cit., p. 118; Vincent Taylor, Op. cit., p. 282.
186
R. C. H. Lenski, Op. cit., p. 132.
Marcos (William Hendriksen) 256
enfrentava a um só demônio mas muitíssimos. A resposta do demônio
revelaria que eram muitos.
d. Embora não possamos estar totalmente seguros, a melhor
resposta é a que sugerem de uma forma ou outra vários expositores. 187
Em suma, é a seguinte: Jesus deseja revelar ao homem endemoninhado a
gravidade de sua situação. A fim de libertá-lo dela, deseja tranquilizá-lo
e fortalecer a consciência de seu verdadeiro eu. Deseja arrancá-lo dessa
relação estreita — quase identificação — com o demônio (ou os
demônios) que por tanto tempo o tinha dominado.
Respondeu ele: Legião é o meu nome, porque somos muitos. A
resposta indica a profundidade da miséria do endemoninhado. Está sob o
controle não de um só demônio, porta-voz dos demais, mas de toda uma
legião! 188 Não devemos tomar a palavra “Legião” de maneira literal,
como se o pobre homem tivesse estado sob o controle de não menos que
6.000 demônios. Indubitavelmente que aqui o significado é figurado: um
número muito grande. É possível também que o termo “Legião” evoque
a visão de um exército invasor, de crueldade e destruição. Não estamos
diante de uma legião de anjos protetores (cf. Mt. 26:53: “mais de doze
legiões de anjos”). Enfrentamo-nos ao exército de terror e morte de
Satanás. O fato de que mais de um demônio possa às vezes possuir e
escravizar uma pessoa é evidente por outras passagens bíblicas (veja-se
Mt. 12:45 com Lc. 11:26; e Mc. 16:9 com Lc. 8:2).
10. E rogou-lhe [a Jesus] encarecidamente 189 que os não
mandasse 190 para fora do país.

187
Veja-se A. Cole, The Gospel According to St. Mark (Grand Rapids, 1961), p. 98; A. B. Bruce, Op.
cit., p. 372; C. R. Erdman, Op. cit., p. 82; N. Geldenhuys, Commentary on the Gospel of Luke (Grand
Rapids, 1951), p. 255.
188
A palavra latina legio foi absorvida pelo grego helênico e até pelo aramaico.
189
πολλά usa-se como advérbio: fervorosamente, vez após vez; usa-se aqui em conexão com um verbo
em tempo imperfeito; em consequência, rogou-lhe vez após vez; e talvez inclusive: seguiu lhe
rogando fervorosamente.
190
ἵνα μὴ … ἀποστείλῃ (aor. subj. at.) literalmente, “que ele não enviasse”.
Marcos (William Hendriksen) 257
Veja-se sobre o versículo 7. Entretanto, ao chegar a este ponto é
necessário acrescentar outro detalhe. Os demônios não só desejam
fervorosamente permanecer longe do abismo, mas também desejam
permanecer precisamente nesta região, porque é região de sepulcros,
esqueletos, abandono, morte e destruição. Aqui se sentem
“confortáveis”. Se costumamos a associar os anjos bons com lugares
onde prevalecem a ordem, a beleza e a plenitude de vida, não parece
natural, em harmonia com as Escrituras (Mt. 12:43), relacionar os anjos
do mal com regiões onde dominam a desordem, a desolação, o abandono
e a morte?

3. Os demônios precipitam os porcos pelos penhascos ao mar, onde


perecem.
Ao chegar a este ponto a história toma um novo rumo: adiciona-se
um novo elemento.
11, 12. Ora, pastava ali pelo monte uma grande manada de
porcos. E os espíritos imundos rogaram a Jesus, dizendo: Manda-
nos para os porcos, para que entremos neles.
Os demônios compreendem que não podem resistir a ordem que
Cristo lhes dá, de sair do endemoninhado. Devem deixá-lo, e é
exatamente o que vão fazer. Mas apresentam uma última petição
referente aos porcos que pastavam na ladeira da colina.
Note-se “ali pelo monte”. Isto deve significar “nas cercanias”. Se
situarmos esta vara de porcos muito perto da cena do enfrentamento de
Cristo com o endemoninhado, criamos um conflito entre Marcos 5:11 e
Mateus 8:30. Realmente não existe conflito, porque a frase “ali pelo
monte” dá espaço para a ideia de que a piara se achava “a certa
distância” de Jesus e do homem endemoninhado (ou: “homens”, segundo
Mateus).
Qual era a razão da petição dos demônios para entrar nos porcos?
Era simplesmente o desejo de destruir? Foi acaso a esperança sinistra de
que os donos da piara, ao ver sua propriedade destruída, se enchessem de
Marcos (William Hendriksen) 258
ira contra Jesus? A resposta não nos foi revelada. Mas cabe atender ao
fato de que os demônios percebem que sem a autorização de Cristo não
podem entrar nos porcos.
Continua:
13. Jesus o permitiu. Então, saindo os espíritos imundos, entraram
nos porcos; e a manada, que era cerca de dois mil, precipitou-se
despenhadeiro abaixo, para dentro do mar, onde se afogaram.
De modo que, no final, os espíritos imundos obedeceram realmente
a ordem de Cristo e arrojaram os grilhões. Em resposta ao seu pedido (v.
12), Jesus lhes deu permissão. De modo que saíram do homem e
entraram nos porcos. Resultado: a piara de dois mil se precipitou em
turba pelo despenhadeiro (Marcos gosta de mencionar cifras; veja-se a
Introdução IV, nota 5 c). Aqui Marcos muda bruscamente o tempo do
verbo. Até o momento deu a conhecer quatro eventos de forma breve,
quatro eventos sucintos: deu, saíram, entraram, precipitou-se. É como
se, em rápida sucessão, tivesse mostrado quatro fotos instantâneas. E
então nos mostra um filme em câmara lenta: de um em um vemos os
aproximadamente dois mil porcos afogando-se no mar, até que todos
morreram. 191
Duas interrogantes demandam nossa consideração. Primeiro, “Que
justificação ética houve para que Jesus permitisse que a estes animais
lhes sucedesse algo como isto?” Diremos que algum dia os porcos de
qualquer maneira teriam que morrer; assim que bem podiam morrer
agora? Acrescentaremos que a morte rápida por afogamento ou asfixia
era mais piedosa que a morte mais lenta por fogo ou por ataque de
bestas, ou por fome, ou pela mão de um torpe açougueiro, etc.? Não é
Rm. 9:20 a verdadeira resposta? “Mais antes, ó homem, quem é você
para que brigue com Deus?” Cf. Dn. 4:35.
Neste comentário se mencionou vez após vez o amor e o poder de
Deus em Cristo. E com toda razão, porque as próprias Escrituras

191
Note-se no original os quatro aoristos e o imperfeito no final.
Marcos (William Hendriksen) 259
mencionam repetidamente estas qualidades. Mas não menos importante,
por certo, são a santidade e a soberania de Deus. Ele é imaculado. Mais
ainda, Deus é santo e é a fonte da santidade de todos os que depositam
nEle sua confiança (cf. Is. 6:1–5). Além disso, não nos deve explicação
alguma de Seus atos. Nós devemos viver pela fé! (Hc. 2:4; Rm. 1:17; Gl
3:11. Veja-se também Jó 21:5; 40:4.). Herman Bavinck disse:
“Observamos ao nosso redor tantos fatos que parecem irrazoáveis, tanto
sofrimento imerecido, tantas calamidades inexplicáveis, tão desigual e
inexplicável distribuição dos destinos, e tão enorme contraste entre os
extremos da alegria e a tristeza, que todo aquele que reflita sobre estas
coisas vê-se forçado a escolher entre ver este universo como se fosse
governado pela cega vontade de uma deidade maligna, como o faz o
pessimismo, ou, com base nas Escrituras e por fé, descansar na absoluta
e soberana, mas entretanto — por incompreensível que seja — a sábia e
santa vontade dAquele que um dia fará com que a plena luz do céu
amanheça sobre estes mistérios da vida … No meio da terrível realidade,
o calvinismo não sai à frente com a solução, mas oferece este consolo:
que aconteça o que acontecer, é preciso reconhecer a vontade e a mão
reitora de um Deus onipotente, que ao mesmo tempo é um Pai
misericordioso. O calvinismo não oferece a solução, mas faz com que o
homem descanse nAquele que mora na luz inacessível, cujos juízos são
inescrutáveis e cujos caminhos são insondáveis”. 192
Esta mesma resposta serve para a segunda pergunta, ou seja, “Foi
justo que Jesus permitisse que os demônios destruíssem tantos bens,
quer dizer, privar seus proprietários de tão grande quantidade de
pertences materiais?” deve acrescentar-se também à reflexão
fundamental a respeito da soberania de Deus, que Jesus autorizou esta
perda para ajudar os proprietários. Mas isto lhes serviria de ajuda só se
estivessem dispostos a aprender a lição devidamente. Aqueles
proprietários e em geral o povo daquela comunidade eram egoístas. Em

192
The Doctrine of God (Grand Rapids, 1955), pp. 396, 397.
Marcos (William Hendriksen) 260
sua escala de valores, a aquisição, retenção e multiplicação das posses
materiais ocupavam um lugar muito mais alto que a libertação e
restauração de um homem sem liberdade, sem felicidade, sem amor, e
sem ninguém que se preocupasse com ele. O endemoninhado era um
escravo, desgraçado, odiado e abandonado. Como prova disso veja-se
sobre o v. 17. Daí que para eles era necessária esta lição. 193

4. Os porqueiros e o povo a quem se informa. Pedido do povo que


Jesus abandone a região.
14–16. Os porqueiros fugiram e o anunciaram na cidade e pelos
campos. Então, saiu o povo para ver o que sucedera. Indo ter com Jesus,
viram o endemoninhado,194 o que tivera a legião, assentado, vestido, em
perfeito juízo; 195 e temeram. Os que haviam presenciado os fatos
contaram-lhes o que acontecera ao endemoninhado e acerca dos porcos.
Os homens que tinham estado cuidando dos porcos devem ter
presenciado o encontro de Jesus com o endemoninhado. Também viram
esfumar-se a ferocidade daquele homem, e constataram como essa fúria
se trasladou, por assim dizer, aos porcos, o que causou que se perdesse
toda a piara na água. Os porqueiros concluíram corretamente de que foi
Jesus quem tinha ordenado e permitido que tudo isto sucedesse. Tinha
ordenado aos demônios que saíssem, e lhes tinha permitido entrar nos
porcos. Os que cuidavam dos porcos não eram os culpados da perda da
piara. Portanto, os porqueiros foram correndo aonde estava o povo.

193
Lenski segue um raciocínio totalmente diferente, Op. cit., pp. 133, 134. Conforme ele entende, os
donos dos porcos eram judeus. Jesus Se limitava ao Seu próprio povo e fez com que os animais
morressem porque para estes proprietários judeus era ilegal possuí-los.
Resposta. Esta linha de raciocínio injeta na história um elemento completamente estranho a ela. Além
disso, nem mesmo passagens tais como Mt. 10:5; 15:24, 26 podem interpretar-se corretamente como
se significassem que os não judeus estavam absolutamente excluídos do âmbito das simpatias e
atividades de Cristo. Veja-se Mt. 4:24; 8:5–13; Mc. 7:24–30; 15:21–28; Lc. 4:25–27; 6:17–19; 7:1–
10; Jo. 1:29; 3:16, 17; 4:42; 6:51; 8:12; 9:5; 10:16, 11:52; 12:32.
194
Para a explicação do gerúndio, veja-se sobre o v. 18.
195
ἱματισμένον καὶ σωφρονοῦντα: temos aqui um ptc. pf. pas. (“tinha chegado a estar — portanto,
ainda estava — vestido”) seguido pelo ptc. presente (“em seu são juízo”).
Marcos (William Hendriksen) 261
Queriam que os proprietários e todos os outros, no povoado e seus
arredores, na pequena aldeia e nas granjas, soubessem quem era e os que
não eram os culpados.
Marcos descreve às pessoas que foi ver o que tinha ocorrido.
Provavelmente foram à manhã seguinte. O que é que veem? Veem a
Jesus. Também observam atentamente o homem que tinha estado
endemoninhado. Não havia dúvida alguma. Era o mesmo homem.
Entretanto, agora já não corria colina abaixo, mas estava sentado, ali, aos
pés mesmos de Jesus. Já não estava despido (Lc. 8:27) e sim vestido. E
já não se comportava como um louco, gritando noite e dia, e cortando-se
com as afiadas arestas das pedras, mas estava em seu são juízo (cf. 2Co.
5:13).
O poder e a majestade de Jesus, o Autor de tudo isto, fez com que o
povo se atemorizasse. Esta reação esteve longe de acalmar-se quando ali
mesmo, no lugar onde tudo tinha acontecido, as testemunhas oculares,
porqueiros e discípulos, explicaram os detalhes da história: “o que tinha
sucedido com o endemoninhado e com os porcos”.
Qual deveria ter sido o resultado? A tristeza inicial pela perda dos
porcos teria sido natural. Mas os proprietários e todos os que de algum
modo se viram afetados por esta perda, deveriam ter falado mais ou
menos assim: “Agora compreendemos que a perda de nossos bens é um
preço insignificante comparado com a lição que aprendemos. Estes
porcos, simples propriedade material, era tudo para nós. Fomos egoístas.
Jamais nos sentimos preocupados com as necessidades de nosso vizinho,
este pobre miserável. Agora vemos as coisas de outro modo. Damo-nos
conta de que os valores humanos excedem em grande medida aos valores
materiais”. Não deveriam ter felicitado àquele homem que estava
assentado ali aos pés de Jesus? Não deveriam ter levado os seus doentes
e aleijados a Jesus para que também os curasse? Não é possível que o
povo de toda aquela região não tivesse ouvido falar daquele grande
Benfeitor! (veja-se Mt. 4:25). Não deviam ter procurado convencer a
Marcos (William Hendriksen) 262
Jesus que permanecesse um pouco mais com eles, a fim de comunicar
bênçãos para o corpo e a alma? Cf. Jo. 4:40.
Na realidade, sua reação foi muito diferente. De fato foi
diametralmente oposta. Jesus devia ir embora, e quanto antes melhor:
17. E entraram a rogar-lhe que se retirasse da terra deles.
Os três evangelistas relatam isto, e isso é essencial para a
compreensão da lição que aqui se comunica.
Aqueles homens tinham medo de Jesus. Além disso estavam
ressentidos com Ele. Não lhes tinha privado de seus bens? Não estava
perturbando seu regime habitual de vida particular?
Quantas vezes, inclusive em nosso tempo e época, não se repetiu
este mesmo incidente? As pessoas estão ansiosas para escutar a história
de Jesus e de Seu amor … sempre e quando não se insistir muito nas
implicações do evangelho na vida e conduta diárias, porque isto seria
desagradável e inquietante! (Mt. 18:23–35; 25:31–46; Jo. 13:14, 15;
2Co. 8:7–9; Ef. 4:32–5:2).

5. A petição do homem curado e a resposta de Jesus. Significado


desta resposta.
18. Ao entrar Jesus no barco, suplicava-lhe o que fora
endemoninhado 196 que o deixasse estar com ele.
Era uma petição muito natural. O homem desejava estar com seu
Benfeitor, com quem tinha uma dívida tão grande. Desejava lhe
emprestar qualquer serviço que solicitasse.

196
Note-se o ptc. aoristo δαιμονισφείς. Contraste-se isto com o gerúndio δαιμο νιζόμενον no v. 15.
Quando as pessos saíam para ver este homem, ainda estava muito presente diante deles o quadro de
uma pessoa realmente possuída pelo demônio. Não obstante, até então, Marcos usa o particípio
perfeito ἐσχηκότα, para assinalar que se tinha produzido uma mudança. Ao chegar ao v. 18, a história
estava numa nova etapa. Todos sabem agora que este homem já não é um endemoninhado. Daí que o
particípio aoristo vem muito ao caso aqui. Referente a uma explicação um pouco diferente a respeito
deste ponto gramatical, veja-se Robertson, p. 1117.
Marcos (William Hendriksen) 263
19. Jesus, porém, não lho permitiu, mas ordenou-lhe: Vai para
tua casa, para os teus. Anuncia-lhes tudo o que o Senhor te fez e
como teve compaixão de ti.
Há vários pontos que merecem nossa atenção:
a. Acedendo ao rogo dos demônios, Jesus lhes permitiu entrar nos
porcos, e acedendo à petição do povo, o Senhor abandonou a região. Não
desconcerta que agora rejeite a petição de um homem que se converteu
em seu fervoroso seguidor? Disto aprendemos que quando Deus permite
ao Seu povo ter tudo o que este quer, isso não é sempre uma bênção
completa. E quando recusa dizer que “sim” ao que Seu povo Lhe pede
com ardor, não é necessariamente um sinal de desaprovação.
b. A verdadeira atividade missionária começa em casa, porém não
termina ali. Começa de fato com nossa gente (At. 1:8; cf. Mt. 10:5, 6).
Não sugere isto que um verdadeiro membro da igreja deve estar pelo
menos tão preocupado em proporcionar uma completa educação cristã a
seus filhos, como o está em enviar missionários aos pagãos?
Esta última tarefa é indubitavelmente de muita importância, mas a
primeira deve ter prioridade.
c. Aquele homem recebeu a ordem de contar aos seus as grandes
coisas que “o Senhor” fez por ele. Conforme indica o versículo 20, o
homem sabia que o nome “o Senhor” se referia a Jesus. Em Lucas 8:39
muda-se a palavra “Deus” pela “Senhor”, e este homem volta a
interpretar a palavra “Deus” como referindo-se a Jesus (Lc. 8:39b). Isto
demonstra que, segundo a apreciação dos evangelistas e do ex-
endemoninhado, Jesus é o Senhor. Ele é Deus.
d. O termo “os teus” não tem aqui um sentido muito limitado (veja-
se v. 20), e ao mesmo tempo implica que o vizinho falará com vizinho.
Poderia dizer-se que a lição principal é esta: ao mandar o homem a ir aos
seus, Jesus exibe uma grande bondade, e isto não só com o ex-
endemoninhado, mas também com toda aquela comunidade que tão
vergonhosamente O tinha rejeitado. Eles tinham pedido a Ele que fosse
embora, mas em Seu grande amor, Ele não pôde desligar-se totalmente
Marcos (William Hendriksen) 264
deles. De modo que lhes envia um missionário, na realidade o melhor
tipo de missionário, um que podia falar por experiência própria. Veja-se
Sl 34:6; 66:16; 116; Jo. 9:25; 1Co. 15:9, 10; Gl 1:15, 16; Fp. 3:7–14;
1Tm. 1:15–17; 2 P. 1:16; 1 Jo. 1:1–4.
O homem obedeceu.
20. Então, ele foi e começou a proclamar em Decápolis 197 tudo o
que Jesus lhe fizera; e todos se admiravam.
O homem curado fez exatamente o que o Senhor desejava que
fizesse. Foi embora para casa e ali relatou quão grandes coisas Jesus fez
por ele. Mas não ficou só nisso. Tão cheio se achava de alegria e
gratidão que muito logo incluiu na esfera de sua atividade missionária a
toda a cidade onde vivia (Lc. 8:39). Nem mesmo isto satisfez seu anelo
de atribuir a glória a Deus. Pouco depois pôs-se a dar testemunho da
bondade de Deus em toda Decápolis, conforme explica Marcos.
Esta “Decápolis” era uma confederação de dez cidades helênicas:
Citópolis (situada a oeste do rio Jordão); a leste do Jordão: Filadélfia,
Gerasa, Pela, Damasco, Canata, Diom, Abila, Gadara, e Hipos. Estas dez
cidades, num tempo particulares de sua liberdade pelos macabeus, foram
libertadas de seu jugo pelos romanos e lhes tinha concedido um alto grau
de governo próprio. Embora deviam pagar tributos e render serviço
militar a Roma, tinha permitido que formassem uma associação para o
bem do progresso comercial e da mútua defesa contra qualquer intrusão
da parte de judeus ou árabes. Tinham seu próprio exército, tribunais e
cunhagem de moedas. Por toda aquela região havia judeus espalhados,
mas em geral era território gentílico; como ficava de manifesto, por
exemplo, por seus numerosos anfiteatros gregos. 198
Todos estavam maravilhados. O povo que ouviu o testemunho deste
homem provavelmente seguiu maravilhada e louvando por bastante

197
As dez cidades.
198
Para material de consulta a respeito das dez cidades, veja-se especificamente Josefo, Guerra
Judaica, I. 155–58; II.466–468; III. 446; V. 341, 342, 410; Antiguidades XIV. 74.
Marcos (William Hendriksen) 265
199
tempo. Sem dúvida, alguns fizeram mais que maravilhar-se. Em
Decápolis também devia haver um “remanescente” de pessoas em cujo
coração e vida a palavra de Deus foi eficaz para a salvação, à glória de
Deus. Vejam-se Is. 55:11; Mt. 4:24, 25 e Mc. 7:31–37.

Mc. 5:21–43 – Dois milagres: A restauração à vida da filha de Jairo


e A cura da mulher que tocou o manto de Jesus
Cf. Mt. 9:18 26; Lc. 8:40 56

É quase impossível esquecer a transição da seção precedente (vv.


1–20) a esta (vv. 21–43). Desde aquela petição que equivalia a
“rogamos-te que vás embora daqui”, a história avança até uma petição
comovedora: “rogo-te que venhas” (contraste o v. 17 com o v. 23).
Quando Jesus foi solicitado a ir embora, Ele foi embora; quer dizer,
voltou a cruzar o mar e atracou à margem de Cafarnaum, onde o chefe de
uma sinagoga daquela cidade se achava em desesperada necessidade de
ajuda, porque sua filhinha estava prestes a morrer. De modo que, da
história sobre a milagrosa bênção derramada sobre um homem que
habitava em lugares de morte (v. 3) avançamos a outro de triunfo sobre a
própria morte (vv. 41, 42). Desde o momento em que onde todos ficam
maravilhados (v. 20) leva-nos imediatamente em que todos ficam
sobremaneira assombrados (v. 42).
Parece ser que ao Jesus chegar, os discípulos de João Batista O
estavam esperando com a pergunta a respeito do jejum (veja-se CNT
sobre Mateus 9:18). Enquanto ainda falava com eles, Jairo fez o seu
pedido.
Havia um grupo de anciãos que governava a sinagoga. Uma de suas
responsabilidades era manter a ordem nas reuniões. O homem que foi
ver a Jesus e a quem Mateus não menciona pelo nome, mas que Marcos
e Lucas chamam Jairo, era membro desse grupo. Visto que

199
Note-se o imperfeito ἐθαύμαζον, estavam num estado de assombro, maravilhavam-se.
Marcos (William Hendriksen) 266
provavelmente vivia em Cafarnaum, podemos supor que tinha ouvido
falar a respeito dos milagres realizados por Jesus, e que talvez inclusive
tenha presenciado algum.
O relato que Mateus faz do duplo milagre algo muito breve, só
ocupa nove versículos; o de Lucas abrange dezessete versículos; o de
Marcos vinte e três. Para mais informação a respeito da sinagoga, veja-se
mais acima em Mc. 1:39.
Mateus omite a petição do principal da sinagoga (veja-se Marcos e
Lucas) de que Jesus curasse a menina doente. Na realidade Mateus, em
seu breve resumo, deixa fora vários detalhes mencionados por um ou os
outros dois Sinóticos. Entretanto, é o único que diz que o principal pede
a Jesus que ponha Sua mão sobre a menina morta, acrescentando “e
viverá” (Mc. 9:18). Também, é o único que menciona os que tocavam
flautas na casa do luto (Mc. 9:23).
Marcos é o único que, em seu extenso relato, apresenta a Jairo
usando o termo carinhoso de “minha filhinha” (v. 23), e descreve uma
grande multidão que se “apinhava” ao redor ou “apertava” a Jesus (v.
24). Também é Marcos o único que conta que Jesus fez caso omisso da
mensagem que enviaram a Jairo, “Tua filha já morreu …” (vv. 35, 36), e
é aquele que ressalta o pranto e a lamentação das pessoas que faziam luto
(v. 38, 39), ao mesmo tempo que registra as palavras aramaicas que
Jesus disse à menina (v. 41), e acrescenta que a menina, tendo voltado à
vida, caminhava (v. 42).
Há vários detalhes que Marcos e Lucas compartilham, e que não se
acham em Mateus. Por exemplo, somos informados que o nome do
principal era Jairo (Mc. 5:22; Lc. 8:41), que Jairo fez sua primeira
petição antes que a menina tivesse morrido (Mt 5:23; Lc. 8:42), que ela
tinha uns doze anos de idade (Mc. 5:42; Lc. 8:42), que Pedro, Tiago,
João e também os pais da menina estavam com Jesus quando realizou o
milagre (Mc. 5:37, 40; Lc. 8:51), e que Jesus não queria que a notícia
deste milagre se propagasse (Mc. 5:43; Lc. 8:56).
Marcos (William Hendriksen) 267
Lucas é o único que informa que a menina era filha única (Lc.
8:42), e que Jesus efetivamente ouviu a notícia de sua morte, mas que
não lhe prestou atenção (Lc. 8:50).
Nos três relatos, a história da volta à vida da filha de Jairo vê-se
interrompida pela da cura da mulher que tocou o manto de Jesus.
Todo este material, segundo se apresenta aqui, dá lugar ao seguinte
esboço. Sob o tema general que já se indicou (Os dois milagres, etc.)
chegamos às seguintes subdivisões ou “pontos”:

1. Apresentação do primeiro milagre: vv. 21-24.


2. Interrupção do primeiro milagre pelo segundo milagre
a. fé oculta: vv. 25-28.
c. fé manifestada: vv. 30-34.
3. Realização do primeiro milagre
a. palavras de alento: vv. 35, 36
b. palavras de revelação: vv. 37–40a
c. palavras de amor e de poder: vv. 40b–42
d. palavras de tenra preocupação: v. 43

1. Apresentação do primeiro milagre


21–23. Tendo Jesus voltado no barco,200 para o outro lado, afluiu
para ele grande multidão; e ele estava junto do mar. Eis que se chegou a
ele um dos principais da sinagoga, chamado Jairo, e, vendo-o, prostrou-se
a seus pés e insistentemente lhe suplicou: Minha filhinha está à morte;
vem, impõe as mãos sobre ela, para que seja salva, e viverá.
Como em algumas ocasiões anteriores (Mc. 1:16; 2:13; 3:7; 4:1),
Jesus Se achava “junto ao mar”, perto de Cafarnaum, e como de costume
se achava rodeado de uma grande multidão. Foi então que Jairo caiu
prostrado aos Seus pés. Esta ação por si só foi uma manifestação de alto
respeito a Jesus. A fervorosa súplica [Mc. 5:23, TB]: “Minha filhinha

200
Existe um alto grau de apoio textual em favor de acrescentar a frase “no barco”.
Marcos (William Hendriksen) 268
está a expirar;” — literalmente: chegou à sua fase final — “suplico-te
que venhas pôr as mãos sobre ela, para que sare e viva”, foi uma
expressão de tenro afeto, intensa ansiedade e um alto grau de fé.
Tenro afeto! Jairo diz, “minha filhinha”. À idade de doze anos,
muitas crianças se sentem ofendidos se são chamados “filhinho(a)”. Mas
para seu pai a menina ainda era uma “garotinha”; com a ênfase posta,
não tanto em seus tenros anos, e sim na preciosidade que ela era aos seus
olhos.201
Intensa ansiedade! “Por favor, vem …”. Há obscuros
pressentimentos e ao mesmo tempo intenso desejo.
Um grau considerável de fé! Inclusive agora, com a morte às portas,
o homem crê na efetividade do toque das mãos de Jesus. Quanto a esse
toque, veja-se sobre Mc. 1:41. Note-se: “…para que sare e viva”. 202
Aquele principal da sinagoga deve ter visto e ouvido Jesus mais de uma
vez, ali mesmo em Cafarnaum, onde o Mestre tinha Seu centro de
operações e onde assistia à sinagoga, sempre que Lhe era possível. Jairo
bem pôde ter presenciado vários milagres. Mas surpreende que estando
sua querida e única filhinha tão perto da morte, o homem ainda abrigasse
esperança, e que até manifestasse um alto grau de fé.
Não nos surpreende ler:
24. Jesus foi com ele.
Não é Jesus, o Salvador não apenas da alma, mas também da pessoa
inteira, quer dizer, da alma e do corpo?
Entretanto, a seguir segue uma declaração muito ligada a
precedente, e que além disso introduz o que segue-nos versículos 25–34.

201
Como ocorre muitas vezes, o diminutivo é aqui predominantemente um termo de carinho. Veja-se
a Introdução IV, nota 5; também sobre 3:9, nota 108.
202
Quanto ao primeiro ἵνα do v. 23 (ἵνα ἐλθὼν ἐπιθῇς), há diversas opiniões. Talvez o melhor é
considerá-lo como uma maneira elíptica de usar um imperativo cortês; por isso, aqui seria “Por favor,
vem …” O segundo vai do mesmo versículo refere-se a um propósito: “para que” se salve e viva.
Aqui “ser salva” (assim diz literalmente), significa “ser restaurada à saúde”, portanto, “cure”.
Os verbos ἐπιθῇς (2ª. pes.); σωθῇ e ζήσῃ (ambos 3ª. pes.) são todos subj. aor. depois do primeiro ou
segundo ἵνα.
Marcos (William Hendriksen) 269
Trata-se de: e uma grande multidão, seguindo-o, o apertava. Isto não
era nada estranho (veja-se 3:9; 4:1). Mas o que dá mais significado à
situação presente é a. O próprio tamanho da multidão, junto com o fato
de que a multidão apertava a Jesus, fazendo com que o avanço à casa de
Jairo fosse dificultoso; b. A ação da mulher se explica pela presença da
multidão. Ela pensou que, por causa da enorme multidão, poderia fazer o
que se propunha e logo escapar desapercebida (cf. Lc. 8:47).

2. Interrupção do primeiro milagre pelo segundo milagre


a. fé oculta
Já se explicou que o que vincula as duas historia é a apinhada
multidão, que atrasa a realização do primeiro milagre e que, até certo
ponto, explica o que sucedeu com relação ao segundo. Dois versículos
consecutivos no Evangelho de Lucas (Lc 8:42, 43) proveem um elo: a
filha de Jairo tinha doze anos de idade; a mulher tinha sofrido por um
período de doze anos. Mas as duas narrações também podem ser
consideradas como uma, ou seja, o relato de um milagre interrompido e
em consequência também mais glorioso (Mc. 5:21–43 e seus paralelos).
Como outras vezes, Mateus é muito breve em seu relato da história
de Jesus e a mulher doente. Note-se seus três versículos (Mt. 9:20–22).
Lucas tem nove (Lc. 8:40–48) e Marcos, o Evangelho da ação, reparte
seus vívidos detalhes em dez versículos (Mc. 5:25–34).
Vale dizer aqui, como em qualquer outro lugar dos Evangelhos, que
nenhum dos relatos é a mera repetição do que se diz no outro. Cada
evangelista contribui com algo que os outros não mencionam. Por isso
não queríamos perder a referência de Mateus com relação à mulher
falando “dentro de si” (Mt. 9:21), ou a menção que faz de Jesus
voltando-se para a mulher e lhe dizendo, “Tem coragem” (ou: “Tem bom
ânimo”). Tampouco queríamos ficar sem a inteligente forma em que o
Dr. Lucas (Lc. 8:43b), sem contradizer a Marcos, evita um possível mal
entendido do que Marcos diz a respeito dos médicos daqueles dias (Mc.
5:26, “uma mulher … que tinha sofrido muito em mãos de muitos
Marcos (William Hendriksen) 270
médicos”). Lucas é o único que introduz a Pedro na história (Lc. 8:45). E
quanto a Marcos, pode dizer-se que nem Mateus nem mesmo Lucas
apresentam os detalhes de esta história tão vivazmente como o faz ele.
Veja-se especialmente Mc. 5:29–33. Por outro lado, Marcos nem sequer
menciona o bordo (ou: borlas) mas só a veste (Mc. 5:27, 28).
Compare-se com Mt. 9:20; Lc. 8:44.
25–27. Aconteceu que certa mulher, que, havia doze anos, vinha
sofrendo de uma hemorragia e muito padecera à mão de vários médicos,
tendo despendido tudo quanto possuía, sem, contudo, nada aproveitar,
antes, pelo contrário, indo a pior, tendo ouvido a fama de Jesus, vindo por
trás dele, por entre a multidão, tocou-lhe a veste.
Enquanto Jesus Se dirige à casa de Jairo, de repente se produz esta
interrupção. Durante seu ministério terrestre, Jesus foi interrompido
muitas vezes; por exemplo: enquanto falava com a multidão (Mc. 2:1ss.),
ou conversava com seus discípulos (Mc. 8:31ss.; 14:27ss.; Lc. 12:12ss.),
ou viajava (Mc. 10:46ss.), ou dormia (Mc. 4:38, 39), ou orava (Mc.
1:35ss.). Nenhuma destas intrusões o confundiu, nunca ficou
momentaneamente desorientado quanto ao que dizer ou o que fazer. Isto
demonstra que nos achamos diante do Filho do Homem que é ao mesmo
tempo o Filho de Deus! O que nós chamaríamos uma “interrupção” foi
para Ele um trampolim ou ponto de partida para pronunciar grandes
palavras, ou como aqui, para realizar uma obra maravilhosa, revelando
Seu poder, sabedoria e amor. O que para nós teria sido uma situação
penosa, para ele foi uma oportunidade preciosa.
Desta vez, quem O interrompe é uma mulher. Durante doze anos
tinha estado sofrendo hemorragias; literalmente ela tinha estado “em
(uma condição de) fluxo de sangue”. Há aqueles que creem que o fluxo
era constante. Outro opinião diz que através dos doze anos a periódica e
excessiva perda de sangue, a impedia de sentir-se forte e com saúde, e
que neste preciso instante estava novamente sofrendo por causa de uma
hemorragia.
Marcos (William Hendriksen) 271
Tinha sofrido muito às mãos de muitos médicos. Com relação à
forma desta expressão, veja-se Mateus 16:21. Um livro apócrifo declara,
“Fui aos médicos, mas não me aliviaram” (Tobias 2:10). Por outro lado,
leia-se a declaração de outro livro apócrifo: “Honre o médico conforme a
necessidade que dele tem, com a honra que se deve a ele, porque, por
certo, o Senhor o criou” (Eclesiástico 38:1). O versículo 3 do mesmo
capítulo fala da “destreza do médico” e afirma: “Pelos poderosos será
admirado”. Embora seja verdade que até hoje em dia os médicos às
vezes cometem erros, como sucede com outros profissionais, seria difícil
superestimar o valor de um médico capaz e dedicado ao seu trabalho. No
caso que aqui se relata, os resultados dos tratamentos não tinham sido
favoráveis. A saúde da pobre mulher deteriorou-se gradualmente, e isto
em parte por causa do mesmo cuidado (?) que os doutores lhe tinham
prodigalizado.
Isto não deve ser interpretado como se quisesse dar a entender que a
arte da cura em Israel fosse muito deficiente em comparação com o que
se praticava nas nações circundantes daquele tempo. É verdade que a
ciência médica, no sentido técnico da palavra, estava ainda em sua
infância. Não obstante, os judeus, ao menos em alguns importantes
aspectos, achavam-se à cabeça de todos os outros. Eles criam na eficácia
da oração ao único Deus que governa o céu e a terra e, portanto, também
sobre o corpo e a alma, e sobre a vida e a morte, a saúde e a enfermidade
(2Rs. 1; Sl 116; Is. 36). Foram-lhes dados os Dez Mandamentos, que
foram chamados “o código supremo de higiene mental”. A ordenança da
circuncisão também merece consideração com relação a isto.
Acrescente-se a isso a grande quantidade de regulações higiênicas que se
acham no Pentateuco, a ênfase na influência da mente sobre a saúde do
corpo (Pv. 17:22), as exortações contra as emoções carentes de amor (p.
ex., Êx. 23:4, 5; Pv. 15:17) com seu nocivo efeito sobre o bem-estar
físico, o repetido mandamento de confiar em Deus e deixar os afãs (Sl
91; 125; Is. 26:3, 4; 43:2). Tudo isto mostra que, com relação ao cuidado
Marcos (William Hendriksen) 272
do corpo e outras muitas coisas, Israel estava muito mais avançado que
outros povos. Veja-se também Êx. 15:26.
Entretanto, neste caso concreto os doutores não tinham tido êxito.
Por que? Pode ter sido que o fato de que esta mulher esteve indo de “um
médico a outro” tivesse tido algo que ver com o problema. Inclusive em
nosso tempo não se pode recomendar sem reserva o costume de algumas
pessoas de ir de um médico a outro, e depois a outro, e ainda a outros
mais, embora certamente pode haver alguns casos em que isto seja
necessário. Pareceria, entretanto, que a melhor resposta à pergunta de por
que esta mulher não se curava, é dada por alguém que era médico, ou
seja, Lucas, quem afirma claramente que esta era uma enfermidade
incurável, humanamente falando e à luz da terapêutica daqueles dias (Lc.
8:43).203
Quando finalmente a mulher decidiu ir a Jesus, já tinha gasto todo o
seu — diríamos “escasso” — dinheiro. Tinha perdido a saúde, a fortuna,
e por causa da natureza de seu mal, também sua posição na sociedade, e
especialmente na comunidade religiosa. Sua situação era tal que a
tornava cerimonialmente impura (Lv. 15:19ss.).
Pero había una última razón para la esperanza: ¡Jesús! Lo llamativo
es que todo tipo de gente iba a Jesús. No sólo acudían las personas
prominentes como Jairo, sino que también la gente común como esta
pobre mujer. Parece que presentían que su poder y compasión
responderían a las necesidades de toda clase social.
Não é raro, entretanto, que devido à sua enfermidade, aquela mulher
sentisse temor de apresentar-se em público. Ela não pretendia entrar em
contato físico com o próprio Jesus. Meramente tocaria seu manto, e
mesmo assim (veja-se Mateus e Lucas) só uma das quatro borlas de lã
203
Para mais detalhes sobre o tema general da história da arte de curar, especialmente em Israel, veja-
se W. H. Ogilvie, “Medicine and Surgery, History of”, artigo na Enciclopédia Britânica (Chicago,
Londres, etc. 1969), Vol. 15, pp 93–06; S. I. MacMillen, None of These Diseases (Westwood, N.J.,
1963); L. Finkelstein, The Jews, their History, Culture, and Religion (Nova York, 1949), Vol. II, pp.
1013–1021; I. Benzinger, “Diseases and the Healing Art”, artigo em SHERK, Vol. III, pp. 445–448; e
E. S. Tamer, The Astonishing History of the Medical Profession (Nova York, 1961).
Marcos (William Hendriksen) 273
que todo israelita devia levar nos quatro cantos do manto quadrado que
usavam (Nm. 15:38; cf. Dt. 22:12) para lembrar a lei de Deus (veja-se
também CNT sobre Mt. 23:5). 204 Naturalmente a forma mais fácil de
aproximar-se para ter contato físico com um manto, sem ser notado, seria
ir por trás e tocar a borla que se movia livremente pela parte de trás do
manto. Aquele que levava o manto posto, conforme cria ela, jamais
perceberia o que sucedia.
Assim que tendo ouvido os maravilhosos relatos a respeito de Jesus,
veio por trás e tocou a borla, 205 ou como Marcos o expressa, “sua veste”.
A razão de tocar o manto de Cristo dá-se no versículo
28. Porque, dizia: Se eu apenas lhe tocar as vestes, ficarei curada.
A grandeza da fé desta mulher consistia em que cria que o poder de
Cristo para curar era tão assombroso, que até o mero contato com Suas
vestes produziria uma cura instantânea e completa. 206
É evidente que a fé desta mulher não era perfeita, pois cria que o
ato de tocar era necessário e que Jesus nunca Se daria conta disso. Mas
Ele, sim, o notou, e recompensou sua fé, restaurando sua saúde (v. 29), e
logo lhe deu uma oportunidade para mudar sua fé oculta” (Mt. 9:21) em
“fé manifestada” (Mc. 5:33), o que resultou numa maior fortaleza (5:34).

204
Cf. SB, IV, p. 277.
205
Nestes três versículos (25–27), Marcos usa não menos de sete particípios, os primeiros cinco com
função atributiva e para modificar à uma mulher”, e os dois últimos como predicativos e modificando
“tocou”. Os sete são:
οὖσα que estava (com fluxo de sangue), é ptc. presente de εἰμί. Cf. essência, parousia.
παθοῦσα tendo sofrido, aor. de πάσχω. Cf. patologia, paixão.
δαπανήσασα tendo gasto, aor. de δαπανάω.
(μηδέν) ὠφεληθεῖσα (nada) tendo aproveitado (que traduzimos: “em lugar de aliviar-se”), aor. pas. de
ὠφελέω. Cf. os mosquitos anofeles, pois não são benéficos.
ἐλθοῦσα vindo, aor. de ἔρχομαι. Cf. origem, prosélito.
ἀκούσασα tendo ouvido, aor., de ἀκούω. Cf. acústica.
ἐλθοῦσα tendo vindo (usado nos vv. 26 e 27, primeiro de maneira atributiva, logo predicativa).
206
Se há que ressaltar o tempo imperfeito do verbo grego (λέγω, aqui ἔλεγεν) — o que nem sempre é
o caso —, terei que traduzir “ela repetiu estas palavras vez após vez”. Referente ao verbo σώζω (aqui
σωθήσομαι) veja-se mais acima, nota 204.
Marcos (William Hendriksen) 274
b. fé recompensada
29. E logo se lhe estancou a hemorragia, e sentiu no corpo estar
curada do seu flagelo.
Literalmente, “e em seguida seca foi a fonte de seu sangue”. A
recuperação foi instantânea. Num instante a hemorragia cessou
completamente. A saúde e o vigor surgiam por todas as partes de seu
corpo. O “flagelo” ou a “enfermidade” que a tinha estado afligindo
desapareceu. Quanto à palavra que basicamente significa “açoite” ou
“látego” e que aqui se refere à enfermidade que a atormentava, veja-se
sobre Mc. 3:10. 207 Não só desapareceu seu problema, mas também ela
mesma notou e soube que tinha desaparecido.
O surpreendente é que, embora a fé desta mulher estivesse longe de
ser perfeita, não obstante o Senhor bondosamente a recompensou. Além
disso, a recompensa afetou não só o seu corpo, mas também a sua alma;
ou, dizendo-o de outra forma, não só foi recompensada sua fé, mas
também foi melhorada e elevada a um nível mais alto de
desenvolvimento, de modo que a fé oculta se transformou em:

c. fé manifestada
30. Jesus, reconhecendo imediatamente que dele saíra poder,
virando-se no meio da multidão, perguntou: Quem me tocou nas
vestes?
Jesus não ignorava o fato de que alguém O havia tocado, e isto não
de forma acidental mas intencionalmente, e não só com a mão, mas com
fé. Sabia que o poder que havia dentro dEle e que procedia dEle, tinha
respondido a essa fé.
O que Jesus queria agora era que se completasse o círculo, fosse
quem fosse aquele que O havia tocado. Que círculo? Aquele que se
indica em muitas passagens das Escrituras, incluindo, por exemplo, o
207
Em At. 22:24 a palavra μάστιξ usa-se no sentido mais literal de açoitar com um látego. Por um
momento pareceria que iam açoitar a Paulo, para descobrir o que crime havia supostamente encargo;
mas veja-se At. 22:25, 26, 29. Quanto ao sentido literal veja-se também Hb. 11:36.
Marcos (William Hendriksen) 275
Salmo 50:15: “Invoca-me no dia da angústia; eu te livrarei, e tu me
glorificarás.”
Quando as bênçãos descem do céu, os que as receberam devem
responder em forma de ações de graças. Assim se completa o círculo
(veja-se também CNT sobre Efésios 1:3). À sua maneira, esta mulher
tinha invocado a Jesus. Ele a tinha resgatado, porém ela ainda não O
havia glorificado. Até esse momento era como os nove leprosos curados
de Lucas 17:17, 18: “Não eram dez os que foram curados? Onde estão os
nove? Não houve, porventura, quem voltasse para dar glória a Deus,
senão este estrangeiro?”. Sem dúvida alguma ela tinha “crido em seu
coração”. Mas ainda não tinha “confessado com a boca” (Rm. 10:9).
Com o fim de fazer brotar esta resposta favorável, Jesus imediatamente
Se voltou para a multidão e perguntou, “Quem me tocou nas vestes?”
Ou, segundo o expressa Lucas, “Quem me tocou?” (Lc. 8:45),
significando “Quem me tocou intencionalmente?”
31. Responderam-lhe seus discípulos: Vês que a multidão te
aperta e dizes: Quem me tocou?
Os discípulos cometem novamente o muito repetido erro de
interpretar as palavras de Cristo em seu sentido literal mais rígido, como
se Jesus estivesse pensando num mero tocar físico.
Aqueles homens, e outros também, tinham o costume de aplicar a
regra da interpretação literal às palavras de Cristo, a mesma regra que em
certos setores do cristianismo ainda hoje em dia se recomenda tão
vivamente. As seguintes passagens mostram que essa regra, a menos que
seja essencialmente modificada, não é segura: Mc. 8:15, 16; Jo. 2:19–22;
3:3–5; 4:10–15; 6:52; 8:56 58; 11:11–13. Naturalmente que Jesus não
estava negando que O haviam tocado literalmente, mas Ele Se referia a
algo muito superior a isso, quer dizer, ao tocar com fé, ao toque
verdadeiramente eficaz, até o ponto em que, em resposta a isso, emanou
poder dEle.
Encabeçados por Pedro (Lc. 8:45), os discípulos respondem, “Vês
que a multidão te aperta e dizes: …”. Isto revela não só falta de
Marcos (William Hendriksen) 276
entendimento, mas também uma falta de respeito e de submissa
reverência que os discípulos deviam ter mostrado para com seu Mestre.
Quer dizer, aquela observação crítica era inconsiderada, de mau gosto,
crua e rude. Lembra-nos a de Mateus 16:22.
O Mestre mostrou sua grandeza ao não respondê-la.
32. Ele, porém, olhava ao redor para ver quem fizera isto.
Foi um olhar longa e escrutinadora. 208 Os comentaristas que se
preocuparam com esta questão diferem de maneira bastante ampla.
Há três interpretações principais. Segundo a primeira, Jesus já sabia
quem era a pessoa. Olhou em redor e repentinamente fixou os Seus olhos
sobre a mulher. 209
Agora, não se pode negar de que por Sua natureza divina Jesus era
onisciente. Tampouco se pode negar que essa natureza divina às vezes
comunicava à Sua natureza humana informação que, provavelmente, não
teria recebido sem sua assistência (veja-se Mt. 17:27; Jo. 1:47, 48). Não
obstante, isto não significa que a natureza humana de Cristo fosse
também por si só onisciente (veja-se Mt. 24:36; Mc. 11:13). Não é
Marcos 5:32 um texto similar? A expressão “Ele, porém, olhava ao redor
para ver”, certamente faz inaceitável a ideia de que Jesus já sabia quem
era a pessoa que O havia tocado. Para mais informação a respeito das
duas naturezas de Cristo no ensino de Marcos, veja-se a Introdução, III.
O original tem um particípio feminino, 210 de modo que se poderia
traduzir, “Mas ele olhava em redor para ver quem era a que fez isto”.
Sobre esta base, afirmou-se que Jesus pelo menos sabia que a pessoa que
O havia tocado era uma mulher. 211

208
Veja-se mais acima, nota 105.
209
Lenski, Op. cit., p. 142. Ele deduz esta informação do uso do tempo (“ele olhava em redor”)
seguido pelo aoristo ἰδεῖν. Embora concorde em muito do que este intérprete diz, não o posso seguir
no que agora afirma. Gramaticalmente περιεβλέπετο ἰδεῖν é uma só expressão: “ele seguiu olhando,
ou: estava olhando (para) ver. A expressão pode-se separar em dois períodos de tempo.
210
τὴν … ποιήσασαν.
211
A. B. Bruce, Op. cit., p. 375, oferece isto como uma possibilidade.
Marcos (William Hendriksen) 277
Mas não é mais razoável considerar que o particípio feminino vem
da mão de Marcos, o escritor do Evangelho, quem soube mais tarde a
respeito do caso?
Em vista de tudo o que foi dito, parece que a interpretação mais
natural seria que Jesus com Seu terno coração de Salvador, desejava
outorgar um favor adicional sobre quem quer que fosse a pessoa que O
havia tocado. “Seguiu olhando em redor para averiguar” (segundo A. T.
Robertson 212 ) quem era essa pessoa.
33. Então, a mulher, atemorizada e tremendo, cônscia do que
nela se operara, veio, prostrou-se diante dele e declarou-lhe toda a
verdade.
A mulher tinha ouvido que Jesus perguntava, “Quem me tocou nas
vestes?” Também tinha observado Seu penetrante olhar. Sabia “o que
tinha sucedido nela” em resposta ao seu ato de fé. Ela provavelmente
tinha ouvido também a resposta totalmente inadequada dos discípulos.
Sua consciência deve ter-lhe dito que era preciso responder com a
verdade à pergunta de Cristo, e que isto o devia fazer ela!
Entretanto não lhe era fácil fazer o que sentia que devia fazer.
Naquele tempo e naquele país, considerava-se impróprio que uma
mulher falasse em público. E ainda mais sobre um tema como este: a
enfermidade física concreta que a afligia. E o fato de que ela, em tal
situação, tivesse tocado deliberadamente ao Mestre, não faria com que o
que já era impróprio aos olhos dos presentes resultasse ainda mais grave?
Sim, e talvez aos olhos do próprio Jesus? Não a repreenderia talvez?
Podemos entender, então, por que confessou e também por que o
fez “temendo e tremendo” (assim literalmente; cf. 2Co. 7:15; Ef. 6:5; Fp.
2:12). Estava muito assustada, e todo o seu corpo tremia. Mas foi, e disse
toda a verdade, referindo-se provavelmente a todos os atos mencionados
nos versículos 25–29.
212
Word Pictures vol. I, p. 300. Na mesma sintonia também Taylor, Op. cit., p. 292; Schmid, Op. cit.,
p. 115; e Bolkestein, Op. cit.,p. 125. Por outro lado, A. B. Bruce, Op. cit., p. 375, e Swete, op. cit, p.
105, deixam lugar para qualquer das duas últimas interpretações.
Marcos (William Hendriksen) 278
O resultado não foi uma reprimenda, mas justamente o contrário,
segundo se vê pela primeira palavra que Jesus lhe disse, e também pelo
que segue.
34. E ele lhe disse: Filha, a tua fé te salvou; vai-te em paz e fica
livre do teu mal.
Em muito carinho Jesus a chama “filha”, embora possivelmente não
fosse mais jovem que Ele. Mas Jesus fala como um pai à sua filha. Além
disso, louva-a por sua fé, apesar de que não era uma fé perfeita; e
embora conforme o indique o versículo 27, foi Ele mesmo quem,
mediante Suas maravilhosas palavras e atos anteriores, fez brotar essa fé.
Sua fé, embora não fosse a causa fundamental de sua cura, tinha sido o
conduto por meio do qual a cura foi realizada. A fé tinha sido o
instrumento usado pelo poder e o amor de Cristo para efetuar sua
recuperação (cf. Ef. 2:8). Resulta maravilhoso que Jesus não lhe diga
nada a respeito de Seu próprio poder e amor, que são a causa básica do
bem-estar atual dela, mas que faça menção especial da fé que sem Ele,
ela não teria podido possuir, nem lhe teria sido possível exercer. Além
disso, ao dizer, “A tua fé te curou” (TB), estava sublinhando que o que a
curou foi a resposta pessoal que Ele deu à fé pessoal dela, tirando assim
de sua mente qualquer vestígio de superstição, como se as vestes de
Jesus tivessem contribuído em algum grau para a cura.
Por meio destas palavras alentadoras, Jesus também abriu o
caminho para a reintegração total da mulher à vida social e religiosa, e à
comunhão com seus familiares. Agora ela podia ir e desenvolver o resto
de sua vida “em paz”, quer dizer, com o sorriso de Deus sobre ela e a
prazerosa convicção interna deste sorriso (cf. Is. 26:3; 43:1, 2; Rm. 5:1).
Provavelmente, nessa ordem alentadora, “vai-te em paz”, há algo
mais. É preciso levar em conta as palavras que seguem imediatamente:
“Fica — Sê e permanece — curada de sua enfermidade (literalmente: teu
açoite)”. Também é preciso lembrar que Jesus falou no idioma popular
que então usavam os judeus (o aramaico). Estas duas considerações nos
permitem inferir que aqui está implícito nada menos que o sentido
Marcos (William Hendriksen) 279
completo do hebraico Shalom, quer dizer, bem-estar tanto do corpo
como da alma.
Nenhum dos evangelistas indica a reação da mulher a estas palavras
bondosas do Salvador, mas não seria correto afirmar que sua alma se
sentiu inundada de alívio e de gratidão sem limites? Acaso não se encheu
com a classe de emoção que experimentou o inspirado compositor do
Salmo 116 (veja-se especialmente os vv. 12–19)? Jesus a tinha curado.
Ele lhe havia comunicado uma dupla bênção: tinha restaurado seu
corpo, o que a impulsionou a dar testemunho, de modo que a fé oculta se
transformou em fé manifestada. Agora lhe seria possível ser, e
indubitavelmente foi, uma bênção para outros, para glória de Deus.
Uns dias depois que certo pastor pregou sobre esta passagem das
Escrituras (Mc. 5:25–34 e paralelos), recebeu o seguinte poema de uma
dama que o tinha composto depois de ouvir o sermão:

“Quem me tocou?”
A voz do Mestre chegou aos seus ouvidos,
O coração dela marcou seus batimentos do coração,
Tremendo aproxima-se, seus olhos esconde.
“Fui eu, Mestre”, humilde responde.
Mas lhe diz, “Segue sem cuidado,
Hoje em dia pela graça tua fé te salvou”.
“Tu me tocaste?”
A voz do Mestre soou em meus ouvidos,
Ó, meu coração marca os batimentos do coração.
“Minha casa com todos tenho hoje visitado,
Mas Tu vieste e não me tocaste”.
Inclino hoje meu rosto, com vergonha é …
Disse-me, “Aproxima-Te mais na próxima vez”.
Marcos (William Hendriksen) 280
3. Realização do primeiro milagre
a. palavras de alento
35. Falava ele ainda, quando chegaram alguns da casa do chefe
da sinagoga, a quem disseram: Tua filha já morreu; por que ainda
incomodas o Mestre?
Talvez os mensageiros fossem parentes de Jairo, ou talvez seus
amigos. Em todo caso, não foram muito diplomáticos ao dar as
alarmantes novas. De forma bastante inconsiderada disseram, “Tua filha
morreu”. 213 Acrescentam, “Por que ainda incomodas 214 o Mestre?”
Segundo a apreciação destes parentes e/ou amigos, não existia nem
mesmo a mais remota possibilidade de que Jesus pudesse restabelecer
uma pessoa morta. Durante algum tempo houve esperança, ou seja,
enquanto a menina estava doente (muito doente, por certo), e enquanto
Jesus estava em caminho. Mas, então, produziu-se aquela trágica
interrupção (vv. 25–34). E agora esse sopro de esperança se esfumou.
“Para aquele que vive há esperança, para o morto, nenhuma” (Teócrito
— Idílios IV. 42). Entretanto, observe-se o que acontece:
36. Mas Jesus, sem acudir a tais palavras, 215, 216 disse ao chefe
da sinagoga: Não temas, crê somente.
Embora Jesus tenha ouvido as palavras dos mensageiros (Lc. 8:50),
não lhes prestou atenção. Com majestosa calma recusou por completo
dar ouvido aos arautos da morte, aos mensageiros da desespero. E quis
que Jairo fizesse o mesmo.

213
ἀπέθανεν. Em geral, este aor. de ἀποθνήσκω traduz-se corretamente deste modo, embora em lugar
de “está morta” a tradução “morreu” (Beck) ou “morreu” (NAS) também é possível.
214
σδύλλεις. O significado original de σκύλλω é cortar, esfolar. A conotação modificada e mais fraca
que aqui se propõe, é incomodar, perturbar. Veja-se também CNT sobre Mt. 9:36.
215
Ou: desatendendo, não levando em conta.
216
Embora “alcançando para ouvir” também é possível, não obstante o significado “passando por
alto”, “não levando em conta”, “recusando levar em conta”, “não prestando atenção a”, é talvez o que
se deseja; porque:
a. Este é o significado da palavra παρακούω na LXX.
b. Também o é em Mt. 18:17, que é a única outra passagem do Novo Testamento onde aparece.
Marcos (William Hendriksen) 281
Jairo tinha medo. Não é fácil desfazer-se do temor. Há uma só
forma de fazê-lo, isto é, crendo firmemente na presença, promessas,
misericórdia, e poder de Deus em Cristo. Consiste em que o positivo
expulse o negativo (Rm. 12:21).
Através da história da redenção sempre foi assim. Quando parecia
que tudo estava perdido, os crentes depositaram sua confiança em Deus e
foram libertados (Sl 22:4; Is. 26:3, 4; 43:2). Foi assim na vida de Abraão
(Gn. 22:2; Tg. 2:22), Moisés (Êx. 14:10ss.; 32:10, 30–32), Davi (1Sm.
17:44–47; Sl 27), e Josafá (2Cr. 20:1, 2, 12), para mencionar só alguns
casos. Quanto maior foi a necessidade, tanto mais próximo o socorro.
Assim sucedeu também no caso de Jairo. As palavras de alento não
foram em vão. Tomou-as muito a sério (Mt. 9:18) e foi escutado.

b. palavras de revelação
37. Contudo, não permitiu que alguém o acompanhasse, senão
Pedro e os irmãos Tiago e João.
Ao reatar sua viagem rumo à casa de Jairo, a multidão deve ter
perguntado o que iria fazer, agora que a situação — segundo a opinião
da gente — era totalmente irremediável. Com autoridade, o Mestre se
despede de toda a multidão, incluindo os discípulos, com exceção de
Pedro, Tiago e João.
Os doze discípulos presenciaram sem nenhum impedimento quase
todos os acontecimentos relacionados com as atividades de Jesus na
terra. Entretanto, alguns desses acontecimentos sucederam na presença
de apenas três destes homens. Com relação ao por quê, só podemos fazer
conjeturas. Permitiu Jesus que só três discípulos entrassem na habitação
onde teve lugar a ressurreição da filha de Jairo, porque a presença de
todo o grupo não teria sido de acordo com o decoro necessário e poderia
ter perturbado a menina quando voltasse a abrir os olhos? Foi a agonia
do Mestre no Getsêmani tão sagrada que não podia ser presenciada por
mais de três discípulos (Mt. 26:37; Mc. 14:33), e foi por esta razão que
até então a “presenciaram” os três até um ponto limitado somente? E é
Marcos (William Hendriksen) 282
possível que a transfiguração pôde ter só três discípulos como
testemunhas oculares (Mt. 17:1; Mc. 9:2; Lc. 9:28), porque de outro
modo a proibição mencionada em Mateus 17:9 teria sido mais difícil de
cumprir? Não sabemos a ciência certa se estas eram as razões.
À vista de Mateus 16:16–19, não nos surpreende que Pedro
estivesse presente nos três eventos. É perfeitamente possível que a
afinidade espiritual de João com seu Mestre (era “o discípulo a quem
Jesus amava”, Jo. 13:23; 19:26; 20:2; 21:7, 10) fosse a razão de sua
inclusão neste círculo íntimo. Mas o que dizer de Tiago, o irmão de
João? Sem dúvida foi uma consideração especial da parte do Senhor para
com quem seria o primeiro dos Doze em selar seu testemunho com seu
sangue (At. 12:2). Foi-lhe outorgado o privilégio de ser incluído entre as
três testemunhas mais íntimas.
Estas são considerações que bem vale a pena levar em conta ao
tentar responder a pergunta, “Por que estes três?” Não obstante, deve
admitir-se francamente que o Senhor não revelou a resposta a esta
pergunta. É mais fácil entender por que era necessário que houvessem
testemunhas, ou seja, para que quando o tempo devido chegasse,
pudessem testificar à igreja com relação às coisas que tinham visto e
ouvido. Além disso, veja-se Dt. 19:15; Mt. 18:16; Jo. 8:17; 2Co. 13:1;
1Tm. 5:19.
38. Chegando à casa do chefe da sinagoga, viu Jesus o alvoroço,
os que choravam e os que pranteavam muito.
Uma cena de confusão deu as boas-vindas a Jesus e aos três
discípulos quando entraram na casa do principal da sinagoga. Mateus
9:23 menciona a ruidosa multidão; Marcos, o ruído ou alvoroço. Era uma
multidão completamente desordenada.
Segundo o costume, o sepultamento era levado a cabo pouco depois
da morte, e por isso esta era a única oportunidade da multidão; e todos,
especialmente as carpideiras profissionais (cf. Jo. 9:17, 18) punham
grande empenho em cumprir seu trabalho, e talvez mais, pelo fato de que
um principal da sinagoga era um homem de muita importância! Ali havia
Marcos (William Hendriksen) 283
pranto, lamentos, gemidos e gemidos dos mais ruidosos. Davam alaridos
sem tentar refrear-se. E de vez em quando, ultrapassando os confusos
ruídos que saíam das gargantas dos lamentadores, podiam escutar-se as
agudas notas dos flautistas (Mt. 9:23).
39. Ao entrar, lhes disse: Por que estais em alvoroço e chorais?
A criança não está morta, mas dorme.
O que os lamentadores faziam estava totalmente fora de lugar, e isto
por duas razões: a. ao menos muitos deles não eram sinceros, segundo se
vê no versículo 40; e b. não havia razão aqui para pranto senão para
alegria, não para lamentar uma morte senão para celebrar um próximo
triunfo sobre a morte.
Naturalmente, não podemos condenar esta gente por não saber que
a vida devia triunfar sobre a morte. O que andava mal, na realidade, era
a. sua falta de sinceridade, e b. sua resistência a aceitar que o que Jesus
dizia a respeito da menina (que não estava morta mas dormindo) eram
palavras de revelação que mereciam uma solene reflexão, e não a
zombaria.
Jesus não queria dar a entender que a menina se achava em estado
de coma, e isto é claro pelas seguintes razões:
a. Lucas 8:53 nos diz que a multidão sabia que a menina estava
morta.
b. Lucas 8:55 afirma que, ao mandato de Jesus, “voltou-lhe o
espírito”. É evidente, portanto, que tinha havido uma separação de
espírito e corpo.
c. Em João 11:11 temos algo parecido. Jesus diz aos Seus
discípulos “Nosso amigo Lázaro dorme”. Mas no versículo 14 afirma,
“Lázaro morreu”.
Em ambos os casos o significado é que a morte não tem a última
palavra. Não é a morte, e sim a vida que vai triunfar afinal. Assim como
ao dormir natural segue o despertar, assim também aquela menina ia
despertar, sim, ia reviver.
40a. E riam-se dele.
Marcos (William Hendriksen) 284
Esta mesma expressão acha-se em Mateus 9:24 e em Lucas 8:53.
Provavelmente refere-se aos repetidos estalos de risadas zombeteiras
com objetivo de humilhar a Jesus. Parece que aqueles lamentadores
estavam dotados do duvidoso dom de mudar num instante do lúgubre
lamento à uma descontrolada risada Não é esta mesma risada uma
confirmação do fato de que a menina tinha morrido realmente? Não é
também um testemunho da autenticidade do resgate da menina das
garras da morte?

c. palavras de amor e de poder


40b–41. Tendo ele, porém, mandado sair a todos, tomou o pai e a
mãe da criança e os que vieram com ele e entrou onde ela estava.
Tomando-a pela mão, disse: Talitá cumi! , 217 que quer dizer: Menina, eu
te mando, levanta-te!
Jesus expulsou os zombadores autores da barafunda. Na habitação
onde jazia a menina morta, ficaram com Ele só os pais da menina e
Pedro, Tiago e João (veja-se o v. 37). O principal da sinagoga tinha
pedido ao Mestre que pusesse Suas mãos sobre a menina (v. 23).
Entretanto, Jesus faz algo ainda melhor, porque com autoridade, poder e
ternura toma a menina pela mão. Ao fazê-lo dirige-se a ela em sua
própria língua nativa (cf. CNT sobre Jo. 20:16), usando as mesmas
palavras com as quais provavelmente sua mãe despertou muitas vezes
pelas manhãs, ou seja, “Talitá cumi”. Para benefício dos leitores não
judeus, Marcos traduz isto livremente, “Menina, eu te mando, levanta-
te!.” 218
42. Imediatamente, a menina se levantou e pôs-se a andar; pois
tinha doze anos.
Imediatamente o espírito da menina volta para ela e se levanta.
Aparentemente começa a andar sem ajuda alguma. Agora que se achava
viva novamente, era natural que caminhasse, pois embora para seus pais
217
Ou: com base em outra leitura, “Talitha qumi (ou: cumi)”.
218
Filhinha … levanta-te” é tradução; “digo-te” é interpretação.
Marcos (William Hendriksen) 285
era a “garotinha” (v. 23, e veja-se também o v. 41), a única (Lc. 8:42),
ela sabia caminhar há anos, visto que já tinha doze anos de idade.
Marcos acrescenta provavelmente isto a fim de impedir que o leitor
interprete mal a carinhosa expressão “garotinha”.
Não nos surpreende ler: Então, ficaram todos sobremaneira
admirados; mais literalmente, “espantados com grande espanto”.
Momentos antes ela era um cadáver, imóvel, pálido. Agora está
caminhando, cheia de vida, saúde, e vigor. Portanto, o assombro dos
felicíssimos pais e dos três discípulos não conhece limites. E a este
assombro se deveram unir depois todos os que a viram.

d. palavras de tenra preocupação


43. Mas Jesus ordenou-lhes expressamente 219 que ninguém o
soubesse. 220
Quanto à possível razão ou razões do por quê desta proibição, veja-
se Mc. 1:44. Isto parece estar em conflito com o v. 19, onde Jesus ordena
que se faça o que aqui (v. 43) proíbe. Mas, afinal de contas, Decápolis,
com seu ambiente fortemente gentílico, não era Galileia. Embora a
Galileia estivesse muito mais submetida à influência dos gentios que a
Judeia (veja-se Mt. 4:15), era por sua vez muito mais judaica que
Decápolis. A Galileia estava cheia de fariseus, escribas, espiões, etc.
Indubitavelmente Jesus veio para a terra a fim de morrer, mas teria que
fazê-lo na hora predestinada, não antes.
As palavras de tenra preocupação são: e mandou que dessem de
comer à menina. Cf. Lc. 8:55. A proibição da primeira parte do

219
διεστείλατο aor. médio de διαστέλλω. Basicamente o verbo significa dividir ou distinguir.
Entretanto, em voz medeia, como aqui, desenvolve o sentido de emitir uma ordem; e com uma
partícula negativa (seja esta explícita ou implícita): proibir, ordenar não fazer isto ou aquilo, tomar
cuidado de. Veja-se também 7:36; 8:15; 9:9; cf. Mt. 16:20; At. 15:24; Hb. 12:20.
220
A partícula ἵνα vem seguida de γνοῖ, aor. subj. ativo de γινώσκω. Para formas similares, veja-se em
4:29; 8:37; e 14:10, 11.
Marcos (William Hendriksen) 286
versículo é seguida por um mandato ou exortação na segunda parte. 221
Jesus dá-se conta de que a menina, que por causa de sua fatal
enfermidade certamente não tinha comido durante algum tempo,
necessitava-o; e que os pais, extasiadas de alegria, poderiam passar por
alto esta necessidade. Por isso deu a ordem. 222
Este é um ponto muito importante. Não se deve deixar passar sem
lhe dar seu valor (cf. Is. 57:15). Primeiro Jesus triunfa sobre a morte;
logo acalma a fome, ou antes, impede que chegue a produzir-se. Seu
poder é insondável; e Sua compaixão não se pode medir.
Este é o mesmo Salvador que se prestou a sustentar a reputação de
um que duvidava (Mt. 11:1–19), e de aceitar as presunçosas condições
de outro (Jo. 20:24–29), que defendeu as viúvas (Lc. 18:1–8; 21:1–4),
ajudando-as em suas necessidades (Lc. 7:11–17), que tomou os pequenos
em seus braços e os abençoou (Mc. 10:16), que chorou pelos obstinados
habitantes de Jerusalém (Mt. 23:37–39), e que mostrou Sua bondade
para com uma mulher que era uma pecadora pública (Lc. 7:36–50).
Durante Sua própria e mais amarga agonia procurou um lar para Sua
mãe (Jo. 9:26, 27), a entrada ao paraíso para um ladrão (Lc. 23:43), e o
perdão para os Seus torturadores (Lc. 23:34). Inclusive depois de Sua
ressurreição é o mesmo Salvador de profunda ternura. Admiremos todo
Seu proceder com o homem que tão recentemente tinha renegado dEle!
(Mc. 16:7; Jo. 21:15–17). Este é o contexto em que se deveria ler a
preciosa passagem de Marcos 5:43b.

221
A que se deve que vários comentários nada dizem a respeito desta ordem tão reveladora? Outros só
se referem ao ponto gramatical, ou seja, que aqui achamos uma construção impessoal: Jesus não diz
que os pais eram os que deviam dar à menina algo de comer — por que teria ele que dizê-lo? Não se
acha implícito? —. Por meio do uso do infinitivo aor. pas. δοθῆναι, o que Jesus diz simplesmente é
que devia dar-lhe algo. Outros acrescentam que o próprio fato de que a menina estivesse em condições
de comer é prova de que não só se achava viva, mas também em boa saúde, ou prova de que a
ressurreição era verdadeira. Pelo lado favorável, alguns comentaristas — por exemplo, Lenski,
Robertson, e Taylor — procedem de melhor forma e afirmam claramente que o evangelista acrescenta
este detalhe a fim de revelar o maravilhoso cuidado de Jesus como grande Médico, e mostrar sua tenra
preocupação e compaixão. Isto é exatamente o essencial!
222
Um dos significados de εἶπεν (usado como aor. segundo de λέγω) é mandou, ordenou.
Marcos (William Hendriksen) 287
Ele é além disso, a Esperança dos desesperançados. Isto é o que
ensinou ao homem que não podia ser sujeito (Mc. 5:21); à mulher que
não tinha podido ser curada (vv. 25–34; Lc. 8:43); e ao pai a quem lhe
disseram que já não havia esperança (vv. 21–24; 35–43).

Resumo do Capítulo 5

O capítulo consiste em duas seções principais: os versículos 1–20


descrevem o endemoninhado gadareno, os versículos 21–43, um duplo
milagre: a. a restauração à vida da filha de Jairo; e b. A cura de uma
mulher que tocou o manto de Jesus.
Da história sobre o domínio da tempestade (4:35–41), Marcos
procede ao relato do milagre de dominar — , melhor que isso, restaurar
de maneira completa e maravilhosa — a um homem feroz, sem dúvida
um maníaco, mas acima de tudo e sobretudo, um endemoninhado.
O capítulo descreve a Jesus como a Esperança dos desesperançados.
Gradualmente se avança para com um emocionante clímax. 223 Descreve
um endemoninhado feroz e sem esperança; uma mulher
desesperadamente doente; e um pai angustiado até o desespero; em cada
caso estavam sem esperança “falando em termos humanos”. Mas agora,
observe-se o clímax, as pessoas em geral (vejam-se os vv. 3, 4) tinham
chegado a um ponto em que eram totalmente incapazes de sujeitar com
segurança o endemoninhado; a mulher não podia ser curada nem pelos
peritos (quer dizer, os médicos; veja-se o versículo 25; cf. Lc. 8:43); e,
naturalmente, nenhum poder do universo era capaz de levantar uma
menina dentre os mortos! Nem mesmo o Mestre? Nem mesmo o Mestre,
conforme pensavam todos. Observe-se a narração: “Falava ele ainda,
quando chegaram alguns da casa do chefe da sinagoga, a quem disseram:
Tua filha já morreu; por que ainda incomodas o Mestre?”

223
Embora os três milagres do cap. 5 se introduzam nesta ordem: endemoninhado (v. 2), Jairo (v. 22),
mulher (v. 25), terminam neste ordem: endemoninhado (v. 20), mulher (v. 34), Jairo (v. 41–43).
Marcos (William Hendriksen) 288
Não obstante Cristo, em Sua majestade, poder, e compaixão,
triunfou sobre esta falta de esperança em cada um dos três casos:
expulsou os demônios e transformou o endemoninhado em missionário;
curou a mulher e aperfeiçoou sua fé, transformando-a de uma fé oculta
numa fé manifestada; e para maravilha de todos, não só fez voltar a
menina à vida, mas também até em Sua tenra bondade Ele Se preocupou
de que recebesse algo de comer!
A importância deste capítulo estriba em que não só se revela o
poder de Cristo, mas também Sua compaixão. Seu coração compassivo
fica a descoberto.
A lição principal, portanto é: “Entrega o seu coração ao
maravilhoso Salvador”.
Uma segunda lição é a seguinte:
“Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós
também” (Jo. 13:15).
“Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos amados; e andai em
amor, como também Cristo nos amou e se entregou a si mesmo por nós,
como oferta e sacrifício a Deus, em aroma suave” (Ef. 5:1, 2).
Marcos (William Hendriksen) 289
MARCOS 6
Mc. 6:1–6a - Jesus é rejeitado em Nazaré
Cf. Mt. 13:53–58; Lc. 4:16–30 224

Com exceção dos fatos relatados em Mc. 5:17 e 5:40, a fé saiu


triunfante ao longo de todo o capítulo 5. Triunfou no caso do
endemoninhado curado, que deu testemunho disso (vv. 19, 20); da
mulher que tocou o manto de Cristo (28, 34), e de Jairo, que tomou
muito a sério a admoestação de Cristo, “Não temas, crê somente” (36; cf.
Mt. 9:18).
Mas embora o capítulo 5 possa ser chamado o capítulo da fé, o
presente capítulo merece o título de o capítulo sem fé. Nazaré carece de
fé. O mesmo sucede com Herodes, como também a muitos dos que
foram o objetivo de uma missão, e até em certo grau aos Doze (veja-se
os vv. 6, 11, 16, 52). Não obstante, a fé triunfa no final (vv. 53–56).
Os lamentadores (Mc. 5:40) “riram-se por debaixo” (no grego usa-
se um modismo), e o povo de Nazaré O olhe com desprezo (Mc. 6:3).
Jesus, impávido, multiplica Seus esforços em favor das boas novas. Não
só sai aos arredores ensinando pelas aldeias, mas também inclusive envia
os Seus discípulos a uma viagem missionária. Resultados? O “rei” ouve
a respeito de Jesus. Nazaré O critica? Sim, mas Herodes se encolhe de
temor, crendo que Jesus é João Batista que voltou à a vida. Foi Herodes
Antipas quem tinha ordenado a execução de João. A horripilante história
de sua decapitação se relata em Mc. 6:14–29.
Os Doze voltam de sua viagem missionária e com muito entusiasmo
informam ao seu Mestre. Jesus carinhosamente lhes diz “Vinde repousar
um pouco, à parte, num lugar deserto” (Mc. 6:31).

224
Com exceção da seção 2, dedicada a: A missão dos Doze (Mc. 6:6b–13; cf. Mt. 10:1, 5, 9–14),
Mateus 13:53–14:36 segue a mesma sequência de Marcos 6. Lucas 4:16–30 também segue de maneira
paralela às seções 2, 3, e 4 de Marcos 6. Mas as seções 5 e 6 — andando sobre as águas e as curas em
Genesaré — não se acham em Lucas.
Marcos (William Hendriksen) 290
Quanto aos resultados e acontecimentos posteriores, veja-se Mc.
6:32–56. Como Mateus se especializa nos discursos de Cristo, era de
esperar que dedicasse um capítulo inteiro à Missão dos Doze (cap. 10),
resumida em Marcos 6:6b–13 e em Lucas 9:1–6. Não existe acordo com
relação a por que o Evangelho de Lucas separa-se do que provavelmente
seja a sequência histórica. Lucas coloca a rejeição ocorrida em Nazaré na
primeira parte de seu Evangelho, quando relata o grande ministério na
Galileia, enquanto Mateus e Marcos lhe dão um lugar muito mais tardio.
Há aqueles que têm sugerido que houve duas rejeições em Nazaré. 225
Quanto ao resto, veja-se outros comentários sobre Lucas.
A continuação apresentamos as razões para crer que nos três
Evangelhos faz-se referência ao mesmo fato:
a. Os três Evangelhos têm o esboço geral da história: num sábado
Jesus entra na cidade onde fora criado. Ensina na sinagoga. Resultado:
assombro, crítica adversa, rechaço.
b. Em cada um dos três relatos a declaração pronunciado pelo
Senhor é essencialmente a mesma (Mt. 13:57; Mc. 6:4; Lc. 4:24).
c. O fundo histórico não cria dificuldades, visto que inclusive de
acordo com o relato de Lucas (veja-se Lc. 4:23), a rejeição de Cristo em
Nazaré não ocorreu no começo do ministério galileu mas muito depois.
A identificação dos fatos torna-se mais fácil porque, além do
sugerido em Lc. 4:23, não há referências cronológicas no relato de
Lucas. É evidente que, segundo Mateus 13:53, 54, a visita a Nazaré
ocorreu algum tempo depois de Jesus ter pronunciado Suas parábolas
sobre o reino, embora em nenhum lugar se indique quanto tempo depois.
Esta visita e rejeição tiveram lugar a fins de 28 d.C.? Esta possibilidade
deve ser considerada como aceitável.
Pelo que respeita a Marcos 6:1–6a (e seus paralelos em Mateus e
Lucas), estes são os detalhes que ali se registram e que não aparecem em
Mateus e Lucas: a. os discípulos de Jesus acompanham a Nazaré; b.

225
Robertson, Word Pictures I, p. 305; ao contrário: A. B. Bruce, Op cit., p. 377.
Marcos (William Hendriksen) 291
Jesus estava surpreso pela incredulidade do povo; e c. por causa desta
falta de fé não pôde realizar ali milagre algum. Com uma exceção, que
pôs suas mãos sobre uns poucos doentes e os curou.
Quanto a Mateus, além dos detalhes já indicados, seu relato
coincide em quase tudo com o de Marcos.
Lucas tem uma apresentação muita mais rica, usa 15 versículos para
relatar os fatos, enquanto Mateus só usa 6 e Marcos 5. Lucas nos
proporciona o texto e a essência do sermão de Cristo. Além de nos dizer
como O receberam, Lucas nos dá um relato muito mais completo (que
aquele que nos dão Mateus e Marcos) sobre a forma em que Jesus
respondeu às críticas, e sobre a hostil reação resultante.
1. Tendo Jesus partido dali, foi para a sua terra, e os seus
discípulos o acompanharam. 226
Algum tempo — não sabemos quanto — depois de abandonar
Cafarnaum, Jesus entrou em “sua terra”, quer dizer, o lugar onde fora
criado. A palavra que se utiliza no original e traduzida aqui por “sua
terra” significa basicamente “terra natal”, mas neste caso a explicação
“lugar onde tinha sido criado” é perfeitamente correta, segundo o prova
Lucas 4:16 (vejam-se também Mc. 6:4; Mt. 13:54, 57; Lc. 4:23, 24; Jo.
4:44. Cf. Hb. 11:14).
Embora Jesus tenha nascido em Belém (Mt. 2:5, 6; Lc. 2:4, 15; Jo.
1:45; 7:42; cf. Mt. 5:2), e durante grande parte de seu ministério público
teve seu centro de ação em Cafarnaum (Mt. 4:13), era e sempre foi
considerado como “Jesus de Nazaré” (Mt. 2:23; 21:11; 26:71; Mc. 1:24;
10:47; 14:67; 16:6; Lc. 18:37, etc.).
Resulta interessante observar que os Doze estão outra vez com seu
Mestre; contraste-se com Mc. 5:37. Há aqueles que interpretam isto no
sentido de que a visita a Nazaré não foi de natureza particular. Poderiam
ter razão.
Entretanto, embora assim tivesse sido, Marcos prossegue:

226
Ou: acompanharam.
Marcos (William Hendriksen) 292
2. Chegando o sábado, passou a ensinar na sinagoga; e muitos,
ouvindo-o, se maravilhavam, dizendo: Donde vêm a este estas
coisas? Que sabedoria é esta que lhe foi dada? E como se fazem tais
maravilhas 227 por suas mãos?
Veja-se a declaração a respeito da sinagoga com relação a Mc. 1:39,
a seção dedicada especialmente a este assunto. Veja-se também sobre
Mc. 1:21ss. e 3:1. Por Lucas 4:17ss. sabemos que o “encarregado” da
sinagoga entregou a Jesus o rolo de Isaías. O texto que selecionou foi
Isaías 61:1, 2a; ou talvez esta porção de Isaías era a “haftará” (lição dos
profetas) para esse preciso sábado. Conforme relata Lucas, Isaías
predisse que na era vindoura o Espírito repousaria sobre o Ungido de
Deus, o qual proclamaria as boas novas aos pobres, liberdade aos
cativos, recuperação da vista aos cegos, liberdade aos oprimidos, “o ano
agradável do Senhor”.
Ao chegar a este ponto, assim continua este evangelista, Jesus
enrolou o pergaminho, devolveu-o ao encarregado, e estando todos os
olhos fixos nele, disse, “Hoje se cumpriu esta Escritura diante de vós”.
Afirmou que por meio dEle e Seu ministério, a notável promessa de
Isaías se estava cumprindo.
Em harmonia com Marcos, Lucas explica que a primeira reação da
parte da concorrência foi favorável. Jesus se tinha expressado com tal
convicção interna, vigor, autoridade, e graça que os que O conheciam
ficaram mudos de assombro.
Entretanto, esta reação favorável não durou muito. O entusiasmo
começou a transformar-se em crítica adversa. Claro, as palavras eram
maravilhosas, mas vindo dEle … dEle? Como poderia ser possível? De
onde obteve este homem … (se poderia traduzir: este tipo) … estas
coisas?”. Para o povo, as palavras do pregador eram totalmente
incongruentes com o homem que as pronunciava. Naturalmente, um

227
Ou: obras de poder; assim é também no v. 5 (aí no singular: obra de poder, milagre).
Marcos (William Hendriksen) 293
indivíduo comum, sem cultura, tal como “sabiam” (?) que era Jesus, não
correspondia revelar “esta classe” 228 de sabedoria!
Além disso, o que se podia dizer dos milagres ou “obras de poder”
que todos conheciam como obras “de suas mãos”, quer dizer, das quais
Ele era autor? O povo de Nazaré mal poderia negar os fatos. A distância
entre Nazaré e Cafarnaum era somente de uns trinta e três quilômetros, e
a congregação presente na sinagoga sabia que naquela cidade e em seus
arredores, Jesus, seu concidadão, tinha realizado muitas obras de poder
— pois isto é o que significa a palavra que se usa aqui para “milagres”
(veja-se Mc. 1:21–34; 40–45; 2:1–12; 3:1–6; 5:21–43). Mas de onde
procedia tudo isto? Cf. Mt. 11:28. Não lhes passava pela mente que Deus
pudesse ser a origem das palavras e também das obras de Jesus.
Além disso, se fez tudo aquilo em Cafarnaum — e eles não
rejeitaram os informes — então por que não fazia algo similar em
Nazaré? Que comece sua atuação! (veja-se Lc. 4:23). Acaso não devia
tudo isso à Sua própria cidade de origem? O evangelista Marcos põe
especial ênfase em: a. A procedência do ensino de Cristo, e b. A
natureza da sabedoria que inclusive O capacita a realizar milagres.
A reação depreciativa segue no versículo
3. Não é este o carpinteiro, filho de Maria, irmão de Tiago, José,
Judas e Simão? E não vivem aqui entre nós suas irmãs?
Jesus o carpinteiro! Justino Mártir escreveu entre os anos 155 e 161
d.C., e em seu Diálogo com o Trifo LXXXVIII fala a respeito de Jesus
dizendo, “Ele costumava trabalhar como carpinteiro quando estava entre
os homens, fazendo arados e jugos”. A palavra “carpinteiro” usada no
original é tekton, relacionada com a nosso “técnico”. O verbo análogo
significa gerar, dar à luz, produzir. O tekton, em consequência, é
basicamente todo operário, qualquer que “produz”, “faz”, ou “cria” um
objeto. Poderia ser dito, todo “artesão” ou “construtor”, quer seja que os
materiais que usa consistam em madeira, pedra, metal, ou qualquer

228
Grego τίς = ποῖος.
Marcos (William Hendriksen) 294
outro. No caso presente devemos supor que o correto é “trabalhador da
madeira”, “carpinteiro” (veja-se a citação do Justino Mártir). Vale a pena
observar que aqui em Marcos, o próprio Jesus é chamado como “o
carpinteiro”, enquanto em Mateus 13:55 é chamado como “o filho do
carpinteiro”. Isto não deve ser considerado uma discrepância, visto que
bem pôde haver sido chamado das duas maneiras. Em tempos antigos, e
até relativamente recentes, ao escolher sua profissão, um filho seguia
com frequência os passos de seu pai.
O que os caluniadores queriam dizer era algo assim: “O que é que
um simples carpinteiro sabe a respeito de oratória e especialmente a
respeito de interpretação e cumprimento profético? Não é acaso o “filho
de Maria”? José nem sequer é mencionado, provavelmente porque por
aquele tempo já havia falecido.
Os irmãos de Jesus também são mencionados. Em primeiro lugar,
vem Tiago (cf. Mt. 13:55), um homem que depois de sua conversão
deveria ter proeminência na igreja primitiva cristã, especialmente em
Jerusalém (At. 12:17; 15:13–29; 21:18; 1Co. 15:7; Gl 1:19; 2:9, 12; Tg.
1:1; Jd. 1). Nada se sabe a respeito de José, mencionado a seguir
(chamado José também em Mt. 13:55), e que não se deve confundir com
o José de Marcos 15:40, 47. Segue-o Judas (cf. Mt. 13:55; Jd. 1); e
último de todos, Simão (cf. Mt. 13:55), tão desconhecido para nós como
José. Estes eram os irmãos de Jesus, nascidos da mesma mãe (veja-se
mais acima, sobre Mc. 3:31). No que respeita às irmãs, nunca são
mencionadas pelo nome. Supõe-se que se tinham casado e viviam então
com seus maridos em Nazaré.
“A familiaridade produziu menosprezo” quer dizer, o próprio fato
de que o povo de Nazaré conhecesse bem a família de Jesus, por ter-se
relacionado com eles por muito tempo, fez com que O olhassem de
forma depreciativa. O que se cria este carpinteiro? E escandalizavam-se
Marcos (William Hendriksen) 295
229
nele. Quer dizer, deixaram-se apanhar no pecado de O considerar uma
ofensa para eles.
4. Jesus, porém, lhes disse: Não há profeta sem honra, senão na
sua terra, entre os seus parentes e na sua casa.
Veja-se CNT sobre João 4:44, onde se acha substancialmente a
mesma expressão proverbial. Mas a palavra usada em João é patris, que
se refere ao país natal ou à “pátria” (quer dizer, Galileia), enquanto aqui
em Marcos 6:4 (e seu paralelo Mt. 13:57) usa-se uma palavra que se
refere ao povo onde foi criado, como é evidente pelo relato e por Lucas
4:16.
Poderiam ser dadas outras traduções, tais como: um profeta sempre
recebe honra exceto, etc., ou: nunca deixa de receber honra exceto, etc.,
ou: é sem honra só em, etc. Mas estas traduções não são exatas. Jesus
não disse que a um profeta é respeitado em todo lugar, exceto em seu
povo, entre os seus parentes, e em sua família. O que disse foi que onde
quer que um profeta recebe honra, certamente não será em sua própria
terra, etc.
Quanto à referência à sua família, esta deve ser interpretada à luz de
passagens como João 7:5 e Atos 1:14. Então se verá que no caso dos
irmãos de Cristo, a incredulidade se transformou mais adiante em fé,
pela graça de Deus.
Antes de deixar esta passagem deve-se assinalar que Jesus afirma
aqui implicitamente que Ele é verdadeiramente um profeta, com direito a
ser honrado como tal (cf. Dt. 18:15, 18; Mt. 21:11; Lc. 24:19; Jo. 9:17;
At. 3:22; 7:37).
O resultado do rechaço de Nazaré foi:
5. Ele não pôde fazer milagres em Nazaré, a não ser curar
alguns doentes, pondo as mãos sobre eles.
Os nazarenos tinham recebido mais luz e mais privilégios que os
gerasenos (Mc. 5:17), assim que ao rejeitar a Jesus, o povo de Nazaré

229
Para a palavra usada aqui no original, veja-se sobre Mr. 4:17, nota 147.
Marcos (William Hendriksen) 296
mostrou que neste aspecto eram piores que os gerasenos (Mc. 5:17).
Como O rejeitaram, não foram a Ele para que os curasse, nem levaram a
Ele os seus doentes. De modo que todos aqueles incrédulos e rebeldes
não receberam cura. Jesus não realizou nenhum milagre em favor deles.
Entretanto, pôs suas mãos sobre uns poucos doentes. Com relação à
expressão “doentes”, veja-se sobre o v. 13. Estes talvez foram a Ele, ou
pediram para serem levados. Dá-se por sentado que estes poucos foram
curados.
Agora, inclusive aqueles poucos podiam ter estado motivados por
considerações inferiores a uma fé autêntica, que às vezes é chamada “fé
salvadora”, ou talvez descrita melhor como “fé que pela graça de Deus
conduz à salvação”, a fé genuína a qual se faz referência em Jo. 3:16;
Rm. 5:1; Ef. 2:8, etc. Com base nas Escrituras, os teólogos falam de fé
histórica, fé temporal, fé em milagres, como também fé genuína que
conduz à salvação. 230 No caso presente bem pôde ter sido mera fé em
Jesus quanto autor de milagres. Em consequência, foi uma fé nos
milagres a que fez com que uns poucos fossem a Jesus para receber cura.
Mesmo assim, Jesus não costumava negar-se a curá-los (veja-se Lucas
17:17b). Por outro lado, se aqueles poucos eram verdadeiros crentes —
uma possibilidade que não deve descartar-se totalmente — então a
situação em Nazaré lembra a que em tempos posteriores existiu na igreja
de Sardes (veja-se Ap. 3:4. Cf. Is. 1:9; Jr. 31:7; Jl. 2:32; Lc. 12:32; Rm.
9:27; 11:5). A doutrina do “remanescente” percorre as Escrituras como
um fio de ouro. Mas qualquer pessoa que tivesse sido a situação daqueles
poucos, em seu conjunto os habitantes de Nazaré deram as costas a
Jesus. A grande maioria dos doentes ficou sem ser curado, e os
pecadores sem perdão.
Entretanto, a forma de expressar-se de Marcos difere algo da de
Mateus. Em Mateus 13:58 diz “E não fez ali muitos milagres, por causa
da incredulidade deles”. Marcos diz, “Ele não pôde fazer milagres em

230
Veja-se L. Berkhof, Teologia sistemática (Grand Rapids: TELL, 1969), pp. 600ss.
Marcos (William Hendriksen) 297
Nazaré”. Solução provável: não pôde realizar estes milagres porque, sob
tais circunstâncias de incredulidade e oposição, não os quis fazer. Em
lugar de fazer valer Seu grande poder para eliminar a oposição rebelde
do povo, respeitou a própria responsabilidade deles com relação a suas
atitudes e ações (cf. Mt. 24:37. Vejam-se também Lc. 22:22; At. 2:23).
A hostil atitude do povo a conduziu a uma ação hostil (Lc. 4:28, 29)
baseada na incredulidade. Isto suscitou na alma de Jesus o sentimento
que se descreve no versículo
6a. Admirou-se 231 da incredulidade deles.
Embora no original, o verbo assombrar-se ou admirar-se apareça
trinta vezes nos quatro Evangelhos, só em três casos usa-se com
referência a Jesus. Estes casos se referem a dois acontecimentos
distintos, um que aparece em Mt. 8:10 (cf. Lc. 7:9) e outro em Mc. 6:6.
Num caso Jesus se admira ou se assombra pela notável fé de um
centurião de origem gentílica. No caso daquele homem dificilmente
podia esperar-se tal fé, porque era muito menos privilegiado que os
judeus. Aqui em Nazaré, pelo contrário, Jesus está assombrado por causa
da falta de fé dos habitantes. Aqui se esperava que houvesse fé, porque
Nazaré era um povo da Galileia, a mesma Galileia que tinha sido tão
altamente privilegiada por meio do ministério de Jesus.
É muito difícil à mente humana entender a psicologia da alma
humana de Jesus. Por isso, antes de nos deter em detalhes relacionados
com esse tema, fixaremos nossa atenção no fato de que esta passagem
claramente revela a responsabilidade do homem por suas atitudes e
ações, com relação à luz que tenha recebido (Mt. 11:20–24; Lc. 12:47,
48; Rm. 2:12).

231
Ou: “maravilhava-se”, tempo imperfeito. Quanto ao verbo, veja-se sobre 5:20, nota 199.
Marcos (William Hendriksen) 298
Mc. 6:6b–13 - A missão encomendada aos Doze
Cf. Mt. 10:1, 5, 9–14; Lc. 9:1–6

6b, 7. Contudo, percorria as aldeias circunvizinhas, a ensinar.


Chamou Jesus os doze e passou a enviá-los de dois a dois, dando-lhes
autoridade sobre os espíritos imundos.
Jesus nomeou os Doze depois de uma excursão de ensino pelas
aldeias da Galileia. Esta excursão docente e a nomeação daqueles doze
homens se combinam também em Mateus 9:35–10:4. A chamada como
tal, provavelmente ocorreu precisamente antes da pregação do Sermão
da Montanha (veja-se Lc. 6:12, 13, 17, 20). E a seguir (talvez algo mais
tarde, durante o mesmo verão do ano 28 d.C.?) o Mestre enviou estes
homens a obra missionária.
Note-se, “Passou a enviá-los”. Uma das interpretações deste passou
é que este trabalho era de natureza preliminar, a missão a Israel, seguida
pelo encargo de pregar o evangelho a todo mundo. Se Mateus 10:5, 6 for
contrastado com Mt. 18:19 (cf. Mt. 16:16; Lc. 24:47), este ponto de vista
poderia ter apoio. 232
Seja como for, um fato é claro: estes homens deviam ser
“apóstolos”, isto é, embaixadores oficiais de Cristo, homens revestidos
de autoridade para representar Àquele que os enviava. O fato de que
fossem doze homens, nem mais nem menos, os que receberam esta
encomenda, significa que o Senhor os designou para ser o núcleo do
novo Israel, porque o Israel da antiga dispensação também estava
representado por doze patriarcas. Cf. Ap. 21:12, 14.
Só Marcos relata que os discípulos foram enviados de “dois em
dois”. 233 Esta decisão por casais pode muito bem ser o que Mateus tinha

232
Entretanto, isto não é seguro. Este poderia ser um caso de uso pleonástico de ἄρχω. Veja-se
BAGD, p. 113. Também Vincent Taylor, Op. cit., p. 48, e mais acima sobre Mc. 1:45.
233
Embora a construção δύο δύο se considerasse um hebraísmo, não só aparece também em Esquilo e
Sófocles, mas também o moderno Novo Testamento Grego (Londres, 1943), conservou-o. Portanto,
esta repetição do número cardeal pode-se considerar como uma ilustração da coincidência entre a
Marcos (William Hendriksen) 299
em mente em Mt. 10:2–4 (veja-se CNT sobre essa passagem). Se for
perguntado por que de dois em dois, vêm-nos à mente imediatamente
várias considerações práticas tais como a. para ajudar-se e alentar-se um
ao outro (cf. Ec. 4:9) e b. para ser testemunhas válidas (Nm. 35:30; Dt.
19:15; Mt. 18:16; Jo. 8:17; 2Co. 13:1; 1Tm. 5:19; Hb. 10:28). Tempo
mais tarde observamos que Pedro e João oferecem seu testemunho unido
(At. 3:1; 4:1, 13, 19); que Barnabé e Saulo são enviados juntos em sua
viagem missionária (At. 13:1–3); e que depois Paulo e Silas juntos são
“encomendados pelos irmãos à graça do Senhor” (At. 15:40); e não
esqueçamos a Barnabé e Marcos! (At. 15:39).
Aos Doze foi dada autoridade sobre os espíritos imundos; quer
dizer, Jesus lhes comunicou o direito e o poder de expulsar estes
demônios do coração e vida dos homens. Cf. v. 13a; Mt. 10:1. Quanto a
maior informação a respeito da possessão demoníaca veja-se mais acima,
sobre Mc. 1:23; também CNT sobre Mt. 9:32–34.
Embora o resumo da missão que se consigna em Marcos 6:7, nada
se diz a respeito de pregar nem de curar doentes, estas duas funções
deviam ser incluídas na missão encomendada. A ordem de pregar está
incluída no versículo 11 (“nem vos ouvirem”) e no versículo 30 (“e lhe
relataram tudo quanto haviam feito e ensinado”); o mandato de curar os
doentes está indicado no versículo 13b. Não se sabe por que o relato do
encargo da missão não menciona a pregação e a cura. Alguns respondem
que o dom maior (autoridade para expulsar demônios) encerra o menor
(pregar e curar doentes). Esta resposta me chama a atenção por ser
menos que satisfatória, por mais de uma razão. Veja-se os versículos 12,
13. Com relação à frase “espíritos imundos” veja-se Mc. 5:2.

fraseologia vernácula de idiomas distintos. Sobre este ponto veja-se A. Deissmann, Light from the
Ancient East (tradução ao inglês, Nova York, 1927), pp. 122, 123.
Marcos (William Hendriksen) 300
234
8, 9. Ordenou-lhes que nada levassem para o caminho, exceto
um bordão; nem pão, nem alforje, nem dinheiro; que fossem
calçados de sandálias e não usassem duas túnicas. 235
Nesta viagem não levariam nada mais que o absolutamente
necessário. Por que? Porque Deus proveria. Os discípulos, agora também
apóstolos, deviam depositar sua confiança inteiramente nEle. Sem
dúvida que esta é a razão fundamental (veja-se Mt. 6:19–34; Mc. 8:19–
21; Lc. 22:35). A isto se pode acrescentar Mt. 10:10b, “digno é o
trabalhador do seu alimento”, que significa: A responsabilidade de
prover para quem prega o evangelho, recai sobre aqueles que o ouvem.
Isto também concorda com o ensino do Antigo e do Novo Testamento:
Dt. 25:4; 1Co. 9:7, 14; e veja-se também CNT sobre 1Ts. 2:9 e 1Tm.
5:18.
A lista das coisas a levar e (principalmente) não levar, consistia nos
seguintes artigos, na ordem que se mencionam aqui nos versículos 8 e 9:
Bordão. 236 No grego não bíblico refere-se às vezes a uma vara
mágica. Outros significados são: vara de pescar, raio de luz com
aparência de vara, etc. No Salmo 23:4 (LXX 22:4) a palavra faz
referência ao cajado de um pastor. Cf. Mt. 7:14. No Novo Testamento a
vara é às vezes um instrumento de castigo (1Co. 4:21), significado que
se relaciona facilmente com “a vara de ferro” de Ap. 2:27; 12:5; 19:15.
Logo temos também o cetro real (Hb. 1:8); a vara que dá suporte, para
apoiar-se nela (Hb. 11:21); e a vara de Arão que floresceu (Hb. 9:4).

234
Ou: para a viagem.
235
Quanto à construção gramatical dos vv. 8, 9, note-se que o ἵνα não indica propósito no v. 8, mas
sim é recitativo: “mandou-lhes que não levassem nada”. Em consequência: “Mandou-lhes não levar
nada”. O v. 9 (conforme ao melhor texto) transforma o ἵνα numa construção acusativa, com
πορεύεσθαι implícito: ἀλλὰ (πορεύεσθαι) ὑποδεδεμένους σανδάλια = “e sim (viajar) calçados com
sandálias”, o que se pode simplificar dizendo “e sim calçar sandálias” (veja-se Robertson, p. 441).
Este característico não se deve considerar estranho, visto que construções gramaticais heterogêneas de
caráter similar podem ser achadas em muitos idiomas fora do grego do Novo Testamento. A
conversação diária contribui com muitos exemplos.
236
As seis palavras usadas no original são: ῥάβδος, ἄρτος, πήρα, χαλκός, σανδάλιον, χιτών.
Marcos (William Hendriksen) 301
Mas aqui em Marcos 6:8 e seus paralelos, refere-se ao bordão do
viajante.
Pão. Aqui e em Lucas 9:3 esta palavra usa-se genericamente.
Alforje. Era um tipo de mochila ou bolsa “para o caminho” ou para
“viajar”. É uma bolsa que, antes de sair, a pessoa encheria com as
provisões necessárias para a viagem. Por causa do contexto, que parece
constituir uma espécie de clímax: “Não tomem convosco pão, nem
mesmo bolsa para levá-lo, na realidade, nem sequer dinheiro para
comprá-lo”, a ideia de que se refere à “bolsa de esmoleiro” (A.
Deissmann, Op. cit., p. 109) carece de possibilidades. Além disso, como
Mateus 10:10b indica claramente, Jesus não considera os apóstolos como
mendigos!
Dinheiro. A palavra que se utiliza no original tem o sentido básico
de cobre, latão, bronze. Em segundo lugar, pode-se referir a qualquer
coisa feita de algum destes metais. Veja-se 1Co. 13:1. Em consequência
pode-se referir também a moedas, troco; assim parece ser aqui em
Marcos 6:8; cf. 12:41. Note-se a expressão “nem dinheiro no cinto”
[RC]. Ao enrolar ou cingir um cinturão, de qualquer material, ao redor
do corpo com várias voltas, suas dobras serviriam admiravelmente como
“bolsos” para levar dinheiro ou outros valores. Até hoje em dia os que
saem ao estrangeiro com frequência levam dinheiro ou cheques
viajantes, etc., num cinturão por razões de segurança.
Sandália; aqui o plural sandálias. Em Mateus 10:10 usa-se um
sinônimo, com pouca ou nenhuma diferença quanto ao significado (veja-
se também Mt. 3:11; Mc. 1:7; Lc. 3:16; 10:4; 15:22; 22:35; At. 13:25).
Consistiam em solas planas feitas de madeira ou de couro, ou inclusive
de fibras vegetais entretecidas. Para impedir que caíssem eram sujeitas
com cintas ou cordões.
Túnica; aqui no plural duas túnicas. Era uma espécie de camiseta
longa que se usava tocando a pele. Chegava quase aos pés e tinha
aberturas para os braços (Cf. Mt. 5:40; 10:10; Lc. 3:11; 6:29; 9:3). Em
Marcos 14:63, o plural refere-se a roupa em geral.
Marcos (William Hendriksen) 302
Até aqui não parece haver grande dificuldade. Mas, conforme o
indica a seguinte tábua, parece haver discrepância ou conflito com
relação a dois artigos: o bordão e as sandálias.

Deviam levar o seguinte para a viagem?

Artigo Mt. 10:9, 10 Mc. 6:8, 9 Lc. 9:3


bordão Não Sim Não
Pão - Não Não
alforje Não Não Não
dinheiro Não Não Não
sandálias Não Sim -
duas túnicas Não Não Não

Parece que segundo Marcos, Jesus desejava que Seus discípulos


levassem um bordão; mas segundo Mateus e Lucas, disse-lhes que não o
levassem. Conforme Marcos, o Mestre desejava que levassem sandálias,
mas conforme Mateus (cf. Lc. 10:4 na missão dos setenta ou dos setenta
e dois) foi proibido.
Não se ofereceu uma solução que satisfaça universalmente.
Há escritores que aceitam discrepâncias ou contradições 237 e que
frequentemente se referem a distintas fontes, às vezes conflitivas, de
onde, segundo seu modo de ver, os escritores dos Evangelhos extraíram
seu material.
Outros — e há vários — evitam prudentemente todo o problema.
A solução de Calvino com relação ao bordão é que Mateus e Lucas
se referem à uma “vara” que poderia resultar incômoda, e por isso devia
deixar-se em casa, conquanto Marcos, embora use a mesma palavra,

237
Assim, por exemplo, M. H. Bolkesteyn, Vincent Taylor, R C. Grant, H. A. W. Meyer
(enfaticamente) em seus respectivos comentários sobre Marcos 6:8, 9. Para os títulos de seus livros,
veja-se a bibliografia.
Marcos (William Hendriksen) 303
pensa num “bordão” para apoio e alívio do viajante. Calvino não explica,
entretanto, por que nos dois relatos paralelos a mesma palavra pode ter
dois significados diferentes.
A solução, segundo a este intérprete, encontra-se provavelmente em
Mateus 10:9, 10: “Não vos provereis de ouro, nem de prata, nem de
cobre nos vossos cintos; nem de alforje para o caminho, nem de duas
túnicas, nem de sandálias, nem de bordão”. O que Mateus provavelmente
quer dizer é, “Não levem um par de sandálias de sobra”. Isto parece ser
ainda mais provável à vista do fato de que em seu Evangelho, a
referência às sandálias segue imediatamente à ordem contra levar duas
túnicas. Portanto, a advertência de não levar coisas de sobra
provavelmente se estende ao seguinte artigo, sandálias, e ao seguinte,
bordão. Se isto é correto, então o que Jesus diz também aqui em Marcos
é: não se deve levar uma túnica de sobra, nem sandálias de sobra, nem
bordão de sobra.238 O bordão que têm em suas mãos tem que ser o único
bordão que levem; as sandálias que usarão serão as que agora levam.
10. E recomendou-lhes: Quando entrardes nalguma casa,
permanecei aí até vos retirardes do lugar [dessa cidade].

238
Seguem também esta linha S. Greijdanus, Het Heilig Evangelie naar de Beschrijving van Lucas
(Comentar op het Nieuwe Testament, Amsterdam, 1940), p. 403; Lenski, Op. cit., p. 152.
Os que zombam deste esforço e com frequência buscam a solução fazendo referência a supostas
fontes que continham material em conflitivo. Além de que algumas destas “fontes” ainda esperam ser
descobertas, não se pode ir a fontes desconhecidas como se isto fosse uma panaceia para a solução dos
problemas do Novo Testamento. Esta gente não se dá conta de que assim criam outros problemas. Por
exemplo, alguns argumentam que Mateus contém a declaração original. Se isto quer dizer que Jesus
tinha mandado a Seus discípulos que viajassem descalços, mas que Marcos (ao escrever a leitores de
cultura ocidental) admite sandálias para acomodar-se a eles, produz-se então o seguinte enigma:
a. A expressão “sacudir o pó dos pés” (Mt. 10:14; Mc. 6:11; Lc. 9:5, com ligeiras variações quanto a
palavras) deveria significar uma coisa em Mateus e Lucas, outra em Marcos.
b. Segundo a interpretação que eles fazem de Mateus, não se explica por que Jesus devia enviar aos
discípulos descalços, acrescentando mais problemas a seu trabalho.
c. Tampouco se explicou como a igreja primitiva permitiu que a (suposta) discrepância ficasse sem
resolver.
d. Além disso, nas Escrituras o estar descalço está associado a ideias totalmente diferentes (Êx. 3:5;
2Sm. 15:30; Is. 20:2; Ez. 24:17).
Marcos (William Hendriksen) 304
A forma em que os discípulos deviam decidir em que casa ficar é
indicado em Mateus 10:11. Era o dever dos ouvintes oferecer
hospitalidade, e com maior razão pelo fato de que os viajantes
enriqueciam as pessoas com a pérola de grande preço. E os visitantes
também deviam mostrar um espírito de cooperação. Não deviam ser tão
exigentes que, quando na casa algum detalhe não fosse de seu agrado,
saíssem imediatamente e entrassem em outra onde os confortos fossem
mais agradáveis e a comida mais saborosa. A extensão do evangelho tem
prioridade sobre os assuntos pessoais que nos agradam ou não nos
agradam. Portanto, os missionários — não só quando viajavam, mas
também provavelmente também ao alojar-se de dois em dois — deviam
permanecer no lar que foi tão bondoso ao lhes oferecer hospitalidade.
Uma lição muito prática!
11. Se nalgum lugar não vos receberem nem vos ouvirem, ao
sairdes dali, sacudi o pó 239 dos pés, 240 em testemunho contra eles.
Depois de viajar por território pagão, os judeus tinham por costume
sacudir o pó de suas sandálias e roupa antes de entrar na Terra Santa. 241
Temiam que, de não fazê-lo assim, os objetos leviticamente limpos de
sua pátria pudessem tornar-se imundos. O que Jesus diz aqui, portanto, é
que qualquer lugar, quer casa, aldeia, cidade ou casario, que recusasse
aceitar o evangelho deveria considerar-se imundo, como se fosse só
pagão. Portanto, tal foco de incredulidade devia ser tratado da mesma
forma. Paulo e Barnabé fizeram exatamente isto quando se organizou
contra eles uma perseguição no distrito judaico de Antioquia da Pisídia
(At. 13:50, 51). Sobre semelhante lugar repousa uma responsabilidade
colossal e uma pesada carga de culpa. Veja-se Mt. 10:15.
Os Evangelhos mostram certas variações ao registrar as palavras
que Cristo usa ao dar Suas instruções. Estas diferenças bastam para

239
Literalmente Mateus e Marcos falam de “sacudir fora”, Lucas, de “sacudir”. A diferença é
pequena.
240
Literalmente: “desde debaixo de seus pés”.
241
SB. I, p. 571.
Marcos (William Hendriksen) 305
mostrar que mesmo quando os escritores dos Evangelhos, com toda
probabilidade, usaram fontes escritas assim como orais, sempre se
mantêm como os escritores ou autores, e jamais meros copistas. Assim,
no original de Mateus (10:14) e Lucas (9:5) usa-se uma palavra para pó,
enquanto Marcos (6:11) usa outra, 242 mas em ambos os casos a tradução
correta é “pó”. Assim também, Mateus menciona “aquela casa ou
cidade”, Marcos “algum lugar”, Lucas “aquela cidade”, mas não há
diferença importante. Com relação a isto, Mateus nada diz a respeito de
um testemunho; mas veja-se Mt. 10:15. Marcos escreve sacudi o pó dos
pés, em testemunho contra eles”; Lucas: “em testemunho contra eles”.
Mas corretamente interpretado, o significado é o mesmo. Em cada caso a
ação simbólica, em obediência ao mandato de Cristo, é uma declaração
pública do desagrado divino que pesa sobre o lugar em que o evangelho
foi rejeitado. O testemunho dirigido “a” eles é portanto um testemunho
“contra” eles … para que se arrependam. Cf. Ap. 16:9.
É uma revelação da evidente desaprovação de Deus, porque os que
espalham as boas novas são Seus embaixadores e levam Sua palavra. De
modo que ao rejeitá-los, esta gente ímpia está rejeitando a Deus; ou, se
preferir-se, a Cristo.
12, 13. Então, saindo eles, pregavam ao povo que se
arrependesse; expeliam muitos demônios e curavam numerosos
enfermos, ungindo-os com óleo.
Observe-se o seguinte:
a. Saindo eles, pregavam. Fizeram o papel de arautos. A pregação,
se o leitor é fiel ao significado original do termo, é a proclamação
fervorosa das novas iniciadas por Deus. Não é a especulação abstrata
sobre pontos de vista inventados pelo homem (veja-se também 14, 7, 14,
38, 45; CNT sobre 2Tm. 4:2).

242
Respectivamente κονιορτός (de κόνις y ὄρνυμι; em consequência, o que é agitado do solo; p.ej.,
por obra de um brioso corcel, cf. Lc. 10:11; At. 13:51; 22:23); e χούς a terra que se adere às vestes;
em Ap. 18:19 o pó que as pessoas intensamente tristes lançavam sobre sua cabeça.
Marcos (William Hendriksen) 306
b. Pregaram “pregavam ao povo que se arrependesse”
[convertesse]. Quanto ao significado do importante verbo que se usa no
original, veja-se sobre Mc. 1:15. Sem dúvida indica arrependimento, mas
a palavra tem um significado muito mais rico.
c. Em “pregavam”, o original usa um tempo verbal, e em
“expulsavam” e “ungiam” outro.243 Isto bem pode indicar que a tarefa
principal dos discípulos era pregar. Mas de vez em quando, com relação
à pregação e como confirmação aprovada e ordenada por Deus da
veracidade de sua mensagem e do genuíno caráter de seu chamado, estes
homens realizavam milagres de cura. 244
d. Expulsavam muitos demônios. Poderia dizer-se que tinham muito
êxito nesta atividade. Os discípulos nem sempre tinham êxito na
expulsão dos espíritos imundos, como se vê claramente em Mc. 9:18.
Além do poder outorgado por Deus, eles por si só não o tinham. Isto nos
ensina também por que a oração era de primordial importância, como
uma lição que aqueles homens precisavam aprender. Veja-se no v. 7 para
o relacionado com a possessão demoníaca e a expulsão de demônios.
e. “Ungiam com óleo …” [TB]
Em tempos bíblicos usava-se óleo de um tipo ou outro (com
frequência azeite de oliva) com distintos fins: como cosmético (Êx. 25:6;
Rt. 3:3; Lc. 7:46); como alimento, em lugar de manteiga (Nm. 11:8; Dt.
7:13; Pv. 21:17); para iluminação (Êx. 25:6; 27:20; Mt. 25:3, 4, 8); como
símbolo de graça e poder divinos na consagração de uma pessoa para um
ofício (Lv. 2:1ss.; Nm. 4:9ss.; Sl 89:20); com relação às ofertas (Ez.
45:14, 24; 46:4–7, 11, 14, 15); e com relação ao enterro (Mc. 14:3–38;
Jo. 12:3–8).
É evidente por Lucas 10:34, que o óleo era usado como remédio
físico; o bom samaritano lançou óleo e vinho sobre as feridas do homem
que tinha caído em mãos de ladrões.245 É um fato que no mundo antigo o
243
Note-se o aor. ἐκήρυξαν, e cf. com os imperfeitos ἐξέβαλλον e ἤλειφον.
244
Cf. H.B. Swete, Op. cit., p.119.
245
Quanto a Tg. 5:14, vejam-se comentários sobre esse livro.
Marcos (William Hendriksen) 307
óleo é usado extensamente como remédio. Não disse Galeno, o grande
doutor grego, “O óleo é o melhor dos remédios para curar as
enfermidades do corpo”?
A pergunta, então, é, “Segundo se menciona aqui em Marcos 6:13,
usaram os discípulos o óleo como remédio?” A resposta, segundo a
opinião deste intérprete é que provavelmente não o fizeram. Era com
toda probabilidade um símbolo da presença, graça e poder do Espírito
Santo.
Zacarias 4:1–6 deixa claro que o azeite se usou às vezes como
símbolo da fortificante presença e poder do Espírito. Neste sentido,
Mateus 25:2–4 também merece ser considerado. À luz de Êxodo 25:37 e
Zacarias 4:1–6, examine-se também Isaías 11:2 e Apocalipse 1:4, 12.
Agora, se isso for verdade, então a unção dos doentes com azeite
significava: “Deve esperar-se a cura de Deus e não de nós”. Significava
que “Seu Espírito pode curar o corpo e a alma”.
Outros expositores contribuíram com valiosas explicações sobre
este uso do azeite, como segue:
“O azeite é um símbolo bíblico da presença do Espírito, e assim a
própria unção é uma parábola ‘encenada’ da cura divina”. 246
“O azeite deve considerar-se aqui como sinal visível da energia e da
graça espiritual que lhes foi comunicado (aos apóstolos).247
“As curas eram sempre milagrosas e instantâneas: o azeite de oliva
jamais age de tal maneira”. 248
“A unção era um específico frequente … em tratamentos médicos
comuns, e isto sugeriria seu uso no simbolismo da cura sobrenatural”. 249
“Jesus e Seus discípulos curavam os doentes tocando-os e pelo
poder da palavra, e não por meio da aplicação de azeite”. 250
246
R. A. Cole, Op. cit, p. 109.
247
J. A. C. Van Leuwen, Op. cit., p. 75.
248
R. C. H. Lenski, Op. cit., p. 155.
249
E. P. Gould, The Gospel according to St. Mark (The International Critical Commentary, Nova
York, 1970), p. 108.
250
E. R. Groenewald, Op. cit., p. 140.
Marcos (William Hendriksen) 308
O fato de que: a. na opinião pública o azeite já tinha relação com a
cura, e b. segundo já se tem dito, era o símbolo da presença e o poder do
Espírito Santo, fez com que seu uso fosse compreensível, especialmente
durante o começo da proclamação do evangelho. Daí que o achamos
mencionado aqui, em que provavelmente era o evangelho mais cedo, e
em Tiago 5:14 (pela razão que seja) no que bem pôde ter sido a mais
anterior das epístolas canônicas. Ao transcorrer o tempo e incrementar o
conhecimento espiritual, o azeite deixa de mencionar-se. Aparentemente
já não se considerava necessário para o ensino. O sacramento católico
romano da extrema-unção nem sequer é sugerido aqui, porque esse rito é
administrado diante da possibilidade da morte iminente, enquanto a
unção mencionada aqui em Marcos 6:13 ocorre num contexto em que ao
doente lhe dão uma nova esperança de vida.
Jesus curava muitos doentes. A palavra que se utiliza no original se
acha também em Mateus 14:14; Marcos 6:5; 16:18; e 1 Coríntios 11:30,
e contempla os doentes em seu estado de impotência. São fracos e
frágeis, mas Jesus, mediante o Espírito, pode torná-los fortes.

Mc. 6:14–29 - A perversa festa de aniversário de Herodes e A morte


horripilante de João Batista
Cf. Mt. 14:1–12; Lc. 9:7–9

14, 15. Chegou isto aos ouvidos do rei Herodes, porque o nome de
Jesus já se tornara notório; e alguns 251 diziam: João Batista ressuscitou
dentre os mortos, e, por isso, nele operam forças miraculosas. Outros
diziam: É Elias; ainda outros: É profeta como um dos profetas.
Esta história é introduzida sem nenhuma referência temporal; quer
dizer, não temos informação sobre quanto tempo depois dos eventos já
relatados, chegaram a Herodes as notícias relativas aos poderes
milagrosos que tinha Jesus. Não obstante, podemos inferir das palavras

251
Há considerável apoio textual para a versão “ele (Herodes) dizia”.
Marcos (William Hendriksen) 309
“João Batista ressuscitou dentre os mortos” aqui chegamos a um período
que se estende para além da execução de João, a qual por sua vez,
ocorreu provavelmente meses depois do começo de seu encarceramento.
É provável que o assassinato do arauto de Cristo ocorresse em, ou perto
do começo do ano 29 d.C. 252
O “Herodes” ao qual se faz referência aqui e em todas as passagens
dos Evangelhos (exceto em Mateus 2:1–19 e Lucas 1:5, onde se refere a
seu pai, “Herodes, o Grande”, ou “Herodes I”) é aquele que foi
designado tetrarca sobre a Galileia e Pereia depois da morte de seu pai.
Este Herodes esteve no cargo desde ano 4 d.C. ao ano 39 d.C. Foi filho
de Herodes, o Grande e Maltace a samaritana. Embora nos Evangelhos
(e em At. 4:27; 13:1) seja chamado simplesmente “Herodes”, em outros
lugares (veja-se, por exemplo, Josefo, Guerra Judaica I. 562) é
frequentemente chamado “Antipas”. Portanto, pode-se chamá-lo
“Herodes Antipas”.
Marcos escreve: “Chegou isto aos ouvidos do rei Herodes …”. O
título de “rei” é usado aqui em sentido indefinido, muito geral ou
popular, porque tecnicamente falando este homem não era rei e jamais
chegaria a ser (veja-se o v. 28).
O que foi que Herodes ouviu? Sentimo-nos tentados a responder:
“Ouviu a respeito da missão que Cristo encomendou os Doze e da forma
em que se desenvolveram, porque este foi o tema da seção recém-
acabada”. Não obstante, como o contexto indica, a referência é mais
ampla e está centralizada no próprio Jesus, o que é evidente pelo fato de
que Marcos diz a seguir “porque o nome de Jesus já se tornara notório”.
A seção precedente do Evangelho de Marcos nos indicou que, à voz
de Cristo, inclusive os doentes sem esperança eram curados imediata e
completamente, os leprosos eram purificados, as tempestades eram
acalmadas, os demônios eram expulsos, e uma menina que tinha morrido
252
Veja-se uma análise das prováveis data em que ocorreram os diversos eventos do ministério de
Cristo no CNT, Evangelho segundo João, Introdução III, e pp. 200, 201; também mimha Bible Survey,
pp. 59–62.
Marcos (William Hendriksen) 310
voltou à vida. Por isso, não é de estranhar que o nome e a fama dAquele
que tinha realizado tudo isto se tornou bem conhecidos. O que, sim, é
algo estranho é que tivesse transcorrido tanto tempo sem que as notícias
tivessem chegado aos ouvidos de Herodes. Uma explicação possível
poderia ser que o palácio onde ele estava então, provavelmente
Macaerus, na margem oriental do mar Morto, fosse longe demais de
Cafarnaum para que as notícias lhe tivessem chegado antes.
O rei ouviu a respeito “dos poderes milagrosos” 253 de Jesus. Os
informes que lhe chegaram representavam três opiniões:
a. Algumas pessoas 254 estavam convencidas de que Jesus era João
Batista que tinha voltado à vida. Isto pode parecer estranho, visto que as
Escrituras em nenhum lugar atribuem milagres ao Batista. Mas é
provável que este grupo tivesse João em tão alta estima, que lhe
atribuíssem a capacidade de realizar milagres.
b. Outro grupo dizia, “É Elias”. Não havia predito Malaquias a volta
de Elias (Ml. 4:5) como precursor do Messias? (cf. Is. 40:3; e veja-se
mais sobre Mc. 1:1–3).
c. Mas o terceiro grupo, sem querer ser tão definido, estava
convencido de que Jesus era um dos grandes profetas do Antigo
Testamento.
Veja-se também em 8:28.
O rei — talvez depois de alguma vacilação, a que Lucas 9:7–9 faz
referência — aceitou a primeira destas três opiniões, o que é claro pelas
palavras do versículo
16. Herodes, porém, ouvindo isto, disse: É João, a quem eu
mandei decapitar, que ressurgiu.

253
Aqui o plural de δύναμις (cf. dinamite) tem um significado ligeiramente diferente ao que tem a
mesma palavra nos vv. 2 e 5. Nestes, a referência é ao milagre (ou: milagres) mesmo; aqui no v. 14 o
significado é “poderes milagrosos” ou “o poder para realizar milagres”.
254
Embora a leitura, “Ele (Herodes) dizia” tem bastante apoio, o que segue “mas outros …” … “e até
outros …”, favorece o texto em plural (ἔλεγον em lugar de ἔλεγεν) tanto para o v. 14 como também
(duas vezes) para o v. 15.
Marcos (William Hendriksen) 311
Esta foi a resposta de sua mórbida e febril imaginação, influenciada
por uma consciência culpada. Tal como Mateus mostra, isso foi o que
disse aos seus servos.
Herodes declarou: “O homem a quem eu decapitei … ressuscitou”,
e Marcos compreende que esta declaração requer explicação e
ampliação. Portanto, aqui passa a relatar a história do encarceramento e
execução de João Batista:
17, 18. Porque o mesmo Herodes, por causa de Herodias, mulher de
seu irmão Filipe (porquanto Herodes se casara com ela), mandara
prender a João e atá-lo no cárcere. Pois João lhe dizia: Não te é lícito
possuir a mulher de teu irmão.
Antes de entrar nos detalhes desta narração, viria bem ao caso uma
observação referente à contribuição de Marcos. Admiramos a brevidade
de Lucas e a reserva de Mateus. Na realidade, Lucas 9:7–9 apresenta o
que poderia ser uma etapa no marco histórico. Toca brevemente em
alguns pontos: a admissão de Herodes (“eu decapitei a João”), sua
confusão mental (“Quem, pois, é este, de quem ouço tais coisas?”), seu
anelo (“E procurava ver a Jesus”). Se compararmos Mt. 14:3–12 com o
relato de Lucas, podemos dizer que Mateus proporciona um resumo
completo dos eventos que conduzem à morte do Batista, com ênfase na
palavra completo; e se for comparado com o relato de Marcos, trata-se de
um resumo, com a ênfase na palavra resumo. Para conhecer a história de
forma mais detalhada devemos ir a Marcos (Mc. 6:17–29). Somente aqui
diz-se claramente o que em Mateus se insinua, quer dizer, que Herodes
se casou com Herodias, a esposa de seu irmão Filipe. Somente aqui se
informa sobre a ira de Herodias contra o Batista (“Herodias o odiava,
querendo matá-lo”), porque denunciou esta relação incestuosa e adúltera
em termos valentes e inconfundíveis.
Por acaso existe em todo o Novo Testamento uma só passagem que
retrate mais vivamente a raivosa tormenta na consciência de um
governante? Vejam-se os vv. 19b, 20. E quanto ao desenlace da
narração, comparem-se as cinco citações diretas (nos vv. 22b–25) com a
Marcos (William Hendriksen) 312
única citação direta de Mateus (Mt. 14:8). Indubitavelmente, cada
Evangelho tem uma beleza que lhe é própria. Todos são completamente
inspirados. Seria precipitado elogiar um Evangelho sobre outro. A
reserva de Mateus harmoniza tão bem com o propósito que o guia como
o é a afeição de Marcos pelos detalhes vivos, refletindo indubitavelmente
o ensino de uma testemunha ocular, o efervescente Pedro. Mas louvado
seja o Senhor por ter dado à igreja, em Sua sabedoria, não só Mateus,
Lucas e João, mas também o homem que como narrador de histórias
ocupa o primeiro lugar entre os quatro, ou seja, João Marcos!
“Porque, por ordem de Herodes, João tinha sido detido …”. se
poderia dizer também, “Porque, Herodes tinha ordenado — ou fez com
que João fosse detido, 255 preso, e lançado no cárcere”.
Tudo isto sucedeu “por causa de Herodias”. Quem era esta
Herodias? Era a filha de Aristóbulo, filho de Herodes o Grande e
Mariamne I. Herodias se casou com seu tio Herodes Filipe (que por sua
vez era meio-irmão do pai dela). Filipe era filho de Herodes, o Grande e
Mariamne II. Deste Herodes Filipe, Herodias teve uma filha, a qual em
Mc. 6:22 é chamada simplesmente “a filha de Herodias”, mas Josefo a
chama Salomé (Antiguidades XVIII. 136).
Agora, Herodes Antipas, numa visita que fez a Herodes Filipe,
apaixonou-se por Herodias. Para poder casar-se, os amantes ilícitos
combinaram em separar-se de seus respectivos cônjuges, Herodias se
separaria de Herodes Filipe, e Herodes Antipas da filha de Aretas, rei
dos árabes nabateus. Assim o fizeram. Quando João Batista se inteirou

255
Junto com muitas traduções, não é necessário reter a palavra “enviado”; por exemplo: “Porque
Herodes tendo enviado, prendeu João …”. Ou: “Porque este mesmo Herodes tendo enviado e detido a
João …”.
Primeiro, αὑτός aqui pode considerar-se pleonástico, meramente para voltar para o que se estava
dizendo (veja-se o v. 16). O idioma grego o usa onde usualmente nós não o usaríamos. E quanto a
“enviado”, no original os verbos com significado de enviar, quando se usam com relação a outros
verbos, com frequência indicam que uma pessoa realiza um ato por instrução de outra. Cf. Mt. 2:16,
“Tendo enviado a matar as crianças” = “Herodes fez matar as crianças”. Mt. 14:10, “Tendo enviado,
decapitou a João” = “Fez decapitar a João”. Veja-se também BAGD, p. 98.
Marcos (William Hendriksen) 313
disso, repreendeu a Herodes Antipas. Continuamente dizia a Herodes,
“Não te é lícito possuir a mulher de teu irmão”. Havia boas razões para
esta repreensão, porque semelhante casamento além de incestuoso (Lv.
18:16; 20:21) não era também adúltero (Rm. 7:2, 3)?
Naturalmente que Herodias sabia muito bem que sempre que João
repreendia o Tetrarca, por implicação também estava denunciando o a
ela. De modo que para satisfazê-la, Herodes tinha detido, preso, e
lançado João no cárcere.
Mas Herodias não estava satisfeita com o encarceramento de João.
O que desejava intensamente era nada menos que o assassinato de João.
Mesmo estando na prisão, João Batista era chamado para apresentar-se
diante de seu “marido” vez após vez. Ela provavelmente temia que
Herodes sucumbisse diante do poder das palavras de João e quem sabe o
que poderia suceder se as palavras, “Não te é lícito possuir a mulher de
teu irmão” continuavam ressoando nos ouvidos do adúltero!
Entretanto, seu anelo de conseguir que seu marido terminasse com
João não teve êxito imediato:
19, 20. E Herodias o odiava, 256 querendo 257 matá-lo, e não podia.
Porque Herodes temia a João, sabendo que era homem justo e santo, e o
tinha em segurança. E, quando o ouvia, ficava perplexo, 258, 259 escutando-
o de boa mente.
Vários elementos conformavam o estado mental de Herodes,
segundo se descreve aqui:

256
Ou: guardava-lhe ressentimento.
257
O modismo grego ἐνεῖχεν αὑτῷ assemelha à nossa expressão “jurar-se o a um”.
258
De acordo com outra leitura: fez muitas coisas.
259
Embora tanto πολλὰ ἐποίει (“fazia muitas coisas”) como πολλὰ ἠπόρει (“ficava extremamente
perplexo”) têm amplo apoio textual, estou a favor de ἠπόρει, que está em harmonia mais estreita com
o contexto. O rei se achava evidentemente num apuro: sua consciência atirando de um lado; sua
esposa do outro. A psicologia da situação daria preferência a ἠπόρει sobre ἐποίει. Veja-se Vincent
Taylor, Op. cit., pp. 313, 314.
Marcos (William Hendriksen) 314
a. Desejo de estar em paz com Herodias. Por causa dela tinha
acorrentado João e o havia encerrado numa terrível, profunda, e calorosa
masmorra que formava parte do castelo-palácio em Macaerus.
b. Temor reverente na presença de João. Herodes sabia que João
não só era “inocente” de qualquer crime, mas também que era uma
pessoa muito excelente, “justa”, quer dizer, objeto da aprovação de
Deus, e “santa”, quer dizer, um homem de conduta irrepreensível,
separado e consagrado a Deus e ao Seu serviço.
c. Alegria cada vez que escutava a João. Poderia dizer-se: “O
governante admirava o seu acusador”. Esta admiração talvez se devia ao
fato de que João não era como os aduladores que usualmente se acham
na companhia dos governantes; aqui havia um homem que se atrevia a
falar o que pensava. Era a eloquência humana de João a que fazia com
que o tetrarca o escutasse com agrado? Era por isso que cuidava a
segurança de João, 260 a fim de que Herodias não pudesse danificá-lo?
d. Sentido de culpa. Herodes sabia muito bem que havia pecado
repudiando a sua própria esposa, roubando a mulher de seu irmão e
casando-se com ela, mantendo-a como sua esposa e fazendo com que o
acusador, João Batista fosse detido, preso, e posto no cárcere. Para
resumir, o homem sabia que estava sufocando a voz de sua consciência.
O resultado de tudo isto foi sua:
e. Perplexidade. Estava “extremamente perplexo”, “terrivelmente
perturbado”. Em seu muito interessante e instrutivo livro, Souls in the
Making (Nova York, 1930, p. 114), John G. Mackenzie afirma que “as
piores formas de desordem mental funcional brotam de uma consciência
reprimida”.
Também Davi, confuso após ter cometido pecados igualmente
escandalosos, incluindo o adultério, não só relata a experiência de achar-

260
Note-se a palavra συνετήρει. É o perfectivo de τηρέω, guardar. A forma composta pode significar
conservar, como em Mt. 9:17; “ambos se conservam”. Em Lc. 2:19 o significado é “entesourar” na
memória (literalmente “em seu coração”).
Marcos (William Hendriksen) 315
se em semelhante estado de sentido de horrível culpa, mas também
mostra a solução verdadeira:
Enquanto rebelde a culpa ocultava
Minha força morria por dura aflição,
Sua mão divina meu ser pressionava,
Fugia o repouso de meu coração.
Mas eu compreendendo minha grande rebelião,
Deixei de ocultar e assim de fingir,
E já confessando minha vil transgressão,
Deu-me perdão, voltou meu viver.
Tradução adaptada do Salmo 32, estrofe 5, que se encontra no
Psalter Hymnal (edição centenária) da Igreja Cristã Reformada (Grand
Rapids, 1959).
Mas Herodes Antipas recusou seguir o exemplo da humilde
confissão que fez Davi. Pelo contrário, endureceu-se e como
consequência não prosperou (Pv. 28:13). O próprio fato de que este
assassino não se arrependesse nem sequer depois de ouvir falar a respeito
de Jesus, mostra quão longe se apartou da caminho da justiça e da
verdade. Na realidade, nunca decidiu andar por aquele caminho. Negros
pressentimentos obscureciam sua mente quando com relação aos
rumores a respeito de Jesus, exclamou, “É João, a quem eu mandei
decapitar, que ressurgiu”. Quando enfim o desejo de Herodes de ver
Jesus (Lc. 9:9b) cumpriu-se, menosprezou e escarneceu Aquele que
sofreu em silêncio (Lc. 23:8–12). Quanto ao que sucedeu a Herodes
depois, veja-se sobre o v. 28.
Segundo o descrito até os versículos 17–20, Herodias tinha
fracassado em persuadir a Herodes para que matasse João Batista. Mas,
enfim, chegou o que ela deveu considerar seu “dia de sorte”:
21–23. E, chegando um dia favorável, em que Herodes no seu
aniversário natalício dera um banquete aos seus dignitários, aos oficiais
militares e aos principais da Galiléia, entrou a filha de Herodias e,
dançando, agradou a Herodes e aos seus convivas. Então, disse o rei à
Marcos (William Hendriksen) 316
jovem: Pede-me o que quiseres, e eu to darei. E jurou-lhe: Se pedires
mesmo que seja a metade do meu reino, eu ta darei. 261
O dia do aniversário de Herodes era “oportuno” ou “adequado”
porque se prestava de maneira perfeita para o propósito que Herodias
tinha em mente, ou seja, ajustar contas com João Batista e assegurar-se
de que não seria rejeitada. Esta era sua “oportunidade” de ouro.
O “jantar” que prepararam para aquele dia de celebração era,
naturalmente, de natureza festiva; portanto poderia ser chamado um
“banquete”. Segundo Marcos, os convidados eram de três classes: a. Os
“altos oficiais civis”, de forma mais literal os grandes ou magnatas; b.
Os “quiliarcas”, assim diz literalmente; seu significado básico é aquele
que está a cargo de mil homens, mas o sentido mais geral de “tribunos
militares ou comandantes” é provavelmente aquele que devemos
recolher; e c. “os principais homens da Galileia”, certamente aqueles
amigos de Herodes socialmente proeminentes mas sem posição oficial
no civil nem no militar.
Se o que sucedeu neste banquete foi similar ao descrito em Ester
1:10, 11, Salomé entrou e dançou “estando o coração do rei alegre do
vinho”, e por conseguinte rumo ao final do banquete.
Podemos imaginar a forma erótica e insinuante em que a seminua
moça dançou. E seu padrasto era um Herodes típico, segundo seu próprio
casamento — se assim pode chamar-se — com Herodias o prova. Os

261
Note-se o seguinte:
a. O original tem dois genitivos absolutos: o primeiro é temporal: γενομένης ἡμέρας εὑκαίρου,
“tendo chegado um dia oportuno”; o segundo é circunstancial: εἰσελθούσης τῆς θυγατρὸς αὑτῆς τῆς
‘Ηρωδιάδος καὶ ὀρχησαμένης, “a filha de Herodias mesma tendo entrado e dançado”.
b. O plural τοῖς γενεσίοις αὑτοῦ significa “no dia das festividades de seu aniversário”; em
consequência, “em seu aniversário”. O plural idiomático pode ser devido às muitas atividades de
semelhante dia. Cf. CNT sobre Mt. 22:2.
c. Quanto a αὑτοῦ ou αὑτῆς do v. 22, se se aceitar sem reparos a regra de que entre duas leituras que
têm apoio igualmente forte, deve-se aceitar a mais difícil, αὑτοῦ deve ser então a preferida. A moça,
de acordo com isto, é a filha de Herodes Antipas. Seu nome é Herodias. Mas, conforme assinalaram
muitos comentaristas, isto é contrário ao contexto. Portanto, junto com a maioria dos tradutores e
expositores adoto o texto αὑτῆς contra o texto adotado pelo CNT.
Marcos (William Hendriksen) 317
convidados seriam homens do mesmo tipo. Não é de estranhar que tanto
o “rei” como os convidados ficassem encantados. Olhavam-na com
deleite voluptuoso.
Terminada a dança, impulsivamente Herodes diz à moça: “Pede-me
o que quiseres, e eu to darei”. Como ela vacilou, ele rapidamente repetiu
sua promessa, desta vez sob juramento: “Se pedires mesmo que seja a
metade do meu reino, eu ta darei.”
Provavelmente não é aconselhável interpretar a frase “mesmo que
seja a metade do meu reino” de forma muito literal. A verdade é que o
tetrarca não era rei de modo algum e, portanto, não tinha reino que dar.
Mas esta frase — cf. Et. 5:3; 7:2 — provavelmente deve interpretar-se de
forma proverbial. Era um tipo de hipérbole, de modo que o que Herodes
realmente quis dizer foi algo assim, “Eu te darei qualquer coisa que me
pedires, não importa o que me custar”.
24, 25. Saindo ela, perguntou a sua mãe: Que pedirei? Esta
respondeu: A cabeça de João Batista. No mesmo instante, voltando
apressadamente para junto do rei, disse: Quero que, sem demora, me dês
num prato a cabeça de João Batista.
A intriga se desenvolve tal como se a própria Herodias não só
tivesse planejado cada detalhe, mas também inclusive como se ela
tivesse estado movendo também todos os fios. Suas esperanças mais
acariciadas quanto ao que poderia suceder se sua filha dançava, viram-se
totalmente realizadas.
Naturalmente, a mãe da moça não estava comendo com os homens;
mas rapidamente ouviu o sucedido. O relatório de Salomé à sua mãe
conclui com a pergunta, “O que lhe peço?” 262 Bruscamente sua mãe
responde, “A cabeça de João Batista”.

262
Há alguns (por exemplo Lenski, Op. cit., p. 162) que sublinham a distinção entre a. a ordem
alentadora do “rei”: aor. imper. ativo αἴτησον do v. 22 (note-se também o aor. subj. ativo no v. 23:
αἰτήσῃς e b. a pergunta da moça: aor. subj. voz média τί αἰτήσωμαι do v. 24, que então se traduz, “O
que pedirei para mim mesma?”. Embora esta distinção possa ser válida, de maneira nenhuma é certa;
veja-se Tg. 4:2, 3 onde o mesmo verbo usa-se em ambas as vozes, mas com muito pouca diferença de
Marcos (William Hendriksen) 318
Sem perder um instante, a filha, com passos impacientes, volta ao
generoso e dissoluto governador, e ultrapassa a sua mãe em insolência
descarada e imaginativa. Diz sem consideração alguma, “Quero que, sem
demora, 263 me dês num prato 264 a cabeça de João Batista”. Ela a queria
aqui (Mt. 14:8) e sem demora (Mc. 6:25). Este é o desejo da filha. É
também o desejo da mãe. Mãe e filha formam um dueto perfeito … de
crueldade! Aqui e agora deve-se cometer o assassinato, porque não deve
haver para João oportunidade de escapar, nem oportunidade tampouco
para que o “rei” escape do laço em que ele mesmo se enredou.
26–28. Entristeceu-se profundamente o rei; mas, por causa do
juramento e dos que estavam com ele à mesa, não lha quis negar. E,
enviando logo o executor, mandou que lhe trouxessem a cabeça de João.
Ele foi, e o decapitou no cárcere, e, trazendo a cabeça num prato, a
entregou à jovem, e esta, por sua vez, a sua mãe.
O rei estava “angustiado”, diz Mateus (Mt. 14:9); “entristeceu-se
profundamente” ou “profundamente triste” diz Marcos. Poderia
perguntar-se: “Quais eram as razões destes tormentos emocionais?”. Para
responder, os seguintes pontos merecem uma consideração:
a. Herodes sempre tinha estimado a João, e muito o inquietava a
ideia de matá-lo. Sua consciência lhe dizia (veja-se v. 20) que assassinar
a João, que não só era inocente, mas também justo e santo, era um crime
terrível. 265

significado, se é que existe alguma. ᾐτήσατο aquí en 15:43 es aor. ind. voz media, 3a. pers. sing. del
verbo αἰτεω.
263
ἐξαυιῆς = ἐξαυτῆς τ. ὥρας, nesta mesmíssima hora (ou: momento), quer dizer, o mais breve
possível.
264
“numa bandeja” também em Mt. 14:8. O substantivo πίναξ pode-se traduzir também “prato”; cf.
“tábua de pinheiro”. Em grego πίναξ significa um tabuleiro ou mesa.
265
Calvino aborda o problema da aparente contradição entre Mateus 14:5 (“E, querendo matá-lo,
temia o povo …”) e Marcos 6:19, 20 (“E Herodias o odiava, querendo matá-lo, e não podia. Porque
Herodes temia a João, sabendo que era homem justo e santo, e o tinha em segurança”) da seguinte
maneira: “A primeira passagem diz que Herodes estava desejoso de perpetrar o horrível assassinato,
mas se refreava devido ao seu temor ao povo; enquanto que a segunda passagem culpa só a Herodias
desta crueldade”. Sua solução: Embora desde o começo a própria Herodias desejava que João fosse
assassinado, Herodes sentia-se refreado por sua consciência (quer dizer, por “seus escrúpulos
Marcos (William Hendriksen) 319
b. Estava consciente de que o povo em geral tinha João por profeta.
Portanto, devia perguntar-se, “O que pensará o povo de mim, se
conceder a Salomé seu grande desejo?” (veja-se Mt. 14:5).
c. Também devia notar que sua esposa o havia apanhado com
astúcia naquela situação difícil e que ela, afinal de contas, sair-se-ia bem
dessa situação.
Poderia aduzir-se que a forma de sair desta complicação teria sido
dizer a Salomé, “Eu prometi te favorecer com um presente; não prometi
cometer um crime”. Ou talvez, “Eu te fiz a promessa de um presente a ti,
não à tua mãe”. A melhor forma de escapar é a de Lv. 5:4–6.
Mas o obstinado orgulho de Herodes, seu temor de ficar mal diante
de seus camaradas, os convidados que tinham ouvido sua promessa
respaldada com juramento, impediu-o de dizer: “Como, pois, faria eu
este grande mal e pecaria contra Deus?” (Gn. 39:9). O orgulho conseguiu
vencer qualquer outra consideração, incluindo a voz da consciência. De
modo que ordenou a um de seus guardas, a um verdugo, 266 que lhe
trouxesse a cabeça de João. Como a prisão onde João estava era com
toda probabilidade parte do palácio de Macaerus (assim também segundo
Josefo, Antiguidades XVIII. 119), o verdugo não teve que ir muito longe.
Decapitou João e, conforme o pedido, levou à jovem a cabeça de João
numa bandeja, e ela a deu à sua mãe.
Quanto aos resultados dos perversos atos de Herodes (rejeitando a
sua própria esposa, casando-se com Herodias e assassinando a João),
note-se o seguinte:

religiosos”) “de cometer esta atrocidade tão cruel contra um profeta de Deus”. Entretanto, depois,
“desfez-se deste temor de Deus, como resultado da insistente pressão de Herodias”. Mas inclusive
mais tarde, “conteve-se por uma nova razão, quer dizer, temeu que se produzisse uma revolta popular
em seu próprio prejuízo”. Veja-se João Calvino, Commentary on a Harmony of the Evangelists,
Matthew, Mark, and Luke, (trad. de Commentarius in Harmoniam Evangelicam, Opera Omnia, Grand
Rapids, 1949ss.), Vol. II, pp. 222, 223. daqui em adiante se fará referência a este comentário como,
Harmony de Calvino.
266
O original serve-se de uma palavra latina: “speculator” (cf. speculor: vigiar, espiar), basicamente
um espião ou explorador, mas às vezes significa verdugo — veja-se Sêneca, On Benefits III, 25.
Quanto a ἀποστείλας (v. 27) veja-se sobre o v. 17, nota 257.
Marcos (William Hendriksen) 320
a. O crescente descontentamento de muitos judeus.
b. A ira do rei Aretas, pai da esposa rejeitada por Herodes.
Aretas se sentiu profundamente ofendido pelo que Herodes fez à
sua filha. Portanto, declarou-lhe a guerra e “na batalha que se livrou todo
o exército de Herodes foi destruído” (Josefo, Antiguidades XVIII, 114,
116, 119, para os pontos a. e b.).
c. Desterro.
Mais tarde, Herodes Antipas deixou persuadir-se por Herodias para
ir a Roma a fim de ser elevado à posição de rei, a mesma posição que se
tinha concedido ao seu irmão Herodes Agripa I. Entretanto, quando este
último informou ao imperador Calígula a respeito do complô que o
aspirante tramava contra ele, a consequência para o conspirador foi o
desterro perpétuo a Lyon, na Gália.
A história de João Batista conclui da seguinte maneira:

29. Os discípulos de João, logo que souberam disto, vieram,


levaram-lhe o corpo e o depositaram no túmulo.
Quanto aos discípulos de João, veja-se sobre Mc. 2:18; também
CNT sobre Mt. 11:1–3, e em Jo. 3:25, 36.
Por Mateus 11:2ss., sabemos que a estes homens tinha sido
permitido visitar seu mestre no cárcere. Não é estranho, então, que lhes
fosse permitido dar enterro honroso ao seu corpo decapitado.
O que aconteceu com os discípulos de João? Por João 1:35, 40 é
evidente que alguns dos primeiros discípulos de Cristo tinham sido
anteriormente discípulos de João. Muitos dos outros discípulos de João
Batista devem ter seguido o mesmo exemplo. Também eles tinham
chegado a ser seguidores de Jesus, que era exatamente o que João,
estando ainda vivo, desejava que fizessem (Jo. 3:22–30). A conclusão
que se pode tirar de Mateus 14:12 (“depois, foram e o anunciaram a
Jesus”) é que naquele momento também seus discípulos tinham relações
amistosas com Jesus; na realidade, creram nEle. Embora seja verdade
que mais de vinte anos mais tarde houve em Éfeso — portanto, muito
Marcos (William Hendriksen) 321
longe da Palestina — certos seguidores de Jesus, incluindo inclusive a
Apolo, que “conheciam só o batismo de João” (At. 18:24, 25; 19:1–5), e
que não tinham ouvido a respeito do derramamento do Espírito Santo, é
um fato também que quando aqueles homens receberam mais instrução,
estiveram preparados imediatamente para receber o batismo cristão.
Por conseguinte, não pode existir dúvida de que foi João quem
verdadeiramente preparou do caminho para Cristo, tal como havia
predito ele (Mt. 11:11–13; 17:10–13; Mc. 1:1–3, 7, 8; 9:11–13; Jo. 1:29–
34). Em Atos 19:4, Paulo sugere o mesmo.
Quanto a João Batista e o movimento de Qumran, veja-se CNT
sobre Mateus, p. 529.

Mc. 6:30–44 - A alimentação dos cinco mil


cf. Mt. 14:13–21; Lc. 9:10–17; Jo. 6:1–14

Os quatro evangelistas relatam este acontecimento: as semelhanças


e as diferenças estão resumidas nas páginas que seguem.

1. Descrição das circunstâncias

30. Voltaram os apóstolos à presença de Jesus e lhe relataram


tudo quanto haviam feito e ensinado.
Depois de realizar sua viagem missionária (vv. 7–13), os Doze se
acham reunidos ao redor de Jesus. Como em Mc. 3:14, aqui Marcos
chama estes homens de “apóstolos”. Devem ser considerados como
instrumentos por meio dos quais o próprio Jesus está realizando Sua obra
na terra. São os Seus embaixadores oficiais, a quem comissiona para
levar a cabo certas tarefas específicas: pregar, curar e expulsar demônios.
Aquele que os rejeita, rejeita o próprio Cristo (Mt. 10:40; Lc. 10:16; Jo.
13:20). É nesta qualidade de “apóstolos” que eles desenvolveram seu
trabalho na excursão que aqui termina. Portanto, o termo “apóstolos”
(também em Mc. 3:14) é perfeitamente adequado.
Marcos (William Hendriksen) 322
O relatório que estes homens apresentaram a Jesus ao voltar, deve
ter sido emocionante: “informaram-lhe tudo o que tinham feito e tudo o
que tinham ensinado”, assim é literalmente.
Nos últimos meses tinham estado sucedendo muitas coisas: Tinham
assassinado cruelmente a João. Seu corpo decapitado tinha sido
sepultado. Jesus tinha sido informado disto. Herodes perturbou-se
grandemente quando ouviu a respeito dos milagres de Cristo. Iam e
vinham todo tipo de rumores quanto à identidade de Jesus. O “rei” tinha
admitido um destes rumores como verdadeiro e dizia, “É João, a quem
eu mandei decapitar, que ressurgiu”. Os discípulos-apóstoles tinham sido
enviados à uma viagem missionária e já tinham voltado.
Tudo isto tinha tomado tempo. Não é de estranhar, portanto, que o
milagre da alimentação dos cinco mil, descrito aqui em Mc. 6:30–44
(especialmente nos vv. 35–44) ocorresse quando a Páscoa estava
próxima, provavelmente em abril do ano 29 d.C. como é claro por João
6:4. O grande ministério galileu que provavelmente se estendeu desde
dezembro do ano 27 d.C. até mais ou menos abril do 29 d.C. estava
chegando ao seu final.

A alimentação dos cinco mil


Mt. 14:13–21 Mr. 6:30–40 Lc. 9:10–17 Jn. 6:1–14
Jesus ouve o Jesus ouve o
1. Indicam-se as relatório da relatório dos Doze, Parecido com “Depois destas
circunstâncias Morte de João. ao retornar eles de Marcos. coisas”.
sua viagem
missionária.
Retira-se Convida os Doze a Jesus (implícito:
(implícito: com acompanhá-lo a Jesus leva os com seus
2. A necessidade os seus um lugar solitário, Seus discípulos a discípulos) dirige-
de repouso discípulos) a um para descansar. Betsaida. se ao outro lado do
lugar solitário. Vê-os saindo num mar de Tiberíades.
barco.
As multidões O As multidões Jesus já chegou, e
3. A interrupção seguem a pé caminham Parecido com de uma colina vê
do repouso desde os depressa pela Mateo. multidão que se
povoados parte superior do aproxima. A
lago para estar Páscoa se
Marcos (William Hendriksen) 323
com Jesus. aproxima.
Jesus, tendo já O tenro Pastor, Jesus recebe as
4. A compaixão chegado, sai de tendo saído, pessoas, fala-lhes
manifestada seu retiro, é compadece-se do a respeito do Não se aparece
movido pela povo, as ovelhas, reino de Deus, e com João.
compaixão e cura e lhes ensina. cura seus doentes.
os doentes.
Aproxima-se o Jesus conversa
fim do dia, o com Filipe e
5. Antecipa-se a povo necessita André a respeito
fome alimento. Parecido com Parecido com de como
Os discípulos Mateus. Mateus e Marcos. alimentar as
querem que Jesus pessoas. O rapaz
despeça as com cinco pães
pessoas, para que de cevada e dois
possam comprar peixes.
alimento.
6. As ordens Jesus aos Parecido com Parecido com Jesus disse,
emitidas discípulos: Mateus. Mateus e Marcos. “Fazei recostar às
Adições Ligeiras pessoas”. E havia
a. aos discípulos “Dai-lhes vós de principais: variações: muita erva
comer”. Eles: a. Pergunta dos a. Discípulos a naquele lugar. E
“Tudo o que discípulos, Jesus, “Não se recostaram
temos aqui é “Compraremos temos mais que como em número
cinco pães e dois pão com duzentos cinco pães e dois de cinco mil
peixes”. denários?” peixes a menos homens.
que vamos
b. às pessoas Então ordena b. Jesús ordena as comprar pão para
às pessoas sentar- pessoas a sentar toda esta gente”.
se na grama. “em grupos”. Lucas acrescenta:
c. Reclinam-se Porque havia uns
em grupos de cinco mil
cem e de homens.
cinquenta. b. Jesus aos
discípulos:
“Fazei-os
sentar em grupos
de cinquenta en
cinquenta”.
Jesus toma os Parecido com
cinco pães e os Mateus. Parecido com
dois peixes, dá Marcos Parecido com Mateus e Marcos,
7. Realiza-se um graças, parte os acrescenta, “e ele Mateus. exceto pelo fato
milagre pães e os dá aos dividiu os dois de que os
discípulos, peixes com todos discípulos não se
Marcos (William Hendriksen) 324
aqueles que os eles”. mencionam como
distribui entre a os que
multidão. Todos distribuem.
comem até saciar-
se.

Recolhem-se Parecido com Jesus manda Seus


doze cestos de Mateus. discípulos recolher
pedaços. Havia Exceções: os pedaços que
8. Recolhe-se o cinco mil a. Além dos sobravam, para que
Lucas é breve: e
nada se perca.
que sobrou homens, sem pedaços de pão, eles recolheram o Resultado: doze
contar as Marcos menciona que sobrou, doze cestos cheios.
mulheres nem as também os cestos de Reação do povo: a.
crianças. (pedaços de) pedaços. “Este realmente é o
peixes que foram profeta que havia
recolhidos. de vir ao mundo”.
b. Omite toda b. queriam tomar a
menção de Jesus à força para
fazê-lo rei. Ele Se
mulheres e
retira para o monte.
crianças.

2. Necessidade de repouso
31, 32. E ele lhes disse: Vinde repousar um pouco, à parte, num
lugar deserto; porque eles não tinham tempo nem para comer, visto
serem numerosos os que iam e vinham. Então, foram sós no barco 267 para
um lugar solitário.
Jamais dará resultado trabalhar sem descanso. Não funciona estar
ocupado sem nunca tirar férias, realizando todas as árduas tarefas do
ministério ou a obra missionária, e sem deter-se para repousar, para
analisar com calma, para orar e meditar. Também Jesus, por causa de
Sua natureza humana e do grande peso que tinha tomado sobre seus
ombros, necessitava períodos de retiro (Mc. 1:35). E estando inteiramente
consciente das necessidades de Seus discípulos, convidou-os a ir com
Ele a um lugar afastado, isolado, onde pudessem “descansar”. 268

267
Ou: de navio.
268
ἀναπαύσασθε aor. imper. med. 2ª. pes. plur. de ἀναπαύω. Cf. um significado algo similar deste
verbo em Mt. 11:28; 26:45; Mc. 14:41; Lc. 12:19; 1Co. 16:18; 2Co. 7:13; e Fm. 7.
Marcos (William Hendriksen) 325
O que fazia com que esta fosse uma necessidade muito urgente, era
que havia pessoas que constantemente iam e vinham, e que esta multidão
turbulenta e exigente tornava impossível inclusive encontrar tempo para
comer. Resultado: “sozinhos”, quer dizer, Jesus, os Doze, e ninguém
mais, partiram para um lugar nos arredores de Betsaida Júlias (veja-se
Lc. 9:10 e CNT sobre Jo. 6:1). Cruzaram a parte nordeste do mar “no
barco”. Era este o barco mencionado em Mc. 3:9; 4:1; 5:2? Ou é este um
caso onde o artigo grego não deve ser traduzido, de modo que a tradução
correta seja “em barco”, em lugar de “no barco”? A passagem paralela
de Mateus 14:13 pareceria favorecer o último ponto de vista, mas os dois
casos são possíveis e podem ser citadas excelentes traduções com ambas
as opiniões.

3. Interrupção do repouso
33. Muitos, porém, os viram partir e, reconhecendo-os, correram
para lá, a pé, de todas as cidades, e chegaram antes deles 269 .
Muitas pessoas da região de Cafarnaum não só viram o barco, mas
também, além disso, reconheceram os seus ocupantes. Chegaram à
conclusão correta, quer dizer, que Jesus Se afastava deles. Isto não era o
que desejavam, de modo algum. O que fazer em tal situação? Segui-los
em outros barcos — os quais se mencionam em Mc. 4:36; cf. Jo. 6:23,
24? Por alguma razão, naquele momento concreto os outros barcos não
estavam disponíveis.
De modo que em vez de esperar até que estivessem à disposição,
em seu afã para ver Jesus, aquela gente começou a correr pela margem
norte do lago. Para eles a distância total era de uns dezesseis
quilômetros. A trajetória reta em barco era uma distância de uns seis
quilômetros. Quem atracou primeiro ao porto que estava a pouca
distância do ponto onde o rio Jordão, que vem do norte, desemboca no
mar da Galileia? O pequeno grupo (Jesus e os Doze) ou a multidão?

269
Ou: deixaram-nos atrás, avantajaram-nos; ou: lhes adiantaram.
Marcos (William Hendriksen) 326
Segundo a maioria das traduções, a multidão foi a primeira em
chegar. Com ligeiras variações quanto às palavras, o versículo 33b em
geral se traduz: “Eles correram a pé de todas as cidades e chegaram ali
antes que eles (quer dizer, antes que Jesus e os Doze)”. Cf. VP, CI, NVI,
RA.
Por certo que nem todos os tradutores e expositores estão satisfeitos
com esta tradução.
Os seguintes fatos merecem ser considerados:
a. Embora a maioria dos tradutores baseiam sua versão 270 num texto
que é provavelmente o correto, existe certo grau de dúvida.
b. Mesmo quando aceitemos tal texto (como provavelmente
deveríamos fazê-lo), Marcos 6:33 seria a única passagem do Novo
Testamento em que o verbo em questão significa “chegou primeiro (ou:
antes)”. O verbo aparece com diversos significados em outras passagens:
Mt. 26:39; Mc. 14:35; Lc. 1:17; 22:47; At. 12:10, 13; 20:5, 13; 2Co. 9:5.
c. Com um ponto de partida e de chegada igual para ambos, e
considerando que o trajeto para o barco era de uns seis quilômetros em
linha reta, conquanto para os que iam a pé era um arco de uns dezesseis
quilômetros, o barco naturalmente chegaria primeiro. Isto é válido
especialmente no caso presente por causa de certas limitações adicionais
para os que viajavam a pé: (1) deviam cruzar o Jordão e o difícil terreno
contíguo, e (2) havia também mulheres e crianças (Mt. 14:21).
Naturalmente, é possível que os navegantes tivessem que fazer frente a
condições climatológicas desfavoráveis, mas nada disto diz o texto.
d. Se Marcos tivesse querido dizer que a multidão tinha chegado
primeiro, não teria usado uma linguagem mais clara para expressar este
pensamento? Veja-se p. ex., Jo. 20:4, “Mas o outro discípulo correu mais
depressa que Pedro, e chegou … primeiro.”

270
καὶ προῆλθον αὑτούς.
Marcos (William Hendriksen) 327
b. Mesmo quando aceitemos tal texto (como provavelmente
deveríamos fazê-lo), Marcos 6:33 seria a única passagem do Novo
Testamento em que o verbo em questão significa “chegou primeiro (ou:
antes)”. O verbo aparece com diversos significados em outras passagens:
Mt. 26:39; Mc. 14:35; Lc. 1:17; 22:47; At. 12:10, 13; 20:5, 13; 2Co. 9:5.
c. Com um ponto de partida e de chegada igual para ambos, e
considerando que o trajeto para o barco era de uns seis quilômetros em
linha reta, conquanto para os que iam a pé era um arco de uns dezesseis
quilômetros, o barco naturalmente chegaria primeiro. Isto é válido
especialmente no caso presente por causa de certas limitações adicionais
para os que viajavam a pé: (1) deviam cruzar o Jordão e o difícil terreno
contíguo, e (2) havia também mulheres e crianças (Mt. 14:21).
Naturalmente, é possível que os navegantes tivessem que fazer frente a
condições climatológicas desfavoráveis, mas nada disto diz o texto.
d. Se Marcos tivesse querido dizer que a multidão tinha chegado
primeiro, não teria usado uma linguagem mais clara para expressar este
pensamento? Veja-se p. ex., Jo. 20:4, “Mas o outro discípulo correu mais
depressa que Pedro, e chegou … primeiro.”
Se for adotada a tradução “e (as pessoas) chegaram ali antes deles”
ou “chegaram primeiro”, é difícil ver como se pode evitar a conclusão de
que Marcos 6:33 contradiz a Mateus 14:13, 14; Lucas 9:11; e João 6:3,
5. Mateus, Lucas e João, os três, descrevem a Jesus desembarcando antes
da chegada da grande multidão. Esta O segue depois. Ele chega ali e
sobe à colina, permanece sozinho com Seus discípulos por um curto
tempo, e logo vê a uma multidão na margem e sai ao seu encontro.
Não é de estranhar, portanto, que se tenham sugerido outras
traduções: “e (os caminhantes) se adiantaram” (NBE). Assim traduzido,
não existe problema. O que Marcos diz deve receber inteira justificação.
É, além disso, muito compreensível. Por causa de seu anelo por estar
Marcos (William Hendriksen) 328
271
com Jesus, a multidão começa a correr para lugar, tão rápido, que por
um momento realmente ultrapassa o barco em velocidade, e talvez vai
mais adiantada que ele. Mas isto não significa necessariamente que a
multidão chegasse ali antes que Jesus e os Doze.
Um fato digno de especial atenção é o seguinte: Em grande parte o
Mestre e Seus discípulos não obtêm o repouso ou descanso que
buscavam. Descansaram um pouco, porque Jesus e os Doze parecem ter
estado juntos por um curto tempo, embora esta trégua viu-se muito
diminuída.
Como reage Jesus diante da interrupção de Seu descanso? A
resposta se acha em:

4. Manifestação de compaixão
34. Ao desembarcar, viu Jesus uma grande multidão e
compadeceu-se deles, 272 porque eram como ovelhas que não têm
pastor. E passou a ensinar-lhes muitas coisas.
Os que no versículo 33 traduz “chegaram antes que eles” tem o
mérito de ser consistentes, visto que no versículo 34 traduzem, “Ao
desembarcar”, ou “E saindo do barco”. O particípio usado no original 273
deriva-se de um verbo que basicamente significa “sair” ou “vir”. Usa-se
numa grande variedade de contextos: saindo da casa (Mt. 9:31ss.; cf. Jo.
11:31), da sinagoga (12:14), da presença do rei (18:28), do palácio do
sumo sacerdote (26:75), de uma pessoa (Mc. 5: 8), da tumba (Jo. 11:44),
para mencionar só uns poucos. Em Marcos 5:2 e 6:54 usa-se em conexão
com saindo do barco, desembarcando. Entretanto, nas passagens recém
mencionadas, menciona-se o barco claramente na mesma cláusula. A
presente situação é diferente: nem em todo o versículo 34, nem mesmo
no versículo precedente fala-se de um barco. Entretanto, no versículo 32

271
ἐκαῖ, quer dizer, “lá” no sentido de “com aquele lugar”. A palavra modifica a συνέδ ραμον; no a
προῆλθον, como em várias traduções.
272
Ou: comoveu-se em suas vísceras por eles.
273
ἐξελθών, ptc. aor. nom. s. masc. de ἐξέρχομαι.
Marcos (William Hendriksen) 329
faz-se referência a um barco. Isto pode dar apoio àqueles que no
versículo 34 favorecem a tradução “E saindo do barco”.
Um método mais seguro para chegar à interpretação correta de
“tendo saído” conforme se usa aqui, seria descobrir o que significa o
mesmo verbo na passagem paralela, Mateus 14:14. Ali, conforme
demonstra o contexto imediato, significa que Jesus saiu de seu lugar de
retiro na ladeira de uma colina. 274 Outra passagem que arroja luz é João
6:3–5, “Então Jesus subiu a um monte, e se sentou ali com seus
discípulos … Quando elevou Jesus os olhos, e viu que vinha a ele uma
grande multidão, ele …”
Portanto, fica claro que foi daquele repouso tranquilo de onde Jesus
saiu quando viu que a grande multidão que tinha chegado à praia
começava a dirigir-se até Ele. Com que fim saiu? Para repreender àquela
gente? Saiu para lhes dizer, “viemos aqui para descansar, aliviar nossas
tensões, recuperar as forças; assim que por favor vão para casa, porque
estamos cansados; visitem-nos outro dia”? Ao contrário, saiu para os
receber, porque Se compadeceu deles. Veja-se o que se diz a respeito de
esta expressão em Mc. 1:41. 275
Mentalmente sonda suas tristezas. Ele os compreende. Em seu
coração leva suas cargas. Ama-os. Com Sua vontade lhes tira as aflições.
Cura-os. Para Ele a compaixão não é só uma emoção, é um tenro
sentimento que se transforma em ação efetiva. Não é uma mera emoção
mas uma ação; melhor ainda, toda uma série de ações. Ensina-lhes, cura-
os, alimenta-os.
Vê estas pessoas como ovelhas sem pastor. Para entender o que isto
significa deveria ler-se 1 Reis 22:17; logo o Salmo 23; depois Mateus
9:36; e depois João 10. Veja-se também CNT sobre estas passagens.

274
Assim também F.J.A. Hort e B. F. Westcott, The New Testament in the Original Greek (Cambridge
e Londres, 1882), p. 99; cf. Lenski, Op. cit., p. 166.
275
Aqui em Mc. 6:34, a forma é ἐσπλαγχνίσθη, aor. ind. pas. 3ª. pes. sing. de σπλαγχνίζομαι. Veja-se
também CNT sobre Filipenses, nota 39.
Marcos (William Hendriksen) 330
Nenhum animal é tão dependente como uma ovelha. Sem alguém
que a guie, a ovelha começa a vagar, perde-se, converte-se em comida
para lobos, etc. Sem alguém que a apascente, passa fome. Jesus sabia
que com o povo ocorria o mesmo: seus dirigentes não lhes ofereciam
uma direção segura. Não lhes davam comida para alimentar suas almas.
A mente dos supostos dirigentes estava muito ocupada com sutilezas
legalistas a respeito de restrições sabáticas, jejuns, filactérios, borlas,
etc., para preocupar-se com as almas.
Assim que Jesus começa a lhes ensinar muitas coisas. Belas
palavras de vida saem de Seus lábios. Fala-lhes a respeito do
maravilhoso reino de Deus (Lc. 9:11), de um reino no qual a confiança,
como a de uma criança, no soberano cuidado de Deus traz paz (Mt.
6:24–34), o amor é a lei (Mt. 6:43–48), e a verdade está no trono (Jo.
14:6; 18:37).

5. Previsão da fome
35, 36. Em declinando a tarde, 276 vieram os discípulos a Jesus e lhe
disseram: É deserto este lugar, e já avançada a hora; despede-os para
que, passando pelos campos ao redor e pelas aldeias, 277 comprem para si
o que comer.
Jesus não só curava os doentes (Mt. 14:14), mas também Se
dedicou a ensinar às pessoas. Toda esta atividade deve ter ocupado uma
quantidade de tempo considerável. Pouco depois de sair Jesus do lugar
em que estava, perguntou a Filipe, para o provar: “Onde compraremos
pães para lhes dar a comer?”. Filipe respondeu: “Não lhes bastariam
duzentos denários de pão, para receber cada um o seu pedaço”. Assim
que Filipe teve que confrontar o problema, e André também. Jesus sabia
exatamente em todo momento o que ia fazer (Jo. 6:5–9). Mas os
discípulos estavam confusos com relação à solução, e isto apesar de

276
Ou: visto que já estava muito avançado o dia. Assim também em 35b.
277
Ou: aos campos e povoados aldeãos.
Marcos (William Hendriksen) 331
todos os milagres que já tinham presenciado. E agora, embora o sol
ainda não se punha, o dia estava muito avançado, quer dizer, “o dia
chegava a seu fim”. 278 Por meio destes milagres e ensinos, o Senhor
cativava intensamente as vastas multidões que nem sequer àquela hora
tinham intenções de ir embora. Para que fossem era preciso despedi-los.
É assim como os discípulos fazem notar ao seu Mestre que o lugar era
deserto solitária e a hora avançada.
“É deserto este lugar,”, dizem-lhe. Quer dizer, isto não é uma
cidade com lugares próximos onde se possa comprar alimento; é uma
região desolada. Para ir a qualquer das aldeias circundantes em busca de
pão é preciso tempo. Além disso, “o dia chega ao seu fim”. Em
consequência, aconselham a Jesus que despeça imediatamente as pessoas
para que possam ir às granjas e aldeias para comprar alimento.

6. As instruções
A resposta de Cristo foi impressionante:
37a. Porém ele lhes respondeu: Dai-lhes vós mesmos de comer.
O que queria dizer Jesus ao mandar, “Dai-lhes vós mesmos de
comer”? Talvez é impossível dar uma resposta totalmente satisfatória a
esta interrogante. Entretanto, podem-se assinalar alguns pontos:
a. Jesus quer dizer que os discípulos não deveriam desentender-se
das responsabilidades tão rapidamente. Com frequência sentiam-se
inclinados a fazer isto mesmo e dizer simplesmente, “despede-os” (aqui
no v. 36), “Despede-a” (à mulher siro-fenícia, Mt. 15:23). Inclusive
“repreenderam” os que traziam as crianças pequenas a Jesus para que as
tocasse (Mc. 10:13; veja-se também Lc. 9:49, 50). Seu lema com muita
frequência era: “Não incomodem o Mestre e não nos incomodem”. À luz
destes textos pode-se dizer confiantemente que Jesus queria lembrar aos
seus discípulos que a solução não consiste em tratar de livrar-se das

278
Literalmente (gen. absoluto) “grande parte das horas do dia já transcorridas”. As palavras se
repetem no v. 35b.
Marcos (William Hendriksen) 332
pessoas necessitadas. Certamente, não é esta a forma que Deus faz as
coisas (Mt. 5:43–48; 11:25–30; Lc. 6:27–38; Jo. 3:16).
b. Jesus quer que peçam, busquem e chamem (Mt. 7:7, 8); em
outras palavras, que reclamem a promessa que Deus lhes tem feito, e se
dirijam a Ele, porque Ele pode remediar toda necessidade. Aquele que
proveu o vinho quando acabou (Jo. 2:1–11), não pode acaso prover
também o pão?
c. Tendo em conta que “pão”, segundo o uso do termo neste relato
(vejam-se os vv. 38, 41), ao mesmo tempo que se refere àquilo que
remedeia a necessidade física, é também símbolo de Jesus como o Pão
da vida (Jo. 6:35–48), não está também dizendo a estes “pescadores de
homens” que eles devem ser o meio nas mãos de Deus para remediar as
necessidades espirituais das pessoas?
Continua:
37b. Disseram-lhe: Iremos comprar duzentos denários de pão
para lhes dar de comer?
Segundo João 6:7, foi a Filipe, um dos Doze, quem primeiro teve
esta ideia. Entretanto, depois de tê-la considerado e depois de inclusive
tê-la mencionado aos outros discípulos, ele também a desprezou
imediatamente por ser pouco prática. Isto se vê claro porque diz a Jesus:
“Não lhes bastariam duzentos denários de pão, para receber cada um o
seu pedaço”. Não obstante, quanto ao grupo, aqueles homens não
queriam desprezar totalmente a ideia. De modo que perguntaram a Jesus,
“Iremos comprar duzentos denários de pão para lhes dar de comer?”.
O denário de prata era, talvez, a moeda romana mais usada no
tempo do Novo Testamento.
Literalmente, o nome denário significa “que contém dez”. Foi
chamado assim com relação ao asse, uma moeda de bronze cujo valor
era 1/10 de um denário. Entretanto, não é correto dizer, como se observa
em muitos comentários, que o denário equivale a 16, 17 ou inclusive 20
centavos de dólar (EUA), e que os discípulos, ao mencionar duzentos
denários, pensavam numa soma total equivalente a 32, 34, ou 40 dólares.
Marcos (William Hendriksen) 333
O valor do dólar e do humilde centavo flutua constantemente. É melhor,
portanto, assinalar com base na Escritura (Mt. 20:2, 9, 13), que um
denário representava o salário que se pagava a um operário pelo trabalho
de um dia; em consequência, duzentos denários equivalem à
remuneração que um homem recebia por duzentos dias de trabalho. O
que os discípulos perguntam 279 a Jesus, então, é se àquela hora tão
avançada do dia deviam sair e tentar comprar a enorme quantidade de
pão necessária para aquela grande multidão. Supondo que fosse possível
obtê-lo e carregá-lo de volta para alimentar aquelas bocas famintas,
tinham acaso nesse momento uma soma tão grande de dinheiro? Mas de
que outro modo poderiam cumprir a ordem do Mestre, “Dai-lhes vós de
comer”?
Jesus não os repreende nesse momento por sua falta de fé, nem
responde à sua pergunta concreta.
38. E ele lhes disse: Quantos pães tendes? Ide ver! E, sabendo-o
eles, responderam: Cinco pães e dois peixes.
A resposta dos discípulos não foi de fé, e sim quase de desespero.
Isto se deixa ver especialmente na fraseologia da resposta registrada em
Mateus: “Não temos aqui senão cinco pães e dois peixes” (Mt. 14:17).
Evidentemente, estes homens não tinham captado o significado da
exortação, “Dai-lhes vós de comer”.
João 6:8, 9 dá mais detalhes: “Um de seus discípulos, chamado
André, irmão de Simão Pedro, informou a Jesus: Está aí um rapaz que
tem cinco pães de cevada e dois peixinhos; mas isto que é para tanta
gente?”.
O Senhor ia fortalecer sua fé mediante um milagre inesquecível. À
modo de preparação dirige-se à multidão:

279
Note-se ἀγωράσωμεν, um aor. subj. deliberativo ativo: “Compraremos?” Também o subj. δώσωμεν
seria mais comum que o fut. indic. δώσομεν, embora a evidência externa se divide quase em partes
iguais e há uma estreita afinidade entre o subj. e o fut. indicativo. Note-se também δηναρίων
διακοσίων, gen. de preço.
Marcos (William Hendriksen) 334
39, 40. Então, Jesus lhes ordenou que todos se assentassem, em
grupos, sobre a relva verde. E o fizeram, repartindo-se em grupos de
cem em cem e de cinquenta em cinquenta.
Jesus ordenou a toda a multidão que se reclinasse na ladeira da
colina, coberta de erva, “em grupos”; literalmente, “symposium
symposium” … 280 Um “symposium”, como a própria palavra sugere, foi
originalmente um “beber juntos”, ou “festa para beber” (cf. poção). A
palavra derivou a um sentido secundário: festa de qualquer tipo. Com
frequência, porém não necessariamente, tal festa caracterizava-se Pelo
ato de comer e beber juntos, música e canções. Até hoje temos nossos
“simpósios” onde alguns oradores expressam seus pontos de vista a
respeito de vários aspectos de um tema determinado de antemão. A
antologia de tais pontos de vista pode também chamar um “simposium”.
Entretanto em Marcos 6:39, o significado é simplesmente uma festa
social, companhia; daí que se traduza “em grupos”.
A ordem era fácil de obedecer, visto que por aquela época do ano as
ladeiras da colina deviam estar cobertas de erva. Marcos diz que a
multidão reclinou-se “em grupos”, ou possivelmente também “prado por
prado”, se é que ainda tem algo de força o sentido básico da frase usada
no original, 281 o que não é muito provável. Entretanto, seja como for, ali
estava aquela colorida multidão de pessoas, vestidas com suas
chamativas vestimentas de vivas e alegres cores, reclinadas sob a
abóbada azul do céu, sobre a erva, com o mar da Galileia a pouca
distância.
Ao falar (literalmente) de “montão a montão”, ou de “por montões
de cem e de cinquenta” está-se querendo dizer, em cem filas de
cinquenta cada uma? Sendo assim, estaria em concordância com o
versículo 44 (“eram cinco mil homens”). Em ambos os casos (v. 40 e v.
44) não se contam as “mulheres e crianças” (Mt. 12:41). Ou talvez quer
280
Embora não necessariamente um semitismo, este tipo de construção (distribuição expressa por
repetição) é de uso semítico. Veja-se também sobre o v. 7 mais acima: “de dois em dois”.
281
πρασιαὶ πρασιαί.
Marcos (William Hendriksen) 335
dizer que alguns grupos eram de cem pessoas, e outros de cinquenta? Em
todo caso, o agrupamento era muito prático. Fez com que a distribuição
do pão e dos peixes, e a recontagem das pessoas fossem mais fáceis.

7. Realização do milagre
41. Tomando ele os cinco pães e os dois peixes, erguendo os olhos ao
céu, os abençoou; e, partindo os pães, deu-os aos discípulos para que os
distribuíssem; e por todos repartiu também os dois peixes.
Jesus tomou os cinco pães e os dois peixes. Olhou ao céu.
Quanto a este ato de levantar os olhos ao céu em oração, vejam-se
também Sl 25:15; 121:1; 123:1, 2; 141:8; 145:15; Jo. 11:41; 17:1; 1Tm.
2:8. 282 Olhando ao céu, Jesus “abençoou”; assim diz literalmente. O
mesmo verbo se acha também nos paralelos sinóticos (Mt. 14:19; Lc.
9:16). João, por outro lado, diz “tendo dado graças” (Jo. 6:11). Solução:
“abençoou” neste caso significa “deu graças”, e pode traduzir-se assim.
Quando uma pessoa abençoa ou louva a Deus não está acaso dando-
lhe graças? 283 Era costume dos judeus dar graças a Deus antes de
começar uma comida. Entretanto, como é evidente pelos Evangelhos que
nosso Senhor nunca falou como os escribas, mas Suas palavras se
caracterizaram sempre por seu frescor e originalidade (cf. Mt. 7:29), bem
podemos crer que Sua oração foi também assim nesta ocasião.
Então Jesus começou a partir os pães em pedaços de tamanho
adequado para comer. Literalmente diz, “mantinha-se dando-os” 284 aos
Seus discípulos, os quais os levaram (em canastras reunidas aqui e ali
dentre a multidão?) à multidão. O procedimento usado com os peixes foi
algo parecido. Marcos diz, “e por todos repartiu ... os dois peixes”.
A impressionante beleza do relato vê-se realçada pelo fato de que só
se usam umas poucas e singelas palavras para relatar o milagre da

282
A questão das posturas para orar é tratada com mais detalhe no CNT sobre 1 e 2 Timóteo e Tito,
pp. 107–109.
283
Em tempo presente, ind. 1ª. pes. sing. Os dois verbos são εὑλογέω y εὑχαριοτέω.
284
Pretérito impf. ἐδίδου aqui e também em Lc. 9:16. Contraste-se Mt. 14:19 “deu”.
Marcos (William Hendriksen) 336
multiplicação dos fragmentos. Poderia dizer-se que o milagre está
implícito mais que expresso explicitamente.
42. Todos comeram e se fartaram. Em que momento exatamente
foram o pão e os peixes multiplicados? “Em suas mãos?”.
Provavelmente, mas nem mesmo isto se afirma. A única coisa que
realmente sabemos é que houve abundância de pão e peixes — na
realidade, bastante e muito mais — para todos. Em algum momento
entre o partir (ou divisão) e a recepção dos pedaços da parte do povo,
deve ter ocorrido o milagre. Todos comeram e se “fartaram”, quer dizer,
“receberam quanto quiseram”, “ficaram totalmente satisfeitos”. 285

8. Recolhe-se o que sobrou


43, 44. E ainda recolheram doze cestos cheios de pedaços de pão
e de peixe. Os que comeram dos pães eram cinco mil homens.
A contaminação é irresponsabilidade: o que não se pode comer não
deve atirar-se em qualquer parte. Espalhar desperdícios é pecaminoso;
desperdiçar é imperdoável. O que não se pode comer deve-se recolher.
Segundo Marcos, isto se aplica não só ao pão, mas também ao peixe.
Tão grande foi o milagre que Marcos peca por modéstia quando diz
que os cinco pães e os peixes foram mais que suficientes para dar de
comer a cinco mil homens, pois nem sequer menciona o número das
“mulheres e crianças” (Mt. 12:41); embora estes também tenham
285
ἐχορτάσθησαν aor. pas. 3ª. pes. plur. de χορτάζω. Embora este verbo usava-se ao princípio com
relação à alimentação e engorda de animais (de cujo significado se observa um eco em: “e todas as
aves se saciaram da carne deles”, Ap. 19:21), e começou-se a aplicar aos homens principais pelos
poetas cômicos, gradualmente perdeu seu sentido ofensivo. Aqui usa-se simplesmente como sinônimo
de ter o bastante, ficar plenamente satisfeito. Cf. Mt. 14:20; 15:33, 37; Mc. 7:27; 8:4, 8; Lc. 6:21;
9:17; 15:16; 16:21; Jo. 6:26; Fp. 4:12; Tg. 2:16.
Jesus viu seus discípulos “atormentados ao remar”; ou literalmente, torturados ἐν τῷ ἐλαύνειν. O
pres. infinitivo at. usa-se aqui como substantivo verbal: “no (ato de) remar”. O verbo ἐλαύνω lembra-
nos nosso termo afim elástico. Um elástico tem força de tensão: devolve a força. Mediante a força
elástica do arco curvado, a corda, ao soltar-se expele ou lança a flecha. Assim os remadores mediante
o movimento que imprimem aos remos empurram o barco, remam (Mc. 6:48; Jo. 6:19). Os ventos
impulsionam os navios (Tg. 3:4) ou as nuvens (2Rs 2:17). Os demônios impeliram um
endemoninhado ao deserto (Lc. 8:29).
Marcos (William Hendriksen) 337
desfrutado da dádiva que Jesus havia provido de forma tão milagrosa e
abundante.
Como em outros lugares, aqui Jesus se revela como o Salvador
perfeito; Aquele que provê tanto para o corpo como para a alma (cf. Mc.
8:19–21; Jo. 6:35, 48). É Aquele que já se apregoa no Antigo
Testamento (1Rs. 17:16; 2Rs. 4:43, 44; veja-se também Jo. 6:14; cf. Dt.
18:15–18; e Jo. 6:32). A O tragédia foi que o ponto de vista das massas
era terrestre, errôneo e materialista com relação a este Libertador, como
se vê claramente em João 6:15.
O estudo detalhado das massas que com frequência rodeavam a
Jesus, e de Sua atitude para com elas, arroja luz sobre a profundidade de
Seu amor e Sua tenra misericórdia (veja-se Mc. 6:34; 8:2; cf. Mt. 9:36;
etc.). Mas embora se possa admitir que o Senhor teve períodos de
“popularidade”, e que nos Evangelhos o que se sublinha não é a
hostilidade das multidões, e sim a dos dirigentes, entretanto, não deve
supor-se que a relação entre Jesus e Seus ouvintes foi sempre amistosa.
Às vezes o povo Lhe pediu que fosse embora (Mc. 5:17) ou se
escandalizou dele (Mc. 6:3). Às vezes o abandonaram (Jo. 6:66). Em
geral, por considerações egoístas (Jo. 6:26), mal-entendiam a Ele e Sua
missão (Jo. 6:15). Enfim, os dirigentes do povo convenceram a multidão
para pedir Sua morte na cruz (Mc. 15:11–14).
Em contraste com tudo isto observamos que Jesus jamais empregou
Seu poder para realizar milagres com fins destrutivos, nem para ferir
pessoas, mas antes, sempre para socorrê-las. Alimentou os que padeciam
fome, curou os doentes, teve compaixão e ensinou os desviados e buscou
os perdidos. Foi assim que, quando Se viu constrangido a pronunciar a
queda de Jerusalém, fê-lo com o coração entristecido (Mt. 23:37–39).
Não nos deve surpreender, então, que aqueles que deixam que
aquele amor tão espontâneo, profundo, e desinteressado fique sem
resposta, entesouram para si maior castigo. Ao falar a respeito do amor
profundo e tenro de Cristo, não se deve descuidar este “outro aspecto”,
do qual os Evangelhos proporcionam abundante evidência (cf. Mc. 7:1–
Marcos (William Hendriksen) 338
13; 8:15, 31; 9:19, 31; 10:33, 34; 11:12–18, 20, 21; 12:1–12; 13:2; cf.
Mt. 7:24–27; 11:20–24; 21:12–16; 21:23–22:14; 23; 25:41–46; etc.). Aos
que dão as costas ao amor do Pastor espera-os a “ira do Cordeiro” (Ap.
6:16)!

Mc. 6:45–52 - Andando sobre a água


Cf. Mt. 14:22–33; Jo. 6:15–21

Ao comparar o relato de Marcos com o de Mateus (Mt. 14:22–33),


o que mais nos chama a atenção é a semelhança que há entre os dois. Em
ambos os relatos Jesus ordena aos Seus discípulos a entrarem no barco e
cruzar ao outro lado. Ele vai sozinho a um monte a orar. No mar um
forte vento lhes impede o avanço. À quarta vigília da noite Jesus vai até
eles. Caminha sobre a água apesar das ondas. Os homens não O
reconhecem e O tomam por um fantasma; aterrorizados dão fortes gritos.
Imediatamente Jesus Se dirige a eles com palavras consoladoras: “Tende
bom ânimo! Sou eu. Não temais!”. Sobe ao barco e o vento se calma. Os
discípulos estão sobressaltados de assombro (Marcos) e louvor (Mateus).
A história não se acha em Lucas, mas está em João (Jo. 6:15–21).
Embora este evangelista a relate à sua maneira, em seus pontos
essenciais os três relatos (Mateus, Marcos, João) coincidem. Entretanto,
sem entrar em conflito uns com os outros, cada Evangelho faz sua
própria contribuição. Mateus é aquele que descreve a tormenta de forma
mais vivaz. É também o único que narra a história da aventura de Pedro
sobre as águas, e afirma que no final de todo o acontecimento os
discípulos confessam que Jesus é o “Filho de Deus” (Mt. 14:33).
João menciona a razão, ou uma das razões pela qual Jesus Se retirou
ao monte. Foi o fato de que o povo tentasse tomá-Lo pela força para O
fazer rei (Jo. 6:15). Diz que os discípulos iam em direção a Cafarnaum
(Jo. 6:17). Interpretado de forma geral, isto não entra em conflito com
Marcos 6:45, 53. É João quem nos diz que alguém que mais tarde Se
revela como Jesus apareceu aos navegantes, depois de avançar como
Marcos (William Hendriksen) 339
“vinte e cinco ou trinta estádios”. Quando souberam quem era, eles O
receberam no barco, depois do que atracaram em seguida. Como se deve
explicar que nem João nem Marcos repetem a história de Mateus que se
refere a Pedro (14:28–31)? Apesar de que se têm feito muitas conjeturas,
não o podemos determinar.
Marcos faz sua própria contribuição. Jesus enviou os Seus
discípulos a Betsaida e Genesaré. O barco se achava “no meio do mar”
quando estalou a tempestade. Jesus viu os discípulos “fazer grandes
esforços com os remos” e “estava para passá-los de largo”. Falou “com
eles”. O milagre deixou os discípulos “sobremaneira assombrados”. A
razão: seus corações estavam endurecidos, e por isso não captaram o
significado pleno do milagre da multiplicação dos pães.

1. Os discípulos sem Jesus


45. Logo a seguir, compeliu Jesus os seus discípulos a embarcar
e passar adiante para o outro lado, a Betsaida, enquanto ele despedia
a multidão.
Jesus Se despediu da multidão. Enquanto 286 fazia isto mandou os
Seus discípulos que fossem no barco diante dEle à margem ocidental do
lago.
Por que Se despediu da multidão? Ao menos, os seguintes pontos
merecem uma cuidadosa consideração na elaboração de uma resposta:
a. Já era tarde, e a maioria das pessoas estava longe de seus lares.
b. O povo não queria nem tinha intenção de abandonar a Jesus.
c. Queriam “vir com o intuito de arrebatá-lo para o proclamarem
rei” (Jo. 6:15), e isto era justamente o que Jesus não queria (veja-se Jo.
18:36).

286
Note-se ?ως seguido presentemente indic. = “enquanto” (com aor. subj. = “até”). Veja-se E. D.
Burton, Syntax of the Moods and Tenses in New Testament Greek (Chicago, 1900), pp. 126–128,
especialmente os parágrafos 321, 325, e 328. Mas esta regra é flexível, veja-se a nota 723 do presente
comentário.
Marcos (William Hendriksen) 340
d. Jesus desejava reservar algo de tempo para ter comunhão pessoal
com Seu Pai celestial.
Quanto à pergunta de por que Jesus Se despediu de Seus discípulos,
a explicação adequada seria o ponto d., quer dizer, a necessidade de
comunhão particular. Além disso, com relação ao ponto c., Jesus sabia
que Seus discípulos não estavam livres de esperanças messiânicas
errôneas (cf. At. 1:6).
Podemos supor, portanto, que para Ele estava claro que não
convinha que Seus discípulos fossem influenciados pelo clamor da
multidão.
Marcos faz referência a Betsaida, a qual evidentemente estava no
lado ocidental do lago, igual à planície de Genesaré ao sul de Cafarnaum
(cf. Mc. 6:53; Jo. 6:17). Para mais detalhes a respeito das duas Betsaidas,
veja-se CNT sobre Jo. 6:1, 16–21.
46. E, tendo-os despedido, subiu ao monte para orar.
Um livro muito agradável e ao mesmo tempo proveitoso é o de R.
E. Speer, The Principles of Jesus Applied to Some Questions of Today
(Nova York, Chicago, Toronto, 1902). Neste livro o escritor assinala que
o propósito que Cristo teve ao vir a este mundo foi, em parte, “para
deslocar o legalismo pelo espírito de uma vida verdadeira; substituir
regulamentos por princípios” (p. 10). Agora, a oração pertence à própria
essência desta “vida verdadeira”. Em uma das passagens de seu livro,
Speer nos ajuda a entender melhor Marcos 6:46, quando assinala que a
oração era o verdadeiro hálito de Cristo, quer dizer, “oração livre de
egoísmo (Lc. 22:32), oração de perdão (Lc. 23:34), oração fervente (Lc.
22:44), e oração submissa (Mt. 11:26; 26:39, 54)” (p. 20).
A cena de Jesus orando no monte por Si mesmo e também por
outros, incluindo Seus discípulos, segundo Seu costume (cf. Jo. 17), não
deve separar-se da cena dos discípulos no tempestuoso mar.
47. Ao cair da tarde, estava o barco no meio do mar, e ele,
sozinho em terra.
Marcos (William Hendriksen) 341
“No meio do mar.” O Evangelho de João nos informa que o barco
tinha avançado vinte e cinco ou trinta estádios, isto é, uns cinco ou seis
quilômetros. Agora, se a distância entre Betsaida Júlia (ponto onde os
discípulos iniciaram sua viagem de volta, Lc. 9:10) e Betsaida da
Galileia (lugar de desembarque, Mc. 6:45; cf. 12:21) era de uns oito
quilômetros, aqueles homens se achavam seriamente “no meio do mar”.
Então, ao chegar a noite, levantou-se uma tempestade. João diz, “E
o mar começava a empolar-se, agitado por vento rijo que soprava”.
Mateus acrescenta, “Entretanto, o barco já estava longe, a muitos
estádios da terra, açoitado pelas ondas; porque o vento era contrário”.
Mais que descrever a tormenta, Marcos a pressupõe (v. 48). Mas assim
como os outros, sublinha a hora em que ocorre o episódio: de noite, na
escuridão; e sublinha o lugar, no meio do mar, e a ausência de Jesus;
“Ele estava sozinho em terra”, mas em terra ocupado em orar (v. 46).
Comparemos as duas cenas: a. A oração de Cristo que incluía uma
intercessão, e b. a situação perigosa (humanamente falando) dos
discípulos! Resultado: a situação não era absolutamente perigosa, porque
lá no monte, a oração de Cristo supunha a petição de que a vida de Seus
discípulos fosse preservada a fim de que pudessem cumprir sua missão.
Não tem este quadro combinado muitas aplicações consoladoras para
toda circunstância difícil e angustiosa, e inclusive para toda “crise”? E
por acaso existiu jamais um período da história da igreja em que não
tenha havido alguma crise?

2. Os discípulos junto ao Jesus desconhecido


48. E, vendo-os em dificuldade a remar, porque o vento lhes era
contrário, por volta da quarta vigília da noite, veio ter com eles, andando
por sobre o mar.
Mateus 14:24 afirma que o barco era “torturado”, “açoitado” ou
“acossado” pelas ondas. Marcos usa aqui o mesmo particípio com
relação aos discípulos. Jesus os viu que estavam sendo “acossados”
Marcos (William Hendriksen) 342
enquanto remavam. Tanto Marcos (Mc. 6:48) como João (Jo. 6:19)
fazem referência à atividade de remar. 287
Foi então quando Jesus, em cumprimento de Sua promessa
(implícita no v. 45), aproximou-se deles. A hora era “como à quarta
vigília da noite” (cf. 13:35). Aquela vigília abrangia das 3 até as 6 da
madrugada. Note-se a palavra “como”. Pôde ter sido às 3, um pouco
mais cedo, ou talvez um pouco mais tarde.
Apesar da escuridão, Jesus vê que com grande dificuldade Seus
discípulos fazem avançar a embarcação. E apesar de a água ser
inadequada para caminhar, Jesus caminha sobre ela. E apesar das
tempestuosas ondas e esmagadores ventos que lhe acossam de frente,
sem vacilar prossegue com passo firme rumo ao barco. Não até chegar
ao próprio barco, senão até um ponto próximo ao seu lado; porque
Marcos escreve, e queria tomar-lhes a dianteira. Alguns têm
interpretado isso no sentido de que a intenção do Mestre era encontrar-se
com Seus discípulos, não nesses momentos, mas um pouco mais tarde,
quando tivessem chegado à outra margem. Mas à vista das palavras
“veio ter com eles” provavelmente é preferível uma interpretação
diferente; quer dizer, chegou a um lugar perto do barco dispondo-se logo
a seguir adiante dele, dando-lhes assim bondosamente a oportunidade de
convidá-Lo a subir a bordo. Sem aquela gostosa bem-vinda da parte
deles, teria passado adiante.
Este é um ponto importante. A divina disposição dos eventos não
elimina de modo nenhum as ações humanas. A eleição não é
incompatível com o esforço (veja-se Fp. 2:12, 13; 2Ts. 2:13). Talvez
Jesus pensou: “Darei a eles a oportunidade de Me convidar a subir
bordo; e se não o fizerem passarei de largo”. Não apoia João 6:21 esta
interpretação do pensamento de Jesus? Em Lucas 24:28 veja-se uma
ação de Jesus um tanto parecida.

287
Contraste-se Lenski, Op. cit., 172.
Marcos (William Hendriksen) 343
A forma surpreendente em que aqui se desdobram os atributos de
nosso Senhor merece um estudo especial. Temos em primeiro lugar Seu
conhecimento. O contexto precedente (veja-se os vv. 46, 47) dá a
impressão de que, enquanto Jesus ainda Se achava “em terra” viu estes
discípulos através da escuridão ou apesar dela! Veja-se mais detalhes a
respeito da estreita relação existente entre a natureza humana e divina de
Cristo, entre Seu conhecimento e Sua onisciência, mais acima em
Marcos 5:32; também Introdução III. E estudem-se passagens tais como
Mt. 17:27; 21:19; 24:36; Mc. 2:8; 5:30; 11:13; Jo. 1:47, 48; 2:23–25.
Em segundo lugar, considere-se seu poder. Marcos já relatou vários
acontecimentos com relação à forma tão notória em que este poder
manifestou-se (Mc. 1:25–27, 31–34, 39–42; 2:8–12; 3:5, 10, 11, 4:39;
5:9–13, 34, 41, 42). Agora, aqui em Mc. 6:48, Aquele que acalmou as
ondas (Mc. 4:39) demonstra que também é capaz de fazer com que lhe
sirvam de caminho para seus pés. Veja-se Jó 9:8.
Fizeram-se intentos de evitar esta conclusão e de mudar a expressão
“andando sobre o mar” por “andando junto ao mar”. No contexto
presente, isto não se ajusta. Se a expressão exatamente igual do versículo
precedente (Mc. 6:47) significa que Jesus estava sozinho “em terra”, no
versículo 48 deve significar que realmente andou “sobre o mar”.
Não seria correto nos referir ao conhecimento e ao poder do Mestre
e esquecer do seu amor, segundo se revela aqui. Aqueles homens
angustiados de modo nenhum eram perfeitos, e isso se observa nos
versículos 49 (eram supersticiosos) e 52 (em certo sentido seu coração
estava endurecido). Não obstante, a compaixão de Jesus é tão tenra, seu
afeto tão paternal, que não existe nem escuridão nem tempestade nem
ondas que possam mantê-Lo afastado daqueles que Lhe são muito, sim,
muito queridos. Quando necessitam dEle, Ele deseja estar com eles. 288

288
A palavra βασανιζομένους (cf. 5:7; Lc. 8:28) é um ptc. pres. pl. ac. (depois de ἰδών) de βασανίζω.
Veja-se a forma afim em Mt. 14:24 (ptc. pas. pres. nom. sing.). Mateus usa também este verbo com
referência ao “servo” do centurião que estava “gravemente atormentado” (8:6); e cf. “vieste aqui para
nos atormentar antes de tempo?” (8:29). A palavra usa-se igualmente com relação a Ló, o qual era
Marcos (William Hendriksen) 344
49, 50a. Pois todos ficaram aterrados à vista dele. Mas logo lhes
falou e disse: Tende bom ânimo! Sou eu. Não temais! E subiu para o
barco para estar com eles, e o vento cessou. Ficaram entre si
atônitos.
Com o barco em direção a sudoeste, os remadores deviam estar
olhando rumo ao nordeste. Talvez da lua precedente à Páscoa, que
aparecia intermitentemente por entre as negras nuvens, deu-lhes algo de
luz para ver não muito longe o que pareceria um homem que vinha até
eles da parte de Betsaida Júlia. Pensaram que aquela figura misteriosa
não podia ser um homem verdadeiro, porque um ser humano não pode
caminhar sobre a água! Disto os navegantes estavam seguros. Não se
davam conta de quão errados estavam. Assim que, sobressaltados de
pavor, pensaram que o que viam era um fantasma. 289
Herodes Antipas não era de modo algum a única pessoa
supersticiosa que se menciona no Novo Testamento (Mc. 6:14). Os
discípulos também estavam ainda sob a influência de crenças irracionais
fortemente arraigadas. Cf. At. 13:15.
Também hoje em dia há pessoas, incluindo membros de igrejas, que
consultam os médium para averiguar o que sucederá no mercado de
valores; e aqueles que, se num dia 13 um gato negro cruza o seu
caminho, encolhem-se de horror; e se espantam se devem passar logo
sob uma escada para chegar à habitação Nº. 13 — supondo que ainda
exista tal habitação! — e ao chegar ali se derrama uma boa quantidade
de sal. E de modo algum fariam nada disso se o seu horóscopo lhes
indicasse que esse dia para eles é dia de “má sorte”!

“aflito” ou “vexado” pelas ações licenciosas de seus vizinhos ímpios (2Pe 2:8); ao qual pode-se
acrescentar os casos de seu uso no Ap. 9:5; 11:10; 12:2; 14:10; 20:10. Jesus veio para curar aos
afligidos por “tormentos” (Mt. 4:24; cf. Lc. 16:23, 28). O substantivo βάσανος (cf. a palavra
“basanita”) indica: a. basicamente, uma pedra de toque para provar ouro e outros metais; b. o
instrumento de tortura pelo qual eram provados os escravos, quer dizer, forçados a revelar a verdade;
e c. tormento ou dor aguda.
289
Como exceção, note-se aqui que é Mateus quem usa o estilo direto, “É um espírito”, enquanto que
Marcos se expressa de forma indireta. Veja-se Introdução IV, nota 5 g.
Marcos (William Hendriksen) 345
Quão pequena era a fé dos Doze! Estavam olhando o Seu Senhor e
Salvador, mas creram que o que estava à sua vista era um infernal
espectro que andava rondando, que era um “fantasma” ou um “espírito”.
Que cada um faça sua própria aplicação!
Assim que clamaram (literalmente “chiaram”). Todos estavam
“mortos de medo”, usando uma expressão popular. Marcos informa que
todos eles O viram e “tremiam”, estavam “aterrorizados”.
Em todo o grupo não havia um só discípulo, nem sequer Pedro, com
a valentia necessária para comunicar coragem aos seus companheiros.
Veja-se também a passagem paralela de Mt. 14:26.
O verbo que se usa no original para indicar esta condição de pânico
e alarme 290 é muito descritivo. Em Mateus 2:3 usa-se para descrever o
espanto que sentiu Herodes, o Grande quando ouviu a respeito do
nascimento de um “rei dos judeus”. Em voz ativa significa agitar,
revolver, turvar, inquietar como quando se fala do rei do Egito,
semelhante a um monstro marinheiro que move as águas com seus pés e
as suja (LXX Ez. 32:2). Figurativamente refere-se, em voz ativa, a
transtornar o coração e a mente lançando-os a confusão e alarme; e em
voz passiva a estar aterrorizado e atemorizado.291 Aqui em Mc. 6:50a e
Mt. 14:26 há um quadro de homens fortemente em comoção que no meio
da escuridão e a tormenta lançam um forte e frenético grito de terror e
medo, porque um espectro tenta persegui-los com fins maléficos.
O que se deve fazer com semelhantes temores? Tempo depois,
durante a noite memorável da instituição da Santa Ceia, Jesus, falando
com Seus discípulos no cenáculo, deu a resposta. Usando o mesmo verbo
— “ser turbado” — disse em frases que têm uma cadência rítmica, uma
ternura calmante e consoladora: “Não se turbe o vosso coração; credes
em Deus, crede também em mim” (Jo. 14:1).

290
ἐταράχθησαν aor. ind. pas. 3ª. pes. plur. de ταράσσω.
291
Em Marcos o verbo ocorre nesta passagem unicamente. Além de Mt. 2:3; 14:26, acha-se também
em Lc. 1:12; 24:38; várias vezes em João (Jo. 11:33; 12:27; 13:21; 14:1, 27); em At. 15:24; 17:8, 13;
Gl 1:7; 5:10; e em 1Rs. 3:14.
Marcos (William Hendriksen) 346
3. Os discípulos com Jesus, a quem agora reconhecem, porque lhes
fala.
50b. Mas logo lhes falou e disse: Tende bom ânimo! Sou eu. Não
temais! [ou: deixai de ter medo].
A resposta de Jesus é imediata. De forma amigável e afetuosa
começa a falar “com” eles. Diz-lhes exatamente o que necessitam para
apagar esse medo nascido da superstição. Segundo a informação que
temos no Novo Testamento, com uma só exceção, a única coisa que diz
“Tende bom ânimo” ou “Tende coragem” é Jesus. Além de Mc. 6:50,
veja-se também Mc. 10:49 (a única exceção); 292 Mt. 9:2, 22; 14:27; Jo.
16:33; e At. 23:11. “Sou eu”, diz Jesus; querendo dizer, o Mestre em
pessoa, o mesmo que os escolheu para ser Seus discípulos, que os guiou
passo a passo, e que já lhes deu tantas provas de Seu poder e amor. Em
consequência acrescenta, “Não temam”. Os discípulos devem deixar sua
atitude pacata; antes, devem cobrar ânimo e encher-se de alegria.
Quando Jesus pronunciou as palavras, “Tende bom ânimo! Sou eu.
Não temais!”, talvez deixou momentaneamente aturdidos os Seus
discípulos. Mas o atordoamento inicial deu passo à uma surpresa muito
jubiloso. Para outras surpresas semelhantes veja-se Gn. 13:14–18; 15:1ss.;
17:1–21; 18:1–8; 22:10b–19; 26:23–25; 28:10–22; 45:1ss.; Êx. 3:1–12; 14:15;
33:14; 34:6, 7; 40:34, 35; Js. 5:13ss.; 10:12–14; 1Rs. 18:38–40; Is. 37:36; Jr.
39:16–18 (cf. 38:7–13; Mt. 28:1–10; Mc. 16:1–8; Lc. 24:30–32; Jo. 20:21; At.
2:1; 4:31; 12:7ss. E veja-se especialmente 1Co. 2:9 (cf. 1Rs. 10:6, 7).
51. E subiu para o barco para estar com eles, e o vento cessou.
Ficaram entre si atônitos.
O episódio relacionado com Pedro (Mt. 14:28–31) teve lugar
provavelmente perto deste momento. Ao subir Jesus ao barco para estar

292
E mesmo esta não deve ser considerada necessariamente como uma exceção, porque é a reação dos
amigos à ordem de Cristo de que o cego seja chamado. É quase como se Jesus, por boca destes
amigos, estivesse dizendo ao cego, “Tenha ânimo”. As palavras de Paulo em At. 27:22, 25 se
aproximam às que com tanta frequência disse o Senhor; mas a. no original o apóstolo usa um verbo
diferente; e b. faz-se eco, embora de todo coração, das palavras do céu ditas por um anjo.
Marcos (William Hendriksen) 347
com Seus discípulos, Sua presença consoladora apagou os vestígios de
seu pânico supersticioso inicial. E quando amainou a tormenta nos
corações, o mesmo sucedeu com a tormenta física: “o vento se
apaziguou”, como tinha sucedido também numa ocasião anterior (4:39).
Resultado: os discípulos ficaram grandemente assombrados. Qual
tinha sido a causa de sua inquietação histérica fazia uns instantes, e qual
a causa de seu confusão assombro agora? Resposta:
52. porque não haviam compreendido o milagre dos pães; antes,
o seu coração estava endurecido.
Se tivessem compreendido plenamente o significado da alimentação
milagrosa (Mc. 6:35–44), teriam entendido que isso significava o poder
de Cristo para dobrar o universo material à sua vontade, incluindo não só
o produto da terra (pão), mas também as ondas do mar e os ventos
impetuosos. O problema estava em seus corações: Na realidade, seus
corações estavam endurecidos.
Na Escritura, o coração é a sede dos sentimentos e da fé, como
também a fonte das palavras e das ações (Mt. 12:34; 15:19; 22:37; Jo.
14:1; Rm. 10:10; Ef. 1:18). É a raiz da vida intelectual, emocional e
volitiva do homem, é o núcleo e centro da existência humana, seu ser
mais íntimo. “Dele emana a vida” (Pv. 4:23). “O homem olhe o que está
diante de seus olhos, mas o Senhor olha para o coração” (1Sm. 16:7).
Quando Marcos diz que o coração destes discípulos estava “endurecido”,
significa provavelmente que a estupidez dos Doze, sua incapacidade para
deduzir as conclusões necessárias dos milagres de Jesus, era o resultado
de sua negligência pecaminosa, por não refletir e meditar naquelas
maravilhosas obras e no Autor delas. O assombro não os impediu de cair
imersos numa espécie de torpor ou preguiça espiritual, apesar de que, em
seu regozijo, estes discípulos chegassem inclusive a reconhecer a
deidade de seu Mestre, como sucedeu também nesta mesma ocasião (Mt.
14:33); em outras palavras, não imaginaram perguntar-se o que daquele
Ser divino poderia esperar-se. Vez após vez foi necessário despertar de
sua letargia espiritual. Por outro lado, esta dureza de coração não deve
Marcos (William Hendriksen) 348
confundir-se com a insensibilidade e indiferença dos escribas e fariseus.
Tal atitude era o resultado da incredulidade e do ódio. Pelo contrário, os
discípulos (menos Judas), eram homens de fé … embora de pequena fé.
A lição que a Escritura ensina é que a fé deveria ser desperta o
bastante para deduzir conclusões corretas de premissas solidamente
estabelecidas (Mt. 6:26–30; Lc. 11:13; Rm. 8:31, 32), embora isto nem
sempre é tomado a sério.

Mc. 6:53–56 - Curas em Genesaré


Cf. Mt. 14:3–36

53. Estando já no outro lado, chegaram a terra, em Genesaré, onde


aportaram. Com base em João 6:17; alguns intérpretes pensam que o
vento tinha impedido o navio de atracar em Cafarnaum ou inclusive em
Betsaida (Mc. 6:45) e que o havia obrigado a buscar um lugar de
ancoragem um pouco mais ao sul. Entretanto, isto não é seguro.
“Genesaré” é o nome de uma planície fértil e muito povoada ao sul de
Cafarnaum. Mede uns cinco quilômetros de longitude ao longo do mar
da Galileia (também chamado lago de Genesaré, Lc. 5:1), e 2
quilômetros de largura desde a margem do lago. Segundo Josefo (Guerra
Judaica, III. 516–521) sua beleza e fertilidade naturais eram
sobressalentes; e diz: “Não existe planta que seja rejeitada por este solo
fértil”, quer dizer, a terra não se recusa a produzir. Segundo este autor
cresciam na planície castanhas, palmas, figos, azeitonas e uvas. Tão alta
reputação tinham os frutos de Genesaré entre os rabinos, que não se
permitia sua comercialização em Jerusalém durante as festividades para
evitar que alguma pessoa se sentisse tentada a assistir às festas
meramente para degustá-los. Foi onde o pequeno grupo decidiu lançar
âncoras. 293

293
Note-se προσωρμίσθησαν aor. ind. pas. 3ª. pes. plur. de προσορμίζω; de _ρμος = ancoradouro ou
fundeadouro. Era un lugar donde se encontraban el mar y la tierra; cf. “horizonte” donde el cielo y el
mar — o tierra — parecen encontrarse.
Marcos (William Hendriksen) 349
Desde aquele embarcadouro, Jesus devia prosseguir até a próxima
Cafarnaum (Jo. 6:17, 24, 25), mas não sem antes haver abençoado as
pessoas daquela região com Sua bondosa presença, segundo se mostra
nos seguintes versículos:
54, 55. Saindo eles do barco, logo o povo reconheceu Jesus; e,
percorrendo toda aquela região, traziam em leitos os enfermos, para onde
ouviam que ele estava.
É claro que nos versículos 54–56, Marcos é muito mais vivo e
detalhado que Mateus em 14:35, 36. Nem bem Jesus desembarca, e a
multidão O reconhece imediatamente. A estas alturas já era conhecido
bem como Aquele que cura. Tinha havido curas individuais
sobressalentes (Mc. 1:23–31, 40–45; 2:1–12; 3:1–5; cap. 5) e também
curas em massa (Mc. 1:32–34; 3:7–12). Assim que, não estranha que as
notícias de sua chegada se difundiram rapidamente. As pessoas corriam
para propagar as boas notícias. Resultado: de todas as partes dos
arredores as pessoas levavam os doentes a Jesus.
Levavam-nos em macas, provavelmente eram colchonetes cheios de
palha (veja-se sobre 2:4). A qualquer lugar onde se dizia que Jesus
estava, levavam-lhe doentes de todo tipo. 294 Vinham de todas as partes, e
iam a qualquer lugar onde Jesus estivesse.
56. Onde quer que ele entrasse nas aldeias, cidades ou campos,
punham os enfermos nas praças, rogando-lhe que os deixasse tocar ao
menos na orla 295 da sua veste; e quantos a tocavam 296 saíam curados. 297
294
Note-se το_ς κακ_ς _χοντας: “todos os que tinham mal” = todos os que estavam doentes (cf. 1:32,
34; 2:17); _που _κουον, imper. iterativo: “onde ouviriam”; _τι _στίν: “que ele está”, onde diríamos
“que ele estava”. Depois de tempos secundários o grego geralmente retém o tempo do discurso. Veja-
se Robertson, p. 1029.
295
Ou: franja.
296
Ou: tocá-la.
297
Notem-se os seguintes pontos, principalmente de caráter gramatical:
a. _που _ν _ισεπορεύετο: No Novo Testamento, este tipo de orações com o optativo se substitui pelo
indicativo com _ν. Veja-se E. D. Burton, Op. cit., pp. 124, 125, parágr. 315.
b. Os verbos que indicam entravam … punham … rogavam … eram curados, estão todos em
imperfeito iterativo. Talvez se poderiam traduzir: “entrariam … poriam … rogariam … seriam
curados”. Entretanto, não é sempre necessário nem recomendável traduzir cada expressão desta
Marcos (William Hendriksen) 350
Que ministério tão enriquecedor foi este! Talvez houve também
ensino, mas no caso de ser assim, nada se diz a respeito. O que se
sublinha são as curas. Isto sucedeu nas aldeias, povos e campos (cf. 5:14;
6:6). Sucedia que muitos que tinham seres queridos doentes os levavam
à praça do mercado, com a esperança de que Jesus possivelmente
passasse por aqueles lugares. A palavra praça de mercado pode,
entretanto, referir-se também a uma praça ou espaço aberto em alguma
aldeia muito pequena para ter uma praça de mercado oficial.

Tanta fé tinham aquelas pessoas no poder curativo e compaixão do


Salvador que — como no caso da mulher descrita em Mc. 5:27–30, e
veja-se especialmente Mt. 9:20, 21 — estavam convencidas de que se
fosse permitido que o doente tão somente tocasse a borla (bordo ou
franja) do manto do Mestre, produzir-se-ia instantaneamente a cura.
Marcos nem sequer se preocupa de nos informar se esta permissão foi
concedida. No caso de Jesus é dado por sentado! E todos os que O
tocaram (ou: “tocaram-na”, em todo caso o significado é o mesmo)
foram instantânea e completamente curados. Os Evangelhos nos ensinam
que Jesus curava as pessoas por meio de um toque ou deixando que O
tocassem. Há outros detalhes mais acima, com relação a Marcos 1:41.

A hinologia não deixou passar desapercebido o ministério de Jesus


na planície de Genesaré. Veja-se as linhas escritas por E. H. Plumptre no
belo hino “O Teu braço, Ó Senhor, nos tempos antigos”:

forma. P. ex., “seriam curados” poderia ser interpretado erroneamente como “iam a ser curados”. Mas
o escritor queria dizer que eram curados de forma definitiva ali mesmo. Daí que neste caso a tradução
“e quantos lhe tocavam eram curados” é provavelmente a melhor, especialmente ao considerar que
_που _ν ε_σεπορεύετο (= onde quer que entrava) é indefinido, conquanto _σοι _ν _χαντο (aor., =
quantos lhe tocavam) é definido. Em cada caso particular o toque momentâneo foi seguido de cura, e
estas curas aconteceram vez após vez.
c. κ_ν significa “se tão somente”.
d. Os verbos de tocar tomam o genitivo como complemento; daí κρασπέδου (= franja, borla).
Marcos (William Hendriksen) 351
Vem, Senhor, hoje de perto abençoar,
Como antigamente mostravas Teu poder,
Onde quer que seja, e junto ao leito de dor
Como nas praias de Genesaré.
(Tradução livre)

Resumo do capítulo 6

Um sábado Jesus ensina na sinagoga de Nazaré, onde fora criado. A


concorrência fica assombrada por Sua sabedoria. Entretanto, depois de
refletir um pouco mais, as pessoas não pode entender como estas
palavras de sabedoria podem sair dos lábios de alguém que se criou entre
eles, de alguém conhecido como “o carpinteiro”. Conhecem os Seus
irmãos intimamente, podem mencioná-los inclusive pelo nome. Suas
irmãs ainda vivem entre eles. Qual é, então, a origem de suas palavras?
Além disso, como pode ser possível que lhe sejam atribuídos milagres
feitos com Suas mãos e que alguns dos presentes na concorrência talvez
os presenciaram? Um carpinteiro de Nazaré falando palavras de
sabedoria e realizando milagres? Impossível! Escandalizavam-se nEle.
Jesus diz: “Não há profeta sem honra, senão na sua terra, entre os seus
parentes e na sua casa”. Num ambiente tão hostil só pôde curar a uns
poucos doentes (vv. 1–6a).
Com frequência ocorre que entre mortais comuns e correntes
aqueles que são rejeitados admitem o fracasso e abandonam sua
intenção. Não assim Jesus. Ao contrário, intensifica os Seus esforços
evangelizadores. Leva a cabo uma campanha pessoal, “Contudo,
percorria as aldeias circunvizinhas, a ensinar”, e envia os Seus discípulos
numa viagem missionária. Além do ensino, realiza muitos milagres —
curas, expulsão de demônios — (6b–13). O resultado é duplo.
Primeiro, o governante Herodes Antipas, ouve a respeito de Jesus.
Sua consciência é despertada. Diz “É João, a quem eu mandei decapitar,
que ressurgiu”. Com relação a isto Marcos relata a história da festa
Marcos (William Hendriksen) 352
perversa de aniversário de Herodes e a horripilante morte de João Batista
(vv. 14-29).
Segundo, os discípulos retornam de sua viagem missionária, e
necessitam descanso. O assassinato de João Batista talvez teve neles um
efeito intranquilizador. O próprio Jesus sente a necessidade de íntima
comunhão com Seu Pai. De modo que fala com Seus discípulos assim,
“Vinde repousar um pouco, à parte, num lugar deserto” — ou tranquilo.
Numa barco se dirigem a Betsaida Júlia. Quando os galileus os veem
partir vão pressurosos a pé, dando uma volta até chegar à parte norte do
lago para estar com Jesus. Ao ver esta grande multidão, seu coração se
compadece deles, porque são como ovelhas sem pastor. Assim que, do
Seu lugar de retiro sai ao encontro deles e começa a ensinar-lhes muitas
coisas. Ao anoitecer, em vez de despedir a multidão faminta, realiza o
milagre de fazer com que cinco pães e dois peixes alcancem para cinco
mil homens. São recolhidos doze cestos cheios de restos depois que cada
um comeu o suficiente. Isto não deve ter convencido os Doze que
Aquele que exerce controle sobre os ingredientes que formam o pão tem
poder também para fazer com que ao seu mandato, obedeçam-lhe
também os ingredientes de uma tormenta: o vento impetuoso e ondas
(vv. 30–44)?
Não obstante, o que sucede? Depois de Se despedir da multidão e
ordenar aos Seus discípulos a voltarem para lado oposto do lago, Jesus,
ainda em terra, dirige-Se a um monte para orar. Quando da terra vê os
Doze, esforçando-se com os remos devido ao forte vento, aproxima-Se
deles caminhando sobre o mar. Crendo que veem um fantasma,
começam a gritar. Ele os calma dizendo: “Tende bom ânimo! Sou eu.
Não temais! (ou: deixem de ter medo)”. Ele Se teria adiantado ao barco,
mas eles Lhe pedem que suba a bordo. Quando sobe ao barco, o vento
cessa. Os Doze ficam sobressaltados de profundo assombro. Se seu
coração tivesse estado mais inclinado a refletir nas implicações da
multiplicação milagrosa dos pães, não teriam estado nem tão
aterrorizados, nem tão surpreendidos e assombrados (vv. 45–52).
Marcos (William Hendriksen) 353
Quando Jesus e os Doze atracaram à fértil planície de Genesaré,
aqueles que reconheceram o Mestre começaram a espalhar a notícia. De
maneira que começaram a levar-Lhe os doentes onde quer que Ele
estivesse. Aqueles que tocaram só o bordo de seu manto, recebiam cura
completamente e para sempre (vv. 53–56).
Marcos (William Hendriksen) 354
MARCOS 7
Mc. 7:1–23 - Contaminação cerimonial versus contaminação
verdadeira
Cf. Mt. 15:1–20

No final de Marcos 6 e Mateus 14 descreve-se a Jesus na planície


de Genesaré, ocupado ativamente em curar os doentes. É provável que
dali, Ele e os Doze prosseguissem até Cafarnaum (Jo. 6:17, 24, 25, 59)
onde pronunciou o discurso a respeito do Pão da vida. Isto pôde ter
ocorrido ao redor do mesmo tempo e lugar em que ocorreu o descrito em
Marcos 7:1–23. Veja-se também sobre o v. 17.
É evidente (veja-se especialmente os vv. 1, 5, 6ss) que o que aqui se
descreve é outra inflamada confrontação entre Jesus e os dirigentes
religiosos dos judeus.
Entre os muitos e duros enfrentamentos desta classe, há vários,
como bem pode ser o presente, em que Seus críticos inimigos parecem
esperá-Lo impacientemente no lado ocidental do mar da Galileia ou do
Jordão, preparados para o ataque. Além de Marcos 7:1–23 veja-se
também Mc. 5:21, 22 (em conexão com Mt. 9:18); 8:10, 11; 9:2, 14.
Mais tarde, depois de Jesus cruzar pela última vez da margem leste do
Jordão à margem oeste, seria produzida a série de ataques que
culminaram com a crucificação de Cristo nas subúrbios das muralhas de
Jerusalém (Hb. 13:12).
Tanto o episódio relacionado com a contaminação cerimonial em
contraposição à verdadeira, como o discurso de Jesus registrado em João
6, tiveram como resultado que fosse rejeitado (Mt. 15:12; Jo. 6:66). A
crucificação já se divisa. Teria lugar um ano mais tarde. O Grande
ministério galileu, cujo relato começou em Marcos 1:14, pode ser
considerado como chegando a seu fim em Mc. 7:23.
Marcos (William Hendriksen) 355
Se Marcos 7 for tomado como uma unidade, notamos que não se
acha duplicado em Lucas (do mesmo modo que Lucas 7 não tem
paralelo em Marcos). Marcos 7 trata de três temas:
a. Os escribas e fariseus interrogam a Jesus a respeito da
contaminação.
b. A fé da mulher siro-fenícia é recompensada.
c. Um surdo-mudo recupera a fala e a audição.
7:1, 2. Ora, reuniram-se a Jesus os fariseus e alguns escribas,
vindos de Jerusalém. E, vendo que alguns dos discípulos dele
comiam pão com as mãos impuras, 298 isto é, por lavar.
O começo da cláusula pode significar: a. que tanto fariseus como
alguns escribas tinham vindo de Jerusalém; ou b. que os fariseus eram da
localidade, galileus, mas que os escribas eram de Jerusalém. 299 Mas a
passagem paralela de Mateus 15:1, pareceria inclinar-se em favor de a.
É adequado falar aqui da profissão dos escribas e da seita dos
fariseus. Os escribas eram os doutores na lei. Estudavam, interpretavam
e ensinavam a lei, quer dizer, o Antigo Testamento. Com mais exatidão,
comunicavam à sua própria geração as tradições que de geração em
geração tinham sido transmitidas com relação à interpretação e aplicação
da lei, tradições que tinham tido sua origem no ensino dos veneráveis
rabinos de antigamente. Os fariseus eram aqueles israelitas que faziam
crer em todos que eles, os separatistas, viviam ou ao menos faziam um
grande esforço para viver de acordo com o ensino dos escribas.
Naturalmente, muitos escribas eram também fariseus. Veja-se CNT
sobre Mateus, pp. 214–216; e mais acima sobre Mc. 1:22; 2:6, 16; e
3:22.
A maioria dos fariseus e escribas odiavam a Jesus porque a. Ele Se
atribuía prerrogativas divinas; b. Ele não honrava suas tradições com
relação ao sábado, jejuns, abluções, etc.; c. Ele se associava com

298
Ou: cerimonialmente imundo.
299
Vincent Taylor, Op. cit., p. 334, adota a alternativa b.
Marcos (William Hendriksen) 356
publicanos e pecadores; d. Ele exercia o que eles consideravam uma
perniciosa influência sobre o povo; e e. Ele era o oposto deles.
Este último ponto necessita uma maior ênfase. Os inimigos de
Cristo certamente percebiam em seus corações que Jesus era
imensamente mais nobre que eles. Sua humildade (Lc. 22:27)
contrastava notavelmente com a pomposidade deles (Mt. 23:5–7); sua
sinceridade (Jo. 8:46), com a hipocrisia deles (Mc. 7:6); sua compaixão
(Mc. 6:34), com a crueldade deles (Mt. 23:14). Em grande medida, a
“religião” deles era uma atividade em interesse próprio (Mt. 6:2, 5, 16);
o ministério de Jesus era um sacrifício para o bem dos demais (Mc.
10:45) e para a glória do Pai (Jo. 17:1–14). Estavam conscientes alguns
destes inimigos de que Jesus conhecia seu verdadeiro caráter, e que os
tinha “fichados”?
O que quer que seja, aqui estão, chegados de Jerusalém, o centro da
“ortodoxia judaica. Sem dúvida, tinham ido ali por mandato do Sinédrio.
Seu propósito era certamente achar uma base para apresentar acusações
contra Jesus, a fim de matá-Lo (veja-se Mc. 3:6; 11:18). Indica
possivelmente a referência a “alguns escribas” que estes escribas em
particular tinham sido escolhidos por ser doutores em assuntos que
pudessem ser causa de controvérsia com Jesus? Isto é bem possível
embora não absolutamente certo.
O comitê de espiões logo se viu recompensado. Observemos que
alguns — somente alguns, nem sequer todos — dos Doze comiam 300
com mãos “contaminadas”, quer dizer, com mãos que não se tinham
lavado conforme o ritual e, portanto, não estavam “cerimonialmente
limpas”. É possível que se os espiões tivessem esperado um pouco mais
teriam notado que não só alguns deles, mas também todo o grupo dos
Doze tinha este costume, e na realidade também Jesus (veja-se Lc.
11:38). 301
300
Veja-se mais acima, sobre 3:20, nota 120.
301
R. C. Trench, Op. cit., parágrafo xlv, demonstrou que conquanto πλύνω refere-se ao lavamento de
coisas inanimadas — redes (Lc. 5:2), vestimentas (Ap. 7:14)—, e λούω aponta para banhar todo o
Marcos (William Hendriksen) 357
A nota explicativa “com as mãos impuras, isto é, por lavar” foi
acrescentada para permitir que os leitores não judeus, a quem foi dirigido
este Evangelho principalmente, entendessem do que se falava. O mesmo
pode ser dito com certeza em relação com a passagem entre parêntese:
versículos
3, 4. (Os fariseus e todos os judeus não comem sem lavar as mãos
cerimonialmente, 302 apegando-se, assim, à tradição dos líderes religiosos.
Quando chegam da rua, não comem sem antes se lavarem. 303 E observam
muitas outras tradições, 304 tais como o lavar 305 de copos, jarros e vasilhas
de metal. 306 ) [NVI]
Deve notar-se os seguintes pontos:
a. “Os fariseus e todos os judeus”. Aqui, a palavra “todos”, como
sucede com frequência nas Escrituras e até na conversação diária de hoje
em dia, usa-se de maneira livre; veja-se sobre Mc. 1:5 (“Saíam a ter com
ele toda a província da Judéia e todos os habitantes de Jerusalém”). O
significado é “muitíssimos”, “o povo em geral”.
b. “… sem lavar as mãos ceremonialmente” (NVI; RA:
“cuidadosamente”). As leituras variam entre “com o punho”; “com
frequência”; e a ausência total de um advérbio.307 Muitos consideram

corpo (At. 9:27; 2Pe. 2:22; Ap. 1:5), νίπτω geralmente faz referência ao limpamento de uma parte do
corpo: mãos (Mc. 7:3), pés (Jo. 13:5), cara (Mt. 6:17), olhos (Jo. 9:7). Além disso, Trench cita Lv.
15:11 (na lXX) como um exemplo que nos mostra as três palavras juntas, cada uma com o significado
que corretamente lhe corresponde. Agora, aqui em Mc. 7:2 usa-se um derivado de νίπτω, refiro-me ao
adjetivo _νίπτοις (dat. pl.), e no v. 3 aparece a forma verbal νίψωνται (aor. subj. med. 3a. pers. pl.).
Estou de acordo. Mas ao examinar o hebraico encontramos que em Lv. 15:11, Brown-Driver-Briggs
traduzem shataf como enxaguar ou lavar. As versões VP, BP, CI, CB, BJ, NBE, RV60 traduzem
lavar. A versão inglesa AV traduz como segue: “E todo aquele a quem tocar aquele que tem fluxo, e
não enxaguar com água suas mãas”. O texto refere-se a um “enxágue” ou “lavagem cerimonial”, e
não à lavagem das mãos numa bacia. Este é sem dúvida também o significado aqui em Mc. 7:2. Para
maiores detalhes a respeito disto, veja-se CNT sobre Mt. 15:1, 2.
302
“cuidadosamente” [RA] é incerto; o termo grego é um tanto obscuro.
303
Literalmente: se não se batizarem.
304
E não tão somente, “Há muitas outras tradições que guardam”.
305
Literalmente: batismos.
306
Outra leitura [RA] acrescenta “camas”.
307
Alguns manuscritos leem πυγμ_, outros πυγνά e outros omitem ambas as leituras.
Marcos (William Hendriksen) 358
que a primeira destas alternativas é a correta. Se for assim, a
interpretação não é totalmente certa. Significaria isto “girando o punho
na palma da outra mão?”. Uma citação de um opúsculo talmúdico 308 nos
puede ser útil: “as mãos se tornam imundas e se limpam até a altura da
pulso. Como? Se a água foi entornada sobre as mãos até chegar aos
pulsos e se torna a lançar água nas mãos mais acima da pulso e a água é
novamente jogada nas mãos, estas não obstante ficam limpas”. Em todo
caso, parece justificada a conclusão de que aqui se está falando de uma
cuidadosa ablução ou lavamento.
c. “… apegando-se — ou: sujeitando-se 309 — à tradição dos
anciãos” [RA[.Os escribas e seus numerosos seguidores defendiam com
denodo o cumprimento estrito das regras estabelecidas pelos
proeminentes rabinos de antigamente. Aquelas regras tinham sido
“transmitidas” — a palavra mesma “tradição” significa “o que foi
irradiado” — de uma geração a outra, e agora os escribas as estavam
transmitindo de novo à sua própria geração. Na realidade, muitas e
minuciosas estipulações cerimoniais, com relação a centenas de
assuntos, transmitiam-se como se a própria salvação dependesse da
obediência total a elas. Assim também estes judeus estritos negavam-se a
comer a menos que primeiro tivessem submetido suas mãos ao já
indicado minucioso lavamento ritual.
d. “…e, quando voltam do mercado …” [RC]. O mercado era o
centro de reunião para muitas pessoas e naturalmente era considerado
como um lugar especialmente poluente. Um judeu podia roçar um
gentio! Portanto, ao voltar de semelhante lugar, os judeus não se
atreviam a comer a menos que primeiro se submetessem a tudo o que a
tradição exigia com relação ao lavamento das mãos.
e. “não comem sem lavar as mãos cerimonialmente”. Aqui, como
em b. mais acima, há uma variedade de leituras. Qual era o texto

308
The Babylonian Talmud: Seder Tohoroth (Londres, 1948), p. 552.
309
Para o verbo usado no original, veja-se mais acima sobre Mc. 3:31, nota 122.
Marcos (William Hendriksen) 359
autêntico: “sem lavar as mãos cerimonialmente” ou “a menos que se
asperjam cerimonialmente”? 310 Com toda probabilidade o primeiro é o
correto: “sem lavar …” Literalmente diz: “a menos que se batizem”, ou
simplesmente: “se não se batizarem”. Certamente que o mero
aspergimento das mãos não teria deixado satisfeitos os rabinos. O que se
exigia parecia ser nada menos que um minucioso lavamento ou limpeza
cerimonial. 311
O “batismo” ao qual se faz referência nesta passagem não deve
interpretar-se como uma imersão de todo o corpo, e isso é evidente pela
passagem de Lucas 11:38 [TB], onde se usa uma forma do mesmo verbo,
batizar: “Vendo isto o fariseu, estranhou não se ter ele [Jesus] lavado
(lit. batizado) antes de almoçar”. É muito difícil imaginar que o fariseu
pretendesse que Jesus se submetesse a um banho completo que incluísse
sua imersão total! A referência é, naturalmente, à limpeza ritual das
mãos antes da refeição. Assim também aqui em Marcos 7:4. O texto
precedente proporciona a chave para a interpretação: o batismo
cerimonial ou lavamento do versículo 4 refere-se ao lavamento das mãos
do versículo 3.
f. Marcos acrescenta que os judeus tinham sido ensinados a
observar muitas outras tradições; tais como “batismos” ou lavamentos
cerimoniais de copos, jarros, 312 e panelas (ou: utensílios de bronze).
5. Interpelaram-no os fariseus e os escribas: Por que não andam
os teus discípulos de conformidade com a tradição dos anciãos, mas
comem com as mãos por lavar?
Tanto fariseus como escribas fazem a pergunta de maneira formal.
Bem como em Mc. 2:23, 24, responsabilizavam a Jesus pelo que os
discípulos faziam. Afinal de contas, seu propósito era matar a Ele.

310
Os verbos gregos (aor. subj. med. 3ª. pes. pl.) são respectivamente βαπτίσωνται e _αντίσωνται.
311
Sobre a opinião contrária, veja-se Vincent Taylor, Op. cit., p. 336.
312
A palavra ξέστης é considerada por muitos como uma palavra tirada do Latim, uma deformação de
sextario. O sextario é basicamente uma vasilha para líquidos que contém meio litro; em sentido
secundário, um jarro de qualquer tamanho.
Marcos (William Hendriksen) 360
O problema daqueles homens era que constantemente insistiam nas
normas estabelecidas por homens. Pior ainda, faziam-no às custas da
honra que deviam à lei divina. Eram devotos do ritualismo vazio, como
se este os pudesse salvar!
6, 7. Respondeu-lhes: Bem profetizou Isaías a respeito de vós,
hipócritas, como está escrito: Este povo honra-me com os lábios, mas o
seu coração está longe de mim. E em vão me adoram, ensinando doutrinas
que são preceitos de homens. 313
Em Sua resposta Jesus Se refere especialmente a duas passagens do
Antigo Testamento: a. Isaías 29:13, e b. Êxodo 20:12 (e textos
similares). Mateus (Mt. 15:4–9) cita Êxodo 20:12 primeiro, seguido por
uma referência à passagem de Isaías. Marcos inverte esta ordem. A
vantagem desta variedade de apresentação é que assim é dada igual
importância a ambas as passagens; poderia dizer-se: à lei e aos profetas,
aos profetas e à lei. Basicamente, a resposta é a mesma em ambos os
Evangelhos.
É claro que Marcos — na realidade o próprio Jesus citado por
Marcos — não quis dizer necessariamente que Isaías 314 estava pensando
especificamente nos fariseus e escribas dos dias de Jesus. O que
provavelmente quis dizer é que o que o profeta escreveu quanto às
pessoas de seus próprios dias, estava ainda vigente, porque as pessoas a
quem se acusa, tanto dos tempos de Isaías como de Jesus, honravam a
Deus de lábios, conquanto seu coração estava longe dEle. A história
volta a repetir-se.

313
Esta passagem apoia a ideia de que o texto grego de Mateus não é simplesmente a tradução de
algum original aramaico. Este ponto de vista é discutido no CNT sobre Mateus, pp. 99, 100.
314
Tal como se encontra em Mateus e Marcos, a citação assemelha-se muita mais à tradução de Isaías
29:13 que aparece na Septuaginta, que ao original hebraico. O hebraico original diz: “Porquanto este
povo aproxima-se de mim com sua boca, e com seus lábios me honra, mas afastou seu coração de
mim, e seu temor para comigo (não é mais que) um preceito adquirido dos homens, portanto …”. Pelo
contrário, a Septuaginta diz: “Este povo aproxima-se de mim (e) com os seus lábios me honra, mas
seu coração está longe de mim. Mas em vão me honram, ensinando preceitos de homens e (suas)
doutrinas”. A ideia central é a mesma em ambos.
Marcos (William Hendriksen) 361
Jesus chama estes homens de “hipócritas”. Em Marcos este termo
aparece unicamente nesta passagem (mas veja-se também Mc. 12:15),
embora se ache três vezes em Lucas e frequentemente em Mateus,
especialmente em dois dos discursos de Cristo (o Sermão da Montanha,
caps. 5–7; e os Sete Ais, cap. 23). A palavra hipócritas não aparece no
Antigo Testamento. A NTLH a registra em uma passagem (Sl 26:4), mas
não é a tradução correta. Contudo, a ideia como tal, sim se encontra (Sl
10:7; Pv. 26:24, 26).
O hipócrita é uma pessoa que esconde ou tenta esconder suas
verdadeiras intenções sob (hypo) uma máscara de pretensa virtude.
Segundo a passagem que estamos estudando, honram a Deus com os
lábios mas o seu coração (veja-se sobre Mc. 6:52) está longe dEle. As
duas últimas linhas do versículo 7 afirmam, além disso, que com o
pretexto de ensinar doutrinas de origem divina, está realmente ensinando
“preceitos de homens”. Ensinam regras e normas escrupulosas e
caprichosas dispostas por antigos rabinos legalistas — meros homens! —
que fiavam muito fino, e que as transmitiam de uma geração a outra
(veja-se Mt. 6:2, 5, 16; 23:23–28).
Assim também nesta ocasião, estes “piedosos” (?) críticos
pretendiam estar muito preocupados com algo que diziam ser a infração
de um estatuto divino (?) que lhes tinha sido irradiado. O que realmente
queriam era aniquilar o Filho do próprio Deus. Um hipócrita, então, é
enganoso, fraudulento, falso, uma serpente escondida entre matagais, um
lobo vestido de ovelha. Pretende ser o que não é.
Naturalmente que sua “adoração” a Deus é vã, totalmente inútil; e
isto por duas razões: a. porque sua ênfase é errônea; e b. porque a atitude
de seu coração é falsa, conforme o indica Jesus ao dizer:
8. Negligenciando o mandamento de Deus, guardais a tradição
dos homens.
Os fariseus e escribas eram culpados de colocar simples tradições
humanas acima da revelação divina, as regras humanas acima dos
mandamentos dados por Deus. Os rabinos tinham dividido a lei mosaica
Marcos (William Hendriksen) 362
(ou: Torah) em 613 decretos, 365 dos quais eram considerados
proibições e 248 instruções positivas. Logo, com relação a cada decreto,
fazendo distinções arbitrárias entre o que consideravam “permitido” e
“não permitido”, tinham tentado regular cada detalhe da conduta dos
judeus: seus sábados, viagens, comidas, jejuns, abluções, comércio,
relações com os de fora, etc., etc. Mateus 23:16–18 entrega um exemplo
de seus muito minuciosos raciocínios casuísticos. Há muitas outras
interessantes ilustrações em A. T. Robertson, The Pharisees and Jesus,
especialmente nas pp. 44, 45, 93ss. Assim, preocupando-se só por
múltiplos decretos e pelo número interminável de aplicações para as
situações específicas da vida diária, tinham amontoado preceito sobre
preceito (cf. Is. 28:10, 13) até que enfim muitos dos escribas e fariseus
terminaram eclipsando totalmente a unidade e o propósito da santa lei de
Deus (veja-se Dt. 6:4; logo Lv. 19:18; Mq. 6:8; cf. Mc. 12:28–34).
Em consequência, Jesus acusa os Seus oponentes de ter abandonado
o mandamento de Deus para aferrar-se às tradições dos homens. Se além
de Jesus, alguém tivesse expresso esta ferino crítica contra os dirigentes
religiosos daqueles dias, talvez nos tivéssemos sentido inclinados a
pensar que a afirmação era um tanto exagerada. Teríamos dito: Não pode
ser que estes fariseus e escribas realmente tivessem sua lei oral em mais
alta estima que a lei escrita do Antigo Testamento. Não parece este um
juízo muito duro? A resposta é: de maneira nenhuma. Na realidade,
existe evidência em apoio da asseveração de que os próprios rabinos
defendiam este critério. Diziam, “O opor-se à palavra dos escribas é
digno de maior castigo que opor-se à palavra da Bíblia” (veja-se a obra
de Robertson, p. 130, a que se tem feito referência no parágrafo
precedente). Provavelmente raciocinavam assim: historicamente a lei
oral precedeu à escrita; portanto a lei oral tem precedência. É claro,
então, que os oponentes não estavam em posição de provar que o que
Jesus dizia não era verdade.
Como se deve explicar que Jesus discrepasse do critério de
subordinar o mandamento escrito de Deus à tradição oral? Por um lado, é
Marcos (William Hendriksen) 363
óbvio que a palavra oral é menos duradoura que a palavra escrita, pois
está mais sujeita a mudanças ao passar de uma geração a outra. Por
outro, o mandamento veio do Deus Santo, em consequência, é infalível,
mas a tradição, sendo uma tradição de interpretação originada por
homens pecadores é, portanto, falível. No presente caso, segundo já se
explicou, era geralmente perversa, extraviada e corrompida.
Seria totalmente errôneo tirar a conclusão de que Jesus se opunha à
tradição, que desejava rejeitar todo o antigo constituindo-se assim num
revolucionário. Passagens tais como Mateus 5:17, 18; 23:1–3; Marcos
10:5–9 provam que não era assim. Antes, estava contra qualquer ensino
humano que estivesse em conflito com a lei divina. Era “um antiquado”
no bom sentido da palavra, porque retrocedeu para além da imperfeita e
desviadora tradição até que achou a revelação e mandamento original de
Seu Pai.
Nesta passagem Jesus Se refere ao mandamento de Deus. Talvez
usou o singular porque se referia ao preceito que estava prestes a citar (v.
10). Entretanto, o singular pode ser genérico, um só mandamento
representando a toda a categoria. 315
9. E disse-lhes ainda: Jeitosamente rejeitais o preceito de Deus para
guardardes 316 a vossa própria tradição.
Num sentido, Jesus repete o versículo 8. Entretanto, a pontada é
ainda mais ardente, o desmascaramento mais assustador. “Que bonita a

315
Nos Sinóticos, um _ντολή refere-se às vezes a um mandamento do Decálogo (veja-se Mc. 7:9, 10;
cf. Mt. 15:3, 4). Mas em Lc. 23:56, a palavra pode ter uma referência mais ampla. Não só veja-se Êx.
20:10 mas também 12:16 (cf. Mt. 19:17; Mc. 10:19; Lc. 18:20). Em Mc. 10:5, o termo usado no
original refere-se a uma ata de divórcio. No contexto presente (Mc. 7:10), o quinto mandamento vem
seguido imediatamente por uma proibição mosaica relacionada, que não é parte dos Dez
Mandamentos. E em Mc. 12:28–31, o escriba poderia estar usando _ντολή para referir-se inicialmente
a qualquer mandamento da lei mosaica. Em tal passagem, Jesus lhe responde ao escriba usando
_ντολή para resumir cada uma das tábuas da lei. Quanto ao uso do termo _ντολή no Evangelho de
João, veja-se CNT sobre João. 13:34. Para um excelente artigo a respeito de esta palavra e seus
cognatos, veja-se G. Schrenk, TDNT, vol. II, pp. 544–556.
316
Segundo outra versão, que tem muito apoio: para poder observar (ou: guardar, vigiar, preservar,
reter).
Marcos (William Hendriksen) 364
forma!” é uma ironia. Equivale a dizer: “Têm uma boa maneira para
deixar de lado …”. Note-se “vossa tradição” (cf. o v. 8). Estes homens
querem fazer-se deuses. Deixam a Deus de lado para estabelecer-se eles
mesmos. Estão anulando um mandamento infalível a fim de confirmar
sua própria tradição, fraca e miserável. 317 Que perversidade!
Sim, que perversidade! Mas também que estultícia! Imaginemos um
homem que em meio de uma violenta tempestade encontrou um lugar de
refúgio no topo de uma rocha alta (cf. Sl 18:2; 27:5; 92:15; 119:114,
117, 165), onde está inteiramente a salvo, mas que de repente salta,
buscando proteção, para agarrar-se de um cano que vê deslizar-se sobre a
água. Que grande insensatez! Cf. Jr. 2:13.
Com o fim de ilustrar e provar este ponto, Jesus prossegue:
10. Pois Moisés disse: Honra a teu pai e a tua mãe; e: Quem
maldisser a seu pai ou a sua mãe seja punido de morte.
“Moisés disse”. Segundo o versículo 13, é evidente que Jesus
considera o dito por Moisés como a própria palavra de Deus. Em
consequência, não existe diferença real entre Mateus 15:4 (“Porque Deus
disse”) e Marcos 7:10 (“Porque Moisés disse”).
Quanto ao mandamento de dar honra ao pai e à mãe, veja-se Êx.
20:12; Dt. 5:16; Pv. 1:8; 6:20–22; cf. Ml. 1:6; Mt. 19:19; Mc. 7:10–13;
10:19; Ef. 6:1; Cl. 3:20. Honrar ao pai e à mãe é muito mais que lhes
obedecer, especialmente se esta obediência se interpreta meramente em
sentido externo. O que está em primeiro plano no requerimento de os
honrar é a atitude interna do filho para com seus pais. Toda obediência
egoísta, obediência forçada ou sob terror fica imediatamente eliminada.
Honrar implica amar, ter um alto conceito, mostrar um espírito de
respeito e consideração. Esta honra deve-se outorgar a ambos os pais,
porque no que respeita ao filho os dois têm igual autoridade.

317
Ainda se se substitui τηρήσητε por στήσητε, o resultado é quase o mesmo: rejeitam o um para
obedecer o outro.
Marcos (William Hendriksen) 365
Em Êxodo 21:27; Levítico 20:9 pronuncia-se a pena de morte para
aqueles que amaldiçoam ao pai ou à mãe, mas vejam-se também Êx.
21:15; Dt. 21:18–21 e Pv. 30:17.
O que fizeram estes fariseus e escribas com este claro e explícito
ensino da Palavra de Deus? A resposta é dada nos versículos
11, 12. Vós, porém, dizeis: Se um homem disser a seu pai ou a sua
mãe: Aquilo que poderias aproveitar de mim é Corbã, isto é, oferta para o
Senhor, então, o dispensais de fazer qualquer coisa em favor de seu pai ou
de sua mãe. 318
Os críticos de Cristo, embora altamente estimados pelo povo em
geral, eram culpados de fazer confusões deliberadas e truques
detestáveis. Fizeram da santa lei de Deus uma zombaria. O mandamento
com relação ao dever dos filhos para com seus pais era muito claro. Mas
os fariseus e escribas ensinavam os filhos que existia uma forma de
evitar a pesada carga de ter que honrar os seus pais provendo-os de
sustento. Se um filho tinha algo que seus pais necessitavam, o filho
somente devia dizer, “é Corbã!”. Para seus leitores não judeus, Marcos
acrescenta o equivalente grego doron, dom ou oferta; quer dizer, um
dom ou oferta sagrada, algo separado para Deus, isto é, para usos
sagrados. O ensino farisaico baseado na tradição 319 afirmava que se um

318
Mateus e Marcos diferem levemente na forma em que apresentam esta declaração do Senhor. Note-
se o seguinte:
Mt. 15:5, 6a - “Qualquer que diga (é) um dom … certamente não tem que honrar o seu pai.”
Mc. 7:11, 12 - “Se qualquer um disser a seu pai ou a sua mãe, (é) Corbã, quer dizer, (é) um dom …,
então vós já não lhe é permitido fazer coisa alguma por seu pai ou mãe.”
A frase de Marcos (“Mas vós dizeis … então vós já não”) é um claro exemplo de anacoluto. A RA e
outras versões retêm o anacoluto. Para maior clareza, outros o evitam modificando o texto. Por
exemplo, a NVI lê: “Vocês, pelo contrário, ensinam que um filho pode dizer ao seu pai … Nesse caso,
o tal filho já não está obrigado …”. Não posso aceitar aqui o raciocínio de Lenski (Op. cit., pp. 183–
185). Acaso não prova sua própria tradução (p. 183), que há uma mudança na construção gramatical?
Uma forma de explicar este anacoluto é ter em mente que se acha em harmonia com o estilo popular
de Marcos. Além disso, é possível que Marcos não tenha relatado tudo o que disse Jesus. Um fiel
relatório não implica necessariamente sempre um relato completo (cf. Mt. 15:19 com Mc. 7:21, 22.
Veja-se Jo. 21:25).
319
Véase SB, vol. 1, pp. 71ss.
Marcos (William Hendriksen) 366
filho fizesse esta declaração e lhe desse uma aplicação ampla (“qualquer
em favor de …”), ficava livre da obrigação de honrar os seus pais. Na
realidade, segundo o expressa Marcos, é dispensado da permissão para
ajudar os pais.
É inclusive possível que também seja correta uma interpretação
mais ampla. Se assim fosse, o filho estaria dizendo: “Qualquer coisa com
que eu possa te beneficiar, seja agora ou no futuro, eu, aqui e nesta hora,
declaro que deve ser considerado como oferta”. A forma em que Marcos
conclui, “então, o dispensais de fazer qualquer coisa em favor de seu pai
ou de sua mãe”, poderia apoiar esta interpretação.
Seja qual for a interpretação adequada, tratava-se de um exemplo da
irresponsável sofisma dos fariseus, da ímpia maquinação para despojar
os pais da honra e sustento devido a eles. Além disso, o que se tirava dos
pais por este procedimento não era absolutamente necessário que se
oferecesse a Deus. Aquele que exclamava, “é Corbã!” podia
simplesmente guardá-lo para si.
Não é estranho que Jesus repita de maneira enfática o que havia
dito anteriormente (cf. vv. 8, 9):
13. invalidando a palavra de Deus pela vossa própria
tradição 320 que vós mesmos transmitistes.
Estes “hipócritas” não só (v. 6) passavam por alto a palavra de
Deus, mas a invalidavam. Tiravam do quinto mandamento sua obrigada
autoridade, como implica o original. 321 Por outro lado, estavam
transmitindo sua perversa tradição! Além disso, era assim não só com o
presente caso, como se os fariseus e escribas estivessem anulando
somente este único mandamento. Não, Jesus acrescenta imediatamente: e
fazeis muitas outras coisas semelhantes. O que disse a respeito da
320
Note-se _ “por meio de” (ou inclusive talvez “em favor de”). O que devia ser um acusativo é
atraído ao caso do seu antecedente, o dativo τ_ παραδόσει.
321
_κυρο_ντες ptc. pres. nom. pl. masc. de _κυρόω, “privar de autoridade, fazer nulo, anular, ab-
rogar”. No Novo Testamento usa-se só em Mc. 7:13 (paralelo, Mt. 15:6); e Gl 3:17 (“a lei não o ab-
roga”). Cf. κύριος, “alguém com autoridade, senhor, amo, dono”; κυρόω “comunicar autoridade”, ou:
“dar validez”.
Marcos (William Hendriksen) 367
forma em que os fariseus tratavam o quinto mandamento era só uma
ilustração. Era uma amostra do que sucedia constantemente.
Entronizavam a tradição de forma regular; destronavam a Palavra de
Deus!
Indubitavelmente trata-se de um tema muito prático, digno de ser
aplicado em toda época. Não é o princípio objetivo do protestantismo “A
Bíblia é a única regra infalível de fé e prática”? E não está isso em
oposição à forma em que a igreja romana coordena a Escritura e a
tradição eclesiástica como se fossem as regras conjuntas de fé? Não é
verdade que esta última posição com frequência degenera no fato de
colocar a tradição acima da Escritura? E ainda hoje, não é necessário
fazer o maior esforço possível para evitar que as decisões e
interpretações subjetivas comecem a interferir com a exegese imparcial
da Palavra de Deus?
Existe uma surpreendente semelhança entre Marcos 7:14–23 e sua
passagem paralela de Mateus 15:10–20. as diferenças principais são as
seguintes:
a. Marcos não registra a pergunta dos discípulos (“Sabes que os
fariseus, ouvindo a tua palavra, se escandalizaram?”) e a resposta de
Jesus que se acham em Mateus 15:12–14.
b. Segundo Mateus 15:15 foi Pedro quem pediu a Jesus que
explicasse “a parábola”. Marcos simplesmente diz “os discípulos”.
Entretanto, Marcos informa que a pergunta foi feita depois de Jesus ter
deixado as pessoas e entrado na casa, coisa que Mateus omite.
c. A informação de Marcos (Mc. 7:19b), “E, assim, considerou ele
puros todos os alimentos”, não se acha em Mateus.
d. Conquanto Mateus (depois de um termo introdutório) apresenta
uma lista de 6 coisas más que procedem de dentro e que contaminam o
homem (15:19), Marcos (Mc. 7:21, 22) menciona 12. No caso de que
“enganos”, em Marcos, equivalha a “falsos testemunhos”, em Mateus,
então os 6 pecados que Mateus menciona aparecem na lista de Marcos só
com leves mudanças verbais. Estas coisas são as números 5, 6, 8, 9, 11, e
Marcos (William Hendriksen) 368
12 da lista de Marcos, que aparecem portanto de perto da metade até o
final da enumeração do evangelista (veja-se o gráfico mais adiante). Em
consequência, não parece ser ilógica a inferência de que Mateus, com a
lista de Marcos diante de si, estava abreviando.
14, 15. Convocando ele, de novo, a multidão, disse-lhes: Ouvi-me,
todos, e entendei. Nada há fora do homem que, entrando nele, o possa
contaminar; mas o que sai do homem é o que o contamina. 322
Pareceria que justamente antes da chegada do comitê formado por
fariseus e escribas, Jesus tinha estado falando às pessoas. Então,
provavelmente por respeito à delegação que tinha vindo para interrogar a
Jesus, as pessoas se retiraram a certa distância. Mas agora, depois que os
críticos se retiraram ou foram despedidos, o Senhor convida as pessoas a
aproximar-se dEle novamente. Quem não detecta o som solene do
Antigo Testamento nas palavras, “Ouvi-me, todos vós, e entendei” (cf.
Sl 49:1; 50:7; 81:8)? Jesus, no começo do reatamento de Sua mensagem,
sublinha que o que vai dizer é algo muito importante. Vez após vez os
Evangelhos O descrevem como o Salvador compassivo, como Aquele
que Se sente profundamente doído porque os dirigentes estão desviando
o povo simples (vejam-se Mt. 9:36; 11:28–30; Mc. 6:34).
O que Jesus deseja imprimir na multidão tem que ver com a
depreciativa pergunta dos fariseus e escribas (veja-se o v. 5): “Por que
não andam os teus discípulos de conformidade com a tradição dos
anciãos, mas comem com as mãos por lavar?”. A hipótese destas críticas
era: as mãos sem lavar contaminam o alimento e, portanto, também ao
que come. Segundo a opinião deles, a contaminação agia de fora para
dentro. Jesus faz ver que o contrário é o certo. Não é o que entra no
homem, e sim o que sai dele, é o que tem poder para contaminá-lo. Note-
se o uso que Marcos faz do plural. Segundo seu relato, Jesus fala a
respeito das coisas que “saem do homem” como as coisas que o
“contaminam”. Agora, é verdade que em grego o plural pode com
322
Não há suficiente evidência textual para lhe acrescentar ao v. 16 a seguinte oração, “Se alguém tem
ouvidos para ouvir, ouça”.
Marcos (William Hendriksen) 369
frequência ser traduzido corretamente pelo singular em nosso idioma.
Entretanto, no caso presente, à vista da extensa lista de coisas que
contaminam (vejam-se os vv. 21, 22), provavelmente é melhor reter o
plural inclusive na tradução. O que Jesus diz, portanto, é que a
contaminação real não é a física, mas sim a moral e espiritual. A
contaminação, em outras palavras, origina-se no coração. Em nossos
dias, em que tanto se fala e até também algo está-se fazendo a respeito
dos vários tipos de contaminação física, quer dizer, contaminação que
age de fora para dentro, a advertência de Cristo contra a contaminação de
dentro é, sem dúvida, muito necessária.
17. Quando entrou em casa, 323 deixando a multidão, os seus
discípulos o interrogaram acerca da parábola.
Finalmente Jesus está sozinho com Seus discípulos. Entrou em Sua
casa. É verdade que em lugar de “fui para casa” são possíveis também as
traduções “e entrou numa casa”, ou “entrou”. Não é possível estar
completamente seguros a respeito do significado desta frase no original.
Entretanto, segundo se mostrou, as referências de Mc. 2:1 e 3:20 são
provavelmente à casa de Jesus em Cafarnaum. Veja-se o comentário
sobre estas passagens. Podemos supor então, que os eventos relatados
em Mc. 7:1–23 ocorreram em alguma parte de Cafarnaum ou perto de
onde Jesus teve Seu centro de ação durante Seu grande ministério
galileu.
Aqui, então, em casa de Jesus em Cafarnaum, Seus discípulos, com
(segundo informa Mateus) Pedro como porta-voz, pedem a seu Mestre
uma explicação desta “parábola”. É evidente que o termo “parábola”
usa-se aqui no sentido de um tal conciso, um mashal ou provérbio.
Refere-se ao aforismo do versículo 15.
18, 19a. Então, lhes disse: Assim vós também não entendeis? Não
compreendeis que tudo o que de fora entra no homem não o pode

323
Ou: tinha entrado (em casa).
Marcos (William Hendriksen) 370
contaminar, porque não lhe entra no coração, mas no ventre, e sai para
lugar escuso?
Parece que Jesus dissesse, “Que outros — como os fariseus e
escribas e o povo em geral — não captem Meu ensino não Me estranha,
mas que vós, que estivestes comigo por tanto tempo e em tão estreita
relação, sejam tão fechados, parece-me indesculpável” (cf. Jo. 14:9). Os
Doze não se davam conta de que tudo o que entra no homem de fora é,
por fim, eliminado do corpo? E, sendo que em sua trajetória pelo corpo
entra no estômago, mas jamais em seu coração, que é o núcleo e centro
de todo seu ser (veja-se em 6:52), como pode tornar o homem poluído,
impuro ou corrupto?
19b. Às palavras de Jesus, Marcos acrescenta sua própria
observação. É a interpretação que o inspirado evangelista dá à expressão
de Jesus quanto à contaminação cerimonial versus a contaminação
verdadeira. E, assim, considerou ele puros todos os alimentos.
Na realidade o original não diz mais que: “declarando (ou: fazendo,
pronunciando) limpos todos os alimentos”. 324 Isto levantou a pergunta
sobre quem ou o que é que torna “limpos” os alimentos. Conforme o
veem alguns, é a latrina ou “lugar escuso” o que faz isto. 325 Com a
maioria dos expositores, parece-me que o que Marcos quer dizer é que
Jesus declarou todos os alimentos limpos mediante o princípio que
estabeleceu no versículo 15. As razões são como seguem:
a. É muito difícil compreender como uma latrina pode fazer ou
declarar todos os alimentos limpos.
b. A última vez que Marcos mencionou a Jesus pelo nome foi em
Mc. 6:30, mas por meio de um pronome (independente ou implícito de
alguma maneira verbal), fez referência a Jesus vez após vez (Mc. 6:31,

324
Com βρ_ματα cf. ambrosia: o alimento imaginário dos deuses gregos e romanos; também
ambrosial, “delicioso”.
325
Veja-se Lenski, Op. cit., pp. 188, 189. Mas Swete, Op. cit., p. 152, assinala com razão que tal
ponto de vista quase não merece consideração.
Marcos (William Hendriksen) 371
34, 35, 37, etc., e assim também em Mc. 7:1, 5, 6, 9, 14, 17, 18). Não é
natural supor que a referência do v. 19b é também a Jesus?
c. Se a opinião, amplamente apoiada, de que Marcos foi “intérprete
de Pedro” (veja-se Introdução, I) é correta, podemos supor então que a
própria experiência de Pedro registrada em Atos 10:9–16 e 11:1–18 (a
visão do lençol que descia com todo tipo de animais imundos) foi
incluída em sua pregação e relacionada com a expressão de Jesus que se
ordena em Marcos 7:15. Bem podemos crer que Marcos lembrou e
adotou a conclusão de Pedro como convicção própria, segundo nos é dito
em Marcos 7:19b. Não achamos acaso um eco de “assim (Jesus)
declarou limpos todos os alimentos” em Atos 10:15 (cf. 11:9), “O que
Deus limpou, não o chames comum (ou: imundo)”?
d. Se for Jesus quem declarou limpos todos os alimentos, então a
lógica é clara, porque em Marcos 7:15 é Ele quem declara que tudo o
que entra de fora no homem não pode contaminá-lo. Portanto, todos os
alimentos, incluindo a carne dos animais cerimonialmente “imundos”,
são em princípio não poluentes. Os intérpretes podem diferir quanto ao
momento exato em que, conforme à vontade de Deus, efetuou-se a
abolição das leis cerimoniais referentes ao limpo e ao impuro. Teve lugar
justamente agora, no momento em que Jesus pronunciou estas palavras?
Foi na crucificação de Jesus? (veja-se Cl. 2:14). Ou no dia do
Pentecostes? Qualquer que seja a resposta, a verdade é que, em
princípio, todos os alimentos foram declarados limpos nesta ocasião.
Depois de deixar claro o que não contamina, Jesus passa a afirmar
então (cf. v. 15b mais acima) o que realmente contamina uma pessoa.
Somente que desta vez combina todas as coisas poluentes dos versículos
15b, 21–23 num só pacote,
20. E dizia: O que sai do homem, isso é o que o contamina.
E o amplia acrescentando:
21, 22. Porque de dentro, do coração dos homens, é que
procedem os maus desígnios, a prostituição, os furtos, os homicídios,
Marcos (William Hendriksen) 372
326
os adultérios, a avareza, as malícias, o dolo, a lascívia, a inveja, a
blasfêmia, a soberba, a loucura.
Depois do dito a respeito do coração em Mc. 6:52, não é estranho
que Jesus o descreva aqui como a fonte dos sentimentos, aspirações,
pensamentos e ações humanas; no caso presente, de toda sua verdadeira
corrupção moral e espiritual.
Os termos 327 que Jesus usou desta vez para descrever os corruptivos
vícios que contaminam o homem, no Novo Testamento são distribuídos
como se vê no gráfico que damos mais abaixo.
É impossível detectar um agrupamento detalhado ponto por ponto.
Neste sentido, a passagem paralela do Mateus 15:19 É diferente. Ali,
depois da designação introdutória “más intenções”, e começando com
“homicídios”, a distribuição segue mais ou menos a sequência da
segunda tábua do Decálogo. Mas aqui em Marcos (Mc. 7:21, 22) tudo o
que com segurança podemos dizer é que primeiro ocorre o que se pode
considerar um cabeçalho: “as más intenções” 328 (ou: “sistemas”,
“maquinações”). Depois os primeiros 6 pecados estão no plural, e os
326
Literalmente: olho maligno.
327
Indo a palavras cognatas do idioma espanhol, pode-se descobrir imediatamente a maioria dos
significados gregos originais. Entretanto, para poder descobrir o significado exato de cada termo, é
necessário uma cuidadosa exegese — incluindo em cada caso o estudo do contexto e das passagens
paralelos. O estudo de cognatos e da derivação das palavras é muito útil. Entretanto, não é o mais
importante. Por exemplo, βλασφημία sugere “blasfêmia”; mas há muitos casos em que “blasfêmia”
não seria a tradução correta da palavra grega. Tendo presente esta advertência note-se o seguinte:
διαλογισμός diálogo
κακός cacofonia (som áspero, desagradável)
πορνεία pornografia (fotos que despertam desejos sexuais)
κλοπή cleptomaníaco (ladrão habitual)
φόνος pernicioso (mortífero, sanguinário)
πονηρία ações que revelam maldade moral e espiritual
_φθαλμός oftalmologista (médico de olhos)
βλασφημία blasfêmia
_φροσύνη carece dos órgãos próximos ao diafragma; em consequência, sem coração (e mente),
néscio.
Há outras palavras que também são fáceis de analisar; p. ex., πλεονεξία é o desejo pecaminoso de
sempre possuir cada vez mais; _περηφανία é pretender colocar-se sobre (_πέρ) outros.
328
Ο_ διαλογισμο_ ο_ κακοί = “as (ou: aquelas) maquinações, os perversos (ou: maus) planos”.
Marcos (William Hendriksen) 373
últimos 6 se conservam no singular. Os primeiros 6 descrevem ações
perversas; os 6 últimos os perversos impulsos e palavras que estão
relacionadas com tais ações afins.
Outras listas de vícios podem ser achadas em Rm. 1:18–32; 13:13;
1Co. 5:9–11; 6:9, 10; 2Co. 12:20; Gl 5:19–21; Ef. 4:19; 5:3–5; Cl. 3:5–9;
1Ts. 2:3; 4:3–7; 1Tm. 1:9, 10; 6:4, 5; 2Tim. 3:2–5; Tt. 3:3, 9, 10; 1Pe.
4:3; Ap. 21:8; 22:15.
Dizer que a lista de Marcos é paulina porque 8 dos 12 pontos se
acham também nas epístolas de Paulo (veja-se gráfico) é ir longe demais.
Não seria, antes, algo muito estranho se em mais de doze listas de vícios
que menciona Paulo não estivesse incluída a maioria de vícios
mencionados aqui em Marcos 7:21, 22? Além disso, naqueles dias, e
mesmo antes, tais listas de vícios eram populares. O livro apócrifo A
Sabedoria de Salomão 14:25ss. inclui os vícios 2, 3, 4, 7, e 8 da lista que
se acha em Marcos 7:21, 22. Os rolos do Mar Morto contêm também
listas semelhantes. 329 E a lista dos 12 vícios atribuída a Cristo aqui não
se parece muito com nenhuma lista dos escritos de Paulo (ou de Pedro,
etc.). Deve ter sido a própria lista de Cristo, reproduzida por Marcos e
abreviada por Mateus.

οἱ διαλογισμ οί οἱ κακοί (= intrigas ou más intenções.): Mc. 7:21; Cf. Mt.


15:19.
1. πορνεῖαι (= pecados sexuais ou atos imorais): Mc. 7:21; Cf. Mt. 5:32,
15:19, 19:9; Jo. 8:41; At. 15:20, 29; 21:25; 1Co. 5:1 (2); 6:13, 18; 2Co.
12:21; Gl 5:19; Ef. 5:3; Cl. 3:5; 1Ts. 4:3; Ap. 2:12; 9:21; 14:8; 17:2, 4;
18:3; 19:2.
2. κλοπαί (= furtos): Mc. 7:21; Mt. 15:19; Ap. 9:21.
3. φόνοι (= homicídios): Mc. 7:21; 15:7; Mt. 15:19; Lc. 23:19, 25; At. 9:1;
Rm. 1:29; Hb. 11:37; Ap. 9:21.
4. μοιχεῖαι (= adultérios): Mc. 7:22; Mt. 15:19; Jo. 8:3 330 .

329
Veja-se M. Burrows, The Dead Sea Scrolls (Nova York, 1956), pp. 375, 386, 387.
330
A respeito de João 8:3 (μοιχεία), veja-se CNT sobre João.
Marcos (William Hendriksen) 374
5. Πλεονεξία (= cobiças): Mc. 7:22; Mt. 15:19; Lc. 12:15; Rm. 1:29; 2Co 9:5;
Ef. 4:19; 5:3; Cl. 3:5; 1Ts. 2:5; 2Pe. 2:3, 14.
6. πονηρίαι (= atos iníquos): Mc; 7:22; Mt. 22:18; Lc. 11:39; At. 3:26; Rm.
1:29; 1Co. 5:8; Ef. 6:12.
7. δόλος (= engano): Mc. 7:22; 14:1; Mt. 26:4; Jo. 1:47; At. 13:10; Rm. 1:29;
2Co. 12:16; 1Ts. 2:3; 1Pe. 2:1, 22; 3:10.
8. ἀσέλγεια (=luxúria): Mc. 7:22; Rm. 13:13; 2Co. 12:12; Gl 5:19; Ef. 4:19;
1Pe. 4:3; 2Pe. 2:2, 7, 18; Jd. 4.
9. ὀφθαλμὸς πονηρός (= inveja; literalmente: olho sinistro): Mc. 7:22; Mt.
20:15;
10. βλασφημία (= fala abusiva ou calúnia): Mc. 3:28; 7:22; 14:64; Mt.
12:31(2); 15:19; 26:65; Lc. 5:21; Jo. 10:33; Ef. 4:31; Cl. 3:8; 1Tm. 6:4; Jd.
9. Ap. 2:9; 13:1, 5; 17:3.
11. ὑπερηφανία (= arrogância): Mc. 7:22.
12. ἀφροσύνη (= insensatez): Mc. 7:22; 2Co. 11:1, 17, 21.

Quanto aos vícios separadamente observe-se o seguinte:


O termo introdutório “más intenções” (“intrigas” ou
“maquinações”) é literalmente “aqueles maus diálogos (internos)”. Uma
pessoa frequentemente desenvolve diálogos mentais (veja-se Sl 14:1;
39:1; 116:11; Dn. 5:29, 30; Ob. 3; Mc. 2:6, 7; 5:28; Lc. 12:17ss.; 15:17–
19; 16:3, 4; Ap. 18:7). Dos textos recém mencionados entre parêntese,
três deles (Sl 39:1; Mc. 5:28; Lc. 15:17–19) apresentam um “diálogo”
(ou “reflexão”) pode-se descrever como bom. Um (Lc. 16:3, 4) é metade
bom e metade mau, conforme o mostra o contexto. Todos os outros
casos são maus. Isto também é válido nos casos em que se usa a mesma
palavra “diálogo” ou “dialogar”. Em quase todos os casos (Lc. 2:35 é
uma possível exceção) as reflexões ou raciocínios internos são de
natureza definidamente pecaminosa. Além de Mt. 15:19; Mc. 7:2, veja-
se Lc. 5:22; 6:8; 9:46, 47; 24:38; Rm. 1:21; 14:1; 1Co. 3:20; Fp. 2:14;
1Tm. 2:8; Tg. 2:4. Não obstante, o que uma pessoa fala dentro de seu
coração é provavelmente ainda mais importante que o que diz a viva voz
(Pv. 23:7).
Marcos (William Hendriksen) 375
Uma das razões por que tais diálogos são tão importantes é que
provocam ações e estimulam impulsos internos. Também se revelam em
palavras faladas. Estes vários vícios se enumeram agora por meio de
exemplos: 6 no plural, seguidos de 6 no singular; 6 tipos de ações,
seguidas de 6 que representam móveis, tendências (ou estados) do
coração (veja-se os números 7, 8, 9, 11, 12 no gráfico) e da palavra (nº.
10). O contexto presente mostra Jesus no ato de descrever o que
corrompe ou contamina uma pessoa, e os doze pecados que menciona
são sem exceção de caráter perverso.
Os primeiros seis são os seguintes:
Pecados sexuais ou atos imorais. Em seu sentido mais amplo, o
termo que aqui se usa aponta a pecados sexuais em geral, à conduta
sexual ilícita de todo tipo, seja dentro ou fora dos laços matrimoniais.
Em geral o pecado acontece fora do laço matrimonial, mas nem sempre.
Em Mt. 5:32; 19:9 refere-se à infidelidade matrimonial. Em Jo. 8:41
fala-se de relações sexuais ilegais. Em At. 15:20, 29; 21:25 poderia
haver uma referência especial ao casamento dentro dos graus de
afinidade ou consanguinidade proibidos (veja-se Lv. 18:6ss.). Paulo usa
a palavra muitas vezes (veja-se o gráfico). Cobre uma ampla posição de
atos sexuais pecaminosos. Também hoje em dia devemos chamar a
atenção a esta larga banda de desmandos. Só precisamos mencionar
coisas tais como violações, mostrar e/ou ler literatura pornográfica,
relações sexuais pré-conjugais, contar ou ouvir com entusiasmo
conversas indecentes, etc.
Furtos. Conforme o mostra o gráfico, a palavra aparece muito
poucas vezes no Novo Testamento, mas com frequência se faz referência
a este pecado (veja-se CNT sobre Ef. 4:28; Tt. 2:9, 10; Fm. 18–20).
Muitos escravos tinham o costume de roubar. Mesmo depois de sua
conversão era preciso exortá-los para que não voltassem para seus maus
caminhos.
Não se deveria hoje admoestar os que furtam nas tendas? E os
folgazões no trabalho? E os que esbanjam o que Deus lhes deu? E os que
Marcos (William Hendriksen) 376
omitem intencionalmente dar a César o que é de César? E quando um
governo ou alguma de suas agências faz mau uso do dinheiro dos
contribuintes, não é também uma forma de roubar? E o que diremos de
reter as coisas que são de Deus?
Homicídios. Não sabemos com certeza por que se mencionam os
homicídios com relação aos pecados precedentes. Pode ser que haja
alguma razão para isto. Acaso não se cometem homicídios no próprio
cenário onde ocorrem os atos imorais e os roubos?
Horrorizamo-nos diante do assassinato das crianças perpetrado por
Herodes. Não reclama vingança ao céu o sangue de milhares de fetos que
em nosso tempo são assassinados (o aborto)? Pode harmonizar-se isto de
algum modo com as Escrituras? Leia-se Êx. 20:13; Lv. 18:21; 20:2ss.;
2Rs. 23:10; Jr. 32:35; Êx. 16:21; Am. 1:13; Mt. 7:12; Ef. 4:32; 5:1, 2.
Adultérios. Consiste na violação dos votos matrimoniais. Isto ocorre
quando um homem casado voluntariamente tem relações sexuais com
uma mulher que não é sua esposa; ou quando uma mulher casada
voluntariamente tem relações sexuais com outro que não seja seu
marido.
Deve deixar-se claro, entretanto, que Jesus aguçou o fio de cada
mandamento. Ensinou que o ódio é homicídio (Mt. 5:21, 22), e que o
olhar lascivo de um homem casado para outra mulher é adultério (Mt.
5:28).
Tem-se dito que uma das razões da queda do império romano foi
que a mulher se casava para poder divorciar-se, e que se divorciava para
poder casar-se. E o que dizer da situação de hoje?
Cobiças. Não sabemos bem a razão da sequência “adultérios,
cobiças”, mas se nos propuséssemos achar alguma relação teríamos que
pensar em primeiro lugar na apropriação voraz em matérias de sexo, em
prejuízo de outros: “Não cobiçarás … a mulher de teu próximo”. Mas
Êx. 20:17 e Mc. 7:22 são o bastante amplos para incluir toda forma de
avareza (cf. Lc. 12:15).
Marcos (William Hendriksen) 377
Quando pecaminosamente os anciãos de Israel pediram um rei, foi-
lhes dito que este rei tomaria … tomaria … tomaria … tomaria …
tomaria … (1Sm. 8:11–17). Deus, em Cristo, dá e dá e dá e volta a dar
sem fim (Jo. 1:16; 3:16; 5:26; 17:22; Rm. 8:32; Gl 1:4; 2:20; Ef. 1:22,
5:25; 1Tm. 2:6; Tt. 2:14; 1Jo. 5:10; etc.). Os verdadeiros seguidores de
Cristo não são avaros ou ambiciosos (veja-se 2Co. 8:8, 9).
Atos iníquos. Isto bem poderia ser a soma de todas as manifestações
da maldade, tanto as já mencionadas como também outras.
Os seis pecados restantes são:
Engano. Esta é a primeira das seis atitudes ou impulsos
pecaminosos que se mencionaram. Os atos já enumerados estão
estreitamente relacionados com essas ímpias tendências da natureza
humana.
Onde Marcos diz engano, Mateus menciona falsos testemunhos. Os
dirigentes dos judeus planejavam usar o engano para levar a cabo a
morte de Cristo (Mc. 14:1). Conforme 2 Coríntios 12:16 os inimigos de
Paulo acusaram o apóstolo de engano. Insinuavam possivelmente que o
apóstolo queria apropriar-se de algo do dinheiro que tinha sido doado
para os pobres de Jerusalém? Claro que isto estava muito longe dos
pensamentos de Paulo (cf. 1Ts. 2:3). É evidente por João 1:47, que o
engano é algo muito comum. Uma bela passagem é 1 Pedro 3:10.
Luxúria. Outras formas para designar esta mesma tendência
pecaminosa são: lascívia, dissolução. Note-se no gráfico as muitas
referências a esta inclinação pecaminosa na natureza humana. Este termo
sublinha a falta de autocontrole que caracteriza a pessoa que dá livre
curso aos seus impulsos perversos. Fez-se notar que não foi a lava, e sim
a luxúria o que sepultou a cidade do Herculano. E os afrescos achados
em meio das ruínas de Pompeia mostram que esta cidade não era muito
melhor.
Inveja. O grego literalmente diz: “olho maligno”, e o verdadeiro
paralelo não é Mt. 6:23, e sim Mt. 20:15; “É o teu olho …?” significa
“Tem você inveja porque sou bom (generoso)?”. Sempre que se trata de
Marcos (William Hendriksen) 378
diferenciar o ciúme da inveja, definem-se o ciúme como o temor de
perder o que se possui, e a inveja como o desagrado de ver que alguém
possui algo que a gente não tem.
Um dos vícios que mais destrói a alma é a inveja. Não é acaso “o
primogênito do inferno”, “podridão dos ossos” (Pv. 14:30)? Nossa
palavra inveja em português vem do latim invideo, que significa “olhar
contra”, quer dizer, olhar mal a outra pessoa por causa dos bens que
possui. Como dissemos, é interessante notar que em Marcos 7:22, o
original grego expressa esta ideia literalmente, porque seu significado
básico é “olho sinistro”, o olho que olha a outra pessoa com desagrado,
cheio de má vontade e irritação.
Foi a inveja o que causou o assassinato de Abel; o que lançou José a
um poço; o que fez com que Coré, Datã e Abirão se rebelassem contra
Moisés e Arão; o que fez Saul perseguir Davi; o que alentou as amargas
palavras que o “irmão mais velho” (na parábola do filho pródigo) dirigiu
a seu pai, e o que crucificou a Cristo. O amor nunca tem inveja.
Continuando, o texto deixa o tema das tendências pecaminosas,
para referir-se à perversa obra da língua:
Linguagem abusiva ou calúnia. A palavra usada no original é
blasfêmia (veja-se mais acima, sobre 3:28). Em Marcos 7:22, o vocábulo
aparece entre “inveja” e “arrogância”, o que indica que provavelmente
tem relação com a difamação da reputação, com o desprezo, a calúnia, a
linguagem depreciativa e insolente dirigida contra outra pessoa, quer se
dirija à pessoa diretamente ou a suas costas.
Às vezes a vida nos traz amarguras.
A carga aflitiva se torna severa;
Não tente então fazê-la mais dura,
Não dê a palavra que o ódio prospera.
Sela seus lábios, prudente e com zelo,
Não brotem palavras que causam dor,
Abunda naquelas que levam consolo,
Que são louvor, que infundem valor.
(Adaptação) Effie Wells Loucks
Marcos (William Hendriksen) 379
Arrogância. É a tendência maligna de pretender ser melhor, mais
capaz, superior a outros. É uma tendência universal do coração humano e
o é por natureza. Os governantes das nações de todos os tempos fizeram-
se réus deste pecado (Mt. 20:25; Lc. 22:25).
Note-se a linguagem arrogante de um deles, segundo se relata em
Isaías 14:13, 14. Leia-se também Is. 37:8–13. Mas este mal também
carcomia os escribas e fariseus (Mt. 23:5–12; Mc. 12:38, 39; e
especialmente leia-se Lc. 18:11, 12). E até os discípulos tiveram que
lutar contra este pecado (Mt. 18:1–6; 20:20–27; Mc. 10:35–44; Lc. 9:46–
48). Em contraste com tudo isto, considerem-se as palavras de Jesus (Mt.
20:28; Mc. 10:45; Lc. 22:27; Jo. 13:14, 15).
Insensatez é o termo que provavelmente resume as cinco tendências
e palavras precedentes, do mesmo modo que “atos iníquos” resume as
ações que a precederem (cf. Mt. 25:2).
Jesus fecha esta seção ao dizer,
23. Todas estas maldades salen de dentro y contaminan al
hombre.
Em Marcos 6:52 (veja-se ali) vimos que o conceito bíblico de
“coração” aponta ao centro de onde flui toda a vida humana. Agora, se
os vícios mencionados em Marcos 7:21, 22 procedem do coração do
homem, não há dúvida que estes contaminarão toda sua vida intelectual,
emocional e volitiva. O que se deve fazer, portanto, é orar para que lhe
seja dado um coração novo, transformado, e não deveríamos nos
preocupar muito do assunto das mãos sem lavar. A corrupção verdadeira
é a moral e espiritual, não a física.
Davi o expressa de forma muito bela: “Cria em mim, ó Deus um
coração limpo, e renova um espírito reto dentro de mim”.
Marcos (William Hendriksen) 380
Resumo do Capítulo 7:1–23

Veja-se também CNT sobre Mateus, p. 649. Até aqui Marcos


descreveu cinco enfrentamentos entre Jesus e os dirigentes. Estes O
haviam acusado de atribuir-Se prerrogativas divinas (Mc. 2:7), de
relacionar-Se intimamente com gente “pecadora” (Mc. 2:16), de permitir
os Seus discípulos profanar o sábado (Mc. 2:24), de que Ele mesmo não
guardava o sábado (Mc. 3:2, 6) e de expulsar demônios pelo poder do
príncipe dos demônios (Mc. 3:22).
A presente (sexta) confrontação gira em torno da pergunta básica,
“É a tradição humana ou a Palavra de Deus, a regra da fé e a prática?”
A ocasião produziu-se quando chegaram a Galileia provavelmente
(Cafarnaum?) alguns fariseus e escribas residentes em Jerusalém.
Deviam espiar a Jesus. Perguntaram-lhe: “Por que não andam os teus
discípulos de conformidade com a tradição dos anciãos, mas comem com
as mãos por lavar?” Ele lhes respondeu: “Jeitosamente rejeitais o
preceito de Deus para guardardes a vossa própria tradição”. E para
demonstrá-lo fez com que visse como eles se opunham a que se
obedecesse o quinto mandamento. As pessoas em geral e os Seus
discípulos, receberam explicação depois que a verdadeira corrupção não
vem de fora, e sim do interior do coração do homem.
Marcos (William Hendriksen) 381
B. O RETIRO E OS MINISTÉRIOS NA PEREIA: Mc. 7:24–37

Mc. 7:24–30 - A fé da mulher siro-fenícia é recompensada


Cf. Mt. 15:21–28

Incluindo Marcos, o tema dos Sinóticos pode-se resumir como A


obra que lhe desta para fazer. A primeira divisão deste tema é Seu
Começo ou Inauguração (Mc. 1:1–13). A segunda é Seu Progresso ou
Continuação (Mc. 1:14–10:52). Na seção anterior terminamos o Grande
Ministério na Galileia (Mc. 1:14–7:23), que é a primeira subdivisão
desta segunda.
Agora começamos a segunda subdivisão, O retiro e os Ministérios
na Pereia (Mc. 7:24), a qual prossegue até Mc. 10:52 inclusive. No CNT
sobre Mateus (pp. 16–19) encontram-se as razões que respaldam este
esboço e também uma breve descrição do conteúdo principal de suas
divisões e subdivisões. As possíveis datas (impossível precisá-las) são as
seguintes: o Ministério do Retiro pôde ter ocorrido de abril a outubro de
29 d.C.; o Ministério da Pereia de dezembro de 29 d.C. a abril de 30 d.C.
Quanto a este último ministério intermediário na Judeia, de outubro a
dezembro, veja-se especialmente CNT sobre Jo. 7:2–10:39. De Marcos
7:24 até o final do capítulo 9 é-nos informado dos eventos que ocorreram
durante o Ministério do Retiro. Não se dá uma transição abrupta ou
radical entre o ministério precedente e o presente, mas antes, é uma
questão de matiz. Por exemplo, durante o longo período que, em grande
parte, Jesus passou em Cafarnaum e arredores (Mc. 1:14–7:23), Ele Se
achava com frequência rodeado de multidões. Nesta oportunidade (Mc.
7:24–9:50) tampouco evita as multidões (Mc. 8:1; 9:14), mas inclusive
às vezes as convida a vir a Ele (Mc. 8:34). Não obstante, há uma
diferença de matiz: em geral agora já não é visto na companhia de
multidões, mas com Seus discípulos. Está instruindo-os (Mc. 8:1; 14:21,
27–33; 9:28, 29, 31–50). Tem plena consciência de que a cruz não pode
estar muito longe. Em consequência, expõe aos Doze os ensinos a
Marcos (William Hendriksen) 382
respeito da cruz (Mc. 8:31; 9:31). Isto continua também no Ministério na
Pereia (Mc. 10:33, 34). A fim de poder comunicar esta importante
informação de maneira eficaz, Jesus busca lugares de retiro longe dos
centros de atividade. Passa muito tempo em território
predominantemente gentílico.
Se recebemos permissão para certa liberdade quanto a algumas
localidades um tanto incertas, pode ser útil o mapa que mostra o
Ministério do Retiro de Cristo (Mc. 7:24–9:50). Talvez pôde haver
viagens que não se mencionam nos Evangelhos (cf. Jo. 20:30, 31;
21:25). Quatorze seções de Marcos cobrem os eventos que ocorreram
durante este período nos seguintes lugares:
1. A região de Tiro (Mc. 7:24–30)
2. Decápolis (Mc. 7:31–37)
3. Decápolis (Mc. 8:1–10)
4. Dalmanuta (Mc. 8:11–13)
5. Mar da Galileia entre a Dalmanuta e Betsaida (Mc. 8:14–21)
6. Betsaida (Mc. 8:22–26)
7. Cesareia de Filipe (Mc. 8:27–30)
8. Cesareia de Filipe (Mc. 8:31–9:1)
9. Monte da transfiguração e arredores (Mc. 9:2–13)
10. Monte da transfiguração e arredores (Mc. 9:14–29)
11. Caminho para Cafarnaum (Mc. 9:30–32)
12, 13, 14. Cafarnaum (Mc. 9:33–37; 9:38–41; 9:42–50
respectivamente)
Marcos 7:24–30 e Mateus 15:21–28 relatam essencialmente a
mesma história. Além disso, o espaço que se dedica ao relato é mais ou
menos o mesmo, só que Marcos tem umas poucas palavras menos. Em
ambos os relatos, Jesus deixou o lugar de Sua residência —
possivelmente Cafarnaum — e chega às cercanias de Tiro. Ali uma
mulher não judia daquela região clama-O, pedindo ajuda porque sua
filha está possuída por um demônio. A mãe da menina é muito insistente
em sua demanda. Jesus não lhe concede imediatamente seu desejo. Diz-
Marcos (William Hendriksen) 383
lhe: “Não é bom tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos”. Elá
responde: “Mas os cachorrinhos, debaixo da mesa, comem das migalhas
das crianças”. Jesus elogia sua fé e lhe concede sua petição.
Cada um destes dois evangelistas faz sua própria contribuição a esta
história, mas não se produz conflito algum. Cada um usa seu próprio
estilo e apresenta os eventos de acordo com as necessidades de seus
leitores. Mateus identifica a mulher como cananeia. Os judeus que liam o
Evangelho de Mateus tinham ouvido muito a respeito desta gente ímpia
(Gn. 12:6; 13:7; 38:2; e veja-se especialmente Js. 9:1ss.; 11:3ss.). Os
cananeus causaram muitos problemas nos dias de Josué e inclusive mais
tarde. O quê? Também para eles há salvação? O relato de Mateus é algo
mais dramático que o de Marcos. A mulher chama Jesus “Senhor, Filho
de Davi”, e lhe roga “tem compaixão”. Embora desde o princípio ela
identifica sua tristeza com a de sua filha (“Tem compaixão de mim!
Minha filha …”), o processo de identificação aumenta em intensidade,
chegando a seu clímax quando a mãe deixa de mencionar a filha, e
simplesmente exclama: “Senhor, socorre-me!”. Segundo Mateus, a
mulher fala com Jesus três vezes separadamente, e cada vez o
evangelista reproduz suas palavras em discurso direto. Marcos reproduz
só duas de suas linhas, e só uma vez por meio de discurso direto. Mateus
introduz os discípulos. Como é característico deles, pedem a Jesus que a
despeça. Marcos nunca menciona os discípulos em seu relato. Mateus
diz que, no princípio, Jesus não respondeu a suplicante mulher, e que
depois lhe disse: “Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de
Israel.” À vista da gente a quem Marcos escreve, não nos surpreende que
Marcos não registre esse detalhe.
Marcos faz sua própria e valiosa contribuição. Embora ele mesmo
não fosse um apóstolo, com toda segurança tinha ouvido Pedro relatar a
história. Para mostrar quão “famoso” tinha chegado a ser Jesus naquele
momento, Marcos informa que, embora ao chegar à região de Tiro, o
Mestre entrasse numa casa, buscando privacidade, “não pôde ocultar-se”.
Marcos informa também que a mulher era grega, quer dizer, gentia de
Marcos (William Hendriksen) 384
nascimento, com antecedentes pagãos e de nacionalidade siro-fenícia.
Estes pequenos detalhes eram apreciados pelos leitores gentios para
quem Marcos escreveu este Evangelho. Este evangelista mostra mais
claramente que Mateus, que quando Jesus compara a situação da mulher
com a dos cachorrinhos, não queria com isto fechar completamente a
porta de sua esperança. Estava deixando-a claramente entreaberta (veja-
se sobre o v. 27a). Marcos, também diferente de Mateus, relata inclusive
o que sucedeu depois que a mãe voltou para sua casa: achou a menina
deitada em cama e que o demônio a tinha deixado.
24. Levantando-se, partiu dali 331 a para as terras de Tiro.
Também pode-se traduzir, “Deixou aquele lugar e foi embora a (ou:
entrou em) a região de Tiro”. 332 A diferença é pequena.
Esta é a antiga cidade de Tiro, cujos reis formaram uma aliança com
Davi e Salomão. Tiro proveu Israel de madeira e de hábeis artesãos,
enquanto que Israel enviou a Hirão, e a governantes posteriores, o trigo
que o povo de Tiro necessitava (1Rs. 5; At. 12:20). Foi Tiro que
introduziu o culto a Baal em Israel. Era uma ilha fortificada no
Mediterrâneo a muito pouca distância da costa (veja-se Is. 23; Ez. 26–
28). Estava situada ao sul de Sidom e ao norte do Carmelo. Alexandre
Magno a tomou e construiu uma ponte para chegar a ela.
profetizou-se que a gente de Tiro e seus arredores participaria
algum dia das bênçãos da era messiânica (Sl 87:4). Esta profecia
começou a cumprir-se quando a gente destes arredores foi a Galileia para

331
Ou: deixou aquele lugar e foi embora, etc.
332
O fato que _ναστάς poderia ser neste caso um particípio redundante dá apoio a esta alternativa.
Veja-se Vincent Taylor, Op. cit., p. 183, 348. Segundo seu parecer, 1:35 e 2:14 pertencem à mesma
classe. Isto é discutível, porque nestes dois casos a pessoa assinalada pelo particípio tinha estado
deitada (1:35) ou sentada (2:14), de modo que teria sido natural que se levantasse. Em 7:24 isto pode
ser também verdade. Jesus pôde ter estado sentado ensinando, o que à vista do v. 17 é uma boa
possibilidade, especialmente se há uma estreita relação cronológica entre o parágrafo precedente e
7:24ss. Mas visto que este ponto não pode demonstrar-se, talvez é melhor deixar lugar aqui para
qualquer das duas traduções.
Marcos (William Hendriksen) 385
ouvir Jesus e ser curados de suas doenças (Mt. 4:24, 25; Lc. 6:17). Nesta
ocasião é Jesus quem vai a eles.
Tendo entrado numa casa, queria que ninguém o soubesse.
Tinha a visita de Jesus um propósito missionário? Os expositores
diferem em suas conclusões:
a. Jesus não pensava em realizar um trabalho missionário naquele
lugar. Herodes Antipas tinha más intenções contra Jesus (Mc. 6:14, 16;
cf. Lc. 13:31). Os dirigentes judeus tramavam Sua morte. Muitas pessoas
O tinham deixado. Os Doze necessitavam instrução. O que fazia falta era
descanso e tranquilidade. De modo que entra numa casa. De algum
amigo? Não, ao que parece, de um estranho, com a esperança de obter
algum repouso sem interrupções, a fim de ter conversações confidenciais
com os Doze. 333
b. Jesus foi na direção noroeste aos limites da Fenícia em busca de
“um campo missionário mais frutífero”. 334
c. É inútil especular. 335
d. O desejo de Jesus era permanecer oculto por algum tempo. 336
Pode ser que haja algo de fato em todas estas respostas. Quanto à
resposta a., já se mostrou que ao menos um dos propósitos do Ministério
do Retiro era indubitavelmente instruir os Doze, prepará-los para o que
viria: Sua morte na cruz, Sua ressurreição. Quanto a b., é-nos difícil
imaginar o Cristo compassivo viajando toda essa distancia até a Fenícia
sem incluir em Seus planos outorgar uma bênção a seus habitantes.
Referente a c., é sem dúvida verdade que não se deu uma completa
e definitiva resposta a respeito. E para d., talvez Calvino tenha algo de
razão. É provável que Jesus desejasse estar a sós com Seus discípulos só
“no momento”, para seguir depois — veja-se b. — com a atividade
missionária (vejam-se vv. 34–38).

333
Veja-se A. B. Bruce, Op. cit., p. 390.
334
J. W. Russel, ed. Teacher’s New Testament with Notes and Helps (Grand Rapids, 1959), p. 102.
335
M. H. Bolkestein, Op. cit., p. 158.
336
João Calvino, Harmony, vol. II, p. 262.
Marcos (William Hendriksen) 386
“Mas não pôde esconder-se”. Sobre esta passagem têm sido
pregados muitos sermões. Por exemplo, usou-se o texto para dizer que
quando Cristo entra no coração de uma pessoa, logo se fará manifesto
por meio de palavras, ações e atitudes. Ou tem-se dito que toda tentativa
por relegar a Cristo a segundo plano vai rumo ao fracasso. Uma geração
poderá esquecer-se totalmente dEle, mas a seguinte O redescobrirá, etc.
Embora tudo isto seja de valor, tais pensamentos têm muito pouca
relação com a passagem em seu presente contexto. No momento, só é
necessário assinalar que devido ao fato de que alguns — talvez muitos
— fenícios tinham feito já contato com Jesus e/ou tinham ouvido a
respeito de Jesus, era-lhe impossível permanecer oculto por muito
tempo. É por isso que não durou muito este período de repouso ou retiro.
Ele mesmo, por causa de Seu grande amor pelos pecadores, permitiu que
conseguissem “descobri-Lo”. Aqui se repete o de Mc. 6:34.
25, 26. Porque uma mulher, cuja filhinha estava possessa de
espírito imundo, tendo ouvido a respeito dele, veio e prostrou-se-lhe
aos pés. Esta mulher era grega, de origem siro-fenícia, e rogava-lhe
que expelisse de sua filha o demônio.
Aparece em cena uma mulher. Não se diz uma palavra a respeito de
seu marido. Talvez era viúva, o que nos lembra um milagre realizado
séculos atrás nesta mesma região, milagre que alegrou o coração de outra
viúva (1Rs. 17). O que quer que seja, o fato é que uma das qualidades
que sobressai vez após vez nos Evangelhos, é a bondade de Cristo para
com as mulheres, incluindo por certo também as viúvas (Mc. 12:4–44;
cf. Lc. 21:1–4; veja-se também Lc. 7:11–18; cf. Sl 146:9; Pv. 15:25; Is.
1:17).
Agora, esta mulher era oprimida por uma grande tristeza. Tinha
uma filha 337 — Marcos meigamente diz “filhinha” 338 — a qual amava

337
Notem-se _ς … α_τ_ς, o que é perfeitamente natural ao tratar-se de um estilo vivo, o da
conversação, o estilo de Marcos.
338
Sobre diminutivos, veja-se Introdução IV, nota 5 h; veja-se também sobre 3:9, nota 108.
Marcos (William Hendriksen) 387
muito. Mas esta menina estava endemoninhada. Já tratamos a possessão
demoníaca, veja-se sobre 1:23; também CNT sobre Mt. 9:32–34.
Havia alguma esperança para esta mulher e para esta menina? Não
estaria fechada a porta da esperança para esta mãe por causa de sua raça?
Era grega, quer dizer, gentia de nascimento, uma mulher com
antecedentes pagãos. Era siro-fenícia, quer dizer, de nacionalidade
Fenícia, cujas principais cidades eram Tiro e Sidom. Diz-se “Siro-
Fenícia” porque pertencia à província da Síria, e para distingui-la de
Líbia-Fenícia na costa da África do norte.
Ela foi imediatamente e caiu aos Seus pés. Este ato de prostrar-se
era amostra de sua humildade, reverência, submissão, e ansiedade (cf.
5:22). Ela pediu vez após vez, importunando a Jesus para que libertasse
sua querida filhinha do demônio, daquele espírito imundo.
27. Mas Jesus lhe disse: Deixa primeiro que se fartem os filhos,
porque não é bom tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos
cachorrinhos.
No plano de Deus estava estabelecido que as bênçãos centralizadas
em Cristo teriam que ser oferecidas primeiro aos “filhos”, quer dizer, aos
judeus. A oportunidade de fartar-se com este alimento 339 era oferecida
primeiro a eles, logo aos gentios (cf. Mt. 22:1–10; At. 13:44–48; 18:6;
Rm. 1:17). Essa era a norma. Todo desvio importante desta norma
equivalia a tirar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos. Por certo
que os cães — mesmo os de companhia — não podem esperar ser
tratados como a filhos. A mulher devia saber disso a fim de compreender
que se seu desejo chegasse a ser concedido, sê-lo-ia pela via de exceção
e, portanto, seria um assinalado privilégio.
Era esta norma um tanto, sem exceções, ou era flexível? Eis aqui o
problema. Se era rígida e devia ser literalmente aplicada a todos aqueles
que não deviam sua descendência física a Abraão, então “apagadas —
apagadas as luzes — apagadas todas” (com o perdão de E. A. Poe), e

339
Sobre o verbo χορτάζω (aqui aor. inf. pas. Χορτασθ_ναι) , veja-se 6:42, nota 285.
Marcos (William Hendriksen) 388
esta mulher faria melhor em ir embora. No presente caso, lançar o pão
dos filhos aos cachorrinhos, não só seria impróprio ou inconveniente,
seria impossível.
Note-se, entretanto, que com isto Jesus já está entreabrindo a porta.
Ao dizer “Deixa primeiro que se fartem os filhos”, diz a esta afligida
mulher que Deus não perdeu completamente de vista os gentios. Ela bem
poderia começar a raciocinar: “Se há bênçãos para o dia de amanhã
entesouradas para os gentios, por que não as utilizar hoje mesmo …
embora fosse por via de exceção?”
A fé que Deus lhe tinha dado era forte o bastante para notar que
Jesus não a desprezava. Estava vencida pelo amor, a ternura e a atitude
compassiva que, até sob Sua aparente dureza, Jesus não podia ocultar,
28. Ela, porém, lhe respondeu: Sim, Senhor; 340 mas os
cachorrinhos, debaixo da mesa, comem das migalhas das crianças.
Ao referir-se aos cachorrinhos, é como se Jesus oferecesse um dedo
a esta mulher, por assim dizer. Ela, pelo contrário, tomou a mão inteira.
Converte as palavras de aparente recriminação, “cachorrinhos”, 341 num
argumento otimista, e assim transforma uma iminente derrota numa
brilhante vitória. Parece como se dissesse: “Comparas-me com um
cachorrinho? Aceito o que nesta comparação se implica. Não só a aceito
mas também me alegro por ela, porque sem dúvida, sob a mesa, estes
cachorrinhos comem algumas das migalhas dos filhos”.
Alguns creem que a missão de Jesus em Sua vida terrestre estava
limitada totalmente e sem exceção alguma à nação judaica. Tal teoria
não tem apoio algum na evidência. O que diz Calvino é bem verdade:
“Em nenhum tempo, por certo, encerrou Deus Sua graça entre os judeus
de forma tal que não deixasse os gentios saborear algo dela”. 342

340
De acordo com outra leitura: “Bem, Senhor”, ou “Sim, Senhor”. Cf. Mt. 15:27.
341
τ_ κυνάρια. Deve rejeitá-la opinião de que no Novo Testamento um κύων é o mesmo que um
κυνάριον. Notem-se os contextos nos quais usa-se persistentemente a palavra κύων (Mt. 7:6; Lc.
16:21; Fp. 3:2; 2Pe. 2:22; Ap. 22:15). Contraste-se Mt. 15:26, 27; Mc. 7:27, 28.
342
Harmony, vol. II, p. 268.
Marcos (William Hendriksen) 389
Se o princípio anunciado por Jesus em Mateus 15:24, 26 e em
Marcos 7:27 não permitisse nenhuma exceção, e se tal norma fosse
inflexível, então, como teria sido possível que Jesus dissesse ao
centurião não judeu: “Vê, e como creste, seja-te feito”? Como teria dito
às pessoas que estava presente naquela ocasião, Digo-vos que muitos
virão do Oriente e do Ocidente e tomarão lugares à mesa com Abraão,
Isaque e Jacó no reino dos céus. Ao passo que os filhos do reino serão
lançados para fora, nas trevas”? (Mt. 8:10–12). Além disso, como pôde
ter dito, “Na verdade vos digo que muitas viúvas havia em Israel no
tempo de Elias, quando o céu se fechou por três anos e seis meses,
reinando grande fome em toda a terra; e a nenhuma delas foi Elias
enviado, senão a uma viúva de Sarepta de Sidom. Havia também muitos
leprosos em Israel nos dias do profeta Eliseu, e nenhum deles foi
purificado, senão Naamã, o siro? (Lc. 4:25–27). E como teria podido
dizer, “Ainda tenho outras ovelhas, não deste aprisco; a mim me convém
conduzi-las; elas ouvirão a minha voz; então, haverá um rebanho e um
pastor”? (Jo. 10:16). E agora, como poderia ter outorgado Jesus a esta
mulher siro-fenícia sua petição? E finalmente, como pôde ele, depois de
partir de Tiro, ter curado as multidões, entre os quais haviam muitos
gentios, conforme está implícito em Mateus 15:31?
Nem sequer durante a antiga dispensação, as bênçãos especiais de
Deus ficaram limitadas exclusivamente aos judeus. Em grande parte,
sim. Isto se deve afirmar sem reservas (veja-se Sl 147:20; Is. 5:4; Am.
3:2), mas sem nenhuma exceção? Indubitavelmente que não (Lc. 4:25–
27).
Com a vinda de Cristo, as bênçãos que se outorgavam a Israel
foram em grau cada vez mais crescente destinadas a alcançar os gentios,
e isto era algo que Jesus certamente bem sabia. Quanto às profecias e,
em certos casos, seus cumprimentos explícitos, vejam-se Gn. 17:5 (cf.
Rm. 4:17); 22:18; 26:4; 28:14; Sl 72:8–10; Is. 11:10 (cf. Rm. 15:12);
28:16 (cf. Rm. 10:11); 54:1–3 (cf. Gl 4:27); 60:1–3; 65:1; e Os. 2:23
Marcos (William Hendriksen) 390
(para as três cf. Rm. 9:24, 25); Joel 2:32 (cf. Rm. 10:12, 13); Am. 9:11,
12 (cf. At. 15:15–18); Mq. 4:1–3; Ml. 1:11.
Geralmente nos referimos ao Pentecostes como o dia em que, em
virtude do derramamento do Espírito sobre toda carne, a igreja chegou a
ser internacional. Isto é correto. Entretanto, aquele grande acontecimento
foi prefigurado já na antiga dispensação, e certamente em escala um
tanto mais ampla durante o ministério de Jesus na terra, incluindo
também o período anterior à crucificação. A regra de Mateus 15:24, 26 e
Marcos 7:27 teve várias benditas exceções.
Assim podemos entender também que Jesus aprovasse
completamente a perseverança daquela mulher nas três graças cristãs de
fé, esperança, e amor: fé em Cristo, que é Aquele cujo “amor ultrapassa
todo conhecimento” (Ef. 3:19); esperança nAquele que não ia frustrá-la;
e amor para com quem, pelo próprio fato de negar-se a despedi-la, já
tinha indicado que embora ela O amava, Ele a havia amado primeiro.
29. Então, lhe disse: Por causa desta palavra, podes ir; o
demônio já saiu de tua filha.
Quando Jesus disse, “Por causa desta palavra”, quis dizer muito
mais que “O que acabas de dizer (v. 28) demonstra quão hábil e
engenhosa que és”. No fundo, elogiava-a por sua fé, a virtude
fundamental que se tinha expresso tão gloriosamente em sua esperança,
decidida e firmemente ancorada, e por seu amor, puro e quente.
É verdade que, segundo Mateus, Jesus disse, “Ó mulher, grande é a
tua fé!”, conquanto em Marcos O apresenta elogiando-a por sua
declaração (ou palavra). Entretanto, visto que mediante esta palavra, ela
manifestou sua fé, não existe diferença essencial.
Ela também manifestou sua fé de outra forma, ou seja, indo para
casa. Se não tivesse sido pelo fato de ter crido que Jesus tinha curado a
sua filha, não se teria apressado para ir para casa. Note-se, Jesus a curou
sem tê-la visto nunca, dando-lhe completa cura à distância [cf. Mt. 8:5–
13 (Lc. 7:1–10); Jo. 4:46–54].
Sua fé não se viu defraudada:
Marcos (William Hendriksen) 391
30. Voltando ela para casa, achou a menina sobre a cama, pois o
demônio a deixara.
A pequena achava-se repousando tranquilamente.
Havia paz em seu semblante e em seu coração, porque tudo estava
bem. O demônio foi embora. Tinha saído totalmente vencido e não
voltaria jamais. 343 A mãe estava cheia de regozijo; tinha “achado” ao
mesmo tempo uma filha sã e um Salvador maravilhoso!
Há duas lições práticas que não se nos devem escapar:
a. Se os pais de hoje amassem ao Senhor e a seus filhos como ela o
fez, quanto dano poderia evitar-se, e que grande abundância de bênçãos
resultaria!
b. Se uma mulher pagã de nascimento usou o pouco conhecimento
que tinha do Senhor com tantos resultados, quanto mais se requer
daqueles que receberam privilégios muito maiores?

Mc. 7:31–37 – A cura de um surdo-mudo


Cf. Mt. 15:29–31

31. De novo, se retirou das terras de Tiro e foi por Sidom até ao
mar da Galiléia, através do território de Decápolis.
Não se indica quanto tempo permaneceu Jesus nos arredores de
Tiro. Nem sequer se indica com exatidão o lugar por volta de onde agora
Se dirige. Entretanto, a situação não é tão insubstancial como alguns
desejariam que crêssemos. Sabemos o seguinte:
a. Jesus viajou passando por Sidom.
b. Partiu cruzando pelo centro de Decápolis.
c. Provavelmente chegou até o Mar da Galileia ou seus arredores
em geral. Cf. Mc; 7:31 com Mc; 8:10.
Veja-se o mapa para seguir sua possível rota; será de ajuda para
obter um panorama mais detalhado das dez cidades.

343
Note-se βεβλημένον e _ξεληλυθός, ambos os particípios perfeitos.
Marcos (William Hendriksen) 392
32. Então, lhe trouxeram um surdo e gago e lhe suplicaram [a Jesus]
que impusesse as mãos sobre ele.
Segundo os versículos 32, 36, 37, é evidente que Jesus está rodeado
de uma multidão. Mateus 15:29–31 descreve os muitos milagres
realizados entre aquela gente. De todos eles, Marcos seleciona somente
este, que só ele descreve. O verbo “trouxeram” é um plural impessoal. 344
Cf. “Lançar-te-ão dos homens”, no sentido de, “Serás expulso de entre
os homens” (Dn. 4:32).
O homem que levaram a Jesus sofria de uma dupla incapacidade.
Primeiro, era surdo. 345 Em segundo lugar, falava com dificuldade; no
melhor dos casos, gaguejava. Assim que as pessoas o levaram pediram a
Jesus que pusesse a mão sobre o homem. Isto é provavelmente o que
viram que Jesus fez em outros casos de curas (cf. 6:5). E esta não seria a
última vez que o Mestre o faria (cf. 8:23). Sem dúvida, pôr a mão sobre a
pessoa era algo bom. Não significava que algo que vinha dEle lhes era
transferido, ou ao menos aplicado? (veja-se 1Tm. 4:14; 5:22; 2Tm. 1:6);
e quanto à uma transferência francamente diferente, veja-se Lv. 16:21.
Mas aquela gente ia descobrir que o Mestre tinha Sua própria forma
de fazer as coisas. Por exemplo, quando Jairo lhe fez uma petição similar
(Mc. 5:23), viu como o grande Médico fazia algo distinto, algo talvez
mais expressivo, demonstrando um amor mais pessoal e tenro (5:41). E
assim seria no caso presente. Ao tratar com as pessoas, o Senhor escolhe
Seus próprios métodos. Naamã teve que aprender esta lição (2Rs. 5:10–
14). O próprio Jacó, muito antes (Gn. 42:36; 45:25–28). Igualmente José
e seus irmãos (Gn. 50:15–21). E assim, também, mais tarde, Paulo (2Co.

344
Como em alemão man, holandês men, francês on, e o espanhol se.
345
κωφός pode estar relacionado tanto falando (portanto, mudo; Mt. 9:32, 33; 12:22; 15:30, 35; Lc.
1:22; 11:14) como escutando (portanto, surdo; Mt. 11:5; Mc. 9:25; Lc. 7:22). Pelo fato de que outro
adjetivo indica qual era o defeito deste homem, resulta claro que no presente caso (Mc. 7:32, 37) o
significado deve ser surdo. A razão da ambiguidade de significado deve-se provavelmente ao sentido
básico da palavra, que está relacionada com κόπτω. Um dos significados deste verbo é cortar. Cf. as
palavras em português síncope, apócope, etc. Este cortar, embotar, gastar, pode afetar tanto ao falar
como ao ouvir.
Marcos (William Hendriksen) 393
12:7–10). Nunca devemos dizer a Deus os métodos que deveria usar para
responder nossas orações … nem onde deveria pôr a mão! Seu próprio
método é sempre o melhor. Ama as pessoas não só em multidões, mas
também individualmente. Seu coração Se comove não só diante de uma
multidão (Mc. 6:34), mas também diante de um homem, este homem em
particular, a quem trata de forma diferente à maneira em que trataria a
qualquer outro.
33, 34. Jesus, tirando-o da multidão, à parte, pôs-lhe os dedos
nos ouvidos e lhe tocou a língua com saliva; depois, erguendo os
olhos ao céu, suspirou e disse: Efatá!, que quer dizer: Abre-te!
Nótense estas seis acciones:
a. Jesus o levou à parte sozinho, longe da multidão. Fez isto
provavelmente para que o surdo e gago se sentisse menos incômodo (cf.
Mc. 5:37; Lc. 8:51) e pudesse concentrar toda sua atenção em seu
Benfeitor.
b. Pôs os Seus dedos nos ouvidos do homem. A menos que o
homem pudesse ler os lábios não lhe teria sido possível ouvir nenhuma
pergunta preliminar que Jesus lhe pudesse ter feito (cf. Mc. 10:51; cf.
Mt. 9:28). Assim que o Mestre decide o tratamento especial que este
surdo-mudo necessita. Jesus pensou: “É preciso fazer algo por seus
ouvidos … e o vou fazer”.
c. Jesus cuspiu, provavelmente em seu próprio dedo, e com o dedo
assim molhado tocou a língua do homem. 346 O significado era: “É
preciso fazer algo por sua língua … e o vou fazer”. Em apoio a esta
interpretação veja-se a passagem análoga de João 9:6 (com relação à
restauração da vista; e cf. Mc. 8:23).
d. Olhou ao céu, para indicar que Sua ajuda vinha de cima; em
outras palavras, que mediante a oração “se apegava” a Seu Pai celestial
(cf. Is. 64:7). Com relação a isto veja-se também Sl 25:15; 121:1; 123:1,
2; 141:8; 145:15; Jo. 11:41; 17:1; At. 7:55. Com relação às diferentes

346
Veja-se Lenski para um ponto de vista distinto; Op. cit., p. 196.
Marcos (William Hendriksen) 394
posturas para orar mencionadas nas Escrituras, consulte-se CNT sobre
1Tm. 2:8.
e. Suspirou. Veja-se também sobre Mc. 8:12. No Jesus de manifesta
bondade, isto era algo totalmente natural. Mostra que vivia intensamente
Sua condição de homem. Assim opina também Calvino sobre esta
passagem. As tristezas daquele homem eram também suas tristezas.
Jesus nunca operou pela metade quando curava alguém. Sempre pôs tudo
o que Ele era em Sua obra de misericórdia. Veja-se Mt. 8:17; 9:36;
14:14; 15:32; 18:27; 20:34; Mc. 1:41; 6:34; Lc. 7:13; 8:46; Jo. 11:33;
Hb. 4:14–16. cada uma destas passagens deve ser cuidadosamente
considerada.
f. Disse, “Efatá!” Também isto era natural nEle, porque o aramaico
era a língua materna do Mestre. 347 Pensando em seus leitores não judeus,
Marcos traduz o termo: “Abra-te”. 348
Provavelmente era aplicável a todo o homem: tanto ouvidos e
língua, como recepção e resposta.
35. Abriram-se-lhe os ouvidos, e logo se lhe soltou o empecilho
da língua, 349 e falava desembaraçadamente.
Seus ouvidos se abriram completamente. Isto sucedeu
instantaneamente. Talvez ouviu a própria palavra Efatá enquanto o
Senhor a dizia. 350

347
Ultimamente se debateu sobre si a palavra “Efatá” é na realidade arameia. Quanto a evidência que
apoia a teoria do aramaico, veja-se S. Morag, “Ephphatha (Mr. 7:34): Certainly Hebrew, not
Aramaic?” JSS 17 (2, 1972), pp. 198–202.
348
διανοίχθητι aor. imper. pas. 2ª. pes. sing. de διανοίγω.
349
Ou, com NVI, “Lhe destravou a língua …”.
350
Jesus usa uma palavra em aramaico. É isto prova conclusiva de que o homem era judeu?
Naturalmente que pôde havê-lo sido, visto que nesta região predominantemente gentílica havia muitos
judeus. Por outro lado, os judeus não eram as únicas pessoas bilíngues, nem as atividades de Cristo
excluíam absolutamente aos não judeus. Veja-se mais acima sobre 5:13, nota 194 e sobre 7:27, 28. É
evidente por Mt. 15:31 que muitos dos que foram curados durante este período eram gentios. Veja-se
CNT sobre essa passagem. Mas o ponto principal desta história não se centraliza no fato de que este
homem em particular fosse gentio ou judeu.
Marcos (William Hendriksen) 395
351
Os ouvidos se abriram. sua língua foi libertada. Mais
352
literalmente, “a atadura” — quer dizer, qualquer coisa que fosse que
impedia a língua de funcionar corretamente — de uma só vez se soltou,
de modo que, repentinamente, aquele que antes balbuciava ou gaguejava
agora falava distintamente, claramente. A menção de todos estes
diversos vivos detalhes mostra que Marcos transmite a história de uma
testemunha ocular (provavelmente Pedro).
36. Mas [Jesus] lhes ordenou que a ninguém o dissessem.
A princípio esta proibição parece algo estranha, e é assim por duas
razões: a. Jesus não está na Judeia entre os inflamados inimigos que
decidiram matá-Lo; na realidade, não está nem sequer no lado ocidental
do mar da Galileia; e b. Sendo este o caso não esperaríamos que o
Mestre tivesse mandado o homem proclamar por toda Decápolis quão
grandes coisas o Senhor fez por ele? Não foi exatamente isto o que
sucedeu anteriormente no caso de outra pessoa que pertencia a esta
região, um homem angustiosamente necessitado de ajuda, que logo foi
bondosa e totalmente restabelecido? Veja-se 5:19, 20.
Talvez seja impossível chegar a uma solução completamente
satisfatória. Há, entretanto, duas considerações que podem ser de ajuda.
Em primeiro lugar, tinha passado bastante tempo do evento relatado em
Marcos 5:1–20. Não restam muitos dias, e os inimigos estão ainda mais
decididos a dar morte a Jesus. Entretanto, o programa que o Pai preparou
para o Filho deve ser levado a cabo em sua totalidade. Não se deve

351
_νοίγησαν aor. pas. 3ª. pes. pl. de _νοίγω (forma alterativa de _νοίγνυμι). Esta é a única vez que
aparece o verbo em Marcos. No resto do Novo Testamento encontra-se mais com frequência em
Mateus, João, Atos e Apocalipse. Uns poucos exemplos: abrindo tesouros (Mt. 2:11), os céus (3:16), a
boca (5:2; 13:35; 17:27), uma porta (7:7, 8; cf. 25:11, At. 5:19; 12:10; 16:26ss.; Ap. 4:1), os olhos
(Mt. 9:30; 20:33), tumbas (27:52), um selo (Ap. 6:1). Note-se também o uso metafórico em 1Co. 16:9;
2Co. 2:12; Cl. 4:3.
352
_ δεσμός, cf. δέω amarrar, atar; cf. diadema. Nas epístolas, o plural deste substantivo refere-se a
“cadeias, prisões”. Pode ter referência literalmente a correntes, prisões ou cadeias (Lc. 13:16; At.
16:26; 23:29), mas também a todas as penalidades do encarceramento (At. 20:23; 23:29; 26:31; Fp.
1:7, 13, 14, 17; Cl. 4:18; Fm. 10, 13). Correntes e cadeias estão tão intimamente relacionados que não
é sempre fácil decidir a melhor tradução. Mas “prisões” pode servir para ambos os conceitos.
Marcos (William Hendriksen) 396
esgotar antes do dia da crucificação. Também, à medida que esse dia
aproxima-se, Jesus vai pôr mais ênfase no significado espiritual e
redentor de Sua missão (veja-se 10:45; 14:24). Ele não veio para este
mundo para ser um Taumaturgo (praticante de milagres) mas o Salvador.
Isto é o que requer maior ênfase, agora mais do que nunca.
Mas não obedeceram o encargo: contudo, quanto mais
recomendava, tanto mais eles o divulgavam. 353 A intensidade e
frequência da desobediência levava o mesmo ritmo da intensidade e
frequência do encargo: ambos iam de mãos dadas. 354 Aqui se manifesta
claramente a obstinação e perversidade da natureza humana. Lembra-nos
uma mãe que sabia que a única forma de obter que Joãozinho fosse
comprar o que ela desejava era lhe dizendo: “Não te atreva a ir ao
armazém para me trazer dois quilos de açúcar!”. As crianças passam por
um jardim de maçãs cem vezes sem tentar tomar uma das maçãs dos
ramos ao seu alcance. Mas se há um letreiro que diz “Proibido entrar no
jardim”, e se verá que os bolsos das crianças começam a encher-se de
maçãs. Não fala Mark Twain das piscinas que nos eram proibidas e,
portanto, as mais frequentadas …”? Entretanto, aquelas pessoas que
resolutamente desobedeceram o mandato de Cristo não eram crianças. A
maioria eram adultos. Não havia desculpa alguma para a desafiante e
persistente desobediência à ordem específica e repetida de Jesus; nem
sua admiração pelo que Jesus fez podia servir de expiação para sua
conduta recalcitrante.
Eles, entretanto, mostraram sua admiração:
37. Maravilhavam-se sobremaneira, dizendo: Tudo ele tem feito
esplendidamente bem; não somente faz ouvir os surdos, como falar
os mudos.

353
Quanto ao verbo διαστέλλω, veja-se mais acima sobre 5:43, nota 219, “proibir, encarregar que
não”. Note-se como aqui em 7:36 usa-se a forma do aoristo, logo o imperfeito. Note-se os dois
imperfeitos correspondentes: encarregava-lhes … publicavam (ou: proclamavam).
354
μ_λλον περισσότερον duplo comparativo com o fim de acrescentar maior ênfase. Cf. Fm. 1:23.
Marcos (William Hendriksen) 397
Os versículos 36, 37 mostram que se necessita algo mais que
admiração e entusiasmo para ser um verdadeiro seguidor de Cristo.
Muitos admiradores de Cristo se perderam. A verdadeira marca do
discipulado está revelada em Jo. 15:14, “Vós sois meus amigos, se fazeis
o que eu vos mando”. Cf. Jo. 8:31, 32. Esta gente estava fazendo
justamente o oposto.
Não obstante, as obras de Jesus eram tão maravilhosas que até
aquela gente desobediente estava atônita, fora de seus sentidos (cf. 1:22;
6:2), e isto, “sobremaneira”, até o ponto que não puderam reter a
exclamação: “Tudo ele tem feito esplendidamente bem.” Fixavam-se
especialmente no fato de que os que anteriormente tinham sido surdos
agora ouviam, e os que antes não podiam falar, agora falavam. 355 Isto
mostra também que Marcos estava consciente de que o evento que acaba
de relatar era só um entre muitos, coisa que Mateus afirma
explicitamente em sua passagem paralela.
Sobre tudo, não devemos passar por alto que através do evento
descrito aqui (Mc. 7:31ss) e por outros parecidos, as profecias se
estavam cumprindo. Veja-se Is. 35:5, 6.
“Tudo ele tem feito esplendidamente bem.” Em seu comentário, R.
A. Cole chama a atenção de forma muito acertada ao fato de que todas as
obras da criação são perfeitas. 356 Não só Deus viu que eram boas (Gn.
1:4, 10, 12, 18, 21, 25, 31), e sim nesta ocasião (Mc. 7:37) também o ser
humano o viu.

355
Note-se o jogo de palavras: _λάλους … λαλε_ν.
356
Op. cit., p. 125.
Marcos (William Hendriksen) 398
Resumo do Capítulo 7:24–37

Esta seção consiste de duas partes: a. versículos 24–30; e b.


versículos 31–37.
Quanto à primeira, aqui começa o Ministério do Retiro. Jesus e os
Doze se dirigem para a região de Tiro. Entra numa casa, buscando
privacidade. Mas como já tinha sucedido antes (Mc. 6:34), ao encontrar-
se diante de uma necessidade humana, Jesus entra imediatamente em
ação. Uma mulher do mundo gentílico cai aos Seus pés e começa a Lhe
rogar que livre a sua filha de um espírito imundo. Ela recebe a resposta
responde “Deixa primeiro que se fartem os filhos, porque não é bom
tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos”. Com isto queria
dizer: “A bênção messiânica deve ser outorgada primeiro aos judeus,
depois aos gentios”. Mas ela responde: “Senhor; mas os cachorrinhos,
debaixo da mesa, comem das migalhas das crianças”. Isto fez com que
Jesus desse uma resposta reconfortante: “Por causa desta palavra, podes
ir; o demônio já saiu de tua filha”. Ao chegar a sua casa a mulher acha a
sua filhinha deitada tranquilamente em cama, o demônio foi embora.
Jesus viaja de Sidom a Decápolis, a algum lugar perto da costa
oriental do lago da Galileia. Assim, deixando à uma mulher que lhe
rogava insistentemente para que resgatasse a sua filha, Ele Se volta a um
homem com graves impedimentos, aflito pela surdez e dificuldade para
falar. De uma obra de cura à distância, passa a uma cura num lugar
privado. Os que levam o homem a Jesus Lhe pedem que ponha Sua mão
sobre ele. Mas Jesus tem Sua própria maneira de tratar cada caso
individual. Diz ao homem que se aparte da multidão, coloca os dedos
nos ouvidos do homem, e logo molha (com saliva) seu dedo e toca a
língua do homem. Logo, elevando os olhos em oração, exala um
profundo suspiro de genuína e tenra compaixão. Finalmente pronuncia a
palavra “Efatá”, que segundo a explicação de Marcos, significa “Abra-
te!” Imediatamente a língua e o ouvido do homem ficaram
completamente restabelecidos. Jesus proíbe estritamente à multidão que
Marcos (William Hendriksen) 399
faça publicidade deste milagre, mandato cujo conteúdo é total e
reiteradamente desobedecido. Não obstante, o milagre provoca na atônita
multidão a exclamação: “Tudo ele tem feito esplendidamente bem; não
somente faz ouvir os surdos, como falar os mudos.”
Mateus 15:29–31 é a passagem aproximadamente paralela, e mostra
que naquele mesmo lugar e tempo, Jesus curou a muitos outros
indivíduos gravemente limitados. Os que viram o sucedido “glorificavam
ao Deus de Israel,” declaração cuja interpretação mais natural é que
atribuíram a honra ao Deus que originalmente não era seu Deus. Em
consequência, se combinarmos o relato de Mateus com o de Marcos,
chegamos à conclusão de que os dois eventos — um perto de Sidom e o
outro em Decápolis — anunciam a plena abertura do reino de Deus aos
gentios. Segundo Marcos 7:1–23 (veja-se especialmente o v. 19) Deus
estava apagando a linha de separação entre os alimentos limpos e os
imundos, e pouco mais tarde começa a derrubar a barreira entre as
pessoas imunda e as (supostamente) limpas. Para Pedro estava muito
claro que estas duas coisas se achavam estreitamente relacionadas (veja-
se At. 10:1–11:18).
Marcos (William Hendriksen) 400
MARCOS 8 (MC 8:1 – 9:1)
Mc 8:1–10 – A alimentação dos quatro mil
Cf. Mt 15:32–39

Existe uma surpreendente semelhança, quase palavra, por palavra,


entre os dois relatos deste evento (Mt. 15:32–39; Mc. 8:1–10). 357 A
explicação mais razoável seria que se deve a que há uma relação
literária: um evangelista totalmente inspirado usou o relato de outro
evangelista igualmente inspirado. Veja-se CNT sobre Mateus, O
problema sinótico, pp. 14–62.
1–3. Naqueles dias, quando outra vez se reuniu grande
multidão, e não tendo eles o que comer, chamou Jesus os
discípulos358 e lhes disse: Tenho compaixão desta gente, 359 porque há

357
Se tiramos do relatório de Marcos em Mc. 8:1–3 as palavras introdutórias, “Naqueles dias, quando
outra vez se reuniu grande multidão, e não tendo eles o que comer”, e a cláusula final, “e alguns deles
vieram de longe”, o que resta é quase exatamente idêntico:
Mateus : “Jesus chamou seus discípulos e lhes disse: -Meu coração se compadece pela multidão,
porque já levam três dias comigo e não têm o que comer. Não quero despedi-los sem comer, não seja
que desfaleçam no caminho.”
Marcos: “Naqueles dias, quando outra vez se reuniu grande multidão, e não tendo eles o que comer,
chamou Jesus os discípulos e lhes disse: Tenho compaixão desta gente, porque há três dias que
permanecem comigo e não têm o que comer. Se eu os despedir para suas casas, em jejum,
desfalecerão pelo caminho”
A resposta quase desesperada de Seus discípulos é também praticamente idêntica. Excetuando a
transposição de duas palavras no original, a pergunta de Jesus que imediatamente segue, “Quantos
pães tendes?” é de novo idêntica. Em Mateus a resposta é, “Sete, e uns peixinhos”. Marcos introduz os
peixinhos um pouco mais adiante (8:7), como um detalhe de seu próprio relatório e não indiretamente
como informação proporcionada pelos Doze. Ambos os evangelistas relatam com linguagem quase
idêntica que Jesus ordena as pessoas a acomodar-se no solo. O resto da história é também muito
parecido em Mateus e Marcos. Mateus sublinha o fato de que os quatro mil eram homens, e depois de
mencionar os quatro mil, acrescenta: “sem contar as mulheres e as crianças”. Finalmente, o último
ponto em ambos os casos indica que Jesus Se despediu da multidão e entrou no barco. Entretanto, aqui
Marcos acrescenta “com seus discípulos”, e identifica o lugar onde chegam como Dalmanuta,
conquanto Mateus o chama Magadã.
358
Ou: convocou a seus discípulos.
359
Ou lit.: comovo-me em minhas vísceras pela multidão.
Marcos (William Hendriksen) 401
três dias que permanecem comigo e não têm o que comer. Se eu os
despedir para suas casas, em jejum, desfalecerão pelo caminho; e
alguns deles vieram de longe.
Não se faz menção de viagens que se tivessem realizado entre o
evento precedente (Mc. 7:31–37) e este (Mc. 8:1–10), embora pôde
havê-los. Mas visto que a “região deserta” mencionada em Mc. 8:4,
facilmente pôde ter sido Decápolis, perto da costa oriental do mar da
Galileia (7:31), é razoável a conclusão de que Jesus ainda Se achava, ou
estava outra vez, em ou perto do mesmo lugar onde curasse o homem
surdo-mudo.
Outra vez “uma grande multidão”. Este “outra vez” pode referir-se
a Mc. 7:33 (cf. Mt. 15:30, 31) ou a Mc. 6:31–34, 44, 55, 56. Poderia
referir-se inclusive a toda a série de multidões já mencionadas por
Marcos (Mc. 1:33, 45; 2:2–4, 13; 3:7–10, 20, 32; 4:1, 36; 5:21, 27, 31,
etc.), como se fosse dito, “outra vez” como foi com frequência
anteriormente.
Não tinham o que comer. 360 Tão magnética era a presença de Jesus,
tão maravilhoso era em palavra e obra, que os que O rodeavam sentiam
que era quase impossível deixá-Lo.
O Mestre fala com Seus discípulos no meio desta situação. Embora
anteriormente, durante o ministério no retiro, o Senhor não Se apartou
totalmente da multidão, agora um de Seus principais objetivos é ensinar
os Seus discípulos. Não obstante, sua preocupação pela multidão é
evidente, e se demonstra pelas palavras mesmas que dirige aos Doze:
“Meu coração se compadece pela multidão”. Outra tradução
igualmente válida é “Tenho compaixão da multidão”. Acaso não tinha
experimentado pessoalmente as dores da fome? (veja-se Mt. 4:2; cf. Hb.
4:15, 16). Note-se o que Marcos contou anteriormente (Mc. 1:41) a
respeito da tenra, comovedora, profunda e intensa compaixão de Jesus,
360
Note-se o genitivo absoluto que chega até μ_ _χόντων. O particípio _χόντων é pl. porque _χλος,-ου
é um substantivo coletivo. Quanto a φάγωσιν (que é aor. subj. 3ª. pes. pl. de _σθίω; cf. esôfago), pode-
se entender melhor como um subjuntivo deliberativo que se retém na pergunta indireta.
Marcos (William Hendriksen) 402
compaixão que se expressava não só em palavras mas também em atos.
Neste caso, o que produziu este sentimento e esta efusão de compaixão,
foi que toda aquela gente tinha estado com Jesus desde há três dias, e
tudo o que pudessem ter tido quando chegaram, consumou-se totalmente.
Se os tivesse despedido em tais condições teriam desacordado no361
caminho. Isto se agravava porque alguns, segundo o relato de Marcos,
tinham vindo “de muito longe”.
É evidente que Jesus sentia muita compaixão e que também
desejava que Seus discípulos participassem deste sentimento. Não Se
dirige a eles neste momento porque ignora o que se deve fazer. Acaso
não foi Ele quem anteriormente fez-se cargo de uma situação similar?
(veja-se Mc. 6:30–44). Além disso, não se pode aplicar aqui também
João 6:6, que diz: “Porque ele sabia o que devia fazer”? O Mestre fala
com Seus discípulos com o propósito de despertar seu sentido de
responsabilidade. Os Doze deviam tomar o grave problema da multidão
tão seriamente que chegassem a dizer, “Este é nosso próprio problema.
Nós devemos fazer algo a respeito. Pode-se ser um verdadeiro seguidor
de Cristo sem ter compaixão?
O mínimo que os Doze podiam e deviam ter feito era pedir ao
Mestre que repetisse o que antes tinha realizado, e logo dizer à multidão
que a ajuda estava próxima. Pelo versículo 4 é evidente que falharam
nisso.
4. Mas os seus discípulos lhe responderam: Donde poderá
alguém fartá-los de pão neste deserto? 362
Esta região do este ou sudeste do mar da Galileia era um lugar
desolado, um verdadeiro deserto. A cena no caso da alimentação dos
cinco mil era algo mais favorável, porque ali era possível comprar nas
granjas dos arredores e nas aldeias próximas (6:36), mas não era essa a
situação aqui. Sem Jesus e Seu poder para realizar milagres, aquela
361
_κλυθήσονται, fut. ind. pas. 3ª. pes. pl. de _κλύω. Na voz passiva significa: perder forças, debilitar-
se; daí, debilitar-se até o ponto de esgotamento total; paralisar.
362
Ou: desolado.
Marcos (William Hendriksen) 403
região não tinha valor algum como fonte para conseguir alimentos. E
embora pareça estranho, os discípulos não tinham tomado a sério a lição
que deviam ter aprendido. Por isso falaram daquele modo, e disseram
que naquela região desolada seria totalmente impossível encontrar pão,
especialmente conseguir tanto para satisfazer a necessidade daquela
enorme multidão.
Surpreende que Jesus nem sequer lhes repreende. Em lugar disto,
5. E Jesus lhes perguntou: Quantos pães tendes? Responderam
eles: Sete.
O Senhor queria que gravassem este número firmemente em sua
mente, para que jamais o esquecessem. Se sabiam exatamente quão
inadequada e mísera (humanamente falando) era a provisão disponível, o
milagre ressaltaria de maneira muita mais notável. Um pouco mais
adiante (veja-se 8:19, 20) Jesus os faria lembrar novamente os números
que caracterizam estes dois milagres: 5; 5.000; 12; e 7; 4.000; 7.
6, 7. Ordenou ao povo que se assentasse no chão. E, tomando os sete
pães, partiu-os, após ter dado graças, e os deu a seus discípulos, para que
estes os distribuíssem, repartindo entre o povo. Tinham também alguns
peixinhos; e, abençoando-os, mandou que estes igualmente fossem
distribuídos.
Note-se o seguinte:
a. Jesus ordenou às pessoas que se sentassem no solo, não na erva
verde, como em Mc. 6:39. Já estava avançada a estação.
b. “Sete pães”. Não se tratava de “pão regular” como poderíamos
pensar, mas de uma espécie de torta fina que se podia quebrar facilmente
em pedaços para comer.
c. Jesus “deu graças” (veja-se a explicação de Mc. 6:41, 42). Na
presente narração aparece o mesmo uso intercambiável de dois verbos
gregos: Mateus diz “tendo dado graças” (assim literalmente, Mt. 15:36);
Marcos tem no versículo 6 “tendo dado graças”, e no versículo 7 “tendo
abençoado”. Ambos podem traduzir-se “tendo dado graças” ou “depois
que teve dado graças”.
Marcos (William Hendriksen) 404
d. Marcos deixa a clara impressão de que Jesus dá graças duas
vezes: pelo pão e logo pelos peixes. Embora Mateus não o diz assim, não
há nada na narração que suponha uma contradição.
e. Observe-se a forma tão gráfica em que se descreve o que Jesus
fez com os pães (tanto em Mateus como em Marcos); “partiu-os e se
manteve dando-os …”.
f. Literalmente, Marcos afirma que Jesus Se manteve dando os
pedaços a Seus discípulos “para pô-los diante, e eles os puseram diante
da multidão”. Mateus narra o mesmo fato assim, “… e os discípulos
(seguiam-nos dando) às pessoas”. Exatamente no que momento ocorreu
o milagre? ”Em suas mãos”, quer dizer, enquanto partia pedaços
adaptados e os dava a seus discípulos? Isto é o que provavelmente
sucedeu, embora não se afirme explicitamente.
g. Marcos sublinha que o que ocorreu com o pão também sucedeu
com uns poucos peixinhos — mais de dois; compare-se Mc. 6:38. O
“peixe preparado” era um prato regular que acompanhado com pão
nunca faltava numa região onde o peixe abundava.
A descrição detalhada do ocorrido, ponto por ponto, mostra que
atrás destas narrações estava a observação de uma testemunha ocular.
Mateus esteve ali e relatou em seu Evangelho o que ele mesmo tinha
visto. Isto em nenhuma maneira exclui a possibilidade — incluso
probabilidade — de que antes de consignar seus pensamentos por
escrito, teria lido o escrito por Marcos. Este tinha escutado a história dos
lábios de outra testemunha ocular, ou seja, Pedro.
8. Comeram e se fartaram; 363 e dos pedaços restantes
recolheram sete cestos.
Tome-se nota dos doze cestos de pedaços que se recolheram quando
teve lugar a alimentação dos cinco mil, em comparação com os sete
cestos cheios com os pedaços que se recolheram nesta ocasião. A
distinção entre as duas palavras usadas no original se mantém

363
Ou: Comeram quanto quiseram.
Marcos (William Hendriksen) 405
coerentemente no Novo Testamento; isto é, em relação ao que sobrou da
alimentação dos cinco mil, o Novo Testamento usa sempre uma mesma
palavra (Mt. 14:20; 16:9; Mc. 6:43; 8:19; Lc. 9:17; Jo. 6:13); e com
relação ao que sobrou da alimentação dos quatro mil, sempre usa a outra
(Mt. 15:37; 16:10; Mc. 8:8, 20). 364 O cesto usado no caso da alimentação
dos quatro mil era provavelmente maior. Assim parece deduzir do fato
que um cesto parecido foi o bastante grande para conter a Paulo e baixá-
lo de um muro (At. 9:25).
9. Eram cerca de quatro mil homens. Então, Jesus os despediu.
Mateus nos informa que além destes quatro mil havia mulheres e
crianças. Depois de ter satisfeito a necessidade espiritual (tinha estado
com eles durante três dias!) e física da multidão, Jesus os despede, e Ele
também vai embora:
10. Logo a seguir, tendo embarcado 365 juntamente com seus
discípulos, partiu para as regiões de Dalmanuta.
Há razões para crer que Dalmanuta estava situada ao sul da planície
de Genesaré, no lado sudoeste do mar da Galileia. Nesta localidade se
achou uma cova que tinha o nome da Talmanuta”. Não sabemos se o
Magadã de Mateus era simplesmente outro nome para o mesmo lugar ou
o nome de um lugar próximo.
É o relato da alimentação dos quatro mil quase uma repetição do
milagre anterior, de tal maneira que se fosse omitido, nada teríamos
perdido? Claro que não. Há dois pontos adicionais que agora ficam
esclarecidos: a. Jesus é capaz não só de realizar obras poderosas mas
também de repeti-las; e b. manifesta Sua compaixão não só pelo povo da

364
As duas palavras são κόφινος, “cesto de vime”, e σπυρίς, “cesto de vime maior, cesto”.
365
Podia tratar-se da mesmo barco que antes (Mc. 6:32) havia trazido a Jesus e aos Doze à ribeira
oriental do lago. Entretanto, esta barco tinha voltado para a ribeira ocidental (Mc. 6:54). Levou-a
posteriormente de volta algum seguidor de Jesus ao lado oriental para voltar o a usar? Ou se efetuou
pelo menos outra travessia a qual Marcos não faz menção? Cf. Jo. 20:30, 31; 21:25. Outra
possibilidade seria que em 8:10 traduzíssemos simplesmente “de navio”. Veja-se também em 6:32.
Em 8:10 alguns manuscritos omitem inclusive τό diante de πλο_ον. Devemos dar espaço a todas estas
possibilidades.
Marcos (William Hendriksen) 406
aliança, mas também inclusive pelos alheios a ela. Quanto a que este
território era predominantemente gentílico, veja-se CNT em Mateus
15:31.

Mc. 8:11–13 - Censura pela exigência de sinais


Cf. Mt. 16:1–4

Vejam-se também Mt. 12:38–42; Lc. 11:29–32; 12:54–56


11. E, saindo os fariseus, puseram-se a discutir com ele; e,
tentando-o, pediram-lhe um sinal do céu.
Os judeus demandam “sinais” quer dizer, provas de que Jesus é
realmente o que pretende ser. 366 Vejam-se Jo. 2:18; 4:48; 1Co. 1:22.
Novamente nos encontramos aqui com aqueles inflamados inimigos, os
fariseus! Anteriormente já nos encontramos com eles e com os escribas
(veja-se sobre Mc. 1:22, 2:6, 16; 3:22; 7:1, 2). Mateus nos informa que
nesta confrontação os fariseus iam acompanhados dos saduceus. O fato
de que estas duas seitas rivais se associassem contra Jesus, explica-se no
CNT sobre Mateus, pp. 214–216, 667.
Aparecem os fariseus! Ao chegar Jesus de novo à margem ocidental
do mar da Galileia, região com forte influência judia (embora
etnicamente “mista”), não nos surpreende que se produza este outro
encontro com os fariseus. São eles os que tomam a iniciativa, não Jesus.
Começam 367 a disputar 368 com Ele. Receberam eles a informação a
respeito dos milagres realizados por Jesus no lado oriental do lago,

366
Quanto ao significado de σημε_ον, veja-se CNT sobre João 2:11 e nota 56. K. Kohler Jewish
Encyclopedia (Nova York e Londres, 1916), Vol. VIII, p. 606, não provê provas de por que rejeita o
que diz Paulo em 1Co. 1:22.
367
Para _ρξαντο, veja-se sobre 1:45; 6:7, nota 233. No caso presente, o auxiliar pode não ser mais
“redundante” ou “pleonástico” que em linguagem similar de hoje em dia; p. ex., “começou a discutir
comigo”, significando provavelmente que depois de uma pausa começou a discussão.
368
Embora συζητέω tem às vezes um significado mais suave — falar (entre si), perguntar-se (1:27,
9:10) — o contexto presente mostra que aqui o significado é arguir, disputar; como o é também em
9:14,16.
Marcos (William Hendriksen) 407
incluindo o da multiplicação dos pães? Era isto o que havia realimentado
sua persistente inveja? Tentavam convencer-se que o que sucedeu em
Decápolis não era um verdadeiro sinal da grandeza de Jesus. Afinal de
contas, o que Ele havia proporcionado era mero pão terrestre, “não pão
do céu”, como Moisés o fez. Que Ele produza “um sinal do céu”! Sim,
que faça o que Moisés fez (Êx. 16; cf. Jo. 6:32). Ou como Josué, que Ele
faça com que o sol e a lua se detenham (Js. 10:12–14). Que repita o que
fez Samuel (1Sm. 7:10), ou Elias (1Rs. 18:30–40; cf. Tg. 5:17, 18). Se
Jesus fizesse alguma destas coisas ou algo de caráter sensacional, teriam
atribuído esse sinal ao poder de Belzebu! Veja-se Lc. 16:31.
Seu propósito era tentar a Jesus para O induzir a realizar tais sinais.
Esperavam que buscasse fazê-lo e que fracassaria, e assim perderia Seu
prestígio publicamente.
12. Jesus, porém, arrancou do íntimo do seu espírito um gemido
e disse: Por que pede esta geração um sinal? Em verdade vos digo
que a esta geração não se lhe dará sinal algum.
Note-se o seguinte:
a. suspirando profundamente. Jesus tinha enchido a região com
“provas indubitáveis” (cf. At. 1:3) de que sem dúvida era Aquele a quem
o Pai tinha enviado, conforme a predição dos profetas. Estes sinais
tinham sido de vários tipos: restabelecer os aleijados, curar os doentes,
purificar os leprosos, acalmar as ondas, alimentar os famintos e inclusive
ressuscitar os mortos. Pedir ainda mais sinais era, evidentemente, um
insulto. Implicava que os milagres já realizados eram credenciais
insuficientes. Não é de estranhar que Jesus recebesse esta petição de
outro sinal com um profundo suspiro 369 em Seu espírito. Profundo
porque a dureza de coração revelada naquela demanda O feriu
dolorosamente.

369
O original tem _ναστενάξας, part. aor. de _ναστενάζω; no Novo Testamento se acha somente aqui.
Para a forma simples στενάζω, veja-se mais acima sobre 7:34. A forma usada aqui em 8:12 é
perfectiva em significado: suspirar profundamente. Com o verbo στενάζω cf. retumbante; alemão
stöhnem, holandês steunen.
Marcos (William Hendriksen) 408
b. em seu espírito. A angústia que Jesus experimentava provinha de
seu ser mais íntimo. Aqui a palavra “espírito” usa-se num sentido não
muito diferente ao de “coração” ou “ser interior”. 370 Assim também em
Mc. 2:8; cf. 14:38.
c. esta geração. Jesus fica perplexo e perturbado de que os fariseus,
muitos de seus seguidores e uma grande parte de seus contemporâneos

370
Num estudo inédito que este autor fez dos conceitos ψυχή e πνε_μα, estabeleceram-se as seguintes
conclusões depois de examinar cada palavra à luz do contexto em cada lugar do Novo Testamento
onde aparece.
Na totalidade do Novo Testamento, ψυχή aparece 100 vezes, πνε_μα mais de 370 vezes. Alguns
querem ver uma diferença entre ambas as palavras, mas é totalmente impossível traçar uma distinção
exata, como se no Novo Testamento ψυχή tivesse sempre um significado e πνε_μα outro. É verdade
que quando o apóstolo Paulo pensa na parte invisível do ser humano em sua relação com Deus,
geralmente usa a palavra πνε_μα. Entretanto, no Novo Testamento como um todo há um alto grau de
superposição de significados. Nunca devemos dizer, “No Novo Testamento ψυχή é a parte invisível
do homem que dá vida ao corpo, conquanto πνε_μα é essa mesma entidade imaterial vista em sua
relação com Deus”. O tema é muito mais complexo do que indica esta generalização. Por exemplo, o
equivalente grego para alento pode ser tanto ψυχή (At. 20:10) como πνε_μα (2Ts. 2:8). Similarmente,
o conceito de vida, com ênfase no físico, pode-se expressar quer seja por πνε_μα (Lc. 8:55) ou por
ψυχή (Mt. 2:20). Não só se pode provocar ao πνε_μα (At. 17:16), também se pode incitar a ψυχή (At.
14:2). O πνε_μα alegra-se em Deus (Lc. 1:47), mas da ψυχή também diz-se que engrandece ao Senhor
(Lc. 1:46). Um ser incorpóreo pode ser um πνε_μα (Hb. 12:23), mas também pode ser uma ψυχή (Ap.
6:9). Por outro lado, quando a referência é ao Espírito Santo, a palavra usada é sempre πνε_μα, com
ou sem modificativo (Mc. 1:8–12; 3:29; 12:36; 13:11; Lc. 1:5, etc.). Um espírito imundo é um πνε_μα
_κάθαρτον (Mc. 1:23, 26, etc.). Às vezes usa-se um sinônimo (Mc. 9:17, 25). A palavra πνε_μα pode
inclusive indicar uma atitude: “espírito de mansidão” (1Co. 4:21). Por outro lado, quando faz-se
referência à pessoa como um todo, sempre usa-se ψυχή (Mc. 10:45; cf. 1Tm. 2:6). Nestes casos, ψυχή
poderia ter sido substituído por um pronome pessoal, e de fato muitas vezes a passagem paralela usa
um pronome pessoal. Este significado de ψυχή está provavelmente influenciado pelo hebraico. A
pessoa assim entendida, pode considerar-se sob um duplo aspecto. Veja-se sobre Mc. 8:35–38.
Sendo que existem estas distinções, mas também muitas áreas comuns, é impossível estabelecer regras
rígidas. Talvez pode-se dizer que em geral πνε_μα ressalta a atividade mental, e ψυχή a emocional. É
o πνε_μα aquele que percebe (Mc. 2:8), planeja (At. 19:21) e conhece (1Co. 2:11). É a ψυχή a que
está triste (Mt. 26:28). O πνε_μα ora (1 Cor. 14:14), a ψυχή ama (Mc. 13:20). Além disso, ψυχή tem
com frequência um âmbito mais amplo, indicando a soma total da vida que se eleva sobre o físico,
enquanto que πνε_μα é mais limitado. Com frequência, mas de modo algum sempre, πνε_μα indica o
espírito humano em sua relação com Deus, a autoconsciência ou personalidade do homem considerada
como o sujeito em atos de adoração ou em atos relacionados com a adoração, tais como orar, dar
testemunho, etc. Mas, repetimos, não se pode estabelecer uma regra rígida ou fixa. Cada ocorrência
deverá interpretar-se à luz da origem da passagem particular em que aparece, e à luz de seu contexto
específico e das passagens paralelos.
Marcos (William Hendriksen) 409
demandassem sinais. Em passagens tais como Marcos 8:12, 38; 9:19, o
termo “geração” refere-se às pessoas entre a qual alguém vive. Falando
em termos gerais, especialmente a gente do lado ocidental do mar da
Galileia era judia, embora isto não recebe ênfase no presente caso. Não é
raro que ao sublinhar-se as características nacionais ou raciais, a palavra
“geração” adquira o significado da nação ou povo judeu” como em
13:30; cf. Mt. 24:35.
d. em verdade vos digo. Veja-se sobre Mc. 3:28. Também aqui em
Mc. 8:12, esta solene introdução conduz à uma declaração que merece
muito especial consideração.
e. não se lhe dará sinal algum. 371 À luz da passagem paralela (Mt.
16:4) o significado é, “Não se lhes dará de modo algum nenhum sinal
como o que vós demandais” (veja-se CNT sobre Mt. 16:4). A
ressurreição triunfante de Jesus dentre os mortos, prefigurada pela
experiência de Jonas (Jon. 1:17; 2:10), marcaria a condenação de todos
os fariseus de coração endurecido. Quanto ao sinal que eles pediam
agora, Jesus lhes assegura que não o receberão absolutamente. 372
13. E, deixando-os, tornou a embarcar e foi para o outro lado.
Ficam abandonados ao destino que eles, pela dureza de seu coração,
escolheram para si mesmos.

Mc. 8:14–21 - A levedura dos fariseus e de Herodes


Cf. Mt. 16:5–12

O que se relata aqui provavelmente teve lugar no mar da Galileia,


durante a viagem de Dalmanuta a Betsaida (veja-se o mapa).

371
δοθήσεται fut. ind. pas. 3ª. pes. sing. de δίδωμι.
372
O original diz literalmente, “Solenemente lhes declaro, se deve-se dar a esta geração um sinal …”.
A conclusão ou apódose fica sem expressar-se. Isto nos lembra um modismo subjacente ilustrado no
2Sm. 11:11, “Por tua vida, e por vida de sua alma, se (Hb. ‘im.) eu não faço isto …”. Nesse caso
particular a apódose não expressa era provavelmente “então que morra”, ou algo semelhante. É fácil
notar de que um se como este, em que a conclusão é tácita, converte-se numa negação muito forte.
Marcos (William Hendriksen) 410
373
14. Ora, aconteceu que eles se esqueceram de levar pães e, no
barco, não tinham consigo senão um só.
Olhado do ponto de vista puramente humano — quer dizer, sem
considerar o poder de Cristo —, este descuido era indesculpável, porque
era mais fácil conseguir pão no populoso lado ocidental do mar que no
oriental, embora, segundo se indicou anteriormente, nos arredores de
Betsaida era menos difícil obter provisões que mais ao sul. Um só pão
jamais seria suficiente para treze homens!
15. Preveniu-os, 374 Jesus, dizendo: Vede, guardai-vos do
fermento dos fariseus e do fermento de Herodes.
Sem dúvida, Jesus estava pensando na dura incredulidade dos
fariseus que tinham pedido um sinal do céu, como se não se lhes tivesse
dado nenhum sinal de importância (veja-se 8:11–13). Mas, qual tinha
sido o motivo daquela demanda insolente? Resposta: o contraste entre o
ensino de Jesus e a dos fariseus: enquanto Ele fazia insistência na lei de
Deus, e na genuína adoração a Deus, eles punham toda a ênfase na
tradição.
Segundo Mateus 16:1, os saduceus se aliaram com os fariseus no
perverso intento de desprestigiar a Jesus. Mateus não menciona Herodes.
Por sua vez, Marcos omite toda referência aos saduceus, mas relaciona
“a levedura dos fariseus” com “a levedura de Herodes”. Visto que havia
uma estreita relação entre herodianos e saduceus, não há contradição
entre os dois relatos. Os saduceus eram o partido sacerdotal, partido ao
qual pertenciam os sumos sacerdotes, etc. A oligarquia sacerdotal, para
sua própria existência e continuidade, dependia do favor de Herodes
(veja-se CNT sobre Mateus, pp. 166ss). Mas havia uma relação ainda
mais próxima. Embora os saduceus fizessem alarde de que se aferravam
à lei de Deus, não se opunham em nada à extensão do helenismo. Como
rejeitavam tanto a ressurreição do corpo como a imortalidade da alma,

373
_πελάθοντο aor. ind. 3ª. pes. pl. de _πιλανθάνομαι. Cf. letárgico, latente.
374
Para o verbo grego, veja-se mais acima em 7:36; também em 5:43, nota 219.
Marcos (William Hendriksen) 411
seus interesses estavam centralizados só no mundo presente. Eram
“mundanos” e neste sentido eram semelhantes a Herodes e seus amigos.
A seguir apresentamos a “levedura” ou “ensino” característico —
seja por exemplo, por preceito ou por ambos — dos três grupos:
Os fariseus ensinavam o tradicionalismo (Mc. 7:4, 8).
Herodes e seus seguidores, os herodianos, o secularismo (Mc.
6:17ss.).
Os saduceus, o cepticismo (Mc. 12:18; cf. At. 23:8).
Havia entre eles, naturalmente, muitos pontos de coincidência. Em
certo sentido, o secularismo era a marca dos três (veja-se CNT sobre Mt.
16:6).
Ambos os imperativos — “Cuidado!” e “Guardai-vos de” — têm
um sentido durativo. Portanto, o significado é: “Continuem atentos (ou
estando alerta)”; “Estejam sempre em guarda contra”.
Os Doze necessitavam esta advertência. Apesar de sua relação
diária com Jesus, sempre estavam em perigo de prestar muita atenção
aos pontos de vista daqueles que se opunham aos de Jesus (vejam-se Mt.
15:12; 19:3–10; Mc. 7:1, 17–23; 10:2–12, 35–45; At. 1:6).
16. E eles discorriam entre si: É que não temos pão.
Aqueles homens começaram a ter — ou “estavam tendo” — um
diálogo entre si. 375 Jesus tinha mencionado a levedura, referindo-se ao
ensino (veja-se Mt. 16:11, 12). À vista do que diz Marcos 8:11–13 e por
relatos de confrontos anteriores entre Jesus e Seus adversários, este
significado já devia estar claro para os discípulos. Além disso, eles
tinham escutado a parábola da levedura (Mt. 13:33), que lhes ensinava
que a palavra levedura nem sempre deve ser tomada literalmente.
Levedura e ensino têm vários pontos de semelhança: a. ambas agem
invisivelmente, b. são muito potentes, e c. têm a tendência de aumentar
gradualmente sua esfera de influência. Quanto ao uso figurativo do
termo “levedura”, vejam-se também 1Co. 5:6ss.; Gl 5:9. Neste mesmo

375
Em Mc. 2:6 e 7:21 o diálogo produz-se dentro de sua própria mente.
Marcos (William Hendriksen) 412
instante (Mc. 8:15) Jesus está usando esta palavra em sentido
desfavorável: ensino pernicioso, considerado muito poderoso e com
influência corruptora crescente.
Entretanto, os discípulos não consideraram cuidadosamente nem
sopesaram seriamente o significado da advertência de Cristo de guardar-
se da levedura dos fariseus e da levedura de Herodes. Antes, atribuíram à
“levedura” um significado literal e concluíram provavelmente que o
Mestre lhes proibia receber pão dos fariseus e das pessoas relacionada
com Herodes. O que achamos aqui, então, é outro caso de interpretação
literal errônea das expressões de Jesus (cf. Jo. 2:19, 20; 3:3, 4; 4:13–15;
6:51, 52; 11:11, 12).
Além disso eram culpados de outro erro, como se vê claramente
pela reação de Jesus refletida nos versículos 17–21. Pensaram que Jesus
estava aborrecido com eles porque se esqueceram de trazer pão, e
estavam preocupados com a carência de pão. Seu erro fundamental,
então, era a falta de fé suficiente. Isto é exatamente o que naquela
ocasião, segundo Mateus 16:8, Jesus lhes disse quando os chamou
“homens de pequena fé”. Tendo entre eles Aquele que tinha dado provas
de seu poder nas duas alimentações milagrosas, não deviam ter sido mais
otimistas? Mas antes, foram pessimistas. Podemos dizer, então, que a
seção de Marcos 8:14–21, em combinação com seu paralelo Mateus
16:5–12, adverte contra quatro erros: O tradicionalismo dos fariseus
(Mc. 7:4–8); o secularismo de Herodes e de seus seguidores, os
herodianos (Mc. 6:17ss.); o cepticismo dos saduceus; e o pessimismo dos
discípulos.
A preocupação que em voz baixa ia e vinha entre os discípulos teve
uma resposta aberta e franca da parte do Mestre. Foi uma resposta que
consistiu em várias perguntas intimamente entrelaçadas. Por certo que
era perguntas de recriminação mas de muita ajuda, pois seu propósito era
tirar os Doze de seu indesculpável pessimismo e restaurar em seu
coração o espírito de confiança e otimismo.
Marcos (William Hendriksen) 413
17–21. Jesus, percebendo-o, lhes perguntou: Por que discorreis sobre
o não terdes pão? Ainda não considerastes, nem compreendestes? Tendes
o coração endurecido? Tendo olhos, não vedes? E, tendo ouvidos, não
ouvis? Não vos lembrais de quando parti os cinco pães para os cinco mil,
quantos cestos cheios de pedaços recolhestes? Responderam eles: Doze! E
de quando parti os sete pães para os quatro mil, quantos cestos cheios de
pedaços recolhestes? Responderam: Sete! Ao que lhes disse Jesus: Não
compreendeis ainda?
Mateus 16:8–10 registra este comovedor parágrafo de maneira
grandemente reduzida, retendo somente a., b. (em parte), e., e f. dos
pontos esboçados de Marcos. A passagem de Mateus 16:11, 12 reflete
que os apóstolos deram uma interpretação literal às advertências de
Cristo. Informa-nos que as palavras de Jesus tiveram o favorável
resultado de libertar os discípulos de sua interpretação errônea, resultado
que Marcos não menciona.
Eis aqui algumas observações sobre cada elemento dos pontos a até
o g:
a. A preocupação pela falta de pão era desnecessária.
b. Os discípulos deviam ter usado a cabeça (cf. Mc. 7:18; 13:14).
Deviam ter pensado com lógica (cf. Mc. 4:12; 6:52; 7:14). Era
indesculpável não tomar a sério as lições que Jesus lhes tinha ensinado
antes por meio de palavras e atos.
c. Com relação ao significado da palavra “coração” e seu sentido
fundamental, veja-se sobre Mc. 6:52. “Endurecido” usa-se aqui não no
sentido da obstinação e impermeabilidade resultante que caracterizava
aos fariseus, mas no sentido de letargia espiritual. Novamente veja-se
sobre Mc. 6:52.
d. A referência a olhos que não veem e ouvidos que não ouvem (cf.
Jr. 5:21; Ez. 12:2; Mc. 4:12) está estreitamente relacionada com o ponto
imediatamente precedente. O coração endurecido tinha produzido esta
situação.
Marcos (William Hendriksen) 414
e. Este ponto pode ser considerado como uma transição. Poderia
unir-se com o ponto precedente. A incapacidade para lembrar seria o
resultado da dureza de coração. Também poderia ligar-se com o ponto
que segue imediatamente (“Já não vos lembrais de quando parti …”; NC,
cf. CI, NBE, BJ, LT). Os discípulos deviam ter prestado maior atenção
àquelas milagres, e deviam ter considerado seu significado com relação à
grandeza de Cristo.
Sem dúvida alguma a memória pode fortalecer-se com a reflexão
espiritual, com a meditação, e, quando for possível, pode-se traduzir em
ação. Diz-se que uma pessoa do Oriente convertida ao cristianismo
confessou que o aprender de cor o Sermão da Montanha lhe tinha
produzido muitos problemas, até que pela graça de Deus tinha começado
a pôr seus princípios em prática diariamente!
Deve acrescentar-se que Jesus fez algo mais que reprovar os
discípulos por sua falta de memória (veja-se Jo. 14:25, 26).
f. Note-se a distinção que os Evangelhos fazem em cada caso entre
os dois tipos de cestos (veja-se mais acima sobre Mc. 8:8). O argumento
é basicamente o seguinte: Se cinco pães foram mais que suficientes para
cinco mil pessoas e sete pães foram mais que suficientes para quatro mil
— que são fatos que os discípulos aqui mesmo confirmam — então, não
poderia Jesus alimentar a Si mesmo e aos Doze com um só pão (Mc.
8:14)? Na realidade, não poderia Ele, até sem pão algum, prover tudo o
que fosse necessário?
g. Não há uma razão convincente para interpretar a pergunta final
“Não compreendeis ainda?” num sentido distinto do usado anteriormente
(veja-se b.). A pergunta de Cristo era o suficientemente importante para
justificar uma repetição. As palavras e as obras de Jesus devem ser
sopesadas e levadas a sério. Não devem ser esquecidas rapidamente. É
preciso meditar nelas em oração, e isso incrementará a fé e eliminará o
pessimismo.
Marcos (William Hendriksen) 415
Mc. 8:22–26 - A cura de um cego em Betsaida

Esta seção encontra-se só no Evangelho de Marcos.


22. Então, chegaram a Betsaida; e lhe trouxeram um cego,
rogando-lhe que o tocasse.
O barco atracou à margem nordeste do lago, perto da entrada do
Jordão (veja-se o mapa). O lugar de desembarque foi Betsaida Júlia,
onde tinha ocorrido o milagre da alimentação dos cinco mil (Lc. 9:10).
Marcos a chama uma “aldeia” (v. 23). Lucas diz que era uma “cidade”
(Lc. 9:10). Não existe nada estranho nem inquietante a respeito desta
aparente discrepância. Por longo tempo Betsaida tinha sido meramente
uma aldeia. Mas o tetrarca Filipe (Lc. 3:1) aumentou-a e a embelezou.
Então chegou a ser uma cidade e em honra de Júlia, a filha do imperador
Augusto, chamou-a Betsaida Júlia. Entretanto, tendo sido uma “aldeia”
durante tanto tempo, não é estranho que lhe fosse aplicado por algum
tempo mais a designação de “aldeia”. O mesmo sucede até hoje. Por
exemplo, em Tiago do Chile, a rua que se chamava “Passeo las delicias”,
depois mudou para “Alameda Bernardo O’Higgins”. Mas por um tempo
as pessoas continuaram chamando-a pelo seu antigo e costumeiro nome
de “Passeo las delicias”. Sobre as duas Betsaidas veja-se CNT sobre Jo.
6:1, 16–21.
Estando Jesus em Betsaida, trouxeram-lhe um cego. Os que o
guiavam rogaram a Jesus que o tocasse. 376 Quanto ao significando do ato
de Jesus de tocar, veja-se sobre Mc. 1:41.
23. Jesus, tomando o cego pela mão, levou-o para fora da aldeia
e, aplicando-lhe saliva aos olhos e impondo-lhe as mãos, perguntou-
lhe: Vês alguma coisa?
É um fato surpreendente que entre as curas de cegos descritas com
alguns detalhes nos Evangelhos não há duas que sejam iguais. Isto
mostra que, em Seu amor e sabedoria, o Mestre tratou cada caso

376
_ψηται, aor. subj. meio 3ª. pes. sing. de _πτω.
Marcos (William Hendriksen) 416
individualmente. Seu coração Se enternecia pelos necessitados não só de
forma geral, mas por cada um em particular, de modo que Seu
tratamento de um caso nunca foi uma mera duplicação do que fez antes.
Pode ver-se isso ao estudar e comparar as seguintes passagens: Mt. 9:27–
31; Mc. 8:22–26; 10:46–52 (e paralelos); Jo. 9. Veja-se também sobre
Mc. 7:33, 34.
Em primeiro lugar, Jesus tomou este homem pela mão. Não é que o
indivíduo impedido de precisasse de guias. Tinha-os, e o haviam levado
a Jesus. Mas Jesus desejava comunicar àquele homem Sua própria
atenção e amor de maneira pessoal. Em consequência, Ele mesmo Se
constituiu em seu Guia.
Em segundo lugar, Jesus o conduziu para fora da aldeia. Com
relação à palavra “aldeia”, veja-se no versículo 22. Os expositores estão
divididos sobre o tema do por quê conduziu o homem para fora da
aldeia. Foi porque Jesus desejava evitar que se formasse uma grande
multidão que fora correndo após ele para ser curada? Ou foi pelo bem do
cego mesmo, para lhe fazer sentir mais livre e que pudesse concentrar
toda sua atenção em seu Benfeitor? As duas razões são possíveis. Em
concordância com o que se disse em 7:33, a segunda razão nos parece
melhor.
Em terceiro lugar, Jesus cuspiu nos olhos do homem. Neste caso
compare-se também com a cura do surdo-mudo (Mc. 7:31–37). Naquela
ocasião Jesus aplicou saliva à língua do homem; na presente, cuspiu em
seus olhos, visto que o problema deste homem estava em seus olhos (cf.
Jo. 9:6). O significado outra vez é claro: “Algo deve ser feito por seus
olhos … e eu o farei”.
Em quarto lugar, de maneira tranquilizadora, o Mestre pôs Suas
mãos sobre aquele homem, o que era uma ação que com frequência era
prelúdio da cura e que, portanto, foi um sinal prometedor para o cego.
Marcos (William Hendriksen) 417
377
Em quinto lugar, Jesus lhe perguntou, “Vês alguma coisa?”. É
evidente que o Senhor desejava que aquela pessoa “participasse” passo a
passo de sua própria cura.
24. Este [o cego], recobrando a vista, respondeu: Vejo os
homens, porque como árvores os vejo, andando.
No original deste versículo são usadas três palavras diferentes e
todas têm relação com a visão.378 O homem elevou a vista,
involuntariamente elevou seus olhos. Disse “Vejo os homens”. Isto se
refere aqui a um discernimento externo, algo vago. Acrescentou, “porque
como árvores os vejo, andando”. Percebe que certos objetos, que para
ele parecem árvores, diferem das árvores num aspecto importante:
“(estão) andando” e, portanto, devem ser pessoas. É possível que
estivesse olhando os discípulos de Jesus. Sua visão externa era ainda
imprecisa, mas sua percepção ou observação mental era correta: esses
objetos que se moviam eram pessoas, por certo. O que o fazia estar mais
seguro disto era o fato — uma alta probabilidade a menos que não
tivesse nascido cego. Portanto, sabia que aspecto tinham as pessoas.
Não obstante, se os homens pareciam árvores — exceto pelo fato de
que os homens se movem, e as árvores não —, havia algo que ainda ia
mal. Como Jesus nunca deixa Sua obra inconclusa (cf. Jo. 17:4; Fp. 1:6),
segue:
25. Então [Jesus], novamente lhe pôs as mãos nos olhos, e ele,
passando a ver claramente, ficou restabelecido; e tudo distinguia de
modo perfeito. 379
377
É a expressão grega ε_ τι βλέπεις uma abreviação de “queria saber se vir algo”? Isto não deve nos
estranhar, porque os idiomas, qualquer idioma, em todos os tempos, estão cheios de expressões
abreviadas (veja-se CNT sobre Jo. 5:31). Mas até sendo assim, a forma provavelmente tinha chegado
a ser equivalente à uma pergunta direta devido a seu uso frequente, e pode traduzir-se assim. Veja-se
Robertson, p. 916.
378
Os três verbos são _ναβλέψας (part. aor. de _ναβλέπω); βλέπω; e _ρ_ (os dois últimos são pres.
ind. 1a. pes. sing.).
379
Aqui há dois verbos mais que têm relação com a visão. São διέβλεψε (= “olhou claramente, abriu
bem os olhos”), aor. indic. de διαβλέπω; e _νέβλεπεν τηλαυγ_ς quer dizer, τ_λε “distante” (cf.
televisão) e α_γώς “resplandecente”; mas note-se o imperfeito, contrastado com os dois aoristos
Marcos (William Hendriksen) 418
Desta vez o homem, com os olhos bem abertos, dirigiu seu olhar
atentamente e já não via mais os homens como árvores. Sua visão estava
totalmente restaurada. Via e continuava vendo os objetos longínquos
como se estivessem junto a ele.
Devemos sublinhar que este ato de cura não tem nenhuma
semelhança às curas lentas de hoje em dia que requerem várias visitas ao
“que cura”.
Neste caso, todo o processo de cura se realizou em uns poucos
momentos, com o resultado de uma transformação da absoluta cegueira à
perfeita visão.
Não nos foi revelada a razão do por que neste caso particular o
processo de cura ocorreu em duas etapas. Foi talvez pela especial
necessidade que aquela pessoa tinha de compreender a inestimável
natureza da bênção que lhe era outorgada? A razão não podia ser uma
falta de poder da parte de Jesus. Não há lugar a dúvida de que Aquele
que podia levantar os mortos instantaneamente era capaz também de
comunicar uma recuperação imediata a este cego. Por alguma razão,
conhecida só por Aquele que cura, esta cura ocorreu em duas etapas.
26. E mandou-o Jesus embora para casa, recomendando-lhe:
Não entres na aldeia.
Por que esta advertência? Talvez pela mesma razão mencionada
com relação a outros milagres (veja-se sobre Mc. 1:44; 7:36). A vinda de
Cristo não teve o propósito de produzir emoção ou despertar falsas
esperanças sobre a cercania de uma libertação política. Não obstante, é
possível que ao enviar este homem diretamente para sua casa, Jesus teria
em mente o bem-estar do homem, ou seja, que pudesse assim meditar
com tranquilidade sobre a grande bênção recebida, e tivesse a
oportunidade de falar sem interferências sobre isto com os seres

διέβλεψε e _πεκατέστη; daí, “via (ou: seguiu vendo) … claramente”, de modo que até os objetos
distantes lhe eram muito claros. Note-se também o verbo duplamente composto _πεκατέστη aor. ind.
de _ποκαθίστημι (“foi totalmente restaurado”).
Marcos (William Hendriksen) 419
queridos, para que assim todos juntos pudessem glorificar a Deus. Cf.
5:19.

Mc. 8:27–30 - A confissão de Pedro e a estrita ordem de Cristo


Cf. Mt. 16:13–20; Lc. 9:18–21

As semelhanças e diferenças que existem entre Marcos, Mateus e


Lucas são surpreendentes. Em primeiro lugar, notemos as semelhanças.
Notem-se os seguintes paralelos:

Marcos Mateus Lucas


8:27 16:13 9:18
8:28 16:14 9:19
8:29a 16:15 9:20a
8:29b 16:16 9:20b
8:30 16:20 9:21

Salvo em Mateus 16:17–19, a sequência é a mesma nos três, e até a


fraseologia é quase idêntica. Ao que parece, o mais razoável é que houve
uma relação literária entre os três relatos. Entretanto, há suficiente
diversidade para mostrar que os evangelistas não eram meros copistas.
Cada evangelista narra a história segundo o Espírito Santo o guia. Isto
resulta em que cada um emprega seu próprio estilo. As variações,
entretanto, salvo em Mt. 16:17–19, são menores.
27. Então, Jesus e os seus discípulos. Lucas afirma explicitamente
que aqueles homens estavam com o Seu Mestre, e Mateus o expressa de
maneira implícita (“perguntou aos seus discípulos”). Continua: partiram
para as aldeias de Cesareia de Filipe. Aqui Mateus diz “na região de
Cesareia de Filipe”; e Lucas diz: “e orava”. Obviamente, não existe
contradição alguma. e, no caminho, perguntou-lhes: Quem dizem os
homens que sou eu?
Marcos (William Hendriksen) 420
Assim também Lucas, salvo que muda “homens” para “multidões”.
Em lugar de “sou”, Mateus diz: “é o Filho do Homem”, o que não faz
diferença quanto ao significado.
28. E responderam: João Batista; outros: Elias; mas outros:
Algum dos profetas.
O que acrescenta Mateus “e outros (dizem) Jeremias” não se acha
nem em Marcos nem em Lucas. Pode considerar-se como incluído em
“um dos profetas”. A resposta deixa claro que em geral a multidão cria
que Jesus era um muito proeminente mensageiro de Deus, cria que era
alguém já morto que tinha ressuscitado na pessoa de Jesus. Lucas faz
especial menção deste feito quando diz, “e outros, um dos profetas de
antigamente ressuscitado”.
29. Então, lhes perguntou: Mas vós, quem dizeis que eu sou? A
fraseologia é exatamente a mesma nos três relatos. Com grande ênfase
Jesus contrasta este “Mas vós, quem dizeis que eu sou …?” com “Quem
dizem as multidões …?”. Respondendo, Pedro lhe disse: Tu és o
Cristo. A resposta de Pedro representa a convicção dos Doze, e Mateus
a reproduz de uma forma mais ampla: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus
vivo”; e Lucas o faz com mais concisão: “És o Cristo de Deus”. Logo
vem a advertência de Jesus,
30. Advertiu-os Jesus de que a ninguém dissessem tal coisa a seu
respeito, com linguagem que essencialmente é o mesmo nos três,
embora com ligeiras variações.
Tendo em mente estas leves variações gerais, o leitor achará a
explicação do conteúdo de Marcos 8:27–30 na passagem paralela de
Mateus 16:13–16, 20, no CNT.
As três colunas das passagens paralelas (veja-se mais acima)
indicam também um claro contraste — embora nenhuma contradição —
entre Mateus, por um lado, e Marcos-Lucas, por outro. Este contraste
destaca-se pelo fato de que o conteúdo de Mateus 16:17–19 não se acha
nem em Marcos nem em Lucas. Estes versículos são: “Então, Jesus lhe
afirmou: Bem-aventurado és, Simão Barjonas, porque não foi carne e
Marcos (William Hendriksen) 421
sangue que to revelaram, mas meu Pai, que está nos céus. Também eu te
digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as
portas do inferno não prevalecerão contra ela. Dar-te-ei as chaves do
reino dos céus; o que ligares na terra terá sido ligado nos céus; e o que
desligares na terra terá sido desligado nos céus”. Referente a possível
razão desta omissão em Marcos e Lucas, como também a explicação da
passagem exclusiva de Mateus, veja-se CNT sobre Mt. 16:17–19.
Antes de deixar este tema, devemos particularizar que as palavras
de Jesus, “Mas vós, quem dizeis que eu sou?” encerram uma lição muito
importante. Um crente sincero é aquele que está disposto a expressar
suas convicções apesar da opinião popular, e manifestar abertamente
uma convicção que é contrária à das massas. No melhor sentido do
termo, é um crente que, com ousadia, sai à frente em defesa da verdade.
O reino é para “os que se esforçam” (Mt. 11:12); para homens de espírito
robusto e vigoroso como José (Gn. 39:9); Moisés (Êx. 32:31, 32); Josué
e Calebe (Nm. 13:30; 14:6–10); Samuel (1Sm. 7:5); Davi (1Sm. 17:41–
49; Sl 27); Natã (2Sm. 12:7); Elias (1Rs. 18:21); Josafá (2Cr. 20:5–12);
Daniel e seus três amigos (Dn. 1:11–13; 3:16–18; 6:10, 21–23);
Mardoqueu (Et. 3:4); Pedro (At. 4:20); Estêvão (At. 6:8; 7:51); Paulo
(Fp. 3:13, 14); Epafrodito (Fp. 2:15–30; 4:18); Onesíforo (2Tm. 1:15–
18); e o apóstolo João (Ap. 1:9). E é para mulheres valentes como Rute
(Rute 1:16–18); Débora (Jz. 4:9); Abigail (1Sm. 25:14ss); Ester (Et.
4:16); e Lídia (At. 16:15, 40).
A Escritura condena radicalmente a conformidade com o mundo, o
transigir em assuntos fundamentais e a renúncia a ser distinto (Rm. 12:2;
2Co. 6:14; 1Jo. 2:15–17). Quando “os filhos de Deus” se casam com “as
filhas dos homens” (Gn. 6:1, 2), o resultado é o dilúvio. Quando Israel
adora um bezerro de ouro, três mil israelitas perdem a vida (Êx. 32:28).
Quando Israel deseja ser como as demais nações e pede um rei, o
resultado final é a vergonhosa derrota numa batalha na qual o rei se
suicida (1Sm. 31:4). Quando o acessível Jeroboão institui o culto ao
bezerro em Betel e Dã, conduz o povo pelo caminho que finalmente
Marcos (William Hendriksen) 422
desemboca na abafadiça deportação a um país pagão (1Rs. 12:26–30;
14:16, 19, 26, 31; 2Rs. 3:3; 10:29, 31, etc.).
Por não ser “do mundo” (Jo. 17:16), os crentes são luzes no meio do
mundo (Mt. 5:14; Fp. 2:15). São espiritualmente diferentes do mundo,
para ser uma bênção no mundo. Assim também aqui em Marcos 8:28,
29. No presente caso, todos diziam que Jesus era um simples homem,
que era João Batista, Elias, ou um dos (outros) profetas. Mas o
verdadeiro crente, seguidor de Jesus, responde, “Tu és o Cristo”
(segundo Marcos), “o Filho do Deus vivo” (acrescenta Mateus).

Mc. 8:31–9:1 - A primeira predição da paixão e da ressurreição


Cf. Mt. 16:21–28; Lc. 9:22–27

Novamente, surpreende a semelhança que há entre Marcos e seus


paralelos. Quanto à relação entre Marcos e Mateus, as diferenças
principais são as seguintes: Onde Marcos diz “o Filho do Homem”
Mateus só tem “lhe era necessário seguir para Jerusalém” (Mt. 16:21).
Mateus 16:22 entrega as exatas palavras que Pedro pronunciou ao
repreender a Jesus; o versículo 23 acrescenta que Jesus disse a Pedro,
“Tu és para mim pedra de tropeço”; o versículo 24 menciona só a Jesus e
os Seus discípulos, não inclui as pessoas; o versículo 25 omite a frase de
Marcos “e do evangelho”. O versículo 26 tem leves variações
gramaticais com Mc. 8:36, 37. Diferente de Marcos 8:38, Mt. 16:27 diz
de maneira chamativa: “Porque o Filho do Homem há de vir na glória de
seu Pai, com os seus anjos, e, então, retribuirá a cada um conforme as
suas obras”. Finalmente, o versículo 28 de Mateus termina com a frase
“até que vejam vir o Filho do Homem no seu reino” ou “em sua
dignidade real”; Marcos 9:1 finaliza com uma frase essencialmente
similar “até que vejam ter chegado com poder o reino de Deus”.
A passagem paralela em Lucas (Lc. 9:22–27) é claramente um
breve resumo. Às vezes assemelha-se mais a Marcos, outras vezes a
Mateus. Assim, no versículo 22 Lucas menciona a Jesus dizendo que “o
Marcos (William Hendriksen) 423
Filho do Homem” (assim em Marcos) deve ressuscitar “ao terceiro dia”
(assim em Mateus); Marcos diz “depois de três dias”. No versículo 23
Lucas acrescenta a palavra “cada dia” (a “tome sua cruz”). Bem como
Mateus, no versículo 24 Lucas omite a frase de Marcos “e por causa do
evangelho”. No versículo 25 Lucas diz “vier a perder-se”. No versículo
26 Lucas assemelha-se a Marcos 8:38 de forma mais estreita que a
Mateus 16:27. Finalmente, Lucas 9:27 continua em sua estreita
semelhança a Marcos (Mc. 9:1), embora Lucas abrevia.
Obviamente não existem diferenças essenciais, nem contradições.
Voltando agora ao relato de Marcos, remetemos o leitor ao seu
paralelo em Mateus. Veja-se CNT sobre Mt. 16:21–28, tendo em mente
as (em geral) leves diferenças que se assinalaram entre os dois relatos
(entre Marcos e Mateus).
Aqui no CNT sobre Marcos serão acrescentadas observações que
em sua maioria não se acham no CNT sobre Mateus.
31, 32a. Então, começou ele [Jesus] a ensinar-lhes que era necessário
que o Filho do Homem sofresse muitas coisas, fosse rejeitado pelos
anciãos, pelos principais sacerdotes e pelos escribas, fosse morto e que,
depois de três dias, ressuscitasse. E isto ele expunha claramente.
A predição que aqui se faz tem as seguintes características:
a. Era necessária. Quando os discípulos, com Pedro agindo como
porta-voz, disseram, “Tu és o Cristo” (v. 29), Jesus não os contradisse,
sendo que aprovava o que diziam. Em consequência, à vista do fato de
que muitos interpretavam a obra do Messias num sentido terrestre e
político, fazia-se necessário que os discípulos recebessem instrução a
respeito do que significava ser o Cristo.
b. Era surpreendente. “O Filho do Homem” (veja-se sobre Mc.
2:10; CNT sobre Mt. 8:20). Quer dizer, o próprio Jesus, o Messias … há
de sofrer e morrer! Na realidade ser executado! E não só ia suceder;
devia suceder. Ele devia estar sujeito ao sofrimento e devia morrer, por
expressa vontade do Pai (Jo. 3:16; Rm. 8:32), por própria promessa (Sl
40:7), conforme a profecia (Is. 53), e fundamentalmente pelas demandas
Marcos (William Hendriksen) 424
da lei (Gn. 2:17; Rm. 5:12–21; 2Co. 5:21). Devia fazer o que era Seu
próprio desejo (Jo. 10:11; 2Co. 8:9; Gl 2:20). Entretanto, depois de três
dias — quer dizer, “ao terceiro dia” — devia ressuscitar. (veja-se Is.
53:10; Lc. 24:26, 27). Mas em vista do que diz Mc. 9:32 (cf. Lc. 18:34) é
muito duvidoso que este clímax tão otimista tivesse sido inteiramente
apreciado pelos que o ouviram.
c. Era reveladora. Os que vão matar o Messias de Israel são os
anciãos, os principais sacerdotes e os escribas, homens que supostamente
eram os vigias do povo, aqueles de cujo círculo se escolhia os membros
do Sinédrio!
d. Era amável e sábia. A fim de não ferir os sentimentos daqueles
homens que Lhe eram tão queridos, Jesus não lhes fala nestes momentos
dos detalhes da horrível paixão que se aproximava. Cf. Jo. 16:12; Sl
103:12.
e. Era clara. Jesus lhes tinha falado antes de forma velada a respeito
dos sofrimentos que Lhe sobreviriam e que resultariam numa vitória
(Mc. 2:20; cf. Mt. 12:39, 40; 16:4). Agora fala claramente. 380
32b. Vem a seguir a repreensão de Pedro (32b) e a reação de Cristo
a esta repreensão (33). Mas Pedro, chamando-o à parte, começou a
reprová-lo. Para Pedro, a própria ideia do messianismo excluía o
sofrimento e a morte por execução. Este discípulo, assim como os
outros, tinha ido caminhando após Jesus. Agora O chama à parte e
começa a repreendê-Lo. O que os demais puderam ter pensado, ele o
expressa. Era homem de palavras e ação. O que os demais puderam ter
desejado fazer, ele o fez. Segundo Mateus, Pedro disse: “Tem compaixão
de ti, Senhor; isso de modo algum te acontecerá.” Naturalmente, Pedro
deveria ter estado mais informado. Acaso alguma vez leu Isaías 53? Não
lembrava que João Batista havia descrito a Jesus como “o Cordeiro de
Deus que tira o pecado do mundo”? O que Pedro fez, então, não tem

380
Embora a etimologia de παρρησί_ é “dizendo tudo”, o derivado “claramente” é obviamente
aplicável aqui.
Marcos (William Hendriksen) 425
desculpa. Mas muito pior é a postura daqueles críticos modernos que
estão constantemente assinalando a Jesus como exemplo a seguir e,
entretanto, não admitem o fato de que Ele não pode ser nosso exemplo a
menos que primeiro e sobretudo, seja nosso Senhor e Salvador, quem
mediante Sua morte voluntária, sacrifical e vicária salva o Seu povo de
seus pecados e o leva à glória.
A reação de Cristo foi pronta, decisiva e firme. Conhecia
perfeitamente que atrás de Pedro agia Satanás, o qual tentava mais uma
vez, como o fez anteriormente (Mt. 4:8, 9), que Cristo desviasse Sua
atenção da cruz. Nem por um momento o Salvador titubeia. Põe em
prática a advertência que tinha dado a outros (9:43; cf. Mt. 5:29, 30):
33. Jesus, porém, voltou-se, olhou para os seus discípulos e
repreendeu Pedro, dizendo: “Para trás de mim, Satanás! Você não
pensa nas coisas de Deus, mas nas dos homens” [NVI].
Ao falar com Pedro, na realidade Jesus Se dirige a Satanás; ou se
preferir-se, a Pedro em tudo aquilo que provenha da perversa influência
do príncipe do mal. De forma rápida e terminante, Jesus rejeita a
tentação implícita. Naturalmente que, do ponto de vista humano, é
inaceitável sujeitar-se a sofrimento e logo ser executado. Entretanto, do
ponto de vista de Deus, este processo era absolutamente necessário,
segundo já se mostrou (veja-se sobre o v. 31). Não obstante, Deus
também tinha ordenado a recompensa subsequente: a gloriosa
ressurreição. Jesus exclama: “Para trás de mim, Satanás!”, ou “Retire-se
de minha vista, Satanás”, usando palavras que antes o diabo tinha
escutado dos mesmos lábios (Mt. 4:10). Para o homem, tal como é por
natureza, a cruz lhe é indubitavelmente ofensiva. Não está disposto a
aceitar o fato de que “sem derramamento de sangue não há remissão”
(Hb. 9:22). O Cristo crucificado é para os judeus pedra de tropeço, e para
os gentios loucura. Não obstante, é nesta mesma cruz onde se revela o
poder de Deus e a sabedoria de Deus. Mas só aqueles que são salvos
(quer judeus ou gentios, 1Co. 1:18, 24) valorizam a cruz.
Marcos (William Hendriksen) 426
Continuando, Jesus explica a uma concorrência mais numerosa que
o caminho que Ele deve tomar é o caminho que todos devem seguir, pois
só o caminho da cruz conduz à glória. Esta afirmação não se deve mal-
entender. Entre a humilhação de Cristo e a de Seu povo existe uma
grande diferença. Sua morte é algo único, porque tem valor expiatório
(Mc. 10:45; cf. Mt. 20:28). A nossa, não (Sl 49:7). Não obstante, o
princípio como tal, que a cruz conduz à coroa, é válido não só para
Cristo (Hb. 12:2), mas também para Seu povo (At. 14:22; 2Co. 4:17;
2Tm. 3:12). Na realidade, entre as aflições de Cristo e as do Seu povo
existe uma relação estreita, de maneira que o crente é “partícipe dos
sofrimentos de Cristo”. São odiados porque servem a um Mestre que
também é odiado (Mt. 10:24, 25; Jo. 16:33; Cl. 1:24; Hb. 13:13; 1Pe.
4:13; Ap. 12:4, 13).
Isto introduz os versículos 34–38. O breve mas belo parágrafo
começa com:
34a. Então, convocando a multidão e juntamente os seus
discípulos, disse-lhes: ...
Neste ponto, Jesus chama as multidões para que estejam com os
Seus discípulos. A intensa exortação que segue é de valor para todos; na
realidade, é para todos assunto de vida ou morte, vida eterna contra
morte eterna. Portanto, todos — não só os Doze — deviam ouvi-lo. A
essência da exortação é que cada um deve chegar a ser um discípulo de
Jesus. Ele nos ensina o que cada um deve fazer para poder ser Seu
discípulo, quer dizer, para ser um seguidor e um verdadeiro crente:
34b. Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a
sua cruz e siga-me.
Ir “após Jesus significa unir-se a Ele como discípulo. A figura se
baseia no fato de que em muitas ocasiões os “seguidores” de Cristo —
não só os Doze, mas também muitos outros — acompanhavam o Mestre,
andando quase sempre após Ele, literalmente.
O que deve fazer, então, uma pessoa para ser considerada um
verdadeiro discípulo? Bem, diz Jesus, se deseja vir após mim, primeiro
Marcos (William Hendriksen) 427
deve negar-se a si mesmo; quer dizer, deve uma vez por todas despedir-
se do antigo eu, esse eu que é alheio à graça regeneradora. Aquele que se
nega a si mesmo abandona toda confiança no que a pessoa é por
natureza, e depende unicamente de Deus para sua salvação. Abandona
resolutamente não só os pensamentos e costumes pecaminosos, mas
também a confiança em modelos de pensamento “religiosos” — por
exemplo, farisaicos — impossíveis de harmonizar com a confiança em
Cristo (veja-se 2Co. 10:5). Deve estar disposto a dizer com Paulo,
“Entretanto, tais coisas que eram para mim lucro, estimei-as como perda
por amor de Cristo …” (veja-se Fp. 3:7–11).
Segundo, deve tomar a sua cruz. A ideia de fundo é a de um
condenado forçado a tomar e levar sua própria cruz ao lugar da
execução. Entretanto, o que o condenado faz à força, o discípulo de
Cristo o faz de boa vontade. Voluntária e decididamente aceita a dor, a
vergonha e a perseguição que vai ser sua porção particular devido a sua
lealdade a Cristo e a sua causa.
Finalmente, deve começar a seguir a Jesus e perseverar nisso. Aqui,
seguir o Mestre significa confiar nEle (Jo. 3:16), seguir os Seus passos
(1Pe. 2:21), obedecer os Seus mandamentos (Jo. 15:14) em gratidão pela
salvação recebida nEle (Ef. 4:32–5:2). 381
Mas é preciso tomar cuidado para não conceber tudo isto como se
indicasse uma sequência cronológica, como se o Senhor estivesse
exortando os Seus ouvintes a primeiro praticar a autonegação por um
período, que depois de um tempo tomem e levem a cruz por outro
período de tempo, para que finalmente sigam a Jesus. A ordem não é

381
Notem-se os seguintes pontos gramaticais: “quer”, “deseja” ou “anela” são traduções adequadas de
θέλει; o v. 34b é uma cláusula condicional do primeiro tipo. A condição é tomada como apontando a
um fato real: “Se alguém quiser (e é um fato de que há aqueles que desejam)”. Nesta condição, ε_ τις
tem mais ou menos o mesmo significado que _στις (veja-se Robertson, pp. 727, 1007, 1008). Note-se
_παρνησασθω, aor. impv. med. 3ª. pes. sing. de _παρνέομαι, dizer que não, negar, renunciar, abjurar,
repudiar; e _ράτω aor. impv. at. 3ª. pes. sing. de α_ρω, levantar. Os dois imperativos são ingressivos.
Finalmente, note-se _κολουθείτω pres. 3ª. pes. sing. de _κολουθέω, seguir. Indica uma ação que, uma
vez começada, continua.
Marcos (William Hendriksen) 428
cronológica mas lógica. As três coisas juntas indicam uma verdadeira
conversão, seguida por uma santificação que dura toda a vida.
Um segundo erro que é preciso evitar, é a ideia de que uma pessoa
seja capaz de negar-se a si mesma, tomar sua cruz, e seguir o Salvador
por suas próprias forças. É verdade que a conversão (assim como o
processo de santificação que se segue), é uma responsabilidade humana,
mas é impossível sem a regeneração (Jo. 3:3, 5), que é obra do Espírito
Santo no coração do homem. Além disso, o Espírito não deixa o homem
abandonado aos seus próprios recursos depois que este renasceu, mas
permanece com ele para sempre, capacitando-o a fazer o que de outro
modo lhe seria impossível fazer. Entretanto, aqui nos versículos 34ss. a
ênfase recai na responsabilidade e atividade humana.
Nos quatro versículos seguintes (35–38), a obrigação de converter-
se, etc., e a recompensa resultante, mostram-se em vivo contraste com a
perda que experimentam aqueles que recusam negar-se a si mesmos,
tomar sua cruz e seguir a Jesus. Cada um dos quatro versículos começa
com “porque”. 382 Por isso, estas cláusulas ou versículos que começam
com “porque” podem em certo sentido considerar-se como indicando a
razão da urgente ordem do versículo 34. O que temos aqui é um
fenômeno que ocorre com frequência nas Escrituras e também na
conversação diária, ou seja, a expressão abreviada. 383 Para expressar o
significado dos versículos 35–38, colocaremos as palavras implícitas
entre parêntese, o que resulta em algo como o que segue: 35. (Que não se
recuse) porque quem quer que queira salvar sua vida a perderá, mas
quem quer que perca sua vida por causa de mim e do evangelho a
salvará. 36 (Que não siga o mal caminho) porque que aproveita o homem
ganhar o mundo inteiro e perder sua vida? 37 Porque (tendo perdido a
382
No original, γάρ nunca se acha no próprio início de uma oração. No caso presente, como ocorre
com frequência, em cada versículo aparece como a segunda palavra. Entretanto, em português, γάρ
está corretamente representado pela primeira palavra da oração. Assim obviamente nas versões em
português.
383
Veja-se CNT sobre Jo. 5:31; e quanto a γάρ, segundo se representa em Mc. 8:35; Lc. 9:24, veja-se
BAGD, p. 151.
Marcos (William Hendriksen) 429
vida) o que dará o homem em troca de — quer dizer, para voltar a
comprar — sua vida? 38 (Portanto, que não se recuse) porque quem quer
que se envergonhe de mim e de minhas palavras nesta geração adúltera e
pecadora, dele também o Filho do Homem se envergonhará quando vier
na glória de seu Pai com seus santos anjos.
Em consequência, depois de um “que não se recuse” implícito,
segue o versículo
35. Quem quiser, pois, salvar a sua vida perdê-la-á; e quem
perder a vida por causa de mim e do evangelho salvá-la-á.
Significado: o indivíduo que salvar — ou “quiser salvar” 384 — sua
vida, perdê-la-á. O que é que deseja salvar exatamente? Resposta: sua
vida, quer dizer, ele mesmo. 385 Aqui, entretanto, devemos fazer uma
distinção. No presente caso a “vida”, “alma” ou o “eu” que a pessoa
presumivelmente deseja salvar é seu próprio ser imaterial e invisível,
considerado como alheio à graça regeneradora. Tal pessoa se apega a
esta vida pecaminosa, apegando-se tenazmente a ela. Faz lembrar o rico
insensato descrito em Lucas 12:16–21 (veja-se também Lc 16:19–31).
Amontoa bens materiais, pensando somente em si mesmo, nunca em
outros. Imagina que as posses materiais, ou talvez o prestígio e a fama,
podem brindar-lhe a paz interna e a satisfação que anda buscando. Mas
esta limitação egoísta de seu horizonte faz com que sua alma seja cada
vez mais mesquinha. Perde-a; quer dizer, perde qualquer resíduo da vida
mais alta e nobre que pôde ter havido nele no princípio.
Por outro lado, quem perder 386 sua vida “por causa de mim e do
evangelho” (note-se “por causa … do evangelho”, uma referência às
boas novas, tão característica em Marcos; cf. Mc. 1:1, 15; 10:29), salvá-
la-á. A pessoa “perde” sua vida no sentido indicado aqui, ao dedicar-se
completamente a Cristo, ao serviço dos necessitados, ao evangelho.

384
Note-se que depois do pronome relativo indefinido (aqui) _ς, vem _ς vem seguido do subj. pres. 3a
pes. sing. ql. Este subjuntivo tem um significado futurista. Veja-se Robertson, p. 957.
385
Veja-se mais acima, nota 370.
386
Ou perca.
Marcos (William Hendriksen) 430
Note-se que é Cristo quem reclama tal devoção absoluta. Isto demonstra
que Jesus Se considera como Senhor de tudo, e que o evangelista estava
totalmente consciente disso! A pessoa que oferece esta devoção salva
sua vida, quer dizer, sua alma, ou podemos dizer também, a si mesmo. O
eu indicado aqui é o ser interno influenciado pela graça divina. Só chega
a salvar-se quem se perde a si mesmo, aquele que olha para fora de si a
fim de servir o Mestre e os Seus “pequeninos” (cf. Mt. 25:40). A alma
com amplos horizontes se alarga, desenvolve-se maravilhosamente.
Transborda de paz, segurança, alegria, etc. Ajudando a outros, ajuda-se a
si mesma. Ao amar, experimenta o amor de outros, especialmente o de
Deus. Em consequência, Jesus insiste com cada pessoa da concorrência a
que não siga a direção errada, a de voltar-se para com dentro, a si mesmo
de maneira egoísta, decidindo dedicar a vida a todos os seus “tesouros”
terrestres. Proceder assim equivaleria à uma tremenda insensatez, e o
persistir nela, fá-la-ia incurável.
36. Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a
sua alma?
Imaginemos por um momento que uma pessoa ganhasse o mundo
inteiro, suponhamos que se apodera de todos os diamantes e recursos
ocultos do mundo, de todo o bem que cresce nele, dos gados que pastam
sobre mil colinas e de todo o esplendor do mundo, do prestígio, os
prazeres e tesouros. Mas suponhamos também que no processo de
realizar isto perdesse o direito de possuir sua própria vida (a superior) ou
seu ser. Do que lhe serviria tudo? Resposta implícita: não lhe serve para
nada, só lhe trará a ruína. Isto resulta ainda mais claro quando levamos
em conta que os bens meramente terrestres não são permanentes. Ao
morrer, a pessoa não leva consigo nada de tudo isso. Mas a alma, o eu,
existe para sempre, e para sempre e sempre jamais … com toda sua
miséria e horror. Todos os tesouros da pessoa egoísta já desapareceram.
Mas se ainda os tivesse, não poderiam dar-se em troca da paz do coração
e da mente. Nada, nada absolutamente, será aceito jamais em troca da
vida, a vida verdadeira que o homem tão urgentemente necessita.
Marcos (William Hendriksen) 431
37. Que daria um homem em troca de sua alma?
A perda que sofreu é simplesmente irreparável. Nada a compensará.
Aqui, assim domo ao longo de tudo o que se tem dito, a implicação
subjacente é a de um intenso e muito tenro amor: “Ó! se tão somente
cada pessoa do auditório se negasse a si mesma, tomasse sua cruz, e Me
seguisse!”. A premente chamada do versículo 34 nunca perdeu sua
vigência.
Portanto, que ninguém rejeite esta chamada. Que ninguém
desobedeça o mandamento ou recuse o convite implícito,
38. Porque qualquer que, nesta geração adúltera e pecadora, se
envergonhar de mim e das minhas palavras, também o Filho do
Homem se envergonhará dele, quando vier na glória de seu Pai com
os santos anjos.
Envergonhar-se de Jesus significa sentir-se tão orgulhoso de si
mesmo que a não se quer ter nada que ver com Ele. Assim por exemplo,
Hb. 2:11 declara: “Ele não se envergonha de lhes chamar irmãos”. Jesus
sabia que os escribas e fariseus (Seus inimigos jurados) envergonhavam-
se dEle e dos Seus ensinos. Mas até muitos de Seus seguidores se
envergonhavam dEle. Por isso, fala desta “geração adúltera e pecadora”.
Os judeus contemporâneos de Cristo eram adúlteros, infiéis a Jeová, o
marido legítimo de Israel (Is. 50:1ss.; Jr. 3:8; 13:27; 31:32; Ez. 16:32,
35ss; Os. 2:1ss.). Cf. Mt. 12:39; 16:4. Eles eram indiscutivelmente
pecaminosos ao ter-se desviado completamente da meta de servir e
glorificar a Deus.
Visto que se envergonharam de Jesus, Ele se envergonhará deles
(cf. Mt. 7:23; Lc. 13:27). Em sua volta, rejeitá-los-á e os condenará (cf.
Mt. 25:41–46a). Note-se a autodesignação de Cristo, “O Filho do
Homem”, derivada de Dn. 7:13, 14 (cf. Mc. 14:62; veja-se mais acima,
sobre o v. 31; também sobre 2:10; e CNT sobre Mt. 9:20). O Filho do
Homem é Aquele que vem de cima e, portanto, é glorioso
intrinsecamente e em todo respeito, mas aqui na terra sofre. Não
obstante, através desse sofrimento vicário alcança uma glória que não só
Marcos (William Hendriksen) 432
é interna mas também externa. Virá “na glória de seu Pai com seus
santos anjos”. Significa: Em Sua segunda vinda, o Pai Lhe comunicará a
Sua própria gloria e Lhe dará Seus próprios anjos para constituir Seu
brilhante séquito. Cf. Mt. 25:31.
9:1. Dizia-lhes ainda: Em verdade vos afirmo que, dos que aqui
se encontram, alguns há que, de maneira nenhuma, passarão pela
morte até que vejam ter chegado com poder o reino de Deus.
Quanto a “Em verdade vos afirmo” veja-se sobre Mc. 3:28. “Passar
pela morte” significa experimentá-la, quer dizer, morrer. Aqui em Mc.
8:38–9:1, Jesus considera como uma unidade todo o estado de exaltação,
da ressurreição até a segunda vinda. Em Mc. 8:38 refere-se à sua
consumação final; aqui em Mc. 9:1 ao seu começo. O que diz é que
alguns a quem está falando seriam testemunhas deste começo. Vão ver o
reino (ou a majestade, o reinado) de Deus vir “com poder”.
Com toda probabilidade, a referência é à gloriosa ressurreição de
Cristo, à Sua volta no Espírito no dia do Pentecostes e — em estreita
relação com esse evento — à Sua poderosa e influente posição à destra
do Pai. Quando tudo isto ocorrer, diz Jesus, na terra se produzirão
mudanças tão enormes que os não cristãos dirão que o mundo está sendo
“transtornado” (At. 17:6). Por certo, com a exaltação de Cristo,
começaram a ocorrer acontecimentos transcendentais: a igreja chegou à
sua “maioridade”, estendeu-se entre os gentios, que se converteram por
milhares, experimentou-se a presença e o exercício de muitos dons
carismáticos, etc. Jesus prediz que tudo isto começaria a realizar-se
durante a vida de alguns dos que naquele momento O estavam
escutando. Isto também se cumpriu literalmente. Para mais detalhes
sobre isto veja-se CNT sobre Mt. 16:28.
A vinda do reino monárquico de Cristo “com poder” foi prefigurada
na transfiguração que se relata no próximo parágrafo, Marcos 9:2–8. Há
aqueles que creem que este acontecimento estava incluído na predição de
Cristo registrada em Mc. 9:1. Provavelmente é impossível chegar a estar
seguros sobre este ponto.
Marcos (William Hendriksen) 433
Resumo do Capítulo 8:1–9:1

As seis seções podem resumir-se como segue:


a. Os versículos 1–10 relatam a milagrosa alimentação dos quatro
mil. Jesus e os Seus discípulos estão ainda numa região desolada a leste
do mar da Galileia. Uma grande multidão esteve com Ele durante três
dias. Não há mais comida. Assim que, o Mestre diz aos Seus discípulos,
“Meu coração se compadece pela multidão …” Os discípulos
simplesmente respondem, “Onde nesta região deserta poderá alguém
conseguir pão suficiente para alimentá-los?”. Tinham somente sete pães.
Então, Jesus realiza um milagre para esta multidão acossada pela fome,
grandemente parecido ao da alimentação anterior (6:30–44). Depois que
todos ficam saciados, sobram sete cestos cheios de pedaços de pão. O
fato de que Jesus repita Seus milagres mostra Seu grande poder. Além
disso, este milagre revela o amplo alcance do amor divino.
b. Segundo os versículos 11–13, depois de chegar à margem
ocidental, os fariseus demandam “um sinal do céu” como se todas as
obras milagrosas realizadas equivalessem a zero. Desta forma, põem em
tela de juízo o poder de Cristo para realizar milagres. Suspirando
profundamente por causa de sua obstinada incredulidade, Jesus rejeitou
tal petição.
c. O fato relatado nos versículos 14–21 ocorreu no lago durante a
viagem de Dalmanuta a Betsaida Júlia. Os discípulos se esqueceram de
levar pão, e só restava um. Jesus os adverte contra “a levedura dos
fariseus e de Herodes”. Os Doze pensaram que se referia ao pão material
e que os estava culpando por não proporcioná-lo. Mediante uma série de
perguntas Jesus os exorta a confiar nEle.
d. Só Marcos consigna o milagre que se acha nos versículos 22–26.
Ocorre em Betsaida Júlia. Levaram um cego a Jesus, e Lhe pediram que
o curasse. Ao pôr Jesus as mãos sobre o homem uma primeira vez, este
inválido viu “pessoas como árvores, andando”. Depois de pôr as mãos
Marcos (William Hendriksen) 434
novamente nos olhos do doente, sua vista ficou perfeitamente
restabelecida.
Entre os casos relatados em que se restabelece a vista, não se acham
dois iguais, mostrando-se com isto que o amor divino aplica-se às
pessoas de forma individual, não só a multidões.
e. Segundo os versículos 27–30, perto de Cesareia de Filipe, Jesus
perguntou a seus discípulos: “Quem dizem os homens que sou eu?”. Eles
responderam, “João Batista … Elias … um dos profetas”. Então Ele
insiste: “Mas vós, quem dizeis que eu sou?” Pedro responde: “Tu és o
Cristo”. Jesus advertiu os Seus discípulos que não revelassem este fato a
ninguém. Entendia que os conceitos errôneos do povo a respeito de Sua
obra messiânica podiam conduzir Seu ministério público a um final fora
do tempo estabelecido. Sobre a explicação completa veja-se CNT sobre
Mateus 16:13–19.
f. Jesus faz Sua primeira predição manifesta sobre a paixão e
ressurreição que se aproximam (vv. 31–9:1). Diz: “Era necessário que o
Filho do Homem sofresse muitas coisas, fosse rejeitado pelos anciãos,
pelos principais sacerdotes e pelos escribas, fosse morto e que, depois de
três dias, ressuscitasse”.
Jesus o Messias? Sim, mas, o Messias sofredor! O intento de Pedro
de repreender o Mestre por esta interpretação — tentativa em que Jesus
descobre uma tentação da parte de Satanás — recebe um franco rechaço.
Jesus explica a uma concorrência formada pelos Doze e muitos outros,
que os Seus verdadeiros discípulos são participantes dos Seus
sofrimentos: “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a
sua cruz e siga-me”. Para mais explicações sobre 9:1, veja-se CNT sobre
Mateus 16:28.
Marcos (William Hendriksen) 435
MARCOS 9 (MC 9:2–50)
Mc 9:2–13 - Transfiguração de Jesus no topo de um monte
Cf. Mt 17:1–13; Lc 9:28–36

Existe uma comovedora e bela conexão entre os capítulos 8 e 9. No


parágrafo final do capítulo 8 (realmente aquele que abrange Mc. 8:31–
9:1) descreve-se a Jesus como Aquele que resistiu a tentação de Satanás,
quem tentava evitar que Jesus partisse à cruz. O Senhor lhe responde,
“Retire-se de minha vista, Satanás”. Com esta reação contra o sinistro
ataque do diabo, Jesus reafirma sua decisão de ser “o Cordeiro de Deus
que tira o pecado do mundo”. Falando em termos humanos, este fato
comove intensamente o coração do Pai (veja-se Mc. 9:7b), quem agora,
como consequência, responde no monte da transfiguração (Mc. 9:2–13),
comunicando a Seu Filho “glória e honra”. Segundo Marcos, isto fê-lo:
a. envolvendo Seu corpo, inclusive mesmo as Suas vestes, de um
resplendor celestial (vv. 2, 3);
b. enviando-Lhe dois mensageiros celestiais, Elias e Moisés, que
falaram com Ele (v. 4) a respeito de Sua paixão próxima e
(provavelmente também) da recompensa subsequente (Lc. 9:31b); e
c. proclamando aos ouvidos de Pedro, Tiago, e João: “Este é o meu
Filho amado; a ele ouvi.”
Uma vez que chegamos a entender a conexão entre estes dois
capítulos, não só nos faz lembrar mais facilmente a transição do capítulo
8 ao capítulo 9, mas também — e isto é o mais importante — ter uma
compreensão mais completa do verdadeiro significado da transfiguração,
a teor do que se indica em 2 Pedro 1:16, 17.
Pela forma em que este relato se desenvolve nos Sinóticos, é
evidente que aqui também é provável a existência de material original
tanto escrito como oral, ao menos para os últimos Evangelhos. Mas
também é claro que nenhum evangelista depende servilmente de outros:
Marcos (William Hendriksen) 436
cada um dos relatos paralelos contribui com aspectos que não se acham
nos outros. Notem-se as seguintes contribuições individuais:
Mateus é o único que nos diz que o rosto de Jesus “resplandecia
como o sol”. Lucas só diz que a aparência de seu rosto foi mudada.
Marcos omite totalmente este ponto. Também é unicamente Mateus
quem declara que quando uma voz falou da nuvem, “os discípulos
caíram sobre seus rostos”, Jesus foi e tocou aqueles homens assustados, e
lhes disse que não temessem. Note-se também os vívidos e dramáticos
detalhes em Mt. 17:5: “Falava ele ainda, quando uma nuvem luminosa os
envolveu ...”
É Lucas quem informa que a transfiguração ocorreu quando Jesus
orava e enquanto Pedro e outros estavam rendidos pelo sonho. Só Lucas
relata o tema da conversação entre Jesus e os mensageiros do céu.
Note-se também a leve diferença das palavras que os três usam para
descrever o que o Pai diz ao exaltar o Seu Filho diante dos discípulos:
Mateus: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo; a ele
ouvi.”
Marcos: “Este é o meu Filho amado; a ele ouvi.”
Lucas: “Este é o meu Filho, o meu eleito; a ele ouvi.”
Quanto a Marcos, para uma exegese mais completa, veja-se CNT
sobre Mateus. Aqui depois de darmos uma breve explicação de Mc. 9:2–
8, analisaremos certos pontos de especial interesse. Posteriormente se
dará o mesmo tratamento aos versículos 9–13.
2–4. Seis dias depois — quer dizer, seis dias depois da confissão de
Pedro e da primeira predição que Cristo fez a respeito da paixão e a
ressurreição — tomou Jesus consigo a Pedro, Tiago e João — para que
depois do grande acontecimento da Páscoa dessem testemunho do que
viram — e levou-os sós, à parte — os outros nove discípulos ficaram
atrás; cf. v. 14 — a um alto monte. — Jebel Jermaque na parte alta da
Galileia? —. Foi transfigurado — sua aparência exterior foi
transformada — diante deles; as suas vestes tornaram-se
resplandecentes e sobremodo brancas, como nenhum lavandeiro na
Marcos (William Hendriksen) 437
terra as poderia alvejar. Apareceu-lhes Elias com Moisés. —
provavelmente representando respectivamente aos profetas e à lei que
Cristo veio para cumprir — e estavam falando com Jesus.. Falaram
com ele a respeito de sua “partida”, que se aproximava rapidamente e
que teria lugar em Jerusalém (Lc. 9:31).
5. Então, Pedro, tomando a palavra, disse: Mestre, bom é
estarmos aqui e que façamos três tendas: uma será tua, outra, para
Moisés, e outra, para Elias. — como se os visitantes celestiais
necessitassem refúgios terrestres.
6. Pois não sabia o que dizer, por estarem eles aterrados. Além
disso, estavam, ou ao menos tinham estado, “rendidos pelo sonho” (Lc.
9:32).
7. A seguir, veio uma nuvem que os envolveu — muitas vezes nas
Escrituras a presença de Deus é indicada por meio de uma nuvem
luminosa; veja-se Êx. 16:10; e dela uma voz dizia: Este é o meu Filho
amado; a ele ouvi. Para vozes de alento e aprovação pronunciadas pelo
Pai com relação ao Seu Filho, o Mediador, vejam-se também Mt. 3:17;
Mc. 1:11; Lc. 9:35; Jo. 12:28. Ao chamar o Filho “meu Filho Amado”, e
ao dizer aos três apóstolos que O escutassem e que continuassem a assim
fazer, o Pai estava honrando Seu Escolhido (Lc. 9:35) na presença deles.
8. E, de relance, olhando ao redor, a ninguém mais viram com
eles, senão Jesus.
O deslumbrante resplendor não se prolongou muito, e a seguir se
acharam outra vez a sós com Jesus. Tudo isto foi um ato de bondade
divina para com aqueles três homens.
Veja-se CNT sobre Mateus 17:1–8.
É necessário prestar atenção a alguns pontos de interesse:

versículo 3
Cada um dos três evangelistas relata à sua maneira o efeito da
transfiguração na roupa de Jesus. Segundo Mateus, “suas vestimentas
ficaram brancas como a luz”. Lucas diz que o vestido de Cristo “brilhava
Marcos (William Hendriksen) 438
como um raio”. Marcos usa um termo que não se acha em nenhum outro
lugar do Novo Testamento. 387 Na Septuaginta serve para indicar ao
resplendor das estrelas. Uma boa tradução de Marcos 9:3 é “Seus
vestidos se tornaram de um branco resplandecente”. Além disso, Marcos
é o único evangelista que informa que nenhum “lavandeiro” da terra teria
sido capaz de deixar estas roupas tão brancas. Um lavandeiro é alguém
cujo trabalho consiste em cardar e limpar tecidos de lã. No caso presente,
a ênfase recai na limpeza e o embranquecimento; em consequência, um
“branqueador”. Outra tradução que merece consideração seria, “… tão
brancos como nenhum lavandeiro da terra os pode fazer”.

versículo 4
388
A palavra “apareceram” (isto é, Elias e Moisés) não significa
mera aparência subjetiva ou mental. A referência é à uma manifestação
objetiva. Usa-se com relação à manifestação visível de anjos (Lc. 1:11;
22:43; At. 7:30, 35) e do Cristo ressuscitado (Lc. 24:34; At. 9:17; 1Co.
15:5–8); etc. Pedro e seus companheiros viram estes visitantes do céu
com os olhos físicos. Note-se também que Elias e Moisés “falavam com”
ou “conversavam com Jesus”. 389 Dá a impressão de que para Elias e
Moisés era muito natural conversar com um ser exaltado como Jesus.
Aqueles dois mensageiros do céu mostravam, naturalmente, uma grande
reverência “falando com Jesus” no monte da transfiguração. Mas era
uma reverência que excluía o temor e a confusão terrestre. A descrição
que se faz aqui em Marcos 9:4 e suas passagens paralelas, não arroja
algo de luz sobre o caráter da comunhão celestial?

387
στίλβοντα ptc. pres. nom. pl. neut. de στίλβω, “brilhar, cintilar, resplandecer”.
388
_φθη, aor. ind. pas. 3ª. pes. sing. de _ράω.
389
Note-se o perifrástico _σαν συλλαλο_τες; cf. At. 25:12, onde Festo está conferenciando com seus
conselheiros.
Marcos (William Hendriksen) 439
versículo 5
Este versículo começa literalmente como segue: “E Pedro
respondeu e disse a Jesus” [NKJV]. Entretanto, não se fez nenhuma
pergunta; assim que, como poderia Pedro responder? A solução é que a
palavra usada no original para “respondeu” tem um significado muito
amplo. Aqui — como muitas vezes — significa simplesmente que Pedro
reagiu ou respondeu a uma situação, ou seja, ao que ele imaginou ser a
necessidade de Jesus e dos homens que tinham chegado repentinamente
do céu. Veja-se também CNT sobre Mateus, nota 89.
Segundo Marcos 9:5 [NKJV] Pedro chama Jesus “Rabi”; segundo a
passagem paralela de Mateus (Mt. 17:4): “Senhor”; e segundo Lucas
(Lc. 9:33), “Mestre”. Evidentemente, os três termos destas passagens
devem considerar-se sinônimos: todos querem fazer justiça ao caráter
exaltado do Salvador. Cada evangelista oferece sua própria tradução da
palavra aramaica que Pedro deve ter usado.
Compare-se “façamos” com “farei” de Mateus 17:4. 390 Solução: A
ideia de Pedro era que, sob sua direção, os três discípulos construiriam
estas tendas.

versículo 6
A sugestão de Pedro demonstra sua imprudência: sua atitude era a
de um homem que faz uma observação precipitada. Ele “realmente não
sabia”, na verdade não soube 391 o que dizer. Em tais circunstâncias
geralmente é melhor não dizer nada. Entretanto, isto dificilmente era o
apropriado para o loquaz Simão, sobretudo para um Simão que acaba de
despertar do sono e, bem como Tiago e João, estava cheio de temor. Mas

390
Em Mt. 17:4, é natural que depois de ε_ θέλεις interpretemos ποιήσω futuro indicativo (e não como
aor. subj.); mas Mc. 9:5 (ποιήσωμεν) tem o aor. subjuntivo (exortativo); além disso, o primeiro está na
1ª. pes. singular, conquanto o outro está na 1ª. pes. plural.
391
_δει, pl. pf. 3ª. pes. sing. (com sentido de imperfeito) de ο_δα. Note-se que com τί _ποκριθ_ o
estilo indireto retém o subjuntivo deliberativo da pergunta direta. Aqui, como no v. 5 e com
frequência, o verbo _ποκρίνομαι tem um significado amplo, de modo que τί _ποκριθ_ significa “o que
devia dizer”, ou simplesmente “o que dizer”.
Marcos (William Hendriksen) 440
antes de começar a criticar tão duramente este apóstolo, não seria melhor
considerar seriamente a advertência de Tiago 1:9?392
Mateus relaciona o temor dos três discípulos com a voz que saiu da
nuvem (Mt. 17:6); Lucas (Lc. 9:34) com a experiência de entrar na
nuvem; mas Marcos (Mc. 9:2b–6) com toda a cena. Conclusão: a reação
dos discípulos foi de crescente pavor, que foi crescendo com cada
detalhe. Como já se disse, o verdadeiro ensino da transfiguração foi
gradualmente se esclarecendo, depois de uma reflexão posterior.
Embora em geral o Evangelho de Marcos seja o mais dramático, às
vezes Mateus o supera neste aspecto. Assim ocorre aqui: cf. Marcos e
Lucas “veio uma nuvem”, com Mateus, que diz: “eis aqui — ou: de
repente — uma nuvem luminosa”.

versículo 7
Note-se: “a ele ouvi”, a exortação que aparece nos três. Aqui o Pai
une-se ao Filho — veja-se mais acima sobre Mc. 4:9 — no fato de
sublinhar a importância do escutar com atenção; só que agora se indica
que é especificamente o Filho a quem os homens devem ouvir.
É evidente que a exortação era necessária. Em geral como tinham
recebido as palavras e mensagens de Jesus? Com toda justiça pode dizer-
se que a multidão tinha demonstrado um tremendo interesse (Mc. 3:7–9,
20; 4:1; 6:4; cf. Mt. 7:28, 29). O ensino de Cristo respondia a uma
necessidade. Além disso, era penetrante, refrescante, original, não como
o dos escribas. Mas embora muitos corações tenham mudado e muitas
vidas se transformaram pela graça de Deus, a maioria das vezes a reação
foi de desobediência (Mc. 1:44, 45), de incredulidade (Mc. 6:2–6), e
ainda de zombaria (Mc. 5:39, 40). Jesus achou oposição (Mc. 2:5, 6) e
ódio inflamado (Mc. 3:4–6) da parte de seus mortais inimigos, e
inclusive seus discípulos expressaram às vezes certa incredulidade (Mc.
5:30, 31). Entenderam mal as coisas (Mc. 8:15, 16), e uma vez Pedro

392
Leia o muito interessante livro de L.A. Flynn, Did I Say That? (Nashville, 1959).
Marcos (William Hendriksen) 441
desceu a um nível tão baixo de entendimento que até chegou ao ponto
incrível de contradizê-Lo totalmente (Mc. 8:32b). A parábola do
semeador se repetia constantemente na reação dos indivíduos e das
multidões; muitos ouviam, mas poucos prestavam atenção. Entretanto, a
fé produz-se pelo ouvir, desperta-se pela mensagem (Rm. 10:17); e sem
fé é impossível agradar a Deus e ser salvo. Podemos, então, compreender
o valor que tem esta voz do céu, “A ele ouvi”. E não é verdade que esta
exortação é prova de que Deus o Pai — como também Deus o Filho, e
Deus o Espírito Santo — Se deleita na salvação dos homens? Veja-se Ez.
18:23; 33:11; Jo. 3:16. Os três são Um.
9. Ao descerem do monte, ordenou-lhes Jesus que não
divulgassem as coisas que tinham visto, até o dia em que o Filho do
Homem ressuscitasse dentre os mortos.
Este versículo é literalmente quase igual ao seu paralelo em Mateus
17:9. Entretanto, este último usa o estilo direto para referir-se ao encargo
de Cristo, enquanto que Marcos usa o estilo indireto. Jesus sabia que
ainda não tinha chegado a hora de que Sua glória fosse revelada
publicamente. Essa glória tinha sido prefigurada na transfiguração e
estava prestes a manifestar-se em Sua morte e ressurreição. Quando
fosse necessário fazer o primeiro anúncio claro ao Seu povo,
representado por seus dirigentes, Ele mesmo o faria (Mc. 14:61, 62:
note-se “Filho do homem” nessa passagem como também aqui em Mc.
9:9, 12; e veja-se sobre 2:10). Depois da ressurreição, os discípulos
estariam livres para narrar com todos os detalhes o que tinham visto e
ouvido no monte da transfiguração, e seriam responsáveis por isso. O
próprio fato da morte de Cristo, seguido de Sua ressurreição, iluminaria
o relato situando-o em sua justa perspectiva.
Note-se “o que tinham visto”. É evidente que nem o próprio Jesus,
nem seu biógrafo, João Marcos, consideraram o sucedido no monte
como se fosse uma visão meramente subjetiva, ou pior ainda, como uma
ficção da imaginação. Além disso, os três discípulos também estavam
Marcos (William Hendriksen) 442
plenamente convencidos de ter visto “com nossos próprios olhos sua
majestade” (2Pe. 1:16).
10. Eles guardaram a recomendação, perguntando uns aos
outros 393 que seria o ressuscitar dentre os mortos.
Os apóstolos obedeceram diligentemente o mandato —
literalmente, a palavra — que Jesus lhes tinha dado. Era como se
estivessem atados a esta ordem, aferraram-se a ela. 394 Lucas 9:36
concorda com isto completamente: “Eles calaram-se e, naqueles dias, a
ninguém contaram coisa alguma do que tinham visto”. Jesus havia dito
“até o dia em que o Filho do Homem ressuscitasse dentre os mortos”, e
os discípulos perguntavam-se entre si sobre essa questão. Estavam
totalmente desconcertados. A simples ideia de um Messias atormentado
ou morto já era exasperante, e agora deviam sentir-se oprimidos por este
novo enigma: que o mesmo Messias se levantaria outra vez! É possível
que suas perguntas fossem assim: “Pedro, o que você crê que quis dizer
com isto?”. “João, pensa você que estava falando da ressurreição final?”.
“Tiago, por que deve morrer o Mestre se afinal de contas vai levantar-se
novamente?”. Outra pergunta pôde ter sido, “Estaria Ele Se referindo à
uma ressurreição física realmente?” Mas estas são meras hipóteses.
11, 12a. E interrogaram-no, dizendo: Por que dizem os escribas
395
ser necessário que Elias venha primeiro? Então, ele lhes disse:
Elias, vindo primeiro, restaurará todas as coisas.
Um paralelo quase exato a estas palavras acha-se em Mateus 17:10,
11. Em consequência veja-se CNT sobre essa passagem. Em resumo, o
significado é: Jesus acaba de predizer Sua ressurreição dentre os mortos,
o que implica Sua morte iminente. O que perturba os Seus discípulos é
que essa morte parecesse deixar sem cumprimento as profecias
messiânicas. Não estão os escribas dizendo constantemente que a vinda

393
Para o verbo, veja-se em 8:11, nota 368. Eu combino πρ_ς _αυτούς com συζητο_ντες.
394
Note-se o verbo _κράτησαν, aor. ind. 3ª. pes. pl. de κρατέω, “tomar posse (de algo) e/ou retê-lo”.
395
Depois de “e lhe perguntaram dizendo”, note-se os _τι … _τι. O primeiro _τι deve significar por
que? (veja-se sobre 2:16, nota 75), o segundo, que.
Marcos (William Hendriksen) 443
do Messias seria precedida pela de Elias? (veja-se Ml. 4:5, 6). Por um
lado, era evidente que o tisbita ainda não tinha reaparecido no cenário
histórico para restaurar todas as coisas; e por outro lado Jesus, o Messias,
não só já tinha aparecido, mas também além disso afirmava que estava
prestes a morrer. Como é possível isto? Em primeiro lugar, em sua
resposta Jesus diz que os escribas estavam certo ao sustentar que a vinda
de Elias precederia à do Messias. No versículo 13, Jesus acrescenta que
Elias realmente já tinha vindo (veja-se mais adiante no v. 13).
Entretanto, isto cria outro problema na mente dos discípulos,
conforme indica Marcos. Supondo que os escribas estão certos e que a
vinda do Messias seria precedida pela de Elias quem restaurará todas as
coisas, onde encaixa a ideia de um Cristo que sofre e morre? Jesus
assinala aqui que também isto estava profetizado. Portanto continua:
12b. como, pois, está escrito sobre o Filho do Homem que
sofrerá muito e será aviltado?
É como se Jesus dissesse: esta é uma profecia de importância tal,
que não se pode deixar de lado. Não cita nenhuma profecia em
particular; mas acaso não poderíamos deduzir com justiça que pôde ter
estado pensando em passagens tais como Salmo 22:1–18; 69:8, 9, 11, 20,
21; 118:22a; e especialmente Is. 53:3? As predições tinham sido bastante
claras, mas eles as tinham passado por alto!
Jesus conclui sua resposta:
13. Eu, porém, vos digo que Elias já veio, e fizeram com ele tudo
o que quiseram, como a seu respeito está escrito.
O Evangelho de Mateus comenta: “Eu, porém, vos declaro que
Elias já veio, e não o reconheceram; antes, fizeram com ele tudo quanto
quiseram. Assim também o Filho do Homem há de padecer nas mãos
deles. Então, os discípulos entenderam que lhes falara a respeito de João
Batista”. Veja-se CNT sobre Mt. 17:12, 13. A maioria do povo não tinha
tomado a sério a pregação de João Batista. Não se deram conta de que
sua vinda era o cumprimento da profecia (Mt. 11:16–18). Os líderes
religiosos dos judeus se voltaram contra ele (Mt. 21:25). Por instigação
Marcos (William Hendriksen) 444
da perversa Herodias, Herodes Antipas tinha dado morte a João (Mt.
14:3, 10). Em vez de perguntar, “Como quer Deus que tratemos a João
Batista?”, fizeram o que quiseram com ele. E esta mesma combinação
estava prestes a matar a Jesus. O tisbita … João Batista … Jesus …, em
geral nenhum deles foi aceito; todos foram tratados com desprezo. Note-
se “como está escrito a respeito dele”. Esse escrito começa já em 1 Reis
19:2, 10b. Os três podiam dizer, “Buscam-me para tirar-me a vida”.
Enche-nos de consolo que estava escrito e, portanto, planejado
divinamente. Embora a responsabilidade e a culpa humana não se
suprimem de modo algum, aquelas intenções e atos homicidas (nos casos
de João Batista e de Jesus) cumpriram-se conforme o decreto divino. Em
consequência, no fim Deus sempre triunfa. Sua verdade sai vitoriosa. Cf.
Lc. 22:22; At. 2:23, 24. Veja-se também Is. 53:4–6.

Mc. 9:14–29 - Cura de um rapaz epilético


Cf. Mt. 17:14–20; Lc. 9:37–43a

Quando se compara o relato de Marcos sobre este milagre com o


relato de Mateus, o que sobressaem são as diferenças mais que as
semelhanças. Dos 16 versículos de Marcos dedicados a este
acontecimento, só o 18b, 19 e 28 — mais uns indícios aqui e ali na parte
restante — insinuam claramente uma relação literária. Se for colocado o
relato de Marcos junto ao de Lucas, o resultado é quase o mesmo. Com
uma só exceção (Mc. 9:29; cf. Mt. 17:20), o relato de Marcos é o mais
detalhado dos três. Contrastem-se os dezesseis versículos de Marcos com
os sete de Mateus e os seis e meio versículos de Lucas. Não se pode
negar que os relatos mais curtos contêm pontos importantes que não se
acham em Marcos. Assim, Mateus nos diz que o pai da criança doente
“aproximou-se a Jesus e ajoelhando-se diante dele disse …”; e que o
Mestre disse que a causa da incapacidade dos discípulos para curar o
menino foi a falta de fé (Mt. 17:14, 20). Por sua vez, Lucas: a. indica o
tempo em que ocorreu o milagre — “no dia seguinte”, quer dizer, o dia
Marcos (William Hendriksen) 445
depois da transfiguração — b. menciona um ponto importante relativo à
comovedora petição do pai — “meu filho, pois é o único que tenho”—; e
c. fecha seu relato declarando, “E todos se admiravam da grandeza de
Deus” (9:37, 38, 43). Quanto ao resto, é em Marcos onde achamos o
relato mais detalhado e vivaz.
14. Quando eles se aproximaram dos discípulos, viram
numerosa multidão ao redor e que os escribas discutiam com eles.
No dia seguinte da transfiguração do Mestre, depois de descer do
monte, Jesus e os três discípulos se dirigiram ao lugar onde tinham
deixado os nove discípulos. Então viram uma grande multidão que
rodeava os nove, e logo estiveram perto o bastante para observar a
alguns escribas que disputavam 396 com eles.
O monte da transfiguração pôde ter sido o Jebel Jermaque, que está
na parte superior da Galileia perto de Cafarnaum, onde chegaram pouco
depois (Mc. 9:33; cf. Mt. 17:24). Isto explica a presença da multidão e
dos escribas. Não estranharia que estes escribas estivessem rindo com
amostras de zombaria e maligno deleite 397 ao ver a incapacidade dos
nove discípulos para curar o menino dominada pela epilepsia. Estariam
ridicularizando-os. Os nove viam-se em graves apuros para tentar
defender-se diante de toda aquela multidão.
15. E logo toda a multidão, ao ver Jesus, tomada de surpresa, 398
correu para ele e o saudava.
No que diz respeito à multidão e aos discípulos, a repentina
aparição de Jesus foi muito bem recebida. Não O esperavam ainda; de
modo que ficaram muito surpreendidos e correram para recebê-Lo. Os
escribas, não podiam nem queriam passar desapercebidos.

396
συζητο_ντας como no v. 10, mas agora acusativo. Além disso, o significado é ligeiramente
distinto.
397
Em português diríamos alegrar do mal alheio. Os alemães diriam Schadenfreude; os holandeses,
leedvermaak.
398
_ξεθαμβήθησαν, aor. ind. pas. 3ª. pes. pl. de _κθαμβέω; com _κ, provavelmente intensivo.
Marcos (William Hendriksen) 446
Alguns creem que o resplendor da transfiguração era ainda visível
no rosto de Jesus, e que foi isto o que produziu a surpresa da multidão.
Mas não há prova alguma disso. Moisés e Jesus, o monte Sinai e o monte
da transfiguração, quão distintos eram neste sentido! Veja-se Êx.
34:29ss.; 2Co. 3:7
Jesus Se apressa a defender os discípulos. Ele o faz voltando sua
atenção para os escribas:
16. Então, ele interpelou os escribas: Que é que discutíeis com
eles?
Conhecia perfeitamente a fraqueza dos Seus discípulos (vejam-se
vv. 28, 29; também CNT sobre Mt. 4:18–20; 10:2–4). Apesar de tudo,
amava-os e veio para socorrê-los!
A “diversão” que os escribas desfrutavam acabou repentinamente.
Sentiam tanta vergonha que não sabiam o que dizer. De modo que a
disputa e a zombaria terminou de repente. Nem sequer um dos doutores
na lei teve ânimo para responder a pergunta de Cristo. Entretanto, o
silêncio não durou por muito tempo, pois dentre a multidão adiantou-se
um homem, como se vê claro pelos versículos
17, 18. E um, dentre a multidão, respondeu: Mestre, trouxe-te o meu
filho, possesso de um espírito mudo;399 e este, onde quer que o apanha,
lança-o por terra, e ele espuma, rilha os dentes e vai definhando.
Assim falou o pai daquele menino gravemente aflito, seu único
filho (Lc. 9:38). Compare-se isto com o “filho único” da viúva de Naim
(Lc. 7:12), e com a “filha única” de Jairo (Lc. 8:42). O coração do Filho
único de Deus Se compadecia destes filhos únicos, de seus pais e de
muitos, muitos mais!
Respeitosamente, o pai dirige-se a Jesus chamando-O “Mestre”
(assim também em Lucas), e O chamando “Senhor” (segundo Mateus).
Ao longo de seu discurso bem pôde o homem ter usado ambos os títulos,

399
Literalmente: “que tem um espírito mudo”. Cf. v. 25.
Marcos (William Hendriksen) 447
ou talvez, cada evangelista esteja dando sua própria tradução da palavra
aramaica usada naquela ocasião.
“Trouxe-te o meu filho” (v. 17) deve comparar-se com “Roguei a
teus discípulos” (v. 18). Evidentemente, a intenção original do homem
foi levar o seu filho doente a Jesus para que o curasse. Mas quando
observou que Jesus não estava com Seus discípulos, pediu-lhes que
curassem o desgraçada menino. E por que não? Acaso expulsar
demônios e curar doentes não era parte da tarefa que lhes tinha sido
atribuído? (veja-se Mc. 6:7; cf. Mt. 10:1). E não é verdade que até certo
ponto estes homens tinham tido êxito no cumprimento deste mandato?
(vejam-se Mc. 6:13, 30; Lc. 9:6–10). Porém no caso presente — por uma
razão que se mencionará mais adiante (v. 29) — os discípulos tinham
fracassado: Roguei a teus discípulos que o expelissem, e eles não
puderam.
Ao examinar atentamente os diversos sintomas do mal que aquele
menino sofria, é preciso concluir que nos achamos diante de um caso de
epilepsia. Os versículos 18, 20, 26 fazem menção das mesmas
características que se acham associadas a esta enfermidade: ataque,
convulsões, desvanecimentos, babas da boca, chiar de dentes, rigidez.
Entretanto, apressamo-nos a acrescentar que não se tratava de um caso
comum de epilepsia. Era muitíssimo pior. Aquele menino, além de ser
afligido por esta desordem convulsiva chamada o grande mal, era
também surdo-mudo. Literalmente o pai diz: “Tem um espírito mudo”, o
que é uma forma abreviada de falar que quer dizer: “Está possuído por
um espírito que lhe tirou a faculdade de falar” (e de ouvir, conforme
acrescenta Jesus no v. 25). O menino era, portanto, epilético, surdo-
mudo, e ainda pior, endemoninhado; sua penosa condição física fora
produzida por um espírito imundo. Em consequência, não era um caso de
simples epilepsia; antes, era uma enfermidade muito complexa. Não é
que o menino caísse ao solo, o que ocorria é que um espírito maligno vez
Marcos (William Hendriksen) 448
400
após vez o derrubava. Para maior informação a respeito da possessão
demoníaca veja-se mais acima em Mc. 1:23.
Profundamente comovido — observe-se o “Ó”—
19. Então, Jesus lhes disse: Ó geração incrédula, até quando estarei
convosco? Até quando vos sofrerei?
Jesus expressou Sua dor e indignação com esta exclamação. O fato
de que dirigisse Sua queixa contra esta “geração” mostra que não estava
pensando só nos nove discípulos que tinham fracassado naquela
emergência. Evidentemente estava muito descontente com os Seus
contemporâneos: com o pai que carecia de fé suficiente no poder
curativo de Cristo (Mc. 9:22–24); com os escribas que em vez de mostrar
algo de piedade, com toda probabilidade se deleitavam com a impotência
dos discípulos (Mc. 9:14); com a multidão em geral, que nos Evangelhos
é descrita como muito mais preocupada por si mesma que pelos demais
(Jo. 6:26); e por último, porém não menos importante, com os nove
discípulos, por negligenciar o exercício de sua fé, e não pôr todo seu
coração na oração perseverante (Mc. 9:29).
Em maior ou menor grau todos tinham pequena fé, e lhes faltava o
exercício daquela fé verdadeira, ardente e constante que opera
efetivamente. Por contraste, Jesus tinha plena confiança em Seu Pai
400
Notem-se as seguintes palavras do v. 18:
_που _άν significar quando quer que ou onde quer que.
καταλάβ_ (cf. catalepsia) aor. subj. at. 3ª. pes. sing. de καταλαμβάνω, pegar, agarrar, tomar poss de
daí; aqui, convulsiona.
_ήσσει (cf. quebra, ruptura, fratura), pres. ind. at. 3ª. pes. sing. de _ήσσω, forma alterativa de _ήγνυμι.
Aqui: lançar por terra.
Os seguintes verbos também são pres. ind. at. 3ª. pes. singular:
_φρίζει (cf. espuma), “lança babas”.
τρίζει (cf. estridente), “chia”, onomatopéia que aparece só aqui no Novo Testamento. Entretanto, veja-
se βρύχω (At. 7:54) e o substantivo βρυγμός (Mt. 8:12; 13:42, etc.).
ξηραίνεται “fica rígido” (cf. xerodermia, secura anormal). O verbo é um indicativo passivo e se usa
também com relação a uma mão seca (Mc. 3:1), uma planta (4:6) e figueira seca (11:20, 21); e com
uma fonte seca (de sangue, Mc. 5:29). Vejam-se também Jo. 15:6; Tg. 1:11; 1Rs 1:24; Ap. 14:15;
16:2.
_κβάλωσι subj. at. 3ª. pes. pl. de _κβάλλω; aqui: “para que possam lançá-lo fora — ou: expulsá-lo”.
(ούκ) _σχυσαν ind. 3ª. pes. pl. de _σχύω; (não) puderam; (não) tiveram forças (cf. _σχύς).
Marcos (William Hendriksen) 449
celestial, uma confiança irrepreensível, e também estava cheio de amor
infinito e tenro. Por isso, quando Jesus acrescenta: “Até quando estarei
convosco? Até quando vos sofrerei?” deixa ver que Lhe era doloroso
“suportar” (significado exato do original) os que careciam destas
qualidades ou que não exerciam estas virtudes em grau suficiente. Seu
ministério tinha durado até este momento quase três anos. Estava
desejando o fim.
Com a alentadora ordem, Trazei-mo, Jesus deu um exemplo
perfeito da conduta adequada em circunstâncias importunas e penosas.
No que estava prestes a fazer, revelava não só o Seu poder mas também
o Seu amor.
A história continua como segue:
20. E trouxeram-lho; quando ele viu a Jesus, o espírito
imediatamente o agitou com violência, e, caindo ele por terra,
revolvia-se espumando.
O rapaz caiu ao solo e se agitava lançando babas. A observação que
fizemos anteriormente, no sentido de que este não era um caso comum
de epilepsia, mas um caso produzido e agravado por um demônio,
confirma-se agora à vista dos seguintes atos: a. a convulsão ocorre no
preciso instante em que o demônio vê a Jesus; e b. o que produzia os
espasmos musculares, etc. não era uma desordem cerebral que operava
por si só, mas era o demônio quem convulsionava 401 o rapaz, de tal
forma que logo o fazia cair 402 ao solo, lançando babas.
21, 22. Perguntou Jesus ao pai do menino: Há quanto tempo isto lhe
sucede? Desde a infância, respondeu; e muitas vezes o tem lançado no
fogo e na água, para o matar; mas, se tu podes alguma coisa, tem
compaixão de nós e ajuda-nos.

401
συνεσπάραξεν, aor. ind. 3ª. pes. sing. de συσπαράσσω; cf. (lançou-o em) paroxismos (ataque). A.
T. Robertson (Word Pictures, Vol. I, p. 341) afirma que o prefixo ainda retém sua força perfectiva;
daí, lastimosamente. Isto bem pode ser correto (veja-se o v. 26), mas não pode ser provado.
402
_κυλίετο imp. ind. médio, 3ª. pes. sing. de κυλίω; cf. cilindro (basicamente pau de macarrão).
Marcos (William Hendriksen) 450
Como médico compreensivo, Jesus pergunta ao pai desde quando o
rapaz se achava naquela situação. Não é que Jesus necessitasse desta
informação para poder realizar a cura, mas era o pai quem precisava
refletir a respeito do longo período de tempo que o rapaz tinha estado
nesta condição, com o fim de que pudesse abundar em gratidão pelo
milagre que estava prestes a realizar-se. Tal reflexão teria também um
efeito edificante nos que estavam ao redor olhando.
O estado da mente e do coração do pai se deixa ver porque não só
responde a pergunta de Cristo, mas também acrescenta outros detalhes
(além dos já indicados nos vv. 17, 18). Evidentemente a alma do pai
estava ligada à do filho: seu amor por este filho era tenro e intenso. E
note-se aqui outra vez — veja-se também o v. 20 — que o que se ressalta
não são algumas quedas no fogo ou na água, mas sim o espírito maligno
jogasse no rapaz nestes elementos potencialmente mortais, com o
propósito sinistro de destruí-lo.
Mas embora a situação fosse muito grave, não era totalmente
desesperada, nem mesmo na mente do pai. Restava um indício — talvez
não mais que isso — de esperança. Estava convencido de que Jesus
queria ajudá-lo. A pergunta era, “Poderia fazê-lo?”. Observe-se o
contraste entre o implícito “se tu podes, 403 alguma coisa” da petição do
pai, com o “Se quiseres, podes purificar-me” do leproso (Mc. 1:40). O
pai do endemoninhado admite a possibilidade de que Jesus poderia
ajudá-lo, porém não está muito seguro: carece de fé suficiente para
aferrar-se ao poder do Salvador.
Note-se “tem compaixão 404 de nós”. O que se destaca nos
Evangelhos é a compaixão ativa de Jesus (veja-se mais acima em Mc.
1:41, incluindo a nota 57). O pai roga: “ajuda-nos”. A palavra “ajudar” é
403
Trata-se de uma oração condicional do primeiro tipo, na qual _ί τι δύν_ (forma contraída de
δύνασαι) é pres. ind. 2ª. pes. sing. de δύναμαι. A palavra δύναμαι. pode significar tanto ser capaz de
fazer como simplesmente ser capaz. Portanto, a tradução habitual, “Se podes fazê-lo” é correta. Em
outras palavras, ποιε_ν não tem por que expressar-se; pode subentender-se. Veja-se BAGD, p. 206, no
ponto 3. O contrário em Lenski, op. cit., p. 240.
404
σπλαγχνισθείς, part. aor. de σπλαγχνίζομαι.
Marcos (William Hendriksen) 451
muito significativa e comovedora. No original está formada por duas
breves palavras: um grito, e correr. 405 Em todos os contextos onde
aparece esta palavra, denota um intenso e comovedor rogo para que o
Senhor — ou a quem quer que seja o ajudador potencial — acuda
rapidamente a socorrer a pessoa que está numa situação precária. Vale a
pena fazer um estudo detalhado dos vários contextos específicos em que
este verbo é usado. Além de Marcos 9:22, 24, vejam-se também Mt.
15:25; At. 16:9, 21:28; 2Co. 6:2; At. 2:18; Ap. 12:16.
Quão profunda é a identificação que este amante pai faz de si
mesmo com seu único filho! Diz “tem compaixão de nós e ajuda-nos”.
Tem com seu filho a mesma íntima relação de alma e mente que a que
tinha a mulher siro-fenícia com sua filha (veja-se Mt. 15:22, 25). Se a
esposa deste solicitante ainda vivia, este “nós” estaria incluindo também
ela. Significaria então, “compadece-te e ajuda a nossa pequena e
angustiada família”.
23. Ao que lhe respondeu Jesus: Se podes! Tudo é possível ao
que crê.
É interessante observar quão rápida e dramaticamente Jesus inverte
a situação e a pergunta. “A questão não é se eu posso, mas se você crê”,
pareceria dizer o Senhor. Embora não seja verdade que Jesus nunca
curasse a ninguém a menos que manifestasse uma fé autêntica, é bem
verdade que sempre fez uma grande ênfase na fé (veja-se 1:15; 5:36; 6:5,
6; 11:23; cf. Mt. 17:20).
24. Imediatamente o pai do menino exclamou: Creio! ajuda a
minha incredulidade [TB]. 406
O atormentado pai abre de par em par seu coração com uma
resposta realmente impressionante. Estava convencido de duas coisas: a.
que indubitavelmente possuía a classe de fé que Jesus demandava; e b.
que esta fé era imperfeita, assediada por temores e dúvidas. Bem como

405
βοή y θέω. A forma βοήθησον é o aor. (ingressivo) imper. at. 2ª. pes. sing. de βοηθέω.
406
Ou: me ajude em minha incredulidade.
Marcos (William Hendriksen) 452
no original, nossa tradução só tem cinco palavras, mas bastam para
incluir: a. uma sincera profissão de fé: “sim, creio”, e b. uma intensa e
comovedora petição, “Ajuda minha incredulidade”, o que significava
“Continue me ajudando 407 a cada instante e dia a dia, de modo que possa
vencer minha incredulidade”.
25. Vendo Jesus que a multidão concorria, repreendeu o espírito
imundo, dizendo-lhe: Espírito mudo e surdo, eu te ordeno: Sai deste
jovem e nunca mais tornes a ele.
Novamente se estava reunindo uma multidão que corria para o
lugar. 408 Já havia uma multidão bastante grande, um de espectadores que
observavam curiosamente a disputa entre os escribas e os nove
discípulos de Jesus (v. 14). Ao ver Jesus aproximar-Se, esta mesma
gente se apressou a recebê-Lo (v. 15). Não é razoável supor que por
respeito — e no caso de alguns inclusive reverência — a Jesus e
consideração para com o angustiado pai e à situação patética de seu
filho, a multidão a princípio permanecesse a certa distância (veja-se
sobre Mc. 7:14), mas agora que havia um milagre em perspectiva todos
se aproximaram para não perder nada do que ia suceder? Por outro lado,
Jesus nunca estimulou aquela vã curiosidade, nem queria que O
considerassem primeira e principalmente um criador de milagres; de
modo que de forma muito rápida pôs termo ao incidente. Assim que
repreendeu 409 o espírito imundo. Marcos usa esta designação com mais
frequência que Mateus ou Lucas. Veja-se a explicação no comentário de
Mc. 3:11; e para mais detalhes a respeito da possessão demoníaca, veja-
se em Mc. 1:23. Ao expulsar o demônio, Jesus o chama: “Espírito mudo
e surdo”. Isto significava que o demônio era o causador de que o
possuído estivesse naquela condição.

407
Note-se aqui o presente (continuativo ou durativo) imperativo, βοήθει, em contraste com o aor.
Imperativo do v. 22.
408
Note-se outro hapax legomenon: _πισυντρέχει. Cf. com προστρέχοντες no v. 15.
409
_πετίμησε aor. ind. 3ª. pes. sing. de _πιτιμάω. Veja-se mais acima, sobre 3:12, incluindo nota 111.
Marcos (William Hendriksen) 453
A forma peremptória da ordem de expulsão (“Sai deste jovem e
nunca mais tornes a ele”) demonstra, bem como outras vezes, a profunda
e tenra compaixão de Cristo pelo rapaz e por seu pai. 410
26. E ele, clamando e agitando-o muito, saiu, deixando-o como
se estivesse morto, a ponto de muitos dizerem: Morreu.
Aqui quase se repete a mesma cena de Mc. 1:26, com a exceção de
que em Mc. 1:26 se sublinha o chiado (“um forte chiado”), aqui em Mc.
9:26 as convulsões: ao sair, o espírito imundo produziu no rapaz
“terríveis convulsões.” 411
Que viva descrição da forma em que o menino foi curado! Só
Marcos dá todos os detalhes. Certamente escutou com muita atenção
quando Pedro (e/ou a outros) contou a história. Fazendo uso dos órgãos
vocais do rapaz, o demônio lançou um chiado. Ao mesmo tempo se
apresentaram os espantosos e horríveis espasmos musculares. Logo veio
a rigidez.
O rapaz achava-se como morto, rígido e imóvel. Inclusive a
respiração parecia haver parado. Tudo isto, junto com uma palidez
cinzenta, convenceu a maioria — literalmente “os muitos” — das
pessoas de que sem dúvida estava morto. “Morreu”, diziam.

410
Note-se o aor. 2ª. pes. sing. imperativo para a ordem positiva; daí, _ξελθε, mas o aor. 2ª. pes. sing.
subjuntivo para a ordem negativa (ou proibição); de μηκέτι ε_σέλθ_ς. Véase Robertson, p. 925.
411
Este é outro exemplo do uso frequente que Marcos faz de πολλά com sentido adverbial. Nem
sempre o usa neste sentido. Por exemplo, em 6:34 a palavra provavelmente significa “muitas coisas”.
Muitos tradutores e intérpretes lhe atribuem este significado em 15:3, o que resulta em “… lhe
acusavam de muitas coisas”. Isto provavelmente é correto, embora outros preferem a tradução
“asperamente” (veja-se sobre 15:3). É claro que em cada caso a conotação do πολλά adverbial
depende do verbo ao que modifica e do contexto geral. Os seguintes significados merecem
consideração:
1:45 “extensamente” 5:38 “fortemente”
3:12 e 5:43 “estritamente” 6:20 “grandemente”
vez após vez”, ou
“fervorosamente” 10:48 πολλ_ μ_λλον “tanto mais”
9:23 “intensamente” 12:27 “muito”
15:3 “asperamente” (?)
Marcos (William Hendriksen) 454
27. Mas Jesus, tomando-o pela mão, o ergueu, e ele se levantou.
O Mestre estava continuamente realizando atos desta classe, sem
importar se o necessitado era Pedro (Mt. 14:31), a sogra de Pedro (Mc.
1:31), a filha de Jairo (5:41), ou quem quer que fosse. Não está fazendo o
mesmo hoje num sentido muito glorioso? Veja-se o inspirado hino de V.
Mendoza, Do santo amor de Cristo. Jesus não levantava um corpo sem
vida. Ao contrário, o menino agora se achava transbordante de vida e
energia: pôs-se em pé. 412 Com a força que Jesus lhe comunicou ao
levantá-lo, o rapaz já podia “pôr-se de pé” por si mesmo, pois desde o
preciso instante em que o demônio o deixou, ficou completamente são
(Mt. 17:18).
28, 29. Quando entrou em casa, os seus discípulos lhe perguntaram
em particular: Por que não pudemos nós expulsá-lo? Respondeu-lhes:
Esta casta não pode sair senão por meio de oração.
Depois de realizar o grande milagre de resgatar este endemoninhado
das garras de um espírito imundo e de restabelecer-lhe as faculdades de
ouvir e falar, Jesus entrou “numa casa”. 413 Esta tradução é
provavelmente a melhor no caso presente, sobretudo se o Senhor ainda
não tinha chegado a Cafarnaum (veja-se v. 33). Recebeu hospedagem,
como presumivelmente fez com frequência, em casa de algum de seus
seguidores? Seja como for, é então quando Seus discípulos — pensemos
nos nove — foram a Ele com a pergunta, “Por que 414 não pudemos nós
expulsá-lo?”. Era uma pergunta razoável, porque embora estes homens

412
_νέστη, aor. ind. 3ª. pes. sing. de _νίστημι. Embora seja verdade que aquele rapaz não tinha estado
morto, as aparências tinham enganado a multidão. Não obstante, este mesmo verbo usa-se com
aqueles que ressuscitam: a filha de Jairo (Mc. 5:42; Lc. 8:55); os mortos em Cristo (1Ts. 4:16); Jesus
(Mt. 17:9; 20:19; Mc. 8:31; 9:9, 10, 31; 10:34; 16:9). Tem também usos mais gerais; p. ex., revoltar-
se, pelejar e rebelar-se (Mc. 3:26); pôr-se de pé (p. ex., para ler, Lc. 4:16), etc.
413
Veja-se também sobre Mc. 2:1; 3:20; 7:17.
414
Não há razão alguma para interpretar este _τι em outro sentido que não seja “por que?” Veja-se
sobre Mc. 2:16, nota 75; cf. 9:11. O verbo _δυνήθημεν é um aor. ind. 1ª. pes. pl. de δύναμαι.
Marcos (William Hendriksen) 455
enfrentaram com êxito a muitos casos de possessão demoníaca, nesta
ocasião tinham fracassado. 415
Segundo Mateus, Jesus respondeu àquela pergunta dizendo: “Por
causa da pequenez da vossa fé”. Essencialmente, o que Marcos nos diz
sobre a resposta de Cristo é o mesmo que: “Por causa de vossa pouca
(negligente e apressada) oração”. Naturalmente, estas duas coisas vão
juntas.
Quando há pequena fé, há pouca oração. Ao inverso, quando existe
abundância de fé autêntica e perseverante, também há oração fervente e
tenaz:
“Minha fé espera em Ti,
Cordeiro, quem por mim,
Foi à cruz;
Escuta minha oração …”
Lowell Mason
“Esta casta”, diz Jesus, “não pode sair senão por meio de oração”.
Com isto está afirmando que no mundo dos demônios há diferenças:
alguns são mais poderosos e mais malignos que outros. Portanto, os
discípulos não deveriam ter deixado que sua fé fraquejasse, nem dar um
descanso à sua fé. Jesus não só insiste com seus seguidores a orar;
também os anima a perseverar na oração (Mt. 7:7; Lc. 18:1–18;
21:36). 416 O mesmo faz Paulo (Cl. 1:9; 1Ts. 5:17; 2Ts. 1:11).
De uma maneira bela, Lucas acrescenta, “E (Jesus) o devolveu ao
seu pai”. Nas obras de misericórdia e amor do Salvador nada falta. Ele
não só ama, ama ao máximo (Jo. 13:11).

415
Como em seu relato, Lucas omite esta pergunta dos discípulos, também omite a resposta de Cristo.
Mas cf. Mt. 17:20 com Lc. 7:6.
416
Alguns manuscritos acrescentam: e jejuando.
Marcos (William Hendriksen) 456
Mc. 9:30–32 - Segunda predição da paixão e a ressurreição
Cf. Mt. 17:22, 23; Lc. 9:43b–45

30a. E, tendo partido dali, passavam pela Galiléia.


Veja-se o mapa referente à possível rota que Jesus e os Doze
puderam ter seguido da montanha (Mc. 9:2) a Cafarnaum (Mc. 9:33). A
rota, segundo se indica ali, tem a seu favor que apresenta o pequeno
grupo como “viajando pela Galileia” realmente, mas não por sua vez
mais densamente povoada. Isto também concorda com o que segue, ou
seja,
30b, 31. e não queria que ninguém o soubesse; porque ensinava
os seus discípulos e lhes dizia: O Filho do Homem será entregue 417
nas mãos dos homens, e o matarão.
Vê-se claramente que o Ministério do Retiro ainda continua,
embora se apressa ao seu final. Ao introduzir o capítulo 7, dissemos que
este foi o período durante o qual Jesus, de maneira muito especial, Se
dedicava à tarefa de preparar os Doze. É por isso que não queria que o
público em geral conhecesse todas as Suas saídas e entradas. Precisava
estar a sós com os Seus discípulos, a fim de ter o tempo e a oportunidade
para lhes ensinar, para que eles, por sua vez, sobretudo depois da
ressurreição, estivessem em condição de levar a outros as verdades
relacionadas com Jesus e Seu reino. Especificamente, comunicava-lhes
os ensinos da cruz.
No essencial, estes ensinos foram ministrados em três ocasiões
distintas. Naturalmente, é possível que aquela instrução fosse dada de
uma só vez, pois de modo algum foi-nos relatado tudo o que sucedeu (cf.
Jo. 20:30; 21:25). Mas o que ficou escrito, segundo se encontra nos três
Sinóticos, aponta a três oportunidades consecutivas de ensino. Estes se
acham em Mc. 8:31; 9:31; 10:33, 34; e seus paralelos em Mateus e em
Lucas.

417
Ou: está sendo traído (ou: entregue).
Marcos (William Hendriksen) 457
Dos três, o ensino de que estamos tratando é o segundo. Tem uma
estreita semelhança com o primeiro. Em ambas, Jesus Se chama a Si
mesmo o Filho do homem (veja-se sobre Mc. 2:10; também CNT sobre
Mt. 8:20), anuncia que vão matá-Lo e que ressuscitará depois de três
dias. Não obstante, existe uma diferença. Nesta segunda predição o que
se sublinha não é tanto a necessidade, e sim a certeza dessa morte
iminente. Além disso, nesta ocasião Jesus anuncia que seria traído e
entregue nas mãos dos homens. Embora não seja mencionado o nome de
Judas o traidor, à luz de 14:18, 20, 21 o dedo acusador começa a dirigir-
se contra Ele. O glorioso Filho do homem está para ser entregue, ou
“está prestes a ser entregue” (Mt. 17:22; Lc. 9:44) nas mãos dos homens,
homens perversos descritos na primeira lição: os anciãos e os principais
sacerdotes e os escribas e o Sinédrio. Os mesmos homens que deviam ter
estado à cabeça para honrar o tão esperado Messias, estavam prestes a
matá-Lo.
Mas, três dias depois da sua morte, ressuscitará. A forma em que
esses três dias devem ser contados já se analisou no CNT sobre Mateus
12:39, 40. Em cumprimento desta profecia, o corpo de Jesus repousou
realmente na tumba durante parte de três dias consecutivos: parte da
sexta-feira, todo o sábado, e parte do domingo.
Marcos apresenta a Jesus predizendo que “ressuscitará”, Mateus
que “ressuscitará”. 418 Não há contradição. Ambas as coisas são certas. O
que Marcos relata sobre o que Jesus diz, é que ressuscitará no terceiro
dia por seu próprio poder. Isto concorda não só com o próprio ensino de
Cristo, segundo se acha em outros lugares, mas também com outras
passagens da Escritura. João 10:17, 18 é muito claro com relação a este
ponto: “E ponho minha vida para a reassumir” (cf. Jo. 10:11, 14. Assim
também Jo. 2:19, “em três dias o levantarei”.). Não é Ele mesmo “a

418
O _ναστήσεται de Marcos é o part. ind. 3ª. pes. sing. voz média de _ίστημι, conquanto o
_γερθήσεται que usa Mateus é o part. ind. voz passiva 3ª. pes. sing. de _γείρω.
Marcos (William Hendriksen) 458
ressurreição e a vida” (Jo. 11:25)? e não tem Ele “as chaves da morte e
do Hades” (Ap. 1:18)?
Por outro lado, o que Mateus escreve sobre o que disse Jesus, é tão
verdadeiro como o anterior. O Pai indubitavelmente ia ressuscitar o Filho
do homem dentre os mortos (At. 2:32; 3:26; 10:40; 13:34; 17:31; Rm.
4:24, 25; 6:4; etc.).
E o Espírito Santo também tinha parte neste grande acontecimento.
Não foi especialmente mediante a ressurreição de Cristo que o Espírito
reivindicou a Cristo como o Filho de Deus (1Tm. 3:16)? Além disso, o
Espírito comunica vida (veja-se Gn. 1:2; Sl 104:30; Rm. 8:11). As obras
que procedem de Deus devem ser atribuídas aos Três: Pai, Filho, e
Espírito Santo. Estes Três são Um.
A reação dos discípulos diante desta predição é dada no versículo
32. Eles, contudo, não compreendiam isto e temiam interrogá-
lo.
Quando os discípulos ouviram Jesus falar novamente a respeito do
rechaço que se aproximava, seu estado mental refletiu tristeza,
perplexidade e medo. Mateus relata essa tristeza: “Então, os discípulos
se entristeceram grandemente” (Mt. 17:23). 419 Lucas menciona a
perplexidade e o temor, e o faz de maneira muito impressionante: “Eles,
porém, não entendiam isto, e foi-lhes encoberto para que o não
compreendessem; e temiam interrogá-lo a este respeito” (Lc. 9:45). Ao
Lucas assim expressar-se, bem pôde ter tido um exemplar do Evangelho
de Marcos diante dele. Pelo menos é claro que Marcos também descreve
a ofuscação e medo dos discípulos. 420
O medo dos discípulos chegava até o ponto de que não queriam
fazer perguntas a Jesus sobre Sua predição sobre Seus sofrimentos e
morte iminentes. Robertson (Word Pictures I, p. 344) sugere que o medo

419
O aor. ind. passivo serve para informar um fato.
420
Os dois imperfeitos de Lucas estão emparelhados por um perfeito passivo. Marcos usa dois
imperfeitos: “não sabiam o que pensar sobre …” (ou: “não entendiam”) e “tinham temor de lhe
perguntar”. Estes imperfeitos apresentam um quadro vivaz de uma situação contínua.
Marcos (William Hendriksen) 459
dos discípulos vinha com “a amarga lembrança do epíteto ‘Satanás’ que
Pedro recebeu quando na vez anterior reclamou a Jesus por falar de Sua
morte (Mc. 8:33 = Mt. 16:23)”. Isto pode ser certo.

Mc. 9:33–37 - Quem é o maior?


Cf. Mt. 18:1–5; Lc. 9:46–48

33, 34. Tendo eles partido para Cafarnaum, estando ele em casa,421
interrogou os discípulos: De que é que discorríeis pelo caminho? Mas eles
guardaram silêncio; porque, pelo caminho, haviam discutido entre si
sobre quem era o maior.
Com relação a este fato, os relatos dos três Evangelhos são muito
parecidos, tanto em fraseologia como na forma em que se sucedem os
diversos detalhes. Os três relatos falam da discussão que surgiu entre os
discípulos com relação à pergunta: “Quem é o maior?”. Para pôr as
coisas em seu devido lugar, Jesus tomou uma criança para que através de
sua humilde confiança infantil, aqueles homens pudessem aprender a
lição da verdadeira grandeza. Segundo Mateus 18:5, o Mestre conclui
dizendo: “E quem receber uma criança, tal como esta, em meu nome, a
mim me recebe”. Veja-se também Mateus 10:40. Esta conclusão com
leves variações e argumentações também se acha em Marcos 9:37 e em
Lucas 9:48. A semelhança entre Marcos 9:36, 37 e Lucas 9:47b, 48a é
muito grande.
Entretanto, alguns põem sua atenção no que eles chamam
discrepâncias, e afirmam que estas discrepâncias são tão grandes, que
todo esforço para ler Marcos 9:33–37 como um relato congruente e
plenamente histórico, é inútil. Supõe-se que o que aqui temos é uma
narração misturada, tirada de várias fontes discordantes. 422

421
Ou: em casa.
422
O leitor deveria ver por si mesmo a forma em que Vincent Taylor, Op. cit., p. 404 trata este
parágrafo de Marcos. Taylor é um autor que em outros respeitos apresenta abundante e excelente
material em seu Comentário.
Marcos (William Hendriksen) 460
Os pretendidos pontos de conflito são:
a. Mateus e Lucas omitem toda referência a Cafarnaum, enquanto
que Marcos situa o acontecimento em Cafarnaum e deste modo num
contexto galileu.
b. Segundo Mateus, são os discípulos os que tomam a iniciativa.
Eles perguntam a Jesus: “Quem é, porventura, o maior no reino dos
céus?”. Pelo contrário, em Marcos é Jesus quem toma a iniciativa. É ele
quem pergunta: “De que é que discorríeis pelo caminho?”.
c. Segundo Marcos 9:33 Jesus está com os Seus discípulos. Estão
juntos numa casa. Não obstante, segundo o versículo 35 eles não
parecem ter estado com Ele, visto que precisa chamá-los.
As seguintes respostas merecem considerar-se:
Quanto à primeira objeção, é verdade que Lucas — como sucede
com frequência — não indica o lugar do evento, mas Mateus acaba de
mencionar a chegada de Jesus a Cafarnaum. Note-se: “Tendo eles
chegado a Cafarnaum” (Mt. 17:24). Depois vem a história do pagamento
do imposto do templo. Logo lemos, “Naquela hora, aproximaram-se de
Jesus os discípulos, perguntando: Quem é, porventura, o maior no reino
dos céus?” (Mt. 18:1).
Quanto à segunda objeção, pode-se dizer o seguinte: Mateus
expressa a pergunta dos discípulos assim: “Quem é, porventura, — note-
se este porventura em grego — o maior?”. Este só feito indicar que algo
precedeu a esta pergunta. A sequência dos eventos pôde ter sido como
segue:
No caminho à casa surge uma discussão entre os discípulos com
relação às posições (Lc. 9:46). Estando já em casa, Jesus lhes pergunta,
“O que discutíeis no caminho?”, mas eles guardam silêncio, etc. (Mc.
9:33, 34). Entretanto, Jesus conhece os Seus pensamentos (Lc. 9:47).
Quando eles percebem isto, perguntam-lhe: “Quem é, porventura, o
maior no reino dos céus?” (Mt. 18:1). Em qualquer caso, a hipótese de
que há discrepâncias é injustificada.
Marcos (William Hendriksen) 461
Quanto à última objeção, não era natural que aqueles homens,
pressionados por um sentido de culpa, permanecessem um pouco
afastados de seu Mestre? E não era igualmente natural que Ele, ao estar
prestes a lhes comunicar o ensino necessário, se sentasse e ocupasse seu
lugar de Mestre (cf. Mt. 5:1, 13:1; Lc. 5:3; Jo. 8:2) e os reunisse ao Seu
redor?
Jesus está novamente em Cafarnaum, a mesma cidade que por
longo tempo foi Seu centro de ação. Estava “na casa” ou “em casa”
(como em Mt. 8:6; veja-se também sobre a frase sinônima em Mc. 2:1).
Seus discípulos já tinham entrado naquela casa. Jesus lhes perguntava —
ou: começava a lhes perguntar, 423 — “De que é que discorríeis pelo
caminho?” Evidentemente Jesus sabia que entre eles se desenvolveu uma
conversação em voz baixa enquanto caminhavam após Ele. Saberia mais
que isto? Talvez conhecia o próprio tema e a natureza da conversação?
É inútil que tratemos de compreender a forma exata da aquisição do
conhecimento de Cristo. Entretanto, devem ter-se presente três
considerações: a. Sua natureza humana não era em si, nem por si mesma
onisciente (Mc. 13:32; cf. Mt. 24:36); b. Sua natureza divina às vezes
comunicava conhecimentos à Sua natureza humana, a qual, sem este ato
de comunicação não os teria tido (Mt. 17:25, 27; Jo. 1:47, 48; 2:25;
21:17); e c. às vezes Jesus recebia informação de forma totalmente
humana, perguntando ou investigando (Mc. 5:32; 6:38; 11:13). No caso
presente (Mc. 9:33), como já se indicou, devemos pensar provavelmente
em b. Veja-se também Mc. 2:8. Jesus já o sabia antes de que Lhe

423
Nesta passagem (vv. 33, 34), observe-se o seguinte: _πηρώτα, impf. at. ind. 3ª. pes. sing. de
_περωτάω. Referente a διελογίζεσθε (impf. ind. 2ª. pes. pl. de διαλογίζομαι) e διελέχθησαν (aor. ind.
3ª. pes. pl. de διαλέγομαι, veja-se o artigo de G. Schrenk no TDNT, vol. II, pp. 93–98. A palavra
_σιώπων é o impf. ind. 3ª. pes. pl. de σιωπάω; e o adjetivo μείζων embora literalmente signifique
“grande”, claramente tem sentido superlativo, como em 1Co. 13:13 “o maior destes é o amor”. O
último exemplo mostra também que esta forma comparativa nem sempre precisa vir precedida pelo
articulo definido para ter a mesma força que um superlativo. Sobre o uso do comparativo em lugar do
superlativo, em grego koinê, veja-se Robertson, pp. 281 e 667.
Marcos (William Hendriksen) 462
dissessem, mas fez a pergunta para que começassem a refletir sobre o
que tinham feito, e se sentissem envergonhados.
Em resposta à pergunta de Cristo, produziu-se um silêncio sepulcral
e prolongado. Evidentemente, os discípulos estavam turvados e
envergonhados.
Resulta estranho que uma das primeiras consequências derivadas da
segunda predição (Mc. 9:30–32) sobre sua agonia iminente, fosse que os
discípulos discutissem a respeito das posições! Com que rapidez a
tristeza (Mt. 17:23b) que lhes causou esta predição cedeu seu lugar a um
desviado anelo de exaltação! Não obstante, este era o tipo de homens que
Jesus escolheu para ser Seus discípulos! Por esta classe de homens devia
dar Sua vida. Assim se ressalta o caráter soberano do amor de Deus na
eleição. Cf. Sl 103:14; 115:1; Ez. 16:1–14; Dn. 9:7, 8; 1Jo. 4:19; e veja-
se CNT sobre Ef. 1:4.
Entretanto, bem pôde haver uma relação entre a predição de Cristo e
a discussão dos discípulos. Embora Jesus tivesse falado a respeito de Sua
paixão, também mencionou Sua ressurreição.
Além disso, pouco antes disto tinha prometido que alguns de seus
discípulos veriam “ter chegado com poder o reino de Deus” (Mc. 9:1).
Como a forma terrestre de pensar que tinham os discípulos ainda estava
bastante latente — e o estaria por longo tempo depois; veja-se At. 1:6 —,
as predições de Jesus poderiam tê-los levado a pensar e discutir a
respeito dos graus relativos de eminência que a cada discípulo lhe
corresponderia nesse reino. Além disso, ultimamente Pedro tinha tido
uma atuação muito destacada. Estaria reservado para ele o lugar de
maior posição? Veja-se CNT sobre Mateus, pp. 718, 719.
Tinha chegado o momento solene para que Jesus mostrasse aos
Seus discípulos qual devia ser a verdadeira atitude de todo cidadão do
reino.
Marcos (William Hendriksen) 463
35. E ele, assentando-se, chamou os doze e lhes disse: Se alguém quer
ser o primeiro, será 424 o último e servo de todos.
Jesus os chamou à Sua presença, e com o ato de sentar-se, como já
se explicou, indicou que sendo Mestre deles estava prestes a lhes dar
uma lição de suma importância.
A lição é esta: a ideia que eles tinham do que significava “ser
grande” devia mudar; de fato, tinham-na totalmente invertida. A
verdadeira grandeza não consiste em que uma pessoa se coloque a si
mesma nas alturas para dali olhar a outros com desprezo e com uma
atitude de satisfeita autocomplacência (Lc. 18:9–12). Pelo contrário, a
grandeza consiste em submergir-se e identificar-se com os problemas
dos demais, em empatizar com eles e ajudá-los de todas as maneiras
possíveis. Assim que, se alguém — seja alguém dos Doze ou qualquer
um — deseja ser o primeiro, que seja o último; quer dizer, que seja
servo 425 de todos.
Jesus deve ter repetido esta lição muitas vezes durante Seu
ministério, provavelmente em vários lugares e em formas ligeiramente
variadas (veja-se Mt. 20:26, 27; 23:11; Mc. 10:43, 44; Lc. 9:48b; 14:11;
18:14). Na realidade, não é esta uma lição que se sublinha por toda a
Escritura? (veja-se Jó 22:29; Pv. 29:23; Is. 57:15; Tg. 4:6; 1Pe. 5:5).
Quanto à vaidade e a ambição egoísta, considere-se que “A soberba
precede a ruína, e a altivez do espírito, a queda” (Pv. 16:18). Não foi esta
a experiência de Senaqueribe (2Cr. 32:14; 21), de Nabucodonosor (Dn.
4:30–33) e de Herodes Agripa I (At. 12:21–23)? Por outro lado, note-se
o que se diz daquele elogiado centurião (Mt. 8:8, 10, 13), da humilde
mulher siro-fenícia (Mc. 7:29; cf. Mt. 15:27, 28) e do contrito coletor de
impostos (Lc. 18:13, 14).

424
Embora _σται é o fut. indicativo 3ª. pes. sing. de ε_μί, o contexto não usa o tempo verbal para
indicar um mero futuro (o que sucederá), mas sim aponta ao que uma pessoa deseja que suceda; daí,
“deverá ser”; em outras palavras, _σται tem força imperativa. Veja-se Robertson, pp. 874, 943.
425
διάκονος. Veja-se sobre 10:43, 44.
Marcos (William Hendriksen) 464
Uma das razões pelas quais esta lição de Jesus é inesquecível, é que
Ele mesmo a exemplificava com Sua própria vida (Mc. 10:44, 45; Lc.
22:27; Jo. 13:1–15; Fp. 2:5–8).
Há outra razão pela qual esta lição sobre a humildade e a confiança
chegou a ser muito conhecida. Deve-se à preciosa ilustração viva que
Jesus gravou indelevelmente na mente e coração de Seus seguidores:
36a. Trazendo uma criança, colocou-a no meio deles.
O que Jesus fez nesta ocasião revelou não só Sua perfeita
compreensão da natureza do reino e da forma de entrar nele, mas
também Sua ternura para com os pequeninos. O que disse merece todo o
elogio que lhe foi concedido e muito mais ainda. Mas não se revelou
aqui também a grandeza da alma do Mediador por Sua moderação, a
saber, pelo que não fez e o que não disse? Nem sequer censurou aos Seus
discípulos por sua dureza e sua insensibilidade com relação à próxima
agonia, nem pela superficialidade de sua tristeza, nem pela rapidez em
desviar a atenção para eles mesmos, nem por seu egoísmo. Tudo isto Ele
passou por alto, e Se referiu diretamente à pergunta deles.
É grato observar a frequência com que se menciona nos Evangelhos
a presença de crianças ao redor de Jesus e/ou Seu amor por elas (vejam-
se Mt. 14:21; 15:38; 18:3; 19:13, 14; 21:15, 16; 23:37; cf. Mc. 10:13, 14;
Lc. 13:34; 18:15, 16). Indubitavelmente, as crianças sentiram-se atraídos
a Jesus, gostavam de estar com Ele. Cada vez que necessitava uma
criança, ali havia uma, preparada para o que fosse necessário, e para vir
quando Ele a chamasse. Assim ocorre também aqui. De nada serve
especular sobre quem era esta criança. O ponto principal é que realmente
era uma criança, dotada de todas as qualidades favoráveis e afáveis que
geralmente estão associadas com a infância de todas as raças e de todos
os tempos.
O Senhor chamou este pequenino ao Seu lado, e o colocou “no
meio” de todos aqueles homens “grandes”, talvez em posição adequada
para os confrontar num semicírculo. A criança não tinha medo porque
estava ao lado de Jesus (Lc. 9:47).
Marcos (William Hendriksen) 465
Marcos acrescenta a seguir uma bela pincelada que não se acha nos
outros Evangelhos:
36b. e, tomando-a nos braços, 426 disse-lhes: …
Naqueles braços o pequeno se sentiria perfeitamente cômodo e
poderia olhar confiantemente ao rosto de Jesus. Prossegue:
37. Qualquer que receber uma criança, tal como esta, em meu
nome, a mim me recebe; e qualquer que a mim me receber, não
recebe a mim, mas ao que me enviou.
Esta expressão do Senhor encaixa com o presente contexto, assim
como também com o contexto de Mateus 10:40; veja-se CNT sobre essa
passagem.
Aqui em Marcos 9:37, o raciocínio pode ser assim: Jesus diz aos
Seus discípulos que devem esquecer-se de posições, preeminências e
proeminências. Antes, devem concentrar sua atenção nas necessidades
de alguma criança, de qualquer criança, mesmo de uma só. Por exemplo,
que se preocupassem com a criança que Jesus tinha nesse momento em
seus braços, ou por qualquer outro parecido. Deviam receber a tal
criança “em nome de Cristo”. O nome de Cristo significa o próprio
Cristo, em sua gloriosa autorrevelação. Portanto, receber uma criança
“em nome de Cristo” significa tratá-la com todo o amor e a consideração
que Cristo merece por causa da forma em que Se revelou em palavra e
obra. Deviam receber uma criança ou a qualquer um que por sua
fraqueza, necessidade e humilde dependência fosse semelhante a uma
criança. Ao fazê-lo, estariam recebendo a uma criança “em nome de
Cristo” (cf. 10:29). Agora, se isto se fizer com toda a sinceridade, calor,
e entusiasmo possível, beneficiará àquele a quem se outorga este afeto. E
isto é o que Jesus deseja, porque ama os pequeninos.

426
_ναγκαλισάμενος, part. aor. nom. sing. masc. de _ναγκαλίζομαι. No Novo Testamento este verbo
aparece só aqui e em 10:16. Veja-se, entretanto, também Lc. 2:28: “Simeão … tomou [à criança Jesus]
em seus braços”. Nessa passagem o substantivo _γκάλας (acus. pl. de _γκάλη) refere-se ao braço que
se dobra para receber algo ou a alguém. Cf. ângulo.
Marcos (William Hendriksen) 466
Mas fará mais que isto. Beneficiará também aos que outorgam este
cuidado. No processo de identificação com estas crianças não virão a ser
também eles como crianças?
Além disso, a obediência ao mandato de Cristo glorifica a Cristo.
Jesus prossegue, indicando que Ele tem uma íntima relação com as
crianças e, portanto, quem quer que em Seu nome receber um destes
pequeninos, recebe o Redentor deles, quer dizer, a Jesus Cristo.
Finalmente, visto que a relação entre Jesus e o Pai que O enviou
(Mc. 12:6; cf. Mt. 15:24; Lc. 10:16; Jo. 3:16, 17; etc.) é imensamente
íntima (Jo. 17:10, 21, 24–26), segue-se que todo aquele que recebe a
Jesus, não O recebe a Ele somente , mas também ao Pai que O enviou.
Resumindo: em vez de perguntar, “Quem é o maior entre nós?”, os
seguidores de Jesus deveriam aprender a enfocar sua atenção e seu amor
nos pequeninos de Cristo; devem concentrar-se nas ovelhas do rebanho e
em todos aqueles que estão necessitados e confiam como estas ovelhas.
Tal é a essência da verdadeira grandeza, a grandeza que reflete a mesma
qualidade que em grau infinito reside em Deus (Is. 57:15). Poderia
suscitar-se uma objeção: “Mas aquela pergunta: ‘Quem é o maior entre
nós?’ era tão ridícula e pueril que não tem significado algum para os
últimos tempos”. Esta conclusão seria totalmente errônea. O anelo de ser
grande está por natureza latente em todo coração humano. Testemunha
disto são os alardes de grandeza que os pais fazem diante de Seus
pequeninos; as palavras da criança da classe de crianças “meu papai
pode vencer o seu papai”; os muitos livros que se anunciam para ensinar
a uma pessoa “como obter controle sobre outros”; e por último, mas não
menos importante, a obsessão pelo poder, que levou Hitler a tentar
estabelecer seu indômito ego, e que deu como resultado final o que veio
a ser chamado “o pesadelo mais terrível que a humanidade jamais
sofreu”. E enquanto os crentes estiverem neste mundo não poderemos
vencer totalmente o desejo ou impulso de exibir o menor indício da
arrogância de Lúcifer. Além disso, em muitos casos os crentes não fazem
uso das oportunidades para render serviço aos pequeninos de Cristo: aos
Marcos (William Hendriksen) 467
jovens, aos fracos, aos que se desviaram da caminho, etc. Daí que tais
passagens como a presente (Mc 9:33–37) jamais perdem seu valor nesta
vida (cf. Rm 15:1–3; Gl 6:1, 2; Fp 2:3ss.; Tg 4:6; 1Pe 5:5; etc.).

Mc. 9:38–41 - Quem não é contra nós é por nós


Cf. Lc 9:49, 50

38. Disse-lhe João: Mestre, vimos um homem que, em teu nome,


expelia demônios.
Num olhar superficial pareceria que entre o parágrafo precedente
(vv. 33–37) e este (vv. 38–41) não existe nenhuma relação. Sugeriu-se
que o apóstolo João se envergonhou pela repreensão que ele e o resto dos
Doze receberam, e que isso o levou a trazer à baila o evento concernente
a um exorcista só para mudar de tema. Outros opinam que a frase “em
teu nome” (v. 37, cf. vv. 38, 39) sugeriu a inserção do presente
parágrafo, o qual não ocorre em Mateus senão apenas em Marcos e
(condensado) em Lucas. Entretanto, não se deve descartar outra
possibilidade. As observações de desaprovação implícita de Cristo
podem ter despertado a consciência de João (vv. 35–37), de modo que
agora tinha dúvida a respeito de se ele e os outros tinham agido
corretamente com certo exorcista. Mas não há forma de verificar se estas
hipóteses contêm algo de fato no que se refere à natureza da relação ou a
falta de relação destas passagens.
O título de “Mestre”, 427 que João utiliza ao dirigir-se a Jesus,
sempre foi muito apropriado (Jo. 13:13), e parece ainda mais apropriado
agora que Cristo acaba de comunicar Seu ensino sobre a humildade.
O que preocupava a João era que ele e outros — note-se “nós” —
era um exorcista que não pertencia aos Doze e talvez nem sequer ao
grupo mais amplo de seguidores regulares (Lc. 6:13; 10:1), estivesse
expulsando demônios em nome de Cristo.

427
Veja-se sobre 4:38b, nota 172.
Marcos (William Hendriksen) 468
De que classe de homem falava João? É claro que não era de algum
pretendido exorcista, como os filhos de Ceva (At. 19:13–16), porque
estes eram falsos. Tampouco era um exorcista no sentido dos que se
condenam em Mateus 7:22. Não, este homem era com toda
probabilidade um verdadeiro crente em Jesus. Pôde ter sido um que,
depois de escutar o Mestre e lhe haver entregue seu coração, não tinha
cercado uma relação mais íntima com os outros seguidores do Mestre.
Tudo o que sabemos com certeza é que tinha estado expulsando
demônios em nome de Cristo, e que João e outros — talvez outros
apóstolos — tinham desaprovado energicamente seus atos: “o qual não
nos segue; e nós lho proibimos, 428 porque não seguia conosco.
Pelo que parece, o intento não teve êxito. O homem devia estar
totalmente convencido de que o que fazia era correto e justo. Estava
fazendo isso “em nome de Cristo”, quer dizer, ele o fazia em
conformidade com o espírito e palavras de Jesus, conforme o entendia.
Para aquele homem, a frase “em nome de Cristo” não era uma fórmula
mágica; era realidade.
A razão que João dá para tentar frear aquele homem é “porque não
seguia conosco”. 429 É bem possível que João tivesse tomado a iniciativa
no intento de impedir que este homem prosseguisse com sua atividade.
Se isto resultar estranho, poderia então dever-se a que ainda devia passar
um bom tempo antes que este “filho do trovão” (Mc. 3:17; cf. Lc. 9:54)
chegasse a transformar-se no “discípulo a quem Jesus amava”? (vejam-
se Jo. 13:23; 19:26; 20:2; 21:7, 20). Ou antes, não seria um mal
entendido amor ao Mestre, o que o impulsionou a ele e aos outros a frear
a este exorcista, que não se tinha unido a Cristo e aos Seus seguidores
regulares?

428
_κωλύομεν impf. at. 1ª. pes. pl. de κωλύω, “estorvar, prevenir, deter”; aqui age como um
imperfeito conativo: “tratamos de impedir”.
429
_κολούθει, outro imperfeito; aqui provavelmente progressivo. Cf. coroinha, anacoluto.
Marcos (William Hendriksen) 469
430
39. Mas Jesus respondeu: Não lho proibais; porque ninguém
há que faça milagre em meu nome e, logo a seguir, possa falar mal
de mim. 431
A razão é tão óbvia, a linguagem tão clara, que não se precisa dizer
muito à maneira de explicação. Quando uma pessoa realiza uma obra
poderosa em nome de Jesus — em harmonia com Sua vontade revelada,
naturalmente falará bem — não mal — dAquele a quem reconhece como
o Autor real deste milagre.
40. A razão pela qual não pode falar mal de Jesus é porque não
pensa mal dEle, não está contra Ele. Daí que, com outro “porque” Jesus
prossegue: Pois quem não é contra nós é por nós. Carinhosamente, o
Mestre associa os Seus seguidores Consigo mesmo dizendo “nós” em
lugar de “mim”.
Quando uma pessoa teve um encontro com Cristo, dali em diante a
neutralidade é impossível, e por isso é lógico que aquele que não está
contra — ou que não lhe tem má vontade — está a favor dEle. A mesma
verdade pode também expor-se mediante as palavras que se acham em
Mateus 12:30: “Quem não é por mim é contra mim”.
41. A cláusula final que vem a seguir começa com “porque”, que
significa: “este raciocínio é verdadeiro como se vê pelo fato de que,
etc.”. Jesus completa sua resposta como segue: Porquanto, aquele que
vos der de beber um copo de água, em meu nome, porque 432 sois de

430
Por causa de que μή vem seguido pelo imper. pres. at. 2ª. pes., Robertson traduz “deixai de impedi-
lo (Word Pictures, Vol. I p. 346). Mas visto que João e seus companheiros nesta ocasião concreta
obviamente não conseguiam deter o exorcista, as traduções mais correntes “não o impeçais”, “não o
proibais”, “não o estorveis” são provavelmente preferíveis.
431
ποιήσει y δυνήσεται são fut. indic. 3ª. pes. sing.
432
A leitura preferida _ν _νόματι _τι tem produzido dificuldades, e provavelmente esta é a razão das
muitas variantes textuais. Alguns preferem a tradução “em meu nome porque”. Mas tal tradução é
muito elaborada, tautológica, e além inserida um “meu” onde provavelmente não o havia. Melhor
seria seguir ao BAGD, p. 577, que traduz: “em sua qualidade de”, ou simplesmente “porque” (V.
Taylor, op. cit., p. 407).
Marcos (William Hendriksen) 470
Cristo, em verdade vos digo que de modo algum perderá o seu
galardão. 433
Quanto a “em verdade vos digo” veja-se em Mc. 3:28. Compare
“um copo de água” com “ainda que seja um copo de água fria” (Mt.
10:42). O que faz com que este copo de água seja tão valioso é que se dá
a uma pessoa porque pertence a Cristo. Jesus considera tal obséquio
como oferecido a Ele mesmo. Mateus 25:40 diz: “O Rei, respondendo,
lhes dirá: Em verdade vos afirmo que, sempre que o fizestes a um destes
meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes.”
Sobre a preciosa verdade que os crentes não se pertencem a si
mesmos senão a Cristo, veja-se também Rm. 8:9; 14:8; 1 Cor. 3:23;
6:19, 20; 2Co. 10:7; Ef. 1:14b; 1Pe. 2:9. E veja-se o Catecismo de
Heidelberg, Pergunta 1.
Que recompensa recebem tais doadores? Pense-se na paz mental
agora (Mt. 10:13), o reconhecimento público por Cristo em Sua volta
(Mt. 25:34ss.), e depois para sempre “a herança dos santos em luz”.
Contra que classe de atitude Jesus nos adverte neste breve
parágrafo? Resposta: contra a intolerância e o exclusivismo estreito. É a
classe de mentalidade que já existia na antiga dispensação. Eldade e
Medade, que certamente eram filhos de Deus e testemunhas verdadeiras,
por uma ou outra razão permaneceram no acampamento em lugar de ir
ao tabernáculo onde se esperava que estivessem presentes. Talvez não
tinham escutado a convocatória. Mas estavam profetizando no
acampamento entre o povo. Com aturdimento, um jovem afeiçoado à
intriga corre às autoridades com a notícia. “Eldade e Medade estão
profetizando no acampamento!”. Inclusive Josué pensou que aquilo era
terrível. “Moisés, meu senhor, proíbe-lho”, exclama. Mas Moisés

433
Tanto ποτίσ_ como _πολέσ_ são aor. subjuntivos. Mas em lugar de “lhes der” pode-se traduzir
“lhes dê”, como eu fiz, pois ambas significam quase o mesmo. Quanto a “de maneira nenhuma
perderá”, isto é o que Burton chama uma oração “solenemente preditiva” e “enfaticamente negativa”
(op. cit., pp. 34, 35). Veja-se também Robertson, p. 930, onde esta construção é chamada “subjuntiva
futurista”.
Marcos (William Hendriksen) 471
responde: “Tens tu ciúmes por mim? Tomara todo o povo do SENHOR
fosse profeta, que o SENHOR lhes desse o seu Espírito!” (Nm. 11:26–
29).
Ainda hoje, esse espírito de estreito exclusivismo é confundido com
a lealdade à própria igreja ou denominação. Ouvimos as pessoas dizer:
“Nossa denominação é a mais pura manifestação do corpo de Cristo na
terra”. Enquanto estivermos neste mundo pecaminoso, onde a hipocrisia
nos altos níveis muitas vezes corrompe a vida, tanto a política como
também a eclesiástica não seria melhor deixar tais juízos para Deus? Não
devemos ser mais restritivos que Moisés. Não devemos ser menos
tolerantes que Paulo (Fp. 1:14–18). Sigamos o ensino de Jesus e, ao
mesmo tempo que cuidamos o que consideramos sã doutrina,
estendamos a mão de irmandade a todos os que amam o Senhor Jesus
Cristo e constroem sobre o sólido fundamento de Sua palavra infalível.
Ao fazer isto, oremos para que possamos ser instrumentos para guiar
outros ao caminho da salvação, para a glória de Deus (1Co. 9:19, 22;
10:31, 33).

Mc. 9:42–50 - Protejam os pequeninos e não cedam à tentação

Tábua comparativa
v. 42 Mt. 18:6 Lc. 17:1, 2
v. 43 Mt. 5:30; 18:8
v. 45 Mt. 18:8
v. 47 Mt. 5:29; 18:9
v. 48 Is. 66:24
v. 50a Mt. 5:13 Lc. 14:34,35
v. 50b Cl. 4:6
v. 50c Rm. 12:18;
2Co. 13:11;
1Ts. 5:13
Marcos (William Hendriksen) 472
42. E qualquer que escandalizar um destes pequeninos que crêem em
mim, 434 melhor lhe fora que lhe pusessem ao pescoço uma grande pedra
de moinho e que fosse lançado no mar [RC].
Aqui começa uma série de expressões do Senhor que em sua
maioria se acham também em outros lugares da Escritura, segundo se
indica mais acima. Algumas delas aparecem também em Mateus 5 e/ou
Mateus 18. É bem possível que o Senhor repetisse tais expressões em
diversas ocasiões e, portanto, aparecem reproduzidas nos Evangelhos em
diferentes contextos.
A primeira (v. 42) pode-se considerar como o lado negativo do
versículo 37. Sempre haverá aqueles que desejam desviar os
“pequeninos” de Cristo. 435 Jesus diz que se alguém planeja desviar
inclusive a um só dos que são preciosos para Ele, 436 a esse sedutor
conviria mais a morte física, até a mais horrível. Diz que seria melhor
que lhe fosse pendurada uma pesada (literalmente: movida por burro)
pedra de moinho e que seja arrojado ao mar.
A pedra de moinho da qual fala o Senhor é a pedra superior das
duas entre as que se tritura o grão. Não se refere à pedra do moinho de
mão, mas a uma muito mais pesada movida por um burro. No centro
desta pedra superior, seja de um moinho de mão ou de um movido por
força animal, há um buraco por onde se pode jogar o grão para moê-lo
entre as duas pedras. A presença deste buraco explica a frase “que se lhe
pendurasse ao pescoço uma grande pedra de moinho, e que fosse

434
Há muitas dúvidas com relação à leitura “em mim”. Não obstante, veja-se também Mt. 18:6.
435
σκανδαλίσ_, aor. subj. at. 3ª. pes. sing. de σκανδαλίζω. O σκάνδαλον é o ganchinho da ceva de
uma armadilha ou armadilha. É o palito torcido que dispara a armadilha; daí, “laço, tentação a pecar,
sedução” (Mt. 18:7; Lc. 17:1); também: “objeto de repulsão”, a cruz como pedra de tropeço (1Co.
1:23; Gl 5:11). Do mesmo modo, o verbo basicamente significa: enlaçar, tentar a pecar, desviar.
436
Note-se “pequeninos que creem” [TB] ou “creem em mim” [RC]. Até sem a adição “em mim”, a
respeito da qual existem algumas dúvidas, fica evidente que o Senhor fala dos crentes. Portanto, seria
errôneo insistir que o Senhor fala exclusivamente de infantes. O termo “pequeninhos” é expressão de
carinho para crianças ou grandes. São fracos e nesse sentido pequenos, mas ele os ama. Cf. 1Jo. 2:1,
28; 3:7,18; 5:21.
Marcos (William Hendriksen) 473
lançado no mar” [TB]. Com esta pedra de moinho ao redor do pescoço,
indubitavelmente se afogaria.
43, 45, 47. E, se tua mão te faz tropeçar, corta-a; pois é melhor
entrares maneta na vida do que, tendo as duas mãos, ires para o
inferno, 437 para o fogo inextinguível. 438 E, se teu pé te faz tropeçar, corta-
o; é melhor entrares na vida aleijado 439 do que, tendo os dois pés, seres
lançado no inferno. E, se um dos teus olhos te faz tropeçar, arranca-o; é
melhor entrares no reino de Deus com um só dos teus olhos do que, tendo
os dois seres lançado no inferno.
Mão, pé, olho, que valiosos são! Entretanto, Jesus diz que é melhor
privar-nos de qualquer deles do que perecer eternamente com duas mãos,
dois pés, ou dois olhos. Portanto, se qualquer um destes induzir uma
pessoa a pecar, imediatamente deve-se prescindir de tal órgão. Se for
uma mão ou um pé, deve cortar-se; se for um olho, deve-se arrancá-lo.
Aqui sucede o mesmo que ocorre com frequência com as
expressões de Jesus: estas palavras não devem ser entendidas de forma
literal. A lição é a seguinte: Não se deve consentir o pecado, pois o
pecado tem um tremendo poder destrutivo. Deve-se “fazer morrer” o
pecado (Cl. 3:5). A tentação deve ser rejeitada imediatamente e de
maneira decisiva. 440 A vacilação é mortal. As meias-medidas produzem
estragos. A cirurgia deve ser radical. Agora mesmo, e sem vacilação,
deve-se queimar toda a literatura obscena, destruir toda pintura
escandalosa, condenar todo filme que destrói a alma, romper as relações
sociais íntimas espiritualmente perniciosas e abandonar os costumes
daninhos. Em sua luta contra o pecado, o crente deve pelejar com
energia. A prática de dar golpes ao ar não serve absolutamente (1Co.
9:27).

437
Ou: Gehenna; assim também nos vv. 45 e 47.
438
Não há suficiente apoio textual para considerar os vv. 44, 46 como genuínos. Além disso repetem o
conteúdo do v. 48.
439
Ou: aleijado.
440
Notem-se os vigorosos aor. imp. activ.: _πόκοψον, _κβαλε.
Marcos (William Hendriksen) 474
Naturalmente, estas medidas destrutivas e negativas, nunca terão
êxito sem a ação poderosa, santificadora e transformadora do Espírito de
Deus no coração e na vida.
Note-se a tríplice menção do termo Gehenna (= inferno). Vejam-se
também Mt. 5:22, 29, 30; 10:28; 18:9; 23:15, 33; Mc. 9:43, 45, 47; Lc.
12:5; Tg. 3:6. A palavra Gehenna se deriva do nome de Ge-Hinom (Js.
15:8; 18:16), forma abreviada de Ge-ben-Hinnom (Js. 15:8), que
significa: o vale do filho — ou filhos (2Rs. 23:10) — de Hinom. O lugar
estava situado ao sul de Jerusalém. Chegou a ser conhecido como lugar
de fogo, porque nos dias de Acaz e Manassés ali se matavam as crianças,
queimando-as como sacrifícios oferecidos a Moloque (2Rs. 16:3; 21:6;
2Cr. 28:3; 33:6). Por esta razão, o piedoso rei Josias declarou imundo
aquele lugar (2Rs. 23:10), e seu amigo Jeremias pronunciou terríveis
maldições sobre ele (Jr. 7:32; 19:6). Também chegou a ser o lugar onde
era queimado o lixo da cidade. Por estas razões o termo Ge-Hinnom ou
Gehenna foi finalmente usado como uma designação do inferno.
O versículo 43 define o Gehenna como “fogo inextinguível”. 441 O
significado é que o castigo para os que entrem ali não tem fim, é eterno
(veja-se Mt. 25:46).
Qual é a diferença entre o Hades e Gehenna? É a seguinte: a. O
Hades pode significar inferno, mas não necessariamente tem que fazê-lo.
Nos Evangelhos tem sempre este significado: Mt. 11:23 (= Lc. 10:15);
16:18; Lc. 16:23. Mas o Gehenna sempre significa inferno. b. O Hades,
cada vez que significa inferno, recebe os ímpios durante o estado
intermediário (entre a morte e a ressurreição); o Gehenna recebe tanto o
corpo como a alma dos ímpios depois do juízo final. 442

441
τ_ π_ρ τ_ _σβεστον que significa literalmente “fogo que não pode ser extinto”. Cf. asbesto, que
tem um significado um pouco diferente: o que não se queima nem é condutor de eletricidade.
442
Para mais detalhes, incluindo refutações de opiniões contrárias, veja-se meu livro La Biblia, el más
allá y el fin del mundo (Grand Rapids: Libros Desafío, 1998), pp. 113–119; 281–287. Veja-se também
Joachim Jeremias, artigo sobre γέεννα, no TDNT, vol. I, pp. 657, 658.
Marcos (William Hendriksen) 475
Nestes versículos menciona-se outro conceito: a vida. É claro,
então, que os pontos de vista que Cristo sustentou a respeito da vida ou
vida eterna não se limitam só ao Evangelho de João (Jo. 1:4; 3:16; 17:3,
etc.). Note-se que “É melhor entrares na vida” está em paralelismo com
“melhor seria entrares no reino de Deus”. O paralelismo destas linhas
deixa claro que entrar na vida significa entrar no reino de Deus. Aqui o
termo “reino de Deus” deve ser tomado em seu sentido escatológico: o
novo céu e a nova terra com toda a glória que lhe pertencem. Veja-se
mais acima sobre Mc. 1:15 (significado d.). E o que é a “vida”, aquela
vida que se manifestará em sua etapa final e, entretanto, eternamente
progressiva? Não é o mais pleno desfrute do reino de Deus no coração?
Portanto, não é também a profundíssima experiência da paz de Deus que
ultrapassa todo entendimento” (Fp. 4:7), “alegria indizível e cheia de
glória” (1Pe. 1:8), “iluminação do conhecimento da glória de Deus, na
face de Cristo” (2Co. 4:6) e “o amor de Deus [que] é derramado em
nosso coração pelo Espírito Santo” (Rm. 5:5)? De tudo isto se verão
privados os sedutores ou escandalizadores ao descer ao Gehenna!
Note-se mais outra descrição do inferno no versículo
48. Onde não lhes morre o verme, nem o fogo se apaga.
Este texto é citado do último versículo do livro de Isaías. Quer dizer
que o tormento será tanto externo (fogo) como interno (verme). Além
disso, jamais terminará. Este ensino de Jesus não deveria ser atenuado
pelo conceito filosófico de que no universo já não haverá mais tempo
quer chegue a morte ou o juízo final. 443 Em nenhum lugar (nem em Is.
66:24 ou em Ap. 10:6), há base alguma para esta hipótese. 444
Quando a Escritura fala de fogo que não se apaga, a questão não se
limita a que sempre haverá um fogo que arda no Gehenna, mas que o
ímpio terá que suportar este tormento para sempre. Serão sempre objetos
da ira de Deus, jamais de Seu amor. Seu verme nunca morre e sua
443
Assim, por exemplo, Lenski, Op. cit., p. 258.
444
Para um tratamento mais amplo, permita-se me mais uma vez me referir a meu livro La Biblia, el
más allá y el fin del mundo, desta vez pp. 97, 98.
Marcos (William Hendriksen) 476
vergonha será eterna (Dn. 12:2). Assim são também suas ataduras (Jd. 6,
7). “Serão atormentados com fogo e enxofre … e a fumaça de seu
tormento subirá pelos séculos dos séculos. E não têm repouso de dia nem
de noite” (Ap. 14:9–11; 19:3; 20:10).
Surge às vezes a objeção: “Mas não ensina a Escritura a destruição
dos ímpios?” Indubitavelmente que sim, mas esta destruição não é uma
aniquilação instantânea, de tal forma que nada reste dos ímpios. Em
outras palavras, não deixarão de existir. A destruição da qual fala a
Escritura é uma destruição eterna (2Ts. 1:9). Pereceram suas esperanças,
suas alegrias, suas oportunidades, suas riquezas, etc., e isso mesmo é seu
tormento para sempre. Quando Jeremias fala a respeito dos pastores que
destroem as ovelhas, quis dizer que aquelas ovelhas deixavam de existir?
Ao exclamar Oseias, “Ó, Israel lhes destruístes”, estava tratando de dizer
que as pessoas tinham sido aniquiladas? Quis dizer Paulo (Rm. 14:5)
que por comer carne sacrificada a ídolos se poderia aniquilar o irmão?
Ou que ele mesmo em outro tempo tinha aniquilado a fé? (Gl 1:23).
O argumento mais notável contra a ideia de que os ímpios
simplesmente serão aniquilados e que os justos continuarão vivendo para
sempre, é o fato de que em Mateus 25:46 a mesma palavra descreve a
duração de ambos, o castigo dos ímpios e a bem-aventurança dos justos:
os ímpios partem ao castigo eterno, mas os justos à vida eterna.
Outra objeção poderia ser. “Mas não é Deus também misericordioso
e, por acaso, não fala a Escritura de graus de castigo (Lc. 12:47, 48)?”. A
resposta deve ser: “Naturalmente que sim, e é possível que não tenhamos
feito sempre a devida justiça a essa significativa passagem”. Entretanto,
nada pode atenuar o fato de que se aplicará toda a força de Marcos 9:48
contra aqueles que porfiada e impiamente rejeitam e insistem em rejeitar
a mensagem do amor de Deus e de Sua graça em Cristo, endurecendo-se
até o ponto de inclusive começar a desviar os “pequeninos de Cristo” do
caminho correto, sem jamais arrepender-se.
Jesus termina suas observações com uma trilogia de passagens
relacionadas com o “sal”.
Marcos (William Hendriksen) 477
A primeira destas passagens é:
49. Porque cada um será salgado com fogo.
Em lugar de cansar o leitor com um resumo das vários
interpretações que se deram a esta passagem, apresentarei imediatamente
a que me parece mais razoável. É uma explicação que tenta fazer justiça
ao contexto precedente, ao fundo histórico e às outras passagens bíblicas
que mencionam os termos “sal” e “fogo”.
Quanto ao contexto: Jesus esteve prevenindo os Seus discípulos
contra o perigo de constituir-se em tropeço para outros e/ou de ser eles
mesmos vítimas do tropeço. A isto acrescenta agora uma expressão que
começa com “Porque”, como se dissesse, “Sempre é necessário estar em
guarda, mas especialmente no futuro próximo, porque cada um — com
referência especial aqui aos Doze? — será salgado com fogo”. Não nos
lembra isto imediatamente aquela outro todos — basicamente a mesma
palavra no original — de Marcos 14:27 (= Mt. 26:31): “Todos vós vos
escandalizareis”?
“Cada um será salgado com fogo” provavelmente significa então
uma prova de fogo que virá sobre cada um para obter a purificação. Não
só vai separar a gente boa da má, crentes de não crentes, mas também
inclusive dentro do coração e a vida dos crentes destruirá o mal e trará a
reluzir o bem, fazendo com que sejam uma força preservativa, um sal
que dê sabor em meio de seu entorno. Vejam-se as seguintes passagens:
Jó 42:5, 8; Sl 119:67; Ml. 3:2; Mt. 5:13; Jo. 16:33; 2Co. 4:17; 2Tm.
3:12; 1Pe. 4:12, 13. A Escritura aplica inclusive ao juízo final a ideia de
um fogo para prova e separação (1Co. 3:13), embora quando isto
ocorrer, deve desprezar-se a ideia de vir a ser uma força preservativa por
esse meio.
A segunda passagem relacionada com o sal é:
50a. Bom é o sal; mas, se o sal vier a tornar-se insípido, como
lhe restaurar o sabor?
Quanto à figura subjacente, é fácil entender que o sal é bom. É bom
porque preserva (combate a decomposição) e dá sabor. Entretanto, o sal
Marcos (William Hendriksen) 478
pode perder o seu sabor e tornar-se insípido. O sal dos pântanos e
lacunas ou das rochas nas vizinhanças do Mar Morto adquirem
facilmente um gosto rançoso ou alcalino por causa da mistura com
gesso, etc. Então, literalmente é “bom absolutamente”, só para ser
lançado fora e pisada pelos homens (cf. Ez. 47:11). Quando Jesus esteve
neste mundo conheceu muitos fariseus e escribas, gente que defendia
uma religião formal e legalista em lugar da verdadeira religião
proclamada pelos antigos profetas em nome do Senhor. Assim num
sentido geral, o sal tinha perdido seu sabor na vida religiosa de Israel.
Muitos “filhos do reino” seriam jogados fora (Mt. 8:12).
A implicação é clara. Do mesmo modo que não é possível recuperar
o sal que perdeu o seu sabor, assim tampouco podem ser renovados para
arrependimento aqueles que são instruídos no conhecimento da verdade,
mas que logo obstinadamente se declaram contra as exortações do
Espírito e se endurecem em sua oposição (Mt. 12:32; Hb. 6:4–6).
Portanto, que seja realmente sal o que leva o nome de sal! Muitíssima
gente que nunca lê a Bíblia está constantemente lendo a nós! Se em
nossa conduta não somos consequentes com nosso chamado, nossas
palavras terão pouquíssimo valor.
A passagem final relacionada com sal é:
50b. Tende sal em vós mesmos.
É inútil que uma pessoa influencie para o bem nos demais, a menos
que pela graça de Deus, a bondade habite em seu coração. Em outras
palavras, a menos que o Espírito Santo aplique a Palavra de Deus em seu
coração e o transforme num verdadeiro discípulo de Cristo, não será boa
influência. Por conseguinte, ter sal dentro de si mesmo significa ter
dentro de si aquelas qualidades que promovem a verdade, a bondade, a
paz, a alegria, etc., entre os irmãos. Significa ter qualidades que
despertam no mundo em geral o desejo de escutar as boas novas da
salvação em Cristo. Dito de outro modo: ter sal dentro de si mesmo
significa ser o sal do mundo (Mt. 5:13) e, portanto, também procurar que
Marcos (William Hendriksen) 479
a palavra de alguém seja sempre “amadurecida com sal”. Veja-se CNT
sobre essa passagem.
Portanto, a continuação é muito lógica: e [tende] paz uns com os
outros. Se dentro da comunidade não há mais que crítica e contenda,
como podem aqueles que se chamam cristãos esperar ganhar outros para
Cristo? Portanto, não é raro que se ache nas epístolas de Paulo um eco
desta exortação (Rm. 12:18; 2Co. 13:11; 1Ts. 5:13). A recompensa de
ser um homem de paz e um pacificador, é estabelecida em Mateus 5:9,
“Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos
de Deus”. Acrescente-se Gl 5:22; Tg. 3:18.

Resumo do Capítulo 9:2–50

Bem como o capítulo anterior (8) e o seguinte (10), o presente


capítulo (9) é constituído de seis parágrafos. O primeiro (vv. 2–13) narra
a história da transfiguração de Cristo num alto monte ao que ascendeu na
companhia de Pedro, Tiago e João. Foi aqui onde o Pai comunicou glória
e honra ao Filho (2Pe. 1:16, 17), quem acabava de resistir a tentação de
evitar a cruz (8:31–33). O Pai glorificou o Filho ao envolver Seu corpo e
vestes com um resplendor celestial, e ao enviar dois mensageiros
celestiais para que falassem com Ele a respeito de Sua paixão próxima e
iminente (e ressurreição?), e ao fazer com que o Filho e também os
outros ouvissem a voz celestial que disse: “Este é o meu Filho amado; a
ele ouvi”. Jesus desprezou a sugestão de Pedro de levantar três tendas —
uma para Jesus, outra para Moisés, e outra para Elias — para que a
gloriosa cena se prolongasse. Enquanto desciam, o Mestre disse aos Seus
discípulos que deviam guardar para si o que tinham visto, até depois de
Sua ressurreição. Eles obedeceram este encargo. Também lhes
esclareceu a profecia de Malaquias concernente à vinda de Elias antes da
vinda do Messias.
Que contraste entre a glória lá no cimo do monte e a miséria, a
vergonha e a confusão lá de baixo (vv. 14–29)! Ali, Jesus e os três
Marcos (William Hendriksen) 480
discípulos veem um pai angustiado e o seu filho único endemoninhado,
surdo-mudo e epilético. Os nove discípulos que tinham ficado atrás
quando Jesus e os três subiram ao monte, tinham sido incapazes de curar
o rapaz. Os escribas, que se alegravam perversamente por aquele
fracasso, discutiam com eles. Um grande número de curiosos observava
tudo. Jesus exclama: “Ó geração incrédula, até quando estarei convosco?
Até quando vos sofrerei? Trazei-mo.” Quando trouxeram o rapaz — e
também depois — o demônio sacudiu-o com convulsões. Ao Jesus
perguntar, o pai relatou com quanta crueldade o demônio tinha tratado o
rapaz desde criança. “Se tu podes alguma coisa, tem compaixão de nós e
ajuda-nos”, acrescentou o pai. Jesus respondeu, “Se podes! Tudo é
possível ao que crê”. Depois da exclamação do pai, “Eu creio! Ajuda-me
na minha falta de fé!”, Jesus ordenou ao espírito imundo que deixasse o
menino e não entrasse mais nele. Com chiados, o demônio saiu. Jesus
põe de pé o rapaz, que parecia morto. Depois, quando os discípulos estão
em casa com Jesus, perguntam-lhe por que eles não puderam expulsar o
demônio, o Mestre lhes responde: “Esta espécie [de espírito] só pode sair
à força de oração” [Mc. 9:29, TB].
As afligidas palavras de Jesus, “Até quando estarei convosco?”
mostravam que Seu pensamento estava posto na paixão que se
aproximava rapidamente. Daí que naquele momento fizesse Sua segunda
predição referente a este tema (vv. 30–32). Nesta ocasião, o novo
elemento consiste em que seria traído e entregue nas mãos dos homens.
Não obstante, outra vez declara que três dias depois de Sua morte
ressuscitará. Os discípulos não sabiam como tomar estas palavras e
temiam perguntar-lhe.
Na realidade, a reação daqueles homens era totalmente errônea. No
caminho para casa tinham estado perguntando: “Quem — quer dizer:
quem dentre nós — é o maior?” Enquanto o Mestre pensava em dar a
Sua vida por outros, eles pensavam em posições, privilégios e posições
de eminência para si mesmos (vv. 33–37). Jesus lhes diz: “Se alguém
quer ser o primeiro, será o último e servo de todos”.
Marcos (William Hendriksen) 481
Tomando uma criança em Seus braços, acrescentou: “Qualquer que
receber uma criança, tal como esta, em meu nome, a mim me recebe; e
qualquer que a mim me receber, não recebe (só) a mim, mas (também)
ao que me enviou”.
Embora a relação entre o parágrafo precedente e aquele que o segue
(vv. 38–41) não se pode demonstrar, é possível que a exortação “será o
último e servo de todos” tinha tocado a consciência do apóstolo João.
Fazia pouco que ele e outros que o acompanhavam tinham tratado a um
exorcista de forma pouco amistosa. Tinham-no proibido de expulsar
demônios. Tinham-no feito porque tal homem não se tinha unido — ou:
ainda não — às filas dos seguidores regulares de Jesus. “Não lho
proibais;” disse Jesus, “Pois quem não é contra nós é por nós … Aquele
que vos der de beber um copo de água, em meu nome, porque sois de
Cristo, em verdade vos digo que de modo algum perderá o seu
galardão”. Assim, o Salvador pôs em contraste Sua própria amplitude de
coração com o mesquinho espírito de exclusivismo.
Jesus havia dito: “Qualquer que receber uma criança, tal como esta,
em meu nome, a mim me recebe” (v. 37). Agora (vv. 42–50) reforça esta
mesma verdade de maneira negativa: “E quem fizer tropeçar a um destes
pequeninos crentes, melhor lhe fora que se lhe pendurasse ao pescoço
uma grande pedra de moinho, e fosse lançado no mar”. Diz aos Seus
discípulos que devem estar em guarda, não seja que induzam outros a
desviar-se do caminho ou que eles mesmos o façam. Se qualquer órgão
do corpo — mão, pé, olho, ou o que seja — ameaça ser-lhes uma
armadilha, imediatamente devem agir de forma drástica com essa fonte
de tentação. Os que recusam fazê-lo vão rumo ao inferno. Finalmente,
voltando agora para o positivo, em três passagens centralizadas no “sal”,
o Mestre prediz que todos vão sofrer provas de fogo. O remédio? Sempre
devem ter sal em si mesmos, quer dizer, aquelas qualidades que lhes
constituem em bênção para si mesmos e para outros. Com o fim de ser
mais eficazes a tal efeito, devem pensar em ter paz entre si mesmos.
Marcos (William Hendriksen) 482
MARCOS 10
Mc. 10:1–12 - Ensino a respeito do divórcio
Cf. Mt. 5:31, 32; 19:1–12

Marcos 10 é um capítulo longo. Só os capítulos 6 e 14 lhe


ultrapassam em longitude. O material paralelo em Mateus ocupa dois
capítulos: Mateus 19 e 20. Marcos 10 e Mateus 19 e 20 não só contêm
substancialmente o mesmo material, mas também inclusive o apresentam
na mesma sequência. Só existem duas exceções a esta regra, pois Mateus
contém uma passagem a respeito dos eunucos (Mt. 19:10–12) e outra a
respeito dos trabalhadores na vinha (Mt. 20:1–6). Os parágrafos 1, 2 e 3
de Marcos 10 estão em paralelo com Mateus 19; os parágrafos 4, 5 e 6
com Mateus 20.
Quanto a Lucas, em virtude da regra 10+8=18 — veja-se CNT
sobre Mateus, pp. 21, 23 — esperamos achar o paralelo de Marcos 10
em Lucas 18; e na realidade descobrimos que mais da metade de Marcos
10 tem seu paralelo ali. A Lucas falta o parágrafo a respeito do divórcio
e outro relacionado com o pedido dos filhos de Zebedeu. Como se
desejasse compensar isto, Lucas 18 começa com duas parábolas belas e
breves, características desse Evangelho. Uma é a respeito da viúva e o
juiz, e a outra a respeito do fariseu e o publicano. Pelo que se refere a
certas diferenças menores entre o material de Marcos e seus paralelos,
veja-se o tratamento dos parágrafos separadamente.
O Ministério do Retiro terminou. Marcos 10 contém o relato sobre o
Ministério na Pereia. É bom lembrar que o Grande Ministério na
Galileia, o Ministério do Retiro e o Ministério na Pereia, juntos,
abrangem essa extensa porção dos Sinóticos a que chamamos “A obra
que lhe deste para fazer, seu desenvolvimento ou continuação”. Veja-se
o esboço no final da Introdução.
Entretanto, com toda probabilidade o Ministério na Pereia não
seguiu imediatamente após o Ministério do Retiro. Entre eles produziu-
Marcos (William Hendriksen) 483
se o Ministério Tardio da Judeia, que durou desde outubro até dezembro
da última parte da vida de Cristo na terra (veja-se Jo. 7:2; 10:22). Em
consequência, o Ministério na Pereia provavelmente se realizou entre
dezembro do ano 29 e abril do ano 30.
Marcos é um tanto indefinido com relação ao momento em que
ocorreu o evento indicado em Mc. 10:1–12. Escreve:
1. Jesus saiu daquele lugar [NTLH].
O lugar do qual Jesus e os doze saíram é claramente indicado. Deve
ter sido Galileia (Mc. 9:30); ou mais exatamente, Cafarnaum (Mc. 9:33).
Quanto ao tempo, o texto não diz que de Cafarnaum Jesus iniciasse
imediatamente o Seu ministério na Pereia. A única coisa que podemos
afirmar com certeza é a. que muito pouco depois dos eventos registrados
no capítulo 9, Jesus entrou na região a leste do Jordão; e b. que os
acontecimentos que Marcos narra partem dali até chegar a Jerusalém (via
Jericó). E depois partindo do templo de Jerusalém produzem-se as várias
etapas da semana de paixão (Monte das Oliveiras, Betânia, o cenáculo,
Getsêmani, a casa do sumo sacerdote, a sala do juízo, o pretório de
Pilatos, o Gólgota), que terminaram na tumba, de onde o Senhor
ressuscitou gloriosamente. Vejam-se 10:1, 32, 33, 46; 11:1, 11, 12, 27;
13:1, 3; 14:3, 15, 32, 53; 15:1, 2, 16, 22, 46; 16:1ss. Para achar outra
menção de Seu retorno a Galileia depois da ressurreição, devemos nos
referir ao Evangelho segundo Mateus (Mt. 28:16).
Continua: foi dali para o território da Judeia e 445 para além do
Jordão [TB]. Outra tradução possível é: “e veio para os limites da
Judeia, para além do Jordão”. Alguns creem que a Judeia se estendia
politicamente para além (quer dizer, mais a leste) do Jordão. Outros
pensam que o evangelista queria dizer que Jesus foi à região da Pereia ou
Transjordânia, “limitada pela Judeia”. Em qualquer caso, achamos o
Senhor, junto com Seus discípulos (v. 10), viajando rumo ao sul através
da Pereia. Por conseguinte trata-se do Ministério na Pereia, a leste do rio

445
Não é totalmente seguro se o y” pertencer ou não ao texto.
Marcos (William Hendriksen) 484
Jordão, que posteriormente volta a cruzar, para chegar a Jericó (Mc.
10:46).
Marcos continua: E outra vez as multidões se reuniram junto a
ele, e, de novo, ele as ensinava, segundo o seu costume. Em geral,
pode-se dizer que em alguns aspectos o ministério na Pereia (cap. 10) 446
assemelha-se mais ao grande ministério galileu que ao ministério do
retiro. Em geral, Jesus já não Se aparta da multidão. Na realidade, é
evidente que grandes multidões reuniam-se para O escutar, como denota
a presente passagem (Mc. 10:1; e também segundo Mc. 10:46; cf. Mt.
19:2, 13; 20:29, 31; Lc. 18:15, 36, 43). Cura os doentes, tal como o fez
anteriormente na Galileia e seus arredores. Sempre está disposto para
curar e Seu amor ultrapassa todos os limites.
Entretanto, em Marcos 10:1 não se mencionam as curas, como o faz
Mateus 19:2, e sim o ensino. Vemos, então, que durante este ministério,
as curas e o ensino andam de mãos dadas. Sempre que uma multidão se
reunia em torno de Jesus, Ele costumava 447 ensiná-los. Entretanto, não se
deve passar por alto que, embora a presente passagem refira-se ao ensino
que Jesus comunica às multidões, durante o ministério na Pereia Jesus
continua o ensino e a preparação intensiva dos Doze, fato que foi a
característica principal do Ministério do Retiro (veja-se os vv. 10–12, 14,
15, 23–27, 29–31, 32–34, 38–45).
2. E, aproximando-se alguns fariseus, o experimentaram,
perguntando-lhe: 448 É lícito ao marido repudiar sua mulher?
Anteriormente já nos encontramos com os fariseus e pudemos ver
sua hostilidade para com Jesus (Mc. 2:6, 24; 3:6, 22; 7:1–5; 8:11). Sua
intenção agora é prender a Jesus com alguma armadilha, pô-Lo em
ridículo, e assim desprestigiá-Lo a olhos do povo, de modo que as

446
Se se deseja ser exato, a passagem de Mc. 10:46–52 deveria excluir-se deste ministério, porque
Jericó estava a oeste do Jordão. Entretanto, por razões práticas esta exclusão não é necessária.
447
ε_ώθει, 3ª. pes. sing. de ε_ωθα; do obsoleto _θω. Cf. ethos, ética. O mais-que-perfeito tem sentido
de imperfeito. Veja-se Robertson, p. 904.
448
Ou: tentando pô-lo em ridículo, perguntaram-lhe …
Marcos (William Hendriksen) 485
multidões O abandonem. Estavam convencidos que sua pergunta,
qualquer que fosse o modo de respondê-la, criaria para Jesus um sério
problema. Para entender isto, devem considerar-se os seguintes fatos:
Entre os judeus havia diferença de opinião quanto ao que Moisés
tinha ensinado a respeito do problema do divórcio. Moisés tinha escrito,
“Se um homem tomar uma mulher e se casar com ela, e se ela não for
agradável aos seus olhos, por ter ele achado coisa indecente (erwath da-
ba-r) nela, e se ele lhe lavrar um termo de divórcio …” (Dt. 24:1). Mas o
que quer dizer com erwath da-ba-r? Significa “coisa escandalosa”?
Outras hipóteses são “coisa indecente”, “coisa indecorosa”, “conduta
indecorosa”, “algo ofensivo”, “coisa vergonhosa” (Septuaginta), etc.
Segundo o rabino Shammai e seus seguidores referia-se à falta de
castidade ou adultério.
Segundo a escola do rabino Hillel e seus discípulos o significado
era muito mais amplo. Eles sublinhavam as palavras, “se ela não for
agradável aos seus olhos” e, portanto, aprovavam o divórcio inclusive
por razões muito fúteis, de modo que um marido podia rejeitar a sua
esposa se ela lhe servia casualmente um alimento que estivesse
ligeiramente queimado, ou se falava em casa tão alto que os vizinhos
pudessem ouvi-la. Se Jesus apoiasse a interpretação mais estrita de
Shammai, teria desagradado os seguidores de Hillel. Além disso, parecia
que havia muitíssimos — talvez inclusive estes mesmos fariseus (cf. Mt.
19:7) — que estavam de acordo com a opinião “liberal” de Hillel.
Também os discípulos podiam ter compartilhado deste ponto de vista
(veja-se Mt. 19:10). Além disso, se o Senhor favorecesse o partido de
Shammai, os fariseus poderiam acusá-Lo de ser incongruente, visto que
se associava com pecadores e comia com eles.
Por outro lado, se Jesus apoiasse a interpretação lassa — “qualquer
coisa é razão válida para o divórcio” — o que pensariam dEle os
discípulos de Shammai? Não O acusaria a gente mais séria e reta de
tolerar a frouxidão moral? E o que pensaria dEle o setor feminino do
povo?
Marcos (William Hendriksen) 486
Jesus lhes faz ver que a intenção básica da pergunta é errônea. Por
que tanta preocupação a respeito da possibilidade do divórcio, como se
fosse dito: “Se este casamento não der certo, tenho sempre a
possibilidade de me divorciar de minha esposa”? Por que não ir além de
Deuteronômio 24, até a ordenança do casamento expressa em passagens
tais como Gênesis 1:27 e 2:24?
3, 4. Ele lhes respondeu: Que vos ordenou Moisés? Tornaram
eles: Moisés permitiu lavrar carta de divórcio e repudiar.
À primeira vista parece que existia um conflito entre Mateus e
Marcos. Mas a verdadeira situação é a seguinte: Em ambos os
Evangelhos são os fariseus os que expõem o problema a respeito do
divórcio (cf. Mt. 19:3 com Mc. 10:2). Em Marcos, Jesus lhes responde
com uma pergunta, ou seja, “Que vos ordenou Moisés?” Eles
responderam, “Moisés permitiu …”. Jesus conclui a conversação
respondendo: “Por causa da dureza do vosso coração, ele vos deixou
escrito esse mandamento; porém, desde o princípio da criação, Deus os
fez homem e mulher. … o que Deus ajuntou não separe o homem”. Pelo
contrário, Mateus abrevia. Omite a pergunta de Cristo: “Que vos
ordenou Moisés?”. Esta omissão de modo algum é grave, porque em
ambos os relatos se reconhece a postura dos fariseus: “Moisés permitiu
[ao homem] lavrar carta de divórcio …” (cf. Mt. 19:7 com Mc. 10:4),
embora só Marcos deixa claro que esta postura se exteriorizou
verbalmente, em resposta à pergunta de Cristo. Não havia nada que
impedisse os fariseus de reafirmar esta postura à maneira de pergunta,
“Por que mandou, então, Moisés …?” (Mt. 19:7). Além disso, enquanto
Mateus, como o faz com frequência, narra a história rapidamente como
um todo, Marcos mostra que a sentença, “Quem repudiar sua mulher …”
(v. 11) foi pronunciada por Jesus quando estava numa casa e em resposta
a uma pergunta de Seus discípulos (vv. 10:11). Mateus (Mt. 19:9) inclui
também este pronunciamento autoritativo em seu relatos, mas como
dirigido aos fariseus. Entretanto, Jesus pôde ter dito estas palavras duas
Marcos (William Hendriksen) 487
vezes; primeiro aos fariseus; mais tarde aos discípulos. Quanto a
“mandou”, veja-se sobre Marcos 13:34.
Os fariseus responderam a pergunta de Jesus dizendo: “Moisés
permitiu [ao homem] lavrar carta de divórcio e repudiar.” Esta regra
mosaica (Dt. 24:1ss.) foi interpretada por muitos — incluindo
provavelmente alguns dos fariseus — como querendo dizer: “Se você
quer divorciar-se de sua esposa por qualquer razão, pode fazê-lo, mas
assegure-se de lhe dar carta de divórcio”. Entretanto, o significado
verdadeiro desta passagem é o seguinte: “Marido, melhor é que você
pense duas vezes antes de rejeitar a sua esposa. Lembre que uma vez que
a tenha rejeitado e ela seja esposa de outro, você já não poderá voltar a
tomá-la; nem ainda quando esse outro marido a tivesse rejeitado ou
tivesse morrido”. Moisés tinha mencionado o “certificado de divórcio”
só de passagem, mas os escribas e fariseus punham toda a ênfase nele.
Enquanto eles sempre faziam insistência na concessão mosaica, Jesus
ressaltava constantemente o princípio, ou seja, que o marido e a esposa
são e devem permanecer um.
Isto se vê claro pelo que segue nos versículos
5–8. Mas Jesus lhes disse: Por causa da dureza do vosso coração, ele
vos deixou escrito esse mandamento; porém, desde o princípio da criação,
Deus os fez homem e mulher. Por isso, deixará o homem a seu pai e mãe e
unir-se-á a sua mulher, 449 e, com sua mulher, serão os dois uma só carne.
Moisés fez todo o possível contra o divórcio. Foi somente pela 450
dureza e insistência do coração, 451 a grosseria e rudeza da gente, que
Moisés fez esta concessão. Foi uma concessão de misericórdia para o
449
Embora “e se unirá a sua esposa” se omite em alguns manuscritos, bem pode ser autêntico, como
indubitavelmente é em Mt. 19:5.
450
πρός no sentido de “em consideração a”, “por causa do Cf. um significado algo parecido (“com
respeito a”) em At. 24:16; Rm. 10:21a; Hb. 1:7ss.
451
Note-se σκληροκαρδία, tanto aqui como em Mt. 19:8. É a combinação de σκληρός “duro” e
Καρδία “coração”. Quanto a σκληρός (cf. arteriosclerose), veja-se também Mt. 25:24, um homem
duro, quer dizer, áspero, severo, inexorável; Jo. 6:60, uma mensagem dura (de aceitar); At. 26:14,
“dura coisa te é recalcitrar contra o aguilhão”; Tg. 3:4, levados por impetuosos ventos, quer dizer,
fortes ventos; e Jd. 15, duras ou severas palavras.
Marcos (William Hendriksen) 488
bem da mulher, pois sem esta regra um homem rude poderia sentir-se
impulsionado a se despedir de sua esposa inclusive sem lhe dar evidência
escrita alguma de que já não estava casada.
Agora, os fariseus se mostram muito mais interessados na
concessão de Deuteronômio 24, que na criação e a instituição do
casamento de Gênesis 1:27 (cf. 5:2); 2:24. Jesus aponta à ordenança
original, quer dizer, à forma em que as coisas foram “desde o princípio
da criação”. Nesse princípio, Deus criou primeiro Adão e depois Eva.
Adão foi criado diretamente como varão e, portanto, com miras à união
íntima com Eva, a qual foi criada depois do mesmo corpo de Adão,
como fêmea. Em consequência, cada um foi feito para o outro, com o
propósito definido de juntá-los; um homem com uma mulher. Os que
desejam o divórcio passam por alto este fato. Deus ordenou que a união
entre o homem e a mulher fosse muito íntima e os fez a ambos um para o
outro (vejam-se Gn. 1:27 e 2:23). É por isso que o homem deixará a seu
pai e mãe, e o fará com miras a uma nova relação mais íntima e
duradoura, quer dizer, “e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só
carne”; sim, “já não são mais dois, mas sim uma carne”, diz Jesus.
É evidente que Jesus considerava Gênesis 2:24 (em combinação
com Gn. 1:27) como uma ordenança divina, e não como uma mera
descrição do que geralmente tem lugar na terra. Não se violenta o
original hebraico de Gênesis 2:24, se introduzir-se na tradução a ideia
desta divina instituição. Deve-se traduzir: “deixará o homem … e se
unirá” (RA, cf. CI, NC,), e não tão somente “deixa … e une-se” (CB, cf.
BP, LT, BJ, NBE). Em consequência, a tradução adotada pela RA para
Gn. 2:24 deve ser preferida.
Não há dúvida de que Jesus considerava o casamento como uma
união indissolúvel, mudando o que antes eram “dois” no que agora é
“um”. Note-se: De modo que já não são dois, mas uma só carne. É
uma união que dura até que a morte os separe, é uma instituição divina
que não deve ser alterada. Isto se vê claro pelo que segue: a. Se não fosse
assim, o argumento perderia sua força; b. A concorrência não
Marcos (William Hendriksen) 489
necessitava que se dissesse que para a pessoa casar-se é um costume; e c.
Isto está em harmonia com as palavras que imediatamente seguem, ou
seja,
9. Portanto, o que Deus ajuntou não separe o homem.
Isto não quer dizer que uma pessoa peca se prefere ficar solteira.
Antes, significa que os que decidem casar devem considerar o casamento
como uma instituição divina, na qual ambos devem conduzir-se de tal
maneira que a verdadeira união não só se estabeleça mas também que se
cimente cada dia com mais firmeza. O casamento é uma união, por certo,
sexual (note-se “unir-se-á à sua mulher”), mas também intelectual,
moral, e espiritual. E é esta união que se deve cuidar.
Foi Deus quem fez possível esta união (Gn. 1:27). Foi Deus quem
pronunciou o mandamento: “Frutificai …” (Gn. 1:28). Foi Ele quem
disse: “Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma auxiliadora
que lhe seja idônea” (Gn. 2:18). Foi Deus quem levou Eva para que se
case com Adão (Gn. 2:22). Sem dúvida alguma, e de todas as
perspectivas, foi Deus quem estabeleceu o casamento como instituição
divina (Gn. 2:24; Mt. 19:5, 6). O casamento é, portanto “um estado
honroso” Portanto, o que Deus uniu não o separe o homem! 452
Jesus confirma a indissolubilidade do casamento de forma muito
enfática. As palavras “Portanto” ou “Por esta razão” demonstram que
está resumindo a revelação divina a respeito do vínculo conjugal. Note-
se “uniu”. 453 Segundo o ensino de Cristo, então, o marido e sua esposa
formam uma equipe. Juntos trabalham, planejam, oram, desfrutam,
esforçam-se, etc. Que um homem separe o que Deus juntou ou uniu num
jugo, significa desafiar arrogantemente um ato de Deus!

452
Veja-se também W. A. Maier, For Better Not for Worse (St. Louis, 1935), pp. 80, 81; y cf. CNT
sobre Ef. 5:22, 23; y M. Lloyd-Jones, La vida en el Espíritu (Libros Desafío: Grand Rapids, 1983).
453
συνέζενξε aor. ind. 3ª. pes. sing. de συζεύγνυμι; literalmente, “unir-se em jugo”. Um ζε_γος (cf.
ζυγός) é um jugo (de bois, cavalos, etc.); ou um par (de pombinhos, Lc. 2:24).
Marcos (William Hendriksen) 490
Num mundo onde um divórcio segue-se a outro em rápida sucessão,
de tal forma que às vezes é difícil contar o número de vezes que uma
pessoa se divorciou, o ensino de Jesus merece ser repetido e ressaltado.
10–12. Em casa, voltaram os discípulos a interrogá-lo sobre este
assunto. E ele lhes disse: Quem repudiar sua mulher e casar com outra
comete adultério 454 contra aquela. E, se ela repudiar seu marido e casar
com outro, comete adultério. 455
Entre os versículos 2–9, por um lado, e os versículos 10–12 por
outro, existem as seguintes diferenças: a. Na primeira passagem Jesus
está falando com os fariseus, na segunda aos discípulos; b. Na primeira
está fora, na segunda dentro de uma casa; e c. Na primeira fala a respeito
do divórcio, na segunda a respeito do divórcio seguido pelo casamento
com outra pessoa. Mateus 19:10 poderia indicar que os discípulos de
Cristo se inclinavam a favor da posição relaxada de “casa-te e divorcia-
te” que ensinava Hillel. Por isso, perguntam ao Mestre outra vez a
454
Ou: envolve-se ele mesmo (e em v. 12: ela) em adultério.
455
Com relação à gramática e ao vocabulário, note-se o seguinte: Em primeiro lugar, quanto ao v. 10,
no Novo Testamento como em outros lugares, a preposição ε_ς tem outros vários significados além de
em (dentro) e para onde. Aparece às vezes onde se espera _ν. Em tais casos, como aqui, significa
simplesmente em. Mas veja-se também CNT sobre Mateus, pp. 1049, 1050.
No v. 11 _πολύσ_ é aor. subj. at. 3ª. pes. sing. de _πολύω, que neste caso significa despedir, divorciar.
Note-se que tanto aqui como no v. 12 γαμήσ_ tem a mesma construção que _πολύσ_. Além disso, em
ambos os versículos o verbo μοιχ_ται (pres. ind. medeia, 3ª. pes. sing. de μοιχάω), quer dizer que ele
(v. 11) e ela se envolvem (v. 12) ou se tornam culpados de adultério, em consequência cada um
comete adultério. O Novo Testamento usa só as formas passivas meias, mas também tem μοιχεύω.
Onde quer que seja possível fazer uma distinção entre μοιχεία e πορνεία, a primeira faz referência ao
adultério, quer dizer, refere-se à relação sexual do pecador com alguém que não seja seu cônjuge. O
termo πορνεία é muito mais amplo em significado e se refere basicamente a toda imoralidade sexual.
Assim, a imoralidade sexual voluntária que só envolve pessoas solteiras seria πορνεία, não μοιχεία.
Entretanto, a conotação exata de cada uma destas palavras depende em cada caso particular do
contexto. Há vários significados derivados. Assim que μοιχεία pode indicar falta de castidade em
pensamento, olhar ou gestos; note-se o verbo _μοίχευσε em Mateus 5:28. Quanto a πορνεία, πορνεύω,
veja-se CNT sobre Mt. 19:9 e nota 684. Quanto ao significado de μοιχάω = μοιχεύω (Mt. 5:32), veja-
se CNT sobre Mt. 5:32; também Thayer, p. 417; Liddel-Scott, A Greek English Lexicon, Londres, etc.,
Vol. II, p. 1141; e F. Hauck, TDNT, vol. IV, pp. 729–735, especialmente o começo da página 730.
Referente a um ponto de vista algo diferente, veja-se BAGD, p. 528.
No v. 12 observe-se _πολύσασα, ptc. aor. at. nom. sing. fem. de _πολύω. O versículo 12 é uma
cláusula condicional de terceira classe (um futuro mais vivo).
Marcos (William Hendriksen) 491
respeito deste assunto. Desta vez não são os fariseus os que fazem a
pergunta, mas os próprios discípulos de Jesus. Como já se disse, a
resposta que lhes dá é essencialmente a mesma que Ele deu aos fariseus
(cf. Mt. 19:9 com Mc. 10:11). Mas com a diferença que nesta
oportunidade omite a exceção que encontramos em Mateus 5:32 e 19:9
(veja-se CNT sobre estas passagens). A exceção não muda o fato
fundamental, ensinado em ambos os Evangelhos, de que aos olhos de
Deus (quer dizer, idealmente considerado) o casamento é indissolúvel.
O que Jesus diz no versículo 11 é que um marido que se divorcia de
sua esposa, separando assim o que Deus juntou, está cometendo um
pecado gravíssimo e que agrava seu pecado ao casar-se com outra. Tal
marido está pecando não só contra Deus, mas também contra sua esposa:
está cometendo adultério contra ela; ou, “a expõe a tornar-se adúltera”,
conforme o indica o mesmo pensamento expresso em Mateus 5:32.
Neste ponto Marcos acrescenta algo que não se acha em Mateus.
Marcos indica que Jesus também aplica a mesma regra à esposa que, sem
respeito à divina ordenança, divorcia-se de seu marido.
A que se deve esta diferença entre Mateus e Marcos? Resposta:
Mateus escrevia principalmente para os judeus, entre os quais não era
comum que uma esposa divorciasse do seu marido. O pouco comum do
caso explica por que a lei não fez provisão alguma para esta
possibilidade. Contudo, para os judeus, ou para os que se achavam em
estreita relação com eles, não foi totalmente desconhecido que uma
esposa divorciasse do seu marido. Por exemplo, quando Josefo fala a
respeito de Salomé, a ímpia irmã de Herodes, o Grande (veja-se CNT
sobre Mt. 2:3 e nota 167), diz: “Tempo depois Salomé teve uma rixa
com (seu marido) Costobareo, e logo lhe enviou um documento
dissolvendo seu casamento, ação que não estava de acordo com a lei
judaica. Porque é (somente) o marido a quem é permitido fazer isto”
(Antiguidades XV. 259).
Salomé, por sua vez, tinha uma sobrinha-neta chamada Herodias
(veja-se CNT sobre Mt. 2:22, 23 e o gráfico). Já se assinalou (Mc. 6:17,
Marcos (William Hendriksen) 492
18) que ela havia rejeitado a seu marido Herodes Filipe e se casou com
Herodes Antipas. Herodias era parcialmente judia.
Mas o que era uma exceção entre os judeus, era muito comum entre
gregos e romanos (cf. 1Co. 7:10, 13) e muito comum hoje também. O
princípio que Jesus enuncia aqui é que tais violações da sagrada
instituição do casamento, tanto se são cometidas pelo marido como pela
esposa, são adultério, são uma abominação aos olhos do Autor da
criação e da ordenança do casamento (Gn. 1:27; 2:24; 5:2).
Assim que por meio de umas poucas e singelas palavras, Jesus
desaprova o divórcio, refuta a errônea interpretação rabínica da lei,
reafirma o verdadeiro significado dela, censura a parte culpada, defende
o inocente, e sobretudo defende a santidade e inviolabilidade do vínculo
conjugal conforme foi ordenado por Deus.
Umas poucas observações adicionais vêm ao caso:
a. Nos versículos 11, 12 os direitos do marido e da esposa se
colocam no mesmo nível. Diante de Deus ambos têm o mesmo valor. É o
marido “herdeiro da graça da vida”? A esposa é “co-herdeira” (1Pe. 3:7).
Ela não é propriedade do marido, mas sua companheira. Naturalmente
que o marido continua sendo “cabeça da esposa” (Ef. 5:22, 23), mas aos
olhos de Deus ambos são igualmente preciosos. Uma esposa que pela
soberana graça de Deus recebeu a Jesus como Senhor e Salvador, não
sente necessidade alguma de unir-se ao chamado “movimento de
libertação feminina”. A Bíblia lhe oferece algo muito melhor.
b. Por um lado, Jesus considera a ruptura de um casamento como
um problema extremamente grave, uma abominação. Entretanto, o
próprio Senhor inflexível é também o Salvador misericordioso que
consola o coração do pecador penitente dizendo: “Vai-te, e não peques
mais” (Jo. 8:10, 11). 456
c. Poderia perguntar-se se existe alguma conexão de pensamento
entre a parte final de Marcos 9 (“e estai em paz uns com os outros” Mc.

456
Com relação à autenticidade de Jo. 7:53–8:11, veja-se CNT sobre João, pp. 297–299.
Marcos (William Hendriksen) 493
9:50, TB) e o parágrafo que dá começo a Marcos 10 (os vv. 1–12). É
provável que não; mas, não é o casamento cristão a instituição divina
onde a paz e o amor, a harmonia e a devoção, desdobram-se
maravilhosamente … como pode testificar todo casal cristão feliz?

Mc. 10:13–16 - Jesus e as crianças


Cf. Mt 19:13–15; Lc. 18:15–17

Tanto se assemelham os relatos dos três Evangelhos que é muito


provável que entre eles haja uma relação literária. Por outro lado, quando
são comparados também se descobre que cada Evangelho tem um caráter
tão próprio que é evidente que, sob a direção do Espírito Santo, cada
evangelista selecionou seu material como creu mais conveniente.
Onde Marcos (10:13) e Lucas têm “para que os tocasse”, Mateus
entrega uma explicação mais completa: “para que lhes impusesse as
mãos e orasse”. No versículo 14, Marcos informa que Jesus “indignou-
se” ao ver Jesus a conduta mal educada dos Seus discípulos. Esta
informação não tem paralelo nem em Mateus nem em Lucas. Nem
Mateus nem Marcos registram a observação de Lucas: “Jesus, porém,
chamando-as [as crianças e os que as traziam] para junto de si”. O
bondoso convite de nosso Senhor, “Deixai vir a mim os pequeninos …”
se reproduz de forma quase idêntica nos três Evangelhos. Marcos 10:15
(= Lc. 18:17) não se acha em Mateus, mas cf. Mt. 18:3. Neste ponto o
relato de Lucas termina. Mateus 19:15 acrescenta: “E, tendo-lhes
imposto as mãos, retirou-se dali”. Só Marcos conservou o belo e
inesquecível detalhe: “E, tomando-as nos seus braços e impondo-lhes as
mãos, as abençoou” (v. 16, RC). Seja qual for a opinião sobre a
possibilidade de uma relação entre a última cláusula de Mc. 9:50 e o
parágrafo que abre o capítulo 10, vê-se ao olhar simplesmente que a
sequência é apropriada: casamento (Mc. 10:1–12), crianças (Mc. 10:13–
16), e bens (Mc. 10:17–31).
13. Então, lhe trouxeram algumas crianças para que as tocasse.
Marcos (William Hendriksen) 494
Note-se a ausência total de dados a respeito de tempo e lugar.
Baseados em Mc. 10:1, 32, é razoável supor que o fato que aqui se relata
teve lugar numa casa na Pereia enquanto Jesus e os Doze viajavam de
direção sul para Jerusalém. Foi talvez a casa mencionada em Mc. 10:10?
Desenvolveram-se os dois acontecimentos (vv. 1–12, 13–16) em
sucessão imediata?
Lucas 18:15 deixa claro que as “crianças” que levavam 457 a Jesus na
realidade eram infantes.
Presumivelmente, os pais e outros parentes próximos, levaram as
crianças a Jesus “para que os tocasse”, isto é, para que Ele pusesse as
mãos sobre eles enquanto rogava a bênção do Pai.
O fato de que Cristo os tocasse não era um ato de magia. As
crianças recebiam a bênção principalmente por meio da ação que seguia,
quer dizer, a oração. Em todo caso, este ato deve ter sido muito tenro.
Era muito mais que um mero tocar, conforme o indica claramente o
versículo 16. Podia considerar-se, então, como parte da bênção que os
crianças recebiam. Veja-se também em 1:41.
Mas os discípulos os repreendiam 458 [aos que os traziam].
Naturalmente, não repreendiam às crianças, mas aos seus pais e em geral
a todos os que os traziam. Estavam os discípulos junto à porta da casa
(cf. Mc. 10:10), rejeitando com gesto de irritação os que se aproximavam
com crianças nos braços? A reação dos discípulos era algo característico
neles: não queriam que fossem incomodados; tampouco queriam que seu
Mestre fosse importunado por criaturas tão insignificantes (?) como
aqueles infantes! Veja-se mais acima sobre 6:37a.
14. Jesus, porém, vendo isto, indignou-se.

457
O impessoal “lhe trouxeram crianças” de Marcos soa mais semita (cf. Dn. 4:25, 32) que o “lhe
foram apresentadoa algumas crianças”, mas o significado é o mesmo.
458
_πετίμησαν, aor, ind. at. 3ª. pes. pl. de _πιτιμάω. Basicamente a palavra significa impor um τιμή
(castigo) _πί (sobre). No sentido de repreendiam, esta palavra aparece também em 1:25; 4:39; 8:32,
33; 9:25. O significado advertiu deve atribuir-se a este verbo em 3:12; 8:30; 10:48.
Marcos (William Hendriksen) 495
Jesus se precaveu da reação de uma parte dos Doze, e não Lhe
agradou em nada. Na realidade, “indignou-se”. 459 Veja-se Mc. 3:5, onde
se usa um sinônimo. Observe-se também o que se diz a respeito do
profundo suspiro de Cristo (Mc. 8:12) e cf. Mc. 14:33ss. Naturalmente
que a indignação de nosso Senhor tinha uma estreita relação com Seu
amor. Estava zangado com os Seus discípulos porque amava tão
profunda e meigamente os pequeninos e os que os traziam.
Continua: e disse-lhes: Deixai vir a mim os pequeninos, não os
embaraceis, porque dos tais é o reino de Deus. “Deixai 460 vir a mim os
pequeninos”. A razão que Jesus dá para ordenar a Seus discípulos que
deixem as crianças vir a Ele e não os impedir é: “porque dos tais — quer
dizer, deles e de todos os que em humilde confiança são como eles — é
o reino de Deus”. Quanto ao significado “reino de Deus”, veja-se sobre
Mc. 1:15. Neste caso, o versículo significa que, em princípio, todas as
bênçãos da salvação pertencem a partir de agora mesmo a estes
pequeninos, o que é um fato que se realiza de forma progressiva aqui na
terra, e se torna perfeito na eternidade.
15. Em verdade vos digo: Quem não receber o reino de Deus
como uma criança de maneira nenhuma entrará nele.
A fórmula introdutória se explica em Mc. 3:28. Receber o reino de
Deus como uma criança significa aceitá-lo com simplicidade autêntica e
confiante, com humildade e sem pretensões.
No batente exterior de uma janela havia uma pilha de moedas de
ouro. Um letreiro dizia “tome una”. As pessoas estiveram todo o dia
passando por essa janela e ao olhar pensavam entre si: “De mim não vão
zombar, não passarei vergonha”. Chegou o anoitecer, assim que o dono
de casa se dispôs a retirar as moedas. Mas precisamente antes de fazê-lo,
459
_γανάκτησε, 3ª. pes. sing. aor. ind. de _γανακτέω. Vejam-se também 10:41; 14:4; cf. Mt. 20:24;
21:15; 26:8; Lc. 13:14. O verbo se deriva de _γαν, muito (cf. o lema que insiste com a moderação em
todas as coisas: μηδ_ν _γαν, “de nada muito”), e _χομαι, estar aflito (cf. angústia).
460
O verbo _φετε é um aor. impv. at. 2ª. pes. pl. de _φίημι. Há uma leve diferença entre a fraseologia
de Mc. 10:14; Lc. 18:16, por um lado, e Mt. 19:14 por outro. Mt. 19:14 diz literalmente, “Deixem às
crianças sós e deixem de detê-las” – la diferença não é fundamental.
Marcos (William Hendriksen) 496
passou uma criança, leu o letreiro, e tranquilamente e sem a menor
vacilação, tomou uma!
Houve uma porção de discussão a respeito do significado exato das
palavras tal como estão no original. Gramaticalmente a expressão
poderia ser lida como se significasse: “Qualquer que não receber o reino
de Deus como se recebe uma criança jamais entrará nele”. Mas o próprio
contexto e também as passagens quase paralelas como Mateus 11:25;
18:3 (cf. Jo. 3:3, 5) mostram claramente que Jesus está falando a respeito
da forma singela, humilde, livre de dúvida e confiante com que uma
criança aceita o que lhe é oferecido.
Outra interpretação que parece atrativa mas que é provavelmente
errônea é a seguinte:
“Qualquer que não receber o reino presente como uma criança,
jamais entrará no reino futuro”. A divisão do reino em duas fases dentro
de uma breve cláusula é forçada. Muito mais simples é o significado: a
única forma possível de entrar no reino é aceitando-o de boa vontade e
confiantemente, como uma criança o aceitaria.
O reino consiste no reinado de Deus no coração e na vida, junto
com todas as bênçãos resultantes deste reinado. O paralelismo de Marcos
9:45; 9:47 — veja-se sobre essas passagens — já deixou claro que
“entrar no reino” significa “entrar na vida eterna”. E uma comparação
entre Mateus 19:24 e Mateus 19:25 mostra que “entrar no reino de Deus”
equivale a “ser salvo”. Segundo João 17:3 - “E a vida eterna é esta: que
te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem
enviaste”. Este tipo de conhecimento ou comunhão com Deus supõe ter
livre acesso ao trono da graça (Rm. 5:2; Hb. 4:6), experimentar o amor
de Deus que é derramado em nossos corações pelo Espírito Santo (Rm.
5:5), ser transformado à imagem de Cristo (2Co. 3:18), ser iluminado
pela luz do conhecimento da glória de Deus na face de Jesus Cristo
(2Co. 4:6), possuir a paz de Deus que ultrapassa todo entendimento (Fp.
4:7) e a alegria inefável e gloriosa (1Pe. 1:8). E quando Cristo voltar, Ele
nos acrescentará um corpo transformado e um novo céu e terra, tanto
Marcos (William Hendriksen) 497
para o corpo como para a alma (Rm. 8:23; Ef. 1:14; Fp. 3:21; 2Pe. 3:13;
Ap. 21:1ss.).
16. E, tomando-as nos seus braços e impondo-lhes as mãos, as
abençoou [RC].
Mediante o cuidadoso uso dos tempos gramaticais, 461 Marcos
descreve um belo quadro, como se verá claramente.
Não só havia Jesus repreendido os Seus discípulos por tratar de
impedir que Lhe trouxessem os pequeninos, mas também havia chamado
junto a si aquelas infantes e os que os traziam (Lc. 18:16). E a seguir
cada mãe ou pai, etc., levou seu pequeno diante da presença imediata de
Jesus; quer dizer, cada um alternadamente. O Mestre toma o primeiro
pequenino em um de Seus braços e põe a outra mão sobre sua cabeça.
Logo meigamente — ou fervorosamente — o abençoa, pronunciando
uma breve mas sincera oração ao Pai, para que assim derrame Sua
bênção sobre a criança (provavelmente implícito em Mt. 19:13). Ao
fazer isto, Seu coração sente um grande amor e compaixão pelo
pequenino. Fazendo isto, devolve a criança à pessoa que o trouxe.
Depois procede com o seguinte da mesma forma, logo com outro, até
que todos receberam a bênção. Deve ter sido uma cena impressionante,
consoladora, e memorável.
Não se deve passar por alto o fato de que o Senhor considerasse
aqueles pequeninos que levavam a Ele como já “no” reino, como já
membros de Sua igreja. Evidentemente, não os considerou como
“pagãozinhos”, que viviam fora do reino dos salvos até que por um ato
de vontade própria se “unissem à igreja”. Via-os como “semente santa”
(veja-se 1Co. 7:14). Quão maravilhoso deve ter sido quando, em anos
posteriores, aqueles pais crentes puderam dizer àquelas crianças, já em
idade de discernimento: “Pense, meu filho, quando você foi só um bebê,
o próprio Jesus tomou-o em Seus braços e o abençoou. Você já foi
461
_ναγκαλισάμενος, ptc. aor. Veja-se sobre 9:36, nota 426. κατευλόγει é uma expansão intensiva do
verbo ε_λογέω. Marcos usa o tempo imperfeito, e por causa do contexto este imperfeito é
provavelmente iterativo; τιθείς, ptc. pres. at. de τίθημι.
Marcos (William Hendriksen) 498
objeto do tenro amor de Deus. Ele esteve com você desde então. Qual é
agora sua resposta?”
Com base em passagens tais como Mc. 10:13, 14 — a que devem
acrescentar-se Gn. 17:17, 12; Sl 103:17; 105:6–10; Is. 59:21; At. 2:38,
39; 16:15, 33; 1 Cor. 1:16; Cl. 2:11, 12 — deve considerar-se como bem
fundada a crença de que devido ao fato de que os filhos dos crentes
pertencem à igreja de Deus e à Sua aliança, não se deve privá-los do
batismo que é sinal e selo de tal pertinência. Em anos posteriores,
mediante a instrução dos pais aplicada ao coração pelo Espírito Santo,
esta bênção divina recebida na infância chega a ser um poderoso
incentivo para uma sincera rendição pessoal de todo coração a Cristo.

O que Cristo fez pela família


1. Honrou o vínculo conjugal, declarando sua indissolubilidade
como instituição divina (Mc. 10:5–9)
2. Outorgou ao marido e à esposa direitos iguais diante de Deus
(Mc. 10:11, 12).
3. Deu por sentado que os pais devem ser amáveis com seus filhos,
e prover o que é melhor para eles (Mt. 7:9–11).
4. Em contraposição aos fariseus, ressaltou de novo a norma divina
que estabelece que os filhos devem honrar a seus pais (Mc. 7:6–13).
5. Reforçou esta regra com seu próprio exemplo, sendo obediente a
seus pais, e ainda se preocupou meigamente por sua mãe desde a própria
cruz (Lc. 2:51; Jo. 19:26, 27).
6. Amou os pequeninos, tomou-os em seus braços, e os abençoou
meigamente (Mc. 10:13–16).
7. Quando as crianças gritavam Hosanas em Sua honra, defendeu-as
diante dos principais sacerdotes e os escribas (Mt. 21:15, 16).
8. Insistiu, entretanto, que os laços que pertencem à vida familiar
terrestre são substituídos pelos que unem estreitamente os membros da
família espiritual (Mc. 3:31–35; cf. Mt. 7:11; 10:37; e veja-se CNT sobre
Marcos (William Hendriksen) 499
Ef. 3:14, 15). Em consequência, considerou a família terrestre como
escola de aprendizagem para a celestial.

Mc. 10:17–31 - O perigo das riquezas e a recompensa do sacrifício


Cf. Mt. 19:16–30; Lc. 18:18–30

Os eruditos compararam o relato de Marcos com o de Mateus, e isto


produziu por muitos anos uma forte controvérsia. Em consequência, é
importante que antes de entrar na exegese das passagens individuais
demos alguns dados estatísticos.
Um estudo comparativo revela imediatamente que o relato de
Marcos é muito mais extenso e mais detalhado que os outros dois. De
acordo com o GNT, Marcos usa 270 palavras, Mateus 234 (depois de
subtrair do total a passagem de Mt. 19:28 que não tem paralelo em
Marcos) e Lucas 201. Fica imediatamente claro que tanto Mateus como
Lucas devem ser considerados como relatos abreviados. Este processo de
abreviação afeta não só um detalhe — como, por exemplo, Mt. 19:16,
17a, cf. Mc. 10:17b, 18 — mas ao relato inteiro, do começo até o final.
Quanto à passagem que se acaba de mencionar, veja-se mais abaixo,
sobre Mc. 10:17, 18.
Continuando com Mateus 19, observamos que nos versículos 18, 19
o ex-publicano omite “não defraudarás” (Mc. 10:19), mas acrescenta o
sumário da segunda tábua do decálogo: “Amarás o teu próximo como a
ti mesmo”. No versículo 20, Mateus abrevia outra vez, omitindo a frase
de Marcos “desde que era criança”, mas acrescenta: “(o jovem lhe disse:)
… o que mais me falta?”. Ou com mais exatidão, segundo Mateus 19:20
este “faltar” é acima de tudo um assunto a respeito do qual o jovem
pergunta. O mandamento de Cristo segue no versículo 21. Segundo
Marcos 10:21, trata-se simplesmente de um assunto sobre o qual Jesus
pronuncia um mandamento.
Em ambos os Evangelhos (Mt. 19; Mc. 10), os versículos 21, 22 e
23 são quase o mesmo quanto a substância, embora cada evangelista
Marcos (William Hendriksen) 500
empregue sua própria fraseologia. Entretanto, no versículo 21, Mateus
relata que Jesus diz as palavras “Se queres ser perfeito” como prefácio
ao mandamento que é dado ao jovem (cf. Mt. 5:48). Marcos, por outro
lado, faz com que o versículo comece com as inesquecíveis palavras, “E
Jesus, fitando-o, o amou”. Isto vai seguido por “Só uma coisa te falta:
Vai, vende …”. A triste partida do jovem é descrita no versículo 22,
sendo o significado idêntico em ambos os Evangelhos. Entretanto, bem
como outras vezes, a linguagem de Marcos é mais descritiva e
impactante: o jovem vai embora com o rosto abatido. No versículo 23,
tanto Mateus como Marcos registram a declaração de que para “um rico”
(assim em Mateus) ou para “os que têm riquezas” (assim em Marcos)
será difícil entrar no reino do “céu” (Mateus) ou de Deus” (Marcos). Mas
é Marcos novamente quem descreve mais vivamente a cena, dizendo,
“Jesus, olhando ao redor, disse …”.
A expressão “quão difícil” ou “será difícil”, Mateus a usa uma vez
(Mt. 19:23), Marcos duas vezes, embora com variações (Mc. 10:23, 24).
De maneira similar, Mateus relata uma vez a assombrada reação dos
discípulos (Mt 19:25), mas Marcos duas vezes (Mc. 10:24, 26). A
declaração de Cristo, “É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma
agulha do que entrar um rico no reino de Deus” (Mt. 19:24) é quase
idêntica à que se encontra em Marcos (Mc. 10:25). A exclamação dos
discípulos “Quem, pois, poderá ser salvo?” acha-se tanto em Mateus (Mt
19:25) como em Marcos (Mc. 10:26). Segundo Marcos (Mc. 10:27),
Jesus responde, “Para os homens [isto] é impossível; contudo, não para
Deus, porque para Deus tudo é possível”, resposta que Mateus
novamente coloca de maneira abreviada (Mt. 19:26).
Finalmente, Mateus acrescenta: “que receberemos?” (Mt. 19:27,
RC). Embora esta pergunta que não apareça em Marcos, quando se
compara o versículo 29 de Mateus com seus paralelos em Marcos,
versículos 29 e 30, fica claro que depois de “receberá cem mais”, Mateus
tem “e herdará a vida eterna”, enquanto Marcos tem não menos de 26
palavras (no original): “agora neste tempo: casa e irmãos …”. Compare-
Marcos (William Hendriksen) 501
se também o versículo 29 de ambos os Evangelhos (Mt. 19:29; Mc.
10:29): a frase de Marcos por amor de mim e por amor do evangelho”
está abreviada em Mateus, que diz “por causa do meu nome”.
Se nos voltamos agora ao relato de Lucas (Lc. 18:18–30), o que nos
chama a atenção é que não menos de três quartas partes das palavras
deste evangelista aparecem também no relato de Marcos. Parece muito
certa a teoria que afirma que ao escrever seu livro, Lucas tinha realmente
perante seus olhos o Evangelho de Marcos e que sob a guia do Espírito
Santo o adaptou para seu próprio uso.
Quanto às diferenças entre os relatos de Marcos e Lucas, no
fundamental são as seguintes: Ao comparar Marcos 10:17 com Lucas
18:18, resulta evidente que “o médico amado” omitiu a descrição gráfica
com que Marcos introduz o jovem rico. Entretanto, é Lucas quem nos
informa que o jovem rico era um “principal”. No versículo 20, Lucas
menciona o mandamento “Não cometerá adultério” antes de “Não
matarás”, e omite o que diz Marcos: “Não defraudarás”. No versículo 22,
Lucas omite a interessante declaração de Marcos: “E Jesus, fitando-o, o
amou”. No versículo 23, Lucas descreve o desiludido principal como
“muito triste” mas não repete a pincelada gráfica de Marcos, “retirou-se
triste”. Lucas nada tem que corresponda à frase de Marcos (Mc. 10:23)
“Jesus, olhando ao redor, disse …”. A observação de Jesus “Quão difícil
…”. menciona-se em Lucas só uma vez, não duas vezes (com variações)
como em Marcos 10:23, 24. Marcos menciona duas vezes a reação de
assombro dos discípulos (Mc. 10:24, 26), Mateus uma vez (Mt. 19:25) e
Lucas (Lc. 18:24–26) não faz menção alguma. Lucas usa uma palavra
diferente (no original) para “agulha” (veja-se o original grego do
versículo 25 tanto em Marcos como em Lucas). O versículo 27 em
Marcos e em Lucas ilustra a forma em que Lucas abrevia: Marcos diz,
“Jesus, porém, fitando neles o olhar, disse: Para os homens é impossível;
contudo, não para Deus, porque para Deus tudo é possível”. Lucas
escreve, “Os impossíveis dos homens são possíveis para Deus”. No
versículo 29 de ambos os Evangelhos, Lucas reduz a lista de sete
Marcos (William Hendriksen) 502
detalhes de Marcos a cinco, omitindo toda referência a irmãs e campos, e
também deixando fora “com perseguições”. Além disso, diferente de
Marcos 10:30, Lucas não repete a lista dos bens que se prometem. E em
lugar da expressão mais extensa de Marcos “por amor de mim e por
amor do evangelho”, Lucas escreve algo mais breve: “por causa do reino
de Deus”. Finalmente, no versículo 30, Lucas substitui por “muitas vezes
mais” em lugar da de Marcos “cem vezes mais”.
Em consequência, ficou claro que em Mateus e em Lucas o
acontecimento descrito em Marcos 10:17–31 está reduzido de forma
notável. O relato de Lucas é o mais curto dos três, mas também Mateus
omite muito do que se acha em Marcos.
Aqui, entretanto, devemos tomar cuidado. Com frequência faz-se a
observação que estas omissões de Mateus e de Lucas ocorrem porque
estes consideraram que o material adicional de Marcos era “supérfluo”,
“redundante” e, portanto, totalmente “desnecessário”. Ao julgá-lo assim,
não estamos em perigo de menosprezar a Marcos e junto com isto
rejeitar a inspiração divina? Se for lido de maneira imparcial o relato de
Marcos (incluindo, por exemplo, a passagem de Mc. 10:23–27
supostamente “redundante”) ver-se-á imediatamente que se trata de uma
narração verdadeira e natural do que realmente sucedeu. Por que tem que
ser difícil crer que Jesus primeiro disse “Quão difícil será para os que
têm riquezas entrar no reino de Deus!”, para logo observar a expressão
de surpresa nos olhos dos Doze, e acrescentar: “Filhos, quão difícil é
entrar no reino de Deus!”? Do mesmo modo, não estranha que os
discípulos primeiro ficassem “assombrados” quando o Mestre fez ver
quão difícil era para um rico entrar no reino, para logo ficar “ainda mais
afligidos” quando Jesus acrescentou, “É mais fácil passar um camelo
…”. Igualmente, não deveria haver dificuldade para crer que no próximo
versículo Jesus repetiu e ampliou gloriosamente (note-se: “e, no mundo
por vir, a vida eterna”) a declaração sobre a renúncia a certas coisas (Mc.
10:29).
Marcos (William Hendriksen) 503
Portanto, o que Marcos escreve deve considerar-se como algo vivo,
belo, histórico e inteiramente inspirado. O fato de que Mateus e Lucas
não considerassem necessário repetir todo este material, não se deve a
que o tivessem como supérfluo ou sem mérito, mas em seus respectivos
Evangelhos desejavam reservar espaço para outro material. Por exemplo,
Mateus queria guardar espaço para os discursos de Cristo; Lucas, para
muitas e inesquecíveis parábolas. Por isso, eles só reproduziram o
essencial da história. O Espírito Santo guiou os três.
17. E, pondo-se Jesus a caminho, correu um homem ao seu
encontro e, ajoelhando-se, perguntou-lhe: Bom Mestre, que farei
para herdar a vida eterna?
Bem pôde ter sido que Jesus e os Doze (veja-se v. 23) seguissem
seu caminho da mesma casa mencionada em Mc. 10:10. O Evangelho de
Marcos deixa a impressão de que o evento registrado nos versículos 17–
31 ocorreu imediatamente, ou quase imediatamente, depois de ter
dispensado as bênçãos às crianças. Se assim for, então a sequência
casamento, crianças, e bens materiais, forma uma cadeia muito natural e
notável.
No momento em que o pequeno grupo saía, alguém 462 correu — ou
se apressou — até Jesus. De forma menos espetacular, Mateus diz
“alguém, aproximando-se, lhe perguntou”. Ao desconhecido que fez
isto, Mateus o chama um jovem (Mt. 19:20), Lucas um homem principal
(dirigente Lc. 18:18), e todos o descrevem como uma pessoa muito rica,
alguém que tinha muitas posses (Mt. 19:22; Mc. 10:22; Lc. 18:23). É por
isso que geralmente se aplica a ele o título composto de “jovem rico e
principal”. Era provavelmente um dos oficiais a cargo da sinagoga local.
Quanto à ação do dirigente, o relato de Marcos é o mais intenso dos
Sinóticos. Segundo sua versão, este jovem não só correu até Jesus, mas
também além disso caiu de joelhos diante dEle (cf. o leproso, Mc. 1:40)

462
ε_ς é indefinido.
Marcos (William Hendriksen) 504
463
e lhe fez uma pergunta. É preciso ter em conta seu crítico estado
emocional, que é evidente pelo fato de chegar correndo e cair de joelhos.
Ofegando, fez a pergunta que perturbava sua mente e coração. Chamou
Jesus “Bom Mestre”, embora Mateus o abrevie, dizendo “Mestre”.
Como a forma de dirigir-se a Jesus está intimamente ligada à resposta (v.
18), no momento não acrescentarei mais comentários a respeito disto. O
jovem continua, “… que farei para herdar a vida eterna?”
A presente passagem e o versículo 30 (cf. Mt. 19:16, 29; Lc. 18:18,
30, mas veja-se também, num contexto diferente, Lc. 10:25) são os
únicos onde Marcos faz uso do termo completo “vida eterna”. É o
mesmo termo que o apóstolo João usa vez após vez (Jo. 3:15, 16, 36,
etc.). Entretanto, a palavra “vida” aparece em Marcos 9:43, 45,
provavelmente mais ou menos no mesmo sentido que “vida eterna”.
Portanto, quanto ao significado deste termo no ensino de Jesus, veja-se
mais acima sobre estas passagens de Marcos 9.
Não obstante, seria errôneo assumir que o jovem rico usa a
expressão “vida eterna” com a mesma plenitude de significado que tem
no ensino de Cristo. Não sabemos exatamente o que quis significar o
interessado inquiridor. A fim de descobrir o que pode ter significado
para ele, devemos ter em mente que com toda segurança tinha sido
instruído pelos escribas fariseus. Entre eles os bem informados sabiam
que a expressão “vida eterna” tinha sua origem no que nós chamamos
agora o Antigo Testamento. Daniel 12:2 a menciona com relação à
ressurreição dos fiéis filhos de Deus: “Muitos dos que dormem no pó da
terra ressuscitarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e
horror eterno”. E para dar um só exemplo da literatura apócrifa, 2
Macabeus 7:9 declara: “O rei do mundo … nos ressuscitará a uma vida
eterna”. Em consequência, pode dar-se por sentado que para os que
conheciam bem a literatura religiosa dos judeus a “vida eterna” estava

463
Enquanto que Mateus e Lucas usam o aoristo (respectivamente ε_πε e _πηρώτησε), Marcos está
ainda descrevendo o que estava sucedendo, assim que usa o imperfeito _πηρώτα.
Marcos (William Hendriksen) 505
associada com a ressurreição. De modo que, a pergunta do jovem rico
poderia parafrasear-se como segue, “O que farei a fim de chegar a ser
participante da salvação no fim do mundo?” Junto com isto, também
queria saber com segurança imediata que estava andando na direção
correta para esse destino final. Pelo menos no momento parecia disposto
a fazer quase qualquer coisa que fosse necessária para alcançar tal meta.
Desejava paz da alma para o presente e bem-aventurança sem fim para o
futuro. 464
É agora o momento de voltar a considerar a forma em que este
jovem rico inicia a conversação. Já se mencionou que chamou Jesus
“Bom Mestre”. A designação “Mestre” (cf. Mc. 4:38; 5:35; 9:17, 38;
10:20, 35; 12:14, 19, 32; 13:1; 14:14) era totalmente correta (veja-se
mais acima, sobre Mc. 4:38b, incluindo a nota 172). Jesus era e é o
Mestre (Mt. 26:55; Mc. 14:49; Lc. 11:1; Jo. 3:2; 7:35; At. 1:1). Até certo
ponto, inclusive Seus inimigos reconheciam este fato (Mt. 22:16). Era
certamente o Profeta enviado de Deus (veja-se também CNT sobre
Mateus, pp. 92, 93).
No entanto, segundo o relato de Marcos, o entusiasta inquiridor
qualifica o título e chama a Jesus “Bom Mestre”. Naturalmente, isto
também era certo, mas evidentemente não no sentido que o entendia o
jovem. Pelo menos, como se verá a seguir, Jesus não Se satisfez de
maneira nenhuma com a forma em que o jovem se dirigiu a Ele.
18. Respondeu-lhe Jesus: Por que me chamas bom? Ninguém é
bom senão um, que é Deus.
Está negando Jesus a Sua bondade e deidade por meio desta
declaração? Quis dizer Jesus que o jovem não devia tê-lo chamado bom,
visto que só Deus é bom? Está implícita a ideia: “Eu não sou Deus;
portanto não sou bom”? Muitos interpretaram assim a resposta de Cristo
e concluíram — com pequenas variações — que Jesus está aqui traçando
464
Visto que Mt. 19:16 diz “… para possuir”, resulta claro que o sinônimo herdar aqui em Mc. 10:17
não tem a plenitude de significado que tem às vezes. No caso presente, como também em vários
outros lugares, significa simplesmente tem, chega a possuir, chegar a ser participante de.
Marcos (William Hendriksen) 506
“um contraste tácito entre a bondade absoluta de Deus e sua própria
bondade sujeita a crescimento e prova nas circunstâncias da
encarnação”. 465 Lembrar-se-á que a declaração inicial do relato de
Mateus é diferente. Este evangelista escreve como segue: “E eis que
alguém, aproximando-se, lhe perguntou: Mestre, que farei eu de bom,
para alcançar a vida eterna? Respondeu-lhe Jesus: Por que me perguntas
acerca do que é bom? Bom só existe um. Se queres, porém, entrar na
vida, guarda os mandamentos” (Mt. 19:16, 17).
Na opinião de muitos, 466 isto significa que por razões doutrinais
Mateus suavizou a declaração de Marcos.
Entretanto, de modo algum há acordo sobre este ponto. Minha
opinião concorda com os que dizem:
“Jesus realmente quis dizer: Não concebes a bondade de forma
adequada ao me tratares tão levianamente de Bom Mestre. Se desejas
contemplar a bondade, deves pensar em Deus, o único bom, e em
guardar seus mandamentos”.
“A preocupação de Jesus não é glorificar-Se a Si mesmo senão a
Deus: não se trata de dar ensinos a respeito de Sua própria pessoa, e sim
de dar a conhecer a vontade revelada de Deus como única receita
perfeita para agradar a Deus”.
“Cristo quer que este jovem compreenda sua resposta assim: Não
me atribuas levianamente — quer dizer, sem saber com quem falas — o
que só a Deus pertence”.
“Jesus indica que o uso inadvertido da palavra “bom” ao dirigir-se a
alguém a quem se considere um mestre humano, é uma indicação de que
o jovem tinha uma visão superficial a respeito da bondade”. 467

465
Vincent Taylor, op. cit., p. 427. O comentário do Taylor contém muito material excelente. No
presente tema também devemos ler o argumento deste autor, para fazer inteira justiça a seu ponto de
vista. O mesmo devemos dizer com relação a outros intérpretes com cujas opiniões, algo similares às
do Taylor, tampouco estou de acordo.
466
Veja-se B. H. Streeter, The Four Gospels (Londres, 1930), p. 151ss.; J. C. Hawkins, Op. cit., pp.
117–125; H. R. Mackintosh, The Doctrine of the Person of Christ (Nova York, 1931), p. 37.
Marcos (William Hendriksen) 507
Jesus sabia que o jovem rico, ao se dirigir a Ele como “Bom
Mestre”, o fazia de forma muito superficial. Se este jovem realmente
tivesse crido de todo seu coração que Jesus era bom no mais alto sentido
do termo, teria obedecido o mandamento que o Senhor estava prestes a
lhe dar (veja-se vv. 21, 22). A mesma superficialidade é evidente
também pelo louvor que faz de si mesmo (v. 20). O Mestre sabia muito
bem que se este angustiado inquiridor tivesse que ser salvo, devia
confrontar-se com a regra absoluta da verdade, ou seja, a perfeita lei
promulgada pelo Ser Perfeito: Deus. Isto explica a resposta de Cristo.
Razões pelas quais aceito este ponto de vista e não o outro:
a. A omissão que Mateus faz da reflexão de Cristo a respeito da
forma em que o jovem rico dirige-se a Ele, está em harmonia com o fato
de que este evangelista, segundo se mostrou, abrevia constantemente.
Mateus sabia que este ponto particular, embora importante, não era de
extrema importância. De modo que o omite.
b. Se fosse verdade que por razões doutrinais, Mateus tratava de
corrigir a Marcos, como se explica que Lucas, que provavelmente foi o
último dos três em escrever um Evangelho, retivesse a passagem de
Marcos? Omitiu ainda mais que Mateus, mas se preocupou de que, em
substância, seu versículo 19 fosse idêntico a Marcos 10:18.
c. Se fosse verdade que Marcos tivesse um conceito mais baixo que
Mateus da bondade e deidade de Jesus, isso também seria evidente em
outras partes de Marcos. Entretanto, através de todo este Evangelho se
ensina não só a imaculada moralidade, mas também a divindade de Jesus
no mais alto sentido (veja-se mais acima, em Introdução III; também
sobre Mc. 1:1; e CNT sobre Mateus, pp. 66–69). Na realidade, até no
presente relato, a cristologia de Marcos é sem dúvida alguma muito

467
As quatro citações são, respectivamente, as de N. B. Stonehouse, Origins of the Synoptic Gospels,
p. 139; B. B. Warfield, Christology and Criticism (Nova York/Oxford, 1929), p. 139; J. A. C. Van
Leuwen, Op. cit., p. 125; e C. R. Erdman, Op. cit., p. 144. Veja-se também H. B. Swete, Op. cit., p.
223; e W. Munson, Jesus the Messiah (Filadélfia, 1946), p. 135: “O que aqui se discute não é
realmente a cristologia”.
Marcos (William Hendriksen) 508
elevada: Jesus é Aquele a quem os homens devem render obediência
indiscutível, e por amor a quem devem estar dispostos a deixar tudo (vv.
21, 29).
Em resposta a pergunta do jovem rico “… o que farei para herdar a
vida eterna?”, Jesus continua agora como segue:
19. Sabes os mandamentos: Não matarás, não adulterarás, não
furtarás, não dirás falso testemunho, não defraudarás ninguém,
honra a teu pai e tua mãe. 468
Não sabemos exatamente por que os três relatos colocam o quinto
mandamento (“honra a teu pai e a sua mãe”) no final dos mandamentos
regulares do Decálogo. Houve alguma razão especial para que neste caso
particular Jesus colocasse este mandamento no próprio final (com
exceção do resumo de Mateus)? Tampouco sabemos por que Jesus
mencionou só os mandamentos da segunda tábua. Às muitas hipóteses
desejo acrescentar mais uma: Jesus não precisava incluir os
mandamentos relacionados com os deveres do homem com relação a
Deus, porque o não obedecer a segunda tábua implica não obedecer a
primeira; “Pois aquele que não ama a seu irmão, a quem vê, não pode
amar a Deus, a quem não vê” (1Jo. 4:20).
Segundo Marcos, ao mencionar Jesus estes mandamentos incluiu
também “não defraudarás”. Este mandamento não é tomado do Decálogo
senão que se deriva provavelmente de passagens tais como Lv. 19:13;
Dt. 24:14, 15 (cf. Tg. 5:4). Parece-me razoável a sugestão de que este
mandato representa o mandamento “não cobiçarás”. 469 Quando alguém
cobiça os bens alheios, não está acaso defraudando de coração e mente o
seu próximo no que lhe pertence? Entretanto, embora razoável, esta
interpretação não é totalmente certa. As passagens indicadas (Lv. 19:13,
etc.) referem-se ao pecado de reter do operário o que lhe corresponde,

468
Notem-se os cinco casos de μή seguidos pelo aoristo subjuntivo, que é comum nestes
mandamentos negativos, como o é também o presente durativo imperativo para o mandamento
positivo “Honra — quer dizer, segue honrando — a teu pai e a tua mãe”.
469
Cf. Lenski, Op. cit., p. 274.
Marcos (William Hendriksen) 509
quer dizer, referem-se ao pecado de não pagar-lhe (ou pagar-lhe menos
de) seu salário. Visto sob esta luz, “não defraudarás” pode considerar-se
como uma modificação de “não furtarás”. 470 Seja como for, não está
claro por que este mandamento vem a seguir de “não dirás falso
testemunho” em lugar de “não furtarás”.
Outra sugestão é que “não defraudarás” é o método de Marcos para
reproduzir o resumo de toda a segunda tábua da lei (cf. “Amarás o teu
próximo como a ti mesmo”, Mt. 19:19). 471 Assim interpretado, o
significado poderia ser. “Não negues ao teu próximo o amor que lhe
deves”.
Interpretado de qualquer destas formas, a ideia básica continua
sendo que o jovem rico é lembrado que é necessário dar ao próximo, de
coração e ato, tudo o que lhe corresponde. A pertinência do mandamento
fica muito clara, se for levado em conta que o jovem em questão era um
homem muito rico, que provavelmente empregava muitas pessoas e que,
além disso, era uma pessoa que se aferrava tenazmente a todas as suas
posses.
A ordem tem extensa aplicação em todas as épocas. Não só nos
devemos reprimir de furtar os bens de outra pessoa; também é preciso
procurar não reter de nosso próximo o que lhe corresponde; seja sua
reputação, salário, conhecimento do evangelho, segurança de que seja
amado, ajuda em tempo de necessidade, etc. Indubitavelmente um
grande mandamento!
É compreensível que ao responder a pergunta do jovem, Jesus
comece referindo-se à lei de Deus, pois “pela lei vem o pleno
conhecimento do pecado” (Rm. 3:20; cf. Gl 3:24). Entretanto, a lei não
só nos faz conscientes de nosso estado de pecado, mas também é uma
norma de vida — ou de “gratidão” — para os crentes, lembrando-os

470
Cf. Vincent Taylor, Op. cit., p. 428.
471
Cf. H. B. Swete, Op. cit., p. 224; A. B. Bruce, Op. cit., p. 410.
Marcos (William Hendriksen) 510
constantemente de seus deveres e lhes servindo de guia enquanto andam
com gratidão pelo caminho da salvação. 472
Mas a lei não nos poderá convencer de pecados, se não discernimos
seu significado real, sua profundidade, tal como Jesus a apresentou em
Mateus 5:21–48. A atitude deste jovem para com a lei era superficial,
segundo se evidencia por sua reação:
20. Então, ele respondeu: Mestre, tudo isso tenho observado
desde a minha juventude.
Vemos que aqui a presunção superficial combate com o
descontentamento profundo. O descontentamento emerge nas palavras
acrescentadas por Mateus: “Que me falta ainda?” Este jovem tenta
convencer-se a si mesmo de que tudo anda bem; não obstante, por dentro
está pateticamente perturbado. Amou realmente o seu próximo como a si
mesmo, e não defraudou o seu próximo retendo o que propriamente lhe
pertence? Por que então essa falta de paz de mente e coração que o
impulsionou a ir correndo a Jesus com uma pergunta que brota da
ansiedade? É como se estivesse dizendo: “Que outra boa obra devo fazer
ainda, além das muitas que tenho feito desde minha juventude?”
A atitude do jovem rico para com a lei nos lembra a de alguns que
hoje dizem: “Visto que agora sou uma pessoa salva nada já não tenho
que ver com a lei”. Agora, indubitavelmente é verdade que uma pessoa
verdadeiramente regenerada e convertida está livre da maldição da lei
(Gl 3:13), e neste sentido está em condições de cantar:
“Livre da lei, Ó feliz condição!
Jesus deu Sua vida e proveu remissão”.
P. P. Bliss
Não obstante, não é dever da pessoa que foi salva pela graça voltar
para a lei dia após dia, de modo que esta a faça lembrar cada vez mais
sua natureza pecaminosa e dirigi-la a Cristo para mais fortaleza e
472
Veja-se L. Berkhof, Teologia sistemática, p. 734. Este autor enumera o tríplice uso da lei, como
segue: a. uso político ou civil. b. uso pedagógico (ou usus elenchticus) , e c. uso didático ou normativo
(também chamado tertius usus legis). Aqui nos interessam b. e c.
Marcos (William Hendriksen) 511
segurança? Não é esta a lição de Romanos 7:7–25? Não deveria ser esta
sua confissão diária: “Desventurado homem que sou! Quem me livrará
do corpo desta morte? Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor”?
E poderá algum dia chegar a perder sua vigência a regra, “Amarás o
Deus sobre todas as coisas, e o teu próximo como a ti mesmo”? Sem
dúvida é um canto inspirado, “Livre da lei …”. Mas seguidamente deve
cantar-se também “Quanto amo a tua lei! É a minha meditação, todo o
dia!” (Sl 119:97). Se alguém pensar que Marcos 12:30, 31; Lucas 10:27
e Romanos 13:8–10 já não são aplicáveis aos crentes, não se estaria
mostrando tão superficial como o jovem rico? Este pensava que já tinha
cumprido toda a lei e que o que agora precisava era algo que fosse para
além dela.
Continua:
21a. E Jesus, fitando-o, o amou.
O que pode significar isto na presente situação?
Há duas ideias que requerem algum comentário:
a. Devido ao fato de que Marcos usou certo verbo grego e não
outro, o amor que aqui se indica é do mais alto grau, “muito além de um
mero afeto”. 473 Não obstante, veja-se a nota de rodapé.
b. O significado é: Jesus sentia amor por este jovem. 474 Desde esse
mesmo instante o Senhor começou a amá-lo. Esta possibilidade não se
pode negar, mas devemos tomar cuidado. De outra maneira pode resultar

473
Cf. Lenski Op. cit., p. 275. Faz uma distinção muito clara entre _γαπ_ν e φιλε_ν, e afirma que
_γαπ_ν está “muito para além” de φιλε_ν. Pelo contrário, um estudo e tabulação cuidadosos de todos
os casos nos Evangelhos onde se usa _γαπάω ou φιλέω (veja-se CNT sobre João, nota 458) indica que
no Novo Testamento, o verbo _γαπάω começa a deslocar ao verbo φιλέω. O mesmo estudo mostrará
que, embora em certos contextos devem diferenciar-se — p. ex., onde ambos os verbos se usam com o
propósito evidente de estabelecer uma distinção —, em muitas áreas se ocultam, de modo que se
poderia dizer que os dois verbos se usam de maneira intercambiável.
474
Assim A. T. Robertson, Word Pictures, vol. I, p. 351; e Robertson, p. 834. Naturalmente que não
há nenhuma diferença de opinião no fato de que _μβλέψας (= havendo olhado a, tendo fixado seus
olhos em, como no v. 28) é o particípio aor. de _μβλέπω, e que _γάπησε é o aor. ind. at. 3ª. pes. sing.
de _γαπάω. A dúvida está só em se _γάπησε é ou não ingressivo. Também pode ser tomado como um
aoristo normal (“histórico” ou “constativo”).
Marcos (William Hendriksen) 512
uma situação estranha como se imediatamente depois que este homem
revelasse sua atitude superficial para com a santa lei de Deus, Jesus
começasse a amá-lo!
Não é melhor preferir a seguinte explicação? Ao posar o Senhor o
Seu olhar neste jovem rico, amou-o; quer dizer: a. Admirou-o por não ter
caído em graves pecados e por ter buscado a melhor fonte para obter
uma solução para o seu problema; e b. Compadeceu-se de forma
profunda, triste e afligida, e decidiu recomendar-lhe um curso de ação
que, se o obedecesse, seria a solução de seu problema e proporcionaria o
descanso que sua alma necessitava.
Depois de dizer, “Mestre, tudo isso tenho observado desde a minha
juventude”, o jovem tinha agregado, “que me falta ainda?” (Mt. 19:20).
Jesus está prestes a responder a pergunta. Entretanto, embora Sua
resposta reflita a fraseologia do jovem, o Mestre não está absolutamente
de acordo com sua filosofia da vida. Para o jovem, o suprir esta falta era
questão de acrescentar. Desejava saber que obra meritória devia
acrescentar a todas as boas obras que já tinha realizado. Mas para Jesus,
completar o que faltava era, antes, uma questão de substituir (cf. Gl.
2:19–21; Fp. 3:7ss.). É nesse sentido que Marcos escreve:
21b. E disse: Só uma coisa te falta: 475 Vai, vende 476 tudo o que
tens, dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu. 477
Expõe-se a pergunta: “Mas ao instruir Jesus ao jovem desta
maneira, não estava apoiando a doutrina da salvação por boas obras?
Antes, não devia ter-lhe dito ‘Confia em mim’ ”? A resposta é que Jesus
475
Aqui _ν é o sujeito; o verbo _στερε_ é o pres. ind. 3ª. pes. sing. de _στερέω, e é transitivo; σε é o
objeto direto do verbo. No sentido de não alcançar a, _στερέω rege genitivo, “Porquanto todos
pecaram, e estão destituídos de (não alcançam a) a glória de Deus” (Rm. 3:23). 2Co. 11:5, “e penso
que em nada fui inferior”, lembra-nos que o verbo grego se deriva de _στερος, “inferior, mais baixo,
último, detrás”. Cf. útero, histérico.
476
πώλησον impv. at. pes. sing. de πωλέω, vender (11:15; Lc. 12:33, 18:22; 22:36; Jo. 2:14, 16; etc.).
Cf. monopólio.
477
Cf. θησαυρός no céu (Mt. 6:20; Lc. 12:33); na terra (Mt. 6:19), escondido num campo (Mt. 13:44);
“onde esteja seu tesouro” (Mt. 6:21); em vasos de barro (2 Cor. 4:7); da sabedoria e de conhecimento
(Cl. 2:3); abrindo seus cofres (Mt. 2:11) … saca de seu armazém (Mt. 13:52). Cf. thesaurus.
Marcos (William Hendriksen) 513
na realidade estava dizendo: “Confia totalmente em mim”, porque
indubitavelmente sem uma completa confiança e entrega Àquele que lhe
dava a ordem, seria impossível que o jovem rico o vendesse tudo e desse
o lucro aos pobres. Essa era a prova. Se ele triunfasse sobre ela, teria
“um tesouro no céu”. A referência é a todas aquelas bênçãos de caráter
celestial, que de maneira íntegra estão reservadas para os filhos de Deus
no céu, e das quais estamos experimentando já agora um desfrute
antecipado. Para mais detalhes sobre este conceito, veja-se no CNT
sobre Mateus 6:19, 20. É importante observar que Jesus acrescenta,
então, vem e segue-me. Este “segui-lo” devia ir acompanhado por uma
preparação para um testemunho ativo, e incluiria que o jovem aprendesse
a “negar-se a si mesmo e tomar a sua cruz”, e assim não lhe seria
possível dedicar-se mais ao serviço das riquezas. A resposta do jovem
foi trágica. Mostrou que o mandamento de Cristo foi a flecha que o feriu
no calcanhar de Aquiles. Seu lugar mais vulnerável era o amor às
riquezas terrestres:
22. Ele, porém, contrariado com esta palavra, retirou-se
triste, 478 porque era dono de muitas propriedades.
Por causa da ordem de Cristo e do materialismo enraizado no
jovem, seu rosto se escureceu. Parecia uma nuvem ameaçadora (Cf. Mt.
16:3). Tão cheio de entusiasmo que esteve no começo e tão triste e
ressentido que estava agora! 479 Assim se afasta, triste e aflito, pensando
provavelmente: “Esta exigência não é justa. Nenhum dos outros rabinos
me teria pedido tanto”.
A demanda que Jesus fez àquele homem desorientado era o
adequado para sua situação particular e para o estado de sua alma. Jesus
não pediu a todos os ricos para fazerem exatamente igual. O Senhor não
o exigiu, por exemplo, a Abraão (Gn. 13:2), ou a José de Arimateia (Mt.
27:57). Existem pessoas opulentas que, falando de forma geral, vivem só

478
Ou: 22 Mas por causa destas palavras sua semblante decaiu, e foi embora triste.
479
Note-se στυγνάσας, particípio aor. de στυγνάζω, ter uma aparência lôbrega. Cf. Estígia, estígio.
Marcos (William Hendriksen) 514
para si mesmas. A contribuição que fazem às necessidades de outros não
guarda nenhuma relação com o que reservam para si mesmos. Há outras
pessoas que possuem muitos bens e que, à inversa, preocupam-se
grandemente em ajudar a outros, incluindo os mesquinhos (Gn. 13:7–11;
14:14); e há aqueles que, movidos pela gratidão, estão constantemente
construindo altares e levando ofertas a Deus (Gn. 12:8; 13:18; 15:10–12;
22:13). O jovem rico “tinha muitos bens”. Ele os possuía; mas eles
também o possuíam, sujeitavam-no com suas garras firmemente. Pode-se
ver que aquele jovem necessitava exatamente o trato que Jesus lhe dava.
Persistiu permanentemente aquele jovem rico em sua deplorável
resistência? Não nos foi revelado a resposta. Alguns raciocinam assim: A
Escritura nos diz que Jesus o amou (Mc. 10:21). Deus ama os escolhidos
e a ninguém mais. Conclusão: este jovem teve que haver-se convertido.
Mas isto equivale a impor ao texto uma ideia teológica errônea. Se
os que se aferram a esta ideia estivessem de acordo com a proposição de
que Deus ama de uma forma especial a todos os que põem sua confiança
nEle (Sl 103:13; 1Jo. 3:1), seu ensino teria uma base segura. Mas se
forem além disto e negam que o amor de Deus se estenda para além da
soma total dos escolhidos, não podemos apoiar semelhantes argumentos
(veja-se Sl 145:9, 17; Mt. 5:45; Lc. 6:35, 36). E visto que o que dizemos
é verdade, não existe base alguma para crer que o jovem rico tivesse
chegado a ser um crente antes de morrer. Em vez de especular a respeito
do que pôde ou não pôde ter sucedido, devemos levar a sério a lição de
Lucas 13:23, 24. Esta é a linha que toma o relato de Marcos.
23. Então, Jesus, olhando ao redor, disse aos seus discípulos:
Quão dificilmente entrarão no reino de Deus os que têm riquezas!
Jesus olhou ao Seu redor. Aqui há um detalhe realista, como é de
esperar em Marcos, o intérprete de Pedro. 480 Imaginemos a cena: o
jovem rico foi embora, de modo que Jesus e os Doze estão a sós de novo.
Assim que, com relação ao que acaba de suceder, o Mestre deseja

480
Veja-se 3:5, nota 105.
Marcos (William Hendriksen) 515
imprimir profundamente na mente deles: a. o significado do estado de
tristeza com que o jovem partiu, e, especialmente, b. A dificuldade para
entrar no reino de Deus. Se compararmos os versículos 17, 23 com o
versículo 26, entrar no reino significa ser participante da vida eterna.
Significa ser salvo, provavelmente com ênfase na salvação futura: ser
participante da bem-aventurança final no universo restaurado, e desfrutar
das primícias disso agora mesmo (veja-se também sobre Mc. 9:45, 47;
10:15). Com quanta dificuldade 481 entrarão neste reino os que possuem
abundância de bens terrestres e persistem em aferrar-se a eles! 482 Difícil
… por certo (vv. 23, 24); e até impossível (vv. 25, 27).
24. Os discípulos ficaram surpreendidos com estas palavras [TB].
Naqueles dias havia muitas ideias errôneas quanto à prosperidade,
as riquezas e a saúde, assim que não surpreende que aqueles homens
ficassem surpreendidos e perplexos. Não tinha recebido Israel a
promessa de que se ouvisse diligentemente a voz do Senhor, receberia
abundância de bênçãos materiais e espirituais? (veja-se Dt. 28:1–14).
Não era Deus quem dava as riquezas e a honra (1Cr. 29:12)? Entretanto,
muitos chegavam à conclusão errônea de que a prosperidade individual
era sinal de virtude pessoal e do favor de Deus, e que a adversidade
individual era sinal de perversidade pessoal e desagrado da parte de
Deus. Os amigos de Jó eram desta opinião: “(O mau) não se enriquecerá,
nem subsistirá a sua fazenda” (Jó 15:29). “Já pereceu algum inocente?”
(Jó 4:7; cf. também Jó 4:8; 5:2; 8:6, 7; 11:6; 15:20). Segundo Lucas
13:1–5, é evidente que os contemporâneos de Cristo estavam empapados
desta filosofia. Inclusive tinha infectado o pensamento dos Doze,
segundo se depreende de João 9:1–3. Se tivessem feito um estudo mais
profundo do Antigo Testamento haveriam entendido melhor (vejam-se
Sl 73:12, 18; Jr. 9:23, 24). O ensino de Cristo em outras passagens está

481
δυσκόλως adv. “com dificuldade”. Cf. adj. δύσκολος,-ον, onde δυς tem um significado oposto a ε_;
e κόλον (cf. cólon, cólica) significa comida. Significado original: difícil de lhe agradar com a comida.
Daí toma um sentido geral, “difícil de agradar, difícil”.
482
Note-se o ptc. pres. _χοντες, provavelmente durativo.
Marcos (William Hendriksen) 516
em harmonia com isto; por exemplo, Sua parábola do rico insensato (Lc.
12:16–21) e a do rico e Lázaro (Lc. 16:19–31).
A filosofia errônea dos discípulos explica seu assombro ao ouvir
que Jesus dizia que seria difícil para um rico entrar no reino de Deus.
Mas Jesus tornou a dizer-lhes: Filhos, quão difícil 483 é entrar no
reino de Deus! [TB] Note-se a tenra introdução “Filhos”. Os olhos do
Mestre se encheram de tenro afeto. Os Doze eram-Lhe muito queridos;
mas sabia quão fracos e quão propensos eram ao erro. Cf. Sl 103:13, 14;
Mc. 2:5; Lc. 15:31; 16:25; Jo. 13:33; Gl 4:19; 1Jo. 2:1, 12, etc.
Quando Jesus acrescenta, “Quão difícil é …”, acentua ainda mais o
dito anteriormente. Agora indica aos Seus discípulos que o que é válido
para o rico é válido também para todos, quer dizer, que é muito difícil
entrar no reino de Deus.
Se tivessem ouvido atentamente, teriam percebido que o que Jesus
dizia agora não diferia essencialmente do que tinha expresso antes no
sermão da Montanha: “Entrai pela porta estreita (larga é a porta, e
espaçoso, o caminho que conduz para a perdição, e são muitos os que
entram por ela), porque estreita é a porta, e apertado, o caminho que
conduz para a vida, e são poucos os que acertam com ela” (Mt. 7:13, 14).
É difícil entrar no reino de Deus? Sim, tão difícil que para um rico
será (veja-se sobre v. 27) inclusive impossível; porque, Jesus continua:
25. É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do
que entrar um rico no reino de Deus.

483
Aqui alguns manuscritos acrescentam “para aqueles que confiam nas riquezas”. Veja-se a defesa
que Lenski, Op. cit. p. 278, faz destas palavras. Apresenta um argumento sólido em favor de sua
autenticidade. Pode ser que esteja certo; não obstante, creio que os argumentos em favor de deixar
fora estas palavras são mais fortes. Sua omissão não só é favorecida pela evidência textual, mas
também é muito mais difícil pensar que se estas palavras estavam no autógrafo ou se teriam deixado
fora, que crer que algum escriba, por erro, as tenha acrescentado, talvez apelando para Pv. 11:28.
Para _αφίς (agulha), veja-se _άπτω, coser, dar pontos, um “rapsodo” é aquele que alinhava canções. O
termo βελόνη (agulha) relaciona-se com βέλος, um dardo muito aguçado ou um projétil que se lança;
cf. βάλλω, lançar. A “agulha” do “Dr.” Lucas era do tipo médico.
Marcos (William Hendriksen) 517
Naturalmente, é totalmente impossível que um camelo consiga
passar pelo fundo de uma agulha. 484 Contudo, sendo isso tão impossível,
seria mais fácil que isto ocorra que um rico entre no reino de Deus. Para
explicar o que quis dizer Jesus, é inútil e injustificado o intento de mudar
“camelo” por “cabo” — veja-se Mt. 23:24, onde há referência a um
camelo verdadeiro — ou definir o “fundo de uma agulha” como a porta
pequena do muro de uma cidade, uma porta baixa, pela qual um camelo
poderia passar unicamente sobre seus joelhos, e isto depois de ter-lhe
tirado a carga. Tais “explicações” (?), além de ser objetáveis de um
ponto de vista linguístico, tentam fazer possível o que Jesus declarou
especificamente impossível. O Senhor está dando a entender claramente
que se um rico quiser buscar um caminho ao reino de Deus, com suas
próprias forças, ser-lhe-ia impossível. Tão poderoso é o controle que têm
as riquezas materiais sobre o homem natural! Está completamente
atenazado por seu encanto enfeitiçante, e isso impede que obtenha a
atitude de mente e coração necessária para a entrada no reino de Deus
(veja-se Mt. 6:24; cf. 1Tm. 6:10). Convém ter em mente que Jesus fala
intencionalmente em termos absolutos. Acabamos de usar a frase “com
suas próprias forças”. Se for levado em conta o versículo 27, não é
necessário retratar-nos desta qualificação, embora é preciso reconhecer
que no versículo 25 Jesus não qualifica Sua afirmação dessa maneira. A
verdade é que fala em termos absolutos a fim de imprimir com mais
força na mente dos discípulos que a salvação, do princípio ao fim, não é
um “logro” humano. O fato de que “a impossibilidade do homem seja a
oportunidade de Deus” reserva-se para mais adiante (veja-se v. 27).
26. Eles ficaram sobremodo maravilhados, 485 dizendo entre si:
Então, quem pode ser salvo?

484
Com τρυμαλία _αφίδος; cf. τρ_μα _αφίδος (Mt. 19:24); e τρ_μα βελόνης; (Lc. 18:25). A palavra
τρυμαλία significa “buraco, olho”, e está relacionada com τρύω, desgastar; e τρ_μα relaciona-se com
τιτράω, perfurar.
485
_ζεπλήσσοντο, impf. pas. 3ª. pes. pl. de _κπλήσσω. Veja-se sobre 1:22. Cf. também 6:2; 7:37;
11:18. A palavra encontra-se também em Mateus, Lucas e Atos.
Marcos (William Hendriksen) 518
O assombro dos discípulos, já evidente depois da declaração de
Cristo do versículo 23, aumenta a ponto de que estes homens se acham
completamente perplexos, “aturdidos, confundidos”. O assombro durou
provavelmente por um tempo. Os Doze chegaram à conclusão de que se
o que Jesus dizia era verdade, então ninguém poderia ser salvo. Para
chegar a tal conclusão, provavelmente raciocinaram assim: a. o que
Jesus disse a respeito dos ricos (v. 23) aplicou-o a todos os homens (v.
24); e b. embora nem todos sejam ricos, inclusive os pobres desejam ser
ricos.
No versículo 27 se acha uma bela e tranquilizadora resposta:
27. Jesus, porém, fitando neles o olhar, 486 disse: Para os homens
é impossível; contudo, não para Deus, porque para Deus tudo é
possível.
Ao olhar os Seus discípulos naquele momento dramático, os olhos
de Jesus estariam cheios de profunda intensidade e tenro amor. Quando
lhes disse, “Para os homens é impossível”, queria dizer exatamente isto:
Em qualquer ponto da salvação, no começo, na metade e no final, o
homem depende completamente de Deus. Por si mesmo, o homem nada
pode fazer. Se de algum modo há de ser salvo, deve nascer outra vez ou
“do alto” (Jo. 3:3, 5). Inclusive quando pela fé — fé que é um dom de
Deus! (Ef. 2:8) — aproxima-se de Deus, também para isto necessita a
capacitação e apoio da onipotente graça de Deus, cada dia, hora, minuto
e segundo. Não havia lugar para a religiosidade do jovem rico, (ver os
vv. 17, 20), que era uma religiosidade corrente entre os judeus daquele
dia e época. Qualquer coisa que rebaixe a soberania de Deus na salvação
dos homens deve ser condenada.
Entretanto, glória seja a Deus, pois há uma saída! O que para os
homens é impossível, para Deus é possível. Para Deus não há nada
impossível. É Ele quem nos salva completamente por meio de Cristo
(Hb. 7:25). Sua graça se estende inclusive até o determinado e

486
Quanto a _κβλέψας veja-se mais acima, sobre o v. 21 a., nota 475.
Marcos (William Hendriksen) 519
implacável perseguidor Saulo de Tarso (At. 9:1; 26:9–11; 1Co. 15:8–10;
Gl 1:15, 16; 1Tm. 1:15). Jesus já começou a revelar como, por meio do
Mediador, realiza-se esta salvação (Mc. 8:31; 9:31). Ele o continuará
revelando com crescente clareza (veja-se 10:32–34; especialmente
10:45; 14:22–24).
Pedro ainda estava pensando nas palavras que o Mestre dirigiu ao
jovem rico (veja-se v. 21). Jesus lhe havia dito que vendesse tudo o que
tinha e que desse o lucro aos pobres, prometendo que se fizesse isso,
teria um tesouro no céu.
Assim que o relato continua:
28. Então, Pedro começou a dizer-lhe: 487 Eis que nós tudo
deixamos e te seguimos.
Segundo Mateus 19:27 [RC], Pedro acrescentou: “que
receberemos?”. Não tinham feito os Doze exatamente o que Jesus tinha
pedido ao jovem rico que fizesse? Não tinham “deixado tudo” e seguido
a Jesus? A resposta, então, pareceria óbvia: que os Doze teriam tesouros
no céu. Entretanto, Pedro não parece ter estado inteiramente seguro
disso, porque o Mestre tinha declarado também que para os homens é
impossível salvar-se a si mesmos, e que é só Deus quem comunica a
salvação (vv. 23–25, 27).
Pedro e os outros discípulos receberam a seguir uma resposta muito
consoladora e alentadora (vv. 29, 30) seguida de uma advertência (v.
31):
29, 30. Tornou Jesus: Em verdade vos digo que ninguém há que
tenha deixado casa, ou irmãos, ou irmãs, ou mãe, ou pai, ou filhos, ou
campos por amor de mim e por amor do evangelho, que não receba, já no
presente, o cêntuplo de casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos, com
perseguições; e, no mundo por vir, a vida eterna. 488
487
Ou: disse.
488
Para _μ_ν λέγω _μ_ν, veja-se sobre 3:28; o verbo _φ_κεν é um aor. ind. at. 3ª. pes. sing. de _ίημι,
deixar, abandonar, renunciar.
_α_ μ_ λάβ_, exceto que tome.
μετ_ διωγμ_ν, junto com — ou: acompanhado de — perseguições.
Marcos (William Hendriksen) 520
Naturalmente, esta promessa é para todos os verdadeiros seguidores
do Senhor (cf. Mt. 19:29). Não é (como Mt. 19:28) uma promessa só
para os Doze. É para todos os que escolheram a Cristo acima de todo o
resto, inclusive sobre seus mais queridos familiares e mais queridas
posses. Fizeram um sacrifício, diz Jesus, “por amor de mim e por amor
do evangelho”, que significa: motivados pelo amor a mim e a minha
mensagem de salvação.
A estes leais seguidores do Senhor é prometido “cem vezes mais”,
quer dizer, lhes reintegrará “muitas vezes mais” (Lc. 18:30). Referente a
“cem vezes mais”, veja-se também Gn. 26:12 e Mt. 13:8. Os crentes que
agora (cf. Lc. 18:30) vivem antes do grande dia do juízo, e os crentes
antes de sua morte, todos recebem as bênçãos indicadas em passagens
tais como Pv. 15:16; 16:8; Mt. 7:7; Jo. 17:3; Rm. 8:26–39; Fp. 4:7; 1Tm.
6:6; Hb. 6:19, 20; 10:34; 1Pe. 1:8. Apesar das perseguições que terão
que suportar, estão em condições de desfrutar suas posses materiais
(casas ou … campos) muito melhor que os ímpios. A razão? Veja-se Is.
26:3; contraste-se com Is. 48:22. Foi preciso deixar familiares queridos
por causa de Cristo e do evangelho? Terão agora novos “familiares” (Mt.
12:46–50; Mc. 3:31–35; Jo. 19:27; Rm. 16:13; 1Co. 4:15; Gl 4:19; 1Tm.
1:2; 5:2; 2Tm. 2:1; Fm. 10; 1Pe. 5:13), “parentes” que pertencem à
família da fé” (Gl 6:10), à família do Pai” (Ef. 2:19; 3:15).
No mundo porvir os crentes receberão a vida eterna (veja-se sobre o
v. 17 e os vv. 9:43, 45). Em princípio já a têm agora mesmo, mas de
forma muita mais abundante e em medida sempre crescente, tê-la-ão na
eternidade. Deve-se ter em mente que o conceito “vida eterna” é tanto
quantitativo como qualitativo, com ênfase no último. A santidade, o
conhecimento, a comunhão, a paz, a alegria, etc., são os ingredientes que
pertencem à vida de todos os que estão em Cristo e para eles é uma vida
que durará sem fim, para sempre jamais.

_ν τ_ καιρ_ τούτ_ … _ν τ_ α__νι τ_ _ρχομέν_, neste tempo (ou época) … na eira vindoura.
Marcos (William Hendriksen) 521
31. Porém muitos primeiros serão últimos; e os últimos,
primeiros.
Quando Pedro disse, “E nós que deixamos tudo e te seguimos; que
receberemos?” (Mc. 10:28; cf. Mt. 19:27), foi sua pergunta o resultado
de uma santa curiosidade ou, de certa forma, de um espírito
mercantilista? É muito interessante a variedade de opiniões com que os
expositores que tentaram responder esta pergunta. Alguns, em seu zelo
por defender Pedro contra qualquer acusação, vão ao extremo de dizer
que os que desconfiam dos motivos de Pedro estão julgando a outros por
suas próprias normas éticas.
Outros vão ao extremo oposto, afirmando que é impossível explicar
o dito por Cristo aqui em Marcos 10:31 e também na parábola de Mateus
20:1–16, a menos que se leve em conta os motivos mundanos de Pedro.
Possivelmente o melhor procedimento seja o seguinte: Uma pessoa é
inocente até que se prove o contrário, sem lugar a dúvida. Em
consequência, não temos direito de acusar aqui a Pedro de nada mau. Por
outro lado, embora sua pergunta tenha tido motivos nobres, também é
verdade que poderia ter ocasionado a advertência do versículo que
estamos prestes a considerar. É possível que Jesus queria dizer algo
assim: “Pedro, a pergunta que fazes, ‘que receberemos?’, é correta e
apropriada. Entretanto, sendo como é tão fácil cair no erro de esperar
uma recompensa baseada em supostos méritos, devo advertir-te, não seja
que receba uma surpresa imprevista”. Além disso, não existe a
possibilidade de que a inegável atitude mercantilista do jovem rico (v.
17) poderia ter feito Jesus pronunciar uma necessária advertência?
Quanto à expressão em si, faz-nos lembrar as palavras que o Senhor
disse a Samuel: “O SENHOR não vê como vê o homem. O homem vê o
exterior, porém o SENHOR, o coração” (1Sm. 16:7). Os “primeiros” são
os que por causa de sua riqueza, educação, posição, prestígio, talentos,
etc. são muito estimados pelos homens em geral, às vezes até pelos
filhos de Deus. Mas pelo fato de que Deus vê e conhece o coração, a
muitas destas pessoas poderosas É-lhes atribuído uma posição mais
Marcos (William Hendriksen) 522
baixa que a outras; na realidade, inclusive podem ficar totalmente
excluídas das mansões de glória. Cf. Mt. 7:21–23.
Não parece que Jesus queria dizer que todos os que “serão últimos”
se perderão ou ficarão fora do reino. Não só o inferno tem graus de
sofrimento (Lc. 12:47, 48), o universo restaurado também tem graus de
glória (1Co. 15:41, 42). Haverá surpresas, não obstante. Não só serão
“últimos” muitos dos que agora são considerados como verdadeiras
colunas da igreja, mas também haverá muitos que nunca alcançaram
fama e que serão primeiros no dia do juízo — pense-se na viúva pobre
que contribuiu com “duas pequenas moedas” (Mc. 12:42), e Maria de
Betânia cujo ato de amorosa prodigalidade foi abertamente criticado
pelos discípulos (Mt. 26:8; Mc. 12:43, 44; cf. Mt. 26:10–13). Que tomem
nota disto os discípulos que sempre estavam disputando a respeito das
posições (Mc. 9:33ss.; Mt. 18:1ss.; 20:20; Lc. 22:24)!

Mc. 10:32–34 - Terceira predição da paixão e da ressurreição


Cf. Mt. 20:17–19; Lc. 18:31–34

32. Estavam a caminho, subindo para Jerusalém. Jesus ia


adiante dos discípulos, e estes se admiravam; e os que o seguiam,
tinham medo [TB].
Embora a indicação de tempo e lugar seja indefinida, a Páscoa
parece estar perto. Seria talvez em algum momento do mês de março?
Mais uma vez, a descrição de Marcos é mais gráfica e detalhada que
a de Mateus ou a de Lucas. Aqui se descreve a viagem da Pereia, via
Jericó, para Jerusalém. De qualquer lugar que alguém fosse a Jerusalém,
sempre seria necessário subir, pois Jerusalém está situada a maior altura.
Isto faz com que a expressão “subindo para Jerusalém” (Jo. 2:13; 5:1;
11:55; At. 11:2; 25:1, 9; Gl 2:1) entenda-se como uma referência a uma
ascensão física. Mas também significa muito mais que isto. A expressão
não só se relaciona com os pés (Sl 122:2), mas em especial, com o
coração (Sl 84:5). Em Jerusalém estava o templo de Deus! Quando os
Marcos (William Hendriksen) 523
peregrinos se encaminhavam para Jerusalém com relação às grandes
festas, iam para adorar, o que incluía levar uma oferta. Jesus também
estava agora “subindo para Jerusalém”, e levava a Si mesmo como oferta
pelo pecado do mundo” (veja-se Is. 53:10; Jo. 1:29).
Como o Bom Pastor, vai diante, encabeça a procissão (Jo. 10:4).
Caminha com passo firme. Resolutamente, afirma Seu rosto para ir a
Jerusalém (cf. Lc. 9:51). Ali, em Jerusalém, vai … diremos “para
morrer”? Sim, mas mais exatamente, vai entregar a Sua vida (Jo. 10:11,
15).
As coisas estão ficando muito sérias agora. A atmosfera é tensa. Os
Doze estão assombrados. Assombrados do quê? Sem dúvida, pelo firme
caminhar de seu Guia. Algo singular haveria no porte de Jesus — o olhar
de Seus olhos, Sua forma de andar — que explica o assombro deles. Os
que pertenciam ao círculo mais amplo de Seus seguidores (veja-se Lc.
6:13; 10:l) têm medo. À vista de João 9:22; 11:8, 57, sua consternação e
alarme é explicável. Ir a Jerusalém na companhia de Jesus era
perigoso! 489
Continua: Tornando a levar à parte os doze, começou a contar-
lhes o que lhe havia de acontecer. 491
490

O Senhor sabia que não seria prudente fazer o anúncio de Seus


sofrimentos e morte a todos os Seus seguidores (Mc. 8:30); por isso toma
os Doze à parte para em particular (cf. Mt. 20:17) dar-lhes uma
informação detalhada a respeito de Sua próxima agonia. Note-se o “de
novo”, porque esta não foi a única vez que Jesus fez uma separação
temporal entre Seus seguidores, e inclusive dentro do grupo dos Doze
[vejam-se Mc. 3:13 (cf. Lc. 6:13); 4:35, 36; 5:37, 40; 6:31, 45; 7:17, 33;

489
Os dois imperfeitos perifrásticos, seguidos por dois imperfeitos regulares _θαμβο_ντο e φοβο_ντο,
indicam que Marcos está, por assim dizer, pintando detalhe por detalhe tudo o que sucede. Deseja que
nos detenhamos um pouco para considerar a seriedade da situação, a forma determinada em que Jesus
Se dirige ao lugar de Sua execução.
490
Ou: e disse.
491
συμβαίνειν, inf. pres. de συμβαίνω (pisar em juntos), suceder. Daí que o significado de toda a
expressão seja: “As coisas que lhe deviam suceder”.
Marcos (William Hendriksen) 524
9:2; 14:32, 33; e veja-se também 9:30]. Diz-se especificamente, “de
novo”, por causa das duas lições anteriores a respeito da cruz, dadas em
particular aos Doze.
O que Jesus disse a estes doze discípulos foi:
33, 34. Eis que 492 subimos para Jerusalém, e o Filho do Homem
será entregue aos principais sacerdotes e aos escribas; condená-lo-ão
à morte e o entregarão aos gentios; hão de escarnecê-lo, cuspir nele,
açoitá-lo e matá-lo; mas, depois de três dias, ressuscitará.
Perto de Cesareia de Filipe, imediatamente depois da confissão de
Pedro (“Tu és o Cristo”), Jesus fez Sua primeira predição com relação à
paixão e ressurreição vindouras. Naquela predição (Mc. 8:31) sublinhou-
se a necessidade destes eventos. Tempo mais tarde, depois da
transfiguração de Cristo e a cura do menino epilético, enquanto Jesus
viajava pela Galileia, fez Sua segunda predição, ressaltando a certeza de
Sua próxima morte e ressurreição (Mc. 9:31), acrescentando um novo
elemento, ou seja, que o Filho do Homem logo seria traído e entregue
nas mãos dos homens.
O relato de Marcos apresenta sete pontos junto com a referência ao
seu cumprimento. São como segue:
Marcos
10:33 1. O Filho do Homem será traído e entregue em mãos dos
principais sacerdotes e escribas. Cumprimento em Mc.
14:53.
10:33 2. Eles O condenarão à morte. Cumprimento 14:55, 64.
10:33 3. E O entregarão aos gentios. Cumprimento 15:1.
10:34 4. Zombarão dEle e cuspirão nEle. Cumprimento 15:16–20.
Cf. 14:65; 15:29–32.
10:34 5. E O açoitarão. Cumprimento 15:15.
10:34 6. E O matarão (“crucificarão”, Mt. 20:19). Cumprimento
15:24, 37.

492
Para _δού, veja-se em 2:24, nota 91; e CNT sobre Mt. 1:20, nota 133.
Marcos (William Hendriksen) 525
10:34 7. Três dias depois ressuscitará. Cumprimento 16:1ss.
A presente passagem (10:33, 34) contém a terceira predição. É
muitíssimo mais detalhada. Dos sete pontos distintivos, a primeira
predição (Mc. 8:31) menciona só os números 2, 6 e 7; a segunda (Mc.
9:31) só os números 1, 6 e 7.
Façamos agora algumas observações sobre cada um destes 7
pontos:
Quanto ao Filho do Homem”, veja-se sobre Marcos 2:10 e Mateus
8:20. A expressão “Os principais sacerdotes e escribas” toma o lugar da
designação mais ampla da primeira predição: “Os anciãos e os principais
sacerdotes e os escribas”. Em ambos os casos a referência é ao Sinédrio,
o Tribunal Supremo dos judeus. Aqui, na terceira predição, omitem-se os
anciãos, talvez porque eram os menos importantes dos três, ou talvez a
fim de ressaltar o fato de que Jesus seria entregue 493 aos líderes
espirituais do povo: os principais sacerdotes e os escribas. Sem dúvida
que estes deveriam ter sabido melhor!
A predição de que os membros do Tribunal Supremo condenariam
Jesus à morte, indica que deveria haver um juízo, e que neste juízo seria
pronunciada a pena de morte contra Ele.
Os romanos não permitiam que os judeus levassem a cabo uma
sentença de morte, e por isso as autoridades judaicas deviam entregar 494
Jesus aos gentios. No caso presente, deviam entregá-lo a Pilatos e aos
que executavam suas ordens.
Jesus predisse também que estes gentios zombariam dEle e Lhe
cuspiriam. Nas passagens onde se narra o cumprimento destes dois atos,
ambas as coisas aparecem juntas, porém não em conexão imediata com
os açoites (cf. Mc. 15:16–20 com 15:15; e cf. Mt. 27:27–31 com 27:26).
Com relação à zombaria de Herodes veja-se Lc. 23:11.

493
παραδοθήσεται, ptc. ind. pas. 3ª. pes. sing. de παραδίδωμι, entregar, trair.
494
παραδώσουσι, ptc. ind. at. 3ª. pes. pl. do mesmo verbo que na nota precedente.
Marcos (William Hendriksen) 526
Os açoites de que fala Jesus foram um prelúdio à Sua crucificação
(veja-se Mc. 15:15; cf. Mt. 27:26). Portanto, os pontos 5 e 6 poderiam
combinar-se, dando como resultado 6 pontos em lugar de 7.
Esta predição, assim como as anteriores (Mc. 8:31; 9:31), termina
com uma nota de triunfo: “ressuscitará”. 495
Surge agora a pergunta, “Como devemos entender este anúncio tão
detalhado da paixão?”. Foi realmente uma predição? Ou antes, foi ao
menos até certo ponto, uma profecia que surge do evento ao que se
refere (vaticinium ex eventu)? Se assim fora, a profecia surgiu depois de
ter ocorrido o que anunciava. Muitos opinam que este último é o que
aconteceu. 496 De uma forma ou outra, crê-se que embora Jesus tenha
predito de maneira muito geral Seus sofrimentos, morte e ressurreição,
não o fez de uma forma tão detalhada.
Mas perguntamos “Por que não?” Jesus sabia de antemão onde se
acharia exatamente certo peixe num momento dado, e o que teria dentro
da boca (Mt. 17:27). Também soube quantas vezes se casou uma mulher
desconhecida a quem nunca tinha visto antes (4:17, 18) e onde se acharia
um jumentinho e o que seus donos diriam se alguém tentasse desatá-lo
(Mc. 11:1–7). O Senhor sabia quem era o homem que levaria um cântaro
quando os dois discípulos se encontrassem com ele ao entrar na cidade
de Jerusalém (Mc. 14:12–16); e que foi capaz de predizer a própria
forma em que cairia Jerusalém (Mt. 21:40–43; 22:7; 23:37, 38; 24:1, 2,
15; Mc. 13:1, 2; Lc. 19:41–44), e a extensão vitoriosa do evangelho
através dos séculos (Mt. 24:14), não poderia predizer os detalhes de Sua
própria paixão iminente, nem mesmo depois de ter falado sobre estes
assuntos com dois mensageiros do céu (Lc. 9:31)? De minha parte eu
penso que o que aqui se apresenta como predição é realmente predição,
pois “uma profecia que brota de um evento” não é de modo algum uma
profecia!
495
_ναστήσεται, fut. ind. med. 3ª. pes. sing. de _νίστημι, com significado ativo.
496
Veja-se E. P. Gould, Op. cit., p. 198; E. C. Grant, Op. cit., pp. 809, 810; M. H. Bolkestein, Op. cit.,
p. 237; Vincent Taylor, Op. cit., pp. 437, 438.
Marcos (William Hendriksen) 527
Seria indesculpável terminar o comentário sobre este preciosa
passagem (Mc. 10:32–34) sem mostrar seu significado com relação à
majestade do amor de Cristo. A predição, segundo se mostrou, é muito
mais detalhada que as anteriores. A revelação gradual dos eventos que
se estavam aproximando tinha um propósito pedagógico, como já se
indicou (veja-se sobre Mc. 8:31, 32a). Mas deve também reconhecer-se a
possibilidade de que até na consciência humana de nosso Senhor, o
“pressentimento” do horror que se aproximava fazia-se pouco a pouco
mais real. Quanto à mente de Cristo não havia nada estático (veja-se Lc.
2:52; Hb. 5:8). Esta terceira predição, embora muito extensa e detalhada,
não prova necessariamente que na mente de Jesus a imagem da iminente
angustia era já tão real como o seria no Getsêmani.
Entretanto, já nestes momento o horror deve ter sido ser muito real
e aterrador (veja-se Lc. 12:50). O Varão de dores vê que já se aproxima a
hora. Já experimenta algo da perfídia, a hipocrisia, a calúnia, a zombaria,
a dor, e a vergonha que ameaçam atingi-Lo como uma avalanche. Nem
mesmo assim retrocede, nem sequer Se detém. De forma decidida e
determinada vai direto a ela, porque sabe que isto é necessário para
salvar o Seu povo. Tendo amado os Seus … “amou-os até o fim” (Jo.
13:1).

Mc. 10:35–45 - O pedido dos filhos de Zebedeu


Cf. Mt. 20:20–28

Esta história quase não é mencionada em Lucas; só se relata em


Mateus e Marcos (mas veja-se Lc. 22:25, 26; cf. Mc. 10:42–44). Tanto
Marcos (William Hendriksen) 528
em Mateus como em Marcos, o que nos é apresentado é o pedido dos
dois lugares de mais alta proeminência no “reino de Cristo” (segundo
Mateus) ou a “glória” (segundo Marcos). A diferença principal entre as
duas narrações é que em Mateus o pedido é feito pela “mãe dos filhos de
Zebedeu” [Mt. 20:20, RC], e em Marcos “Tiago e João, filhos de
Zebedeu” [Mc. 10:35]. Esta “diferença principal” não é uma contradição,
porque também Mateus informa que a mãe veio “com seus filhos”, e que
Jesus, em resposta ao pedido, falou com mais de uma pessoa.
Claramente se vê que o pedido da mãe foi também o dos filhos. Quanto
ao resto, as diferenças entre os dois relatos são menores. Não existem
conflitos nem discrepâncias.
A pergunta “Podeis … receber o batismo com que eu sou
batizado?” (Mc. 10:38, e note-se o eco no v. 39) não se acha em Mateus,
mas a frase sinônima “beber o cálice …” aparece em ambos os
Evangelhos. À cláusula de Marcos “mas isso (esta honra) é para aqueles
a quem está reservado” Mateus acrescenta “para quem meu Pai” (cf. Mc.
10:40 com Mt. 20:23). Em Mc. 10:41, novamente Marcos (como em Mc.
10:35) menciona os dois irmãos pelo nome. Mateus, pelo contrário, em
nenhuma parte deste relato (Mt. 20:20–28) dá seus nomes. Simplesmente
diz “os filhos de Zebedeu” (Mt. 20:20), “os dois irmãos” (v. 24). Isto
tampouco cria dificuldades, porque em seu Evangelho anteriormente
tinha escrito duas vezes, “o filho de Zebedeu e João seu irmão” (4:21,
10:2; e cf. 17:1). Em Mc. 10:42, Marcos tem “os que são considerados
governadores”; e Mateus (20:25) omite “os que são considerados”.
Em seu conjunto, é muito chamativa a semelhança entre os dois
relatos, não só nos pensamentos que se expressam, mas também na
mesma fraseologia. Não é acaso a relação literária a explicação mais
razoável disso?
Existe uma semelhança notável entre a. o segundo anúncio da
paixão e seus efeitos, e b. o terceiro anúncio e seus efeitos. Em ambos os
casos, prediz sua próxima humilhação voluntária por amor aos
Marcos (William Hendriksen) 529
pecadores; o que vem seguido imediatamente por um relato sobre aquele
anelo de exaltação que mostraram os discípulos. Note-se:

Segundo anúncio e efeito subsequente:


“O Filho do Homem será entregue nas mãos dos homens, e o
matarão …” (Mc. 9:31). — “Quem (de nós) é o maior?” (Mc. 9:34).

Terceiro anúncio e efeito subsequente


“O Filho do Homem será entregue aos principais sacerdotes e aos
escribas …” (Mc. 10:33). — “Permite-nos que, na tua glória, nos
assentemos um à tua direita e o outro à tua esquerda” (Mc. 10:37).

E o efeito do primeiro anúncio, embora diferente, não foi melhor


(Mc. 8:31, 32). Parece justificado concluir que estas duas predições não
se entenderam no momento de anunciadas. Os discípulos tinham
confessado que Jesus era o Cristo (Mc. 8:29, 30), e Ele tinha reconhecido
o apropriado desta confissão (Mt. 16:17). Mas repetidamente havia dito
aos Doze que O matariam. Para os discípulos não tinha sentido combinar
a ideia de um Messias com o prognóstico da morte. E no momento, a
predição adicional de “depois de três dias ressuscitará” tampouco lhes
esclarecia o problema de modo algum.
Com relação à terceira predição, Lucas 18:34 diz: “Eles, porém,
nada compreenderam acerca destas coisas”. Não as compreenderam até
muito depois, e pior ainda, conforme demonstra outra vez o relato
presente, não levaram a sério a lição que o Mestre lhes ensinava. Sob a
inspiração do Espírito Santo, Paulo ensinou a mesma lição, que para
nosso propósito presente poderia resumir-se como segue: “Não façam
nada por ambição pessoal ou por vanglória; e sim com humildade cada
um considere o outro como melhor que ele mesmo, e que cada um só
busque seu próprio interesse, mas também o interesse dos demais. De tal
maneira que tenham a mesma atitude que teve Cristo Jesus, quem … se
Marcos (William Hendriksen) 530
humilhou a si mesmo, e fez-se obediente até a morte; sim, e morte na
cruz” (veja-se CNT sobre Fp. 2:3–8).
Estes dois homens (vv. 35–37) e dos outros dez (v. 41) não
aplicaram esta lição aos seus próprios corações, como se vê a seguir:
35. Então, se aproximaram dele Tiago e João, filhos de
Zebedeu, dizendo-lhe: Mestre, queremos que nos concedas o que te
vamos pedir.
Não sabemos com precisão nada quanto ao tempo e o lugar. A
palavra “então” nem sempre significa “nesse mesmo momento” ou
“imediatamente depois”. Pode significar “por aquele tempo”. Entretanto,
deve-se ter em mente de que se acabava de produzir a terceira predição
sobre a paixão. O episódio presente termina com outra muito precisa
referente à cruz (v. 45). Parece, então, que os filhos de Zebedeu fizeram
o seu pedido pouco depois da terceira predição, e muito pouco antes da
semana da paixão. E quanto ao lugar, ao comparar o versículo 33 e o 46,
podemos concluir com boa probabilidade que este evento ocorreu a
caminho para Jerusalém, via Jericó, mas antes de chegar a Jericó.
O que chama a atenção com respeito aos Doze é que apesar de sua
lentidão para compreender as predições de seu Mestre, não O
abandonaram — com exceção de Judas pouco depois. Pelo contrário,
foram-lhe fiéis. E não só isso, mas também inclusive creram que de
algum modo o Senhor estabeleceria muito em breve o reino do qual tinha
falado vez após vez (Mc. 1:15; 4:11, 26, 30; 9:47; 10:14, 15; e veja-se
especialmente Mc. 9:1). Além disso, criam que lhes tinha sido prometido
lugares de proeminência dentro desse reino (Mt. 19:28) que estava muito
próximo; na realidade criam que podia apresentar-se imediatamente (Lc.
19:11).
Em vista disto, dois dos discípulos de Cristo, Tiago e João, filhos de
Zebedeu (cf. Mc. 1:19–20) decidiram que aquele era o momento
propício para tentar obter sua parte nesta honra. Queriam pôr a marca
agora que o ferro estava candente. Assim que se aproximaram de Jesus
Marcos (William Hendriksen) 531
com o surpreendente pedido: “Mestre (veja-se sobre Mc. 4:38b; 10:17),
queremos que nos concedas o que te vamos pedir”.
Era como pedir ao Mestre que lhes desse um cheque em branco,
para que eles o preenchessem. Faz lembrar as crianças que, às vezes,
com olhos ardilosos, aproximam-se da mamãe com um pedido
semelhante. Estas demandas são geralmente feitas quando os pequenos
não estão muito seguros de ter direito a receber o que pedem. A néscia
promessa de Herodes, “Pede-me o que quiseres, e eu to darei” (Mc. 6:22)
vem-nos certamente à mente. Por certo, há certa semelhança com esta
passagem, embora também há um contraste. O rei mundano colocava-se
a si mesmo numa situação vergonhosa, mas estes discípulos procuravam
comprometer a Jesus de antemão, quer dizer, sem sequer dizer o que
pretendiam, que é um procedimento destituído de ética, para não dizer
algo pior. 497
36. E ele lhes perguntou: Que quereis que vos faça?
Jesus recusa comprometer-Se. Fazer promessas às cegas não é
correto. Pense-se novamente na promessa de Herodes a Salomé! Por
isso, o Mestre pede a Tiago e a João que especifiquem.
37. Responderam-lhe: Permite-nos que, na tua glória, nos
assentemos um à tua direita e o outro à tua esquerda. João e Tiago
imaginavam Jesus sentado em Seu trono real, rodeado pelos Seus
servidores. Sonhavam ocupando os lugares de mais alta honra entre estes
altos oficiais. Queriam estar sentados à Sua direita e à Sua esquerda. 498

497
Como sucede com frequência, Marcos usa o presente dramático, dando assim viveza ao relato.
Além disso, o texto registra um verbo que indica desejo (“queremos”) seguido de _να. Esta conjunção
aqui não indica propósito, e sim introduz a cláusula complementar. Literalmente: queremos que
qualquer coisa que te peçamos, tu nos faças isso. α_τήσωμεν, aor. subj. at. 1ª. pes. pl. de α_τέω;
ποιήσ_ς aor. subj. at. 2ª. pes. sing. de ποιέω.
498
Direita e esquerda são plurais no original; portanto, literalmente, “das partes direitas de teu corpo e
das partes esquerdas”. Para δεξιός (aqui δεξι_ν), cf. ambidestro. Para _ριστερός (aqui _ριστερ_ν), cf.
sinistro. Conexão etimológica? Provavelmente não. Um sinônimo eufemístico de _ξ _ριστερ_ν é _ξ
ε_ωνύμων (Mc. 10:40; 15:27; cf. Mt. 20:21, 23; 25:33, 41; 27:38). Dizemos “eufemístico”, porque
realmente as coisas más supunha-se que vinham da esquerda. Para os judeus, ao olhar para o este, sua
esquerda era o norte, de onde muitas vezes vinham as coisas más (Jr. 1:14; 4:6: pense-se nas
Marcos (William Hendriksen) 532
Não era esta o costume dos reis e seus acompanhantes, e também de
outros dignitários e dos que formavam seu séquito? (veja-se Êx. 17:12;
2Sm. 16:6; 1Rs. 22:19; 2Cr. 18:18; Ne. 8:4).
Apesar de tudo, a petição deles era uma evidência de fé. Criam que,
conforme a Sua promessa, Jesus Se assentaria no trono de Sua glória e
que cada um dos Doze se assentaria num trono. Estavam convencidos
disso, apesar de que naquele momento havia muito poucos sinais de que
os acontecimentos avançassem em tal direção. Isto é o que se pode dizer
a favor deles.
Mas, por outro lado, é claro que uma ambição pecaminosa estava
aqui jogando um papel importante. Desejavam que os dois postos mais
honoráveis fossem atribuídos não a Filipe e Bartolomeu, Mateus e Tomé,
nem mesmo a Pedro e André, mas a eles mesmos, a Tiago e João, nem
mais nem menos!
O que é que pôde ter aceso esta ambição?
a. A mãe deles o desejava. Ela estava por trás de tudo, como o
demonstra Mateus 20:20, 21. Mas podem ter havido outras
considerações, embora não tenhamos certeza de que alguma delas
desempenhasse algum papel.
b. Jesus os tinha incluído no círculo mais íntimo dos discípulos.
Pertenciam ao trio de Pedro, Tiago e João (Mc. 5:37; 9:2; cf. 14:33).
c. No começo, estes homens tinham pertencido a uma classe social
mais privilegiada que os outros discípulos. Não tinha seu pai
trabalhadores assalariados? (veja-se Mc. 1:20).
d. Podia tratar-se de parentes de Jesus, talvez primos. Sua mãe
Salomé (que não se deve confundir com a Salomé que se menciona mais

invasões). Para os gregos, ao olhar a norte, sua esquerda ficava a oeste, considerado igualmente
desfavorável.
Esta nota adiciona-se só para explicar a origem destas palavras gregas. Talvez não seja necessário
acrescentar que a divina revelação não atribui validez alguma a estas ideias supersticiosas, agouros,
etc. Todas as coisas estão sob o controle de Deus e ainda aquilo que é — ou parece ser — mau, está
sob Seu controle (Sl 33:11; Pv. 16:4; 19:21; Is. 14:24–27; 46:10; Dn. 4:24; Rm. 8:28; Ef. 1:11).
Marcos (William Hendriksen) 533
acima, na explicação do v. 36) parece ter sido irmã de Maria, a mãe de
Jesus. Cf. Mt. 27:56; Mc. 15:40; Jo. 19:25.
Não obstante, o fato de fazer este pedido a Jesus era definitivamente
mau. Eram culpados de dar rédea solta a suas ambições pecaminosas,
egoístas e terrestres. Desejavam alcançar as posições de mais alta honra,
as quais vinham depois da posição do próprio Cristo. Ao pretender
semelhante coisa eram qualquer coisa, menos gente à imagem do próprio
Cristo.
38. Mas Jesus lhes disse: Não sabeis o que pedis. Podeis vós
beber o cálice que eu bebo.
Jesus os lembra aqui algo que tinham esquecido, ou seja, que um
pedido de glória significa um pedido de sofrimento; em outras palavras,
que o único caminho que leva ao céu é o caminho da cruz. De modo que,
pergunta-lhes se podem beber o cálice que ele está prestes a beber. No
idioma do Antigo Testamento e da literatura relacionada, “beber [o
conteúdo de] o cálice” significa participar plenamente desta ou de outra
experiência, quer seja favorável (Sl 16:5; 23:5; 116:13; Jr. 16:7) ou
desfavorável (Sl 11:6; 75:8; Is. 51:17, 22; Jr. 25:15; Lm. 4:21; Ez. 23:32;
Hc. 2:16). Jesus também falou de Seu cálice de amargo sofrimento (Mt.
26:39, 42; Mc. 14:36; Lc. 22:42). E quanto ao Novo Testamento, veja-se
também Ap. 14:10; 16:19; 17:4; 18:6. Estão, então, estes discípulos
dispostos a ser participantes de Seus sofrimentos, quer dizer, dos
sofrimentos por amor do Seu nome e por amor da Sua causa (Mt. 10:16,
17, 38; 16:24; 2Co. 1:5; 4:10; Gl 6:17; Fp. 3:10; Cl. 1:24; 1Pe. 4:13; Ap.
12:4, 13, 17)?
Marcos deixa constância da expressão sinônima que Jesus usou
também nesta ocasião: ou receber o batismo com que eu sou
batizado? Se alguma diferença houver entre o significado destas duas
partes da pergunta de Cristo, poderia talvez ser que, beber o cálice
estivesse apontando à obediência ativa de Cristo; e ser batizado, à
obediência passiva. A obediência de Jesus tomou ambas as formas.
Poderia inclusive dizer-se que as duas são inseparáveis: cada uma delas
Marcos (William Hendriksen) 534
considera a obediência de Cristo de seu próprio ângulo: o Senhor
escolheu morrer, e Se submeteu aos golpes que caíram sobre Ele. A
palavra “ser batizado” é usada aqui provavelmente no sentido figurativo
de “ser arrasado” (neste caso) pela agonia. (cf. Lc. 12:50). Jesus devia
ser afligido por águas de horrível angústia. 499 Note-se um uso um tanto
similar do verbo em Is. 21:4 (LXX) e em Flávio Josefo, Guerra Judaica
IV. 137. Veja-se também Sl 42:7 - “Todas as tuas ondas e vagas
passaram sobre mim”; e Sl 124:4 - “As águas nos teriam submergido, e
sobre a nossa alma teria passado a torrente”.
Deve-se ter em mente, naturalmente, que há e sempre haverá, uma
diferença básica entre os próprios sofrimentos de Cristo e os de Seus
seguidores: o primeiro é vicário (Mc. 10:45; cf. Mt. 20:28); o segundo
jamais poderá sê-lo (Sl 49:7). Entretanto, existe uma estreita relação
entre ambos: o cristão sofre “por causa de Cristo”, quer dizer, por Sua
lealdade ao seu Senhor e Salvador. É por esta razão que Paulo pôde
escrever, “Abundam em nós as aflições de Cristo” (2Co. 1:5); e Pedro
disse, “Mas alegrai-vos porquanto sois participantes dos sofrimentos de
Cristo” (1Pe. 4:13). Veja-se também Mt. 10:25; Mc. 13:13; Jo. 15:18–
21; At. 9:4, 5; 2Co. 4:10; Gl 6:17; Fp. 3:10; Cl. 1:24 e Ap. 12:13. É neste
sentido, então, que Jesus pergunta a Tiago e a João: “Podeis vós beber o
cálice que eu bebo ou receber o batismo com que eu sou batizado?” 500
39a. Disseram-lhe: Podemos.
Pelo lado positivo, podemos ao menos reconhecer o alto grau de
lealdade para com seu Mestre. Entretanto, o futuro demonstraria que
neste momento estavam confiando muito em si mesmos (veja-se Mc.
14:27, 50). Esta resposta estava muito longe de ser tão digna de elogio
como a de Paulo (Fp. 4:13).

499
Mas isto não significa que o verbo βαπτίζω, conforme usa-se na Escritura, tenha sempre o
significado de submergir. Em passagens tais como Mc. 7:4; Lc. 11:38; 1Co. 10:1, 2 (cf. Êx. 14:16, 22,
29); Hb. 9:10 (cf. vv. 13, 19, 31) não pode ter propriamente este significado. Veja-se mais acima,
sobre Mc. 7:4.
500
Para observações sobre o grego, veja-se a nota seguinte.
Marcos (William Hendriksen) 535
Cristo não só responde a esta declaração extravagante, mas também
responde ao pedido destes dois apóstolos. Ambas as coisas são
consignadas nos versículos
39b, 40. Tornou-lhes Jesus: Bebereis o cálice que eu bebo e
recebereis o batismo com que eu sou batizado; quanto, porém, ao
assentar-se à minha direita ou à minha esquerda, não me compete
concedê-lo; porque é para aqueles a quem está preparado.
De forma indireta se predizem aqui tanto o martírio de Tiago (At.
12:2) como o exílio de João à ilha de Patmos (Ap. 1:9). Estes dois
eventos futuros formavam parte dos sofrimentos por causa de Cristo que
estes discípulos teriam que experimentar. Com relação a Tiago e a João,
veja-se também mais acima sobre Mc. 3:17; e veja-se CNT sobre João,
pp. 31–33. Referente ao próprio pedido, Jesus indica que os graus e
posições de eminência em Seu glorioso reino já foram determinados,
quer dizer, foram decretados no conselho eterno de Deus (cf. Mt. 20:23:
“preparado por meu Pai”). O Mediador não os pode alterar (vejam-se Mt.
24:36; 25:34; Lc. 12:32; At. 1:7; Ef. 1:4, 11). 501
41. Ouvindo isto, indignaram-se 502 os dez contra Tiago e João.
O relatório do ocorrido encheu os outros discípulos de indignação.
Provavelmente pensaram que Tiago e João, ao solicitar estas posições de
preeminência, estavam maquinando contra eles. Parece que tampouco
eles tinham tomado a sério a lição de Mc. 9:35–37. Provavelmente
desejavam aquelas distinguidas posições para si mesmos. Isto indica que
a atitude espiritual dos dez não era melhor que a dos outros dois. Quão

501
No v. 38, πιε_ν é um inf. aor. at., e no v. 39 πίεσθε é um fut. ind. at. 2ª. pes. pl. de πίνω. No v. 38,
βαπτισθ_ναι é inf. aor. pas., e no v. 39 βαπτισθήσεσθε é fut. ind. pas. 2ª. pes. pl. de βαπτίζω. Nas
formas passivas, βάπτισμα é o acusativo cognato. No v. 40, note-se o inf. aor. com artigo καθίσαι que
vem de καθίζω; _τοίμασται pf. ind. pas. 3ª. pes. sing. de _τοιμάζω, e _μόν é o adjetivo possessivo
neutro usado como pregado e como substantivo nominativo depois de _στι. Este adjetivo vem seguido
de δο_ναι inf. aor. de δίδωμι. Para _κ δεξι_ν — _ξ ε_ωνύμων, veja-se o v. 37, nota 499.
502
Literalmente, “eles se começaram a” ou “ficaram”. Mas neste caso _ρξαντο bem poderia ser um
auxiliar redundante. Sobre este uso pleonástico de _ρχω, veja-se sobre 1:45 e 6:7.
Marcos (William Hendriksen) 536
fácil é condenar em outros o que perdoamos em nós mesmos! É
necessário um Natã para nos ilustrar isto (2Sm. 12:1ss.). Cf. Rm. 2:1.
É preciso levar em conta que a atitude destes doze homens deve ter
causado muita tristeza no coração do Senhor, visto que indicava que
inclusive naquele momento, apesar de todas as Suas mensagens, ainda
não tinham posto em prática aquela parte de Seu ensino. Entretanto,
reage bondosamente. Acaso não é o tenro Pastor que ama as Suas
ovelhas? Assim que, primeiro chama os Doze. Logo, com calma e
sinceridade, repreende-os e admoesta:
42. Mas Jesus, chamando-os [a todos] para junto de si, disse-
lhes: Sabeis que os que são considerados 503 governadores dos povos
têm-nos sob seu domínio, e sobre eles os seus maiorais exercem
autoridade.
Parece como se Jesus dissesse: Isto é o que sucede no mundo
gentílico. Gastam todas as suas energias para chegar ao topo; e, depois
de tê-lo alcançado, fazem com que todos os outros sintam o peso de sua
autoridade.
Segundo Marcos, Jesus descreve estes monarcas como “os que são
considerados governadores”. Outra possível tradução poderia ser “os
governantes reconhecidos”. Mas em harmonia com o Gl 2:2, 6, 9, a
tradução “os assim chamados” ou “os que têm reputação de ser” ou “os
que se supõem que são” é provavelmente correta. É bem possível,
portanto, que as palavras do Mestre tenham aqui uma tintura irônica. 504
Se os que ostentam a autoridade governassem sabiamente, tudo andaria
bem. Mas não, uma vez chegados à cúspide, só pensam em si mesmos,
de modo que fazem com que seus súditos se descoroçoem sob o
esmagador peso de seu poder. “Senhoreiam sobre” seus súditos, mas

503
Ou: reconhecidos.
504
O original diz ο_ δοκο_ντες _ρχειν. Portanto, estou de acordo com o ponto de vista do Vincent
Taylor, Op. cit., p. 443, sobre este ponto. A presença deste matiz irônico está reconhecida também
pelas seguintes traduções: VP, BP, LT, CB, Moffatt, Williams, Phillips. Bom material sobre esta
passagem se acha também em E. Trueblood, Op. cit., pp. 87, 88, 127.
Marcos (William Hendriksen) 537
enquanto fazem isto, também desejam que os que estão sob sua
autoridade criam que sua maior preocupação são os interesses de seus
governados.
A interpretação de “tintura irônica” está apoiada — num sentido —
pela passagem paralela em Lucas 22:25, “e os que exercem autoridade
são chamados benfeitores”.
As palavras de Jesus eram uma verdade muito oportuna para o Seu
tempo. Foram verdade desde então e são relevantes em todas as épocas.
Pode-se achar abundante evidência disto em moedas e monumentos, e
em livros de história; são testemunhas, por exemplo, os seguintes títulos
que avidamente adotaram os tiranos terrestres: Salvador, Benfeitor,
Protetor, Caudilho, Libertador, etc.
Jesus continua:
43, 44. Mas entre vós não é assim; pelo contrário, quem quiser
tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva; e quem quiser ser o
primeiro entre vós será 505 servo de todos.
Essencialmente este é o ensino de Mc. 9:35–57. Cf. 8:34, 35. Veja-
se também Mt. 10:39; 16:24, 25; 18:1ss.; Lc. 9:23, 24. A forma que se
comunica é nova e reconfortante. É um paradoxo inesquecível. Jesus diz
que no reino onde Ele reina, a grandeza se obtém seguindo um curso de
ação que é exatamente o oposto do que se segue no mundo incrédulo. A
grandeza consiste em entregar-se; é a efusão do eu a serviço a outros e
para a glória de Deus. Ser grande significa amar. Vejam-se Jo. 13:34;
1Co. 13; Cl. 3:14; 1Jo. 3:14; 4:8; 1Pe. 4:8.

É a pirâmide invertida, na qual o crente localiza-se no fundo como o


servo, como o humilde ajudante 506 “de todos” (só em Marcos). Esta
505
Em ambos os versículos (43, 44) _σται tem força imperativa: “será”, “deve ser”; portanto, “que
seja”. Robertson, p. 943.
506
É claro que nos vv. 43, 44 os vocábulos διάκονος e δο_λος são sinônimos. Como muitos outros, a
pessoa se vê tentado a traduzi-los como “servo” e “escravo”. Entretanto, no curso da história, as ideias
de falta de liberdade, serviço não voluntário, trato cruel, etc., chegaram a estar tão estreitamente
ligadas à ideia de “escravo” que, junto com outros tradutores, creio que é impossível aceitar esta
Marcos (William Hendriksen) 538
pirâmide invertida simboliza o cristão que continua seu caminho às
mansões de glória, confiando em Deus e amando a todos os homens. Ao
fazer isto, não está andando nos passos de seu Senhor e Salvador? (veja-
se Lc. 22:27; Jo. 13:34, 35).
De fato este é o próprio pensamento que Jesus ressalta, ao
continuar:
45. Pois o próprio Filho do Homem não veio para ser servido,
mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos.
Cf. Mt. 20:28. Com toda propriedade, esta foi considerada como
uma das expressões mais preciosas de Cristo. A expressão “pois o
próprio Filho do Homem” aponta claramente à humilhação de Cristo em
substituição de Seu povo e para benefício do mesmo. Os crentes devem
viver motivados por este exemplo. Ele é “o Filho do Homem”, em
cumprimento da profecia de Daniel 7:14. Para um estudo detalhado da
frase “Filho do Homem”, veja-se sobre Mc. 2:10 e Mt. 8:20. Em Si
mesmo e desde a eternidade, Ele é o tudo Glorioso. Entretanto,
humilhou-Se; encarnou-Se, e isto não com o propósito de ser servido,
mas para servir (veja-se também sobre 2:17; estudem-se 2Co. 8:9; Fp.
2:5–8; e veja-se CNT sobre 1Tm. 1:15).
O Filho do Homem tinha o propósito de servir dando “sua vida em
resgate por muitos”. Aqui a tradução correta 507 seria “em lugar de” ou
“em troca de”. A passagem é uma prova clara da expiação vicária. O
resgate era originalmente o preço que se pagava para libertar um
escravo. O que Jesus está dizendo, então, é que Ele veio ao mundo para
dar Sua vida — quer dizer, dar-Se a Si mesmo (veja-se 1Tm. 2:6) — em
troca de muitos. O conceito da morte de Cristo na cruz como o preço

tradução como a verdadeira representação do que Jesus tinha em mente no presente contexto. Parece-
me muito melhor a tradução (para os dois termos) de: “ministro … servo”. Minha única razão para
sugerir inclusive outro equivalente é que hoje o termo “ministro” se entende muitas vezes no sentido
técnico de clérigo. Quanto a διάκονος, veja-se também CNT no Evangelho segundo João, p. 127; e
CNT sobre 1 e 2 Timóteo e Tito, nota 67; e quanto a δο_λος, CNT sobre Fp. 1:1, pp. 56, 57.
507
Veja-se a dissertação doutoral do autor, The Meaning of the Preposition _ντί in the New Testament,
Princeton Seminary, 1948.
Marcos (William Hendriksen) 539
pago, preço muito mais precioso que a prata ou o ouro, acha-se também
em 1Pe. 1:18, 19. Cf. com Êx. 30:12; Lv. 1:4; 16:15, 16, 20–22; Nm.
3:40–51; Sl 49:7, 8; 1Co. 6:20; 7:23; Gl 3:13; 4:5; 1Tm. 2:5, 6; 2Pe. 2:1;
Ap. 5:6, 12; 13:8; 14; 3, 4.
A frase “em resgate por muitos” é provavelmente um eco de Isaías
53:11, conforme indica toda a fraseologia circundante. Na realidade, em
Isaías 53 prepondera a ideia de substituição: veja-se os versículos 4, 5, 6,
8, e 12 (veja-se também Mt. 26:28). É, por certo, perfeitamente correto
que este resgate “em lugar de” e “em troca de” muitos, indica
imediatamente que este benefício chega e é suficiente para os muitos. As
duas ideias “em lugar de” e “em benefício de” combinam-se numa.
Como poderíamos conceber, nem sequer por um instante, a ideia de que
um resgate “em lugar de” muitos não é para o bem deles? Além disso, o
próprio contexto afirma de maneira muito clara que por meio deste
resgate, o Filho do Homem serve aos muitos. Resgata-os da ruína maior
imaginável, ou seja, a maldição de Deus sobre o pecado; e derrama sobre
eles a felicidade mais maravilhosa imaginável, ou seja, aquelas bênçãos
de Deus para a alma e o corpo, e isto por toda a eternidade. Veja-se Is.
53:10; Rm. 4:25; 2Co. 5:20, 21; Tt. 2:14; 1Pe. 1:18, 19.
A frase “em lugar de muitos” é de suma importância. Não diz em
lugar de todos, mas em lugar de muitos. A identidade destes “muitos”
vê-se claramente em passagens tais como Is. 53:8; Mt. 1:21; Jo. 10:11,
15; 17:9; Ef. 5:25; At. 20:28; Rm. 8:32–35. Mas também se deve
entender: não em lugar de uns poucos, e sim de muitos, sem distinção
alguma de raça, nacionalidade, classe, idade, sexo, etc. (Rm. 10:12, 13;
1Co. 7:19; Gl 3:9, 29; Ef. 2:14, 18; Cl. 3:11). As boas novas de salvação
mediante o resgate pago por Cristo para todos os que creem (Mc. 10:45;
Jo. 3:16; 2Co. 5:20, 21) devem ser proclamadas a todos. Deve ficar claro
para todos que Deus não Se deleita na morte do ímpio, antes Se alegra
quando o ímpio se volta de seus maus caminhos e vive na verdade (Lm.
3:33; Ez. 18:23, 32; 33:11; Os. 11:8).
Marcos (William Hendriksen) 540
É preciso sublinhar que a própria fraseologia da passagem (“dar sua
vida em resgate”, Mc. 10:45) indica que a morte de Cristo pelos Seus
deve ser considerada como um sacrifício voluntário. Não foi algo
imposto ao Mediador. Deu Sua vida por decisão própria. Veja-se
novamente Jo. 10:11, 15. Este fato dá à Sua morte um valor expiatório.
Por último, o preço do resgate não foi pago (como sustentou
Orígenes) a Satanás, mas ao Pai (Rm. 3:23–25), quem também, junto
com o Filho e o Espírito Santo, deu os passos necessários para a salvação
do Seu povo (Jo. 3:16; 2Co. 5:20, 21).
Não se deve passar por alto o contexto. Em Marcos 10:45, Jesus
está ensinando que aquela Sua disposição para humilhar-Se a Si mesmo
a ponto de dar Sua vida em resgate por muitos, deve refletir-se nos Doze
e em todos os Seus seguidores. Em seu modesto grau e forma, cada
seguidor de Cristo deve, pela graça de Deus, mostrar este amor a outros.

Mc. 10:46–52 - A cura do cego Bartimeu em Jericó


Cf. Mt. 20:29–34; Lc. 18:35–43

A cidade de Jericó dos tempos de Jesus e suas ruínas atuais, acham-


se um pouco ao sul da cidade de Jericó do Antigo Testamento. A cidade
que menciona Marcos em 10:46 estava localizada a 25 quilômetros a
nordeste de Jerusalém. Como a altura de Jerusalém é de 1000 metros
mais que a de Jericó, este fato esclarece o texto de Lucas 10:30: “um
homem descia de Jerusalém a Jericó”. Herodes o Grande, e mais tarde
também Arquelau, seu filho, tinha fortalecido e embelezado esta cidade,
dando a ela um teatro, um anfiteatro, quintas e banhos. Mesmo antes do
reinado de Herodes I, Jericó já era “um pequeno paraíso”, com suas
palmeiras, roseiras, etc. No inverno seu clima era delicioso, tornando-a
lugar de residência invernal adequada para um rei. Não foi esta cidade o
obséquio de Marco Antônio a Cleópatra, a rainha egípcia, como sinal de
seu afeto?
Marcos (William Hendriksen) 541
Entretanto, Jesus não estava pendente da beleza e esplendor de
Jericó, quando viajou com Sua pequena companhia da Pereia, a sudoeste,
ao outro lado do Jordão; e assim via Jericó rumo a Jerusalém — e rumo à
cruz. Embora sobre Seu coração pesasse uma carga indescritivelmente
pesada (Mt. 20:17–19; cf. Lc. 12:50), nem por isso se tinha apagado Sua
preocupação pelas necessidades de outros.
Antes de entrar na exegese dos versículos 46–52, é necessário dizer
algo a respeito deste breve parágrafo em seu conjunto, pois se observa
que é como um festim: a. por um lado para os harmonizadores; e b. por
outro, para os caluniadores. O problema é que Mateus fala de dois
cegos, enquanto que Marcos e Lucas fazem menção de um, a quem
Marcos chama Bartimeu. Além disso, segundo Mateus e Marcos o
milagre ocorreu ao sair Jesus e Seus discípulos de Jericó; mas segundo
Lucas, ao se aproximar de Jericó.
Quanto ao primeiro problema, é possível que Marcos, o intérprete
de Pedro, só tivesse ouvido a respeito da história de Bartimeu?
Naturalmente, esta não é realmente uma solução; somente tende a
transpassar um pouco o problema de Marcos e Lucas (quem
presumivelmente leu Marcos) a Pedro. Por outro lado, o problema não
encerra gravidade alguma. Não existe contradição real, porque nem
Marcos nem Lucas nos dizem que Jesus restaurou a vista de um cego
somente. Quanto ao resto, devemos admitir que não temos a resposta:
não sabemos por que razão Marcos escreveu — e Pedro, supomos, falou
— a respeito de Bartimeu e não a respeito do outro cego.
Quanto ao segundo problema, entre as soluções que se aduziram
estão as seguintes: a. Havia duas cidades chamadas Jericó: Jesus,
portanto, pôde ter realizado o milagre enquanto saía de uma e entrava na
outra; b. Um cego pôde ter sido curado quando Jesus entrava em Jericó,
e o outro quando saía; c. Jesus tinha entrado na cidade, tinha-a
atravessado, e agora saía dela. Ao sair da cidade viu a Zaqueu na árvore,
e disse ao pequeno publicano que descesse. Então, junto com Zaqueu,
voltou a entrar na cidade para passar a noite na casa do coletor de
Marcos (William Hendriksen) 542
impostos. Segundo a solução proposta, o milagre ocorreu ao voltar a
entrar na cidade. Daí que seja possível que Mateus e Marcos dissessem o
que ocorreu ao sair da cidade; e Lucas ao se aproximar dela.
Entretanto, às três soluções podem levantar objeções. Pelo fato de
que o relato de Marcos é tão similar ao de Lucas, é difícil aceitar o que a
solução a. propõe, ou seja, que o nome “Jericó” significa duas coisas
distintas. A solução b. não soluciona nada, porque Marcos e Lucas estão
falando claramente do mesmo cego, “Bartimeu, o filho de Timeu”.
Entretanto, segundo Marcos a vista deste homem ficou restaurada “ao
sair Jesus de Jericó”; segundo Lucas, “ao se aproximar de Jericó”.
Quanto a c., não se explica como é que a palavra “entrou” adquire o
significado de “voltou a entrar do outro lado”. Há outras soluções, mas
não são melhores: por exemplo, que o homem estava sentado junto ao
caminho mendigando, ao entrar Jesus pelo este; levantou-se e O seguiu
durante todo o trajeto pela cidade até que finalmente, ao sair Jesus da
cidade, curou-o. A melhor resposta é: Existe indubitavelmente uma
solução, visto que esta “Escritura” também é inspirada. Mas, não temos
essa solução!
Há outras diferenças entre estes três relatos, mas a maioria delas não
são importantes. Nenhuma encerra contradição alguma ou conflito entre
si.
A diferença mais importante é que aqui, como o é com frequência
em outros lugares, Marcos é o mais explícito e vivaz. É o único que nos
diz que o cego chamava-se Bartimeu. O relato é muito detalhado nos
versículos 49, 50: Jesus Se dirige primeiro à multidão, detalhe que está
totalmente excluído do relato de Mateus, e que no de Lucas só se
insinua. Marcos, não obstante, detém-se nele, descrevendo exatamente o
que Jesus disse às pessoas, e o que eles, por sua vez, disseram a
Bartimeu, e a forma tão agitada em que se aproximou de Jesus.
Também Lucas faz sua contribuição. Informa-nos que quando o
cego ouviu que a multidão passava, perguntou o que é que sucedia.
Inesquecível, e muito frequentemente citada em sermões, foi a resposta:
Marcos (William Hendriksen) 543
“Passava Jesus, o Nazareno” (Lc. 18:36, 37). Quanto a “Nazareno”, veja-
se em Marcos 6:1.
Embora os três evangelistas relatam a cura e a determinação do
homem curado de seguir a Jesus, cada um faz uma contribuição distinta.
Mateus acrescenta que Aquele que cura “compadecido” (ou: movido a
compaixão”) “tocou” os olhos e efetuou a cura. Marcos informa que
Jesus disse: “Vai, a tua fé te curou” [Mt. 20:52, TB]. E Lucas dedica dois
versículos inteiros à conclusão, repetindo algo do que os outros dois
consignaram, e acrescentando certos detalhes: Jesus disse ao cego,
“Recupera a tua vista”; o homem curado o seguia “glorificando a Deus”;
e “todo o povo, vendo isto, dava louvores a Deus” (Lc. 18:42, 43).
Voltamo-nos agora à história segundo o relato de Marcos. Isto
significa que não vamos falar de dois cegos, e sim de um, de Bartimeu.
Em consequência, o tema é a cura de Bartimeu, o cego de Jericó. A
divisão do material disponível neste relato é parecido ao do relato de
Mateus, excetuando a mudança do plural ao singular: 1. sua miserável
situação (vv. 46, 47); 2. seu problema adicional (v. 48a); 3. sua louvável
persistência (v. 48b); e 4. a maravilhosa bênção que Jesus lhe outorgou
(vv. 49–52).

1. Sua miserável situação


46, 47. Chegaram a Jericó. Ao sair Jesus da cidade com seus
discípulos e com uma grande multidão, estava sentado à beira da estrada
um cego mendigo, 508 chamado Bartimeu, filho de Timeu. Quando soube
que era Jesus o Nazareno, começou a clamar: Jesus, filho de Davi, tem
compaixão de mim! [TB]
Jesus e os Doze tinham cruzado novamente o Jordão deste o oeste,
seguindo uma das rotas habituais para Jerusalém. Como a Páscoa se

508
Outra tradução que tem bastante apoio diz: “Bartimeu … um mendigo cego, estava sentado junto
ao caminho”. A diferença quanto ao significado é mínima.
Marcos (William Hendriksen) 544
509
aproximava, não nos surpreende que uma grande multidão,
provavelmente da Galileia e da Pereia, estivesse seguindo a Jesus.
Também podiam ter estado algumas pessoas que tinham seus lares em
Jericó e que retornavam àquela cidade.
A procissão era formada por Jesus, os Doze e uma grande
multidão. 510 O grupo chega à cidade. Depois, Jesus, os Doze e, pelo
menos, aqueles outros seguidores que iam para Jerusalém, atravessam a
cidade, de modo que depois se encontram “saindo” dela. É neste
momento e neste lugar que um cego aparece em cena. Está sentado junto
ao caminho, mendigando. Este é um quadro conhecido naquela parte do
mundo, como em muitas outras regiões ainda hoje em dia. O nome
daquele homem era Bartimeu, e Marcos explica que era filho de Timeu.
Embora Bartimeu não podia ver Jesus, podia ouvir o alvoroço da
multidão. Depois de investigar, dá-se conta de que quem passava era
Jesus de Nazaré. Certamente antes já tinha ouvido a respeito de Jesus,
visto que ao receber a notícia, imediatamente grita, “Jesus, Filho de
Davi, tem compaixão de mim!” Que saibamos, a designação “Filho de
Davi” como título para o Messias, aparece só nos salmos
pseudepigráficos de Salomão 17:21.511 Embora haja aqueles que negam
que Bartimeu usasse o termo no sentido messiânico, o mais provável é
que efetivamente o usasse assim. Marcos 11:9, 10; 12:35–37 (veja-se
sobre esses versículos) torna evidente que durante o ministério de Cristo
na terra os termos “Filho de Davi” e “Messias” tinham chegado a ser
sinônimos. De outro modo, como se pode explicar satisfatoriamente a
indignação dos principais sacerdotes e os escribas, quando as crianças
honravam a Jesus com o título “Filho de Davi” (Mt. 21:15, 16)? Mas o
fato de que Bartimeu chamasse Jesus “Filho de Davi”, não significa que
509
_κανός,-ο_. Marcos usa esta palavra três vezes, cada vez em sentido distinto. Aqui em Mc. 10:46
tem mais ou menos o mesmo significado que πολύς; quer dizer, grande. Em Mc. 1:7 (veja-se mais
acima, sobre essa passagem) o sentido é: capaz, apto. Em combinação com ποιε_ν adquire o
significado de satisfazer em Mc. 15:15.
510
Note-se o genitivo absoluto: um gerúndio com sujeito tríplice.
511
SB. I, p.525.
Marcos (William Hendriksen) 545
apreciasse totalmente o caráter espiritual da qualidade messiânica de
Jesus. Mas indica que diante da pergunta, “Quem diz o povo ser o Filho
do Homem?”, ele estava entre os poucos que eram capazes de dar uma
resposta melhor que a que dava o povo em geral (Mc. 8:28).
Bartimeu, então, implora a Jesus que tenha compaixão dele, quer
dizer, que tenha misericórdia dele. 512 Sua situação era realmente
deplorável. Não só era cego, mas além disso era mendigo; duas
circunstâncias que com frequência andam juntas. Devia depender da
generosidade do povo para seu sustento.

2. Seu problema adicional


48a. E muitos o repreendiam, 513 para que se calasse.
Não sabemos exatamente por que a multidão fez isto. Possíveis
respostas: a. A multidão tinha pressa para chegar a Jerusalém e não
queria que aquele mendigo cego retivesse Jesus; b. Estimavam que seus
gritos não estavam em consonância com a dignidade da pessoa a quem
Se dirigia; c. Não desejavam que Jesus fosse proclamado publicamente
como “o Filho de Davi”; e d. Sabiam que os seus dirigentes religiosos
não gostariam daquilo.

3. Sua louvável persistência


48b. mas ele cada vez gritava mais: 514 Filho de Davi, tem
misericórdia de mim!
Isto fala com seu favor. Percebia que se alguma ajuda devia vir de
alguma fonte, deveria ser do Filho de Davi.

4. A maravilhosa bênção que Jesus lhe outorgou

512
_λέησον, aor. imper. aT. 2ª. ps. sing. de _λέω. Cf. esmola, esmoleiro.
513
_πετίμων, imperfeito. Veja-se também sobre Mc. 3:12, nota 111; e sobre 4:39, nota 174.
514
πολλ_ μ_λλον, veja-se sobre Mc. 9:26, nota 411.
Marcos (William Hendriksen) 546
49. Parou Jesus e disse: Chamai-o. Chamaram, então, o cego,
dizendo-lhe: Tem bom ânimo; levanta-te, ele te chama.
Jesus Se revela através dos Evangelhos, não só como muito
poderoso, mas também como muito misericordioso (ver sobre Mc. 1:41).
Deteve-Se e ordenou às pessoas que chamassem o homem que estava
sentado junto ao caminho. Com entusiasmo deram a mensagem ao
mendigo. Disseram-lhe: “Tem bom ânimo”. Este mandato tão cheio de
alento e esperança, ouviu-se dos lábios de Jesus vez após vez enquanto
esteve na terra. Além disso, Ele é “o mesmo ontem e hoje e pelos
séculos”. Isto se vê pelo fato de que, depois de Sua ascensão ao céu, o
Senhor seguia pronunciando a mesma exortação alentadora. Para mais
detalhes e uma lista de passagens, veja-se sobre Mc. 6:50b. A multidão
que estava ao Seu redor disse ao cego que se pusesse em pé, e para lhe
dar mais ânimo, acrescentaram: “Ele te chama”.
Não muitas semanas antes, as mesmas palavras, “Ele te chama”,
foram ditas a Maria. A pessoa que lhe havia dito era Marta, sua irmã. Há,
por certo, uma semelhança entre os dois relatos. Jesus chamava duas
pessoas profundamente afligidas: a Bartimeu, que sofria por sua pobreza
e cegueira; a Maria — Marta também, naturalmente — sofria por causa
da perda de um irmão querido. Ainda hoje, e naturalmente sempre, em
tais circunstâncias da vida Jesus chama ao Seu lado, porque é um
Salvador maravilhoso. Seu chamado é para consolar, animar e, como
neste caso, para curar e restaurar.
50. Nem todos respondem com prontidão à chamada. Mas aquele
homem sim o fez. Ali estava a oportunidade de sua vida. Seu coração
saltou de alegria: Lançando de si a capa, levantou-se de um salto e foi
ter com Jesus. Ao ler hoje esta história, quase podemos ouvir a
entusiasta voz de Pedro, quem a relatou com toda sua ardente e pitoresca
eloquência. Deve tê-la contado de tal forma que foi impossível Marcos
esquecê-la. Vemos Bartimeu que, sem um instante de vacilação, fica em
pé de um salto, joga de lado o manto, e livre de todo estorvo corre
depressa a Jesus.
Marcos (William Hendriksen) 547
515 516
51. Perguntou-lhe Jesus: Que queres que eu te faça?
Jesus lhe faz esta pergunta com muita ternura. Deseja este mendigo
uma esmola? Que se concentre por um momento no que deseja mais que
tudo, para que a satisfação de seu desejo seja maior. Sem dúvida, Jesus
já sabia o que Bartimeu desejava, mas quer que ele mesmo o peça. Em
geral pode-se dizer que o Pai celestial conhece bem as necessidades de
Seus filhos, mas lhes diz “abre tua boca” (Sl 81:10) para enchê-la. O que
Jesus queria era não só curar aquele homem, mas também estabelecer
uma relação de comunhão pessoal com ele, para que desta maneira sua
fé” (v. 52) fosse mais que meramente “milagreira” (a convicção de que
Jesus era capaz de realizar milagres), e assim Bartimeu pudesse
“glorificar a Deus”, como realmente devia suceder (Lc. 18:43).
Respondeu o cego: Mestre, que eu torne a ver. Literalmente,
“Raboni, que possa recuperar minha vista” [NKJV]. O verbo “quero” se
subentende claramente, porque Jesus tinha perguntado: “Que queres que
eu te faça?”. Não se deve subtrair importância ao termo “Raboni” que
Marcos usa. Provavelmente deve interpretar-se como um título que, em
tais casos, é equivalente ao título “Senhor” que aparece em Mateus e
Lucas (Mt. 20:33; Lc. 18:41).
52. Disse-lhe Jesus: Vai, a tua fé te curou [TB]. 517 Assim também
em Lucas 18:42. Tendo em conta que a fé em si mesma é um dom de
Deus (veja-se CNT sobre Ef. 2:8), não deixa de ser surpreendente que
em várias ocasiões Jesus louve o depositário deste dom! Isto prova o
caráter generoso de Seu amor. Indubitavelmente, Efésios 2:8 refere-se ao
que com frequência chama-se “fé salvadora”. Entretanto, é muito

515
Note-se _ποκριθείς, o particípio aor. de _ποκρίνομαι. Jesus não está respondendo diretamente uma
pergunta, mas está respondendo a uma ação ou situação. O vocábulo grego frequentemente tem este
significado. Daí que, além de respondeu, replicou, pode-se traduzir também respondeu, falou, disse
(uma boa alternativa aqui em Mc. 10:50), continuou.
516
Note-se o subjuntivo aoristo ποιήσω, que não vai precedido por _να, como no v. 35. A prática do
asíndeton (deixar fora uma palavra quando está claramente sugerida) é frequente não só no grego
(Robertson, p. 430), mas na linguagem em geral.
517
σέσωκε pf. ind. 3ª. pes. sing. de σώζω.
Marcos (William Hendriksen) 548
duvidoso que a fé a que Jesus Se refere neste caso se refira simplesmente
aos milagres. À vista do que aquele homem estava prestes a fazer (veja-
se a última cláusula deste versículo; cf. Lc. 18:43), pareceria que quando
Jesus o curou restaurando rapidamente sua visão, abençoou-o não só no
físico, mas também no espiritual. É possível que A. T. Robertson, Word
Pictures I, p. 356, esteja certo ao declarar que a expressão “te curou”
poderia ter aqui o significado: te salvou. E o que há implícito em outros
casos do Novo Testamento onde se usa a mesma expressão? Trata-se
somente de restauração física — a mulher que sofria de hemorragia (Mt.
9:22; Mc. 5:34; Lc. 8:48); o grande pecador (Lc. 7:50); e aquele leproso
curado que louvou a Deus e voltou para dar as graças a Jesus (Lc.
17:19)?
Conclusão: E imediatamente tornou a ver. Num momento dado,
cegueira total … no momento seguinte visão perfeita! Que fantástico e
assombroso! Continua: e seguia 518 a Jesus estrada fora. Aquele homem
desejava estar na imediata companhia de Jesus. Fez algo mais que isto:
glorificou a Deus, e a multidão seguiu o seu exemplo (veja-se novamente
Lc. 18:43).
O que preciosa ilustração do caminho de salvação! “Invoca-me no
dia da angústia; eu te livrarei, e tu me glorificarás” (Sl 50:15; cf. 1Co.
10:31).

Resumo do Capítulo 10

No Evangelho de Marcos, o ministério de Cristo na Pereia começa


aqui e segue até o final do capítulo. Precede imediatamente à semana de
Paixão, seguida pela Ressurreição.
O capítulo 10 pode ser dividido em duas partes principais: vv. 1–31
e vv. 32–52. A primeira parte tem seu paralelo em Mateus 19, a segunda

518
_κολούθει, imperfeito, provavelmente ingressivo. Veja-se também Lc. 18:43.
Marcos (William Hendriksen) 549
em Mateus 20:17–34. Cada parte principal tem três parágrafos, de modo
que, no total, Marcos 10 consta de seis parágrafos.
No primeiro parágrafo (vv. 1–12), Marcos relata que enquanto Jesus
ensinava, alguns fariseus vieram até Ele, e com ímpias intenções
perguntaram: “É lícito ao marido repudiar sua mulher?” Em sua resposta,
Jesus lembra aos Seus inimigos a instituição do casamento originada na
criação (Gn. 1:27; 2:24), e conclui dizendo, “Portanto, o que Deus
ajuntou não separe o homem”. Mais tarde, longe da multidão e numa
casa, os discípulos Lhe perguntaram novamente a respeito deste assunto.
O relato de Marcos atribui igual posição e responsabilidade à esposa e ao
marido dizendo: “Quem repudiar sua mulher e casar com outra comete
adultério contra aquela. E, se ela repudiar seu marido e casar com outro,
comete adultério”. Mediante este ensino Jesus honra os vínculos
matrimoniais e declara sua indissolubilidade como instituição divina.
Seguidamente (vv. 13–16), Marcos refere-se ao intento dos
discípulos para impedir que alguns levem algumas crianças a Jesus.
Admoesta os obstrucionistas e oferece uma cálida bem-vinda aos
pequeninos, tomando em Seus braços e os abençoando meigamente.
Acrescenta: “Em verdade vos digo: Quem não receber o reino de Deus
como uma criança de maneira nenhuma entrará nele”.
Nos versículos 17–31, Marcos conta a história de um jovem rico
que humildemente aproximou-se de Jesus com a pergunta: “Bom Mestre,
que farei para herdar a vida eterna?” Jesus responde: “Por que me
chamas bom? Ninguém é bom senão um, que é Deus”. O Mestre se
expressou assim porque o jovem usou a palavra “bom” superficialmente.
Jesus então o remete à lei perfeita, pois “pela lei vem o conhecimento do
pecado”. O jovem responde: “Tudo isso tenho observado desde a minha
juventude”. Com isto o jovem revela novamente sua falta de
entendimento. Jesus o olha e o ama, não por causa de sua falta de
profundidade espiritual, mas provavelmente porque se absteve de cair
em escandalosos pecados externos e tinha buscado a fonte que melhor
podia lhe dar resposta ao seu problema. Com afeto e compaixão, o
Marcos (William Hendriksen) 550
Mestre recomenda a este jovem uma linha de ação que, se segui-la, dar-
lhe-á a paz que tanto desejava. Jesus lhe diz: “Vai, vende tudo o que
tens, dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu; então, vem e segue-me”.
Abatido, o desventurado jovem se retira.
Jesus diz aos doze, “Quão dificilmente entrarão no reino de Deus os
que têm riquezas!… Filhos, quão difícil é entrar no reino de Deus! É
mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha, do que entrar um
rico no reino de Deus”. Os discípulos, completamente assombrados,
dizem-se uns aos outros: “Então, quem pode ser salvo??” Jesus
responde: “Para os homens [isso] é impossível; contudo, não para Deus,
porque para Deus tudo é possível”.
Pedro comenta: “Eis que nós tudo deixamos e te seguimos”. O
Mestre lhes promete bênçãos para o presente e para “o mundo porvir”.
Entretanto, também pronuncia uma advertência, para que ninguém pense
que a recompensa está baseada em méritos humanos. A advertência é:
“Porém muitos primeiros serão últimos; e os últimos, primeiros”.
O quarto parágrafo cobre os versículos 32–34. Aqui começa a
segunda parte do capítulo. Há um elo entre os parágrafos 3 e 4. Segundo
o versículo 24 (veja-se também v. 26) do terceiro parágrafo, os
discípulos estavam assombrados ou atônitos como resultado do que
Jesus havia dito a respeito da dificuldade para entrar no reino de Deus.
Não menos surpreendidos (a mesma palavra no original, quarto
parágrafo, v. 32) estavam por causa do que fez. Observavam que com
forte determinação, Ele prosseguia adiante, a caminho de Jerusalém.… a
fim de entregar Sua vida como sacrifício expiatório (cf. 10:45). O Guia
deles avança sem hesitação, e isto enche de temor a mente e o coração de
Seus seguidores. Ele sabia perfeitamente o que se aproximava, e isto é
claro pelas palavras: “Eis que subimos para Jerusalém, e o Filho do
Homem será entregue aos principais sacerdotes e aos escribas”. Desta
forma introduz sua terceira predição sobre a paixão e ressurreição.
Quanto aos sete pontos que pertencem à terceira predição — que é muito
Marcos (William Hendriksen) 551
mais detalhada que a primeira e a segunda — e seu cumprimento, veja-se
sobre versículos 33, 34.
O quinto parágrafo compreende os versículos 35–45, e seu conteúdo
contrasta fortemente com aquele que precede. A humilhação voluntária
do Mestre é substituída pela ânsia de exaltação dos discípulos. Tiago e
João creem com ardor que seu Mestre será gloriosamente entronizado.
Até aqui tudo está muito bem. Mas expressam sua reação com estas
palavras dirigidas a Jesus: “Permite-nos que, na tua glória, nos
assentemos um à tua direita e o outro à tua esquerda”. Jesus lhes faz ver
que a. a “grandeza” que tanto desejavam requer sacrifício; b. que os
lugares à direita e à esquerda já foram fixados; c. e que a verdadeira
grandeza só se obtém ao rejeitar tudo relacionado com as posições, para
dedicar a própria vida a Deus em serviço humilde e altruísta, seguindo o
exemplo do próprio Cristo. Veja-se especialmente 10:45.
Quão privilegiados foram estes discípulos! Tinham o privilégio de
escutar as palavras de Cristo de dia e de noite, de ser testemunhas dos
sinais que realizava e observar Sua conduta! Mas quão cegos podiam
chegar a ser. Contudo, a ressurreição do Mestre abriria os olhos deles.
Aquele que é “a Luz do mundo” podia curar a cegueira, tanto espiritual
como física. Um exemplo de restauração da vista a um cego se acha nos
versículos 46–52.
O último parágrafo relata que Jesus e os Doze chegaram a Jericó.
Achava-se rodeado de uma grande multidão. Quando abandonava aquela
antiga cidade, um mendigo cego, chamado Bartimeu, deu-se conta de
que Jesus, o Nazareno (veja-se Mc. 6:1) passava por esse lugar. Assim
que, começou a gritar, “Jesus, Filho de Davi, tem compaixão de mim!”.
Quando a gente lhe exigiu que se calasse, ele gritou ainda mais forte,
“Filho de Davi, tenha misericórdia por mim”. E é o que Jesus fez
exatamente. Chamou o cego e carinhosamente lhe perguntou: “Que
queres que eu te faça?” E o curou, de modo que Bartimeu, cheio de
gratidão, começa a segui-Lo.
Marcos (William Hendriksen) 552
Neste ponto, como em todos, o arranjo do Evangelho de Marcos é
surpreendente, porque os piedosos de Israel sabiam que, com relação à
vinda do Messias, cumpriria a profecia de Isaías: “Então os olhos dos
cegos serão abertos …” (Is. 35:5). Este relato é um prefácio muito
adequado para “a entrada triunfal do Filho de Davi em Jerusalém” (Mc.
11:1–11) e para os acontecimentos que seguem imediatamente (veja-se
especialmente Mc. 12:35–37). O propósito de Marcos é indicar que “o
Filho de Davi” não é meramente um descendente de Davi; é o Senhor de
Davi. Na realidade é “o Filho de Deus”. Portanto, todos devem segui-Lo
como o fez Bartimeu, que o seguiu “no caminho”, o próprio caminho
que conduziu o Mestre ao Calvário. Mas a cruz conduz à coroa. Conduz
ao céu. 519

519
Com relação a isto veja-se V. K. Robbins, “The Healing of Blind Bartimaeus (Mc. 10:46–52) in the
Marcan Theology”, JBL (junho 1973), pp. 224–243. O que subtração deste artigo depois de lhe tirar
certas teorias de redação altamente especulativas, é muito valioso.
Marcos (William Hendriksen) 553

III. SEU CLÍMAX OU CULMINAÇÃO –


Mc. 11:1 – 16:8
Marcos (William Hendriksen) 554
A. A SEMANA DA PAIXÃO - Mc. 11:1 – 15:47

MARCOS 11
Mc. 11:1–11 - Entrada triunfal em Jerusalém
Cf. Mt. 21:1–11; Lc. 19:28–40; Jo. 12:12–19

O relato do Ministério na Pereia chegou ao seu fim, e com isso toda


a segunda divisão do relato de Marcos sobre a obra que o Pai deu ao
Mediador para fazer. Sob a direção do Espírito Santo, o evangelista nos
deu a conhecer tudo que ele quis relatar com relação ao avanço ou
continuação da obra de Cristo. Em consequência, é neste ponto onde
começa a narração sobre a semana da paixão. Abrange os Capítulos 11–
15 e é seguida pela história da ressurreição, capítulo 16.
O parágrafo precedente do Evangelho de Marcos descreve o que
Jesus fez ao sair de Jericó (10:46–52). De Jericó, o reduzido grupo
seguiu seu caminho para Jerusalém (cf. 10:32, 33). Betânia está a uns
três quilômetros de Jerusalém, e podemos supor com bom fundamento
(Jo. 11:18) que chegaram a Betânia antes do pôr do sol desse dia de
sexta-feira. Também se pode supor que no sábado (isto é, desde o pôr do
sol da sexta-feira até o pôr do sol do sábado) Jesus desfrutou do repouso
sabático com Seus amigos, e que na noite do sábado foi oferecido em
Sua honra um jantar no lar de “Simão o leproso” (Mc. 14:3–9), e que no
dia seguinte (domingo) produziu-se Sua entrada triunfal em Jerusalém.

Comecemos, pois, com a noite do sábado. Segundo o relato de


Marcos, os principais eventos na conclusão da história de Jesus são os
seguintes:

Noite do sábado
Jantar em Betânia em casa de Simão, o leproso (Mc. 14:3–9).
Marcos (William Hendriksen) 555
Domingo
Entrada triunfal em Jerusalém e volta a Betânia (Mc. 11:1–11).

Segunda-feira
Maldição da figueira, purificação do templo e saída da cidade (Mc.
11:12–19).

Terça-feira
Jesus conversa com Pedro e explica aos Doze a lição da figueira que
secou.
Jesus tem uma confrontação com Seus inimigos, a quem responde
uma série de perguntas, concluindo com uma pergunta que Ele mesmo
lhes faz. Parábola dos lavradores ímpios.
Denúncia contra os escribas.
Comentário no templo sobre a oferta da viúva.
Predição da destruição de Jerusalém, a grande tribulação e a
segunda vinda.
Confabulação com objeto de matar a Jesus.
Para a série completa de acontecimentos desde “conversação” até
“confabulação”, veja-se Mc. 11:20–14:2.

Quarta-feira
Não se relata nada, salvo que naquele dia Judas faz um acordo com
os principais sacerdotes (Mc. 14:10, 11), embora seja possível que isto
ocorresse um pouco antes.

Quinta-feira
(incluindo a noite da quinta-feira à sexta-feira)
Preparação para a Páscoa.
Celebração desta festa; predição a respeito do traidor.
Instituição da Ceia do Senhor.
Marcos (William Hendriksen) 556
Partida ao Getsêmani; predição de que todos abandonarão a Jesus e
que Pedro o negará três vezes.
Eventos no jardim do Getsêmani: agonia de Jesus, orações, traição
de Judas, arresto, deserção de todos.
Episódio do jovem que fugiu.
Negação de Pedro, com relação ao processo de Jesus diante do
Sinédrio, o que culminou na
Condenação.
Para todos estes acontecimentos, da “preparação” até a
“condenação”, veja-se Mc. 14:12–72.

Sexta-feira
Juízo diante de Pilatos.
O povo escolhe a Barrabás para ser libertado.
Jesus é condenado à crucificação; os açoites.
Zombaria dos soldados.
Simão de Cirene obrigado a carregar a cruz.
Crucificação de Jesus entre dois malfeitores.
Cenas do Calvário: os que passavam, blasfemam; os principais
sacerdotes e escribas escarnecem de Jesus; os ladrões lhe
vituperam, as mulheres olham.
Sinais no Calvário: desde o meio-dia até as três da tarde, escuridão
sobre toda a terra. Às três da tarde: o clamor de Jesus “com
grande voz”, o véu do templo se rasga de alto a baixo, o
testemunho do centurião: tudo isto com relação à
Morte de Jesus.
Sepultura de Jesus.
Veja-se Marcos 15 para todos estes acontecimentos da “Sexta-feira
Santa”, do “juízo” até a “sepultura”.

Sábado
Não se relata nada em Marcos; mas veja-se Mateus 27:62–66.
Marcos (William Hendriksen) 557
Domingo
Ressurreição de Jesus. Quando as mulheres devem ungir o corpo,
encontram-se com um “varão” vestido de vestes brancas que lhes
anuncia: “ressuscitou … Ide, dizei a seus discípulos e a Pedro …” (Mc.
16:1–8). Para as “aparições” depois da ressurreição, veja-se os tão
discutidos vv. 9–20.
***

Veja-se os primeiros 9 pontos do CNT sobre Mt. 21:1–11 ou no


CNT sobre Jo. 12:12–19. Ali se encontrará informação referente à ordem
dos diversos eventos que pertencem à entrada triunfal de Cristo,
mostrando como se distribuem entre os quatro Evangelhos e qual é a
contribuição de cada um deles.

***
1, 2. Quando se aproximavam de Jerusalém, de Betfagé e Betânia,
junto 520 ao monte das Oliveiras, enviou Jesus dois dos seus discípulos e
disse-lhes: Ide à aldeia que aí está diante de vós e, logo ao entrar, achareis
preso um jumentinho, o qual ainda ninguém montou; desprendei-o e
trazei-o.
Jesus e os Doze estão agora aproximando-se de Jerusalém.
Chegaram a um ponto não muito distante das aldeias de Betfagé e
Betânia. 521 Betânia está situada sobre a ladeira oriental do monte das
Oliveiras e Betfagé — sua exata localização se desconhece — foi
tradicionalmente localizada a noroeste de Betânia.
Era a manhã daquele domingo e Jesus enviou a dois de Seus
discípulos a Betfagé. Enviou-os de Betânia — ou, se preferir-se, da
ladeira oriental do monte das Oliveiras. Suas instruções eram, “Ide à
520
πρός seguido de acusativo no sentido de “perto de”, como no v. 4. Cf. o uso desta preposição em
Lc. 22:56.
521
As duas aldeias mencionam-se em ordem lógica, porque Jerusalém se mencionou primeiro.
Betfagé estava mais perto de Jerusalém; um pouco mais longe, rumo ao este, estava Betânia. Por outro
lado, para os que iniciavam sua viagem em Betânia, a ordem era Betânia, Betfagé, Jerusalém.
Marcos (William Hendriksen) 558
522
aldeia que aí está diante de vós”, quer dizer, “ali diante”, assegurando
que quanto entrassem na aldeia encontrariam um jumentinho preso.
Que classe de jumentinho? de camelo, de cavalo, de burro? É
natural pensar que seja “de burro” (cf. Gn. 49:11; Jz. 10:4; 12:14). Além
disso, segundo Mateus 21:5 entendemos que esta resposta é correta e se
harmoniza com a profecia de Zacarias 9:9 (segundo o hebraico). Veja-se
CNT sobre Mateus 21:5, nota 722. E sobre o problema que surge do fato
de Mateus mencionar dois animais, enquanto que Marcos e Lucas só
falam de um, veja-se o mesmo comentário, pp. 800, 803.
Seria um jumentinho “o qual ainda ninguém montou”, em
consequência, um animal não domado, reservado por Deus para este uso
tão sagrado (cf. Nm. 19:2; Dt. 21:3; 1Sm. 6:7). Não está isto em perfeita
harmonia com o fato de que Maria, também estava “reservada” (cf. Rm.
1:26, 27) ou conservada virgem, quando Jesus foi concebido e até
mesmo seu nascimento? Veja-se Mt. 1:25; Lc. 1:34. A tumba onde o
corpo de Jesus foi depositado tampouco tinha sido usada (Lc. 23:53).
Vemos, então, que a entrada triunfal de Jesus não tinha nada de casual.
Tudo estava cuidadosamente planejado, tudo sucedeu ordenadamente e
em seu tempo estabelecido, exatamente como devia ser.
Como soube Jesus que os dois discípulos achariam tudo tal como
Ele o predisse? Não se deve descartar completamente a possibilidade de
que este conhecimento Lhe chegasse de forma natural, talvez por
comunicação direta ou indireta dos donos. Entretanto, à vista de outra
predição bastante similar, consignada em Mc. 14:13, é preferível a teoria
de que o conhecimento desta informação chegasse à consciência humana
de Jesus por via sobrenatural. Note-se também que Lucas 19:33 pode ser
interpretado no sentido de que não existia entendimento prévio entre
Jesus e os donos do jumentinho com relação a este acontecimento. Seja
como for, por passagens tais como Mt. 17:27; Jo. 1:48; 2:4, 25 (veja-se

522
Para mais detalhes sobre _ντί dentro de uma palavra ou como preposição independente, veja-se
mais acima sobre Mc. 10:45, nota 507.
Marcos (William Hendriksen) 559
também em Mc. 10:33, 34), está claro que Jesus recebia às vezes
informação de maneiras que estão fora de nossa compreensão.
Os dois discípulos recebem ordem para desatar o jumentinho e
trazê-lo para Jesus. As instruções continuam como segue:
3. Se alguém vos perguntar: Por que fazeis isso? Respondei: O
Senhor precisa dele e logo o mandará de volta para aqui. 523
Esta é uma das passagens de maior controvérsia no Evangelho de
Marcos. A discussão gira ao redor de dois assuntos intimamente
relacionados: a. Qual é o significado das palavras que aqui se traduzem
“e logo o mandará de volta”? E b. Quem é o kurios (Senhor) mencionado
aqui? Como temos que traduzir a palavra, “Senhor”, com ou sem
maiúscula? Se a traduzirmos “Senhor”, é esta uma referência ao Deus
Triúno, ao Jeová do Antigo Testamento, ou se refere a Jesus? Entretanto,
também há aqueles que preferem expressar o equivalente de kurios sem
maiúscula, e assim aceitam a teoria de que a referência é ao dono do
jumentinho. 524
Ora, ninguém duvida que a palavra grega kurios, segundo seu uso
no Novo Testamento e em outros lugares, tem vários significados:
senhor, dono, mestre, Senhor (com referência a Deus ou a Jeová), Senhor
(com referência a Jesus). O que aqui se discute, pelo menos, é a seguinte
pergunta: “Aqui em Marcos 11:3, esta palavra refere-se ao dono do
jumentinho ou a Jesus?”.
Segundo a informação que se oferece na nota 525, é evidente que a
grande maioria dos comentaristas preferem a tradução “Senhor”. A
passagem é interpretada no sentido de que aqui Jesus dá instruções aos

523
Ou: e o enviará de volta aqui logo.
524
Assim, p. ex., Vincent Taylor, Op. cit., p. 455; e M. H. Bolkestein, Op. cit., pp. 251, 252. Por outro
lado, W. C. Allen, The Gospel according to Saint Mark (Londres, 1915), p. 142, interpreta o título
como uma referência a Deus, da forma que o faz Marcos 5:19. A. B. Bruce, Op. cit., p. 416; C. R.
Erdman, Op. cit. p. 185; E. R. Gould, Op. cit., p. 207; J. Schmid, Op. cit., p. 205; H. B. Swete, Op.
cit., p. 248; e J. A. C. Van Leeuwen, Op. cit., p. 136, estão entre os muitos que creem que a referência
é ao próprio Jesus. Assim também pensa E. C. Grant, Op. cit., p. 285, mas considera o título “Senhor”
como interpretação da igreja primitiva.
Marcos (William Hendriksen) 560
dois discípulos. Quando eles pretendam desatar o jumentinho, com toda
segurança lhes perguntará, “Por que fazem isto?”, ao qual devem em
essência responder: “o Senhor — quer dizer, Jesus — necessita o
jumentinho e o enviará de volta a Betfagé logo que tenha chegado a
Jerusalém”.
Com leves variações — por exemplo, alguns substituem “Senhor”
por “Mestre” — também os tradutores, quase de forma unânime, apoiam
este ponto de vista. Veja-se NTT, BP, NVI RA, CI, CB, NC, LT, NBE,
BJ. Como é possível, então, que o ponto de vista oposto, segundo o qual
kurios seja uma referência ao dono do jumentinho tenha conseguido
defensores?
Os que adotam esta interpretação afirmam que nem Marcos nem
Mateus usam kurios como nome para Jesus. Além disso, a aceitação de
Jesus como “Senhor” é de data posterior, fato que se reflete nos
Evangelhos escritos mais tarde, Lucas e João. O raciocínio prossegue por
esta linha de pensamento: A fé em Jesus como “Senhor” e o dirigir-se a
Ele como tal, não era costume na igreja primitiva de Jerusalém. Durante
o Seu estado de humilhação, Jesus não Se considerou a Si mesmo como
Senhor, nem era chamado “Senhor” por outros. Isto teve um
desenvolvimento mais tardio. Apareceu depois que a crença em Sua
ressurreição chegou a estabelecer-se solidamente.
Resposta:
a. Só uma argumentação muito engenhosa poderia interpretar kurios
aqui em Marcos 11:3 como referindo-se a outro que não seja a Jesus.
Deve-se ter em mente que, segundo o contexto, descreve-se os dois
discípulos desatando o jumentinho. Supostamente se viram
interrompidos nesta tarefa pelos surpreendidos donos (cf. Lc. 19:33),
mas sua explicação devia equivaler a: “Fazemos isto porque o Senhor o
necessita. Entretanto, não reterá o jumentinho mais do tempo necessário,
e se ocupará de que seja devolvido o mais rápido possível”. Segundo
Mateus 21:3, os donos, depois de receber esta segurança, permitiram
então que levassem o jumentinho.
Marcos (William Hendriksen) 561
Esta explicação é coerente. Os que insistem no ponto de vista
contrário não ofereceram até agora uma explicação igualmente razoável
em favor de sua teoria. Que o leitor o veja por si mesmo examinando
cuidadosamente a exposição de Vincent Taylor e — seja dito a seu
favor! — as dificuldades que encontra e que o mesmo admite!
b. Embora Marcos 11:3 e Mateus 21:3 estejam em perfeita
harmonia, complementando-se mutuamente, é inútil pretender que
ambos digam a mesma coisa, como algumas vezes se faz. O termo
“aqui”, que se acha em Marcos e não em Mateus faz com que a
identidade seja impossível. 525
c. As passagens que veremos a seguir demonstram que é errôneo
pensar que a designação “Senhor” aplicada a Jesus foi um
desenvolvimento tardio. Portanto, a explicação adotada pela maioria dos
expositores deve ser considerada correta. Comecemos com Mateus 7:21–
23, onde diz-se: “Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no
reino dos céus …”. Para Marcos 12:35–37 (cf. Mt. 22:41–46; Lc. 20:41–
44), veja-se o comentário sobre essa passagem. 1 Coríntios 16:22 diz
“Maranata”, que significa “O Senhor, vem!”. Por ser esta uma expressão
aramaica, prova-se que o uso do apelativo “Senhor” aplicado a Jesus
estende-se até às próprias origens da igreja de fala aramaica. Por último,
Gálatas 1:18, 19, onde no contexto da primitiva igreja de Jerusalém,
Tiago é chamado “o irmão do “Senhor”.
Com o calor da discussão sobre o significado de kurios em Marcos
11:3, é fácil esquecer a lição prática: O Senhor Jesus, que era e é Deus e
também homem ao mesmo tempo, tem pleno direito de reclamar como
Suas todas as coisas da terra, e entretanto, devolveu o jumentinho que
tinha “pedido emprestado”. Então não terão que devolver os Seus
seguidores aquilo que lhes foi emprestado ou confiado? Não nos
referimos só à obrigação de devolver livros, dinheiro, roupas, etc., mas

525
Este fato não o muda nem sequer o uso do mesmo verbo _ποστέλλω, tempo presente (futurista) em
Marcos, mas futuro _ποστελε_, em Mateus.
Marcos (William Hendriksen) 562
também a entregar o coração e a vida Àquele que nos deu isso. Acaso a
palavra “mordomia” transformou-s num termo vazio? Veja-se 1Co. 4:1,
2; 6:20; 15:50–16:1; 2Co. 8:8, 9; 1Pe. 4:10.
Tudo resultou exatamente como Jesus o havia predito:
4–6. Então, foram e acharam o jumentinho preso, junto ao portão,
do lado de fora, na rua, e o desprenderam. Alguns dos que ali estavam
reclamaram: Que fazeis, soltando o jumentinho? Eles, porém,
responderam conforme as instruções de Jesus; então, os deixaram ir. 526
O que foi que viram os dois discípulos assim que entraram na
aldeia? O jumentinho, preso junto a uma porta! Era a porta que levava ao
corredor que conduzia do pátio exterior (da casa) à rua.
Quando começaram a desatar o jumentinho, alguns dos que estavam
ali — os donos (Lc. 19:33) — como é natural, protestaram e
perguntaram: “Que fazeis, soltando o jumentinho?” Mas quando, de
acordo com as instruções de Cristo (v. 3), ouviram-nos dizer “O Senhor
o necessita e o devolverá logo”, as objeções se desvaneceram
rapidamente. A simples menção do fato de que Jesus necessitava o
jumentinho, foi suficiente para obter imediato e completo
assentimento.527
Não deve escapar à nossa atenção uma lição prática de muita
importância. Vê-se claro através desta passagem — e de muitas outras,
p. ex., Mc. 15:40–16:1; Lc. 6:13; 10:1; Jo. 12:19; 19:38–20:1 — que,

526
Ou: e eles lhe deram permissão.
527
Vocabulário e gramática:
Versículo 4: πρός, perto de, como no versículo 1: _μφοδον (aqui _π_ το_ _μφόδου), uma combinação
de _μφί y _δός, originalmente talvez um caminho que rodeava algo. Há evidência a favor do
significado: “comarca, bairro, distrito, ou recinto” de uma cidade (latim: vicus; inglês medieval: vick;
alemão: weich; holandês: wijk; veja-se MM, p. 28). Chamava-se _μφοδον talvez porque estava
rodeada e cruzada por ruas. Aqui, em Marcos 11:4, provavelmente significa simplesmente rua (como
numa variante de Atos 19:28), não necessariamente “rua que rodeia uma casa”. As palavras têm sua
história. Sofrem mudanças de significado, desenvolvimentos e ramificações, de modo que com o
correr do tempo nem todos os componentes das palavras retêm seu significado total.
Versículo 5: _στηκότων, ptc. pf. gen. masc. pl. de _στημι.
Versículo 6: _φ_καν aor. ind. at. 3ª. pes. pl. de _φιημι. Os que estavam perto entregaram o jumentinho
aos discípulos; soltaram-no.
Marcos (William Hendriksen) 563
além dos Doze, Jesus tinha muitos outros discípulos, homens e mulheres,
que estavam preparados para O servir de diversas maneiras. Havia um
grande número de Seus partidários na Judeia, Galileia, Pereia, e onde
quer que o Senhor fosse. Quer fosse para um lugar de hospedagem, um
jumentinho, um aposento para celebrar a Páscoa, ou inclusive uma
tumba, estes amigos estavam prontos para remediar qualquer
necessidade. Com apenas as palavras, “O Senhor o necessita” era tudo o
que se requeria.
Também hoje é preciso com urgência este amplo conjunto de
verdadeiros crentes no Senhor, sustentadores de Sua causa, e não só para
seguir as instruções que vêm “de acima”, quer dizer, das autoridades
eclesiásticas, mas também para ajudar os pobres com palavras e atos,
para alentar os temerosos, para dar testemunho da bondade do Deus que
outorga salvação ao pecador, etc. Estas tarefas devem ser realizadas
voluntariamente, com entusiasmo, e sem a menor consideração de
aplausos e/ou ascensões. Devem ser realizadas no espírito do poema de
Ellen M. H. Gates intitulado Tua missão, que começa com as seguintes
linhas:
“Se não podes nas águas de alto mar
Navegar veloz entre os navios,
Sobre o alto das ondas oscilar,
E rir-te das rudes tempestades,
Tu, sim, podes ao marinheiro descer
Ao seu barco defendido do fluxo,
lhe ajudar amistoso em seu trabalho
Preparando seu barquinho para a viagem”.
Veja-se A. T. Byers e Eva R. Johnson
(Editores e compiladores), Treasures
of Poetry (Anderson, Ind., 1913), p. 267.

Depois de obter a autorização, os dois discípulos,


Marcos (William Hendriksen) 564
7, 8. Levaram o jumentinho, sobre o qual puseram as suas vestes, e
Jesus o montou. E muitos estendiam as suas vestes no caminho, e outros,
ramos que haviam cortado dos campos.
De modo que, os dois discípulos: a. trouxeram o jumentinho a
Jesus, b. talvez junto com os outros dez discípulos, colocaram seus finos
e longos mantos quadrangulares sobre o jumentinho para prover um
assento o mais cômodo possível para Jesus; e c. montaram-no no
jumento (Lc. 19:35), ajudando-se Ele mesmo para sentar-se sobre o
animal.
Ao mesmo tempo, uma grande multidão que acompanhava a Jesus
desde Betânia e que não queria ser menos que os Doze, começaram a
atapetar o caminho com seus mantos ou com ramos frondosos que
cortavam dos campos. 528
É preciso levar em conta que a multidão que acompanhava a Jesus
desde sua saída de Betânia não foi a única coisa que participou nas
atividades relacionadas com a entrada triunfal. A Jerusalém tinha
chegado antes uma caravana de peregrinos. Sabiam que Jesus havia
ressuscitado Lázaro e que ia a caminho da cidade. Aquela multidão
equilibrou-se rumo à porta oriental para sair ao Seu encontro. Com
grandes ramos cortados das palmeiras, adiantaram-se a receber a Jesus
(Jo. 12:1, 12, 13a, 18). Depois de fazer isto se voltam e, por assim dizer,
escoltam a Jesus descendo pela ladeira ocidental do monte das Oliveiras
para entrar na cidade. A multidão de Betânia segue após Ele. Isto explica
as duas multidões que Marcos menciona:
9, 10. Tanto os que iam adiante dele como os que vinham depois
clamavam: Hosana! Bendito o que vem em nome do Senhor! Bendito o
reino que vem, o reino de Davi, nosso pai! Hosana, nas maiores alturas!

528
Versículo 8: _στρωσαν, aor. ind. at. 3ª. pes. pl. de στρωννύω, estender. Cf. em inglês strew,
estender, e em português estrela (que dispersa luz).
στιβάς = στοιβάς, broto com folhas, ramo (de árvore); no Novo Testamento só aparece aqui.
Marcos (William Hendriksen) 565
Devemos tratar de compreender o espírito do momento em que
estas duas multidões se encontraram. Que impetuoso e exuberante seu
entusiasmo! Que desenfreado e alvoroçado seu clamor!
O que era exatamente o que gritavam e qual era seu significado?
“Hosana” significa “salva agora”, ou “salva, rogamos”. A atitude da
multidão com relação a Deus era talvez como segue: “Suplicamos-te, Ó
Senhor, salva-nos agora, dá-nos agora a vitória e a prosperidade, porque
por Tua bondade a hora esperada chegou”. Daí que nesta exclamação de
“Hosana” se combinam os dois elementos: a súplica e a adoração, ou se
preferir-se: a oração e o louvor. É claro que a fonte de Marcos 11:9, 10 é
o Salmo 118 (Septuaginta, Salmo 117), que do princípio ao fim está
cheio de oração e de louvor (veja-se especialmente os vv. 22–26a). É em
essência um salmo de louvor, um da série 113–118, cantado na Páscoa
(veja-se CNT sobre Jo. 2:13). É também um dos seis salmos que mais
frequentemente são citados ou aos quais mais referência é feita no Novo
Testamento; os outros são os Salmos 2; 22; 69; 89; e 110.
O Salmo 118 é definitivamente messiânico. Fala a respeito da pedra
desprezada pelos edificadores, mas destinada a ser a pedra angular. Veja-
se sobre Mc. 12:10; cf. Mt. 21:42; Lc. 20:17; At. 4:11; e 1Pe. 2:7.
Quanto a “Bendito o que vem em nome do Senhor!”, trata-se de
uma citação do Salmo 118:26. Como Mt. 21:9 acrescenta “o Filho de
Davi”, isto deve referir-se a Jesus como Messias. É preciso deplorar,
entretanto, que a maioria desta multidão não avançou mais um passo:
deveriam ter relacionado o Salmo 118 com Isaías 53 e com Zacarias 9:9;
13:1. Só então teriam reconhecido em Jesus o Messias que salva o Seu
povo de seus pecados (Mt. 1:21).
“Bendito o reino que vem, o reino de Davi, nosso pai!”, é uma
cláusula que somente se conserva em Marcos. É preciso reconhecer,
entretanto, que Jesus Se referiu com frequência ao “reino de Deus” ou
“reino dos céus”, e tinha relacionado esta frase com Sua própria vinda a
este mundo (Mc. 1:14, 15), e com a próxima manifestação de Seu poder
e glória (Mc. 9:1). Embora tivesse ensinado aos Seus discípulos a orar,
Marcos (William Hendriksen) 566
“Venha o teu reino” (Mt. 6:10), é difícil crer que a menção que a
multidão fazia do “reino que vem, o reino de Davi, nosso pai” fosse
totalmente pura e íntegra.
Neste sentido, há alguns fatos que devemos ter e mente:
a. Aquela multidão estava formada por “peregrinos” que iam
celebrar a Páscoa. Esta festividade lembrava a cada judeu a libertação de
seus antecessores da escravidão egípcia. Em tal ocasião, na mente de
todos havia um pensamento: “Quanto tempo transcorrerá até que nós
mesmos sejamos libertados da opressão estrangeira?”
b. Não se pode considerar como muito descabelada a possibilidade
de que, entre aquela grande multidão que incluía muitos galileus,
estivessem aqueles que numa ocasião anterior tinham tentado tomar a
Jesus “com o intuito de arrebatá-lo para o proclamarem rei” (Jo. 6:15).
c. Pouco antes Jesus milagrosamente tinha alimentado uma
multidão acossada pela fome. Isto levou as pessoas a querer fazê-lo um
rei terrestre. E agora, poucos dias antes da morte de Cristo na cruz, tinha
ocorrido um milagre ainda mais surpreendente: a ressurreição de Lázaro.
Este milagre foi uma das razões principais da clamorosa adulação desta
dupla multidão, conforme o mostra claramente João 12:17, 18.
Portanto, não cremos estar num grande erro ao declarar que o
clamor, “Bendito o reino que vem, o reino de Davi, nosso pai!” era, em
grande proporção, uma expressão da esperança da restauração nacional,
do restabelecimento do reino davídico concebido em sentido terrestre e
político.
Finalmente, a expressão “Hosana, nas maiores alturas!”, mostra-nos
que ao Messias o considerava um dom de Deus. O Messias é Aquele que
habita nos céus dos céus e é digno das orações e louvores de todos,
incluindo até os anjos. Não se pode evitar pensar no Salmo 148:1, 2 e em
Lucas 2:14.
A multidão estava certa quando aclamava a Jesus como “o Filho de
Davi” (Mt. 21:9), quer dizer, o Messias. Conquanto fosse preciso
repreender os que erroneamente acharam falta nas crianças (Mt. 21:15)
Marcos (William Hendriksen) 567
ou os discípulos (Lc. 19:39) por dirigir-se assim a Jesus. Mas em geral as
multidões erraram ao não poder discernir a natureza espiritual da obra
messiânica de Jesus. E seu fatídico erro produziu-lhes trágicos
resultados. Quanto deve ter angustiado a Jesus esta falta de fé no que Ele
realmente era! Não nos surpreende, então, que Lucas descreva a Jesus
como a um rei que chora no meio da clamorosa multidão (Lc. 19:39–44);
e tampouco é estranho que muito pouco depois, quando as multidões
começaram a compreender que Jesus não era a classe de Messias que
esperavam, por insistência de seus líderes, gritassem, “Crucifica-o!”
Além disso, não havia desculpa possível para este deplorável
desconhecimento por parte do povo e de seus dirigentes.
a. O próprio fato de que Jesus entrasse em Jerusalém sobre um
jumentinho, cria de jumenta, e não sobre um brioso corcel guerreiro ou
sobre um garboso potro branco, associava-o com a busca da paz, e isto
deve ter sido suficiente para mostrar que tinha vindo como Príncipe da
Paz.
b. Além disso, ao proceder assim, estava cumprindo uma profecia
que o relacionava com a paz, a humildade e a salvação (Zc. 9:9).
c. Do mesmo modo, em várias outras profecias se realçava também
o caráter pacífico do Messias (Is. 9:6, 7; 35:5, 6; 40:11; 42:1–4; 60:1–3;
61, todo o capítulo, mas veja-se especialmente vv. 1–3).
d. Logo vem Isaías 53, onde de uma maneira impressionante e
inesquecível, descreve-se ao Messias como Aquele que mediante Seu
sofrimento e morte vicária, realizou a expiação dos pecados de Seu povo.
e. Finalmente, acaso este Filho de Davi não Se deu a conhecer
durante todo o Seu ministério como fonte de pensamentos de paz? Seu
coração não Se comovia diante das multidões? Não mostrou em toda
ocasião ternura para com o doente, o oprimido, o fraco, o pobre, os
pequeninos, as viúvas, etc.? Não insistiu vez após vez com os pecadores
a ir a Ele para achar paz verdadeira e duradoura? Veja-se Mt. 11:28–30;
12:17–21; 23:37; Lc. 12:32; Jo. 10:14–16, para mencionar só algumas
passagens entre as muitas que se poderiam citar.
Marcos (William Hendriksen) 568
Jamais poderemos entender No domingo de Ramos a menos que
consideremos que, pela atitude de muitos dos que aclamavam, era uma
tragédia! Entretanto, foi também um triunfo; quer dizer, um triunfo do
amor de Cristo! Acaso não propiciou a propósito uma manifestação?
Percebeu perfeitamente que o entusiasmo das massas enfureceria os
hostis dirigentes de Jerusalém, de modo que então levariam a cabo seu
complô para matá-Lo. Mas em realidade Ele veio do céu para isso, veio
para morrer na forma mais cruel e dolorosa! De fato veio para sofrer a
morte eterna em lugar daqueles que o Pai Lhe tinha dado! Tão
intensamente amou os pecadores que veio do céu a este mundo. Veio do
céu ao inferno na terra para salvar os pecadores! Portanto, do ponto de
vista de Jesus e de todos os que pela graça soberana O adoraram pelo
que realmente era e é, no domingo de Ramos foi um triunfo!
11. E, quando entrou em Jerusalém, no templo, tendo
observado tudo, como fosse já tarde, saiu para Betânia com os doze.
Mateus 21:10, 11 (veja-se CNT sobre essa passagem) relata o que
sucedeu no momento em que o Senhor entrou em Jerusalém, e talvez
pouco depois. Marcos reata a história quando já o dia estava
avançado, 529 quer dizer, ao anoitecer do domingo. Somente menciona
uma breve visita ao templo. Com relação à presença de Jesus ali, veja-se
também Mc. 11:15ss., 27; 12:35; 13:1, 3; 14:49. Embora a palavra que
aqui se use para designar o “templo” inclua tudo — pode abranger toda a
área do complexo do templo —, isto não significa que Jesus visitasse
cada canto do mesmo. Aqui se refere provavelmente ao espaçoso átrio
dos gentios e a seus corredores contíguos. Veja-se o diagrama incluído
no comentário sobre o v. 15.
Em Sua visita ao templo, Jesus olha “tudo ao redor”. 530 Com Seu
olhar faz uma rápida e penetrante inspeção sem que Lhe escape nada.
Recolhe impressões que determinariam Sua linha de ação no dia

529
_ψίας _δη ο_σης τ_ς _ρας, gen. Abes.; literalmente “a hora sendo já tarde”.
530
O mesmo particípio grego que em Mc. 3:5; veja-se nota 105.
Marcos (William Hendriksen) 569
seguinte. Como aquela tarde do domingo já era avançada, abandona a
cidade para passar a noite em Betânia com os Doze (veja-se também
sobre o v. 19 e cf. Mt. 21:17). Jesus sabe que as autoridades judaicas
estão em pugna contra Ele, e também que Sua hora de morrer ainda não
chegou. Assim que, por estas duas razões, não pode ficar em Jerusalém
naquela noite. Além disso, deixando a cidade poderá escapar do alvoroço
das multidões, terá oportunidade para orar e meditar, e talvez desfrutar
de algum tempo de comunhão com Seus discípulos.

Mc. 11:12–14 - Maldição da figueira


Cf. Mt. 21:18, 19

Embora a narração da entrada triunfal de Cristo se ache nos quatro


Evangelhos, só Mateus e Marcos registram a maldição da figueira. O
primeiro trata esta história de forma temática, o segundo de forma
cronológica. Para mais detalhes sobre isso, veja-se CNT sobre Mateus
5:6. Ao comparar Marcos 11:12–14 com Mateus 21:18, 19, aparecem as
seguintes variações:
a. Mateus diz, “Cedo de manhã, ao voltar para a cidade …”;
Marcos, “No dia seguinte, quando saíram de Betânia …”. Entretanto, o
fato de que Jesus voltava de Betânia a Jerusalém vê-se claro pelos relatos
imediatamente precedentes em ambos os casos.
b. Segundo Mateus, Jesus viu uma figueira “à beira do caminho”.
Marcos relata que Jesus observou desde certa distância “uma figueira
com folhas”.
c. Só Marcos apresenta o interessante detalhe de que Jesus “foi ver
se nela, porventura, acharia alguma coisa”.
d. Embora ambos os Evangelhos explicam ao leitor que Jesus foi à
árvore e não encontrou nada senão folhas, é Marcos quem acrescenta,
“porque não era tempo de figos”.
e. A diferença nas palavras da maldição, segundo se acham em
ambos os Evangelhos, é muito leve. Segundo Mateus, Jesus diz, “Nunca
Marcos (William Hendriksen) 570
mais nasça fruto de ti!”; segundo Marcos, “Nunca jamais coma alguém
fruto de ti!”. Os dois harmonizam perfeitamente.
f. Finalmente, Mateus chama a atenção sobre o fato de que a árvore
começou a secar imediatamente. Sem negar este fato, Marcos dirige
nossa atenção para a volta dos Doze, declarando, “E seus discípulos
ouviram isto”.
Pode-se repetir aqui o já assinalado antes: os evangelistas não eram
meros copistas; cada um relata a história à sua maneira. Entre os dois
não existe conflito algum. Ao complementar-se entre si enriquecem o
leitor.
12. No dia seguinte, 531 quando saíram de Betânia, teve fome. 532
Se Jesus Se hospedou em casa de Seus amigos na noite do domingo
até segunda-feira, não se entende muito bem por que devia ter fome
naquela manhã. Foi porque levantou-se muito cedo, antes da hora do
café da manhã (cf. 1:35)? Ou foi que Ele e os Doze passaram a noite sob
as estrelas que brilhavam sobre as ladeiras das cercanias da aldeia?
Quão intensamente humano é este Jesus; quão semelhante a nós, até
em sentir fome igual a nós! (cf. Mt. 4:2; Hb. 4:15). Também isto foi
parte da humilhação de Cristo, realizada em substituição de Seu povo e
para o bem do mesmo (2Co. 8:9; Gl 3:13; Fp. 2:8). De uma forma muito
eficaz e bela, o escritor inspirado de Hebreus deixa claro o consolo que
se pode derivar do que aqui se revela com relação a Cristo (Mc. 4:15).
13. E, vendo de longe uma figueira com folhas, foi ver se nela,
porventura, acharia alguma coisa. 533

531
τ_ _παύριον. Aqui é preciso suprir _μέρ_. A palavra _παύριον compõe-se de _π e α_ριον, o dia de
amanhã. Para α_ριον cf. aurora, o amanhecer. Portanto, o episódio teve lugar quando amanhecia ao
dia seguinte.
532
_πείνασε aor. ind. 3ª. pes. de πεινάω, ter fome. Cf. 1Co. 4:11; Fp. 4:12. Cf. penúria. Em Mateus
5:6 usa-se no sentido de desejar intensamente.
533
συκ_ (acus. _ν) figueira. Cf. sicômoro. Φ_λλον (pl.-α), folha, cf. folhagem. Note-se ε_ _ρα com
futuro indicativo; daí, “se talvez achasse algo …”. Isto se assemelha à uma pergunta indireta. Cf. At.
8:22; “se talvez …”; e 17:27 “se em algum modo apalpando, possam lhe achar”.
Marcos (William Hendriksen) 571
Mas, não era Jesus onisciente? A presente passagem parece sugerir
que o Mestre obtinha às vezes informação de forma similar à nossa.
Outras vezes, o Seu conhecimento era totalmente sobrenatural. Este tema
já se comentou anteriormente. Veja-se sobre Mc. 2:8; 5:32; 9:33, 34;
10:33, 34; 11:1, 2. Veja-se também Mc. 13:32.
Continua: Aproximando-se dela, nada achou, senão folhas;
porque não era tempo de figos. Na região a que se refere Marcos aqui,
os figos anteriores, ou menores, que nascem dos brotos do ano anterior,
começam a aparecer a fins de março e amadurecem em maio ou junho.
Os figos mais tardios e maiores que saem dos renovos novos ou
primaveris, são recolhidos de agosto a outubro. É importante assinalar
que os primeiros figos, os que aqui nos interessam, começam a aparecer
simultaneamente com as folhas. Na realidade, às vezes, precedem às
folhas.
A Páscoa (por abril) aproximava-se. Em consequência, não havia
ainda chegado o tempo em que amadurecem os figos anteriores, e menos
os tardios. Portanto “não era tempo de figos”. Mas Jesus observa que
esta árvore em particular, que crescia junto ao caminho e, por isso,
provavelmente num lugar protegido (Mt. 21:19), era algo especial. Tinha
folhas, ao que parece estava na plenitude de sua folhagem e bem poderia
esperar-se fruto dela. Não obstante, só tinha folhas! Prometia muito mas
não dava nada!
14. Então, lhe disse 534 Jesus: Nunca jamais coma alguém 535
fruto de ti!
534
Para _ποκριθείς veja-se sobre Mc. 9:5, nota 391; e sobre Mc. 10:51, nota 515.
535
Note-se a dupla negação Μηκέτι ε_ς τ_ν α__να … μηδείς; literalmente, “Nunca … ninguém”. Cf.
o sul-africano: “Laat niemand ooit in der ewigheid van jou ‘n vrug eet nie”. Veja-se o duplo negativo
(com subjuntivo) em Mt. 21:19. Para ampliar sobre os dobros negativos de Marcos, veja-se Introdução
IV, nota 5 h. Note-se também φάγοι aor. opt. 3ª. pes. sing. de _σθίω. Com tal optativo deve-se ter
muito cuidado. De modo nenhum é “um mero desejo”. Tem aqui a força de um mandato; na realidade
(neste contexto), de uma séria maldição pronunciada sobre (ou: contra) esta árvore! Indubitavelmente
uma maldição muito efetiva, comose vê claro por Mc. 11:20, 21; cf. Mt. 21:19, 20. Assim também nas
saudações o optativo não é “um mero desejo”. Veja-se CNT sobre 1 e 2 Tessalonicenses, pp. 53–56,
incluindo as notas.
Marcos (William Hendriksen) 572
É impossível crer que a maldição que o Senhor pronunciou contra
esta árvore fosse um ato de castigo, como se a árvore por si só fosse
responsável por não dar fruto, e como se por esta razão Jesus estivesse
zangado com ela. A verdadeira explicação é mais profunda. A
pretensiosa mas infrutífera árvore era um emblema adequado de Israel
(veja-se Lc. 13:6–9; cf. Is. 5). O próprio Jesus teria que interpretar essa
figura no dia seguinte (terça-feira); veja-se sobre Mt. 21:43. Na
realidade, os discípulos nem sequer tiveram que esperar o outro dia para
ter a explicação: A pretensiosa figueira tinha seu equivalente no templo,
onde naquele mesmo dia (segunda-feira) tramitavam-se animados
negócios a fim de facilitar a realização dos sacrifícios, enquanto que
paralelamente os sacerdotes planejavam matar o próprio Messias,
embora sem Ele estas ofertas não tinham nenhum significado. Muitas
folhas mas nada de fruto. Buliçosa atividade religiosa, mas nada de
sinceridade nem de atos. Grandes promessas mas paupérrimas
realizações! Ao amaldiçoar a figueira e purificar o templo, Jesus realizou
dois atos simbólicos e proféticos, com um único significado. Estava
predizendo a queda do infrutífero Israel. Com isto não indica que tinha
“terminado com os judeus”, mas em lugar de Israel se estabeleceria um
reino internacional e eterno, uma nação que não produziria unicamente
folhas, mas fruto, e que seria formada com judeus e gentios.
E seus discípulos ouviram isto. Estavam profundamente
impressionados. Este mesmo Jesus, cujo coração estava sempre
compadecendo-se das multidões, e cujo vivo desejo era consolar e
fortalecer, ajudar e curar, buscar e salvar, eles ouviram
inconfundivelmente pronunciar contra uma figueira: uma maldição para
que se secasse! Vislumbravam já por este tempo o significado desta
maldição? Adivinhavam instintivamente que tinham sido testemunhas de
uma parábola encenada, similar àquelas representadas por alguns dos
profetas do Antigo Testamento? Vejam-se Jr. 13:1–11; cap. 19,
especialmente vv. 1, 2, 10; Ez. 3:1–11; 12:1–16; cap. 24; Os. 1:1–9; 3:1–
5; etc. Certamente que se tivessem lido atentamente Jeremias 8:13, se
Marcos (William Hendriksen) 573
tivessem estudado Isaías 5 e levado a sério a parábola da figueira estéril
(Lc. 13:6–9), não teriam passado por alto o ensino.

Há um fato que não se nos deve escapar. Com a exceção de alguns


milagres múltiplos (como os que se relatam em Mc. 1:32–34, 39; 3:10,
11; 6:53–56) e o milagre por excelência (a ressurreição triunfante de
Cristo dentre os mortos, cf. Mc. 16:1–8), este Evangelho registra 18
milagres. Destes 18, a maldição da figueira é o último.

Além disso, não só é o último; é também destrutivo, na realidade,


totalmente destrutivo (veja-se vv. 14, 20, 21). O milagre registrado em
Mc. 5:1–20 era só parcialmente destrutivo (5:13).

Não fazem estas duas exceções que os outros milagres — aqueles


em que se desdobra a misericórdia divina — sobressaiam de forma mais
notável? Entre as muitas lições que ensinam estes sinais de poder e
misericórdia, devemos incluir as duas seguintes: a. Deus — em
consequência, Jesus Cristo (Jo. 14:8, 9) — Se deleita em mostrar Sua
misericórdia, curando e salvando (Is. 1:18; 5:1, 2; 45:22; cap. 55; Ez.
18:23, 32; 33:11; Os. 11:8; Mt. 11:28–30; 23:27; Ap. 22:17); e b. “O
homem que muitas vezes repreendido endurece a cerviz será
quebrantado de repente sem que haja cura” (Pv. 29:1; cf. Is. 1:19, 20;
5:3–7; Ez. 18:24; Mt. 11:20–24; 23:38; Ap. 14:9–11).
Marcos (William Hendriksen) 574
Milagros de Jesús que Marcos registra en su Evangelio

Marcos Só Marcos Marcos e Marcos e Marcos, Marcos, Os 4


Cap. Mateus Lucas Mateus Mateus
e Lucas e João
1 vv. 21–28, o vv. 30, 31, a
endemoninhado sogra de Pedro;
da sinagoga vv. 40–45, um
leproso
2 vv. 1–12, um
paralítico
3 vv. 1–6, uma
mão seca
4 vv. 35–41, una
tormenta
5 vv. 1–20, o
endemoninhado
geraseno; vv.
21–24, 35–43,
a filha de Jairo;
vv. 25–34, a
mulher que
tocou na veste
de Jesus
6 vv. 45–52, vv. 30–44,
águas cinco mil
turbulentas: pessoas
duplo com fome
milagre
7 vv. 31–37, vv. 1–10,
o homem quatro mil
surdo- pessoas
mudo com fome
8 vv. 22–26, vv. 1–10,
o cego de quatro mil
Betsaida pessoas
com fome
9 vv. 14–29, um
menino
epilético
10 vv. 46–52, o
cego Bartimeu
11 vv. 12–14,
uma
figueira
estéril
Marcos (William Hendriksen) 575
Dos 18 milagres que aparecem em Marcos, 16 têm paralelo em um
ou mais dos Evangelhos, como o mostra a seguinte Tábua:

Marcos Mateus Lucas João


1:21–28 4:31–37
1:30, 31 8:14, 15 4:38, 39
1:40–45 8:1–4 5:12–16
2:1–12 9:1–8 5:17–26
3:1–6 12:9–14 6:6–11
4:35–41 8:18, 23–27 8:22–25
5:1–20 8:28–9:1 8:26–39
5:21–24, 35–43 9:18, 19, 23–26 8:40–42, 49–56
5:25–34 9:20–22 8:43–48
6:30–44 14:13–21 9:10–17 6:1–14
6:45–52 14:22–33 6:15–21
7:24–30 15:21–28
8:1–10 15:32–39
9:14–29 17:14–20 9:37–43ª
10:46–52 20:29–34 18:35–43
11:12–14 21:18, 19

Mc. 11:15–19 - Purificação do templo


Cf. Mt. 21:12–17; Lc. 19:45–48
Sobre uma purificação anterior, veja-se João 2:13–22

Este surpreendente evento registrado pelos três evangelistas,


ocorreu na segunda-feira da semana de Paixão, depois da maldição da
figueira. As principais diferenças entre os três relatos — variações de
relatos, pontos não conflitivos — são as seguintes:
Marcos é o único que informa que Jesus não permitiu que o templo
fosse usado como atalho para viagens ou para o transporte. Também é o
único que inclui a frase “para todas as nações”, ao citar as palavras que
Marcos (William Hendriksen) 576
Jesus deriva de Isaías 56:7b. Esta diferença resulta lógica quando se leva
em conta que o propósito principal de Marcos era evangelizar os
romanos e, portanto, a todas as nações. Pelo contrário, Mateus tem como
objetivo principal evangelizar os judeus. A omissão que faz Lucas desta
frase é mais difícil de explicar. Entretanto, deve-se ter em mente que o
relato que ele entrega deste evento é muito breve (só quatro versículos).
De maneira que, a omissão está de acordo com sua pauta general de não
estender-se muito sobre alguns temas, para deixar lugar a outro material
(parábolas, etc.). Marcos menciona a reação dos dirigentes judeus, que
buscavam a forma de matar a Jesus. Este fato também o reflete Lucas. E
Marcos indica que a saída de Jesus fora da cidade ao chegar a noite, era
seu costume durante a semana de Paixão.
Mateus descreve a compaixão e o poder curativo que Jesus mostrou
para com o cego e o coxo; também a defesa que faz das crianças que
gritavam hosanas, e das aclamações sinceras e jubilosas que provocaram
o ressentimento das autoridades religiosas.
Lucas nos diz que Jesus ensinava diariamente no templo, e que o
desejo dos adversários para matar a Cristo nos primeiros dias da semana
viu-se desbaratado por temor ao povo.
Com relação aos argumentos contra identificar esta purificação do
templo com a consignada em João 2, veja-se CNT sobre João 2:13–22.
15. E foram para Jerusalém. Entrando ele no templo, passou a
expulsar os que ali vendiam e compravam; derribou as mesas dos
cambistas e as cadeiras dos que vendiam pombas.
Do monte das Oliveiras, Jesus se havia dirigido a Jerusalém, tinha
passado a noite em Betânia e logo tinha voltado para Jerusalém. Aqui
entra no templo. O cume do próximo Monte das Oliveiras é 75 metros
mais alto que a colina onde estava o templo. Entre o Monte das Oliveiras
pelo leste, e a cidade, encontra-se o vale de Cedrom.
Marcos (William Hendriksen) 577
Descrição do templo
Para poder compreender melhor o significado da purificação do
templo, e muitas outras referências a este edifício, notem-se os seguintes
fatos principais:
Foi Davi quem concebeu em seu coração a ideia de construir um
templo para o Senhor. Mas pela razão indicada em 1 Crônicas 28:3 o
privilégio de construí-lo não o obteve Davi, senão o seu filho Salomão.
Este começou a edificá-lo no quarto ano do seu reinado, ou seja, perto do
ano 969 a.C. (veja-se 1RS. 6:1). Foi terminado-se sete anos mais tarde
(1Rs. 6:38). Em sua construção foram usadas madeiras de cedro e de
cipreste do Líbano e pedra calcária branca. Devido ao fato de que a
planície do Moriá sobre a qual estava construído era pequena, os
fundamentos tiveram que começar muito abaixo, ficando entre estes e o
cimo, um espaço que foi necessário preencher. Para a descrição do
mobiliário deste templo e a forma em que foi dedicado, veja-se 1 Reis 6–
8. O templo foi assediado e atacado. Através dos séculos foi saqueado,
renovado, profanado e purificado (vejam-se 1Rs. 14:26; 15:18; 2Rs.
14:14; 15:35; 16:17ss.; 23:4ss.). Seus tesouros foram levados para
Babilônia (2Rs. 24:13). Finalmente, pelo ano 586 a.C. o exército caldeu
destruiu Jerusalém, incluindo o belo templo de Salomão.
Uns cinquenta anos mais tarde, quando um resíduo de judeus
retornou do cativeiro babilônico, construiu-se imediatamente um altar
para o novo templo (Ed. 3:3). Tempo depois começou-se a sério a
construção propriamente tal. concluiu-se uns vinte anos depois da volta.
Entretanto, ao ver-se claramente que seria um edifício muitíssimo menos
imponente e belo que o templo de Salomão, a gente mais anciã, que tinha
conhecido a primeira construção, chorava (Ed. 3:12, 13). Este é o templo
que foi saqueado e profanado por Antíoco Epifânio no ano 168 a.C.
Aproximadamente três anos mais tarde, Judas Macabeu o purificou e
reedificou. Pompeu o conquistou e entrou nele, mas não o destruiu.
Entretanto, Crasso lhe arrebatou seus tesouros nos anos 54, 53 a.C.
Marcos (William Hendriksen) 578
Herodes o Grande modificou e ampliou o conjunto do templo.
Aumentou-o e melhorou a tal ponto, que se poderia considerar um novo
templo, embora os judeus piedosos provavelmente não o considerassem
assim. Num eloquente discurso, caso se possa crer em Josefo, Herodes
deu a conhecer seu plano, consistente em “fazer uma retribuição de
agradecimento a Deus, da forma mais piedosa, pelas bênçãos que recebi
dele, que me deu este reino, e o cumpri, fazendo com que este templo
seja o mais completo que me seja possível”. Começou a construí-lo no
ano 19 a.C. Muito tempo depois de sua morte não se tinha terminado
totalmente (veja-se Jo. 2:20). A magnificência e beleza do templo que
Herodes começou a construir, e que avançou grandemente, fica de
manifesto em Mc. 13:1, 2; cf. Mt. 24:1, 2; Lc. 21:5, 6 (vejam-se também
Mt. 4:5; Lc. 4:9). É interessante notar que este grandioso edifício não foi
terminado até uns poucos anos antes de os romanos o destruírem no ano
70 d.C.
A seguir fazemos uma breve descrição do complexo do templo de
Herodes. Deve-se estudar com relação ao diagrama. Toda a grande
superfície na qual se encontrava — um quadrado que media não muito
menos de 300 metros de lado — estava rodeada por um muro externo
maciço. As pessoas que vinham do norte — dos arredores de Betesda,
por exemplo — podiam entrar pela porta do norte. A porta do Este dava
para o vale de Cedrom. Por esta porta, que anos mais tarde se chamou a
Porta de Ouro, podia-se cruzar a torrente do templo e assim ir ao jardim
do Getsêmani, a Betânia e ao monte das Oliveiras, ou vice-versa (veja-se
Mc. 11:1, 11; Jo. 18:1; Mc. 11:16). Vindo do sul, por exemplo, da parte
baixa da cidade, podia-se chegar ao Átrio dos Gentios pelas duas portas
de Hulda. Uma destas portas era dupla, a outra tríplice. De todas as
portas que conduziam de ou para fora, estas eram as mais usadas.
Finalmente, da parte alta da cidade podia-se entrar pelas quatro portas
ocidentais. Eram estas muito úteis, como também as duas pontes que
conectavam duas destas portas ocidentais. Suas ruínas se conservaram
até o dia de hoje.
Marcos (William Hendriksen) 579
Junto ao muro exterior havia várias fileiras de altas colunas. Cada
uma delas era de uma peça de fino mármore branco gentil. Nos lados
Este, Oeste e Norte havia três filas paralelas de colunas; no Sul havia
quatro. Isto significava que três lados tinham duas salas paralelas,
enquanto que o Pórtico Real, onde segundo a tradição tinha estado o
palácio de Salomão, tinha três.
João 10:23 [TB] diz: “Era o inverno. Jesus passeava no templo, no
pórtico de Salomão (pórtico ou colunata)”. Este “pórtico” coberto
provavelmente derivava seu nome de ser a única parte que ficava do
templo que aquele rei tinha construído (cf. At. 3:11; 5:12). É fácil de
compreender que os vários, amplos e belos pórticos se prestavam
admiravelmente para o ensino (Mc. 12:41–44 e paralelos; Lc. 19:47,
etc.).
Para além destes pórticos, quer dizer, para além do muro exterior,
estava o espaçoso Átrio dos Gentios, que rodeava por completo o templo
propriamente dito. Estava pavimentado com mármore de jaspe da mais
fina qualidade. Tanto judeus como gentios eram bem-vindos neste átrio.
Seu nome se deriva do fato de que aos gentios não era permitido entrar
mais para dentro. Com o fim de lembrá-los desta proibição, o pequeno
espaço encerrado dentro do Átrio dos Gentios, estava rodeado por uma
varanda de 1,30 m. de altura onde havia letreiros que tinham inscrições
em grego e em latim com esta advertência:
“Que nenhum homem de outra nação transpasse esta barreira nem a
cerca que rodeia o templo. Quem for surpreendido será o único culpado
de sua própria morte”.
Marcos (William Hendriksen) 580
536
PLANO DA PLANTA BAIXA DO TEMPLO NOS DIAS DE JESUS
LADO NORTE

LADO SUL

536
O diagrama apresenta somente os principais aspectos do templo de Herodes. Não se tem feito
nenhum tento para descrever as salas encostadas aos muros do átrio exterior, nem o equipamento
adicional pertencente ao Átrio dos Sacerdotes — tal como o lugar para a matança a norte do altar, as
mesas para preparar os sacrifícios, o canal de drenagem que levava o sangue ao Cedrom — e vários
outros detalhes. Tampouco há certeza com relação à identidade de cada porta; em especial pelo que
refere-se à porta de Nicanor, a qual, depende Edersheim e Halberthal, estava localizada a oeste do
Átrio das Mulheres, embora segundo muitos outros encontrava-se a leste de tal átrio e se identifica
com a Porta Formosa.
Marcos (William Hendriksen) 581
LSS = lugar santíssimo
LS = lugar santo, que contém a mesa dos
pães da proposição, o altar do incenso e
o candelabro
A = altar do holocausto
F = fonte de bronze
N? = porta de Nicanor
(localização discutida)
PH = porta formosa
PO = porta de ouro
A = altar do holocausto
F = fonte de bronze
N? = porta de Nicanor
PH = porta formosa
PO = porta de ouro

Pode-se ver uma fotografia de uma parte do letreiro recuperado com


letras gregas, em Kollek e Pearlman, Op. cit., p. 124.
Se do Pórtico de Salomão seguindo rumo ao Oeste, quem tivesse o
privilégio cruzaria uma parte do Átrio dos Gentios, e entraria no Átrio
das Mulheres através da Porta Formosa. Aqui se permitia a entrada tanto
a homens como a mulheres. Assim como o nome de “Átrio dos Gentios”
indicava que a nenhum gentio estava permitido ingressar mais ao
interior, o “Átrio das Mulheres” recebia este nome para indicar que este
era o ponto limite até onde podiam chegar as mulheres. Estava dotado de
amplas câmaras e dava entrada às arcas do tesouro. Contra seus muros
havia treze arcas à maneira de trombetas para as ofertas e outras doações.
Marcos 12:41–44 (cf. Lc. 21:1–4) e João 8:20 nos vêm imediatamente à
mente.
Os varões israelitas podiam seguir ainda mais adentro, até o “Átrio
de Israel”, que era relativamente estreito. Entre este e o “Átrio dos
Marcos (William Hendriksen) 582
Sacerdotes” havia uma separação baixa, de modo que alguns autores
consideram estes dois átrios como um só.
O Átrio dos Sacerdotes rodeava o santuário interior formado pelo
Lugar Santo e o Lugar Santíssimo. A Leste achava-se o grande altar dos
sacrifícios. Mais perto do santuário, e um pouco mais ao Sul, podia-se
ver o mar de bronze, um grande recipiente de bronze que repousava
sobre 12 grandes leões. Finalmente estava o próprio santuário. Quanto às
medidas, Josefo afirma que sua planta baixa tinha “60 cúbitos (27 m.) de
altura, a mesma medida de comprimento, e 20 cúbitos (9 m.) de largura.
Mas os 60 cúbitos de comprimento se subdividiam. A primeira parte (o
Lugar Santo) chegava até 40 cúbitos (18 m.).… A seção mais para
dentro (o Lugar Santíssimo) media 20 cúbitos (9 m.)”.
Este magnífico santuário devia ser uma maravilha admirável, visto
que estava construído de mármore branco ricamente encravado de oro
pela frente e pelos lados. Entrava-se através de um imenso pórtico ou
vestíbulo de duas asas, segundo se indica no diagrama. Na entrada que
dava ao Lugar Santo estava pendurada uma cortina ou véu babilônico de
preciosas cores. Havia também outra cortina chamada “o segundo véu”
que separava o Lugar Santo do Lugar Santíssimo (vejam-se Mt. 27:51;
Hb. 6:19; cf. 9:3; 10:20).
Bem como na antiga dispensação, nos tempos de Jesus o Lugar
Santo continha “Um candelabro, uma mesa, e um altar do incenso”,
conforme nos informa Josefo, que acrescenta: “Mas neste (quer dizer, o
Lugar Santíssimo) nada havia …”. O candelabro de sete braços estava
entre os tesouros que Tito e Vespasiano exibiram em sua procissão
triunfal em Roma depois da Queda de Jerusalém em 70 d.C. Veja-se a
ilustração na obra já mencionada, Jerusalem, A History of Forty
Centuries, p. 131, e em muitas outras fontes.
Deixei intencionalmente para o final, a fim de dar especial relevo,
um ponto muito importante: o da altura das diversas partes. Antes de
prosseguir mais adiante, é conveniente sublinhar que não temos plena
segurança a respeito das medidas — principalmente comprimento e
Marcos (William Hendriksen) 583
largura — dadas até agora. A Bíblia não nos proporciona informação
sobre este ponto. Josefo e os tratados da Mishná nem sempre concordam.
Por isso, não é de estranhar que as fontes secundárias — mesmo os
melhores textos de estudo — não estejam de acordo em vários pontos. O
quadro geral é bastante claro, mas quando querem precisar detalhes,
deve-se recorrer a conjeturas às vezes prováveis, outras improváveis ou
ao menos infrutíferas. Isto é válido também quanto à altura das diversas
partes.
Com estas reservas, pode-se agora assinalar que havia três aspectos
que fizeram com que este templo fosse inesquecível:

a. Sua imensidão.
Do Leste ao Oeste ou noroeste, o conjunto do templo aumentava em
altura. Do Átrio dos Gentios até o das Mulheres havia uma ascensão de
14 degraus; dali até o Átrio de Israel subiam 15 mais. Uns poucos
degraus mais levava até o Átrio dos Sacerdotes; e 12 mais à entrada do
Santuário. Em consequência, o mais alto de todos os edifícios de todo o
complexo era o “templo” ou “santuário” que se erguia sobre o amplo
Átrio dos Gentios. “Algumas das pedras do edifício eram de 45 cúbitos
(21 m.) de comprimento, cinco (2,5 m.) de altura, e seis (2,70 m.) de
largura” (Josefo). Além disso, o santuário ocupava a parte mais elevada
do terreno e estava sustentada por fundamentos muito sólidos. Sua altura
era não menos de 18 m., em lugar dos 13,5 m. do templo de Salomão
(1Rs. 6:2). A isto devem acrescentar-se outros 18 m. para o cenáculo que
cobria todo o santuário. Todo o templo, com exceção do pórtico, estava
coberto por um telhado de cavalete feito de madeira de cedro. “De seu
cimo sobressaíam aguçadas pontas de ouro para impedir que os pássaros
posassem em cima e contaminassem o teto” (Josefo).
De tudo isto, segue-se que o melhor mapa pictórico do imenso
templo de Herodes seria um tridimensional. Veja-se, por exemplo, a
reconstrução do Conde do Vogue (Jerusalém, p. 100) ou o modelo do
Schick, que aparece reproduzido em várias enciclopédias em língua
Marcos (William Hendriksen) 584
inglesa e outras línguas, e em textos arqueológicos, ou o desenho em
cores de Lazar Halberthal.
A imensidão lembra ao homem sua pequenez e o induz ao temor
reverente.

b. Sua beleza.
Josefo diz: “A parte exterior do edifício tinha tudo aquilo que
poderia produzir assombro à alma e aos olhos. Ao estar coberto por
todos os lados com grossas pranchas de ouro, quase não saía o sol o
templo começava a irradiar um resplendor tão intenso que os que se
esforçavam em olhá-lo viam-se obrigados a desviar seus olhos como se
se tratasse de raios solares. Aos estrangeiros que se aproximavam
parecia-lhes de longe como uma montanha revestida de um manto de
neve, e isto devido ao fato de que tudo o que não estava coberto de ouro,
era de um branco puríssimo” (Guerra Judaica, V. 222). A beleza
convida à adoração.

c. Seu propósito.
O propósito expressa-se claramente em 1 Reis 8:13, 31–61; 9:3; e
especialmente em Isaías 56:7, porque embora estas passagens pertençam
ao templo de Salomão, é claro que têm significado com relação ao que
existia nos dias de Jesus. Mesmo como criança Jesus o chamou “a casa
de meu Pai” (Lc. 2:49). E durante Seu ministério terrestre, Jesus cita
Isaías, e declara que o templo é casa de adoração. Disse: “Não está
escrito: ‘Minha casa será chamada casa de oração para todos os povos
…’ ”?
***
De modo que, Jesus entrou no Átrio dos Gentios. Que espetáculo
mais triste perceberam Seus sentidos, Sua vista, ouvido, e até Seu olfato!
Assim como a começos de Seu ministério, agora também observava que
aquele átrio e templo estava sendo profanado. Parecia uma praça de
mercado. Os lucrativos negócios iam de vento em popa. Alguns vendiam
Marcos (William Hendriksen) 585
bois e ovelhas. Por aquela época do ano em que a Páscoa estava muito
próxima e os peregrinos de todos os lugares iam em multidão ao átrio,
abundavam os compradores. Pagavam altos preços pelos animais para o
sacrifício. Naturalmente, qualquer adorador podia levar o animal que
quisesse. Mas se o fizesse, corria o risco de que o rejeitassem. Os
mercadores do templo tinham pago generosamente por aquela concessão
aos sacerdotes, de quem a haviam comprado. Parte deste dinheiro
chegava finalmente às arcas do ardiloso e abastado Anás, e do arteiro
Caifás. Compreende-se facilmente, então, que os negociantes e a casta
sacerdotal estavam associados neste negócio. Ao entrar Jesus observou o
confuso barulho dos vendedores; também o ruído, a sujeira, e o mau
odor produzido pelos animais. Podia isto, de algum modo, chamar-se
adoração?
Note-se, os que “compravam” e “vendiam”. 537 Isto poderia resultar
um tanto difícil de entender. Vendedores? Sim, estes eram culpados de
extorquir os peregrinos, explorando-os. Mas por que os pobres e
inocentes compradores deviam estar incluídos com aqueles contra quem
o Senhor descarregou tão forte desaprovação? A resposta é
provavelmente a seguinte: aquela gente se mostrava muito dócil. Eram
pusilânimes como Eli (cf. 1Sm. 2:22–25; 3:13). Aceitavam as condições
tal como vinham. Naturalmente que era mais conveniente comprar um
animal no átrio que levá-lo consigo (Lv. 17:1–6; Jr. 17:26) e correr o
risco de que não passasse na inspeção oficial. Em consequência, a
concessão do vendedor tinha chegado a ser a conveniência do
comprador, e aquele que recebia era tão culpado como aquele que vendia
a preços excessivos enganando os compradores. 538

537
το_ς πωλο_ντας κα_ το_ς _γοράζοντας; estes são particípios pres. masc. at. acus., respectivamente
de πωλέω e _γοράζω; literalmente “Os vendedores e os compradores”, onde nós diríamos os
“compradores e os vendedores”. Com _γοράζω cf. ágora, fórum, mercado, e _γείρω = juntar. O _γορά
é o lugar onde os indivíduos sociáveis se congregam. Veja-se também sobre 6:36. 37, nota 279. Para
πωλέω, veja-se também sobre Mc. 10:21, nota 478.
538
Cf. o holandês: de heler is net zo goed (ou: slecht) als de steler.
Marcos (William Hendriksen) 586
Entre os compradores havia peregrinos de países longínquos. Veja-
se Jo. 12:20; At. 2:5–13. Estes levavam consigo dinheiro grego, romano,
egípcio, etc. Mas no átrio do templo não se aceitavam pagamentos com
moeda estrangeira. De modo que os cambistas estavam presentes,
sentados diante de seus mesas cobertas com moedas para câmbio. O
imposto do templo, de meio siclo, (Êx. 30:13; Mt. 17:2–27) devia-se
pagar em moeda judaica. Além disso se necessitava moeda judaica para
cumprir os vários ritos da purificação (At. 21:24). Assim que os
cambistas davam dinheiro judaico por dinheiro estrangeiro, cobrando um
pouco pelo serviço. Este tipo de negócio também era muito lucrativo.
Dava boa oportunidade para enganar o confiante peregrino.
Não é difícil imaginar a santa indignação que se deveu acender nos
olhos de Jesus enquanto expulsava os que estavam implicados naquele
nefasto negócio e derrubava as mesas dos cambistas e as cadeiras dos
vendedores de pombas. Não sabemos se nesta oportunidade, como o fez
na primeira vez que purificou o templo, improvisou um látego com
algumas cordas que se achavam espalhados e o brandiu sobre eles. Uma
coisa é certa: sem dúvida, Jesus Se manifestou como Senhor do templo
(cf. Mt. 12:6).
Em concordância com tudo isto Marcos acrescenta uma nota:
16. Não permitia que alguém conduzisse 539 qualquer utensílio
pelo templo.
Com a ajuda do diagrama do templo de Herodes e a explicação que
segue, o significado fica esclarecido. As portas estavam localizadas de
tal forma que se fazia muito fácil e conveniente usar o templo como
atalho para encurtar caminho: por exemplo, entre a cidade e o Monte das
Oliveiras. O lugar sagrado estava sendo usado com propósitos
inteiramente seculares. Não desaprovavam isto os rabinos? “Qual é a
reverência devida ao templo? Que ninguém entre ao monte da casa com

539
Depois de _φιε (impf. at. 3ª. pes. sing. de _φίημι) o infinitivo teria sido mais usual que como aqui
_να τις διενέγκ_ (aor. subj. 3ª. pes. sing. de διαφέρω).
Marcos (William Hendriksen) 587
seu bordão, sapatos, bolsa, ou pó em seus pés. Que ninguém cruze por
ele, e o menospreze fazendo-o lugar para cuspir”. 540 Jesus viu que para
conforto a pessoa mundana transportava todo tipo de “vasilhas” —
objetos que usava com propósitos profanos — através do templo e,
portanto, envilecia-o. Agora, se até os habitantes das grandes cidades da
Europa se ofendem ao ver suas catedrais usadas como vias públicas, e os
norte-americanos colocam sinais de “Não passar” à entrada de alguns de
seus parques e cidades universitárias, bem podemos entender o caráter
totalmente impróprio da prática que Jesus condena aqui.
A lição que daqui se depreende tem tanta aplicação hoje como
naquele então. Muitas vezes a prática da chamada “religião” chega a ser
nada mais que um meio para o que realmente interessa às pessoas, ou
seja, a conveniência, a promoção social, o lucro pecuniário, etc. Quando
isto ocorre, nada sobra da devoção sincera e genuína. A “casa de oração”
chega a ser uma fonte de benefícios pessoais, não de proveito real.
Não é raro, então, ler,
17. Também os ensinava e dizia: Não está escrito: A minha casa
será chamada casa de oração para todas as nações? Vós, porém, a
tendes transformado em covil de salteadores. 541
As palavras citadas vêm de Isaías 56:7b. Só Marcos coloca a
citação completa, quer dizer, incluindo “para todas as nações”. De tudo
isto fica claro que o templo tinha o propósito de ser o lugar onde Deus Se
encontrava com o Seu povo, um santuário para a tranquila devoção
espiritual, oração, meditação e comunhão, com relação aos sacrifícios.
Veja-se 1Rs. 8:29, 30, 33; Sl 27:4; cf. 65:4; cf. 1Sm. 1:9–18; Lc. 18:10;
At. 3:1.

540
Berakoth IX. 5.
541
σπήλαιον = cova; aqui cova (de ladrões); no Ap. 6:15 a cova a qual faz-se referência é um refúgio
em tempo de perigo; em Jo. 11:38, uma tumba, Cf. spelunker, speleologista. A tradução “ladrão” ou
“assaltante” para λ_στής ajusta-se melhor ao presente contexto. Assim também Mt. 21:13; Lc. 10:30,
36; 19:46; Jo. 10:1, 8; e 2Co. 11:26. Cf. Lucre. Nos seguintes passagens o significado alternativo de
“revolucionário”, “insurreto” ao menos merece ser considerado: Mt. 26:55; 27:38, 44; Mc. 14:48;
15:27; Lc. 22:52; Jo. 18:40.
Marcos (William Hendriksen) 588
A segunda parte do versículo contém o comentário de Cristo, quem
contrasta o ideal divino, segundo se descreve em Isaías 56:7b, com a
situação presente, a qual lhe trouxe à memória a passagem de Jeremias
7:11 que cita aqui. Nos dias de Jeremias, como se demonstra por seu
famoso discurso do templo, os judeus oprimiam os estrangeiros,
roubando, assassinando, etc. Entretanto, continuavam oferecendo
sacrifícios no templo como se aquela adoração formal a Jeová pudesse
fazer algum bem, e como se a própria existência do templo pudesse
protegê-los da ira de Deus. Foi então quando Jeremias disse, “Não
confieis em palavras falsas, dizendo: Templo do SENHOR, templo do
SENHOR, templo do SENHOR é este, … Será esta casa que se chama
pelo meu nome um covil de salteadores aos vossos olhos?” [vv. 4, 11]
Nos dias da vida terrestre de Cristo, a história voltava a repetir-se; o
templo era outra vez “uma cova de ladrões”, o que é talvez uma alusão
às rochosas covas das colinas da Judeia onde ladrões e malfeitores
costumavam reunir-se. Os ladrões enchiam o templo e estavam
deslocando os gentios ou “nações”.
As lições que a purificação do templo nos ensinam podem resumir-
se como segue:
a. Jesus castigou a degradação da religião e exaltou a reverência.
b. Censurou a fraude, e especialmente naquele contexto, a extorsão
“religiosa” (?), e exigiu uma conduta honrada.
c. Desaprovou a indiferença que se mostrava para com aqueles que
desejavam adorar a Deus em espírito e em verdade, e, ao declarar que o
templo devia ser uma casa de oração para todas as nações, deu Seu
apoio à maravilhosa causa das missões cristãs (cf. 1Rs. 8:41–43; Mt.
28:19).
d. Por meio de tudo isto glorificava a Seu Pai celestial. Não era o
templo a casa de Seu Pai?
Em geral, a imensidão inspira um temor reverencial, e a beleza
convida à adoração. No complexo do templo davam-se amplamente as
condições para despertar estes dois sentimentos segundo já explicamos; e
Marcos (William Hendriksen) 589
com maior razão, tendo em conta que o Senhor tinha separado aquele
espaço especificamente para a oração e a devoção. Era, sem dúvida, o
lugar menos apropriado para levar a cabo uma empresa comercial, e
ademais, fraudulenta. Por conseguinte, Jesus o purificou.
A reação dos inflamados inimigos de Jesus foi como segue:
18. E os principais sacerdotes e escribas ouviam estas coisas e
procuravam um modo de lhe tirar a vida; pois o temiam, porque
toda a multidão se maravilhava de sua doutrina. 542
Naturalmente, uma ação tão aberta e pública como a purificação do
templo, não passou desapercebida aos principais sacerdotes e os escribas.
Lucas acrescenta “aos dirigentes — ou homens principais — do povo”.
Todo o Sinédrio estava profundamente afetado e cheio de grande rancor.
Assim que, com maior motivo, buscavam a forma de provocar a morte
de Jesus. Mas, então, por que não procediam simplesmente a capturá-Lo
e matá-Lo? Resposta: porque o temor os mantinha sob controle,
impedindo-os de agir contra seu inimigo.
Pelo menos havia duas razões que explicavam este temor: a. os
Hosanas das multidões do dia anterior em honra de Jesus; e b. o
assombro da multidão por causa de Seu ensino (veja-se Mc. 14:49; cf.
Mt. 26:55; Lc. 19:47; 20:1; 21:37). Note-se que não somente na Galileia
(Mc. 1:22; cf. Mt. 7:28, 29), mas também em Jerusalém a multidão
estava “atônita” por causa do ensino de Jesus. E Seus inimigos sabiam
disso! Por isso não viam nenhuma possibilidade para destruí-Lo
imediatamente. Mas buscavam a forma de mudar tudo isso.
542
Como sucede com frequência, Marcos mostra aqui sua grande perícia no uso dos tempos. Note-se
como o aor. _κονσαν que simplesmente registra um fato, vai seguido por três imperfeitos: eles
estavam (continuamente) olhando ou buscando; eles temiam, estavam (constantemente)
amedrontados; e todos — literalmente, a multidão inteira — estava sendo (constantemente)
sobressaltados pelo assombro. Para este último verbo veja-se sobre Mc. 1:22 e 10:26. Note-se também
π_ς seguido do subjuntivo deliberativo (aor. ativo) numa pergunta indireta. A pergunta direta sugerida
era “Como o destruiremos?”. É verdade que _ζήτουν pode também traduzir-se “começaram a olhar ou
buscar”, mas em vista de Mc. 3:6 e várias observações similares nos outros Evangelhos, é talvez
melhor não introduzir “começaram” neste ponto. Afinal de contas, a busca de como matar a Jesus se
estava realizando desde bom tempo atrás, ao menos da parte dos fariseus.
Marcos (William Hendriksen) 590
O parágrafo presente conclui como segue:
19. Em vindo a tarde, saíram 543 da cidade. 544
Sabemos que ao chegar a noite, Jesus e Seus discípulos tinham ido a
Betânia (11:11). A segunda-feira foi o dia da purificação do templo.
Naquela noite Jesus também foi a Betânia e passou a noite ali (Mt.
21:17). A tradução “passou a noite” é ampla o bastante para deixar lugar
a uma destas duas possibilidades: a. Alojou-Se com Seus amigos em Seu
hospitaleiro lar (veja-se Mc. 14:3; cf. Mt. 26:6–13; Lc. 10:38–42; Jo.
11:3; 12:1–8); ou b. Passou a noite sob as estrelas, na aldeia ou perto
dela, talvez numa ladeira do monte das Oliveiras (veja-se Lc. 21:37).
É verdade que Jesus e Seus discípulos “saíram da cidade” nas noites
dos dias de domingo, segunda-feira e provavelmente terça e quarta-feira,
embora seja impossível precisar absolutamente em cada caso. E acaso
não “saíram fora da cidade” na quinta-feira de noite? (veja-se Jo. 13:30;
18:1, 3). Não nos levaria a nenhuma parte fazer mais especulações sobre
a razão destas saídas da cidade.

Mc. 11:20–25 - A lição da figueira seca


Cf. Mt. 21:20–22

Marcos dedica seis versículos a esta lição, Mateus só três. Marcos é


o único que deixa claro que o que aqui se diz ocorreu na terça-feira da
semana de Paixão. O que em Mateus é uma pergunta feita pelos
discípulos (“Como é que repentinamente secou a figueira?”, TB), em
Marcos é uma exclamação emitida por Pedro (“Mestre, eis que a figueira
que amaldiçoaste secou”). Isto não apresenta nenhum problema, porque
é natural supor que um discípulo tenha expresso sua surpresa de uma
forma e outro de outra. A promessa de Cristo de que a fé de uma pessoa

543
Em alguns dos textos mais antigos se lê “saía”.
544
O imperfeito _ξεπορεύοντο (“eles estavam saindo de” ou “eles saíam de”) favorece traduzir _ταν
como “cada vez”. O uso do aor. (em lugar do impf.) ind. _γένετο depois de _ταν é algo irregular, mas
não cria nenhum problema importante.
Marcos (William Hendriksen) 591
pode trasladar um monte, acha-se em ambos os relatos, mas é mais
completa em Marcos. Os dois Evangelhos asseguram de que a oração
será respondida, mas Marcos acrescenta que Jesus ensinou (como antes,
cf. Mt. 6:14) que o coração que ora deve estar cheio de amor perdoador.
20. E, passando eles pela manhã, viram que a figueira secara
desde a raiz.
É na terça-feira pela manhã. Provavelmente era muito cedo, pois
muitas coisas sucederiam durante aquele dia tão ocupado. Em Marcos, o
relato dos eventos da terça-feira abrange Mc. 11:20–14:2.
Naquela manhã, então, ao voltar para a cidade, os discípulos
observaram que a figueira sobre a qual Jesus tinha pronunciado uma
solene sentença de maldição justo no dia anterior, estava agora
irremissivelmente perdida. secou-se para sempre, 545 desde as raízes até o
cálice; ou seja, “seca raízes e ramos” (segundo a tradução de E. V. Rieu).
21. Então, Pedro, lembrando-se, falou: Mestre, eis que a
figueira que amaldiçoaste secou.
Pedro lembrou. 546 Com relação à capacidade de Pedro para lembrar
uma palavra ou um fato, veja-se também Mc. 14:72. Aqui parece
encontrar apoio a tradição segundo a qual Marcos foi o intérprete de
Pedro, explicando-se assim como era possível a este evangelista relatar
inclusive o que acontecia na mente de Pedro. Nesta ocasião, o apóstolo
lembrou o que tinha sucedido no dia anterior com esta árvore. Bem como
numa ocasião anterior (Mc. 9:5), assim também agora se dirige a Jesus
chamando-o “Rabino”. 547 Veja-se também Mt. 26:25, 49; Mc. 10:51;
14:45; Jo. 1:50; 4:31; 6:25; 9:2; 11:8. João interpreta popularmente esta
palavra semita como um equivalente de “Mestre” (veja-se Jo. 1:38; 3:2.
Veja-se também o que Jesus diz a respeito de seu uso em Mt. 23:7, 8).

545
As formas _ξηραμμένην (ptc. pf. pas. fem. sing.; aqui no v. 20) e _ξηραύται (ptc. ind. 3ª. pes. sing.
no v. 21) vêm de ξηραίνω, para o que veja-se sobre Mc. 9:18, nota 401.
546
_ναμνησθε_ς aor. ptc. pas. nom. sing. masc. de _ναμιμνήσκω.
547
A palavra deriva-se de rabh, que significa “grande”, “senhor”, “mestre”. O significado básico de
rabino é, em consequência, “meu senhor”, mas nem sempre se conservou toda a força do “meu”.
Marcos (William Hendriksen) 592
Era um título de respeito reservado originalmente para mestres de
elevada honra. Há constância de que numa ocasião, inclusive João
Batista foi chamado desta forma (Jo. 3:26).
Pedro e os outros discípulos (Mt. 21:20) ficaram assombrados. Foi
tanto o assombro que Pedro exclamou, “Rabi, olhe!”. 548 A surpresa
vinha do fato de que em tão curto tempo, provavelmente antes das vinte
e quatro horas, a árvore que Jesus amaldiçoou 549 tivesse passado de ser
uma planta frondosa e vigorosa, a um insignificante resíduo, apenas a
sombra de si mesma. Pedro não culpava a Jesus pelo que fez à árvore, 550
pois o versículo seguinte esclarece que não podia entender como era
possível que se tivesse realizado uma mudança tão radical, num tempo
tão curto.
22. Ao que Jesus lhes disse: Tende fé 551 em Deus. 552
Quanto a uma resposta que se dá sem que tenha havido pergunta,
veja-se o v. 14.
“Tende fé em Deus”. O tempo do verbo que se usa no original
mostra que a fé da qual se fala aqui, é uma fé permanente. Cf. “Não
temas, crê somente!” (Mc. 5:36; e veja-se Jo. 3:16). 553
Mas, o que é a fé?

548
Para _δε, veja-se sobre Mc. 2:24, nota 91.
549
κατηράσω aor. ind. 2ª. pes. sing. de καταράομαι.
550
Cf. A. T. Robertson, Word Pictures I, p. 361: “Quase soa como se …”.
551
Outra leitura diz, “Se tiverdes fé”.
552
Há pouca diferença básica entre “Tende fé em Deus!” e a outra tradução, ou seja, “Se tiverdes fé
em Deus”. Embora seja verdade que a primeira é uma exortação enfática, e a segunda algo assim
como uma predição do que sucederia se a condição — quer dizer, a fé — estivesse presente, não
resulta que a exortação está implícita na condição? Quanto ao mais, a força comparativa dos
manuscritos gregos é quase igual. A possibilidade de que as palavras, “Se tiverdes fé” tenham sido
inseridas por algum escriba que lembrava Mt. 17:20; 21:21; Lc. 17:6, não se deve passar por alto.
Veja-se Vincent Taylor, Op. cit., p. 466. A ordem das palavras gregas — diferente em Mc. 11:22 e em
Mt. 21:21 — pareceria dar apoio adicional à leitura adotada por quase todos os tradutores e
intérpretes. Uma tradução recente também favorece _χετε πίστω θεο_, e traduz, “Tenham fé em
Deus” (NVI).
553
Note-se que _χετε πίστιν aqui (Mc. 11:22) vai seguido pelo genitivo objetivo. À vista de Rm. 3:22,
26, isto não é raro.
Marcos (William Hendriksen) 593
A fé é:
A janela da alma através da qual entra em torrentes o amor de Deus.
A mão aberta mediante a qual o homem alcança a Deus, o Doador.
O acoplamento que une o trem do homem com a locomotiva de Deus.
O tronco da árvore da salvação, cuja raiz é a graça, e seu fruto as boas
obras.

A fé foi:
O meio da justificação de Abraão.
O ímã que afastou a Moisés dos prazeres do Egito, para que unisse
seu destino ao do povo de Deus dolorosamente afligido.
A força que derrubou os muros de Jericó.
O segredo que capacitou Rute a fazer sua comovedora confissão.
A arma que matou a Golias e destruiu as hostes de Senaqueribe.
O fator decisivo no conflito do monte Carmelo.
O escudo que protegeu a Jó em meio de suas provas.
A mordaça que fechou as bocas dos leões de Daniel.
O remédio que curou ao servo do centurião e a muitos outros.
Veja-se as seguintes passagens: respectivamente Gn. 15:16; Êx.
2:10, 11ss. (cf. Hb. 11:24–26); Js. 6:20 (cf. Hb. 11:30); Rute
1:16, 17; 1Sm. 17:45–47 e 2Rs. 19:14–37; 1Rs. 18:30–40; Jó
19:23–27; Dn. 6:19–23; Mt. 8:10, 13.

A Escritura também descreve a fé como:


Descansar-nos braços eternos.
Encomendar nosso caminho ao Senhor, confiar nEle, sabendo que
fará o melhor.
Receber o reino (ou governo) de Deus como uma criança.
Estar seguro do que esperamos, ter convicção do que não vemos.
A vitória que vence ao mundo.
Sobre estes pontos, veja-se os seguintes textos: Dt. 33:27; Sl
37:5; Mc. 10:15; Hb. 11:1; 1Jo. 5:4.
Marcos (William Hendriksen) 594
Continua:
23. Porque em verdade vos afirmo que, se alguém disser a este
monte: Ergue-te e lança-te no mar, e não duvidar no seu coração,
mas crer que se fará o que diz, assim será com ele.
Quanto a “em verdade vos afirmo”, veja-se sobre Mc. 3:28. “Este
monte” refere-se ao monte das Oliveiras; o “mar” ao mar Morto. Para
que este monte se levante literalmente, e se lance 554 no mar, significaria
uma queda de 1.200 metros. Agora, resultaria algo totalmente ingênuo
até tratar, mediante uma concentração de fé, lançar o monte das Oliveiras
no mar. Portanto, à luz de um contexto que fala a respeito da fé e da
oração, esta surpreendente figura significa que nenhum trabalho em
harmonia com a vontade de Deus será impossível para quem crê e não
duvida. 555 Cf. Mt. 17:20; 21:21; Lc. 17:6.
Outros argumentos que confirmam esta explicação, são os
seguintes: a. O frequente uso de linguagem figurada que faz Cristo
(exemplos do qual ocorrem também no Evangelho de Marcos: 1:17;
2:20–22; 3:33–35; 5:39; 7:27; 8:15; 9:12, 13; 9:43, 45; 10:38, 39) e b. A
bem conhecida figura retórica que se acha em Zc. 4:7, “Quem és tu, ó
grande monte? Diante de Zorobabel serás uma campina”, referindo-se à
uma montanha de dificuldades que desapareceriam; e c. As palavras que
imediatamente seguem (em Mc. 11:24).
De modo algum deveríamos debilitar a força desta expressão e
diminuir o valor do seu significado. Tanto na esfera física como na
espiritual, os apóstolos já tinham estado fazendo coisas que se podiam
ter considerado tão “impossíveis” como fazer com que um monte se
levantasse e se lançasse no mar. Não tinha andado Pedro “pela fé” sobre
a água? (veja-se Mt. 14:29). Não exclamaram os Doze, “Senhor, até os
demônios se nos sujeitam em teu nome”? (Lc. 10:17). Não ia prometer

554
A oração Αρθητι κα_ βλήθητι inclui dois aor. imper. pas. 2ª. pes. sing. de (respectivamente) α_ρω
y βάλλω.
555
διακριθ_ aor. subj. pas. 3ª. pes. sing. de διακρίνω: ser de mente dividida, estar em desacordo
consigo mesmo. Cf. Mt. 21:21; Rm. 4:20; Tg. 1:6; etc.
Marcos (William Hendriksen) 595
Jesus uns poucos dias mais tarde: “Em verdade, em verdade vos digo que
aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço e outras
maiores fará, porque eu vou para junto do Pai.” (Jo. 14:12)? Veja-se
também At. 2:41; 3:6–9, 16; 5:12–16; 9:36–43; 19:11, 12. Na realidade,
não é todo o livro de Atos uma prova que o que disse Jesus aqui em
Marcos 11:22, 23 era verdade?
Isto se aplica também ao versículo:
24. Por isso, vos digo que tudo quanto em oração pedirdes,
crede que recebestes, e será assim convosco.
Vários assuntos requerem nossa atenção:
a. É muito evidente que o versículo 24 tem um estreito paralelismo
com o versículo 23.

Compárese:
Versículo 23 Versículo 24
em verdade vos afirmo que, Por isso, vos digo
se alguém disser … tudo quanto …
não duvidar … mas crer … crede que recebestes,,
assim será com ele. e será assim convosco..

Em consequência, pelo fato de que o versículo 23 é verdade;


“portanto” o versículo 24 também é verdade. Em geral, o significado dos
dois versículos é o mesmo.
b. Em certo sentido, o pensamento expresso no versículo 24 é ainda
mais forte que o conteúdo no versículo 23: a pessoa descrita no versículo
23 crê que o que diz vai suceder; as descritas no versículo 24 estão tão
seguras da resposta à oração, que no que a eles concerne já sucedeu; já o
receberam. 556

556
Note-se _λάβετε, aor. ind. at. 2ª. pes. pl. de λαμβάνω. Para algo semelhante, veja-se Jon. 2:9, 10;
Jo. 15:6. Com base na evidência dos manuscritos gregos, o GNT atribui um valor “virtualmente
seguro” a este texto. Quer dizer, prefere-se _λάβετε, e não λαμβάνετε. Concordo com este critério.
Marcos (William Hendriksen) 596
c. “Tudo quanto em oração pedirdes” é uma tradução livre.
Literalmente o texto diz: “tudo aquilo pelo que orardes (ou: seguirdes
orando) e pedirdes (ou seguirdes pedindo)”. Embora seja verdade que o
primeiro destes dois verbos seja usado geralmente em orações dirigidas a
Deus, enquanto que o segundo é mais geral, tal distinção quase não é
pertinente no caso presente. Se houvesse alguma distinção, “orar” seria o
termo considerado mais geral e “pedir” poderia considerar-se como
chamando a atenção às várias e humildes solicitações que pertencem à
oração. Mas aqui ambos são virtualmente um (na ordem da hendíadis);
daí, “pedirdes em oração”.
d. Se a promessa de Cristo, “Tudo quanto em oração pedirdes …
será assim convosco” parece-nos quase incrível, devemos ter em mente
que tal oração e petição deve, naturalmente, estar em harmonia com as
características da verdadeira oração que Jesus revela em outras partes; na
realidade deve estar de acordo com todo o ensino bíblico. Portanto deve
ser expressão de:
confiança humilde como a de uma criança; note-se “crede que
recebestes”, e cf. Mc. 10:15; também Mt. 7:11; 18:3, 4; Tg. 1:6.
coração e mente sinceros (Mc. 12:40; cf. Mt. 6:5).
vontade para perseverar (Mc. 13:13b; cf. Mt. 7:7; Lc. 18:1–8).
amor intenso por todos (Mc. 12:31, 33; cf. Mt. 5:43–48; Lc. 6:32–36).
submissão à soberana vontade de Deus (Mc. 14:36b; Mt. 6:10b;
26:39).
Isto implica que tal oração deve ser feita “em nome de Cristo”, quer
dizer, que está em harmonia com tudo o que Jesus revelou a respeito de
Si mesmo e que descansa em Seus méritos (Mc. 9:37, 41; cf. Jo. 15:16;
16:23, 24; Ef. 4:32; 5:20; Cl. 3:17).
A oração é eficaz e agradável a Deus só quando brota de um
coração amante. Isto se sublinha na passagem que conclui o parágrafo:

Também estão de acordo, embora com leves variações de tradução, NV, NTT, BJ, CI, etc. Vincent
Taylor a aceitou; A. T. Robertson a prefere, embora mencione uma possível alternativa.
Marcos (William Hendriksen) 597
557
25. E, quando estiverdes orando, …
Note-se o seguinte:
a. Esta passagem lembra-nos insistentemente a uma que se acha na
quinta petição do Pai Nosso, Mt. 6:12, “E perdoa-nos as nossas dívidas,
como também nós perdoamos aos nossos devedores”. Veja-se também
Mc. 6:14, “Porque, se perdoardes aos homens as suas ofensas, também
vosso Pai celeste vos perdoará”. Não existe absolutamente razão alguma
para que Jesus não pudesse ter repetido aqui mesmo, de maneira um
pouco diferente, o que tinha ensinado aos Seus discípulos e às pessoas
em geral numa ocasião anterior. Isto, com maior razão, uma vez que por
natureza o pecador resiste a perdoar. Necessita ser lembrado disso vez
após vez. Por isso, veja-se também Mt. 18:21–35.
b. “E quando estiverem de pé orando …” [AV]. Para as pessoas dos
tempos bíblicos não era estranho orar de pé. Além da presente passagem,
veja-se também Gn. 18:22; 2Sm. 1:26; 1Rs. 8:22; Ne. 9:4; Mt. 6:5.
Havia uma grande diferença entre aqueles dois homens que oravam,
segundo a descrição que se faz na parábola do fariseu e o publicano
(veja-se Lc. 18:9–14). Entretanto, pelo menos num aspecto se
assemelhavam: ambos oravam de pé. 558 Visto que a posição ereta indica
reverência e permite estar alerta, não se pode fazer nenhuma objeção
contra ela.

557
Deve traduzir-se aqui _ταν por “quando” ou “toda vez”? Há diferença de opinião quanto a isto. É
impossível fazer sempre uma clara distinção entre _ταν e _τε. Provavelmente é correto dizer que
quando o significado é “toda vez”, o equivalente grego mais normal seria _ταν, mas isto não significa
necessariamente que _ταν sempre deve traduzir-se “toda vez” ou “quando quer que” (veja-se, p. ex.,
Ap. 8:1). Note-se também que aqui (Mc. 11:25), como também em 3:11; 11:19, _ταν vai seguido pelo
indicativo em lugar do esperado subjuntivo. Uma forma de explicar isto seria dizer que Jesus concebe
estas ações — tal como estar de pé para orar — como seguras, não como possíveis. Mas tenhamos em
mente que certas distinções precisas têm a tendência de desaparecer gradualmente; p. ex., a relação
entre os compostos com _ν (como _ταν) y el subjuntivo se va debilitando gradualmente. Véase
Vincent Taylor, Op. cit., p. 228.
558
O autor deste comentário lembra claramente que, quando era criança, os varões que entravam no
templo para assistir ao serviço de adoração permaneciam de pé para orar em silêncio. Terminada a
oração se sentavam. Entendo que em certas comunidades este costume ainda persiste.
Marcos (William Hendriksen) 598
Mas de modo algum é esta a única posição para orar que a Escritura
menciona. Indica-se também a posição de joelhos e há outras posições.
Para um resumo das diversas maneiras apropriadas, veja-se CNT sobre
1Tm. 2:8.
c. Não é a posição do corpo mas a atitude do coração e da mente o
que importa principalmente. Por isso Jesus continua dizendo:
Se tendes alguma coisa contra alguém, perdoai, para que vosso
Pai celestial vos perdoe as vossas ofensas. 559
Como já se destacou acima com relação ao versículo 24 (veja-se em
d.), a oração pressupõe um coração que ama. A pessoa que ora deve estar
desejosa e ansiosa de perdoar. Se lhe faltar esta disposição, não tem
direito de supor que suas próprias transgressões tenham sido perdoadas.
No ensino de Paulo (Rm. 3:24; Ef. 2:8; Tt. 3:5) e indubitavelmente
também no de Cristo (Mt. 5:1–6; 18:27; Lc. 18:13; Jo. 3:3, 5), a salvação
descansa não nas realizações humanas mas somente na graça e
misericórdia de Deus, mas isto de modo algum significa que os que a
recebem não têm nada que fazer. Devem crer, e incluída nessa fé, está o
anelo de perdoar. 560
Quem perdoa é “vosso Pai que está nos céus” baseando-se na
expiação do Filho (Ef. 4:32). A simples frase “vosso Pai” exorta-nos a
pensar em todas as bênçãos que constantemente recebemos dEle e,
portanto, nosso coração deveria abrir-se para os que lhes tenham ferido.
d. Note-se “vossas ofensas”. Ofensas são desvios do caminho da
verdade e da justiça. Ao cometê-las, cai fora do caminho do dever. Uma
transgressão é, portanto, um passo em falso. 561 Agora, sejam estas
desvios de caráter leve, como em Gl 6:1 e talvez como em Rm. 5:15, 17,
18, ou muito mais sérias, como em Ef. 1:7; 2:1, devem perdoar-se. Note-
se, além disso, “se tiverem algo contra alguém …”. Embora seja

559
O v. 26 diz: “Porque se vós não perdoardes, tampouco vosso Pai que [está] nos céus vos perdoará
vossas ofensas”. Mas este versículo não tem suficiente apoio textual. Mas veja-se Mt. 6:15.
560
_φετε, imper. at. pres. 2ª. pes. pl.; aqui no sentido de perdoar. Cf. Mc. 2:5.
561
Sobre παράπτωμα veja-se R. C. Trench Op. cit., parágr. lxvi.
Marcos (William Hendriksen) 599
provavelmente acertado crer que Jesus pensava acima de tudo na
fraternidade cristã (veja-se Mt. 18:15–17), a comparação com Mt. 6:14,
15 — “se perdoardes aos homens as suas ofensas” — indica que o
perdão deve estender-se também aos “de fora”. Não disse Jesus o
mesmo?
Veja-se Lc. 23:34. E Estêvão? (At. 7:60. Cf. Ef. 5:1, 2).
Reunindo tudo o que aprendemos sobre a figueira estéril (11:12–14;
20:25), agora sabemos que:
a. A ausência de frutos provoca maldição (Mc. 11:12–14).
b. A fé genuína desemboca na oração respondida (Mc. 11:20, 23).
c. Por isso, tal fé inspira esperança, solidamente arraigada nas
promessas de Deus (Mc. 11:24).
d. Culmina no amor, que pressupõe um espírito perdoador (Mc.
11:25).

Mc. 11:27–33 - A autoridade de Cristo: pergunta e contra pergunta


Cf. Mt. 21:23–27; Lc. 20:1–8

A semelhança entre os três relatos é surpreendente. As principais


diferenças, sem que nenhuma delas seja essencial, são as seguintes:
Segundo Marcos, a autoridade de Jesus foi posta em dúvida enquanto
caminhava pelo templo; segundo Mateus, depois de ter entrado no
templo e ter começado a ensinar ali; e segundo Lucas, enquanto ensinava
às pessoas no templo. Os três nos dizem que os principais sacerdotes e
anciãos fizeram perguntas a Jesus. Marcos e Lucas acrescentam os
escribas. Lucas omite as palavras de Jesus, “Respondei-me, e vos direi
com o que autoridade faço estas coisas”, que aparecem quase em
idêntica forma em Marcos e em Mateus.
Muitos consideraram que Marcos tem um estilo um pouco “rude”,
que nós o chamamos um estilo “singelo”, “popular” ou “natural” que não
se acha em Mateus nem no relato de Lucas. Isto é especialmente
chamativo com relação a Marcos 11:32, onde o evangelista não termina
Marcos (William Hendriksen) 600
a oração. Não sucede isto com muita frequência em nossos dias,
especialmente na linguagem popular? 562 Aqui Mateus completa a oração
acrescentando as palavras, “… tememos ao povo; porque todos têm a
João por profeta”, expressão que ao menos encerra uma conclusão.
Lucas, ainda mais brandamente, acrescenta, “todo o povo nos
apedrejará”. 563
Isto parece apoiar a opinião de que existe uma relação literária entre
os três relatos, e que Marcos é o mais antigo. 564 Totalmente inspirado
pelo Espírito Santo, cada evangelista, fazendo uso de seu próprio estilo,
brinda-nos as maravilhosas palavras de vida.
27, 28. Então, regressaram para Jerusalém. E, andando ele pelo
templo, vieram ao seu encontro os principais sacerdotes, os escribas
e os anciãos e lhe perguntaram: Com que autoridade fazes estas
coisas? Ou quem te deu tal autoridade para as fazeres?
É bom lembrar que Jesus tinha entrado no templo no domingo pela
tarde depois da entrada triunfal (v. 11) e que entrou outra vez na
segunda-feira (v. 15), quando o purificou. E agora, terça-feira pela
manhã, tendo chegado a Jerusalém, novamente entra no templo.
Achamo-Lo talvez no Pórtico Real ou (como em Jo. 10:23) no Pórtico de
Salomão. Veja-se o diagrama. Ele Se acha rodeado por um grupo de
pessoas a quem ensina. Logo avança um pouco mais, onde há outro
grupo preparado para escutar o ensino. Ou possivelmente ia ensinando

562
E vejam-se também Êx. 32:32; Ef 2:1.
563
Os seguintes pontos também se ajustam a esta linha de estilo mais suave que se tenha em Mateus e
Lucas:
a. Onde Marcos começa a oração com um simples καί (11:31), Mateus (21:25) e Lucas (20:5) têm
ο_δέ. Veja-se mais acima, Introdução IV, nota 5, e.
b. Onde Marcos tem _λλά (no começo de 11:32), Mateus (21:26) e Lucas (20:6) têm __ν δέ.
c. Em lugar do estilo direto de Marcos, “Não sabemos” (Mc. 11:33; que também se acha em Mateus
21:27), Lucas tem uma citação indireta mediante o uso de um infinitivo (Lc. 20:7). Cf. Introdução IV,
nota 5 g.
d. De acordo com o dito na Introdução IV, nota 5 d., e no v. 7 mais acima, nota 528, note-se os
presentes históricos de Marcos 11:33. Nem Mateus (21:27), nem Lucas (20:8) os têm.
564
Assim também Vincent J. Taylor, Op. cit., p. 471. E veja-se CNT sobre Mateus, pp. 44–55.
Marcos (William Hendriksen) 601
enquanto caminhava. Cf. Zenão e Aristóteles. Enquanto ensinava e
caminhava, Seus inimigos se aproximavam. Esperaram até que terminou
Seu ensino? Uma coisa é certa: aqueles homens estavam de péssimo
humor.
Quais eram? Mencionam-se três grupos: os principais sacerdotes, os
escribas e os anciãos, as três partes integrantes do Sinédrio (veja-se
8:31). Os principais sacerdotes constituíam um grupo ou ordem
composta pelo sumo sacerdote atual, os que anteriormente tinham
tomado este alto ofício, e outros dignitários de cujas filas era geralmente
eleito o sumo sacerdote. A custódia do templo estava a cargo destas
pessoas, principalmente saduceus. Não é de estranhar que também se
mencione os escribas, que em sua maioria eram fariseus, porque estes
eram os homens que estudavam, interpretavam e ensinavam a lei. Seu
ensino davam-no tanto no templo como na sinagoga. Os anciãos também
estavam presentes. No Israel de antigamente o ancião era cabeça de uma
tribo ou divisão da tribo. Na realidade, cada cidade ou povo de
importância logo chegava a ter seus anciãos dirigentes. Com a fundação
do Sinédrio, os anciãos locais mais proeminentes chegaram a ser
membros deste honorável corpo. Poderíamos considerá-los como os
“membros leigos” do Sinédrio.
Em abstrato, poderia pensar-se que todos aqueles homens que se
aproximaram de Jesus — com a intenção implícita de censurá-Lo —
agiam independentemente e de forma não oficial. Entretanto, é muito
mais razoável supor que agiam oficialmente, comissionados pelo
Sinédrio.
Sua pergunta era clara. Queriam saber com que autoridade fazia
Jesus todas aquelas coisas, quer dizer, quem Lhe havia dado tal direito?
Era como se dissessem “Mostre-nos suas credenciais!” Sua intenção era
envergonhar a Jesus. Se reconhecesse que não tinha credenciais poderia
ocorrer que o povo perdesse o respeito por Ele. Por outro lado, se Ele Se
considerasse autorizado para o que fazia, não se estava atribuindo
prerrogativas que só pertenciam a Deus? Não poderia então ser acusado
Marcos (William Hendriksen) 602
de conduta blasfema por esse motivo? Ao não proceder contra Ele de
forma direta, por exemplo prendendo-O, revelavam que Lhe tinham
medo devido à multidão que O seguia.
Mas, o que queriam dizer com, “estas coisas”? Provavelmente
referiam-se a atividades mais ou menos recentes, quer dizer, ao que Jesus
fez no domingo ou na segunda-feira, ou ao que estava fazendo naquela
mesma terça-feira. Entre os comentaristas há acordo geral de que a
purificação do templo estava incluída em “estas coisas”. Não há dúvida
alguma de que esta opinião é correta (cf. Jo. 2:18). Mas, era esta a única
coisa a que se referiam os inimigos de Jesus? Existe uma grande
diferença de opinião entre os comentaristas. Alguns incluiriam sua
entrada real em Jerusalém no domingo. Outros dizem, “Não”, porque a
aclamação que recebeu então não foi ação dela. Em contraposição está o
fato de que não pôs objeção alguma aos hosanas dos discípulos nem das
crianças (veja-se Mt. 21:16; Lc. 19:39, 40). Portanto, a entrada triunfal
bem podia estar incluída em “estas coisas”. E se tivermos em mente que
os inimigos de Jesus atribuíam o Seus milagres ao poder de Belzebu que
operava nEle, então inclusive podiam incluir-se as piedosas obras em
favor do cego e o coxo (Mt. 21:14). Assim sucedia também com o ensino
e pregação do evangelho de Cristo no templo (Lc. 20:1, 2).
29, 30. Jesus lhes respondeu: Eu vos farei uma pergunta;
respondei-me, e eu vos direi com que autoridade faço estas coisas. O
batismo de João era do céu ou dos homens? Respondei!
Note-se: uma só pergunta. Eles tinham feito uma dupla pergunta.
Quando uma pessoa recebe um ataque verbal — seja de forma
direta ou, como no versículo 28, por implicação —, com frequência nega
a acusação, diminui a intensidade do crime, começa a apresentar
argumentos, ou faz uma acusação. Há ocasiões em que o mais prudente
seria admitir o erro, pedir perdão e reparar o dano. Para Jesus isto não
tinha aplicação alguma, porque Ele não tinha cometido erros.
Marcos (William Hendriksen) 603
Então, o que fazer? Às vezes pode-se confrontar uma acusação com
o silêncio total, ou talvez com outra acusação, ou, como no caso
presente, fazendo outra pergunta.
Vários intérpretes assinalaram que o método de responder a uma
pergunta por meio de outra pergunta era algo bastante comum nas
conversas entre os rabinos. Naturalmente, mas quando Jesus emprega
este método, em cada caso sai vitorioso sobre Seus inimigos, e isto não
era assim quanto aos rabinos.
Os seguintes relatos de Marcos mostrarão ao leitor que a
asseveração que acabamos de fazer é certa. Em cada um deles os
oponentes de Cristo O atacam, umas vezes de forma direta, outras vezes
de forma velada, ocultando seu desgosto sob a aparência de uma
pergunta. Jesus desmonta todos os seus ataques. Além disso, en cada um
destes casos, Sua resposta começa com uma contra pergunta.

Ataque dos inimigos Resposta de Jesus


2:7 2:8–10
2:18 2:19–22
2:24 2:25–28
3:22 3:23–30
8:11 8:12, 13
10:2 10:3–12
11:27, 28 11:29–33
12:18–23 12:24–27

O mesmo se pode dizer ao estudar os outros Evangelhos. E quanto a


Marcos, aqui Jesus mais uma vez aparece como o Rei vitorioso (veja-se
12:34b). Que todos se submetam voluntariamente à Sua autoridade!
Veja-se Introdução III.
Agora, mediante a contra pergunta — “O batismo de João, era do
céu ou dos homens?” — Jesus não estava de modo algum evadindo a
pergunta que Lhe foi feita, pois uma resposta correta e honesta à Sua
Marcos (William Hendriksen) 604
pergunta O teria assinalado inequivocamente como Aquele a quem João
tinha proclamado como o maior, dando a entender com isto que o direito
ou a autoridade de Jesus para fazer estas coisas procedia de Deus. João
proclamou a Jesus como Seu superior quando estava batizando (Mc. 1:4–
7; cf. Jo. 1:26, 27) e foi pouco depois de tê-Lo batizado quando O
descreveu como “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo.
1:29).
Com Sua pergunta, Cristo abandonou Seus inimigos. Obviamente,
eles não responderiam, “O batismo de João era de origem celestial”,
porque sabiam muito bem que a resposta seria, “Por que, então, não
crestes?” Por outro lado, se tivessem respondido o que provavelmente
eles criam, ou ao menos queriam crer, ou seja, que o batismo de João era
dos homens, o público em geral — talvez, especialmente a multidão de
peregrinos que tinham vindo da Galileia — ter-se-ia declarado
manifestamente hostil contra eles, e inclusive poderiam apedrejá-los (Lc.
20:6). Acaso não considerava aquela gente a João como profeta? Por
isso, aqueles dignitários começaram a raciocinar entre si sobre o que
podiam responder. A decisão que tomaram não foi honesta, embora isso
não deva estranhar-se. Não dizem, “Não queremos responder essa
pergunta”, o que ao menos teria sido sincero, mas sim “Não sabemos”.
Com este fundo, os versículos 31–33 não requerem muita
explicação adicional:
31–33. E eles discorriam 565 entre si: Se dissermos: 566 Do céu, 567
dirá: Então, por que não acreditastes nele? Se, porém, dissermos:
dos homens, é de temer o povo. Porque todos consideravam 568 a João
como 569 profeta. Então, responderam a Jesus: Não sabemos. E Jesus,

565
διελογίζοντο, impf. ind. 3ª. pes. pl. de διαλογίζομαι. Veja-se sobre 2:6, 8; 8:16; 9:33 (nota 423)
566
Condição do terceiro tipo: _άν aor. subj. at. na prótase; aor. ind. na apódose.
567
Do céu = de Deus.
568
ε_χον, impf. ind. 3ª. pes. pl. de _χω, onde Mt. 21:26 (discurso direto) usa o presente. Veja-se
também Mt. 14:5; 21:46; Lc. 14:18, 19; Jo. 7:17; Fp. 2:29. Nestas passagens o significado sempre é:
ter como, reputar, considerar.
569
_ντως, advérbio baseado em ε_μί. O significado é: realmente, efetivamente.
Marcos (William Hendriksen) 605
por sua vez, lhes disse: Nem eu tampouco vos digo com que
autoridade faço estas coisas.
Aqui há uma lição prática e importante. Os inimigos de Cristo não
podiam ver a verdade porque endureciam seu coração contra ela. A razão
pela qual muitas pessoas conhece tão pouco sobre Jesus e da alegria de
viver uma vida cristã, é porque recusam submeter-se à Sua vontade. “Um
crescente conhecimento da verdade divina depende da submissão
humilde do coração e da vontade ao que já foi revelado” (C. R. Erdman,
Op. cit., p. 195). Ou, se preferir-se, a epistemologia de uma pessoa
depende de sua teologia (ver Jo. 7:17). A oração de cada um deve ser:
“Ensina-me a fazer a tua vontade, pois tu és o meu Deus” (Sl 143:10).

Resumo do Capítulo 11

Domingo: Entrada triunfal de Cristo em Jerusalém. A semana da


Paixão começa aqui (vv. 1–11). Jesus envia a dois de Seus discípulos a
uma pequena aldeia para trazer um jumentinho. Suas predições quanto a
este animal e seus donos se cumprem literalmente. Os discípulos
colocam seus mantos sobre o jumento onde Se assenta Jesus. Enquanto
cavalga triunfalmente para Jerusalém, as multidões, entre as quais havia
muitos cuja mente estava cheia de expectações de glória terrestre,
davam-Lhe as boas-vindas com entusiastas aclamações de hosana.
Depois de uma rápida visita ao templo ao anoitecer, Jesus e Seus
discípulos se retiram a Betânia.
Segunda-feira: A maldição da figueira ocorreu durante a manhã
deste dia (vv. 12–14). Jesus tinha fome. Embora ainda não fosse tempo
de figos, aquela árvore concreta que crescia junto ao caminho, via-se
prometedor. Sua folhagem era abundante, indicando que poderia ter ao
menos alguns figos anteriores. Mas quando Jesus Se aproximou dela e
viu que não tinha mais que folhas, amaldiçoou a figueira dizendo,
“Nunca mais coma ninguém fruto de ti”. Isto o ouviram Seus discípulos.
Marcos (William Hendriksen) 606
Naquele mesmo dia, ao entrar em templo Jesus observou que seu
grande átrio exterior eles o tinham convertido em praça de mercado.
Assim que o purificou, expulsando a todos os que vendiam e os que
compravam (vv. 15–19). Derrubou as mesas dos cambistas e as cadeiras
dos que vendiam pombas. Não quis permitir que se usasse o templo
como um atalho para entrar ou sair da cidade. Disse (citando Is. 56:7),
“Não está escrito: ‘Minha casa será chamada casa de oração para todas
as nações’? Acrescentou, “Mas vós a fizestes covil de salteadores”.
Com o que o Senhor fez à árvore e ao templo, predizia a queda de
Israel. Os dirigentes dos judeus estavam enfurecidos e buscavam a
oportunidade para matá-Lo. Mas por causa das multidões que “se
assombravam-se de seu ensino”, os inflamados adversários não podiam
achar o momento oportuno para fazê-lo imediatamente. Cada dia que
anoitecia, Jesus e os Doze saíam da cidade.
Terça-feira: A lição da figueira seca se acha nos versículos 20–25.
Quando os discípulos retornaram à cidade observaram que a árvore que
tinha amaldiçoado estava seca da raiz até a copa. Pedro, falando em
nome de todos, expressou seu assombro. Jesus assegura aos Doze que
nenhuma obra que se realize em consonância com a vontade de Deus
será impossível para aqueles cuja fé não vacila. Esta fé, para ser
autêntica, deve expressar-se com um amor que esteja disposto a perdoar.
Um pouco mais tarde naquele mesmo dia, os representantes do
Sinédrio puseram em tela de juízo a autoridade de Cristo para purificar o
templo, etc. (vv. 27–33). Fazem uma dupla pergunta: a. Com o que
autoridade fazes estas coisas, e b. Quem te deu esta autoridade para fazê-
las?” Em resposta, Jesus lhes faz outra pergunta, ou seja, “O batismo de
João, era do céu ou dos homens?” Jesus Se refere ao ministério de João;
e um dos aspectos sobressalentes deste ministério era o batismo. Esta
pergunta desconcertou os oponentes de Cristo. Deram-se conta que o
mesmo a quem tratavam de destruir tinha sido aclamado com entusiasmo
por João. Assim que, se agora respondiam “do céu” a resposta seria, “Por
que, então não crestes?” Se respondiam, “dos homens” temiam que o
Marcos (William Hendriksen) 607
povo se voltasse contra eles — que inclusive os apedrejasse (Lucas) —
porque as massas O consideravam um profeta autêntico. De modo que
responderam, “Não sabemos”. Jesus lhes disse, “Tampouco eu vos digo
com que autoridade faço estas coisas”.
Marcos (William Hendriksen) 608
MARCOS 12
Mc. 12:1–12 - A parábola dos lavradores maus e seus efeitos
Cf. Mt. 21:33–46; Lc. 20:9–19

Em seus aspectos principais, esta parábola é igual nos três


Sinóticos. Suas pequenas diferenças não apresentam conflitos reais. As
variações mais importantes no desenvolvimento dos relatos são as
seguintes:
a. Lucas abrevia, como o faz com frequência. Não menciona a
cerca, o lagar e a torre. Por outro lado, alude a um fato que não se acha-
nos outros: o dono da vinha, ao sair ao estrangeiro, permanece longe por
muito tempo.
b. Em Mateus indica-se que os servos foram enviados em grupos;
em Marcos e Lucas são pessoas sozinhas. Entretanto, devemos tomar em
consideração que Lucas abrevia. Além disso, o servo que vai sozinho
bem pode estar representando um grupo. E Marcos menciona envios de
grupos (“enviou a muitos outros”).
c. Em Mateus e Lucas o que sucedeu com o filho assim se descreve:
“Lançaram-no fora da vinha e o mataram”. Em Marcos se inverte a
ordem (“…mataram-no e o atiraram para fora da vinha”). Quer dizer,
Mateus e Lucas estão nos dando a ordem histórica; Marcos, dá-nos uma
ordem climática, como se dissesse, “Mataram-no de forma muito
vergonhosa, lançando-o fora da vinha como a um maldito”. Mais uma
vez, em tudo isto não há conflito nem contradição.
d. Em Mateus, a pergunta, “Quando, pois, vier o senhor da vinha,
que fará àqueles lavradores?” respondem-na os próprios ouvintes; e o
próprio Jesus — segundo se vê no contexto — expressa seu total acordo
com a resposta. Por essa razão os outros dois Sinóticos indicam que a
resposta é do próprio Cristo. Pois assim era!
e. Em Lucas, a sentença pronunciada contra os lavradores ímpios
evoca a resposta dos ouvintes: “Tal não aconteça!”. Além disso, a
Marcos (William Hendriksen) 609
passagem que em Mateus 21:44 provavelmente não seja autêntica, em
Lucas 20:18 é autêntico.
Em tudo isto se observa uma diversidade interessante no meio da
unidade essencial. A inspiração é evidente em toda esta passagem!
1. Depois começou Jesus a falar-lhes por parábolas [TB].
Jesus estava no templo (cf. 11:27, 28). Ainda é terça-feira.
Provavelmente a uma hora anterior do dia, mais perto da hora indicada
em Mc. 11:20 que da hora sugerida por Mc. 13:1. Lembrar-se-á que os
adversários de Cristo Lhe haviam pedido que desse conta de Suas
atividades. Recusaram abertamente reconhecer Sua grandeza e
autoridade. Para aquela gente a forma de ensino por parábolas tinha um
significado especial. Ao mesmo tempo se adaptava às necessidades dos
verdadeiros seguidores de Jesus. Veja-se mais acima sobre Mc. 4:11, 12.
Marcos usa o plural: parábolas. Entretanto, nesta passagem só relata
uma, a que fala da vinha, evidentemente baseada em Isaías 5:1–7. Por
outro lado, Mateus 21:28–22:14 apresenta uma trilogia de parábolas
estreitamente relacionadas. Em consequência, Marcos tem todo o direito
de usar o plural sabendo que Jesus nesta ocasião particular pronunciou
mais de uma parábola.
A parábola aqui registrada foi a dos lavradores mau. Começa como
segue:
Um homem plantou uma vinha, cercou-a de uma sebe,
construiu um lagar, 570 edificou uma torre.
Este homem separou parte de seu terreno para uma vinha. Plantou
videiras naquela parcela, fechou-a com uma cerca para protegê-la contra
ladrões e animais, e a dotou de um lagar e uma torre. O lagar geralmente
consistia de duas escavações feitas na terra e bem acondicionadas e
terminadas com pedra, ou lavradas na rocha. A cavidade superior, larga e
pouco profunda, servia para receber as uvas. Aqui os pisadores do lagar
570
No v. 1, _πολήνιον = π_ τ_ν ληνόν, o que está debaixo do lagar, quer dizer: fosso, sarjeta, ou
vasilha para recolher o suco da uva. A palavra πυργός, torre, lembra-nos o Burg alemão ou o burcht
(castelo, forte, cidadela, fortaleza, torre) holandês.
Marcos (William Hendriksen) 610
as amassavam com os pés (cf. Is. 63:2, 3). Mediante um tubo, o mosto
corria para o compartimento inferior que era mais estreito e profundo.
Depois se tornava em cântaros (cf. Ag. 2:16). A torre ou atalaia
costumava ser construído com as mesmas pedras que se recolhiam ao
limpar o terreno para a vinha (cf. Is. 5:2). Um vigia permanecia em tal
torre para prevenir contra os saqueadores, chacais, e raposas (Ct. 2:15).
A torre também era usada como lugar de armazenamento.
Então, depois de acondicionar assim a vinha, o dono arrendou-a a
uns lavradores, inquilinos ou parceiros que, conforme indica a parábola,
deviam entregar ao dono certa quantidade da colheita. Depois de fazer o
dono os devidos arranjos, ausentou-se do país, ou seja, “partiu para
outro país” [TB].
2. No tempo da colheita, enviou um servo aos lavradores 571 para
que recebesse deles dos frutos da vinha.
Este “servo” deve ser distinguido dos “lavradores”. Estes últimos
são os arrendadores com quem o dono fez um contrato que equivaleria
ao seguinte: “Deixarei que administrem esta vinha e colham o fruto para
uso próprio com o compromisso de que ao chegar o tempo da colheita
entreguem uma parte da uva”. Por outro lado, o senhor encarregou ao
servo que fosse buscar a parte que lhe pertencia como dono da vinha. O
fato de ter sido comissionado pelo dono significava que o servo estava
investido com a autoridade de seu senhor. Fez sua petição ou demanda
em nome do dono. A demanda era totalmente justa, porque se tinha
estabelecido um acordo definido e o “tempo devido”, que era o tempo da
vindima, tinha chegado.
3. Eles, porém, o agarraram, espancaram e o despacharam
vazio.
Os lavradores demonstraram que eram homens maus, patifes
desonestos e cruéis. O servo pediu a parte da vindima que correspondia
legalmente ao dono, mas foi rejeitado. Não só isto, mas também

571
Ou “arrendadores”; literalmente “trabalhadores da terra”.
Marcos (William Hendriksen) 611
inclusive o agarraram e o espancaram. Quando finalmente o soltaram,
retornou ao dono com as mãos vazias.
Poderia esperar-se que o dono tivesse respondido de forma enérgica
ao cruel mau trato infligido ao servo, tratamento que ao mesmo tempo
significava um insulto para ele mesmo. Mas não foi assim. Decidiu dar
aos lavradores outra oportunidade para cumprir sua obrigação, e ainda
mais oportunidades depois desta, pois a história continua como segue:
4, 5. De novo, lhes enviou outro servo, e eles o esbordoaram na
cabeça e o insultaram. Ainda outro lhes mandou, e a este mataram.
Muitos outros lhes enviou, dos quais espancaram uns e mataram
outros. 572
A parábola chega agora a um clímax dramático:
6–8. Restava-lhe ainda um, seu filho amado; a este lhes enviou, por
fim, dizendo: Respeitarão a 573 meu filho. Mas os tais lavradores disseram
entre si: Este é o herdeiro; ora, vamos, matemo-lo, e a herança será nossa.
E, agarrando-o, mataram-no e o atiraram para fora da vinha.
“Ainda tinha outro, um filho amado” (cf. Jo. 3:16)! Quão intensa
ternura — emoção, amor, paixão — acha-se nas palavras “Restava-lhe
ainda um, seu filho amado; a este lhes enviou, por fim, dizendo:
Respeitarão a meu filho” que significa, “Terão vergonha de feri-Lo. Eles
O respeitarão”. Assim que decide fazer inclusive este sacrifício.
Mas o que sucede? Quando estes lavradores maus veem chegar o
filho, começam a forjar um complô. Consultam-se entre si. Em
consequência, o que vão fazer não é meramente por impulso do
momento. Ao contrário, é uma “perversidade premeditada”, é o resultado
de iníqua deliberação, e de um desígnio criminal e egoísta. É um

572
Tanto _δειραν (v. 3) e δέροντες (v. 5) são formas de δέρω: esfolar (cf. epiderme, dermatologista),
esfolar, bater. A forma no v. 3 é um aor. ind. at. 3ª. pes. pl.; a do v. 5. é um ptc. pres. pl., at. Outro aor.
ind. at. 3ª. pes. pl. é _κεφαλίωσαν, golpearam-lhe na cabeça, relacionado com κεφαλή, cabeça (cf.
capital).
573
O verbo é _ντραπήσονται, fut. ind. pas. 3ª. pes. pl. de _ντρέπω com sentido ativo ou médio; é algo
assim como: “voltar-se-ão, envergonhados de ferir”; quer dizer, “terão grande temor de”, “terão
respeito de, ou consideração a”. Alemão: “Sie werden sich vor meinem Sohne scheuen”.
Marcos (William Hendriksen) 612
assassinato premeditado. Raciocinam da seguinte maneira: “Este é o
herdeiro. Quando o matarmos não haverá mais herdeiro por quem nos
preocupar. De modo que a herança que lhe corresponde será nossa”. Em
sua sinistra estultícia esquecem que o dono, o pai do filho, ainda vive e,
sem dúvida, tomará vingança.
O pecado é completamente néscio! Que absurdo! “Ri-se aquele que
habita nos céus; o Senhor zomba deles” (Sl 2:4).
Os vilãos levam a cabo seu ímpio plano. Quando o filho chega,
tomam, jogam-no fora da vinha e o matam. Acima já comentamos a
sequência “mataram-no e o atiraram para fora da vinha” em lugar do
“lançaram-no fora da vinha e o mataram” (como em Mateus e Lucas).
A história terminou. Jesus a relatou, mas ainda não a explicou.
Assim que agora pergunta aos ouvintes,
9. Que fará, pois, o dono da vinha? A resposta, que aqui em
Marcos apresenta-se como dada pelo próprio Jesus, é: Virá,
exterminará aqueles lavradores e passará a vinha a outros.
Em outras palavras, não são os lavradores, e sim o dono da vinha
quem triunfa no final. E assim sucede também com o filho, como logo se
verá. Aqui o significado da parábola começa a emergir. O “dono” é
Deus, e Seu filho é Jesus, o Cristo. Esta é a chave da explicação das
palavras que seguem imediatamente nos versículos:
10, 11. Ainda não lestes esta Escritura: A pedra que os
construtores rejeitaram, essa veio a ser a principal pedra, angular;
isto procede do Senhor, e é maravilhoso aos nossos olhos?
Jesus deixa surpreendidos os Seus ouvintes, especialmente os Seus
inflamados adversários — os principais sacerdotes e os escribas e os
anciãos (Mc. 11:27, 28) — ao lembrar-lhes esta passagem do Salmo 118
(Septuaginta 117):22, 23. Ali se descreve uma situação semelhante. Os
edificadores tinham rejeitado uma pedra. Significado: os dirigentes, o
povo proeminente de outras nações, tinham denegrido a Israel com
escarnecimento. Entretanto, Israel tinha chegado a ser, em sentido muito
verdadeiro, a pedra angular, a cabeça das nações (Sl 147:20). Isto, além
Marcos (William Hendriksen) 613
disso, não tinha sucedido por sua própria excelência moral e espiritual,
nem por seu poder. Ao contrário, este maravilhoso feito tinha sido
realizado pelo Senhor. Jesus mostra agora que as palavras do Salmo 118
alcançam seu cumprimento final no “filho do dono”, quer dizer, nEle
mesmo, o verdadeiro Israel. Ele é aquela pedra que estavam rejeitando
os principais sacerdotes, escribas, anciãos e seus seguidores; bem como
no Calvário foi rejeitado pela nação inteira (“Crucifica-o, crucifica-o!”).
Veja-se Jo. 1:11. Mas algo maravilhoso ia suceder; a pedra desprezada
viria a ser a pedra angular: O Cristo crucificado Se levantaria de forma
triunfante! E o que ocorreria com a nação, a saber, com o Israel não
convertido, os que estavam rejeitando o Messias? “De vós”, diz Jesus,
“será tirado o reino de Deus”, quer dizer, tirar-vos-ão os privilégios
especiais do reino, a posição especial aos olhos de Deus que tinham
desfrutado na antiga dispensação, a qual agora se acrescentaram as
benditas obras e palavras de Jesus. Por que? Porque não tinham vivido
de acordo com suas obrigações. Tinham sido como os lavradores que ao
chegar a vindima negaram-se a entregar ao dono a parte da colheita que
lhe correspondia. Assim que, em lugar do povo da velha aliança se
levantaria — não estava já começando a suceder? — “uma nação que
produziria fruto”, uma igreja internacional, formada por judeus e gentios.
De modo que, a ênfase — a lição principal — da parábola pode-se
expressar brevemente com as palavras do Salmo 2:12: “Beijai (ou:
rendei homenagem) o Filho para que se não irrite, e não pereçais no
caminho; porque dentro em pouco se lhe inflamará a ira. Bem-
aventurados todos os que nele se refugiam”.

Quanto aos significados secundários dos diversos pontos desta


parábola e o grau em que se lhes pode conceder significado figurativo,
veja-se CNT sobre Mateus 21:42, 43, pontos a. e e. Além do que ali se
diz, observe-se o seguinte:
Marcos (William Hendriksen) 614
O preceito de Deus

Entre os cultivos relativo aos frutos mencionados frequentemente


nas Escrituras sobressaem três: a oliveira, a figueira, e a videira. Às
vezes mencionam-se em estreita sucessão (Jz. 9:8–13; e, em ordem
diferente, Hc. 3:17). Com relação aos eventos da Semana da Paixão,
somos lembrados também dos três: a oliveira (monte das Oliveiras, Mc.
11:1; 13:3; 14:26), a figueira (Mc. 11:12–14, 20, 21; 13:28) e a videira
(vinha, Mc. 12:1ss.).
Seu objeto era, naturalmente, produzir fruto. Neste sentido, as três
plantas simbolizam o preceito de Deus para a vida humana: “Nisto é
glorificado meu Pai, em que deis muito fruto” (Jo. 15:8). Quando as
plantas ou árvores não enriquecem o seu dono com abundante colheita,
fracassaram em seu objetivo. Seja porque produzam fruto de má
qualidade (Is. 5:2), ou porque injustamente negam ao seu dono o fruto (a
presente parábola), ou porque não haja nenhum fruto (Mc. 11:13, 14; Lc.
13:6, 7), a diferença não é fundamental. Em todos estes casos Deus, que
distribui Seus dons generosamente, deixa de receber o devido das
pessoas que assim se simbolizam. O círculo se rompe. As bênçãos que
derrama não voltam a Ele na forma de uma prazerosa ação de graças, de
corações rendidos e de vidas redimidas. O preceito está aí: Deem
abundante fruto. Cf. Gl 5:22.

A paciência de Deus

Nesta parábola, quando o primeiro servo volta ao seu senhor com as


mãos vazias, o que faz este último? Ao chegar a este ponto a parábola se
torna muito comovedora, e isto não porque seja algo semelhante à
realidade, mas porque não o é! De fato, vai muito além do que seria a
reação de uma pessoa qualquer. A menos que a pessoa esteja tão
familiarizado com a parábola que esta já não lhe faça efeito, ficará
surpreso, ou talvez inclusive escandalizado, ao ler que ao voltar este
Marcos (William Hendriksen) 615
servo para dar conta de seu encargo, não só chega sem uvas, mas
também, além disso, mostra evidências da violência física que recebeu.
Entretanto, o dono não vai às nuvens imediatamente castigando os
ofensores. Não, simplesmente envia outro servo. E quando matam este,
envia outros. Finalmente, envia inclusive o seu único filho, a quem ama
meigamente. O dono simboliza Deus!
Este é o Deus que manifestou Sua paciência na época do dilúvio
(1Pe. 3:20). É o Deus cujo trono-carro, acompanhado de querubins
“deteve-se à entrada da porta oriental da casa de Jeová”, de tão remisso
que estava a deixar a Sua escolhida Sião (Ez. 10:18, 19). Sua
maravilhosa resistência para infligir castigo está simbolizada em outra
parábola, na qual o vinhateiro roga: “Deixa-a ainda este ano, até que eu
cave ao redor dela, e a abone” (Lc. 13:8).
Dá tempo para arrepender-se até a escandalosamente corrupta
“Jezabel” (Ap. 2:21). Pedro, de maneira comovedora, escreve (2Pe. 3:9),
“Ele é longânimo para convosco, não querendo que nenhum pereça,
senão que todos cheguem ao arrependimento”. Veja-se também Gn.
18:22–33; Is. 1:18; 55:6, 7; Os. 11:8; Mq. 7:18, 19; Mt. 23:37.

O castigo de Deus

Esta parábola também mostra que é totalmente errôneo ressaltar o


amor de Deus às custas de Sua santidade, justiça e ira vingadora. Note-
se: “Virá, exterminará aqueles lavradores” (Mc. 12:9). Veja-se também
Pv. 29:1; Is. 5:5–7; 6:1–5; Na. 1:1–6; Sf. 1 (todo o capítulo); Mt. 23:1–
36; Jo. 15:6; Hb. 12:29; Ap. 6:12–17; 14:17–20; 18:1–19:21.
Mas este derramamento de ira e castigo não significa de modo
nenhum que o plano de salvação de Deus tenha fracassado. Note-se que
na parábola, a ação — ou reação — do dono não termina quando mata os
lavradores maus. Não, acrescenta: “…e passará a vinha a outros”. A
vinha será outorgada a outros. A casa deve encher-se (Lc. 14:23). Veja-
se também Et. 4:14; At. 13:46.
Marcos (William Hendriksen) 616
Não se deve supor que nunca tenha sucedido o que, em seus
principais aspectos, descreve-se simbolicamente na parábola. Ao
contrário, Deus indubitavelmente enviou Seus “servos” — muitas vezes
chamados com este mesmo nome — a Seu povo Israel. Estes profetas
foram efetivamente escarnecidos, feridos e rejeitados de diversas
maneiras (Mt. 23:29–37; Lc. 6:23; 11:49–51; 13:31–35; At. 7:52). Veja-
se também CNT sobre Mt. 5:12. Mas até então Deus enviou o Seu
amado Filho unigênito (Lc. 19:10; Rm. 8:32; etc.). Enviou-o em
primeiro lugar a Israel (Mt. 10:5, 6; 15:24).Também foi rejeitado pelos
judeus (Mc. 15:12, 13; Jo. 1:11; 12:37–41; At. 2:23; 4:10); com a
exceção do remanescente dos crentes destinados a uma glória sem fim
(Jo. 1:12; Rm. 11:5). Os privilégios que uma vez foram concedidos a
Israel, transferiram-se subsequentemente à igreja universal (Mt. 21:41;
28:19; At. 13:46), o que é uma verdade cuja realização foi já prefigurada
quando Jesus esteve na terra (Mt. 8:11, 12; 15:28; Jo. 3:16; 4:41, 42;
10:16; 17:20, 21). A parábola, então, não é uma mera abstração.
Descreve a realidade.
Até certo ponto, inclusive os oponentes de Cristo perceberam isto.
Daí que, Marcos continua:
12. E procuravam prendê-lo, mas temiam o povo; porque
compreenderam que contra eles proferira esta parábola.
A terceira pessoa plural refere-se às pessoas mencionados em Mc.
11:27: os principais sacerdotes, os escribas e os anciãos; quer dizer, o
corpo do Sinédrio. Alguns destes eram fariseus (Mt. 21:45). Vez após
vez buscavam a maneira de prender Jesus. Especialmente naquele
momento, pois se davam conta de que Jesus havia dito esta parábola
contra574 eles. Deveriam perceber que, segundo o modo de ver de Jesus,
eles simbolizavam os lavradores maus, destinados à destruição.

574
Aqui πρός seguido pelo acusativo significa contra. Para um uso similar desta preposição, vejam-se
At. 6:1; 24:19; 1Co. 6:1; 2 Cor. 6:11; Cl. 3:13; Ap. 13:6.
Marcos (William Hendriksen) 617
O que os impedia de levar a cabo seu plano naquele preciso
momento é declarado nas seguintes palavras: mas temiam o povo. Isto
não é de estranhar porque:
a. Aquele povo tinha Jesus como profeta (Mt. 21:46b);
b. No domingo anterior tinham estado gritando hosanas em Sua
honra (Mc. 11:8–10);
c. Numa ocasião anterior tinham tratado de fazê-Lo rei (Jo. 6:15);
d. Para muitos, a semana da Páscoa era um período em que o
entusiasmo político acendia-se, e o culto ao herói seria difícil de
controlar; e
e. Muito recentemente muitos “crentes” aderiram — com fé genuína
ou simplesmente caprichosa — às filas dos que estavam do lado do
Profeta da Galileia, devido à ressurreição de Lázaro, aquele que tinha
estado morto durante quatro dias (Jo. 11:39, 43, 44; 12:10, 17–19).

O resultado de tudo isto era que, ao menos no momento, os


adversários de Cristo reconheciam que ainda não tinham podido obter o
que desejavam: uma forma para destruir a Jesus. Então, desistindo,
retiraram-se.

Mc. 12:13–37 - Perguntas capciosas e respostas com autoridade.


Além disso, a pergunta de Cristo

vv. 13–17 - Cf. Mt. 22:15–22; Lc. 20:20–26


vv. 18–27 - Cf. Mt. 22:23–33; Lc. 20:27–40
vv. 28–34 - Cf. Mt. 22:34–40 575
vv. 35–37 - Cf. Mt. 22:41–46; Lc. 20:41–44

575
Lc. 10:25–28 é um paralelo só em sentido secundário. Apresenta um paralelo do sumário da lei.
Mas as circunstâncias são diferentes e a história também o é.
Marcos (William Hendriksen) 618
É lícito pagar tributo a César, ou não?

Este pequeno parágrafo pode dividir-se em a. introdução, b. corpo,


e c. conclusão. A introdução de Marcos é muito breve: Um comitê
composto de fariseus e herodianos vai falar com Jesus para O enredar em
Suas próprias palavras. Mateus acrescenta que a missão deste comitê foi
empreendida depois de uma decisão mais ou menos formal. Mais extensa
que as demais é a introdução de Lucas: os inimigos espreitam a Jesus e
enviam espiões, homens hipócritas. O propósito deles e dos que os
patrocinavam era achar algum pretexto que lhes permitisse entregar a
Jesus ao governador.
Quanto ao número de palavras dedicadas a este episódio, a
conclusão revela uma diversidade similar. De novo Marcos é o mais
breve: a resposta de Cristo produz assombro. Mateus acrescenta que o
comitê deixou a Jesus e foi embora. Lucas informa a respeito do
desconcerto, o assombro, e o silêncio do comitê — e também de seus
patrocinadores. Sua conclusão, bem como sua introdução, é a mais
longa.
Quanto ao corpo do parágrafo — a pergunta do comitê e a resposta
de Jesus —, Mateus e Marcos estão quase em paralelo, conquanto Lucas
abrevia. Em nenhum lugar achamos sequer uma sombra de discrepância.
13. E enviaram-lhe alguns dos fariseus e dos herodianos, para
que o apanhassem em alguma palavra.
É necessário ter em mente o contexto. Os do Sinédrio tinham
questionado abertamente a autoridade de Jesus. Este ataque havia
fracassado. Por meio de uma contra pergunta (“O batismo de João, era
do céu ou dos homens?”) Jesus os havia silenciado. Não só isso, mas
também além disso, mediante a parábola dos lavradores maus havia
predito a destruição deles. Assim que, com maior razão ainda, estavam
decididos a matá-Lo. Mas, “temiam o povo” (Mc. 12:12).
Em consequência, agora decidem usar o método oposto. Em lugar
de uma acusação implícita, utilizam a adulação. Provavelmente
Marcos (William Hendriksen) 619
pensavam que sua ardilosa maquinação resultaria no desprestígio de seu
inimigo diante dos olhos do povo, ao menos de um grande setor.
Já não O criticam pelo que fez ontem — purificação do templo —
mas sim tentam “prendê-lo” 576 no que diz hoje.
Note-se a combinação “fariseus e herodianos”. Assim também em
Mateus (Mt. 22:16, passagem paralela), embora esse Evangelho assinale
que o comitê que enviaram a Jesus estava formado, não pelos dirigentes
veteranos, mas pelos discípulos mais jovens destes grupos. Marcos não
nega isso. Só se trata de um pequeno detalhe que, sob a direção do
Espírito Santo, Mateus deixou anotado. Segundo Lucas estes homens
eram “espiões”.
No Evangelho de Marcos esta combinação de fariseus e herodianos
já se mencionou com relação a um fato anterior (Mc. 3:6). O que se disse
ali, pode repetir-se aqui: era uma coalizão rara entre beatos e profanos. E
bem, afinal de contas não era tão raro, e isto pela razão já indicada na
explicação de Mc. 3:6; veja-se essa passagem.
A família de Herodes era amante da arte pagã, a arquitetura, o
atletismo, etc. Os herodianos seguiam esta linha. Sua prática da religião
judaica era só num sentido muito externo. Sua filosofia realmente era a
do helenismo. De modo que, estes dois grupos, fariseus e herodianos,
combinam-se para agir contra Jesus. Os que estavam — ou queriam
fazer crer que estavam — muito preocupados em guardar a lei de Deus, e
os que seguiam a linha mais cômoda e não tinham maior preocupação
pelos mandamentos divinos, tinham um propósito comum: desfazer-se
de Jesus.
Cada grupo tinha suas próprias razões para desejar destruí-Lo. Não
implicava seu ensino uma denúncia da qualidade de santarrão dos

576
_γρεύσωσι aor. subj. at. 3ª. pes. pl. (aqui ingressivo) de _γρεύω. Cf. _γρα (Lc. 5:4, 9), um floco de
peixes. O verbo pertence ao vocabulário da pesca e a caça. Não aparece em nenhum outro lugar do
Novo Testamento. A passagem paralela de Mateus (22:15) usa um verbo sinônimo que significa
armar uma armadilha. Veja-se CNT sobre Mt. 22:15 e nota 753. Lucas (20:20) usa outro sinônimo,
agarrar, agarrar firme, pilhar. Não existe, naturalmente, diferença essencial.
Marcos (William Hendriksen) 620
fariseus e da mundanalidade dos herodianos? Além disso, os herodianos
não se podiam sentir muito felizes com a entrada de Jesus como rei em
Jerusalém nem os fariseus com sua entrada como “Filho de Davi”, o
Messias. Além disso, ambos invejavam a Jesus porque, conforme viam,
a influência de Jesus sobre o povo era muito notória.
14. Chegando, disseram-lhe: Mestre, sabemos que és verdadeiro e
não te importas com quem quer que seja, porque não olhas a aparência
dos homens; antes, segundo a verdade, ensinas o caminho de Deus.
Quanto ao título de “Mestre”, este tipo de tratamento, sem dúvida
era adequado para Ele. Os evangelistas não só descrevem
constantemente assim a Jesus, mas também o fazem muitos outros
(vejam-se Mc. 4:38; 5:35; 9:17, 38; 10:17, 20, 35; Jo. 3:5, etc.). Na
realidade, o próprio Jesus declara que uma de Suas principais atividades
era o ensino (Mc. 14:49; cf. Mt. 26:55; Lc. 21:37; Jo. 18:20). Era o
maior dos Mestres que jamais tinha pisado na terra. Por ser o verdadeiro
Profeta de Deus ensinou aos homens o que o Pai tinha ensinado a Ele
(Jo. 1:18; 3:34; 8:28; 12:49). Era doloroso que os que agora O
chamavam “Mestre”, não aceitassem o Seu ensino.
E agora a adulação. Os emissários dizem a Jesus que é verdadeiro e
que com verdade ensina o caminho de Deus. A palavra caminho,
segundo seu uso aqui, faz referência à maneira da fé e a conduta. “O
caminho de Deus” significa a forma em que Deus deseja que se pense e
viva. É Sua vontade para o coração, a mente e a conduta do homem. O
que eles dizem, então, é “Tu és um Mestre em quem se pode confiar; Tu
declaras fielmente a vontade de Deus quanto à doutrina e a vida.
Para esclarecer melhor o que têm em mente, dizem-lhe: “Não
buscas o favor de ninguém”; literalmente, “e não te cuidas de ninguém”,
quer dizer, “dizes o que pensa, sem procurar te acomodares com o que
agrada ou desagrada as pessoas”. Nesta mesma linha está a expressão,
“Não mostras parcialidade para com ninguém”; literalmente, “Não olhas
a aparência de ninguém”. Queriam dizer, “Não importa a quem falas, o
Marcos (William Hendriksen) 621
que dizes será o mesmo. Não te deixas levar pelo pobre ou o rico, o sábio
ou o ignorante, o amo ou o escravo …”. 577
Estes homens pensaram talvez que suas amáveis (?) palavras tinham
desarmado completamente a Jesus e dissipado as suspeitas, que de outro
modo, teria albergado quanto a suas intenções. Assim que, agora lhe
lançam a pergunta, É lícito pagar tributo a César ou não? 578 Devemos
ou não devemos pagar? O tributo ao qual refere-se esta passagem era
um imposto “per capita” que, depois da deposição de Arquelau (6 d.C.),
o procurador cobrava a todo varão adulto da Judeia, e ia diretamente ao
tesouro imperial. É fácil entender por que aos judeus devotos era
chocante ter que pagar tal imposto. Enquanto eles amavam a liberdade, a
moeda que se usava para pagar levava a imagem do imperador, quem se
atribuía caráter divino e pretendia ter autoridade suprema não só em
assuntos políticos, mas também nos espirituais (como “Sumo
Pontífice”). Além disso, a moeda lembrava aos judeus que eram uma
nação vassala. Com relação à introdução desta imposição, Judas da
Galileia tinha declarado veementemente, “A tributação não é melhor que
a própria escravidão”. Ele a tinha censurado como nada menos que alta
traição contra Deus. Veja-se At. 5:37; Josefo, Guerra judaica II. 117,
118; Antiguidades XVIII, 1–10.
Em consequência, a pergunta que apresentavam a Jesus era uma
artimanha muito ardilosa. Se respondesse afirmativamente, estaria
contrariando muitos judeus devotos e patriotas; mas uma resposta
negativa O exporia à acusação de rebeldia contra o governo romano (cf.
Lc. 20:20; 23:2).

577
Provavelmente, a fraseologia usada aqui é tipicamente hebraica. Quanto a “caminho”, segundo o
uso que aqui tem, vejam-se também Gn. 6:12; Sl 1:1; Jr. 21:8. Cf. At. 9:2; 19:9, 23; 24:14, 22. Assim
também “olhar o rosto de alguém” lembra-nos imediatamente Lv. 19:15; 1Sm. 16:7; Sl 82:2; Ml. 2:9.
Cf. At. 10:34; Ef. 6:9; Cl. 3:25; Tg. 2:1, 9. Entretanto, deve admitir-se que modismos como estes
podem desenvolver-se dentro de mais de um idioma; p. ex., tanto em grego como no hebraico. Em
todo caso, quando um hebreu ou alguém versado na conversação e literatura hebraica básica usa esta
fraseologia, é quase seguro que tal uso tem suas raízes em antigos modismos hebraicos.
578
δ_μεν, em ambos os casos um aor. subj. at. 1ª. pes. pl. (aqui deliberativo) de δίδωμι.
Marcos (William Hendriksen) 622
15. Mas Jesus, percebendo-lhes a hipocrisia, respondeu: Por
que me experimentais?
Jesus percebia: a. A “malícia” deles (Mt. 22:18), de “falta de
escrúpulos”, e da disposição para fazer qualquer coisa, por perversa que
fosse, para conseguir seus propósitos (Lc. 20:23); e especificamente
(Marcos) conhecia b. a “hipocrisia” ou “duplicidade” deles. A pergunta
que Lhe faziam, depois de uma introdução de palavras açucaradas, soava
como uma petição piedosa para obter orientação sobre o que decidir
quanto a um difícil problema ético, mas sua verdadeira intenção era a
destruição de Jesus. Não nos surpreende que Jesus, totalmente
conhecedor de sua desonestidade, chame-os de “hipócritas” (Mt. 22:18).
“Por que”, diz Jesus, “me experimentais?” (veja-se sobre Mc. 1:13). A
ação deles era diabólica. Enquanto fingiam inocência, pensavam que
tinham atraído o seu inimigo à armadilha da qual, segundo eles, não
haveria forma de escapar.
Jesus continua: Trazei-me um denário para que eu o veja. O
denarius ou denar, que era uma pequena moeda de prata equivalente ao
salário comum que se pagava a um operário por um dia de trabalho, era a
quantidade fixada pela lei do imposto de recenseamento. Muitos pensam
que ao pedir Jesus esta moeda, afirmava que Ele mesmo era tão pobre
que não possuía essa quantidade. A esta observação acrescentam outros
que Jesus mostrava que nem sequer Seus discípulos tinham uma destas
moedas. Mas isto possivelmente seja querer ler no relato o que realmente
não se encontra nele. Poderia, por exemplo, propor-se uma explicação
completamente distinta deste pedido, ou seja, que Jesus desejava que a
moeda saísse dos bolsos de seus adversários, para fazê-los sentir o fato
de que eles mesmos usavam este tipo de dinheiro; que eles se
beneficiavam com seu uso, e que em consequência haviam aceito as
obrigações resultantes. Essa explicação tem a vantagem de que se ajusta
ao contexto que segue. Mas este ponto não necessita que se lhe dê mais
importância. “Para que eu o veja” implica que Jesus vai enfocar Sua
Marcos (William Hendriksen) 623
atenção e a da concorrência sobre o que se representava e estava escrito
nesta moeda.
Continua:
16. E eles lho trouxeram. Perguntou-lhes: De quem é esta efígie
e inscrição? Responderam: De César.
Um denário da época do reinado do imperador Tibério mostra no
anverso a cabeça desse imperador. No reverso aparece sentado num
trono. Leva um diadema e está vestido de sumo sacerdote.
As inscrições usavam abreviaturas, e o “V” representa nosso “U”.
São como segue:
Anverso
TICAESARDIVI AVGFAVGVSTVS

Tradução
TIBERIO CESAR AUGUSTO
HIJO DEL DIVINO AUGUSTO

Reverso
PONTIFEX MAXIMUS

Tradução
SUMO SACERDOTE

A tensão deveu ser grande quando,


17. Disse-lhes, então, Jesus: Dai a César o que é de César e a
Deus o que é de Deus.
Explicação:
a. Jesus não estava fugindo do assunto, mas dizendo claramente,
“Sim, paguem o imposto”. Honrar a Deus não significa desonrar o
imperador, recusando pagar os benefícios que se desfruta, como são uma
sociedade relativamente organizada, proteção policial, boas estradas,
tribunais, etc., etc. Por aqueles tempos em particular, o império romano
Marcos (William Hendriksen) 624
tinha estabelecido paz e tranquilidade para os que estavam sob seu
domínio, e isto em tal grau que é difícil que se tenha experimentado
igual antes ou depois. Tais benefícios implicam uma responsabilidade
(cf. 1Tm. 2:2; 1Pe. 2:17). Assim, não se podia lançar sobre Jesus uma
verdadeira acusação de rebelião.
b. Sua resposta afirmativa estava modificada pela declaração de que
se devia pagar (dar em retribuição) ao imperador só o que lhe era devido.
Daí que se lhe deviam negar as honras divinas que o imperador exigia, e
que somente se devem a Deus. Como podiam os fariseus achar erro
nisso? Além disso, esta resposta era uma advertência de que ninguém
deve reclamar para si honras indevidas. Do imperador mais elevado ao
súdito de mais baixa posição, ninguém deve fazê-lo. Cf. 2Rs. 18:19–
19:37 (2 Cr. 32:9–23; Is. 36, 37); Dn. 4:28–32; 5; At. 12:20–23.
c. Ao acrescentar “e a Deus o que é de Deus”, Jesus sublinhava o
fato de que todo serviço, gratidão, glória, etc. devidos a Deus devem ser-
lhe rendidos de uma forma constante e alegre. Nada devia reter-se dEle
Veja-se, p. ex., Sl 29; 95; 96; 103–105; 116; Jo. 17:4; Rm. 11:33–36;
1Co. 6:20; 10:31; 16:1, 2; 2Co. 9:15. Não se está dando a Deus o que se
lhe deve ao forjar a morte de Seu amado Filho! Mas isto era exatamente
o que aqueles espiões e seus mestres tentavam fazer.
d. Por meio das moedas e de outras formas, o imperador pretendia
em que o seu não apenas era um reino físico, mas também espiritual
(note-se: “Pontifex Maximus”, quer dizer, “Sumo sacerdote”; cf. Jo.
18:36). Ao traçar uma distinção entre “a César o que é de César” e “a
Deus o que é de Deus” Jesus rejeita as próprias demandas de César.
Naturalmente, Deus é soberano sobre tudo (Dn. 4:34, 35) inclusive sobre
o imperador. Cf. Jo. 19:11. Naturalmente, o imperador deve ser
respeitado e obedecido sempre que sua vontade não esteja em conflito
com a vontade divina (veja-se Rm. 13:1–7). Mas quando há conflito,
deve pôr-se em prática a norma estabelecida em Atos 5:29.
Com esta resposta Jesus desconcertou os Seus inimigos. Não nos
surpreendemos ao ler: E muito se admiraram dele. Não esperavam esta
Marcos (William Hendriksen) 625
classe de resposta. Jesus tinha respondido a pergunta de forma franca e
valente. A resposta significa: Sim, é preciso pagar o tributo. Deve haver
uma adequada retribuição pelos benefícios que se desfrutam. Mas
embora o imperador deva receber o devido, não deve receber mais que
isso; quer dizer, não deve receber a honra divina que reclama. Ao mesmo
tempo, Deus deve receber toda a glória e a honra. Sinceramente, quem
poderia censurar esta resposta? Ninguém, por certo.

Na ressurreição, de quem será esposa?

Vemos nesta passagem a mesma interessante variedade, dentro da


unidade, tal como se viu em Marcos 12:13–17 e seus paralelos. Entre o
relato de Mateus e o de Marcos existe muito pouca diferença. Entretanto,
só Mateus indica que as perguntas 1 e 2 foram feitas “naquele dia”. Ele
nos informa a respeito da reação do povo diante da resposta de Cristo:
“as multidões se maravilhavam da sua doutrina”; Lucas escreve,
“Mestre, bem disseste!” (a reação de alguns escribas); e também, “E não
ousaram perguntar-lhe nada mais”. Marcos e Lucas coincidem em
indicar a fonte das palavras, “Eu sou o Deus de Abraão …”. Os três
Evangelhos consignam literalmente tais palavras (discurso direto em
Mateus e em Marcos, indireto em Lucas). Mateus não menciona a fonte
de onde é tomada a citação. A fonte é “o livro de Moisés … a passagem
da sarça”. Marcos é o único que relata que Jesus terminou sua discussão
com os saduceus dizendo: “errais vós” [Mc. 12:24, TB].
É surpreendente a diferença de tamanho que existe entre os três
relatos. Muitas vezes o relato de Lucas é o mais breve, não assim desta
vez, onde o mais breve é o de Mateus. Note-se especialmente o número
de palavras atribuídas a Jesus. No original, 60 palavras em Mateus, 70
em Marcos, 75 em Lucas. As palavras de Jesus registradas só por Lucas
são: “Os filhos deste século se casam e se dão em casamento; mais o que
forem tidos por dignos do alcançar aquele século e a ressurreição dentre
Marcos (William Hendriksen) 626
os mortos (nem se casam, etc.) … porque não podem já mais morrer …
ao ser filhos da ressurreição … pois para ele todos vivem”.
18, 19. Então, os saduceus, que dizem que não há ressurreição,
aproximaram-se dele e perguntaram-lhe, dizendo: Mestre, Moisés nos
escreveu que, se morresse o irmão de alguém, e deixasse mulher, e não
deixasse filhos, seu irmão tomasse a mulher dele e suscitasse
descendência a seu irmão.
É preciso ressaltar que os que agora se aproximam de Jesus para
minar Sua influência, diferiam em vários aspectos dos que O haviam
posto à prova momentos antes. Todos os adversários estavam de acordo
num ponto: É preciso matar a Jesus! Com relação à discussão de Marcos
7:1, 2 demos cinco razões que mostram por que os fariseus odiavam a
Jesus (razões a. – e.). Quanto aos saduceus, devemos ter em mente que
este era o partido sacerdotal do qual se escolhia ao sumo sacerdote. Seu
domínio especial era o templo, o templo que “ontem mesmo” Jesus tinha
purificado! O crasso materialismo dos saduceus era tão repugnante ao
coração de Jesus como o pomposo cerimonialismo e o legalismo sem
amor dos fariseus. Quanto aos fariseus e os saduceus veja-se CNT sobre
Mateus 3:7. Não nos surpreende, então, que os saduceus, por sua vez,
atacassem agora a Jesus. Entretanto, desta vez o ataque não consistia em
convocá-Lo numa das duas alternativas do dilema, como foi no caso
relacionado com a pergunta anterior (Mc. 12:14), mas antes, em pôr em
ridículo Sua fé na vida vindoura.
Na realidade, o mais provável é que aqueles homens tentassem dar
um duplo golpe. Jesus ensinava que Ele e Seus seguidores esperavam a
glória para além da morte. Estes homens queriam pôr em evidência que o
ensino de Cristo era néscio. Mas ao mesmo tempo não seria também um
triunfo sobre os fariseus, que criam igualmente na ressurreição dos
mortos? É-nos permitido supor que a notícia da vitória de Jesus sobre os
fariseus (e seus aliados) logo chegou aos ouvidos dos saduceus — que à
vista de Mateus 22:34 não é uma hipótese ilógica — não poderíamos
supor que estes últimos já se estariam dizendo um ao outro,
Marcos (William Hendriksen) 627
“Demonstraremos aos fariseus que podemos fazer melhor que eles”? já
não estariam rindo-se entre dentes diante da perspectiva de “matar dois
pássaros de um tiro”, quer dizer, expor ao ridículo tanto a Jesus como
aos fariseus?
Com relação ao tratamento de “Mestre”, veja-se o versículo 14. Eles
continuam apelando ao grande doador da lei, Moisés (“Moisés nos
escreveu”). Devemos ter em mente que os saduceus davam ao
Pentateuco mais alto valor que a outros livros do Antigo Testamento.
Agora usam Deuteronômio 25:5, 6 como ponto de partida para sua
pergunta. Nessa passagem dá-se a Israel a lei do “casamento por
levirato”. 579 Conforme a esta lei, se uma esposa perdia o seu marido
antes de lhes haver nascido um filho varão, esse irmão do esposo — em
seu caso o parente mais próximo — devia casar-se com a viúva, para que
o primeiro filho nascido deste casamento fosse considerado como filho
do morto e assim não desaparecesse sua descendência.
A desobediência a este mandamento era muito mal vista (Dt. 25:7–
10). A obediência pela metade foi castigada com a morte, como no caso
do Onã, quem esteve disposto a casar-se com a viúva, porém não queria
gerar descendência visto que o filho não seria considerado como dele
(Gn. 38:8–10). Veja-se em Rute 4:1–8 uma interessante aplicação da lei
do “casamento levirato”. Agora, não sabemos com exatidão até que
ponto esta lei era obedecida nos dias de Cristo neste mundo.
De modo que, os saduceus valeram-se deste mandamento para
mostrar o imensamente absurda que era, segundo eles, a crença na
ressurreição do corpo. Fica a critério do leitor decidir se a história que
contaram era o relato de um fato real, como creem alguns expositores, ou
não. Eu, de minha parte, inclino-me a crer que era uma invenção.
Eles continuam:
20–23. Ora, havia sete irmãos, e o primeiro tomou mulher e morreu
sem deixar descendência; e o segundo também a tomou, e morreu, e nem

579
Levirato é do latim levir (para devir; cf. grego δαήρ), o irmão de um marido; portanto, o cunhado.
Marcos (William Hendriksen) 628
este deixou descendência; e o terceiro, da mesma maneira. E tomaram-na
os sete, sem, contudo, terem deixado descendência. Finalmente, depois de
todos, morreu também a mulher. Na ressurreição, 580 pois, quando
ressuscitarem, de qual destes será a mulher? Porque os sete a tiveram por
mulher.
A hipótese básica deles era que o casamento continua na vida
vindoura. Supondo que fosse correta, dois maridos teriam bastado para
apoiar seu argumento. Mas sete maridos fazem com que a história seja
mais interessante e também que a crença na ressurreição resulte ainda
mais absurda. Imagine: quando os mortos ressuscitarem, esta mulher —
mata maridos? — terá sete maridos! Naturalmente que isto não pode
nem deve ser. A ela é permitido ter um só, mas qual deles?
É evidente, naturalmente, que assim apresentado, todo o assunto era
um tanto absurdo. Era atrozmente injusto; porque Jesus, embora cresse
na doutrina da ressurreição física, não cria que o estado matrimonial
daqueles que se tinham casado antes de morrer pudesse continuar depois
da ressurreição. O que os adversários faziam, então, era erigir um boneco
de palha, que começaria a desmoronar-se muito em breve. O falso não
era a doutrina da ressurreição, e sim a hipótese da qual partiam os
saduceus. Na realidade era grotescamente fictícia.
Em sua magistral resposta, Cristo faz quatro coisas: a. mostra por
que os saduceus cometem um erro tão evidente (v. 24); b. prova Sua
declaração, demolindo a falsa hipótese de que o casamento se reata
depois da ressurreição (v. 25); c. prova a doutrina da ressurreição por
meio da Escritura (vv. 26, 27a); e d. tira a única conclusão possível e a
declara usando exatamente duas palavras (no original).
a. 24. E Jesus, respondendo, disse-lhes: Porventura, não errais
vós em razão de não saberdes as Escrituras nem o poder de Deus?
Se tivessem conhecido a Escritura, teriam sabido que em
Deuteronômio 25:5, 6 nada há que se possa aplicar à vida vindoura, e

580
Alguns manuscritos acrescentam “quando ressuscitarem outra vez”.
Marcos (William Hendriksen) 629
teriam sabido também que várias passagens no Antigo Testamento
ensinam a ressurreição do corpo. E se houvessem aceito o poder de Deus
(Rm. 4:17; Hb. 11:19), haveriam entendido que Deus pode ressuscitar os
mortos, de maneira que o casamento já não é necessário.
Jesus aduz uma prova que derrubará a falsa hipótese da qual os
saduceus haviam partido. Esta prova é dada a conhecer a seguir:
b. 25. Porquanto, quando ressuscitarem dos mortos, nem
casarão, nem se darão em casamento, mas serão como os anjos nos
céus.
O glorioso corpo ressuscitado será imortal — nada diz aqui Jesus a
respeito da ressurreição dos ímpios. Pelo fato de que já não haverá
morte, o gênero humano não precisará reproduzir-se. O casamento, em
consequência, será assunto do passado. Ao não casar-se nem dar-se em
casamento, os redimidos serão semelhantes aos anjos, porque eles
tampouco se casam. Os redimidos serão como os anjos neste ponto em
particular; serão como os anjos cuja existência em si os saduceus
também negavam (At. 23:8), e isto, apesar do fato de que o Pentateuco,
aceito por eles, fala de sua existência (Gn. 19:1, 15; 28:12; 32:1)! Se for
tomado em sua totalidade e se for relacionado com a crença dos
saduceus, o versículo 25 prova que aqueles homens não conheciam a
Escritura nem o poder de Deus.
O Mestre ensinou a doutrina da ressurreição dos mortos, e os
saduceus ridicularizam esta verdade maravilhosa. Contudo, Jesus não
recusa comunicar-lhes mais instrução sobre este mesmo tema:
c. 26, 27a. Quanto à ressurreição dos mortos, não tendes lido no
Livro de Moisés, no trecho referente à sarça, como Deus lhe falou:
Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó? Ora,
ele não é Deus de mortos, e sim de vivos.
“Não tendes lido?”, diz Jesus. Por certo que os que buscam basear
seus argumentos nas Escrituras (Dt. 25:5, 6) devem conhecê-las! Devem
conhecer as Escrituras em sua totalidade, não só uma passagem que
aplicam de maneira errônea. É verdade que os saduceus não tinham o
Marcos (William Hendriksen) 630
Novo Testamento, o qual vez após vez menciona de forma explícita ou
implícita a ressurreição do próprio Cristo, ou de Seu povo, ou inclusive
de todos os mortos. Só para mencionar algumas das muitas passagens
que ensinam esta doutrina, veja-se Mt. 12:39, 40; 16:21; 17:22, 23;
20:19; 21:42; 25:31ss.; 28:1–10; Mc. 16:1–8; Lc. 24; Jo. 5:28, 29; 11:24;
20:21; At. 2:24–36; 4:10, 11; 17:31, 32; Rm. 1:4; 1Co. 15; Fp. 3:20, 21;
1Ts. 4:16; 1Pe. 1:3; Ap. 20:11–15. Mas o Antigo Testamento não carece
de referências sobre a ressurreição corporal. Os mais claros, talvez sejam
Sl 16:9–11 (interpretado por Pedro em At. 2:27, 31) e Dn. 12:2. Dignos
de consideração são também Jó 14:14; 19:25–27; Sl 17:15; 73:24–26; Is.
26:19; Ez. 37:1–14; Os. 6:2; 13:14 (cf. 1 Cor. 15:55). Embora estas
passagens nem sempre ensinam diretamente a ressurreição do corpo,
implicam a crença nesta verdade. Tome-se, por exemplo, o Salmo
73:24–26, que claramente ensina que depois da morte a alma do crente
existe no céu. Não é verdade que a própria existência da alma no estado
intermediário exige a ressurreição do corpo? Dois atos apontam em essa
direção: a. A criação do homem como “corpo e alma” (Gn. 2:7), e b. esta
mesma passagem, “Ele não é Deus de mortos, e sim de vivos”. Note-se
também que Abraão indubitavelmente cria na possibilidade de uma
ressurreição física (Hb. 11:19).
Jesus, entretanto, cita outra passagem, “Eu sou o Deus de Abraão
…”, e implica que, pelo fato de que Deus não é Deus de mortos, e sim de
vivos, a conclusão é que Abraão, Isaque e Jacó vivem ainda e esperam
uma ressurreição gloriosa.
Marcos (seguido por Lucas), mas não Mateus, menciona a Jesus
dizendo que a citação se acha no “Livro de Moisés”, quer dizer, no
Pentateuco, o mesmo livro que os saduceus estimavam acima de todos os
outros. De forma mais precisa, Jesus assinala que o lugar exato do
Pentateuco onde se acham as palavras citadas é “a passagem da
Marcos (William Hendriksen) 631
581
sarça”, isto é, da sarça que ardia sem consumir-se, referência essa a
Êx. 3:1ss.; veja-se v. 6, e cf. vv. 15, 16.
Tem-se pretendido despojar de seu valor o argumento de Cristo.
Diz-se, por exemplo, que a expressão, “o Deus de Abraão” significa
simplesmente que enquanto Abraão estava na terra adorava a Jeová.
Entretanto, um estudo cuidadoso do contexto de Êxodo 3:6 e de outras
passagens similares, provam imediatamente que Aquele que Se revela a
Si mesmo como “o Deus de Abraão …” é o imutável, eterno Deus da
aliança que abençoa, ama, consola, protege, etc. o Seu povo, e cujos
favores não cessam de repente quando uma pessoa morre, mas seguem
com ela para além da morte (Sl 16:10, 11; 17:5; 73:23–26).
Há outro fato que se deve mencionar neste sentido. Os homens com
quem o Senhor imutável (Êx. 3:6, 14; Ml. 3:6) estabeleceu uma aliança
eterna (Gn. 17:7) eram israelitas, não gregos. Segundo o conceito grego
(e mais tarde também o romano), o corpo é meramente o cárcere da alma
(veja-se CNT sobre 1Ts. 4:13). O conceito hebraico é produto da
revelação especial e é completamente diferente. Aqui Deus trata o
homem como um todo, não só com sua alma ou meramente com seu
corpo. Ao contrário, quando Deus abençoa a um filho Seu, enriquece-o
com bênçãos tanto físicas como espirituais (Dt. 28:1–14; Ne. 9:21–25; Sl
104:14, 15; 107; 136; e muitas passagens similares). Ama-o, tanto em
corpo como em alma. Enviará o Seu amado Filho para resgatá-lo
completamente. O corpo em consequência compartilha com a alma a
honra de ser “o templo do Espírito Santo” (1Co. 6:19, 20). O corpo é
“para o Senhor e o Senhor para o corpo” (1Co. 6:13). Deus ama a pessoa
total, e a declaração, “Eu sou o Deus de Abraão e o Deus de Isaque e o
Deus de Jacó” (note-se a tríplice presença da palavra “Deus”,
mencionada separadamente com relação a cada um dos três patriarcas,
para ressaltar a relação pessoal com cada um) significa certamente que
seus corpos não serão abandonados aos vermes, mas que um dia serão

581
“Na passagem sobre”, este é um dos significados normais de _πί seguido pelo genitivo.
Marcos (William Hendriksen) 632
gloriosamente ressuscitados. O peso da prova recai inteiramente sobre a
pessoa que nega isto. Veja-se também H. W. Robinson, The People and
the Book, Oxford, 1925, p. 353s.
Jesus expressa a seguir a única conclusão possível:
d. 27b. Laborais em grande erro. 582
O original usa somente duas palavras para expressar esta conclusão:
uma dela é muito, a outra é está, uma só palavra em grego. Em lugar de
estais, poderia traduzir-se por estais-errados. O verbo é aquele que se
usa também no versículo 24. Se for retida a frase de duas palavras, a
seguinte não seria uma má tradução: “Desatinais muito” (= “errais
muito”). Quando uma pessoa se separa das Escrituras vai rumo ao
desatino, a estar muito errado, a vagar. Veja-se também sobre 13:5.

Outras palavras e atos de Jesus a respeito da ressurreição


a. Restaurou a alguns da morte à vida: a filha de Jairo (Mc. 5:41,
42), o filho da viúva de Naim (Lc. 7:14, 15), e Lázaro (Jo. 11:43, 44).
b. Alguns ressuscitaram ao produzir-se a morte de Jesus (Mt. 27:52,
53).
c. Predisse Sua própria ressurreição ao terceiro dia (Mc. 8:31; 9:31;
10:34).
d. Em cumprimento destas predições, Ele mesmo ressuscitou
gloriosamente (Mt. 28; Mc. 16; Lc. 24; Jo. 20, 21).
e. Com referência à ressurreição espiritual disse: “Vem a hora e já
chegou, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus; e os que a
ouvirem viverão” (Jo. 5:25; cf. Lc. 15:32).
f. Com relação à ressurreição física disse: “Vem a hora em que
todos os que se acham nos túmulos ouvirão a sua voz e sairão: os que
tiverem feito o bem, para a ressurreição da vida; e os que tiverem
praticado o mal, para a ressurreição do juízo” (Jo. 5:28, 29). Cf. At.
24:15. Note-se a estreita relação entre e. e f. no Evangelho de João.

582
Grego πολ_ πλαν_σθε. Para πολύ veja-se sobre Mc. 9:26, nota 411.
Marcos (William Hendriksen) 633
g. Em todos os sentidos, o próprio Jesus Cristo é a causa da
ressurreição de seu povo: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em
mim, ainda que morra, viverá;
26 e todo o que vive e crê em mim não morrerá, eternamente. Crês
isto?” (Jo. 11:25, 26). “Ainda por um pouco, e o mundo não me verá
mais; vós, porém, me vereis; porque eu vivo, vós também vivereis” (Jo.
14:19).
h. Também está cheia de significado a declaração de Cristo,
“Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer; e eu o
ressuscitarei no último dia” (Jo. 6:44). Referente a “no dia último” veja-
se também 6:40, 54, e compare o uso que faz Marta da mesma frase (Jo
11:24).

De todos os mandamentos, qual é o maior?


Mateus e Marcos são os únicos que nos relatam este episódio. Lucas
não tem passagem paralela, embora haja alguns aspectos similares em
Lucas 10:25ss. Vê-se imediatamente claro que o relato de Marcos é mais
amplo que o de Mateus. Marcos inclui o Shema (“Ouve, ó Israel, etc.”)
contém “de toda a tua força” no resumo do primeiro mandamento, e
sobretudo descreve com mais detalhe a reação do escriba diante das
palavras de Jesus. Inclusive informa do que, por sua vez, foi a alentadora
resposta do Mestre a sua reação. Deste material nada se pode achar em
Mateus.
Por outro lado, Mateus, em seu muito breve relatório menciona uns
poucos detalhes que não se acham em Marcos. Deixa a impressão de que
o escriba que pergunta a Jesus não agia só por conta própria. Parece ter
sido designado pelos fariseus numa reunião celebrada com esse
propósito (Mt. 22:34, 35). Além disso, segundo Mateus, depois de dar
seu resumo da lei, Jesus disse: “Destes dois mandamentos dependem
toda a lei e os profetas”. Aqui, segundo Marcos, Jesus diz: “Não há outro
mandamento maior do que estes”. Os dois relatos se complementam.
Marcos (William Hendriksen) 634
28. Chegando um dos escribas, tendo ouvido a discussão entre
eles, vendo como Jesus lhes houvera respondido bem, perguntou-lhe:
Qual é o principal de todos os mandamentos? 583
Jesus tinha silenciado os saduceus (Mt. 22:34). Sua vitória agradou
os fariseus, porque eles, bem como Jesus, criam na ressurreição corporal,
doutrina que os saduceus negavam (veja-se At. 23:7, 8). Podemos
imaginar muito bem a alegria triunfalista dos fariseus diante da derrota
dos que negavam a ressurreição.
Mas de outro ponto de vista, os fariseus não podiam sentir-se tão
satisfeitos, porque não desejavam que a influência de Jesus sobre o
público em geral se fortalecesse. Até desejavam matá-Lo! Assim que,
novamente decidem pô-Lo à prova. Veja-se Mt. 22:35. 584
Com este fim selecionam certo escriba, doutor na lei. Este homem
causa-nos uma impressão favorável. Em passagens anteriores do
Evangelho de Marcos vimos o extremamente hostil que se mostrava a
maioria dos escribas e fariseus para com Jesus (Mc. 2:7; 3:2, 6, 22; 7:1,
2, 5; 8:31; 10:33; 11:18; 12:13). Por sua vez, Ele os condena, como nos
lembra novamente neste capítulo (vejam-se vv. 38–40). Por isso nos
parece estranho que este amável escriba fosse escolhido para representar
os fariseus nesta nova provocação a Jesus. Foi talvez porque realmente

583
συζητούντων, ptc. pres. gen. masc. pl. de συζητέω. Veja-se sobre 8:11, nota 368. Note-se os três
particípios aoristos: προσελθών, _κούσας _δών. Realmente, a ordem temporal é: tendo ouvido, tendo
reconhecido, e tendo vindo, lhe perguntou.
584
Nesta passagem paralelo de Mt. 22:35, Lenski, Op. cit., p. 336 e outros atribuem a πειράζων um
significado favorável. Mas o verbo não tem tal conotação em Mt. 4:1, 3; 16:1; 19:3; 22:18; nem em
Mc. 1:13; 8:11; 10:2; 12:15. Como a “prova” da qual fala Mt. 22:35 coloca-a o nobre perito na lei (ou
escriba), então crê-se que o particípio περιράων deveria ter um significado mais suave; que deveria
querer dizer “tratando de descobrir se podia dar a resposta correta”, e não “tratando de lhe pôr uma
armadilha com o propósito final de destruí-lo”. Note-se o singular. Uma possibilidade seria considerar
a frase como uma expressão abreviada (veja-se CNT sobre Jo. 5:31), cujo significado pleno seria “e
um deles, um doutor na lei, fez-lhe uma pergunta por meio da qual os que mandaram buscá-lo provar-
lhe”. Pelo fato de que até então o próprio agente realizou a prova, a mudança do singular ao plural não
seria necessária. Tanto na linguagem comum como na literatura, tais expressões abreviadas não são de
modo algum excepcionais. Qualquer que tivesse sido a resposta, é muito pouco provável que os
inflamados adversários de Jesus repentinamente se tornaram amáveis com Jesus.
Marcos (William Hendriksen) 635
não conheciam este homem? Ou foi porque o conheciam muito bem e o
enviaram pensando, “Jesus não suspeitará dele e ainda podemos fazer
tropeçar o nosso inimigo com sua resposta?” Não o sabemos.
O que, sim, sabemos é que este homem precaveu-se de que Jesus
tinha respondido muito bem aos saduceus. Não é possível que sua
própria motivação não coincidisse totalmente com a dos que o enviaram;
quer dizer, que nele triunfou a aprovação sobre o receio e o desejo de
desprestigiá-Lo?
A pergunta que este escriba fez era algo que se podia esperar dele.
Afinal de contas era um doutor no conhecimento da literatura religiosa
judaica — a lei escrita de Deus e sua interpretação e aplicação oral. Os
rabinos, entregues a um legalismo incrivelmente detalhista, entravam em
longos debates a respeito dos mandamentos, discutindo se este ou aquele
mandamento era grande ou pequeno, pesado ou leve. Em consequência,
era natural que discutissem a pergunta, “Qual dos 613 mandamentos,
248 deles positivos, 365 negativos (segundo sua lista) é o mais
importante de todos?” 585
Entre os judeus agiam duas tendências contrárias. Uma delas
consistia em analisar a lei, dividindo-a num sem-fim de estudadas
ramificações. Um bom exemplo é Mateus 5:33–37; 23:16–18. A outra
tendência era diametralmente oposta, quer dizer, de sintetizar, em outras
palavras, expressar um resumo da lei numa breve oração. Mesmo antes
do tempo de Cristo vários rabinos famosos tinham tratado de fazer isto,
com êxito diverso.
Em certo sentido este esforço era excelente. A religião, afinal de
contas, é assunto de seleção de prioridades corretas. Se não se fizer
assim, degenera facilmente numa especialização em pequenezes. Em
Mateus 23:23, Jesus, de forma muito concisa, contrasta o bom caminho

585
Note-se o significado de πρώτη em πρώτη _ντολή. Como em Ef. 6:2, assim também aqui o sentido
provavelmente é o mandamento do maior significado. Essa interpretação faz com que a pergunta
esteja em harmonia com sua fraseologia de Mt. 22:36. Para o significado de _ντολή, veja-se mais
acima, sobre 7:8, nota 319.
Marcos (William Hendriksen) 636
com o mau: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque dais o
dízimo da hortelã, do endro e do cominho e tendes negligenciado os
preceitos mais importantes da Lei: a justiça, a misericórdia e a fé”.
29–31. Respondeu Jesus: O principal é: Ouve, ó Israel, o Senhor,
nosso Deus, é o único Senhor! Amarás, pois, o Senhor, teu Deus, de todo o
teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de toda a
tua força. O segundo é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há
outro mandamento maior do que estes.
Aqui Jesus ensina que:
a. Todo o dever do homem, toda a lei moral e espiritual, pode ser
resumida numa palavra: amor. Cf. Rm. 13:9, 10; 1Co. 13.
b. Este amor, em primeiro lugar, deve ser para com Deus. Neste
sentido, Marcos nos diz que Jesus começou o resumo da lei citando
Deuteronômio 6:4, 5 - “Ouve, Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único
Senhor. Amarás, pois, o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração …” No
original hebraico, a primeira palavra desta citação é Shema, 586 que
significa “Ouve”. Em português a forma hebraica com frequência é
transliterada por Shema, e toda a citação é chamada geralmente “o
Shema”. Hoje em dia, o antigo costume de começar o serviço da
sinagoga com a recitação do Shema ainda é praticado.
O mesmo pode-se dizer dos filactérios judaicos. Estes contêm o
Shema em sua forma mais ampla (Dt. 6:4–9; 11:13–21). Sobre este tema
podem-se achar mais detalhes no CNT de Mateus 23:5–7.
Finalmente, devemos mencionar o mezuzah, um pedaço de
pergaminho inscrito que se coloca num estojo de metal ou madeira e que
se fixa na parte superior do batente direito das casas judias. A inscrição
que contém é o Shema em sua forma mais extensa. Escreve-se em vinte
e duas linhas de acordo com algumas regras estabelecidas.
Entende-se imediatamente que o Shema era e é a base mesma do
monoteísmo. Não só isso, mas também sublinha o fato de que este Um e

586
Esta forma é o Qal imper. masc. sing. do verbo hebraico shāma’.
Marcos (William Hendriksen) 637
Único Deus quer que O amem! Isto harmoniza com o fato de que Ele
mesmo é um Deus de amor. Esta é uma verdade que se ensina não só no
Novo Testamento (Jo. 3:16; Rm. 5:8; 8:32; etc.) mas também, já de
forma direta ou implícita, em passagens do Antigo Testamento tais como
Dt. 33:27; Sl 27:10; 87:2; 103:8–14; 145:8, 9; 146:8; 147:1–3; Pv. 3:12;
Is. 1:18; 55:7; Jr. 31:31–34; Os. 11:8; Jo. 4:11; Mq. 7:18–20; etc.
c. Coração, alma, mente, e força devem cooperar em amar a Deus.
O coração representa o próprio centro da existência do homem, a fonte
principal de seus pensamentos, palavras, e atos (Pv. 4:23). A alma — a
palavra usada no original tem uma variedade de significados (veja-se
sobre Mc. 8:12, nota 370) — significa aqui provavelmente o assento da
atividade emocional do homem; a mente não só é o assento e centro da
vida puramente intelectual, mas também das disposições e as atitudes.
No hebraico original (e também na Septuaginta) de Deuteronômio 6:5, o
que se lê é “coração, alma, e poder’. Marcos 12:30 diz “coração, alma,
mente, e força” (cf. Lc. 10:27). Não se pretende fazer diferença. Não
devemos começar a exagerar a análise. O que todas estas passagens
significam é que o homem deve amar a Deus com todas as “faculdades”
com que Deus o dotou.
d. Além disso, o homem deve usar todos estes poderes ao máximo.
Note-se a quádrupla repetição “todo … todo … todo … todo”. O ponto
principal é que o sincero amor de Deus não deve ser correspondido pela
metade. Quando Deus ama, ama o mundo; quando dá, dá o Seu Filho, e
em consequência, dá-Se a Si mesmo (veja-se CNT sobre Jo. 3:16). Deus
O entregou e não O poupou (Rm. 8:32). É impossível achar um amor
maior, 587 mais maravilhoso e entregue (Jo. 15:13; Rm. 5:6–10; 2Co.
8:9). Naturalmente, a resposta a tal amor não deve ser menor que a que
se expressa em Rm. 11:33–36; 1Co. 6:20; 10:31; 2Co. 9:15; Ef. 5:1, 2;
Cl. 3:12–17.

587
No original, “amarás” é _γαπήσεις. Há alguma distinção entre _γαπάω e φιλέω; e se for assim, qual
é a distinção? Veja-se sobre 10:21, nota 475.
Marcos (William Hendriksen) 638
e. Este amor não só deve estar dirigido a Deus (Dt. 6:5), mas
também ao ser humano (Lv. 19:18). A questão de se Jesus foi ou não foi
o primeiro em combinar estas duas passagens,588 que no Antigo
Testamento estão separados, não é de muita importância. Se for muito
ressaltado este ponto, pode-se suscitar uma objeção: “O que ocorre então
com o autor do Testamento dos Doze Patriarcas, onde Issacar (5:2) é
apresentado dizendo ‘Ame ao Senhor e amem ao seu próximo’ ”? Deve
destacar-se, entretanto, que a declaração de Issacar é muito menos
completa que a de Marcos 12:29–31 e, além disso, que é difícil
determinar que parte destes escritos, falsamente atribuídos aos doze
patriarcas, é original e quanto é interpolação cristã. Um argumento mais
sólido em favor da opinião de que Jesus pôde não ter sido o primeiro em
combinar estas duas passagens do Antigo Testamento em uma, acha-se
em Lucas 10:27. Mas este texto não significa necessariamente que a
combinação de Deuteronômio 6:5 com Levítico 19:18 se originou no
“intérprete da lei” que ali se menciona. Há aqueles que — por exemplo,
C. G. Montefiore, The Synoptic Gospels (Londres 1927), vol. II, p. 464
— creem que “a combinação era aparentemente uma coisa comum,
igualmente familiar para cristãos e judeus”. Isto tampouco pode-se
provar. Entretanto deve considerar-se muito mais importante que Jesus,
não só por meio de palavras, mas também por atos, foi o primeiro em
estabelecer o verdadeiro significado do amor a Deus unido ao amor aos
homens. “Quando duas pessoas dizem a mesma coisa, bem podem não
estar realmente dizendo a mesma coisa”. Que imenso contraste entre os
dois que falam em Marcos 12:30, 31 e Lucas 10:27! Entretanto, ambos
expressam essencialmente a mesma coisa. O contexto destas duas
passagens indica o amplo amor do coração de Cristo e a estreiteza de
alma do intérprete da lei.
f. O segundo mandamento assemelha-se ao primeiro neste sentido:
ambos requerem amor. Além disso, o amor ao próximo, que leva a

588
É a posição adotada pelo W. Barclay, Op. cit., p. 309.
Marcos (William Hendriksen) 639
imagem de Deus, brota do amor a Deus (1Jo. 4:20, 21; cf. Mt. 5:43;
7:12; 19:19). À inversa, o amor que irradia do coração de Deus para com
seus filhos, ajuda-os a amar o seu próximo (Ef. 4:32–5:2).
g. “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. O homem foi criado
com amor para si mesmo. Esse amor a si mesmo deve ser a medida com
a qual decide como deve amar o seu próximo. Trata-se de uma regra
empírica muito prática. E esse “próximo”, além disso, é qualquer pessoa
que providencialmente cruzar em seu caminho, necessitado de ajuda e
compaixão. Na realidade, uma pessoa nunca deveria perguntar-se, “E
quem é o meu próximo?” Em lugar disso, ele mesmo deve ser um
verdadeiro próximo para os necessitados, embora estes sejam seus
inimigos. Veja-se Mt. 5:43–48; Lc. 10:30–37.
h. Jesus leva Sua resposta até o clímax com a declaração: “Não há
outro mandamento maior do que estes”. E por que são estes dois
mandamentos os mais importantes?
Primeiro, a fé e a esperança recebem, mas o amor dá. A fé se
apropria da salvação que oferece Cristo. A esperança aceita a promessa
da herança futura. O amor, entretanto, significa dar-se, compartir-se a si
mesmo.
Segundo, todas as demais virtudes estão incluídas no amor.
Segundo 1 Coríntios 13, o amor ativo, inteligente e voluntário implica
paciência, bondade, humildade (v. 4), generosidade (v. 5), fé e esperança
(v. 7).
Terceiro, o amor humano, em sua mais nobre expressão, segue o
modelo de Deus, porque “Deus é amor”. As Escrituras revelam
claramente o caráter sublime do amor (Cl. 3:14; 1Pe. 4:8; 1 Jo. 3:14;
4:8).
32, 33. Disse-lhe o escriba: Muito bem, Mestre, 589 e com verdade
disseste que ele é o único, e não há outro senão ele, e que amar a Deus de

589
Ou “Excelente, Mestre!”
Marcos (William Hendriksen) 640
todo o coração e de todo o entendimento e de toda a força, e amar ao
próximo como a si mesmo excede a todos os holocaustos e sacrifícios.
Com sumo deleite e sem nenhuma reserva, aquele escriba aceitou a
resposta de Jesus. Sua reação começa com uma exclamação, “Muito bem
Mestre …” 590 Em lugar de “Muito bem” poderia dizer “Excelente!” ou
“Esplêndido!” Quanto a “Mestre”, veja-se sobre Mc. 12:14. É evidente
que as palavras de Jesus tinham produzido uma profunda impressão
neste homem, que foi sincero o bastante para reconhecê-lo, inclusive
com alegria e entusiasmo. Além disso, diz que Jesus tinha falado “com
verdade”, e logo virtualmente repete o que o Mestre acabava de dizer.
As variações entre as próprias palavras de Cristo e a repetição que
faz o escriba são muito leves. Este intérprete da lei não se permite o
privilégio de pronunciar o Nome Sagrado. Em lugar de “mente” diz
“entendimento” 591 e omite “alma”.
E também acrescenta algo: que o amor que aqui se descreve
“excede a todos os holocaustos 592 e sacrifícios”. O primeiro termo
refere-se às ofertas que o fogo consumia totalmente (cf. Lv. 1:9). O
segundo pode indicar ofertas ou sacrifícios em geral; neste caso a
referência parece ser a “qualquer outro sacrifício”.
Parece que este homem conhecia bem as Escrituras. Ao menos o
que aqui diz é a verdade absoluta que o Antigo Testamento ressalta e
repete constantemente. Veja-se especialmente as seguintes passagens:
1Sm. 15:22; Sl 40:6, 7; 51:16, 17; Is. 1:10–17; Os. 6:6; Mq. 6:6–8.
34. Vendo Jesus que ele havia respondido sabiamente, declarou-
lhe: Não estás longe do reino de Deus.
Realmente conhecemos muito pouco sobre este especialista na lei
judaica. Tinha estado favoravelmente inclinado ao Senhor desde o

590
Por causa de sua posição na oração, é melhor considerar καλώς como uma exclamação, que
construí-la com ε_πες, e logo traduzi-la “Bem feito”.
591
συνέσεως, gen. sing. de σύνεσις, relacionado com συνίημι, juntar (dois e dois) para compreender.
Em consequência, σύνεσις significa entendimento, compreensão, discernimento.
592
_λοκαύτωμα de _λος (total) e καίω, queimar.
Marcos (William Hendriksen) 641
começo do presente episódio, ou talvez inclusive desde antes? Ou
primeiro foi hostil e logo sua desfavorável atitude se desfez diante da
presença de Jesus e o efeito do sucinto e belo resumo da lei de Deus?
Qualquer que tenha sido o caso, os versículos 32, 33 tornam evidente
que apoiou calidamente a resposta que Jesus tinha dado. De modo que
Jesus, por sua vez, anima o escriba. O Mestre viu que lhe tinha
respondido sabiamente, quer dizer, como pessoa que tinha inteligência 593
e que fez bom uso dela.
Assim que Jesus o anima dizendo, “Não estás longe do reino de
Deus”. Permaneciam os outros escribas ainda submersos em milhares de
escrupulosas trivialidades legais (Mc. 7:3, 4; cf. Mt. 23:23) como se sua
observância fosse necessária para a entrada ao reino? Este escriba não;
ao menos, já não. Entendeu que a chave que abria a porta do reino era o
AMOR; o próprio amor de Deus aos pecadores e o pleno amor deles a
Deus e ao próximo, que é portador da imagem divina. Se este escriba
pudesse agora, pela graça e o poder de Deus, avançar um passo mais,
quer dizer, realmente crer em Jesus como Salvador e Senhor dele (Mt.
11:28–30; Jo. 6:35), teria avançado da posição “não está longe” a estar
“dentro” do reino de Deus. Não pode haver discussão sobre uma coisa:
mediante estas mesmas palavras de alento, “Não estás longe do reino de
Deus”, Jesus estava insistindo com ele a entrar nesse reino. 594

O que acabamos de dizer nos introduz ao tema de

Jesus o grande alentador

Vimos como Jesus alentou o escriba ao dizer-lhe que não estava


longe do reino de Deus. As conversações e discursos do Senhor estão
cheios de estímulos similares. Excluindo palavras tais como as que se
593
O advérbio νουνεχ_ς que no Novo Testamento só aparece aqui, é o equivalente de νουνεχόντως.
Veja-se MM, pp. 430, 431.
594
Um fato assinalado também por Lenski, Op. cit., p. 341.
Marcos (William Hendriksen) 642
pronunciaram em relação direta com as curas (p. ex., “A tua fé te
curou”), notem-se as seguintes, todas tiradas do Evangelho de Marcos:
“Eu vos farei pescadores de homens” (Mc. 1:17).
“Filho, os teus pecados estão perdoados” (Mc. 2:5).
“Eis minha mãe e meus irmãos” (Mc. 3:34).
“Não temas, crê somente” (Mc. 5:36).
“Tende bom ânimo! Sou eu. Não temais!” (Mc. 6:50).
“Deixai vir a mim os pequeninos, não os embaraceis, porque dos
tais é o reino de Deus” (Mc. 10:14).
“Ninguém há que tenha deixado casa, ou irmãos … que não receba,
já no presente, o cêntuplo …” (Mc. 10:29, 30).
“Tudo quanto suplicais e pedis, crede que o tendes recebido, e tê-lo-
eis” (Mc. 11:24, TB).
“Quando, pois, vos levarem e vos entregarem, não vos preocupeis
com o que haveis de dizer, mas o que vos for concedido naquela hora,
isso falai; porque não sois vós os que falais, mas o Espírito Santo” (Mc.
13:11).
“Aquele, porém, que perseverar até ao fim, esse será salvo” (Mc.
13:13).

Tudo isto além das numerosas palavras de consolo e alento que se


acham nos outros Evangelhos. Veja-se só alguns exemplos dos muitos
em Mt. 5:1–16; 11:28–30; 14:27; Lc. 6:23; 12:32; 22:31, 32; 23:43; Jo.
14; 15:11; 16:24, 33; etc.
Com isto não queremos dizer que o Senhor Se limitasse somente a
palavras de alento. Sem dúvida que não. Quando foi necessário
denunciar ou repreender energicamente, Ele o fez. Veja-se, p. ex., Mc.
4:28, 29; 7:6–13; 9:19; 12:38, 39; e especialmente Mt. 23. Entretanto,
fazia insistência no positivo, o que é uma útil insinuação para todo
pregador e crente que se esforça em testificar.
Naturalmente, é necessário denunciar o pecado em todo seu horror.
Sem o conhecimento do pecado não há salvação. O pregador que não
Marcos (William Hendriksen) 643
apresenta o pecado como realmente é — rebeldia contra a santa vontade
de Deus —, e descuida assinalar sempre quais são suas terríveis
consequências, não é um verdadeiro intérprete da Palavra de Deus. Por
outro lado, o pregador que negligencia dirigir palavras de consolo aos
penitentes, para alentá-los com suas mensagens de ânimo baseados na
Escritura, não é fiel ao lema que se acha inscrito em muitos púlpitos,
“Senhor, queremos ver a Jesus” (Jo. 12:21).
E já ninguém mais ousava interrogá-lo. Algo similar é relatado
em Lucas 20:40 e em Mateus 22:46. Uma explicação possível seria que
depois da segunda pergunta, relacionada com a ressurreição, os saduceus
foram silenciados de forma tão eficaz, que não tiveram coragem para
fazer mais perguntas (Lc. 20:40). Depois da terceira pergunta, “Qual é o
principal de todos os mandamentos?” os fariseus (Mc. 12:34) viram-se
afetados pelo mesmo retraimento. Mateus não informa deste último até
depois que relata a forma em que Jesus desconcertou os Seus adversários
com Sua própria pergunta (Mt. 22:46). Assim interpretado, não há
contradição entre as três narrações similares.
O fato principal é que Jesus tinha desbaratado totalmente a
oposição, e ao fazê-lo, inclusive tinha conseguido atrair a si mesmo a um
dos membros daquele grupo tão intensamente hostil.

A pergunta de Cristo: De quem é filho o Cristo?

O relato deste incidente se acha em Mateus, Marcos e Lucas. Entre


os dois últimos existe, como é frequente, uma estreita semelhança. O
relato de Mateus é mais longo. Marcos explica-nos que o momento em
que surgiu a pergunta aqui indicada foi “enquanto Jesus ensinava no
templo”. Podemos supor que ainda era quinta-feira. Levando em conta
que naquele dia tinham passado tantas coisas, a presente confrontação
teve lugar provavelmente pela tarde.
Marcos (William Hendriksen) 644
Estavam presentes Jesus e Seus discípulos (cf. Mt. 23:1; Lc. 20:45),
os fariseus (Mt. 22:41), entre os quais havia vários escribas (Mc. 12:35)
e uma grande multidão (Mc. 12:37b).
A principal diferença entre Mateus, por um lado, e Marcos e Lucas
por outro, é que só Mateus registra o incidente desde o começo. Não
existe conflito alguém entre os três relatos se aceitarmos a seguinte
harmonia:

Mateus 22 Marcos 12

41, 42. Reunidos os fariseus, 35. Jesus, ensinando no templo,


interrogou-os Jesus: Que pensais perguntou: Como dizem os
vós do Cristo? De quem é filho? escribas que o Cristo é
Responderam-lhe: filho de Davi? (cf. Lc. 20:41,42).
eles: De Davi.

43 Replicou-lhes Jesus: Como, pois, 36 O próprio Davi falou, pelo


Davi, pelo Espírito, chama-lhe Espírito Santo:
Senhor, dizendo:

Mateo 22:44, 45; Marcos 12:36 (continuación); Lucas 20:42 (continuación)


Disse o Senhor ao meu Senhor:
Assenta-te à minha direita
Etc.
Há algumas variações sem importância: a. Enquanto que Mateus e
Marcos atribuem as palavras de Davi à sua fonte última, ou seja, ao
Espírito (Santo), Lucas nos diz que esta citação acha-se “no livro dos
Salmos”. Também é Lucas quem escreve “estrado de seus pés”, em lugar
de “debaixo de seus pés”, que aparece em Mateus e Marcos.
Quanto à reação da concorrência às palavras de Jesus, Lucas guarda
silêncio; Marcos diz: “E a grande multidão o ouvia com prazer”; e
Mateus: “E ninguém lhe podia responder palavra, nem ousou alguém, a
partir daquele dia, fazer-lhe perguntas.”
Marcos (William Hendriksen) 645
35. Jesus, ensinando no templo, perguntou: Como dizem os
escribas que o Cristo é filho de Davi?
À primeira vista parece que não houvesse conexão entre este
parágrafo e aquele que imediatamente o precede. Marcos somente afirma
que este fato ocorreu no templo. Entretanto, diante desta incerteza com
relação a algumas das circunstâncias, é justo dizer que, afinal de contas,
há um elo provável entre os versículos 28–34 e os versículos 35–37.
Momentos antes, no resumo da lei, Jesus tinha posto toda a ênfase em
que o amor é o cumprimento do Decálogo. E agora põe este amor em
prática ao dirigir a atenção dos ouvintes à fé nEle, porque fora desta fé
— e da adequada concepção a respeito de Cristo — nenhum escriba
(nem ninguém mais) pode ser salvo. Sabemos que aqueles a quem Jesus
dirigiu a pergunta continuaram endurecendo-se; mas é possível que o
homem a quem Jesus havia dito “Não estás longe do reino” (Mc. 12:34)
entrasse completamente no reino quando ponderou a pergunta de Cristo.
Nem todos os escribas eram igualmente maus. Nem todos os dirigentes
judeus rejeitaram permanentemente a Jesus. Veja-se Mc. 15:42–46; cf.
Mt. 27:57; Lc. 23:50, 51; Jo. 19:38, 39. Mas à parte de tudo isto, não se
pode negar que Jesus, ao enfrentar a este tipo de concorrência (lembre-se
Mc. 12:13!) com a pergunta “De quem é filho o Cristo?”, está revelando
Seu maravilhoso amor. Está conversando com estes homens
publicamente pela última vez e, portanto, faz a pergunta mais importante
de todas.
É evidente que o Mestre está Se referindo a Si mesmo ao dizer “o
Cristo”. Entretanto, a pergunta a faz em terceira pessoa, para que os
fariseus possam dar pronta resposta sem ter que afirmar que o próprio
Jesus é o Cristo. De fato, a ideia de que Jesus pudesse ser o Cristo
repugnava-lhes. O Messias esperado (cuja tradução grega é “Cristo”) era
indubitavelmente o Filho de Davi. Eles sabiam disso e assim o
ensinavam (Mc. 12:35; Jo. 7:42). Além disso, nisso tinham razão, porque
este é o ensino das Escrituras (2Sm. 7:12, 13; Sl 78:68–72; 89:3, 4, 20,
24, 28, 34–37; Am. 9:11; Mq. 5:2; etc.). Mas ouvir que chamassem a
Marcos (William Hendriksen) 646
Jesus de “filho de Davi”, não o podiam suportar! Veja-se Mt. 12:23, 24;
21:15, 16.
Havia outra coisa mais que os fariseus e escribas sabiam. Tratava-se
de que Jesus não tinha posto objeções ao título “Filho de Davi”. Não
tinha reprovado nem aos discípulos nem às crianças quando eles,
implicitamente, O haviam chamado assim. Entretanto, era preciso
esclarecer coisas. Devia eliminar-se as ideias terrestres ligadas ao “Filho
de Davi” ou “Messias” (cf. Jo. 18:36). A hora tinha chegado para
preparar a concorrência para a ideia de que o título “Filho de Davi”
significava muito mais do que geralmente se entendia. Os fariseus e os
escribas deviam aprender que o Filho de Davi é também o Senhor de
Davi. O Filho de Davi é o filho de Deus. Em consequência, quando Jesus
diz, “Como podem dizer os escribas que o Cristo é o Filho de Davi?”, o
que quer dizer é, “Como podem dizer que o Cristo é tão somente filho de
Davi?” Afinal de contas, ele não só é homem; também é Deus!
Pelo ensino do Antigo Testamento, os escribas deveriam ter tido
esta ideia bem clara.
36, 37a. O próprio Davi falou, pelo Espírito Santo: Disse o Senhor ao
meu Senhor: Assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus
inimigos debaixo dos teus pés. O mesmo Davi chama-lhe Senhor; como,
pois, é ele seu filho?
Explicação:
a. A citação é do Salmo 110 (Septuaginta 109):1. O texto grego da
Septuaginta reproduz fielmente o original hebraico. Entre o original
hebraico e a versão de Marcos não há diferença essencial. Seja que com
o texto hebraico e com a Septuaginta digamos: “Até que faça de seus
inimigos um estrado para seus pés”; ou que com Marcos (que reproduz
as palavras de Jesus) digamos: “Até que eu ponha os teus inimigos
debaixo dos teus pés”, a figura que resulta em ambos os casos é a de um
inimigo tendido no pó diante de um adversário, de modo que o pé do
vencedor lhe pisa o pescoço (cf. Js. 10:24). “O Senhor” assegura ao
Senhor” o completo triunfo sobre todo inimigo.
Marcos (William Hendriksen) 647
b. Jesus atribui este salmo (Sl 110) a Davi, e declara que este último
o escreveu “em”, quer dizer, “movido pelo” Espírito Santo; portanto
“sob inspiração”.
c. Jesus afirma aqui que o Salmo 110 é um salmo messiânico.
Assim foi considerado também por Pedro (At. 2:34, 35), por Paulo (1Co.
15:25), e pelo escritor da Epístola aos Hebreus (Hb. 1:13; cf. 10:13). 595
d. Neste salmo, Davi faz uma distinção entre o YHWH (Jeová) e
Adonai. De maneira que, YHWH está falando com o Adonai de Davi;
ou, se se preferir, Deus está falando com o Mediador.
Está prometendo ao Mediador tal preeminência, poder, autoridade e
majestade que só é adequada para Alguém que, quanto à Sua pessoa, é
Deus desde a eternidade, agora e para sempre. Veja-se Ef. 1:20–23; Fp.
2:5–11; Hb. 2:9; Ap. 5:1–10; 12:5.
e. Não obstante, este mesmo Senhor exaltado é o Filho de Davi
(2Sm. 7:12, 13; Sl 132:17). É evidente que esta descrição tem seu
cumprimento em Jesus, segundo Mt. 1; Lc. 1:32; 3:23–38; At. 2:30; Rm.
1:3; 2Tm. 2:8; Ap. 5:5. Assim, Cristo é Deus e homem ao mesmo tempo.
f. As palavras, “Davi chama-lhe Senhor; como, pois, é ele seu
filho?” não significam, “o Messias não pode ser o filho de Davi”, mas
devem significar, “não pode ser tão somente seu filho no sentido de
descendência física”. Ele é muito mais que isto. Ele é a raiz e assim
mesmo o renovo de Davi (Ap. 22:16; cf. 11:1, 10).
É como se Jesus estivesse dizendo aos Seus críticos, “Vós Me
censurastes por aceitar os louvores dos que Me chamaram ‘Filho de
Davi’. Tenham em mente, então, que Eu sou o Filho de Davi no sentido
mais exaltado, porque Davi mesmo me chamou: ‘meu Senhor’. Em
consequência, todo aquele que me rejeita, rejeita o Senhor de Davi”.
Entretanto, Jesus ainda não diz aos Seus inimigos de forma aberta que
Ele é o Cristo. Isto virá um pouco mais adiante. Veja-se Mc. 14:61, 62.

595
Segundo SB, vol. IV., 452ss. o caráter messiânico deste salmo era aceito também pelos rabinos.
Marcos (William Hendriksen) 648
g. É alentador saber que não só segundo Mc. 12:10, 11 (veja-se
sobre essa passagem), mas também segundo a presente passagem, Jesus,
poucos dias antes de Sua cruel agonia, estava completamente consciente
de que o caminho à cruz era o caminho ao céu, à coroa!
37b. E a grande multidão o ouvia com prazer.
O fato de que Jesus tinha estado criticando os escribas não parecia
preocupar a grande multidão de ouvintes. Na realidade, aquela gente
desfrutava do que ouvia, embora isto só pode dizer-se de um modo muito
geral. Ao longo de Seu ministério, as multidões foram a Ele quantas
vezes foi possível. Às vezes em busca de cura para eles ou para seus
seres queridos; outras vezes vinham principalmente para escutar Suas
palavras (Mc. 1:22; 2:2, 13; 4:1ss.; 6:34; 10:1; cf. Mt. 7:28, 29). Estes
dois propósitos com frequência se combinavam (Lc. 5:15; 6:17).
Mas desfrutar de um sermão ou discurso — qualquer palavra que
viesse direta ou indiretamente dos lábios de Jesus — não é o mesmo que
tirar proveito dele. Com muita frequência, quando lemos a passagem
12:37b esquecemos que Marcos usou estas mesmas palavras (veja-se no
original) em outro contexto, ou seja, com relação ao interesse com que
Herodes Antipas escutava a João Batista, a quem ele, “o rei”, havia de
assassinar muito em breve! (veja-se sobre Mc. 6:20 mais acima). À nossa
memória deve ter acudido imediatamente a passagem anterior, como
também, neste sentido, a experiência de Ezequiel. Não se disse com
relação a este profeta que, segundo a opinião da concorrência, era “como
quem canta canções de amor, que tem voz suave e tange bem”? E não se
acrescentou logo o seguinte comentário: “ouvem as tuas palavras, mas
não as põem por obra”? Veja-se Ez. 33:31, 32; também Mt. 13:5, 6, 20,
21. Não se assemelha esta gente ao homem que construiu sua casa sobre
a areia e não sobre a rocha (Mt. 7:26, 27)? Sem dúvida, entre este grande
número de pessoas que “ouviam com prazer” o que Jesus dizia, haveriam
alguns que poucos dias depois uniriam suas vozes ao grito de “Crucifica-
o!”
Marcos (William Hendriksen) 649
Entretanto, embora seja preciso sublinhar o que acabamos de dizer,
não devemos esquecer que é de muito mais importância assinalar a Jesus
como Rei grande e vitorioso, que exerce controle sobre tudo, incluindo
as multidões; e isto enquanto levava a cabo a obra que o Pai lhe tinha
atribuído.

Mc. 12:38–40 - Denúncia contra os escribas


Cf. Mt. 23:1–36; especialmente 23:6, 7a; Lc. 20:45–47

Marcos 12:38–40 repete-se em Lucas 20:45–47 quase palavra por


palavra. Algumas das mesmas acusações e descrições acham-se também
em Mateus 23:6, 7a; e referente a “oferecendo longas orações”, veja-se
Mt. 6:5–7.
Talvez se poderia, considerar estes três versículos de Marcos como
um muito breve resumo do quinto grande discurso de Cristo, dos sete ais,
que se encontra em Mateus 23.
Depois de Jesus atacar o ensino dos escribas (Mc. 12:35–37a),
passa agora a atacar sua prática.
38a. E, ao ensinar, dizia ele: …
Ao expressar-se assim, tanto aqui como em Mc. 4:2, Marcos deixa
claro que o que segue não é mais que uma seleção do ensino do Mestre.
38b–40a. Guardai-vos dos escribas, que gostam de andar com vestes
talares e das saudações nas praças; e das primeiras cadeiras nas sinagogas
e dos primeiros lugares nos banquetes; os quais devoram as casas das
viúvas e, para o justificar, 596 fazem longas orações; …
Aqui vemos algumas ilustrações sobre a maneira em que os escribas
buscam colher louvores para si mesmos. Jesus nem sequer sugere em
lugar algum que esta descrição fosse um quadro real de todos os
escribas. O escriba que se apresenta em Mc. 12:28–34 deve ter sido uma
pessoa de uma classe totalmente distinta. Tempo depois entre os que se

596
Ou: atrair a atenção.
Marcos (William Hendriksen) 650
uniram às hostes de Jesus ou ao menos defenderam os direitos dos
crentes, havia tanto fariseus como sacerdotes (At. 5:33; 6:7; Fp. 3:1ss.).
Entretanto, pode-se supor que o que Jesus disse aqui, correspondia a uma
descrição real de muitos dos escribas daqueles dias. Eram orgulhosos,
egoístas, hipócritas, e indignos de confiança.
“Guardai-vos” deles, diz Jesus a seus discípulos, aos ouvidos de
todo o povo (Lc. 20:45). 597
Logo enumera seis pontos nos quais estes personagens mostram
suas facetas malignas.
a. “gostam 598 de andar com vestes talares”. Estes homens se dão
ares: andam por todos os lados vestidos como reis ou sacerdotes 599
preparados para realizar funções oficiais.
b. Se deleitam com as saudações formais nas praças. Embora a
palavra que aqui se use para “saudações” pode significar uma saudação
amistosa, ou saudação por escrito (1Co. 16:21; Cl. 4:18; 2Ts. 3:17),
neste caso tem uma conotação mais forte conforme indica o contexto
imediato de Mt. 23:7 (“…as saudações nas praças e o serem chamados
mestres pelos homens”). O que sempre estavam desejando as pessoas
que aqui se censura não era receber um mero sinal de amizade, mas
antes, uma demonstração de respeito, o reconhecimento público de sua
proeminência.
c. Buscam os primeiros assentos nas sinagogas. Trata-se dos
assentos dianteiros da plataforma onde se situava aquele que dirigia a
oração ou aquele que lia as Escrituras. Quem ali se sentava tinha a dupla
597
O presente durativo de βλέπετε _πό significa: sigam evitando aos escribas, lhes voltem as costas;
portanto, “tomem cuidado de”, “guardai-vos de”, como em 8:15. Embora o modismo aqui usado pode
considerar um hebraísmo, também encontra-se nos papiros.
598
O part. pres. θελόντων (de θέλω), tem aqui o significado de “saboreando, deleitando-se em”. Note-
se que vai seguido por um infinitivo e por três substantivos em caso acusativo.
599
Embora não seria incorreto traduzir aqui στολή por “estola”, o mesmo que em Mc. 16:5; Lc. 15:22;
20:46; Ap. 6:11; 7:9, 13, 14; 22:14, esta palavra em nosso idioma é algo ambígua, porque também
pode referir-se à estreita banda de tecido que os sacerdotes e os bispos usam no pescoço e que
pendura de seus ombros; inclusive pode significar um objeto feminino, quer dizer, um longo e largo
xale.
Marcos (William Hendriksen) 651
vantagem de estar perto da pessoa que tinha a cargo a leitura ou a oração,
e de estar de frente para a congregação, podendo assim ver todos. Além
disso, considerava-se uma assinalada honra o fato de ser convidado a
este lugar.
d. Gostam dos lugares de honra nos banquetes. Jesus pronunciou
uma advertência contra este pecado de buscar os lugares mais honoráveis
num banquete ou jantar (Lc. 14:8). Tiago condenou o pecado de atribuir
os melhores assentos aos ricos enquanto dizia-se ao pobre que estivesse
de pé ou sentado no estrado de alguém (Tg. 2:2, 3).
e. Devoravam as casas das viúvas. Os escribas que aqui se denuncia
são descritos como devoradores de — engordando-se com — as casas
destas mulheres solitárias. 600
Perguntamo-nos: “Mas, como o faziam?”. Têm sido dadas
diferentes respostas. Entre elas estão as seguintes: exigiam das viúvas
que contribuíssem mais do que para elas era razoável. Essa contribuição
ia a recursos que estavam sob o controle dos escribas e dos quais estes
podiam dispor. Talvez se ofereciam para ajudar a legalizar trâmites
referentes a heranças que as viúvas recebiam, cobrando mais do que era
justo; ou obtinham benefícios fraudulentos do apoio material que
inicialmente as viúvas tinham oferecido, etc. Qualquer que tivesse sido o
método que usavam, é evidente que aqui Jesus está condenando o crime
de extorsão praticado contra as viúvas. As Escrituras condenam esta
prática como uma maldade atroz: veja-se sobre os versículos 41–44. A
história da igreja proporciona muitos exemplos desta maldade. Leia o
600
Por que a mudança tão repentina do genitivo (ou ablativo) ao nominativo κατεσθίοντες … καί …
προσευχόμενοι depois de βλέπετε _πό? Não teria sido mais natural o genitivo? Para solucionar o
problema desta construção alguns considerariam ο_ κατ. κτλ um anacoluto, e a concordância com τ_ν
θελόντων seria meramente quanto ao sentido. Lc. 20:47 não usa um particípio mas sim um relativo
mais um verbo indicativo, o que faz a leitura mais fácil. Aqui em Marcos alguns manuscritos trataram
o problema de forma similar.
O que provavelmente resulta mais fácil e melhor — e, afinal de contas, sem resultar numa construção
grega tão estranha — é considerar os dois particípios do v. 40 como pertencentes à nova oração, cujo
sujeito seria o pronome demonstrativo ο_τοι, com os dois particípios em aposto, sendo λήμψονται o
verbo predicativo, e κρίμα o complemento deste último.
Marcos (William Hendriksen) 652
capítulo intitulado “The Priest, Purgatory, and the Poor Widow’s Cow”
no livro de C. Chiniquy. 601
f. Buscavam o louvor dos homens, “…e, para o justificar, 602 fazem
longas orações”. O propósito destas quase intermináveis orações era
atrair a atenção sobre si mesmos (cf. 1Ts. 2:5, 6). A única coisa que
buscavam era ser honrados pelos homens.… Mas, era realmente isto
tudo? A proximidade gramatical de “devoram as casas das viúvas” e
“fazem longas orações” levou alguns603 a sugerir que entre estas duas
atividades havia uma estreita relação: devoram as casas das viúvas e para
cobrir sua maldade fazem longas orações. Quanto mais oram pelas
viúvas (ao menos em sua presença) mais as devoram! Cada leitor pode
decidir por si mesmo se há ou não suficiente evidência em favor desta
interpretação. Mesmo sem contar com isto, a maldade que aqui se
condena era escandalosa. Quanto a “longas orações”, veja-se CNT sobre
Mt. 6:7.
Como o retumbar de um trovão, assim cai a condenação sobre estes
hipócritas:
40b. estes sofrerão juízo muito mais severo, um castigo mais
severo, uma transbordante condenação.
As pessoas que aqui se descreve com grande riqueza de detalhes
eram os estudantes, intérpretes e mestres da lei. Ninguém melhor que
eles tinham mais razões para conhecer que Deus requer humildade,
sinceridade e amor. Para esta classe de gente a retribuição vai ser muito
mais severa.

Lições que ensina este breve parágrafo


a. Jesus adverte contra o anelo pecaminoso de querer ser “alguém”,
de querer chegar a ser proeminente, receber honra acima de todos os

601
Fifty Years in the Church of Rome (Nova York, Chicago, Toronto, 1886), pp. 41–48.
602
Em Jo. 15:22, não obstante, o significado de πρόφασις é desculpa válida.
603
Vejam-se as traduções de Williams, Beck, Phillips; também Lenski, Op. cit., p. 348.
Marcos (William Hendriksen) 653
outros. O maior é aquele que está disposto a ser o menor, isto é, a servir
(Mc. 10:44, 45).
b. Censura todo fingimento na religião. O verdadeiro seguidor de
Cristo não é pretensioso. É como as crianças (Mc. 10:15).
c. Condena o uso da religião como meio para obter lucros (Mc.
11:17; 1Tm. 6:5)
d. Prediz que aqueles que, conhecendo a lei de Deus, perseveram
nos pecados e a filosofia do “maior”, da hipocrisia, da simonia, estes
receberão um castigo muito mais oneroso (Am. 3:2; Lc. 12:47, 48; At.
8:9–24).
e. Revela-nos que seu olhar escrutinador transpassa o véu com que
estes estelionatários piedosos, tratam de esconder suas verdadeiras
intenções (Sl 139:1–6; Jo. 2:25; 21:17; Hb. 4:13).
f. A verdadeira solução para todos está no Salmo 139:23, 24.

Mc. 12:41–44 - A oferta de uma viúva


Cf. Lc. 21:1–4

Esta é uma das poucas peças do material dos Evangelhos que


aparece somente em Marcos e Lucas (veja-se CNT sobre Mateus p. 29).
O relato de Lucas dá a impressão de ser um breve resumo de Marcos, e
não muito mais. É muito fácil de entender que o compreensivo e amado
médico (Cl. 4:14) não queria omitir esta história que de forma tão
notável cumpriu o propósito de descrever a Jesus como o compassivo
Sumo Sacerdote.
Dificilmente passa inadvertida a estreita relação entre o relatório
precedente e este. A relação é dupla: a. temporal: embora o momento
exato não se indique, parece razoável inferir que depois que Jesus
pronunciou seu quinto discurso, quer dizer, os sete ais, reproduzidos em
Mt. 23 e brevemente resumidos em Mc. 12:38–40 (cf. Lc. 20:45–47),
tomasse um breve descanso durante o qual “observa” as pessoas
conforme indica Marcos 12:41; e b. de conteúdo: o mesmo amante
Marcos (William Hendriksen) 654
Salvador, que acaba de denunciar os escribas que “devoram as casas das
viúvas” (Mc. 12:40), mostra por meio de Seu próprio exemplo, como é
preciso tratar as viúvas. Deve ajudá-las e elogiar cada vez que isto
corresponda.
41. E, estando Jesus assentado defronte da arca do tesouro,
observava a maneira como a multidão lançava o dinheiro na arca do
tesouro [RC].
A frase “defronte da arca do tesouro” deu origem a diferentes
interpretações. Mas veja-se o desenho da planta baixa do templo p. 453.
Consulte-se também o que se disse com relação ao Átrio das Mulheres,
com suas três arcas em forma de trombetas, quer dizer, receptáculos para
as ofertas e outros donativos. Bem pôde ter sido, portanto, que Jesus Se
tenha assentado perto da entrada deste átrio talvez nas proximidades da
Porta Formosa. Desse lugar, era possível ver alguns desses
receptáculos. 604 Jesus, então, olhava ou observava 605 cuidadosamente
como a multidão lançava seu dinheiro 606 no tesouro, quer dizer, dentro
das urnas. Em certo sentido, esteve fazendo isto mesmo desde então, e
ainda o faz. Veja-se At. 5:1–1 1; 2Co. 9:6, 7; Hb. 4:13.
Ora, muitos ricos depositavam grandes quantias [RA]. Cada
receptáculo estava marcado com letras do alfabeto hebraico para que
assim a pessoa pudesse saber especificamente a que uso se destinava o
dinheiro que ali se depositava: se para o tributo do templo, para os
sacrifícios, o incenso, a lenha, ou qualquer outro propósito. Jesus
observava que muitos ricos lançavam grandes quantidades. Está certo, os
que têm muitos bens devem dar grandes somas. Não havia nada mau
nisto. A Bíblia faz menção de vários ricos daqueles que dificilmente se
poderia pensar que dessem jamais grandes somas para alguma boa causa
604
O termo γαζοφυλακε_ον consta de duas partes: o termo γάζα, tesouro em persa, e φυλακή,
custódia, segurança; em consequência, uma urna ou cofre onde os tesouros ou as doações se podiam
lançar e guardar com segurança.
605
_θεώρει, impf. at. 3ª. pes. sing. de θεωρέω. referente às distinções precisas entre as várias palavras
que se usam no Novo Testamento para ver, consulte-se CNT sobre João, p. 90, nota 33.
606
χαλκός, veja-se mais acima, sobre Mc. 6:8.
Marcos (William Hendriksen) 655
(1Sm. 25:2, 3, 10, 11; Lc. 12:16–19; 16:19–21). Entretanto, segundo o
critério de Jesus, não era a quantidade do donativo o que mais importava,
mas o coração do doador.
Isto se vê claramente no versículo
42. Vindo, porém, uma 607 viúva pobre, depositou 608 duas
pequenas moedas correspondentes a um quadrante.
Segundo o original, esta viúva lançou dois lepta, que significa um
quadrante. 609 Um quarto do que? De um dólar? NÃO, de um asse ou
asarion. Um asarion valia dezesseis avos de um denário! O denário era o
salário comum de um dia de trabalho para um operário (Mt. 18:28; 20:2,
9, 13; 22:19). Devido às constantes variações monetárias é impossível
indicar com certeza seu equivalente exato em unidades monetárias
atuais. Se o denário se considerasse como o equivalente de 16 a 18
centavos de dólar, então o asarion valeria ao redor de um centavo, o
quarto ou “quadrante” só 1/4 de centavo, e o “lepton” somente 1/8 de
centavo.
As pequenas moedas de cobre que a viúva lançou na urna eram
literalmente “muito delgadas”. Não só eram muito pequenas, mas
também muito levianas. É interessante observar que a palavra inglesa
leaf (folha) está relacionada com lepton. As duas lepta juntas devem ser
consideradas como uma fração de qualquer das moedas de menor valor
na atualidade.
Calculado humanamente, o que aquela viúva deu foi insignificante.
Entretanto, aquilatado por normas divinas, sua contribuição era muito
valiosa, o que é evidente pelos versículos
43, 44. E, chamando os seus discípulos, disse-lhes: Em verdade vos
digo que esta viúva pobre depositou no gazofilácio mais do que o fizeram

607
μία = artigo indefinido.
608
Note-se o notável contraste entre, por um lado, βάλλει e _βαλλον (v. 41), e, pelo outro, _βαλε (v.
42). O presente e o imperfeito descrevem o que sucedia durante o tempo todo. Estas formas verbais
descrevem o fundo da história. O aoristo constatativo diz o que fez a viúva repentinamente.
609
O termo grego κοδ ράντης é tomado do Latim quadrans.
Marcos (William Hendriksen) 656
todos os ofertantes. Porque todos eles ofertaram do que lhes sobrava; ela,
porém, da sua pobreza deu tudo quanto possuía, todo o seu sustento.
Note-se o seguinte:
a. O que esta viúva fez foi tão importante aos olhos de Jesus que Ele
reuniu os Seus discípulos para que se fixassem nisso. Em outras ocasiões
muito importantes (Mc. 3:13; 6:7; 8:1, 34; 10:42) Jesus já tinha chamado
os Seus discípulos para falar com eles. Esta foi mais uma vez.
b. Concorda com isto o fato de que o Mestre introduz Seu ensino
dizendo, “Em verdade vos digo” para mostrar que o que está prestes a
dizer tinha grande significado e que eles deviam tomá-lo muito a sério.
Veja-se sobre Mc. 3:28.
c. “Esta viúva pobre depositou no gazofilácio mais do que o fizeram
todos os ofertantes”, disse Jesus. Aos Seus olhos as duas moedinhas de
cobre eram como diamantes resplandecentes. Poderíamos dizer: eram
semelhantes a talentos que depois de certo tempo duplicam seu valor
(Mt. 25:20, 22). Sim, dobraram-no e redobraram, porque sua ação, junto
com o comentário de Jesus, inspirou a milhares de pessoas a seguir seu
exemplo.
d. Se nos perguntamos, “O que foi que fez com que sua oferta fosse
tão preciosa?”, a resposta é que todos os outros tinham dado “de sua
abundância”, 610 mas ela “de sua pobreza”, de sua escassez ou
necessidade. 611
Diríamos que ao menos poderia ter guardado uma daquelas
pequenas e magras moedinhas de cobre para ela? Pois não, deu as duas.
Na realidade, ela sabia que Deus não a desampararia, e sacrificou tudo.
Estas duas moedas representavam tudo o que tinha para seu sustento.612

610
_κ το_ περισσεύοντος α_το_ς; literalmente, “pelo que lhes estava exuberando”. Veja-se CNT sobre
Efésios, p. 90, nota 25.
611
O substantivo _στέρησις, que no Novo Testamento aparece somente aqui e em Fp. 4:11, esteja
relacionado com o verbo _στερέω. Veja-se mais acima, sobre 10:21, nota 477.
612
Aqui (em Mc. 12:44; Lc. 21:4) e também em Lc. 8:43 (se for autêntico) βίος indica meios de
subsistência, sustento, manutenção. Em Lc. 8:14 a referência parece ser à vida presente e seus
prazeres; em Lc. 15:12, 30 à propriedade. Algo similar é o significado de βίος em 1Jo. 3:17 (e talvez
Marcos (William Hendriksen) 657
Como Jesus soube disso? Para um tratamento mais a fundo deste tema (a
interação entre a natureza humana e divina de Jesus), veja-se sobre Mc.
2:8; 5:32; 9:33, 34 e 11:2, 13. O ponto que se deve ressaltar aqui é que
esta pobre viúva deu de uma forma muito generosa e espontânea. Deu
“com fé”. É por esta razão que Jesus a elogia tão profusamente.

Lições
a. Não é o montante da oferta o que mais importa, e sim o coração
(atitude, propósito) do doador.
b. Surpreendentemente belo é o que a Escritura ensina com relação
à forma em que Deus provê às viúvas:
(1) Deus é o “Pai de órfãos e defensor das viúvas” (Sl 68:5). Elas
estão sob Seu cuidado e proteção especiais (Êx. 22:23; Dt. 10:18; Pv.
15:25; Sl 146:9).
(2) Por meio do dízimo e “a espiga esquecida” provê para elas (Dt.
14:29; 24:19–21; 26:12, 13). Nas festas que Deus instituiu, elas também
devem alegrar-se (Dt. 16:11, 14).
(3) Abençoa os que as ajudam e as honram (Is. 1:17, 18; Jr. 7:6;
22:3, 4).
(4) Deus repreende e castiga os que as danificam (Êx. 22:22; Dt.
24:17; 27:19; Jó 24:3, 21; 31:16; Sl 94:6; Zc. 7:10; Ml. 3:5).
(5) São objeto da tenra compaixão de Cristo, o que se vê claramente
nos Evangelhos, especialmente o Evangelho segundo Lucas (Mc. 12:42,
43; Lc. 7:11–17; 18:3, 5; 20:47; 21:2, 3).

em 1Jo. 2:16): bens materiais, posses materiais, enquanto que em 2Tm. 2:4 a referência é
provavelmente à vida civil (em contraste com a militar). Em 1Tm. 2:2 a referência é à vida cotidiana,
tal como vive-se dia a dia.
Quanto à distinção entre βίος e ζωή, em geral ζωή é a vida mediante a qual vivemos, enquanto que
βίος é a vida que vivemos. No Novo Testamento ζωή refere-se geralmente à vida mais elevada, como
a salvação, a vitória sobre o pecado e suas consequências. Para mais detalhes a respeito de ζωή veja-se
CNT sobre Jo. 1:4 e 3:16, pp. 75, 76, 152, 153. Sobre a distinção entre, βίος e ζωή veja-se também R.
C. Trench, Op. cit., parágr. xxvii.
Marcos (William Hendriksen) 658
(6) A igreja primitiva não esquecia delas. Os primeiros diáconos
foram nomeados devido ao fato de que se descuidou certas viúvas, de
modo que daí em diante as viúvas recebessem melhor cuidado (At. 6:1–
6). E segundo Tiago, uma das manifestações de uma religião pura e sem
mancha é esta: “Visitar os órfãos e às viúvas em suas tribulações” (Tg.
1:27). Veja-se também 1Tm. 5:3–8.

Resumo do Capítulo 12

“Com que autoridade fazes estas coisas? Ou quem te deu tal


autoridade para as fazeres?” é a pergunta que tinham feito os principais
sacerdotes, escribas e anciãos a Jesus. Em resposta Jesus lhes perguntou,
“O batismo de João era do céu ou dos homens? Respondei!”
Resultado: desconcerto deles, porque se tinham endurecido contra a
verdade.
Com o fim de deixar em evidência aqueles dirigentes e ao mesmo
tempo adverti-los, Jesus lhes relata a parábola dos lavradores maus (cap.
12). Os lavradores não só recusaram entregar ao dono o que lhe era
devido, mas inclusive maltrataram cada vez mais aos seus servos.
Finalmente, não duvidaram em matar o filho único do dono, com
terríveis consequências para eles mesmos.
Os adversários de Cristo captaram a mensagem, pois segundo o
significado e intenção da parábola, eles estavam claramente incluídos
entre os lavradores maus. De modo que queriam prender Jesus, mas
tinham medo da multidão (vv. 1–12).
Logo trataram de lhe surpreender em suas palavras, em seu ensino.
Fazem-lhe três perguntas, como segue:
a. “É lícito pagar tributo a César?” A pergunta foi feita pelos
fariseus e os herodianos. Jesus responde: “Dai a César o que é de César e
a Deus o que é de Deus”.
b. Os saduceus, que rejeitavam a doutrina da ressurreição, fizeram-
Lhe esta pergunta: Um após outro, sete irmãos se casaram
Marcos (William Hendriksen) 659
sucessivamente com a mesma mulher, e logo morreram; na ressurreição,
de qual deles será ela esposa? Jesus lhes respondeu: “Quando
ressuscitarem de entre os mortos, nem casarão, nem se darão em
casamento … Ele não é Deus de mortos, e sim de vivos”.
c. “Qual é o principal de todos os mandamentos?” perguntou um
escriba. Resposta: “O principal é: Ouve, ó Israel, o Senhor, nosso Deus,
é o único Senhor! Amarás, pois, o Senhor, teu Deus, de todo o teu
coração.… Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Quando o escriba
manifestou seu perfeito acordo, Jesus lhe disse: “Não estás longe do
reino de Deus”.
A pergunta do próprio Cristo foi, Como podem os escribas dizer
que o Cristo é tão somente o filho de Davi, embora no Salmo 110 Davi,
movido pelo Espírito Santo, chama-lhe seu Senhor? Implicação: Este
“Filho de Davi” não é outro senão o Filho de Deus; portanto, é o senhor
de Davi. Tudo isto se acha nos versículos 13–37.
Depois de atacar a doutrina dos escribas, Jesus denuncia a seguir a
prática corrupta deles. Sua crítica não é dirigida contra todos os escribas
mas sim contra este grupo. Ele os aponta como vangloriosos e falsos. Às
vezes inclusive são cruéis com as viúvas, “devoram as casas das viúvas”
(vv. 38–40).
Qual é, então, a atitude correta para com as viúvas? Isto se vê no
pequeno parágrafo final (vv. 41–44), onde Jesus elogia a viúva pobre que
lançou no tesouro “duas moedas de cobre muito pequenas, que valiam só
a fração de um centavo”. Era tudo o que tinha para o seu sustento.
Chamando os Seus discípulos, Jesus lhes disse: “Em verdade vos digo
que esta viúva pobre depositou no gazofilácio mais do que o fizeram
todos os ofertantes. Porque todos eles ofertaram do que lhes sobrava; ela,
porém, da sua pobreza deu tudo quanto possuía, todo o seu sustento”.
Marcos (William Hendriksen) 660
MARCOS 13 - Discurso de Cristo sobre os últimos tempos
Mc. 13:1–4 - A ocasião. Predição da destruição do templo
Cf. Mt. 24:1–3; Lc. 21:5–7

Com palavras de elogio para uma pobre mas generosa viúva, Jesus
se afasta do templo provavelmente avançada hora da tarde da terça-feira.
Bem pôde ter sido esta sua última saída, embora à vista de Lucas 21:37
não podemos estar completamente seguros disto.
Na companhia de Seus discípulos, Jesus Se dirige ao monte das
Oliveiras. O discurso a respeito das últimas coisas que pronunciou
naquela ocasião acha-se de maneira mais completa em Mateus 24 e 25.
Mateus 24:1–35 corre em estreito paralelismo com Marcos 13:1–31.
Mateus 24:36 é um paralelo de Marcos 13:32, e inclusive Mateus 24:37–
44 tem algo, embora pouco, em comum com Marcos 13:33–37, como se
verá ao estudar os versículos de Marcos. Com relação a Lucas, o paralelo
de Mateus 24:1–35, acha-se em Lc. 21:5–33 (ou de forma mais geral em
Lc. 21:5–36).
Ao comparar as seis seções em que dividimos Marcos 13 (veja-se o
CNT sobre Mateus pp. 889–891), vê-se claramente que em geral, as seis
seções de Marcos correm paralelamente com as primeiras seis da dez
seções de Mateus. Quanto apareçam variações importantes, se tratarão na
análise das correspondentes seções individuais de Marcos.
1. Ao sair Jesus do templo, disse-lhe um de seus discípulos:
Mestre! Que pedras, que construções!
Marcos diz, “um de seus discípulos”. Cf. com Mateus “seus
discípulos”, e com Lucas “alguns”, querendo dizer provavelmente
“alguns de seus discípulos”. Os caçadores de discrepâncias podem
acrescentar estas variações a seus longas listas de contradições nos
Evangelhos. Na realidade há várias formas para solucionar este pequeno
enigma: a. Um discípulo — Pedro talvez? — entusiasmado diante da
grandeza e beleza do templo, pôde ter sido o primeiro em romper em
Marcos (William Hendriksen) 661
exuberantes exclamações; outros o seguiram, até todos unir-se; ou b. a
voz de um deles pôde ter sido a mais forte.
Além disso, Marcos relata que se disse a Jesus que reparasse nas
“grandes pedras e os magníficos edifícios”, Mateus fala dos “edifícios”,
e Lucas faz ênfase nas “belas pedras e ofertas votivas” como os objetos
que causaram as entusiastas exclamações dos discípulos. É evidente que
todos aqueles objetos chamativos estavam incluídos.
No comentário sobre Mc. 11:15 — veja-se a Descrição do Templo
— dissemos o suficiente a respeito destas “grandes pedras e magníficos
edifícios” que formavam o complexo do templo, assim que não é
necessário acrescentar mais aqui.
A razão pela qual os discípulos estavam pensando neste preciso
momento no templo, pôde ter sido que Jesus acabava de dizer: “Eis que a
vossa casa vos ficará deserta” (Mt. 23:38; cf. Lc. 13:35). Embora seja
provável que a expressão “vossa casa” fizesse referência a Jerusalém,
sem dúvida seu templo estava também incluído. É como se os discípulos
estivessem dizendo: “É verdade que também esta gloriosa estrutura vai
ficar totalmente abandonada?” Na realidade, a resposta de Jesus equivale
a “Não somente abandonada, e sim totalmente destruída”.
2. Mas Jesus lhe disse: Vês estas grandes construções? Não
ficará pedra sobre pedra, que não seja derribada. 613
A figura hiperbólica “não ficará pedra sobre pedra”, expressa que a
destruição predita seria total.
Isto se cumpriu quando os judeus rebelaram-se contra os romanos e
Tito, filho do imperador Vespasiano (69–79 d.C.), tomou Jerusalém. O
templo foi destruído e se crê que pereceram mais de um milhão de
judeus que se tinham aglomerado na cidade. Israel cessou de existir
613
Note-se o paralelismo da construção: a. λίθος _π_ λίθον, b. o ritmo dos dois aoristos passivos
subjuntivos _φεθ_ y καταλυθ_, e c. o duplo ο_ μή, que em cada caso precede ao verbo acompanhante.
Não evoca este estilo o arameu subjacente falado por Jesus? As línguas semitas estão cheias de
paralelismos similares. A fraseologia parece ser um eco de material muito primitivo. Mateus, neste
caso, não preservou um ritmo similar (veja-se 24:2 no original). Lucas o tem feito só até certo ponto.
Embora use futuros indicativos passivos contrapostos, deixou de lado o rasgo do duplo ο_ μή.
Marcos (William Hendriksen) 662
quanto a entidade política. Quanto a nação especialmente favorecida
pelo Senhor, tinha chegado no final de seu caminho até muito tempo
antes do começo da guerra dos judeus.
Josefo foi um ex-combatente e testemunha ocular dos fatos.
Começou a escrever sua Guerra Judaica quase imediatamente depois
que a luta entre judeus e romanos teve terminado. Em geral pode-se dizer
que sua narração é fidedigna, embora não podemos ignorar uma marcada
tendência pró-romana. Dos sete “livros” em que se divide esta obra,
devem-se ler especialmente os livros IV–VI. Há umas quantas passagens
de Josefo que podem ilustrar o cumprimento de Marcos 13:2 (cf. Mt.
22:7; 24:2; Lc. 21:6, 20–24), e também de toda a passagem:
“Mas aquele edifício (o templo de Jerusalém) tinha sido condenado
por Deus às chamas. No transformar dos tempos o dia fatal tinha
chegado, em dez do mês de Lous, o mesmo dia em que anteriormente o
rei de Babilônia o tinha queimado. … Um dos soldados, sem esperar
ordens nem sentir horror por tão espantosa empresa, mas movido por
algum impulso sobrenatural, tomou uma haste dentre as madeiras
ardentes e, elevado por um de seus companheiros, lançou o ardente
dardo através de uma janela de ouro.… Quando a labareda levantou-se,
entre os judeus saiu um grito tão agudo como a própria tragédia … o
objeto que com tanto cuidado tinham guardado ia rumo à ruína” (VI.
250–253).
“Enquanto o santuário ardia … não houve amostras de piedade para
o ancião nem respeito pela posição; ao contrário, crianças e anciãos,
leigos e sacerdotes foram igualmente massacrados” (VI. 271).
“O imperador ordenou que toda a cidade e o santuário fossem
arrasados até o solo, deixando só as torres mais altas, Fasael, Hippicus, e
Marianne, e essa parte do muro que encerra a cidade pelo lado oeste.…
Todo o resto do muro que rodeava a cidade foi tão completamente
arrasado até o solo que não ficou razão alguma para que os futuros
visitantes do lugar pensassem que jamais tivesse sido habitada” (VII. 1–
3).
Marcos (William Hendriksen) 663
Além de Josefo, veja-se também a vívida descrição em The Revolt
em T. Kollek e M. Pearlman, Op. cit., 125–135.
3, 4. No monte das Oliveiras, defronte do templo, achava-se Jesus
assentado, quando Pedro, Tiago, João e André lhe perguntaram em
particular: Dize-nos quando sucederão estas coisas, e que sinal haverá
quando todas elas estiverem para cumprir-se.
La variedad que existe entre los relatos se pone otra vez de
manifiesto. Los tres nos dicen que algunos le hicieron a Jesús una
pregunta. Le preguntaron “privadamente”, lejos de la multitud. Lucas
simplemente dice que “ellos” le preguntaron, refiriéndose obviamente a
los discípulos. Mateo dice, “los discípulos vinieron a él privadamente,
diciendo (o: preguntando) …”. Marcos menciona los nombres de los
discípulos que tomaron la iniciativa para hacer la pregunta. Fueron los
tres — Pedro, Jacobo, y Juan — a quienes se les ve juntos en varias
ocasiones (5:37; 9:2; 14:33), más Andrés, (Jn. 1:40–42).
Como siempre, Marcos es aquí también el más descriptivo. No
solamente dice, como Mateo, que Jesús y sus discípulos estaban sentados
en el monte de los Olivos, sino que añade un pequeño detalle, “frente al
templo”.
Podemos imaginar como, sentados ali e olhando para além do vale,
descobria-se diante dos olhos do pequeno grupo, um panorama
fascinante. Ali estava o teto do templo, banhado num mar de dourada
glória. Estavam aqueles belos átrios com seus terraços e seus claustros
de mármore, brancos como a neve, que pareciam brilhar e cintilar contra
a luz do sol em seu ocaso. E pensar, então, que toda aquela glória teria
que perecer! A mente dos discípulos dava voltas e sofria vertigens ao
refletir naquela misteriosa e solene predição.
Toda aquela glória! “Bela província, a alegria de toda a terra, é o
monte Sião … a cidade do grande Rei … Andem ao redor de Sião, e
rodeiem; contem suas torres. Considerem atentamente seu antemuro,
olhem seus palácios” (Sl 48:2, 12, 13). Naturalmente, o mesmo podia-se
dizer com relação ao templo que o rei Herodes I tinha começado a
Marcos (William Hendriksen) 664
ampliar em grande escala e a adornar profusamente. Veja-se mais acima
com relação a Mc. 11:15. “Não houve no tempo antigo nem um edifício
sagrado igual ao templo, nem quanto à localização nem quanto à
magnificência”. 614 A literatura rabínica não é especialmente favorável a
Herodes. Entretanto, ao referir-se ao templo de Herodes, afirma: “Quem
nunca haja vista o edifício de Herodes jamais em sua vida viu uma bela
construção”.
Podemos imaginar os discípulos cravando seus olhos no “orgulho
de Jerusalém” e em profundo silêncio e tristeza meditando sobre as
solenes palavras pronunciadas por Jesus. Finalmente, os quatro rompem
o silêncio. Aproximando-se de Jesus perguntam: “Dize-nos quando
sucederão estas coisas, e que sinal haverá quando todas elas estiverem
para cumprir-se”
À luz do contexto que imediatamente precede esta passagem de
Marcos, as palavras, “Quando sucederão estas coisas?” pareciam referir-
se à destruição da cidade e do templo, e a nada mais. Entretanto, um
segundo olhar a essas palavras — note-se especialmente “todas estas
coisas” — leva-nos a um significado mais amplo e compreensivo. Além
disso, ao responder, Jesus não se limita de modo algum aos
acontecimentos que deviam ocorrer por volta d ano 70 d.C. Vejam-se
especialmente os versículos 6, 10, 21, 26, 27. Seu olhar profético
esquadrinha os séculos vindouros e claramente inclui sua própria e
gloriosa parousia (segunda vinda) entre as coisas preditas. Em conjunto,
então, parece melhor considerar a pergunta, conforme a expõe Marcos (e
veja-se também Lc. 21:7), como uma abreviação do que Mateus escreve
de forma mais ampla, a saber, “Dize-nos quando sucederão estas coisas e
que sinal haverá da tua vinda e da consumação do século”. Talvez se
poderia dizer que Mateus, tendo diante de si o que Marcos tinha escrito,
explica-o mediante uma ampliação.

614
A. Edersheim, The Temple, p. 28.
Marcos (William Hendriksen) 665
A própria forma em que Mateus formula a pergunta, indica que de
acordo com a interpretação que estes discípulos (que falam pelo resto
dos Doze) dão às palavras de Jesus, a queda de Jerusalém e
especialmente a destruição do templo, significaria o fim do mundo. Este
modo de pensar em parte era errôneo, como Jesus vai explicar. Entre a
queda de Jerusalém e a culminação desta era ou segunda vinda de Jesus,
teria que mediar um período de tempo muito extenso. Entretanto, os
discípulos não estavam totalmente errados; havia efetivamente uma
conexão entre o juízo que se devia executar sobre a nação judaica, e o
juízo final no dia da consumação de todas as coisas. O primeiro era um
tipo, uma prefiguração, um prenúncio do segundo.
A predição da destruição da cidade e do templo (embora
especialmente deste último) e a pergunta que os quatro discípulos
fizeram, servem para indicar a ocasião ou o marco da resposta de Jesus.
Em outras palavras, entregam o marco de seu discurso sobre as últimas
coisas. Quanto à pergunta dos discípulos a respeito do “sinal”, veja-se
sobre os vv. 14 e 26.

Mc. 13:5–13 - O começo dos ais ou dores de parto


cf. Mt. 10:17–22; 24:4–14; Lc. 21:8–19

Há uma grande semelhança entre toda esta seção e Lucas 21:8–19.


As principais diferenças são:
a. Além dos terremotos e fomes, como em Marcos e Mateus, Lucas
menciona pestilências, terrores e sinais do céu. Além disso, segundo o
relato de Lucas, os sinais e os terremotos serão “grandes”. Seguem as
adições de Lucas (b., c. e d.):
b. Aos discípulos esperam aflições não só nas sinagogas mas
também nas prisões.
c. Os adversários não poderão contradizer os filhos perseguidos de
Deus.
d. Não perecerá nem um cabelo de suas cabeças (cf. Mt. 10:30).
Marcos (William Hendriksen) 666
e. Por outro lado, Lucas não tem nenhum paralelo a Marcos 13:10,
nem a Mc. 13:13b. Centralizando-nos agora na primeira parte desta
seção, quer dizer, em Marcos 13:5–8, observamos que esta passagem e
Mateus 14:4–8 são quase idênticas, e que Lucas 21:8–11 é um paralelo
muito semelhante.
5–8. Então, Jesus passou a dizer-lhes: 615 , 616 Vede que ninguém vos
engane. 617 Muitos virão em meu nome, dizendo: Sou eu; e enganarão a
muitos. Quando, porém, ouvirdes falar de guerras e rumores de guerras,
não vos assusteis; 618 é necessário assim acontecer, mas ainda não é o fim.
Porque se levantará nação contra nação, e reino, contra reino. Haverá
terremotos 619 em vários lugares e também fomes. Estas coisas são o
princípio das dores.
Jesus passa agora a corrigir a inferência errônea de Seus discípulos.
Mostra-lhes que “nem todo o que parece sinal do fim do mundo é na
realidade um sinal”. Em outras palavras, também há sinais que só em
sentido muito geral merecem tal nome. Cada vez que estes eventos
isolados são interpretados como sinais infalíveis de que esta era chega ao
seu fim, merecem o nome de “sinais errôneos”. É assim como Jesus
prediz a vinda dos que dirão, “Eu sou o Cristo”. Estes enganarão a
muitos. Os que persistem em seu desvio demonstram que jamais
pertenceram ao verdadeiro rebanho de Cristo (1Jo. 2:19; cf. 1Co. 11:19).
Sempre houve enganadores e enganados.
O mesmo se pode dizer com relação a “guerras e rumores de
guerras” (Mc. 13:7). Quando Jesus pronunciava estas palavras, o império

615
Ou: disse.
616
Este poderia ser outro caso do uso pleonástico de _ρχω. Se for assim, a simples tradução, “Jesus
disse” seria suficiente. Veja-se sobre 1:45; cf. 6:7, nota 233.
617
πλανήσ_ aor. subj. at. 3ª. pes. sing. de πλανάω, enganar, desviar, fazer errar. No v. 6, o mesmo
verbo aparece com a forma de πλανήσουσι fut. ind. at. 3ª. pes. pl. Certas esferas celestiais recebem o
nome de “planetas”, quer dizer, “os que percorrem”, para distinguir os das chamadas estrelas “fixas”.
O verbo aparece umas quarenta vezes no Novo Testamento. É especialmente frequente em Mateus e
no livro de Apocalipse. Em Marcos se acha também em 12:24, 27; 13:6.
618
θροε_σθε, pres. imper. pas. 2ª. pes. pl. de θροέω, ser perturbado, alarmado.
619
Para σεισμός, pl. σεισμοί veja-se CNT sobre Mt. 8:24 e 21:10 (incluindo a nota 724).
Marcos (William Hendriksen) 667
romano desfrutava de um longo período de paz. Mas umas quatro
décadas mais tarde a confusão política havia de comover ao grande
império de um a outro extremo, de modo que Roma veria quatro
imperadores num ano: Galba, Otão, Vitélio, e Vespasiano. Mas aquelas
violentas revoltas e insurreições, por mais que esforcemos a imaginação,
não podem constituir indicações claras da imediata volta do Senhor. Isto
se torna evidente imediatamente se for considerado o fato de que as
guerras e os rumores de guerra não cessaram com a queda de Jerusalém.
Esta profecia cumpre-se através dos séculos: “se levantará nação contra
nação, e reino, contra reino” (v. 8a). Certo autor contou até trezentas
guerras na Europa durante os últimos trezentos anos. E essas guerras
foram aumentando em intensidade. É perfeitamente claro que quando se
escolhe qualquer guerra em particular a modo de ajuda para os
“fixadores de datas”, outro “falso sinal” se produziu.
Jesus fala também de “terremotos em vários lugares e também
fomes” (v. 8b). Estas perturbações no âmbito físico são indubitavelmente
sombras e ilustrações do que, em escala muito mais extensa e intensa,
ocorrerá na natureza no final da era; com a condição de que no sentido
mais geral não podem qualificar-se como sinais propriamente ditos.
Nenhum deles pôde dar a ninguém o direito de fazer predições com
relação à data da queda de Jerusalém ou ao tempo da Parousia (segunda
vinda de Cristo). É verdade que no transcurso dos anos 60–80 d.C. o
império foi assolado por pestilências, incêndios, furacões e terremotos
conforme assinala Renan em L’Antichrist. Produziu-se a violenta
erupção do Vesúvio no verão do ano 79, destruindo Pompeia e seus
arredores. Mas, segundo se entende claramente pela oração anterior,
estas catástrofes não estavam circunscritas à década precedente à queda
de Jerusalém no ano 70 d.C. Além disso, através dos séculos houve
outros violentos terremotos. Os historiadores e filósofos antigos — tais
como Tucídides, Aristóteles, Estrabão, Sêneca, Lívio e Plínio —
descrevem fenômenos sísmicos similares em seus dias. E já pelo ano
1668 Robert Hooke escreveu uma obra intitulada Discourse on
Marcos (William Hendriksen) 668
Earthquakes. Certo autor enumerou não menos de setecentas
perturbações desta natureza, grandes e menores, ocorridas no século
dezenove! Também produzem-se fomes constantemente.
Agora, com relação a eventos tais como os aqui descritos, Jesus diz
no versículo 8c, “Estas coisas são [tão somente] o principio das dores de
parto.” Marcam o começo. Não indicam o fim. Portanto, não há que
alarmar-se.
Apesar desta clara advertência que nosso Senhor deu aos Seus
discípulos, muitos membros das igrejas em nossos dias enchem-se de
admiração diante do ministro ou evangelista que fala eruditamente sobre
“Os sinais dos tempos”, e se esforça em demonstrar à audiência, “com
base na profecia”, que esta ou aquela terrível batalha, ou terremoto
destrutivo, ou fome devastadora é o “sinal” infalível da iminente volta de
Cristo.
Naturalmente, os eventos aqui indicados têm seu significado. São
degraus que levam rumo à meta final. Por meio deles o fim da era se
prefigura e se vê mais perto, e o plano eterno de Deus segue adiante.
Além disso, quando vemos que para o final da presente dispensação
estas perturbações ocorrerão juntas (Mt. 24:33), que provavelmente
serão mais numerosas, vastas e temíveis do que nunca antes o foram (Lc.
21:11, 25, 26), e que terão que suceder com relação à grande tribulação
que introduzirá a Parousia, concluiremos que existe razão para qualificar
estas perturbações catastróficas finais como “sinais concorrentes ou
acompanhantes”.

O parágrafo de Marcos 13:9–13 tem seu paralelo em Mateus e


Lucas como segue:
Marcos (William Hendriksen) 669
Marcos 13 Mateus 10 Mateus 24 Lucas 21
a. Os discípulos de Cristo levados diante das autoridades
v. 9 vv. 17, 18 v. 9a vv. 12, 13

b. O evangelho será pregado a todas as nações


v. 10 v. 14

c. O Espírito Santo dá aos discípulos palavras de sabedoria


v. 11 vv. 19, 20 vv. 14, 15

d. Tensões familiares
v. 12 v. 21 v. 16

e. “Odiados por todos”


v. 13a v. 22a v. 9 v. 17

f. “Aquele, porém, que perseverar até o fim, esse será salvo”

v. 13b v. 22b v. 13

9. Estai vós de sobreaviso, porque vos entregarão aos tribunais


e às sinagogas; sereis açoitados,. 620 e vos farão comparecer 621 à
presença de governadores e reis, por minha causa, para lhes servir
de testemunho.
Em Mateus 24:9a lemos, “Então, sereis atribulados, e vos matarão”.
Em Mateus 10:17, 18 - “E acautelai-vos dos homens; porque vos
620
δαρήσεσθε, fut. ind. pas. 2ª. pes. pl. de δέρω; veja-se sobre 12:3, 5, incluindo nota 572.
621
σταθήσεσθε, fut. ind. pas. 2ª. pes. pl. de _στημι; em consequência: lhes fará estar; significando:
terão que comparecer.
Marcos (William Hendriksen) 670
entregarão aos tribunais e vos açoitarão nas suas sinagogas; por minha
causa sereis levados à presença de governadores e de reis, para lhes
servir de testemunho, a eles e aos gentios”. Processos diante de
concílios, sinagogas, governadores e reis serão a sorte que os espera.
Quanto aos concílios, refere-se provavelmente aos tribunais locais
dos judeus, que culminavam no Sinédrio. Na sinagoga eram açoitados os
que o tribunal condenava por determinados crimes.
Certas fontes judaicas contêm regulamentos detalhados quanto a
estes açoites. Um juiz citaria uma passagem apropriada de Deuteronômio
ou dos Salmos, outro contaria os açoites (veja-se Dt. 25:1–3), um
terceiro pronunciaria um mandamento antes de cada açoite, etc. 622 Do
livro de Atos (22:19) sabemos que Saulo (= Paulo) de Tarso fez com que
os crentes recebessem este muito duro castigo. Depois de sua conversão,
ele mesmo seria objeto de semelhante tortura. Deixou escrito, “Dos
judeus cinco vezes recebi quarenta de açoites menos um” (2Co. 11:24).
O ministro da sinagoga (“o assistente”, Lc. 4:20) era a quem
correspondia a responsabilidade de dar os açoites.
Pelo que se refere aos “governadores”, lembre-se a Pôncio Pilatos,
Félix, e Festo; e quanto a “reis”, a Herodes Agripa I (At. 12:1) e a
Agripa II (At. 25:13, 24, 26). Inclusive a Herodes Antipas, que
tecnicamente não era rei, lhe dava este título às vezes (Mt. 14:9; Mc.
6:14). Foi Pôncio Pilatos quem sentenciou a Jesus a morrer na cruz,
depois que lhe teve enviado ao “rei” Herodes Antipas (Mc. 15:15; Lc.
23:6–12). O rei Herodes Agripa I matou a Tiago (filho de Zebedeu, e
irmão do apóstolo João; veja-se At. 12:1). Em Atos 25:13 vê-se que
Paulo foi conduzido diante do rei Agripa II e o procurador Festo. O
apóstolo deu um testemunho maravilhoso, como o fez anteriormente
diante do procurador Félix. Compreende-se que estes testemunhos foram
também do conhecimento de outros gentios, ou seja, daqueles que

622
Para mais detalhes sobre isto, veja-se o articulo de K. Schneider sobre μαστιγόω, no TDNT, vol.
IV, pp. 515–519.
Marcos (William Hendriksen) 671
estavam presentes ou dos que mais tarde ouviram o relato do que se
disse. Cf. Fp. 1:12, 13; 4:22. Assim as boas novas continuariam
estendendo-se.
De modo que, a. o cumprimento inicial desta profecia era questão
de um futuro iminente, como se torna evidente pelas condições e atitudes
existentes; e b. os detalhes quanto ao seu cumprimento posterior, estão
registrados no livro de Atos e nas epístolas. Vejam-se também Ap. 1:9;
2:8–11; 6:9–11; 12:6, 13–17; etc.
O mais importante de tudo é que Jesus disse que tudo isto sucederia
“por minha causa”. Quando alguém persegue um discípulo de Cristo,
persegue o próprio Cristo. Esta verdade estava tão profundamente
arraigada na mente e coração de Paulo (e através dele na consciência de
Lucas) que apesar de tudo o que possam variar as narrações a respeito da
conversão de Paulo, as palavras, “Saulo, Saulo, por que me persegues?”
acham-se nas três narrações (At. 9:4, 5; 22:7, 8; 26:14, 15). Isto significa
que a pessoa perseguida jamais está separada do amor de Cristo, nem do
consolo e a fortaleza que Cristo lhe comunica.
10. Mas é necessário que primeiro o evangelho seja pregado a
todas as nações.
Na passagem paralela de Mateus 24:14, lê-se: “E este evangelho do
reino será pregado em todo mundo, como testemunho a todas as nações,
e então virá o fim”.
Os seguintes pontos merecem atenção especial:
a. O “evangelho” é a mensagem de salvação pela graça mediante a
fé em Jesus Cristo. Com relação à seção especial sobre “O que é o
evangelho?”, veja-se CNT sobre Filipenses, pp. 94–98.
b. “Todas as nações”, “todo mundo”. Mateus 10:5; 15:24 são
passagens que meramente indicam que Deus quis que se proclamassem
as boas novas primeiro aos judeus e logo aos gentios. Apesar disto, deve
manter-se que desde o princípio, os gentios estavam incluídos no plano
divino de redenção. Jesus sabia isto. Desejava-o. Sua compaixão foi
indubitavelmente tão ampla como a daqueles inspirados escritores dos
Marcos (William Hendriksen) 672
livros do Antigo Testamento. Desde o começo, a salvação foi para todos
os que pela soberana graça de Deus pusessem a fé nEle, fossem judeus
ou gentios. João 3:16, com sua doutrina de “todo aquele que nele crê”,
expressa exatamente isto. No que respeita ao Antigo Testamento, veja-se
não só Sl 72:8–11, 17; 87; 96:1–10; Is. 42:1–7 (cf. Mt. 12:15–21); 49:6–
12; 52:10; 60:1–3, mas também Gn. 12:3; 18:18; 26:4; 28:14; aos quais
podem-se acrescentar muitos mais.
c. “é necessário … seja pregado”.
Mateus 24:14 ressalta o que ia suceder. No CNT sobre Mateus, pp.
896–898 explica-se até que ponto esta profecia já se cumpriu, e também
o grau em que não se cumpriu. Nossa passagem, Marcos 13:10, sublinha
o aspecto “obrigatório” desta verdade. A proclamação do evangelho a
todo mundo é um “dever” dado por Deus. Deve ser feito, porque esta é a
vontade de Deus e seu decreto desde a eternidade (veja-se Ef. 1:11;
2:11–22). Esse decreto inclui também a responsabilidade do crente em
esforçar-se para que, mediante o poder e a graça do alto, a vontade de
Deus seja realizada. Além disso, Deus assim o mandou (Mt. 28:18–20;
Lc. 24:47). Por outro lado, o mundo necessita desesperadamente este
evangelho (At. 4:12; Rm. 1:16; 3:21–24; 1Co. 1:21–24). Acrescente-se a
isso, o fato de que nós somos possuidores deste evangelho, e cada vez
aumentam mais os instrumentos que nos capacitam a proclamá-lo. Hoje
obtivemos um progresso sem precedentes no conhecimento de idiomas e
dialetos estrangeiros; facilidades para o transporte muito além dos que o
mundo jamais conheceu; os meios materiais para sustentar os
missionários, prover-lhes, dar-lhes alojamento e construir igrejas. Temos
o rádio, a televisão e os meios para fazer gravações.
Agora é o momento! Naturalmente, não podemos ver dentro dos
corações, mas se as vidas têm algum significado, parecem indicar que a
distância entre a. a curva que representa os que morrem sem a salvação,
e b. a curva que representa os que no mesmo período de tempo (semana,
mês, ano, década) estão-se convertendo, mostra que não se estão
aproximando, e sim infelizmente se estão separando. É um dado que
Marcos (William Hendriksen) 673
deve pesar fortemente na consciência de cada crente. Finalmente, há
muitas portas que ainda estão abertas. Nem sempre estarão abertas.
Veja-se Mt. 24:21, 22, 29; Mc. 13:19, 20; Ap. 11:7–10; 20:3, 7–9a e cf.
Jo. 9:4.
d. “é necessário que primeiro o evangelho seja pregado”. À vista
dos vv. 21, 26 e Mt. 24:3, 14, 30, isto significa: antes da volta de Cristo.
e. “é necessário que … seja pregado”. Veja-se sobre Mc. 14:9.
As mais inflamadas perseguições contra os crentes não sucederão
até o momento justamente prévio à volta de Cristo, mas agora também
aguardam seus discípulos tempos difíceis. Terão que estar mentalmente
preparados para esses tempos. Por exemplo, nunca deverão desesperar-se
pelo que terão que responder aos seus atormentadores:
11. Quando, pois, vos levarem e vos entregarem, não vos preocupeis
com o que haveis de dizer, mas o que vos for concedido naquela hora, isso
falai; porque não sois vós os que falais, mas o Espírito Santo.
Seria fácil que os discípulos se enchessem de espanto e receio sobre
como conduzir-se diante dos juízes, incluindo até os governantes e reis
(veja-se v. 9); eles se perguntariam como dirigir-se a eles e o que dizer
em defesa própria. De uma forma muito comovedora Jesus diz, “Não vos
preocupeis com o que haveis de dizer”; em outras palavras, “Lutem
contra essa tendência. Armem-se contra ela. Não se deixem desviar,
permitindo que sua mente se veja arrastada em direções opostas, da fé ao
temor, e do temor à fé”. 623
A razão que se dá é: o Espírito Santo dará as palavras necessárias,
“palavras de sabedoria” indiscutíveis (Lc. 21:14, 15). Isto não significa
que a mente de um apóstolo perseguido devia ser uma tábua rasa
(tabuleta em branco) sobre a qual, de algum modo mecânico, Deus
começará a escrever repentinamente algumas palavras. Ao contrário,
nem a personalidade, nem a preparação prévia recebida de Jesus, ver-se-
iam reprimidas ou anuladas ao ser estas testemunhas levadas a juízo ou
623
προμεριμν_τε, pres. imper. 2ª. pes. pl. de προμεριμνάω. Cf. CNT sobre Mt. 6:25 no que respeita ao
verbo μεριμνάω.
Marcos (William Hendriksen) 674
ao escrever seus livros ou epístolas. Tudo isto seria reavivado,
intensificado e elevado a um nível mais alto de atividade. O que lhes
seria dado a falar naquela hora, sê-lo-ia em sentido orgânico. O Espírito
do Pai falaria neles e aquele mesmo Espírito Santo, a terceira pessoa da
Santa Trindade, “lembrar-lhes-ia todas as coisas” que o próprio Jesus
lhes havia dito (Jo. 14:26). Este Espírito estava já operando desde muito
tempo antes do Pentecostes (Sl 51:11). Mas no Pentecostes e depois do
Pentecostes, ia a ser “derramado” em toda sua plenitude.
Esta profecia também se cumpriu gloriosamente, como se evidencia
pelos discursos de Pedro, ou de Pedro e João (At. 4:8–12, 19, 20, com o
efeito produzido na concorrência, descrito em At. 4:13, 14) e os de Paulo
(At. 21:39–22:21; 23:1, 6; 24:10–21; 26:1–23).
O fato de confessar a Jesus causaria divisão, inclusive dentro do
círculo familiar:
12. Um irmão entregará à morte outro irmão, e o pai, ao filho;
filhos haverá que se levantarão contra os progenitores e os matarão.
Por certo, esta última cláusula pode traduzir-se também, “farão com
que sejam enviados à morte”. Não existe basicamente grande diferença.
A pessoa por cuja causa alguém é enviado à morte injustamente, é tão
culpado como se tivesse cometido o ato com suas próprias mãos. Veja-se
2Sm. 11:15, cf. 12:9; 1Rs. 21:13, cf. v. 19; e Mc. 6:27, cf. v. 16.
Jesus prediz aqui que o filho que odeia a Cristo entregará o seu
próprio irmão para que seja enviado à morte; o pai ao filho; os filhos aos
pais.
A história dá numerosos exemplos do fratricídio, filicídio e
parricídio que aqui se indica. Por causa das diferenças religiosas
fundamentais, as relações familiares estiveram com muita frequência
muito longe do ideal. Acaso não matou Caim a seu irmão Abel (Gn. 4:8;
Hb. 11:4)? O fato que os filhos às vezes abandonassem massivamente
(no sentido explicado mais adiante; veja-se sobre 13a) a fé de seus pais
está implícito em passagens tais como Js. 24:31; Mq. 7:6; Ml. 4:6. À
inversa, os pais daquele filho que nasceu cego e que depois de receber a
Marcos (William Hendriksen) 675
vista aceitou a seu Benfeitor como Senhor, comportaram-se de uma
forma covarde. Não quiseram unir-se ao seu filho em sua franca e
preciosa confissão. Tiveram temor de ser expulsos da sinagoga (Jo. 9).
Assim que o culpado era às vezes um irmão, outras vezes um pai, e
outras vezes um filho.
É evidente que este conflito era por causa de Cristo. Veja-se o v. 9.
Este mesmo fato se manifesta no v.
13a. Sereis odiados de todos por causa do meu nome.
O significado é, “Seguireis sendo aborrecidos. 624 A forma da
expressão bem pode sugerir que Jesus não só estava pensando no que
sucederia aos Doze, mas também nas perseguições que teriam que sofrer
os seus sucessores nos anos vindouros, e assim até a Sua volta. Veja-se
também Jo. 16:33; 2Co 4:8–10; 1 Jo. 3:13. A expressão “odiados por
todos” deve significar, “pelos homens em geral, sem consideração de
posições, posição, raça, nacionalidade, sexo ou idade”. Não é verdade
isto também com relação ao uso de “todos” em Mc. 1:37; 5:20; 11 32;
Lc. 3:15; Jo. 3:26; 1Tm. 2:1; e Tt. 2:11? Porquanto o mundo odeia a
Cristo, odeia também os Seus representantes.
Entretanto, há um grande consolo nas seguintes palavras de
segurança,
13b. Aquele, porém, que perseverar até ao fim, esse será salvo.
Quem permanece leal a Cristo no tempo da perseguição, entrará na
glória. A época de perseguição para esta pessoa durará até que a morte a
liberte desta cena terrestre. Para a igreja em geral, durará até que Cristo
retorne em glória.
Note-se este final vitorioso. Além disso, a essência deste ato de
salvação está maravilhosamente apresentada em passagens tais como Ap.
2:7, 17, 26, 27, 28; 3:5, 12, 20, 21; 7:9–17; 14:13; 21:1–7. Em épocas de
mais intensa e inflamada perseguição, nem todos os filhos da aliança

624
Futuro passivo perifrástico, provavelmente com força durativa, como se se dissesse: isto seguirá e
seguirá através das idades. O original era _σεσθε μισούμενοι.
Marcos (William Hendriksen) 676
chegarão a ser infiéis à fé. Na realidade, nenhum dos que tenham sido
verdadeiramente regenerados perecerão em incredulidade (Jo. 4:14;
10:28; Rm. 8:37–39; Fp. 1:6; 1Jo. 2:19). Mas em tempo de perseguição,
muitos daqueles cuja adoração a Deus tenha sido de um caráter
meramente externo, logo se unirão às forças do inimigo, e alguns deles
talvez serão “delatores” dos membros de sua própria família. Os
realmente regenerados terão que permanecer fiéis até o fim. E entre estes
“fiéis até a morte” estarão incluídas meninos e meninas de tenra idade.
Das “dez” perseguições tradicionais (de Nero a Diocleciano) a
última delas foi a mais violenta. Seu propósito era terminar com a igreja,
destruí-la de uma vez por todas. Começou, propriamente, com o festival
de Terminália, 23 de fevereiro do ano 303 d.C. Mas até este supremo
esforço foi em vão. Tertuliano tinha toda a razão, “sigam adiante, nos
despedacem, nos torturem, fazei pó de nós: nossos adeptos acrescentarão
na mesma proporção que nos arrasarem. O sangue dos cristãos é sua
semente”. O imperador Constantino viu uma visão onde apareciam as
palavras: “in hoc assino vence” (“por este sinal vencerá”). Desde esse
momento o paganismo, ao menos oficialmente, foi-se à ruína, 312 d.C.
Nada absolutamente — nem sequer o Hades — pode prevalecer contra a
igreja. A igreja está segura porque é o que Cristo chama “minha
igreja”. 625

625
Veja-se R Schaff, History of the Christian Church (Nova York, 1924), Vol. II; veja-se
especialmente pp. 31–81.
Marcos (William Hendriksen) 677
Mc. 13:14–23 - A grande tribulação
Cf. Mt. 24:15–25; Lc. 21:20–24

Quanto às passagens paralelas, Lucas 21:20–24 tem pouco a dizer


sobre este tema. Entretanto, o que diz contém pontos de especial
interesse e são detalhes que não se acham em Mateus e Marcos — ou
não tão claros. Jerusalém chegaria a ser rodeada de exércitos (v. 20; cf.
19:43). Não só deveriam esforçar-se em sair os que estavam em
Jerusalém, mas também nem sequer deveriam entrar na cidade os que
estivessem no campo (v. 21). As predições a respeito do castigo se
cumpririam (v. 22). Cf. Dn. 9:27b; Rm. 11:25b; 1 Ts. 2:16b. De modo
similar, o povo cairia ao fio de espada e Jerusalém seria pisada pelos
gentios até que o tempo dos gentios fosse cumprido (v. 24). É claro que,
segundo Lucas, as predições de Jesus abrangiam toda a nova
dispensação, chegando até a consumação final.
A passagem paralela de Mateus (24:15–25) coincide com a
passagem de Marcos (13:14–23) quase exatamente. As variações mais
importantes são as seguintes: a. conquanto ambos mencionam “o
abominável da desolação” e contêm as palavras, “quem lê entenda”,
Mateus acrescenta “de que falou o profeta Daniel”. Também a frase um
tanto obscura de Marcos “situado onde não deve estar” é esclarecida pela
de Mateus “no lugar santo”. b. Marcos diz, “Orai para que isso não
suceda no inverno”, mas Mateus coloca, “Orai para que a vossa fuga não
se dê no inverno, nem no sábado”. c. Onde Marcos tem, “…para
enganar, se possível, os próprios eleitos”, Mateus diz, “que, se possível
fora, enganariam até os escolhidos” [Mt. 24:24, RC]. Não há dúvida de
que este “até” se acha também implícito em Marcos. Até este ponto,
nestes poucos casos, Mateus parece expressar as palavras de Cristo de
forma mais ampla que Marcos. Mas observe-se agora d. Segundo o
relato de Mateus, Jesus diz, “Eis que eu vo-lo tenho predito”. Marcos
apresenta esta mesma ideia de forma mais ampla, “Estai vós de
sobreaviso; tudo vos tenho predito”. Finalmente, e. Mateus segue alguns
Marcos (William Hendriksen) 678
versículos mais (24:26–28) depois que Marcos termina. Com relação a
Mt. 24:26, 27 veja-se também Lc. 17:23, 24, e com v. 28 cf. Lc. 17:37.
Quanto ao resto, veja-se CNT sobre Mt. 24:26–28.
14. Quando, pois, virdes o abominável da desolação situado
onde não deve estar (quem lê entenda), então, os que estiverem na
Judéia fujam para os montes.
Os discípulos tinham perguntado, “Dize-nos quando sucederão estas
coisas, e que sinal haverá quando todas elas estiverem para cumprir-se”
(vv. 3, 4)?”. Jesus já tinha mostrado que haveriam de produzir-se muitas
perturbações (vv. 5–9). Entretanto, isto não indica o fim. Antes, é o
começo das dores de parto. Também havia predito que transcorreria um
longo período de proclamação do evangelho antes do dia de Sua volta (v.
10). Exortou os Seus discípulos a estar firmes, embora a oposição contra
eles viesse de suas próprias famílias. Assegurou-lhes que ao ser
conduzidos a juízo, o Espírito Santo lhes daria as palavras que deveriam
falar, e que, embora odiados por todos, os que perseverassem até o fim
seriam salvos (vv. 11–13).
O fim chegará finalmente. O fim do quê? De Jerusalém? Do mundo
em geral? Um fato é claro: O discurso de Cristo vai gradualmente se
aproximando ao seu fim. No versículo 26, que pertence à seção seguinte,
faz-se menção do Filho do Homem vindo nas nuvens com grande poder
e glória”. A “tribulação”, descrita nos vv. 14–23 — vejam-se
especialmente os vv. 14–20 —, e mencionada novamente no v. 24,
preparará o caminho para a brilhante volta do Filho do homem.
Entretanto, não descrevem os versículos 14–18 o que sucederá na
Judeia? Há uma passagem paralela (Lc. 21:20, cf. também v. 24) que
fala inclusa de Jerusalém rodeada de exércitos!
Como, então, devem ser interpretadas estas palavras? Entre as
distintas teorias que merecem consideração estão as seguintes:
a. Os versículos 14–18 se referem aos ais que recairão sobre
Jerusalém e Judeia, terminando com a queda de Jerusalém, ano 70 d.C.
O resto da passagem (os vv. 19–23, ou ao menos, os vv. 19, 20) descreve
Marcos (William Hendriksen) 679
“a grande tribulação que deverá suceder imediatamente antes da volta de
Cristo”.
Objeção. É impossível separar assim estes versículos. Estão muito
estreitamente relacionados para que esta manipulação seja possível.
Prova: Com referência ao que já se disse nos versículos 14–18, o
versículo 19 continua: “Porque aqueles dias serão de tamanha tribulação
como nunca houve desde o princípio do mundo ... e nunca jamais
haverá”.
b. Toda a seção, versículos 14–23, que é uma unidade, descreve a
queda de Jerusalém. Refere-se a isto e só a isto.
Objeção. No versículo 19 se descreve a grande tribulação segundo
já se indicou. Sabemos que o que aconteceu a Jerusalém e Judeia no 70
d.C. foi indescritivelmente horrível.
Entretanto, poderíamos manter com segurança que foi mais terrível
que a que ocorreu sob Hitler, que ordenou o extermínio de uma raça
completa, de tal forma que se estima que cinco ou seis milhões de judeus
caíram cruelmente assassinados? É possível esquecer Auschwitz,
Mauthausen, e Dachau?
Além disso, pelos versículos 24, 26, vê-se claro que a tribulação
aqui mencionada não pode apontar exclusivamente para o ano 70 d.C.,
porque “a vinda do Filho do Homem nas nuvens com grande poder e
glória” acontece depois dessa tribulação; antes, segue-a imediatamente
(Mt. 24:29).
c. Toda a seção, versículos 13–23, descreve exclusivamente a
grande tribulação que precederá imediatamente à volta de Cristo. Nada
tem que ver com a queda de Jerusalém no ano 70 d.C.
Objeção. Como já se mencionou, Marcos 13:14 (cf. Lc. 21:20)
refere-se claramente aos dias dos ais que teriam que ser a consequência
da queda de Jerusalém no 70 d.C. É impossível interpretar esse versículo
— e de fato os vv. 14–18 — como se não se fizesse referência ao
iminente desastre da Judeia.
Marcos (William Hendriksen) 680
Agora, se, conforme vimos, nenhuma das teorias mencionadas é
satisfatória, então que dizer? Resposta: Aqui estamos tratando com
passagens proféticas. O único caminho reto e seguro é interpretá-los em
harmonia com outras passagens similares. Contemplam-se dois — ou
ainda mais — eventos como se fossem um. O “profeta” — seja Isaías,
Joel, Miqueias, Malaquias … Jesus Cristo — olha rumo ao futuro da
forma em que um viajante observa uma cordilheira a grande distância.
Vê um cimo junto a outro e de onde ele se encontra descreve o futuro tal
como o vê. Entretanto, quanto mais se aproxima ao primeiro cimo ou
pico, mais aprecia a distância que medeia entre ele e o segundo pico.
Assim, por exemplo, a primeira vinda do Messias com as boas
novas, e Sua segunda vinda para juízo, combinam-se em Isaías 11:1–4 e
61:1, 2. O mesmo sucede com o Pentecostes e “o dia terrível de Jeová”,
em Jl. 2:28–31. Outras ilustrações desta perspectiva profética 626 podem
ver-se em 2Sm. 7:12–16; Ml. 3:1, 2. Este é o caso aqui também, em
Marcos 13:14ss.: (pelo menos) dois acontecimentos transcendentais
estão entrelaçados: a. o juízo sobre Jerusalém, condizente com sua queda
no ano 70 d.C., e b. a tribulação que culmina com o juízo final e o fim da
história do mundo. Nosso Senhor prediz a catástrofe que se aproxima
como tipo da tribulação que terá lugar no fim da nova dispensação. Ou,
expresso de outra forma, ao descrever o breve período da grande
tribulação quase no final da história que termina com o juízo final, Jesus
o pinta com vivas cores tomadas da iminente e prevista destruição de
Jerusalém pelos romanos 627 .
Não pretendemos dizer que todo exegeta deve ser capaz de
desenredar totalmente o que aqui se acha misturado, de modo que possa
indicar com exatidão quanto se refere à queda de Jerusalém e quanto a
grande tribulação final em cada passagem individual. Tudo o que quer
dizer é que ao seguir a norma indicada aqui — a de reconhecer a
626
Para uma ampliação sobre isto veja-se no CNT sobre Mt. 3:10; 10:22; 16:28.
627
Assim também E. W. Grosheide. Het Heilig Evangelie Volgens Mattheus (Commentaar op het
Nieuwe Testament. Kampen, 1954), pp. 355, 356; C. R. Erdman, Op. cit. p. 192; e muitos outros.
Marcos (William Hendriksen) 681
perspectiva profética e o cumprimento múltiplo estreitamente inter-
relacionado — a passagem fica situada na categoria profética a que
pertence, e assim é interpretado.
Referimo-nos no parágrafo precedente a um duplo cumprimento: a.
o do ano 70 d.C. e b. o prévio à Parousia. Mas o viajante mencionado em
nossa ilustração possivelmente pode ver mais de dois picos. Assim
sucede também com o profeta. Nesta passagem faz-se referência, em
primeiro lugar, ao que Daniel predisse quando falou do “abominável da
desolação”. É chamado abominável (ou abominação) porque denigre ou
contamina o sagrado. Por causa disso produz a desolação. Veja-se
especialmente Daniel 11:31; 12:11. Segundo a predição deste profeta,
Antíoco Epifânio (175–164 a.C.), sem pensar que cumpria a profecia e
que era totalmente responsável por seus atos ímpios, fez um altar pagão
em cima do altar do contínuo sacrifício, contaminando assim a casa de
Deus e a transformando em lugar desolado e ineficaz.
Fazia muito tempo que isto tinha sucedido (veja-se 1 Macabeus
1:54, 59). Entretanto Jesus diz, “Quando, pois, virdes o abominável da
desolação”. A implicação é que uma declaração divina pode-se aplicar a
mais de uma situação histórica. A abominação que provocou a desolação
da cidade e do templo teve lugar mais de uma vez na história. Que
aquele que leia a profecia de Daniel compreenda isto! Da mesma forma
em que se tinham profanado os lugares santos de Deus antes, assim
sucederia outra vez. Isto teve lugar, indubitavelmente, quando o exército
romano, com a imagem de seu adorado imperador em seus
estandartes, 628 pôs sítio à cidade de Jerusalém (Lc. 21:20).
Com relação a este segundo cumprimento da profecia de Daniel,
outros intérpretes pensam no intento do imperador Calígula (Gaio César)
de erigir uma estátua de si mesmo no templo de Jerusalém. Este
sacrilégio, que como resultado da resistência maciça dos judeus foi
adiado pelo procônsul Petrônio, não chegou a efetuar-se posteriormente

628
Veja-se Josefo, Guerra Judaica, VI. 316.
Marcos (William Hendriksen) 682
devido ao assassinato do demente imperador (janeiro do ano 41 a.C.). 629
Mas provavelmente é errôneo ver neste episódio outro cumprimento da
profecia de Daniel, e pensar que Jesus tivesse em mente o plano daquele
imperador louco; porque a. tanto Daniel como Jesus predisseram
acontecimentos reais, não só ameaça que jamais se levou a cabo; e b.
Jesus tinha em mente um sujeito pessoal — “situado onde [ele] não deve
estar” 630 e não somente uma estátua.
O altar pagão e o porco que se ofereceu no próprio templo de Jeová
no século II a.C. apontavam às idólatras legiões de Roma. Tudo isto por
sua vez prefigura a profanação de tudo o que é sagrado por parte do
Anticristo definitivo. É por esta razão que nos versículos 24–26 Jesus
pode dizer, “Mas, naqueles dias, após [Mateus diz “Logo em seguida”]
referida tribulação, o sol escurecerá, a lua não dará a sua claridade.…
Então, verão o Filho do Homem vir nas nuvens, com grande poder e
glória”.
A profecia de Daniel primeiro se cumpriu com Antíoco Epifânio. O
segundo cumprimento desta profecia produz-se com a queda de
Jerusalém. Quanto a este último, Jesus adverte aos Seus que quando os
exércitos romanos se aproximem de Jerusalém nos dias prévios à sua
queda, os crentes que estiverem na Judeia deverão fugir para os montes.
Em nenhum caso devem tentar entrar em Jerusalém. Os que estiverem no
campo não deverão tentar entrar na cidade (Lc. 21:21).
O que foi o que realmente sucedeu ao chegar a hora da amarga
prova? Os judeus em geral fizeram exatamente o contrário: apressaram-

629
Leia o interessante relato em Josefo, Antiguidades, XVIII. 257–309.
630
De maneira similar traduz a NBE, “quando virem que o execrável devastador está onde não deve”;
e veja-se também RA, Weymouth, NEB, holandês (Nieuwe Vertaling): “waar hij niet behoort (onde
ele não pertence)”. A. T. Robertson (Word Pictures, vol. 1. p. 362) e Vincent Taylor (Op. cit., p. 512)
consideram que ao particípio _στηκότα como masculino (part. perfeito de _στημι; mas não Lenski,
Op. cit., p. 362). É difícil explicar por que um particípio masculino tem como antecedente o neutro τ_
βδέλυγμα. Por Lucas 21:20 fica claro que o cumprimento principal no Novo Testamento o realizou o
sacrílego e devastador exército romano. Há talvez aqui uma referência especial ao general deste
exército? Veja-se A. B. Bruce, Op. cit., p. 430.
Marcos (William Hendriksen) 683
se a entrar na cidade. Isto deu como resultado um terrível derramamento
de sangue. E o que sucedeu com os seguidores de Cristo, tomaram a
sério a exortação de fugir para os montes? A opinião de muitos
expositores é que assim o fizeram e que finalmente encontraram refúgio
em Pela da Pereia. Mas esta é uma teoria para a qual não há evidência
histórica que seja segura. Vejam-se mais detalhes sobre isto no CNT, em
Mt. 24:15, 16. É de supor que muitos crentes obedeceram a advertência
bondosa e urgente do Senhor, que continua como segue:
15, 16. Quem estiver em cima, no eirado, não desça nem entre para
tirar da sua casa alguma coisa; e o que estiver no campo não volte atrás
para buscar a sua capa.
A pessoa que se achar no eirado de sua casa, de onde pode descer
por uma escada para fugir o mais rápido possível para os montes, não
deve, depois de descer, entrar na casa para salvar algo de suas posses. Do
mesmo modo, o lavrador que se ache trabalhando a terra vestido só de
sua túnica não deve voltar do campo à sua casa para recolher sua capa,
mas deve partir imediatamente para os montes. A demora, em cada caso
significaria ser capturado, obrigado a voltar ou possivelmente inclusive
morto.
Em muitas ocasiões anteriores, neste Evangelho falou-se do
bondoso coração de nosso Senhor (Mc. 1:41; 2:15, 17; 5:34, 41–43;
6:50; 8:2, 3; 10:13–16, 21). Este mesmo coração vê-se profundamente
afetado por duas considerações mais: a. a angústia das mulheres (v. 17),
e b. as dificuldades para viajar no inverno (v. 18).
17. Ai das que estiverem grávidas 631 e das que amamentarem 632
naqueles dias!
A mulher foi criada no final de tudo como “a coroa da criação de
Deus”. Contudo, todos sabemos que nem sempre recebeu a consideração

631
_ν γαστρ_ _χειν (ter na matriz) é um modismo para expressar estar grávida.
632
θηλαζούσαις, part. pres. dat. pl. fem. de θηλάζω (cf. Mt. 24:19; Lc. 21:23), literalmente dar de
mamar, dar peito, Cf. θηλή: peito.
Marcos (William Hendriksen) 684
que lhe é devida. Boris Pasternak em sua famosa obra Doutor Zhivago 633
apresenta a um dos personagens de sua novela afirmando que, uma
esposa não tem maior significado que uma pulga ou um piolho! Leia-se
também o livro de S. M. Zwemer, Across The World of Islam. 634 Poderia
objetar-se que as condições estão mudando, e que muitas coisas
sucederam — não só na Turquia mas também em outros lugares — que
afetaram favoravelmente a condição da mulher. Afinal de contas, o livro
do Zwemer foi escrito faz muito tempo. Portanto, sugeriríamos ao leitor
dirigir sua atenção também ao estudo muito mais recente de W. C.
Smith, Islam in Modern History. 635 O autor, de uma maneira muito
interessante, penetrante e estimulante, investiga algumas das mudanças
operadas no mundo muçulmano. Poderia ser o cristianismo um dos
fatores que deveria receber crédito por estas mudanças positivas? Nas
pp. 303 e 304 Smith dá sua resposta. Além disso, acrescenta que tem
algo a dizer a respeito do que ele considera a essência do bem-estar
espiritual dos muçulmanos, p. 305. Mas, acaso a única solução real não
consiste em dirigir esta gente, e todos os outros, a Cristo e à salvação que
há nEle? (veja-se Jo. 14:6; At. 4:12). Não é só através de Cristo que a
mulher obtém sua verdadeira dignidade? Veja-se Ef. 5:22, 23.
Em tempos em que a mulher era desprezada por muitos, e inclusive
desprezada por alguns, foi Jesus quem mostrou uma bondade especial
para com as viúvas (Mc. 12:40–44; Lc. 7:11–17; 18:1–8; 20:47–21:4); e
para com as mulheres que estavam, ou tinham estado, vivendo em
pecado (Lc. 7:36–50; Jo. 4:1–30); e na hora de sua agonia final, para
com Sua própria mãe (Jo. 19:26, 27). A mulher de hoje não deve dirigir-
se a um Islã modificado, nem a este ou aquele movimento extremista,
mas deve buscar Cristo, para achar nEle conselho, ajuda e consolo.
Nesta passagem o Senhor revela Sua compaixão pelas mulheres que
durante épocas de grande angústia política e social acham-se grávida ou
633
Traduzido do russo, Livros Signet, edição de bolso, Nova York, 1960, p. 251.
634
Nova York, 1929. Veja-se especialmente o cap. 6, “Womanhood under Islam”.
635
Nova York, 1959.
Marcos (William Hendriksen) 685
estão amamentando uma criança. Que imensa diferença entre Menaém e
o Messias! O primeiro foi aquele monstro cruel que, depois de apoderar-
se do trono vacante de Israel, arrasou uma cidade que recusou
reconhecê-lo como novo governante, e abriu o ventre de todas as
mulheres grávida (2Rs. 15:16; cf. 8:12; e Am. 1:13). Se alguém sustentar
que isto sucedeu em tempos de barbárie e que, sem dúvida alguma, nos
luminosos séculos XIX e XX todos — ao menos na Europa e América
— estão procurando tratar a mulher de forma considerada, deve ler o
livro de Dee Brown, Bury My Heart at Wounded Knee. 636
Continua:
18. Orai para que isso não suceda no inverno. 637
O inverno é a estação do mau tempo e as tempestades. Nem mesmo
a neve pode-se descartar totalmente. De modo que Jesus adverte os
discípulos que orem para que a fuga (veja-se Mt. 24:20) não ocorra nessa
estação. 638 Devem orar — na realidade, devem estar em oração
perseverante — para que suceda em condições climáticas favoráveis.
Mas acaso as condições do clima não são reguladas pelas leis da
natureza? Resposta: As chamadas “leis”, que são descrições científicas
do que sucede ou geralmente sucede no reino da natureza, não devem ser
consideradas como forças independentes. Ao contrário, estão e
permanecem sob o completo controle de Deus. No geral, o homem é
incapaz de mudar as normas da natureza. Na realidade, nem sequer os
prognósticos dos peritos são sempre confiáveis.
Há razões para agradecer os avanços que se têm feito no
prognóstico do tempo. Mesmo assim, o que segue é um relatório
verídico: Recentemente, na área de Boston todos os peritos do tempo
prognosticaram a pior tormenta de neve do ano para o dia seguinte pela

636
Veja-se a edição de bolso, Nova York, maio 1972, pp. 19, 288, 365, 417–419.
637
Ao escrever a leitores que não estão atados pelas restrições judias, Marcos não precisava incluir o
que Jesus diz em Mateus 24:20 com referência a viajar no sábado.
638
_να introduz a essência da oração. O termo χειμώνος é um genitivo sing. (“tempo dentro do qual
algo sucede”) de χειμών. Em Mt. 16:3 χειμών indica mau tempo.
Marcos (William Hendriksen) 686
manhã. As classes das escolas foram suspensas, as máquinas de limpar
neve prepararam-se, e então?.… Nem sequer caiu um floco de neve! 639
Por outro lado, Elias orou, e as chuvas se retiraram. Orou outra vez,
“e o céu deu chuva, e a terra produziu seu fruto” (1Rs. 17:1; 18:1; Tg.
5:17, 18).
Como dissemos, a primeira aplicação da profecia de Daniel está na
tribulação ocorrida durante os dias de Antíoco Epifânio, e a segunda tem
que ver com a angústia produzida com a queda de Jerusalém. Agora,
assim como a Jesus foi muito natural passar da primeira à segunda
aplicação da predição de Daniel, o texto que vem a seguir torna evidente
que também foi fácil passar da segunda à terceira aplicação:
19, 20. Porque aqueles dias serão de tamanha tribulação como
nunca houve desde o princípio do mundo, que Deus criou, até agora
e nunca jamais haverá. 640 Não tivesse o Senhor abreviado aqueles
dias, e ninguém se salvaria; 641 mas, por causa dos eleitos que ele
escolheu, 642 abreviou tais dias.
Por causa dos escolhidos (veja-se CNT sobre Ef. 1:1), para que nem
todos tenham que morrer uma morte violenta, o Senhor decidiu encurtar
os dias da tribulação final.
Cristo menciona a “tribulação”, ou, segundo Mateus, a “grande
tribulação”. Quanto a este tema é necessário proceder com precaução.

639
Veja-se a edição de “Newsweek Magazine” de 25 de março de 1974, p. 65.
640
γένηται aor. subj. 3ª. pes. sing. (aqui futurista) de γ_νομαι.
641
Esta é uma oração condicional de segunda classe ou contrária à realidade, referindo-se ao tempo
passado. Em seu decreto eterno, Deus abreviou o período de tribulação. A oração é completamente
regular do ponto de vista gramatical: a prótase tem ε_ μή e um aor. ind.; conquanto a apódose leva um
aor. ind. pas. (_σώθη de σώζω) com _υκ _ν. Veja-se Robertson, p. 1015. Quanto a _κολόβωσε, trata-
se de um aor. ind. at. 3ª. pes. sing. de κολοβόω, interromper, reduzir. A palavra inglesa halt, no
sentido de coxo, está relacionada com ela. Refere-se à limitação da capacidade de uma pessoa para
caminhar.
642
A forma _ξελέξατο é um aor. ind. med. 3ª. pes. sing. (assim também em Ef. 1:4) de _κλέγω; indica
que em Seu soberano beneplácito, Deus, desde a eternidade, escolheu certas pessoas, tanto
individualmente como relacionados entre si e com Cristo, não só “para ir ao céu”, mas também para
partir de agora e para sempre, aqui embaixo e logo no novo céu e a nova terra, para viver não só para
si mesmos, mas também para os outros, para glória de Deus. Veja-se 1Co. 10:31, 33; Ef. 1:3–6.
Marcos (William Hendriksen) 687
Apocalipse 7:14 também fala da “grande tribulação”. São estas duas uma
mesma coisa? A resposta é: não o sim. Conforme indica o contexto de
Apocalipse 7, a palavra “tribulação” usa-se ali num sentido muito mais
geral. Por causa de sua fé, todo filho genuíno de Deus experimenta uma
tribulação durante sua vida na terra (vejam-se Jo. 16:33; cf. Rm. 8:18;
2Co. 4:17; 2Tm. 3:12). Mas em Marcos 13:19, 20 (cf. Mt. 24:21, 22)
Jesus está falando de uma tribulação que caracterizará “aqueles dias”,
refere-se a um período concreto de angústia, de breve duração, que
ocorrerá imediatamente antes de Sua volta (veja-se vv. 24–27; cf. Mt.
24:29–31). Trata-se do breve período ou “um pouco de tempo”
mencionado também em Apocalipse 20:3b, 7–9a; cf. 11:7–9.
Esta tribulação precederá imediatamente ao fechamento da história
do mundo e ultrapassará qualquer outra angústia. Por isso, quase não faz
falta dizer que não se faz justiça ao caráter desta tribulação, se a ideia é
que aponta unicamente às penas experimentadas durante a queda de
Jerusalém.
Com a devida consideração ao Comentário de Vincent Taylor, que
em muitos aspectos é excelente, devo dissentir de seu ponto de vista (Op.
cit., p. 515), quando diz que o versículo 20 não é necessariamente uma
declaração autêntica de Jesus, ou seja, que na verdade Ele não a
pronunciou. Taylor fala de “especulação apocalíptica”, alheia ao ensino
de Cristo.
Objeções:
a. A ideia da redução do tempo não só se acha na literatura não
canônica, tal como Enoque 80:2; IV Esdras 4:26; Apocalipse de Abraão
29:4; Apocalipse de Baruque 20:1 (veja-se também SB I, p. 953) mas
também em Daniel 12:7. Enquanto que o número 7 expressa plenitude, a
cifra 31/2 (“tempo, dois tempos, e a metade de um tempo”) indica
redução na metade, portanto diminuição desta plenitude.
Em completa concordância com isto lemos no Salmo 30:5: “Porque
não passa de um momento a sua ira; o seu favor dura a vida inteira. Ao
anoitecer, pode vir o choro, mas a alegria vem pela manhã”.
Marcos (William Hendriksen) 688
Isto não é tudo. No Antigo Testamento está firmemente arraigada a
ideia de que, pelo bem dos escolhidos — e este é o contexto aqui em Mc.
13:20! — os períodos de tribulação não duram muito, mas são
abreviados. Além das passagens já dadas, veja-se também o Salmo
103:9; e Isaías 26:20; 54:7, 8.
b. Pelo fato de que o capítulo 13 de Marcos e seus paralelos contêm
quase todo o ensino estritamente apocalíptico de nosso Senhor que o
Novo Testamento conservou, a comparação com Seus outros ensinos —
p. ex., Sermão da Montanha —, que contêm muito pouco material desta
natureza, não parece muito justa. Chegar à inferência de que Marcos
13:20 “não é necessariamente uma declaração autêntica”, com base em
discursos e expressões não apocalípticas ou não escatológicos, é uma
conclusão injustificada.
c. Segundo o próprio Taylor reconhece, o caráter semítico dos
versículos 19, 20 é inconfundível. 643 Isto quadra com o fato de que Jesus,
que falava com Seus discípulos em aramaico por ser a língua mais
extensamente falada, bem pôde ter usado este tipo de linguagem.
Merecem especial atenção as palavras “o princípio do mundo” (v.
19), e “eleitos que ele escolheu” (v. 20). Esta repetição de cognatos foi
chamada “pleonástica”, “redundante” e “tautológica”. Às vezes querem
dar-nos a impressão de que tal repetição deve-se ao “estilo pobre” de
Marcos, que Mateus “corrige”. Entretanto, o fato é que os modificativos

643
Note-se o seguinte:
(1). A estrutura da oração do v. 19. Literalmente se lê “porque aqueles dias serão tribulação, tal como
não ocorreu igual desde (o) princípio de (a) criação que Deus criou até agora, e nunca será”. Isto nos
lembra, ao menos em parte, a estrutura sintática de Gn. 41:19; Êx. 9:24; Dn. 12:1.
(2). Pleonasmos. Com sua repetição de palavras cognatas, é preciso ressaltar aqui que o estilo de
Marcos é completamente semítico. Veja-se não só 13:19, 20 mas também 7:13 e talvez 12:23, que é
um característico não totalmente estranho em outras famílias de línguas. Cf. 1Rs. 1:40; 1Cr. 29:9, etc.
(3). Outros semitismos: “não seria salva toda carne” (literalmente). Este é na realidade um semitismo
duplo: “nem toda” em lugar de “não”, e “carne” em lugar de “pessoa”, o ser humano em sua condição
fraca, frágil, mortal. Para “carne” veja-se também CNT sobre Jo. 1:14 e a nota 32; e CNT sobre Fp.
1:22 e a nota 55. “… os escolhidos”. A ideia de eleição desde a eternidade tem sua raiz no Antigo
Testamento (Gn. 18:19; Sl 105:6; 148:14; Is. 43:20b; 65:9; Am. 3:2, etc.).
Marcos (William Hendriksen) 689
acrescentam algo de realidade, algo de importância, às palavras que
modificam.
Assim, por exemplo, inclusive em nossos dias há muitos que falam
levianamente a respeito de “toda a criação”, mas persistem em negar que
Deus a criou! A expressão “os escolhidos” acha-se também na
conversação e literatura desses mesmos, embora com frequência em
sentido irrisório. Estas pessoas rejeitariam depreciativamente a própria
sugestão de que Deus realmente escolhe alguém desde a eternidade. Por
conseguinte, as palavras de Marcos são as de um escritor completamente
inspirado. Nem o modo de expressão dele, nem o de qualquer outro
escritor dos Evangelhos, necessita “correção”. Os Evangelhos
apresentam um verdadeiro, interessante e variado relato dos ensinos de
Cristo da maneira em que a direção do Espírito Santo se reflete na
consciência de cada evangelista.
Continua:
21, 22. Então, se alguém vos disser: Eis aqui o Cristo! Ou: Ei-lo
ali! Não acrediteis; pois surgirão falsos cristos e falsos profetas,
operando sinais e prodígios, para enganar, se possível, os próprios
eleitos. 644
644
_άν … πιστεύετε é uma oração condicional de terceira classe ou futurista. A prótase leva _ιπ_, um
aor. subj. 3ª. pes. sing. O apódose tem πιστεύετε, um imper. 2ª. pes. pl.
Para _δε veja-se sobre 2:24, nota 91.
A palavra usada no original para “falsos Cristos” pode-se traduzir mais literalmente por pseudo-
Cristos (cf. Mt. 24:24); igualmente “falsos profetas” por pseudo-profetas (cf. Mt. 7:15; 24:11, 24; Lc.
6:26; At. 13:6; 2Pe. 2:1; 1Jo. 4:1; Ap. 16:13; 19:20; 20:10). Sua estrutura é igual a pseudo-irmãos
(2Co. 11:26; Gl 2:4), pseudo-aposto ls-apóstoles (2Co. 11:13), pseudo-mestres (2Rs 2:1), pseudo-
oradores (mentirosos, 1Tm. 4:2), e pseudo-testemunhas (Mt. 26:60; 1Co. 15:15).
Os Evangelhos, o livro de Atos, as Epístolas e o Apocalipse estão cheios de exemplos de falsos
profetas (Mt. 28:12–15; Jo. 9:29; At. 2:13; 8:18, 19; Rm. 6:1, 16:17, 18; 1Co. 15:12; Gl 1:6, 9; 3:1;
4:17; 5:2–4; Ef. 5:3–14; Fp. 3:2, 17–19; Cl. 2:4, 8, 16–23; 2Ts. 2:1, 2; 3:6, 14; 1Tm. 1:3–7, 18–20;
4:1–5, 7; 6:20, 21; 2Tm. 2:14–18; 3:1–9; 4:3, 4; Tt. 1:10–16; 3:9, 10; Hb. 6:4–8; 10:26–28; Tg. 2:17;
2Pe 2:1ss.; 3:3, 4; 1Jo. 2:18; 4:1; 2Jo. 10; 3Jo. 9, 10; Jd. 4ss.; Ap. 2:9, 14, 15, 20–24; 3:9). Os falsos
profetas são os representantes do poder das trevas (Cl. 1:13; cf. Lc. 22:53; At. 26:18; Ef. 6:12)
disfarçados de anjos de luz (2 Cor. 11:14).
A caracterização do falso profeta quanto homem sem autoridade divina e que dá sua própria
mensagem, que diz ao povo geralmente o que a este se agrada em ouvir, tem suas raízes no Antigo
Marcos (William Hendriksen) 690
Está claro que a palavra “então” ou “naquele tempo” liga esta
passagem com a que precede (veja-se os vv. 19, 20), quer dizer, com a
mais dura de todas as tribulações. Tal tribulação está prefigurada, sem
dúvida alguma, pela aflitiva prova derivada da queda de Jerusalém, mas
vai além, conforme o mostra a relação entre os versículos 21–23 e 24–
27. Que houve falsos profetas no tempo da queda de Jerusalém é claro
pelo que diz Josefo em Guerra Judaica VI, 285–288. 645 Muito mais
óbvio, entretanto, é o fato de que, em última instância, Jesus está aqui Se
referindo ao que sucederá nos amargos dias que hão de preceder a Sua
volta. Será então, em especial, quando haverá aqueles que pretenderão
que o Cristo já chegou. Com entusiasmo (“Eis aqui o Cristo! … Ei-lo
ali!”) assinalarão inclusive o lugar onde presumivelmente desceu. O
pseudo-profeta dirá que esta ou aquela pessoa é o Cristo. O pseudo-
Cristo dirá que ele mesmo é o Cristo. Os enganadores farão a. sinais —
proezas sobrenaturais que fazem com que tiremos nossa atenção de
quem as realiza para colocá-la naquele que lhe dá o poder — e b.
portentos, milagres ou maravilhas — as mesmas realizações

Testamento (Is. 30:10; Jr. 6:13; 8:10; 23:21). Esta é a classe de profeta que, em circunstâncias em que
a derrota é realmente evidente, dirá, “Sobe e serás prosperado” (2Cr. 18:11). Gritará, “Paz, paz!”
quando não há paz (Jr. 6:14; 8:11; Ez. 13:10). Suas palavras são “mais brandas que manteiga” (Sl
55:21; cf. Jo. 10:1, 8).
δώσουσι (com relação ao seu complemento “sinais e milagres”) é provavelmente um hebraísmo; cf.
Dt. 13:1 (“e te anunciarei sinal ou prodígio”). Certos manuscritos importantes preferem usar o
sinônimo ποιήσουσι. Por isso, não é absolutamente necessário traduzi-lo “dão” ou “proveem”. É
suficiente “fazem”.
Para σημε_ον, veja-se mais acima sobre 8:11, nota 366; e quanto à distinção entre esta palavra τέρας
veja-se Trench, Op. cit., parágr. xci.
Não há nada estranho em que πρός τό venha seguido pelo infinitivo para expressar um propósito
(veja-se Mt. 5:28; 6:1; 13:30; 26:12; 2Co. 3:13; Ef. 6:11). Mas este é o único caso de tal construção
em Marcos. O verbo _ποπλανάω aparece no Novo Testamento só nestas duas passagens (aqui como
_ποπλαν_ν, inf. pres. at.), e significa desviar, fazer com que se além de, “a fé”, seja explícita, como
em 1Tm. 6:10, ou seja implícita, como aqui em Mc. 13:22. Para a forma básica πλανάω veja-se mais
acima sobre 13:5, nota 617.
645
Lenski (Op. cit., p. 365) relaciona os falsos profetas mencionados em Guerra Judaica II 258–263;
Antiguidades XX 169–171 e em At. 21:38, com a queda de Jerusalém. Mas deve-se ter em mente que
o assunto referido por Josefo e Lucas, teve lugar mais ou menos quinze anos antes de 70 d.C. Deve
notar-se também que os dois relatos de Josefo não harmonizam completamente.
Marcos (William Hendriksen) 691
assombrosas consideradas pelo efeito produzido nos espectadores. Por
meio de um desdobramento poderoso destes poderes, os enganadores
procurarão encantar, se possível, os eleitos; sim, até a eles! (Mt. 24:24).
Isto significa que não é possível desviar os eleitos de Deus de forma tal
que se deixem arrastar como estrelas errantes até o dia de sua morte.
Veja-se CNT sobre Fp. 1:6.
As palavras consoladoras,
23. Estai vós de sobreaviso; tudo vos tenho predito 646 (cf. Mt.
24:25), lembram-nos expressões similares de Cristo em João 13:19;
14:29; 16:4. É a terceira vez que Jesus pronuncia as palavras, “Estai de
sobreaviso” ou “Tomai cuidado” ou “Olhai” (vejam-se também os vv. 5
e 9). Esta advertência vinha muito ao caso porque:
a. embora seja verdade que as predições se estendam através de toda
a dispensação, incluindo até a tribulação que imediatamente precede a
Sua volta, o cumprimento preliminar ocorre durante a vida dos
apóstolos.
b. Jesus sabia que Suas palavras seriam repetidas às gerações
posteriores. Cf. Jo. 10:16; 17:20.
Com base em Mc. 13:3, é errôneo limitar o “vós” a Pedro, Tiago,
João e André. Deve-se ter também presente a referência mais ampla
(veja-se Mt. 24:1, 3).
O Mestre leciona aos Seus discípulos com ternura. Quando chegar a
prova de fogo, não poderão dizer: “Que coisa mais estranha e
inesperada! Por que não nos preparou o Senhor para isso? Por que não
nos pôs em guarda?”. Ao cumprir-se os eventos preliminares da
predição, os discípulos não se sentiriam indevidamente perturbados
porque estavam advertidos com antecipação. Na realidade, sua fé em
Jesus se faria mais forte. Existiu alguma vez um pastor mais afetuoso?

646
προείρηκα funciona como pf. ind. 1ª. pes. sing. de προλέγω.
Marcos (William Hendriksen) 692
Mc. 13:24–27 - A vinda do Filho do Homem
Cf. Mt. 24:29–31; Lc. 21:25–28

Entre o relato de Mateus e Marcos existe uma estreita semelhança.


as diferenças principais são as seguintes:
a. Marcos diz: “Então, verão o Filho do Homem”. Mateus escreve:
“o sinal do Filho do Homem”.
b. Mateus conservou a observação de Cristo: “todos os povos da
terra se lamentarão”.
c. Mateus mostra também que, segundo o ensino de Cristo, a Sua
gloriosa volta não só será visível mas também audível: “com grande
clangor de trombeta”.
O relato de Lucas às vezes assemelha-se mais ao de Marcos que ao
de Mateus, e outras vezes vice-versa. Neste caso fala de “sinais no sol,
na lua e nas estrelas”, e em geral ressalta o efeito que com a chegada do
Filho do homem produz-se nos habitantes da terra: a angústia das
nações, o temor e a perplexidade dos homens por causa das coisas que
sobrevirão, incluindo o bramido do mar e das ondas, e a comoção das
esferas celestes. Culmina seu relato dando a conhecer a exortação tão
confortante e consoladora do Mestre (Lc. 21:28).
O que logo segue em Marcos 13:24–27, está profundamente
enraizado nas profecias do Antigo Testamento e deve ser interpretado à
luz deste gênero literário. Isto significa que se deve evitar uma
interpretação exageradamente literal. Até que este quadro profético se
converta em história, é provável que não possamos saber quanto
devemos tomar literalmente e quanto figurativamente. Há uma coisa que
se deve interpretar de forma literal, como vemos em 2 Pedro 3:10.
Haverá indubitavelmente “um novo céu e uma nova terra” (2Pe. 3:13;
Ap. 21:1). Entretanto, visto que o fundo profético explicou-se de forma
mais ou menos detalhada no CNT sobre Mateus, e sendo que, segundo se
mostrou, os dois relatos (Mt. 24:29–31 e Mc. 13:24–27) assemelham-se
Marcos (William Hendriksen) 693
muito estreitamente um ao outro, permito-me remeter ao leitor à p. 904
desse volume.
O que Marcos oferece nestes versículos pode-se considerar sob as
seguintes subdivisões:
1. Perturbações apocalípticas nas esferas celestes (vv. 24, 25); 2. A
chegada do Filho do Homem como libertador (v. 26); e 3. Reunião dos
escolhidos dispersos (v. 27).

1. Perturbações apocalípticas nas esferas celestes


24, 25. Mas, 647 naqueles dias, após a referida tribulação, o sol
escurecerá, a lua não dará a sua claridade, as estrelas cairão do
firmamento, e os poderes dos céus serão abalados.
É um quadro muito vívido, inclusive um pouco mais em Marcos
que em Mateus. Note-se Mateus 24:29, “E as estrelas cairão do céu”,
contrastado com Marcos 13:25, que literalmente diz: “E as estrelas
estarão caindo do céu”. 648 Podemos imaginá-las caindo uma a uma.
De modo que, primeiro devemos voltar por um momento ao último
dia da terrível angústia ou tribulação. Com a terra empapada com o
sangue dos santos, de repente o sol se escurece (cf. Ap. 6:12).
Naturalmente, a lua deixa também de dar sua luz. As estrelas se desviam
de suas órbitas e se precipitam à sua ruína. Provavelmente o relato
prossegue como um resumo de tudo isto, “e os poderes dos céus serão
abalados”.

2. Chegada do Filho do Homem como libertador.


26. Então, verão o Filho do Homem vir nas nuvens, com grande
poder e glória.

647
Embora seja verdade que _λλά nem sempre tem um significado adversativo, aqui tem sentido
traduzir “mas”. Esta palavra marca a transição da suprema angústia (v. 19s) à abrupta e total
libertação. Cf. 2Ts. 2:8a em contraste com 8b; Ap. 11:10 frente ao v. 11 e 20:9 em oposição a 10, 11.
648
Note-se o futuro perifrástico _σονται … πίπτοντες.
Marcos (William Hendriksen) 694
Este “verão” deve referir-se a “toda a humanidade” (cf. Ap. 1:7).
Como se indicou mais acima, Mateus 24:30 diz: “Então, aparecerá no
céu o sinal do Filho do Homem”, mas tanto Marcos como Lucas deixam
fora a palavra “sinal”. Simplesmente apresentam a Jesus que diz que os
homens “verão o Filho do Homem vindo” majestosamente. Solução
provável: a própria aparição do Filho do Homem nas nuvens de glória, é
em si o sinal, o sinal grande e final do ponto de vista da terra. A
esplendorosa automanifestação de Cristo será o sinal ou sinal de que Ele
Se prepara para encontrar-se com Seu povo enquanto eles sobem para
encontrá-Lo no ar. Deve libertar os escolhidos oprimidos (claramente
implícito nos vv. 20, 27; veja-se também Lc. 21:28). Na realidade,
recolherá a todos os escolhidos — tanto os que vivem como os que já
dormiram — para que estejam com Ele para sempre.
Esta aparição majestosa do Filho do Homem é também um sinal em
outro sentido: a gloriosa forma de sua aparição corresponde exatamente
à predição de Daniel 7:13, 14 (cf. Mc. 14:62). Quanto ao significado de
“nuvens” veja-se CNT sobre Mateus 17:5. A glória que caracteriza à
repentina e esplendorosa manifestação do Filho do Homem é uma prova
categórica da complacência que acha o Pai em seu Filho, e da justiça da
causa Daquele que foi em outro tempo “varão de dores, experimentado
em quebras” (Is. 53:3).
Note-se “o Filho do Homem”, veja-se em Marcos 2:10; e note-se
também “com grande poder e glória”. Esse “poder” é evidente pelo que
acontece em Sua vinda: veja-se vv. 24, 25, 27; e acrescente-se Ap.
14:14–16; também Ap. 20:11 (à vista do Ap. 3:21; 5, 7, 8, é impossível
tirar o Filho deste trono). “E glória”, porque em Sua vinda todos os Seus
atributos — poder, sabedoria, santidade, amor, etc. — brilham de
maneira resplandecente. Este “grande poder e glória” vê-se aumentado
pelo que se manifesta no seguinte versículo:
Marcos (William Hendriksen) 695
3. Reunião dos escolhidos dispersos
27. E ele enviará os anjos e reunirá os seus escolhidos dos
quatro ventos, da extremidade da terra até à extremidade do
céu 649 . 650
Para a época quando Cristo voltar haverá muitas pessoas que terão
morrido, tendo passado desta morada terrestre para a celestial. O que
sucederá é que os que “partiram” se reunirão rapidamente com seus
corpos já glorificados. Os “que tiverem ficado”, quer dizer, os filhos de
Deus que ainda vivam na terra quando Cristo voltar, serão transformados
“num abrir e fechar de olhos” (1Co. 15:52).
Juntos, todos os escolhidos formarão agora uma incontável
multidão, e assim reunidos “da extremidade da terra até à extremidade
do céu”, acompanhados pelos anjos divinamente instruídos para esta
operação, avançarão como a Esposa que vai ao encontro do Marido, para
estar com ele para sempre. Veja-se CNT sobre 1 Ts. 4:13–18.
Evidência a favor das distintas partes desta apresentação:
a. O envio dos anjos.
Embora nenhuma das seguintes passagens ensina exatamente o que
aqui se afirma com relação à tarefa que corresponde aos anjos quando
Cristo voltar, Marcos 13:27 (cf. Mt. 24:31) está em harmonia com as
seguintes: Mt. 13:41, 49; Mc. 8:38; Lc. 9:26; 16:22; 2Ts. 1:7; Hb. 1:14.
Veja-se também o resumo do ensino bíblico a respeito dos anjos, CNT
sobre Mateus, p. 729.
b. Seus escolhidos. Veja-se mais acima sobre o v. 20.
c. Os quatro ventos. Estes representam os quatro pontos cardeais;
portanto, “dos quatro ventos” significa “de todas as partes”. Veja-se Zc.
2:6; e cf. Dt. 30:4; Is. 11:12; Ez. 7:2; Ap. 7:1; 20:8.

649
Ou, com a Versión Popular, “do último canto da terra até o último canto do céu”.
650
Literalmente, “do cabo da terra ao cabo do céu”, de um extremo ao outro, da terra e do céu. _κρον
é o pico, topo, ponto mais alto, fim; e por isso, o extremo de um bordão (Hb. 11:21), ponta do dedo
(Lc. 16:24). Cf. acrópoles, o ponto mais alto ou a parte mais alta (com frequência fortificada) da
antiga cidade grega, p. ex., de Atenas com seu Partenon.
Marcos (William Hendriksen) 696
d. “da extremidade da terra até à extremidade do céu”.
É verdade que o Antigo Testamento contém muitas passagens que
mostram que serão reunidos os filhos de Deus que estão espalhados (Dt.
30:4; Is. 11:11–16; 27:12, 13; Ez. 39:27, 28; Zc. 2:6–11, etc.). Embora
não haja dúvida de que estas referências são úteis, é preciso entender que
tão somente antecipam ou prefiguram o que se ensina aqui em Marcos
13:27. Esses textos predizem uma volta à terra de Canaã, e é um fato
sabido que o remanescente voltou efetivamente. Segundo Marcos 13:27,
Jesus não fala de voltar para a terra prometida, mas à reunião coletiva
junto a Ele de todos os escolhidos, em Sua gloriosa volta. De modo que
se alguém busca passagens paralelas (além de Mt. 24:31), antes, deve ir a
Mt. 25:31–40; Jo. 10:16; 2Co. 5:10; 1Ts. 4:16, 17; e Ap. 19:6–8.

Mc. 13:28–31 - A lição da figueira


Cf. Mt. 24:32–35; Lc. 21:29–33

Nesta seção (vv. 28–31) e também na seguinte e última (vejam-se


especialmente os vv. 33 e 37) a admoestação substitui de forma
considerável a predição. É verdade que já houve admoestação antes
(vejam-se os vv. 5, 7, 9a, 11, 13, 14, 16, 21, 23), mas a seção
imediatamente precedente (vv. 24–27) era de caráter exclusivamente
preditivo, e faz com que o caráter exortador dos versículos 28–31
sobressaia de forma muita mais clara.
Os relatos de Mateus e de Marcos são quase idênticos. As leves
diferenças podem ser consideradas questão de estilo. Embora também o
relato de Lucas seja notavelmente similar, há duas variações que
merecem atenção. Em lugar de “Aprendei, pois, a parábola da figueira”,
Lucas escreve, “Vede a figueira e todas as árvores”, como se dissesse,
“O que é válido com relação à figueira, é basicamente válido também
com relação a todas as árvores frutíferas”. E em lugar de “…sabei que
está próximo, às portas”, Lucas escreve, “…sabei que está próximo o
reino — ou realeza, domínio — de Deus”. Isto também poderia ser uma
Marcos (William Hendriksen) 697
variação de interpretação. Quer que a terceira pessoa de “está perto” se
aplique à queda de Jerusalém (no ano 70 d.C.) ou à volta de Cristo,
refere-se à repentina e pública manifestação do governo de Deus e,
portanto, marca o fim de uma época, o fim da era.
28, 29. Aprendei, pois, a parábola da figueira: quando já os seus
ramos se renovam, e as folhas brotam, sabeis que está próximo o
verão. Assim, também vós: quando virdes acontecer estas coisas,
sabei que está próximo, às portas. 651
Os ramos de uma figueira se tornam brandos e tenros pela seiva que
abunda em seu interior. Não é de estranhar, então, que logo os ramos
comecem a produzir cada vez mais folhas. Quando isto sucede numa
figueira ou nos árvores frutíferas em geral (Lc. 21:29),652 os discípulos
651
Para συκ_, συκ_ς veja-se em 11:13. μάθετε é um aor. imper. 2a pes. pl. de μανθάνω. Quanto a mais
detalhes com relação a este verbo veja-se CNT sobre Mateus, nota 488; e nota 547. παραβολή usa-se
aqui no sentido de uma breve comparação ilustrativa ou lição. Veja-se também sobre Mc. 3:23; e no
CNT sobre Mateus, pp. 31, 648, 902. Um κλάδος (relacionado com κλάω, quebrar) pode indicar
basicamente uma varinha tenra quebrada com o fim de fazer um enxerto; em consequência, um
renovo, ramo. Note-se o contraste entre γένηται, aor. subj. 3ª. pes. sing. de γίνομαι, e _κφύ_, pres.
subj. 3ª. pes. sing. de _κφύω. O primeiro destes dois verbos é o que se poderia chamar um aoristo
constativo. Em lugar de “constativo” pode também denominar-se “histórico”, “normal”, ou “regular”.
Conforme se usa aqui, simplesmente declara um fato, fazendo caso omisso do tempo ocupado em
realizá-lo. O termo “pontual” é um tanto confuso pelo fato de que isto poderia ser interpretado como
que a ação expressa pelo verbo teve lugar num momento ou “ponto” de tempo. O segundo verbo é um
presente descritivo, durativo ou linear. Quase se podem ver aquelas folhas brotando, uma, logo outra,
etc. Um φύλλον (aqui acus. pl. φύλλα) é uma folha. Cf. microfila; e também, através do latim,
folhagem. Quanto a γινώσκετε no v. 28, há consenso geral de que esta é um pres. ind. 2ª. pes. pl. de
γινώσκω. É verdade também com relação a γινώσκετε no v. 29? Segundo vários tradutores o é; em
consequência, “sabem”. Mas outros o interpretam no v. 29 como um imperativo 2ª. pes. pl., “saibam”,
“saibam então”, “reconheçam”, ou algo parecido. Seguem esta linha NTT, CB, BP, CI, BJ, LT,
Lenski, holandês (Nieuwe Vertaling), etc. Embora aceitando a possibilidade de que a primeira teoria
seja correta, eu adotei a segunda, à vista da exortação introdutória implícita em μάθετε. No Novo
Testamento θέρος, “verão, a estação do calor”, aparece somente aqui (em Mc. 13:28 e seus paralelos:
Mt. 24:32; Lc. 21:30). Lembre o vocábulo termômetro. Finalmente, _δητε usa-se aqui como um aor.
subj. 2ª. pes. pl. de _ράω.
652
H. Mulder, Spoorzoeker in Bijbelse Landen (Amsterdã, 1973), p. 93, é da opinião que a figueira
menciona-se à parte porque geralmente produz folhas mais tarde que os outras árvores; p. ex., muita
mais tarde que a amendoeira. Veja-se CNT sobre Mt. 24:32, 33 para outra razão de por que menciona-
se aqui à figueira em preferência a outras árvores. Também deve ter-se em conta a grande abundância
e popularidade das figueiras.
Marcos (William Hendriksen) 698
percebem de que o verão está próximo. De modo similar, quando em
algum momento de sua vida, os discípulos verem “acontecer estas
coisas”, quer dizer, quando observarem que não apenas são mais
frequentes os terremotos, a fome, as guerras, etc., mas também
particularmente virem “o abominável da desolação” (quer dizer, que se
aproxima o exército romano) devem saber que o fim de Jerusalém e de
seu templo está perto, tão perto para poder, por assim dizer, entrar por
suas portas.
Assim também, quando em tempos muito mais longínquos os
crentes virem o Anticristo final realizando sua obra de sacrilégio e
desolação, saberão que o glorioso dia da volta de Cristo está perto.
Entretanto, à vista da frase “quando virdes acontecer estas coisas”, a
ênfase aqui nos versículos 28, 29 está no que estes discípulos (ao menos
alguns deles) haveriam de presenciar durante sua vida na terra.
O versículo 30 deixa muito claro o fato de que, inclusive naquele
momento, o olhar profético de Cristo estava enfocado não só nas aflições
que haveriam de sobrevir e/ou ameaçar os judeus, incluindo os cristãos,
durante a luta com Roma, mas também no que ocorreria aos judeus
através da nova dispensação, até os dias de Sua volta.
30. Em verdade vos digo que não passará 653 esta geração sem
que tudo isto aconteça.
Note-se a impressionante introdução: “Em verdade vos declaro”
(veja-se em Mc. 3:28). Significado provável da passagem: “Esta geração,
ou seja, o povo judeu — veja-se Dt. 32:5, 20; Sl 12:7; 78:8, etc. — não
deixará de existir até que todas estas coisas que Eu (Jesus) predisse,
tenham sucedido”. A expressão “tudo isto” cobre os eventos preditos
para toda a nova dispensação, incluindo a tribulação final e a gloriosa
volta do Senhor. Para os argumentos em defesa desta interpretação e a
refutação de outras teorias, veja-se CNT sobre Mateus, pp. 909–911.
A majestosa declaração final,

653
παρέλθη aor. subj. 3ª. ps. sing. de παρέρχομαι.
Marcos (William Hendriksen) 699
31. Passará o céu e a terra, porém as minhas palavras não
passarão,654 merece toda a ênfase que lhes possa ser dado. Ao dizer
Jesus que o céu e a terra passarão, não se refere à uma total aniquilação
senão a uma gloriosa renovação. Já havemos descrito no CNT sobre
Mateus, pp. 906, 907, o quádruplo processo de transformação — ou seja,
consagração, rejuvenescimento, autorrealização, e harmonização — por
meio do qual este “passar” da “condição atual” deste mundo, e o
nascimento de um novo céu e uma nova terra, serão realizados de acordo
com passagens tais como Is. 11:6–9; Rm. 8:18–22; 1Co. 7:31; 2 P. 3:10,
13; Ap. 21:1–5. O que Jesus recalca aqui é que o universo físico que nos
rodeia, que está acima e debaixo de nós — montanhas, vales, rios,
vegetação, mundo animal, céu, solo, etc. — como agora o vemos, por
muito firme e forte que nos pareça, na realidade é instável. Entretanto, as
palavras de Cristo continuarão demonstrando sua estabilidade e valor
para todo o sempre. A negação “não passarão” encerra uma forte
afirmação: “durarão para sempre”. Este ponto está confirmado não só
por passagens tais como Is. 40:8; 1Pe. 1:24, 25, mas também pelos
séculos de cumprimento de profecias, tanto antes como depois do
nascimento de Cristo!

Mc. 13:32–37 - A necessidade de estar sempre preparado, à vista da


incerteza sobre o dia e a hora da vinda de Cristo
Cf. Mt. 24:36–44; 25:13, 14; Lc. 21:34–36

O versículo 32 é muito parecido com Mateus 24:36. Quanto ao


mais, o material de Marcos 13:33–37 acha-se quase exclusivamente
neste Evangelho (veja-se CNT sobre Mateus, pp. 14, 15). Mas como
também se diz implicitamente nessas páginas, a singularidade não é
absoluta; porque, a. “Estejam sempre de sobreaviso e preparados à vista
da segunda vinda do Filho do Homem”, é a lição central não só desta

654
παρελεύσονται fut. ind. 3ª. pes. pl. de παρέρχομαι (cf. v. 30).
Marcos (William Hendriksen) 700
passagem de Marcos mas também de Mateus 24:37–44 (cf. 25:1–13), e
Lucas. 21:34–36; e b. há inclusive um certo grau de semelhança verbal
entre:
Mc. 13:33 e Mt. 24:42; 25:13; Lc. 21:36;
Mc. 13:34 e Mt. 25:14; e
Mc. 13:35–37 e Mt. 24:42.

32. Mas a respeito daquele dia ou da hora ninguém sabe; nem


os anjos no céu, nem o Filho, senão o Pai.
Já havemos descrito a série de acontecimentos que tem que
preceder à volta de Cristo. Entretanto, o momento preciso deste grande
evento não se indicou ainda. Tampouco pode-se, porque esse momento é
conhecido unicamente pelo Pai e não o revelou. Embora os anjos têm
uma estreita relação com Deus (Is. 6:1–3; Mt. 18:10), e embora estejam
intimamente associados com os eventos que pertencem à segunda vinda
(Mt. 13:41; 24:31; Ap. 14:19), eles não sabem o dia nem a hora. Nem
tampouco, na verdade, o Filho mesmo, considerado sob o aspecto de sua
natureza humana. Veja-se também sobre Mc. 2:8; 5:32; 9:33, 34; 10:33,
34; 11:12, 13. O fato de que nem mesmo o Filho do Homem soubesse,
quanto a sua natureza humana, está em concordância com Fp. 2:7,
“despojou-se a si mesmo”. O Pai, só ele sabe. Isto prova a futilidade e
pecaminosidade de todo tento por parte do homem de predizer a data do
retorno de Cristo, quer seja esta 1843, 1844, mais precisamente em 22 de
outubro de 1844, o outono de 1914, ou qualquer outra. Veja-se Dt.
29:29. A curiosidade é algo maravilhoso. Mas não existe desculpa
alguma para farejar, intrometer-se ou ser impertinente.

33. Estai de sobreaviso, vigiai 655 .… 656

655
Alguns manuscritos acrescentam: orai.
656
_γρυπνε_τε = _γρα, caça, _πνος, sonho; em consequência “afugentar o sonho”, e assim: “Vigiem”.
Veja-se Vincent Taylor, Op. cit., p. 523. Isto é, entretanto incerto; cf. TL, p. 9.
Marcos (William Hendriksen) 701
Pela quarta vez Jesus diz, “Estai de sobreaviso” ou “Tomai
cuidado” (veja-se os vv. 5, 9, 23, 33). Os discípulos deviam estar bem
acordados. Tinham estado perguntando sobre o tempo em que se
cumpririam as predições do Mestre (v. 4). Muito mais preocupados
deveriam ter estado a respeito de como usar proveitosamente o tempo.
Deviam ter clara consciência dos perigos morais e espirituais que os
espreitavam (vv. 21, 22), para assim poder tomar armas contra eles e
estar em condições de advertir a outros. Deviam estudar os eventos que
se estão desenvolvendo e os que viriam, a fim de poder discernir o
cumprimento das predições de Cristo e ser fortalecidos na fé (v. 23).
Além disso, é evidente que estar de sobreaviso é sinônimo de tomar
cuidado ou estar alerta, o que por sua vez está associado a ser constante
na oração (Mc. 14:38; cf. Mt. 26:41). Por isso, está muito justificado
concluir que as expressões: Estai de sobreaviso, estai alerta — sugerem
também que, “Em meio de todas as circunstâncias não se esqueçam de
rogar a Deus, pedindo a sabedoria e fortaleza necessárias”. 657
Continua:
porque não sabeis quando será o tempo. 658 Se nem os anjos do
céu, nem mesmo o Filho do Homem sabem o momento exato da segunda
vinda (v. 32), então os miseráveis pecadores, incluindo os apóstolos e a
todos os crentes, estão em total ignorância com relação a este ponto.
Portanto, sempre será totalmente impossível para qualquer um dizer,
“Ele não virá até tal e tal data; assim que não precisamos estar
preparados agora”. Nosso dever é estar preparados … sempre.

Por meio de uma ilustração — poderia inclusive chamar-se parábola


— Jesus sublinha o dever da vigilância constante:

657
Portanto, embora a inclusão de “e orai” não tem apoio textual suficiente em Mc. 13:33, o
pensamento em si está indubitavelmente incluído.
658
Para o significado de καιρός, veja-se sobre 1:15, nota 32.
Marcos (William Hendriksen) 702
34. É como um homem que, ausentando-se do país, deixa a sua
casa, dá autoridade aos seus servos, 659 a cada um a sua obrigação, e
ao porteiro 660 ordena 661 que 662 vigie. 663
Estar (constantemente) alerta ou vigilante é uma palavra grega de
onde se deriva o nome próprio Gregório (aquele que está atento ou
vigilante).
A palavra significa aqui viver uma vida santificada, consciente do
dia do juízo que se aproxima.
Requer-se circunspeção e prevenção espiritual e moral; é necessário
estar sempre preparados. A pessoa alerta tem sempre seus lombos
cingidos e sua lâmpada acesa (Lc. 12:35). Nessa atitude espera a vinda
do Marido. Para mais detalhes sobre o tema da vigilância e todo o
compreendido nela, veja-se no CNT sobre 1Ts. 5:6–8a.
Agora, na ilustração a ênfase recai no mandamento de estar alerta
que é dado ao porteiro. O significado da figura é o seguinte: o
proprietário, antes de sair da casa, não só delega autoridade aos seus
servos, designando a cada um uma responsabilidade definida, como
coisa comum, mas de maneira especial manda o porteiro que em nenhum
caso descuide seu dever de estar alerta. Que esta seja realmente a ênfase
deduz-se do fato que tanto o versículo precedente (v. 33) como o
seguinte (v. 35) recalcam este mesmo ponto. 664
35–37. Vigiai, 665, 666 pois, porque não sabeis quando virá o dono
da casa: se à tarde, se à meia-noite, se ao cantar do galo, se pela

659
Ou: escravos.
660
θυρωρός (_ de um homem; _ de uma mulher ou menina) = θύρα (porta) e _ρα (cuidado). Veja-se
Jo. 10:3; 18:16, 17.
661
_ντειλατο, aor. ind. 3ª. pes. sing. de _ντέλλομαι. Assim também em 10:3; e cf. Mt. 15:4; 17:9;
19:7; Jo. 8:5; 14:31; Hb. 9:20; 11:22. Para _ντολή veja-se sobre Mc. 7:8, nota 319.
662
_να seu final, “que deveria manter-se” em consequência, “que se mantivesse”.
663
γρηγορ_, pres. subj. 3ª. pes. sing. de γρηγορέω.
664
Do mesmo modo Lenski, Op. cit., p. 373. Entre as traduções inglesas desta passagem não as achei
melhores que A.R.V. e NAS.
665
Ou: tanto no começo do v. 35 como no final do v. 37, “Estejam vigiando”.
666
γρηγορε_τε (vv. 35 e 37), pres. imper. 2ª. pes. pl. de γρηγορέω.
Marcos (William Hendriksen) 703
manhã; para que, vindo ele inesperadamente, não vos ache667
dormindo. O que, porém, vos digo, digo a todos: vigiai!
Note-se o seguinte:
a. O significado da ilustração sai agora à superfície. O senhor ou
dono da casa representa Cristo, o Filho do Homem (ver os vv. 21, 26). É
Ele quem, devido à Sua morte e ascensão Se apartará de Seus discípulos
por um tempo. Mas voltará; primeiro mediante Sua ressurreição e
derramamento do Espírito Santo (cf. Jo. 16:16). Mais tarde, no final da
presente era, virá nas nuvens, como o Marido, para tomar a Esposa
consigo para que esteja com Ele para sempre (cf. Jo. 14:3; 1Ts. 4:13–
18). O que Jesus tem em mente aqui é sua última “vinda”. A igreja deve
estar à espera, sempre alerta.
b. Tal vigilância, ou vigília opõe-se totalmente ao dormir. O
segundo indica descuidado moral e espiritual. Lucas 12:45 descreve esta
situação com viveza. Também o faz a descrição das cinco virgens
néscias, que tomaram suas lâmpadas mas não levaram o azeite consigo
(Mt. 25:3, 8), transluzindo assim sua negligência e desinteresse.
c. Quais são as características de tal vigilância? Significa
meramente olhar às nuvens todas as manhãs para ver se Jesus começa a
aparecer? De maneira nenhuma! A vigilância a que aqui se refere não só
é de preocupação e oração, é também inteligente, contínua, e,
especialmente, ativa. Veja-se, p. ex., Jo. 15:4, 12, 26: “Permanecei em
mim … amai-vos uns aos outros … dai testemunho de mim”. Ou estude-
se 1Co. 16:13, 14 - “Sede vigilantes, permanecei firmes na fé, portai-vos
varonilmente, fortalecei-vos. Todos os vossos atos sejam feitos com
amor”. Considere-se também Jo. 9:4; Rm. 13:8–12; 1 Cor. 15:58.
d. “Não sabeis quando virá o dono da casa”, repete o pensamento
do versículo 32, mas aqui se torna mais específico, porque Jesus
acrescenta, “se à tarde, se à meia-noite, se ao cantar do galo, se pela
manhã”. Veja-se mais acima em Mc. 6:48. Achamo-nos aqui diante das

667
ε_ρ_, aor. at. 3ª. pes. sing. de ε_ρίσκω.
Marcos (William Hendriksen) 704
chamadas quatro “vigílias” ou seja: tarde: 6–9 p.m. meia-noite: 9 p.m.–
12 da noite canto do galo: 12–3 a.m. amanhecer 3–6 a.m. 668
Não se deve passar por alto que em cada caso é dito que a vinda terá
lugar durante uma das vigílias da noite; quer dizer, no momento menos
esperado. Cf. Mt. 24:44.
e. As palavras, “O que, porém, vos digo, digo a todos: vigiai!”
mostram que o Mestre desejava imprimir em Seus discípulos o fato de
que Sua admoestação de estar alerta — na realidade, que todo Seu
discurso — era de valor supremo, não só para eles mas também para
todos os crentes de então e do futuro.
Qual é a atitude correta com relação à vinda do Senhor? O povo de
antes do dilúvio (Lc. 17:26, 27) estava alerta quanto ao seu presente, mas
despreocupado com relação ao futuro. Estavam tão ocupados com os
assuntos presentes e mundanos, que não se incomodavam em pensar nos
iminentes perigos.
Alguns tessalonicenses, (2Ts. 2:1, 2; 3:6–12) à inversa, estavam
despreocupados com o presente mas alertas para com o (imediato?)
futuro. Deixaram o trabalho. Diziam entre si: Para que atender as
necessidades terrestres quando muito em breve desceriam sobre eles os
tesouros celestiais?
A única atitude correta era a da igreja de Esmirna (Ap. 2:8–11).
Eles estavam alerta tanto com o presente como com o futuro. Atendiam
os seus deveres atuais com tal fidelidade, que se enchiam de consolo
com prazerosa antecipação para olhar ao futuro, para o dia em que
receberiam a coroa da vida das mãos bondosas do Senhor.

668
_ψέ e πρω_ são advérbios de tempo; _λεκτοροφωνίας é um genitivo que mostra o tempo durante o
qual algo (aqui, canto do galo) sucede. Alguns intérpretes, aparentemente pensando que μεσονύκτιον
seria aqui impróprio, pelo fato de que poderia romper a simetria e deveria significar “através da meia-
noite” (Lenski, Op. cit., p. 374), adotam a leitura que tem um genitivo. Mas isto não é necessário:
μεσονύκτιον pode considerar-se um adjetivo neutro, usado adverbialmente. O significado poderia ser
então “a meia-noite”.
Marcos (William Hendriksen) 705
Resumo do Capítulo 13

Os versículos 1–4 descrevem as circunstâncias que provocaram o


discurso sobre as últimas coisas. Em harmonia com Mateus 23:38, ao
sair do templo Jesus prediz a destruição total do maravilhoso edifício.
Isto o disse em resposta à exclamação de assombro dos discípulos
causada por sua beleza e magnificência. Ao chegar ao monte das
Oliveiras quatro de Seus discípulos Lhe perguntam: “Dize-nos quando
sucederão estas coisas, e que sinal haverá quando todas elas estiverem
para cumprir-se.” No pensamento deles, a queda de Jerusalém
significava a volta de Cristo e o fim do mundo. Veja-se Mt. 24:3. Esta
pergunta deu como resultado o discurso.
Segundo os versículos 5–13 Jesus prediz em primeiro lugar o que
Ele chama “[tão somente] o princípio das dores de parto”, quer dizer, a
aparição de enganadores que dirão, “Eu sou ele”, as guerras e rumores de
guerras, os terremotos, fomes e perseguições. Mais específica é a
declaração na qual afirma que antes que o Filho do Homem possa voltar,
o evangelho deve ser pregado primeiro a todas as nações. Jesus também
assegura aos Seus seguidores que nos processos judiciais que se cercarão
contra eles, o Espírito Santo lhes dará as palavras que devam falar.
Embora todos os odeiem, até os membros de suas famílias, os que
perseverem até o fim serão salvos.
Se a pregação mundial do evangelho tiver que ser o primeiro sinal
preliminar concreto, a que poderia considerar-se como segundo sinal é a
dura tribulação reservada para a igreja (vv. 14, 23). Tal tribulação, que
deve suceder imediatamente antes (Mt. 24:29) da manifestação do Filho
do Homem nas nuvens com grande poder e glória (Mc. 13:26), estará
prefigurada pelas aflições reservadas para Jerusalém, que culminarão
com o “abominável da desolação”, quer dizer, por Jerusalém rodeada de
exércitos (Lc. 21:20) que usarão as imagens idólatras de seu imperador
em seus estandartes. Para os que estiverem na Judeia, sua proximidade
seria o sinal para fugir para os montes. Aos que se sentissem tentados a
Marcos (William Hendriksen) 706
entrar na cidade, ou inclusive em suas casas, Jesus faz uma bondosa
advertência. Também mostra Sua compaixão pelas mulheres que
estiverem em circunstâncias difíceis. Adverte os Seus seguidores que
não se deixem enganar pelos que disserem: “Olhem, aqui [está] o
Cristo!” ou “Olhem, lá [está]!”. O intento de enganar até os escolhidos
não terá êxito. Em consideração para com os escolhidos, os dias da dura
tribulação serão abreviados. Esta seção fecha-se com a reconfortante
exortação de Cristo: “Estai vós de sobreaviso; tudo vos tenho predito”.
Os versículos 24–27 relatam o que sucederá (imediatamente) depois
da tribulação: o sol se escurecerá, a lua não dará sua luz, as estrelas
cairão do céu, etc. Então, repentinamente, “[todos os humanos] verão o
Filho do Homem vir nas nuvens, com grande poder e glória”. O
esplendoroso caráter de Sua aparição, em harmonia completa com
Daniel 7:13, 14, demonstrará que este é realmente o Messias da profecia,
e que as bodas do Cordeiro com Sua esposa, a igreja, estão preparadas
para realizar-se (Ef. 5:32; Ap. 19:7). Para que isto suceda, o glorioso
Filho do homem enviará Seus santos anjos para reunir os escolhidos “dos
quatro ventos, da extremidade da terra até à extremidade do céu”.
A lição da figueira acha-se nos versículos 28–31, e pode
parafrasear-se como segue: “Quando o seu ramo está tenro e brotam as
folhas, vocês sabem que o verão está perto. Assim também vocês, Meus
discípulos, quando virem a série de acontecimentos que culmina com o
abominável da desolação, vocês devem entender que a queda de
Jerusalém está perto, às portas”. Quanto aos judeus em geral, Jesus
prediz que não desaparecerão da terra (não passarão) como povo, até que
“tudo isto” — os eventos que se estenderão até a vinda do Filho do
Homem — ocorra. E acrescenta: “Passará o céu e a terra, porém as
minhas palavras não passarão”.
A necessidade de estar sempre preparado, à vista da incerteza
sobre o dia e a hora da volta de Cristo, recalca-se nos versículos 32–37.
Se ninguém — nem os anjos, nem mesmo o Filho — sabe exatamente
quando tem que ocorrer o retorno, então com maior razão tampouco
Marcos (William Hendriksen) 707
pode sabê-lo o homem pecador. De modo que se requer que esteja
preparado em todo tempo.
Quando o dono de uma casa sai de viagem, não só deixa aos seus
servos ao cargo de todo, atribuindo a cada um seu trabalho concreto, mas
também manda especificamente ao porteiro que permaneça alerta. Então
Jesus, de uma maneira muito bela, termina Seu discurso — segundo o
relato de Marcos — com estas penetrantes palavras: “Vigiai, pois,
porque não sabeis quando virá o dono da casa: se à tarde, se à meia-
noite, se ao cantar do galo, se pela manhã; para que, vindo ele
inesperadamente, não vos ache dormindo. O que, porém, vos digo, digo
a todos: vigiai!”.
Marcos (William Hendriksen) 708
MARCOS 14
Mc. 14:1, 2 - O propósito de Deus contra a confabulação humana
Cf. Mt. 26:1–5; Lc. 22:1, 2; Jo. 11:45–53

Para o leitor que tenha experimentado certa dificuldade em lembrar


quais são os capítulos de Mateus e Lucas que estão em paralelo com os
de Marcos, será um alívio descobrir que para os três últimos capítulos de
cada um destes três Evangelhos, a resposta é simples. Onde há seções
que se correspondem, os acontecimentos registrados em Marcos 14 estão
em paralelo com Mateus 26 e Lucas 22; para os que se acham em
Marcos 15, veja-se Mateus 27 e Lucas 23; para os que se narram em
Marcos 16, estude-se Mateus 28 e Lucas 24. Para estes três capítulos, em
cada caso de correspondência, acrescentando 12 ao número de Marcos,
resulta o número do capítulo de Mateus, e lhe adicionando 8, sai o
número do capítulo de Lucas. Cf. CNT sobre Mateus, pp. 21–24, 36–38.

Na metade de Marcos 14 e seus paralelos está o Getsêmani. O


coração e centro de Marcos 15 e seus paralelos está no Calvário (ou
Gólgota); e o principal tema de Marcos 16 e seus paralelos é
“ressuscitou”. O seguinte quadro mostra tudo isto graficamente:

Marcos Mateus Lucas


Getsêmani 14 26 22
Calvário 15 27 23
“Ressuscitou” 16 28 24
Marcos (William Hendriksen) 709
Paralelos de Marcos 14, 15

Marcos Mateus Lucas Juan, etc.


14:1, 2 26:1–5 22:1, 2 Jo 11:45–53 O conselho de Deus
diante da confabulação
humana

14:3–9 26:6–13 Jo. 12:1–8 A unção em Betânia

14:10, 11 26:14–16 22:3–6 O trato de Judas com


os principais
Sacerdotes

14:12–21 26:17–25 22:7–14, 21– Jo. 13:21–30 A Páscoa


23

14:22–26 26:26–30 22:15–20 1Co. 11:23– A instituição da Ceia


25 do Senhor
22:24–30 La discusión acerca de
la grandeza
14:27–31 26:31–35 22:31–34 Jo. 13:36–38 A predição da negação
de Pedro
22:35–38 “Vos falta algo?”
14:32–42 26:36–46 22:39–46 Getsêmani
14:43–50 26:47–56 22:47–53 Jo. 18:3–12 A traição e captura de
Jesus
14:51, 52 O jovem que escapou
14:53–65 26:57–68 22:54, 55, Jo. 18:13, 14, 19– O juízo diante do
63–71 24 Sinédrio
14:66–72 26:69–75 22:56–72 Jo. 18:15–18, 25– A tríplice negação de
27 Pedro
15:1 27:1, 2 23:1, 2 Jo. 18:28 O Sinédrio decide
matar a Jesus
27:3–10 Hch. 1:18, 19 A morte de Judas por
suicídio
Marcos (William Hendriksen) 710
15:2–5 27:11–14 23:3–5 Jo. 18:33–38 Jesus interrogado por
Pilatos

15:6–15 27:15–26 23:13–25 Jo. 18:39 – 19:16 Jesus sentenciado à


morte

15:16–20 27:27–31 Jo. 19:2, 3 Jesus sofre a zombaria

15:21–32 27:32–44 23:26–43 Jo. 19:19–27 O Calvário: a


crucificação de Jesus

15:33–41 27:45–56 23:44–49 Jn. 19:28–30 O Calvário: a morte de


Jesus

15:42–47 27:57–61 23:50–56 Jo. 19:38–42 A sepultura de Jesus

27:62–66 Custódia da guarda

Ao comparar o conteúdo destes três capítulos como um todo, pode-


se descobrir uma surpreendente semelhança junto a uma interessante
variedade. Isto é verdade acima de tudo com relação aos capítulos 14 e
15 e seus paralelos. Observe-se o quadro seguinte. Quanto ao capítulo
final de cada um dos Sinóticos, o relato a respeito das mulheres e a
tumba vazia se acha em Mc. 16:1–8; Mt. 28:1–10; e Lc. 24:1–12. Cf. Jo.
20:1–10. Além disso, segundo o versículo 6 de cada relato nos Sinóticos,
diz-se que aquelas mulheres, que tinham vindo para ungir o corpo de
Jesus, já tinham ouvido a assombrosa notícia, “ressuscitou”.
Deste ponto em diante, os relatos diferem. A “discutida seção” de
Marcos (16:9–20) resume fatos narrados em outros lugares com maiores
detalhes e também contém outro material sem paralelos. Requer uma
análise à parte, que se fará ao chegar a essa passagem.
Mateus 28, sem paralelo, segue sua história a respeito da guarda
(primeiro temerosa e finalmente subornada). Veja-se os vv. 2–4, 11–15.
Este capítulo termina com a descrição culminante, com paralelos
parciais, sobre a Grande Declaração, A Grande Comissão e A Grande
Consolação (vv. 16–20). Cf. Mc. 16:14–18; Lc. 24:36–49; Jo. 20:19–23;
At. 1:9–11.
Marcos (William Hendriksen) 711
Com exceção de Marcos 16:12 e 13, só Lucas fala da aparição do
Salvador ressuscitado a Cleopas e ao seu companheiro. Lucas cobre 23
versículos do capítulo final de seu Evangelho (Lc. 24:13–35). Com a
história da aparição de Cristo a seus discípulos em Jerusalém (vv. 36–49;
cf. Mc. 16:14; Jo. 20:19ss.) e de Sua ascensão (vv. 50–53; cf. Mc. 16:19;
At. 1:9–12) “o médico amado” fecha o primeiro de seus dois livros do
Novo Testamento.
Se várias vezes se repassarem os epígrafes destes três capítulos de
Marcos, facilmente ficam gravados na memória. Uma vez memorizadas
as sequências de Marcos, seus correspondentes paralelos em Mateus e
Lucas — quando tais paralelos existem — localizam-se rapidamente. A
fórmula, “a cifra de Marcos + 12 = o número de Mateus”, ou “a cifra de
Marcos + 8 = o número de Lucas”, é válida nos três capítulos finais.
Um espaço em branco em qualquer das colunas, indica que alguma
seção concreta não aparece no Sinótico mencionado no cabeçalho da
coluna.
Tome-se como exemplo Marcos 14:51, 52. Aqui as colunas de
Mateus e de Lucas têm um espaço em branco, indicando com isto que a
história a respeito do jovem que escapou encontra-se só em Marcos.
Uma olhada às colunas indica que, quanto aos Evangelhos, o único
que relata o suicídio de Judas é Mateus. E como já se mencionou, só este
publicano convertido narra a história da guarda.
Entre os sinóticos, unicamente Marcos e Mateus relatam a unção
em Betânia. Entretanto, há um paralelismo em João 12:1–8. O
paralelismo de Marcos-Mateo inclui a zombaria que, segundo muitos,
tem sua passagem correspondente em João. Não há seções inexistentes
em Marcos que sejam comuns a Mateus e Lucas. 669
Os últimos três capítulos do Evangelho de Lucas contêm muitas
seções sem paralelo (ou quase sem paralelo): a Discussão a respeito da
Grandeza; “Faltou-lhes Algo?”; Jesus diante de Herodes, a Aparição de

669
Isto é desconcertante para os defensores de “Q”. Veja-se CNT em Mateus, pp. 35, 55–58.
Marcos (William Hendriksen) 712
Jesus Ressuscitado a Cleopas e seu Companheiro (com exceção de Mc.
16:12, 13); e a Ascensão (mas veja-se Mc. 16:19; At. 1:9–12). Inclusive
a seção relacionada com a aparição de Cristo aos discípulos em
Jerusalém (Lc. 24:36–49) carece de passagem paralela quase por
completo.
A quarta coluna contém várias referências ao Evangelho de João.
Entretanto, as únicas seções de João que indicou são aquelas que, até
certo ponto, estão em paralelo com o material que se acha nos três
capítulos finais dos Sinóticos. Com relação ao relato completo que faz o
discípulo amado, veja-se João 13–21 (melhor ainda, caps. 11–21). Pelo
fato de que os capítulos 14–17 do quarto Evangelho cobrem os Discursos
no Cenáculo e na Oração Sacerdotal, que são temas ausentes nos
Sinóticos, nenhuma das referências de passagens paralelos na quarta
coluna está com relação a estes capítulos, porém são todas dos capítulos
11, 12, 13, 19, e 20 de João. A narração do capítulo 21 não tem paralelo.
O esboço do Evangelho de João é muito simples. Há duas divisões
principais: a. Ministério Público de Cristo (caps. 1–12) e b. Ministério
Privado (caps. 13–21). Quanto ao resto veja-se CNT sobre João, pp. 72,
266, 402, 488, 532, 646, 722.
O fato de que nos familiarizemos com a sequência em que ocorrem
as seções dos capítulos finais de cada Evangelho, não quer dizer que
poderemos localizar imediatamente qualquer passagem importante. Há
grande variedade até dentro das divisões individuais. É necessário ler
constantemente a Escritura. Ajuda muita não só repassar com frequência
os cabeçalhos das seções, mas também o conteúdo detalhado de cada
uma delas. Ao fazer isto, logo se pode constatar, por exemplo, que as
sete palavras da cruz se acham distribuídas como segue:
Primeira palavra, Lc. 23:34 670
Segunda palavra, Lc. 23:43
Terceira palavra, Jo. 19:26, 27

670
Ausente em alguns dos manuscritos antigos.
Marcos (William Hendriksen) 713
Quarta palavra, Mt. 27:46; Mc. 15:34
Quinta palavra, Jo. 19:28
Sexta palavra, Jo. 19:30
Sétima palavra, Lc. 23:46
Voltando, então, a Marcos 14:1, 2 e seus paralelos, notamos as
seguintes variações na maneira que se relatam os fatos:
a. Como é típico de Mateus (veja-se CNT sobre Mt. 19:1), em seu
Evangelho afirma que o fato que narra ocorreu “concluindo Jesus estas
palavras”.
b. A indicação de data, que em Marcos e Lucas provém do próprio
evangelista, em Mateus atribui a Jesus: “Sabem que dentro de dois dias
se celebra a Páscoa, e o Filho do Homem será entregue para ser
crucificado”.
c. Marcos fala da festa da Páscoa e dos pães Asmos”, Mateus da
Páscoa”, e Lucas da festa dos pães Asmos … que se chama a Páscoa”.
d. Só Mateus apresenta a Jesus declarando que nesta Páscoa “o
Filho do homem será entregue para ser crucificado”. Embora só este
evangelista informa isso, tal relatório constitui o fundo dos três relatos.
e. Embora os três afirmem que neste tempo — dois dias antes da
Páscoa — os inimigos de Jesus estavam forjando Sua morte apesar de ter
medo do povo, Marcos e Mateus acrescentam que a razão deste temor
era que uma detenção durante a festa poderia provocar um alvoroço entre
o povo.
f. Estes dois evangelistas, porém não Lucas, descrevem os
conspiradores, planejando prender Jesus “por meio de algum engano”, e
“não durante a festa”.
g. Mateus é o único que menciona que, com o propósito de planejar
como teriam que levar a cabo a morte de Jesus, os conspiradores
convocaram uma reunião especial no palácio de Caifás, o sumo
sacerdote.
h. Segundo Mateus, os conspiradores foram “Os principais
sacerdotes e os anciãos do povo”; segundo Marcos e Lucas, foram “Os
Marcos (William Hendriksen) 714
principais sacerdotes e os escribas”. Isto mostra que todo o Sinédrio —
principais sacerdotes, anciãos e escribas — estava representado;
provavelmente também significa que os principais sacerdotes assumiram
a direção.
Pois bem, Marcos 14:1, 2 deve interpretar-se à luz de tudo isso.
1. Dali a dois dias, era a Páscoa e a Festa dos Pães Asmos; e os
principais sacerdotes e os escribas procuravam como o prenderiam,
à traição, e o matariam.
Note-se o seguinte:
a. É razoável supor que Jesus foi crucificado no ano 30 d.C., quando
o décimo quarto dia do mês de Nisã caiu na quinta-feira, e a quinze em
sexta-feira. Em Israel, a primeira aparição da lua nova marcava o
princípio do novo mês. Destacava-se pelo toque de trombetas,
sacrifícios, celebrações, suspensão das atividades comuns, e, onde fosse
necessário, com sinais de fogo (Nm. 10:10; 28:11–14; Sl 81:3–5; Am.
8:5, 6). Entre os dias importantes do mês de Nisã estava, por exemplo,
no dia dez, no qual se selecionava o cordeiro pascal, e no dia quatorze
quando se matava o cordeiro pascal. Estes dias importantes do mês se
calculavam a partir deste primeiro dia, ou dia da lua nova, como base.
Veja-se o detalhe dos regulamentos em Êx. 12:1–14; cf. Et. 3:7.
Não há razão para crer que Jesus e Seus discípulos comessem o
cordeiro pascal antes ou depois do dia indicado. O quatorze de Nisã era o
dia em que o cordeiro “devia ser sacrificado” (Lc. 22:7). É claro também
que, imediatamente depois de ter comido o cordeiro, e de instituir o que
veio a chamar “a ceia do Senhor”, Jesus e Seus discípulos (com exceção
de Judas, que se retirou antes, Jo. 13:30) foram ao Getsêmani (Mc.
14:32; Jo. 18:1). Ali, durante o que nós chamaríamos a noite da quinta-
feira para sexta-feira, Jesus foi detido. Na sexta-feira pela manhã cedo,
os membros do Sinédrio “entraram em conselho contra Jesus, para o
matarem” (Mt. 27:1). Foi conduzido diante de Pilatos naquela mesma
manhã, e crucificado no mesmo dia (Mc. 15:1, 25). Portanto, é claro que
Jesus foi crucificada na sexta-feira, o dia antes do sábado (Mc. 15:42, 43;
Marcos (William Hendriksen) 715
Lc. 23:46, 54; Jo. 19:14, 30, 42). Foi ao amanhecer do primeiro dia da
semana “depois do sábado” — em consequência no domingo, o primeiro
dia da semana — quando algumas mulheres foram à tumba e ouviram a
surpreendente notícias: “ressuscitou” (Mt. 28:1, 6; Mc. 16:2, 6; Lc. 24:1,
6; Jo. 20:1).
Deve ficar claro, então, que a teoria segundo a qual Jesus foi
crucificada na quinta-feira é refutada pela evidência dos Evangelhos. 671
O dia em que se matava o cordeiro era seguido pela festa de sete
dias dos Pães Asmos, 672 celebrada do quinze aos vinte e um de Nisã. Era
tão estreita a relação entre a comida da Páscoa propriamente dita e as
festividades imediatas dos Pães Asmos, que o termo “Páscoa”
costumava-se usar às vezes para designar a ambas as festas (veja-se Lc.
22:1).
Visto que “faltavam dois dias” para a Páscoa, foi na terça-feira
quando os inimigos de Cristo se reuniram para planejar a forma de
prendê-Lo e matá-Lo.
b. Os conspiradores eram “os principais sacerdotes e os escribas”; e
segundo Mateus, também “os anciãos do povo”. Para uma descrição dos
três grupos, veja-se sobre Mc. 11:27, 28. Não é isto repugnante? Um
ímpio complô forjado pelos dirigentes de Israel? Por sacerdotes,
escribas, e anciãos? Claro que o é!

671
Sobre este assunto veja-se também CNT sobre Mt. 12:39, 40. A teoria sobre “a crucificação na
quinta-feira” foi novamente tirada à luz recentemente por Roger Rusk na edição de 29 de março de
1974, de Christianity Today, pp. 720–722. Foi refutada por Harold W. Hoehner na edição de 26 de
abril de 1974, pp. 878–881. Conforme assinala Hoehner, se Jesus tivesse morrido na quinta-feira em
lugar da sexta-feira, Pilatos teria assegurado o sepulcro até o quarto dia, não até o terceiro (Mt. 27:62–
66). Pelo que se refere ao tema do computador que determinou as datas exatas de todas as luas novas e
cheias de 1.001 a.C. até 1.651 d.C., e confirmou o fato de que no ano 30 d.C. o quatorze de Nisã caiu
numa quinta-feira e o dia quinze numa sexta-feira, devemos dizer que, embora esta informação seja
interessante e de ajuda, não obstante no que respeita à data do ano 30 d.C. não é precisamente nova.
Veja-se, p. ex. P. Schaff, Op. cit., vol. I, p. 135.
672
Note-se o plural τ_ _ζυμα que se refere provavelmente aos pães Asmos, e que está baseado no
plural do hebraico matzoth. Além disso, deve-se ter em mente que era uma festa que durava vários
dias e que incluía muitas atividades festivas. Este fato também pode ser causa do plural. Veja-se CNT
sobre Mt. 22:1–4.
Marcos (William Hendriksen) 716
Também a igreja teve muitos dirigentes. Alguns foram bons.
Lembram-nos a Josué, aquele que foi sumo sacerdote e tipo de Cristo
(Zc. 6:9–13), digno portador de uma dupla coroa. Foram “escribas
doutos no reino dos céus” (Mt. 13:52), “anciãos que governavam bem”
(1Tm. 5:17).
Mas tem havido — e há — também outros, conspiradores
autênticos, “profetas que fazem errar o meu povo” (Mq. 3:5), anciãos
corruptos que fazem abominações “nas trevas” (Ez. 8:5–13). “Quando a
corrupção invade a igreja o processo começa geralmente pela cabeça”.
“Nenhuma política é tão corrompida como a que se desenvolve na
igreja”.
c. Os inimigos buscavam como capturar a Jesus “por meio de algum
engano”, 673 quer dizer, conforme indica o contexto, “por surpresa” e
“longe da multidão”.
d. “…e o matariam”. O plano de matar a Jesus não era novo. Era de
há muito tempo (Mc. 3:6; 12:7; Jo. 5:18; 7:1, 19, 25; 8:37, 40; 11:53).
Entretanto, bem podemos pensar que devido aos eventos dos dias
anteriores, os dirigentes estavam agora mais decididos que nunca a
acabar com Jesus. Sua inveja tinha se acentuado pela ressurreição de
Lázaro dentre os mortos, fato que levou muitos a crer em Jesus (Jo.
11:45–53); pelo efeito que produziu na multidão a entrada triunfal (Mc.
11:1–11); pela purificação do templo (Mc. 11:15–18, 27, 28); pelas
parábolas que os escribas e fariseus entenderam que eram contra eles
(Mc. 12:12); e pelos ais pronunciados contra os escribas e fariseus (Mc.
12:38–40; cf. Mt. 23).
Além disso, a expressão “como … o matariam” sublinha o fato de
que o que lhes doía era especialmente o seguinte: embora desejassem
intensamente destruir a Jesus, não sabiam como fazê-lo sem criar

673
A expressão _ν δόλ_ é provavelmente, embora não necessariamente, um hebraísmo. Mateus usa o
dativo instrumental simples δόλ_. O significado é idêntico.
Marcos (William Hendriksen) 717
dificuldades maiores para eles mesmos. Isto é ainda mais evidente pelo
que segue no versículo
2. Pois diziam: Não durante a festa, para que não haja 674
tumulto entre o povo.
Os conspiradores compreendiam que Jesus tinha muitos amigos e
simpatizantes, especialmente entre os milhares de galileus que assistiam
às festividades. Em caso de qualquer ação contra seu líder, estes
seguidores poderiam causar graves problemas. A passagem de João
12:17–19 é muito significativa neste sentido. Os inimigos de Jesus
diziam muito amargurados, “Eis aí vai o mundo após ele.” Os principais
sacerdotes, escribas e anciãos não tinham desejo algum de ter que fazer
frente a uma multidão entusiasta, hostil, determinada e alvoroçada que se
reunia na Páscoa. Ressoavam ainda os gritos das hosanas (Mc. 11:9, 10)
nos ouvidos dos conspiradores?
Esperariam pacientemente até que o povoe voltasse para suas casas.
Então, quando as condições fossem mais seguras para eles, matariam a
Jesus! Eles o fariam quando quisessem, pelo menos isso era o que
pensavam. Mas as coisas não sucederam desse modo.
O verdadeiro significado desta passagem não se entende a menos
que se leia em conexão com sua passagem paralela, Mt. 26:1–5 (cf. Ap.
12:1–5, 10). Seu significado se esclarece somente ao contemplá-lo
levando em conta o fundo do decreto de Deus. Os conspiradores diziam:
“Não durante a festa”. O Altíssimo disse: “Durante a festa”. Este era o
decreto divino; vejam-se também Lc. 22:22; At 2:23; Ef. 1:11. Seu
decreto sempre triunfa. Ilustrações:
a. Não parecia que com a queda do homem, Satanás tinha
conseguido a vitória? Veja-se a promessa original (Gn. 3:15).
b. “Encravarei a Davi na parede”, disse Saul (1Sm. 18:11). As
promessas messiânicas estavam entrelaçadas com Davi, quer dizer, o
674
Depois da partícula final μήποτε, pode-se usar o futuro indicativo (como aqui; veja-se também Mt.
7:6) ou o subjuntivo que é mais frequente (como em Lc. 14:12) com muito pouca ou quase nenhuma
diferença em significado. Veja-se Robertson, p. 988.
Marcos (William Hendriksen) 718
decreto de Deus concernente a Davi era diferente dos planos de Saul
(1Sm. 16:12, 13; 25:29; 2Sm. 7:16).
c. As forças de maldade tinham fechado filas contra Judá. Seu
propósito era apagar a casa de Davi e estabelecer seu próprio rei. Mas
logo vem o triunfante Isaías 7:14!
d. A pedido de Hamã se emitiu o decreto para destruir a todos os
judeus; foi uma dessas leis “que não se podiam ab-rogar”, selada com o
anel do rei. Mas a promessa de Deus, segundo a qual o Messias devia
nascer dentre os judeus, selou-se com o juramento do “Rei dos reis”.
Resultado? Leia o livro de Ester.
e. Herodes decide matar ao recém-nascido “Rei dos judeus”. Assim
que ordena que todos os meninos de Belém e seus arredores que fossem
menores de dois anos fossem assassinados sem piedade. Mas a santa
criança ia já caminho do Egito, fora de perigo. Leia-se Mateus 2.
f. Entretanto, parecia que no fim Satanás tinha triunfado. Não estava
Jesus cravado por fim a uma cruz?… Mas esta mesma cruz significou a
ruína de Satanás! 1Co. 1:22–25; Cl. 2:13–15; Ap. 12:10, 11.
“O SENHOR frustra os desígnios das nações e anula os intentos dos
povos. O conselho do SENHOR dura para sempre”. (Sl 33:10, 11; cf. Sl
2:1–4). Este é o fundamento sobre o qual os filhos de Deus constroem
sua esperança para a eternidade, para a glória do triúno Deus!

Mc. 14:3–9 - A unção em Betânia


Cf. Mt. 26:6–13; Jo. 12:1–8 675

Das três fontes que contêm esta história, a de João (12:1–8) é muito
mais detalhada, com 142 palavras no original. Marcos (14:3–9) o segue,
com 124 palavras. A mais curta é a de Mateus (26:6–13) com apenas
109. A diferença consiste principalmente no material que Marcos e/ou

675
Esta história não se deve confundir com a da “mulher pecadora” de Lucas 7. Para argumentos em
favor do rechaço desta identificação, veja-se CNT sobre João 12:2.
Marcos (William Hendriksen) 719
João acrescentam ao resumo de Mateus, embora o estilo também varie,
como era de se esperar.
Os pontos que se acham em Marcos e/ou João, mas não em Mateus
são: a. A mulher quebrou o frasco; b. o perfume poderia ter-se vendido
por uma soma superior ao salário de um ano; c. Os discípulos
murmuravam contra a mulher; d. A mulher que ungiu a Jesus era Maria
(obviamente a irmã da Marta e Lázaro; veja-se Jo. 11:1; cf. Lc. 10:42); e.
ela ungiu os pés de Jesus, e depois os enxugou com seus cabelos; f. a
casa se encheu com a fragrância do unguento; e g. foi Judas quem, por
razões egoístas, tomou a iniciativa nas críticas contra Maria.
A descrição do perfume varia. Também se observam umas
variações quanto ao modo de explicar a razão de por que a mulher fez o
que fez.
Não há contradições. Certo que há pontos que à primeira vista
parecem conflitivos, como p. ex. segundo João a mulher ungiu os pés de
Jesus, mas segundo Mateus e Marcos derramou o perfume sobre sua
cabeça. Mas alguns momentos de estudo revelam que estes detalhe
realmente encaixam de forma maravilhosa, como se verá.
3. Estando ele em Betânia, reclinado à mesa, em casa de Simão, o
leproso, veio uma mulher trazendo um vaso de alabastro com
preciosíssimo perfume de nardo puro; e, quebrando o alabastro,
derramou o bálsamo sobre a cabeça de Jesus.
No versículo 3 Marcos começa a relatar uma nova história. Para
fazê-lo é preciso retroceder alguns poucos dias, desde terça-feira dos
versículos 1, 2 à tarde do sábado anterior quando se fazia em Betânia
uma comida em honra de Jesus. Por que faz Marcos isto? Poderia ser que
quisesse que o melhor da natureza humana (por causa do que a
maravilhosa graça de Deus operou nela), sobressai com mais resplendor
quando fica em contraste com o pior dessa própria natureza? Pôde ter
sido esta a razão pela qual os versículos 3–9, que descrevem a bela obra
de Maria, inserem-se aqui entre os versículos 1, 2; e logo entre os
versículos 10, 11? Estas duas seções circundantes descrevem
Marcos (William Hendriksen) 720
respectivamente a perversidade dos principais sacerdote, escribas, etc., e
também a maldade de Judas, quem foi seu cúmplice no crime. O que
quer que seja, este relato contrasta a ação de Maria com a dos inimigos
de Jesus, e é uma manifestação da fidelidade diante da traição, e de uma
sincera devoção diante de uma repulsiva degradação.
Este incidente teve lugar “estando ele [Jesus em Betânia”. 676 No
jantar estavam presentes pelo menos 15 homens: Jesus, os Doze, Lázaro
(Jo. 12:2) e um tal Simão, mencionado aqui no versículo 3 e em Mateus
26:6. É óbvio que a comida (ou “jantar” se preferir-se) foi motivada por
amor ao Senhor, especificamente por gratidão pela ressurreição de
Lázaro e a cura de Simão, aquele que tinha sido leproso, e a quem
seguiam chamando “Simão, o leproso”, e que presumivelmente tinha
sido curado por Jesus. Foi no lar deste Simão onde se fez o jantar. Quem
servia era Marta, a irmã de Maria e Lázaro (Jo. 12:2).
Segundo o costume, os convidados estavam reclinados à mesa, e de
repente “veio uma mulher” até Ele. Sabemos por João 12:3 que esta
mulher era Maria de Betânia. Esta se situou atrás de Jesus, que estava
reclinado. Em suas mãos levava “um frasco de alabastro de um perfume
muito custoso”, isto é, um frasco ou recipiente branco (ou talvez
delicadamente colorido) de alabastro. O perfume extraiu-se de nardo
puro, 677 isto é, das folhas secas do bulbo desta planta originária do
Himalaia. O frasco continha uma apreciável quantidade desta preciosa e
muito fragrante essência, como é evidente por João 12:3; não menos de
uma libra romana (trezentos e setenta e cinco gramas!).
Repentinamente, aquela mulher quebrou o frasco e verteu seu
conteúdo sobre 678 Jesus. Segundo Mateus e Marcos, derramou o perfume

676
Note-se os dois genitivos absolutos: “estando em Betânia” e “reclinando-se à mesa”.
677
Tem-se debatido muito o significado de πιοτικός,-ή-όν tanto em Mc. 14:3 como em Jo. 12:3. A
melhor interpretação é tomar πιστικός como πιστός. A maioria dos comentaristas favorecem tanto
“puro” como “genuíno”.
678
κατέχεε aor. ind. 3ª. pes. sing. de καταχέω, derramar ou esvaziar. O gen. α_το_ κ.τ.λ. deve-se
talvez a κατά com o genit. (abaixo, abaixo de, etc.). Esta preposição com o acusativo tem geralmente
Marcos (William Hendriksen) 721
sobre a cabeça de Jesus (cf. Sl 23:5); segundo João ungiu seus pés. Não
há contradição, visto que Mateus e Marcos indicam claramente que o
perfume foi derramado sobre o corpo de Cristo (Mt. 26:12; Mc. 14:8).
Evidentemente havia bastante para todo o corpo; cabeça, pescoço,
ombros e pés. A casa de Simão se encheu de sua fragrância. Junto com o
perfume, Maria derramou seu coração em gratidão e devoção!
O resto do parágrafo descreve a reação da parte de “alguns” (vv. 4,
5), e de Jesus (vv. 6–9).
4, 5. Indignaram-se alguns entre si e diziam: Para que este
desperdício de bálsamo? Porque este perfume poderia ser vendido por
mais de trezentos denários679 e dar-se aos pobres. E murmuravam contra
ela.
A linguagem é abrupta e vivaz. Podemos imaginar que Pedro
entregou ao seu auditório (no qual estava Marcos) uma descrição realista
do que ocorreu. A cena se fixou indelevelmente na memória do apóstolo,
e provavelmente Marcos a reproduz aqui da mesma forma, com todas as
suas abreviações populares. O “alguns” de Marcos, corresponde a
“discípulos” em Mateus. Parece que foi Judas, o tesoureiro, quem
expressou a objeção mais severa. Calculou rapidamente o valor do
perfume, apreciando-o em trezentos denários (Jo. 12:5), ou ainda mais
(como aqui em Mc. 14:5). Imaginemos: o salário de mais de um ano
desperdiçado; uma quantidade suficiente para alimentar não menos de
trezentas famílias um dia inteiro e até sobrar! E agora, tudo isto perdido.
Que lástima! 680
O piedoso (?) Judas lança a opinião de que a grande soma em que
este perfume podia e, segundo seu modo de pensar, devia ter sido
vendido, teria sido uma generosa doação para os pobres.

um significado totalmente diferente (ao longo, sobre, através, para com, etc.). Veja-se Robertson, pp.
511, 512; e BAGD, pp. 406–409.
679
Literalmente: em mais de trezentos denários.
680
Quanto ao valor de um denário veja-se mais acima sobre Mc. 6:37 e 12:42.
Marcos (William Hendriksen) 722
Tanto Mateus como Marcos deixam claro que os outros discípulos
também lhe ecoaram.
Estavam indignados 681 , e murmuravam 682 contra Maria. “O
perfume pôde haver-se vendido e dado 683 a esse pobres era o sentir de
todos.
Pobre Maria! Para onde quer que olhasse tropeçava com rostos
zangados e com uma ofendida desaprovação. Parece que aqueles homens
não entendiam que o idioma nativo do amor é a prodigalidade. Quão
nobres eram aqueles homens, especialmente Judas, o defensor da forma
de vida singela e o ajudador dos pobres! Embora o que realmente
pretendia está indicado em Jo. 12:6.
6, 7. Mas Jesus disse: Deixai-a; por que a molestais? Ela praticou
boa ação para comigo. Porque os pobres, sempre os tendes convosco e,
quando quiserdes, podeis fazer-lhes bem, mas a mim nem sempre me
tendes.
Jesus se apressa a ir em defesa de Maria dizendo, “Deixai-a” ou
“permiti-a”. 684 Logo continua literalmente, “Por que a molestais?” O ato
dela é chamado “uma boa ação”. E por certo o era: uma atenção única,
régia quanto à prodigalidade, e maravilhosamente oportuna.
Não é que o Mestre fizesse caso omisso dos pobres. Longe disto,
conforme indicam as seguintes passagens: Mc. 10:21; 12:42, 43; e para
os outros Evangelhos, veja-se Mt. 5:7; 6:2–4; 12:7; 19:21; Lc. 6:20, 36–
38; 7:22; 14:13; Jo. 13:29. Sobre este tema, como também sobre outros,
Seu ensino estava em harmonia com o resto da revelação especial (Êx.
23:10, 11; Lv. 19:10; Pv. 14:21b, 31; Is. 58:7; e quanto ao Novo
Testamento veja-se 2Co. 8:1–9; Gl. 6:2, 9, 10; 2Ts. 3:13; Tg. 5:1–6).
Mas haveria muitas outras oportunidades para atender às necessidades

681
_γανακτο_ντες, ptc. pres. nom. pl. masc. de _γανακτέω. Ver acima sobre Mc. 10:14, nota 459.
682
_νεβριμ_ντο impf. 3ª. pes. pl. de _μβριμάομαι. Veja-se sobre Mc. 1:43.
683
πραθ_ναι e δοθ_ναι aor. inf. passivos (depois de _δύνατο), afirmando o que estes homens criam
que era um fato simples, ou seja, que o perfume pôde e deve te sido vendido, e o produto dado aos
pobres. δηναρίων é melhor considerá-lo como genit. de preço depois de πραθ_ναι.
684
_φετε aor. imper. at. 2ª. pes. pl. de _φίημι, como em Mc. 10:14; ver sobre essa passagem, nota 460.
Marcos (William Hendriksen) 723
dos pobres. Por outro lado, a oportunidade para honrar e expressar o
amor a Jesus quase estava por expirar. Getsêmani, Gabatá e Gólgota já
estavam à vista. O que Maria fez era perfeitamente correto, inclusive
belo.
Continua:
8. Ela fez o que pôde: 685 antecipou-se a ungir-me 686 para a
sepultura. 687
De forma similar, Mateus escreve: “Pois, derramando este perfume
sobre o meu corpo, ela o fez para o meu sepultamento”. Muito se tem
escrito a respeito desta difícil passagem. Na opinião de alguns, Jesus está
dizendo que Maria, sem notar, ungiu-O para Sua iminente morte e
sepultura. E, deve-se admitir, que esta interpretação tem sentido: com
frequência o propósito de Deus é levado a cabo através de obras de seres
humanos, mesmo quando estes últimos ignorem o que está realmente
sucedendo. Além disso, talvez Maria não sabia que a morte de Seu
Mestre estava tão próxima. Por outro lado, não se deve passar por alto o
fato de que Maria era talvez o melhor ouvinte que jamais Jesus tenha
tido. A mulher que agora ungia os pés de Jesus era a mesma que tinha
estado previamente sentada a Seus pés (Lc. 10:39). Se até os inimigos de
Jesus tinham conhecimento das predições que Ele fez sobre Si mesmo
(Mt. 27:63), não podemos supor que Maria também sabia tudo isso? Se
assim fosse, é possível que tivesse ido à sua mente um pensamento como
este: “Esta oportunidade bem pode ser a última que tenha para oferecer
uma atenção a Jesus. O Senhor predisse que Seus inimigos O matarão, e
quando isto suceder, acaso se concederá aos Seus amigos o privilégio de
ungi-Lo?”. Em consequência, não se deve descartar a possibilidade de

685
_σχε, aor. ind. 3ª. pes. sing. de _χω; aqui _ _σχε é uma abreviatura de _ _σχε ποι_σαι; em
consequência o significado é, “Ela fez o que foi possível (ou: o que pôde) fazer”.
686
ποέλαβε μυρίσαι; quer dizer, Ela se encarregou adiantado de ungir, etc., equivalente a “ela ungiu
… antecipadamente”. O verbo principal προέλαβε usa-se aqui de forma adverbial. Cf. seu uso em
1Co. 11:21.
687
Ou: para minha sepultura.
Marcos (William Hendriksen) 724
que Maria tivesse o propósito consciente de preparar a Jesus para Sua
sepultura. Para mais detalhes sobre isto veja-se no CNT de João 12:7, 8.
Jesus termina a defesa de Maria dizendo,
9. Em verdade vos digo: 688 onde for pregado em todo o mundo o
evangelho, será também contado o que ela fez, para memória sua.
Como já se indicou, era o sábado de noite, o dia anterior à entrada
triunfal. Na terça-feira Jesus teria que fazer uma surpreendente predição:
“É necessário que primeiro o evangelho seja pregado a todas as nações”
(Mc. 13:10, cf. Mt. 24:14). Quanto a “evangelho”, veja-se CNT sobre
Filipenses, pp. 94–98. Este evangelho deve ser pregado. 689 No sentido
religioso, pregar significa apregoar. A exposição cuidadosa da Palavra é
fundamental. Mas a pregação genuína é vitalizadora, não seca, nem
enfadonha. É a sincera proclamação das boas novas iniciadas por Deus.
Não é a especulação abstrata inventada pelo homem. Veja-se CNT sobre
2Tm. 4:2.
Três dias antes de fazer o anúncio sobre a pregação universal do
evangelho, Jesus promete solenemente que por onde quer que se
propague a prazerosa mensagem, esta ação de Maria irá unido com ela.
A lembrança do nobre ato de Maria deve conservar-se vivo. O Mestre
não permitirá que passe ao esquecimento. Cf. Mt. 25:34–40.
Ao estudar esta seção podemos sentir-nos inclinados a cometer o
erro de encher-nos tanto de admiração pela bela obra de Maria, que nos
esqueçamos que o que ela fez foi só um reflexo da própria bondade do
Mestre para com ela. Considere-se não só Sua misericórdia ao salvá-la,
mas também a ternura que revelou quando neste momento em particular
acudiu imediatamente em sua defesa. Afinal de contas, Ele sabia que a
hora de Seu próprio e incomparavelmente amargo sofrimento
aproximava-se velozmente. Não obstante, tão intensamente amou os
Seus (cf. Jo. 13:1) que pelo apreço que tinha por ela Se sentiu

688
Veja-se sobre Mc. 3:28.
689
κηρυχθ_ aor. subj. pas. 3ª. pes. sing. de κηρύσσω.
Marcos (William Hendriksen) 725
profundamente ferido pela injustificada crítica que lhe fizeram. Seu
coração Se comoveu por ela.
De modo que, a verdadeira lição desta passagem é que Deus, cuja
imagem é Cristo (Hb. 1:3), acha intenso e infinito deleite em
recompensar a fidelidade dos que O honram. Cada vez que enumeramos
Seus muitos e gloriosos atributos, também devemos pôr devida atenção
no fato de que Ele é certamente “galardoador dos que o buscam” (Hb.
11:6).
Note-se quão generosamente e com o que intenso deleite premiou a:
Abraão (Gn. 22:15–18)
Rute (Rute 1:16, 17; 2:12; 4:13–22)
Ana (1Sm. 1:1–20)
Ebede-Meleque, o etíope (Jr. 39:15–18)
O rei Ezequias (2 R. 19)
O rei Josafá (2 Cr. 20:1–30)
Daniel e seus companheiros (Dn. 1:1–6:28)
“O centurião que recebeu seu elogio” (Mt. 8:5–13)
A mulher siro-fenícia (Mc. 7:24–30)
Os que trouxeram seus pequeninos a Jesus (Mc. 10:13–16)
Seus leais discípulos, apesar de suas muitas falhas (Mc. 10:23–31)
A pobre viúva que deu “todo o seu sustento” (Mc. 12:41–44)
O leproso samaritano (Lc. 17:11–19)
Muitos outros nomes poderiam acrescentar-se, mas esta breve lista
deve ser suficiente para indicar o que é uma das principais lições —
talvez inclusive a lição principal ensinada aqui em Marcos 10:13–16.

Mc. 14:10, 11 - O acordo entre Judas e os principais sacerdotes


Cf. Mt. 26:14–16; Lc. 22:3–6

Segundo os três relatos, Judas, “um dos Doze”, vai aos principais
sacerdotes (e aos oficiais da polícia do templo, Lc. 22:4) para concretizar
a forma em que entregaria a Jesus. Tanto Marcos como Lucas dão a
Marcos (William Hendriksen) 726
conhecer a satisfação que experimentaram os líderes diante da
inesperada visita e oferta de Judas. Ficam de acordo numa soma de
dinheiro em troca da traição. Depois o traidor fica à espreita da
oportunidade para entregar Jesus a estes homens, e (como acrescenta
Lucas) deve fazê-lo na ausência da multidão.
Somente Mateus transmitiu à posteridade a vulgar pergunta
mercenária lançada por Judas aos principais sacerdotes, etc., “Que me
quereis dar, e eu vo-lo entregarei?” É também este mesmo evangelista
aquele que deixa claro que Judas parte da reunião com as trinta moedas
de prata em seu poder.
Marcos nos diz: “lhe prometeram dinheiro”, promessa que se
cumpriu nessa mesma reunião.
O relato de Lucas revela a parte do diabo neste sórdido negócio “E
entrou Satanás em Judas”. Cf. Jo. 13:27.
10. E Judas Iscariotes, um dos doze, foi ter com os principais
sacerdotes, para lhes entregar Jesus. 690
O que foi que fez com que Judas chegasse a ser o traidor que
entregou a Jesus? Às razões dadas mais acima — veja-se sobre Mc. 3:19
— pode acrescentar-se o seguinte, ao menos como consideração:
a. Jesus repreendeu os discípulos, incluindo Judas, o principal
difamador de Maria de Betânia (Jo. 12:4, 5). Isto talvez pudesse ter
contribuído à decisão do traidor. Dizemos “pudesse ter”, porque a
certeza neste ponto é impossível. 691
b. Jesus havia prometido a Seus doze seguidores privilegiados
deslumbrantes recompensa (Mc. 10:29, 30), inclusive tronos (Mt. 19:28).
Judas deve ter escutado com absorta atenção aquelas palavras. Mas,
embora resulte estranho, Jesus também havia predito em várias ocasiões
Sua própria morte, de forma violenta e iminente (Mc. 8:31; 9:31; 10:34).

690
Literalmente, “para que o entregasse”.
691
Nem sequer o advérbio τότε (Mt. 26:14) dá-lhe precisão, porque é uma palavra com um significado
muito amplo. A sequência temporal — então, logo — não significa necessariamente uma relação de
causa e efeito. Post hoc, ergo propter hoc sería un razonamiento imperfecto.
Marcos (William Hendriksen) 727
Na realidade, muito pouco antes Ele Se referiu também à Sua sepultura,
como coisa do futuro imediato (Mc. 14:8). Acaso é difícil crer que um
homem como Judas não se teria perturbado profundamente com estas
palavras, e que tinha chegado à conclusão que permanecer com Jesus
significaria ir à derrota com Ele? Deveria ter levado a sério as palavras
que o Mestre havia dito pouco antes: “Quem quiser, pois, salvar a sua
vida perdê-la-á; e quem perder a vida por causa de mim e do evangelho
salvá-la-á” (Mc. 8:35). Embora muitos fatores devem ter influído nas
razões que Judas teve para trair o Mestre, o fundamental foi que o
coração de Judas sentia diferente do de Jesus. Tinha um coração
completamente egoísta, em contraste com o coração imensamente
generoso, abnegado e compassivo de Cristo. O que arrastou a este traidor
à ruína foi sua resistência a orar, pedindo que sua vida fosse renovada. A
causa de sua destruição foi a impenitência.
Não havia desculpa alguma para uma ação tão extremamente
repugnante. Judas foi, afinal de contas, um homem especialmente
privilegiado. Foi “um dos doze”, como todos os evangelistas se esforçam
em assinalar (Mt. 26:14; Mc. 14:10; Lc. 22:3; Jo. 6:70, 71). Durante
muitos meses Judas tinha estado vivendo em contato direto com Cristo,
tinha estado comendo, bebendo e viajando com Ele. Tinha observado o
poder da voz do Mestre ao acalmar a tempestade, ao amaldiçoar à
figueira estéril e ao repreender os que devoravam as casas das viúvas.
Mas Judas tinha percebido também a ternura da mesma voz ao convidar
os pecadores, incluindo Judas, para vir a Ele e achar descanso. Tinha
escutado os maravilhosos discursos do Salvador e as respostas decisivas
e com autoridade que deu às muitas perguntas que Lhe faziam, às vezes
com a intenção de lhe tender laços. Judas tinha observado o grande
Médico nos atos de restabelecer meigamente os aleijados, ou de inclinar-
se bondosamente sobre os doentes para curá-los … e lhes dizer (às
vezes), “A tua fé te curou”. Sim, Judas tinha sido testemunha de tudo isto
e muito mais (cf. Mt. 13:17). E agora tinha decidido entregar o
Marcos (William Hendriksen) 728
insuperavelmente poderoso, sábio e compassivo benfeitor em mãos de
homens cruéis … “por trinta moedas de prata”.
11. Eles, ouvindo-o, alegraram-se e lhe prometeram dinheiro.
Naturalmente, os sacerdotes alegraram-se ao ver que um dos
discípulos de Jesus se oferecia para os ajudar. Chegou possivelmente na
quinta-feira de noite, no preciso momento em que os membros do
Sinédrio se retiravam, e se voltaram a reunir de novo rapidamente? Não
o sabemos. O que, sim, sabemos é que consideraram a chegada de Judas
e seu oferecimento como coisa vinda do céu.
O relato paralelo deixa a impressão de que a transação se levou a
cabo rapidamente. Uma combinação de Mt. 26:14; Mc. 14:11; e Lc.
22:5, 6a dá como resultado a seguinte reconstrução do que estava
sucedendo:

Judas: “O que me querem dar, e eu lhes entregarei a Jesus?”


Os principais sacerdotes: “Prometemos dar-te trinta moedas de prata
logo que ditas entregá-lo em nossas mãos”.
Judas: “Estou de acordo”.
Os principais sacerdotes, depois de pesar o dinheiro: “Aqui estão as
trinta moedas de prata”. Judas toma e se retira.

Esta interpretação está em harmonia com a psicologia da situação.


Os principais sacerdotes não teriam deixado escapar esta preciosa
oportunidade por simples descuido. Sabiam muito bem que se Judas
tinha o dinheiro “em sua bolsa”, não se atreveria a retratar-se antes de
levar a cabo o ato.
Quanto ao preço pago, quer dizer, “trinta moedas de prata”, estas
moedas tinham um valor equivalente a tetradracmas ou siclos hebraicos.
É impossível determinar com alguma exatidão qual seria seu equivalente
em moeda atual. Jesus foi vendido aos Seus inimigos pelo preço de um
escravo chifrado por um boi. Veja-se Êx. 21:32. Foi por essa miserável
soma que Judas traiu o Mestre.
Marcos (William Hendriksen) 729
Com o dinheiro já em seu poder, Judas vê-se obrigado agora a
entrar em ação. Não nos surpreende então ler: nesse meio tempo,
buscava ele uma boa ocasião para o entregar 692 . 693
Esta oportunidade se apresentaria muito em breve.

Mc. 14:12–21 - A Páscoa


Cf. Mt. 26:17–25; Lc. 22:7–14; 21–23; Jo. 13:21–30

Os três Sinóticos relatam que o primeiro dia da festa dos pães


Asmos, Jesus instrui a Seus discípulos para reservar um aposento onde
celebrar a Páscoa, e para fazer todos os preparativos necessários. Envia a
casa de certa pessoa cujo nome não se dá, onde prepararam tudo.
Repentinamente, durante a comida, Jesus faz estremecer o pequeno
grupo dizendo: “Um de vós me trairá; um que está comendo comigo”.
Acrescenta, “Porque o Filho do Homem vai como está escrito dele …”
As principais variações são as seguintes:
Segundo Marcos, Cristo deu as instruções a dois de Seus discípulos;
segundo Lucas, a Pedro e João. Mateus não especifica. Na realidade,
Mateus 26:17–19 parece um breve resumo ao compará-lo com Marcos
14:12–16. No relato mais detalhado do “intérprete de Pedro”, informa-se
aos leitores que foi dito aos dois discípulos que entrassem na cidade,
onde encontrariam um homem que levaria um cântaro. Deviam segui-lo
a casa onde este entrasse, qualquer que fosse, e dizer ao dono, “O Mestre
pergunta, ‘Onde está minha habitação …?’ ”. O dono mostrará, então,
aos dois um grande cenáculo, mobiliado e preparado. Ali deviam fazer
os preparativos necessários. Tudo isto se fez assim, e de noite Jesus
esteve ali com os Doze.
Até este ponto há muito pouca diferença entre o relato de Marcos e
o de Lucas. Na realidade, Lucas 22:7–14 é quase uma repetição palavra

692
Ou: como lhe pudesse entregar de forma conveniente.
693
παραδο_ é um aor. subj. 3ª. pers. sing. de παραδίδωμι, literalmente, “(ele buscava) como poderia
entregá-lo de forma conveniente”.
Marcos (William Hendriksen) 730
por palavra de Marcos 14:12–17. Entretanto, no versículo 17, Lucas diz
“os apóstolos” onde Mateus e Marcos dizem “os doze”. Também no
mesmo versículo, Lucas diz “E quando veio a hora” onde Mateus e
Marcos dizem “(e) quando era de noite”. Já temos chamado a atenção ao
fato de que, segundo Lucas, o (primeiro) dia dos pães Asmos era aquele
“no qual o cordeiro devia sacrificar-se”. Veja-se mais acima sobre Mc.
14:1. Tanto Mateus como Marcos apresentam a Jesus dizendo, “…
aquele que coloca a mão comigo no prato”; Lucas (22:21) pelo contrário
diz: “Todavia, a mão do traidor está comigo à mesa”. E no versículo 23,
Lucas descreve os discípulos perguntando-se um ao outro quem deles
era o traidor. É bem fácil de entender que aqueles homens,
sobressaltados, começariam a fazer inquisitivas perguntas a seus próprios
corações, uns aos outros, e ao Senhor. Toda ideia de que haja
contradições é fictícia. Os três relatos, embora apresentem uma
interessante variedade, estão em perfeita harmonia.
Segundo Marcos, os discípulos de um em um dizem, “Não sou eu,
verdade?” Mas Mateus apresenta a mesma pergunta de uma forma mais
completa, “Não sou eu, verdade, Senhor?” e apresenta a Judas dizendo:
“Não sou eu, verdade, Mestre (Rabino)?”. Estas diferenças simplesmente
significam que, com relação a este ponto, Marcos é aquele que resume.
O que ele diz é verdade, mas neste ponto particular Mateus, que estava
presente, deu-nos um relatório mais completo.
12. E, no primeiro dia da Festa dos Pães Asmos, quando se fazia
o sacrifício do cordeiro pascal, disseram-lhe seus discípulos: Onde
queres que vamos fazer os preparativos para comeres a Páscoa?
Finalmente chegou a manhã de quatorze de Nisã. Quando o termo
“festa dos Pães Asmos” é tomada em sentido amplo, como sucede às
vezes, então também se inclui o dia em que comiam o cordeiro pascal.
Não se diz aqui onde passaram na quarta-feira Jesus e Seus discípulos,
Marcos (William Hendriksen) 731
ou seja, não se diz o que aconteceu no dia ao que se faz referência no
versículo 1 (terça-feira) e a Páscoa, versículos 12–21 (quinta-feira). 694
Nada se diz da compra do cordeiro. Podemos supor que isto se
planejou alguns dias antes (veja-se Êx. 12:3). Entretanto, havia outros
preparativos que fazer. Pela tarde deviam sacrificar o cordeiro no átrio
frontal do templo (cf. Êx. 12:6). Necessitavam um aposento de tamanho
adequado; e tudo relacionado com esta sala e seu mobiliário devia estar
devidamente acondicionado. Além disso, havia compras que fazer: pão
sem levedura, ervas amargas, vinho, etc. O cordeiro devia estar
preparado para comê-lo e o molho preparado. Pelo fato de que já era
provavelmente a manhã da quinta-feira, não havia tempo a perder.
Convém mencionar outros pontos de interesse:
a. As palavras “quando se acostumava 695 sacrificar o “cordeiro
pascal” Marcos provavelmente as acrescenta para compreensão dos
leitores gentios.
b. “… que vamos”, indica que nesse preciso momento Jesus e Seus
discípulos não estavam “na cidade” (veja-se v. 13). Poderiam ter estado
em Betânia.
c. Os discípulos entendem que é dever deles preparar a Páscoa para
o Mestre. 696 É Sua Páscoa. Ele era o anfitrião. Os discípulos tinham o
privilégio de comer “com ele” (vejam-se vv. 18, 20). Eles eram os Seus
convidados.
13, 14. Então, enviou dois dos seus discípulos, dizendo-lhes: Ide à
cidade, e vos sairá ao encontro um homem trazendo um cântaro de água;
segui-o e dizei ao dono da casa onde ele entrar que o Mestre pergunta:
Onde é o meu aposento no qual hei de comer a Páscoa com os meus
discípulos?

694
Lc. 21:37 pode dar um indício, mas não é seguro.
695
_θυον, o imperfeito usa-se para indicar um costume.
696
_τοιμάσωμεν, aor. subj., que vem depois θέλεις; φάγ_ς, aor. subj. que expressa propósito, depois
de _να.
Marcos (William Hendriksen) 732
A seguir Jesus dá instruções a dois de Seus discípulos; ou seja, a
Pedro e a João, segundo se relata em Lucas 22:8. Num sentido as
instruções são muito concretas; em outro, muito indefinidas. São o
bastante concretas como para que os discípulos não tenham dificuldade
alguma para achar o lugar onde se teria que realizar a ceia. Não obstante,
são o bastante indefinidas para ocultar nesse momento o nome do dono e
a localização da casa.
Esta indefinição poderia ser devido ao fato de que Judas não devia
saber até à noite onde se celebraria a Páscoa, a fim de que Jesus não se
visse privado de celebrá-la com os Seus discípulos. Assim, levar-se-ia a
cabo tudo o que Deus tinha planejado quanto aos acontecimentos
subsequentes.
Seja como for, diz aos dois apóstolos que ao entrar na cidade
(Jerusalém) encontrá-los-ia um homem que leva 697 um cântaro 698 de
água. 699 Isto chama a atenção, porque normalmente não era o homem
mas a mulher ou uma jovem quem realizava esta trabalho. Daí que os
discípulos não teriam dificuldade em descobrir este homem.
Além disso, Jesus os manda seguir este homem até a casa em que
entrasse. 700 É evidente que o homem a quem teriam que seguir não seria
o dono, mas talvez um servo ou um filho. É inútil especular sobre quem
era exatamente, embora haja aqueles que o tenham feito. O mesmo se
pode dizer também quanto ao dono. A única coisa que realmente
sabemos é que teve que ter sido algum discípulo de Jesus. Era o dono,
possivelmente, o pai de João Marcos, que ainda vivia? Não desejo dizer,
junto com Zahn, que era, nem com outros, que não era.

697
βαστάζων, pres. βαστάζω. Para os diversos significados deste verbo, veja-se CNT sobre o Gl 6:2,
nota 171.
698
κεράμιον, vaso de barro, jarro, ou cântaro. Cf. cerâmica.
699
_δατος genit. de conteúdo.
700
O indefinido _που _άν (“onde quer que entrar”) vai seguido de forma natural pelo subjuntivo (aor.
3ª. pes. sing.). O segundo _του (_που … φάγω) vai seguido do provavelmente aor. subj. deliberativo
1ª. pes. sing. numa cláusula relativa final (= de propósito) que supõe uma pergunta indireta. Veja-se
Robertson, p. 969.
Marcos (William Hendriksen) 733
701
Os dois discípulos deviam dizer ao dono, “O Mestre pergunta,
Onde está minha habitação de convidado 702 onde eu possa comer a
Páscoa com meus discípulos?”. Como já se indicou antes, esta ia ser a
Páscoa de Cristo. Em certo sentido, até o aposento lhe pertencia, quer
dizer, pede que se ponha inteiramente ao Seu dispor com o fim de
celebrar a festa junto com Seus discípulos, que são Seus convidados.
15. E ele vos mostrará um espaçoso cenáculo mobilado e
pronto; ali fazei os preparativos.
Era norma em Israel que qualquer que em tal ocasião tivesse espaço
disponível devia cedê-lo grátis a qualquer família ou grupo que desejasse
fazer uso dele para fins sagrados. Além disso, o dono, por ser seguidor
de Cristo, por esta mesma razão estaria muito contente em acomodar o
Mestre e Seus discípulos.
Este, então, é o famoso Cenáculo 703 onde Jesus celebrou sua última
Páscoa, instituiu “a Santa Ceia do Senhor”, e pronunciou os preciosos e
reconfortantes discursos que se acham em João 14–16. Foi aqui também
onde havia de elevar a inesquecível oração registrada em João 17.
O fato de que este aposento estivesse construído no alto da casa, o
fazia apropriado para o propósito que nos ocupa. Em tal lugar podia-se
estar relativamente livre de moléstias. Era bom lugar para conversar, ter
comunhão, meditar e orar. Além disso, era amplo; os treze não se
achariam apertados. Estava “mobiliado” 704 e preparado para ser utilizado
para o propósito que teria que servir.
Pode-se suscitar uma pergunta: “Como sabia Jesus que os dois
discípulos encontrariam tudo como aqui se indica?”. Com relação a este
problema, veja-se o comentado sobre Mc. 2:8; 5:32; 9:33, 34; 11:2, 13.

701
Para a designação “Mestre”, usada por Jesus referindo-se a si mesmo, veja-se mais acima sobre
4:38b, incluindo nota 172; e veja-se também sobre Mc. 10:17.
702
κατάλυμα. Cf. καταλύω no sentido de soltar, desenredar (animais de carga); em consequência:
descansar, hospedar-se de noite. Portanto, κατάλυμα é aqui um quarto para convidados.
703
_νάγαιον = _νά e γα_α (γή), qualquer coisa acima da terra; no contexto presente um cenáculo.
704
_στρωμένον, ptc. pf. pas. acus. sing. neut. de στρώννυμι; veja-se sobre Mc. 11:8, nota 528. O
aposento estava, por dizê-lo assim, “cheio” (coberto, mobiliado) de divãs.
Marcos (William Hendriksen) 734
A interação entre a natureza humana e divina de Jesus é, em última
instância, um mistério muito profundo para que o possamos
compreender.
16. Saíram, pois, os discípulos, foram à cidade e, achando tudo
como Jesus lhes tinha dito, prepararam a Páscoa.
Pedro e João acharam tudo de acordo com o predito, e fizeram tudo
segundo as ordens. Veja-se mais acima sobre o v. 12.
17, 18. Ao cair da tarde, 705 foi com os doze. Quando estavam à
mesa e comiam, disse Jesus: Em verdade vos digo que um dentre
vós, o que come comigo, me trairá.
Quando Jesus chegou ainda era o que nós chamaríamos quinta-feira.
Mas para o cálculo judaico já era sexta-feira. Para fins de obter um
quadro o mais completo possível do sucedido no Cenáculo, será preciso
consultar o Evangelho segundo João, além dos Sinóticos. Fazendo isto se
vê claro que o Mestre não predisse imediatamente que um de Seus
discípulos havia de traí-Lo. Mateus e Marcos evidentemente começam
seu relato quando já muitas coisas tinham sucedido.
Segundo o Evangelho de João (Jo 13:1–20), já tinha lavado os pés
de Seus discípulos, dando a eles uma lição de humildade. Depois os
deixa estupefatos ao lhes dizer que um deles haveria de traí-Lo (Jo
13:21–30). A declaração de que um deles O trairia ocorreu, segundo
nossa passagem, “estando eles reclinados à mesa e comendo”, isto é,
depois de que a comida tivesse transcorrido por algum tempo. Quanto
aos elementos pertencentes à ceia da Páscoa, estabelecidos
cronologicamente até onde seja possível, veja-se CNT sobre João, p.
129. A referência é provavelmente ao ponto f. dessa página. No mesmo
comentário veja-se também p. 257.
“Um de vós!” Caiu como um raio do céu. Foi como um golpe
demolidor. O quê? Queria dizer realmente o Mestre que um de Seus

705
_ψίας γενομένης, gen. Abes. expressão bastante comum em Mateus e em Marcos (aparece também
em Mc. 1:32; 4:35; 6:47; e 15:42). Veja-se também sobre Mc. 1:32.
Marcos (William Hendriksen) 735
próprios discípulos O entregaria às autoridades para que fizessem o que
quisessem com Ele? É quase impossível de crer. Não obstante, aquele
que afirmava isto era Aquele que nunca disse falsidade e cujo nome é “a
Verdade” (Jo. 8:46; 14:6). De modo que devia ser verdade. E, além
disso, não estava o Mestre introduzindo Sua surpreendente declaração
com um, “Em verdade vos digo”? Veja-se sobre Mc. 3:28.
O assombroso anúncio de Jesus provocou três reações à maneira de
perguntas, como segue: a. uma pergunta de saudável autodesconfiança,
“Não sou eu, verdade?”. Essa foi a reação de todos os discípulos com
exceção de Judas Iscariotes. No Evangelho de Marcos a pergunta, desta
forma, acha-se em Mc. 14:19; a resposta de Cristo nos versículos 20, 21.
Houve também b. uma pergunta de repugnante hipocrisia, “Não sou eu,
verdade, Rabino?” Provavelmente depois de considerável vacilação, esta
foi a reação de Judas. Quanto à sua pergunta e a resposta de Cristo, veja-
se Mateus 26:25. Finalmente, temos c. uma pergunta de infantil
confiança, “Senhor, quem é?” Esta foi a forma pela qual João se
expressou, induzido por Pedro. Esta classe de pergunta, os eventos
relacionados com ela, a resposta de Cristo e a reação dos discípulos à
resposta, estão consignados somente em João 13:23–30, que também, no
versículo 30, menciona a partida do traidor. Assim que para b. veja-se
CNT sobre Mateus 26:24, 25 e para c. veja-se sobre João 13:23–30.
Aqui em Marcos, então, estamos tratando só com a.
Quanto à pergunta de saudável autodesconfiança, note-se o
versículo
19. E eles começaram a entristecer-se 706 e a dizer-lhe, um após
outro: 707 Porventura, sou eu?

706
_ρξαντο λυπε_σθαι. O problema é, “Significa o original ficaram (= começaram a estar) tristes, ou
tem _ρξαντο o sentido pleonástico mais fraco, de modo que a tradução correta seria se entristeceram?
Veja-se sobre Mc. 1:45 e em Mc. 6:7, nota 233. O contexto, segundo o qual estes homens receberam
um susto repentino, pareceria estar em favor de ficaram ou começaram a. Assim também NTT, CB,
CI e a holandesa (ambas, Staten Vertaling e Nieuwe Vertaling).
707
ε_ς κατ_ ε_ς. Existem muitas explicações a respeito deste modismo. Parece que o mais simples é
tomar as três palavras como uma unidade, e o nominativo em aposto com o sujeito de _ρξαντο.
Marcos (William Hendriksen) 736
Onze corações — os dos Doze menos Judas Iscariotes — cheios de
dúvidas. Cada um destes onze homens sente que não é possível que
possa ser ele a quem o Senhor Se refere, não obstante, nunca se pode
saber. Assim que, um após outro, cada um deles, sobressaltados de certo
espanto com relação a si mesmo, pergunta “Não sou eu, verdade?”.
Quanto à forma no texto grego original, a pergunta requer uma resposta
negativa, a classe de resposta que cada um ardentemente deseja receber
do Mestre.
20. Respondeu-lhes: É um dos doze, o que mete comigo a mão
no prato.
É evidente que Jesus não tira imediatamente os temores destes
homens, nem cura sua autodesconfiança. Tampouco satisfaça
imediatamente a repentina curiosidade suscitada neles. Não estavam os
doze molhando partes de pão numa fonte cheia de um molho feita de
purê de fruta (provavelmente tâmaras, figos e passas), água e vinagre?
Certamente que Judas não era o único que fazia isto. O que o Senhor está
fazendo, portanto, é o seguinte: está sublinhando o caráter ruim do ato do
traidor. Está dizendo: “Imagine, aquele que me trai é um homem que
está compartilhando a comida comigo”. Como já se indicou, o próprio
Jesus era o anfitrião. Todos estavam comendo Sua comida. Este mesmo
fato, especialmente no Oriente Médio, onde aceitar a hospitalidade de
alguém e logo o injuriar era considerado algo extremamente
repreensível, devia ter bastado para refrear as mãos de todos. Devia ter
feito impossível que qualquer dos Doze realizasse ação alguma contra
seu anfitrião. Pense-se no Salmo 41:9.
A resposta que Jesus dá no versículo 20 tinha os seguintes
propósitos:
a. Foi uma advertência para Judas. Que Judas sopese o que faz.
“Conheço os seus planos, Judas”, parece dizer o Mestre. A revelação de
tão detalhado conhecimento devia ter posto de sobreaviso a Judas, até a
esta avançada hora, para devolver as trinta moedas de prata! Sim, no
decreto incompreensível e todo-abarcador de Deus, há lugar até para
Marcos (William Hendriksen) 737
solenes admoestações dirigidas aos que no fim perdem-se. Alguém
perguntará: “Como é possível isto?”. Respondo: “Não sei, mas o fato
segue em pé, apesar de tudo”. Se não se quer aceitar a ideia de que há
advertências até para os reprovados, perde-se algo do significado deste
relato. O caráter sério desta admoestação implícita, aumenta a culpa de
Judas. Antes de negar a possibilidade de que se façam sinceras
advertências inclusive aos réprobos, deve-se estudar Gn. 4:6, 7; Pv. 29:1;
Lc. 13:6–9, 34, 35.
b. Fixa a atenção na profundidade do sofrimento de Cristo. De
forma traiçoeira e humilhante está-se entregando o Senhor da glória. Ele
está sendo entregue aos Seus inimigos. É muito importante que vejamos
isso. Nossa reflexão sobre o relato da paixão de Cristo não se deve
perder em todo tipo de detalhes a respeito de Judas e Pedro e Anás e
Pilatos. É, em primeiro lugar, a história de Seus sofrimentos. Está
centralizada nEle, e jamais nos devemos esquecer de perguntar como
todas estas coisas afetam a Ele!
c. Mostrou, mais uma vez, que Jesus estava absolutamente no
controle da situação. Não O pegou de surpresa. Sabia exatamente o que
estava passando e o que ia suceder, em seus mínimos detalhes.
d. Proporcionou uma oportunidade aos Seus discípulos para
examinar-se a si mesmos. Este ponto muitas vezes se passa por alto.
Entretanto, é muito importante. Ao dar a resposta que está consignada
aqui em Marcos 14:20, Jesus não identificou o traidor, e precisamente
por não identificá-lo o Senhor estava fazendo a todos um favor. Sabia
que o autoexame seria o mais excelente exercício para homens como
aqueles (lembre-se Lc. 22:24!). Que cada discípulo se encha de sérias
dúvidas, de saudável autodesconfiança. Aqueles homens necessitavam
tempo para o autoexame.
21. Pois o Filho do Homem vai, como está escrito a seu respeito;
mas ai daquele por intermédio de quem o Filho do Homem está
sendo traído! Melhor lhe fora não haver nascido!
Marcos (William Hendriksen) 738
Referente ao “Filho do Homem”, veja-se em Mc. 2:10, e em Mt.
8:20. Jesus obteve a glorificação seguindo o caminho da humilhação,
embora sem dúvida fosse glorioso desde o princípio. Este Jesus vai, quer
dizer, vive na terra, sofre, morre e tudo o mais, não como uma vítima das
circunstâncias, mas sim “como está a seu respeito”. Portanto, o fato de
que Ele vai foi predito pelos profetas (Is. 53 etc.) e estabelecido no
decreto eterno de Deus. O Mestre teve que ressaltar esta verdade mais
uma vez, porque era extremamente difícil para os discípulos acostumar-
se à ideia de um Messias que morreria. Além disso, Jesus morreria no dia
seguinte — que para os judeus significava “o dia de hoje”. E ao morrer
na cruz, os discípulos deveriam refletir sobre esta solene declaração para
compreender que aquela morte não significava o triunfo de seus
inimigos, mas a realização do soberano plano da graça de Deus e sua
plena vitória.
Entretanto, em nenhum lugar da Escritura, nem a predestinação nem
a profecia, anulam a responsabilidade humana. Assim é também aqui: o
grito de tristeza e angústia, “Ai daquele por intermédio de quem o Filho
do Homem está sendo traído!” mantém completamente a culpa do traidor
e estabelece plenamente sua condenação. Para tal homem, teria sido
melhor não ter nascido. Mas nasceu, e se acha em vias de cometer o
horripilante ato. Em consequência, a declaração textual, “Melhor lhe fora
não haver nascido!” é uma expressão de irrealidade — uma situação que
poderia ser mudado só se Judas, que é absolutamente responsável, se
arrependesse até naquela hora. Sabemos que não o fez. Em
consequência, enfrenta-se à condenação eterna (veja-se Mt. 25:46). O
que faz sua culpa muito mais grave é o fato de que não só planejou a
traição e deu o passo seguinte — oferecendo-se para entregar a Jesus aos
Seus inimigos — e o seguinte — aceitando as trinta moedas de prata —
mas até agora, apesar das impressionantes advertências de Cristo,
prossegue decididamente.
Marcos (William Hendriksen) 739
Marcos não registra o resto da história: a pergunta de Judas, “Não
sou eu, verdade, Rabino?” e a de João “Senhor, quem é?”. Mas veja-se
mais acima nos vv. 17, 18.

Mc. 14:22–26 – A instituição da Ceia do Senhor


Cf. Mt. 26:26–30; Lc. 22:15–20; 1Co. 11:23–25

Em primeiro lugar, umas poucas observações quanto ao relato de


Lucas. Apresenta problemas tanto no que respeita ao texto grego como à
sequência cronológica. A análise detalhada destes problemas não
pertence aqui, mas ao comentário de Lucas. Em consequência,
limitaremos ao seguinte:
Lucas nunca se preocupa principalmente da sequência cronológica.
Antes, usa uma “ordem” (Lc. 1:3) distinta para apresentar seu material.
Expressões ou acontecimentos que ocorreram em tempos distintos, ele os
agrupa de acordo com sua afinidade conceitual. Se isto se entender bem,
quase todos os problemas desaparecem. As palavras de Jesus
consignadas em Lucas 22:15, 16 (sem paralelos) poderiam ter sido ditas
no começo da ceia de Páscoa.
Quanto à Ceia do Senhor, compare-se Lc. 22:17, 20 (o cálice) com
Mt. 26:27, 28 e Mc. 14:23, 24; e compare-se Lc. 22:18 (“Não mais
beberei do fruto da videira, até …”) com Mt. 26:29 e Mc. 14:25; e
também Lc. 22:19 (o pão) com Mt. 26:26 e Mc. 14:22.
As palavras que deram origem a tanta controvérsia, a saber, “Este é
o meu corpo” aparecem nos três relatos. O que se deve fazer com o pão e
o vinho está claramente enunciado, ou ao menos subentendido, nos três.
O peculiar de Lucas, embora totalmente em harmonia com a passagem
sobre a Santa Ceia em Mateus e Marcos, são as expressões do Senhor
tais como “Recebei e reparti entre vós” (v. 17) e “Fazei isto em memória
de mim” (v. 19).
Marcos (William Hendriksen) 740
A passagem em que Lucas apresenta a Cristo dizendo, “Todavia, a
mão do traidor está comigo à mesa” (v. 21) não significa que Judas
participasse da Ceia do Senhor.
Significa que antes da instituição desse sacramento — em outras
palavras, quando Jesus Se reclinava à mesa para a ceia de Páscoa — a
mão de Judas e a do Mestre estavam certamente juntas na mesa (cf. Mc.
14:18, 20). Portanto, não há contradição entre Lucas 22:21 e João 13:30,
“Ele, tendo recebido o bocado, saiu logo. E era noite”.
O relato de Mateus e o de Marcos são quase idênticos. Mateus diz:
“Bebei dele todos” onde Marcos diz: “E todos beberam dele”. Depois de:
“derramado em favor de muitos” Mateus acrescenta: “para remissão de
pecados”. E em lugar da frase de Marcos: “dia em que o hei de beber,
novo, no reino de Deus”, Mateus tem: “até aquele dia em que o hei de
beber, novo, convosco no reino de meu Pai”. Notável semelhança, sem
diferença essencial.
22. E, enquanto comiam, tomou Jesus um pão e, abençoando-o,
o partiu.
Ao chegar a este ponto, a Páscoa cedeu seu lugar à Ceia do Senhor;
porque foi no fim da ceia da Páscoa, enquanto aqueles homens comiam
tranquilamente (veja-se no v. 18), que o Senhor instituiu o novo
sacramento que havia de substituir o antigo. Umas poucas horas mais o
antigo símbolo de sangue — pois se requeria o sacrifício do cordeiro —
teria cumprido seu propósito para sempre, ao alcançar seu cumprimento
no sangue derramado no Calvário. Era tempo, então, de que um novo
símbolo, não de sangue, substituísse o antigo. Entretanto, com o fato de
relacionar historicamente a Páscoa e a Ceia do Senhor, Jesus deixa claro
também que o essencial da primeira não se perdeu na segunda. Ambas
assinalavam para Ele, o único e totalmente suficiente sacrifício pelos
pecados de Seu povo. A Páscoa olhava para frente a este fato; a Ceia do
Senhor o faz de forma retrospectiva.
Tendo tomado da mesa uma fatia ou parte magra de pão sem
levedura, Jesus “deu graças” e logo começou a parti-lo. O texto original
Marcos (William Hendriksen) 741
refere-se à oração usando duas palavras distintas: alguém aparece no
versículo 22 (literalmente “tendo abençoado”; cf. Mt. 26:26), e a outra
no versículo 23 (“tendo dado graças”; cf. Mt. 26:27). As duas palavras
são particípios, usando o primeiro com relação ao pão e o segundo com
relação ao cálice. Mas a diferença não é essencial. Tanto Lucas (22:19)
como Paulo (1Co. 11:24) dizem “tendo dado graças” onde Mateus e
Marcos dizem “tendo abençoado”. Não é incorreto, portanto, adotar em
Marcos 14:22 e 23 a tradução “Jesus … deu graças”. Para mais detalhes
sobre esta questão, veja-se sobre Mc. 6:41. As palavras que o Senhor
usou nesta ação de graças não foram reveladas. Tratar de reconstruí-las
guiando-se por fórmulas de orações judaicas não serviria a nenhum
propósito útil. Como poderíamos saber se o Senhor quis aproveitar para
si essas orações?
O partir o pão, ao qual se faz referência nos quatro relatos, deve
considerar-se como pertencente à própria essência do sacramento. Isto se
faz evidente à luz do que imediatamente segue, ou seja, e lhes deu,
dizendo: Tomai, isto é o meu corpo. Interpretar isto como se
significasse que Jesus estava realmente dizendo que aquelas porções de
pão que dava aos Seus discípulos eram idênticas ao Seu corpo físico, ou
que nesse momento o pão estavam se transformando em Seu corpo, seria
não levar em conta: a. que Jesus estava ali, diante de Seus discípulos em
corpo e à vista de todos. Tinha em Sua mão o pão, e estava distribuindo
as porções à medida que as partia. Corpo e pão eram claramente
distintos e permaneceram assim. Nenhum dos dois transformou-se no
outro, nem tomou propriedades físicas ou características do outro. Além
disso, tal interpretação tampouco leva em conta: b. o fato de que o
Mestre, durante Seu ministério terrestre, usava muito frequentemente a
linguagem figurada (Mc. 8:15; Jo. 2:19; 3:3; 4:14, 32; 6:51, 53–56;
11:11). É muito significativo que em todos os casos indicados por estas
referências, o caráter simbólico ou figurativo da linguagem do Senhor
não foi levado em conta pelos que O ouviram naquele momento!
Marcos (William Hendriksen) 742
Além disso, em cada caso, o contexto deixa claro que os que
interpretavam as palavras de Jesus literalmente estavam errados! Já não é
hora de que a lição que há aqui implícita seja tomada a sério? Finalmente
temos o seguinte: c. os ramos acham sua unidade, vida e capacidade de
dar fruto na planta da videira. Quando Jesus disse que Ele era “a videira”
(Jo. 15:1, 5), não é claro que quis dizer que o que uma videira natural é
em relação aos seus ramos, isso mesmo é Ele para Seu povo num sentido
muito mais elevado? Não é evidente que a videira representa ou
simboliza a Jesus, a verdadeira videira? Assim também, Ele Se chama a
Si mesmo — ou Se chama — a porta, a estrela da manhã, a pedra
angular, o cordeiro, a fonte, a rocha, etc. Também Se refere a Si mesmo
como “o pão da vida” (Jo. 6:35, 48), “o pão que desceu do céu” (Jo.
6:58). Assim que, por que não poderia ser, ou estar simbolizado e
representado pelo “pão partido”? Em consequência, o significado do
“pão partido” e do vinho vertido, indica-se corretamente naquela fórmula
para celebrar a Santa Ceia que apresenta a Cristo, dizendo:
“Considerando que, do contrário, teriam tido que sofrer a morte eterna,
Eu entrego o Meu corpo à morte na árvore da cruz e derramo o Meu
sangue por vós, e vitalizo vossas almas famintas e sedentas com o Meu
corpo crucificado e o Meu sangue derramado para vida eterna, tão
certamente como o pão é partido ante vossos olhos e este cálice vos é
dada, e comei e bebei com a boca em memória de mim”. 708
Portanto, foi o desejo de nosso Senhor que por meio desta ceia, aqui
instituída, a igreja lembre Seu sacrifício e O ame; reflita neste sacrifício
e O abrace por meio da fé; e olhe ao futuro com a viva esperança de Sua
gloriosa volta. Sem dúvida alguma, a correta celebração da Santa Ceia é
um recordatório amoroso. Mas é mais que isso. Por Seu Espírito, Jesus
Cristo está realmente presente nesta verdadeira festa, de forma muito
ativa! (cf. Mt. 18:20). Seus seguidores “tomam” e “comem”. Se
apropriam de Cristo mediante fé viva, e são fortalecidos nesta fé.

708
Formulário para a Ceia do Senhor, pertencente à liturgia da Igreja Cristã Reformada.
Marcos (William Hendriksen) 743
Tendo dito tudo isto, não será necessário nos espraiar muito sobre
os versículos
23, 24. A seguir, tomou Jesus um cálice e, tendo dado graças, o
deu aos seus discípulos; e todos beberam dele. Então, lhes disse: Isto
é o meu sangue, o sangue da nova aliança, derramado em favor de
muitos.
Note-se o seguinte:
a. Não deve dar-se muita importância ao fato de que Marcos fale de
“um” cálice, * porque nos relatos paralelos, o texto de Mateus varia,
enquanto que Lucas e Paulo usam o artigo definido, dizendo “o cálice”.
Na Páscoa era costume beber vários cálices de vinho diluído. Pelo fato
de que, como já se disse, a Ceia do Senhor estava obrigada à última parte
da Páscoa, é claro que o cálice aqui mencionado reflete a última bebida
que teve lugar nesta festa. Daí que tanto Lucas como Paulo falem do
cálice depois da ceia”. Além disso, a ênfase nunca está no cálice em si.
Toda a ênfase está em seu conteúdo, o vinho (veja-se sobre 14:25), como
símbolo do sangue de Cristo.
b. Ao ordenar a “todos” os Seus verdadeiros discípulos que
bebessem deste vinho (Mt. 26:27), o que todos fizeram (Mc. 14:23), —
menos Judas, que já tinha saído (Jo. 13:27, 30) — está-se reforçando a
unidade de todos os crentes em Cristo. Além disso, com isto se condena
a prática de que uma pessoa, um sacerdote, beba “por todos”. Veja-se
também Lc. 22:17b.
c. Nos quatro relatos estabelece-se uma relação entre o sangue de
Cristo e sua aliança. Segundo o relato de Mateus e Marcos, Jesus disse,
“meu sangue da aliança”. A expressão tem sua origem em Êx. 24:8.
Veja-se também a significativa passagem de Lv. 17:11. E note-se: “Sem
derramamento de sangue não há remissão” (Hb. 9:22; cf. Ef. 1:7);
portanto, não se faria nenhuma aliança, nenhuma relação especial de

*
A TB (Tradução Brasileira) e a NVI (Nova Versão Internacional) trazem “o cálice”, e também
vertem “sangue da aliança,” em lugar de “sangue da nova aliança” da RA. – N. do Tradutor.
Marcos (William Hendriksen) 744
amizade entre Deus e Seu povo. A reconciliação com Deus sempre
requer sangue, um sacrifício expiatório. E pelo fato de que o próprio
homem não é capaz de oferecer tal sacrifício, requer-se uma oferta
substitutiva que seja aceita pela fé (Is. 53:6, 8, 10, 12; Mt. 20:28; Mc.
10:45; Jo. 3:16; 6:51; Rm. 4:19; 8:32; 2Co. 5:20, 21; Gl 2:20; 3:13; 1Pe.
2:24). Assim a aliança entra com efeito. As Escrituras se referem vez
após vez à aliança de Deus com o Seu povo. O Senhor a estabeleceu com
Abraão (Gn. 17:17; Sl 105:9); e, portanto, também com todos os que
compartilham a fé de Abraão (Gl 3:7, 29). 709
d. Jesus diz que Seu sangue é derramado “por muitos”, não por
todos. Cf. Is. 53:12; Mt. 1:21; 20:28; Mc. 10:45; Jo. 10:11, 14, 15, 27,
28; 17:9; At. 20:28; Rm. 8:32–35; Ef. 5:25–27. Entretanto, é “por
muitos”, não só por uns poucos. Cf. Jo. 1:29; 3:16; 4:42; 10:16; 1Jo.
4:14; Ap. 7:9, 10.
Tanto em Mateus como em Marcos, Jesus assevera que aquela seria
certamente a última vez que ia estar com Seus discípulos naquela classe
de ceia. Com esta declaração e o que ela implica, prediz Sua iminente
morte, e lhes instrui, a eles e a seus seguidores através dos séculos, para
que continuem fazendo memória dEle, desta forma, até Sua volta (cf.
1Co. 11:26):
25. Em verdade vos digo que jamais beberei do fruto da videira,
até àquele dia em que o hei de beber, novo, 710 no reino de Deus.
Note-se a solene introdução, e veja-se o dito sobre Mc. 3:28. Jesus
sabia que logo partiria e deixaria os Seus discípulos. Na realidade, ia dar
Sua vida já no dia seguinte; ou, segundo o cálculo dos judeus, nesse
mesmo dia (sexta-feira).

709
Para mais detalhes a respeito desta aliança”, sua unilateralidade ou bilateralidade, a relação entre
“aliança” e “testamento”, etc., vejam-se no CNT sobre o Gl 3:15 (incluindo nota 98) e sobre Efésios,
pp. 142, 143; também o livro do autor, El Pacto de Gracia, Grand Rapids, 1985.
710
Primeiro, πίω aor. subj. 1ª. pes. sing. de πίνω; logo πίνω, pres. subj. 1ª. pes. sing. (“quando o beba”
ou “o esteja bebendo”).
Marcos (William Hendriksen) 745
Ao falar do “fruto da videira” Jesus Se refere sem dúvida ao vinho.
Note-se a estreita relação entre “videira” e “vinho” em Isaías 24:7.
Vejam-se também Nm. 6:4; Hc. 3:17. Por esta data do ano (abril) e sob
as condições que então prevaleciam na Judeia, é difícil pensar em outra
coisa que no suco de uva fermentado, quer dizer, vinho, o tipo de vinho
usado na Páscoa; portanto vinho diluído ou vinho pascal.
Note-se a expressão “(certamente não beberei deste fruto da videira)
até aquele dia em que o beba novo no reino de Deus”. Referente ao
“reino de Deus”, veja-se sobre Mc. 1:15. É o reino em seu sentido
escatológico o que se refere aqui, o glorioso reino dos redimidos, ao qual
ascendem suas almas quando morrem (Sl 73:24, 25; At. 7:56, 59; 2Co.
5:8; Fp. 1:21, 23; Hb. 12:23; Ap. 20:4, 5b, 6). No final da presente era,
tal reino se transformará no novo céu e a nova terra (Ap. 21:1ss.). Ali os
crentes, em corpo e alma, gloriosamente reunidos, festejarão para sempre
na companhia de seu Senhor para O louvar eternamente. Então, tanto a
Páscoa como a Santa Ceia alcançam a plena realização.
Vemos, portanto, que a comunhão não só aponta retrospectivamente
ao que Jesus fez por nós, mas também para frente ao que ainda tem que
significar para nós. “Em que o hei de beber, novo, no reino de Deus” (ou
“no reino de meu Pai”, Mt. 26:29) é um símbolo da gloriosa reunião e
dos festejos sem fim que aguardam os filhos de Deus, em comunhão com
seu Salvador — note-se: “quando o beba novo” — no além. Cf. Sl 23:5;
Is. 25:6; Mt. 8:11; 22:1ss.; Lc. 14:15; Ap. 3:20; 19:9, 17. Então será Ele,
o Cordeiro Vitorioso, quem será o anfitrião; e Seus fiéis serão os
convidados que festejarão com Ele!
26. Tendo cantado um hino, saíram para o monte das Oliveiras.
Sendo que, conforme se explicou, a Ceia do Senhor foi o
desenvolvimento natural da Páscoa, é provável que os hinos de louvor
que se elevaram a Deus fossem os Salmos 115 a 118. Estes são cânticos
de louvor, ação de graças e confiança, como toda pessoa pode ver ao lê-
los. Não só constituíam uma conclusão adequada às bênçãos desfrutadas,
mas também a mais apropriada preparação para a prova que estava
Marcos (William Hendriksen) 746
prestes a começar. Com relação ao tema sobre os cânticos aptos tanto
para o lar como também para as reuniões públicas, veja-se CNT sobre
Ef. 5:19 e Cl. 3:16. Quando a reunião tinha assim concluído, Jesus e
Seus discípulos — que já não eram doze, mas onze — foram ao monte
das Oliveiras. Especificamente, cruzaram o Cedrom e entraram no
jardim do Getsêmani, situado perto da base do monte. Veja-se 14:32; Jo.
18:1.

Mc. 14:27–31 - Jesus prediz a negação de Pedro


Cf. Mt. 26:31–35; Lc. 22:31–34; Jo. 13:36–38

Segundo já se indicou, como o relato da predição da negação de


Pedro se acha em Marcos 14, em Mateus se encontrará no capítulo 26 (=
14 + 12). No caso presente a narração de Mateus é muito parecida com a
de Marcos. A semelhança se reflete felizmente inclusive nas divisões dos
versículos, que se fez muito tempo depois. A semelhança é tão grande
que para encontrar um versículo em Mateus tudo o que se deve fazer é
acrescentar 4 ao número do versículo em Marcos. Em consequência, Mc.
14:27 está em paralelo com Mt. 26:31; Mc. 14:28 com Mt. 26:32, etc.
Marcos 14:27 diz: “Todos vós vos escandalizareis” (ou: “tornar-
vos-eis desleais”), ao que Mateus acrescenta “nesta mesma noite”. Por
outro lado, no versículo 30 Marcos é mais específico e enfático que
Mateus 26:34, pois acrescenta: “hoje, nesta noite”. No versículo 31,
Marcos introduz graficamente a jactanciosa declaração de Simão assim:
“Mas ele insistia com mais veemência …” O paralelo de Mateus diz
simplesmente, “Disse-lhe Pedro”.
Lucas 22:31, 32 reproduz as memoráveis palavras de revelação,
fortalecimento e admoestação que Jesus entregou a Pedro. No versículo
33, Pedro responde: “Senhor, estou pronto a ir contigo, tanto para a
prisão como para a morte”. O versículo 34 “…três vezes negarás que me
conheces” — é uma variação interessante do paralelo de Mateus e
Marcos.
Marcos (William Hendriksen) 747
Finalmente, João 13:37, 38 apresenta a Pedro perguntando,
“Senhor, por que não posso seguir-te agora? Por ti darei a própria vida”.
Jesus lhe respondeu, “Darás a vida por mim?” Ao deixar lugar à
transposição de palavras e uso de sinônimos, o resto da conversação tem
muito estreita semelhança com seu paralelo em Mateus e Marcos. Cf. Jo.
13:38b com Mt. 26:34; Mc. 14:30.
Se tivermos em mente que nenhum dos escritores dos Evangelhos
teve o propósito de reproduzir cada uma das palavras que foram ditas e
que cada um, em seu próprio estilo e para seus próprios fins, apresentou
um relato totalmente inspirado e verdadeiro dos acontecimentos
ocorridos e das palavras faladas, as dificuldades começam a desaparecer.
Os diversos relatos unem-se maravilhosamente e em vários pontos se
complementam um ao outro.
27. Então, lhes disse Jesus: Todos vós vos escandalizareis, 711 , 712
porque está escrito: Ferirei o pastor, e as ovelhas ficarão dispersas.
Pelo que se refere a passagens do Antigo Testamento baseados na
bem conhecida figura do pastor e suas ovelhas, veja-se Sl 23; 79:13;
80:1; 95:7; 119:176; Is. 40:11; 53:6; Ez. 34:5. Jesus falou muitas vezes
com expressões parecidas (Mt. 15:24; 25:31–46; Mc. 6:34; Lc. 12:32; Jo.
10:11–18, 25–29). Um resumo mais ou menos detalhado destas
manifestações pode-se achar no CNT sobre Jo. 10:1–21.
Aqui em Marcos 14:27 e seus paralelos, Jesus está predizendo que
todos os Seus discípulos Lhe serão infiéis. Parecerão ovelhas que fogem
do seu pastor. Isto sucederá quando Jesus, o Bom Pastor, seja detido e
executado.

711
Ou: ser-me-eis infiéis.
712
σκανδαλισθήσεσθε, fut. ind. pas. 2ª. pes. pl. de σκανδαλίζω; veja-se sobre 4:17, nota 147.
tentaram-se várias traduções. Algumas delas insistem no literal “lhes fará tropeçar, ou simplesmente
“tropeçarão”. Outros preferem “vos escandalizareis”, “vos voltareis contra (mim)”, “afastarão-lhes (de
mim)”, “tornarão-lhes infiéis (a meu)”. O contexto parece favorecer as duas últimas. Veja-se também
o excelente artigo sobre σκάνδαλον, σκανδαλίζω, por G. Stählin, TDNT., vol. VII, pp. 339–358,
especialmente p. 349.
Marcos (William Hendriksen) 748
Os discípulos não demonstraram lealdade, e nessa momentânea
queda Jesus vê o cumprimento de Zacarias 13:7. A aplicação dessa
passagem a Jesus e Seus discípulos não apresenta dificuldade alguma. É
verdade que no contexto da profecia de Zacarias, não se menciona
àquele que fere o pastor. Somente dá-se uma ordem, ou seja, ferir o
pastor. Por outro lado, todo o contexto refere-se repetidamente a Jeová
como Autor. É Ele quem voltará, trará, refinará, provará, ouvirá e dirá.
Em consequência, Jesus falava com toda justiça quando dizia, “…
porque está escrito ‘Ferirei o pastor’ ”. De igual maneira, foi o próprio
Jeová quem, segundo Isaías 53:6, carregou sobre o Mediador “todas as
nossas iniquidades”. Foi ele quem “quis quebrantá-lo”, “sujeitando-o a
padecimento”, e quem “pôs sua vida em expiação pelo pecado” (cf. At.
8:32–35). Foi Deus o Pai quem “não poupou nem a seu próprio Filho”
(Rm. 8:32).
Agora, quando o pastor cai derrubado, as ovelhas se espalham em
todas as direções porque perderam seu ponto de reunião. Assim também,
quando Jesus é detido e depois crucificado, Seus seguidores fugirão
cheios de pânico. Esta predição se cumpriu eficazmente no caso dos
discípulos de Cristo, como se vê claramente em passagens tais como os
seguintes:
“Então, deixando-o, todos fugiram” (Mc. 14:50).
“Ele [Pedro], porém, começou a praguejar e a jurar: Não conheço
esse homem de quem falais!” (Mc. 14:71).
“Ora, nós esperávamos que fosse ele quem havia de redimir a Israel;
mas, depois de tudo isto …” (Lc. 24:21).
“Respondeu-lhes Jesus: Credes agora? Eis que vem a hora e já é
chegada, em que sereis dispersos, cada um para sua casa, e me deixareis
só” (Jo. 16:31, 32 trad. CNT).
“Mas Tomé, um dos doze, chamado o Gêmeo, não estava com eles
quando Jesus veio … Ele lhes disse, ‘Se eu não vir em suas mãos o sinal
dos pregos … não crerei” (Jo. 20:24, 25 - trad. CNT).
Marcos (William Hendriksen) 749
A beleza de tudo isso não consiste só em que Jesus revela aqui Seu
amor invariável por eles, mas também em que Sua própria predição
serviria ao propósito de reunir novamente às ovelhas espalhadas, uma
vez que tivessem refletido no fato de que o Mestre lhes tinha posto de
sobreaviso bondosamente.
As predições de Cristo chegam a um clímax otimista:
28. Mas, depois da minha ressurreição, irei adiante 713 de vós
para a Galileia.
Em linguagem clara e sem figura, Cristo Jesus fala a respeito de ser
levantado dentre os mortos, tal como o havia dito anteriormente (Mc.
8:31; 9:9, 31; 10:34). Esta é também outra revelação de Seu amor,
porque Jesus lhes assegura que vai encontrar com eles na mesma região,
Galileia, onde estavam seus lares, e onde o Senhor originalmente os
havia chamado para estar com Ele.
Quanto a seu cumprimento, imediatamente depois da ressurreição
de Cristo, um mensageiro do céu lembrou aos discípulos esta promessa
(Mc. 16:7). Foi por certo na Galileia onde o Salvador ressuscitado se
encontrou com estes homens (Mt. 28:16), depois com sete deles (Jo.
21:1–23) e logo com mais de quinhentos de Seus seguidores (1Co. 15:6).
29. Disse-lhe Pedro: Ainda que 714 todos se escandalizem, eu,
jamais!
Mateus diz, “Eu jamais te serei infiel”. Pedro comete aqui o pecado
de não crer nas palavras de Jesus (“Todos vós vos escandalizareis”; ou:
sereis infiéis”). Ao mesmo tempo assume uma atitude de superioridade

713
No caso presente o verbo προάγω (aqui προάξω 1ª. pes. sing. fut. ind.) não pode ter o significado
“ir diante lhes guiando”; cf. Mc. 10:32. Deve significar “ir antes de vós, e assim chegar mais cedo e
lhes encontrar (na Galileia)”, isto é claro por Mc. 16:7.
714
De acordo com BAGD, p. 219, ε_ καί pode ter o significado de “mesmo quando”. Na presente
passagem a maioria das traduções em português têm “embora” (BP, CB, CI, RA, NVI, BJ), “mesmo
quando” (NTT, NC). Robertson chama a atenção ao fato de que o texto verdadeiro nesta passagem é
ε_ καί, no κα_ε_. Tal autor vê uma diferença e dá a ε_ κα_ o significado de “e se”, diminuindo
importância do assunto mencionado na cláusula que começa com ε_ καί. Se esta distinção for válida, a
tradução poderia ser: “se algum outro se tornar infiel, eu não por certo”, ou algo similar.
Marcos (William Hendriksen) 750
com relação aos seus companheiros. Finalmente, demonstra claramente
que não se conhece si mesmo. Superestima-se, demonstra uma
excessiva, vã e presunçosa confiança em sua pessoa, como o vão
demonstrar logo os fatos.
30. Respondeu-lhe Jesus: Em verdade te digo que hoje, nesta
noite, antes 715 que duas vezes 716 cante o galo, tu me negarás 717 três
vezes.
Comparada com o versículo 27, a presente declaração, a. se
introduz de forma muito solene e impressionante, “Em verdade te digo”
(veja-se sobre Mc. 3:28); b. a declaração é muita mais específica ao ser
dirigida só à uma pessoa: Pedro; c. indica de forma ainda mais precisa
quando se cumprirá, ou seja, “antes que duas vezes o galo cante”, quer
dizer, antes do amanhecer; e d. descreve a natureza da deslealdade, a
armadilha em que o discípulo vai cair, quer dizer, “tu me negarás três
vezes”. O canto do galo servia como indicador de tempo. Marcos 13:35
explica que assinalava a terceira das quatro vigílias; veja-se sobre essa
passagem; em consequência, entre a meia noite e as 3 a.m.; “duas vezes
cante” indica à última parte desse período.
Vemos a Jesus aqui como o grande Profeta. Embora Pedro não
conhecesse o próprio coração, Jesus não só o conhecia, mas também o
revelava. Note-se o caráter detalhado de Seu conhecimento: três vezes.
Vemos a Jesus também como o grande Sofredor. Quanta tristeza deve
ter-lhe causado o que previa! Finalmente, nós O vemos como o Grande
Salvador. A referência ao canto do galo cumpre um duplo propósito: a.
Indica o caráter superficial da jactância de Pedro. Ao cabo de só umas
poucas horas, sim, mesmo antes do amanhecer, Pedro ia negar
publicamente a seu Mestre! Não obstante, b. o mesmo canto do galo é

715
Como em Jo 4:49, πρίν (que aqui é πρ_ν _) é seguido pelo infinitivo. Veja-se Burton, Op. cit.,
parágr. 380.
716
A respeito da omissão de “duas vezes” em alguns MSS. veja-se nota 778.
717
_παρνήσ_ fut. ind. med. 2ª. pes. sing., ou aor. subj. volitivo (mesma forma) de _παρνέομαι. Para
este verbo veja-se também 8:34, nota 381.
Marcos (William Hendriksen) 751
também o meio para conduzir Pedro ao arrependimento, porque a
referência de Cristo a este fato ficaria firmemente gravada em sua mente,
de modo que no instante apropriado, essa lembrança oculta puxaria a
corda que acionaria o alarme da consciência de Pedro. Veja-se Mt.
26:74; Mc. 14:72; Lc. 22:6; Jo. 18:27.
Não obstante, o discípulo que o Senhor tinha escolhido como objeto
desta predição persiste em suas declarações de firme lealdade:
31. Mas ele insistia com mais veemência: 718 Ainda que me seja
necessário morrer contigo, de nenhum modo te negarei.
Em lugar de “com grande ênfase Pedro seguia insistindo”, outra boa
tradução poderia ser “dizia com veemência”. Se fosse necessário, Pedro
estava disposto até a morrer com e por Jesus (assim também em Mt.
26:35; Lc. 22:33 e Jo. 13:37; veja-se também Jo. 11:16). Assim
disseram todos. deixaram-se levar pelo furacão das grandiosas
pretensões de Pedro. Possivelmente pensariam que não podiam prometer
menos que Pedro!
Jesus havia predito que todos Lhe seriam infiéis (Mc. 14:27).
Todos protestaram que isto jamais sucederia (Mc. 14:31).
Muito pouco depois, essa mesma noite, todos lhe abandonaram e
fugiram (Mc. 14:50).

A presente seção nos ensina que não nos conhecemos a nós


mesmos. Todos estes discípulos estavam muito seguros de que nunca
seriam apanhados no pecado da infidelidade a Jesus. Entretanto, isto foi
exatamente o que sucedeu. Com relação, então a

O desconhecido “eu”

deve-se sublinhar os seguintes pontos:


718
_κπερισσ_ς, no Novo Testamento só se acha aqui; comparem-se não obstante as palavras
relacionadas em Mc. 7:37; 1 Ts. 3:10; 5:13 (vejam-se CNT sobre 1 e 2Ts., p. 135, incluindo a nota
103 nesse livro); veja-se também Ef. 3:20.
Marcos (William Hendriksen) 752
1. O pecador não conhece seu ser interno. Isto não só é certo com
relação ao irregenerado — por exemplo, Hazael (leia-se 2Rs. 8:12, 13)
—, mas até certo ponto o é também com relação aos que renasceram.
Pense-se em Pedro e os outros discípulos, comparando o que
prometeram com o que realmente fizeram. (Cf. Jr. 17:9).
2. Deus conhece o pecador de maneira íntima e total. Veja-se Jr.
17:10; Sl 139:1–16; Hb. 4:13. Naturalmente que isto se pode dizer
também de Jesus no que respeita à Sua natureza divina, conforme
indicamos em Jo. 2:24, 25; 16:30; 21:17. As predições de Cristo
consignadas em Mc. 14:27, 28, 30 se cumpriram em todos os sentidos
(Mc. 14:50, 62–72).
3. Então o que pode fazer o homem sobre esta questão, se é que
pode fazer algo?
a. Fora de Deus, nada pode fazer. Mas quando pela soberana graça
divina chega à conversão, pode e deve vigiar seus pensamentos, palavras
e atos conscientes: porque tudo o que fizer conscientemente exerce
poderosa influência sobre seu subconsciente ou ser interno: “Porque
como é seu pensamento em seu coração, tal é ele” (Pv. 23:7). Portanto, é
importante obedecer a exortações tais como as que se acham em Sl
34:13; 119:35; 141:3; Jo. 15:4, 12, 27, para mencionar só algumas.
b. Contudo, também é verdade que o eu interno do homem produz
efeitos no eu externo. E pelo fato de que o homem não pode lutar
diretamente, de uma maneira adequada, contra aqueles pecados internos
que estão ocultos à sua consciência, deve pedir a Deus que faça o que ele
(o homem) não pode fazer. Portanto, a oração, “livra-me dos pecados
que me são ocultos” (Sl 19:12) é indispensável. Muito adequada é
também a oração expressa no Salmo 139:23, 24.
c. Ao fazer isto, não deve sentir-se atemorizado, mas deve extrair e
aceitar plenamente o fortalecimento que se deriva da afirmação divina,
“O Senhor carregou nele (quer dizer, no Messias) o pecado de todos nós”
(Is. 53:6). “Mas onde o pecado abundou, superabundou a graça” (Rm.
5:20).
Marcos (William Hendriksen) 753
A principal lição que o parágrafo recém estudado nos transmite
(Mc. 14:27–31 e seus paralelos) é que “dirige nosso coração ao amor de
Deus” (2Ts. 3:5). Quão bondoso foi Jesus ao dizer, “Simão, Simão, eis
que Satanás vos reclamou para vos peneirar como trigo! Eu, porém,
roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça; tu, pois, quando te
converteres, fortalece os teus irmãos”. E também foi muito amoroso ao
dizer aos onze: “Mas quando tiver ressuscitado irei diante de vós para a
Galileia”. Mesmo antes de que fossem espalhados disse que os reuniria!
Esta é a “graça admirável do Deus de amor”, a mesma “graça que excede
a toda minha maldade”. 719

Mc. 14:32–42 - Getsêmani


Cf. Mt. 26:36–46; Lc. 22:39-46

Ao nos aproximarmos à narração do Getsêmani, fazemo-lo com


profunda reverência. Também com devida avaliação do caráter único dos
eventos aqui descritos. Esta singularidade merece que seja enfatizada,
porque vez após vez se ouvirá pessoas que experimentaram duras provas
referir-se a elas como “meu Getsêmani”. O que segue é indubitavelmente
melhor:

A alegria ocorre na companhia,


A sós vem a dor;
Muitos foram a Caná,
Mas ao Getsêmani, só o Senhor.
—F. L. Knowles, Grief and Joy (adaptação)

O que Jesus suportou no Getsêmani jamais o experimentou pessoa


alguma.

719
As palavras entre aspas são o belo e popular hino de Júlia H. Johnston, Grace Greater Than Our
Sin.
Marcos (William Hendriksen) 754
Mas por que Getsêmani? Por que não pôde Deus ter ordenado tudo
de tal forma que na mesma entrada do jardim Jesus tivesse sido detido,
etc.? Por que tanta agonia, luta, orações e suor de sangue?
A resposta poderia ser a seguinte: Assim ficava estabelecido para
sempre que a obediência (tanto ativa como passiva) que Jesus rendeu não
foi imposta, mas foi completamente voluntária. Ele estava realmente
pondo Sua vida pelas ovelhas (Jo. 10:11, 14). Aquele sacrifício de todo
coração, em total obediência à vontade do Pai, foi a única classe de
sacrifício capaz de salvar o pecador (Hb. 5:7–9).
Que classe de morte Jesus sofreu? Morte meramente física? Morte
espiritual? Morte eterna? Não há dúvida que Jesus experimentou a morte
física, quer dizer, a separação da alma do corpo (Mc. 15:37).
Experimentou também a morte espiritual? Se por este termo se entende a
morte em pecado, a morte de “viver à parte de Deus”, a resposta deve ser
um terminante Não. Vejam-se Jo. 8:46; At. 3:14; 2Co. 5:21; Hb. 4:15;
7:26; 1Pe. 2:22; 1Jo. 3:5. Mas o que se pode dizer com relação à morte
eterna? Se ao atribuir a Jesus morte eterna queremos dizer que durante
toda a Sua vida na terra, e especialmente no Getsêmani e sobre a cruz,
Jesus sofreu tudo o que Seu povo teria sofrido se ninguém tivesse
morrido em seu lugar, a resposta é, “Sim, essa é indubitavelmente a
classe de morte que Jesus padeceu”. Dito de outra forma, o inferno veio
sobre Ele no Getsêmani e no Gólgota, e desceu até ali experimentando
todos os seus terrores.
“Suportou a ira de Deus — sob a qual nós teríamos sucumbido
eternamente — e cumpriu a nosso favor toda a obediência e toda a
justiça que a lei divina exigia, visto que levou sobre Si a carga de nossos
pecados e a ira de Deus. Por isso foi cravado à cruz, para que nós
pudéssemos ser libertados; por isso sofreu inumeráveis afrontas, para
que nós não fôssemos afrontados; por isso, sendo inocente, foi
condenado à morte, para que nós fôssemos absolvidos diante do tribunal
de Deus; por isso permitiu que O crucificassem, para cravar na cruz
todas as faltas e acusações que contra de nós se levantavam; por isso
Marcos (William Hendriksen) 755
carregou nossa maldição, para que nós fôssemos cheios de Suas bênçãos;
por isso no madeiro da cruz Ele Se humilhou e na angústia inexprimível
da dor e sofrimento do inferno exclamou: Deus meu, Deus meu, por que
me desamparaste? para que nós pudéssemos ser aceitos e jamais
abandonados por Deus …”. 720
Aqueles que põem objeções a esta apresentação devem perguntar-se
com toda seriedade se seria possível que Alguém que realmente não
tivesse descido às profundidades dos terrores do inferno como nosso
substituto, poderia ser nosso Salvador. Se Ele não sofreu tal castigo, não
é lógico deduzir que está reservado para nós?

O relato de Lucas, mesmo retendo Lc. 22:43, 44, 721 é muito mais
curto que o de Mateus ou de Marcos. Lucas não menciona o fato de que
Jesus orou no Getsêmani mais de uma vez. Entretanto, isto não é razão
para supor que haja um conflito entre Lucas e os outros. Lucas 22:42
afirma a própria essência das orações de Jesus nesta ocasião, o que se vê

720
Do formulário litúrgico reformado Decentemente e com ordem, p. 29, Rijswijk-ZH, Países Baixos.
721
Para uma análise detalhada do problema textual, o leitor deve consultar os comentários sobre
Lucas. Em resumo, podemos dizer que os que rejeitam esta passagem a respeito de um anjo que veio e
fortaleceu a Jesus, e do suor do Mestre como grandes gotas de sangue, apresentam as seguintes razões
em apoio de seu rechaço: a. esta passagem não está no Codex Vaticanus nem em outros manuscritos
importantes; b. tem aparência de um adorno que algum escritor fizesse ao texto de Lucas; c. pode
considerer-se como uma interpolação ocidental; e d. não está em harmonia com o conteúdo do
versículo imediatamente precedente.
Por outro lado, os que opinam o contrário respondem: a. a passagem se acha no Codex Sinaiticus e
tem o apoio de vários outros testemunhos, alguns deles antigos; b. é especialmente Lucas quem em
todo o seu Evangelho e no livro de Atos ele menciona repetidamente os anjos (veja-se qualquer boa
Concordância e note-se a frequência com que aparece a palavra “anjo” nos escritos de Lucas em
comparação com sua frequência nos outros Evangelhos); c. Lucas mostra também que o próprio Jesus
estava muito consciente da presença e obra dos anjos; d. é legítimo perguntar-se se a omissão dos vv.
43, 44 em vários manuscritos importantes, etc., não deve atribuir-se a desvio teológico, quer dizer, à
crença errônea de que o conteúdo desta passagem, supostamente em desacordo com a doutrina da
deidade de Cristo, fosse então uma base legítima ou um incentivo para os arianos; e e. a passagem está
totalmente em harmonia com Hb. 5:7, 8. Em ambos os casos é-nos apresentado o fato de que, em certo
sentido, a natureza humana de Cristo, embora totalmente sem pecado, necessitava fortalecimento.
Além disso, quanto aos raciocínios dos que rejeitam a passagem, não são alguns de seus argumentos
de caráter puramente subjetivo? Eu creio que a passagem deve ser conservada.
Marcos (William Hendriksen) 756
claro ao examinar tanto Mateus como Marcos. As adições de Lucas —
com referência ao anjo e as grossas gotas de sangue — harmonizam
muito bem com o que os outros Evangelhos relatam a respeito da agonia
do grande Servo Enfermo. Louvado seja o Senhor por nos haver dado o
relato de Lucas além dos de Mateus e Marcos!
Quanto a Mateus e Marcos, suas narrações são quase idênticas do
princípio ao fim. As principais diferenças são as seguintes:

a. Conquanto Mateus (26:39) e Marcos (14:36) dão a conhecer a


primeira oração de Cristo no Getsêmani usando o estilo direto, Marcos,
antes de fazê-lo, introduz esta oração mediante o estilo indireto (v. 35b).
Note-se a palavra hora na introdução, mas na própria oração, a palavra
“cálice”.
b. É verdade que a oração consignada em Mateus 26:39, e a que se
acha em Mateus 26:42 são essencialmente a mesma, porque em ambas
Jesus ora que se for possível passe dEle o cálice, submetendo-se
completamente à vontade do Pai. O que Marcos (Mc. 14:39) está
comunicando é a imprescindível identidade essencial. Mas dentro desta
identidade essencial há, não obstante, lugar para um grau de diferença
em ênfase. As palavras das duas orações não são exatamente idênticas. É
em Mateus onde aflora a distinção. Veja-se CNT sobre Mt. 26:42. Não
há conflito.
c. Com relação à segunda vez em que Jesus volta para os discípulos
que dormem, Marcos acrescenta, “Não sabiam o que lhe responder” (Mc.
14:40).
Marcos (William Hendriksen) 757
Jesus agonizou no Getsêmani
32. Então, foram a um lugar chamado Getsêmani; ali chegados,
disse Jesus a seus discípulos: Assentai-vos aqui, enquanto 722 eu vou
orar.
Exatamente onde estava o Getsêmani? Este jardim e “prensa de
azeite” devia estar em algum lugar do outro lado do Cedrom (Jo. 18:1) e
na ladeira do monte das Oliveiras (Lc. 22:39). Mas exatamente onde, e a
que elevação sobre a ladeira? É o que hoje se chama Jardim Franciscano
o lugar real onde Jesus agonizou e orou? Ou talvez seja o Getsêmani
Russo, um pouco mais acima na colina, aquele que tenha mais direito a
ser o autêntico? E o que diremos do Getsêmani Armênio? Há um fato
que com frequência se esquece. Josefo diz: “Enquanto isso os romanos,
embora duramente acossados pela tarefa de reunir madeira, tinham
terminado o trabalho de nivelamento do terreno em vinte dias, havendo,
como previamente se declarou (veja-se V. 522, 523), espaçoso (de
árvores) todo o distrito ao redor da cidade até uma distância de noventa
estádios (onze milhas = dezoito quilômetros)” (Guerra Judaica VI. 5).
No muito interessante livro Spoorzoeker in Bijbelse Landen
(Combing Biblical Lands, Amsterdam, 1973, pp. 121, 122), o Dr. H.
Mulder, que viveu nesta região durante algum tempo, afirma: “É
impossível que nos dias de Jesus e Seus discípulos estas mesmas árvores
(os que se exibem aos turistas hoje em dia) estivessem dando fruto aos
donos de então.… Por certo, as árvores de hoje em dia, cuidados por
monges são muito, mas muito velhos (holandês “stokoud”). Mas até
quinhentos ou seiscentos anos é bastante idade para uma árvore!”

722
Na presente passagem, Significa _ως “enquanto” ou “até”? As gramáticas não estão de acordo.
Contraste-se Burton, Op. cit., parágr. 325 (“propriamente até”), e Robertson, p. 976 (“enquanto”).
“Enquanto” parece ser o mais natural. Se fosse “até”, então a tradução deveria ser “até que eu tenha
orado”, porque dificilmente Jesus teria dito a Seus discípulos que se ficassem em determinado lugar
até que orasse (ou começasse a orar). Lenski, Op. cit., p. 399, tem “até” em sua tradução, mas em sua
explicação “enquanto”. Em todo caso, na mesma página proporciona dados muito interessantes a
respeito do Getsêmani. Entre os comentários que se leem e se consultam sobre Marcos, os estudiosos
da Bíblia devem incluir o de Lenski. — Além disso, a regra sobre _ως (veja-se nota 286) é flexível.
Marcos (William Hendriksen) 758
O que quer que seja, o ponto que Marcos faz ressaltar é que perto da
entrada deste lugar — uma paragem ideal para descansar, dormir, orar e
ensinar — havia uma plantação que provavelmente pertenceu a algum
dos seguidores de Cristo, e Jesus deixou ali a oito de Seus discípulos.
Disse-lhes que permanecessem ali enquanto ele orava.
33. E, levando consigo a Pedro, Tiago e João, …
Em outras ocasiões (Mc. 5:37; 9:2) o Mestre também tinha eleito a
estes mesmos três discípulos para estar com ele. Por que estes três?
(veja-se sobre Mc. 5:37). Não é estranho que, ao internar-se na arvoredo,
Jesus levasse a alguns de seus discípulos com ele. Visto que era humano,
não só tinha necessidade de alimento, bebida, roupa, albergue e sonho,
mas também de amizade humana (cf. Hb. 4:15). Necessitava àqueles
homens. Mais até, eles lhe necessitavam a ele! … começou 723 a sentir-
se tomado de pavor e de angústia. As palavras “… cheio de
angústia” 724 são usadas tanto por Mateus como por Marcos. Em Mateus
26:37 o primeiro verbo é “(cheio de) tristeza”; em Marcos 14:33 “(cheio
de) horror”. 725 Todas as ondas e as ondas de angústia se derramavam
sobre sua alma (cf. Sl 42:7b). Por que este terror e consternação? Foi
devido ao fato de que já nesse momento Judas se aproximava — ou se
preparava para vir — para entregá-Lo a Seus inimigos? Foi porque
estava dolorosamente consciente de que Pedro havia de negá-Lo, que o
Sinédrio condená-lo-ia, que Pilatos O sentenciaria, que Seus inimigos O
ridicularizariam e que os soldados O crucificariam? Indubitavelmente,
tudo isto estava incluído. Entretanto, à medida que a história segue seu
723
Para _τξατο, aor. ind. med. 3ª. pes. de _ρχω; veja-se sobre Mc. 1:45 e 6:7, nota 233. Embora em
Mc. 6:7; 13:5 e talvez em outras poucas passagens possa haver um uso pleonástico deste verbo, não é
provável aqui. O Getsêmani era único. O relato deixa a impressão distintiva (vejam-se especialmente
os vv. 33, 34) de que o sofrimento que Jesus começa agora a experimentar era mais intenso que
qualquer coisa que tivesse suportado previamente.
724
Tanto _κθαμβε_σθαι como _δημονε_ν são infinitivos presentes depois de _ρξατο. O verbo
_δημονέω, é de derivação incerta. A etimologia “estar longe de casa” não se pode provar. Veja-se
CNT sobre Fp. 2:26, 27.
725
Outra boa tradução de _ρξατο _κθαμβε_σθαι é “começou a estar muito assombrado”. Veja-se sobre
Mc. 9:15.
Marcos (William Hendriksen) 759
curso, observamos que foi este outro pensamento, ou seja: que Ele, uma
alma tão tenra e sensível, vai ficando cada vez mais isolado. Grande
parte do povo já se havia apartado dEle (Jo. 6:66). Seus discípulos
haviam de abandoná-Lo (Mc. 14:50). O mais terrível de tudo: na cruz
chegaria a exclamar, “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?”
(Mc. 15:34). Seria que estando no Getsêmani Ele via que se aproximava
a maré da ira de Deus pelos nossos pecados?
34. E lhes disse: A minha alma está profundamente triste até à
morte.
No original se lê literalmente: “Afligida está minha alma 726 até o
ponto de morrer”. Mediante a impedido da palavra “afligida” Jesus
mostra onde se quer pôr a ênfase.
Naturalmente, todos os dias da Sua humilhação tinha sido portador
da maldição, mas agora a maldição O afligia, e mais do que nunca se
converteu em maldição em favor daqueles que põem sua confiança nEle
(Gl 3:13). Esta convicção não O deixou até que pôde dizer, “Está
consumado” (Jo. 19:30). Sabia que estava dando Sua vida em resgate por
muitos (Mc. 10:45; cf. Mt. 20:28), e que quem não conheceu pecado
“estava sendo feito pecado”, quer dizer, o portador vicário da ira de Deus
(2Co. 5:21). Não é estranho que dissesse aos Seus três discípulos mais
íntimos: ficai aqui e vigiai. 727 Eles o fizeram? Veja-se os vv. 37 e 39.
Mais do que nunca, a angústia de morte caía agora sobre Jesus. Mas
não só a angústia pela morte física mas pela morte eterna em lugar de
seu povo, para expiar seus pecados. É por isso que fala de “tristeza até o
ponto de morrer”. E ele a suportou sozinho — totalmente sozinho!

726
Veja-se mais acima sobre Mc. 8:12, nota 370; também sobre Mc. 10:45. A “alma” é aqui o eu (cf.
1Tm. 2:6), com ênfase no emocional.
727
Embora estas duas ações — ficar e permanecer acordado — são de caráter durativo, a ênfase recai
só no segundo verbo. Em consequência, μείνατε é um imperativo aoristo, indicando-a ação como um
simples feito, uma ordem para obedecer, mas γρηγορε_τε é imperativo presente. Para γρηγορέω veja-
se também sobre Mc. 13:34 e 14:38.
Marcos (William Hendriksen) 760
Jesus agonizou e orou no Getsêmani
35. E, adiantando-se um pouco, prostrou-se em terra; e orava 728
para que, se possível, lhe fosse poupada aquela hora.
Considere-as belas linhas de Robert Harenens:
Entra Jesus no jardim,
Hora decisiva é.
Ali compreende bem seu fim,
No Getsêmani.
Ó, como padeceu Jesus!
A sós contemplou a cruz
No Getsêmani.
(Hinos de fé e louvor)
A agonia continua e se intensifica. Mas agora a história da agonia
de Cristo se torna na de sua oração (introduzida já brevemente no v. 32).
Jesus deseja estar sozinho durante sua oração. Portanto, aparta-se
inclusive dos três discípulos. Mas não longe demais, porque deseja
conservar a possibilidade de ter contato com eles. Segundo Lucas 22:41
se apartou deles (ou: para além deles) à uma distancia como de um tiro
de pedra.
De forma muito descritiva, 729 Marcos explica o que sucedeu: Jesus
se prostrava em terra e orava. Também é possível traduzir: “… começou
a orar”. 730 A essência desta oração foi que se era possível aquela hora
passasse dEle.
Note-se “esta hora”. Não é verdade que cada vez que Jesus usa esta
expressão ou outra similar esteja referindo ao mesmo acontecimento. O
que, sim, é verdade é que “esta hora”, na fraseologia de Jesus, significa
“o momento, a estação ou tempo destinado para que algo ocorresse”.
De modo que houve um tempo apto, um momento destinado para
que Jesus realizasse certo sinal (Jo. 2:4); há uma estação predestinada
para despertar os que estão mortos espiritualmente (Jo. 5:25), e há um
728
Ou: começou a orar.
729
Notem-se os imperfeitos _πιπτε e προσηύχετο.
730
Quanto a posturas para a oração e seu significado, veja-se CNT sobre 1Tm. 2:8b.
Marcos (William Hendriksen) 761
tempo destinado (ainda futuro) para ressuscitar a todos os que estão
mortos fisicamente (Jo. 5:28). E assim também havia uma “hora
predestinada” para que o Filho do Homem partisse deste mundo (Jo.
13:1) e fosse glorificado por meio de Sua morte e ressurreição (Jo.
12:23; 17:1). Jesus era crente absoluto na doutrina da divina
predestinação, sem aceitá-la nem por um momento às custas da doutrina
da responsabilidade humana! Veja-se Lc. 22:22.
Como se disse, está em profunda agonia, provavelmente porque
agora vê mais nitidamente que nunca as tribulações que O esperam. De
modo que ora, para que este momento de amarga dor e angústia
indescritíveis, passem dEle. 731
As palavras textuais da oração são dadas a conhecer agora:
36. E dizia: Aba, Pai, tudo te é possível; passa de mim este
cálice; contudo, não seja o que eu quero, e sim o que tu queres.
Note-se o seguinte:
a. Não é necessário pensar que Jesus, ao dirigir-se ao Pai, usasse
duas palavras: a aramaica Aba e a grega Pater, ambas com o mesmo
significado, ou seja, “Pai”. Provavelmente disse “Aba”, palavra que
Marcos, por escrever principalmente a não judeus, traduz imediatamente
ao grego, que era o idioma mais familiar para seus leitores.
b. “Tudo te é possível”. Aqui Jesus, muito adequadamente, apela ao
fato de que o Pai, a quem Se dirige, é capaz de fazer tudo que deseja
fazer. Portanto, faz esta petição num espírito de absoluta confiança e
submissão.
c. “Passa de mim este cálice”. Este cálice significa “esta terrível e
iminente experiência”, cujo clímax é a cruz e a solidão completa (Mc.
15:34). Com relação a “cálice”, veja-se ademais sobre Mc. 10:38.
d. “Contudo, não seja o que eu quero, e sim o que tu queres”. A
natureza desta súplica, totalmente isenta de pecado, e na realidade
exemplar, revela-se no fato de que a cláusula, “passa de mim este

731
παρέλθ_, aor. subj. 3ª. pes. sing. παρέρχομαι como em Mc. 13:30.
Marcos (William Hendriksen) 762
cálice”, fica modificada imediatamente por “contudo, não seja o que eu
quero, e sim 732 o que tu queres”. É evidente que Jesus está Se
submetendo inteiramente à vontade do Pai.
Em Lucas 22:43, 44 faz-se patente que a alma de nosso Senhor
esteve indubitavelmente sumida em profunda angústia, conforme o
expressou em sua oração: “Então, lhe apareceu um anjo do céu que o
confortava. E, estando em agonia, orava mais intensamente. E aconteceu
que o seu suor se tornou como gotas de sangue caindo sobre a terra”.
Estava realmente “oferecendo rogos e súplicas com grande clamor e
lágrimas” (Hb. 5:7).
Depois da primeira oração Jesus voltou onde estavam os três
homens a quem tinha exortado a vigiar:
Em Lucas 22:43, 44 faz-se patente que a alma de nosso Senhor
esteve indubitavelmente sumida em profunda angústia, conforme o
expressou em sua oração: “Então, lhe apareceu um anjo do céu que o
confortava. E, estando em agonia, orava mais intensamente. E aconteceu
que o seu suor se tornou como gotas de sangue caindo sobre a terra”. 733
Estava realmente “oferecendo rogos e súplicas com grande clamor e
lágrimas” (Hb. 5:7).
Depois da primeira oração Jesus voltou onde estavam os três
homens a quem tinha exortado a vigiar:
37. Voltando, achou-os dormindo; e disse a Pedro: Simão, tu
dormes? Não pudeste 734 vigiar nem uma hora?
Era natural dormir naquela hora, provavelmente passada a meia
noite, especialmente depois das emocionantes experiências no Cenáculo:
o lavamento dos pés dos discípulos, a revelação de que um dos Doze iria
trair o Mestre, a partida de Judas, a instituição da Santa Ceia do Senhor e

732
Notem-se os poderosos adversativos. O imper. aor. 2ª. pes. sing. παραφέρω (de παρένεγκε) está
equilibrado por _λλά … _λλά.
733
Para o problema textual, veja-se mais acima, nota 722.
734
Note-se o chamativo contraste entre o presente e o aoristo; “Dormi … não pudestes (ou: não
tivestes a força).…”
Marcos (William Hendriksen) 763
*
depois “todos vós me sereis infiéis”, o protesto de Pedro, etc.
Entretanto, aqueles homens deveriam ter permanecido acordados.
Teriam podido, se tão somente tivessem pedido energias para isso.
Embora a suave repreensão de Cristo abrangesse os três, entretanto era
dirigida particularmente a Pedro, certamente porque ele tinha estado à
cabeça na questão de jurar lealdade e alardear disso.
Este era o mesmo Pedro que no caminho ao Getsêmani, e inclusive
estando no Cenáculo, jactou-se da seguinte maneira:
“Ainda que todos se escandalizem, eu, jamais!” (Mc. 14:29).
“Ainda que me seja necessário morrer contigo, de nenhum modo te
negarei” (Mc. 14:31).
“Senhor, estou pronto a ir contigo, tanto para a prisão como para a
morte” (Lc. 22:33).
“Senhor, … Por ti darei a própria vida” (Jo. 13:37).
E agora, Ei-lo aqui … dormindo profundamente, mesmo quando
Jesus tinha insistido com ele a orar para que pudesse vigiar!
Jesus continua,
38. Vigiai e orai, para que não entreis em tentação. 735
O contexto claramente indica que se deve atribuir uma ligeira
diferença de significado à mesma palavra grega que foi usada nos
versículos 34, 37. “Ficai aqui e vigiai” converte-se em “Permanecei
alertas”, ou “Vigiai”. A razão para a mudança é a cláusula “para que não
entreis em tentação”. Uma pessoa pode estar muito desperta fisicamente
e, apesar disso, pode sucumbir à tentação, mas se permanece desperta no
espiritual, quer dizer, se de coração e mente “permanece alerta” ou
“vigilante”, vencerá a tentação. Veja-se CNT sobre Mt. 6:13. A tentação
para os discípulos consistia em ser infiéis a Jesus. Já sabemos que eles,

*
Na NVI: “Vocês todos me abandonarão” (Mc. 14:27) – N. do Tradutor.
735
Note-se o imper. pres. 2ª. pes. pl. de caráter durativo: γρηγορε_τε e προσεύχεσθε; _να μή é
negação final: “não seja que” ou “para que não”. _λθητε (outra leitura diz ε_σέλθητε) é um aor. subj.
2ª. pes. pl., uma ilustração do uso não literal de _ρχομαι seguido por ε_ς, (para que não) entreis, quer
dizer, desejem ou lhes exponham pecaminosamente a (a tentação). O aoristo resume a ação de entrar.
Marcos (William Hendriksen) 764
incluindo concretamente a Pedro, não permaneceram alertas, não
realizaram um intenso exercício de oração, e portanto, indefectivelmente,
sucumbiram à tentação. Jesus acrescenta: o espírito, na verdade, está
pronto, mas a carne é fraca. Se naquela hora da noite Jesus
experimentou a fraqueza de Sua própria natureza humana, podemos estar
seguros de que a necessidade da oração era muita mais evidente no caso
dos discípulos. Na presente passagem, “espírito” refere-se à entidade
invisível do homem considerada em sua relação com Deus. Quanto tal, é
o receptor do favor de Deus e o meio pelo qual o homem adora a Deus.
Veja-se ainda sobre Mc. 8:12, incluindo a nota 370. “Carne”, segundo
seu significado aqui, é a natureza humana considerada pelo aspecto de
sua fragilidade e necessidade, tanto física como psíquica. Veja-se CNT
sobre Fp. 1:22 e nota 55. Cf. Is. 40:6; 1Co. 1:29; Gl 2:16. Este uso da
palavra “carne” não se deve confundir com aquela em que “carne” está
indicando a natureza humana considerada como sede dos desejos
pecaminosos (Rm. 7:25; 8:4–9; etc.). Para os discípulos, afligidos pelo
sono, era uma batalha entre seu “espírito” que desejava fazer o certo e
assim permanecer “em guarda” contra a tentação, e sua “carne” a qual,
por causa de sua fraqueza, estava inclinada a ceder aos desejos de
Satanás.
39. Retirando-se de novo, orou 736 repetindo as mesmas
palavras. Embora Jesus não pronunciasse exatamente as mesmas
palavras, diz o que equivalia substancialmente (embora não exatamente)
à mesma coisa. 737 Pelo que se refere a diferenças de fraseologia e ênfase
veja-se CNT sobre Mt. 26:43.
40. Voltando, achou-os outra vez dormindo, porque os seus
olhos estavam pesados; e não sabiam o que lhe responder. 738

736
Lenski, Op cit., p. 404, chama “imperfeito” a προσηύξατο. Resulta que é um aoristo. O v. 35 tem o
imperfeito προσηύχετο.
737
λόγος acus. -ον usado aqui provavelmente no sentido do hebraico da-bha-r.
738
_σαν … καταβαρονόμενοι, é impf. perifrástico. _δεισαν, mqpf. 3ª. pes. pl. com sentido de
imperfeito. _ποκριθ_σι, é o subj. deliberativo da pergunta direta que se mantém na pergunta indireta.
Marcos (William Hendriksen) 765
A sonolência obteve a vitória sobre seu desejo de estar acordados e
permanecer alertas. Seus olhos estavam carregados de sono, porque seu
coração não tinha estado impregnado de oração. De modo que Jesus teve
que travar a batalha totalmente sozinho. Não recebeu ajuda alguma dos
homens, nem sequer daqueles três!
Embora o Mestre lhes tenha falado, eles não sabiam o que lhe
responder. Até certo ponto aqueles três homens estavam revivendo uma
experiência prévia. Leia-se a história da transfiguração do Mestre. Note-
se especialmente Marcos 9:6 e Lucas 9:32. Mas aqui no Getsêmani, além
de estar Pedro, Tiago e João carregados de sono, não estavam
possivelmente curvados de vergonha, sentindo talvez vagamente que se
eles tivessem obedecido a exortação de continuar em oração não lhes
teria vencido o sono?
Novamente Jesus deixa os três e Se acha em comunhão com Seu
Pai. Marcos reata a história quando pela terceira vez o Servo Sofredor
volta para Seus discípulos:

Jesus orou e vigiou no Getsêmani


Com relação aos dois últimos versículos desta seção há diversidade
de opinião entre os expositores. Com uma alteração muito leve eu adotei
a tradução do versículo 41 que se acha em RA. 739
41. E veio pela terceira vez e disse-lhes: Ainda dormis e
repousais!
Jesus já não os repreende mais. Já não diz mais a Simão, “Não
pudeste estar acordado uma só hora?” Já não diz aos três que estejam
alerta e que continuem orando. Ao ler as palavras do versículo 41
recebemos a impressão concreta de que para Jesus a luta do Getsêmani
terminou. A vitória foi conseguida. Em Sua alma há perfeita paz.
fortaleceu-se por meio de um anjo (Lc. 22:43) e por Suas próprias
739
Aqui traduzimos “Dormi já e descansai”. O original diz Καθεύδετε τ_ λοιπ_ν κα_ _ναπαύεσθε (Mt.
26:45 e Mc. 14:14). As razões para o rechaço de outras traduções são dadas no CNT sobre Mateus,
nota 848.
Marcos (William Hendriksen) 766
orações. Indubitavelmente, os três acompanhantes lhe falharam. Mas o
Seu amor por eles jamais se extinguiria.
De modo que o que o versículo 41 nos apresenta é o Bom Pastor
que meigamente vigia pelos Seus, quer dizer, pelos mesmos homens que
por seu pecado descuidaram vigiar juntamente com Ele! Segundo
Marcos, Jesus acrescenta: Basta. 740 Talvez seja impossível determinar
exatamente o que tinha em mente quando disse isto. Quereria dizer, “Já
houve suficientes intentos de vos manter acordados e alerta”?
“Suficientes repreensões?” Mas isto são só hipóteses. Não o sabemos.
Chegou a hora; o Filho do Homem está sendo entregue nas
mãos dos pecadores.
A vigília foi de curta duração. Passado muito pouco tempo Jesus
viu a equipe que se aproximava. Então fez levantar os três discípulos
dizendo:
42. Levantai-vos, vamos! Eis que o traidor se aproxima. 741
Vamos … para onde? Tão longe quanto possível? Fugir? Não,
justamente o contrário: vamos adiante, ao encontro dos que vieram para
prender Jesus; sim, ao encontro deles, incluindo Judas!

740
_πέχει, pres. ind. 3ª. pes. sing. de _πέχω aqui usado impessoalmente; cf. seu uso em Mc. 7:6: “é
(longe) de”. Também, veja-se Mt. 6:2, 5, 16, onde o significado parece ser receber o suficiente. Veja-
se também CNT sobre Fp. 4:18. Em At. 15:20, 29; 1Ts. 4:3; 5:22; 1Tm. 4:3; e 1P. 2:11 o sentido é
abster-se de; e em Filemom 15: apartar-se de.
741
Em “Levantai-vos … Vamos” temos uma combinação de um imper. pres. 2ª. pes. pl. com um pres.
subj. hort. 1ª. pes. pl. “Meu traidor”, literalmente: aquele (que está) me traindo. Finalmente, _γγικε es
pf. ind. 3a. pers. sing. de _γγίζω, e tem o significado comum de aproximou-se, portanto está perto.
Marcos (William Hendriksen) 767
Mc. 14:43–50 - A traição e arresto de Jesus
Cf. Mt. 26:47–56; Lc. 22:47–53; Jo. 18:2–12

A história que aqui se relata acha-se nos quatro Evangelhos. Os


relatos mais longos são os de Mateus e João, e têm aproximadamente a
mesma extensão. Marcos e Lucas têm quase a mesma extensão e só
cobrem mais ou menos dois terços do espaço ocupado por aqueles.
Sem levar em conta detalhes menores, as principais variações são as
seguintes:
Embora Mateus e Marcos, como sucede com frequência, discorrem
em estreito paralelismo, Mateus contém um ponto importante que não se
acha em Marcos, ou seja: a repreensão que Jesus dirigiu ao homem
(Pedro, segundo Jo. 18:10) que feriu o servo do sumo sacerdote
cortando-lhe uma orelha. Esta repreensão, que se acha em Mateus
26:52–54, termina com uma referência ao cumprimento da profecia,
coisa que não é estranha em Mateus.
Quanto a Marcos, este evangelista não relata nada que não se possa
achar em Mateus, com exceção da menção de “escribas” (Mc. 14:43) e
das palavras, “e levai-o com segurança” (Mc. 14:44). Mas não é a
mesma brevidade do relato de Marcos — quase tudo é ação — o que
contribui para sua faiscante vivacidade?
O relato de Lucas contém os seguintes elementos que não se acham
em nenhum outro lugar: a. “Judas, com um beijo trais o Filho do
Homem?”; b. “Senhor, feriremos à espada?”; c. “E, tocando-lhe a orelha,
o curou”; e d. “Esta, porém, é a vossa hora e o poder das trevas”.
Os seguintes detalhes informativos são exclusivos (quer inteira ou
quase inteiramente) de João [18:2-6, 8]:
a. “Judas … conhecia aquele lugar [Getsêmani], porque Jesus ali
estivera muitas vezes com seus discípulos”; b. “Tendo, pois, Judas
recebido a escolta e, dos principais sacerdotes e dos fariseus, alguns
guardas, chegou a este lugar com lanternas, tochas e armas”.
Marcos (William Hendriksen) 768
c. A narração mostra que Jesus toma a iniciativa, avança para o
grupo e diz “A quem buscais? Responderam-lhe: A Jesus, o Nazareno.
Então, Jesus lhes disse: Sou eu. ... recuaram e caíram por terra”. Jesus
voltou a lhes perguntar e recebeu a mesma resposta. Jesus respondeu, “Já
vos declarei que sou eu; se é a mim, pois, que buscais, deixai ir estes”.
Por inspiração, João vê neste incidente o cumprimento de palavras ditas
antes por Jesus. Veja-se CNT sobre Jo. 18:9.
d. João nos informa que o nome do servo cuja orelha Pedro cortou
com a espada era Malco, e que Jesus respondeu ao arrebatado ato de
Pedro dizendo: “Mete a espada na bainha; não beberei, porventura, o
cálice que o Pai me deu?” [Jo. 18:11].

***

No concreto e fundamental, a história continua sendo a de Jesus, o


que se lhe fez a Ele, e de como reagiu. Em geral, os atores deste
dramático feito aparecem na seguinte ordem: Judas (vv. 43–45), a tropa
enviada para prender Jesus (v. 46), um dos que estavam ali (Pedro, v.
47), Jesus, (vv. 48, 49), e os discípulos (v. 50).

Judas
43. E logo, falava ele ainda, quando chegou Judas, um dos doze, e
com ele, vinda da parte dos principais sacerdotes, escribas e anciãos, uma
turba com espadas e porretes.
“Ele, tendo recebido o bocado, saiu logo. E era noite”. Assim diz
João 13:30. Para onde foi? Deve ter-se apressado para ir aos principais
sacerdotes, etc., aos homens que lhe pagavam. Possivelmente tinha
temor de que quando sua traição fosse conhecida o alarme se estendesse
e que de todas as partes os amigos de Jesus se reunissem para Sua
defesa. Pense-se especialmente no grande número de galileus que se
achavam então na cidade. “Ajam com rapidez”, disse talvez às
autoridades judaicas, “preferivelmente de noite, quando não andarem
Marcos (William Hendriksen) 769
muitas pessoas perto. Fazei-o nesta noite”. As autoridades tinham-no
estado esperando. Tão ocupados estavam com a conspiração para matar a
Jesus que, segundo se explica no CNT sobre Jo. 18:28, nem sequer
tinham comido a ceia pascal. Deviam investigar-se os possíveis
paradeiros de Jesus; devia organizar-se um pelotão; devia-se avisar o
guarda do templo; devia obter-se uma permissão de Pilatos, o que é
provável em vista de Mateus 27:62–65, ou do “quiliarca” romano, a fim
de conseguir um grupo de soldados para acompanhar o guarda do
templo; deviam pôr de sobreaviso a todos os membros do Sinédrio; a
Anás não deviam deixar de avisar; deviam reunir tochas, espadas e
porretes; devia recalcar-se a todos os que estavam envolvidos naquilo, a
necessidade de absoluto segredo; etc., etc.
Enfim, então, tudo está preparado. Agora é preciso encontrar a
Jesus. Judas não sabia com absoluta certeza para onde se dirigiu o grupo
depois de abandonar o Cenáculo, mas sabendo que o Mestre e Seus
discípulos visitavam o Getsêmani com frequência (Jo. 18:2), o traidor
fez uma boa dedução e acertou. Assim, enquanto Jesus ainda falava com
os três discípulos, viu Judas que entrava na arvoredo. “Judas, um dos
doze”, diz o texto, para sublinhar o terrível caráter do crime que este
homem cometia. Veja-se sobre o versículo 10 e note-se a repetição de
“um dos doze” no versículo 20. Por ser “um dos Doze” seria impossível
mencionar todos os privilégios que lhe foram concedidos durante os
muitos dias, semanas, e meses que tinha estado na companhia imediata
de Jesus. Tanta confiança tinham depositado os outros onze neste mesmo
Judas, que inclusive o haviam nomeado tesoureiro. E agora se estava
manifestando totalmente indigno de todas aquelas honras e privilégios e
de toda aquela confiança. Chegou a ser um odioso e vergonhoso quinta
coluna, um miserável desertor, um que pela mesquinha soma de trinta
moedas de prata, entregava nas mãos do inimigo o mais eminente
Benfeitor que jamais haja pisado na terra, o Mediador, homem e Deus ao
mesmo tempo, o próprio Senhor Jesus Cristo.
Marcos (William Hendriksen) 770
Ninguém sabe exatamente como estava organizado o grupo que
acompanhava a Judas, se for que se pode falar de ordem ou organização.
Se nos for permitida uma conjetura poderia ser como segue:
À frente ia Judas. Isto, ao menos, parece ser coisa comprovada. Diz-
se que a turba estava “com ele”. Além disso, era ele quem ia aproximar-
se de Jesus (v. 45) para identificá-Lo diante de outros. O servo pessoal
do sumo sacerdote, Malco, devia estar também perto da cabeça (Mc.
14:47; Lc. 18:10) e assim também o guarda do templo, os levitas
(Mc.14:49; cf. Jo. 18:3). O destacamento de soldados junto com seu
capitão, não estariam muito atrás (Jo. 18:3, 12). João 18:3 menciona uma
“escolta” (coorte), provavelmente obtida da torre de Antônia, situada na
esquina nordeste da área do templo. Embora uma coorte completa estava
formada por seiscentos homens (décima parte de uma legião), as
autoridades romanas provavelmente não teriam debilitado sua guarnição
até esse ponto. Em todo caso, o grupo devia ser bastante grande.
Mas por que devia haver legionários romanos? Não teria sido
suficiente o guarda do templo? A resposta é que o Sinédrio sabia que
aqueles servidores nem sempre eram confiáveis. Quem sabe, inclusive
podiam ter-se aliado com Jesus, como sucedeu numa ocasião anterior.
Veja-se João 7:32, 45. Em consequência, viu-se a necessidade de um
destacamento de soldados também. E devido ao fato de que as próprias
autoridades romanas tinham muito interesse em prevenir tumultos em
Jerusalém, especialmente durante a Páscoa, quando sempre havia perigo
de rebeliões da parte dos judeus, conseguiram-se rapidamente os
legionários requeridos.
Talvez um pouco mais atrás estavam os membros do Sinédrio (Lc.
22:52). Não podemos saber com certeza se haviam outros presentes.
Nem sequer Mateus 26:55 sugere necessariamente isso.
As forças comissionadas para prender a Jesus iam bem preparadas.
Os homens levavam espadas e porretes. Quanto às espadas, tratava-se
provavelmente do tipo de espada curta que o soldado romano usava.
Veja-se CNT sobre Efésios, p. 304, incluindo nota 177. Os porretes ou
Marcos (William Hendriksen) 771
varapaus, é de supor, estavam nas mãos da guarda do templo. Não é
possível estar completamente seguros destes detalhes. As palavras têm
sua história, o que neste caso significa que o termo usado no original
para referir-se a “espadas” pode às vezes ter um significado mais geral.
Nem sempre se usava para distinguir estas armas dos espadões.
Tampouco podemos estar totalmente certos de que os únicos que usavam
espadas eram os soldados. Não tinha inclusive Pedro uma espada? Veja-
se o versículo 47. A única coisa que realmente sabemos é que os que
deveriam prender a Jesus portavam espadas e porretes. Sua distribuição
não se indica de maneira concreta, embora seja lógico pensar que os
soldados iam equipados com espadas. O Evangelho de João menciona
também “tochas e lanternas”. Tochas e lanternas — para buscar a Luz do
mundo”. E era época de lua cheia! Espadas e porretes — para dominar
ao Príncipe da Paz.
Para o Varão de Dores, a própria visão daquele bando de rufiões,
que O consideravam sua presa, significava um sofrimento indescritível.
E pensar que aqueles homens que eram os supostos dirigentes de Israel,
tão religiosos e devotos, principais sacerdotes, escribas e anciãos, que
compunham o Sinédrio, tinham enviado aquelas forças! Em lugar de
recebê-Lo como o muito esperado Messias, enviavam uma equipe
armada para O prender, com o propósito expresso de O levar diante das
autoridades para que O sentenciassem à morte! Para mais detalhes sobre
os principais sacerdotes, escribas e anciãos, veja-se mais acima em Mc.
14:1.
44, 45. Ora, o traidor tinha-lhes dado esta senha: 742 Aquele a
quem eu beijar, é esse; prendei-o e levai-o com segurança. 743 E, logo
que chegou, aproximando-se, disse-lhe: Mestre! E o beijou. 744

742
σύσσημον, no Novo Testamento se acha só aqui. Quanto ao uso desta palavra em outro lugar, veja-
se MM, p. 617.
743
Ou: custodiado.
744
Ou: e o beijou vez após vez.
Marcos (William Hendriksen) 772
Há os que dizem que a forma habitual de cumprimentar um rabino
era com um beijo. Seja como for, podemos estar seguros de que então,
bem como agora — embora mais em certas regiões do mundo que em
outras — o beijo era símbolo de amizade e afeto. Entretanto, Judas o
usou como sinal estabelecido para que a tropa prendesse a Jesus e, como
acrescenta Marcos, levá-lo “com segurança” ou “custodiado” (cf.
Hch.16:23). Naturalmente, Judas já tinha seu dinheiro (Mt. 26:15), mas
também sabia que não o poderia guardar até que Aquele a quem traía
estivesse realmente nas mãos do Sinédrio.
Assim, ao chegar ao Getsêmani à frente da equipe que ia prender
Jesus, Judas O vê e avança até colocar-se diretamente diante dEle. A
seguir O cumprimenta dizendo “Rabi”, ou como diz Mateus, “Salve,
Mestre”. O fato de que Judas se dirigisse a Jesus assim e não dizendo
“Senhor” indica acaso falta de respeito? É preciso ir com cuidado aqui. É
verdade que durante a caia de Páscoa todos os discípulos disseram,
“Porventura, sou eu, Senhor?”, conquanto Judas só disse, “Sou eu,
Mestre?” (Mt. 26:22 e 25 respectivamente). O contraste entre os dois
modos de tratá-Lo é tão óbvio que bem pôde ter sido intencional. No
caso presente, entretanto, não há base para comparação alguma. Em
geral é verdade que “Rabi”, como forma de dirigir-se a Jesus era bastante
comum, especialmente durante o período inicial e no meio do ministério
de Jesus (Mc. 9:5; Jo. 1:38, 49; 3:2, 4:31; 6:25; 9:2). Natanael não
mostrou absolutamente falta de respeito algum ao dirigir-se assim a
Jesus; Antes, justamente o contrário, conforme indica o contexto (Jo.
1:49). O termo não tinha ficado em desuso nem mesmo na última parte
de Seu ministério (Jo. 11:8), e o próprio Jesus o aprovou (Mt. 23:8). A
única coisa que podemos dizer com segurança é que existe alguma
evidência em favor do fato que, ao aumentar a reverência para com
Jesus, “Rabi” foi sendo substituído gradualmente por “Senhor”. Veja-se
CNT sobre João, p. 108, nota 44. Depois da ressurreição de Cristo
“Rabi” desaparece, e “Senhor” é usado com muita regularidade. No caso
Marcos (William Hendriksen) 773
presente (Mc. 14:45), é melhor concentrar-se no que Judas fez do que no
que ele disse.
E o que fez determinou que as gerações posteriores se encolham de
horror pela simples menção de seu nome. Abraçando a Jesus ele O
beijou — provavelmente de maneira fervente e repetida. 745
Quanto à impressionante resposta de Jesus, veja-se Mateus 26:50
(“Amigo, para que vieste?”), e veja-se CNT sobre esta passagem. E não
esqueçamos Lucas 22:48 (“Judas, com um beijo trais o Filho do
Homem?”). É claro que até este último instante, Jesus estava advertindo
sinceramente a Judas. Ninguém mais que Ele mesmo era o responsável
por sua própria perdição eterna!

A tropa que foi prender a Jesus


46. Então, lhe deitaram as mãos e o prenderam.
Quanto aos detalhes, veja-se João 18:4–9 e CNT sobre estes
versículos. João 18:3, 12 mostra que a detenção foi levada a cabo assim:
a. Os soldados e seu quiliarca (capitão) e b. O guarda do templo. Gentios
e judeus se unem contra Jesus (cf. At. 4:27). Além disso, o Evangelho de
João deixa claro que Jesus, antes de permitir que O levassem,
demonstrou Seu poder sobre os captores, demonstrando que se rendia
voluntariamente a eles, em harmonia com Jo. 10:11b, 15b. Nesta
detenção quem triunfou foi o cativo!

Um dos circunstantes
47. Nisto, um dos circunstantes, sacando da espada, feriu o
servo do sumo sacerdote e cortou-lhe a orelha. 746

745
É um fato bem conhecido que em combinações tais como a que aqui se usa (κατεφίλησε), o prefixo
com frequência perde sua força intensiva. Entretanto, o uso da forma simples do verbo no v. 44
(φιλήσω aor. subj. 1ª. pes. sing. aor. subj. de φιλέω) contrastado com a forma composta no seguinte
versículo, provavelmente aponta rumo à conotação reforçada no caso de κατεφίλησε.
746
σπασάμενος, part. aor. med. nom. sing. masc. de σπάω. _παισε, aor. ind. at. 3ª. pes. sing. de παίω.
_φε_λε, aor. ind. at. 3ª. pes. sing. de _φαιρέω. _τάριον e _τίον (Mt. 26:51) são diminutivos de ο_ς
orelha. Provavelmente naquele então estes diminutivos tinham perdido grande parte de, ou toda, sua
Marcos (William Hendriksen) 774
A estas alturas os oito discípulos já se reuniram com Jesus. Veja-se
v. 50 e cf. Lc. 22:49. Um dos que estavam perto entrou em ação. Embora
o fato se relata nos quatro Evangelhos, só João (18:10) menciona os
nomes das duas pessoas que (além do próprio Jesus) figuram de forma
sobressalente. Estas duas pessoas eram Pedro e Malco, servo do sumo
sacerdote. A razão de que só João mencione estes dois nomes bem pôde
ter sido o fato de que seu Evangelho foi publicado quando já não era
possível castigar o agressor.
O agressor ou “um dos que estavam ali” era Simão Pedro.
Encorajado talvez pelo maravilhoso triunfo de Jesus sobre os homens
que tinham vindo para prendê-Lo — a princípio, ao ouvir as palavras de
Jesus, os apreensores retrocederam e caíram ao solo (Jo. 18:6) —, e
impulsionado por seus próprios alardes anteriores (Mt. 26:33, 35; Mc.
14:29, 31; Lc. 22:33; Jo. 13:37), Simão tirou sua curta espada da bainha,
brandiu-a contra Malco quem, provavelmente ao vê-la, saltou de lado
com presteza, mas foi alcançado sofrendo a perda de uma orelha. É
possível que Pedro ainda cresse que o Messias não devia morrer. Cf. Mt.
16:22.
Nada diz Marcos sobre a reação de Jesus diante da arrebatada ação
de Pedro. O que disse o Mestre sobre isto? Veja-se Mt. 26:52–54. E o
que fez? Veja-se Lc. 22:51.
Agora o interesse é enfocado totalmente sobre

Jesus
48, 49. Disse-lhes Jesus: Saístes com espadas e porretes para
prender-me, como a um salteador? 747 Todos os dias eu estava
convosco no templo, ensinando, e não me prendestes.
Como assinalou-se anteriormente, a palavra “respondeu” nem
sempre significa “respondeu verbalmente à uma pergunta”; pode

força diminutiva. Veja-se mais acima, Introdução IV, nota 5; e veja-se também sobre Mc. 3:9, nota
108.
747
Ou: insurreto, revolucionário, rebelde.
Marcos (William Hendriksen) 775
significar também, como aqui, “reagiu diante de uma situação”. Jesus,
embora maniatado, dirigiu-Se ali mesmo ao numeroso grupo. Os
veneráveis membros do Sinédrio estavam também presentes (Lc. 22:52).
Veja-se mais acima sobre Mc. 14:43. Eles, naturalmente, não deviam
estar ali naquela sagrada noite de Páscoa, mas estavam tão ansiosos de
ver se sua sinistra conspiração teria êxito, que não vacilaram em deixar-
se ver entre a multidão, embora provavelmente num segundo plano.
Veja-se CNT sobre João 18:28. Jesus então fez ver a multidão — a todos
os que vinham a prendê-Lo e a todos os que se alegravam com Sua
captura — o ato covarde e pérfido daquela conduta. Tinham vindo contra
Ele com uma tropa, providos de espadas e varapaus, como se fosse um
assaltante, ou como também se pode traduzir o texto, um insurreto,
rebelde, ou revolucionário. Na realidade era, e sempre tinha sido, um
Profeta tranquilo e pacífico, que Se assentava dia após dia no templo,
ensinando as pessoas. Sua vida tinha sido um livro aberto. Se tivesse
sido réu de algum crime, os que tinham em suas mãos a lei e a ordem,
teriam tido oportunidades de sobra para O capturar.
Se preferir-se compreender a classe de pessoa que Jesus tinha
demonstrado ser durante um pouco mais de três anos de ministério
público, deve ler-se passagens tais como Mc. 1:39; 10:13–16; e também
Mt. 4:23–25; 11:25–30; 12:18–21; Lc. 22:49–51; 24:19; Jo. 6:15; 18:11,
36, 37; At. 2:22. Dizer, como alguns têm feito, que Jesus era
“inofensivo” é expressá-lo de forma muito suave. Ele era e é “o Salvador
do mundo” (Jo. 4:42; 1Jo. 4:14), o mais eminente Benfeitor. Quão
absurdo e hipócrita resultava que Seus inimigos avançassem na
escuridão sobre este Bom Pastor! Quem fizesse caso de Sua mensagem
nada devia temer, inclusive ensinou o povo a amar os seus inimigos!
Veja-se Mt. 5:44.
Ao Se dirigir à multidão desta maneira Jesus lhes estava fazendo
realmente um bem. Trazer-lhes à luz sua culpabilidade. Não é verdade
que, para obter salvação, é necessário que primeiro haja confissão?
Embora, em sua grande maioria, muitos dos que ouviram Jesus dizer
Marcos (William Hendriksen) 776
estas palavras endureceram-se em seu pecado, não temos direito a
concluir que esta mensagem, junto com outras mensagens que seguiram
(por exemplo, as sete palavras da cruz, o sermão de Pedro no
Pentecostes, etc.), fora completamente inútil. Veja-se, p. ex., At. 6:7. A
impressão que nos deixam as palavras de nosso Senhor é que se
pronunciaram de uma maneira tranquila e séria. Indubitavelmente, Jesus
repreende, mas ao mesmo tempo segue buscando os perdidos com o fim
de salvá-los.
Acrescenta: Contudo, [isto aconteceu] é para que se cumpram as
Escrituras.
Se não tivesse sido pelo decreto eterno de Deus para a salvação do
homem, um decreto que se reflete nos profetas (Is. 53:7, 10, 12; Jr. 23:6;
Dn. 9:26; Zc. 11:12; 13:1; etc.), os apreensores de Jesus não poderiam
ter feito nada! Cf. Jo. 19:11.

Os discípulos
50. Então, deixando-o, todos fugiram.
Como se explicou previamente, aqui se cumpre o versículo 27.
Observe-se: todos, não só os oito, mas também os três; não só dois dos
três (Tiago e João) mas inclusive Pedro, apesar de sua grandiloquente
jactância e de suas tremendas promessas. É de justiça acrescentar que um
pouco depois, dois deles (Pedro e João) reagiram, voltaram e começaram
a segui-Lo a uma distância prudente (veja-se v. 54; cf. Jo. 18:15).
Entretanto, é justo também acrescentar que para Pedro este “segui-lo …”
teve desastrosos resultados (vv. 66ss.).
Os onze discípulos seguiram acumulando desonra sobre si. O caso
de Pedro foi especialmente mau. Pouco tempo depois, Tomé também
falhou miseravelmente (Jo. 20:24ss.). O melhor de todos é João. Veja-se
Jo. 18:15, 16. Não só entra no palácio do sumo sacerdote, onde Jesus foi
julgado, mas também inclusive o vemos junto à cruz — de todos os
discípulos só ele, pelo que o relato nos dá a entender! (Jo. 19:25–27). Foi
talvez aquele que menos alardeou? Eis aqui uma lição!
Marcos (William Hendriksen) 777
O ensino central, entretanto, não está em relação com Pedro ou
Tomé ou João. Nossos olhos devem fixar-se no Cordeiro de Deus que
tira o pecado do mundo. Abandonado por todos, a fim de que todos os
que nEle creem jamais sejam abandonados! Jesus Se prestou
voluntariamente àquela situação de deserção e abandono que pouco a
pouco ia se converter em

Mc. 14:51, 52 - O jovem que fugiu

Este evento só Marcos o dá a conhecer. Abrange tão somente dois


versículos. Não será necessário voltá-los para imprimir em letra negrito.
Primeiro queria dizer brevemente ao leitor o que dois defensores da
“crítica de redação” 748 fizeram com este texto. Com o fim de não ser
culpados de desfigurar no mínimo que seja o ponto de vista deles,
insistimos com os leitores a ler o próprio artigo. Os dois autores
dedicaram-lhe muito esforço e merecem pelo menos essa consideração.
Em resumo, então, estes autores afirmam que o evento que aqui
apresenta quem quer que fosse o escritor, não tem sentido como fato real
e histórico. Nenhuma pessoa sairia ao exterior numa noite a começos da
primavera, num clima como aquele, coberto só com uma parte de tecido.
Além disso, se estes versículos forem tomados literalmente, seriam o relato
de um fato corriqueiro, de algo sem interesse para o autor de Marcos.
Então, qual é a conclusão? Segundo os autores do referido artigo,
Marcos 14:51, 52 deve ser interpretado simbolicamente. Além disso,
dizem que deve ser estudado com relação a Marcos 16:5, que nos
informa que algumas mulheres, depois de entrar na tumba no domingo
cedo, viram um jovem vestido com uma túnica branca. Os dois jovens —
o de Marcos 14:51, 52 e o de Marcos 16:5 — são realmente a mesma
pessoa. Sua nudez e fuga em Marcos 14:51, 52 simbolizam morrer com
748
R. R. Scroggs e K. I. Groff, “Baptism in Mark: Dying and Rising With Christ” JBL 92 (dic. 1973),
pp. 531–548. — A ideia básica, quer dizer, que há uma conexão entre Mc. 14:51, 52 e 16:5, foi
também aceita por outros. Veja-se S. E. Johnson, Op. cit., p. 238.
Marcos (William Hendriksen) 778
Cristo. Seu reaparecimento (Mc. 16:5) com uma vestimenta nova e
resplandecente, indica o ressuscitar com Cristo. Em Marcos 14:51, 52 o
jovem é simbolicamente batizado; em Marcos 16:5 emerge com sua
túnica batismal nova e resplandecente.
Objeções:
a. Por que não teria que ser natural que um jovem que está apurado,
saísse correndo inclusive naquela época do ano, envolto só com um
lençol? Não sucedem frequentemente coisas como esta em semelhantes
circunstâncias?
b. Segundo muitos, o fato dramático de ter estado prestes a ser
capturado, sucedeu ao próprio escritor, e nesse caso o teria ele
considerado um fato “corriqueiro”?
c. As Escrituras não estabelecem em nenhum lugar uma relação
entre o jovem de Marcos 14:51, 52 e o jovem de Marcos 16:5. Logo, que
direito temos nós para fazê-lo? Mateus (28:5) chama este último
“jovem” um anjo. Lucas fala de “dois varões com vestes
resplandecentes” (Lc. 24:4), e “anjos” (v. 23).
d. Nem em Marcos 14 nem em Marcos 16:1–8 é dito coisa alguma a
respeito do batismo. Então, que direito temos para introduzir uma
referência ao batismo nestas passagens?
e. O relato está expresso como evento real, literal e histórico. O
estilo é igual ao do contexto imediatamente precedente (vv. 43–50, a
traição a Jesus e Sua detenção) e ao do imediatamente seguinte (vv. 53–
65, Seu juízo diante do Sinédrio). Se estas duas passagens consignarem o
que realmente sucedeu, por que não os versículos 51, 52?
Depois de descartar a teoria da “crítica de redação”, qual poderia
ser, no meu entender, a verdadeira explicação? Em primeiro lugar, numa
nota749 faço um breve resumo dos diversos pontos de vista propostos
respectivamente por vários expositores. Quem quiser pode lê-los.

749
Em primeiro lugar, há aqueles que diz, “O jovem não era Marcos”, ou simplesmente “Não
sabemos quem era”.
Marcos (William Hendriksen) 779
Em segundo lugar, apresento aqui meu próprio ponto de vista. Não
é possível chegar a uma total certeza com relação à identidade do jovem.
Entretanto, na Introdução I, já demos a conhecer que é provável que seja
Marcos. A seguinte evidência parece favorecer esta posição:
a. Nem Mateus nem Lucas consignaram este ponto. Não parece ter
sido de interesse especial para eles. Mas para Marcos, para ele só, era de
suficiente importância para o incluir em seu Evangelho. Isto é fácil de
compreender se o próprio Marcos fosse aquele jovem.
b. Também o apóstolo João faz referência a si mesmo sem
mencionar seu nome (Jo. 18:15, 16; 19:26, 27; 20:2–8; 21:7, 20:23, 24).
c. Por si só o ponto é algo insignificante, exceto que seja uma
referência à qual o próprio escritor experimentasse naquela noite solene.

a. Lenski rejeita todo intento de identificar ao jovem de 14:51, 52, e crê que este acontecimento só
reflete a irritação dos que vão deter Jesus (Op. cit. pp. 410, 411).
b. Com relação à identidade do jovem, Bolkestein (Op. cit., p. 334) também declara simplesmente,
“Não o sabemos”.
c. Swete (Op. cit., p. 354), embora não se comprometa quanto à identidade do jovem, declara que não
era incompatível pensar que o jovem residia na casa onde estava o Cenáculo, e que esse jovem era o
evangelista Marcos.
d. Taylor (Op. cit., pp. 561, 562) pensa que o jovem não era provavelmente Marcos. Se teria sido
Marcos, teríamos tido mais detalhes.
Em segundo lugar, a grande maioria ou se inclina à interpretação de que o jovem era Marcos, ou o
afirma assim quase definitivamente.
a. Van Leeuwen (Op. cit., pp. 187, 188) opina que a possibilidade de que seja Marcos bem pode ser
correta.
b. Gould (Op. cit., p. 276) pensa que o próprio fato de que o autor não mencione o nome do jovem,
mais a menção do evento, bem pode apontar para Marcos.
c. Robertson (Word Pictures, vol. I, p. 386) inclina-se também pela teoria que diz que o jovem era
João Marcos, em cujo caso o grupo provavelmente tinha comido a Páscoa em sua casa.
d. Entre outros que opinam de igual modo, com certas reservas, estão M. J. Lagrange, Evangile selon
Saint Marc, Paris, pp. 396, 397; e A. E. J. Rawlinson, St. Mark (Londres, 1925), pp. 215, 216.
e. Th. Zahn, Introduction to the New Testament (trad. inglesa, Edimburgo, 1909), p. 494, inclina-se
claramente por Marcos. Assim o faz também Barclay, Op. cit., p. 635.
f. Cole, que também se inclina por Marcos, muito propriamente acrescenta “Parece desnecessário e
desonesto espiritualizar um fato como este; descreve-se como fato real, e deve ser aceito como tal,
além de qualquer lição espiritual que nos pareça bem associar com o fato em si”. (Op. cit., p. 224).
Em terceiro lugar, as seguintes identificações do jovem, não acharam muito apoio: o apóstolo Paulo
(Ewald), o apóstolo João (Ambrósio), Tiago, o irmão de Jesus (Epifânio). O mesmo se pode dizer da
ideia de E. C. Grant (Op. cit., p. 886) que afirma que Marcos 14:51, 52 está fundado em Amós 2:16.
Marcos (William Hendriksen) 780
À história reconstruída que se acha em Introdução I é preciso
acrescentar que se podem fazer algumas modificações, e que de fato há
vários autores que as sugeriram; por exemplo:
a. Supondo que o jovem despertasse ao partirem Jesus e os onze da
casa do Cenáculo, em que momento ocorreu esta detenção frustrada? Se
existir uma estreita relação de tempo entre os versículos 51, 52 e o
versículo imediatamente precedente (“Então, deixando-o, todos
fugiram”), então haveria uma conexão entre este fato e a fuga dos onze.
Eles fugiram. O jovem não, e em consequência foi perseguido e com
dificuldade pôde escapar. Se não existir relação temporal, a detenção
frustrada pôde ter ocorrido mais cedo. Simplesmente não o sabemos.
b. Também é possível que o jovem tivesse despertado de seu sono
um pouco depois. supondo que estivesse dormindo! A situação pôde ter
sido como segue: Judas e sua tropa chegaram à casa de Marcos,
pensando que Jesus estava ainda ali. O alvoroço que formaram ao ver
que não era assim, despertou Marcos. Envolto ligeiramente num lençol, e
pressentindo o que sucedia, saiu fora correndo a fim de prevenir a Jesus,
mas este já havia partido. Chegou ao Getsêmani no preciso instante em
que os onze fugiam e Jesus era detido. Ao seguir a Jesus, produziu-se o
intento de deter também a ele.
c. Não estamos totalmente seguros de que a casa com o Cenáculo
era a mesma que se menciona em At. 12:12. Pôde ter sido, mas a
possibilidade não é necessariamente um fato. Se não foi, então isto
também pôde ter afetado o curso dos acontecimentos, ao menos até certo
ponto. Fazer mais especulações seria inútil.
No entanto, a verdade é que a fuga do jovem, a quem a maioria dos
expositores, não sem razão, consideram que fosse João Marcos, foi um
fato dramático. Os que pretendiam detê-lo agarraram-no e o teriam
Marcos (William Hendriksen) 781
capturado se não tivesse sido por sua destreza para escapar de forma
instantânea de seu lençol, camisa, tecido ou o que tivesse sido. 750
Quanto ao conteúdo de Marcos 14:51, 52, já o tratamos como um
fato real, e histórico, e como algo que com toda probabilidade foi uma
experiência do escritor do livro, quer dizer, João Marcos. Agora se
poderia derivar alguma lição desta passagem, ou de Marcos 14:43–52
como um todo, sem violentar a boa exegese?
A resposta poderia ser que aqui o sobressalente é:
a. A compostura incomovível e majestosa de Jesus (14:48, 49; Lc.
22:48, 51; Jo. 18:4, 5, 8) em contraste com o temor e o nervosismo dos
que O rodeavam; os que vão detê-Lo retrocedem, e caem ao solo (Jo.
18:6); os discípulos fogem (Mc. 14:50).
b. Sua voluntária disposição para sofrer o isolamento por amor a
Seu povo. Todos O deixam e fogem: os onze, incluindo Pedro; também o
jovem de Marcos 14:51, 52. Jesus enfrenta os Seus inimigos sozinho,
sofre sozinho, e vai entregar sua vida sozinho, a fim de que todos os que
O receberem como seu Salvador e Senhor jamais estejam sozinhos.
Aleluia, que magnífico Salvador!

750
σινδών. A palavra que aparece aqui (no v. 51 e novamente no v. 52) encontra-se também em
Mateus 27:59 e seus paralelos: Marcos. 15:46 e Lucas 23:53, onde indica o lençol em que Jesus foi
envolto. “Sindón” é também uma palavra inglesa arcaica que indica um tecido fino, especialmente
uma de linho. Era o sindón do jovem uma camisa, uma túnica ou um lençol? Não o sabemos.
περιβεβλημένος, ptc. pf. pas. nom. masc. sing. de περιβάλλω. συνηκολούθει impf. ind. 3a. pers. sing.
de συνακολουθέω. Cf. coroinha. _φυγε, aor. 3ª. pes. sing. de φεύγω.
Marcos (William Hendriksen) 782
Mc. 14:53–65 - O juízo diante do Sinédrio
Cf. Mt. 26:57–68; Lc. 22:54, 55, 63–65 751 ; Jo. 18:24 752

A comparação dos paralelos Mateus-Marcos revela o seguinte:


Marcos 14:53 menciona os três grupos componentes do Sinédrio;
Mateus 26:57 omite os principais sacerdotes.
Enquanto que ambos os Evangelhos mencionam o fato de que Pedro
estava sentado com os oficiais, Mateus (Mt. 26:58) acrescenta “para ver
o fim”; Marcos (Mc. 14:54), “aquentando-se ao fogo”.
O testemunho dos falsas testemunhas — Mateus diz “dois”; Marcos
“alguns”, está reproduzido de forma mais completa em Marcos (Mc.
14:58) que em Mateus (Mt 26:61). Além disso, Marcos acrescenta,
“Nem assim o testemunho deles era coerente”.
A cláusula de Mateus “…se tu és o Cristo, o Filho de Deus” (Mt.
26:63) tem seu paralelo em Marcos “… És tu o Cristo, o Filho do Deus
Bendito?” (Mc. 14:61). Além disso, é só Mateus que nos informa que o
sumo sacerdote pôs Jesus sob juramento.
Mateus (Mt. 26:67) omite o detalhe de Marcos (Mc. 14:65) de que
ao zombarem de Jesus enfaixaram-Lhe os olhos.
Lucas 22:54, 55 pode ser considerado uma reprodução abreviada de
Marcos 14:53, 54. Com muito leve variação Lucas 22:63, 64 reproduz a
Marcos 14:65. Note-se, não obstante, que Marcos diz “cuspir nele”, onde
Lucas tem “zombavam dele”. No versículo 65 Lucas acrescenta, “E
muitas outras coisas diziam contra ele, blasfemando”.
****

751
Estritamente falando, O relatado em Lucas 22:66–71 não correspondem aqui, porque consigna o
sucedido pela manhã cedo. Esta passagem de Lucas constitui um paralelo de Marcos 14:53–65 e de
Mateus 26:57–68 só no sentido de que certas passagens desta porção de Lucas se assemelham muito
com as referências de Mateus e Marcos. Isto significa simplesmente que certas perguntas que se
fizeram de noite, repetiram-se no juízo realizado pela manhã cedo.
752
Só Jo. 18:24 (“Anás então o enviou preso a Caifás, o sumo sacerdote”) pertence a esta cena. João
18:12–14, 19–23 não pertencem aqui, mas descrevem a audiência preliminar de Anás, segundo se
explica no CNT sobre João 18:13.
Marcos (William Hendriksen) 783
Para entender Marcos 14:53–65 e o que segue no capítulo 15, é
preciso ter em mente que Jesus teve que Se submeter a dois juízos. O
primeiro é, às vezes, chamado “juízo eclesiástico”; o segundo, juízo
civil. O primeiro esteve formado por três etapas, como também o
segundo. As três etapas do chamado juízo eclesiástico foram: a. a
audiência preliminar diante de Anás (Jo. 18:12–14, 19–23); b. o juízo
diante do Sinédrio, quer dizer, diante do sumo sacerdote, os principais
sacerdotes, os anciãos e escribas (Mc. 14:53); e c. o juízo diante do
mesmo organismo, justo depois do amanhecer (Mc. 15:1). As três etapas
do juízo diante das autoridades civis foram: a. o juízo diante de Pilatos,
b. diante de Herodes, e c. seu reatamento diante de Pilatos. Assim como
a audiência preliminar diante de Anás acha-se somente no Evangelho de
João, assim também a apresentação diante de Herodes está registrada
somente por Lucas (23:6–12).
No parágrafo presente (Mc. 14:53–65), supõe-se, então, que a
audiência preliminar diante de Anás já se havia realizado.
53. E levaram Jesus ao sumo sacerdote, e reuniram-se todos os
principais sacerdotes, os anciãos e os escribas.
Conforme nos diz Mateus 26:3, o sumo sacerdote era Caifás.
Ocupou esse cargo desde 18 a 36 d.C., e era genro de Anás (Jo. 18:13).
Foi um rude e ardiloso manipulador, um oportunista que não conhecia o
significado da lealdade ou da justiça, e era inclinado a fazer o que lhe
convinha para “prender Jesus, à traição” (Mt. 26:3, 4; Jo. 11:49). Não
vacilava em derramar sangue inocente. O que ele cobiçava ardentemente
com propósitos egoístas, fazia parecer como se fosse algo necessário
para o bem-estar do povo. Com o fim de levar a cabo a condenação de
Jesus, que tinha provocado sua inveja (Mt. 27:18), estava disposto a usar
artimanhas que pôs em jogo com hábeis cálculos e inaudito
descaramento. Era um hipócrita, como se verá mais adiante (no v. 63).
Note-se que nos é dito claramente que “e reuniram-se todos os
principais sacerdotes, os anciãos e os escribas”. Em consequência,
tratava-se de uma assembleia do Sinédrio, pois estavam presentes não só
Marcos (William Hendriksen) 784
alguns membros, mas também um bom número deles. Quanto a “os
principais sacerdotes, os anciãos e os escribas” (ou: “escribas e anciãos”)
cf. Mc. 14:43 e veja-se sobre Mc. 14:1. Conduziram a Jesus ao palácio
de (Anás Jo. 18:13, 15, 24 e de) Caifás (veja-se CNT sobre Jo. 18:15).
54. Pedro o seguiu de longe até o pátio do sumo sacerdote.
Sentando-se ali com os guardas, esquentava-se 753 junto 754 ao fogo.
Embora todos os discípulos tenham fugido, dois — Pedro e “outro
discípulo” — logo reagiram e começaram a seguir à tropa que levava a
Jesus ao palácio do sumo sacerdote. No caso de Pedro, o fato de “seguir
a Jesus” devia estar motivado, em parte, pela lembrança dos notórios
alardes que fez, tal como se indica nos versículos 29 e 31; e, em parte,
por pura curiosidade, como se menciona em Mt. 26:58; e devemos
acrescentar talvez, em parte por amor a Seu Mestre. Em João 18:15, 16
descreve-se como foi que este discípulo conseguiu entrar no palácio.
Depois de conseguir permissão para entrar no palácio pela porta exterior,
Pedro caminhou pelo claustro que desembocava no pátio descoberto,
onde se assentou com os servos do palácio e os guardas do templo
(polícia), esquentando-se perto do fogo. Àquela hora a maioria dos
soldados, depois de entregar o prisioneiro, provavelmente tinham
retornado à fortaleza de Antônia. O versículo 54 tão só introduz o relato
da primeira negação de Pedro, pois tal relato se acha nos vv. 66–68; Mt.
26:69, 70; Lc. 22:54–57; e Jo. 18:15–18. A história volta agora para o
juízo de Cristo diante do Sinédrio.
55, 56. E os principais sacerdotes e todo o Sinédrio procuravam
algum testemunho contra Jesus para o condenar à morte e não achavam.
Pois muitos testemunhavam falsamente contra Jesus, mas os depoimentos
não eram coerentes 755 . 756

753
Note-se o agradável contraste entre _κολούθησε, aoristo e _ν συγκαθήμενος … κα_
θερμαινόμενος, imperfeitos perifrásticos.
754
Note-se πρός no sentido de perto, como em Mc. 11:1.
755
Literalmente: não eram iguais. Assim também no v. 59.
756
O relato de Marcos é muito realista. Note-se os imperfeitos: buscavam, não encontravam (v. 55),
davam falso testemunho (v. 56 e também no seguinte versículo).
Marcos (William Hendriksen) 785
Fica claro como a luz do dia que, por meio destes versículos, e
outros semelhantes, a Escritura culpa aos principais sacerdotes e a todo o
Sinédrio” da morte de Jesus.
Os que se mencionam em João 11:53 como forjadores da morte de
Cristo não são as massas e sim os dirigentes — fariseus, principais
sacerdotes, Caifás, etc. Jesus pronunciou seus sete ais (Mt. 23) não
contra a multidão e sim contra os “escribas e fariseus, hipócritas”.
Quando Pilatos disse à massa durante o juízo de Jesus “Eis que eu vo-lo
apresento, para que saibais que eu não acho nele crime algum”, foram os
principais sacerdotes e seus oficiais os que gritaram “Crucifica-o!
Crucifica-o!” (Jo. 19:4, 6; cf. vv. 15–16). O povo, dirigido pelos
sacerdotes, seguiu o exemplo dos dirigentes, conforme nos esclarece
Mateus 27:20–23. Vejam-se também Mt. 27:25; At. 3:13–15; 4:27; 1Ts.
2:14, 15. A passagem em estudo (Mc. 14:55, 56) afirma claramente que
a culpa do assassinato de Jesus recai especialmente sobre os dirigentes
religiosos daquele tempo. Entretanto, com base nas Escrituras, de
maneira nenhuma pode-se desculpar completamente os que seguiram o
exemplo dos dirigentes. Ao contrário, todos os que tomaram parte no
crime, ou estiveram de acordo com ele, compartilham a culpa.
É preciso esclarecer que esta firme crença não é uma manifestação
de hostilidade contra os judeus (antissemitismo). Ao contrário.
Precisamente porque amamos os judeus, desejamos ser um meio nas
mãos de Deus para conduzi-los a Cristo, e assim também à comunhão
com a igreja. Temos uma profunda preocupação para com este povo. Na
realidade, em certo sentido achamo-nos no mesmo plano, porque com
eles fizemos causa comum contra Jesus. Não é que tenhamos maquinado
Sua morte, como o fizeram os antecessores deles; mas não obstante,
continua sendo verdade que nós mesmos matamos a Jesus, porque
Marcos (William Hendriksen) 786
nossos pecados O cravaram na cruz. Mas por aquele próprio Cristo
crucificado e ressuscitado fomos salvos. 757
Em muitos círculos surgiu uma oposição a este ponto de vista.
Algumas assembleias ecumênicas publicaram “declarações” exonerando
os judeus de responsabilidade pela morte de Jesus. Alguns destes
decretos foram bons, outros dificilmente fazem justiça aos fatos
históricos. Além disso, os próprios judeus, como é de esperar-se, foram
ainda mais longe em procurar-se argumentos que os absolvam da culpa.
É assim como Haim Cohn, famoso especialista internacional na tradição
legal judaica, argumenta 758 que Anás e Caifás “fizeram todo o
humanamente possível para salvar a Jesus, a quem meigamente amavam
e apreciavam como um deles”. E Hugh J. Schonfield declara que a única
maneira em que a igreja, de uma vez por todas, possa tirar o estigma que
há sobre os judeus, é renunciar à fiabilidade absoluta dos documentos
sagrados. 759
De um ângulo totalmente diferente, pôs-se em dúvida o conteúdo de
Marcos 14:55, 56. Com relação a “E os principais sacerdotes e todo o
Sinédrio procuravam algum testemunho contra Jesus para o condenar à
morte …”, Taylor 760 observa que aparentemente Marcos tomou a reunião
como uma sessão do concílio em ação, mas segundo ele é duvidoso que
tivesse tido tal caráter, especialmente se foi uma sessão noturna. Logo
defende o ponto de vista de que Lucas (22:66–71) não está de acordo
com a posição de Marcos, e que ensina que o juízo teve lugar na manhã
seguinte. Por certo, é verdade que a sessão noturna do Sinédrio que
Marcos 14:53–55 apresenta (e especialmente a confrontação entre Jesus
e o Sumo sacerdote, em vv. 61–64a; cf. Mt. 26:63–65), é semelhante à
sessão que Lucas (2:69–71 afirma que se celebrou cedo pela manhã.

757
Com uma leve variação, os dois últimos parágrafos (começando com os que mencionam-se”) são
de meu folheto Israel in Prophecy, Grand Rapids, 1972, pp. 13, 14.
758
Em seu livro, The Trial and Death of Jesus, 1971.
759
The Passover Plot (Nueva York, 1965), pp. 140, 142.
760
Op cit., p. 565.
Marcos (William Hendriksen) 787
Diremos, então, que Marcos se equivocou ao atribuir uma sessão
noturna o que realmente sucedeu “logo que amanheceu” (Lc. 22:66)? De
maneira nenhuma. Há aqui um problema, mas o atribuir um erro a
Marcos não o soluciona de modo algum. Afinal de contas, as duas
sessões não foram uma mesma coisa. Foi de noite quando o Sumo
sacerdote perguntou a Jesus, “És tu o Cristo?” (Mc. 14:61). Na sessão da
manhã cedo “Então, disseram todos: Logo, tu és o Filho de Deus?” (Lc.
22:70; cf. v. 66). Muitos expositores, em seus respectivos comentários
sobre Lucas 22:66ss. — incluindo a. Plummer, R.C.H. Lenski, e N.
Geldenhuys — particularizam esta diferença e explicam por que se
estimou necessário realizar uma sessão pela manhã. Podemos estar
seguros, portanto, de que não existem contradições reais.
Jesus jamais conheceu pecado, e o submeter-Se a um juízo
presidido por homens pecadores foi por si só uma profunda humilhação.
Ser ajuizado por tais homens, sob tais circunstâncias fazia-o
imensamente pior. O ambicioso, rasteiro e vingativo Anás (veja-se Jo.
18:13), o rude, ardiloso e hipócrita Caifás (veja-se sobre Jo. 11:49, 50), o
ladino, supersticioso e egoísta Pilatos (veja-se sobre Jo. 18:29); e o
imoral, ambicioso e superficial Herodes Antipas; estes foram os Seus
juízes!
Na realidade, todo o juízo foi uma farsa. Foi um juízo nulo. Não
havia intenção alguma de dar a Jesus uma audiência justa a fim de
descobrir, em estrita conformidade com a lei, a evidência de se as
acusações contra Ele eram verdadeiras ou infundadas. Nos anais da
jurisprudência não há constância de que tenha tido lugar uma paródia da
justiça mais espantosa que esta. Além disso, para chegar a esta
conclusão, não é necessário fazer um estudo acabado de todos os pontos
técnicos relativos à lei judaica daqueles dias. Vários autores sublinharam
que o juízo de Jesus era ilegal em vários aspectos técnicos, tais como os
seguintes: a. Nenhum juízo de vida ou morte estava permitido de noite.
Entretanto, Jesus foi julgado e condenado nas horas 1–3 a.m. da sexta-
feira, e executado durante a Festa, o que era proibido. Segundo a lei
Marcos (William Hendriksen) 788
farisaica, nenhuma audiência que compreendesse a pena capital podia ser
iniciada na véspera de uma das grandes festividades, como o era a
Páscoa. Não se permitia nenhuma sentença durante a noite. Executar
uma sentença na data de uma das grandes festas era contrário às normas
estabelecidas. 761 b. A detenção de Jesus foi efetuada como resultado de
um suborno, ou seja, o preço de sangue que Judas recebeu. c. Jesus foi
solicitado a Se incriminar a Si mesmo. d. Em caso de pena capital, a lei
judaica não permitia pronunciar a sentença até o dia depois em que o
acusado tivesse sido condenado. Este e outros pontos legais similares
foram mencionados muitas vezes e usados como argumentos para provar
a ilegalidade de todo o processo contra Jesus de Nazaré.
Tem-se feito intentos para refutá-los, um por um, como se as
autoridades judaicas, também em seu processo contra Jesus, tivessem
agido estritamente de acordo com as normas legais, sem deixar-se
influenciar por considerações subjetivas tais como a inveja e a malícia.
Mas essas tentativas fracassaram miseravelmente. Com relação à
lei, a ordem e a justiça conforme a praticavam os dirigentes judeus do
primeiro século d.C., a história provê a resposta. Procederam os judeus
realmente de forma legal quando assassinaram a Estêvão? Leia-se At.
6:8–15; 7:54, 58, 59. Demonstraram esmerada consideração pela justiça
quando mataram a Tiago, o irmão do Senhor? Estude-se Josefo,
Antiguidades XX. 200. Acrescente-se a isso a compilação das tradições
judaicas do século V a respeito de Jesus. É chamada Toledoth Jeshu e
claramente joga a culpa ao sacerdócio de Jerusalém por ter condenado a
Jesus. A verdade é que a muito escrupulosa casuística da lei rabínica
tinha achado um sem fim de artifícios para escapar de suas próprias
regras. Tudo o que Caifás devia fazer era dizer que o juízo de Jesus,
naquela ocasião e sob tais condições, era pelo bem do povo e da
religião. 762
761
Veja-se Mishná, Sinédrio IV. 1.
762
Veja-se G. Dalman, Jesus-Jeshua (Nova York, 1929), pp. 98–100. S. Rosenblatt, que em seu
artigo, “The Crucifixion of Jesus from the Standpoint of Pharisaic Law”, JBL 75 (dic. 1956), pp. 315–
Marcos (William Hendriksen) 789
Para qualquer pessoa cabal, fica evidente imediatamente que todos
estes tecnicismos legais não eram mais que minúcias. Não chegam ao
coração do problema. O ponto principal não é nem mais nem menos que
o seguinte: fazia muito tempo que tinham decidido que Jesus devia
morrer (veja-se Mc. 14:1). E a verdadeira causa disso foi a inveja (Mc.
15:10). Os dirigentes judeus não podiam “engolir” que tinham começado
a perder o controle que tinham sobre o povo, nem que Jesus os havia
denunciado e exposto publicamente. Estavam enfurecidos porque o novo
profeta tinha deixado a descoberto seus ocultos motivos, e porque tinha
apontado o átrio do templo, no qual tinham obtido abundante lucro,
como covil de salteadores. Os muito dignos principais sacerdotes,
anciãos e escribas dissimulavam exteriormente mediante a aparente
imutabilidade de sua conduta, mas por dentro ardia o desejo de vingança;
estavam nervosos e agitados. Tinham sede de sangue!
Como resultado, aquilo não foi um juízo senão uma farsa legal, uma
conspiração infame, e toda aquela conspiração foi obra deles mesmos.
Eles a desenharam e eles se preocuparam de que fosse levado a cabo.
Seus servidores tomaram parte na detenção de Jesus. Eles mesmos
estavam presentes! Eles buscaram as testemunhas — falsas testemunhas,
certamente — contra Jesus, para poder condená-Lo à morte (Mt. 26:59).
Todos ellos O condenaron afirmando que era digno de muerte (Mr.
14:64). “Eles (por meio de seus subordinados) “amarrando a Jesus,
levaram-no” (Mc. 15:1). Eles O entregaram a Pilatos (Jo. 18:28). Diante
de Pilatos, eles incitaram o povo para conseguir que Barrabás fosse
libertado e Jesus fosse destruído (Mt. 27:20). Eles intimidaram a Pilatos,
até que, por último, entregou a Jesus para ser crucificado (Jo. 19:12, 16).
E até estando na cruz, eles zombavam dEle, dizendo: “Salvou os outros,
a si mesmo não pode salvar-se” (Mc. 15:31).

321, nega o relato do juízo de Jesus segundo se apresenta nos Evangelhos, entretanto admite (p. 319)
que “embora os detalhes do juízo dados no Novo Testamento sejam francamente contrários à lei
farisaica, quando se quer eliminar um inimigo indesejável, geralmente se acha forma de fazê-lo
sempre que haja o desejo de fazê-lo”. Este é exatamente o caso.
Marcos (William Hendriksen) 790
Note-se bem que segundo nossa passagem, as pessoas das quais se
esperava que deviam ser juízes neutros “estavam elas mesmas buscando
evidência contra Jesus para O enviar à morte”. Aparentemente se
reuniram com o fim de fazer uma investigação; na realidade sua intenção
era a aniquilação. Em sua busca não tiveram nenhum êxito.
Naturalmente que algumas supostas testemunhas apareceram, mas seu
testemunho era falso. Além disso, como demonstram os versículos 56 e
59, seus testemunhos não coincidiam.
57–59. E, levantando-se alguns, testificavam falsamente 763
contra ele, dizendo: Nós ouvimos-lhe dizer: Eu derribarei este
templo, 764 construído por mãos de homens, e em três dias edificarei
outro, não feito por mãos de homens. E nem assim o testemunho
deles era coerente. [RC]
Faz-se aqui alusão à velada expressão de Jesus relatada em João
2:19 [RC]: “Derribai este templo, e em três dias o levantarei”. Os judeus
que ouviram Jesus dizer isto, tinham-nO interpretado erroneamente,
como se Jesus estivesse S referindo só à estrutura física que acabava de
purificar (Jo. 2:20). “Mas ele falava do templo do seu corpo” (v. 21).
Quanto à explicação veja-se CNT sobre João 2:19–22.
Mas, o que fizeram aquelas duas falsas testemunhas? Além de
interpretá-Lo mal, também O citaram mal. Na realidade, foram culpados
das seguintes falsidades:
a. Disseram que tinham ouvido Jesus dizer que Ele mesmo
destruiria o templo. Jesus jamais disse isto. Ele tinha falado de judeus
destruindo seu próprio templo.
b. Disseram que Jesus tinha contrastado “o templo feito por mãos
(humanas)” com outro “não feito por mãos (humanas)”. Estes
modificativos não se acham na linguagem usada por Jesus.

763
El mesmo verbo do v. 56. Segue-se usando o tempo imperfeito: _ψευδομαρτύρουν.
764
Ou: santuário, mas a distinção entre _ερόν, todo o complexo do templo, e ναός, o Lugar Santo e o
Santíssimo, embora às vezes é válida, nem sempre pode-se ressaltar; particularmente não em conexão
com João 2:20. Veja-se CNT sobre Mateus 27:5.
Marcos (William Hendriksen) 791
c. Seu implicação era que Jesus difamava o templo, o que era
totalmente oposto à verdade. Veja-se Mc. 11:17; Lc. 2:49.
Não é de estranhar que quando aquelas duas testemunhas
apresentaram o mutilado relato das declarações de Jesus, havia detalhes
com relação aos quais nem eles mesmos estavam de acordo.
Simplesmente “estavam totalmente confundidos”, e não o faziam
inocentemente, mas com fins perversos.
60. Levantando-se o sumo sacerdote, no meio, perguntou a
Jesus: Nada respondes ao que estes depõem contra ti? 765
Surge uma pergunta inevitável: “Se os líderes religiosos já tinham
respondido a pergunta, ‘Que faremos com Jesus?’ por que deviam buscar
testemunhas?” Seria provavelmente para justificar sua ação diante de
outros; por exemplo, diante de Pilatos e o público em geral; ou para
satisfazer algum requisito legal Ou talvez inclusive para tranquilizar suas
próprias consciências? A observação que faz G. C. Morgan bem pode ser
verdade: “Devem achar testemunhas; precisam ter alguma razão para o
que vão fazer. Este foi o preço involuntário que a falsidade satânica teve
que pagar ao domínio da verdade”. 766
Naturalmente, Jesus podia ter denunciado o caráter totalmente
insustentável da acusação, “Destruirei este templo …”. Podia ter
demonstrado que era uma interpretação errônea e distorcida do que havia
dito. Mas Ele sabia muito bem que o propósito daquele juízo não era
vindicar a verdade, mas antes, fazer com que o erro triunfasse. De modo

765
ε_ς μέσον, no meio; (pôs-se) no meio. Veja-se BAGD, p. 508; e veja-se também sobre 3:3.
_ποκρίν_, (v. 60), pres. ind. 2ª. pes. sing. de _ποκρίνομαι. _πεκρίνατο (v. 61), aor. ind. 3ª. pes. sing.
do mesmo verbo. Note-se também o dobro negativo: ο_κ … ο_δέν aparece duas vezes, uma na
pergunta do v. 60; logo na declaração do v. 61. Para a dupla negação em Marcos, veja-se Introdução
IV, nota 5, sob h. Entretanto, provavelmente é incorreto fazer muita ênfase nesta dupla negação. A
passagem paralela de Mateus tem uma negação simples (26:62), e ainda esta só na pergunta. É bem
possível, então, que as duas duplas negações de Marcos mostrem seu próprio estilo popular, sua forma
totalmente legítima de relatar. Se for assim, “Não responde?” e “não respondeu” bem podem ser
suficientes. Cf. também a francesa Ne réponds-tu rien? / a portuguesa Não responde nada? / e a sul-
africana Antwoord U nits nie?
766
Op. cit., p. 308.
Marcos (William Hendriksen) 792
que guardou silêncio. Isto irritou a Caifás, que presidia o tribunal.
Aquele dignitário propôs-se ir para além da simples presidência da
reunião. Em seu lugar, queria usar a sessão do Sinédrio como meio para
realizar sua própria e declarada intenção (v. 55 e Jo. 11:49, 50) de
destruir a Jesus. De modo que, visivelmente alterado, levantou-se de seu
assento e fez a Jesus a pergunta do versículo 60. É como se fosse dito:
“Esta é uma acusação muito séria. Certamente requer uma resposta!”
61. Ele, porém, guardou silêncio e nada respondeu. 767
Estava sendo cumprida a profecia de Is. 42:1–4; Mt. 12:18–21; e
ainda mais especificamente, a de Is. 53:7 (“Não abriu sua boca”). Veja-
se também 1Rs. 19:11, 12; Is. 57:15; Zc. 9:9; Mt. 5:7–9; 21:5; Lc. 23:24.
Quanto a uma conduta similar da parte de Jesus naquele dia — já era
sexta-feira — veja-se Mc. 15:5; Lc. 23:9b. Jesus não só estava
cumprindo a profecia; ao agir assim, estava sofrendo intensamente por
causa deste ataque contra Sua pessoa (“a Verdade”), da parte de Satanás,
“o pai da mentira” (Jo. 8:44).
Quando parecia que o juízo ia caminho ao fracasso, Caifás sai ao
resgate decididamente fazendo caso omisso de todas as considerações
secundárias e lança a pergunta central, a que tinha estado no pensamento
dos dirigentes por longo tempo. Marcos dá a conhecer este dramático
acontecimento com as seguintes palavras: Tornou a interrogá-lo o
sumo sacerdote e lhe disse: És tu o Cristo, o Filho do Deus Bendito?
A forma da pergunta (“És tu o Cristo, o Filho do Deus Bendito?” 768 ) do
sumo sacerdote indica reverência, real ou fingida, pois não usa o nome
“Deus” mas a muda para “Bendito”. Era o rebite, a pergunta decisiva.
Surgiu esta pergunta em sua mente de forma repentina e
espontânea, ou a tinha pensado de antemão, tendo-a reservada para usar
em caso de necessidade? Segundo Mateus 26:63, a fim de sublinhar a

767
Ou: e não respondeu nada.
768
Quanto à designação ε_λογητός, veja-se também Lc. 1:68; Rm. 1:25; 9:5; 2Co. 1:3;11:31; Ef. 1:3;
1Pe 1:3. Usa-se sempre para indicar Deidade. Em Rm. 9:5 (“Cristo, segundo a carne, o qual é sobre
todos, Deus bendito para todo o sempre”) atribui a Cristo divindade no sentido mais exaltado.
Marcos (William Hendriksen) 793
ominosa gravidade da pergunta e a impossibilidade de rejeitar uma
resposta, o sumo sacerdote põe a Jesus “sob juramento”, o juramento
mais solene de todos, ou seja, “pelo Deus vivo”. Demanda uma resposta
direta a pergunta: “Pretendes realmente ser o Messias longamente
esperado?” Agora, não se pode dizer que até este instante Jesus nunca Se
revelou como tal. Em Sua conversação com a mulher samaritana, não
havia acaso declarado de forma muito concreta que era verdadeiramente
o Messias? Veja-se João 4:25, 26. Não tinha defendido os que O
chamaram “Filho de Davi” (Mt. 21:15, 16)? Não Se tinha referido a Si
mesmo, por implicação, como “a pedra que os construtores rejeitaram,
essa veio a ser a principal pedra, angular” (Mc. 12:10)? Não Se tinha
assinalado a Si mesmo como “o Filho do Homem” vindo nas nuvens
com grande poder e glória (Mc. 13:26)?
Tudo isto é verdade. Mas poderia argumentar-se que uma
declaração feita em Samaria não devia ser necessariamente ouvida pelos
judeus; que Mateus 21:15, 16 não era uma pretensão direta mas uma
reflexão sobre uma exclamação pronunciada por outros; que Marcos
12:1–11 é parabólico, portanto não direto; e que o termo “Filho do
Homem” não era interpretado por todos da mesma forma. Até se poderia
acrescentar que havia razões concretas que explicariam por que durante a
primeira parte de Seu ministério Jesus não declarou abertamente aos
judeus, “Eu sou o Messias”. Veja-se sobre Mt. 8:4; 9:30; 16:20; 17:9;
Mc. 1:44, 45. Sem dúvida alguma O haviam interpretado mal. Veja-se
Jo. 6:15. Mas agora que os acontecimentos que se desenvolviam com
relação a Ele, deixavam claro que Sua condição de Messias era a do
Servo Enfermo, conforme O havia declarado vez após vez a Seus
discípulos (Mc. 8:31; 9:12, 31; 10:33, 34; Jo. 3:14), também havia
chegado o momento de Se apresentar com uma afirmação muito clara,
feita diante das autoridades mais altas da nação judaica. Em
consequência, quando Caifás perguntou o que considerava como
pergunta que abandonaria a Seu inimigo, pela providência de Deus,
estava dando ao Filho do Homem a oportunidade que desejava.
Marcos (William Hendriksen) 794
Não nos surpreendemos, pois, que Jesus responda, sem vacilação
alguma, a pergunta do sumo sacerdote.
62. Jesus respondeu: Eu sou, e vereis o Filho do Homem
assentado à direita do Todo-Poderoso e vindo com as nuvens do céu.
Esta é a forma em que Daniel tinha visto vir o Redentor (Dn. 7:13,
14). Foi assim como Davi cantou a respeito dEle (Sl 110:1), e é assim
também como Jesus Se descreveu a Si mesmo (veja-se sobre Mc. 8:38;
12:35–37; 13:26), embora anteriormente só o fez diante de Seus
discípulos. Jesus estende Seu olhar ao curso da história futura. Vê os
milagres do Calvário, a ressurreição, a ascensão, a coroação à direita do
Pai (“à direita do Todo-Poderoso”). O Pentecostes, a gloriosa volta nas
nuvens do céu, o dia do juízo, tudo num conjunto, manifestando Seu
poder e glória. No dia final, o próprio Jesus será o Juiz, e estes mesmos
homens — Caifás e seus sequazes — terão que responder pelo crime que
então estavam cometendo. A profecia de Cristo é também uma
advertência!
Os seguintes pontos merecem atenção especial:
a. Jesus disse “Eu sou”, significando, “Eu por certo sou o Cristo, o
Filho do Bendito”. Isto, por sua vez, lança luz sobre o significado do
paralelo em Mateus “Tu o disseste”, que pode, portanto, significar nada
menos que a majestosa e positiva declaração, “Sim, eu sou”. O
Evangelho de Marcos descreve de forma muito concreta a Jesus como o
Messias, o Filho de Deus, no sentido mais exaltado do termo, como já se
mostrou em detalhe no CNT sobre Mateus, pp. 66–69.
b. Quanto ao “Filho do Homem”, aquele que através dos (e por
meio dos) sofrimentos obtém glória, mas que era glorioso desde a
eternidade, veja-se mais acima sobre Mc. 2:10; também, para um estudo
mais completo, veja-se CNT sobre Mateus 8:20.
c. A construção gramatical de “à direita” já se explicou com relação
a Marcos 10:37, veja-se nota 499. No que respeita à ideia da exaltação de
Cristo à direita do Pai, vejam-se também At. 2:33; Hb. 2:9; Ap. 12:5; e
CNT sobre Ef. 1:20–23; e Fp. 2:9–11.
Marcos (William Hendriksen) 795
d. A frase “vindo com as nuvens do céu” — vejam-se também Dn.
7:13; Jl. 2:2; Sf. 1:15; Ap. 1:7; 14:14–16 — lembra-nos do fato de que a
Escritura frequentemente associa “uma nuvem” ou “nuvens” com a ideia
de juízo: Deus vem para castigar os ímpios. Entretanto, nem sempre é
assim. De fato, às vezes o que se ressalta é o amor de Deus, a
misericórdia e a graça (Êx. 34:5–7), embora até então a justiça punitiva
não fica fora do quadro. Quanto se refere às nuvens veja-se também Mc.
13:26 e CNT sobre Mt. 17:5.
63, 64. Então, o sumo sacerdote rasgou as suas vestes e disse:
Que mais necessidade temos de testemunhas? Ouvistes a
blasfêmia 769
Aqui a hipocrisia do sumo sacerdote faz-se muito evidente. Age
como se estivesse afligido pela tristeza, como Rúben quando ao voltar ao
poço viu que José já não estava ali (Gn. 37:29). Veja-se também Gn.
37:34; 44:13; Js. 7:6; 2Sm. 13:31; 1Rs. 21:27; 2Rs. 5:7, 8; 18:37; Et. 4:1;
At. 14:14, só para mencionar alguns entre muitos casos em que o rasgar
as vestes era sinal de profunda tristeza ou pesar esmagador. Na realidade
Caifás devia estar cheio de júbilo satânico.
Quando um sumo sacerdote rasgava suas vestes, devia fazê-lo de
uma maneira concreta e prescrita. O método exato a seguir se preservou
no Talmude. 770
Depois de fazer isso, perguntou aos concorrentes: “Que necessidade
temos ainda de testemunhas?” Em outras palavras, “Por que temos que
continuar na busca de testemunhas quando todos nós somos
testemunhas?”. Quando acrescenta, “ouvistes a blasfêmia”, está usando a
palavra blasfêmia em seu sentido mais grave: pretendeu para si
prerrogativas que só pertencem a Deus. O fato de Se apresentar a Si
mesmo como o cumprimento da profecia de Daniel, é uma demanda que
só Deus pode fazer. Em consequência ou, a. Jesus é certamente divino,
769
διαρρήξας, part. aor. nom. sing. masc. διαρρήγνυμι. τι _μ_ν φαίνεται; Que vos parece a vós? =
Como cai a vós? O que é que pensais (disso)?
770
Veja-se SB, vol. I, p. 1007ss.
Marcos (William Hendriksen) 796
“o Filho de Deus” no sentido mais amplo do termo, ou b. era réu de
blasfêmia. E tal blasfêmia devia ser castigado com a morte (Lc. 24:16).
Caifás tinha escolhido a segunda alternativa.
Continua, “que vos parece?” Marcos, usando o estilo indireto
reproduz a reação dos juízes como segue, E todos o julgaram réu de
morte. Mateus usando o estilo direto escreve: “Responderam eles: É réu
de morte” [Mt. 26:66]. O veredito foi unânime. Supomos que um dos
membros estava ausente (Lc. 23:50, 51). Outros também poderiam ter
estado ausentes.
Este veredito unânime ainda não era uma sentença formal. Declarar
uma pessoa culpada por um lado, e logo sentenciá-la, são duas coisas
distintas. Com o fim de criar ao menos uma aparência de legalidade,
devia transcorrer um breve período entre as duas ações. Como já o
assinalamos, segundo as regras existentes, este intervalo devia ter sido de
um dia. Mas da forma em que o viam os membros do Sinédrio, tão longa
demora teria sido muito perigosa. Poderia ter dado aos amigos de Jesus
tempo suficiente para organizar uma revolta em Sua defesa. Aquele era o
momento de agir. O Sinédrio seria convocado mais uma vez, cedo pela
manhã. Veja-se sobre Mc. 15:1. Isto se faria com o fim de dar a
sentença. Mas nem sequer esta ação seria definitiva. O governador
Pilatos ainda devia aprová-la.
65. Puseram-se alguns a cuspir nele, a cobrir-lhe o rosto, a dar-
lhe murros e a dizer-lhe: Profetiza! E os guardas o tomaram a
bofetadas 771 . 772
Os veneráveis membros do Sinédrio mostram agora
verdadeiramente seu caráter vingativo, cruel e sádico. São totalmente
indignos, desumanos, baixos, desprezíveis! Mesmo aceitando a
771
Ou: esbofeteado no rosto.
772
Como en los vv. 19 y 33, así también aquí hay buena razón para retener la traducción comenzaron
(_ρξαντο) porque começou uma nova etapa nas aflições padecidas por Jesus; o veredito foi anunciado.
Mas veja-se também sobre Mc. 1:45 e 6:7, nota 233. “Começou” por sua vez rege quatro infinitivos
pres. (durativos): cuspir, cobrir o rosto, dar murros, e dizer. Literalmente περικαλύπτειν significa pôr
um véu ao redor; portanto, cobrir, (e por estar o véu ao redor do rosto) enfaixar os olhos (cegar).
Marcos (William Hendriksen) 797
possibilidade de que a crueldade a que Jesus foi submetido fosse obra
dos “subordinados” e não diretamente dos sacerdotes, etc., a verdade é
que se realizou com o beneplácito e cooperação dos membros do
Sinédrio. Na realidade, é possível que a sequência “alguns … os
guardas” sugere que se faz uma distinção entre o que alguns — nem
todos! — membros do Sinédrio fizeram, e o que os oficiais (guardas do
templo, etc.,) fizeram. Se esta distinção for correta, 773 então estes
guardas, que agarraram (ou “receberam”) a Jesus a golpes, estavam
simplesmente seguindo o exemplo de seus superiores, e estavam
“encorajados” por eles (Swete).
A crueldade chegou ao seu ponto culminante quando os punhos
daqueles ímpios espancaram o rosto enfaixado de seu prisioneiro,
gritando, “Profetiza”, ou conforme o explica Mateus, “Profetiza-nos, ó
Cristo, quem é que te bateu!”
O que se destaca nesta história é a fortaleza de Jesus, Sua majestosa
calma, Sua confiança profunda e firmemente ancorada, contrastada com
o obcecado temor de Seus venenosos inimigos. Note-se quão
“assustados” estão estes adversários, mesmo quando no momento
parecem ter a vitória. Não só agora, mas também um pouco antes destes
acontecimentos, e também depois da ressurreição de Cristo, jamais estão
seguros de si mesmos. Sempre se sentem assediados de terríveis temores:
temor dos romanos (“virão os romanos”, Jo. 11:47, 48), temor das
multidões (“para que não haja tumulto entre o povo”, Mc. 14:2), temor
dos discípulos (“para não suceder que, vindo os discípulos, o roubem”,
Mt. 27:62–64), temor dos rumores para que não haja maior divulgação
entre o povo,”, At. 4:17). E não era prova deste temor a febril agitação
interna, a mórbida e ondulante inquietação, a conduta fanfarrona e
jactanciosa do sumo sacerdote naquela noite?

773
É melhor expressar-nos cautelosamente sobre este ponto por causa de Lc. 22:63 que, segundo a
interpretação de muitos, atribui a zombaria, os golpes, o enfaixar os olhos, etc., aos “homens que
custodiavam a Jesus”; os ajudantes, e não aos próprios do Sinédrio.
Marcos (William Hendriksen) 798
Em contraste com tudo isso, destaca-se a majestosa, serena e
eloquente declaração: “Eu sou (certamente o Filho do Bendito), e vereis
o Filho do Homem assentado à direita do Todo-Poderoso e vindo com as
nuvens do céu”. Ele é o verdadeiro vencedor. É Ele quem está totalmente
sereno. É Ele quem comunica repouso a todos os que põem Sua
confiança nEle. É Ele quem ainda diz: “Vinde a mim, todos os que estais
cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu
jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração; e
achareis descanso para a vossa alma. Porque o meu jugo é suave, e o
meu fardo é leve”.

Mc. 14:66–72 - A tríplice negação de Pedro


Cf. Mt. 26:69–75; Lc. 22:56–62; Jo. 18:15–18, 25–27

Este relato acha-se nos quatro Evangelhos. Sem entrar em conflito


com os Sinóticos, João tem seu próprio acerto, e por isso referimos o
leitor ao CNT sobre João 18:15–18, 25–27.
No que respeita aos Sinóticos, embora a história seja basicamente a
mesma nos três e não há contradições, cada Evangelho a apresenta à sua
maneira. Omitindo detalhes menores, notem-se as seguintes e
interessantes variações:
A primeira negação é relatada em Mt. 26:58, 69, 70; Mc. 14:54, 66–
68; Lc. 22:54–57. Desde o começo, o relato de Marcos é algo mais vivo
e detalhado que os outros, coisa que não nos surpreende. A criada
(porteira) era “uma das servas do sumo sacerdote”. Ela “se fixou nele”.
O que ela disse a Pedro, e a resposta deste, é substancialmente a mesma
em todos os relatos. (Embora, segundo Mateus e Marcos, Pedro disse
“Não sei o que …”; segundo Lucas “Não o conheço”). Lucas acrescenta
que a moça viu Pedro “assentado perto do fogo”.
A segunda negação encontra-se em Mt. 26:71, 72; Mc. 14:69, 70a;
Lc. 22:58. Marcos diz “Mas ele outra vez o negou”. Mateus acrescenta
“com juramento”. Segundo o relato de Lucas, ao menos um varão que
Marcos (William Hendriksen) 799
estava ali ecoou o que a criada dizia, equivalente a “Este indivíduo é um
deles”.
A terceira negação e a conclusão da história se acha em Mt. 26:73–
75; Mc. 14:70b–72; Lc. 22:59–62. Marcos explica que os que estavam
ali diziam a Pedro: “Verdadeiramente, és (Lucas: és) um deles, porque
também tu és galileu”. Aqui Mateus diz: “…porque o teu modo de falar
o denuncia”. Todos indicam o que o canto do galo agiu na memória de
Pedro. Marcos finaliza a história com: “E, caindo em si, desatou a
chorar” (há discussão a respeito da tradução exata); Mateus e Lucas
dizem “E, saindo dali, chorou amargamente”. Lucas mostra que entre a
segunda e a terceira negação houve um intervalo como de uma hora.
Também nos diz que, com relação ao canto do galo: “Então, voltando-se
o Senhor, fixou os olhos em Pedro”.

A primeira negação
Que ninguém diga que Pedro foi um homem sem valor. Ao
contrário, um cuidadoso exame dos Evangelhos indica que entre todos os
discípulos ele foi um dos mais ousados. Acaso não foi Pedro quem disse
“Se és tu, Senhor, manda-me ir ter contigo, por sobre as águas” (Mt.
14:28)? Não foi ele também quem corajosamente declarou “Tu és o
Cristo” (Mc. 8:29)? Não foi ele quem enfrentou sozinho a toda a chusma
que veio para o Getsêmani prender a Jesus e tirou sua espada e feriu o
servo do sumo sacerdote, tirando-lhe a orelha direita? (Mc. 14:47; cf. Lc.
22:50; Jo. 18:10). E depois da ressurreição de Cristo não foi Pedro quem
pronunciou as inesquecíveis palavras de Atos 2:36 - “Esteja
absolutamente certa, pois, toda a casa de Israel de que a este Jesus, que
vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo”? E as palavras de Atos
4:10 - “Tomai conhecimento, vós todos e todo o povo de Israel, de que,
em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, a quem vós crucificastes, e a
quem Deus ressuscitou dentre os mortos, sim, em seu nome é que este
está curado perante vós”? E as de Atos 4:20 - “Pois nós não podemos
Marcos (William Hendriksen) 800
deixar de falar das coisas que vimos e ouvimos”? E de Atos 5:29 -
“Antes, importa obedecer a Deus do que aos homens”?
Sim, Pedro foi definitivamente um homem de grande valor. Mas ao
esquecer por um instante, que tanto na posse como no exercício deste
dom, devia depender inteiramente de Deus, até o próprio Pedro
fracassou. Ao apartar sua vista de Jesus deixou de ser “Pedro, o homem
de coragem”. Isso também se pode ilustrar por meio de exemplos de sua
vida, antes da ressurreição de Cristo (Mt. 14:30, 31; Mc. 14:50) e depois
(Gl 2:11–14a).
A mesma lição vê-se ilustrada com a história das três negações de
Pedro. Fracassou porque se soltou da mão de Cristo. Foi restabelecido
porque Jesus tomou firmemente s sua mão (Lc. 22:31, 32). A vida de
Pedro é uma viva ilustração da memorável passagem de Paulo, “Porque
pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não de vós; é dom de Deus”
(Ef. 2:8).
O fundo da primeira negação já se indicou; veja-se mais acima em
Mc. 14:54. A história continua aqui nos versículos
66, 67. Estando Pedro embaixo no pátio, veio uma das criadas
do sumo sacerdote e, vendo a Pedro, que se aquentava, fixou-o e
disse: Tu também estavas com Jesus, o Nazareno. 774
Note-se: “Embaixo no pátio”, onde Mateus diz “fora no pátio”.
Estas duas formas de descrever o pátio não se podem entender sem ter
conhecimento de um palácio oriental ou casa de gente bem acomodada.
Uma casa deste tipo olha para seu interior, quer dizer, tem seus quartos
construídos ao redor de um pátio aberto. Uma entrada à maneira de arco
conduz do portão ou porta a este pátio. Nesta entrada ou passagem há
um lugar (em algumas casas um pequeno quarto) para o porteiro. Às
vezes, como também no caso presente, o pátio estava a um nível mais
baixo que os quartos em volta dele. Não é totalmente impossível que o
quarto ao qual Jesus foi levado fosse uma espécie de galeria, de onde se

774
Com relação “ao Nazareno” veja-se CNT sobre 1:24; também sobre Mt. 2:23; 26:71; e Jo. 1:46.
Marcos (William Hendriksen) 801
podia ver e ouvir o que sucedia no pátio. Entretanto, esta teoria tem
algumas objeções. Poderia perguntar-se: “Não se haveriam sentido
incomodados os sacerdotes que conduziam o juízo pelo ruído das
conversações em voz alta dos que estavam no pátio?”
Quando João conseguiu que a porteira o deixasse entrar, conseguiu
também entrada para Pedro. João “falou com a moça que cuidava a
porta”.
Parece ser que no preciso momento em que Pedro entrou no
palácio, a porteira, vendo-o do seu canto no corredor, suspeitou dele. O
fato de havê-lo admitido a pedido de João parecia indicar que Pedro era
também um discípulo de Jesus. A intranquilidade que se podia ler em seu
rosto confirma suas suspeitas. De modo que, ao ser substituída por outra
porteira, dirige-se a Pedro, que já tinha entrado no pátio, e que à luz do
fogo onde se esquentava era claramente visível (Lc. 22:56). Ela fixou
seus olhos nele. Logo, aproximando-se ainda mais, disse-lhe: “Tu
também estavas com Jesus, o Nazareno”. O fato de que as palavras que
ela emprega sejam um pouco diferentes no Evangelho de João não
constitui um problema. Não se deve dar por sentado que algum — ou
qualquer — Evangelho deva relatar todas as palavras pronunciadas por
esta moça. Seu jargão acusatório pôde ter incluído todo o seguinte: “Não
será que você é um dos discípulos deste homem, verdade? — Claro,
estou segura de que você estava com Jesus, o Nazareno”.
68. Mas ele o negou, dizendo: Não o conheço, nem compreendo
o que dizes.
Evidentemente, Pedro sentiu que se desmoronava. Tão repentina e
atrevida é a observação incriminatória da moça, que o toma de surpresa.
Apesar de suas jactanciosas e reiteradas promessas de lealdade
incondicional a Jesus, promessas feitas só poucas horas antes, agora está
muito assustado. Poderia dizer-se: em estado de pânico. Evidentemente
não tinha tomado a sério a advertência de Cristo em Mc. 14:38. De modo
que pretende fazer a moça crer que não sabe ou não entende do que se
Marcos (William Hendriksen) 802
trata o que ela diz, e em sua frustração busca a saída, esperando escapar
daquela situação dificilíssima.
Esteve esquentando-se junto ao fogo, mas descobriu repentinamente
que as coisas começavam a pôr-se “em vermelho vivo” para ele.
Provavelmente tinha medo de que em qualquer momento algum
ajudante, fosse guarda do templo ou servo do palácio, lançasse a mão
nele e o fizesse prisioneiro. O temor de que alguém pudesse inclusive
reconhecê-lo como a pessoa que tinha cortado a orelha do servo do sumo
sacerdote, colocava as coisas ainda pior. “Devo escapar” diz entre si, “e
o mais breve possível”.
E o galo cantou. 775 Ele o fez realmente? O texto grego apresenta
um problema. Mas o argumento em favor da conservação destas palavras
não é tão fraca como alguns pensam. 776
Entretanto, não é verdade que, segundo o relato de Mateus, Jesus
havia dito: “Nesta mesma noite, antes que o galo cante, tu me negarás
três vezes” (Mt. 26:34)? O problema que se expõe é que se as palavras
“E o galo cantou” são autênticas (Mc. 14:68), ocorre que Pedro negou o
Mestre uma só vez, não três vezes, antes que o galo cantasse. Soluções
possíveis:
a. Simplesmente omitir as palavras “E o galo cantou” do texto de
Marcos 14:68.
Algumas traduções modernas o fazem (cf. NVI). É honesto fazer
isto sem sequer informar ao leitor por meio de uma nota que lhe indique

775
O GNT atribui validez textual duvidosa a estas palavras. Mas veja-se nota 778.
776
É verdade que os manuscritos que omitem as palavras em discussão são de peso. Em consequência,
muitos tradutores modernos e comentaristas rejeitam “e um galo cantou”. Entretanto, veja-se a análise
em V. Taylor, Op. cit., p. 574. O fato de que o relato de Marcos parece requerer a inclusão dessas
palavras — notem-se os vv. 30 e 72 — deve receber ao menos tanta consideração como sua omissão
do v. 68 em manuscritos importantes. Por que falar de um segundo canto do galo se não tivesse havido
um primeiro canto? Não é possível que algum escriba, pensando que a menção de algum canto de galo
em Mc 14:68 estava em conflito com a história segundo a apresentação de Mateus, etc., tivesse
começado o processo de omiti-lo? Não pode algo similar favorecer a omissão de “duas vezes” dos vv.
30 e 72, e da “segunda vez” do v. 72? Nestes casos é mais fácil explicar a omissão do texto verdadeiro
que a interpolação dentro dele.
Marcos (William Hendriksen) 803
que existe dúvida sobre o direito de excluir estas palavras? A NVI coloca
uma nota de rodapé de página. A BP mostra suas dúvidas ao colocar a
frase entre colchetes.
b. Incluir as palavras em disputa, mas esclarecer que este primeiro
canto do galo não se tem em conta, segundo vê-se pelo fato de que não
há referência posterior a ele no texto.
c. Reconhecer o fato de que não havia nada que impedisse que um
galo cantasse entre a meia-noite e as 3 a.m. (daí Mc. 14:68), mas ao
mesmo tempo reconhecer também que tanto a predição de Cristo como
seu cumprimento apontam ao canto do galo que marcou o fim do período
da meia-noite: as 3 a.m. E isto produz Mt. 26:34, 74; Lc. 22:34, 60; Jo.
13:38; 18:27, e também em Mc. 14:30, 72. Veja-se Mc. 13:35.
Isto poderia significar que quando Jesus predisse as três
manifestações de infidelidade, quis dizer, “Solenemente te digo: esta
mesma noite, antes que o galo cante, quer dizer, cante pela segunda vez,
tu me negarás três vezes”. Ao adotar b. ou c. o problema bem pode ficar
solucionado. Talvez b. e c. deveriam combinar-se. Como indica a nota
778, existe boa razão para permitir que permaneçam as palavras em
questão de Marcos 14:72, de acordo com o NTT, CB, CI, NBE, RA.

A segunda negação
69, 70a. E a criada, vendo-o, tornou a dizer aos circunstantes:
Este é um deles. Mas ele outra vez o negou.
A segunda negação segue muito de perto à primeira. Com o
desgosto que lhe provocou o primeiro apuro, Pedro procurou sair do
edifício. Mas a porteira não tinha intenção de deixá-lo sair, e por isso não
chegou para além do corredor da entrada, que através do portão conduz
ao exterior. Havia várias pessoas ao redor. Parece como se a porteira
estivesse prestes a terminar seu turno e tivesse comunicado o que sabia
de Pedro à moça que devia substituí-la. De modo que esta segunda moça
(cf. Mt. 26:71 e Mc. 14:69) diz-lhe agora aos que estão ali ao redor,
Marcos (William Hendriksen) 804
“Este é um deles” (segundo Marcos); “Também este estava com Jesus, o
Nazareno” (como Mateus o expressa).
Há aqueles que veem uma contradição entre Marcos e Mateus neste
ponto. 777 Conforme dizem, no relato de Marcos há só uma porteira: a
moça dos versículos 66, 67 é também a do versículo 69. Mas segundo
Mateus 26:71 a criada que se menciona com relação à segunda negação
de Pedro é “outra”. Agora, deve admitir-se francamente que Mc. 14:69
certamente pode ler-se de maneira tal que resulte conflitivo. Poderia ler-
se assim: “e a servente (mencionada faz um momento) vendo-o disse
novamente aos que estavam ali, ‘Este homem é um deles’.” Entretanto,
isto não faz com que o relato de Marcos seja mais inteligível, porque,
segundo seu modo de relatar a história, a criada não tinha estado ainda
falando com os que estavam ali; assim que como pôde ela lhes falar
outra vez? Mas ao traduzir a passagem, não estamos criando uma
dificuldade e ao mesmo tempo um conflito onde não é necessário que o
haja? É realmente tão certo que através de seu relato, Marcos teve que ter
estado pensando em só uma porteira? Agora, Mateus, ao dizer “viu
outra”, deixa claro que na história mencionam-se as palavras de duas
criadas. E Marcos pode estar fazendo o mesmo ao referir-se a criadas no
plural: “uma das criadas do sumo sacerdote veio e … disse …” (vv. 66,
67), sendo a continuação natural (não a única possível) “outra criada
disse …” Também, quando Marcos prossegue, “Ele (Pedro) saiu fora ao
pórtico … quando a criada o viu”, não é “Quando a criada que estava ali
o viu” uma interpretação razoável? E pelo fato de que já se mostrou que
a expressão outra vez cria dificuldades até para aqueles que aceitam só
uma criada, não é a tradução proposta — que em lugar de “outra vez”
coloca “por sua vez” 778 — muito melhor? Em todo caso é claro mais

777
Assim, p. ex., V. Taylor, Op. cit., pp. 574, 575. Na realidade, as contradições que ele vê, vão ainda
muito além disso, mas o podemos passar por alto, porque as porteiras e os varões presentes não se
podem confundir entre si.
778
Isto é uma tradução adequada de πάλιν. Veja-se Jo. 12:22.
Marcos (William Hendriksen) 805
uma vez, que aqui não se pode constatar uma contradição nos
Evangelhos.
O fato de que ao menos um varão dos que havia ali concorda com o
que as duas moças dizem, não melhora as coisas para Pedro. De novo
Pedro passa a negar 779 que conheça Jesus. Segundo Mateus, desta vez
sua negação foi com juramento.

A terceira negação e a conclusão da história


70b. E, pouco depois, os que ali estavam disseram a Pedro:
Verdadeiramente, és um deles, porque também tu és galileu.
Já notamos que, inclusive na segunda negação, não só a porteira se
interessava no caso de Pedro. Os que estavam ali novamente voltam a
manifestar-se. A razão disso é a seguinte: Tendo-o impedido de sair,
Pedro retorna ao pátio. Transcorre uma hora (Lc. 22:59). Pareceria,
então, que as duas primeiras negações tiveram lugar durante a
apresentação de Cristo diante de Anás. Agora a situação muda um
pouco: Jesus foi conduzido diante de Caifás e todo o Sinédrio. O
primeiro juízo de Jesus quase terminou.
Durante o intervalo de uma hora as notícias sobre Pedro se
disseminaram. Agora os servos do palácio e os oficiais, os homens que
estão ao redor do fogo com Pedro, começam a lhe dizer que realmente
ele é um dos discípulos de Cristo e que sua própria pronúncia ou dicção
identifica-o como galileu. Cf. Mt. 26:73. A comparação dos relatos dos
Evangelhos mostra que algumas pessoas falaram com Pedro; outros a
respeito dele. As acusações chovem de todos os lados. Aquilo era
bastante para pôr nervoso a qualquer um, especialmente ao emocional
Simão! Como se isso não fosse suficiente, um parente de Malco diz
bruscamente: “Não te vi eu no jardim com ele?” Para esta história veja-
se CNT sobre Jo. 18:25–27.

779
Note-se o imperfeito _ρνε_το que é uma descrição viva do que estava sucedendo e pode indicar
(embora não necessariamente) que a ação continuou por algum tempo.
Marcos (William Hendriksen) 806
71. Ele, porém, começou a praguejar e a jurar: Não conheço
esse homem de quem falais! Zangado e descontrolado, Pedro começa
agora a lançar maldições e a jurar que nem sequer conhece Jesus. Talvez
deve ter dito algo assim: “Que Deus me castigue desta ou de outra
maneira se for verdade que eu sou ou alguma vez fui discípulo de Jesus”.
Ali estava, invocando sobre si maldição após maldição. E quanto mais
forte fala este galileu, tanto mais, sem notar, está dizendo a todos os que
estão ao seu redor: “Sou um mentiroso”.
Em Seu infinito e tenro amor, o Senhor vem em seu resgate, o
Senhor que em Sua soberana providência controla todas as coisas,
incluindo os galos:
72. E logo cantou o galo pela segunda vez. 780 Então, Pedro se
lembrou da palavra que Jesus lhe dissera: Antes que duas vezes 781
cante o galo, tu me negarás três vezes. E, caindo em si, desatou a
chorar. 782
Note-se o seguinte:
a. A apresentação de Marcos “E logo cantou o galo pela segunda
vez” e a de Mateus “E imediatamente cantou o galo” não estão em
contradição. Nem há tampouco nenhuma contradição real entre a de
Marcos “Antes que duas vezes cante o galo, tu me negarás três vezes” e
a de Mateus “Antes que o galo cante, tu me negarás três vezes”. Veja-se
sobre o v. 68.
b. Como era que Pedro lembrou as palavras que Jesus lhe disse? Por
Lucas 22:61, entendemos que no preciso momento que o galo cantou, ou
ao menos muito perto desse momento, alguém olhava direto aos olhos de
Pedro. Era Jesus. Seu rosto com toda segurança estava ainda arroxeado
por causa dos golpes que tinha recebido. Parece que ao ter terminado já

780
Alguns mss. omitem “a segunda vez”. Mas veja-se nota 778.
781
Alguns mss. omitem “duas vezes”. Mas veja-se nota 778.
782
Para os problemas textuais com relação a este versículo, veja-se mais acima sobre o v. 68, nota
778. Embora seja verdade que Marcos usa o imperfeito _κλαιε, não é necessário traduzir “ele
continuou chorando”, visto que a própria ideia de chorar implica continuidade.
Marcos (William Hendriksen) 807
este juízo, levavam o Mestre através do pátio à cela, de onde poucas
horas depois sairia mais uma vez para apresentar-Se diante do Sinédrio.
Quando Pedro ouviu o canto do galo, e viu que Jesus o olhava com
olhos cheios de dor e perdão, veio-lhe repentinamente à memória a
lembrança da predição admoestadora de Cristo. Com relação a isto não
devemos esquecer que “o olhar de Jesus a Pedro se teria perdido se
Pedro não houvesse olhado a Jesus”. 783
c. O original grego das palavras, “E, caindo em si, desatou a
chorar”, deu lugar a muita discussão. Veja-se nota. 784 A tradução de RA
ainda é provavelmente a melhor.
d. Quando repassamos toda a história fica claro que aqui se ensinam
as seguintes lições (e podem haver muitas outras):
Em primeiro lugar, quão enganoso é o coração do homem! Veja-se
mais acima em Mc. 14:31: O desconhecido “eu”.
Segundo, quanto teve que ter sofrido Cristo! Sem dúvida, sofreu
muito mais devido às negações de um discípulo e amigo altamente
favorecido, que por causa dos golpes e as zombarias que Lhe infligiram
Seus declarados inimigos. Veja-se Sl 55:12–14.
Finalmente, quão maravilhosamente se revela aqui a graça de Deus
e o amor perdoador do Salvador! Veja-se Is. 1:18; 53:6; 55:6, 7.

Resumo do Capítulo 14

783
G. Campbell Morgan, Op. cit., p. 312.
784
Talvez seja mais simples, e talvez a melhor, lhe dar a _πιβαλών (part. aor. nom. sing. masc. de
_πιβάλλω) o significado de pondo a, aplicando a, e logo acrescentar τ_ν νο_ν (ou algo similar),
resultando no significado de aplicando ou fixando a mente em, refletindo sobre, pensando em. Assim
também VM, RA, Gould, Robertson, Erdman. Depois de mencionar outras várias possibilidades, tanto
Bruce como Swete, retêm finalmente duas delas, embora não as mesmas. A que retêm ambos é
pensando em. A maioria das versões em português traduzem algo como “pôs-se a chorar” ou “rompeu
em choro”. Esta interpretação descansa na ideia de que _πιβάλλω indica ação violenta (como em Mc.
4:37). Veja-se E. Hauck, TDNT, vol. I, R 529. Entretanto, tal ação violenta não está sempre indicada
(veja-se Mc. 11:7; Lc. 9:62). E quando se indica, o complemento (direct., indirect. ou ambos)
menciona-se explicitamente. Marcos 14:72 é diferente.
Marcos (William Hendriksen) 808
Há uma estreita relação entre os caps. 13 e 14. Segundo Mc. 13:32
Jesus disse, “Mas a respeito daquele dia ou da hora ninguém sabe …”.
Ele sabia que seus tempos estavam em mãos do Pai. Cf. Sl 31:15. Mas os
veneráveis membros do supremo tribunal judaico pareciam ter a opinião
de que o controle estava em suas mãos, e que eles tinham o poder de
determinar o dia da morte de Cristo. Veja-se Mc. 14:2.
Existe também outra relação óbvia. O capítulo 13 contém uma
admoestação que Jesus repete várias vezes de uma ou outra forma, ou
seja: “Estejam alertas” (“Vigiai”). Vejam-se os vv. 23, 33, 35, 37. Esta
advertência se repete em Mc. 14:38. Mas segundo 14:37, 40, 41 isto é
exatamente o que Pedro, Tiago, e João não fizeram.
Quanto ao seu conteúdo, o capítulo 14 se divide em 11 seções muito
desiguais, como segue:
1. “Não durante a festa” diziam os conspiradores. “Durante a festa
(Páscoa)”, disse o Todo-poderoso, repetido por Jesus. E assim sucedeu
(vv. 1, 2).
2. Com relação ao ato tão generoso, considerado e oportuno de
Maria de Betânia ao ungir a Jesus, sentimo-nos comovidos pela crítica
indesculpável dos discípulos: “Por que este desperdício de perfume?” O
que é especialmente chamativo é a forma enfática com que Jesus Se
apressa a sair em defesa de Maria com as palavras, “Em qualquer lugar
que for pregado o evangelho em todo mundo, também o que ela fez será
contado para memória dela (vv. 3–9).
3. Maria recebe o louvor eterno do Mestre. Judas recebe dinheiro
dos dirigentes judeus. Tendo-o recebido, busca logo uma oportunidade
para trair a Jesus (vv. 10, 11).
4. Marcos relata a seguir como Jesus envia dois de Seus discípulos
a. para assegurar um aposento onde celebrar a Páscoa com Seus
discípulos, e b. para fazer os preparativos necessários. Cumprem-se
cabalmente as predições do Mestre com relação às experiências dos dois
discípulos em Jerusalém ao ir em busca de um aposento.
Marcos (William Hendriksen) 809
Foi na quinta-feira de noite, durante a ceia de Páscoa, quando Jesus
declarou, “Um de vós me trairá — um que está comendo comigo”. Pelo
fato de que todos os discípulos estavam comendo com Jesus, eles, de um
em um, dizem-lhe, “Não sou eu, verdade?” Dei a todos os discípulos a
oportunidade de examinar-se. Note-se a combinação da soberania divina
e a responsabilidade humana nas palavras de Cristo: “O Filho do Homem
vai como está escrito dele, mas ai do homem por quem o Filho do
Homem é traído!” (vv. 12–21).
5. Para o final da ceia de Páscoa Jesus instituiu “a Ceia do Senhor”.
Esta significa que por causa do que Jesus fez pelo Seu povo no que hoje
é o passado, eles devem dar-Lhe seu amor; também que, pelo fato de
que cada vez que a ceia é devidamente celebrada, Ele está presente com
os que participam dela, devem abraçá-Lo como o objeto de sua fé; e
finalmente que, em vista de sua promessa com relação ao futuro — uma
promessa quando instituiu a Ceia —, eles devem olhar ao futuro com
viva e firmemente ancorada esperança, à eterna comunhão com Ele nas
mansões celestiais (vv. 22–26).
6. Em seu trajeto rumo ao monte das Oliveiras (e mesmo antes, no
Cenáculo) Jesus predisse que todos os Seus discípulos Lhe seriam
infiéis, em cumprimento de Zacarias 13:7. Todos protestam e professam
sua franca lealdade; especialmente Pedro. Jesus lhe disse: “Solenemente
te declaro que hoje — sim, nesta mesma noite — antes que o galo cante
duas vezes, você me negará três vezes”. O parágrafo 11 mostra que isto
foi exatamente o que sucedeu (vv. 27–31).
7. No Getsêmani Jesus a. agonizava; b. agonizava e orava; c. orava
e vigiava. Orou três vezes; a essência de sua oração foi, “Pai, aparta este
cálice de mim; não obstante, não seja o que eu quero mas o que tu
queres.” Depois de Sua terceira oração, ao voltar onde estavam Seus
discípulos e achá-los ainda (ou: outra vez) dormindo, permaneceu ali,
vigiando meigamente por eles e dizendo: “Durmam já e descansem.
Basta”.
Marcos (William Hendriksen) 810
Pouco depois acrescentou, “Levantai-vos! Vamos. Olhai, está perto
o que me trai” (vv. 32–42).
8. Por meio de um beijo (ou beijos) Judas identificou e assim
entregou a Jesus a um destacamento de soldados, polícia do templo e
membros do Sinédrio, todos eles bem equipados. Pedro tira sua espada e
fere o servo do sumo sacerdote, tirando-lhe uma orelha. Jesus denuncia a
estultícia e culpa de seus captores. Em cumprimento de sua predição
todos os discípulos fogem. O que resulta especialmente significativo é
que Jesus permitisse que O detivessem, O amarrassem e O levassem dali.
A “Vítima” é obviamente o “Vencedor”. Em cumprimento de Isaías 53,
Ele está dando Sua vida como oferta em resgate de muitos (vv. 43–50).
9. Embora os apreensores de Jesus não tenham detido nenhum dos
discípulos — e provavelmente nem sequer o tentaram (Jo. 18:8, 9) —,
mas antes, que procuraram lançar mão a certo “jovem” que, envolto só
em um lençol, seguia a Jesus. Ao tratar eles de prender o jovem, este
abandonou o lençol e escapou despido. Segundo a opinião de muitos,
Marcos está narrando sua própria e inesquecível experiência (vv. 51, 52).
10. Diante do Sinédrio, Jesus, em resposta à pergunta do sumo
sacerdote, declara que é o Messias, Aquele que está prestes a ser
exaltado gloriosamente (Sl 110:1), e que um dia, em cumprimento de
Daniel 7:13, 14, aparecerá nas nuvens do céu, revestido de poder e
majestade. O muito nervoso Sumo sacerdote, que não tinha podido
extrair das testemunhas um testemunho acusatório congruente, agora
rasga suas vestes e pergunta: “Que mais necessidade temos ainda de
testemunhas? Vós ouvistes a blasfêmia. Que vos parece?” Todos O
condenam como digno de morte. Segue a zombaria e a crueldade (vv.
53–65).
11. O fundo da primeira negação de Pedro se indica em Mc. 14:54.
A história continua aqui. A primeira negação ocorre no pátio do palácio
do sumo sacerdote, onde Pedro se aquece na presença dos servos do
palácio e guardas do templo. Uma porteira o olha de perto e exclama,
“Tu também estavas com Jesus, o Nazareno”. A seguinte negação
Marcos (William Hendriksen) 811
ocorre, com toda probabilidade, quando Pedro tenta sair do palácio. A
porteira que tinha vindo substituir a primeira, diz aos que estavam ali:
“Este homem é um deles”. Pelo fato de que Pedro aparentemente não
teve permissão de sair, volta ao pátio. Aqui, perto de uma hora depois
(segundo Lucas) os que estavam por ali ao redor, dizem a Pedro:
“Verdadeiramente tu és um deles, porque és galileu”.
Cada vez que Pedro é acusado, nega toda relação com Jesus. A
terceira vez “começou a amaldiçoar e a jurar: Não conheço este homem
de quem falais””. Foi então quando o galo cantou.
Houve antes um canto do galo, depois da primeira negação. Mas o
canto do galo imediato à terceira negação era o significativo. Ao cantar o
galo pela segunda vez, Pedro lembrou as palavras que Jesus havia lhe
dito, “Antes que o galo cante duas vezes, tu me negarás três vezes”.
Quando refletiu no que, apesar de todas as suas promessas e alardes
anteriores, fez, e o que Jesus realmente significava para ele e fez por ele,
chorou! (vv. 66–72).
Marcos (William Hendriksen) 812

MARCOS 15
Mc. 15:1 - A decisão do Sinédrio de matar a Jesus. Jesus é conduzido
diante de Pilatos
Cf. Mt. 27:1, 2; Lc. 22:66; 23:1; Jo. 18:28

De ao redor das três da madrugada (veja-se 13:35; 14:72) até o


amanhecer, Jesus esteve retido como detento em algum lugar do palácio
de Caifás. Então:
1. Logo pela manhã, entraram em conselho os principais
sacerdotes com os anciãos, os escribas e todo o Sinédrio.
Note-se que são mencionados os três mesmos grupos que em Mc.
8:31; 14:43, 53. Veja-se em Mc. 14:1. Os sacerdotes em particular
tinham a cargo o cuidado do templo. Isto pode explicar a forma de
expressar-se aqui, “Os principais sacerdotes, com os anciãos,os
escribas”. A razão principal da reunião que se realizou pela manhã cedo
pôde ter sido a necessidade de dar uma aparência de legalidade à ação
contra Jesus. Para uma explicação mais ampla deste ponto, veja-se mais
acima em Mc. 14:55, 56. Note-se especialmente o ponto d. Embora não
transcorreria um dia inteiro, conforme o requerido, entre o momento da
condenação e o da sentença, haveria ao menos um breve intervalo e uma
segunda reunião, que Caifás poderia aproveitar para relaxar um pouco,
deixando a outros o trabalho de interrogar a Jesus e de repetir o veredito
dado umas poucas horas antes (Lc. 22:66–71).
O relato de Marcos nos indica que naquela sessão de madrugada se
reconfirmou a condenação, e a seguir nos fala de uma ação drástica que
tomou contra Jesus. Por isso, provavelmente seja correto dizer que o que
Marcos dá a entender no versículo 1 é que o Sinédrio “entraram em um
Marcos (William Hendriksen) 813
785
acordo” e não somente “entraram em consulta”. O “acordo” ou a
“sentença” foi que Jesus devia ser executado. Entretanto, visto que o
Sinédrio sabia muito bem que para levar-se o cabo, aquela sentença
devia ser confirmada pelos romanos, continua: e, amarrando a Jesus,
levaram-no e o entregaram a Pilatos. 786
Primeiro amarraram a Jesus (Jo. 18:12, 24), quem tinha vindo para
libertar os homens (Jo. 8:36; Gl 5:1). Era uma parte da obra que o Pai
Lhe havia dado para fazer. Para realizar isto, Ele mesmo devia ser preso.
Assim maniatado, Jesus foi entregue ao governador Pilatos, tal
como o havia predito (Mc. 10:33). João 18:28 diz que Jesus foi
conduzido à residência do governador, ao pretório.
Agora, é quase impossível crer que o significado de 15:1 seja que
Jesus foi conduzido ao palácio de Herodes. Note-se a linguagem usada
em Lucas 23:7. Além disso, Marcos 15:8 diz que quem desejasse ver
Pilatos devia subir. Também está a menção do “Pavimento” em João
19:13 e o fato de que Pilatos não era amigo de Herodes (Lc. 23:12).
Todos estes elementos fazem pensar que a referência deve ser à fortaleza
de Antônia, que se achava no ângulo noroeste da área do templo.
Embora a residência principal de Pilatos estivesse em Cesareia, também
tinha alojamento nesta fortaleza (Mc. 15:16) perto da guarnição. Naquele
momento estava em Jerusalém, apoiado por seus soldados, com o fim de
preservar a paz no período da Páscoa, que era perigoso de um ponto de
vista político.
Pôncio Pilatos 787 era o quinto procurador de Samaria e Judeia.
Estava sob a autoridade do legado sírio. Muitos informes chegaram-nos a
respeito dele. As apreciações de seu caráter veriam muito. Temos a Filo,

785
συμβούλιον ποιήσαντες (part. aor. nom. masc. pl. de ποιέω).
786
δήσαντες, construção igual a do particípio precedente. _πήνεγκαν, aor. ind. 3ª. pes. pl. de _ποφέρω.
787
Fontes de informação a respeito de Pilatos: em primeiro lugar, os Evangelhos; logo Filo, De
Legationem ad Caium XXXVIII; Josefo, Antiguidades XVIII. 55 64; 85–89; Josefo, Guerra Judaica
II, 169–177; Tácito, Anais XV. xliv; e Eusébio, História Eclesiástica I. iX, x; Li. iI, vii … Veja-se
também G. A. Müller, Pontius Pilatus fünfte Prokurator von Judäa (Stuttgart, 1888); e R L. Maier,
Pontius Pilate(Garden City, Nova York, 1968).
Marcos (William Hendriksen) 814
que citando uma carta de Agripa I a Calígula, chama-o “inflexível, sem
de misericórdia, e obstinado”, e homem que repetidamente infligiu
castigo sem juízo prévio e cometeu muitíssimos atos de crueldade. Por
outro lado, os coptos e abissínios o classificam entre os santos. Uma
coisa é certa: usou pouco de senso comum ao tratar o delicado problema
das tensas relações entre os judeus e seus conquistadores romanos. Na
realidade quase parece que se deleitava em ofender os judeus: usando o
tesouro do templo para resolver os gastos de um aqueduto, levando
bandeiras romanas a Jerusalém, e inclusive profanando o templo com
escudos de ouro cobertos de imagens e nomes de deuses romanos.
A forma em que Pilatos interveio contra uma turba de fanáticos lhe
custou sua remoção do cargo. Tratava-se de uma turba dirigida por um
falso profeta que se dispôs a subir ao Monte Gerizim para buscar os
vasos sagrados que, segundo eles, Moisés tinha escondido ali. A
cavalaria de Pilatos os atacou, matando a muitos deles. Os samaritanos
apresentaram uma queixa e Pilatos foi deposto de seu ofício. Partiu para
Roma para responder pelas acusações apresentados contra ele. Mas antes
de chegar a Roma, o imperador (Tibério) morreu. Eusébio relata uma
história que não foi confirmada; diz que Pilatos “foi forçado a suicidar-
se”.
Pelos Evangelhos entendemos que era orgulhoso (veja-se CNT
sobre Jo. 19:10) e cruel (Lc. 13:1). Provavelmente era tão supersticioso
quanto sua esposa (Mt. 27:19). Sobretudo, conforme indicam todos os
relatos do juízo de Jesus, foi um homem que buscou acima de tudo sua
própria segurança e cujo desejo era estar a bem com o imperador. Odiava
intensamente os judeus, os quais, segundo ele, causavam-lhe problema
após problema. Não se pode provar que estivesse totalmente sem recurso
de todo vestígio de compaixão humana e de todo sentido de justiça. Na
realidade, há certas passagens que parecem apontar em direção oposta.
Em todo caso, embora sua culpa fosse grande, não foi tanto quanto a de
Anás e Caifás, cf. Jo. 19:11.
Marcos (William Hendriksen) 815

Mc. 15:2–5 - Pilatos interroga Jesus


Cf. Mt. 27:11–14; Lc. 23:2–5; Jo. 18:33–38

Continua aqui a história começada no versículo 1. Ao combinar os


relatos dos Evangelhos, dá-nos a impressão que desde o princípio até
quase o fim, Pilatos fez tudo que esteve ao seu alcance para livrar-se do
caso. Não era amigo dos judeus. Não queria agradá-los nem lhes
conceder sua petição com relação a Jesus. Entretanto, por outro lado, no
íntimo de seu ser tinha temor deles e da possibilidade de que pudessem
usar sua influência para danificá-lo. Até certo ponto, estava disposto a
agir conforme as demandas da justiça, mas só até certo limite. Se sua
posição via-se ameaçada, render-se-ia.
Em concordância com esta atitude da parte de Pilatos, a história se
desenvolve como segue:
a. Pilatos pergunta aos que levam a Jesus diante de sua presença:
“Que acusações trazeis contra este homem?” Ao ver que não têm
acusações reais contra Ele, devolve-lhes o acusado: “Tomai-o vós outros
e julgai-o segundo a vossa lei”. Os judeus, então, manifestam claramente
que seu desejo é nada menos que se dê morte ao prisioneiro. Com
relação a isto, o apóstolo João vê o cumprimento de palavras anteriores
de Jesus sobre a forma em que devia morrer (Jo. 18:28–32). Sem dúvida,
João tinha em mente palavras tais como as que se acham em Mt. 20:19;
26:2; Mc. 10:33; Jo. 3:14; 8:28; 12:32, 33.
b. Os judeus compreendem então que devem fazer acusações
concretas. Assim que rapidamente apresentam três: Jesus perverte a
nação, proíbe pagar tributo a César e pretende ser rei (Lc. 23:2). Na
realidade estas três acusações equivalem a uma: “Jesus é um
revolucionário, um sedicioso, uma pessoa politicamente perigosa”.
Pilatos não pode permitir que tal pretensão ao trono real fique sem
Marcos (William Hendriksen) 816
investigação. Em consequência leva Jesus consigo ao interior do pretório
para interrogá-Lo sobre este assunto (Jo. 18:33a).
c. Neste ponto, nossa passagem (Mc. 15:2a; cf. Mt. 27:11a; Lc.
23:3a; Jo. 18:33b) reata a história. Pilatos pergunta a Jesus, “És tu rei dos
judeus?”
d. Jesus explica a Pilatos em que sentido é e em que sentido não é
rei (Jo. 18:34–37).
e. Os outros Evangelhos informam simplesmente que Jesus
respondeu afirmativamente a pergunta de Pilatos (Mc. 15:2b; cf. Mt.
27:11b; Lc. 23:3b).
f. Depois de interrogar a Jesus, Pilatos sai para fora (ao pórtico)
novamente e declara aos judeus (aos principais sacerdotes e à multidão),
“Eu não acho nele crime algum” (Jo. 18:38b; cf. Lc. 23:4).
g. Os principais sacerdotes acusam a Jesus de muitas coisas (Mc.
15:3; cf. Mt. 27:12a), sem dúvida reiterando as acusações anteriores
(veja-se mais acima) e acrescentando outras.
h. Para consternação e surpresa de Pilatos, Jesus guarda silêncio
(Mc. 15:4, 5; cf. Mt. 27:12b–14).
i. Uma das muitas acusações que fazem a seguir é: “Ele alvoroça o
povo, ensinando por toda a Judéia, desde a Galiléia, onde começou, até
aqui”. A menção da Galileia soa como música aos ouvidos de Pilatos,
porque para ele significa que talvez pode passar o caso ao tetrarca
Herodes Antipas, que durante aqueles dias está em Jerusalém (Lc. 23:5–
12).
Pelo que antecede, compreendemos que a narração de Marcos
cobre os pontos c, e, g, e h. Para entender o relato de Marcos devem
levar-se em conta os outros pontos (especialmente a, b, d, e f.).
O paralelo mais próximo a Marcos 15:2–5 é Mateus 27:11–14. A
semelhança é tão grande que não precisamos dizer nada mais sobre isso.
2. Pilatos o interrogou: És tu o rei dos judeus?.
É evidente que embora o Sinédrio tivesse acusado a Jesus de
blasfêmia, os dirigentes judeus não pressionam imediatamente esta
Marcos (William Hendriksen) 817
acusação diante de Pilatos. Deveriam opinar, e com razão, que uma
acusação de caráter político teria mais probabilidade de ser considerada
válida do ponto de vista do direito romano. Além disso, talvez
pressentiram que uma acusação estritamente religiosa não teria causado
grande impressão num pagão. Entretanto, isto não significa que tivessem
descartado totalmente a ideia de apresentar, num momento dado, a
acusação religiosa diante do governador. Na realidade isto é exatamente
o que fizeram (Jo. 19:7). Porém, no momento a guardavam em reserva.
Quando Pilatos perguntou a Jesus, “És tu o rei dos judeus?”, fê-lo
porque pensou que para sua própria proteção devia fazê-lo, e não porque
cresse que a acusação fosse verdade.
O original não só usa o pronome “tu”, mas também o coloca no
princípio da pergunta. Fica grande ênfase em tal pronome, e é como se
Pilatos dissesse, “Tu és o rei dos judeus? Que ridículo!”. Continua:
Respondeu Jesus: Tu o dizes. Isto não pode significar menos que isto:
“É tal como tu o disseste”. Como prova, veja-se uma expressão similar
em Mt. 26:25, e cf. Jo. 18:36, 37. Nestes outros dois casos o contexto
claramente estabelece que a resposta de Jesus era uma afirmação.
Ao chegar a este ponto (veja-se f. mais acima), Pilatos sai fora do
pretório outra vez, e de sua elevada tribuna anuncia aos principais
sacerdotes e à multidão: “Eu não acho nele crime algum”, quer dizer,
nenhuma base legítima para acusação alguma.
Então segue (veja-se ponto g. mais acima):
3. Então, os principais sacerdotes o acusavam de muitas
coisas 788 . 789

788
Ou: asperamente.
789
Em lugar de “de muitas coisas” outra possibilidade é “asperamente”. Cf. CI e NC que traduzem:
“insistentemente”. Veja-se mais acima sobre Mc. 9:26, nota 411. Mas “o acusavam — ou: começavam
a acusá-lo — de muitas coisas” harmoniza com o v. 4: “Está ouvindo quantas acusações apresentam
contra ti”.
Marcos (William Hendriksen) 818
Note-se que os principais sacerdotes estão outra vez na vanguarda
dos acusadores. Veja-se sobre Mc. 15:1. Quanto a suas “muitas
acusações”, veja-se Lc. 23:2, 5 — Jesus permaneceu em silêncio. 790
4. Tornou Pilatos a interrogá-lo: 791 Nada respondes? Vê
quantas acusações te fazem!
Isto é quase uma repetição de Mc. 14:60; cf. Mt. 26:62. Pareceria
que tanto Caifás como Pilatos procedem supondo que um acusado é
culpado a menos que se possa provar que é inocente.
5. Jesus, porém, não respondeu palavra, a ponto de Pilatos
muito se admirar.
O governador se enfrenta a um duplo contraste: a. O contraste entre
Jesus e os muitos outros indivíduos acusados que tinham comparecido
diante dele, e que provavelmente falaram muito e apaixonadamente em
sua própria defesa; e b. entre a suposta pessoa turbulenta, difícil e
agressiva que era Jesus, segundo a descrição dos principais sacerdotes
dos anciãos, e o indivíduo tão nobre e sereno que agora estava diante
dele.
Não nos foi revelado por que motivo exatamente Jesus permaneceu
em silêncio. Entretanto, as possíveis razões que vêm a seguir são dignas
de consideração.
a. “Não abriu a sua boca” em cumprimento das profecias (Is. 42:1–
4; 53:7; 57:15; Zc. 9:9). Veja-se também 1Rs. 19:11, 12; Mt. 5:7–9;
12:18–21; 21:5.

790
Em Marcos 15:3b, a versão inglesa King James acrescenta “mas ele não respondeu nada”.
Entretanto, o insuficiente apoio manuscrito faz com que, em geral, rejeite-se a leitura α_τ_ς δ_ ο_δ_ν
_πεκρίνατο. Contudo, Vincent Taylor pensa que, afinal de contas, poderia ser autêntico. Concordo em
que se deve conceder esta possibilidade. Sem ela algo parece faltar entre os vv. 3 e 4. Seja como for, a
pergunta de Pilatos (v. 4) carece de significado fora do silêncio implícito de Jesus, silêncio
confirmado por Mt. 27:12b.
791
Note-se κατηγόρουν no v. 3 e _πηρώτα no v. 4, ambos os imperfeitos e provavelmente ambos os
iterativos. παρ_το_ντο, impf. 3ª. pes. pl. de παραιτέομαι. Aqui em Mc. 15:6, o significado é pedir.
Outros significados: desculpar ou dispensar (Lc. 14:18b, 19, “que me dispense”); desprezar (1Tm.
4:7; 5:11; Hb. 12:25); rogar que não (Hb. 12:19).
Marcos (William Hendriksen) 819
b. Pilatos não merecia uma resposta, porque sabia muito bem que
Jesus era inocente. O governador tinha declarado isto abertamente (Jo.
18:38b; cf. Lc. 23:4). Devia ter absolvido a Jesus em vista disso.
c. Os dirigentes judeus sabiam muito bem que mentiam. Em seu
ministério, Jesus jamais tinha falado ou agido como um rebelde político.
Antes, justamente o contrário (Mc. 12:17; Jo. 6:15).
Em quatro ocasiões diferentes durante as últimas horas de Sua vida,
Jesus “não abriu a sua boca”: diante de Caifás (Mc. 14:60, 61), diante de
Pilatos (Mc. 15:4, 5), diante de Herodes (Lc. 23:9b), e novamente diante
de Pilatos (Jo. 19:9b). Estes silêncios falaram mais claro que as palavras.
Eram na realidade outras tantas condenações de seus inimigos. E foram
também provas de sua identidade como Messias.

Mc. 15:6–15 - Jesus é sentenciado à morte


Cf. Mt. 27:15–26; Lc. 23:13–25; Jo. 18:39–19:16

Sem conflitos reais, cada evangelista narra a história à sua maneira.


Mateus e Marcos têm em comum o seguinte: Numa (ou “na”) festa o
governador costumava soltar para a multidão a qualquer detento que eles
quisessem. De modo que, entendendo Pilatos que por inveja tinham
entregue a Jesus, permite ao povo escolher entre Jesus e o prisioneiro
Barrabás. Os principais sacerdotes persuadem o povo para que peçam
que o felizardo não seja Jesus e sim Barrabás. “Que farei, então, deste a
quem chamais o rei dos judeus?” (segundo Marcos); “ … Jesus chamado
o Cristo?” (segundo Mateus). Eles responderam gritando “Crucifica-o!”.
Pilatos pergunta: “Que mal fez ele?”. E eles respondem ou gritam ainda
mais forte, “Crucifica-o!” Pilatos solta a Barrabás e ordena que Jesus
seja açoitado, castigo que geralmente ia seguido da crucificação.
As variações mais importantes são as seguintes: Marcos descreve a
Barrabás como rebelde e homicida (Mc. 15:7); Mateus o chama “um
preso muito conhecido” (Mt. 27:16); João, “era salteador” (Jo. 18:40).
Enquanto Mateus e Marcos implicitamente dizem que se deixou que o
Marcos (William Hendriksen) 820
povo fizesse a eleição entre Jesus e Barrabás, Marcos diz que foi o povo
quem tomou a iniciativa, insistindo em que se fizesse o que se fez
sempre, quer dizer, soltar um detento (Mc. 15:8). Também segundo
Marcos, Pilatos sugere ao povo que escolha ao “rei dos judeus” para ser
libertado (Mc. 15:9).
Mateus acrescenta que enquanto o povo decidia a quem devia
escolher para ser libertado, Pilatos recebeu uma mensagem de sua esposa
informando-o sobre seu sonho e o advertindo, “Não te envolvas com
esse justo” (Mt. 27:19). Segundo Mateus, no fim da história, Pilatos lava
as mãos e se declara inocente “do sangue deste homem”. O povo
responde, “Caia sobre nós o seu sangue e sobre nossos filhos!” (Mt.
27:24, 25).
Lucas nos diz que ao voltar Jesus do palácio de Herodes (23:6–12),
Pilatos informou às autoridades judaicas que pelo fato de que nem ele
nem Herodes tinha encontrado o acusado culpado de crime algum, este
seria castigado e posto em liberdade (Lc. 23:22). Lucas faz um relato
abreviado do incidente Jesus ou Barrabás (Lc. 23:18b, 19:25a). Sua
história termina da forma em que o fazem Mateus e Marcos; Barrabás é
posto em liberdade; Jesus é entregue à mercê dos principais sacerdotes e
do povo (Lc. 23:24, 25). A inocência de Jesus, que os quatro
evangelistas assumem de forma expressa, é confirmada por Lucas com
uma linguagem inequívoca, e de maneira reiterada (vv. 4:14, 15, 22). O
relato de Lucas sublinha também, de forma ainda mais intensa que os
outros, o grande interesse e esforço que desdobrou Pilatos para tratar de
persuadir o povo a aceitar sua sugestão de que Jesus fosse “castigado” e
posto em liberdade (vv. 16, 22).
Além disso, a asseveração de Pilatos “Eu não acho nele crime
algum” aparece mais de uma vez no Evangelho de João (18:38; 19:4, 6).
Aqui, também, a história de Jesus ou Barrabás apresenta-se de forma
abreviada (Jo. 18:39, 40). Características exclusivas de João são os atos
do “Ecce homo” e o “Ecce rex vester” (Jo. 19:5, 14). Mas sobretudo,
Marcos (William Hendriksen) 821
estamos em dívida com João por nos dar a conhecer o que finalmente
moveu a Pilatos a ceder à vontade dos principais sacerdotes e do povo:
“E saiu Jesus, levando ainda a coroa de espinhos e o manto de
púrpura. E Pilatos lhes disse: “Eis o homem!” Quando O viram os
principais sacerdotes e os oficiais, deram vozes dizendo: “Crucifica-o!
Crucifica-o!” Pilatos lhes disse: “Tomai-o vós outros e crucificai-o;
porque eu não acho nele crime algum”. Os judeus lhe responderam:
“Temos uma lei, e, de conformidade com a lei, ele deve morrer, porque a
si mesmo se fez Filho de Deus”.
“Pilatos, ouvindo tal declaração, ainda mais atemorizado ficou, e,
tornando a entrar no pretório, perguntou a Jesus: Donde és tu? Mas Jesus
não lhe deu resposta. Então, Pilatos o advertiu: Não me respondes? Não
sabes que tenho autoridade para te soltar e autoridade para te crucificar?
Respondeu Jesus: Nenhuma autoridade terias sobre mim, se de cima não
te fosse dada; por isso, quem me entregou a ti maior pecado tem. A partir
deste momento, Pilatos procurava soltá-lo, mas os judeus clamavam: Se
soltas a este, não és amigo de César! Todo aquele que se faz rei é contra
César! Ouvindo Pilatos estas palavras, trouxe Jesus para fora e sentou-se
no tribunal, no lugar chamado Pavimento, no hebraico Gabatá. E era a
parasceve pascal, cerca da hora sexta; e disse aos judeus: Eis aqui o
vosso rei. Eles, porém, clamavam: Fora! Fora! Crucifica-o! Disse-lhes
Pilatos: Hei de crucificar o vosso rei? Responderam os principais
sacerdotes: Não temos rei, senão César! Então, Pilatos o entregou para
ser crucificado” (Jn. 19:5–16).
***

6. Ora, por ocasião da festa, era costume soltar ao povo um dos


presos, qualquer que eles pedissem. 792

792
_πέλυε, impf. 3ª. pes. sing. de _πολύω. Este é o imperfeito de costume ou iterativo, o imperfeito de
ação repetida. δέσμιος, “alguém preso, um prisioneiro”. O termo se relaciona com δέω, atar, amarrar.
Veja-se o particípio aor. at. deste mesmo verbo no v. 1, nota 786. Cf. diadema, uma grinalda atada ao
redor da cabeça. O vocábulo “prisioneiro”, usado aqui em Mc. 15:6 e em seu paralelo Mt. 27:15, 16,
Marcos (William Hendriksen) 822
Não está muito claro aqui se faz-se referência a qualquer das
grandes festividades ou exclusivamente à Páscoa, embora a ideia de pôr
em liberdade a um prisioneiro pareceria mais apropriada com relação à
Páscoa, visto que é a comemoração da libertação dos israelitas de sua
escravidão no Egito. E veja-se também João 18:39 - “É costume entre
vós que eu vos solte alguém por ocasião da Páscoa”. Uma coisa está
clara: Pilatos estava muito desejoso de soltar um detento naquele preciso
momento, porque, segundo seu parecer, esta seria a forma de livrar-se de
Jesus.
7. Havia um chamado Barrabás, preso com outros sediciosos, os
quais em um motim haviam feito uma morte [TB]. 793
Sabemos muito pouco a respeito deste homem. Só o que se diz aqui
e nas passagens paralelos. Pôde ter sido um patriota fanático. O país
estava cheio deles. Era dos que andavam com sua adaga sob o manto
disposto em qualquer momento a desafiar a opressão romana? Note-se,
“um motim”. A insurreição que Marcos conhecia? A que os leitores
conheciam? A que conheciam ambos? Ou simplesmente, a insurreição
específica em que aqueles homens tinham estado envolvidos? Não o
sabemos.
8. Vindo a multidão, começou a pedir 794 [a Pilatos] que lhes
fizesse como de costume.
Note-se “vindo”, provavelmente subiu os degraus que conduziam
aos aposentos de Pilatos que estavam na torre de Antônia. Pelo que faz a
petição, embora o original pode também traduzir-se “e começou 795 a

aparece também em At. 16:25, 27 (os encarcerados no cárcere de Filipe). Usa-se com relação a Paulo
(At. 23:18; 25:14, 27; 28:17). Paulo chama-se a si mesmo “prisioneiro de Jesus Cristo” (Ef. 3:1; cf.
4:1; 2Tm. 1:8; Fm. 1:9). Hebreus faz referência aos detentos” (Hb. 10:34; 13:3).
793
Neste versículo note-se στοσιαστής, alguém que se levanta contra (desafia), um rebelde; στάσις,
um levantamento, rebelião; cf. alemão Aufstand, holandês opstand; δεδεμένος; (part. pf. pas. nom.
sing. masc. de δέω) alguém preso, um prisioneiro; πεποιήκεισαν, mqpf. at. 3ª. pes. pl. de ποιέω: fazer,
cometer.
794
Ou: começou a perguntar.
795
_ρξατο (de _ρχω); veja-se sobre Mc. 1:45 e 6:7, nota 233.
Marcos (William Hendriksen) 823
pedir”, no caso presente simplesmente “pediu” é suficiente. Não nos é
dito quem estava no comitê que fez a petição, e é inútil adivinhá-lo, mas
podemos supor que todos eles, ou sua maioria, deviam ser súditos de
Pilatos. Não se pode deduzir disto que todos os que naquela anterior hora
da manhã se reuniram na frente do “palácio do governador” deviam ser
habitantes de Jerusalém e arredores.
9. E Pilatos lhes respondeu, dizendo: Quereis que eu vos solte 796
o rei dos judeus?
Como já se viu antes com toda clareza, Pilatos deseja desfazer-se da
responsabilidade de tomar uma decisão com relação a Jesus. Em
primeiro lugar, não se sente inclinado favoravelmente para com os
judeus, e além disso, no versículo 10 menciona-se outra razão para
resistir à primeira petição de sentenciar a Jesus à morte (Jo. 18:30, 31; cf.
Mc. 14:64; 15:1, 3, 4). Por isso, na petição de soltar um detento, ele vê a
oportunidade de desembaraçar-se deste caso. É portanto evidente que sua
pergunta, “Quereis que eu vos solte o rei dos judeus?” — este título
pronunciado com ar desdenhoso — é realmente uma sugestão para que
os judeus peçam a liberdade de Jesus.
Naturalmente, é terrivelmente chocante que Jesus, a quem Pilatos já
tinha declarado inocente, seja tratado aqui como se também pertencesse
à mesma classe do temerário bandido, revolucionário e homicida. Era
ultrajante sugerir que os principais sacerdotes e o povo em geral,
escolhessem entre Jesus e Barrabás, como se ambos fossem criminosos
condenados; como se um deles pudesse agora chegar a ser o objeto da
misericórdia de Pilatos e do povo. O fato de que Jesus Se submetesse a
este ultraje em lugar de pedir “mais de doze legiões de anjos” para

796
Quanto a θέλω sin _να, veja-se também Mc. 10:36, 51; 14:12. Em geral, em todas as línguas há
uma tendência a omitir palavras que não parecem estritamente necessárias. Usualmente a forma de
expressão extensa e a breve são usadas juntas por um tempo. Assim também em nosso idioma, p. ex.,
“a fim de que” chega a ser simplesmente “para”. _πολύσω é aor. subj. 1ª. pes. sing. (aqui deliberativo)
de _πολύω.
Marcos (William Hendriksen) 824
destruir os Seus inimigos, mostra com quanto anelo e devoção
empenhou-Se na obra que o Pai lhe tinha dado.
A razão que Pilatos tinha para dizer, “Quereis que eu vos solte o rei
dos judeus?” era seu desejo de deixar livre a Jesus (At. 3:13) … quer
dizer, se o tivesse podido fazer sem precipitar-se no que ele considerava
um prejuízo pessoal.
10. Pois ele bem percebia que por inveja os principais
sacerdotes lho haviam entregado. 797
Pilatos entendia que não havia base objetiva nem causa válida que
justificasse a conspiração dos líderes judeus para condenar à morte a
Jesus. Sabia que aqueles homens eram dev9orados pela inveja. Para mais
detalhes a respeito da inveja, veja-se Tito 3:3, onde também há várias
ilustrações bíblicas desta conduta pecaminosa. A inveja é o desgosto que
aparece ao ver que outro tem o que não se deseja que tenha. Assim que,
por exemplo, os líderes invejavam a Jesus por Sua popularidade, pelo
número de Seus seguidores, por Sua capacidade para realizar milagres,
etc.
Parecia que Pilatos obteria o que desejava. Era óbvio que os
dirigentes não podiam pedir corretamente que soltassem um insurreto,
sentenciado, confesso e homicida, quando momentos antes tinham
acusado a Jesus de insurreto, e nem sequer o tinham podido provar. Mais
ainda, na realidade as acusações tinham sido refutadas. E quanto à
multidão, Pilatos “sabe” têm que votar!… Quando de repente, segundo o
relato de Mateus 27:19, produziu-se uma interrupção. Chega uma
mensagem da parte da esposa do governador, dizendo: “Não te envolvas
com esse justo; porque hoje, em sonho, muito sofri por seu respeito”.
Para detalhes sobre isto veja-se CNT sobre Mt. 27:20.

797
παραδεδώκεισαν, outra forma de mais-que-perfeito, esta derivada de παραδίδωμι Barrabás tinha
cometido homicídio e como resultado tinha sido preso, quer dizer, encarcerado e agora estava ainda
preso. Os principais sacerdotes tinham entregue Jesus (a Pilatos) por inveja. Todas estas ações
antecedentes formam o fundo para a. A sugestão de Pilatos de que o povo pedisse a liberdade de Jesus
(v. 9) e b. A demanda dos principais sacerdotes (v. 11) para que pedissem a liberdade de Barrabás.
Marcos (William Hendriksen) 825
Enquanto Pilatos ocupava-se da mensagem de sua esposa, os
principais sacerdotes se aproveitam da situação:
11. Mas estes incitaram a multidão no sentido de que lhes
soltasse, de preferência, Barrabás. 798
Fizeram eles uma recontagem de todos os crimes que Pilatos havia
previamente cometido com a nação judaica? Intimidaram os que no
princípio se sentiram inclinados a escolher a Jesus? Se o fizeram, não
teria sido a primeira vez; vejam-se Jo. 7; 13; 9:22; 19:38; nem a última;
vejam-se Jo. 20:19; At. 4:18.
O que em Marcos está implícito, em Mateus 27:21 está plenamente
manifestado: “De novo, perguntou-lhes o governador: Qual dos dois
quereis que eu vos solte? Responderam eles: Barrabás!”.
Marcos continua:
12. Mas Pilatos lhes perguntou: Que farei, 799 então, deste 800 a
quem chamais 801 o rei dos judeus?
Ao que parece, o governador não se dava conta do que os principais
sacerdotes tinham estado fazendo, estava totalmente convencido de que
o povo pediria a liberdade de Jesus. Quando, em lugar disso, pediram
que soltasse a Barrabás, Pilatos começou a desesperar-se. Não queria
sentenciar Jesus à morte. Entretanto, começava a ver cada vez mais claro
que aquele era o desejo da volúvel multidão. O profeta da Galileia foi
popular enquanto ainda curava os doentes, ressuscitava os mortos,
purificava os leprosos, e mantinha encantada a multidão mediante Seus

798
_νέσεισαν, aor. ind. at. 3ª. pes. pl. de _νασείω, verbo que se compõe de _νά, acima e σείω,
revolver, sacudir, agitar; um σεισμός é um terremoto; cf. sismógrafo. _πολύσ_ (depois de _να), aor.
subj. 3ª. pes. sing. de _πολύω, soltar; como nos vv. 6, 9, 15; em outros lugares: despedir, Mc. 6:36, 45;
8:3, 9; divorciar, Mc. 10:2–12.
799
Certos manuscritos importantes omitem θέλετε. Isto resulta no “Que, pois, farei com …?”. O
significado resultante é quase o mesmo. A respeito de θέλω sem _να veja-se acima sobre Mc. 15:9.
800
Para o modismo ποιε_ν com duplo acus. veja-se BAGD p. 688. Note-se ποιήσω, aor. subj. 1ª. pes.
sing. (delib.).
801
Embora _ν λέγετε também, é incerto, pode-se reter pelo fato de que então Pilatos carrega a
responsabilidade de chamar Jesus “o Rei dos judeus” sobre os próprios judeus. Por outro lado, bem
pôde o próprio Pilatos ter usado o termo de maneira sarcástica.
Marcos (William Hendriksen) 826
maravilhosos discursos. Quando entrou cavalgando em Jerusalém, foi
aplaudido. Mas agora que Se achava aparentemente impotente, e os
dirigentes judeus tinham usado Seus mais poderosos argumentos
persuadindo o povo para demandar Sua crucificação, a multidão Lhe
volta as costas. Quanto a Pilatos, ao perguntar “Que farei, então, deste a
quem chamais o rei dos judeus?”, sua própria e imediata resposta devia
ter sido “visto que é inocente mandarei sua imediata e definitiva
liberdade”. Na realidade, o juiz não devia ter feito a pergunta. Ele sabia a
resposta.
13. Eles, porém, clamavam: Crucifica-o! 802
O povo reagiu com ira diante da insinuação de Pilatos de que eles
consideravam Jesus seu rei. Não se nos deve escapar que ao pedir a
crucificação de Cristo, estavam começando a cumprir a predição que Ele
fez. Vejam-se Mt. 20:19; 26:2; Jo. 3:14; 12:32.
O contraste entre o júbilo do domingo anterior e as maldições da
sexta-feira santa, criam um problema. Com frequência se suscita a
pergunta, “Como foi possível que a multidão tivesse aclamado a Jesus no
domingo e escarnecesse dEle cinco dias depois?”. Costuma-se
responder: “Não se trata da mesma multidão. Os que gritavam hosanas
eram peregrinos galileus; os que gritavam ‘Crucifica-o!’ eram de
Jerusalém ou ao menos da Judeia”.
Embora nesta solução haja um elemento de fato (veja-se v. 8), não é
plenamente satisfatória. Uma leitura imparcial dos relatos da entrada
triunfal (Mt. 21:8–11; Mc. 11:7–10; Lc. 19:36–38; e Jo. 12:9–18) não
nos deixa a impressão de que todos aqueles entusiastas do domingo
fossem peregrinos galileus. Veja-se, por exemplo, Jo. 12:17. Embora
tenhamos em conta o uso retórico da hipérbole, teremos que estar de
acordo com a conclusão dos fariseus: “Eis aí vai o mundo após ele” (Jo.
12:19). Similarmente, seria difícil crer que na sexta-feira seguinte só os
802
Cf. 11:3, “enviá-lo-á de volta — ou devolverá — logo”. Tanto “de volta” como “outra vez” (πάλιν)
têm também sentido em Jo. 4:46; At. 11:10; Fp. 1:26; Gl 1:17. Para mais detalhes a respeito de πάλιν,
veja-se sobre Mc. 14:69, nota 780.
Marcos (William Hendriksen) 827
súditos de Pilatos gritassem “Crucifica-o!” Admitimos que muitos deles
o fariam. Mas excluir do Calvário a um grande número de pessoas que,
com o fim de participar da festa, tinha vindo de todas as partes, incluindo
Galileia, equivaleria a não fazer justiça às probabilidades. Assim como
havia mulheres da Galileia entre a multidão (Mc. 15:40, 41) também teve
que haver homens da Galileia. Com relação à variedade de visitantes, a
Páscoa devia parecer-se ao Pentecostes. Veja-se At. 2:5–11. O interesse
por ver o que sucedia no Calvário deve ter-se propagado. A curiosidade
não tem barreiras étnicas. E no que respeita à atitude do povo para com
Jesus, incluindo os de Jerusalém, durante os dias transcorridos entre a
entrada triunfal e na sexta-feira santa, somos informados que “a grande
multidão o ouvia com prazer” (Mc. 12:37). Portanto, parece que a única
conclusão lógica é que se tinha operado em muitos deles uma mudança
de atitude. 803
Como se explica isso? Parte da resposta é a volubilidade e
instabilidade do coração e da mente humana quando agem sem a graça
regeneradora. Outros fatores que merecem ser considerados são:
a. A pressão que os principais sacerdotes exerceram sobre a
multidão. Somos informados claramente: “Mas estes incitaram a
multidão no sentido de que lhes soltasse, de preferência, Barrabás”.
Veja-se Mc. 15:11; cf. Mt. 27:20. Era difícil resistir a tal pressão. Veja-
se Jo. 9:22; 12:42; cf. 20:19.
b. O fato de que finalmente Jesus não demonstrasse ser a classe de
Messias que o povo desejava e esperava.
c. Ignorância pecaminosa das Escrituras. O Antigo Testamento
descreve um quadro do futuro Messias com progressiva clareza: Gn.
3:15; 2Sm. 7:12, 13; Sl 72; 118:22, 23; Is. 7:14; 9:6; 11:1–10; 35:5, 6;
42:1–4; 53; 60:1–3; Jr. 23:6; 31:31–34; Mq. 4:1–5; 5:2; 7:18–20; Ag.
2:1–9; Zc. 3:8; 6:9–13; 9:9, 10; 13:1; Ml. 3:1–4, só para mencionar
algumas das muitas profecias messiânicas. Estas predições associam ao

803
Para esta mudança de atitude”, veja-se também V. Taylor, Op. cit., p. 581.
Marcos (William Hendriksen) 828
Messias com: paz, perdão, cura, justiça, sofrimento vicário e purificação
espiritual.
A lição é óbvia: Não descuidemos o estudo devocional e com
oração das Escrituras! E não deixemos de levar a sério as preciosas
verdades da Bíblia!
14. Por quê? 804 Que crime ele cometeu?”, perguntou Pilatos. [NVI]
É proveitoso contar o número de vezes que o governador
pronunciou as palavras, “Eu não acho nele crime algum”, ou algo
similar, como aqui. Além das passagens de Lucas e de João, já
mencionados, e a clara implicação da presente passagem, veja-se
também Mt. 27:23, 24. Mesmo quando se dê o valor que merecem as
passagens (duplicadas) paralelas, fica claro que Pilatos sublinha e
constantemente reitera a verdade de que em Jesus não há causa para um
processo. E por meio de Pilatos, foi o próprio Deus quem declarou a
completa inocência de Seu Filho, Sua perfeita justiça. Entretanto, breves
instantes depois, este mesmo Pilatos sucumbirá ao clamor persistente dos
judeus, e vai sentenciar a Jesus a morrer pela ignominiosa morte de cruz.
“Não há culpa nele … não há culpa nele … não há culpa nele … não há
culpa nele.… E o entregou para ser crucificado”. Assim diz o relato
sagrado. Mas como um Deus justo pôde permitir isto? Só existe uma
resposta. acha-se em Isaías 53:6, 8. “O Senhor carregou nele o pecado de
todos nós.… Foi cortado da terra dos viventes, e pela rebelião de meu
povo foi ferido”. Cf. Gl 3:13.
Em resposta à pergunta de Pilatos, o povo nem sequer disse, “Fez
isso” ou “fez aquilo”. Seguiram o caminho mais fácil: Mas eles
gritavam ainda mais: “Crucifica-o!” [NVI]. Vez após vez se ouve que
o povo grita estas terríveis palavras até que se convertem num monótono
estribilho, um canto sinistro, pavoroso: “Crucifica-o! … Crucifica-o!”. A

804
De modo nenhum γάρ significa sempre visto que ou porque. Também pode ser fortemente
confirmativo ou exclamativo: Sim, naturalmente! Certo! O que! Por que! (cf. Jo. 7:41; At. 8:31; 1Co.
9:10; 11:22; Gl 1:10; Fp. 1:18).
Marcos (William Hendriksen) 829
multidão converteu-se numa chusma desenfreada, numa turba que uiva
carregada de emoções.
Mateus (27:24, NVI) continua “Quando Pilatos percebeu que não
estava obtendo nenhum resultado, mas, ao contrário, estava se iniciando
um tumulto, mandou trazer água, lavou as mãos diante da multidão e
disse: “Estou inocente do sangue deste homem”. Marcos omite este fato
e continua com:
15. Pilatos, querendo contentar a multidão, soltou-lhe a
Barrabás e, depois de mandar açoitar a Jesus, entregou-o para ser
crucificado.
Como se mencionou previamente, o que inclinou a balança para que
afinal Pilatos decidisse ceder ao clamor da chusma foi o clamor terrífico
e diabólico: “Se soltas a este, não és amigo de César! Todo aquele que se
faz rei é contra César!” (Jo. 19:12). Foi este clamor o que provocou o
desmoronamento do governador. Em sua febril imaginação viu que
estava prestes a perder seu prestígio, posição, posses, liberdade, e talvez
inclusive sua vida.
Pilatos compreendeu imediatamente que a irada manifestação do
povo implicava muito mais do que o que expressava. Implicava:
“Apresentaremos uma queixa contra você. Diremos ao imperador que
você perdoou uma alta traição contra o governo; que deixou em
liberdade um homem que foi culpado de rebelião contínua, e que lhe
permitiu tomar o título de rei. Acusaremos você de ‘ser brando com os
rebeldes’. Então, Onde você irá parar?”
Marcos faz um resumo dizendo simplesmente que Pilatos, desejoso
de agradar 805 à multidão, soltou a Barrabás. Continua literalmente, “E
tendo flagelado a Jesus, entregou-o para ser crucificado”. “Tendo
flagelado” significa “tendo-o feito flagelar”. Cf. Mc. 6:16: “o homem
que decapitei”.

805
Note-se τ_ _καν_ν ποι_σαι. referente a isto veja-se mais acima sobre Mc. 10:46, nota 509. Cf. o
latim: “Pilatus igitur volens turbae satisfacere (de satis facere) …”.
Marcos (William Hendriksen) 830
806
A flagelação geralmente precedia à crucificação, embora,
segundo João 19:4–6 (veja-se CNT sobre essa passagem) indica que no
caso presente não era essa a intenção imediata de Pilatos. Vê-se claro por
essa passagem que Marcos está fazendo um resumo. Nenhum dos
escritores dos Evangelhos pretende dar um relato completo. O flagelo
romano consistia de uma curta manga de madeira à qual se atavam várias
correias em cujos extremos se colocavam partes de chumbo, bronze, ou
osso afiado. Os açoites eram descarregados especialmente nas costas
despidas e inclinadas da vítima. Geralmente se utilizavam dois homens
para administrar este castigo, açoitava-se a vítima por um lado, o
segundo pelo outro. As feridas que se produziam na carne chegavam a
tal extremo que às vezes ficavam expostas veias e artérias profundas, e
às vezes vísceras e órgãos internos. Esta pena, da qual os cidadãos
romanos estavam isentos (cf. At. 16:37), com frequência provocava a
morte.
Podemos imaginar a Jesus depois dos açoites, coberto de terríveis
feridas e lacerações, manchas negras e vergões. Não nos surpreende que
obrigassem a Simão de Cirene a levar a cruz depois de Jesus tê-la levado
um curto trecho (15:21; cf. Mt. 27:32; Lc. 23:26; Jo. 19:16, 17). Os
açoites eram uma tortura espantosa. Entretanto, devemos ter em mente
que o sofrimento do Varão de Dores não foi só intenso, mas também
vicário:
“Mas ele foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas
nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas
suas pisaduras fomos sarados” (Is. 53:5; 1Pe. 2:24).
Para o crente é um consolo saber que por trás de Pilatos estava o
próprio Deus. Naturalmente que a responsabilidade deste ato pecaminoso
recaía sobre Pilatos e sobre os que o pressionaram para que Jesus fosse

806
O particípio aor. φραγελλώσας (de φραγελλόω) é outro recordatório do fato que Marcos está
escrevendo aos romanos; cf. flagello. A palavra grega é provavelmente então uma palavra tirada do
Latim.
Marcos (William Hendriksen) 831
807
entregue à crucificação. Mas os atos de todos aqueles pecadores
estavam incluídos no eterno decreto de Deus que abrangia tudo: “sendo
este entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus, vós o
matastes, crucificando-o por mãos de iníquos” (At. 2:23). “Agora, pois,
nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus” (Rm. 8:1).
Pilatos procurou vez após vez livrar-se de Jesus; mas descobriu que
era totalmente impossível. Viu-se forçado a tomar uma decisão, mas
tomou a decisão errônea.

A impossibilidade de evadir-se de Jesus Ele o expressa mesmo com


as seguintes palavras:
a. (Negativamente) “Quem não é por mim é contra mim” (Mt.
12:30).
b. (Positivamente) “Pois quem não é contra nós é por nós” (Mr.
9:40).

No grande dia do juízo só haverá dois grupos, não três. Não haverá
um lugar intermediário. Veja-se Mt. 25:31–46. O momento decisivo para
escolher é AGORA: “Hoje, se ouvirdes a sua voz” (Sl 95:7; Hb. 3:7, 15).

807
_να σταυρωθ_, para que fosse crucificado.
Marcos (William Hendriksen) 832
Mc. 15:16–20 - A zombaria
Cf. Mt. 27:27–31; Jo. 19:2, 3

Esta seção não tem paralelo em Lucas. Quanto ao grau de que há


entre alguns pontos concretos que aparecem em Mateus, Marcos, e João,
veja-se CNT sobre Mateus, nas colunas das páginas 1005, 1006.
16. Então, os soldados o levaram para dentro do palácio, 808
que 809 é o pretório, 810 e reuniram todo o destacamento.
Nótense las palabras, “los soldados le llevaron”. Desde el jueves
por la noche hasta el viernes, más o menos a las 9 de la mañana (véase
Mr. 15:25), Jesús se dejó “conducir”, “llevar”, “enviar”, “traer”, etc. Esto
significa que permitió que le pasaran de un individuo o grupo a otro,
como un cautivo.
Para apreciar melhor o que se quer dizer em Isaías 53:7: “Como
cordeiro foi levado a matadouro” estude-a seguinte tábua (não
necessariamente completa):

808
Muito se discutiu sobre a palavra grega α_λή. Devido ao contexto em cada caso individual, os
seguintes significados são provavelmente corretos:
a. redil: Jo. 10:1, 16. O contexto faz referência a pastores e suas ovelhas. O significado “redil” é,
portanto, natural.
b. átrio, pátio: Mt. 26:58, 69; Mc. 14:54, 66; Lc. 22:55; Jo. 18:15. Em todos estes casos apresenta-se a
Pedro com o guarda do templo e os servos do palácio, esquentando-se junto ao fogo num lugar
“aberto” ou “sem cobertura”, lugar que está “mais baixo” que o resto da casa ou palácio. Em
consequência, o significado natural é “átrio” ou “pátio”. Ap. 11:1, 2 faz diferença entre o templo
interior e “o pátio exterior”.
c. casa, palácio: Mt. 26:3, Mc. 15:16; Lc. 11:21. O argumento em favor de “casa” ou “palácio” é
como segue: um pátio, com os servos passando de um lado para outro, não se acomodaria ao de
Mateus 26:3. O sinônimo “pretório” indica que em Marcos 15:16 refere-se a algo mais que a um pátio.
E o dono de uma casa ou palácio (Lc. 11:21) não asseguraria unicamente seu pátio; além disso, suas
“posses” não estariam confinadas à área de seu pátio.
809
O pronome relativo neutro _ emprega-se em explicações de palavras (com frequência palavras
estrangeiras, mas nem sempre), vejam-se, além de nossa passagem, também Mc. 3:17; 5:41; 7:11, 34;
12:42; 15:22, 34; e em outros livros do Novo Testamento: Mt. 1:23; 27:33; Jo. 1:38, 41ss; 19:17; At.
4:36; Ef. 5:5; Cl. 1:24; 3:14; Hb. 7:2.
810
Literalmente, “pretório”, outra palavra de origem latina.
Marcos (William Hendriksen) 833
Jesus foi conduzido

do Getsêmani Mateus Marcos Lucas João

1 a Anás 18:13
2 a Caifás 26:57 14:53 22:54 18:24
3 a Pilatos 27:2 15:1 23:1 18:28
4 a Herodes 23:7
5 a Pilatos 23:11
6 ao interior do 27:27 15:16 18:33
pretório
7 fora diante da 19:5
multidão
8 ao interior do 19:9
pretório
9 fora diante da 19:13
multidão
10 ao Calvário 27:31 15:20 23:26 19:17

Os soldados que estavam disponíveis se reuniram a seguir em torno


de Jesus para divertir-se às custas dEle. Embora diz-se “toda uma tropa”
(literalmente “toda a coorte”) não significa necessariamente a coorte
completa de seiscentos homens. Desejavam satisfazer seus instintos
sádicos. Queriam ter alguma diversão com aquele “Rei dos judeus”.
Aqueles soldados eram romanos no sentido de estar a serviço do
imperador, mas provavelmente tinham sido recrutados da província da
Síria; e no caso de ser assim, sabiam falar em aramaico, o mesmo idioma
que falavam os judeus, e estavam inteirados dos costumes hebraicas.
Provavelmente consideravam que Jesus era um falso pretendente ao
trono real, e que não merecia coisa melhor que a zombaria.
Marcos (William Hendriksen) 834
Dizer que foi Pilatos quem ordenou esta zombaria (como faz
Lenski) não tem base. Em nenhum dos relatos pode-se achar apoio para
esta interpretação. O que Pilatos ordenou foram os açoites. Embora seja
verdade que ele podia e devia ter impedido o escárnio, e por isso em
parte foi responsável por ele, não temos direito de dizer que foi ele quem
o ordenou.
17–19. Vestiram-no de púrpura, e puseram-lhe na cabeça uma coroa
de espinhos, que haviam tecido; e começaram a saudá-lo: Salve, Rei dos
Judeus! Davam-lhe com uma cana na cabeça, cuspiam nele e, ajoelhando-
se, prestaram-lhe homenagem [TB].
Aquela zombaria podia comparar-se à que já tinha sofrido Jesus na
casa de Caifás, só umas poucas horas antes. Veja-se Mc. 14:65; cf. Mt.
26:67; Lc. 22:63–65.
Em resumo, o quadro completo é o seguinte: Os soldados, depois de
ter despojado a Jesus de Suas vestes exteriores, lançam-lhe em cima um
“manto real”. Tecem uma coroa de espinhos e a colocam na cabeça.
Além disso, visto que um rei deve empunhar um cetro, colocam-lhe uma
cana na mão direita. Este ponto é mencionado por Mateus e está
implícito em Marcos. Então, um a um, ajoelham-se diante dele, em
adoração fingida, dizendo: “Salve, rei dos judeus”. Cospem nEle lhe dão
golpes na cabeça com seu próprio “cetro”.

Notem-se os distintos pontos mencionados por Marcos:


a. Vestem-no de púrpura.
Conforme indica Mateus, primeiro o despiram. Isto já o tinham
feito antes, quando foi açoitado (Mc. 15:15). Quão terrível deve ter sido
a dor quando voltaram a Lhe colocar o manto sobre seu corpo ferido
pelos açoites! E agora o arrancam novamente e Lhe colocam o que
provavelmente era um descartado e desbotado manto de “púrpura”
(segundo Jo. 19:2b) representando a cor real. Mateus emprega o
sinônimo “escarlate”. Pelo fato de que o manto devia ser muito velho,
sua cor não se podia apreciar claramente e, portanto, podia parecer
Marcos (William Hendriksen) 835
“púrpura” ou “escarlate”. Ao lançar este manto sobre o corpo ulcerado
do Salvador, quanto lhe deve ter torturado novamente!

b. Coroaram-no com uma coroa de espinhos.


Em algum lugar perto do pretório os soldados encontraram uns
ramos espinhosos. Não sabemos se a planta de onde tiraram estes ramos
era a chamada Spina Christi ou o Arbusto Palinrus, conforme pensam
alguns. Os botânicos nos dizem que há poucos países do tamanho da
Palestina que possuam tantas variedades de plantas espinhosas. A
identidade da espécie é de pouca importância. De muito mais significado
é que em Gênesis 3:18 mencionam-se os espinhos e os cardos com
relação à queda de Adão. Aqui, em Marcos 15:17b e seus paralelos,
Jesus é descrito como carregando a maldição que pesa sobre a natureza,
com o fim de libertar a natureza e nos libertar dessa maldição. Com
satânica crueldade e depois de fazer “uma coroa” com estes ramos
espinhosos, os soldados colocam-na bem apertada na cabeça de Cristo.
Não representava uma grinalda imperial mas uma coroa adequada para
“um rei dos judeus”. Os soldados queriam divertir-se e mofar-se de
Jesus. Além disso desejavam torturá-Lo. A coroa de espinhos cumpria
ambos os desejos. Por seu rosto, pescoço e corpo começaram a correr
correntes de sangue. Davam-se conta aqueles vexadores de que aquilo o
estavam fazendo ao “Rei dos reis e Senhor dos senhores”?

c. Adoram-no em atitude de escárnio.


“Salve, rei dos judeus”, diria um soldado, simulando de joelhos que
Lhe rendia homenagem. Logo cabe a outro o turno, e logo a outro, até
que todos os soldados interpretam sua parte.

d. Espancam-no.
Antes de que cada soldado se retirasse da presença de Jesus, tirava-
lhe a cana da mão e Lhe espancava a cabeça com ela, como dizendo,
“Que classe de rei és, se te podem espancar a cabeça com teu próprio
Marcos (William Hendriksen) 836
cetro!”. E à medida que os ímpios espancam a Jesus, os espinhos se
introduzem mais em Sua carne.

e. Cospem nEle.
Descem a um nível ainda mais baixo que as bestas. Alegremente —
porque estavam divertindo-se — alternadamente cada soldado se
levantava de seus joelhos e cuspia no rosto do Unigênito e Amado Filho
de Deus!
Ao estudar esta passagem sobressaem algumas lições práticas:
a. Quantas trevas povoam a mente do homem! Aqueles homens
pensavam que tudo isto o faziam a alguém que falsamente ambicionava
um trono terrestre. Não se davam conta que torturavam o legítimo dono
do universo, o “Rei dos reis e Senhor dos senhores”.
b. Quão depravado é o coração humano! Aqui se desdobra uma
crueldade infernal e triunfa um sadismo indômito. E que triunfo mais
vazio! Um triunfo que leva a alma do ator ao mais alto grau de miséria
(Is. 48:22; 57:21; contraste-se Is. 26:3; Sl 119:165).
c. Quão confiável é a palavra de Deus! O que se havia predito, aqui
se cumpre (Sl 22:6, 7; Is. 53:3, 5, 7, 8, 10; Mc. 10:34). Este mesmo fato
deve ter comunicado consolo ao coração e mente de Cristo.
d. Quão indestrutível o propósito de Cristo! Suportou tudo sem
queixa alguma. Ele o fez porque compreendia que realizava a obra que o
Pai lhe tinha dado para fazer (Jo. 17:4). Por amor de nós fez-se pobre
para que nós com Sua pobreza fôssemos enriquecidos (veja-se 2Co. 8:9).
20. Depois de o terem escarnecido, despiram-lhe a púrpura e
puseram-lhe as vestes. Então o levaram para fora, a fim de o
crucificar. 811
811
Mencionemos alguns pontos sobre vocabulário e gramática nesta passagem: _νέπαιξαν, aor. ind. at.
3ª. pes. pl. de _μπαίζω, divertir-se com, zombar-se. Cf. Mt. 27:31. Note-se o aoristo onde o português
usa o mais-que-perfeito, Robertson, p. 840; E. D. Burton, Op. cit., pp. 22, 23. Os verbos utilizados
para referir-se a vestir-se ou despir-se, geralmente (nem sempre) levam dois acusativos: um da pessoa,
outro do objeto, Robertson, p. 483. Note-se também o presente histórico _ξάγουσι aqui no v. 20,
depois dos imperfeitos do v. 19.
Marcos (William Hendriksen) 837
Por fim, todos os soldados tiveram seu turno. Segundo João 19:4ss.,
Pilatos aparece em cena outra vez. Leva Jesus diante da multidão. O
Senhor com dor leva ainda a coroa de espinhos e o manto de púrpura.
Um patético espetáculo se expõe à vista do público: um Jesus banhado
em sangue, coberto de machucaduras. “Eis aqui o homem!”, diz o
governante, com o fim de despertar a compaixão do povo e testificar
mais uma vez que ele, Pilatos, não acha crime nEle. Mas este esforço do
juiz fracassa tão tragicamente como o fez nos casos anteriores. Quando
os principais sacerdotes e os oficiais veem a Jesus, gritam: “Crucifica-o!
… Crucifica-o!”. E a seguir usam o argumento final, aquele que até este
instante tinham guardado de reserva, ou seja, “Nós temos uma lei, e
segundo nossa lei deve morrer, porque se fez a si mesmo Filho de Deus”.
Depois de voltar a examinar a Jesus e tratando até o último instante de
deixá-Lo em liberdade, Pilatos finalmente se rende aos desejos dos
principais sacerdotes e a multidão. Ele o faz pela razão indicada
previamente (e veja-se também Jo. 19:12).
A diversão dos soldados tinha concluído um pouco antes, e a seguir
tiram-lhe a vestimenta real de sua vítima e lhe põem Sua própria roupa
outra vez. Então O levam para ser crucificado.

Mc. 15:21–32 - O Calvário: A crucificação de Jesus


Cf. Mt. 27:32–44; Lc. 23:26–43; Jo. 19:17–27

A história da crucificação de Cristo é relatada nos quatro


Evangelhos de forma bastante detalhada. A narração de Lucas é quase o
dobro que a de Marcos. a de João é mais extensa que a de Mateus, e no
mesmo grau é mais curta que a de Lucas. Se atribuirmos o número 10
como base para Mateus, a Marcos corresponderia 9, a Lucas 17, e a João
13.
Omitindo detalhes menores, o conteúdo dos quatro relatos poderia
resumir-se e comparar-se brevemente como segue:
Marcos (William Hendriksen) 838
A semelhança entre Mateus (27:32–44) e Marcos (15:21–32) é
muito estreita. Ambos relatam que Simão de Cirene foi obrigado a levar
a cruz de Cristo. Já no Gólgota, é oferecido a Jesus uma bebida
(provavelmente para amortecer a sensação de dor) que Ele recusou.
Depois de ser crucificado, os soldados repartiram entre si suas vestes.
Sobre a Sua cabeça colocaram a causa contra Ele. É descrito como “o rei
dos judeus”. Junto com Jesus foram crucificados dois ladrões, um a cada
lado. Os que passavam blasfemavam e O injuriavam dizendo-Lhe que
descesse da cruz. Os principais sacerdotes, com os escribas, escarneciam
dEle. “A outros salvou”, diziam, “a si mesmo não pode salvar-se.” Os
ladrões que crucificaram com Ele, injuriavam-no.
As principais variações entre o relato de Mateus e o de Marcos, à
parte da forma da inscrição, que é algo diferente em cada um dos quatro
Evangelhos, são as seguintes:
Mateus diz que Simão de Cirene foi obrigado a prestar seu serviço
quando a processão ia saindo da cidade. Quando Jesus foi crucificado,
alguns soldados sentaram-se para fazer guarda junto a Ele. Às palavras
de zombaria ditas pelos principais sacerdotes, etc., Mateus acrescenta as
que se acham em Mateus 27:43, “Confiou em Deus …”.
Marcos informa a seus leitores (romanos) que “Simão cireneu”
vinha “do campo” (assim também Lucas) quando os soldados lhe
forçaram a levar a cruz de Cristo, e que este Simão era pai de Alexandre
e Rufo (provavelmente de Roma; veja-se Rm. 16:13). Também diz que a
hora em que foi crucificado era hora terceira”.
Quanto a Lucas, os detalhes principais de seu relato (Lc. 23:26–43)
são os seguintes: Jesus fala com as mulheres de Jerusalém que
choravam; a história do criminoso impenitente e a do penitente; e (vv.
34, 43) as duas primeiras palavras da cruz. Este evangelista acrescenta
que os soldados se uniram na zombaria e ofereceram vinagre a Cristo.
Segundo João (19:17–27), no começo Jesus levou a cruz. Na
realidade João nada diz a respeito de Simão de Cirene. O “título” que foi
fixado à cruz estava escrito em aramaico, latim, e grego. Muitos dos
Marcos (William Hendriksen) 839
judeus o liam porque o lugar onde Jesus foi crucificado estava perto da
cidade. João dá a conhecer a objeção dos principais sacerdotes à redação
do título e também a resposta de Pilatos. Este evangelista entra em
alguns detalhes ao descrever a forma em que as vestes de Jesus,
incluindo Sua túnica sem costura, foram repartidas. Ele conservou para
nós a terceira palavra da cruz (v. 27).

Embora na história da Paixão, o centro de interesse é o que disse ou


sofreu o próprio Jesus, nossa atenção se fixa também agora nas cinco
pessoas ou grupos secundários:
a. Simão Cireneu presta um serviço a Jesus (v. 21).
b. Quando chegaram ao Gólgota, os legionários ou soldados
ofereceram a Jesus vinho misturado com um narcótico, coisa que Ele
rejeitou. Depois de crucificá-Lo entre dois ladrões e fixar um letreiro
sobre Sua cabeça, os soldados lançaram sortes para repartir entre si Suas
vestes (vv. 22–27).
c. Os que passavam O injuriam (vv. 29–30).
d. Os escribas (e seus companheiros) escarnecem dEle (vv. 31,
32a).
e. Os ladrões O denigrem (v. 32b).
Com exceção do versículo 21, toda a seção (Mc. 15:21–32) relata o
que sucedeu a Jesus das 9 da manhã (cf. 15:25) até o meio-dia (cf. 15:33)
da sexta-feira santa.

Simão Cireneu
Na realidade, o que se narra no versículo 21 também podia ter sido
incluído no seguinte cabeçalho, porque Simão não agiu por decisão
própria. Os soldados obrigaram-no a fazer o que fez. Mas pelo fato de
que tanto o Novo Testamento como a tradição primitiva põem muita
ênfase nele e (provavelmente) em sua família, damos ao versículo 21 um
cabeçalho à parte.
Marcos (William Hendriksen) 840
812
21. E obrigaram a Simão Cireneu, que passava, vindo do
campo, pai de Alexandre e de Rufo, a carregar-lhe a cruz.
Segundo o costume e de acordo com a lei, a execução foi levada a
cabo fora da cidade (Êx. 29:14; Lv. 4:12, 21; 9:11; 16:27; Nm. 15:35;
19:3; cf. Jo. 19:20; Hb. 13:12, 13). Os condenados à crucificação deviam
levar sua própria cruz. Os comentaristas estão divididos sobre o
problema de se isto se refere só ao madeiro transversal (pois supõe-se
que o madeiro vertical já estava colocado em seu lugar no Gólgota) ou à
cruz completa. Visto que nada há no texto que sugira outra coisa, supõe-
se aqui que a última proposição — toda a cruz — é a correta.
Levando em conta que o título da acusação estava escrito sobre a
cabeça de Cristo, é quase seguro que os pintores e escultores acertam em
sua preferência pela cruz tipo adaga ou cruz latina. Quanto às razões de
por que a morte na cruz deve ser considerada uma maldição, veja-se
CNT sobre João 19:17, 18.
Jesus também levou Sua própria cruz (Jo. 19:16, 17), mas não por
muito tempo. Seu total esgotamento físico O impossibilitou levá-la
muito além. Considere-se o que já tinha suportado durante as últimas
quinze horas: o ambiente tenso no Cenáculo, a traição de Judas, a agonia
no Getsêmani, a deserção de Seus discípulos, a tortura de um juízo
totalmente hipócrita diante do Sinédrio, a zombaria no palácio de Caifás,
a negação de Seu discípulo mais proeminente, o juízo diante de um juiz
injusto, a terrível prova de ser açoitado, a declaração da sentença de
morte contra Ele e o prolongado mau trato dos soldados no pretório!
Humanamente falando, o surpreendente é que fosse capaz de carregar a
cruz embora fosse por um pouco.

812
_γγαρεύουσι, pres. ind. 3ª. pes. pl. de _γγαρεύω, que aparece também na passagem paralela de Mt.
27:32 e em Mt. 5:41. O _γγαρος foi originalmente um mensageiro ou correio persa. A ele tinha sido
dada autoridade para exigir serviço de homens, cavalos, etc. Esta é, portanto, uma palavra persa,
palavra que pertence a seu serviço postal. Os persas talvez a derivaram dos babilônios. Não é estranho
que o significado da palavra se ampliasse gradualmente, de modo que já não significava só exigir um
serviço para acelerar o correio, mas também se referia a forçar alguém a prestar qualquer tipo de
serviço. Veja-se CNT sobre Mt. 5:38–42.
Marcos (William Hendriksen) 841
Quando Jesus caiu sob Sua carga, os legionários, exercendo seu
direito de “requisição” ou de “fazer demandas” a pessoas, obrigaram a
Simão, um cireneu ou homem de Cirene, a levar a cruz de Cristo o resto
do trajeto. Cirene era uma região situada sobre uma meseta a dezesseis
quilômetros do mediterrâneo no que agora é Líbia, a oeste do Egito. A
teoria de que aquele Simão possivelmente não era judeu, porque seus
filhos tinham nomes gregos (v. 21), não tem valor, porque muitos judeus
seguiam este costume. Além disso, em Cirene havia uma colônia grande
de judeus (At. 2:10; 6:9; 11:20; 13:1). Segundo outra teoria, aquele
homem devia ser um agricultor porque naquela sexta-feira pela manhã,
vinha “do campo”. Mas isso tampouco tem base. Até hoje em dia muitas
pessoas que não são agricultores têm negócios ou relações sociais no
campo, e alguns inclusive vivem ali!
A seguinte hipótese, embora não seja totalmente segura, é mais
provável. Simão era judeu e tinha ido a Jerusalém para assistir a uma das
grandes festas (neste caso a Páscoa), segundo o costume de muitos
judeus, incluindo os de Cirene (At. 2:10). Inclusive havia uma sinagoga
dos cireneus em Jerusalém (At. 6:9).
Agora, naquela sexta-feira concreta, ao voltar para a cidade depois
de estar no campo, os soldados que conduzem Jesus ao Calvário obrigam
a Simão a prestar sua ajuda, talvez (mas isto não é seguro) seguindo a
Via Dolorosa até sair por uma das portas da cidade. Assim que, —
resistindo a princípio? — Simão leva a cruz de Cristo, chega ao Calvário
e é testemunha do que ali sucede. A conduta de Jesus e Suas palavras da
cruz deixam tal impressão em Simão que chega a tornar-se cristão.
Posteriormente, ele e sua família foram viver a Roma. Pôde ter estado
vivendo ali antes, mas em todo caso era cireneu de nascimento. (Entre os
primeiros cristãos havia muitos cireneus, At. 11:19; 13:1.)
Marcos, que escreve para os romanos, menciona a Simão como “pai
de Alexandre e de Rufo” como se dissesse, “são pessoas que vós, em
Roma, conhecemos bem”. Paulo, em sua Carta aos Romanos (16:13),
escreve: “Saudai Rufo, eleito no Senhor, e igualmente a sua mãe, que
Marcos (William Hendriksen) 842
também tem sido mãe para mim”. Evidentemente, a mãe de Rufo —
portanto, a esposa de Simão — tinha atendido a Paulo de uma forma
maternal.
Se esta reconstrução for correta, o serviço que Simão prestou,
embora a princípio “obrigado”, chegou a ser uma verdadeira bênção para
ele mesmo, para sua família e para muitos outros.

Os legionários
22. E levaram Jesus para o Gólgota, que quer dizer 813 Lugar da
Caveira.
O apelativo Gólgota é basicamente aramaico. É uma transliteração
grega do aramaico golgoltha; cf. o hebraico golgoleth. Significa caveira.
A palavra grega para caveira é kranion (cf. crânio). Na Vulgata
(tradução latina da Bíblia por Jerônimo) kranion foi traduzido por
calvaria; cf. “Calvário”.
Por que se deu a este lugar o nome (ou de uma) Caveira? Talvez
porque tinha a aparência de uma caveira? Porque acharam ali alguma
caveira? Onde estava exatamente o Gólgota? É possível identificar
exatamente seu lugar agora? Sobre tudo isto veja-se CNT sobre João
19:17, 18.
A procissão chegou ao “Lugar da Caveira”. Embora hoje em dia
seja quase impossível assinalar o lugar preciso onde Jesus foi
crucificado. A Igreja do Santo Sepulcro só tem a tradição a seu favor.
Entretanto, não é muito o que se pode tirar disso, porque “a tradição” é
um pouco tardia (século IV). Dentro do grande espaço que cobre esta
igreja, há lugar para o sítio da cruz e também para a tumba onde José de
Arimateia pôs o corpo de Jesus. O lugar da execução e a tumba estavam

813
_ _στιν μεθερμηνευόμενον. Para _ em tal relação, veja-se mais acima sobre Mc. 15:16, nota 809. O
verbo do qual o part. pres. pas. se deriva é μεθερμηνεύω, que significa: traduzir, interpretar. A frase
inteira pode-se entender como sendo “traduzido é”, ou simplesmente “que significa”. A hermenêutica
é a arte da interpretação. Vejam-se também Mt. 1:23; Mc. 5:41; 15:34; At. 4:36; e cf. Jo. 1:38, 42; At.
13:8. Para mais detalhes a respeito de este verbo, veja-se no CNT sobre João, p. 109.
Marcos (William Hendriksen) 843
muito perto um do outro (Jo. 19:41, 42). “O Lugar da Caveira” estava
“fora da porta” que existia naqueles tempos (Mt. 27:32; Hb. 13:12). 814
23. Deram-lhe 815 a beber vinho com mirra; 816 ele, porém, não
tomou.
Pelo relato de Mateus sabe-se que o vinho que os soldados tentaram
dar a Jesus estava misturado com algo amargo. Marcos esclarece que a
substância amarga era mirra. Ofereceram a Jesus este vinho misturado
com mirra. Provou-o (Mt. 27:34) e logo o rejeitou. Foram as mulheres
compassivas de Jerusalém (Lc. 23:27) as que prepararam esta bebida
para mitigar a dor de seus sofrimentos? Seja como for, Jesus o rejeitou
provavelmente pelo desejo de ter sua mente clara quando falava da cruz
e porque queria suportar plenamente a dor que Lhe estava reservada,
para ser o Substituto perfeito de Seu povo.
24a. Então, o crucificaram …
Usando com viveza o tempo presente, Marcos simplesmente
escreve: “Então, o crucificam”. Não obstante, em nosso idioma é
totalmente correto pôr o passado em vez deste presente histórico. Note-
se o reduzido número de palavras — no original também somente três “E
o crucificaram” — que se usam para indicar este tremendo e
significativo evento! Esta maravilhosa moderação pode-se comparar com
a forma em que a Escritura relata a história da criação de milhões e
milhões de estrelas: “fez também as estrelas” (Gn. 1:16b).
O sujeito do verbo na terceira pessoa plural, “crucificaram” são os
soldados, o que se vê claro pelo versículo 16. O modo de execução a que
aqui se faz referência, existia em muitas nações, incluindo o Império
Romano. Geralmente (nem sempre!) Roma reservava esta forma de
castigo para os escravos e para os sentenciados dos crimes mais graves.
814
Para “Gordon’s Calvary”, veja-se G. A. Turner, Historical Geography of the Holy Land (Grand
Rapids, 1973), p. 336. São excelentes também as observações de H. Mulder, Spoorzoeker, p. 157.
Quanto à localização da Igreja do Santo Sepulcro, veja-se L. H. Grollenberg, Op. cit., mapa 33, p.
115.
815
_δίδουν, impf. conativo: ofereceram, trataram de lhe dar.
816
_σμυρνισμένον, part. pf. pas. acus. sing. masc. de σμυρνίζω.
Marcos (William Hendriksen) 844
Tem-se dito corretamente que a pessoa que era crucificada “morria
mil mortes”. Cravaram nela grandes pregos nas mãos e nos pés (Jo.
20:25; cf. Lc. 24:40). Entre os horrores que sofriam suspenso ali (com os
pés apoiados num pequeno suporte de madeira, não muito elevado sobre
o solo) estão os seguintes: forte inflamação, inchaço das feridas
produzidas pelos pregos, insuportável dor dos tendões quebrados,
desesperado desconforto pela posição estirada do corpo, palpitante dor
de cabeça e sede ardente (Jo. 19:28).
Entretanto, no caso de Jesus, não se deve fazer insistência na tortura
física que teve que suportar. Tem-se dito que só os que sofrem as
torturas do inferno conhecem o que Jesus sofreu ao morrer na cruz. Em
certo sentido isto é verdade, porque eles também sofrem a morte eterna.
Mas poderia acrescentar-se que eles jamais estiveram no céu. Pelo
contrário, o Filho de Deus desceu das regiões de infinito deleite, da
comunhão mais estreita imaginável com o Pai (Jo. 1:1; 17:5) às abismais
profundidades do inferno. Sobre a cruz exclamou, “Deus meu, Deus
meu, por que me abandonaste?” (Mc. 15:34).
24b. E repartiram entre si as vestes dele, lançando-lhes sorte,
para ver o que levaria cada um.
Como era costume, depois de O crucificar os legionários repartiram
Suas vestes, lançando sortes. Com toda probabilidade, usando uns dados,
os quatro soldados repartiram entre si as quatro peças — algo para cobrir
a cabeça, as sandálias, o cinturão e a túnica exterior (Jo. 19:23). A túnica
sem costura, tecida de uma só peça de um extremo ao outro, ficou
incluída também no sorteio, de acordo com a profecia do Salmo 22:18
(Septuaginta, Salmo 21:19), que com segurança Marcos tem em mente,
embora a fórmula do cumprimento não se ache em Marcos senão em
João 19:23, 24. Veja-se CNT sobre essa passagem para mais detalhes.
Note-se a indiferença total dos soldados para com Cristo na cruz.
Sem dúvida deveriam ter prestado mais atenção, a sua atitude, a suas
palavras, etc. Ao menos o centurião foi profundamente impactado por
estas coisas e outras circunstâncias (Mc. 15:39). E conforme nos informa
Marcos (William Hendriksen) 845
Mateus, inclusive os soldados que estavam com o centurião se sentiram
de algum modo igualmente afetados (27:54), embora este efeito não se
tenha produzido imediatamente.
No mesmo momento em que os soldados lançavam sortes com seus
dados, o Cordeiro de Deus estava tirando o pecado do mundo (Jo. 1:29).
Entretanto, é justo acrescentar que as palavras de Lc. 23:34 (“não sabem
o que fazem”) eram-lhes aplicáveis em grau muito mais alto que hoje em
dia a nós, depois de tantos anos em que a luz do evangelho esteve sendo
difundida.
Pobres, pobres soldados! Quanto levaram do Calvário? Uns poucos
objetos de roupa! Não houve corações compungidos, nem renovadas
visões, nem vidas mudadas, nem Salvador? Até hoje, quanto — ou quão
pouco — leva a pessoa consigo para casa depois de um culto, ou de
alguma classe bíblica, ou do canto dos hinos, ou de uma reunião de
avivamento? Cada um deve responder a esta pergunta por si mesmo. Não
é verdade que a parábola do Semeador pode ser aplicada aqui? Veja-se
mais acima sobre Mc. 4:1–20. E não esqueçamos Lucas 12:48.
25. Era a hora terceira 817 quando o crucificaram.
Muito tem sido escrito com relação a este breve dado de tempo. Os
críticos da Bíblia citam esta passagem como prova positiva de que a
Escritura contém erros e contradições. Não nos diz João 19:14 que
Pilatos sentenciou Jesus à morte quando era como a sexta hora? É
evidente que Jesus teve que ser sentenciado antes de ser crucificado.
Entretanto, segundo João (dizem os críticos), a proclamação da sentença
foi a meio-dia (a sexta hora).
Vimos, entretanto, que em outras passagens, o escritor do quarto
Evangelho com toda probabilidade usou a computação de tempo do dia
civil romano. Veja-se CNT sobre Jo. 1:39; 4:6; 4:52. Se for assim ali, por
que não aqui? João afirma que Jesus foi sentenciado por volta das seis
da manhã, e Marcos, que foi cravado na cruz às nove da manhã. Agora,

817
Ou: às 9 a.m.
Marcos (William Hendriksen) 846
não é possível afirmar que estas duas narrações formem uma contradição
insolúvel. Devemos ter em mente que João não diz às seis e sim como às
seis. Suponhamos que realmente eram as seis e meia. Reconhecemos que
mesmo assim há problema, mas o problema não é grande. Para nós é
difícil entender como o juízo diante de Pilatos (na realidade o juízo
diante de Pilatos — Herodes — Pilatos) foi tão rápido, e como todas as
coisas transcorreram com tanta rapidez. Por outro lado, não parece
provável que o Sinédrio fez tudo que esteve em suas mãos para acelerar
a decisão de Pilatos? Não é verdade que este augusto organismo tinha
estado apressando o caso desde o momento em que Jesus foi detido? A
reunião matinal do Sinédrio pôde haver-se realizado muito cedo
naturalmente! Pôde ter durado talvez só alguns minutos. A decisão real
já se tomou muito tempo antes.
Uma vez que Pilatos pronunciou a sentença, a tensão baixou. De
modo que transcorreram três horas entre a sentença e a crucificação; ou,
digamos duas horas e meia (no caso de que a sentença tivesse sido
pronunciada às seis e meia da manhã, “como às seis”).
Por que transcorreu tanto tempo entre os dois eventos? Não o
sabemos.
26. E, por cima, estava, em epígrafe, a sua acusação: 818 O REI
DOS JUDEUS.
Pilatos tinha mandado que se escrevesse uma notificação ou letreiro
na cruz, em cima da cabeça de Jesus. No Evangelho de João (19:19, 20)
esta notificação é chamada um “título”, em Mt. 27:37 uma “causa” ou
“acusação”, e em Marcos (15:26) e em Lucas (23:38) uma “inscrição”.
Com relação a esta notificação escrita, os críticos dizem ter achado outra
contradição na Bíblia. Apontam ao fato de que as palavras que a
compõem diferem nos quatro Evangelhos. Mas existe mais de uma
forma possível em que se pode refutar este ataque contra a Escritura.
Primeiro, deve-se considerar como possível que cada evangelista desse a

818
α_τίας, genitivo objetivo.
Marcos (William Hendriksen) 847
essência da inscrição tal como ele a vê. A redação completa de todas as
palavras da inscrição puderam ter sido “Este é Jesus de Nazaré, o Rei
dos judeus”. De modo que Mateus indica que a causa dizia: “Este é
Jesus, o Rei dos judeus”; Marcos afirma que a inscrição era: “O Rei dos
judeus”; a versão de Lucas é “Este é o Rei dos judeus”; e João, que
estava presente em pessoa e a pôde ver, diz que o título era: “Jesus de
Nazaré, o Rei dos judeus”. É evidente que não era necessário que cada
evangelista escrevesse todas as palavras. Outra possibilidade é esta: pelo
fato de que a inscrição estava escrita em três idiomas, aramaico, latim e
grego, pôde ter sido abreviada em um, em dois ou nos três casos, embora
de forma distinta em cada um deles.
Os quatro estão de acordo com dizer ao leitor que na inscrição
Pilatos chama Jesus, “o Rei dos judeus”. Por que o redigiu assim o
governador? Negativamente, porque não quis escrever, “Jesus que dizia
ser Rei dos judeus”, porque tinha proclamado vez após vez que Jesus era
inocente da acusação que os judeus tinham levantado contra Ele.
Portanto, o governador recusou absolutamente ceder à demanda dos
principais sacerdotes de mudar a redação da inscrição (veja-se Jo. 19:21,
22). É impossível explicar positivamente por que Pilatos escreveu a
inscrição como fê-lo. Foi com o fim de conceder alguma honra a Jesus?
Gostaríamos de pensar assim. Mas, honrar a Jesus e, ao mesmo tempo,
permitir que zombem dEle e ordenar que seja açoitado e crucificado, são
coisas que dificilmente andam juntas. Então, que dizer? Embora não
possamos estar seguros, talvez a verdadeira resposta seja a seguinte:
Pilatos odiava os judeus, especialmente os seus dirigentes. Entendia
perfeitamente bem que acabavam de ganhar uma vitória sobre ele,
porque, segundo seu modo de ver as coisas, tinham-no forçado a
sentenciar Jesus a ser crucificado. Assim que agora zomba deles. Por
meio desta inscrição está dizendo, “Aqui está Jesus, o Rei dos judeus, o
único rei que fostes capazes de apresentar, e agora este rei é crucificado
pelo precipitado pedido de vossos dirigentes!”
Marcos (William Hendriksen) 848
Tudo isto não anula o fato de que Pilatos pudesse ter redigido a
propósito a inscrição desta maneira. Com isso queria dizer aos judeus
duas coisas: Negativamente, “Não creio absolutamente na acusação que
apresentastes contra Ele”, e positivamente, para zombar deles. Mas o
Deus Todo-poderoso usa esta mesma inscrição para falar por meio dela,
e faz uma proclamação para todos, sem exceção. Tenha-se em mente que
foram usados três idiomas para escrever o pôster. Sua mensagem é:
“Este é Jesus, Rei dos judeus certamente; e não só isto, mas também por
esta mesma cruz é Rei dos reis e Senhor dos senhores”
27 Com ele crucificaram dois ladrões, um à sua direita, e outro
à sua esquerda 819 . 820
Os dois homens que crucificaram com Jesus eram “ladrões” ou
“revolucionários”. Mas à vista de Lucas 23:33, “ladrões” seria a melhor
tradução aqui. 821 Foi uma grande injustiça crucificar a Jesus entre dois
criminais, como se ele também tivesse sido um deles. Não obstante,
considerado à luz da providência de Deus, foi também uma honra. Não é
verdade que Jesus veio para a terra com o fim de buscar e salvar aos
perdidos (Lc. 19:10)? Não foi Amigo de publicanos e pecadores” (Mt.
11:19)? Veja-se também CNT sobre João 3:16 e sobre 1 Timóteo 1:15.
Ao fazer com que Jesus fosse crucificado entre estes dois
delinquentes, queria Pilatos aumentar o grau de insulto aos judeus? Quis
dizer com isto, “Tal é seu rei, Ó judeus; não é melhor que um bandido e
portanto merece ser crucificado entre dois deles”? Seja como for, uma
coisa é certa, a profecia de Isaías 53:12 — ”Foi contado com os

819
Não há suficiente apoio textual para o v. 28, que diz: “e se cumpriu a Escritura que diz, ‘Foi
contado com os iníquos’.”
820
Para a explicação do modismo grego usado aqui — … _κ δεξι_ν κα_ … _ξ ε_ωνύμων — veja-se
mais acima sobre Mc. 10:37, nota 499.
821
Veja-se sobre Mc. 11:17, nota 542; também o artigo de K. H. Rengstorf a respeito de esta palavra
no TDNT, vol. IV., pp. 257–262. Deixa claro que o λ_στής sempre é alguém que sem piedade usa a
força para apropriar-se dos bens de outros.
Marcos (William Hendriksen) 849
822
transgressores” — se estava cumprindo aqui. E pelo que lemos em
Lucas 23:39–43, de forma gloriosa.

Os transeuntes
29, 30. Os que iam passando, blasfemavam dele, meneando 823 a
cabeça e dizendo: Ah! Tu que destróis o santuário e, em três dias, o
reedificas! Salva-te a ti mesmo, descendo da cruz!
Em rápida sucessão, Marcos descreve agora como reagem diante de
Jesus três grupos: a. Os transeuntes, b. os principais sacerdotes e
escribas, e c. os ladrões. Primeiro, então, os transeuntes. O vocábulo
“transeunte” é tradução literal do original grego, e expressa exatamente
seu significado. Se como alguns creem, o Calvário se achava já então
numa encruzilhada de caminhos — cf. a Igreja do Santo Sepulcro —
então a expressão “os transeuntes” (os que passavam por ali) começa a
adquirir um sentido lógico. Nem todos formavam parte da multidão (Lc.
23:48) que ia ao Calvário naquele dia com o fim de olhar tudo o que
ocorreria ali do princípio ao fim. Estavam também os que simplesmente
“passavam”. A caminho para algum lugar, ao passar se detinham o
tempo necessário para observar a cena. Concentram sua atenção no
crucificado que está na cruz central, a respeito do qual já tinham ouvido
o bastante. Meneiam a cabeça com desdém e arrogância. Cf. Sl 22:7b; Is.
37:22, Lm. 2:15. Então começam a lançar injúrias contra Ele. Realmente
estão blasfemando, conforme diz o original. Para o significado desta
palavra e seus análogos, veja-se sobre Mc. 2:7; 3:28 e note-se que aqui
em Mc. 15:29 não se usa num sentido geral, mas em seu sentido mais
terrível de escarnecer do próprio Filho de Deus. Trata-se nada menos que
de uma “irreverência desafiante”.
Suas palavras assim o testemunhariam. Ao menear a cabeça dizem,
“Ah!”. Devemos agradecer que Marcos em seu vívido relato tenha

822
Isto não contradiz o que se disse mais acima na nota 813.
823
κινο_ντες, part. pres. at. de κινέω, mover, sacudir. Cf. cinematógrafo, cinético.
Marcos (William Hendriksen) 850
conservado este pequeno detalhe. O que significa este “Ah!”? É uma
exclamação na qual estão misturadas o regozijo, o desdém e a sensação
de vitória. Mas que “Ah!” tão prematuro é este! Os que o lançam se
esquecem do refrão, “Não se gabe quem se cinge como aquele que
vitorioso se descinge” (1Rs. 20:11). Lembra-nos o enorme e
encouraçado gigante Golias, que rugia diante do inexperiente rapaz Davi,
“Vem a mim, e darei a tua carne às aves do céu e às bestas-feras do
campo ...” Aquele foi seu último discurso! Veja-se 1Sm. 17:31–49.
Também nos vem à lembrança Hamã: “Mande fazer uma forca, de
mais de vinte metros de altura, e logo pela manhã peça ao rei que
Mardoqueu seja enforcado nela” (Et. 5:14, NVI). Nessa forca de 50
côvados de altura o próprio Hamã foi enforcado (ou empalado sobre
uma alta estaca, se preferir-se esta tradução). Veja-se Et. 7: 9, 10.
Em lugar de exclamar “Ah!” os depreciativos blasfemadores
deveriam ter dito “Ai de nós!” Por quê? Porque naquele exato momento,
Aquele mesmo a quem estavam desprezando, estava ganhando na cruz a
grande vitória; e ao mesmo tempo eles estavam sofrendo uma derrota. A
menos que se arrependessem, o que os aguardava seria o dia em que
gritariam aos montes e às rochas: “Caí sobre nós e escondei-nos da face
daquele que se assenta no trono e da ira do Cordeiro, porque chegou o
grande Dia da ira deles; e quem é que pode suster-se?” (Ap. 6:16, 17).
Os gozadores prosseguem: “Tu que destróis o santuário e, em três
dias, o reedificas! …”. Também eles, bem como as falsas testemunhas de
Mc. 14:57, 58 (veja-se sobre essa passagem), fizeram uso da calúnia,
tergiversando e dando uma interpretação torcida às palavras de Cristo
(Jo. 2:19), como se fosse a verdade. Além disso acrescentam, “Salva-te a
ti mesmo, descendo da cruz!” De forma zombadora gritam-Lhe que a
maneira em que o Crucificado pode justificar Suas grandes pretensões, é
descendo da cruz. Assim ressaltavam que o que O retinha ali era a
fraqueza e a impotência. Entretanto, o que lhe sujeitava àquela cruz não
era isso, mas a fortaleza, o poder de Seu amor pelos pecadores. Jesus é
nosso Salvador precisamente porque não desceu da cruz. Mas aqueles
Marcos (William Hendriksen) 851
transeuntes estavam dispostos a desafiar o testemunho de todos os
milagres, de toda a misericórdia derramada sobre os necessitados, de
todos Seus maravilhosos discursos, sim, de toda a bela vida do Filho de
Deus na terra. Rejeitaram tudo. Preferiam escarnecer e blasfemar!

Os principais sacerdotes e escribas


31, 32a. De igual modo, os principais sacerdotes com os
escribas, escarnecendo, entre si diziam: Salvou os outros, a si mesmo
não pode salvar-se; desça agora da cruz o Cristo, o rei de Israel,
para que vejamos e creiamos.
Tanto júbilo sentiam aqueles membros do Sinédrio pelo fato de ver
seu arqui-inimigo cravado na cruz, que todos eles — principais
sacerdotes, escribas e (segundo Mateus 27:41) anciãos (para o
significado destes três termos veja-se sobre Mc. 11:27, 28) — perderam
todo vestígio de dignidade e se uniram aos que passavam, dando
expressão a todo seu desprezo por Jesus. “De igual modo”, diz Marcos.
E em vários aspectos, as palavras dos dirigentes eram, sem lugar a
dúvida, semelhantes às dos transeuntes. Ambos zombam. Ambos
estavam convencidos de que a vítima estava na cruz porque era fraco e
totalmente incapaz de salvar-Se a Si mesmo. Uns e outros Lhe pedem
que demonstre Suas pretensões descendo da cruz.
Não obstante, há também uma notável diferença. Os que passavam
por ali se dirigiram a Jesus diretamente, usando a segunda pessoa
singular (vejam-se os vv. 29, 30). Mas no relato da crucificação de Cristo
— seja em Mateus, Marcos, ou Lucas — nem sequer uma vez os
dirigentes se dirigem diretamente a Jesus. Sempre falam a respeito dEle,
entre si mesmos. Nunca falam a Ele. O ódio que lhe professam é muito
intenso. Mateus e Marcos nos dizem que aqueles membros do Sinédrio,
ao conversar entre si, falando a respeito de seu inimigo, zombavam dEle.
E bem que o faziam, por certo! Entretanto, Lucas usa uma palavra
diferente. Faz-nos ver que aquela zombaria era da pior espécie possível.
A maneira de ridicularizá-Lo estava misturada com ódio e inveja. Lucas
Marcos (William Hendriksen) 852
diz literalmente “elevavam seus narizes contra ele”, quer dizer, olhavam-
no com desprezo, zombavam dEle (Lc. 23:35).
Quando dizem, “Salvou os outros, a si mesmo não pode salvar-se”,
não estão negando que os milagres que tinha realizado para o bem de
outros fossem reais. Evidentemente que não. Já tinham admitido muito
antes que eram autênticos (Jo. 11:47). Mas tinham atribuído a Satanás o
poder de fazê-los (Mc. 3:22). A conclusão que tiram é que, agora que
Belzebu não pode ou não quer ajudá-Lo mais, Jesus está totalmente
impotente. Tampouco eles admitem que o que O retém agora na cruz é o
amor aos pecadores.
Com escárnio comentam que Ele Se apresentou como “o Cristo, o
Rei de Israel”. Como certo, Ele fez esta dupla reivindicação (Mc. 14:62–
15:2). Além disso, havia aceito as honras reais compreendidas nela e em
títulos similares, quando outros Lhe concediam esta honra. De fato,
inclusive Se tinha atribuído autoridade real sobre todas as coisas (Mt.
11:27; 25:34), e o devia fazer novamente (Mt. 28:18). Mas aqueles
dirigentes O interpretavam mal deliberadamente; porque onde quer que,
seja por palavra ou por ação, o povo queria convertê-Lo num rei
terrestre, ou num governante que tinha vindo libertar os judeus do jugo
dos romanos, ele Se desentendia o mais rapidamente possível desse erro.
Veja-se sobre Jo. 6:15; cf. 18:36.
Quando os principais sacerdotes e escribas disseram “desça agora
da cruz o Cristo, o rei de Israel”, e a seguir acrescentaram: “para que
vejamos e creiamos”, estavam manifestando uma grande falsidade. Na
presença deles Jesus curou todo tipo de enfermidades, devolveu a vista
aos cegos de nascimento, purificou leprosos, e inclusive ressuscitou os
mortos. Se estas obras de poder e graça, todas elas realizadas em
cumprimento das profecias, não os induziram a crer em Jesus, mas antes,
a endurecer seu coração e a odiá-Lo, tê-los-ia movido o descer da cruz a
aceitá-Lo como Salvador e Senhor? Naturalmente que não! Isto nos
lembra as palavras consignadas na parábola do rico e Lázaro: “Se não
Marcos (William Hendriksen) 853
ouvem a Moisés e aos Profetas, tampouco se deixarão persuadir, ainda
que ressuscite alguém dentre os mortos” (Lc. 16:31).

Os ladrões
32b. Também os que com ele
foram crucificados o
824
insultavam.
Os que passavam por ali, e os membros do Sinédrio, estavam de
acordo em que se Jesus quisesse demonstrar que realmente era o que
pretendia ser, devia salvar-Se a Si mesmo. Os ladrões se deixaram levar
por este argumento e também começaram a injuriá-Lo. Deve sublinhar-
se que segundo o claro testemunho da Escritura, no princípio ambos O
encheram de insultos deste tipo. As manifestações de um destes homens
se dão a conhecer em Lucas 23:39. Diz: “Não és tu o Cristo? Salva-te a ti
mesmo e a nós também”. Também os soldados se uniram a esta classe de
zombaria (Lc. 23:36, 37). Os insultos vinham de quase todos os lados.
Legionários, transeuntes, principais sacerdotes, escribas, anciãos,
ladrões, e uma multidão formada por outros espectadores, todos O
ridicularizavam.
No meio de tudo isto, Jesus guarda silêncio. Não pronuncia
nenhuma palavra de recriminação. Pedro o explica de uma forma bela ao
dizer, “pois ele, quando ultrajado, não revidava com ultraje; quando
maltratado, não fazia ameaças, mas entregava-se àquele que julga
824
_νείδιζον, imper. 3ª. pes. pl. de _νειδίζω, amontoar abusos ou insultos sobre, censurar, reprovar,
vituperar, resmungar, criticar, censurar. Veja-se também o paralelo (Mt. 27:44). O significado faz-se
claro ao examinar outras passagens do Novo Testamento onde usa-se este verbo:
“Bem-aventurados são quando por minha causa a gente os vituperar” (Mt. 5:11, minha tradução).
“Passou, então, Jesus a increpar as cidades” (Mt. 11:20).
“E censurou-lhes a incredulidade” (Mr. 16:14).
“Bem-aventurados sois quando os homens … vos injuriarem” (Lc. 6:22).
“As injúrias dos que te ultrajavam caíram sobre mim” (Ro. 15:3).
“…que a todos dá liberalmente e nada lhes impropera” (Stg. 1:5).
“Se, pelo nome de Cristo, sois injuriados, bem-aventurados sois” (1Pe. 4:14).
As traduções que sugerimos de modo algum são as únicas boas. A raiz da palavra parece ser nid
(precedido por eufônico _), mas não sei se a palavra holandesa nijdig pertence ou não à mesma família
etimológica, embora seu significado tem algo de relação.
Marcos (William Hendriksen) 854
retamente, carregando ele mesmo em seu corpo, sobre o madeiro, os
nossos pecados, para que nós, mortos para os pecados, vivamos para a
justiça; por suas chagas, fostes sarados” (1Pe. 2:23, 24).
Não é possível (inclusive provável) que aquela serena e majestosa
conduta de nosso Senhor, junto com a oração, “Pai, perdoa-lhes, porque
não sabem o que fazem” (Lc. 23:34), tivesse sido usada por Deus como
meio para conduzir a um destes dois ladrões ao arrependimento? Veja-se
essa história em Lucas 23:39–43.

Mc. 15:33–41 - O Calvário: A morte de Jesus


Cf. Mt. 27:45–56; Lc. 23:44–49; Jo. 19:25, 28–30

É muito variada a extensão que os Evangelhos dedicam ao tema do


“Calvário: morte de Jesus” (Mc. 15:33–41 e paralelos). Expressas em
cifras redondas, o número de palavras dedicadas a este tema em cada
Evangelho (no texto grego) é:

Mateus Marcos Lucas João


200 150 100 70 825

Com a exceção de uma diferença importante, os relatos de Mateus e


Marcos são quase idênticos em conteúdo. Esta semelhança dá-se
especialmente entre Marcos 15:33–37 e seu paralelo Mateus 27:45–50
(desde “trevas” até “morte”). Deixamos para mais adiante algumas
observações com relação a certas leves diferenças nas palavras de a. o
grito de agonia, e b. o ato da morte de Cristo. Também requer atenção
especial o problema relativo a Marcos 15:36b.
Nota-se também um alto grau de semelhança quanto à descrição das
mulheres que estavam “observando de longe” (Mc. 15:40, 41; cf. Mt.

825
As cifras 196, 150, 95, e 70 são mais exatas para Mateus, Marcos, Lucas e João respectivamente.
Se for adicionado Jo. 19:26, 27, a última cifra aumenta a 109.
Marcos (William Hendriksen) 855
27:55, 56). Mateus apresenta imediatamente estas amizades de Jesus
como as que “vinham seguindo a Jesus desde a Galiléia, para o
servirem”. Marcos reserva esta descrição para o final da passagem e lhe
acrescenta umas poucas palavras. Também, quanto ao apelativo
descritivo de Mateus “a mãe dos filhos de Zebedeu”, Marcos põe em seu
lugar o nome: “Salomé”. Quanto ao mais, o que se diz a respeito das
mulheres varia pouco nestes dois Evangelhos.
A maior diferença entre os dois relatos se acha na metade (Mc.
15:38, 39 e seu paralelo Mt. 27:51–54). Ali, imediatamente depois da
menção da morte de Jesus, Mateus menciona vários “sinais” ou
acontecimentos assombrosos que ocorreram. De todos eles Marcos
registra somente a rasgadura do véu e a confissão do centurião.
Em seu breve relato, Lucas acrescenta as palavras “escurecendo-se
o sol” (literalmente “eclipsou-se”), Mateus e Marcos escrevem a respeito
de três horas de escuridão. Mesmo antes de indicar de que forma morreu
Jesus, Lucas explica que “rasgou-se ao meio o véu do templo” (v. 45,
RC). Ele mesmo conservou e transmitiu à igreja a bela e comovedora
sétima palavra da cruz (v. 46). Lucas guarda silêncio com relação à
quarta palavra, o grito de agonia e os eventos que tiveram lugar com
relação a ele. Dá sua própria versão sobre a confissão do centurião (v.
47); explica que depois da morte de Jesus a multidão profundamente
comovida voltou para suas casas “batendo nos peitos” (v. 48); e sem
mencionar nomes, resume brevemente o que Mateus e Marcos dizem a
respeito das mulheres que tinham vindo da Galileia (v. 49).
Quanto a João, entre as mulheres que estão “perto da cruz” inclui à
mãe de Jesus (19:25). Nos versículos 26, 27, que poderiam levar-se em
conta para sua inclusão no paralelismo geral, “o discípulo a quem Jesus
amava” registra a quinta e também a sexta palavra da cruz. (“Tenho
sede” e “Está consumado”). João descreve a morte de Cristo com estas
palavras, “E, inclinando a cabeça, rendeu o espírito”.
Marcos (William Hendriksen) 856
As trevas
33. Chegada a hora sexta, 826 houve trevas sobre toda a terra até
a hora nona.
Das nove da manhã até o meio-dia, o Calvário foi um lugar de
muita atividade. Os soldados tinham realizado suas diversas tarefas,
conforme vemos nos versículos 22–27. As pessoas que passavam haviam
blasfemado. Os principais sacerdotes e escribas zombaram. Os ladrões
tinham escarnecido, embora um deles depois se arrependeu. Jesus tinha
pronunciado Suas primeiras três palavras. Então, ao meio-dia, sucedeu
algo muito dramático. Repentinamente a terra se escurece (cf. Am. 8:9).
O próprio fato que esta escuridão se mencione, mostra que deve ter sido
intensa e inesquecível. Além disso, ocorreu à hora mais inesperada, ao
meio-dia, e durou três horas.
Muito se tem escrito a respeito destas trevas. Qual foi sua causa?
Que extensão abrangeu? Teve algum significado? Quanto ao primeiro, é
muito pouca a informação que recebemos. Com segurança podemos
afirmar, “Deus a provocou”. Isto é muito melhor que dizer que o diabo
ou a natureza a causou. Mas ao acrescentar a pergunta, “Por meio do que
Deus a produziu?”, não é possível dar uma resposta completamente
satisfatória. Uma repentina tormenta, mesmo se tivesse durado três
horas, não haveria coberto todo o país, e tampouco teria sido considerada
digna de especial menção. Uma tormenta do deserto não se conhece que
cause tal escuridão. Sem dúvida, Lucas 23:44, 45 parece nos dar a
resposta que buscamos. Não diz (o original) “o sol se eclipsou”? Mas,
em primeiro lugar, a tradução não é inteiramente segura. Há variantes.
Em segundo lugar, mesmo admitindo que “se eclipsou” seja o correto,
não poderia referir-se a um eclipse no sentido técnico e astronômico,
porque é impossível que tivesse tido lugar no tempo de Páscoa (lua
cheia). Além disso, tal eclipse dificilmente duraria três horas! Mas se
tomarmos o termo em seu sentido amplo, ou seja, “escureceu-se”,

826
Ou: às 12, o meio-dia.
Marcos (William Hendriksen) 857
voltamos novamente ao começo; escureceu-se por qual causa? A melhor
resposta é considerar o que sucedeu aqui como um ato especial de Deus,
um milagre, e não tratar de investigar para além, buscando um meio
secundário.
Que extensão abrangeu? Aqui também devemos abster-nos de dar
uma resposta definitiva. Não é nenhuma solução dizer que quando o sol
se escurece a metade do globo terrestre deve ficar em trevas. A luz do sol
poderia deixar de iluminar um só país ou região (veja-se Êx. 10:22, 23).
Lutero, Calvino, Zahn, Ridderbos, etc. preferem traduzir “região” em
lugar de terra em Mc. 15:33. Mesmo se a tradução “região” em lugar de
“terra” fosse correta, que bem poderia ser o caso, devemos ter em conta
que a escuridão “cobriu toda a região”, e foi portanto muito extensa.
Quanto à terceira pergunta, “Teve algum significado?” O correto
seria responder de maneira positiva. Teve um significado muito
importante. As trevas significam juízo, o juízo de Deus sobre nossos
pecados, como se Sua ira se estivesse consumindo no próprio coração de
Jesus, de modo que como nosso substituto, sofreu a mais intensa agonia,
uma indescritível miséria, e o terrível isolamento e abandono. O inferno
foi ao Calvário naquele dia, e o Salvador desceu a ele e carregou seus
horrores em nosso lugar. Como sabemos que esta resposta é a correta?
Note-se o seguinte:
a. Na Escritura as trevas são com muita frequência um símbolo de
juízo. Veja-se Is. 5:30; 60:2; Jl. 2:30, 31; Am. 5:18, 20; Sf. 1:14–18; Mt.
24:29, 30; At. 2:20; 2Pe. 2:17; Ap. 6:12–17.
b. À vista de Sua morte iminente, o próprio Salvador tinha
declarado que dava e estava prestes a dar Sua vida em “resgate por
muitos” (Mc. 10:45; cf. Mt. 20:28; 26:28).
c. A agonia sofrida por nosso Senhor durante aquelas três horas foi
tal que terminou pronunciando em Sua exclamação as palavras do
versículo 34, às quais dirigimos a atenção agora:
Marcos (William Hendriksen) 858
O grito de agonia
34. À hora nona, clamou Jesus em alta voz: Eloí, Eloí, lamá
sabactâni? Que quer dizer: 827 Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste?
Ao lançar este grito Jesus estava usando palavras tiradas do Antigo
Testamento, neste caso do Salmo 22:1 (22:2 no original hebraico). Não
deve passar desapercebido o fato de que, com frequência, durante Seu
ministério terrestre, Jesus extraiu Sua fortaleza do Antigo Testamento.
Isto é evidente ao fazer um estudo cuidadoso daquelas referências dadas
no CNT sobre Mateus, pp. 90–92 que apresentam certas expressões do
Senhor (embora nem todas o fazem). Mas inclusive nas horas finais de
Sua vida sobre a terra, antes de morrer, Jesus fez uso de passagens dos
escritos sagrados vez após vez.

Expressões de Jesus Referências no A. T.


Mt. 26:31; Mr. 14:27 Zac. 13:7
Mt. 26:64; Mr. 14:62;
Lc. 21:27; 22:69 Sl 110:1; Dn. 7:13, 14
Mt. 27:46; Mc. 15:34 Sl 22:1
Lc. 22:37 Is. 53:12
Lc. 23:30 Os. 10:8
Lc. 23:46 Sl 31:5
Jo. 19:28 Sl 22:15; 69:21

A relação entre as trevas e o grito é muito estreita: o primeiro é um


símbolo do conteúdo agonizante do segundo. Esta, então, é a quarta
palavra da cruz, a única consignada por Mateus e Marcos. Saiu dos
lábios do Salvador pouco antes de Seu último suspiro.

827
A ideia de que Jesus foi efetivamente “abandonado” pelo Pai, conforme implica claramente o grito
de agonia, não é de modo algum inconsistente com o amor de Deus, como V. Taylor sustenta, Op. cit.,
p. 594. Veja-se sobre Mc. 15:22, nota 815 com relação a “que significa”.
Marcos (William Hendriksen) 859
Os Evangelhos nada dizem do que sucedeu entre as doze e as três.
A única coisa que sabemos é que durante estas três horas de negras
trevas Jesus sofreu agonias indescritíveis. Estava sendo “feito pecado”
por nós (2Co. 5:21), “uma maldição” (Gl 3:13). Estava sendo “ferido por
nossas rebeliões e moído por nossos pecados”. Jeová estava carregando
nEle “a iniquidade de todos nós”, etc. (Is. 53).
É verdade que isto vinha sucedendo durante todo o período de Sua
humilhação, da concepção até a morte e sepultura, mas sucedeu
especialmente no Getsêmani, Gabatá, e Gólgota.
Suscita-se uma pergunta: “Mas como pôde Deus abandonar a
Deus?”. A resposta deve ser que Deus o Pai desprezou a natureza
humana de Seu Filho, e até isto num sentido limitado embora muito real
e agonizante. O significado não pode ser que houve um momento em que
Deus o Pai deixou de amar o Seu Filho. Nem pode significar que o Filho
alguma vez tivesse rejeitado o Pai. Longe disto, seguiu chamando-o
“Deus meu, Deus meu”. E é por esta mesma razão que podemos estar
seguros que Deus O amou igualmente a sempre.
Como podemos, então, atribuir algum significado sensato a esta
expressão de profunda angustia? Talvez uma ilustração pode ser de
ajuda, embora devamos acrescentar imediatamente que nenhuma
analogia tirada das coisas que sucedem aos humanos na terra poderá
jamais fazer justiça à experiência única do Filho de Deus. Entretanto,
uma ilustração pode ser-nos útil em alguma medida. Digamos que temos
uma criança muito doente. É muito tenro ainda para entender por que
deve ser ingressado num hospital, e especialmente por que, estando ali,
deve estar na unidade de cuidados intensivos, onde seus pais nem sempre
podem estar com ele. Seus pais o amam igualmente a sempre. Mas pode
haver momentos em que a criança sente falta de sua presença, até o
ponto de experimentar uma angústia profunda. Assim também o
Mediador. Sua alma deseja Aquele a quem chama “Deus meu”, mas Seu
Deus não Lhe responde. Não é exatamente esta a forma em que o grito
de agonia se interpreta no Salmo 22? Note-se:
Marcos (William Hendriksen) 860
“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?
Por que estás tão longe de minha salvação, e das palavras de meu
clamor?
Deus meu, clamo de dia, e não respondes;
E de noite, e não há para mim repouso.

Para aquele Enfermo que tinha uma alma tão sensível, seu terrível
isolamento deve ter sido uma agonia extrema, e mais ainda pelo fato de
que só umas poucas horas antes havia dito a Seus discípulos, “Eis que
vem a hora e já é chegada, em que sereis dispersos, cada um para sua
casa, e me deixareis só; contudo, não estou só, porque o Pai está
comigo” (Jo. 16:32). E um pouco mais tarde tinha acrescentado em Sua
comovedora e bela Oração Sacerdotal, “Agora, glorifica-me, ó Pai,
contigo mesmo, com a glória que eu tive junto de ti, antes que houvesse
mundo” (Jo. 17:5). E agora o Pai não responde, mas O deixa nas mãos de
seus adversários. É preciso lembrar outra vez os maus procedimentos e
os sofrimentos que Jesus tinha suportado já naquela mesma noite. É
estranho que agora exclame, “Meu deus, Meu deus, por que me
abandonaste?” Seu Deus e Pai não O teria abandonado aos Seus
adversários se não tivesse sido necessário. Mas foi necessário, a fim de
que pudesse padecer em toda sua plenitude o devido castigo pelos
pecados de Seu povo.
A zombaria e a compaixão
35, 36. Alguns dos que ali estavam, ouvindo isto, diziam: Vede,
chama por Elias! E um deles correu a embeber uma esponja em
vinagre e, pondo-a na ponta de um caniço, deu-lhe de beber,
dizendo: Deixai, vejamos se Elias vem tirá-lo! 828
Jesus pronunciou com voz muito forte a quarta palavra da cruz.
Embora nem todos reconhecessem aquelas palavras como cumprimento

828
Tradução alternativa para tudo o que há depois de “dizendo”: “Vejamos se vier Elias para baixá-
lo”.
Marcos (William Hendriksen) 861
das profecias, muitos dos que a ouviram poderiam ter reconhecido a
profecia do Salmo 22. Muitas de suas passagens já se cumpriram, ou se
estavam cumprindo ali no Calvário (vejam-se vv. 1, 2, 7, 8, 12–14, 16–
18). Mas tão potente e clara foi a voz, que não pôde haver confusão a
respeito do que Jesus havia dito. Ao menos, todos os que sabiam
aramaico e hebraico a entenderam.
O que se descreve aqui no versículo 35 é a zombaria de todas
aquelas pessoas de coração endurecido que pretendiam fazer crer em
outros que Jesus clamava Elias, pedindo ajuda. Naturalmente que eles
sabiam bem que não era assim. Mas a semelhança existente entre o
hebraico “Eli” ou o aramaico “Eloí” com o nome do profeta do Antigo
Testamento era provavelmente o suficientemente próxima como para
que aquelas mentes e lábios pervertidos pudessem transformar isso numa
piada vulgar. 829 Além disso, não existia entre os judeus a crença de que
Elias introduziria o Messias e que viveria junto a ele por um tempo como
ajudante e libertador dos que se achavam prestes a perecer?
Mas embora aqueles gozadores tivessem uma boa diversão, havia
Um que tinha ouvido o grito de angústia e imediatamente respondeu. Era
Deus o Pai, que naquele preciso momento pôs fim ao peso da angústia de
Seu Filho, para que fosse permitido ao Grande Enfermo achar algum
alívio para Seus lábios e garganta abrasados pela sede. Isto é também o
cumprimento do Salmo 22, concretamente do versículo 15. Então Jesus
pronuncia a quinta palavra, “Tenho sede” (Jo. 19:28). Imediatamente
alguém — sem dúvida um soldado, agindo sob as ordens do centurião —
tomou uma esponja, empapou-a com vinho azedo ou vinagre, o vinho

829
Vários expositores opinam que Jesus deve ter pronunciado seu grito de agonia no hebraico — ou
seja, “Eli, Eli”, como em Mt. 27:46. Diz-se isto porque o aramaico “Eloí, Eloí” não pôde ter dado base
à confusão com Eliyyâhû (Elias). Assim crê, por exemplo, Taylor, Op. cit., p. 593. Esta opinião
poderia ser correta. Entretanto, não necessariamente. Não se demonstrou que umas pessoas de mente
e coração pervertidos, decididas a ridicularizar a Jesus, estivessem incapacitadas para relacionar Eloi
com Elias. Devemos admitir que pelo fato de que Jesus fazia uso do Salmo 22, bem pôde, por uma
vez, fazer uma exceção e ter falado em hebraico. Entretanto, geralmente falava aramaico, o que é
especialmente evidente no Evangelho de Marcos. Vejam-se Mc. 3:17; 5:41; 7:11; 7:34; 14:36.
Marcos (William Hendriksen) 862
barato que bebiam os soldados e que era bom para apagar a sede, pôs a
esponja na ponta de um cano e a aproximou aos lábios de Jesus. Para
mais detalhes sobre isto, veja-se CNT sobre João 19:28.
Nem todos os que estavam perto da cruz naquela dia tinham o
mesmo endurecimento. Seja quem for que deu a ordem de fazer aquilo
— supõe-se que foi o centurião — demonstrou verdadeira compaixão.
Mas este de modo algum era o sentimento de todos. Os endurecidos
prosseguiam com sua atitude de zombaria.
Segundo Mateus 27:49 aqueles gozadores gritavam, “Deixa,
vejamos se Elias vem salvá-lo”. Marcos abrevia. A oposição que o
soldado se dispunha a fazer, expressa com palavras explícitas em
Mateus, em Marcos está implícito. Aqui em 15:36b o soldado
provavelmente reage ao clamor dos que se opunham. O que ele quis
dizer pode ser interpretado de uma das duas seguintes maneiras, com
muito pouca diferença no resultado, se é que há alguma. Respondendo
aos que estavam ali disse:
a. “Deixem (me)”, querendo dizer “deixem-me dar-lhe esta bebida”.
Continua: “Vejamos se Elias vem tirá-lo”; ou simplesmente:
b. “Vejamos se Elias vem tirá-lo”. A razão pela qual eu, por uma
estreita margem, prefiro a. indica-se na nota. Em qualquer caso, o
soldado (ou quem quer que fosse) prossegue para terminar o que tinha
começado a fazer, e diz às pessoas, direta ou indiretamente, que
concentrem sua atenção não nele mas em Jesus, com o fim de observar
se Elias vem tirá-lo. Em outras palavras, une-se à zombaria dos que estão
ali. Cf. Lc. 23:36, 37. 830

830
As interpretações de Marcos 15:35b sobem a milhares. Há os que veem uma contradição entre
Mateus e Marcos. Pensam que Mateus estava corrigindo a Marcos. Veja-se, p. ex., V. Taylor, Op. cit.,
pp. 594, 595. Mas enquanto Mateus informa o que os endurecidos espectadores dizem ao soldado,
Marcos provavelmente relata a reação do soldado. Assim interpretado, não há conflito.
A maioria dos tradutores adotaram um equivalente português que expressa dois conceitos para _φες
(_φετε) _δωμεν. Assim, tanto em Mt. 27:49 como em Mc. 15:36, estão em favor da tradução “Deixai,
vejamos” (VM, RV60); “deixem-no, a ver se …” (VP), “Quietos!, a ver se …” (BP).
Marcos (William Hendriksen) 863
A morte
37. Mas Jesus, dando um grande brado, expirou.
Observe-se “dando um grande brado” (cf. Mt. 27:50; Lc. 23:46).
Isto demonstra que o Grande Enfermo não permitiu que Sua vida se
extinguisse pouco a pouco, morreu voluntariamente. Deu a Sua vida,
derramou-a, ofereceu-a (Is. 53:12; Jo. 10:11, 15). Entregou o Seu espírito
(Mt. 27:50; Jo. 19:30). Jesus sabia exatamente o que fazia quando Se
ofereceu a Si mesmo como sacrifício voluntário. Isto é evidente segundo
Suas duas últimas palavras: a sexta, “Está consumado” (Jo. 19:30), que
significava que a obra que o Pai Lhe tinha dado para fazer, já se tinha
cumprido; que já tinha dada Sua vida em resgate por muitos (Mc. 10:45;
cf. Mt. 20:28); e a sétima, “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito!”
(Lc. 23:46), para demonstrar que tinha recuperado a plena consciência da
amorosa presença do Pai, e encomendava Seu espírito ao doce cuidado
do Pai. Assim voltou para a glória que tinha tido com Ele desde a
eternidade (Jo. 17:5, 24; cf. Pv. 8:30). O Pai O recebeu novamente em
glória, e a manhã da ressurreição fez voltar o espírito de Seu Filho ao
Seu corpo, para não morrer jamais. É consolador saber que quando Jesus

Em harmonia com o BAGD, p. 126, outros tratam as duas palavras gregas como um só conceito, e em
ambas as passagens (Mt. 27:49 e Mc. 15:36) traduzem simplesmente “Vejamos”, sem atribuir um
significado à parte a forma de _φίημι, mas sim permitindo-a unir-se a _δωμεν. Assim CB, LT.
Tampouco deve considerar-se isto incorreto. Deve notar-se, entretanto, que não é absolutamente
necessário atribuir o mesmo significado a _φες em Mt. 27:49 que aquele que se dá-se _φετε em Mc.
15:36. Deve ter-se presente que _φίημι tem uma ampla gama de significados: deixar, expressar,
enviar, divorciar, perdoar, suspender, deter, abandonar, tolerar, conceder, permitir, etc.
As duas situações descritas respectivamente em Mt. 27:49 e em Mc. 15:36 são provavelmente
diferentes, por isso A. B. Bruce, Op. cit., p. 450 chama a atenção ao seguinte: Em Mt. 27:49 alguns
dizem à pessoa amável que oferece uma bebida a Jesus, “Detém-te, não lhe dês a bebida”. Em Mc.
15:36 o homem que trouxe a bebida diz aos que estavam ali, “Deixem-me (dar-lhe a bebida)”.
Com o fim de pôr de relevo esta distinção, eu traduzi intencionalmente _φετε aqui em Mc. 15:36 de
forma diferente que _φες em Mt. 27:49, embora junto com Bruce, admito que outros tradutores e
intérpretes que traduzem estas formas de _φίημι identicamente em ambas as passagens, não caem
necessariamente em erro ao fazê-lo assim.
Marcos (William Hendriksen) 864
foi ao paraíso não o fez sozinho, porém com Ele levou a alma do ladrão
penitente (Lc. 23:43). 831

O véu do santuário
38. E o véu do santuário rasgou-se em duas partes, de alto a baixo.
Com base em Hebreus 6:19; 9:3; e 10:20 o natural é pensar na
cortina interior, “o segundo véu”, aquele que separava o Lugar Santo do
Lugar Santíssimo. Este segundo véu é aquele que está descrito em Êx.
26:31–33; 36:35; 2Cr. 3:14. Segundo a descrição destas passagens, os
fios de linho azul, púrpura e escarlate estavam entretecidas num tecido
de linho branco, de forma tal que estas cores desenhavam uns querubins,
aqueles anjos guardiões da santidade de Deus, como se estivessem
simbolicamente vedando o passo ao Lugar Santíssimo. Em Josefo,
Guerra Judaica V. 212–214, faz-se uma descrição do véu no templo de
Herodes.
No momento da morte de Cristo, este véu rasgou-se repentinamente
em dois, de alto a baixo. Isto sucedeu às 3 da tarde quando os sacerdotes
deviam achar-se ocupados no templo Como sucedeu isto? Naturalmente
que não foi por causa do desgaste natural, porque em tal caso haveria
rasgaduras por todas as partes, ou a rasgadura teria sido, antes, de baixo
para cima. Tampouco há probabilidade alguma de que Mateus, que
imediatamente depois menciona um terremoto (Mt. 27:51), esteja
tratando de dar a ideia de que a rasgadura em dois do véu tivesse sido
causada pelo terremoto. Se esta tivesse sido sua intenção, não teria
mencionado o terremoto antes da rasgadura do véu? O que sucedeu deve
ser considerado um milagre. Não se menciona nenhum meio secundário
que o pudesse ter produzido e seria inútil especular. Quanto a seu
significado simbólico, isto é evidente por duas considerações: primeiro,
ocorreu exatamente no instante em que Cristo morreu; segundo, explica-
831
É incongruente traçar uma clara distinção entre ψυχή e πνε_μα com base em _ξενπνευσεν (v. 37).
Alguns o fazem, para depois advogar em favor da tricotomia. Veja-se mais acima sobre 8:12, nota
370.
Marcos (William Hendriksen) 865
se em Hebreus 10:19, 20: pela morte de Cristo, simbolizada pela
rasgadura do véu, o caminho ao “Lugar Santíssimo”, isto é, ao céu, está
aberto para todos os que se refugiam nEle. Veja-se Hebreus 4:16 para a
lição prática. Poderia significar mais, mas ao limitar a interpretação só a
isto, cremos que andamos sobre chão firme.

O centurião
39. O centurião que estava em frente dele, vendo que assim
expirara, disse: Verdadeiramente, este homem era o Filho de Deus.
O centurião tinha visto como se comportou Jesus em meio daqueles
maus insultos e zombarias. A seguir produziu-se aquela forte
exclamação. Foi uma exclamação de confiança, um grito pelo qual Jesus
voluntariamente Se rendia Àquele a quem até então chamava Pai. Além
disso, o centurião deve ter ouvido como os líderes judeus, falando entre
si, zombaram da declaração de Jesus quanto a ser o Filho de Deus. Veja-
se sobre Mt. 27:43. Tinha ouvido talvez o interrogatório de Pilatos a
Jesus com relação a este mesmo ponto (Jo. 19:7ss.)? Além de tudo isso,
o centurião tinha visto, e deve ter sentido, a forma em que a natureza
reagiu diante da morte de Jesus. Lembra o terremoto, as rochas que se
partiram e as tumbas que se abriram. Cf. Mt. 27:51, 52, 54.
O centurião, então, combina todas estas impressões, embora a
ênfase de Marcos esteja na impressão que causou no homem a forma em
que o próprio Jesus morreu! Estando justamente diante de Jesus, o
centurião O havia observado muito cuidadosamente.
Com toda probabilidade aquele homem não era judeu. Seu coração
não se tinha endurecido contra Jesus como o coração de muito judeus,
especialmente o dos dirigentes. Assim que quando tudo terminou ouviu-
se ele exclamar: “Verdadeiramente, este homem era o Filho de Deus”.
Não sabemos se seu conhecimento a respeito de Cristo tinha chegado ao
ponto de produzir uma confissão de que Jesus fora no sentido único “o”
Filho de Deus. Pelo que respeita à gramática grega, esta não nos dá
Marcos (William Hendriksen) 866
832
informação sobre esse ponto. A lenda diz que aquele homem chegou a
ser cristão. Esperamos que assim seja. Lucas acrescenta que o centurião
“deu glória a Deus, dizendo: Verdadeiramente este homem era justo”.
Não há nenhuma contradição aqui. Bem pôde ter dito as duas coisas.
Mateus nos informa que não só o centurião, mas também os
soldados que estavam sob seu mando viram-se igualmente afetados.
Tampouco aqui há contradição. É verdade que os soldados estiveram
zombando (Lc. 23:36). Mas isto foi antes que ocorresse o terremoto com
seus efeitos nas rochas e nas tumbas. Os homens que tinham crucificado
a Jesus puderam, certamente, ter mudado seu modo de pensar. Acaso um
dos ladrões não zombou primeiro e logo se arrependeu? Segundo Lucas
23:48 inclusive a multidão em geral no final se sentiu profundamente
impressionada e “retiraram-se a lamentar, batendo nos peitos”.

As mulheres que ministravam


40, 41. Estavam também ali algumas mulheres, observando de longe;
entre elas, Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, o menor, e de José, e
Salomé; as quais, quando Jesus estava na Galiléia, o acompanhavam e
serviam; e, além destas, muitas outras que haviam subido com ele para
Jerusalém.
Quanto à identidade das mulheres aqui mencionadas — somos
informados que havia muitas outras — é bem possível que as duas listas
(Mt. 27:56; Mc. 15:40) refiram-se às mesmas três pessoas. Se isto é
certo, as três poderiam ser: a. Maria Madalena, nomeada assim em
ambas as listas; b. Maria, mãe de Tiago o Menor e de José; e c. Salomé a
mãe dos filhos de Zebedeu. Na realidade, é inclusive possível que a lista
de João 19:25 faça referência às mesmas mulheres e a Maria, a mãe de
Jesus. A lista de João com toda probabilidade refere-se a quatro
mulheres, não a três. João menciona a presença da mãe de Cristo, mas

832
O texto grego não usa o artigo definido aqui, mas diz simplesmente υ_ός. Por outro lado, com
nomes próprios e títulos, as formas sem o articulo também podem ser definidas. Podem ser definidas
ou indefinidas.
Marcos (William Hendriksen) 867
Mateus e Marcos não. É possível que isto ocorra porque João, diferente
dos outros dois, descreve a situação tal como era antes de que Ele
mesmo tivesse levado Maria a sua casa (Jo. 19:27). As outras três
mulheres mencionadas na lista de João seriam então as mesmas às quais
se faz referência em Mateus e em Marcos; ou seja, a. A irmã da mãe de
Cristo = Salomé = mãe dos filhos de Zebedeu; b. Maria (provavelmente
a esposa de Cleopas) = mãe de Tiago o Menor e de José; e c. Maria
Madalena. Para mais detalhes sobre isto e mais referências sobre estas
quatro mulheres no Novo Testamento, veja-se CNT sobre Jo. 19:25.
Tomando os três nomes na ordem que Marcos estabelece aqui,
notamos que “Maria Madalena” era de Magadã, situada na margem
sudoeste do Mar da Galileia. O Senhor a tinha libertado de uma grave
possessão demoníaca (Lc. 8:2). Ela era a que, depois da ressurreição,
“estava fora chorando junto ao sepulcro” quando Jesus, a quem ela
confundiu com o jardineiro, lhe apareceu (Jo. 20:11–18).
Categoricamente ela não é a mulher pecadora de Lucas 7. Quanto a
“Maria, a mãe de Tiago o menor e de José”, só sabemos que, junto com
Maria Madalena, estava presente também durante a sepultura de Cristo,
(Mt. 27:61; Mc. 15:47; cf. Lc. 23:55), e era uma das mulheres que saiu
muito cedo no domingo pela manhã para ungir o corpo de Jesus (Mt.
28:1; Mc. 16:1). Naquele mesmo grupo de mulheres estava também
Salomé (Mc. 16:1). Esta “mãe dos filhos de Zebedeu” também é
mencionada em Mt. 20:20, 21.
Estas mulheres eram notáveis, por três razões:
a. Além de João, de nenhum dos outros discípulos que pertenciam
ao grupo dos Doze é dito que estivesse presente no Calvário, mas estas
mulheres, sim, estavam presentes! Manifestaram uma coragem pouco
comum.
b. Somos informados claramente que tinham seguido a Jesus da
Galileia até Jerusalém e tinham estado ministrando a Suas necessidades
(cf. Lc. 8:2, 3). Tinham dado evidência de ter um coração cheio de amor
e compaixão.
Marcos (William Hendriksen) 868
c. Tendo sido testemunhas da morte, sepultura e aparições de Cristo
depois de Sua ressurreição, eram testemunhas válidas dos atos da
redenção dos quais a igreja depende para sua fé, por graça de Deus.

Mc. 15:42–47 - A sepultura de Jesus


Cf. Mt. 27:57–61; Lc. 23:5–56; Jo. 19:3–42

42, 43. Ao cair da tarde, por ser o dia da preparação, 833 isto é, a
véspera do sábado, vindo José de Arimatéia, ilustre membro do Sinédrio,
que também esperava o reino de Deus, dirigiu-se resolutamente a Pilatos e
pediu o corpo de Jesus. 834
A luta tinha chegado a seu fim. A batalha tinha sido ganha. A obra
que o Pai tinha dado ao Filho para fazer, estava consumada (Jo. 17:4;
19:30). O corpo de Jesus, embora ainda estivesse na cruz, já não sofria
mais dor, porque Seu espírito tinha entrado no Paraíso (Lc. 23:43). Já há
silêncio no Calvário. A maioria do povo foi embora. De fato, a noite
caiu, como se refere nossa passagem.
Segundo a forma antiga de falar no hebraico, havia “duas tardes”
(cf. Êx. 12:6 no original). A primeira é como nossa, “tarde”, que começa
às 3 p.m. A segunda começa às 6 p.m. Algo disso se reflete
provavelmente na frase “Ao cair da tarde”, porque não podemos
imaginar que sendo judeu, José de Arimateia tivesse ido até Pilatos na
sexta-feira às 6 da tarde para pedir o corpo de Jesus, quando o sábado já
havia começado. Muito antes desta hora deve ter iniciado os
preparativos. Era contrário à lei deixar um corpo morto sobre o madeiro
833
Ou: sexta-feira.
834
Nota sobre vocabulário e gramática: _ψίας γενομένης, gen. absoluto; veja-se sobre 1:32 e 14:17,
nota 705. παρασκευή, cf. παρασκευάζω, preparar. A sexta-feira era chamada dia da preparação porque
em tal dia se preparava tudo para o sábado. Até no grego moderno a sexta-feira é chamada
_παρασκευή. ε_σχήμων compõe-se de ε_ bom, e de σχ_μα figura, forma: portanto, possuir uma boa
figura, gracioso, bem formado, bonito (1Co. 7:35; 12:24), mas aqui: de boa posição, proeminente,
respeitável, distinto, nobre. _ν προσδεχόμενος, impf. perif.: estaba constantemente esperando.
τολμήσας, part. aor. at.: “tendo reunido valor (foi)” ou (usado adverbialmente) “foi corajosamente”.
_τήσατο, aor. ind. med. 3ª pes. sing. de α_τέω, como em 6:25. Veja-se sobre essa passagem, nota 262.
Marcos (William Hendriksen) 869
durante a noite (Dt. 21:23). Isto teria sido ainda mais repreensível se ao
fazê-lo o corpo tivesse ficado pendurado na cruz no sábado. Além disso,
era o sábado da semana de Páscoa. Aquele sábado era de grande
solenidade (Jo. 19:31)! Além disto, segundo se assinalou antes (veja-se
sobre Mc. 5:38), era costume sepultar uma pessoa o mais breve possível
depois de ocorrida a morte. Por todas estas razões é claro que se fosse
preciso sepultar o corpo de Jesus, devia ser feito agora, a saber, antes das
6 da tarde. Portanto, não havia tempo a perder, conforme Marcos indica
especialmente, porque a fim de remarcar este fato, ele é o único entre os
evangelistas que afirma que a tarde já tinha caído.
Mas quem se encarregaria disso? Os discípulos? Lembremos que
eles haviam fugido (Mt. 26:56). Por certo, João deteve seus pés e esteve
no Calvário entre os espectadores, mas não por muito tempo (Jo. 19:27).
A ele tinha sido confiado o cuidado de Maria, a mãe de Jesus e a tinha
levado a sua casa. Voltou ao Calvário, porque viu quando um soldado
abriu o lado de Jesus (Jo. 19:35), mas bem podemos entender que não
teve tempo para fazer os preparativos para a sepultura de Jesus.
É neste ponto quando entra em cena José de Arimateia. Que classe
de homem era? Segundo os Evangelhos era:
a. um homem de Arimateia, quer dizer, de Ramah (= “altura”). Era
a cidade de Samuel. Pertencia à tribo de Efraim e a conhecia também
como Ramataim-Zofim (1Sm. 1:1).
b. um membro distinto do concílio, quer dizer, do Tribunal
Supremo judaico, o Sinédrio. Note-se: não só um membro, mas também
um membro proeminente cujo conselho era altamente apreciado, pessoa
cuja palavra tinha peso.
c. era rico (Mt. 27:57a). É indubitável que Jesus abençoou os pobres
(Lc. 6:20) e que considerou Seu dever e Sua alegria pregar as boas novas
aos pobres (Lc. 4:18), em cumprimento de Isaías 61:1ss. Quis que João
Batista soubesse que os pobres estavam ouvindo o evangelho (Lc. 7:22).
Assinalou também os perigos das riquezas terrestres (Mc. 10:23–27).
Mas isto não significa que no reino de Deus não haja lugar para os ricos.
Marcos (William Hendriksen) 870
Abraão, Barnabé, Nicodemos, Lázaro e suas irmãs Marta e Maria, a mãe
de João Marcos, e Lídia foram pessoas bem de vida. Assim o era
também José de Arimateia. Mas pela soberana graça de Deus, todos eles
foram — ou chegaram a ser — pessoas dispostas a contribuir
generosamente para a causa de Deus e de Seu reino.
d. constantemente esperava o reino de Deus; quer dizer, em
harmonia com a mensagem de Cristo, ele cria que o reino de Deus estava
sendo estabelecido no coração e a vida dos humanos, e continuaria
agindo assim dali por diante. Num sentido aquele homem era um
discípulo de Jesus (Mt. 27:57b). A palavra de Deus tinha começado sua
obra nele (cf. Fp. 1:6). Em consequência, queria fazer o que era devido, e
não tinha aprovado a decisão nem os atos do Sinédrio ao condenar Jesus
à morte a (Lc. 23:50, 51a). Ficou-se em casa talvez quando se
celebraram as terríveis reuniões? À luz de Mc. 14:64; 15:1 bem pôde ter
sido este o caso.
e. até este instante, um discípulo secreto. Note-se Jo. 19:38, “José
de Arimateia, que era discípulo de Jesus, mas secretamente por medo dos
judeus”. De qualquer maneira, leia-se João 12:42, o melhor comentário.
Também João 9:22 e leia-se CNT sobre essa passagem.
Mas agora, por causa da soberana graça de Deus, houve uma
mudança, uma mudança muito significativa, produzida indubitavelmente
por vários fatores, tais como a consciência, a lembrança das palavras e
obras de Jesus em dias anteriores, e possivelmente de modo especial as
palavras do Mestre na cruz e os milagres do Calvário.
O que fez a seguir?
a. “Vindo [adiante]”. Embora não se dê maior explicação desta
palavra (literalmente “tendo vindo”), bem pode significar que se dirigiu
ao centurião, que ainda não se retirou, e lhe disse que desejava assumir a
responsabilidade de encarregar-se do corpo de Jesus para retirá-lo da
cruz e lhe dar honrosa sepultura.
b. Cobrou ânimo, dirigiu-se a Pilatos e lhe pediu o corpo de Jesus.
Para um ato assim era preciso coragem. Deve-se ter em mente que
Marcos (William Hendriksen) 871
Pilatos odiava os judeus e tão somente umas horas antes tinha rejeitado o
pedido dos judeus de mudar as palavras da inscrição (Jo. 19:21). Note-se
especialmente sua brusca resposta (v. 22). Além disso, o que José de
Arimateia estava fazendo era confessar abertamente acima de todo o
mundo, incluindo todo o Sinédrio, que era crente em Cristo Jesus.
Contraste-se com a conduta dos onze, dos que só um se atreveu a
presenciar como Jesus morria por eles. E não convém esquecer as
passagens às quais já se fez referência: Jo. 9:22; 12:42, e acrescente-se
12:10.
Com detalhes muito mais interessantes e vívidos que os que nos dão
os outros três evangelistas, Marcos continua:
44, 45. Mas Pilatos admirou-se de que ele já tivesse morrido. E,
tendo chamado o centurião, perguntou-lhe se havia muito que
morrera. Após certificar-se, pela informação do comandante, cedeu
o corpo a José. 835
Levando em conta que a morte por crucificação era geralmente um
processo muito lento, Pilatos quase não podia crer que Jesus já tivesse
morrido. Assim que antes de decidir se acedia ou não à petição de José,
fez chamar o centurião. Depois de assegurar-se assim que Jesus tinha
morrido realmente, deu o corpo a José. Não era coisa estranha dar
permissão aos parentes ou inclusive, como neste caso, a amigos, para
encarregar-se do corpo de uma pessoa crucificada.
46. Este, baixando o corpo da cruz, envolveu-o em um lençol
que comprara e o depositou em um túmulo que tinha sido aberto
numa rocha; e rolou uma pedra para a entrada do túmulo. 836

835
_θαύμασεν ε_: “estava surpreso de que”. Veja-se BAGD, p. 353. Note-se também o perfeito
τέθνηκε, tinha morrido, portanto “estava morto”. E cf. _πέθανε, o aor. de _ποθνήσκω. Por estar esta
palavra precedida de πάλαι, a tradução “já tinha morrido” pareceria ser a melhor. _δωρήσατο, aor. ind.
3ª. pes. sing. de δωρέομαι, dar, conceder, apresentar. πτ_μα (cf. πίπτω), o caído; portanto, corpo
morto, cadáver.
836
σινδών; veja-se sobre Mc. 14:51, 52, nota 750. καθελ_ν, part. aor. sing. de καθαιρέω, descer.
_νείλησε, aor. ind. 3ª. pes. sing. de _νειλησω, envolver; no Novo Testamento só se acha aqui. _θηκε,
aor. ind. at. 3ª. pes. sing. de τίθημι. μιμνήσκω, tumba, sepulcro, lembrança, monumento, relacionado
Marcos (William Hendriksen) 872
Para a interpretação desta passagem veja-se a detalhada explicação
no CNT sobre Jo. 19:40–42, pp. 717–720, começando com as palavras
“Pilatos, havendo-se assegurado” (p. 717) e até a síntese na p. 720.

Lições fundamentadas em Mc. 15:42–46


a. Os frutos da cruz não são apenas as conversões iniciais, mas
também as transformações posteriores, de forma que a fé escondida
converte-se numa fé manifesta, como no caso de José de Arimateia e a
mulher que tocou o manto de Jesus (Mc. 5:25–34). Às vezes esquecemos
isso!
b. O evangelho toca a ricos e pobres. É para todos.
c. José de Arimateia compreendeu que ele “para esta hora tinha
chegado ao reino” (Et. 4:14). Pela graça de Deus percebeu esta
oportunidade e tirou o melhor partido dela.
d. A profecia cumpriu-se maravilhosamente outra vez. Veja-se Is.
53:9.
e. O Pai ama tão intensamente o Seu Filho, que logo que é possível
mudar o estado de humilhação de Jesus por um estado de exaltação.
Embora a sepultura pertença ao primeiro estado, é preciso considerar que
não houve corrupção no sepulcro e que, além disso, tratava-se de uma
tumba nova oferecida por um homem rico nas coisas terrestres, e agora
também nas coisas celestiais. Não garante tudo isso que a glória está
prestes a irromper? Se então o Pai amou tanto o Seu Filho, não devemos
também fazê-lo nós?
47. Ora, Maria Madalena e Maria, mãe de José, observaram
onde ele foi posto. 837

com μιμνήσκω, recordar. Outra palavra para sepultura ou tumba é τάφος; (Mt. 27:61, 64, 66; 28:1).
No domingo pela manhã, quando o sepulcro estava vazio, o “memorial” (μνημε_ον) permanece! Veja-
se as excelentes observações sobre isto em H. Mulder, Spoorzoeker, pp. 157, 158. λελατομημένον,
particípio passivo de λατομέω, lavrar a pedra. Um λατόμος é um entalhador de pedra. λ_ς é uma
pedra, cf. lapidário, lápis-lazúli; τέμνω significa: cortar.
837
_θεώρουν, impf. at. 3ª. pes. pl. de θεωρέω. τέθειται pf. ind. pas. 3ª. pes. sing. de τίθημι.
Marcos (William Hendriksen) 873
Obsérvese lo que se dice acerca de estas mujeres leales en el
versículo 40. Nótese que según ese versículo la segunda María tenía dos
hijos: Jacobo el Menor y José. Aquí en el versículo 47 se la menciona en
conexión con uno de esto dos; en 16:1 con el otro. El Padre celestial se
preocupó de que a cada paso hubiese fieles testigos. En este caso,
diciendo simplemente que estas dos mujeres “vieron” dónde pusieron a
Jesús, no se consigue describir todo el color de la escena. Ellas miraban,
observaban … cuidadosamente, atentamente, devotamente. 838

Resumo do Capítulo 15

Segundo se indica em Mc. 14:64, o Sinédrio tinha condenado Jesus


à pena de morte. As sete seções do presente capítulo continuam a
história.
1. À primeira vista a convocação do supremo concílio judaico
parece uma coisa supérflua. A razão de que não obstante se convoque, é
provavelmente pela necessidade que teve que dar à ação contra Jesus
uma aparência de legalidade. No caso de pena capital, a lei judaica não
permitia que se pronunciasse a sentença até um dia depois de o acusado
ter sido julgado. De modo que então, ao amanhecer, os membros do
Sinédrio fazem o acordo de condenar Jesus à morte. A seguir o amarram,
levam-no e O entregam a Pilatos para a confirmação e execução da
sentença (v. 1).
2. Quando Pilatos obrigou os principais sacerdotes a trazer
acusações concretas contra Jesus, apresentaram várias, todas eles
equivalentes a culpá-Lo de ser revolucionário, de ser um homem que
aspirava ser rei. De modo que Pilatos O interroga sobre isso. Jesus
recusa responder e Pilatos “se maravilhava” (vv. 2–5).
3. Pilatos está ansioso para livrar-se da obrigação de tomar uma
decisão com relação a Jesus. Vê a oportunidade de passar a

838
O Novo Testamento grego usa vários sinônimos do verbo olhar. Estude-se CNT sobre João, p. 90.
Marcos (William Hendriksen) 874
responsabilidade ao povo, quando seus representantes sobem os degraus
que conduzem ao seu quartel para lhe fazer a petição de que, como era
costume na festa, soltasse-lhes um prisioneiro. Pilatos sugere dois
nomes, dos quais o povo devia selecionar um para ser posto em
liberdade. Estes dois eram Jesus e Barrabás. O segundo era um
prisioneiro revolucionário e homicida sentenciado. O governador sugere
que escolham a Jesus para ser posto em liberdade. Estava completamente
informado de que os principais sacerdotes tinham entregue a Jesus por
inveja. Mas enquanto Pilatos estava ocupado considerando uma
mensagem de sua esposa, insistindo com ele para abster-se de qualquer
ação com referência a “este justo” (Mt. 27:19), os principais sacerdotes
tiraram muito bom proveito desta oportunidade. Persuadiram as massas
para pedir a liberdade, não de Jesus, e sim de Barrabás. Totalmente
frustrado, Pilatos pergunta então, “O que, pois, quereis que eu faça com
aquele que vós chamais ‘o rei dos judeus’?” Eles gritam, “Crucifica-o!”
Pilatos repete a viva voz sua convicção de que Jesus é inocente. No
entanto, finalmente, por temor ao que lhe poderia suceder se não
consentir com os desejos do povo (veja-se Jo. 19:12), manda que Jesus
seja açoitado e crucificado (vv. 6–15).
4. Os soldados logo se reúnem ao redor de Jesus para divertir-se
com Ele. Tiram-Lhe as vestes exteriores, lançam em cima um manto de
púrpura como se fosse um manto “real” — realmente não era mais que
um manto de soldado, velho e desbotado — põem com força sobre a Sua
cabeça uma coroa de espinhos, colocam-lhe uma cana na mão a modo de
cetro, e logo depois de um em um, ajoelham-se diante dEle, fingindo
jocosamente que O adoram. Cumprimentam-no, cospem nEle e Lhe
espancam a cabeça com seu próprio “cetro”. Finalmente, tiram-Lhe o
manto de púrpura, põem nEle suas próprias roupas outra vez, e O levam
para ser crucificado (vv. 16–20).
5. Conforme indica João 19:16, 17, no princípio Jesus leva Sua
própria cruz. Mas Seu grande esgotamento físico O impede de levá-la
muito longe. Quando sucumbe sob o seu peso, os legionários, fazendo
Marcos (William Hendriksen) 875
uso de seu direito de requisição, obrigam a Simão Cireneu a levar a cruz.
Marcos lembra aos seus leitores que este Simão era o pai de Alexandre e
Rufo, pessoas às quais os leitores romanos de Marcos conheciam muito
bem. Veja-se Rm. 16:13.
Tendo chegado ao Gólgota, oferecem a Jesus vinho misturado com
mirra, que Jesus recusa beber. Os soldados repartem entre si Suas vestes,
lançando sortes sobre elas para decidir o que caberia a cada um deles. Às
9 da manhã da “Sexta-feira Santa”, Jesus foi crucificado. A inscrição que
anunciava a causa dizia O REI DOS JUDEUS
Crucificaram dois ladrões com Ele, um à esquerda e o outro à
direita. Os que passavam blasfemavam. Moviam a cabeça e diziam
“Ah!” (referido só por Marcos), “Tu que destróis o santuário e, em três
dias, o reedificas! Salva-te a ti mesmo, descendo da cruz!”. Os principais
sacerdotes e os escribas escarneciam. Entretanto, não se dirigiam a Ele;
falavam entre si sobre Ele. Suas zombarias estavam misturadas com ódio
e inveja. Diziam-lhe jocosamente, “Salvou os outros, a si mesmo não
pode salvar-se”. E acrescentavam, “desça agora da cruz o Cristo, o rei de
Israel, para que vejamos e creiamos”. Os que foram crucificados com Ele
enchiam-no também de insultos. Um dos ladrões se arrependeu e foi
salvo, mas isto Marcos não menciona e sim Lucas (Lc. 23:39–43). Até
onde Marcos chega, todo este material se acha nos versículos 21–32.
6. Esta seção registra o grito de agonia de Cristo, “Eloí, Eloí, lamá
sabactâni”, e tem um relato da graça que seguiu. Quando Jesus acabou
de pronunciar a quinta palavra da cruz, “Tenho sede” (Jo. 19:28), deu-se
a ordem — provavelmente pelo compassivo centurião — de dar-lhe de
beber. Alguém — provavelmente um soldado — toma imediatamente
uma esponja empapada com vinho azedo ou vinagre, coloca-a no
extremo de um cano e a aproxima aos lábios de Jesus. Então alguns
gozadores sem coração gritam, “Deixai”. Continuam, “Vejamos se Elias
— um jogo sobre a palavra Eli, (hebraico) ou “Eloí (aramaico) — vem
tirá-lo!”
Marcos (William Hendriksen) 876
Segundo Mc. 15:36b o soldado reage a este clamor, e diz “Deixai”,
quer dizer, “Deixem-me terminar o que estou fazendo”, e então
“vejamos se Elias vem tirá-lo!”. Veja-se a interpretação sobre as várias
possibilidades para interpretar o que o soldado disse.
Depois de aceitar a bebida que Lhe ofereceram, Jesus, com uma
forte exclamação (Lc. 23:46), expirou. O véu do templo se rasgou de alto
a baixo. E o centurião exclamou, “Verdadeiramente, este homem era o
Filho de Deus”. Marcos fecha esta seção chamando a atenção sobre
algumas mulheres muito fiéis que tinham estado ministrando a Jesus na
Galileia, tinham vindo com Ele a Jerusalém e agora estavam paradas ali,
olhando as cenas do Calvário, comovidas e fiéis (vv. 33–41).
7. Era contrário à lei (veja-se Dt. 21:23) deixar um corpo sobre a
cruz durante a noite, especialmente se no próximo dia era sábado. José
de Arimateia, compreendendo que o dia seguinte, que segundo o cálculo
judaico começaria muito em breve (possivelmente num par de horas) não
só era sábado, mas também o sábado mais sagrado de todos, o da semana
de Páscoa, decidiu encarregar-se do corpo de Jesus. José era um distinto
membro do Sinédrio. Era rico. Veja-se Isaías 53:9, que se estava
cumprindo. E era discípulo de Jesus. Entretanto, até aquele momento
nunca se atreveu a confessar a Jesus publicamente. Mas agora, como
resultado da operação da soberana graça de Deus em seu coração, teve
coragem e se declarou abertamente em favor do crucificado. Com
coragem foi a Pilatos e pediu o corpo de Jesus. Informado pelo centurião
de que Jesus realmente tinha morrido, acedeu à petição. Com a
colaboração de Nicodemos, segundo João 19:38–42, José então baixou o
corpo, envolveu-o num tecido de linho e o pôs numa tumba escavada
numa rocha. Fez rodar uma grande pedra à entrada da tumba. Umas fiéis
discípulas estavam observando e viram onde puseram a Jesus (vv. 42–
47).
Marcos (William Hendriksen) 877
B. A RESSURREIÇÃO

MARCOS 16
Mc. 16:1–8 - O Senhor ressuscitado; as mulheres surpreendidas
Cf. Mt. 28:1–8; Lc. 24:1–12; Jo. 20:1–10

O relato de Marcos é mais parecido com o de Mateus (28:1–8) que


aos relatos da ressurreição que nos oferecem Lucas ou João. Os quatro
relatos variam em alguns pontos menores. Em sua maioria estas
variações são facilmente conciliáveis. O mesmo se pode dizer de frases
como, “ao despontar do sol” (Mc. 16:2), “um jovem” (v. 5), e “nada
disseram” (v. 8).
Mateus mistura a história da chegada das mulheres com uma
referência ao terremoto, a dramática descida de um anjo e o terror
experimentado pelos guardas (Mt. 28:2–4). Nos versículos 9 e 10 Mateus
narra a aparição de Cristo ressuscitado às mulheres.
Aos nomes das duas mulheres mencionadas por Mateus, e das três
mencionadas por Marcos, Lucas acrescenta “Joana … e as outras com
elas” (Lc. 24:10). Lucas também faz referência à incredulidade com que
os apóstolos receberam o relato das mulheres (v. 11). No versículo 12
resume brevemente a experiência de Pedro na tumba. João se estende
neste tema: Pedro e João correm à tumba, depois que Maria Madalena
lhes comunica, “Tiraram do sepulcro o Senhor, e não sabemos onde o
puseram” (Jo. 20:1–10).
1. Passado o sábado, Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e
Salomé, compraram aromas para irem embalsamá-lo. 839

839
διαγενομένου το_ σαββάτου, genit. absoluto (literalmente “havendo-se intrometido no sábado”,
quer dizer, “tendo terminado”). Quanto a _γόρασαν, veja-se sobre Mc. 11:15, nota 538. _λθο_σαι,
part. aor. nom. pl. de _ρχομαι; _λείψωσι, subj. aor. 3ª. pes. pl. de _λείφω; portanto, literalmente, “a
fim de que, tendo vindo, pudessem lhe ungir”.
Marcos (William Hendriksen) 878
Tinha passado o sábado. Em consequência era o sábado depois das
6 da tarde. Os bazares se abrem novamente. Então Marcos nos diz que as
três mulheres que foram mencionadas antes (veja-se Mc. 15:40), e duas
das quais se mencionam nos versículos precedentes (Mc. 15:47),
compraram especiarias para poder ir à tumba cedo pela manhã e, sem
perda de tempo, ungir o corpo de Jesus. É verdade que José de Arimateia
e Nicodemos tinham envolto o corpo com tecidos, jogando uma mescla
de mirra e aloés. Mas o corpo morto ainda não tinha sido ungido. O
corpo vivo, sim, tinha sido ungido (Mc. 14:3–9), mas não depois de ter
morrido. Além disso, já tinha transcorrido uma semana desde que
ocorreu a primeira unção.
2. E, muito cedo, no primeiro dia da semana, 840 ao despontar do
sol, 841 foram ao túmulo.
Evidentemente, elas temiam que se esperassem mais, poderia iniciar
o processo de decomposição do corpo.
Quanto à hora em que estas mulheres chegaram, Marcos diz “ao
despontar do sol”; Mt. 28:1 “ao alvorecer”; Lucas 24:1 “alta madrugada”
e João 20:1 “sendo ainda escuro”. Solução provável: embora estivesse
ainda escuro quando as mulheres saíram, o sol havia já saído quando
chegaram à tumba.
É verdade que as mulheres devem ter prestado mais atenção à
reiterada predição do Senhor de que ao terceiro dia ressuscitaria. Por
outro lado, enquanto que podemos criticar sua falta de suficiente fé —
falta que elas compartilharam com os discípulos —, não devemos passar
por alto seu amor e lealdade excepcionais. Elas estavam no Calvário
quando Jesus morreu, no jardim de José de Arimateia quando seu Mestre

840
Não há grande diferença se se entender o plural grego sabbath como referindo-se ao dia ou a toda
uma semana (o tempo transcorrido de um sábado ao outro). Se a referência for ao primeiro, então a
ideia é que este era o primeiro dia contando do sábado; quer dizer, era o primeiro dia depois do
sábado. Se for referente ao segundo, o resultado é igualmente o mesmo; o dia indicado é então não o
último da semana, e sim o primeiro. Em ambos os casos refere-se ao domingo.
841
_νατείλαντος, ptc. aor. de _νατέλλω. Cf. Mc. 4:6; também Mt. 4:16; 5:45; 13:6.
Marcos (William Hendriksen) 879
foi sepultado, e agora muito cedo pela manhã, aqui estão mais uma vez,
para ungir o corpo de Jesus. Enquanto isso, onde estavam os onze?
3, 4. Diziam umas às outras: Quem nos removerá a pedra da
entrada do túmulo? E, olhando, viram que a pedra já estava
removida; pois era muito grande 842 . 843
No caminho rumo à tomba, as mulheres estavam muito preocupadas
com a grande pedra que tampava a entrada da tumba. Perguntavam-se
umas a outras, “Quem nos removerá a pedra?” Mas repentinamente
viram — talvez numa curva da caminho — que a pesada pedra já tinha
sido removida. O que tinha sucedido? Por divina inspiração, Mateus dá a
resposta: “Repentinamente produziu-se um terremoto, pois um anjo do
Senhor baixou do céu, aproximou-se, removeu a pedra e se sentou sobre
ela. Seu aspecto era como um relâmpago e sua vestimenta branca como a
neve” (28:2, 3).
Este interessante detalhe sobre a inquietação das mulheres antes de
ver a pedra já removida, acha-se somente no Evangelho de Marcos.

842
Ou: … A pedra tinha sido removida, porque era muito grande.
843
As palavras colocadas entre parêntese não se acham no texto grego, que só diz “ … quem nos
removerá a pedra da entrada da tumba? Mas (ou: E) levantando a vista, viram que a pedra tinha sido
removida, porque era muito grande”. Uma tradução literal ao português palavra por palavra, faria com
que o leitor pensasse numa destas duas coisas: a. que a pedra tinha sido removida porque era muito
grande; ou b. que as mulheres podiam ver a pedra de longe porque era muito grande. Nenhuma destas
duas interpretações seria muito natural. Muita mais lógica é a explicação que mostra que as mulheres
estavam preocupadas com o tamanho e peso da pedra e a probabilidade de que a essa hora tão anterior
da manhã não houvesse nenhum amigo ou discípulo nas cercanias para ajudá-las. Isto faria impossível
remover este objeto pesado e poder entrar na tumba para ungir o corpo. Esta é uma explicação que faz
justiça ao v. 3. Além disso, as cláusulas explicativas de última hora não são estranhas em grego.
Entretanto, em português o significado não pode ser entendido a menos que se insira uma cláusula
entre parêntese.
Note-se _ποκυλίσει e _ποκεκύλισται; sendo a primeira forma o fut. ind. at. 3a pes. sing. de _ποκυλίω;
e a segunda forma o pf. ind. pas. 3a pes. sing. do mesmo verbo. Cf. cilindro. Em Marcos esta palavra
se acha só nestes dois versículos. Aparece também em Mateus 28:2 e em Lucas 24:2. _ναβλέψασαι é
o part. aor. nom. pl. fem. de _ναβλέπω. Pode significar olhar para cima ou ver outra vez, quer dizer,
recuperar a vista. Mas aqui em Mc. 16:4 o significado “levantando a vista” é obviamente o indicado.
Cf. Mc. 6:41; 7:34; 8:24. Mas em Mc. 10:51, 52 o verbo significa recuperar a vista. Veja-se também
sobre Mc. 8:24, nota 378.
Marcos (William Hendriksen) 880
5. Entrando no túmulo, viram um jovem assentado ao lado direito,
vestido de branco, e ficaram surpreendidas e atemorizadas. 844
Por que teve o anjo que remover a pedra? Não foi para que Jesus
pudesse sair — porque veja-se Jo. 20:19, 26 — senão para que estas
mulheres, e também Pedro e João, pudessem entrar na tumba.
Quando as mulheres chegaram à tumba, o “anjo” (segundo Mateus)
já tinha entrado na tumba. Aqui em Marcos este anjo é chamado “um
jovem vestido com uma túnica branca”. Compare-se isto com a
descrição de Mateus “seu vestido branco como a neve”. É evidente que
Mateus e Marcos descrevem o mesmo ser celestial. Qualquer estudante
da Bíblia sabe que é normal que os anjos apareçam de maneira humana,
de modo que um anjo pode ser chamado “homem”, e inclusive um anjo é
capaz de expressar-se na linguagem humana. Vejam-se Gn. 18:2, 16;
19:1ss.; Jz. 6:12ss.; 13:3, 6; Ez. 9:2. Não menciona também Josefo, com
relação à história de Manoá (Jz. 13) a “um anjo de Deus com o aspecto
de um jovem alto e de aparência agradável”? Veja-se Antiguidades V.
277. Não tem fundamento ver aqui alguma contradição entre Mateus e
Marcos. Veja-se também mais acima sobre Mc. 14:51, 52. E no que
respeita aos “dois anjos” de Lucas e João, veja-se CNT sobre Mateus
28:4.
Se a ideia que se tem é adequada do aspecto geral e da forma da
tumba, segundo se descreve no CNT de João 19:41, 42, p. 719, entender-
se-á a declaração de que “o jovem” estava sentado “à direita”. É
compreensível que as mulheres estivessem “alarmadas” ou
“assustadas” 845 ao ver a pedra removida, o aspecto interior da tumba (em
relação a isto veja-se também Jo. 20:6, 7), e a presença do “jovem” ou
“anjo”.
6. Porém ele disse-lhes: Não vos assusteis; buscais a Jesus, o
Nazareno, que foi crucificado; já ressuscitou, não está aqui; eis aqui o
lugar onde o puseram.
844
Ou: muito assombradas; assim também no seguinte versículo.
845
Veja-se mais acima sobre Mc. 9:15, nota 400.
Marcos (William Hendriksen) 881
“Não vos assusteis”, diz o jovem às mulheres. O que quer dizer é,
“Deixem de fazer o que estão fazendo e alegrai-vos, porque este é um
dia de alegria”. Continua, “Buscais a Jesus, o Nazareno”. 846 Não há
dúvida de que se tratava de Jesus “o Nazareno”, que passou a maior
parte de Sua vida terrestre em Nazaré e voluntariamente Se humilhou a
Si mesmo até a morte, e morte de cruz. Mas agora “ressuscitou”. E para
tranquilizar as mulheres que quase não podem crer no que veem, o anjo
— porque “o jovem” era, afinal de contas, um anjo — brandamente
acrescenta: “Não está aqui; eis aqui o lugar onde o puseram”.
Poderíamos ter esperado uma mensagem diferente; por exemplo,
uma severa repreensão, já que aquelas mulheres ao ir à tumba para ungir
um corpo morto, demonstravam que não tinham levado a sério a
predição de Jesus de que ressuscitaria ao terceiro dia.
Mas já tudo tinha sido perdoado e apagado pelo Salvador
ressuscitado; porque devemos ter em mente que não foi o próprio
mensageiro celestial quem criou esta mensagem de alento. Foi o
Ressuscitado.
O lugar onde O puseram, um declive dentro da grande tumba, está
vazio. Disto se certificam muito bem as mulheres, porque entraram na
tumba. Não somente veem que o lugar está vazio, mas também observam
o bem ordenado que está tudo ao seu redor: os lençóis bem postos; e o
sudário não está revolto com os tecidos, mas dobrado cuidadosamente
num lugar à parte (Jo. 20:6, 7).
O jovem recebeu outra mensagem antes de descer do céu à terra.
Nele se manifesta o mesmo amor, tenro e perdoador:
7. Mas ide, dizei a seus discípulos e a Pedro que ele vai
adiante 847 de vós para a Galiléia; ali o vereis, como ele vos disse.
Note-se: seguem sendo “seus discípulos”, embora na hora de
amarga prova O haviam abandonado tinham fugido. Também é de notar
846
Para “o Nazareno”, veja-se mais acima sobre Mc. 1:24, nota 41; também CNT sobre Mt. 2:23;
26:71; e sobre Jo. 1:46.
847
προάγει pres. ind. 3a pes. sing. de προάγω; veja-se sobre Mc. 14:28, nota 714.
Marcos (William Hendriksen) 882
“e Pedro”, apesar daquelas terríveis negações, apoiadas às vezes por
maldições. É Marcos, o intérprete de Pedro, quem conservou para nós
esta bela pincelada.
Assim, de forma clara e concreta, Marcos prepara o leitor para
esperar uma manifestação do Senhor ressuscitado com Seus discípulos,
algo assim como uma reunião. Esta terá lugar na Galileia, segundo a
promessa de Mc. 14:28, repetida aqui em Mc. 16:7.
Como se cumpriu esta promessa? O começo dessa história — sim,
só o começo — dá-se no versículo:
8. E, saindo elas apressadamente, fugiram do sepulcro, porque
estavam possuídas de temor e assombro; 848 e nada diziam a
ninguém, porque temiam.
O que Marcos claramente diz é que aquelas mulheres estavam
totalmente atemorizadas, profundamente assombradas. Não seria correto
interpretar este êxtase (segundo o grego) como outra coisa que assombro,
perplexidade, estar “fora de si” com terror. Entretanto, a fim de
harmonizar Mateus com Marcos, nem sempre se admite isso. Não é que
estes dois evangelistas estejam realmente em conflito. Não o estão. Mas
nesta passagem particular, Marcos não está pensando na alegria das
mulheres, 849 mas em seu temor e assombro. E foi por causa desta
disposição interna, deste estado mental, que não só fugiram da tumba,
mas também não se detiveram no caminho para contar a outros o motivo
de seu medo. Tinham ficado sem fala. É verdade que também estavam
cheias de alegria, mas não é Marcos quem o menciona. Também é
verdade que ao ter-se recuperado um pouco de seu terror, elas correram

848
τρόμος “tremendo”; só aqui no Evangelho de Marcos. Mas veja-se também 1Co. 2:3; 2Co. 7:15;
Ef. 6:5 e Fp. 2:12. Quanto a _κστασις; (cf. êxtase), Marcos já usou esta palavra uma vez, e também
nesse caso com relação a uma ressurreição dentre os mortos; veja-se mais acima sobre Mc. 5:42.
849
É verdade que a palavra grega _κστασις e o português “êxtase” estão relacionadas
etimologicamente, mas isto não justifica dizer que “a grande alegria” a que se refere Mateus “esteja
coberto por” (segundo Lenski) o _κστασις mencionado por Marcos. Na Escritura, o significado de
_κστασις é , antes, “estar fora de si, com assombro, pasmo, perplexidade” (Mc. 5:42; Lc. 5:26; At.
3:10). Às vezes a palavra indica um transe (At. 10:10; 11:5; 22:17).
Marcos (William Hendriksen) 883
para dar aos apóstolos a mensagem que lhes tinha sido encomendada.
Mas, novamente, não é Marcos quem o conta. É verdade que Jesus em
pessoa, revelou-Se às mulheres. Mas também sobre este tema Marcos
guarda silêncio. E é inegável que Jesus, em cumprimento da mensagem
que Ele e o anjo tinham dado, encontrou-se com Seus seguidores na
Galileia. Entretanto, aqui Marcos também guarda silêncio!
Marcos nos prepara para esperar grandes coisas, uma reunião
maravilhosa na Galileia, mas repentinamente sua mensagem fica
truncada. É isto culpa de Marcos? De maneira nenhuma, segundo se verá
claramente. O que estamos dizendo, junto com muitos outros intérpretes
das diversas correntes teológicas, é que provavelmente não estamos em
posse de tudo o que Marcos escreveu. Isto será evidente quando
estudarmos “o epílogo longo” (vv. 9–20).
Por outro lado, Marcos nos deu um quadro muito vivo do ministério
terrestre de Cristo, de sua morte e ressurreição. O Evangelho de Marcos
está cheio de inesquecíveis manifestações do poder, a graça e o amor de
Cristo. A grande lição que aprendemos da presente seção é que Cristo
não apenas Se levantou vitorioso da tumba, mas também Se revelou a Si
mesmo como o próprio Senhor compreensivo, bondoso e amante que
tinha demonstrado ser em Seus dias anteriores. Por estas boas novas
devemos estar extremamente agradecidos.

O PROBLEMA RELACIONADO COM MARCOS 16:9–20

Escreveu Marcos os versículos 9–20? Embora a Versão Almeida


Atualizada inclua estes versículos, todas as traduções modernas indicam
de uma ou outra forma que há bastante dúvida sobre sua autenticidade.
Por esta razão, a NVI os coloca separados do texto de Marcos e a VP os
coloca entre colchetes. Além disso, a NVI acrescenta uma nota na qual
chama a atenção ao fato de que “Os mss. mais antigos e outros
testemunhos da antiguidade não incluem Mc. 16:9–20. Em lugar desta
Marcos (William Hendriksen) 884
passagem, alguns mss. incluem uma conclusão breve”. A NBE e LT os
tratam como um apêndice.
Contudo, não há unanimidade. Marcos 16:9–20 também tem
enérgicos defensores. O autor do presente comentário voltou a ler
recentemente a defesa feita por J. W. Burgon, The Last Twelve Verses of
Mark (reimpressão Ann Arbor, 1959) e também as observações do
R.C.H. Lenski, Op. cit., pp. 471–486; e de E. F. Hills, The King James
Version Defended (Des Moines, 1956), pp. 102–113. Com quanto vigor
estes homens argumentam em favor de sua tese! Ao ler Burgon, recebe-
se às vezes a impressão de que a “ortodoxia” dependesse da conservação
destes controvertidos versículos.
Se alguém pensar que o conflito de opiniões dá-se entre a
“ortodoxia” e o “liberalismo” (ou “modernismo”), estaria muito errado.
É verdade que as liberais rejeitam a ideia de que João Marcos escrevesse
estes doze versículos, mas, por outro lado, nada menos que o consumado
ortodoxo e campeão da fé, o já falecido Dr. N. B. Stonehouse, rejeitou-os
também. Veja-se seu livro, The Witness of Matthew and Mark to Christ
(Filadélfia, 1944), pp. 86–118.
Num comentário não há lugar para uma análise das muitas posturas
que se defendem com relação a este tema. As principais são duas:
A. Marcos escreveu 16:9–20.
B. Marcos não escreveu 16:9–20.
Os que defendem B. estão por sua vez divididos em dois grupos que
dizem:
1. O propósito de Marcos foi concluir seu Evangelho com as
palavras de 16:8, “… porque tinham medo”. Este é o ponto de vista
defendido pelo Stonehouse e outros. 850

850
Entre aqueles que adotaram a mesma posição estão: E. R. Gould, Op. cit., pp. 301, 304; J. Behm,
Einleitung in das Neue Testament (Heidelberg, 1963), p. 55ss.; M. H. Bolkestein, Op. cit., pp. 364–
366 (inclinam-se nesta direção); E. Lohmeyer, Das Evangelium des Markus (Gotinga, 1937), pp. 356–
360; A. M. Farrer, The Glass of Vision (Londres, 1948), pp. 136–146; R. H. Lightfoot, The Gospel
Message of St. Mark (Oxford, 1850), pp. 80–97, 106–116.
Marcos (William Hendriksen) 885
2. O propósito de Marcos não foi concluir seu Evangelho neste
ponto. Este é o ponto de vista predominante. 851
Qual é, então, a posição do autor do presente Comentário? Quanto à
proposição A., Não creio que Marcos escrevesse 16:9–20. Minhas
principais razões são duas:
a. A evidência externa ou textual não apoia estes versículos.
Faltam-nos dois códices mais antigos: B e Álef (Vaticano e Sinaítico), e
o códice K (codex Bobbiensis, o melhor e mais cedo exemplar do texto
Antigo Latino Africano), e o Siríaco Sinaítico, assim como em outros
manuscritos muito antigos. Alguns pais primitivos da igreja, tais como
Clemente de Alexandria e Orígenes, parecem não ter conhecido estes
versículos. Eusébio foi o famoso historiador eclesiástico que nasceu pelo
ano 260 d.C. e que morreu mais ou menos no ano 340. Este historiador
afirma que “as cópias mais exatas” e “quase todas as cópias” do
Evangelho de Marcos terminavam com as palavras de 16:8, “… porque
tinham medo”. Jerônimo, nascido provavelmente perto do ano em que
morreu Eusébio, e igual a ele morto à idade de aproximadamente oitenta
anos, também escreve que em quase todas as cópias gregas faltam os
versículos 9–20.
Não se pode negar que muitos manuscritos gregos, sim, contêm
estas palavras, mas quando a evidência dos manuscritos se avalia
corretamente, em lugar de limitar-se a um mero reconto de palavras, a
balança se inclina fortemente em favor da omissão destes discutidos
versículos.
b. A evidência interna tampouco os apoia.
(1) Argumento baseado no vocabulário. Esta evidência é bastante
forte. A fim de pesar sua importância, deve-se comparar cuidadosamente
16:1–8 com 16:9–20. Nos versículos 1–8 se encontrarão provavelmente
só quatro palavras que não foram já usadas pelo evangelista no resto do

851
Incluídos entre aqueles que o sustentam estão: V. Taylor, Op. cit., p. 609; A. T. Robertson, Word
Pictures, vol. I. p. 402; B. M. Metzger, The Text of the New Testament (Oxford, 1964), p. 228.
Marcos (William Hendriksen) 886
livro (Mc. 1:1–15:4-7). Agora, estudem-se os versículos 9–20. Aqui
encontramos pelo menos quatorze palavras diferentes que não se acham
na parte prévia do livro.
Pelo fato de que algumas destas “novas” palavras aparecem mais de
uma vez nos versículos discutidos, o número real de ocorrências é de
umas dezoito. Também encontram-se palavras usadas de forma diferente
do resto de Marcos. E além disso há frases peculiares. 852

852

Novas palavras
Forma usada aqui Significado da forma
Versículo (para o significado desta Forma básica básica (a primeira
forma veja-se a tradução). ocorrência está em
itálico).
10 πορευθε_σα πορεύομαι ir
10 πενθο_σι πενθέω lamentar
11 _θεάθη θεάομαι ver
11 _πίστησαν _πιστέω não crer
12 _τέρ_ _τερος-α-ον diferente
12 μορφ_ μορφή forma
12 πορευομένοις πορεύομαι ir
14 _στερον _στερος-α-ον Depois
14 Θεασαμένοις θεάομαι ver
15 πορευθέντες πορεύομαι ir
16 _πιστήσας _πιστέω não crer
18 _φεις _φις serpente
18 θανάσιμον θανάσιμος-ον mortal
18 βλάψ_ βλάπτω danificar
19 _νελήμφθη _ναλαμβάνω recolher
20 συνεργο_ντος συνεργέω colaborar
20 βεβαιο_ντος βεβαιόω confirmar
20 _πακολουθούντων _πακολουθέω Seguir, assistir

Quanto a palavras usadas de uma forma diferente que no resto de Marcos, note-se _κε_νος nos vv. 10,
11, 13 (duas vezes) e 20; e φαίνω no v. 9.
Quanto a frases peculiares, note-se μετ_ τα_τα, “depois” — literalmente “depois destas coisas” — (v.
12), que se acha indubitavelmente em Lucas (p. ex., Lc. 5:27; 10:1, etc.) e em João (Jo. 3:22; 5:1; 6:1;
7:1; etc.), mas em nenhum outro lugar de Marcos, e nem mesmo de Mateus.
“Falarão em novas línguas” (v. 17) lembra-nos At. 2:4, 11; 10:46; 19:6; 1Co. 12:30; e 1Co. 14.
Marcos (William Hendriksen) 887
(2) Argumento baseado no estilo. Entretanto, mais que o
vocabulário e a fraseologia, é o estilo de Marcos 16:9–20 o que talvez
aponta em direção a outro escritor distinto de João Marcos. Nos
primeiros oito versículos deste capítulo, versículos definitivamente
escritos por Marcos, a conjunção “e” — grego kai — no começo das
orações ou as cláusulas (não contamos os outros kai) aparece oito
vezes, 853 mas nos seguintes doze versículos kai cumpre essa mesma
função só seis ou sete vezes. 854 Isto significa que nos primeiros oito
versículos kai aparece, por meio termo, uma vez em cada versículo; nos
últimos doze versículos, só uma vez (ou um pouco mais de uma vez) por
cada dois versículos, em média.
Há, em consequência, uma transição de coordenação para
subordinação de cláusulas; de uso paratático a hipotático. A transição,
por certo, não é radical nem absoluta: inclusive nos últimos doze
versículos há um certo grau de coordenação. Mas a diferença não
obstante é algo surpreendente.
Além disso, falando de estilo, ao fazer a transição de 16:1–8 a 16:9–
20, quem não percebe o chamativo contraste entre o estilo gráfico e
colorido do primeiro e o prosaico, resumido estilo do último?
(3) Argumento baseado no conteúdo. Se tudo isso não nos pôde
convencer de que aquele que escreveu os versículos 1–8 não é o mesmo
que aquele que escreveu os versículos 9–20, o fato que vamos mencionar
certamente o fará. Em Marcos 16:1–8, o “jovem vestido com uma túnica
branca” encomenda às mulheres que lembrem aos “discípulos e a Pedro”
que o Jesus ressuscitado se reunirá com eles na Galileia. Seria de

853
Uma vez no começo de cada um dos seguintes versículos: 1, 2, 3, 4, duas vezes no v. 5 e também
duas vezes no v. 8.
854
Não posso seguir ao Stonehouse quando em seu livro The Witness of Matthew and Mary to Christ,
p. 91, não encontra nem sequer um caso deste uso de kai no epílogo longo. Em minha própria conta
chego até seis excluindo o kai pouco garantido no começo do v. 18. Se se incluir este kai também, o
número chega a sete: uma vez no começo dos seguintes versículos: 11, 13, 15; três vezes no v. 18 (“e
eles tomarão … e se beberem … e curarão), e uma vez no v. 19. Estou em completo acordo com a
opinião do Stonehouse de que o estilo de 16:9–20 difere dos vv. 1–8.
Marcos (William Hendriksen) 888
esperar-se, portanto, que se devem relatar algumas aparições do Senhor,
seriam as que aconteceram na Galileia. O que realmente sucede é
justamente o contrário: os versículos 9–20 nem sequer mencionam onde
sucederam as aparições ali mencionadas, se na Judeia ou na Galileia.
Pelo Evangelho de João (20:1, 2, 11–18) sabemos que a aparição a Maria
Madalena (Mc. 16:9–11), mencionada antes de todas as demais, teve
lugar na região de Jerusalém; por Lucas (24:13–35) sabemos que a
aparição aos dois homens que iam caminhando pelo campo (Mc. 16:12,
13) sucedeu também naquela vizinhança geral. Logo, Lucas (24:36ss.)
descreve uma aparição de Jesus aos onze, etc., a qual Marcos parece
referir-se no versículo 14. Esta aparição tampouco teve nada a ver com a
Galileia. A única conexão possível com a Galileia está em 16:15–20;
porque os versículos 15, 16 de Marcos se assemelham a Mateus 28:19,
que refere as palavras ditas pelo Senhor ressuscitado na Galileia (Mt.
28:16). Mas até aqui, seja ele quem for que tenha escrito Marcos
16:15ss. nunca menciona Galileia absolutamente.
O fato de que haja pouca conexão, se é que há alguma, entre
Marcos 16:1–8 e os versículos 9–20 vê-se também muito claro pela
própria natureza do começo da seção que estamos discutindo. Maria
Madalena acaba de ser mencionada duas vezes (Mc. 15:47; 16:1). Logo,
no versículo 9, é apresentada como se nunca tivesse sido mencionada:
“Maria Madalena, da qual tinha expulsado sete demônios” (cf. Lc. 8:2).
Ficou demonstrado, então, que devemos rejeitar a proposição A,
que afirma que Marcos escreveu a passagem 16:9–20. Em consequência
devemos aceitar a proposição B, que diz que Marcos não escreveu a
passagem 16:9–20. Mas qual de suas duas versões aceitamos?
Segundo a primeira tese da postura B., a intenção de Marcos era
concluir seu Evangelho com as palavras de 16:8, “porque tinham medo”.
Bem como outros, não me sinto satisfeito com esta solução. Minhas
objeções são:
Marcos (William Hendriksen) 889
a. Não se achou nunca outro caso de algum livro da Escritura que
termine de forma tão abrupta. 855
b. Não só é esta terminação muito abrupta, mas também além disso
é muito pessimista. Segundo Mateus 28:8 as mulheres partiram da tumba
“com temor e grande alegria”. Pretendeu Marcos, ao inverso, terminar
sua história com uma nota lôbrega?
c. Lembremos que naquele tempo ainda não chegava a época da
literatura de ficção moderna. Hoje em dia, em certos círculos literários
está na moda criar um drama agonizante e deixar ao leitor suspenso à
beira do precipício, imaginando no que vai terminar aquilo.
Repentinamente a história conclui … sem desenlace real algum. Está
Marcos fazendo algo similar?
Em resposta deve-se dizer que esta objeção não parece justa, visto
que inclusive Marcos mencionou a ressurreição de Cristo. Mas Marcos
fala também da promessa de uma reunião de Jesus com seus discípulos
na Galileia (vv. 6, 7). Não sem razão, portanto, o leitor espera ouvir algo
a respeito de tal reunião. Mas nada semelhante sucede. Por certo, ao
chegar ao versículo 15 o cenário é provavelmente Galileia, mas segundo
se assinalou previamente, a conclusão de Marcos nem sequer o diz.
Por conseguinte, o ponto de vista aceito pelo escritor do presente
comentário é o B 2. O propósito de Marcos não foi concluir seu
Evangelho neste ponto.
Tem-se apresentado, então, os interrogantes: “Então não terminou
Marcos alguma vez sua narração? Se não, por que não? Se o fez, o que
sucedeu com suas linhas finais?”.
Tem-se dado todo tipo de respostas a estas perguntas, e cada uma
delas foi refutada de forma imediata e devastadora. Não desejo
acrescentar mais a esta confusão.
Por razões teológicas poderia levantar-se a objeção, “Mas Deus não
permitiria que Sua palavra ficasse inconclusa!”. A resposta é: “Embora

855
_φοβο_ντο γάρ.
Marcos (William Hendriksen) 890
bem poderia ser verdade que o Evangelho segundo Marcos ficasse diante
de nossos olhos inconcluso, a história em si continua até a mais
triunfante conclusão em Mateus 28:16–20.
O que devemos pensar, então, de Marcos 16:9–20, quer dizer do
epílogo? Trata-se de um resumo interessante de algumas das aparições
do Salvador ressuscitado e de sua ascensão subsequente para sentar-se à
direita de Deus. Quanto a isso, é de grande utilidade, porque nos dá o
ponto de vista que mantinha a igreja primitiva — embora não se pode
apreciar com precisão até que ponto — a respeito destas coisas. Na
medida em que este final reflita verdadeiramente o que se acha no
interior da Bíblia, pode considerar-se como produto, embora indireto, da
inspiração divina. Pelo fato de que seria muito difícil — talvez
impossível — defender a tese de que cada palavra deste epílogo seja sem
defeito, nenhum sermão nem doutrina nem prática deveria basear-se
somente em seu conteúdo.
***

Além de este “epílogo longo” existe também um “epílogo curto”


que alguns manuscritos acrescentam depois do versículo 8, como segue:
“Mas todas as coisas que lhes foram ditas relataram-nas brevemente a
Pedro e aos que estavam com ele. Por meio deles Jesus depois enviou, do
oriente até o ocidente, a santa e incorruptível proclamação da salvação
eterna”. Visto que este epílogo goza até de menos aceitação que o outro
mais longo, e que seu caráter espúrio é evidente à primeira vista, não é
necessário fazer mais observações. O mesmo pode-se dizer também de
outros epílogos.

BREVES NOTAS SOBRE O EPÍLOGO LONGO (Mc. 16:9–20)


que designaremos simplesmente como o epílogo.
Marcos (William Hendriksen) 891
Mc. 16:9–11 - A aparição de Cristo a Maria Madalena
Cf. Mt. 28:9, 10; Jo. 20:11–18

O começo é um pouco abrupto, porque temos que voltar até o


versículo 6 para encontrar a Jesus mencionado pelo nome. Além disso,
aqui nos versículos 9–11 seu nome nunca aparece. Na realidade, até o
versículo 19 não é revelada a identidade dAquele de quem se dizem
coisas tão maravilhosas. Poderia ser que os versículos 9–11, ou talvez
inclusive os versículos 9–20 formassem parte da terminação de algum
relato extraviado?
O que temos na presente passagem é um resumo de João 20:11–18.
Veja-se CNT sobre essa seção. Este resumo é breve, direto e
compreensivo. Inclui todos os pontos importantes. Jesus ressuscitou no
primeiro dia da semana e apareceu primeiro a Maria Madalena,
premiando sua lealdade e continuando a boa obra que tinha começado
nela antes (Lc. 8:2; Fp. 1:6). Obedecendo o mandato de Cristo, disse aos
discípulos e aos que estavam com eles: “Jesus vive, e eu O vi.”
Implicitamente dá-se por realizada a reunião dos discípulos que se
tinham dispersado. Maria Madalena encontrou-se com o grupo
lamentando e chorando. Isto é fácil de crer, porque suas esperanças se
desmoronaram. Estavam perplexos e confundidos, e embora as palavras
que agora estavam escutando fossem tão preciosas como “maçãs de ouro
em salvas de prata”, consideraram-nas muito boas para ser verdade. À
luz de Lc. 24:11 e Jo 20:25, nada há em Mar. 16:9–11 que seja difícil de
aceitar como conforme os fatos históricos.

Mc. 16:12, 13 - A aparição a dois de Seus discípulos


Cf. Lucas 24:13–35
Depois de resumir uma seção do evangelho de João, o relato volta-
se agora a Lucas. Depois de explicar o que sucedeu o dia de Páscoa pela
manhã, a narração se centraliza nos eventos do mesmo dia pela tarde.
Marcos (William Hendriksen) 892
O resumo é muito breve; mas a seção que se resume é muito longa
(Lc. 24:13–35). O epílogo apresenta certas dificuldades. Diz-nos “de um
modo diferente” que Jesus apareceu a dois homens que iam a caminho
— trata-se de Cleopas e seu acompanhante (Lc. 24:18). Não sabemos
exatamente o que isto significa. Quer nos dizer este epílogo que Jesus
não apareceu como “jardineiro” (Jo. 20:15), e sim como um caminhante
ou viajante?
O relato de que Jesus apareceu a estes dois homens e Se uniu a eles
enquanto “iam caminhado pelo campo” concorda com a afirmação de
Lucas de que os dois “iam [claramente de Jerusalém] à uma aldeia
chamada Emaús”. E a afirmação acrescentada que faz este epílogo no
sentido de que os dois homens voltaram (a Jerusalém) e informaram os
outros a respeito de sua experiência, está em concordância com a história
de Lucas.
Ao chegar a este ponto apresenta-se um verdadeiro problema. O
epílogo diz-nos que quando estes dois homens contaram sua
emocionante experiência aos seguidores de Cristo que estavam reunidos,
a história só produziu incredulidade. Mas a versão de Lucas é: “Acharam
reunidos os onze e outros com eles, os quais diziam: O Senhor
ressuscitou e já apareceu a Simão!” Uma possível explicação seria que
alguns dos seguidores de Cristo haviam aceito já a gloriosa verdade da
ressurreição, enquanto outros ainda duvidavam. A passagem de Lucas
24:37–41 (cf. Mt. 28:17) possivelmente dá algo de apoio a esta tese. Se
esta não fosse a resposta, poderia dizer-se que este ponto controvertido
do epílogo baseia-se possivelmente em alguma tradição errônea?
Devemos ter em mente que o epílogo não é necessariamente infalível,
como o é o relato de Lucas.
Marcos (William Hendriksen) 893
Mc. 16:14–18 - A Grande Comissão e os sinais
Cf. Mt. 28:16–20; Lc. 24:36–49; Jo. 20:19–23; At. 1:6–8

18 pegarão em serpentes; 856 e, se alguma coisa mortífera


beberem, não lhes fará mal; se impuserem as mãos sobre enfermos,
eles ficarão curados.
Novamente nos encontramos sem indicação de lugar nem de tempo;
a única coisa que temos é “mais tarde” (v. 14). Entretanto parece que a
referência do versículo 14 é ainda à tarde do dia de ressurreição. Foi
então quando a falta de fé manifestou-se, e isto não só no coração e
mente de Tomé (Jo. 20:24), mas também nos outros dez discípulos.
Veja-se Lc. 24:36–49. Quando repentinamente apareceu Jesus diante de
Seus discípulos no lugar de reunião em Jerusalém, eles pensaram que se
tratava de um fantasma, e mesmo depois eles ainda “por não acreditarem
eles ainda, por causa da alegria”. Lucas 24:42 poderia confirmar
indiretamente as palavras do epílogo indicando que Jesus lhes apareceu
“estando eles reclinados à mesa”.
Uma vez que o epílogo já resumiu as aparições registradas
especialmente em João e em Lucas, cabe a Mateus. No versículo 15 a
cena muda de Jerusalém a Galileia, conforme indica o paralelo de
Mateus 28:16–20. O versículo 15 do epílogo é aproximadamente
paralelo a Mateus 28:19, “A grande comissão” (veja-se CNT sobre essa
passagem). A ênfase do versículo 16 no epílogo não recai sobre o
batismo, e sim no exercício da fé, tal como em Mateus; cf. também Jo.
3:16, 18, 36. Por outro lado, a pessoa que pela soberana graça de Deus se
rendeu a Cristo aceitará também com gratidão o batismo como sinal e
selo da salvação. De modo que o batismo segue à fé, tal como em Atos
2:41; 16:31–34, e em todos os lugares.

856
A frase “com suas mãos” é omitida em alguns manuscritos.
Marcos (William Hendriksen) 894
Os versículos 17, 18 do epílogo deram lugar a muitos mal-
entendidos e tristes situações. Apresenta-se aqui a Jesus prometendo
cinco sinais que acompanharão os que crerem:
a. poder para expulsar demônios
b. capacidade para falar novas línguas
c. capacidade para pegar serpentes com as mãos, quer dizer,
serpentes venenosas sem sofrer dano físico
d. o dom de poder beber veneno mortal sem sofrer dano algum
e. poder para curar doentes pondo as mãos sobre eles.
Agora, a. e e. não apresentam nenhuma dificuldade especial. De
fato, Jesus comunicou tais dons aos discípulos, e estes fizeram uso deles
com bons resultados. Veja-se Mt. 10:1; Mc. 9:38; Lc. 10:17; At. 5:16;
8:7; 16:18; 19:12.
Algo similar sucede com relação a c., o dom de línguas. Vejam-se
At 2:4; 10:46; 19:6; 1Co. 12:10, 28, 30; e todo o capítulo 14 de 1
Coríntios.
Com relação a estes dons especiais (a., b. e e.) B. B. Warfield diz,
“Estes dons foram parte das credenciais dos apóstolos como agentes
autorizados de Deus para fundar a igreja.… Estes (os dons)
necessariamente caducaram ao cumprir o objetivo”. O testemunho de
Crisóstomo e Agostinho também postula que com o término da era
apostólica estes dons terminaram. Foi também o ponto de vista de
Jônatas Edwards: “Estes dons especiais foram dados com o fim de
fundar e estabelecer a igreja no mundo. Mas pelo fato de que o cânon das
Escrituras já se completou, e a igreja está totalmente fundada e
estabelecida, estes dons extraordinários cessaram”. Entre outros que
expressaram pontos de vista similares estão Matthew Henry, George
Whitefield, Charles H. Spurgeon, Robert L. Dabney, Abraão Kuyper, Sr.
e W. G. T. Shedd. 857
857
Para referências exatas a estas declarações, começando com B. B. Warfield, veja-se The Outlook,
periódico de The Reformed Fellowship, publicado em Grand Rapids, Mich., a edição de outubro 1973
(Vol. XXIII Nº. 10) pp. 22–24.
Marcos (William Hendriksen) 895
O epílogo menciona outros dois sinais que supostamente Jesus
prometeu a Seus discípulos, ou seja, o poder para tomar serpentes com
suas mãos, e beber venenos mortais sem prejuízo algum para eles (veja-
se c. e d. mais acima). Os que aceitam que o epílogo é Escritura Santa,
totalmente inspirada e infalível, acham a confirmação para o ponto c. em
Lucas 10:19 e Atos 28:3. Veja-se Lenski, Op. cit., p. 483. Entretanto,
Lucas 10:19 fala de “pisar serpentes”, o que não é exatamente o mesmo
que pegar intencionalmente. Segundo Atos 28:3, Paulo recolheu uns
ramos secos e, depois de colocá-los no fogo, sai uma serpente que se
prende à sua mão. Ele a sacode sem sofrer dano algum. Mas certamente
isto não é o que a conclusão diz. Paulo não agarrou deliberadamente uma
serpente venenosa! E quanto a beber veneno mortal sem sofrer dano,
Lenski reconhece que o Novo Testamento não oferece exemplo algum
disso. A. B. Bruce, Op. cit., 456, 457, está provavelmente certo ao
manifestar: “Pegar serpentes venenosas e beber venenos mortais parece
introduzir-nos na penumbra da história apócrifa”. E além disso, correr
tais riscos é algo que, indiretamente, Jesus condenou tanto com Seu
exemplo (Mt. 4:7) como por Seu ensino (Mt. 10:23; 24:16–19).
Com muita frequência os periódicos referem atos de fanáticos
religiosos que tomam serpentes venenosas e/ou bebem venenos mortais,
frequentemente com lamentáveis resultados. Os que fazem isto
justificam às vezes sua estranha conduta apelando a Marcos 16:18. É
hora de que se diga a todos que o epílogo é obrigatório para nossa fé e
prática só até o ponto em que seu ensino seja explicitamente apoiado
pela Escritura em geral. Na realidade, deve-se dizer que estes pontos que
falam de pegar serpentes e beber venenos não se devem considerar
bíblicos em nenhum caso!
É possível, na realidade, que com relação a quatro dos cinco pontos
mencionados, o ambiente histórico é posterior ao tempo da vida de
Cristo na terra. Devem-se ter em mente os seguintes pontos:
A capacidade para falar novas línguas não se menciona nunca nos
Evangelhos. Tampouco a capacidade para agarrar serpentes venenosas
Marcos (William Hendriksen) 896
ou beber bebidas venenosas sem sofrer dano algum. E embora o dom de
realizar curas milagrosas seja mencionado claramente nos Evangelhos, é
preciso considerar a possibilidade de que a mudança de “ungindo-os com
óleo” (veja-se Mc. 6:13) a “se impuserem as mãos sobre enfermos” (aqui
em 16:18) mereça uma consideração especial.
Os leitores em geral devem estar informados da verdade com
relação a Marcos 16:17, 18.

Mc. 16:19, 20 - A ascensão de Cristo


Cf. Lc. 24:50–53; At. 1:9–11

A doutrina da ascensão de Cristo e particularmente de haver-se


assentado à direita do Pai era muito apreciada pela igreja apostólica e
ocupava um lugar proeminente em seu pensamento e confissão (At. 2:36;
7:55, 56; Rm. 8:34; Ef. 1:20–23; Cl. 3:1; Hb. 1:3, 4; 2:9; 8:1; 10:12; Ap.
3:21; 5:5–14). O epílogo resume esta doutrina de forma muito bela.
Note-se especialmente o seguinte:
a. “o Senhor Jesus”. O senhorio foi atribuído a Jesus especialmente
depois da ressurreição. Entretanto, tendo tomado nota de Marcos 11:3
(veja-se sobre essa passagem) não nos estranhamos de ver este título no
epílogo.
b. “foi recebido no céu”. Não diz aqui “subiu ao céu” — embora
também isto teria sido inteiramente adequado (Jo. 3:13; 6:62; 20:17; At.
2:34; Ef. 4:8, 9), mas “foi recebido no céu” (cf. At. 1:2, 11, 22; 1Tm.
3:16; Ap. 12:5; e veja-se também 2Rs. 2:3, 5, 11). Dito de outro modo, a
atenção se enfoca aqui no fato de que foi o Pai quem levou o Seu Filho a
si mesmo, com o grande desejo, por assim dizer, de recompensá-Lo por
ter realizado Sua obra mediadora.
Os onze “tendo partido” ou “partiram”. Isto evidentemente significa
“de Jerusalém”. Entretanto, não está em conflito com Marcos 14:28;
16:7. O epílogo, segundo se mencionou previamente, não está
interessado em mencionar lugares. O epílogo não contradiz de modo
Marcos (William Hendriksen) 897
algum a possibilidade de que pouco depois de reunir-se com Seus
discípulos na Galileia, Jesus fizesse Sua aparição em Jerusalém e logo os
levasse até estar diante de Betânia, onde se separou deles (Lc. 24:36, 50,
51).
Em obediência ao mandamento de Cristo (v. 15; cf. Mt. 28:19) os
discípulos “pregaram por todas as partes”, uma declaração que se
poderia naturalmente associar com um período da história grandemente
posterior a Pentecostes.
Entretanto, sua pregação teria sido ineficaz se não tivesse sido pelo
poder habilitador do Senhor, que estava “cooperando com eles o Senhor”
(cf. Rm. 8:28) e “e confirmando a palavra por meio de sinais, que se
seguiam” (veja-se não só a referência à expulsão de demônios, novas
línguas, e curas milagrosas, vv. 17, 18, 858 mas também Hb. 2:4).
O epílogo termina com esta bela nota. Falando de modo geral, nada
há em toda a conclusão (vv. 9–20) que seja mais sereno, consolador,
verdadeiro, e belo que estes dois versículos finais. Apontam estes ao
“Senhor Jesus” como Aquele que, desde Sua posição à destra de Deus,
meigamente vigia, guia, fortalece e governa sua igreja.

Resumo do Capítulo 16

Este capítulo consiste em duas partes: versículos 1–8 e versículos


9–20. Sem dúvida, o próprio Marcos foi o escritor inspirado da primeira
parte. Os argumentos baseados na omissão da segunda parte nas
melhores fontes gregas, e no vocabulário, estilo e conteúdo,
convenceram a muitos estudiosos de que os versículos 9–20 não são
autênticos, quer dizer, que são de origem duvidosa, provavelmente não
escritos por João Marcos. Não se sabe quem tenha sido o verdadeiro
escritor.

858
Se o escritor do epílogo estava pensando no grupo completo dos cinco “sinais”, então não podemos
concordar inteiramente com ele.
Marcos (William Hendriksen) 898
A. versículos 1–8
No versículo 1 Marcos relata o que sucedeu no sábado de noite,
quando três mulheres leais a Jesus, compraram especiarias para ungir o
Seu corpo.
Nos versículos 2–8 o evangelista narra o que sucedeu a estas
amizades ou discípulas de Jesus no domingo pela manhã muito cedo: sua
preocupação pela grande pedra colocada à entrada da tumba, sua
surpresa ao descobrir que a pedra já tinha sido removida, e sua entrada à
tumba onde lhes falou um jovem vestido com uma vestimenta branca.
Mateus chama a este jovem um “anjo”. Este comunicou a mensagem de
Cristo às mulheres. Foi a notícia prazerosa do dia da ressurreição:
“ressuscitou, não está mais aqui; vede o lugar onde o tinham posto”. O
“jovem” lhes comunicou também a ordem de Cristo. Disse, “Mas ide,
dizei a seus discípulos e a Pedro que ele vai adiante de vós para a
Galiléia; lá o vereis, como ele vos disse”.
Entretanto, Marcos não relata a própria reunião com Seus discípulos
na Galileia. Este episódio devemos buscar em Mateus 28:16–20. O relato
de Marcos fecha com as palavras do versículo 8: “E, saindo elas, fugiram
do sepulcro, porque estavam possuídas de temor e de assombro; e, de
medo, nada disseram a ninguém”.

B. versículos 9–20
Um autor desconhecido resume brevemente o relatório de João
sobre a aparição de Jesus a Maria Madalena (Jerusalém, no dia da
ressurreição pela manhã cedo). Cf. Mc. 16:9–11 com Jo. 20:11–18. A
história de Lucas sobre a aparição de Jesus aos dois discípulos que iam a
caminho de Emaús (o dia da ressurreição pela tarde) é a base das poucas
linhas que seguem. Cf. Mc. 16:12, 13 com Lc. 24:13–35. O sucedido
pela tarde do dia da ressurreição é resumido em Marcos 16:14: reunião
de Jesus com Seus discípulos em Jerusalém.
Isto é seguido por um paralelismo do relato de Mateus sobre a
grande comissão. Cf. Mc. 16:15, 16 com Mt. 28:19. Em Mc. 16:17, 18
Marcos (William Hendriksen) 899
encontra-se um relatório controvertido a respeito de certos “sinais” que,
diz-se, Jesus tinha prometido aos Seus seguidores. Nem todos estes
“sinais” têm apoio no resto da Escritura, embora algumas, sim, o têm. Os
versículos finais (Mc. 16:19, 20) expressam a fé firmemente arraigada da
primitiva igreja cristã na ascensão de Cristo e o subsequente ato de
sentar-se à destra de Deus. A seção é fechada com as seguintes palavras,
“E eles, tendo partido, pregaram em toda parte, cooperando com eles o
Senhor e confirmando a palavra por meio de sinais, que se seguiam”.
Marcos (William Hendriksen) 900
BIBLIOGRAFIA SELETA
Entre as muitas obras sobre este Evangelho, duas são talvez as mais
extensamente conhecidas:
Swete, H. B. The Gospel according to St. Mark. Londres, 1913
Taylor, V. The Gospel according to St. Mark. Londres, 1953

Outros títulos que merecem com justiça ser incluídos numa


bibliografia seleta são:
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vol. I), Grand Rapids, sem data.
Calvino, J. Commentary on a Harmony of the Evangelists, Matthew,
Mark, and Luke (trad. De Commentarius in Harmoniam
Evangelicam, Opera Omnia), Grand Rapids, 1949ss.
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Testament Commentaries), Grand Rapids, 1961.
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Filadélfia, 1944. Embora não é no sentido estrito da palavra um
comentário, o livro arroja luz sobre muitas passagens do
Evangelho de Marcos.
Marcos (William Hendriksen) 901
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