Professional Documents
Culture Documents
2
ANDRÉIA DE SOUSA MARTINS
_______________________________________________ _________
PROF. DR. CLÁUDIO CARDOSO DE PAIVA – Orientador
Universidade Federal da Paraíba
________________________________________________ _________
PROFª. DRª. JOANA BELARMINO
Universidade Federal da Paraíba
_________________________________________________ _________
PROF. DR. DINARTE BEZERRA VARELA
Universidade Federal da Paraíba
Média: __________
3
Resumo
Abstract
Here’s a study of death’s symbology within the fields of digital communication, based
on communication’s anthropology. This work aims to analyze the theme of death on the
mass media (such as television) and post massive media (such as the Internet).
Empirically, it explores the Eloá case, whose murder was covered by the live media and
generated the creation of a series of virtual profiles on the Orkut network. After a
historical and theorical, conceptual review of death at western’s imaginary, this research
aims, as an interpretative study, to understand how this extreme experience is inserted
on the public spaces of the media society. As epistemological bases, this work was
inspired on the philosophical, aesthetical and myth-poetics legacies of Dante, Goethe,
Dostoievski, Calvino, Borges and assembles the contributions of Edgar Morin, Philippe
Ariès, Jean Baudrillard between others intellectual names of death’s symbology inserted
in our cultural manners and communication history.
4
Agradecimentos:
5
Para
O avô, Zico,
O amor, Julio César, e
O amigo, Igor Bezerra.
6
Devia ter morrido mais tarde;
Então, houvera ocasião certa para tal palavra.
Um amanhã, outro amanhã e outro amanhã,
Se arrastam em passos curtos dia após dia
Até a última sílaba da escrita do tempo.
E todos os nossos ontens sinalizam aos bobos o caminho para o pó da morte.
Apaga-te! Apaga-te, pequena chama!
A vida é apenas uma sombra que caminha. Um pobre ator
Que se pavoneia e treme em seu momento no palco e desaparece; nunca mais é ouvido.
É uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria,
Significando nada.
“[…] Ou então vagueio, com as mãos às costas, entre as lajes, as eretas, as chatas, as
inclinadas, escolhendo as inscrições. Elas nunca me decepcionaram, as inscrições, há
sempre três ou quatro tão engraçadas que preciso me agarrar à cruz, ou à estela, ou ao
anjo, para não cair. A minha já compus há muito tempo e continuo satisfeito com ela,
bastante satisfeito. Meus outros escritos mal têm tempo de secar e já me dão asco, mas
meu epitáfio ainda me agrada [...]:
Aqui jaz quem daqui tanto escapou
Que só agora não escape mais.”
(BECKETT, Samuel. Primeiro Amor. São Paulo: Cosac & Naify, 2004)
7
Lista de figuras:
8
Figura 34: Perfil fake de Lindemberg administrado por seu “primo”..........................105
Figura 35: Álbum de fotos do perfil fake de Lindemberg com imagens de Eloá........106
Figura 36: Administrador do perfil fake de Lindemberg expõe a quantidade de visitas
que vem recebendo.......................................................................................................106
Figura 37: Administrador do perfil fake de Lindemberg “agradece” a quantidade de
visitas............................................................................................................................107
Figura 38: Comunidade “Força Lindemberg tamos com vc”.......................................107
Figura 39: Comunidade “Eloá ta queimando no Inferno”............................................108
Figura 40: Comunidade “Eloá ta queimando no Inferno”............................................108
Figura 41: Comunidade “Eloá ta queimando no Inferno”............................................108
Figura 42: Resultado da enquete sobre a manutenção do tópico da Eloá na PGM......111
Figura 43: Integrante da PGM questiona a existência do tópico sobre o seqüestro de
Eloá ..............................................................................................................................112
Figura 44: Integrante da PGM responde ao questionamento sobre a existência do tópico
da Eloá..........................................................................................................................112
Figura 45: Integrantes comentam a importância da manutenção do tópico.................113
9
Lista de gráficos:
10
Sumário
Resumo/Abstract ______________________________________________________ 4
Lista de figuras _______________________________________________________ 8
Lista de gráficos ______________________________________________________ 10
1.Introdução _________________________________________________________ 12
2.Afinal, o que é o Orkut? ______________________________________________ 18
2.1 O êxtase da comunicação na sociedade em rede ______________________ 23
2.2 A nova caixa de Pandora _______________________________________ 27
3. Profiles de Gente Morta _____________________________________________ 37
3.1 Inventário Alfabético dos Mortos __________________________________ 54
3.2 A morte e o morrer mediáticos ___________________________________ 58
3.3 Memória ____________________________________________________ 79
4. Caso Eloá _________________________________________________________ 88
4.1– “Acho que vai ter morte” _______________________________________ 91
Considerações Finais ________________________________________________ 114
Referências Bibliográficas ____________________________________________ 116
11
1. Introdução
12
Se a tecnologia da informação é hoje o que a eletricidade foi na Era
Industrial, em nossa época a Internet poderia ser equiparada tanto a uma
rede elétrica quanto a um motor elétrico, em razão da sua capacidade de
distribuir a forma de informação por todo o domínio da atividade
humana. Ademais, à medida que novas tecnologias de geração e
distribuição de energia tornaram possível a fábrica e a grande
corporação como os fundamentos organizacionais da sociedade
industrial, a Internet passou a ser a base tecnológica para a forma
organizacional da Era da Informação: a rede. (CASTELLS, 2001; 07)
1
Disponível em: http://www.orkut.com.br/Main#MembersAll.aspx, acesso em 20.07.2009
13
e sentimentos, gerando uma experiência estética que estrutura a vida mental nas cidades.
(SODRÉ, 1976).
Os sites de relacionamento, em vários sentidos, simulam a realização dos desejos
e expectativas da vontade coletiva. Os discursos que atravessam o espaço do Orkut
funcionam como vetores de liberação, dispositivos tecnológicos que promovem a
catarse, revigorando as sensações de bem estar na “vida real”.
O Orkut pode ser visto, hoje, como uma plataforma de entretenimento,
envolvendo mais pessoas do que o cinema, o teatro, as artes visuais (SANTAELLA,
2002; 30). E isto se deve ao fator instantaneidade, o registro atualizado dos
acontecimentos reais, que propicia a possibilidade de análise, crítica, interpretação dos
fatos.
A rede mundial de computadores é uma poderosa ferramenta comunicacional
que não se sustentaria somente da pura ficção; as narrativas telemáticas precisam incluir
constantemente a representação de aspectos realistas da vida cotidiana. As imagens nas
telas (televisão, computador, celular) promovem efetivamente aparições sedutoras,
porque nos mostram dimensões “impossíveis” de serem captadas do “mundo real” sem
os olhares da tecnologia; isto é possível na rede devido à sua hipertextualidade (criada
pela conjunção das imagens, textos e sons), a simulação de um “real” que rivaliza com a
própria realidade.
15
Se levarmos em conta que a Internet proporciona interação instantânea, a
dinâmica dos serviços virtuais, as compras on line e a expressão das opiniões diante dos
acontecimentos rotineiros, percebemos um vasto campo empírico gerado pela inserção
das tecnologias midiáticas na vida cotidiana. Da mesma forma que, anteriormente,
costumávamos procurar jornais e revistas para aprofundar-nos em assuntos abordados
pelos noticiários televisivos, hoje, depois da breve exposição dos assuntos na TV,
procuramos a Internet para ampliar a nossa compreensão da atualidade.
O receptor hoje pode consumir a informação transversalmente, enquanto passa
de uma mídia à outra, tornando-se, ao mesmo tempo, ouvinte, espectador, leitor. A
opinião acerca da realidade é gradualmente formada a partir de múltiplas fontes de
informação. E, a rigor, não precisamos mais trocar de mídia, pois o computador é uma
multimídia, que aglutina os diferentes meios e linguagens, podendo abranger os diversos
temas sem que o usuário precise se deslocar.
Atendo-nos especificamente ao nosso objeto de pesquisa, o Orkut, cumpre
ressaltar que, hoje, é possível participar deste processo sem intermediários. Ao contrário
da época em que surgiu, em 2004, idealizado pelo engenheiro do Google, o turco Orkut
Büyükkokten, quando os usuários eram admitidos através de convites (daí o slogan –
Quem Você Conhece?), atualmente, qualquer um pode se cadastrar, conhecer outras
pessoas, discutir assuntos variados e criar comunidades (que são, na verdade, grandes
fóruns de discussão). O perfil que o usuário constrói no Orkut acaba se transformando,
para muitos, numa representação de sua vida, e não apenas uma extensão dela, como o
próprio site propõe.
Desejamos avaliar a forma como o mundo virtual – construído por sujeitos vivos
e realimentado também pelas especulações em torno da morte - é elaborado através do
mundo presencial, por intermédio da mídia, especialmente na interface Televisão/Orkut.
Delimitamos o nosso enfoque das questões relativas à morte, suas representações nos
programas jornalísticos e de entretenimento, na TV, e na comunidade virtual Profiles de
Gente Morta – PGM, no Orkut. Concretamente, elegemos como objeto empírico o
episódio midiatizado na jovem Eloá Pimentel, adolescente de 15 anos, mantida refém e
assassinada pelo ex-namorado, Lindemberg Alves. O caso teve ampla repercussão na
mídia, não só pelo recorde de permanência em cárcere privado - entre os dias 13 e 17 de
outubro de 2008, com mais de 100 horas de cativeiro - mas também pela participação
maciça e decisiva dos meios de comunicação social, principalmente a televisão, em seu
desenrolar. Já na comunidade Profiles de Gente Morta, o seqüestro foi noticiado através
16
de um tópico aberto 24 horas após o início do acontecimento, (quando apenas a
imprensa paulista se envolvia em sua divulgação); o site acompanhou todo seu
desdobramento até o final trágico, quando contabilizava quase 26 mil comentários. Por
causa desta exposição através da televisão, o perfil da adolescente e de sua amiga
Nayara Rodrigues, também mantida em cativeiro, foi copiado, reproduzido, alterado e
serviu de exemplo para atitudes diversas, como ironia e compaixão.
Diante do exposto, algumas questões se apresentam, constituindo-se enquanto
fio condutor desta investigação: O que leva as pessoas a estas atitudes? Como a
sensibilidade do trágico é dramatizada pela televisão? Essa movimentação no mundo
virtual é decorrência da movimentação no mundo real? Pretendemos avaliar os impactos
dessa relação simbiótica e estabelecer um paralelo entre o mundo virtual e o mundo real
– quem alimenta quem?
Pretendemos investigar as motivações para as amplas discussões no Orkut
acerca de mortes especificas e os motivos para as pessoas mortas terem seus perfis
clonados em inúmeras comunidades com milhares de participantes que nunca os
conheceram em vida; gostaríamos de entender as manifestações simbólicas em torno do
ato de deixar incontáveis recados, com sentimentos igualmente diversos e pedidos de
amizade de desconhecidos.
No caso da Eloá, foi possível constatar efetivamente a importância que cada
usuário assume dentro da divulgação de notícias. A postagem que discutia o seqüestro e
a morte da menina, no dia 18 de outubro de 2008, já havia se transformado em local de
referência no fim daquele mesmo mês, para todos os que tentavam acompanhar o
episódio.
Por todas estas razões, empenhamo-nos a investigar este caso que ultrapassa as
dimensões de um simples fait divers.
17
2. Afinal, o que é o Orkut?
Sim, nós transformamos as tecnologias de forma cada vez mais eficaz – e nem
percebemos. Ao adentrar no mundo do relacionamento virtual, ao contrário de tentar
adequá-lo às nossas vidas, adequamo-nos a ele, como bem definiu Castells (2001; 107)
ao referir-se a uma pesquisa2 no Reino Unido entre 1999 e 2001. Muito do que
conhecemos no mundo virtual já mudou, radicalmente, nestes últimos anos, mas a nossa
forma de encará-lo, não. Continuamos a tentar moldar nossas vidas às exigências que a
virtualidade nos traz, integrando-nos cada vez mais em seus meandros. Um exemplo da
capacidade que a Internet tem, de fazer-nos mover mundos e fundos por ela, pode ser
notada se examinarmos mais detidamente o Orkut.
O Orkut é uma rede social filiada ao Google, criada em 24 de Janeiro de 2004,
com o objetivo de ajudar seus membros a instituir novas amizades e manter
relacionamentos. Seu nome é o mesmo de seu projetista, Orkut Büyükkokten. Tais
sistemas, como o adotado pelo projetista, também são chamados de redes sociais.
Dentre as redes sociais virtuais disponíveis no Brasil, o Orkut é a que tem maior
participação de brasileiros, com aproximadamente 17,2 milhões de usuários, e o
segundo site mais acessado pela população com acesso regular à Internet3, de acordo
com o site de monitoramento Alexa Internet Inc., serviço pertencente à Amazon que
mede quantos usuários de Internet visitam um site da web4. De acordo com os cálculos
2
Anderson e Tracey (2001), Tracy e Anderson (2001) e Anderson et al. (1999), apud CASTELLS (2001; 107).
3
Disponível em: http://www.alexa.com/topsites/countries/BR, acesso em 21.07.2009
4
Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Alexa_Internet, acesso em 21.07.2009
18
do Alexa, o Orkut também é o 122° site mais acessado no mundo, e seus usuários
passam 10.4 minutos por dia conectados a ele. Desde outubro de 2006, o Orkut permite
que os usuários criem contas sem necessidade de um convite, o que transformou o
sentido do seu slogan: Quem você conhece?, conforme expresso na imagem abaixo,
obtida em 2006:
5
Disponível em http://www.brasileiros-na-alemanha.com/portal/index.php?option=com_content&task=view&id=47&Itemid=92,
acesso em 10.08.2009
19
Se antes, a admissão só era permitida através de um convite, a importância de
conhecer alguém que já fazia parte desta rede residia no fato de que você seria um
participante em potencial. Mas, depois da abolição desta exigência, é possível utilizar a
ferramenta mesmo que sejamos completamente anônimos no mundo virtual ou que não
queiramos manter contato com as pessoas que conhecemos fisicamente, possibilidade
que acreditamos ter contribuído para o aumento exponencial do número de
participantes. Castells (2001), explica esse comportamento:
6
Disponível em: http://www.depositonaweb.com.br/3671/orkut-completa-5-anos-sendo-acessado-por-70-por-cento-dos-brasileiros/,
acesso em 21.07.2009
7
Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Orkut#column-one, acesso em 29.07.2009
20
Figura 3: Estruturação de um perfil no Orkut
21
Mas, de forma contínua, pudemos perceber outras mudanças na página inicial do site,
como podemos expressar na Figura 4, referente ao seu aniversário de cinco anos:
22
2.1 O êxtase da comunicação na sociedade em rede
23
dominante nos momentos de lazer, ver televisão é a terceira ocupação
humana padronizada mais habitual nos Estados Unidos, depois de
trabalhar e dormir. Mas é claro que esse quadro não se restringe àquele
país; ao contrário, assim como ocorre com outros vizinhos da América
Latina, o Brasil é uma das nações cujos habitantes consomem mais
horas de televisão por dia; além disso, quase a metade das crianças
nunca lê livros. (SIBILIA, 2008; 35)
24
está acontecendo com o computador pessoal, que vem saindo dos escritórios para
instalar-se nas residências desde os anos 80; apenas com a chegada dos anos 2000 o
computador se tornou uma ferramenta de trabalho comum, o que configura uma
experiência cultural diferente, pois há duas décadas o uso das tecnologias da informação
e da comunicação era um sonho muito distante. Os disquetes tinham tamanhos de pratos
de sobremesa e eram operados por complicados comandos telemáticos. No início,
somente alguns poucos especialistas em computadores podiam acompanhar de forma
mais participativa este crescimento da informática, mas o desenvolvimento tecnológico,
hoje, com a ajuda principal da telemática – cujas ferramentas estão em todos os lugares,
inclusive dentro dos celulares - nos faz migrar para terrenos virtuais cada vez mais
amplos, que só existem por causa do computador: a Internet consiste no maior deles.
É muito rica, embora não tão longa, a história dos sistemas fundados no
princípio de broadcasting como o rádio e a televisão, tipos de mídia cuja
estrutura comporta uma fonte emissora para muitos receptores. Já nos
primórdios do século XXI, testemunhamos a consolidação deste outro
fenômeno igualmente desnorteante: em menos de uma década, os
computadores interconectados através das redes digitais de abrangência
global se converteram em inesperados meios de comunicação.
(SIBILIA, 2008; 11)
25
punho. Assim, o ato de escrever por meio do computador pessoal (PC) constitui uma
prática corrente; ou seja, diferentemente dos anos 80, o computador permite o acesso às
tecnologias da comunicação cada vez mais cedo. Percebemos a ocorrência de mudanças
nos domínios da educação, arte, ciência, política e comportamento. Houve
transformações notáveis desde as máquinas de datilografia até o uso dos computadores e
reconhecemos que os recursos da informática podem aumentar nossas chances de
entrada no mercado de trabalho.
Entretanto, o mundo on-line tem suas ambigüidades, e o acesso precoce aos
meios de comunicação digital, em especial a Internet, não garante o acesso imediato à
vida profissional, mas, sim, uma ponte da vida presencial para a virtual, como colocou
Castells (2001; 107): “as redes são montadas pelas escolhas e estratégias dos atores
sociais, sejam indivíduos, famílias ou grupos sociais”. Ao elegermos o celular como
início da interação virtualizada, podemos encontrar uma lógica semelhante nos estudos
de Kopomaa (2000), Nafus e Tracey (2000), citados por Castells na obra A Galáxia da
Internet (2001; 111):
27
irmão de Prometeu, que a tomou como esposa e, junto com ela, a caixa (uma jarra ou
ânfora, de acordo com diferentes traduções). Epimeteu acabou abrindo-a e liberando os
males que afligiriam a humanidade dali em diante: o trabalho forçado, a doença, a
loucura, a mentira, a violência. No fundo da caixa, restou a Esperança (ou segundo
algumas interpretações, a Crença irracional ou Credulidade) 8. Sobre a atualidade do
mito de Prometeu (paralelamente ao de Pandora), Ariès (1975) ressalta a importância
que o personagem tem em relação aos méritos infinitos humanos – dentre eles, a morte:
8
Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Pandora, acesso em 22.07.2009
9
Prometeu começa por referir que, naquilo que diz respeito aos homens, tem muitos méritos. Porque ele
os fez de uma maneira que não sabem quando devem morrer. E nisto, Prometeu se explica: transformei
toda a existência deles lhes ensinando a observar os astros, lhes ensinando os nomes, as artes e as
técnicas, etc., enfim, por tudo que são capazes, eu tenho muitos méritos pelos os humanos. Mesmo se
adicionados a maneira da álgebra, os mitos continuam sempre indecifráveis, nos dizendo alguma coisa. A
questão não elucidada é aquela de como são as duas coisas ligadas: a dissimulação do saber sobre a morte
e a habilidade técnica nova. Dificilmente podemos evitar de os reunir pelo pensamento. Ésquilo não dos
diz nada sobre a maneira pela qual Prometeu escondeu dos homens a certeza da morte e a hora da morte
deles. Isso não aconteceu precisamente pelo fato de que ele direcionou o pensamento dos homens para o
28
Trazendo este mito para o presente, podemos interpretar a Caixa de Pandora
como uma representação do mundo do Orkut; ali vamos descobrindo as diversas facetas
do comportamento humano, nos surpreendendo, nos chocando, nos comovendo com as
informações que são disponibilizadas através das ferramentas oferecidas.
Relembramos que a Caixa de Pandora guarda as memórias e os sentimentos – a
mesma matéria do mundo virtual – e cabe ao seu dono conservá-las; o acesso e a
abertura das “pequenas caixas” do Orkut pode revelar surpresas.
Encontramos no mundo virtual, principalmente no Orkut, os medos, os anseios,
as esperanças, as virtudes e os pequenos defeitos de todos nós; é como se o site fosse
uma caixa comunitária permitindo a troca de experiências, emoções e sentimentos
através da própria exposição. Algumas pessoas se integram totalmente a esta forma de
relacionamento virtual, entre outras coisas, pela extrema facilidade de acesso ao outro.
Os dados pessoais estão disponíveis; podemos, com a visualização rápida de um
perfil, especular se o outro (virtualizado) tem gostos compatíveis com os nossos e, a
partir daí, cogitar a possibilidade de um relacionamento.
Quando as pessoas deparam com a possibilidade de criação de um perfil
alternativo e de acesso ao perfil de outra pessoa, de maneira “segura”, acabam
transferindo uma porção maior da vida real para o mundo imaginado no ciberespaço.
Esta experiência pode ser rica, propiciar o usufruto de prazeres e satisfações mútuas,
mas pode vir a se constituir num tipo de ilusão, gerando o fascínio extremo e o
deslumbramento.
distante, lhes ajudou a criar obras duráveis através de um trabalho organizado por um plano. Tradução
livre de Renata Gambarra.
29
relatos desse tipo recebem grande atenção do público: a não-ficção
floresce e conquista um terreno antes ocupado de maneira quase
exclusiva pelas histórias de ficção. (SIBILIA, 2008; 33-34)
30
Figura 5: Página inicial do Orkut em 29 de setembro de 2006.
A segunda vez que a página inicial do Orkut foi modificada para expressões de
luto foi em 31 de maio de 2009, com o acidente do vôo 447 da Air France, que, por
razões ainda desconhecidas, caiu sobre o Oceano Atlântico vitimando 228 pessoas.
32
O êxtase da comunicação interativa advém do poder de acessar informações
diversas e, a partir daí, nos sentimos livres para discutir de tudo, inclusive a morte, que,
para muitos, indica apenas o fim de um ciclo e o início de uma nova jornada. O
interesse pelo assunto encontra analogias com as formas de resgate histórico, cultural. E
o Orkut (e o ciberespaço) é, também, um dispositivo que nos leva a refletir sobre outra
forma de se recontar a história, resgatar os mortos, as corporeidades, as reminiscências e
tudo aquilo que a história oficial, letrada, iluminista – de algum modo – deixou à
sombra.
Essa facilidade de transferência e integração “mágica” no mundo virtual
beneficia a troca de experiências e informações, contribuindo também para a formação e
identificação de novos grupos sociais, nascidos exclusivamente no campo virtual.
33
No ambiente cultural contemporâneo, quando os referenciais da racionalidade
moderna se dissipam, reaparece a função substitutiva e unificadora do pensamento
mágico, germinando um ambiente fantástico, onde as possibilidades de interação são
ilimitadas, mesmo que a pessoa física por trás daquela ferramenta esteja completamente
dispersa da vida social real, conforme se expressa na página de apresentação do Orkut:
O Orkut é uma comunidade on-line criada para tornar a sua vida social
e a de seus amigos mais ativa e estimulante. A rede social do Orkut
pode ajudá-lo a manter contato com seus amigos atuais por meio de
fotos e mensagens, e a conhecer mais pessoas. Com o Orkut é fácil
conhecer pessoas que tenham os mesmos hobbies e interesses que você,
que estejam procurando um relacionamento afetivo ou contatos
profissionais. Você também pode criar comunidades on-line ou
participar de várias delas para discutir eventos atuais, reencontrar
antigos amigos da escola ou até mesmo trocar receitas favoritas. Você
decide com quem quer interagir. Antes de conhecer uma pessoa no
Orkut, você pode ler seu perfil e ver como ela está conectada a você
através da rede de amigos. Para ingressar no Orkut, acesse a sua Conta
do Google e comece a criar seu perfil imediatamente. Se você ainda não
tiver uma Conta do Google, nós o ajudaremos a criá-la em alguns
minutos. Nossa missão é ajudá-lo a criar uma rede de amigos mais
íntimos e chegados. Esperamos que em breve você esteja curtindo mais
a sua vida social. Divirta-se!10
10
Disponível em: http://www.orkut.com.br/Main#About.aspx acesso em 28.07.2009 às 22h47min.
34
Muniz Sodré (2002), por sua vez, diagnostica tudo isso como efeitos de uma
“comunicação do grotesco”, acrescentando a nossa necessidade de transgredir, de
quebrar barreiras e tabus:
35
Examinaremos como este fenômeno típico da cultura de massa (radio e
televisão), partes deste nosso “presente urgente”, se expressa no contexto da
cibercultura (Internet), em que existe um nível mais dinâmico de participação e
interação por parte dos espectadores-usuários-cidadãos. Sobre eles, Paula Sibilia (2008)
diz que:
36
3. Profiles de Gente Morta
Assim como na televisão, um dos assuntos mais discutidos no Orkut e que causa
estranheza e comoção é a morte. Não só pelo sentimento geral de fim comum, mas pela
ainda delicada maneira com que a virtualidade lida com o fenômeno, como se esta não
existisse.
Se ela é, por si mesma, filha da noite e irmã do sono, ela possui, como
sua mãe e seu irmão, o poder de regenerar. Se o ser que ela abate vive
apenas no nível material ou bestial, ele fica na sombra dos Infernos; se,
ao contrário, ele vive no nível espiritual, ela lhe revela os campos de
luz. (CHEVALIER, 1982; 621)
37
como o que há de pior na vida. Daí, a obsessão em “deixar os mortos em paz”. Mas, o
que significa “deixar os mortos em paz”, senão o esquecimento?
Não somos habituados a ritualizar a morte como as antigas culturas, não somos
capazes de profanar o corpo do morto, como algumas tribos fazem: “os edo, da Nigéria,
quebrando as pernas e perfurando os olhos do morto. (THOMAS, 1976: 512)”. Tal ato
nos é impensável porque o cadáver é para nós algo intocável, algo tão precioso ou mais
que a pessoa foi em vida:
Alimentado e regido pelos perfis criados pelos usuários, o Orkut acabou por
tornar-se um território em que podemos dividir o espaço com pessoas que já não estão
mais entre nós no mundo real. É exatamente este aspecto de “convivência mútua” (entre
os vivos e os mortos) que a comunidade Profiles de Gente Morta ou PGM trata.
38
O grupo foi criado em 23 de dezembro de 2004, pelo paulista Guilherme Dorta, que
descreve sua intenção na página inicial da comunidade11:
11
Disponível em: http://www.orkut.com.br/Main#Community.aspx?cmm=993780, acesso em 29.06.2009
39
televisão. Mas, em pesquisa realizada com os integrantes da comunidade entre os dias
22 de fevereiro e 22 de março de 2009, pudemos comprovar que a opinião dos 141
entrevistados está dividida, com uma diferença muito pequena entre aquelas que
disponibilizariam e as que não tem intenção de disponibilizar tais perfis:
40
realmente faleceu, amigos com a palavra “Luto” precedendo seu próprio nome - como
trataremos adiante – e outros indícios).
Não há restrições para integrar a PGM. Deve-se solicitar a entrada na
comunidade (por causa de seu conteúdo, seus fóruns de discussão e tópicos só podem
ser visualizados pelos seus membros) e a participação será consolidada após a
aprovação do moderador e demais co-proprietários da comunidade. De acordo com
Renata Rezende (2008; 2), o ciberespaço, na contemporaneidade, é o lugar que “poderia
representar o Além”, já que, para Wertheim (2001), os “portais do Paraíso” estão
abertos para todos, assim como a Internet. Mas por que participar de uma comunidade
que reúne perfis de gente morta? Em pesquisa realizada com 144 integrantes entre os
dias 22 de fevereiro e 22 de março de 2009, pudemos perceber que a maior razão é a
curiosidade que temos sobre a morte:
12
Disponível em: http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs.aspx?cmm=65537209&tid=5235757002899152661, acesso em
16.07.2009
41
Figura 8: Regras da PGM. Em 10.08.2009
42
Nas regras citadas acima, é importante salientar as formas corretas para a
postagem de uma morte, seguindo uma padronização, conforme exposto na figura
abaixo:
13
Disponível em: http://www.orkut.com.br/Main#CommPollResults.aspx?cmm=993780&pct=1243969727&pid=1648120652,
acesso em 10.08.2009. Enquete realizada entre 01 de junho e 01 de julho de 2009, na comunidade Profiles de Gente Morta.
43
Gráfico 3: Sobre a visitação de perfis de pessoas falecidas
É preciso colocar os mortos em seu lugar, e este lugar precisa ser organizado,
separadamente, a salvo da visibilidade dos vivos e das conversações sobre o tema. Já o
uso das cruzes precedendo os nomes dos mortos também se deve ao fato de colocar
aqueles em seu devido espaço. Não fazemos o mesmo nos cemitérios? Por mais que os
campos-santos mais novos usem aquela imagem de parque, sem a arquitetura
exuberante, própria dos cemitérios, a utilização das placas ocorre porque ainda é preciso
assinalar o local onde aquele indivíduo descansa, é preciso identificá-lo, de qualquer
forma, para que ele seja facilmente reconhecido. E, mesmo nessas placas, é comum
encontrar a cruz gravada. Ela não está lá fisicamente, mas representada, assim como nas
postagens.
E convém refletir sobre a simbologia da cruz, que precede em muito a
cristandade, embora – milenarmente - remeta quase que exclusivamente à filosofia
cristã. É o que nos revela Chevalier em seu Dicionário de Símbolos (1982; 309-310):
Ainda sobre as regras da comunidade, é preciso salientar que postar uma morte
fake (falsa) é uma atitude grave, penalizada com a expulsão. Os integrantes, dentro do
tópico sobre uma morte específica, comentam sobre o fato, lamentando se a pessoa era
nova, se morreu de acidente trágico, ou então fazem julgamentos, como nos casos de
suicídio ou irresponsabilidade ao volante, para citar casos mais comuns. Há também a
prática de deixar nestes perfis de falecidos recados com as siglas RIP e DEP, que
significam “Rest in Peace” e “Descanse em Paz”, respectivamente, como é esclarecido
45
na própria comunidade, num tópico fixo14, para que todos os freqüentadores saibam dos
seus significados. Talvez seja por isso que o uso da cruz nas postagens sobre uma morte
é obrigatório na PGM, como é possível constatar nas regras básicas disponibilizadas
pelo moderador e citadas anteriormente, para que o formato das postagens seja mantido.
A PGM é uma segunda sepultura, constantemente revolvida. Os mortos que nela
residem não pertencem a outro reino senão ao da memória e estão sempre acessíveis.
Esse acesso é facilitado pela impessoalidade da máquina; assim, acompanhar o morto e
constantemente lhe ‘visitar’ é algo muito mais fácil. Buscamos, então, mesmo com
receio de uma resposta direta, manter uma comunicação com os que já morreram, e
continuamos a amputá-los a paz.
Neste estudo, pudemos acompanhar o constante crescimento do número de
integrantes: em novembro de 2008, 57.436 membros; março de 2009, 61.749 membros,
totalizando 4.313 novas adesões em apenas quatro meses. Já em agosto do mesmo ano,
o número de integrantes subiu para 65.476, conforme exemplificamos no Gráfico 4:
14
http://www.orkut.com.br/Main#CommEvent.aspx?cmm=993780&crt=4501161&dat=1262073600
46
Fizemos um acompanhamento mais detalhado, entre os dias 16 e 30 de julho de
2009 e constatamos que a entrada e a saída de integrantes é constante. Esse
acompanhamento da entrada e saída de integrantes pode ser mais bem visualizado no
gráfico:
Em vista disso, a comunidade Profiles de Gente Morta poderia, grosso modo, ser
classificada como grande obituário em tempo real, quando focamos a divulgação
praticamente imediata do falecimento de indivíduos, pois é possível informar-se sobre a
morte de uma pessoa antes mesmo dela ser noticiada pelos meios de comunicação
tradicionais. Qual a razão de tamanho interesse, de tanta busca pelos pormenores sobre
a morte dessas pessoas e sobre o que foram em vida? De acordo com Contrera (2002;
52):
48
Podemos ver, na figura e nos gráficos abaixo, esses detalhamentos das
expulsões:
49
Gráfico 7: Expulsões da PGM em Fevereiro de 2009.
Como, no Orkut, tudo pode virar assunto para uma comunidade, não seria
diferente com um tão polêmico quanto este. O que gostaríamos de salientar, através
deste monitoramento, é o grau de organização da comunidade. E, a partir desta
constatação, através do gráfico abaixo, podemos perceber que a maioria dos 141
integrantes que responderam a uma pesquisa realizada entre os dias 22 de fevereiro e 22
de março de 2009 mudariam seu modo de funcionamento:
50
Gráfico 9: Enquete revelou que 72 dos 141 entrevistados mudaria algo na PGM.
51
Podemos também perceber que a organização da comunidade estendeu-se, entre
janeiro e março de 2009, ao detalhamento das mortes lá anunciadas, conforme foi
disponibilizado pela integrante Giselle15:
15
Disponível em: http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs.aspx?cmm=993780&tid=5302757140161963057, acesso em
18.03.2009
52
Gráfico 12: Mortes contabilizadas pela PGM em Março de 2009
53
3.1 Inventário Alfabético dos Mortos
Organizar a morte, catalogá-la, mantê-la restrita num local por nós delimitado,
como acontece com os cemitérios, é uma prática muito antiga da raça humana. Saltando
diretamente para a contemporaneidade, onde convocar pessoas conhecidas e
desconhecidas para um funeral ou uma missa de falecimento é considerado “um ato de
fé cristã”, precisamos lançar um olhar mais demorado aos obituários, figuras ilustrativas
que também participam do corpo de um jornal impresso há muito. Tomamos como
exemplo o obituário do jornal americano The New York Times que, segundo Matinas
Suzuki Jr (org.), “é quase sempre uma ode à vida”,
De acordo com o autor, o obituário reitera “a brevidade de tudo, ao tomar o ponto final
da existência como ponto de partida do jornalismo”. Mas, mesmo assim, acreditamos que é
exatamente desta matéria, desta “brevidade de tudo” que o jornalismo mais se alimenta. Daí, a
necessidade de obituários na mídia, em geral, pois podemos perceber obituários em todos os
jornais brasileiros, em todos os programas jornalísticos de televisão.
16
Disponível em http://livrosdeprospero.blogspot.com/2005_07_01_archive.html, Acesso em 04.05.2009
54
Deixando bem definida a idéia do obituário e sua relação com o jornalismo,
tencionamos estabelecer um paralelo entre esse chamamento primeiro e o que
presenciamos, hoje, na comunidade Profiles de Gente Morta (PGM), do Orkut.
Acreditamos que os dois extremos se completam, ou melhor: o segundo é apenas um
reflexo melhorado do primeiro, onde podemos acessar um sem-número de obituários
instantaneamente. Esses obituários foram escritos desde o dia da morte daquele
indivíduo, pelas pessoas que pesquisaram sobre sua vida, brevemente ou
exaustivamente nos bytes do Orkut e expuseram o resultado no tópico onde o perfil do
falecido figurava como destaque maior.
55
negligenciou de mais a morte, desejou também de mais olhá-la de
frente, em vez de tentar enredá-la com a sua astúcia. (MORIN, 1976;
19)
Embora a morte, assim como o Sol, esteja sempre presente diante de nossos
olhos, participando e, principalmente, alterando nosso cotidiano, por vezes é abstraída.
Com a morte, certamente, essa abstração (ou esquecimento voluntario) acontece com
mais freqüência que o Sol. De toda forma, entendemos a PGM como uma tentativa de
alterar esse fato, como uma tentativa de “olhar a morte de frente”.
Aqui, nos perguntamos: qual o grande incômodo em saber que a morte também
migrou para os terrenos virtuais? José Carlos Rodrigues (2006; 34) nos conta que os
mortos não cessam de existir, apenas são libertos do aspecto terrestre para continuá-la
em outro lugar, idéia que presenciamos, hoje, com as diversas religiões que
conhecemos. Crer na sobrevivência do homem em algum lugar alheio ao nosso
conhecimento é, talvez, inerente ao ser humano: um esqueleto do Homem de
Neanderthal, encontrado na Chapelle-aux-Saints, estava acompanhado de uma perna de
bizonte quase intacta. Através desta descoberta, nos é possível supor que seus
contemporâneos acreditassem que o morto precisaria de alimentos e teria outras
necessidades quando chegasse ao outro mundo. Depois, torna-se comum encontrar esse
tipo de arrumação:
56
mortos implica a sua sobrevivência” (MORIN, 1976; 24-25). O autor também nos diz
que
57
3.2 A morte e o morrer mediáticos
58
preocupação de iniciá-las quanto antes nos “mistérios da vida”, nos mecanismos do
sexo e da concepção, nascimento e, não muito depois, na contracepção (MARANHÃO,
2008; 9-10). Porém, é necessário ocultar das crianças, sistematicamente, a morte e os
mortos, silenciando ou fantasiando, metaforizando o diálogo diante de suas indagações
igual como nossos pais faziam quando perguntávamos como é que o bebê é colocado
dentro da barriga da mamãe. Aqui há uma inversão. A vida era um mistério e a morte,
velha conhecida.
Hoje, como desejamos adiar a morte, esta se tornou um tabu, enquanto o sexo, o
início da vida, já conhecido de todos, faz parte dos temas inseridos na agenda pública.
Deslocamos o conceito de tabu, embora ele permaneça como algo que deve ser evitado,
como uma conversa que é constrangedora de se iniciar e sempre remeta às atividades
básicas e inerentes à nossa própria existência: o sexo e, agora, a morte, como bem
colocou Philippe Ariès, em entrevista publicada na revista francesa Critère (n°. 13,
1975), citando um trecho do livro História da Morte no Ocidente (1975):
17
Ariès fala que, como o ato sexual, a morte é cada vez mais considerada como uma transgressão que
arranca o homem da sua vida cotidiana, de sua razoável vida em sociedade, de seu trabalho monótono,
para lhe submeter a um paroxismo e lhe jogar em um mundo irracional, violento e cruel. Como o ato
sexual em Marquês de Sade, a morte é uma ruptura. Note bem, essa idéia de ruptura é nova. Em nossas
exposições precedentes, nós quisemos – ao contrário – insistir na familiaridade com a morte e com os
mortos. Essa familiaridade não havia sido afetada, mesmo no caso dos ricos e poderosos, pela elevação da
59
A morte, não o sexo, é agora o tabu que secretamente violamos; a pornografia
da morte excita-nos. Aquela nossa predileção por programas e filmes que exibam
terríveis e cruéis espetáculos pode hoje ser satisfeita como nunca. Mesmo que não se
tenha, propriamente, uma predileção pessoal por esses assuntos, é praticamente
impossível deixar de vê-los quando nos são disponibilizados, salvo alguns poucos casos
onde há uma fobia ou aversão pessoal por tais acontecimentos. Fora isso, a maioria das
pessoas não pode deixar de assistir a um pouquinho que seja do noticiário com o
assassinato, do filme em cartaz com poucas, mas refinadas cenas de tortura –
intercaladas, sempre, com algumas de sexo. “Contudo, voltando do cinema para casa, a
ficção se desfaz e retornamos à realidade da morte – a nossa própria ou daquele ente
querido – que é novamente uma rigorosa punição” (MARANHÃO, 2008; 10-11). Edgar
Morin também fez esta ligação, salientando que essa transferência de tabus fez parte da
crise cultural mundial acontecida nos anos 60 – exatamente quando o sexo começava a
se libertar da obscuridade, o que fez
De cinquenta anos para cá, houve uma ruptura histórica nas atitudes do homem
ocidental diante da morte e do morrer. Evidentemente, muitos traços ainda lembram os
consciência individual desde o século XII. A morte se tornou um evento com mais conseqüências; era
preciso pensá-la mais particularmente. Mas ela não havia se tornado nem assustadora nem assombrosa.
Ela continuava familiar, domesticada. Agora, é uma ruptura. Essa noção de ruptura nasceu e se
desenvolveu no mundo dos fantasmas eróticos. Ela se passará no mundo dos fatos reais. Com certeza, ela
perderá seu caráter erótico, ou ao menos este será sublimado e reduzido na Beleza. A morte não será
desejável, como nos romances negros, mas será admirável por sua beleza: é a morte, que nós chamaremos
de romântica, de Lamartine na França, da família Brontë na Inglaterra, de Mark Twain nos Estados
Unidos. Tradução livre de Renata Gambarra.
60
antigos costumes, alguns ainda mantidos simplesmente porque o são, e os costumes não
são explicados, apenas seguidos e repassados adiante, o que os deixam vazios em seu
sentido original, mas, de acordo com Philippe Ariès,
18
Na entrevista à revista Critère, P. Ariès diz que não se pode realmente “dizer que assistimos agora a
uma catarse verdadeira no Ocidente. Falamos da morte apenas no caso de pequenos círculos dos que se
interessam por ciências humanas. Mas não se tornou ainda, e falta muito para isso, de um interesse
popular pela morte”. Tradução livre de Renata Gambarra
61
Reforçamos a idéia de que somos nós, os vivos, os que agora procuram os
mortos, e que, através das multimidialidades, sua memória é cada vez mais fortalecida
através da manutenção dos tópicos ou simplesmente por sua disponibilidade ilimitada
para consultas. Desta forma,
Com relação ao luto depois dos funerais, segundo os novos costumes, não
devemos manifestar nossas dores publicamente. “As expressões sociais, como o desfile
de pêsames, as ‘cartas de condolências’ e o trajar luto, por exemplo, desaparecem da
cultura urbana”. Anunciar ou demonstrá-lo, sentindo-o, exige autocontrole do enlutado
para que elas não perturbem as outras pessoas, já que, hoje, o luto é desagradável,
assunto extremamente privado e que deve ser escondido, como fazíamos com relação à
masturbação.
62
deparamos com situações de perda, utilizamos hoje uma ferramenta que, em segundos,
torna público o luto que timidamente expressamos: o Orkut. Os recados deixados nas
páginas dos mortos são uma releitura dessas “emoções funerárias”, como colocou
Morin. Apenas acontece que a nossa sociedade tende a aceitar a tristeza como a verdade
absoluta nesses casos: é inconcebível que alguém esteja feliz com a morte de um ente
querido – aí, certamente, teríamos outras implicações, a morte teria de ser um alívio ou
a promessa de alguma melhora na vida daquele que está feliz. Quase não vemos
palavras alegres nas condolências, embora possamos perceber que, nos recados
deixados para os mortos em suas páginas de recados, é constante a tentativa de enaltecê-
los, o que corresponde ao adágio popular que afirma: “depois de morto, todo mundo é
bom”.
Ao mesmo tempo, na contramão dessas novas convenções sociais onde o luto é
considerado vergonhoso, no Orkut, as pessoas fazem questão de demonstrá-lo, ferindo a
prática de escondê-lo. É necessário destacar, ao lado do próprio nome, em letras
capitais, que se está em luto; muitas vezes colocamos a palavra antes mesmo do próprio
nome, pois o indivíduo enlutado é, destarte, diferente dos demais, e merece ser
destacado antes mesmo de configurar-se a si mesmo como indivíduo. É como se,
estando em luto, participasse de um grupo seleto, embora constantemente renovado, de
pessoas que estão partilhando aqueles mesmos sentimentos tão execrados pelo público
em geral. Demonstrá-lo através da denominação do próprio nome é fazer parte de mais
uma comunidade virtual, dentre tantas outras observadas no Orkut. Na figura 11 temos
o exemplo deste tipo de conduta:
63
Figura 11: Lista de pessoas com a palavra “luto” precedendo seus nomes no Orkut.
Para Morin (1976), o luto é uma instituição tão arcaica e universal quanto os
funerais e “são regidas pelo horror da decomposição do cadáver”:
O autor segue salientando, ainda, Robert Hertz (1906) que revela: “o período de
luto corresponde à duração da decomposição do cadáver.” Segundo alguns costumes, a
“impureza do morto é a sua putrefação” e o tabu de impureza da morte se estende os
parentes, que são obrigados a portar um sinal característico que os qualifique como
familiares de alguém que foi recentemente morto (e, portanto, ainda está se
decompondo) ou a ocultar-se (MORIN, 1976; 28), privando-se do convívio social para
que a morte, que se acredita ser contagiosa, não migre para outras famílias. Acreditamos
que este tipo de comportamento ainda persiste, apenas de forma mais amena e diversa.
64
Podemos portar, individualmente, receios quanto à morte e, ao mesmo tempo, discuti-la
na Internet e fazer questão de destacá-la, como explicamos acima. O luto no meio
virtual não deixou de ser um signo: é praticamente obrigatório adicionar tal palavra
(luto) em sua página pessoal, em adição de imagem negra no lugar da foto do avatar e
expressões em homenagem ao falecido. Desta forma, no povoado meio virtual, o
enlutado não se esconde, muito pelo contrário: revela-se.
65
preparação do defunto) (REZENDE & BARBOSA: 2007; 2). Fontes também traz à
tona a raiz indo-européia de corpus: krp, que significa “forma” e, em certos contextos, o
“cadáver”, “corpo” adquire, para a consciência do latim, o sentido de “objeto em sua
organização visível”. Assim, podemos observar o desenvolvimento da palavra corpo na
mistura aos significados da morte.
A cultura ocidental enxerga a morte como castigo ou punição; não é à toa que é
utilizada nas sentenças criminais como a penalidade máxima. O conceito de morte no
Ocidente relaciona-se a uma ruptura, já que tendemos a negar a idéia de impermanência.
Neste caso, é curioso abordar questões existenciais de finitude quando as novas
tecnologias da comunicação, como as comunidades virtuais, ‘recortam os corpos
mortos’, estabelecendo um novo tipo de formalização da morte social que implica outra
dimensão da realidade (ibidem; 3). De acordo com as mesmas autoras:
66
privar alguém desses mesmos rituais é sinal de extremo desrespeito ou de total
desconsideração. De acordo com Rodrigues (2006; 21), “Os funerais são ao mesmo
tempo, em todas as sociedades (...) uma crise, um drama e uma solução: em geral, uma
transição do desespero e da angústia ao consolo e à esperança.” A partir daí,
percebemos a necessidade de identificar e ornamentar sepulturas e, mais tarde, manter
ativos perfis do Orkut: a manutenção da memória. Se fossem capazes de responder, a
maioria dos donos dos perfis inativos do Orkut gostaria que sua memória fosse
preservada através dali, como revela pesquisa idealizada pela integrante Bruja, realizada
a partir do dia 22 de fevereiro de 2009. Para efeitos de amostragem, definimos
contabilizar as respostas disponibilizadas até o dia 22 de março de 200919, totalizando
141 integrantes da PGM, como explicitado no gráfico seguinte:
19
Primeira página contabilizada: Disponível em:
http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs.aspx?cmm=993780&tid=5305580221955128925&na=3&nst=175&nid=993780-
5305580221955128925-5314974938783504278, acesso em 22.03.2009.
Última página contabilizada:
http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs.aspx?cmm=993780&tid=5305580221955128925&na=3&nst=175&nid=993780-
5305580221955128925-5314974938783504278, acesso em 22.03.2009.
67
integrantes da PGM, e as opiniões colhidas por eles são muito interessantes, pois, no
ambiente da comunidade, não é de bom tom partilhar essas impressões tão pessoais
acerca do envolvimento com a PGM.
No Blog Jornal Tira Gosto20, uma usuária diz que o estranhamento à morte de
pessoas próximas persiste quando da exibição desses perfis na PGM, e “não há
distanciamento”. A usuária também acredita que esta seja apenas mais uma forma de
evolução comunicacional, já que, “com a internet (e principalmente o Orkut) as pessoas
não ligam mais para dar os parabéns, não fazem mais visitas para saber como está a
família, um simples “scrap” resolve tudo”. Para ela, o mesmo comportamento se repete
com a morte: “antes ficávamos sabendo através de notas de falecimento do jornal,
alguém ligava pra te avisar... hoje em dia basta entrar no Orkut para saber quem faleceu.
A dor da perda acaba sendo a mesma”. Ela também acredita que o tabu em torno da
discussão da morte diminuiu com a Internet e as pessoas que antes estranhavam seu
hábito de olhar obituários on-line hoje participam das mesmas comunidades sobre o
assunto. Ela também diz que a Internet é uma facilitadora. “quantos de nós tem tempo
para ficar uma hora na igreja em uma missa?” Para ela, a facilidade do envio do “scrap”
é mais adequada ao nosso ritmo de vida e a família receberá a condolência “em cinco
minutos”.
Outro entrevistado, no mesmo blog, afirma que o trágico sempre “atraiu olhares”
e que a possibilidade de um contato direto com outros indivíduos curiosos faz com que
esse interesse fique mais aguçado, “apenas o modo de se abordar o tema mudou, se
tornou mais dinâmico”. Já no Blog Os Humanos do Orkut21, o entrevistado foi o próprio
criador da Profiles de Gente Morta, o analista de sistemas Guilherme Dorta, que
afirmou: “o que choca mesmo é o ‘de repente’, o ‘num minuto sim, noutro não’’. O
blogueiro segue, inclusive, listando as mortes que foram mais discutidas na época de
sua pesquisa e finaliza: “tudo o que gera medo tende a gerar atração [...] conhecer é uma
forma de controlar, [...] espécie de incorporação daquilo que nos escapa e nos submete
irremediavelmente.”
Mas, de fato, a referência mais interessante à comunidade Profiles de Gente
Morta disponível na Internet é o blog Linhas Mortais22, projeto da Professora Valéria
Geremia, da Faculdade Integrada do Ceará (FIC). Ela criou esse blog para a disciplina
20
Disponível em: http://www.jornaltiragosto.com/blog/?p=110. “Orkut: a vida após a morte é aqui!” acesso em 22.10.2008.
21
Disponível em: http://oshumanosdoorkut.blogspot.com/, acesso em 22.10.2008.
22
Disponível em: http://www.linhasmortais.blogspot.com/, acesso em 26.02. 2009
68
de Produção e Edição de Textos para Revista do Curso de Jornalismo da FIC, e o tema
obrigatório nas matérias produzidas pelos seus alunos é A Morte.
A matéria sobre a “inclusão digital dos mortos”, chamada Orkut: há vida após a
morte tem o psicólogo Carlos Roger Sales da Ponte23 como entrevistado. Ele afirma que
o interesse pela morte é tão presente nos humanos porque “somos finitos e nada
podemos contra isso”. Sobre a conduta dos integrantes da PGM, ele conclui que, por
tratarem abertamente sobre o tema, “há certo gosto por isso. E só se pode falar de gosto
por aquilo que nos dá gosto”. Relacionando a visita aos perfis de falecidos com o
velório, o psicólogo afirma que “É uma adoração ao que foi e não é mais. Uma maneira
de manter a memória.”
Quanto ao interesse pelo assunto, Rodrigues (2006) demonstra que, no Brasil,
existem diversas formas de morrer (morte ‘matada’, ‘morrida’, de velhice...) e que cada
uma de suas versões provoca, nos que ficam, uma “particular reação emocional”. Em
todos os casos, existem maneiras de comportar-se. Se a morte foi natural, não é
necessário procurar culpados e os questionamentos resumem-se à causa, que é sempre
apontada: “morreu de enfarte’, de ‘nó-nas-tripas’, de ‘fraqueza’, de ‘desgosto’ (...)”
(2006; 26). Na cultura brasileira, classificar a morte é fundamental, pois, diante da
notícia do óbito, é costumaz perguntar-se: ‘de quê?’. “Em seguida, se se tratar de um
morto não muito próximo, tecerá alguma referência elogiosa à sua pessoa: ‘que pena,
ele era tão bom...”. Neste gráfico24, podemos observar que os integrantes da PGM vêm
de todos os estados brasileiros:
23
Psicólogo, Mestre em Filosofia pela UFC e professor de Filosofia e Psicologia da Faculdade Integrada
do Ceará (FIC)
24
Enquete disponível em:
http://www.orkut.com.br/Main#CommPollResults.aspx?cmm=993780&pct=1187777093&pid=99914173
5, acesso em 30.07.2009
69
Gráfico 14: A comunidade Profiles de Gente Morta tem participantes de todos os estados brasileiros.
70
renovação dessas expressões de luto no campo virtual, se já levamos praticamente todos
os outros aspectos da nossa vida para lá? Pedimos comida virtualmente, compramos,
simulamos necessidades fisiológicas em jogos, fazemos até sexo, que, durante muito
tempo, foi o grande tabu. Agora, porque tratar a entrada da morte neste campo de forma
tão reservada, às vezes preconceituosa? Em enquetes25 realizadas com 412 e 166
membros, respectivamente, entre os dias 30 de julho e 10 de agosto de 2009, foi
possível ter uma idéia de que freqüentar perfis de pessoas mortas e discutir sobre elas
não é algo passageiro e que é possível perceber diversas formas com que as pessoas, em
geral, reagem ao saber que se é integrante de uma comunidade que pesquisa profiles de
pessoas mortas:
25
Disponível em: http://www.orkut.com.br/Main#CommPollResults.aspx?cmm=993780&pct=1248973991&pid=1715378844,
acesso em 10.08.2009.
71
Gráfico 16: Reação sobre a participação na PGM
Ora, se “carregamos” nossas vidas para o campo virtual com tanta eficácia, nada
mais justo que carregarmos também a morte, experiência individual suprema. Tratamos
as novas mídias como formas individuais de expressão e parecemos esquecer que esses
espaços são, de todo, públicos e estão vulneráveis à opinião alheia. Em outros
momentos, esse discernimento de “espaço público” torna-se tão presente que tendemos
a nos ocultar mais ainda, mas a divulgação de nossas idéias permanece. Nem anulam o
pensamento nem a morte.
Rodrigues (2006; 110) nos lembra que era comum reunir-se em cemitérios, tanto
nas cidades quanto no campo; inclusive, eram locais de festa com danças
representativas da morte: “a pessoa que conduzia a dança representava a morte e os
participantes a seguiam, fazendo gestos e caretas, formando uma espécie de procissão
que fazia diversas vezes o circuito das sepulturas.” Sobre a utilização e a convivência
harmoniosa entre vivos e mortos, ele salienta que
72
absolutamente, sem se incomodar com a proximidade das grandes
fossas comuns que ficavam escancaradas até que se enchessem, sem se
perturbar com as exumações, misturando-se às cerimônias fúnebres que
aí se verificavam. A visão e o cheiro do cemitério não impediam
absolutamente que aí se localizasse o forno comunal de pão: a
proximidade entre alimentos e cadáveres mal enterrados, exumados,
expostos – que causaria extremo nojo em nossos contemporâneos –
deixava os homens medievais insensíveis (RODRIGUES, 2006: 110).
A consciência não consegue pensar o morto como morto e por isso não
pode se furtar a lhe atribuir certa vida. A morte definitiva não é
determinada pela realidade natural mais que pelas instituições sociais: o
defunto conserva ainda, por algum tempo, determinados poderes e
direitos, mais ou menos duradouros segundo as diferentes culturas. (...)
Os mortos não estão fora da circulação das mensagens humanas: a
morte não corta os canais de comunicação com o morto, embora
imponha novos meios e novos códigos (RODRIGUES, 2006; 28-29).
Em seguida, podemos afirmar: “sim, o morto fala”, através de mediadores que lhe
cedem a boca e o corpo. O morto fala diretamente, através até de iniciativas mais
concretas, como se acredita em Madagascar, que os defuntos podem aparecer através de
silhuetas estranhas, assoviar e até jogar pedras. Os mortos também se comunicam por
73
Ruídos nos túmulos, explosões de gases, fogos-fátuos, algumas vezes
com o objetivo significacional bastante definido (por exemplo, o túmulo
de Silvestre II crepitava segundo se acreditou, cada vez que um papa
fosse morrer): existe uma linguagem dos túmulos como existe uma
linguagem da arte (RODRIGUES, 2006; 30).
“Os mortos falam por suas metáforas e por suas metonímias” (RODRIGUES,
2006; 30); neste caso, devemos nos lembrar um pouco da idéia que Dostoievski nos
passa em seu romance O Idiota, colocando verdades de toda a qualidade na boca de
Hippolit, jovem moribundo. Ele diz: “Ao morto é permitido dizer tudo”. Lembremos
que, em sua época, Dostoievski ainda vivia a morte residencial, próxima (como não
vivenciamos mais); é certo que ele não restringia o poder de suas palavras apenas às
palavras finais, no leito de morte; é preciso ressaltar que essa afirmação de capacidade
ilimitada de ‘dizer verdades’ do morto foi transferida para os dias de hoje, quando nos
deparamos com os perfis pessoais do Orkut, onde o próprio defunto colocou as
informações que ali estão.
Rodrigues lembra a importante contribuição de Frazer (apud RODRIGUES,
2006; 30), que listou certas proibições que objetivavam “proteger os vivos das sombras,
ou proteger as sombras contra a ação dos vivos”, e compara esses rituais:
74
rarefeita do que aquela pessoa é ou foi em vida, porque não é possível descrever-se,
definir-se de maneira alguma através de caracteres ou imagens, muitas vezes posadas e
não-espontâneas.
O perfil é uma sombra, sombra que toma vida independentemente da vontade de
seu genitor, como no conto de Hans Christian Andersen, onde, numa noite quente, a
sombra de um jovem bem-sucedido é projetada para dentro da casa da Poesia e de lá sai
como homem. A sombra visita seu antigo dono, agora como homem de sucesso e de
posses, e, aos poucos, este se torna servo daquele. Sobre o simbolismo da sombra,
Chevalier (1982; 842-843), nos esclarece sobre sua representação:
26
Hades, o senhor dos Infernos (Krappe, 226), possui uma capa de pele de lobo; as orelhas do deus da
morte dos etruscos também são de lobo e, segundo Diodoro de Sicília, é também sob a forma de lobo que
Osíris ressuscita para ajudar a mulher e o filho a vencerem seu irmão malvado.
27
Meio dia, a hora em que já não há mais sombra, é Selo da Profecia, significa a luz em sua plenitude, na
tradição bíblica. Ver Deus face a face, segundo Orígenes, é vê-lo à luz do meio-dia, instante sagrado,
parada no movimento cíclico, antes do rompimento do frágil equilíbrio entre a ascensão e o declínio da
própria luz. O momento sugere uma imobilização da luz em seu curso, o único momento sem sombra,
uma imagem da eternidade.
75
dominado pelos caprichos ferozes da Sombra, equivalente do reflexo ou do
duplo28 (CHEVALIER, 1982; 842-843).
Pois é exatamente através dessa sombra que nós projetamos que seremos
conhecidos no mundo virtual e, depois da nossa partida, que serão feitos julgamentos de
valor (DURKHEIM, 1970).
Como mostra um comentário na PGM:
Figura 12: Integrante fala sobre os julgamentos de valor comumente exercidos na PGM.
Orfeu – cuja etimologia não está comprovada, aponta para a raiz orpho,
“privado de”. Hipótese plausível e influenciada pela existência de
orphanós, cujo sentido primeiro é também o de “privado de”, a exemplo
de órfão -, inconformado com a morte da esposa Eurídice, desce ao
Hades, reino dos mortos, para buscá-la. Encanta a todos com a sua voz
divina a ponto de Plutão e Perséfone concordarem em lhe devolver a
amada. Havia apenas uma condição: ele seguiria à frente, Eurídice
seguiria seus passos. Orfeu, em nenhuma hipótese poderia olhar para
trás. Tomado pela impaciência, “o cantor olhou para trás, transgredindo
a ordem dos soberanos das trevas (...) viu Eurídice, que se esvaiu para
sempre numa sombra (...) (BRANDÃO, 1001: 197).
28
As religiões tradicionais concebem geralmente a alma como um duplo do homem vivo, que pode
separar-se do corpo com a morte dele, ou no sonho, ou por força de uma operação mágica, e reencarnar-se
no mesmo corpo ou em outro. A representação que o homem faz, assim, de si mesmo, é desdobrada.
76
Chevalier (1982) ressalta a face persuasiva e determinada de Orfeu:
Orfeu se destaca sempre como o músico por excelência que, com a lira
ou com a cítara, apazigua os elementos desencadeados pela tempestade,
enfeitiça as plantas, os animais, os homens e os deuses [...]. Orfeu se
revela em cada um dos traços de sua lenda como o sedutor, em todos os
níveis do cosmo e do psiquismo: o céu, a terra, o oceano, os infernos, o
subconsciente, a consciência, a supraconsciência; dissipa as cóleras e as
resistências; enfeitiça. Mas, no final, fracassa em trazer sua bem-amada
dos infernos, e seus próprios despojos, despedaçados, são espalhados
num rio. (CHEVALIER, 1982; 662-663)
77
este tema, Rodrigues (2006), nos lembra das tentativas que empreendemos para
mantermos comunicação com os mortos:
Sobre esta “sacralidade” do nome, Mônica Rebecca Ferrari Nunes (2001) falou
com grande propriedade ao narrar a inauguração do método artificial de memorizar, que
trataremos no capítulo seguinte, e afirmou que:
78
Revivemos os mortos ao pronunciarmos, ao digitarmos seus nomes ao buscar o
perfil de alguém no Orkut; no lugar da disposição da mesa de convidados do nobre
Escopas (como trataremos a seguir), para evitar equívocos, temos o apoio das imagens e
outras características que não se aplicariam à memória pessoal, pois não conhecemos
aqueles indivíduos. Usamos pequena parte de nossa memória, pois é necessário
aprender apenas o nome. Se ele está diretamente associado com aquele que o porta e se
no Orkut encontramos alguém (ou o seu perfil) através de uma busca por nome (pois os
outros atributos são apenas eliminatórios – os chamados filtros), este nome é a palavra
chave, sem a qual não poderíamos concluir nosso intento. Podemos dizer que esse tabu
com o pronunciamento do nome do qual tratou José Carlos Rodrigues (2006) não existe,
na virtualidade. Aliás, é necessário que ele seja pronunciado (ou escrito), pois, assim,
mais pessoas terão condições de procurá-lo. Aqui nos lembramos de mais uma
peculiaridade envolvendo os mortos e seus nomes, descrita por Chevalier (1982) em seu
Dicionário de Símbolos. De acordo com eles, os homens que cavam a tumba devem
permanecer calados e também
Não podem virar-se, nem andar para trás, assim como os homens de um
cortejo fúnebre não podem se virar: forças invisíveis estão presentes e
poderiam ficar feridas com uma palavra pronunciada em vão ou
irritadas por terem sido percebidas, furtivamente, por cima do ombro.
(SERVIER, 1962; 148)
3.3 Memória
79
Hoje, a Internet apropriou-se com firmeza da sua maior e mais importante
característica: a mobilidade. Uma mesma informação pode passar por diversos tipos de
mídia com apenas algumas alterações:
Sim, podemos dizer que estes signos “roubaram” a memória humana, mas este
seria um pensamento um tanto pejorativo, embora real. É melhor que os consideremos
como ‘extensão’ dela: é através da lembrança primeira, originada no cérebro, que é
desencadeada a busca pelos dados armazenados virtualmente.
Vivemos a cultura do descontínuo (SANTAELLA, 2003), pois, quando
absorvido pelas mídias – e hoje qualquer coisa é passível dessa absorção – o assunto
passa a ser volátil, é criado para desaparecer, correlacionando-se imensamente com o
nosso próprio destino mundano – viver para morrer. A informação vive, entretanto, de
uma forma um pouco mais cruel: é o interesse, é a venda, é quanto aquele
acontecimento pode fornecer que ditará sua sobrevivência, pois a mídia é seu
sustentáculo, é a sua Parca Morta, sempre vigilante, sempre a postos para cortar o fio
tênue que dá vida àquela notícia.
Em Roma, as Parcas (que equivalem às Moiras na mitologia grega) eram três
deusas: Nona (Cloto), Décima (Láquesis) e Morta (Átropos). Elas determinavam o
curso da vida humana, decidindo questões como vida e morte, de maneira que nem
Júpiter (Zeus) podia contestar suas decisões. Nona tecia o fio da vida, Décima cuidava
80
de sua extensão e caminho; Morta cortava o fio. Eram também designadas por fates, daí
o termo em inglês para destino ter esse mesmo nome (fate). É interessante notar que em
Roma se tinha a estrutura de calendário solar para os anos e lunar para os atuais meses.
A gravidez humana é de nove luas, não nove meses; portanto, Nona tece o fio da vida
no útero materno, até a nona lua; Décima representa o nascimento efetivo, o corte do
cordão umbilical, o início da vida terrena, o individuo definido, a décima lua. Morta é a
outra extremidade, o fim da vida terrena, que pode ocorrer a qualquer momento29 (grifos
nossos).
E somos nós, telespectadores, cada vez mais usuários, que contribuiremos para
a continuidade daquela notícia nos meios tradicionais. De acordo com pesquisa
realizada com 165 integrantes da PGM, a televisão tem papel importante nas discussões
realizadas nos tópicos da comunidade:
Gráfico 17: Integrantes da PGM acham que apenas as mortes chocantes são mais discutidas
Mas, em contrapartida, somos um pouco como Zeus: mesmo que aquela notícia
caia, utilizando-se do dizer jornalístico, podemos mantê-la viva na virtualidade, pois,
nesse campo, a opinião pessoal pode transformar-se em jornalismo open source ou,
mais timidamente, em extensos tópicos dentro das comunidades relacionadas àquele
29
Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Parcas, acesso em 29.06.2009
81
assunto, como é o caso da Profiles de Gente Morta e, felizmente, ela nos facilita muito
no trabalho de rememorar certos casos, o que poderia ser considerado, nos dizeres dos
gregos antigos, como memória artificial (YATES, 1975), aquela que é obtida através de
técnicas (NUNES, 2001: 29). Para exemplificarmos esta técnica, é interessante valermo-
nos do arquétipo que o orador latino Marcus Tulius Cícero (106 a.C. – 43 a.C) narrou
em De Oratore (55 a.C.):
82
Mas, na Internet, há sempre a possibilidade de rever e rediscutir certos assuntos,
pois não há mediador entre individuo e informação: eles estão diretamente interligados.
As impressões pessoais são levadas em conta, mas uma contínua produção de notícias
pela mídia é indispensável na sobrevivência de um tópico, como foi o caso da Eloá:
enquanto o seqüestro ainda estava em curso e após seu término, a imprensa explorou
assuntos diretamente ligados ao acontecimento, como o namoro na adolescência, os
crimes passionais, a doação de órgãos, outros casos de comoção nacional, as táticas
policiais, as técnicas de negociação, a arma utilizada pelo bandido, a polêmica do
retorno de uma refém libertada ao cativeiro e demais temas que abordarei no capítulo 4.
Enquanto o caso esteve na imprensa, constantemente ligado a esses subassuntos, o
tópico na comunidade Profiles de Gente Morta teve muitos acessos. Depois disso,
apenas algum curioso casual procura-o para perguntar de eventuais novidades.
83
mantido, e sua morte poderá ser lembrada a qualquer momento por um dos mais de 60
mil integrantes da comunidade, conforme nos mostra a Figura 13:
84
catecismo e a promessa divina, que correspondem à promessa que os pais fazem: ‘tu
não morrerás’”. Para nós, a manutenção da memória realizada pela PGM é uma forma
nova de manter essa promessa.
Quanto à constante visitação ou comentários sobre uma morte em particular,
Rodrigues (2006; 89) diz que
85
“remendona”, nas palavras de Damásio (1996), não começa do zero, já
disse Jacob (1981). Logo, se a transmissão ao vivo de grandes tragédias
encena o luto midiático e a melancolia primordial secretada do tempo-
tecnológico, as arqui-representações e os procedimentos
neurobiológicos e psíquicos da memória já se comportam, na mídia,
como fenótipo escondido: a memória, concebida como traço evolutivo,
confunde o ninho e o ovo: o efeito de melancolia nas imagens
empobrecidas. Em face das grandes tragédias, do luto delirante, a fala
infinita revela a incapacidade de recategorizar, de evoluir em imagens
criativas. A obsessão do melancólico, atrabílis que congela os fluxos da
informação. É Rosenfield que afirma que a reação à perda de um objeto
pode significar a necessidade de se criarem novas conexões neurais.
Recorre à Lorenz para narrar que após a morte, entre parceiros de patos
e gansos, os animais vagam dias e dias à procura do parceiro
desaparecido. (NUNES, 2001; 151)
Todo perfil cadastrado no Orkut é público. Se seu dono morrer, por conta da
curiosidade sobre a morte, o perfil torna-se ainda mais visado, ainda mais público.
Aproveitando-se dessa vizinhança com os mortos ou com representantes diretos deles
(como foi o caso da mãe da Isabella Nardoni) vivenciada no Orkut, há quem desabafe
sua dor, “deixando recado” para a pessoa em sua página de recados; há quem tenha
medo de continuar a ver o perfil da pessoa morta e, por isso, o exclui da sua lista de
contatos; há também quem insista que o fato de mandar recados para a pessoa morta é
86
atitude mórbida. Estas práticas se repetem tanto para pessoas conhecidas como para as
completamente alheias a nosso convívio social material.
Assim como na vida real, é possível manifestar-se de várias maneiras diante
deste assunto, no Orkut. A diferença é que, como o perfil criado só poderá ser apagado
se outra pessoa, além do falecido, possuir a senha de sua conta ou se a família entrar em
contato com a administração do site, pelo Google, e solicitar sua exclusão alegando seus
motivos pessoais, é possível “continuar a existir virtualmente”, através dos rastros que
você deixou em vida. No entanto, são muitos os casos onde esses perfis não são
excluídos, seja por desconhecimento da senha ou por desinformação da família e
amigos. Então esse perfil permanece lá, intacto, como um registro fiel de quem foi
aquela pessoa, dos amigos que conheceu, dos sentimentos que experimentou através da
rede de relacionamentos. O Orkut tornou-se um grande centro de troca de informações
em tempo real e, por isso, serve, inclusive, como fonte de matérias e acervo de
fotografia para jornalistas, por exemplo. Assim, o conteúdo do Orkut pode interferir na
prática dos profissionais das mídias tradicionais. Este é um dado importante em nossa
análise, que perpassa pelo crivo das relações entre a televisão e a Internet, e que tem o
Caso Eloá como um dos mais expressivos dos últimos anos, como trataremos a seguir.
87
4. Caso Eloá
88
que pretendia se matar em seguida, e também se utilizou de tortura psicológica, dizendo
que mataria um dos amigos para que Eloá sofresse.
Em diversos aspectos, o livro de Márcio Campos assemelha-se aos programas
jornalísticos televisivos, pois os intertítulos estão divididos como blocos de um
programa de televisão – as informações “se repetem” como se fizessem parte de uma
“chamada” que é cortada constantemente pelos intervalos comerciais. Acreditamos que
o formato adotado pelo autor tenha se espelhado no que foi anteriormente utilizado pela
televisão durante a cobertura do caso, o que corrobora para a hipótese de que a televisão
influencia, atualmente, os demais meios de comunicação.
Entre outras coisas, Marcio narra a participação da imprensa no desenrolar do
caso, comentando passagens dos bastidores das gravações do local, comentando até o
momento em que Lindemberg disparou contra os cinegrafistas. Ele comenta e
transcreve trechos da conversa entre o sequestrador e Luiz Guerra, repórter do programa
A Tarde É sua, da Sonia Abrão.
89
consegue falar com Eloá, que diz que ama os pais e que está fraca. É o único registro da
voz da menina. Mais tarde, a própria apresentadora conversa com o seqüestrador e pede
que ele a liberte.
Os policiais alegariam mais tarde que tentaram prosseguir com as negociações
nesses horários, mas que o telefone de Lindemberg sempre estava ocupado. A ligação
de Sônia ainda é interrompida por cinco vezes. Lindemberg ainda conversaria com
repórteres do Jornal Nacional e do SP Record, da TV Record.
Campos (2008; 49) narra a entrevista do Comandante da Tropa de Choque da
Polícia Militar Paulista e superior do GATE (Grupo de Ações Táticas Especiais da
Polícia Militar), Eduardo Félix, ao apresentador José Luís Datena. O policial afirma que
essas conversas com a imprensa atrapalharam as investigações, e disse que era uma
irresponsabilidade muito grande.
90
por qual motivo, a menina voltou ao apartamento enquanto conversava com
Lindemberg ao telefone, a pedido da polícia, e foi dominada pelo sequestrador, voltando
a ser refém. Até o dia 17 de outubro, uma sexta-feira, o apartamento foi invadido,
Nayara foi baleada no rosto a Eloá na cabeça e na virilha. Lindemberg, após muita
confusão, foi dominado pela polícia e preso.
Figura 14: Primeiras postagens do tópico que discutiu o sequestro e a morte de Eloá.
A integrante que inaugurou o tópico disse que não queria ser pessimista, mas
“pelo que está passando acho que vai ter morte”. Logo em seguida, com apenas algumas
horas a mais de investigação dos integrantes da comunidade, o perfil de Eloá foi
encontrado e, a partir daí, copiado e comentado por todos os que acompanhavam o caso.
Até aquela quinta-feira, 16 de outubro de 2008, de acordo com Márcio Campos,
o caso de cárcere privado mais longo do Brasil tinha também acontecido em São Paulo,
92
quando um homem manteve uma mulher e duas crianças sob sua custódia durante
cinqüenta e seis horas, enquanto tentava escapar da polícia depois de ter praticado um
assalto (CAMPOS, 2008; 55).
Podemos afirmar que este é um caso desconhecido do grande público, pois, com
certeza, não fui divulgado constantemente pelas mídias simplesmente por ter sido o
mais duradouro; este fato é pouco relevante para manter-se uma discussão durante
meses, como aconteceu com a Eloá. Não sabemos deste caso porque a imprensa não o
divulgou e porque não houve um esforço conjunto para que o assunto se transformasse
em diversos outros, como aconteceu com Lindemberg, Eloá e Nayara. Será que foi
porque todos os envolvidos eram muito jovens ou por que houve uma morte, em frente
às câmeras?
Podemos apenas supor que um pouco de cada um desses fatores contribuiu para
a transformação deste caso em assunto de comoção nacional, mas o fato de que cerca de
trinta mil pessoas30 acompanharam o velório e o enterro da menina pôde ser
comprovado através das fotos disponibilizadas por essas mesmas pessoas no Orkut.
Podemos ver, abaixo, imagens do perfil original de Eloá, que ficou sendo administrado
por uma amiga enquanto ela ainda estava no cativeiro, e, em seguida, imagens dos
perfis fakes criados logo após a longa exposição do caso na mídia brasileira:
Figura 15: Perfil original da Eloá, mantido por amiga quando ela já estava seqüestrada31.
30
Disponível em: http://www.tudoagora.com.br/noticia/9701/ENTERRO-DE-ELOA---Veja-muitas-fotos-do-velorio-e-
sepultamento-do-corpo-de-Eloa-Cristina-Pimentel.html, acesso em 31.07.2009.
31
Disponível em: http://planetabizarro.files.wordpress.com/2008/10/orkut-1.jpg?w=500&h=411, acesso em 10.08.2009.
O endereço do perfil original de Eloá, http://www.orkut.com.br/Main#Profile.aspx?uid=6378834505363002726, já não existe mais.
93
Figura 16: Perfil fake de Eloá.
94
Figura 17: Perfil fake da Eloá com fotos retiradas do perfil original e fotos do velório e do
enterro.
Figura 18: Fotos do álbum do perfil fake da Eloá com fotos de seu velório
95
Figura 19: Fotos do álbum do perfil fake da Eloá com fotos de seu enterro
96
sanar o apetite do povo por informações textuais e audiovisuais sobre a menina. Sobre
os motivos para tal interesse, podemos observar que
Sobre as mortes infantis, Morin (1976) também afirmou que “nas sociedades
arcaicas, a morte da criança – na qual se perdem, contudo, todas as promessas da vida –
suscita reação fúnebre muito fraca”. As observações de Hertz e de Morin são válidas,
mas parecem colocar a “esperança” que a criança representa como uma coisa inferior.
Neste caso, poderemos concordar com seu entendimento apenas quando a morte
acontece por causas naturais, não importando a idade do bebê ou da criança ou
adolescente.
A imprensa insiste mais em casos infantis clamando o contrário: devemos
prolongar nosso lamento justamente por não serem indivíduos corrompidos por nós - e
suas mortes são frutos dessa corrupção – seja por falta de atendimento médico,
responsabilidade paterna, atenção de empregados, etc. A morte natural ‘morreu’, pois
sempre arranjamos novas roupagens para escondê-la.
Como já foi explicitado anteriormente, a PGM é movida pela curiosidade de
seus participantes sobre temas que sejam ligados direta ou indiretamente à morte, o que
não significa que todos eles sejam abertamente discutidos na comunidade. Fora à
exposição contínua de perfis de recém-falecidos, alguns integrantes gostam de discutir
esses assuntos anexos, e, para tal, devem abrir um tópico OFF, designando-o por esta
nomenclatura antes de sugerir o tema para a discussão que se seguirá.
97
No tópico aberto para discutir o seqüestro de Eloá, o formato da postagem
sugerida pela moderação da comunidade não foi seguida, mas isso não foi levado em
conta por causa da proporção que o caso tomou em poucas horas. Em seguida, diversos
outros integrantes da comunidade passaram a monitorar as notícias sobre o seqüestro e a
especular sobre as possíveis reações que Eloá, Nayara ou Lindemberg poderiam ter
dentro do cativeiro, conforme ilustra a Figura 21:
Figura 21: Integrante da PGM sugere como Eloá poderia se comportar no cativeiro. Em
10.11.2008
98
Figura 22: Integrantes da PGM listam os perfis dos envolvidos no seqüestro.
Figura 23: Tópico da PGM lista as notícias relacionadas ao Caso Eloá
99
Figura 25: Novo perfil de Nayara Rodrigues em 30.11.2008
100
Figura 27: Perfil de Iago Vieira de Oliveira, namorado de Nayara Rodrigues em 01.12.2008
101
Figura 29: Comunidade “Eloá Cristina Pimentel (vida)”
102
Mas, também, houve quem se expressasse de maneira completamente diversa,
demonstrando, através de atitudes agressivas, o seu pensamento pessoal sobre o caso.
Foi assim que surgiram perfis fakes e comunidades também para Lindemberg Alves,
como podemos verificar nas imagens abaixo:
Figura 32: Página de recados do perfil fake de Lindemberg Fernandes Alves em 28.10.2008
103
Mas, dentre essas tentativas de “falsificação”, a que mais se destacou foi a de um
perfil que estaria sendo administrado por um suposto primo de Lindemberg:
104
Figura 34: Perfil fake de Lindemberg administrado por seu “primo”
105
Uma das coisas que mais chamou a atenção das pessoas que estavam
emocionalmente envolvidas no caso Eloá foi a criação deste tipo de álbum no perfil fake
de Lindemberg, intitulado “Só a Morte nos Separa”:
Figura 35: Álbum de fotos do perfil fake de Lindemberg com imagens de Eloá
Nos dias seguintes, a quantidade de pessoas visitando o perfil citado foi imensa.
Quem fez questão de informar esse volume foi o próprio administrador do perfil, que se
vangloria sobre este assunto na imagem seguinte:
Figura 36: Administrador do perfil fake de Lindemberg expõe a quantidade de visitas que vem recebendo
106
Figura 37: Administrador do perfil fake de Lindemberg “agradece” a grande quantidade de
visitas
Nesta imagem podemos comprovar, também, que, além de visitas de pessoas
revoltadas com a atitude do administrador do perfil, existem também vários pedidos de
amizade, o que corrobora a hipótese de identificação social com o seqüestrador e de
utilização do assunto para chacota, como pode perceber, também, nas comunidades
abaixo:
Figura 38: Comunidade “Força Lindemberg tamos com vc!” (sic) 107
Figura 39: Comunidade “Eloá tá queimando no Inferno”
108
A propagação de tais comunidades serviu de matéria prima para discussões
sobre os diversos assuntos que listarei em seguida, tanto dentro quanto fora dos
ambientes virtuais. O que observamos aqui é que esses assuntos foram percebidos, a
princípio, pelos integrantes da PGM, depois pelos outros integrantes do Orkut e, mais
tarde, pelos programas de televisão, que os exploraram, gerando outras discussões
semelhantes dentro dos tópicos, na virtualidade. Pode-se afirmar que a sociedade, em
geral, ficou surpresa pela premeditação do seqüestrador e pelo fato dos envolvidos no
crime serem tão jovens.
Nesta parte, nos é atraente destacar, a partir das afirmações acima, a importância
da mídia televisiva e dos programas jornalísticos na continuidade da discussão sobre o
seqüestro da Eloá Pimentel, com diversos temas suscitados e constantemente discutidos
pela imprensa:
110
pela ubris, desmesura, apontam a memória como texto evolutivo
ambivalente: o lento tempo do luto tornando o mundo pobre e vazio e,
simultaneamente, indiciando o projeto utópico de superação da morte,
tarefa que a mídia desempenha com esmero. (NUNES, 2001; 142)
Aqui, podemos salientar que, mesmo para os que contribuíram ativamente para a
discussão sobre o Caso Eloá na comunidade Profiles de Gente Morta, o seqüestro e
todos os assuntos decorrentes dele já estavam saturados. Para tanto, visto também a
quantidade de ofensas e outras formas de desrespeito observadas no tópico sobre a Eloá,
a moderação da PGM montou uma enquete, entre os dias 21 e 22 de outubro de 2008
para decidir se o tópico deveria ou não ser mantido, uma discussão acirrada com a
participação de 587 membros. No fim, com 44% dos votos (259 pessoas), o tópico foi
mantido, como mostra a figura abaixo:
Figura 44: Integrante da PGM responde ao questionamento sobre a existência do tópico da Eloá em
14.10.2008
112
Figura 45: Integrantes comentam a importância da manutenção do tópico em 19.11.2008
113
Considerações Finais
114
para aquela realidade e, tomando-a como principal, acaba por imergir-se nela, deixando
de distinguir quais são as reais formas de relação. Mas, como já expomos neste trabalho,
esta “transferência” é um reflexo dos tempos em que vivemos e já foi preconizado por
diversos estudiosos na área comunicacional, como McLuhan, Maffesoli, Santaella,
Rodrigues... O comportamento observado hoje, nos meios virtuais, é apenas uma
extensão do comportamento real. Apenas a impessoalidade da máquina contribui para a
exploração de assuntos mais delicados, e a morte configura o de tratamento mais difícil.
Protegidos pelas máquinas podemos sanar nossa curiosidade e, ao mesmo tempo, nossos
anseios. A idéia da morte acompanhou o homem em toda a sua trajetória evolutiva;
hoje, a transferência ou a apropriação dos rituais de luto e representações da morte pela
Internet também ocorreram em caráter semelhante, com a transformação em tabu e pelo
distanciamento social proporcionado pela comunicação virtual e suas facilidades.
Quando não temos mais tempo, para lembrar nossos mortos e fazer-lhes visitas
em seus túmulos de pedra, a Internet apresenta-nos uma alternativa: podemos prestar as
nossas homenagens, e reverenciar a sua memória, no mundo virtual do Orkut.
115
Referências Bibliográficas
Artigos:
LIANZA, Sonia Maria. A narrativa jornalística: dramas da vida real. XXIX Congresso
Brasileiro de Ciências da Comunicação – Intercom: 2006.
116
Livros:
BECKETT, Samuel. Primeiro Amor. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. 32p.
BORGES, Jorge Luis: Prosa Completa, Barcelona: Ed. Bruguera, 1979. 976p.
CAMPOS, Marcio. A tragédia de Eloá: uma sucessão de erros. São Paulo: Editora
Landscape, 2008. 112p.
CHEVALIER, Jean [et al.]. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio,
2009. 996p.
CALVINO, Ítalo (org.). Contos Fantásticos do Século XIX. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004. 517p.
MARANHÃO, José Luiz de Souza. O que é morte. São Paulo: Brasiliense, 2008
(Coleção primeiros passos; 150). 77p.
117
NUNES, Mônica Rebecca Ferrari. A memória na mídia: a evolução dos memes de
afeto. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2001. 166p.
ORWELL, George. 1984. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 2005. 301p.
REIS, João José: A morte é uma festa. (Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do
Séc. XIX). Cia das Letras, São Paulo, 1991. 360p.
RODRIGUES, José Carlos. Tabu da Morte. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006
(Coleção Antropologia e Saúde). 258p.
SANTAELLA, Lúcia. Cultura das mídias. São Paulo: Experimento, 1996. 290p.
SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2008. 286p.
SUZUKI, Matinas Jr (org.). O livro das vidas: Obituários do New York Times. São
Paulo: Cia das Letras, 2008. 310p.
WOLF, Mauro. Teorias das comunicações de massa. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
295p.
118
Sites:
˂http://www.depositonaweb.com.br/3671/orkut-completa-5-anos-sendo-acessado-por-
70-por-cento-dos-brasileiros/˃; acesso em 21.07.2009.
˂http://www.tudoagora.com.br/noticia/9701/ENTERRO-DE-ELOA---Veja-muitas-
fotos-do-velorio-e-sepultamento-do-corpo-de-Eloa-Cristina-Pimentel.html˃, acesso em
31.07.2009.
˂http://www.orkut.com.br/Main#Community.aspx?cmm=993780˃, acesso em
29.06.2009.
˂http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs.aspx?cmm=65537209&tid=52357570028
99152661˃, acesso em 16.07.2009.
˂http://livrosdeprospero.blogspot.com/2005_07_01_archive.html˃, acesso em
04.05.2009
119