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A MORTE BRANCA DO FEITICEIRO NEGRO (”) Renato Ortie (**) INTRODUCAO O que pretendemos nesta exposigéo, ¢ demonstrar a integragiio e a legitimacdo da religido umbandista na sociedade brasileira de classes (1). Para tanto € necessdrio porém situar, mesmo se rapidamente, o problema, pois outros autores j4se ocuparam do assunto. A primeira afirmago que faremos é de que a Umbanda no ¢ uma religio negra, neste sentido ela se opSe ao candomblé que mantém viva a meméria coletiva africana no seio dos cultos religiosos. (2) Para nds a Umbanda é uma sin tese do pensamento religioso brasileiro, no qual os elementos negros, brancos e indios (visto através da ideologia branca e de classe), integram o universo da reli gio (3), Ela € 0 resultado da fustio de dois movimentos: 0 embranquecimento da cultura negra, 0 empretecimento da ideologia kardecista, O fendmeno do embran- quecimento jé foi suficientemente estudado por Roger Bastide, podemos resumt-lo na seguinte formula: o negro, submetido ao regime de escravido, no pode ascen- der socialmente dentro dos padrées moldados por uma cultura branca, sua ascensio se faré atrvés do embranquecimento de sua cultura (recusa de participar da heranga africana) e de sua raga (valorizagiio da mestigagem), Quanto a0 movimento do em- pretecimento, devemos distinguf-lo cuidadosamente de um possfvel “enegrecimen- to” da cultura branca, O preto se opSe ao negro na medida em que o primeiro se refere a superficie, a cor negra, enquanto o segundo diz respeito a essencia negra seja, © que © africano traz de caracterfstico de uma Africa pré-colonial. Ao falar- mos do empretecimento de uma camada de intelectuais kardecistas, nai nos referi- mos 4 uma fusdo harménica das ragas, como pretende Gilberto Freyre. O que tentaremos mostrar ¢ que sempre que existe a valorizago do preto (e nao do negro) cla se faz segundo a pertinéncia de uma cultura branca, Os elementos genuina. mente africanos, ou melhor, afro-brasileiros, so rejeitados por esta camada de intelectuais, que sfo justamente os criadores da religito Umbanda. A cr preta é desta forma reinterpretada de acordo com os cénones de uma sociedade onde a ideologia branca é dominante. segundo ponto diz respeito a hist6ria da religito umbandista. Apesar das dificuldades, por falta de estudos criteriosos sobre 0 assunto, podemos afirmar que a Umbanda uma religido nova, e que certamente antes de 1920 nao havia (°) Comunicagio apresentada na 28% Reuniio Anual da Sociedade Brasileira para o Pro- sgresso da Ciéncia - Brasilia -julho 1976. ©) Da Univ, Fed, da Par 120 Centro de Estudos Rurais e Urbanos nenhum movimento umbandista no pais (4). Sdmente nas decadas de vinte, mais intensamente nos anos 30, € que algumas tendas comegam a surgit no Rio de Ja- neiro € no Rio Grande do Sul (5). Elas s40 formadas por individuos de orientagao Kardecista que operam com elementos de origem afro-brasileira, Este movimento que chamamos de empretecimento, se acentua a partir de 1930 para culminar num movimento organizado que celebra o Primeiro Congresso Umbandista em 1941, na Guanabara. Sdmente a partir desta data podemos falar de Umbanda como movimento que se torna piblico ¢ oficial. ConclusGes importantes decorrem deste fato, Do ponto de vista organizacional, esta reunido de intelectuais é de suma importancia, pois € deste niicleo que sairio as primeiras diretrizes de sistemati- zagdo e institucionalizagao da religifo. Por outro lado, 6 no diseruso dos “eérebros” religiosos que a ideologia da sociedade global se manifesta de forma mais acentuada Do ponto de vista socioldgico o nascimento da Umbanda encerra outro argumento importante: a religido emerge no momento em que se consolida a implantagio de uma sociedade urbana, industrial e de classes. Isto faré com que a ideologia um- bandista, reinterpretando os valores da “moderna” sociedade barsileira, vé tradu- zi-los dentro do campo semintico religioso. Mais ainda, a religifo parece ser fruto destas transformagdes sociais que neste momento envolvem a sociedade global Nao 6 por acaso que a Umbanda nasce no sudeste brasileiro, numa regio onde a urbanizaggo mas sobretudo a industrializagao sao responséveis pela implantacao de um novo estilo de vida. Da mesma forma que também no por acaso que hoje, a distribuigdo dos adeptos umbandistas se faz paralelamente as desigualdades regionais. L4 onde 0 desenvolvimento é maior 0 mimero de figis 6 mais elevado, li onde ele € menor o niimero de adeptos cai (6) Este predmbulo nos parece importante porque ele deixa claro que a religiao umbandista € uma sintese de elementos hist6ricos brasileiros, mas que a0 mesmo tempo ela é um produto simh6lico que se realiza em um determinado momento histrico da sociedade brasileira. Por isto a Umbanda penetrada pela propria ideologia que a engendrou. Sem o movimento de intelectuais que estabe- leceu as normas de orientagdo da religifo, ela ndo existiria pois 0 que encontra- riamos seriam sdmente manifestagdes heterogéneas de rituais de origem afro-bra- sileira. Por outro lado, sem a presenga de uma heranga cultural afro-brasileira nao seria possivel 0 “bricolage” (7) do pensamento kardecista sobre esta realidade. INTEGRACAO CULTURAL E DE CLASSE Para compreendermos melhor 0 problema da integragdo da religiao umbandista na “moderna” sociedade barsileira, convém reforgar 0 que dissemos acima, isto é, que a Umbanda é um produto resultante da “bricolage” do pensamen- to Kardecista sobre elementos de origem afro-brasileira. Nao estamos querendo dizer com isto que o elemento catélico n3o deva ser levado em linha de conta, pelo contrério, catolicismo transpassa a religifo umbandista de alto a baixo ele penetra tanto o kardecismo quanto os cultos afro-brasileiros. A moral crist® faz parte, por assim dizer da “natureza” da civilizagdo brasileira, se no nos refe- timos ela explicitamente ndo é por omissdo, mas simplesmente porque nds a consideramos como um dado “natural”. Por outro lado, poderiamos pensar em considerarmos os elementos indigenas, porém, estes so em ntmero bastante CADERNOS NP 9 — 1976 13% reduzidos, 0 indio figurando na Umbanda mais como um trago veiculado pela cultura e ideologia branea, seja, 0 indio do romantismo do século XIX. Contraria- mente a este dltimo, a heranga africana se impde com todo o peso de sua histéria americana, Q ritual umbandista absorve desta maneira grande parte da estrutura e do funcionamento dos cultos afro-brasileiros; uma primeira caracteristica em comum sendo que os dois so cultos de possessdo, isto &, 0 processo de comunica- 0 entre o sagrado e 0 profano se faz por meio do transe, As semelhangas estru urais sfo ainda maiores: mesma forma de organizagZo da hierarquia da seita (pais de santo-filhos de santo), mesmo vocabuldrio religioso (cavalos de santo, linhas de Xang6, Ogum, etc), mesma forma de estruturagdo do culto em terreiros. As fronteiras entre a Umbanda ¢ 0s cultos afro-brasileiros parecem assim A primeira vista, bastante ténues, e elas foram ténues no momento do nascimento da reli- gifo umbandista: dai a necessidade de um esforgo tedrico em separdé-las. Este esforgo corresponde as transformagdes que j4 ocorriam na pratica dos ritos devido 4 inseredo da religido numa sociedade que também sofria ela mesma modificagdes importantes. Na medida em que os limites religiosos sio demarcados, ¢ que 0 ritual absorve os valores da sociedade global, pode-se dizer que a Umbanda se integra dentro desta sociedade. Analisaremos em nosso estudo dois tipos de valores integrados pela religido: valores culturais e valores de classe, primeiro processo de transformagio cultural da heranga africana, se faz através do mecanismo que a escola culturalista chamou de aculturacao (8). Os deuses vo se travestir nas imagens dos santos catélicos, dando origem assim ao sincretismo religioso (9). Este sincretismo se faz porém mais em detri- mento da fé catdlica, pois o deus africano subsiste atras da mdscara fornecida pela tradigo cristd. Na Umbanda o que encontraremos ¢ este fendmeno do sincretisimo invertido, os lagos com a Africa se rompem ¢ a divindade africana passa a ser mascara dos valores culturais de uma sociedade branca e catélica. Um exemplo interessante a esse respeito é Exu que nos cultos afro-brasileiros tem a funcio de estabelecer a comunicagao entre sagrado ¢ o profano, Ora, a religido umbandista transforma esta divindade para reinterpreté-la em termos morais segundo a teoria kardecista da evolugo. O deus se desdobra assim em dois: Exu-pagao, Exu-batiza- do; enquanio 0 primeiro é sindnimo de “atraso” espiritual, vive portanto nas trevas, 0 segundo se beneficia de alguns raios de luz que iluminam a senda da evo- lugdo espiritual. A divindade se revela desta forma através de um novo sistema de compreensio; esquece-se seu carater de mensageiro divino, para apreendé-lo nas malhas da doutrina evolucionista A doutrina karmica da evolugao espiritual ¢ um dos elementos mais importantes do sistema umbandista, ela fornece aos pensadores religiosos 0 argu- mento ideolégico que delimita a fronteira entre a Umbanda e os cultos afro-bra- sileiros. Taxando de “barbarismos”, “atraso mental”, “ignoriincia”, as praticas telativas aos cultos afro-brasileiros, a Umbanda secreta para si um lugar mais elevado do que estas priticas (da qual ela esta tao proxima) nos nfveis da escola espiritual por isso que 0s rituais de sangue,o uso da pélvora, 0 sacrificio de animais, tender 4 desaparecer no ritual umbandista. O mesmo destino é reservado as comidas de san- to, Todas essas priticas sfo vistas, sobretudo pelos adeptos da classe média, como aviltantes, retrogadas, enfim “atrasadas” para o desenvolvimento espiritual um: bandista. £ claro que concretamente existe uma assincronia entre ideologia ¢ rea- lidade, e existindo muitos terreiros que ainda praticam ritos que utilizam a pol vora ou © sacrificio de certos animais. Eles séo porém conotados como terreiros

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