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A TRAGÉDIA EM NIETZSCHE E LACAN: SUA ORIGEM E SUA ÉTICA

Lucas Guilherme Fernandes


Bruna Pinto Martins Brito
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE - UFF/PUCG

RESUMO
A tragédia surge no universo grego situada entre os valores heroicos da epopeia e as
indagações na pólis. Desdobra-se a partir daí, em diversos campos, principalmente na
filosofia e na psicanálise. Em Nietzsche e Lacan, consideramos que a tragédia possibilita
um novo modo de pensar, tratando-se de uma crítica ao modelo filosófico no primeiro e
a proposta de uma ética neste último. Em Nietzsche, a tragédia, resultante do conflito
apolíneo-dionisíaco, opõe-se à dicotomia do bem/mal instaurada pela civilização
socrática e à racionalidade desmedida da ciência moderna. Lacan, por outro lado, aponta
que a dimensão trágica encontra-se desde Freud, propondo assim, que a ética da
psicanálise, diferente da aristotélica, não visa ao bem, mas como uma ética do desejo,
deve afirmar-se como trágica. A proposta deste trabalho, é percorrer alguns elementos da
tragédia grega e também as elaborações de Nietzsche, a fim de pensar o movimento da
clínica psicanalítica orientado por sua ética trágica, tal como formulada por Lacan.

LUCAS GUILHERME FERNANDES


Endereço: Rua José do Patrocinio, nº 71, Centro, Campos dos Goytacazes - RJ. CEP
28010-385
E-mail: lucasguilhermefernandes@gmail.com

Discente do curso de Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (Pólo


Universitário Campos dos Goytacazes). Participa dos projetos de pesquisa “O Estatuto da
Transferência em um Tratamento Possível da Psicose”, sob coordenação da Profª Drª
Bruna Pinto Martins Brito, e “Espaços Políticos Abertos pela Literatura”, sob
coordenação do Prof. Dr. Leonardo Pinto de Almeida. Estagiário de Psicologia na área
de Clínica Psicanalítica no Serviço de Psicologia Aplicada da UFF de Campos dos
Gopytacazes (RJ).

BRUNA PINTO MARTINS BRITO


Professora Adjunta do Curso de Psicologia da Universidade Federal Fluminense
(UFF/PUCG). Membro da Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME).
Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre o sujeito contemporâneo
(NEPESC/CNPq). Doutora em Psicologia (UFRJ/PPGP). Mestre em Psicologia
(UFRJ/PPGP). Psicóloga (UFRJ).
Endereço: Rua José do Patrocinio, nº 71, Centro, Campos dos Goytacazes - RJ. CEP
28010-385
e-mail: brunapmbrito@gmail.com

TRABALHO COMPLETO

A consciência do mal e a concepção de uma ética nos tempos atuais é, segundo


Badiou (1995), uma discussão que se sustenta em proposições demasiado gastas e
destoantes de sua real significação. A suposição contemporânea em sua relação com a
ética, segundo Badiou (1995) submete o sujeito moderno, enquanto um valor universal,
a uma definição do homem enquanto vítima. Mergulhada na determinação negativa e a
priori do mal, na concepção moderna, “a ética se nega a pensar a singularidade das
situações, princípio obrigatório de toda ação propriamente humana” (BADIOU, 1995, p.
26).
A ética contemporânea designa uma incapacidade do mundo de querer um Bem.
Tal característica, conduz Badiou a aproximar-se da designação nietzschiana a respeito
do niilismo – que prefere o nada ao nada querer. Opondo-se a este desgaste da palavra
ética nos tempos atuais, Alain Badiou sustenta que uma ética somente não existe. Ao
tratar-se de ética, só pode-se dizer de uma ética-de. Tal sentido, o autor aponta para a
suposição de Lacan ao referir-se a uma ética da psicanálise. “Não há ética senão das
verdades” (p. 37), portanto, ele o aproxima da formulação lacaniana que propõe como
máxima ética “não ceder em seu desejo (...), quer dizer afinal: não ceder em sua própria
captura por um processo de verdade” (1995, p. 53).
Desse modo, prosseguimos nas discussões suscitadas por Lacan no biênio de
1950-60. Neste seminário, o psicanalista francês traz a discussão, o que poderia se
formular, a partir de Freud, de uma ética da psicanálise. Entretanto, a fim de avançar nesta
discussão, há uma virada sutil ao tratar deste assunto: embora compreendendo que tal
temática está inserida nos campos da filosofia, principalmente em autores como
Aristóteles e Kant – que são evidentemente citados no percurso deste seminário – além
de tomar e percorrer outros autores, Lacan não acentua a ética da psicanálise no campo
da filosofia. Ele resgata um momento anterior a constituição do saber filosófico, ao
retomar a tragédia grega antiga considerando, portanto, que a ética da psicanálise é uma
ética trágica.
Retomaremos aqui, antes de nos determos na proposição de Lacan, algumas
considerações a respeito da tragédia e seus elementos constituintes, de modo que possam
auxiliar no desenvolvimento deste trabalho. Perpassando sobre uma distinção entre a
poética e a filosofia trágica, pretendemos percorrer brevemente algumas considerações
aristotélicas e, prosseguindo, sobretudo para a elaboração nietzschiana. Em Nietzsche, a
tragédia, resultante do conflito apolíneo-dionisíaco, opõe-se à dicotomia do bem/mal
instaurada pela civilização socrática e à racionalidade desmedida da ciência moderna.
Nossa proposta, portanto, é percorrer alguns elementos da tragédia grega e também as
elaborações de Nietzsche, a fim de pensar o movimento da clínica psicanalítica orientado
por sua ética trágica, tal como formulada por Lacan.
A tragédia ática surge no século V a.C. na Grécia Antiga, mas também neste
mesmo século resulta seu desaparecimento. Surge sob o contexto das questões políticas
e institucionais daquele século e a organização da polis grega. Situando seu nascimento
neste período de transição, tal qual a face do deus Jannus, a tragédia aponta suas faces
para dois períodos do universo grego: ela está situada entre os valores heroicos da epopeia
e as indagações a respeito da organização da polis.
Szondi (2004) delimita dois posicionamentos diferentes a respeito da tragédia: a
poética da tragédia e a filosofia do trágico. Segundo a consideração deste, há desde
Aristóteles uma poética da tragédia, mas somente a partir de Schelling, uma filosofia do
trágico. t
Em Aristóteles, podemos encontrar as primeiras formulações a respeito dos
elementos e os efeitos que constituem a tragédia. Esta obra traz assim uma significação a
respeito da poesia e o impulso empírico como origem da tragédia, tendo, portanto, a
catarse como seu principal efeito. Ela é um estudo sobre a técnica poética em geral,
embora, Aristóteles destaque a soberania da arte trágica sobre os demais modelos
(ARISTÓTELES, 2015).
Vernant e Vidal-Naquet (2008) ressaltam, entretanto, que o próprio Aristóteles
conheceu muito pouco do que de fato se realizou sobre o século ático, resultando num
desconhecimento a respeito do homem trágico. Por outro lado, retomamos aqui, a
importância da obra aristotélica e sua primazia sobre as outras análises poéticas. Szondi
(2004) considera, inclusive que, as análises posteriores, nada mais são, do que percepções
da obra aristotélica. Se, a partir de Schelling, inicia-se uma filosofia da tragédia,
destacamos aqui, a grande novidade na elaboração de Nietzsche a respeito do trágico.
O trágico é exposto na filosofia nietzschiana, como um verdadeiro conhecimento
porque não submete a vida a uma concepção negativa, não desconsidera o caótico e
questionável da existência, mas nele encontra seu modo de afirmá-la.
A tragédia representa o conflito entre o apolíneo e o dionisíaco, entre o caos e a
harmonia, a desintegração e a unidade, a união entre a aparência e a essência. O trágico
manifesta-se sempre na combinação dualística entre o sonho (Apolo) e a embriaguez
(Dionísio): somente através deste jogo entre os dois instintos estéticos que a experiência
trágica pode advir, pois é nesta tensão que este modo artístico se constitui. (NIETZSCHE,
1871). A separação do dionisíaco e do apolíneo resulta na própria destruição dos dois
instintos e o aniquilamento do belo trágico.
A decadência da tragédia grega dá-se também por uma contradição. Porém esta
oposição, não se assemelha àquela luta dos instintos artísticos que eram constituintes e
manifestavam-se como característica própria da arte trágica em suas lutas incessantes e
irreconciliáveis do apolíneo e o dionisíaco. Nietzsche (1871) enxergará na morte da
tragédia grega uma nova oposição: o socrático contra o dionisíaco.
A tendência socrática ao desprezar a tragédia por ser apenas por instinto,
desconsidera e descarta todo aspecto caótico tal como manifestava-se na música e em sua
excitação a partir do ditirambo dionisíaco. Por sinal, desconsidera e despreza também,
toda a arte e toda a existência, já que estas mostram-se a partir de sua insensatez e
impossibilidade de total apropriação e intelectualidade. Na concepção nietzschiana, ao
desconsiderar o trágico, o socratismo enxerga a arte e a existência como detestável.
O trágico, em Nietzsche (1871), está ligado à expulsão e rejeição da música em
virtude da mera ilustração dos conceitos sob a figura do homem teórico ainda presente na
modernidade. A experiência trágica é capaz de justificar a existência do mundo e, como
fenômeno estético – mesmo em seu pior – transfigurá-la e afirmá-la. Por isso, a concepção
trágica de Nietzsche, resulta de forma a estabelecer “a denúncia do mundo moderno como
civilização socrática e a tentativa de descortinar o renascimento da tragédia ou da visão
trágica do mundo em algumas manifestações culturais da humanidade” (MACHADO,
1997, p. 13).
É neste ponto que aproximamos Nietzsche e Lacan. Embora, compreendamos as
distinções nas formulações destes dois autores a respeito da tragédia, consideramos que
a tragédia possibilita, tanto a um quanto a outro, um novo modo de pensar: tratando-se de
uma crítica ao modelo filosófico no primeiro e a proposta da ética da psicanálise, neste
último. Em Nietzsche, a tragédia, resultante do conflito apolíneo-dionisíaco, opõe-se à
dicotomia do bem/mal instaurada pela civilização socrática e à racionalidade desmedida
da ciência moderna. Lacan, por outro lado, aponta que a dimensão trágica situa-se na
experiência analítica, desde Freud. Desse modo, a ética da psicanálise, diferente da
aristotélica, não visa ao bem, mas como uma ética do desejo, deve afirmar-se como
trágica.
Lacan (1959-60) situa a tragédia como experiência presente nas referências
freudianas, desde a elaboração do seu conteúdo mítico em Édipo. Por outro lado, também
retoma que o efeito primordial da tragédia, a catarse, tal como foi elaborado por
Aristóteles, está na raiz da clínica psicanalítica.
Para Lacan, há decerto, um retorno ao sentido da ação – no sentido da ética – que
é realizado pela psicanálise, entretanto, não é a partir de uma ordenação e arrumação em
direção ao bem, que ela se inscreve, mas numa dimensão trágica, onde, “a relação da ação
com o desejo que a habita na dimensão trágica se exerce no sentido de um triunfo da
morte” (LACAN, 1959-60, p. 366-7)
A moral aristotélica, enquanto moral do mestre, não é o lugar de onde o analista
responde, visto que estando esta primeira a serviço dos bens, desconsidera e rejeita
totalmente a relação do sujeito e o desejo que o constitui. É por isso, que nesta
consideração sobre a ética da psicanálise, Lacan situará sua leitura do lado da personagem
Antígona e não sobre a figura de Creonte.
Creonte é aquele que se opõe veemente a ética trágica da psicanálise. Ele,
enquanto chefe que governa e direciona a polis, quer o bem e o bem de todos. Por outro
lado, Lacan nos adverte que o bem não pode reinar verdadeiramente sem que apareça um
excesso. Excesso este que resulta em consequências fatais, das quais a tragédia
demonstra. O verdadeiro acontecimento da tragédia situa-se na ação do personagem, que
tal como Antígona, “o herói e o que está à sua volta situam-se ao ponto de visada do
desejo” (LACAN, 1959-60, p. 314). A tragédia sofocliana que nomeia-se sob o título
desta heroína, aponta para eficácia da ação como principal elemento deste modo poética.
O ato de Antígona não é auxiliada pelos deuses, tal como via-se comumente na obra épica.
Em sua ação, ela está absolutamente só em sua relação com o seu desejo. E por efeito de
seu ato trágico, responsabilizando-se das consequências que provocou.
Lacan reconhece que a experiência analítica só pode reconhecer uma ética
possível, uma ética da psicanálise, a partir do momento em que situa a natureza do desejo
que está no âmago desta experiência. Insiste, portanto, que um juízo ético na psicanálise
só pode reconhecer-se nessa “questão com seu valor de Juízo final – Agiste conforme o
desejo que te habita?” (1959-60, p. 367). A ética da psicanálise expressa-se, desse modo,
na única proposição que pode ser considerada aceitável: tal como a personagem Antígona,
para que o sujeito não traia a si mesmo, ele deve não ceder de seu desejo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Editora 34, 2005.


BADIOU, A. Ética: um ensaio sobre a consciência do mal. Rio de Janeiro: Relume-
Dumará, 1995.

LACAN, J. (1959-60). O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro:


Zahar, 2008.
MACHADO, R. Zaratustra, tragédia nietzschiana. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

NIETZSCHE, F. (1871). O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. In:


______. O nascimento da tragédia. São Paulo: Cia das Letras, 2007.

SZONDI, P. Ensaio sobre o trágico. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

VERNANT, J-P; VIDAL-NAQUET, P. Mito e tragédia na Grécia Antiga. São Paulo:


Perspectiva, 2008.

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