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Resumo É noite, à beira das florestas que circundam o vilarejo de Nabua, no nordeste
Este artigo busca investigar
a emergência, dentro de um
da Tailândia. Em meio ao vento que balança suavemente as copas das árvores,
certo cinema contemporâneo um tubo de luz fluorescente ilumina fracamente um pequeno descampado. Aos
transnacional de um “ou- poucos, vemos alguns clarões rasgando o negrume quase absoluto: aparente-
tro” realismo, marcado pela
mente, raios ou fogos de artifício. Após longos segundos de incerta e inquietan-
construção narrativa por am-
biências, pela estética do co- te contemplação, eles se revelam como uma série de imagens esbranquiçadas,
tidiano e por promover, junto projetadas numa grande tela armada nesse mesmo descampado. Em certo mo-
ao espectador, uma experi- mento, vemos a tela bastante próxima: a textura de seu tecido atravessada pela
ência mais sensorial e afeti-
luz revela-se, quase a ponto de ser tocada. O som das explosões faz-se bastan-
va que racional. Para discutir
este “realismo sensório”, te presente, enquanto a noite continua a cair, e aos poucos emergem silhuetas
que por vezes se aproximaria humanas, recortadas contra a tela, e iluminadas por uma outra luz, alaranjada,
o “realismo afetivo” propos- que se move próxima ao chão. Depois de alguns segundos, finalmente percebe-
to por Schøllhammer (2005),
buscamos nos aproximar dos
mos se tratar de uma espécie de jogo de futebol, no qual uma bola em chamas
estudos sobre cinema, corpo é chutada por um grupo de jovens aldeões, posicionados entre nosso ponto de
e sensorialidade de teóricos vista e a tela que ao fundo continua a projetar os clarões. Um plano geral nos dá
como Steve Shaviro e Laura
a visão das três fontes de luz: a lâmpada tubular, as imagens projetadas na tela
Marks, ilustrando-o com bre-
ves leituras de obras dos ci- e a bola de fogo, que deixa por vezes um breve rastro na rasteira vegetação que
neastas Claire Denis, Naomi se espraia pelo solo.
Kawase, Apichatpong Weera- Após sermos apresentados, sem maiores cerimônias ou explicações, aos
sethakul, Hou Hsiao-Hsien e
elementos que engendram a ação contida na cena, resta-nos acompanhar, com
Lucrecia Martel (comumente
associados, por parte da crí- alguma proximidade, o movimento da bola de fogo chutada incessantemente pe-
tica cinematográfica, ao ter- los jogadores: um desenho de luz que insiste em rasgar a escuridão. O barulho
mo “estética do fluxo”). das explosões agora se confunde ao o som dos chutes na bola que, por vezes,
palavras-chave: cinema e
atinge a tela de projeção, inflamando-a. Primeiro, o fogo arde em pequenas
sensorialidade; estética do áreas, até finalmente a combustão atingir a totalidade de sua superfície. Nessa
fluxo; cinema e corpo. hora, revela-se uma nova fonte de luz, frontal a nosso ponto de vista: a do
projetor, revelado à medida que as chamas extinguem a superfície de proje-
ção. O clarão outrora projetado no tecido agora pulsa diante de nossos olhos,
[1] Erly Vieira Jr é professor do
Departamento de Comunica- reverberando, quase imperceptível, na fumaça que deriva da queima, enquanto
ção Social da Ufes e doutoran- ainda ouvimos algumas explosões a ressoarem nas caixas de som conectadas
do em Comunicação e Cultura
pela UFRJ. Também é escritor
ao equipamento de projeção.
e curta-metragista. Durante cerca de dez minutos, acompanhamos o desenrolar dessa cena,
Em primeiro lugar, cabe explicar que o realismo a que nos referimos aqui foge
de concepções fenomenológicas que marcam as proposições de André Bazin
na década de 50, ao dividir o cinema entre realizadores que comungavam de
uma crença na realidade (valorização da mise-en-scène e do plano-sequência)
e os partidários da crença na imagem (e da interferência direta do realizador
no material fílmico através da montagem). Prefiro pensar como Steve Shaviro
(1993), que propõe abandonar essa dicotomia plano X montagem e abolir a
descontinuidade entre esses dois domínios, como condição fundamental para
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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