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PUC-SP
SÃO PAULO
2017
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
SÃO PAULO
2017
Banca Examinadora:
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Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES) pela concessão da bolsa de estudo, que viabilizou a realização deste trabalho.
AGRADECIMENTOS
À Professora Leda Rodrigues, pela orientação e pelo apoio em momentos cruciais ao longo do
processo de escrita deste trabalho.
Ao Eduardo, pela participação nas fases inicias da dissertação, pelas conversas elucidativas
acerca das políticas públicas voltadas à educação.
Aos jovens do Projeto Espetáculo, que se prontificaram a participar desta pesquisa, pela
receptividade e confiança.
À Professora Ana Luiza Garcia, a Iza, que tive o prazer de conhecer na disciplina de Teoria
Linguística, na Licenciatura em Letras - Língua Portuguesa, na PUC-SP, e logo se tornou uma
importante referência e inspiração acadêmica e profissional. Por todo o aprendizado e pelas
valiosas contribuições no exame de qualificação, as quais conferiram novos significados a
este trabalho.
À Professora e amiga Lara Simielli que, desde os nossos tempos de Brasília, é uma referência
na área de políticas públicas em educação. Por todo conhecimento e materiais compartilhados,
pela motivação e apoio afetivo, durante a construção deste trabalho. Pelas fecundas
contribuições no exame de qualificação.
À Neide, com quem tanto aprendi na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde foi
minha chefe e onde a nossa amizade começou. Por ter me encorajado a fazer uma pós-
graduação stricto sensu.
Agradeço, especialmente, à Mari e ao Gabriel, duas pessoas queridas que foram fundamentais
num período crítico da dissertação. Ao Gabriel, por me ajudar a desemaranhar o referencial
teórico e ampliar o meu repertório das Ciências Sociais. À Mari, pelas cuidadosas leituras e
releituras, pela revisão do texto e preciosos apontamentos. Pelo suporte generoso e afetuoso.
À Angela, minha chefe na Escola Alecrim, pela compreensão e flexibilidade nos momentos
em que precisei me ausentar por causa do mestrado.
À minha mãe, pelo seu esforço em aceitar as minhas escolhas acadêmicas e profissionais, por
ter buscado se aproximar durante o processo de construção desta dissertação e entender o meu
trabalho. Pelo suporte financeiro.
Gratidão
“E eu me pergunto se este tão denunciado e tão chorado fracasso
da educação brasileira não será antes um sinal de esperança, de que continuamos
capazes de discernir o que é bom para o corpo daquilo que só é bom para o lucro.”
Rubem Alves
RESUMO
Este trabalho objetiva analisar a importância de programas culturais, oferecidos por meio de
políticas públicas, a estudantes residentes em áreas consideradas de grande vulnerabilidade
social, para ampliar o capital cultural e, como consequência, promover o grau de letramento
desses cidadãos. Para realizar este estudo, empregaram-se como perspectivas teóricas as áreas
de educação e sociologia, tomando como referencial, principalmente, as contribuições de
Bourdieu, Magda Soares, Roxane Rojo e Maurizio Gnerre. Utilizaram-se, também,
informações adquiridas a partir de questionário socioeconômico e entrevistas concedidas por
jovens participantes do Projeto Espetáculo, do Jardim São Luís, que compõe o Programa
Fábricas de Cultura, em São Paulo. Os dados obtidos evidenciaram o potencial do Projeto
como prática de letramento não escolar, que deve servir de modelo à implementação de ações,
dentro da escola ou de modo a dialogar com ela, que visem à reparação dos déficits de
aprendizagem de linguagem oral e escrita que o sistema de ensino público ainda apresenta.
ABSTRACT
This work analyzes the importance of cultural programs offered within the scope of Brazilian
public policy to students living in socially vulnerable areas in order to increase cultural capital
and, as a consequence, promote literacy among these citizens. Theoretical perspectives were
applied to the areas of education and sociology, principally referencing the contributions of
Bourdieu, Magda Soares, Roxane Rojo and Maurizio Gnerre. Additional information was
obtained from a socioeconomic questionnaire and interviews with young people participating
in the Projeto Espetáculo, of the Jardim São Luís, which composes the Programa Fábricas de
Cultura, in São Paulo. The data provided evidence for the potential of the Project to promote
literacy outside of a school environment, serving as a model for the implementation of
actions, be it within or in conjunction with schools, to repair learning deficits in oral and
written language that persist in the Brazilian public education system.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................12
I. CAPITAL CULTURAL E LETRAMENTO ...................................................................19
1. Campo .........................................................................................................................55
2. Agentes ...........................................................................................................................66
3. Instrumentos ..................................................................................................................68
b) Entrevistas ................................................................................................................96
ANEXO I – Termo de consentimento livre e esclarecido .................................................130
LISTA DE QUADROS
INTRODUÇÃO
O Relatório Nacional sobre os resultados do Pisa 2015, produzido pelo Inep, afirma
aquilo que é ponto de partida ao desenvolvimento desta pesquisa, reconhecendo que o “nível
socioeconômico está associado com o desempenho dos estudantes nos testes cognitivos”
(INEP, 2015, p. 239). Esta afirmação foi verificada nesta pesquisa e encontrou apoio nas
informações obtidas por meio de questionário socioeconômico e entrevistas. As respostas dos
estudantes revelaram uma forte ligação entre a escassez de bens culturais e os respectivos
resultados.
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Este trabalho problematiza as questões socioculturais a partir da realidade de jovens
residentes em áreas consideradas de grande vulnerabilidade, segundo dados do Sistema
Estadual de Análise de Dados (Seade). Para isso, emprega como perspectivas teóricas as áreas
de educação e sociologia, tomando como referencial, principalmente, as contribuições de
Bourdieu e da chamada teoria do letramento.
Por meio da teoria de capital cultural e distinção de classes definida, por Bourdieu, é
avaliado em que medida o Projeto Espetáculo, do Programa Fábricas de Cultura, da Secretaria
da Cultura do Governo do Estado de São Paulo, pode contribuir para superar os déficits
originários do capital cultural de jovens estudantes do ensino médio de escolas públicas da
cidade de São Paulo. Portanto, a investigação se inicia questionando a possibilidade do
projeto em ampliar o capital cultural e, como consequência, promover alguma melhora no
grau de letramento dos participantes. A pesquisa se delimita a estudar jovens provenientes de
classes sociais menos privilegiadas, amparados pelo Projeto Espetáculo da Fábrica de Cultura
do Jardim São Luís.
Diversos trabalhos acadêmicos, realizados nos últimos anos, compilam uma farta
literatura sobre projetos culturais e sua importância ao desenvolvimento cultural dos jovens
participantes. Dentre os textos encontrados durante um breve levantamento, têm-se trabalhos
sobre a importância da arte à consciência política (PERCASSI, 2014), além de estudos sobre
projetos que se assemelham às Fábricas de Cultura, como uma dissertação de mestrado sobre
os Pontos de Cultura (VILUTIS, 2009). Outros trabalhos, que se relacionam à realidade
escolar de jovens de classes menos privilegiadas, também foram analisados, destacando-se
uma pesquisa sobre o Projeto Incubadora de Talentos (ZICA, 2011). Assim como a presente
pesquisa, outros estudos desenvolvem os conceitos de Bourdieu para compreender o
desempenho escolar (MAZZONETTO, 2009); (ALVES, 2012); (AMARAL, 2014). Há,
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também, artigos científicos que possibilitam uma compreensão mais detalhada das noções de
capital cultural, habitus, dentre outros conceitos bourdieusianos, isto de maneira geral
(BRANDÃO, 2010) e também analisando as singularidades da realidade brasileira
(ALMEIDA, 2007).
Britto (2007) analisa a disponibilidade dos bens culturais e a restrição pela classe
dominante, além do preconceito linguístico e o estereótipo da cultura, ocasionado pela forma
como se distribui e se dota valor aos capitais culturais. Tavares e Ferreira (2009) discorrem
acerca do conceito de redes sociais para compreender os espaços onde ocorre o letramento,
observando o papel fundamental da família nesse processo, bem como na aquisição de bens
culturais. O artigo de Cerutti-Rizzatti (2012) também versa sobre o capital cultural familiar
como facilitador ou não do letramento do jovem. Outra questão importante, observada pelo
autor, é a crítica que se faz à desvalorização de determinados espaços de letramento, que
produzem capital cultural não valorizado pelo mercado escolar.
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O termo se distingue do alfabetismo porque se define pela capacidade do indivíduo
de utilizar escrita e leitura como ferramentas para relacionar-se socialmente: conviver,
trabalhar, realizar atividades cotidianas, responder a demandas sociais e, também, transformá-
las (SOARES, 2006). Entende-se, no presente trabalho, que o capital cultural leva o agente ao
letramento, e isto ocorre em diversos ambientes sociais frequentados pelos jovens.
Entende-se que a escola não pode ignorar as novas formas de arte produzidas e
consumidas pelos jovens das diferentes classes sociais, por meio dos novos recursos digitais.
Projetos culturais são oportunidades importantes para estabelecer um diálogo entre a escola e
as novas formas de produzir cultura e informação. Entretanto, é importante afirmar que
necessitam de uma estruturação própria, condizente com as realidades locais para, assim,
tornarem-se uma política pública efetiva.
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condições em todos os campos (BONAMINO et al., 2010); (FERNANDES, 2002);
(FERRAREZI, 2003).
O Programa Fábricas de Cultura é uma atividade pouco conhecida, mas que existe há
uma década. No que se refere a trabalhos acadêmicos acerca dele, há um número reduzido de
citações, muitas vezes superficiais. Geralmente referem-se ao Índice de Vulnerabilidade
Juvenil (IVJ), criado para atender as necessidades do projeto. O índice foi criado pelo Seade
com intuito de compreender a realidade social dos distritos da capital paulista e escolher, da
melhor maneira, a localização das Fábricas de Cultura. Seu uso, entretanto, é realizado em
diversas pesquisas das ciências humanas, acadêmicas ou não (SEADE, s/d).
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I. CAPITAL CULTURAL E LETRAMENTO
Grande parte dos teóricos pesquisados, que fazem uso e desenvolvem o conceito de
letramento, utilizam-se dos estudos de Lahire para compreender a dimensão familiar no êxito
escolar. O trabalho de Tavares e Ferreira (2009), por exemplo, traça as redes sociais de dois
estudantes do ensino fundamental. As autoras observam que a família é o segundo espaço
mais importante para o letramento dos jovens. A interação familiar, com parentes próximos
ou distantes, define o contato com a leitura e a escrita.
Lahire (1997, p. 21) observa que a escrita no ambiente familiar é essencial para a
identificação do estudante com a escola, inclusive na relação afetiva que as crianças
estabelecem com a escrita e a leitura. O fato dos pais lerem ou escreverem desempenha papel
importante no sentido que a criança dá ao texto escrito no espaço escolar. Assim, o autor
relaciona a herança cultural, o capital cultural disponível e provido na família e o letramento –
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ainda que não utilize tal termo.
Também deve ser levada em consideração a noção de habitus. Com este conceito,
Bourdieu entende o agente como uma estrutura estruturante e estruturada. O letramento, sob
tal ponto de vista, é uma qualidade capaz de nutrir a capacidade estruturante dos agentes
envolvidos na atividade. Assim, ao se propor ideológico, o letramento transcende as
habilidades de leitura e escrita para o cotidiano e alcança a construção da consciência crítica
sobre o meio social.
Soares também define letramento em duas dimensões distintas, mas que dialogam
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entre si. A primeira, a dimensão individual, diz respeito à capacidade de ler e escrever como
processos complementares. Existe um amplo espectro de habilidades linguísticas e
psicológicas que constroem a capacidade da leitura e outras que determinam a capacidade da
escrita (SOARES, 2006, p. 69). A segunda dimensão é a social e remete ao uso de tais
habilidades em determinado contexto. Esta dimensão define o letramento como um fenômeno
social ligado ao que se faz com a leitura e escrita, o que varia em diferentes espaços e
culturas.
O contato maciço com a arte, valorizada pela escola ou não, representa um capital
cultural em seu estado objetivado (textos, livros, imagens, representações etc.) que se
apreende e interioriza, incorporando-se aos estudantes. Portanto, os bens culturais estimulam
aquilo que Soares identifica como as habilidades individuais do agente letrado. Na dimensão
social, a atividade não tem como objetivo a funcionalidade necessária ao mercado de trabalho.
Os temas são desenvolvidos com objetivo de criar significados complexos que ajudam a
compreender a realidade social como algo passível de transformação. Assim, os bens
culturais, em especial os textos teatrais e a literatura utilizada, incitam uma compreensão
crítica de diversas questões da atualidade.
21
importância de trazer à luz formas alternativas de letramento já em curso, em espaços
desvalorizados e marginalizados, inclusive, pela instituição escolar (ROJO, 2009, p. 105).
Bourdieu (1998) afirma que a escola deve ter um papel diferencial para a difusão e
melhor distribuição de capital cultural. Assim, mesmo que outros espaços sejam capazes de
propiciar bens culturais importantes, nenhum deles substitui a escola, nem mesmo atividades
como a analisada neste estudo. Rojo (2009, p. 107) também afirma o papel central da escola
para o letramento. A autora ressalta que para a escola se manter atual, democrática e crítica,
ela necessita abraçar os letramentos culturais locais que emergem na realidade dos estudantes,
valorizar os letramentos multissemióticos como música, imagens e outras semioses
experimentadas pelos estudantes em outros ambientes, além de um letramento crítico, que
contextualiza os materiais, os discursos e a linguagem. Portanto, aceitar e valorizar outros
espaços de letramento não tira da escola o seu papel como a principal instituição promotora
dessa habilidade e da democratização dos bens culturais.
O conceito de capital cultural encontra sua definição na relação “(...) entre o nível
cultural global da família e o êxito escolar da criança” (BOURDIEU, 1998, p. 42). Acatar este
conceito e aplicá-lo pressupõe ir além da explicação meramente econômica, que depreende
uma relação única e direta entre o êxito escolar e a renda da família, além das possibilidades
de apreensão cultural em projetos como o Fábricas de Cultura. Assim, o que realmente
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interessa neste trabalho, enquanto objeto central de estudo, está ligado à cultura dos
participantes, à herança cultural de cada indivíduo e ao ethos1 de classe na qual ele está
inserido.
Algumas delas, observadas por Bourdieu (1998, pp. 42-43), em sua revisão dos
estudos de Paul Clerc, mostram possíveis realidades que permitem situar o nível de
determinado agente em relação ao capital cultural, determinantes para sua reprodução e
ampliação: residir em área central ou periférica (a partir da realidade francesa, refere-se a
Paris ou a províncias, respectivamente, e, trazendo à realidade brasileira, pode-se elencar,
segundo os estudos citados no decorrer deste trabalho, regiões centrais ou periféricas da
cidade de São Paulo); categoria socioprofissional do pai e da mãe; nível de formação da
primeira e segunda geração da família; facilidade linguística e manejo da língua; tamanho da
família; passado escolar (aqui se parte da análise de alunos de cursos superiores, dentro da
realidade francesa, sobre o ramo do curso secundário e o tipo de estabelecimento, ou seja, se
estudou em escola pública, privada, regular, liceu, e se era ensino clássico, moderno ou de
1
Um “sistema de valores implícitos e profundamente interiorizados, que contribui para definir, entre outras
coisas, as atitudes face ao capital cultural e à instituição escolar” (BOURDIEU, 1998, p. 42).
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outro tipo; na realidade brasileira, há uma tendência a compreender o ensino como dualista,
das escolas pública e privada).
Neste último aspecto, para trazer o conceito de capital cultural à realidade brasileira,
recorreu-se ao termo escola dualista, que pode ser encontrado em alguns trabalhos, no campo
das ciências sociais e humanas, em especial da história da educação. Decidiu-se utilizar os
escritos de Anísio Teixeira (1968), Otaíza Romanelli (1978) e José Carlos Libâneo (2012)
para integrá-lo ao trabalho.
Portanto, sob a luz desses autores, afirmar o dualismo é compreender que, além de
duas formas de ensino (privado e público), cada uma destas se embasa em um objetivo
distinto, específico à classe social que atende. Esse fato faz manter as estruturas da
desigualdade social, além de incorrer, em ambos os casos, a um ensino sem reflexão crítica e
que não apenas peca por não promover uma transformação social, como a impede. Para
utilizar tal termo, é importante ter em vista que ele se refere a uma estrutura de escola que
distancia a sociedade brasileira da verdadeira democratização do ensino e, porque não, do
capital cultural disponível.
Na passagem dos séculos XIX para XX, o ensino secundário sofreu um processo de
mercantilização alçado por um sistema público carente. O resultado foi a formação de uma
estrutura que serve à dominação de uma camada a outra. Nas palavras da autora, “refletia essa
situação uma dualidade que era o próprio retrato da organização social brasileira”
(ROMANELLI, 1978, p. 41). Anísio Teixeira (1968, p. 44) descreve como esta situação se
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pautava na diferenciação do objetivo que se tinha para cada estudante de determinada classe.
No caso do ensino particular, o conteúdo erudito e intelectual, preparando-o para o ensino
superior (um sucesso escolar iminente e exclusivo no ponto de vista bourdieusiano); na escola
pública, o ensino técnico para o mercado de trabalho e a recente industrialização.
A estrutura básica do ensino brasileiro ainda está aportada por tais características
históricas, entretanto, a sociedade brasileira, bem como o que se espera da escola pública,
mudou. Hoje, mesmo os estudantes, que saem da escola pública diretamente para o mercado
de trabalho, necessitam de habilidades mais diversas e complexas do que as do período da
recém-industrialização.
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É interessante notar que esse sistema dualista, ainda que objetive formações
diferenciadas para cada tipo (público ou privado), não quebra com a ideologia de igualdade de
condição dos estudantes. Existe determinado controle do Estado sobre aspectos simbólicos do
sistema escolar, como os conteúdos, a formação dos professores, principalmente por meio da
imposição de uma linguagem que permeia ambas as realidades, razoavelmente distintas,
permitindo a dominação de uma sobre a outra (ALMEIDA, 2007). Assim, embora a estrutura
do ensino ofereça papéis diferentes a cada classe, no que tange os objetivos, não assume as
diferenças socioculturais com objetivo de saná-las no ambiente escolar.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996, não foi capaz de criar um
sistema que atendesse ambos os setores da educação em suas idiossincrasias ou propor o fim
do dualismo. Aspectos simbólicos continuaram e continuam a impregnar os setores que
promovem a educação institucional. A busca pela unidade, sem se deixar levar pela
uniformidade, exige um sistema escolar brasileiro que atenda diferentes demandas de regiões
distintas. A falta de um sistema unificado, porém, promove a manutenção da estrutura
dualista, o resultado de um processo histórico de desigualdade, propagador e mantenedor
dessa condição (SAVIANI, 1997, p. 203).
A estrutura escolar legitima e naturaliza aquilo que Bourdieu define como herança
cultural. Acaba por ser uma ferramenta imprescindível à conservação social, alimenta os
princípios da cultura e favorece os indivíduos que asseguram e agregam tais valores dentro de
sua cultura. Essa realidade está fortemente presente na estrutura do ensino brasileiro. Ela deve
ser pensada de maneira relacional, com ênfase na multiplicidade de espaços que compõem o
campo social, para se chegar a uma avaliação que transcenda as explicações reducionistas
sobre a realidade brasileira.
A última variável que compõe o nível do capital cultural, analisada nesta etapa do
trabalho, é o espaço físico ocupado na cidade. Na realidade francesa, Bourdieu já mostra
haver desigualdade entre as áreas centrais e periféricas importantes para o desenvolvimento
do capital cultural dos jovens. A partir da realidade brasileira, como não pensar, também, nas
diferenças étnico-raciais entre a população que mora nas regiões centrais, bairros de luxo e a
população dos bairros mais afastados? Trata-se de uma condição fortalecida por uma
segregação histórica que atuou com violência material, desigualdade econômica e que ainda a
traz fortemente para o campo social e simbólico.
A respeito dessa variável, optou-se por discorrer sobre a formação urbana da cidade
de São Paulo, município onde ocorre a pesquisa e que, segundo o relatório da Secretaria do
Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade, em termos de dados e estatísticas sobre a
realidade social, acaba por apresentar-se como um ‘resumo do Brasil’ (SÃO PAULO, p. 5,
2002). Para ilustrar essa questão, optou-se pelo uso do Índice de Desenvolvimento Humano
(IDH) e o IVJ, já citado, desenvolvido com o objetivo de selecionar os espaços físicos do
Programa Fábricas de Cultura.
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Ao analisar o mapa da Fundação Seade (Anexo IV), é notável a desigualdade na
vulnerabilidade juvenil entre os bairros periféricos e centrais de São Paulo. Todos os distritos
que correspondem ao maior índice de vulnerabilidade juvenil estão na periferia, enquanto
aqueles de menor índice localizam-se na região central. Esse índice é composto por variáveis
como a taxa de crescimento populacional, a porcentagem de jovens de 15 a 19 anos no
distrito, a taxa de mortalidade por homicídio desses jovens, o valor do rendimento nominal
médio mensal, o percentual de mães adolescentes e de jovens que não frequentam a escola
(SEADE, s/d).
Além dos dados do IVJ, podemos refletir sobre o IDH, retrato de uma realidade mais
ampla, porque não foca em variáveis relacionadas a informações sobre os jovens. Além de
questões da educação (que também versa sobre alfabetização dos adultos), o IDH recorre à
longevidade (saúde) e ao Produto Interno Bruto (PIB) per capta (renda).
A partir dos dados indicados pelo índice, percebe-se grande semelhança com o IVJ.
No mapa apresentado, as regiões descritas como africanas (que detêm IDH semelhante ao dos
países daquele continente) são praticamente as mesmas pertencentes aos dois níveis mais altos
de vulnerabilidade juvenil (Anexo IV). O Jardim São Luís, por exemplo, distrito onde está
localizada a Fábrica de Cultura pesquisada, é o vigésimo mais vulnerável, segundo o IVJ; no
ranking do IDH é o décimo quinto pior (SEADE, s/d; SÃO PAULO, 2002). Importante
registrar que esses dados do IDH não são os mais recentes, mas, sim, os da mesma época em
que se realizou o IVJ, ou seja, no ano 2000.
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que a capacidade econômica da família é algo determinante no tipo e na qualidade de
educação que cada estudante recebe e tem condições de frequentar. Entretanto, não se pode
constatar que a desigualdade brasileira é unicamente econômica. No campo cultural, social e
linguístico é que temos as realidades para, utilizando de atividades no contraturno escolar,
contribuir a superação dos déficits de capital cultural.
Portanto, a arte, assim como todo espectro cultural que a classe dominante inculca
como superior ou legítima, tem na escola um espaço reforçador. Esse conjunto de expressões
culturais, que se elevam e tendem a uma escassez, só pode ser possuído pela mesma classe – a
dominante. Este é um aspecto evidente na relação com a arte, mas que se expande por toda
cultura até chegar à escola. A valorização de um determinado tipo de cultura que se mantém
de fácil acesso para um número restrito de indivíduos, pertencentes às classes mais altas, é um
fator indispensável à dominação e reprodução social.
Tanto a cultura valorizada quanto aquela que, como o hip hop, tende à
marginalização, é definida como capital cultural. A diferença primordial entre uma e outra
está no valor que se dá, e que corresponde à presença dos elementos de um ou outro no
ambiente escolar. Em suas mais diversas formas e tipos, não pode ser compreendido como
conteúdo do conhecimento escolar, entretanto, atua de alguma forma no rendimento escolar.
Os bens culturais possíveis para cada classe, que tendem a se estabelecer em diversos estados,
são aqueles que medeiam a relação entre o aluno, o conhecimento e os conteúdos transmitidos
e exigidos. É o valor dado pela escola, construído culturalmente em um processo histórico,
das posses e bens culturais que define o que está de acordo com a cultura pretensamente
legítima, que tipo de linguagem é aceito e propagado. Qual conhecimento é desejado, que
expressão artística deve ser consumida, dentre outros. A própria valorização da escrita remete
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a esse processo. O hip hop, como já mencionado, pelo caráter essencialmente oral, tem a sua
prática e realidade subjugadas.
Gnerre (2009) refaz a história da escrita e suas relações de poder. O autor mostra,
diante das transformações sociais, o conhecimento da leitura e da escrita como um
diferenciador. Em outro momento, alfabetizar toma uma dimensão de controle. O autor cita
Gandhi, que em determinado momento foi contra a alfabetização pelo medo de uma
ocidentalização forçada. A alfabetização, bem como o letramento, a valorização do
conhecimento e aplicação da escrita, já é, em si, um processo que segrega e hierarquiza
culturas.
31
los (BOURDIEU, 1998). Os instrumentos necessários à escola, compartilhados nas relações
extraescolares, dependem da inserção em determinada classe para estarem acessíveis.
Lahire (1997) afirma que todo uso da escrita, que ocorre no ambiente familiar –
sendo que nas famílias em situação vulnerável não se refere à escrita e leitura daquilo que a
escola espera –, tem um caráter afetivo importante que será levado ao ambiente escolar.
Assim, quando a escola não acata formas distintas de linguagem e de comunicação, acaba por
diminuir a capacidade de identificação afetiva do estudante da classe desprivilegiada. Isto se
torna óbvio ao se pensar que o jovem cria sua identificação, seus valores e afetos a partir de
uma variedade linguística desprezada pela própria escola que frequenta.
32
linguagem como um meio de identificação entre grupos sociais menos institucionalizados.
Entretanto, os PCN não fazem referência à introdução desses meios no ambiente escolar,
abarcando esse assunto como se as diferenças das manifestações de linguagem estivessem
pairando entre grupos sociais não díspares no processo de legitimação de uma cultura dita
superior. Ao fazer isso, a escola substitui o agente ‘escola’, para ‘aluno’, como se tal respeito
existisse (ou deveria existir) mutuamente em um espaço estruturado horizontalmente no
campo simbólico. É uma passagem rápida e genérica, que certamente abre espaço a diversas
interpretações e que não deixam claras nenhuma das questões discutidas, como a relação entre
a família e a escola com a linguagem. Independentemente do que está registrado nos
documentos, o preconceito implícito, institucionalizado, quase vinte anos depois, remanesce.
33
de ensino. Resta pensar se é possível a construção de outros espaços que possibilitem a
difusão de bens culturais ou se a tal divulgação deve partir da própria escola.
Os estudos sobre o capital social e sua relação com o capital cultural, em especial, o
familiar, comprovam as possibilidades que uma política pública em educação tem para
aumentar a rede de relações entre os indivíduos. Se hoje a sociedade conta com clubes
restritos, grupos dos mais diversos, que estimulam o capital social e cultural nas classes
privilegiadas, atividades como a do Projeto Espetáculo, enquanto política pública, criam um
ambiente onde esse capital pode ser aumentado e potencializado para diminuir as
desigualdades socioculturais.
35
diretamente à cultura que se (re)produz na escola e as distâncias dos indivíduos que a
compõem em sua estrutura dualista.
Bourdieu, então, derruba a visão que propõe ser a escola o lugar para se despertar
dons, como se o fracasso, o êxito e as “escolhas profissionais” de cada aluno estivessem
unicamente ligados a uma habilidade natural ou vocação alheia às lutas simbólicas no campo
cultural e nas relações familiares. Uma concepção sociológica dos fatos faz superar definições
biológicas, meritocráticas ou econômicas e traz uma possibilidade social de transformação da
escola e dos agentes escolares, para 'desordenar' a ordem conservadora estabelecida. Este é
um rompimento primordial para se acreditar em um novo projeto de escola, além de um ponto
norteador para tentar, por meio dos espaços encontrados dentro e fora dessa instituição,
diminuir a desigualdade de capital cultural nas diferentes classes.
Importante registrar que não existe um letramento digital, mas, sim, nos meios
digitais, ocorrem eventos de letramento (CERUTTI-RIZZATTI, 2012, p. 294), que são
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oportunidades para a aproximação da escola como o universo social dos jovens e também
com a família. O domínio que as novas gerações têm da tecnologia é uma ferramenta para o
letramento e democratização do capital cultural que a escola, obsoleta, ainda não conseguiu
condensar em sua estrutura. Além disso, espaços virtuais podem ampliar redes
democraticamente e aumentar o capital social das classes desprivilegiadas. Entretanto, se a
escola e o Estado, por meio de políticas públicas, não incorporarem essa função, as
possibilidades criadas espontaneamente acabam por surgir como exceções e não como uma
realidade generalizada.
No caso da linguagem, Bourdieu afirma que esta tem um caráter próprio no que se
refere ao campo cultural. Na realidade, atua como um campo característico, dotado de um
capital singular e que se relaciona em demasia com a escola e com os capitais culturais. Tanto
se relaciona como é elemento fundamental que garante a escola como agente reprodutor das
condições sociais estabelecidas. Portanto, a compreensão de temas complexos, o uso da
escrita, da leitura e da capacidade de recriar e reinventar o lido tornam-se uma base para o
desenvolvimento do Projeto Espetáculo.
Tal é a importância da linguagem nos estudos de Bourdieu, que ele a classifica como
“a parte mais inatingível e a mais atuante da herança cultural” (BOURDIEU, 1998 p. 56). Isto
ocorre por estar diretamente relacionada aos sistemas e posturas que definem a própria
existência do aluno, sua relação com o mundo, suas experiências e o convívio familiar desde a
primeira infância.
Uma cultura escolar aristocrática produz educadores que não estão livres de, mesmo
inconscientemente, forçarem os valores de seu meio cultural. Isto ocorre comumente dentro
da sala de aula, quando se pressupõe uma comunidade linguística entre alunos e professores,
e, também, nos processos de seleção escolar. A linguagem é um dos capitais culturais que
mais reforçam desigualdades, pois se sustenta em uma grande distância entre as classes. Isto
se torna um agravante quando percebemos que a linguagem é o campo simbólico onde ocorre
38
um capital que é de extrema importância para o acervo de outros bens culturais em outros
campos simbólicos (BOURDIEU, 2008).
39
Portanto, a forma e a compreensão da língua são específicas para cada classe. A
relação da escola com a linguagem se estabelece dentro de uma estrutura de dominação
arcada pelo valor conferido pelas classes cultas (e pelos próprios agentes que habitam o
espaço escolar), que penetram fortemente na hierarquia dos valores intelectuais e fornecem
um sistema que opera sobre a lógica de uma falsa superioridade. “É a lógica própria de um
sistema que tem por função objetiva conservar os valores que fundamentam a ordem social”
(BOURDIEU, 1998 p. 56). Sendo assim, como fazer valer um projeto que pretende superar os
déficits originários do capital cultural de estudantes de escolas públicas para aumentar o grau
de letramento?
Ou seja, cada setor sustenta uma escola que tende a captar alunos de diferentes
classes, com diferentes domínios sobre a linguagem e de grande defasagem de capital
cultural, mas tendo uma base curricular comum, embasados pelos mesmos parâmetros e
orientações, além de profissionais formados nos mesmos espaços e que, por vezes, atuam em
ambos os ensinos. Não se trata de um sistema unificado, mas perverso por manter as
desigualdades sociais e o abismo cultural entre as classes, reforçando futuros distintos para
cada classe, porque não assume uma diferenciação da proposta de ensino para sanar a extrema
desigualdade de condições com que os jovens chegam à escola.
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Com a mídia e as tecnologias tomando lugar na vida de grande parte dos indivíduos
– embora exista limitação tanto econômica quanto cultural para sua possessão ou maior
usufruto –, discute-se a possibilidade de certa homogeneização cultural que se dá por conta
delas. Na contemporaneidade, há um acirramento da crença de homogeneização devido às
transformações pelas quais a sociedade tem passado. Entretanto, com a compreensão que se
tem das teorias que englobam o capital cultural e a relação dos sistemas simbólicos de cada
classe, na relação de poder e luta, dificilmente será possível admitir que haja uma nivelação
cultural a partir desses novos veículos.
Ainda que o acesso aos meios de comunicação seja semelhante, a desigualdade pode
se referir à escolha dos programas, à atenção dada a estes e como o conteúdo informativo
tende a ser recebido, de acordo com a cultura do espectador. Uma homogeneização das
mensagens transmitidas não supõe homogeneização das mensagens recebidas (BOURDIEU,
1998).
Gnerre (2009, p. 22) afirma que “(...) a linguagem constitui o arame farpado mais
poderoso para bloquear o acesso ao poder”. Neste sentido, o autor afirma que não apenas a
compreensão de textos complexos e a capacidade de produzir mensagens inteligíveis torna-se
impedimento, mas o conhecimento de termos e jargões específicos de determinado assunto.
Quando se afirma uma igualdade de condições de acesso ocasionado pelas mídias, não se leva
em consideração a linguagem como meio de acesso, e não somente o capital econômico.
Mesmo um telejornal popular tende a utilizar frases, conceitos políticos, jurídicos e
econômicos que não são parte da variedade linguística compreendida pela grande maioria da
população.
O acesso ‘concedido’ pelos novos meios culturais permanece ainda com suas
estruturas que garantem o acesso e compreensão irrestritos como um privilégio. Portanto,
cria-se um duplo aspecto da dominação. O agente necessita de determinado grau de
letramento para usufruir da língua escrita e oral, no campo político, artístico e econômico. A
escola não garante as ferramentas necessárias para tal usufruto, assim, mantém-se um ciclo de
marginalização de uma classe que preserva suas práticas, tem determinados estilos de vida,
cria espaços de letramento e bens culturais, mas é excluída de diversas possibilidades de
ascensão social, política e econômica.
41
O surgimento dos novos meios culturais floresce, também, a mercadorização da
informação e do conhecimento. Este processo é perigoso, visto que a ‘masscult’ “(...) se
contenta em oferecer produtos sem qualquer pretensão ou álibi cultural” (ROJO, 2009, p.
111). Uma reformulação nos antigos conceitos de cultura popular e erudita, ocasionados pelo
surgimento de uma Indústria Cultural, faz reconhecer que a hierarquização não se relaciona à
complexidade técnica de cada cultura. Pelo contrário, muito do que se cria nesse mercado tem
uma função de repetir normas sociais, manter o conformismo, sem grande desenvolvimento
da técnica ou a riqueza de conteúdo. Entretanto, o que se veicula nas plataformas a serviço da
Indústria Cultural acaba por ganhar autoridade por parte da população. Seus conhecimentos e
discursos ganham legitimidade, pois outros espaços não alcançam os indivíduos para uma
interpretação crítica das mensagens propagadas.
A relação do jovem com o teatro, por exemplo, está ligada ao valor que cada família
ou círculo social dá a essa expressão da arte. Além disso, determinadas intervenções teatrais
necessitam de um conhecimento prévio, não apenas para compreensão do tema, mas para se
estabelecer uma identificação. Isto porque se trata de uma expressão artística muito diferente
das propagadas pela Indústria Cultural, que são de mais fácil acesso, inclusive econômico, ou
seja, habituais às classes populares.
Sobre a música, por exemplo, também pode-se notar um papel de dominação que se
estabelece entre as diferentes classes. No campo simbólico, forma-se uma falsa
compatibilidade de determinado estilo relacionado à determinada classe, e a categorização
hierárquica, não apenas estética, da reprodução desses diferentes estilos. Nota-se, inclusive,
42
quando esta reprodução condiz com determinado espaço físico dentro da cidade, como
quando ocorre no gueto ou nos bairros centrais, tendo-se uma hierarquização de estilos a
partir dos espaços.
Outra forma de arte que se torna cada vez mais acessível é o filme. Embora adentrar
nas salas de cinema ainda necessite de um razoável recurso econômico, hoje é sabido que
jovens podem assistir à grande parte dos filmes pela internet. Ainda assim, deve-se questionar
se existem diferentes procuras e acessos entre os oriundos de classes diferentes, nem tanto por
uma desigualdade de capacidades de compreensão e cognição, mas pelas informações que
chegam sobre a existência de determinadas produções. Aquilo que tende a impulsionar os
jovens a assistir a um filme ou outro ecoa por diferentes espaços, frequentados, muitas vezes,
por uma pequena parcela, ou seja, pela classe dominante.
Pode-se notar, como afirma Bourdieu (1998), a importância para o ganho de capital
cultural quando algum membro da família cursa o nível superior. Geralmente, determinados
discursos encontram na academia a possiblidade de perpetuação e, naqueles que a frequentam,
a possibilidade de um retorno à família. Com isso, um jovem que tenha um irmão mais velho
ou um tio, por exemplo, no ensino superior, pode ficar em contato com outras formas de arte,
conhecimento ou informação que não chegam aos núcleos familiares onde ninguém cursa o
ensino superior.
A manifestação artística se constrói, em cada estudante, como uma base que sustenta
ou não aquilo que este terá de possibilidade para a vivência dentro da instituição de ensino.
Seja pelo acesso físico, pela possiblidade da compreensão, ou por aquilo que já se estabelece
estruturado dentro do campo simbólico, os jovens tendem a estabelecer contato com as formas
de arte que são compatíveis a sua realidade. Provavelmente textos, imagens e vídeos
transmitidos na atividade do Projeto Espetáculo sempre estiveram disponíveis nas novas
43
plataformas, entretanto, eles não tinham, até então, a oportunidade de interagir com pessoas e
ambientes que os atentassem para esse acervo.
O Projeto Espetáculo, que será mais bem abordado no capítulo II deste trabalho,
oferta o teatro e a literatura, formas de arte de difícil acesso e que são, geralmente, fornecidas
unicamente às classes favorecidas. Ao mesmo tempo, também valoriza e faz uso das novas
plataformas culturais, do universo do jovem. Um espaço que visa disseminar, a classes menos
favorecidas, uma forma de arte, de cultura, que geralmente se mantém invisível ou
inacessível. O que resta à pesquisa é verificar se, mesmo com tantos entraves e dificuldades
para apreensão de determinados bens culturais, o espaço analisado terá a capacidade de não
apenas transmitir efetivamente aquilo que é central à construção do espetáculo, mas, também
englobar as outras formas de arte e cultura consideradas desvalorizadas.
Enquanto se espera um papel promotor de cultura ao espaço das Fábricas, tem-se que
o papel das famílias é determinante ao nível de instrução, e, de maneira a propagar acessos
aos meios e intervenções de arte, revertem, no decorrer da vida, vantagens e desvantagens
cumulativas. Sendo assim, quanto menos a escola incita o aluno à prática cultural ou ensina a
arte, mais ela sanciona as desigualdades que apenas ela mesma é capaz de reduzir. Depositar
na mídia, nos novos meios de comunicação e em atividades como a analisada, uma função
que é da escola, de homogeneizador da cultura e propagador de capital cultural às classes
desfavorecidas, gera impasse.
44
Atividades como o Projeto Espetáculo não são os meios generalizadores para esta
missão. Espaços como esse tendem a atrair e reagrupar aqueles que o meio social já havia
preparado à prática da cultura. Segundo Bourdieu (2009, p. 306), eles não incitam grande
parte dos que não têm a oportunidade pela herança cultural que lhes é concedida. Por isso, a
insistência da pesquisa em promover essa atividade, extraescolar, para o ambiente da escola,
como uma política pública de educação que alcance amplamente os estudantes brasileiros.
Certamente, deve ser observado que, em escala macrossocial, projetos como esse não
tendem a homogeneizar a cultura, assim como afirma Bourdieu. Também não se pode tirar da
instituição escolar a necessidade de reformulação para que se atenda cada classe em sua
especificidade. Dificilmente, apenas projetos sociais poderão trazer uma distribuição de
capital cultural que contemple toda a realidade social brasileira. O que deve ser produzido na
pesquisa, em termos de conhecimento, é a riqueza que atividades como essa têm, justificando
a necessidade da criação de políticas públicas semelhantes para a escola.
45
Bourdieu (1998) caracteriza três estados próprios nos quais o capital cultural está
inserido. Para compreender o primeiro, o estado incorporado, necessita-se entender sua
relação direta com o corpo. Ou seja, uma apreensão que se dá quando o agente apropria-se
daquele capital como sua parte integrante. Importante registrar, também, que é a forma mais
comum entre os estados do capital cultural e aquela que a análise das entrevistas busca
compreender. Sobre o capital cultural incorporado, é essencial atentar-se à relação do
indivíduo com o tempo, fundamental para o aumento do seu volume. Para inculcá-lo e
assimilá-lo, certo tempo deve ser investido.
Percebemos, assim, como a vivência do tempo nas diferentes classes contribui para a
estruturação da conservação social. Os indivíduos das classes mais altas têm o tempo a seu
favor, com parte dele livre para ampliar capital cultural, assim como possuem capital
46
econômico para acumular bens materiais. Podemos concluir que o tempo é, para o capital
cultural, aquilo que o dinheiro é para o capital econômico.
Dentre algumas formas de capital objetivado estão: escritos (algo entendido como
essencial, pois trata diretamente a relação do indivíduo com a linguagem); pinturas;
monumentos etc. Dessa forma, sugere-se semelhança a um capital econômico, enquanto um
bem dotado de matéria. Entretanto, a sua condição de apropriação específica, na qual cada
indivíduo vai estabelecer contato inicial ou constante, mantém-se unicamente em um campo
simbólico e se estrutura junto ao capital adquirido em seu estado incorporado.
O capital cultural no estado objetivado é produto da ação histórica, existe com uma
significação e continuação em um tempo e se estabelece a partir das próprias leis. Transcende
às vontades individuais além do que está irredutível àquilo que o agente se encontra apto a
apropriar. É um capital ativo e atuante, tanto material quanto simbolicamente e, muitas vezes,
pode servir como ferramenta de “lutas simbólicas”, que se arrebatam no campo da produção
cultural e agem para a conservação – ou não – das classes.
47
O último estado que Bourdieu descreve é o institucionalizado. O diploma, por
exemplo, é um ótimo artefato que o traduz e o faz, dentro de suas especificidades,
compreender a forma e o objetivo deste tipo de capital. Basicamente, o diploma é um simples
pedaço de papel que, com efeito de uma “magia social”, adquire legitimamente os valores que
superam os limites biológicos de um estado incorporado. Aquilo que antes permanecia
unicamente no corpo e que salvaguardava, de forma dissimulada, as garantias de seu poder,
agora alcança um valor juridicamente protegido.
Este, portanto, recebe uma autonomia de seu capital cultural, em relação ao portador,
naquilo que o autor chama “alquimia social” ou “magia coletiva”. Uma magia performática
do “poder de instituir”, de fazer reconhecer. Assim, pode-se conceber que participar da
atividade, registrando-a em um currículo ou algo semelhante, faz ocorrer a tal magia social,
ainda que tenha valor em determinados espaços.
48
O desenvolvimento dos conceitos realizado por Bourdieu são, para esta pesquisa,
complementares à apreensão do tema e conclusão dos objetivos. O necessário agora é
entender como o autor revela a formação do habitus de cada indivíduo, como este elemento
estrutura aquilo que está exterior a ele, ao mesmo tempo em que é estruturado por tudo que
existe à sua volta.
Isto significa que o conceito de habitus nega, por um lado, a compreensão de que o
indivíduo é um mero resultado de processos exteriores, um ser plenamente constituído de uma
relação pouco dinâmica e determinado por relações sociais das quais praticamente se exclui a
motivação e ação individual. De outro lado, temos a negação da filosofia definida como do
agente, da consciência, uma concepção típica e amplamente utilizada na economia clássica,
em que o indivíduo age de acordo com intenções e um planejamento puramente utilitário. Por
um lado, dá-se ênfase à influência externa para interiorização e caracterização das vontades
individuais; por outro, o agente parece estar absolutamente livre das condições exteriores e
capacitado a pensar, desenvolver seus gostos e julgamentos, alheio às forças externas que o
cercam. Ao conceber o indivíduo como um ser que não apenas sofre influências externas, mas
que age, igualmente, sobre elas, Bourdieu adota o termo ‘agente’ em suas obras, no lugar de
sujeito.
49
Sendo assim, nesta primeira apreensão do termo habitus, temos que seu surgimento é
uma proposta teórica de fazer a conciliação entre as influências objetivas externas para a
formação da consciência (e inconsciência) individual e a subjetividade dos agentes. Portanto,
quando se constrói um trabalho guiado por experiências dentro do espaço escolar ou em
atividades de contraturno, que estimulam a capacidade crítica e criativa dos jovens, crê-se que
os participantes não são nem indivíduos totalmente passivos às suas interações nos diferentes
espaços sociais, nem conduzem seus atos com plena liberdade, alheia as ações da estrutura.
Diante disto, é possível concluir que a escola se insere, como um espaço físico e simbólico,
em parte do campo social e das relações de classes em que se prosperam os diversos campos
simbólicos (arte, religião e linguagem). Delegando este papel à escola, traz-se a noção de que
a instituição escolar é estruturada pelos diferentes agentes que a constituem, mas também é
estruturante, e a eles estrutura.
Agora, torna-se importante descrever como a noção de habitus produz, dentre suas
propriedades e no desenvolvimento de suas capacidades teóricas, a quebra com a antiga
antinomia sociológica. Primeiramente temos, por definição, que o habitus “é o princípio
unificador e gerador de todas as práticas” (BOURDIEU, 2008, p 165) e se insere em sistemas
simbólicos que funcionam como instrumentos de conhecimento e comunicação, com
propriedades estruturantes, por serem, também, estruturados (BOURDIEU, 2010).
Quando se pensa o espaço e o estilo de vida, o autor não apenas se refere aos gostos,
aos julgamentos, à forma de compreender e vivenciar, mas, também, define-os pela sua
diferença, o que significa que faz com que sua existência se dê em um processo de oposição
que traz uma hierarquia entre os diferentes estilos. Daí surge a intersecção entre a concepção
bourdieusiana de classes, distinta da marxista clássica – que considera as condições materiais
de produção centrais na organização e na definição das classes –, e a construção do conceito
analisado.
50
Portanto, esse espaço é, também, um sistema de distinções. Ele se define por meio
daquilo que não é, ou seja, no sistema de oposições que acabam por definir “(...) os princípios
fundamentais da estruturação em relação às práticas e à percepção destas” (BOURDIEU,
2008, p. 164). A qualificação da cultura de classe se dá, então, como em um processo em que
se delimita aquilo que se espera e é positivo, e aquilo que, ao contrário, torna-se negativo.
O que pensar, então, de uma atividade que traz conhecimentos e valores, comuns ao
estilo de vida de uma classe privilegiada, a uma classe que geralmente não tem tal acesso?
Nessa perspectiva, o trabalho tende a analisar a relação e a possibilidade do desenvolvimento
do capital cultural dos participantes, enquanto agentes que estruturam suas realidades, e que
por elas são estruturados. Faz-se pensar que há, neste espaço, uma quebra ou, ao menos, a
tentativa de inverter os elementos que definem os estilos de vida das classes menos
privilegiadas a partir de um dos sistemas simbólicos que é a arte.
Além dela, a religião e a língua também são sistemas simbólicos que podem
funcionar como estruturas estruturantes. Nesses sistemas, os gostos serão definidos, assim
como os julgamentos e os estilos de vida de cada um. Também é aí que surgem as batalhas
entre classes, ou seja, as relações simbólicas de poder, que constituem a vida e a interação
entre as culturas das diferentes classes. E “(...) é enquanto instrumentos estruturados e
estruturantes de comunicação que os sistemas simbólicos cumprem a sua função política de
imposição ou legitimação da dominação (...)” (BOURDIEU, 2010, p. 11). Quer dizer, a
compreensão de como se forma o habitus já tem, em si, pela sua constituição de oposições, a
construção simbólica das classes sociais. Esta construção ocorre dentro dos mais variados
sistemas, como econômico, cultural, social, a partir de uma relação estrutural.
51
A partir de cada um deles, nos mais diferentes domínios da prática e geradores de
habitus, tem-se que sua funcionalidade se enquadra dentro de estruturas de oposição e se
transferem nos múltiplos campos, homologamente. Nesse aspecto, considerando o
fornecimento de capital cultural e o consumo propriamente econômico e material, percebe-se
uma oposição principal entre um consumo definido como distinto, raro, próprio da classe
erudita e um consumo denominado vulgar, por ser de fácil e comum acesso (BOURDIEU,
2008, p. 167). Para melhor compreensão de como a diferenciação das classes recebe sua
legitimação, e atua em diferentes sistemas representativos, travando lutas simbólicas pelos
espaços, é necessária a compreensão multidimensional do mundo social.
Pensar em um espaço complexo, onde atuam muitas forças, incorporadas sob a forma
de diversos capitais, é aceitar diferentes configurações que agem de maneira singular. Sendo
assim, esses múltiplos campos sociais são homólogos. Suas estruturas de oposição, que a
todos os espaços definem a existência, nos mais diferentes domínios da prática, tendem a se
realocarem de um sistema a outro por um método simples de transferência. Ou seja, essas
práticas, além de perfeitamente homólogas, estão fundamentadas na oposição.
52
Bourdieu indica, em consonância a outras leituras, que o processo de dominação e reprodução
é um ciclo fechado que pode se abrir. O agente nasce em uma família, recebe sua herança
cultural, não se identifica com o universo escolar e acaba por viver em categorias
socioprofissionais e espaços que vão construir, a seus filhos, a mesma herança cultural.
Obviamente esse ciclo não é real para toda a infinidade de indivíduos, nos mais diversos
espaços geográficos. Entretanto, por meio de pesquisas sociológicas, percebe-se uma
realidade tão comum que define a estrutura em termos macrossociais. Assim, a manutenção
hereditária de status social é uma realidade da sociedade contemporânea.
Uma realidade formada por meio de uma construção histórica e social, entretanto,
dinâmica e sujeita a transformação no momento em que se identifica o ser humano como
agente da história. Ter em vista o habitus não é negar toda a influência social que rege a
manutenção do ciclo social, mas perceber que existe uma capacidade individual em recriar
significados e, em determinado momento, transformá-los fisicamente. Essa transformação,
certamente, não é unicamente individual. Entretanto, necessita de uma instrução, um
letramento por meio de vivências críticas.
54
II. PROCEDIMENTOS DA PESQUISA
1. Campo
O IVJ foi realizado no ano de 2000, não havendo versão atual. No site do
ObservaSampa, tem-se o índice de vulnerabilidade social, ou seja, não abarca somente a
questão do jovem inserido nos bairros paulistanos, estendendo-se a outras variáveis. O IVJ foi
criado, como já afirmado, unicamente para atender ao Programa Fábricas de Cultura.
Entretanto, por sua profundidade, foi resgatado em outras pesquisas. Para embasar e comparar
55
os dados do IVJ, utilizaram-se informações da Secretaria do Desenvolvimento, Trabalho e
Solidariedade, que, em 2005, alterou seu nome para Secretaria Municipal do Trabalho. No
entanto, foi necessário procurar alguns dados mais recentes, importantes para compreender o
período de realização do Programa estudado, até o momento da realização da presente
pesquisa. Ao observar, por exemplo, os dados mais recentes do IDH, percebeu-se uma
realidade muito diversa nos distritos paulistanos (SÃO PAULO, 2002; s.d.)
Como já citado, não foram encontrados dados mais recentes sobre a vulnerabilidade
dos jovens na cidade de São Paulo. A informação mais atual é de um relatório que versa sobre
56
a transformação do índice do ano de 2000 para o ano de 2005. Este texto afirma que a
diferença no índice entre as áreas mais ricas e as mais pobres caiu 13 pontos nesse período.
Ainda assim, o IVJ das áreas mais vulneráveis supera, em duas vezes e meia, o das regiões
centrais (SEADE, 2007).
No que diz respeito ao IDH, foi possível observar a evolução do índice no período de
pouco mais de uma década. Segundo o relatório da Secretaria do Desenvolvimento, Trabalho
e Solidariedade, sobre o IDH de São Paulo, que remete ao mesmo ano da realização do IVJ
(2000), 38 distritos encontravam-se no índice considerado ‘africano’, ou seja, tinham IDH
muito baixo, inferior a 0,500 (SÃO PAULO, 2002). Dados mais recentes mostram que não
há, na atualidade, distrito paulistano com IDH caracterizado como baixo, ou seja, com índice
inferior a 0,700. O distrito Marsilac, tanto no relatório de 2000 quanto em fontes mais
recentes, apresenta o menor IDH, entretanto, o índice que antes era inferior a 0,300, hoje
supera 0,700. Enquanto no ano 2000 apenas seis distritos tinham IDH considerado alto, os
dados mais recentes revelam que 19 distritos apresentam IDH acima de 0,900, ou seja, têm
índice muito alto. Tratam-se, contudo, de distritos localizados, em sua maioria, nas regiões
mais centrais da metrópole.
Assim, embora seja verificada melhora no IDH, a divisão entre bairros da periferia e
centrais permanece nítida. Alguns dados indicam alterações nesse quadro e podem, inclusive,
justificar o repentino aumento na qualidade de vida da periferia da cidade.
57
subprefeitura. Independentemente da divisão feita, seja por subprefeituras ou distritos,
tornam-se perceptíveis as diferenças sociais no espaço geográfico da cidade de São Paulo.
Ainda que os conceitos aplicados neste trabalho não sejam suporte para a construção
e idealização do Programa, compreende-se que tais atividades configuram espaços de
letramento não escolarizados, que contribuem para a democratização do acesso a bens
culturais. Também é importante ressaltar que os resultados verificados na pesquisa não
pretendem avaliar o sucesso do projeto em si, seguindo aquilo que se propôs a Secretaria da
Educação do Estado de São Paulo. O argumento que move esta pesquisa se pauta na expansão
de práticas culturais, como as ofertadas pelo Programa Fábricas de Cultura, às escolas. O
recorte é a cidade de São Paulo. Entretanto, pode-se, respeitando as regionalidades, expandir
o argumento para outras localidades do País que necessitem de uma real democratização do
capital cultural, ou que os dados indiquem – como têm indicado em âmbito nacional – uma
incapacidade da escola em proporcionar aquilo a que se propõe e que está explícito nos
documentos oficiais.
59
encontrar, em qualquer tipo de suporte, físico ou virtual, informações organizadas com o
histórico do projeto. Sendo assim, optou-se por captar informações em notícias
disponibilizadas na internet e na entrevista, para que se recolhesse o máximo de dados
possíveis, a fim de organizá-los à transmissão do histórico e da realidade atual do projeto.
De acordo com Eder Lopes, diretor do Projeto Espetáculo na unidade Jardim São
Luís, e informações do site do Programa Fábricas de Cultura, inicialmente, o planejamento
previa a formação de nove sedes, em diferentes distritos da capital, para a construção das
Fábricas. Atualmente são 11 espaços ao todos, espalhados por diversas regiões da periferia da
cidade, sendo que seis deles se encontram em uma região denominada Norte-Sul (Brasilândia,
Capão Redondo, Jaçanã, Jardim São Luís, Vila Nova Cachoeirinha e Núcleo Luz) e os outros
cinco na Zona Leste (Vila Curuçá, Sapopemba, Itaim Paulista, Parque Belém, Cidade
Tiradentes).
Cada região conta com uma Organização Social de Cultura que administra os
espaços e faz o gerenciamento das atividades culturais disponibilizadas. As Fábricas da Zona
Leste estão sob a responsabilidade da Catavento Cultural e Educacional, enquanto a Zona
Norte-Sul, região que contém a unidade-alvo da pesquisa, é gerida pelo Instituto de Apoio à
Cultura, à Língua e à Literatura (Poiesis). A Poiesis, que existe desde 1995 como uma
organização não governamental, foi, em 2008, qualificada como Organização Social de
Cultura, parceira da Secretaria da Cultura e, desde então, gerencia várias iniciativas
socioculturais na cidade, como a Casa das Rosas e a Casa Guilherme de Almeida (POIESIS,
s.d.).
60
Antes de colocar em prática o Programa Fábricas de Cultura, o Governo do Estado
de São Paulo promoveu ampla pesquisa em todos os 96 distritos da cidade para conhecer as
diversas realidades e estabelecer quais regiões seriam beneficiadas com o projeto. Essa
análise foi realizada pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade) que, para
isso, desenvolveu o Índice de Vulnerabilidade Juvenil (IVJ).
Cabe salientar que, ainda que a criação do IVJ não esteja baseada na obra de
Bourdieu, seu desenvolvimento trata de algumas peculiaridades que vão ao encontro dos
objetivos aqui propostos. Em acordo com as ideias de Bourdieu, a composição do índice tende
a romper com o paradigma econômico e as crenças em características biológicas como
determinantes ao sucesso ou insucesso escolar. Assim, vê-se uma tentativa de trazer ao
conhecimento as relações sociais que o índice capta. Possível observar, já na essência
implícita da palavra ‘vulnerabilidade’, as condições que transcendem as apreensões
reducionistas sobre a vulnerabilidade dos jovens. Por um lado, Bourdieu aponta para as
questões culturais que influenciam a posição social dos agentes e, por outro, rompe com uma
tradição que prevê características naturais ou biológicas aos problemas sociais decorrentes de
processos sociais (dentre os quais se destacam a urbanização rápida e sem planejamento;
desigualdade cultural e de renda; separação simbólica dos indivíduos de acordo com a
separação física nos espaços da cidade). Da mesma forma, segundo as informações do site da
Fundação Seade, o termo vulnerabilidade, apontado pelo índice, remete à mesma tentativa,
tendendo a romper a noção que, na visão da Fundação, é preconceituosa, por indicar a
pobreza necessariamente – e sobretudo – como responsável pela vulnerabilidade dos jovens.
Não se trata de uma atividade realizada dentro da escola, mas tem como fundamento
a promoção de capitais culturais incorporados que, para Bourdieu, são essenciais ao êxito
escolar. Como observado em sua obra, as artes, mesmo quando não tidas como objetos
centrais ou conteúdos promovidos pela escola, são decisivas para a identificação do aluno
com o ambiente escolar. A arte é uma estrutura estruturante e estruturada que age no campo
das lutas simbólicas e fornece aos indivíduos materiais para locomoção dentro do espaço, que
é o campo social. Ainda assim, a pesquisa não se fundamenta em compreender as Fábricas de
Cultura como um espaço que supre aquilo que a escola não consegue alcançar. As atividades
são avaliadas na perspectiva de compreender os efeitos do Programa, mas sempre tendo em
vista a ampliação da atividade como uma política pública que atinja a escola, e que seja
verdadeiramente democrática.
62
compreensão de sistemas complexos de conhecimento e aquisição de diversos tipos de bens
culturais. Esses projetos tentam propiciar um domínio maior da linguagem, que a escola não
fornece e que, nas famílias das classes desprivilegiadas, dificilmente se pode conseguir.
63
c) Projeto Espetáculo da Unidade Jardim São Luís
64
demandas típicas para a realização de um projeto cultural no contraturno, que incentive e
forneça aos jovens bens culturais.
O IVJ aponta, também, o percentual dos jovens, de 15 a 17 anos, que não frequentam
a escola. O Jardim São Luís, antes da implantação da Fábrica de Cultura, apresentava o índice
de 26,79% de ausências, enquanto os distritos do grupo 1– que estão nas regiões centrais da
capital – reuniam entre 7% e 11% de evasão. No distrito do Jardim São Luís, 44,94% dos
jovens, entre 17 e 19 anos, não concluíram o ensino fundamental, em 2000, enquanto os dos
distritos centrais, com o mesmo perfil da amostra e o maior percentual, chegavam a 21,95%
(menos da metade dos jovens do Jardim São Luís).
Segundo Eder Lopes, diretor do Projeto Espetáculo na Unidade Jardim São Luís, a
idealização do Projeto é anterior ao Programa Fábricas de Cultura, que surgiu para abrigá-lo e
oferecer outras atividades culturais interdisciplinares. Na sua concepção, uma equipe de
educadores com profissionais da dramaturgia, interpretação, corpo e música visitou regiões da
cidade de São Paulo com alto índice de vulnerabilidade social e buscou parcerias com
organizações não governamentais e outras instituições focadas no desenvolvimento social.
Cada unidade forma um grupo com até 60 jovens. Para a inscrição, os interessados
devem estar regularmente matriculados na educação básica ou no ensino superior (em rede
pública ou privada). O projeto tem duração de um ano letivo, sempre com início no mês de
fevereiro. Todas as unidades criam o espetáculo com o mesmo tema central, criado pela
65
equipe de orientação, que também propõe as referências da literatura e da pintura que servirão
de base para o trabalho. Contudo, cada unidade desenvolve o tema de forma particular, de
acordo com os estudos e discussões realizados coletivamente entre o diretor e os jovens
integrantes.
Em 2017, o tema foi “Amor nas Arcádias da Paulicéia” tendo como principais
referências os livros “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, e “Albertina
Desaparecida”, de Marcel Proust; a obra “O Jardim das Delícias Terrenas”, de Hieronymus
Bosch e “O Conto Maravilhoso da Terra da Cocanha”, dos irmãos Grimm. Eder Lopes
observa que o ponto de partida de construção da narrativa se dá com o entendimento do
conceito de arcádia na literatura, como um lugar possível de criação poética.
Desde o início dos encontros, o grupo do Projeto Espetáculo da Unidade Jardim São
Luís decidiu abordar também a questão da morte, por ser, de acordo com Eder Lopes, muito
presente na Unidade. O terreno cedido para o Programa Fábricas de Cultura fazia parte do
cemitério, que funciona ao lado da sede.
Eder Lopes assumiu o Projeto Espetáculo da Unidade Jardim São Luís no início de
2017, vindo da Unidade Jaçanã. Alessandro Toller é o responsável pela dramaturgia e se
divide entre essa Unidade e a Jaçanã. O Projeto Espetáculo da Unidade São Luís acontece às
quartas e sextas-feiras (das 14 h às 17 h) e aos sábados (das 10 h às 13 h). Com o intuito de
garantir a criação coletiva e alinhar as diretrizes do tema anual, toda segunda-feira de manhã
os diretores e dramaturgos das cinco unidades do Programa Fábricas de Cultura se reúnem na
sede da Poiesis. À tarde, eles conversam com outros integrantes da equipe que compõem o
projeto. Em 2017 eram, ao todo, 53 aprendizes inscritos no Projeto Espetáculo do Jardim São
Luís.
2. Agentes
66
necessárias para validar as hipóteses devem ser obtidas no contato direto com os participantes
da atividade.
Portanto, foi decisivo escolher tais pontos para afirmar que, com base na literatura
utilizada e da pesquisa realizada, os estudantes escolhidos encontram-se, dentro da hierarquia
formada no campo cultural e social, em ‘posições precárias’. Suas residências localizam-se
onde recursos e bens culturais são escassos, se comparadas a de bairros da região central da
cidade. Ao estudar em escolas públicas da periferia, esses jovens estão sujeitos a uma relação
de falta de identificação, preconceito estrutural sobre sua variedade linguística, dentre outras
questões afirmadas ao longo do trabalho.
67
subjetivos da singularidade de cada um. A elaboração dos instrumentos de pesquisa, para
tomar real o conhecimento das idiossincrasias, é essencial.
Os participantes não foram escolhidos por meio de outras variáveis, como categoria
socioprofissional e escolaridade do pai e da mãe, que compõem a constelação de elementos
definidos como essenciais à herança e ao capital cultural. A obtenção desses dados foi feita
por meio do questionário e, a partir das informações adquiridas, puderam ser caracterizados
elementos relevantes à herança cultural de cada participante. Importante alertar que, para
Bourdieu, a escolaridade da segunda geração da família tem relevância para a caracterização
da herança cultural. Entretanto, devido à dificuldade em obter tal dado com precisão, optou-se
por manter apenas o que se refere à primeira geração, ou seja, aos pais e às mães.
Embora estipulada a idade até 21 anos, o entrevistado mais velho tem 17 anos. Sobre
a residência, apenas um participante não mora na região do Distrito do Jardim São Luís e
arredores. Ainda assim, sua residência está localizada na periferia da metrópole, fora da
região central do município de São Paulo.
3. Instrumentos
A penúltima etapa do questionário versa sobre o contato que os estudantes têm com
bens culturais. A primeira pergunta é sobre a participação em eventos como teatro, cinema,
69
museu, shows e esportes. Este item refere-se ao contato extraescolar dos jovens com bens
culturais em seu estado objetivado. Além disso, indica a possível participação em espaços de
letramento não escolarizados. Nesta parte, também são questionados o hábito de leitura,
frequência de viagens e as escolhas sobre quais programas de televisão o jovem assiste. A
quantidade de viagens, a companhia e o local escolhido evidenciam, de forma superficial,
uma possibilidade de aquisição de conhecimento, contato com variedades culturais e
linguísticas e, inclusive, o capital econômico dos entrevistados.
Atividades teatrais, filmes, exposições e shows são outras expressões culturais que
podem incitar o letramento não escolarizado. Para se aproveitar e incorporar esses bens
culturais na forma de um capital cultural, o estudante necessita de conhecimentos prévios, já
estabelecidos, e estes possibilitam a apreensão dos temas, do enredo e do discurso
apresentado.
70
participantes foram convidados a falar livremente sobre os conhecimentos relacionados à
atividade e situar as questões que mais lhe chamam a atenção.
71
cada entrevista como um momento distinto da atividade, no qual diferentes temas eram
colocados em evidência.
Para cada resposta ao questionário, o entrevistado tem ou não aquilo que se entende
como relevante à aquisição de capital cultural. O fato de nunca ter ido ao teatro, não saber
uma língua estrangeira, ter dificuldade para ser fluente na língua materna, conhecer ou não
outras cidades, por exemplo, revelam a sua realidade, o espaço que ocupa nas relações de
classe e no campo social e simbólico.
Pelas definições de Bourdieu (1998) sobre as formas de capital cultural, esses dados,
extraídos do questionário socioeconômico, informam o capital institucionalizado
(escolaridade dos pais), o capital econômico (renda das famílias dos jovens) e o capital
objetivado que possuem e com o qual mantêm contato (livros, peças de teatro, viagens etc.).
Na entrevista oral, torna-se possível extrair elementos para compreender o capital incorporado
dos jovens. Existe, então, uma interdependência entre os tipos de capital e determinada
influência que um ocasiona ao outro. Neste fato, inclusive, está a justificativa da necessidade
de compreender a entrevista e o questionário como procedimentos complementares.
Deve-se notar que a própria participação nas atividades pode ser identificada como
um capital cultural em seu estado objetivado e, ao registrar tal participação em determinado
documento sobre o Projeto, esse registro lhe agrega valor em estado institucionalizado. Dentre
essas formas de capital cultural, a incorporada pode ser considerada a mais complexa de se
72
analisar. Enquanto, em um primeiro momento, o capital objetivado e o institucionalizado são
obtidos no questionário, sem necessidade de grande interpretação, o capital incorporado não
se mede quantitativamente e não se acumula de maneira a ser mensurado.
4. Categorias da análise
Com o objetivo de identificar esse capital na fala dos agentes, nas duas entrevistas
aplicadas, lançou-se mão das referências metodológicas de Bardin (2011). A partir da
construção de categorias de análise, a compreensão se estruturou sobre aquilo que está
implícito na mensagem, como as variáveis culturais, as motivações que induzem determinado
participante a discutir um ou outro tema, bem como a percepção de como o Projeto possibilita
construir um ou outro argumento. Portanto, o objetivo em utilizar categorias de análise é, em
especial, tornar inteligível um elemento extremamente abstrato e subjetivo, que é o capital
cultural.
73
Esta proposta visa analisar elementos que não se evidenciam em categorias formadas
por mera oposição, ou por meio de temas binários, como sentimentos, condutas, ideias e
valores. Assim, o desenvolvimento das categorias de análise se estabeleceu como um meio de
identificar os temas recorrentes nas respostas dos agentes para, posteriormente, analisar a
apropriação desses temas pelos entrevistados, nos dois momentos do Projeto. A análise, por
sua vez, não pretende à determinação de um valor desejável, mas, sim, à compreensão da
profundidade que cada participante apresenta acerca dos temas identificados.
As categorias de análise, então, foram criadas não a priori, mas, sim, a partir das
falas de ambas as entrevistas. O intuito é o de não forjar categorias e, também, baseando-se
em Thiollent (1981, p. 87), encontrar nas próprias mensagens as possibilidades de análise para
concluir aquilo que evidentemente corresponde à hipótese levantada. Assim, os temas que
apareciam com maior frequência nas mensagens foram se estruturando como categorias de
análise, avaliados a partir da definição de ‘um grau de profundidade’ de sua compreensão.
Os temas foram articulados nas atividades a partir dos meios citados, entretanto, as
possibilidades em integrar os temas ao cotidiano, discutindo, por exemplo, a realidade do
bairro e as experiências pessoais, colocaram o cotidiano como um elemento que, integrado ao
tema, supõe também aprofundamento. Esta é uma relação que se faz entre o apreendido no
Projeto Espetáculo e o universo social, que está além de seus muros. Fazer tal relação, durante
a entrevista, indica uma capacidade de uso do conhecimento no cotidiano e infere um valor
importante ao letramento, já que este se refere ao uso das capacidades de leitura e escrita para
compreender características próprias das relações sociais.
75
determinado por um bem cultural conquistado ou por um grau de letramento que permita
utilizar da linguagem para compreender os fenômenos sociais que o cercam. Receber
determinado conhecimento e aplicá-lo em outras relações, transformando-as, de modo a
desnaturalizar as relações sociais dos espaços em que habita, exprime a força que esse
conhecimento faz atuar em sua concepção de mundo. Assim, é definido aqui como a
incorporação do capital e, também, a possibilidade de transmissão e ampliação de novos
capitais culturais.
Para a análise das entrevistas, cada um dos temas (amor, gênero e morte) foi
identificado com um índice que varia de 0 a 3, de acordo com o nível de aprofundamento
apresentado pelo agente. Podem-se observar esses dados no anexo III. Ambas as entrevistas
foram observadas mantendo suas fragmentações, e comparadas apenas quando algum dado
pode inferir alguma informação importante. Isso tende a ocorrer na singularidade de cada
entrevistado ou no conjunto de respostas.
Nos critérios da análise, o índice 0 é utilizado quando não houve menção alguma a
determinado tema. Evidente que nem todos os temas são citados por todos os entrevistados.
Assim, tal índice não avalia a (in)capacidade de compreender ou aprofundar determinado
tema. O método de entrevista, não diretivo, fez com que não fosse cobrada a menção de cada
tema. Vale lembrar que as categorias de análise foram estipuladas após verificação da
frequência de aparição dos temas no conjunto das entrevistas.
76
Deste modo, quando determinado tema está representado com o índice 0, significa,
exclusivamente, que não apareceu durante a fala. Se o estudante não fez menção ao tema, não
há qualquer intenção de avaliar se isso ocorreu por esquecimento, por falta de compreensão,
por ser algo que não lhe causa identificação, ou qualquer outro motivo que não pode ser
objetivamente observado.
Quando determinada categoria esteve presente, entretanto, foi apenas citada, atribui-
se o índice 1. Para que o número um represente a categoria na fala do entrevistado, não pode
ter sido feita nenhuma relação ou discussão aprofundada sobre esta. Neste caso estão as
citações breves ou apenas menções que não discutem, em nenhum nível, o tema apresentado.
Por fim, o índice 3 representa que houve aprofundamento do tema e menção a mais
de uma referência, discutindo e estabelecendo relações entre diferentes experiências
vivenciadas no cotidiano ou na atividade. Esse nível indica um aprofundamento maciço do
tema abordado e uma capacidade de relação múltipla entre espaços diversos. A capacidade de
relacionar as vivências, utilizar o conhecimento de uma para ampliar a compreensão sobre
outra é considerada uma incorporação intensa de capital cultural, em um nível que contribui
fortemente ao letramento do participante.
77
aprofundamento indica a relação do conhecimento expresso a partir das experiências
propostas pela atividade e do cotidiano dos jovens participantes. Aprofundar determinados
temas, por meio de atividades culturais, e utilizar este conhecimento para compreender a
linguagem, a escrita, a leitura e seu cotidiano é considerado aquisição de capital cultural para
o letramento.
a) Questionário socioeconômico
79
Quadro 1
Identificação e renda
Agentes A B C D E F* G H
Idade 16 14 17 15 16 14 16 15
Sexo M F F F F F F M
Pq. Sto. Pq. Sto. Jardim Capão Jardim Pq. Sto. Itapecerica Jardim
Residência
Antônio Antônio Imbé Redondo Ibirapuera Antônio da Serra Capelinha
Trabalha N N N N N N N S
Ao analisar o IVJ 2000, por exemplo, constatou-se que os bairros mais vulneráveis
eram aqueles que compunham a periferia da cidade (SEADE s/d). A formação histórica pode
ser fator determinante para tal questão. Entretanto, na realidade francesa, analisada por
Bourdieu (1998), isto também ocorre. Essa é uma tendência que existe em diversas
localidades, pela diferença de oferta de bens culturais nos distintos espaços urbanos. O
cotidiano de um bairro periférico, possivelmente, é mais escasso de bens culturais que o dos
bairros centrais, assim como de capital econômico. As atividades artísticas, culturais, o capital
social e as famílias com maior capital econômico e cultural habitam as regiões mais centrais
das grandes cidades e são mais orgânicos a ele.
Por isso, é tão importante desenvolver o capital social e cultural nestes distritos, e
não apenas o econômico. Alguns dados mostram que a grande melhora no IDH nos locais
mais afastados do centro da cidade de são Paulo, nos últimos 15 anos, ocorreu
simultaneamente com o aumento de aparelhos culturais, além de incentivo e ampliação de
projetos culturais e sociais, como o próprio Programa Fábricas de Cultura, que esteve presente
neste período. Estes e outros dados sobre a estruturação de aparelhos culturais, acervo de
livros disponíveis em equipamentos públicos, dentre outros, podem ser observados na
plataforma on-line ObservaSampa.
80
Assim, conclui-se que políticas públicas, aplicadas por meio de estudo e respeitando
as características locais, tornam-se base às possibilidades que novos espaços têm em
desenvolver o capital social, cultural e econômico. Essa intersecção entre os capitais é
fundamental para alicerçar projetos que possam contemplá-los de maneira integral. O
Programa Fábricas de Cultura, por exemplo, primariamente, diz respeito ao capital cultural.
Entretanto, o capital social, ou seja, as relações sociais e o pertencimento do agente a um
espaço com profissionais, pesquisadores e agentes em geral, também é potencializado. Além
disso, o capital econômico pode, em muitos casos, ser estimulado a partir dessas iniciativas.
Prova disso é que grande parte dos jovens que participam do Projeto Espetáculo têm, como
motivação à participação, a crença de que a atividade é uma formação importante ao sucesso
profissional.
Com os dados coletados na plataforma on-line (SÃOPAULO, s.d.), além dos obtidos
no questionário, percebe-se que os estudantes, mesmo que não detenham as rendas mais
baixas do distrito no qual residem, têm renda inferior às famílias dos jovens dos bairros mais
81
centrais. Este fato determina unicamente o campo econômico, não o cultural ou social.
Entretanto, sabe-se que há uma grande interdependência entre eles.
Outro dado que diz respeito à identificação e à renda dos participantes, e que é de
suma importância para a aquisição do capital incorporado, é o tempo. Pode-se fazer um
paralelo entre o que a disponibilidade de tempo é para a constituição de determinado capital
cultural incorporado e o que o dinheiro é para a aquisição de bens materiais. A partir dessa
análise, percebe-se a dificuldade para o desenvolvimento de capital incorporado em famílias
vulneráveis, das quais, por dificuldades econômicas, os jovens têm de frequentar a escola e,
no contraturno, exercer alguma atividade que gere capital econômico. Contudo, dentre os
jovens entrevistados, apenas um trabalha. É interessante observar que esse jovem provém da
família com maior renda mensal e com capital institucionalizado diferenciado, se comparado
ao grupo (a mãe tem curso superior e o pai, ensino médio; mais à frente será destacado no
Quadro 2).
É notável que existam diversas ocupações profissionais e que cada uma delas
necessita e incita determinadas habilidades e conhecimentos para ser exercida. Segundo a
teoria do letramento, é muito possível que atividades profissionais tenham a capacidade de
trazer um letramento importante às práticas escolares.
Entre os oito participantes, sete não exercem atividade profissional (Quadro 1), o que
é de grande valia para se dispor de momentos que proporcionem a incorporação do capital
cultural, sobretudo o capital cultural legitimado pela instituição escolar. Entretanto, não se
podem restringir às atividades profissionais, as determinantes que influenciam na forma como
o tempo de cada jovem é utilizado. Assim, com objetivo de ampliar a relação tempo/capital
cultural incorporado, o questionário se baseou no contato dos jovens com bens culturais no
estado objetivado. Nessa etapa, portanto, o objetivo não é compreender o capital incorporado
propriamente, mas como o tempo é utilizado e as possibilidades de contato com o capital
cultural em estado objetivado, para uma possível incorporação. Nessa relação, pode-se
compreender se determinado jovem deve ou não ter mais facilidade para apreender e
aprofundar os temas propagados nas atividades do Projeto Espetáculo.
82
com o espaço escolar. Pai e mãe que detêm grande conhecimento sobre a língua, em especial
a norma padrão, ou que utilizam com maior frequência e domínio a linguagem escrita e oral,
têm maior probabilidade de transmitir tais conhecimentos e práticas aos filhos. É aquilo que
Bourdieu (1998) e Lahire (1997) definem como herança cultural.
Diante disso, a falta de diplomas de nível superior, que é o caso de mais da metade
dos pais e mães dos entrevistados, expõe um dado importante. O local onde residem e o fato
de não trabalharem (um jovem apenas, dentre os entrevistados, exerce atividade profissional),
também permitem compreender características peculiares das famílias dos participantes do
Projeto Espetáculo. As informações reunidas nesta análise revelam que cada um deles
apresenta, em determinados aspectos, elementos que corroboram a compreensão da realidade
social a qual se inserem, e dos processos de aquisição de capital cultural, considerado
deficitário. Não há grande uniformidade e não há excessiva carência de capital econômico e
institucionalizado em todos os casos. Ainda assim, são jovens que, se tiverem a ambição de
cursar o ensino superior, por exemplo, estão em desigualdade se comparados à população
residente nas regiões centrais da cidade.
Entre os oito entrevistados, apenas uma mãe não é alfabetizada. Duas mães e um pai
têm nível superior, os três de famílias distintas. Outra importante questão que Bourdieu
(1998) coloca está na diferença entre a escolaridade do pai e a da mãe em uma mesma família.
Dos entrevistados, dois têm pais ausentes, e entre os sete que têm pai e mãe presentes no
processo de formação, em apenas dois casos ambos detêm o mesmo nível de instrução.
Todavia, não se trata de um capital cultural institucionalizado deveras valorizado (Quadro 2).
83
Quadro 2
Pais: escolaridade e ocupação
Agentes A B C D E F G H
MÃE
Alfabetizada N S S S S S S S
Trabalha* S S S S S N S S
PAI
Alfabetizado S S S S S S
Fonte: elaboração própria, a partir dos dados do questionário socioeconômico. Obs.: os dados sobre a
escolaridade dizem respeito ao nível de ensino concluído.
* Ocupação profissional das mães, respectivamente: supermercado, paisagismo, produção de máquinas, n/c,
doméstica, n/c, professora, psicóloga.
** Ocupação profissional dos pais, respectivamente: n/c, construtora, n/c, n/c, metalúrgico, n/c, n/c, Uber.
Mesmo nos casos de jovens cujos pais têm maior escolaridade, há de se notar que
não recebem ajuda com os deveres de casa, por exemplo. Dos quatro casos em que a mãe ou o
pai contribuem com as tarefas enviadas pela escola, em apenas um deles o adulto possui
ensino superior. Em outro caso singular, verificou-se a ajuda de irmã(o), entretanto, na
maioria das vezes, independentemente da escolaridade dos pais, os entrevistados realizam
sozinhos as tarefas da escola (Quadro 3).
Quadro 3
Escolaridade
Agentes A B C D E F G H
E. I. S S S S S S S S
Cursando E. M. E. M. E. M. E. M. E. M. E. M. E. M. E. M.
Ano 2º 1º 3º 1º 3º 1º 3º 1º
Continua
85
Conclusão
Agentes A B C D E F G H
Parou N N N N N N N N
Mãe e Mãe e
Ajuda Ninguém Ninguém Ninguém Ninguém Mãe Ninguém
irmã(o) pai
Obs.: E. I. = se cursou o ensino infantil; Parou = se parou os estudos em algum momento; Idiomas 1 e 2 = se
tem conhecimento de outros idiomas, além do português; Ajuda = se recebe ajuda em casa para a realização das
atividades escolares.
Os escritos de Bourdieu, em especial sua análise dos escritos de Paul Clerc e estudos
acerca do capital linguístico de estudantes do curso de Letras (BOURDIEU, 1998; 2008),
mostram a importância do conhecimento e do domínio da língua. O autor também afirma ser
de grande relevância o conhecimento de outras línguas para o sucesso escolar. A questão aqui
não está tanto no domínio da norma padrão (embora a escola exija, assim como as provas de
vestibular e concursos públicos), mas, sim, no quanto o desenvolvimento da linguagem se
revela uma ferramenta poderosa para a fruição de diversas expressões, não apenas artísticas.
Deve-se pensar que o conhecimento de uma língua estrangeira, em um mundo globalizado,
possibilita a compreensão de relações e fenômenos sociais, bem como de atividades
cotidianas que se utilizam dessas línguas. Assim, compreender uma ou mais línguas
estrangeiras indica o grau de letramento dos indivíduos e, também, de capital cultural.
86
Em relação aos hábitos de leitura, todos afirmaram ler livros e três jovens têm,
também, o costume de ler revistas (Quadro 4). Devemos considerar o livro e a revista como
um capital cultural objetivado, observando que encontrá-los na própria casa lhes dá uma
dimensão mais preciosa, um contato direto que se estabelece na relação familiar. O
desenvolvimento da leitura, propagado em casa, e o próprio bem, que é o “ter determinado
livro”, são capitais objetivados de extrema importância para desenvolver o capital
incorporado (BOURDIEU, 1998, p. 77).
Quadro 4
Atividades culturais: leitura
Agentes A B C D E F G H
Casa
Casa
Escola
Escola Escola Escola Fábricas Casa Casa
Onde encontra Fábricas PDF
Fábricas Fábricas Bibl. Internet Escola Escola
Bibl.
pública
pública
Nos dados do questionário, a estudante que busca material literário em mais espaços
(casa , escola, Fábricas de Cultura e bibliotecas públicas) é aquela que tem o pai com ensino
superior e a mãe formada até o ensino médio. No caso em que ambos, pai e mãe, não possuem
sequer o ensino médio completo, a estudante afirmou buscar livros apenas nas Fábricas e na
internet. Estes dados revelam que, não necessariamente, na relação direta com os trabalhos
escolares se evidencia a herança cultural. No pequeno grupo estudado, o interesse pela leitura
não aponta relação com a escolaridade dos pais. Os dados também sugerem que os novos
meios digitais podem interferir positivamente no uso da leitura e da escrita, ou seja, no
letramento de jovens que não têm esse estímulo vindo do seio familiar (Quadro 4).
87
leitura. Ainda assim, é importante relembrar que o hábito da leitura, em si, não ocasiona,
necessariamente, uma identificação com a escola. A instituição escolar determina uma
literatura específica que deve fazer parte do repertório intelectual dos estudantes. Certas
leituras, ainda que contribuam ao letramento e sejam um bem cultural – como aquelas
realizadas em meio eletrônico –, podem não ter valor no mercado escolar.
Os dados mostram que metade dos entrevistados encontra em casa livros para leitura,
mesmo número de jovens que os encontram nas Fábricas de Cultura. Dos quatro que leem em
casa, dois têm pais com ensino superior, o que indica, novamente, a relação entre a herança
cultural, capital institucionalizado dos pais e o contato com a leitura. Seis dos pesquisados
informaram acessar livros na escola e dois frequentar bibliotecas públicas (Quadro 4).
Tendo os dados do hábito de leitura expostos no Quadro 4, pode-se inferir que dos
oito entrevistados, um lê exclusivamente pela internet (‘PDF’) e outro participante, que lê
conteúdos digitais (‘internet’), recorre também às leituras do Projeto Espetáculo. Sete
entrevistados têm hábitos de leitura estimulados em dois ou mais ambientes. É importante
registrar que o questionário não contemplou algumas leituras importantes, geralmente
realizadas por jovens na faixa etária estudada, como as redes sociais, blogs e outras
plataformas.
Dos quatro participantes que têm contato com livros na Fábrica de Cultura, nenhum
frequenta a biblioteca desse espaço. Assim, conclui-se que os livros utilizados são aqueles
transmitidos no próprio Projeto Espetáculo. Em relação à leitura realizada na escola,
possivelmente, constitui parte de uma obrigação que nem sempre resulta de um pertencimento
claro de capital cultural, ou de uma vontade autêntica para tê-lo. Também não pode ser
compreendido como o letramento mais eficiente, simplesmente por ser de caráter escolar. Na
realidade, a noção de uma obrigação, que às vezes esvazia de sentido a prática, pode dificultar
a dimensão do uso social da linguagem utilizada, sentido este essencial na concepção de
letramento.
88
por último, o participante que indicou interesse por um maior número de programação da
televisão (jornal, novela, filmes e esportes) é o mesmo jovem, exceção no grupo, que exerce
atividade profissional (Quadro 5).
Quadro 5
Atividades culturais: televisão
Agentes A B C D E F G H
Jornal
Jornal
Filmes Filmes Novela
O que assiste Jornal Nada Nada Filmes Nada
Desenho Desenho Filmes
Desenho
Esportes
Outro fator analisado é aquele que versa sobre as possibilidades que esses jovens têm
de viajar e conhecer novos lugares, encontrar pessoas com diferentes vivências, obter contatos
e experiências plurais. As viagens são vivências que também desenvolvem o capital social.
Pelas respostas dadas ao questionário (Quadro 6), observa-se que ao menos um estudante
realizou mais de dez viagens, sendo que outros dois responderam “algumas” e “várias”, em
relação à quantidade de experiências. Um dos entrevistados viajou uma única vez e outro
deixou em branco esse dado. É importante destacar que as viagens são feitas, em sua maioria,
com a família, e para os mesmos lugares. Apenas dois entrevistados já viajaram também com
amigos, sendo que um deles viajou também a trabalho. Certamente, as viagens estão muito
mais próximas daqueles que possuem maior capital econômico e social. Econômico, pois um
mínimo de recurso financeiro é necessário para arcar com as despesas da viagem. No caso de
visitas a familiares, tem-se que o capital econômico influi menos, já que, muitas vezes, não se
despende com estadia e/ou alimentação. O capital social, sobretudo em viagens com amigos
ou equipe de trabalho, configura-se essencial na medida em que se relaciona ao pertencimento
a uma rede de pessoas, com oportunidade de aprender, conhecer e interagir simultaneamente.
89
Quadro 6
Atividades culturais: viagens
Agentes A B C D E F G H
Família
Família
Com quem Família Família Família Família Família Família Amigos
Amigos
Trabalho
Interior Litoral
Para onde MG Litoral Bahia MG MG Vários
(SP) (SP)
Obs.: todos os participantes informaram já ter viajado pelo menos uma vez.
90
entrevistas será possível verificar o capital cultural incorporado para, então, afirmar ou não a
hipótese levantada neste trabalho.
Atividades artísticas têm papel fundamental no letramento dos jovens, bem como à
aquisição de capital cultural. O contato com expressões artísticas fornece meios para
desenvolver o capital cultural e é, também, um uso importante da linguagem oral, da imagem,
som e leitura, em dimensões social e individual. Cada forma de arte ganha importância na
aquisição de capital cultural e na conquista do sucesso escolar à medida que se aproxima da
linguagem que a instituição escolar utiliza em sua estrutura. Ainda assim, o letramento não
escolarizado, possibilitado em espaços artísticos, permite uma concepção mais ampla do
cotidiano e dos processos sociais.
Pelas respostas dadas ao questionário, dos oito participantes, três vão a intervenções
artísticas semanalmente, quatro vão mensalmente e apenas um comparece anualmente a
atividades artísticas. Entre as atividades relatadas, todos afirmam ir ao cinema e teatro, sendo
que dois participantes só comparecem a estes dois tipos de evento. Dos outros seis
participantes, todos comparecem a exposições e cinco também informam ir a shows. Apenas
um deles mostrou interesse por jogos de futebol e outros esportes (Quadro 7).
91
Quadro 7
Atividades culturais: passeios
Agentes A B C D E F G H
Cinema X X X X X X X X
Teatro X X X X X X X X
Exposições X X X X X X
Show X X X X X
Futebol X
Esportes X
A jovem que participa com menor frequência de atividades artísticas é a mesma que
abandonou o Projeto Espetáculo antes de finalizá-lo. Não há outra informação ou outro dado
significante, apreendido no questionário ou na primeira entrevista, que faça inferir sobre a
participação em atividades culturais desta participante e no Projeto Espetáculo. O que se pode
relacionar é que, assim como se discutiu a identificação dos jovens com a escola, como
motivo de frequência ou evasão, a estudante que apresentou menor contato e afinidade com as
artes foi, no grupo estudado, a única a deixar o Projeto.
92
respostas ao questionário validam a ideia de que os participantes já detêm alguma motivação
pelo campo artístico e que a participação no Programa Fábricas de Cultura se justifica no
interesse individual em agregar capital cultural. Isto é verificado, também, pelo fato de que,
dentre os oito entrevistados, cinco participaram do Projeto por decisão pessoal e apenas três
por indicação dos pais (Quadro 8).
Quadro 8
Programa Fábricas de Cultura
Agentes A B C D E F G H
Espaços** P. E. P. E. P. E. P. E. P. E. P. E. P. E. P. E.
Dos três entrevistados motivados pelos pais, um é filho de pai com nível superior e
outro com mãe de mesma escolaridade. Esta segunda verificação reforça a importância do
capital institucionalizado como elemento que suporta a herança cultural de cada jovem para
incentivar a ocupação de espaços culturais.
93
Quadro 9
Projeto Espetáculo
Agentes A B C D E F G H
Teatro 5 5 5 5 5 3 4 5
Profissional 4 4 5 4 3 0 2 5
Oratória 4 5 5 3 2 5 5 3
Influência 5 3 4 1 0 1 2 4
Curiosidade 5 5 4 4 5 2 3 2
Tempo livre 4 3 4 2 3 0 3 5
Outro 0 0 0 5* 0 0 0 0
Obs.: este quadro mostra o grau de importância, numa escala de 0 a 5 (onde 0 = nenhuma e 5 = maior
importância), de cada motivo listado para a participação no Projeto Espetáculo. Os motivos estão melhor descritos
no corpo do trabalho e no Anexo II – Questionário socioeconômico.
* Motivo informado: “pelo meu amor ao teatro”.
94
de letramento. A identificação com o universo escolar necessita de uma compatibilidade entre
a linguagem prestigiada e novas formas de aquisição de conhecimento. O Projeto Espetáculo,
como será visto no decorrer da análise, traz uma gama de novos conhecimentos e um
complexo vocabulário, aliados às ferramentas já conhecidas por estes jovens. Não se limita à
linguagem vivenciada em outros contextos, mas a inclui. Neste momento da análise, os dados
indicam uma esperança no espaço da Fábrica de Cultura como meio de aliar o gosto pessoal a
possibilidades profissionais. Constata-se uma troca de identificação da escola pelo Projeto
Espetáculo.
A “Influência de amigos e/ou parentes” só foi assinalada com índice 5 por um dos
participantes, e outros dois apenas assinalaram o índice 4 de motivação. Cabe observar que,
dentre estes três jovens, todos indicaram que a participação no Fábricas de Cultura se deu por
iniciativa própria, e não por indicação dos pais, da escola ou outro motivo.
Outra conclusão se liga à ideia de que estes jovens tenham, por motivos não
mensuráveis a partir do questionário, alguma vontade de se aperfeiçoar nas artes. Entretanto,
elementos de cada realidade, capital social e cultural aliados à carência de capital econômico,
dificultam o alcance de tais objetivos. Assim, chama à atenção a importância do Projeto
Espetáculo como uma oportunidade a estes jovens e sua potencialidade como uma política
pública que atenda cada vez mais jovens das regiões mais carentes de recursos culturais,
estudantes da escola pública de bairros periféricos.
95
Portanto, nesta primeira parte da análise, foi possível perceber que os entrevistados
mantêm contato relevante com capital objetivado, diferentemente do que se poderia imaginar
antes das entrevistas. Entretanto, para explicar tal fenômeno, percebe-se que, conforme
afirmado por Bourdieu (1998), os participantes do Projeto são, entre aqueles que habitam o
mesmo espaço no campo social, os que expressam maior afinidade com as artes, em especial
cinema e teatro, fato averiguado no questionário. No entanto, os motivos que os levam a ter
tal afinidade requerem maior investigação.
b) Entrevistas
A análise das entrevistas foi estruturada a partir do surgimento, nas falas dos
estudantes pesquisados, dos temas centrais à construção do espetáculo. A forma como os
temas aparecem presentes, em grande parte das entrevistas, possibilita compreender a
capacidade de reflexão e reconstrução de concepções sobre estes, anteriores à participação no
Projeto. Assim, as categorias de análise estabelecidas foram avaliadas pelas relações que os
estudantes fizeram entre os temas e alguns conhecimentos discutidos e vivenciados nos
encontros do grupo, além de aspectos individuais do cotidiano de cada agente, e a
desconstrução de suas noções prévias, observáveis em cada fala e na comparação entre elas.
Outras relações de aprofundamento dos temas, ocorridas em menor frequência, também foram
consideradas na análise. Cada tema, geralmente – mas não somente –, aparece a partir de
alguma informação transmitida nas atividades.
96
Durante a realização das entrevistas, algumas discussões e experiências foram
realizadas dentro e fora do espaço da Fábrica. Tais vivências, não questionadas diretamente,
sugerem, nas respostas dos entrevistados, importante contribuição na reconstrução dos temas
– estabelecidos como categorias de análise. São elas: leitura do livro “Grande Sertão:
Veredas”, de Guimarães Rosa; notícia sobre o assassinato da transexual Dandara; e a visita ao
cemitério que fica ao lado da Unidade São Luís. Além destas experiências, alguns jovens
também relacionaram os temas analisados com a própria realidade cotidiana e/ou a partir de
outras reflexões individuais. As concepções dos participantes acerca dos temas tratados,
prévias às discussões e experiências facilitadas pelo Projeto, tornaram-se alvo de
questionamento pessoal.
Como já se sabe, o tema do Projeto Espetáculo 2018 foi “Amor nas Arcádias da
Paulicéia”. No entanto, arcádia, enquanto espaço possível de realização poética, pouco
apareceu nas respostas dadas à entrevista. Este fato se justifica em uma das falas do Agente
A: “Então, acho que a desconstrução do tema foi o que me chamou mais a atenção, porque a
gente não focou só no ‘Amor nas Arcádias da Paulicéia’, né?”. Em contrapartida, o tema amor
é o que mais surge nos comentários.
Assim como a entrevista final ocorreu antes da finalização do Projeto, a inicial foi
realizada com este já em andamento. O tempo entre as entrevistas foi menor do que
inicialmente idealizado: menos de três meses de intervalo, sendo que a primeira foi realizada
com as atividades já em andamento, no dia 12/4/2017, e a segunda, no dia 28/6/2017, meses
antes da conclusão do espetáculo, em meados de novembro.
98
Além disso, deve-se alertar para o fato de que grande parte dos jovens já participou
do Projeto Espetáculo em outros anos e, ainda que com outro tema e outras referências, faz-se
importante exaltar esta informação. Assim, supõe-se que, antes da primeira entrevista, os
participantes já haviam, nos anos anteriores, apreendido algum capital cultural, o que favorece
a apreensão de novos conhecimentos, logo, o aumento do capital cultural. Segundo Bourdieu
(1998), o volume do capital cultural, em seu estado incorporado, pode ser expandido e
pressupõe o tempo como fator determinante ao processo. Portanto, quanto mais tempo de
estímulo, maior a capacidade de incorporar novos bens culturais. Apenas dois entrevistados
iniciaram o Projeto Espetáculo concomitantemente com a pesquisa. Um destes abandonou a
atividade antes que pudesse participar da segunda entrevista.
Assim, a análise da entrevista foi feita a partir dos objetivos propostos e visando à
verificação das informações necessárias. E compõe-se de duas etapas, definidas nos
procedimentos da pesquisa e justificadas por meio do referencial metodológico. A primeira
etapa abarca os dados por participante, para compreender suas singularidades e a percepção
destes sobre a importância do Projeto para o aprofundamento dos temas apresentados. Na
segunda, que agrupa os temas – categorias de análise – tem-se o registro de dados
complementares. A etapa inicial está representada no Quadro 10, abaixo, que mostra os
índices atribuídos aos temas em cada entrevista, por agente.
Quadro 10
Análise geral das entrevistas
Agentes A B C D E F G H
Amor 3 3 0 0 3 3 3 0
1ª Entrevista
Gênero 0 3 3 3 2 0 0 3
Morte 0 0 0 0 0 0 0 0
Amor 1 2 0 3 2 n/c 3 0
2ª Entrevista
Gênero 0 1 2 2 0 n/c 0 3
Morte 1 3 0 0 0 n/c 0 3
Critérios da análise:
0 = Não menciona o tema
1 = Menciona o tema, mas não estabelece relação de aprofundamento
2 = Menciona o tema e estabelece alguma relação de aprofundamento
3 = Menciona o tema e estabelece duas ou mais relações de aprofundamento
100
Antes de iniciar o desmembramento das entrevistas e a discussão dos dados, é
necessário retomar os índices estipulados, que têm a finalidade de representar o grau de
aprofundamento dos temas. Primeiramente, tem-se o índice 0, que indica que o tema não foi
sequer mencionado durante a resposta à entrevista. O índice 1 informa que houve citação do
tema, mas sem qualquer reflexão ou profundidade. O índice 2 é utilizado quando o
participante estabeleceu alguma relação de aprofundamento com o tema. Por fim, o índice 3
informa quando o tema é relacionado com uma ou mais experiências ocorridas dentro ou fora
do Projeto, um aprofundamento reflexivo transversal às discussões e vivências.
Assim, inicia-se esta etapa discorrendo sobre a entrevista realizada com o agente A.
Participante do sexo masculino, tem 16 anos e está no Projeto Espetáculo desde fevereiro de
2014, por desejo próprio. Foi um dos participantes que citou o conceito de arcádia, fazendo,
ainda, uma associação com a reconstrução do conceito de amor. Ainda nessa fala, o
entrevistado mostra a importância de debater o caso da Dandara, reflexões acerca do amor,
dentre outros, à estruturação do espetáculo. A entrevista realizada com A mostra que existe
uma necessidade de fomentar certas reflexões para ‘qualificar’ os participantes à construção
da peça.
101
Em sua segunda fala, o participante ressaltou a importância sobre desconstruir
conceitos, sem estabelecer relações de aprofundamento. Citou o tema morte, que não havia
relatado anteriormente. Entretanto, não fez qualquer discussão sobre esta categoria. Este foi o
único estudante que não fez qualquer comentário sobre o livro “Grande Sertão: Veredas”, em
nenhuma das duas entrevistas, a não ser citá-lo superficialmente.
A partir das categorias de análise, observa-se que A aprofundou o tema amor desde a
primeira entrevista. Sua fala explicita a inviabilidade de utilizar o método comparativo, que
não permitiria avaliar o grande aprofundamento do tema amor que fica evidenciado ainda na
primeira etapa. Na segunda, o entrevistado pouco comentou sobre outras questões. Se na
primeira entrevista a categoria amor foi classificada com o índice 3, na segunda, a categoria
teve índice 1, com o tema morte – tema que só apareceu nesse momento. O tema gênero não
fez parte do conhecimento expresso nas mensagens. A avaliação comparativa dos índices
sugeriria que, ao invés de um aprofundamento, o tema amor passou a ser expresso de modo
mais raso, o que não é real. Além disso, como se pode notar nesta análise, a fala se torna
muito valorosa, quando A afirma que o Projeto Espetáculo foi o espaço que lhe forneceu
conhecimento para aprofundá-lo.
102
do espanhol, além de seu pai ter nível superior. Assinalou, ainda, ter o hábito semanal de
participar de intervenções artísticas, viajar com frequência, ler livros acessados em diversos
espaços e não assistir à televisão. Participa do Projeto Espetáculo desde janeiro de 2015, por
indicação dos pais. A partir dos argumentos afirmados por Bourdieu (1998) como essenciais
ao aumento do volume de capital cultural, B é a participante que, em comparação ao grupo
pesquisado, tem maiores possibilidades para a sua aquisição.
103
Na primeira entrevista de C, estudante do sexo feminino, de 17 anos, a participante
versa sobre o livro e o associa ao tema gênero. Complementa sua fala trazendo uma relação
razoavelmente profunda entre o seu cotidiano e o Projeto Espetáculo, o que aufere grande
valor ao trabalho. A estudante comenta, também, a importância de trazer o conhecimento
cotidiano à cena e relata questões acerca de discussões realizadas na atividade. Na fala de C,
como em outras, fica evidente que os estudantes concebem os conhecimentos propagados nas
discussões como importantes tanto para a realização individual, como coletiva, do espetáculo
realizado no fim do ano. Este é um fato muito importante na questão do letramento, pois
mostra que a escrita, a leitura e a imagem são experimentadas com um objetivo final, um uso
social e artístico que, para além do letramento, representam o desenvolvimento do capital
cultural.
Alguns temas estiveram presentes em apenas um dos oito entrevistados, razão pela
qual não foi identificado como categoria para a análise. É o caso de E, participante de 16
anos, do sexo feminino. A estudante foi a única que citou o conceito de utopia. Mesmo sem
aprofundá-lo, fez associações entre este, a arcádia e a reconstrução da noção de amor.
Também foi a única a citar o quilombo, outro elemento discutido nos encontros do Projeto,
como fonte de inspiração para a criação do espetáculo, embora não tenha discorrido acerca da
relação deste com o amor ou o gênero – categorias de análise que trouxe em suas entrevistas.
105
Quilombo e utopia, bem como arcádia, são conceitos sem recorrência relevante nas falas dos
jovens entrevistados e/ou que não foram aprofundados suficientemente, para que se
estabelecessem como categorias de análise. Ainda assim, é importante registrar suas menções
para avaliar o desenvolvimento do vocabulário destes participantes. Outros termos,
razoavelmente complexos, apareceram nas falas de outros participantes. É o caso do termo
andrógeno, por exemplo, que também indica uma desenvoltura no vocabulário dos
participantes. Andrógeno foi um termo utilizado em mais de uma entrevista.
Em sua fala, E perpassou por questões distintas, sendo que algumas não foram
incluídas como categoria de análise. A participante não fez grandes relações, limitando-se a
citar aquilo que lhe chamava a atenção na atividade. Mostrou aprofundar apenas o tema amor
na primeira entrevista. Embora tenha mencionado os personagens do livro, em ambas as
entrevistas, revelou não saber o nome da obra na primeira parte e, na segunda, não trouxe esta
questão.
106
meio das discussões propostas na atividade. Assim, foi definido o índice 3 para o tema amor e
0 para os demais, em sua única fala.
107
Na segunda entrevista, G desenvolve suas ideias articulando questões sociais, como
preconceito e violência, à concepção do tema amor. A entrevistada revela ter sido
surpreendida pelo fato de as discussões do Projeto, para a elaboração do enredo do espetáculo,
ampliarem o conceito de amor, ao invés de restringir o seu entendimento ao caráter
romântico, “clichê”. Tal percepção se mostrou presente em diversas falas de outros
participantes. Em suas próprias palavras: “E eu achei isso interessante porque a gente trabalha
preconceito, a gente trabalha agressão”, e continua “(...) eu achei muito interessante, porque
eu achei que fosse ser uma historinha de amor clichê. Mas a gente trata de vários problemas
da sociedade”. Assim, na primeira entrevista e na última, o índice para a categoria amor foi 3.
Os temas gênero e morte não foram mencionados em nenhum momento.
Quadro 11
Análise dos temas por frequência
1ª Entrevista 2ª Entrevista
Amor A, B, E, F, G 5 A, B, D, E, G 5
Gênero B, C, D, E, H 5 B, C, D, H 4
Morte n/c 0 A, B, H 3
109
O desenvolvimento dos participantes, enquanto atores de um espetáculo de razoável
complexidade, demanda a necessidade de incorporar determinado capital cultural, objetivado
nas atividades propostas pelo Projeto. Essa incorporação de capital cultural, no que tange o
tema amor, aqui analisado, mostra um aumento do grau de letramento, pois age diretamente
na forma como estes estudantes experimentam diferentes linguagens. Trata-se de um
desenvolvimento multissemiótico amplo, típico em atividades artísticas como o teatro. E as
atividades que propiciam a ampliação do letramento, embora tenham como finalidade, na
proposta do Projeto, a apresentação do espetáculo, não se mantêm restritas a este. Assim,
estas atividades fazem com que esses jovens alcancem uma profundidade notável na
compreensão e na capacidade de articular temas atuais que permeiam vivências e relações
reais do campo social no qual estão inseridos. Os registros a seguir, acerca da análise das
entrevistas agrupada por tema, detalham as informações já expostas nos Quadros 10 e 11.
A partir das mensagens que retratam o tema amor, inferiu-se que as discussões
realizadas nos encontros anteriores à primeira entrevista já desempenharam papel importante
na reconstrução da concepção que os jovens levaram ao Projeto. Seis participantes, do grupo
de oito, estabeleceram referências do tema amor com outros elementos analisados – A, B, E,
F e G na primeira entrevista; e A, B, D, E e G na segunda.
110
relataram ter desconstruído o conceito que lhe atribuíam, senso comum reforçado por
produtos culturais contemporâneos (telenovelas, filmes, séries etc.). Uma noção definida, por
alguns deles, como ‘clichê’. Estes dados, sobre a desconstrução do tema, inferem que houve,
por meio da atividade, a elaboração de um conhecimento mais valorizado no campo cultural.
Outras reflexões, embora menos frequentes, sobre novas noções de amor e a sua
escassez nas relações cotidianas, indicam a capacidade de estabelecer associações do tema
com a realidade individual. Desconstruir conceitos, como o de amor, é um exercício
intelectual pouco explorado na escola. Entretanto, a partir do referencial teórico de Bourdieu
(1998) e da teoria do letramento, sabe-se que sua prática propicia conhecimentos importantes
ao sucesso escolar.
Nesta etapa da análise, a partir das falas dos estudantes, infere-se que a atividade
instiga a participação de cada jovem e essa, por sua vez, influencia a construção da realidade.
A capacidade de aprofundar o conhecimento sobre determinados temas ao estabelecer
relações com a própria realidade foi evidenciada nas falas de praticamente todos os
participantes, com exceção de H. Nas palavras de G: “Porque a gente fala muito sobre o
sofrimento das pessoas hoje em dia (...) realmente é a nossa realidade, de quem vive na
periferia, sabe que é difícil e que a gente sempre vai ter dificuldades”. Ao aliar os temas
desenvolvidos a questões cotidianas, os jovens se utilizam de conhecimentos, um tipo de
capital cultural, em campos simbólico e social.
Assim, estabelecer relações entre aquilo que é transmitido pela atividade e a vida
pessoal, exterior a ela, indica um aumento do volume do capital cultural que, possivelmente,
estende-se para outros espaços da comunidade. O Projeto Espetáculo atua como um capital
em seu estado objetivado que, ao promover a dupla relação estrutura/agente, compreendida a
partir da noção de habitus, passa a ser incorporado pelos participantes. C, por exemplo, relata
estar descobrindo ‘coisas’ as quais atribui grande importância, seja para a elaboração da peça,
seja para enriquecer o seu olhar em outros espaços de sua vida. Ao afirma isto, complementa
111
com a seguinte afirmação: “(...) coisas que acontecem no dia a dia e a gente também, a gente
nem passa pela nossa cabeça que acontece”. Também conta que esses aprendizados são
tratados nos encontros e discutidos ‘em roda’. Assim como G, que destaca o valor dessas
conversas com um grupo ao qual se identifica, em sua fala: “E é bom trabalhar isso em grupo,
e principalmente em grupos de pessoas com a nossa idade, que pensam mais ou menos igual”.
Os estudantes C e H não mencionaram o tema amor em suas falas. Por outro lado,
discorreram sobre a questão do gênero estabelecendo relações, de significativa complexidade,
com o livro “Grande Sertão: Veredas” (C e H), aspectos do próprio cotidiano (C), o
assassinato da transexual Dandara e questões sociais (H). Cada participante abordou
elementos do espetáculo que mais lhe chamaram a atenção, por identificação ou outros
fatores. Importante retomar que citar ou não determinado tema não infere grau de
conhecimento. A partir da entrevista não diretiva, os participantes foram orientados a falar
livremente, sem instigar quaisquer aspectos específicos da pesquisa.
112
concernentes a questões sociais. Os entrevistados B e H também se referiram ao conceito de
androgenia para articular seus argumentos. É interessante notar que a ampliação do
vocabulário utilizado pelos jovens é um indicador do aprofundamento que alcançam de
determinados temas. Ou, ainda, aprofundar um conhecimento favorece a ampliação do
vocabulário. Esta é uma questão que destaca, um aumento no nível de letramento ocasionado
pelas participações e reflexões propostas na oficina.
Nesse sentido, pôde-se verificar, explícito nas falas dos entrevistados, o potencial do
Projeto em despertar uma visão crítica nos participantes a respeito de questões sociais da
contemporaneidade. Trata-se de capitais cultural e social, apreendidos por meio de uma
atividade de letramento não escolar.
O último tema avaliado é morte. Este, dentre as três categorias de análise, é o que
menos aparece. Entretanto, foi igualmente central no espetáculo apresentado ao final do
Projeto. As entrevistas evidenciaram que as discussões e outras atividades, como a visita ao
cemitério, que incitaram reflexões acerca da morte, tiveram início pouco antes da realização
da segunda etapa.
Outros temas surgiram nas falas, tais como: quilombo, utopia e arcádia. Este último,
como já observado, apesar de ter sido apresentado na proposta inicial do Projeto para 2017,
não ganhou força ao longo do processo de criação do espetáculo. Logo, não apareceu de
modo relevante nas entrevistas. Os outros dois temas, quilombo e utopia, tampouco foram
114
recorrentes nas respostas analisadas. Ainda assim, suas menções mostram a ampliação do
vocabulário e/ou a aquisição de novos conhecimentos, o que certamente gera a incorporação
de novos capitais culturais e que são essenciais ao processo de letramento desses jovens.
Algumas obras, destacadas por Eder Lopes como referências para o desenvolvimento
do Projeto 2017, não apareceram nas falas dos participantes. São elas: “Albertina
Desaparecida”, de Marcel Proust; “O Jardim das Delícias Terrenas”, de Hieronymus Bosch; e
“O Conto Maravilhoso da Terra da Cocanha”, dos irmãos Grimm. Isto, contudo, não infere
grau de conhecimento, por ter se tratado de uma entrevista não diretiva, em que os jovens
foram orientados a falar livremente, sem instigar quaisquer conteúdos objetivos. É possível
supor, entretanto, que estas obras não foram discutidas, de modo central, no período da coleta
dos dados pesquisados. Por outro lado, sabendo-se que, à época da segunda entrevista, havia
ainda quatro meses para a conclusão do Projeto, não se pode afirmar que as obras não foram
utilizadas durante a concepção do espetáculo.
O uso do livro “Grande Sertão: Veredas”, por si só, como elemento para a construção
da narrativa na atividade, já representa oferta de capital cultural em seu estado objetivado. E é
evidente, nas falas dos participantes, a compreensão adquirida acerca do enredo e de
características dos personagens centrais à trama. Isto indica que a proposta do Projeto
Espetáculo, por meio das discussões, vivências e outras atividades, estimula a apropriação de
conhecimentos complexos, o que favorece a incorporação desse bem cultural.
A análise de cada tema, a partir da totalidade das respostas obtidas, forneceu dados
importantes à pesquisa. Dentre as três categorias definidas para a análise, amor e gênero
apresentaram maior frequência. Seis participantes fizeram, pelo menos, uma menção à
temática do amor, e, quanto a do gênero, cinco. Na segunda etapa das entrevistas, cinco
participantes contemplaram o tema amor em suas falas, enquanto quatro contemplaram
gênero. A categoria amor, entretanto, recebeu, maior número de classificações com o índice
superior, 3. Com exceção de uma mensagem (agente A, na segunda entrevista), as referências
ao amor foram aprofundadas por meio de associações com diferentes elementos em ambas as
etapas. O agente A, contudo, que apenas mencionou o tema na segunda etapa, estabeleceu, na
entrevista inicial relações com o caso de Dandara, sua realidade e o conceito de arcádia.
Portanto, todos os cinco estudantes que contemplaram a categoria amor em suas falas
desenvolveram algum grau de aprofundamento do tema (Quadros 10 e 11, já apresentados, e
Quadro 12, abaixo).
115
Quadro 12
Análise dos temas por relações de aprofundamento
1ª Entrevista 2ª Entrevista
Só menção A B A
Livro B, E, F B, C, H D, G C, D
Dandara A, B B, D, E, H H
Cemitério B, H
Cotidiano A, B, F, G C, D B, D, E B
Outras A, E, F, G G H H
Nº AGENTES 5 5 0 5 4 3
Obs.: as letras representam os agentes da pesquisa e indicam a partir de quais elementos estabeleceram
relações de aprofundamento com cada tema analisado.
A análise geral das entrevistas (Quadro 10) mostra que a categoria amor foi, na
primeira etapa das entrevistas, classificada com o índice superior, 3, nas falas de cinco
agentes, e, na segunda etapa, nas falas de três. Quatro participantes obtiveram o índice 3 para
a categoria gênero na análise da primeira entrevista, e apenas um deles recebeu este índice na
segunda. O índice 2, que também indica o aprofundamento dos temas, neste caso, por meio da
associação com apenas um outro elemento, foi atribuído às mensagens de dois agentes na
segunda entrevista, tanto em relação ao tema amor, como gênero. E, na primeira entrevista, a
um agente, em sua articulação acerca do tema gênero.
116
Em suas falas, os participantes revelam o valioso papel do Projeto Espetáculo na
apreensão e no aprofundamento de novos conhecimentos. Alguns deles manifestam esta
percepção conscientemente nas entrevistas realizadas, como G, que diz: “(...) a gente tem
estudado alguns livros e algumas coisas para a construção da peça e tem sido muito bom
porque a gente aprende coisas que a gente vai levar para a vida inteira”.
Com a categoria morte, por exemplo, ocorreu o contrário. Na primeira entrevista não
houve qualquer menção ao tema. Ao passo que, na segunda entrevista, três agentes
contemplaram questões sobre a morte e, dois deles, com índice superior de aprofundamento,
3. A visita ao cemitério, vivenciada e discutida por intermédio das atividades do Projeto,
mostrou-se determinante nas reflexões dos agentes B e H, acerca da morte.
117
Portanto, a verificação das hipóteses levantadas para esta pesquisa se deu a partir da
análise das categorias, observadas na singularidade de cada entrevista. Assim, as falas dos
participantes evidenciam que a atividade promovida pelas Fábricas de Cultura oferta um
conhecimento distinto daquele transmitido, tradicionalmente, pela escola. Favorece o aumento
de capital cultural e a superação de déficits do capital cultural incorporado, da herança
cultural comum à população estudada. Além de facilitar o acesso de moradores dos distritos
da periferia da cidade de São Paulo a bens culturais, capital cultural em seu estado objetivado,
escassos nestas regiões e de suma importância, tanto para o letramento quanto àquilo que
Bourdieu define como sucesso escolar.
118
III. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A forma como a instituição escolar lida, por exemplo, com a linguagem, determina
tal distanciamento. Novas formas de uso da língua, da escrita e da leitura, que podem
favorecer o processo de letramento, permanecem marginais às propostas escolares, sobretudo,
na rede pública de ensino. Práticas de letramento não escolarizadas, locais e multissemióticas,
por vezes estão subjugadas devido ao meio em que ocorrem. As novas ferramentas
tecnológicas, a formação espontânea de expressões culturais na periferia, dentre outros,
geralmente, são vistos erroneamente como práticas que não valorizam o letramento, portanto,
um capital cultural de baixo valor.
119
O Estado, a partir de políticas públicas, pode - e deve - intervir no campo social e
cultural, além do econômico. Assim, a pesquisa concluiu que iniciativas sociais e culturais,
como o Projeto Espetáculo das Fábricas de Cultura, têm a capacidade de ofertar capitais
culturais essenciais ao letramento dos participantes. Atividades como essas, desenvolvidas
dentro ou fora do ambiente escolar, nas regiões periféricas e mais vulneráveis da cidade de
São Paulo, são potencialmente capazes de melhorar a distribuição de capitais cultural e social,
contribuindo ao letramento dos estudantes do ensino público brasileiro. A identificação
fomentada por uma apropriação de bens culturais locais, certamente, funciona em prol da
capacidade letradora da escola. Quando esta desenvolve bens culturais extrínsecos à educação
tradicional, e práticas de letramento não escolarizadas, incita o estudante a trabalhar a
linguagem (seja oriunda do cotidiano e do ambiente familiar ou a linguagem considerada
culta), nos mais diversos meios sociais.
A identificação desses jovens com os ambientes que ocupam e na relação entre eles
(escola, Fábricas de Cultura, família etc.) também foi levada em consideração para justificar o
Projeto como uma política pública que dialoga com a instituição escolar. Isto porque ficou
perceptível na pesquisa realizada a forma como os jovens criam suas identificações e as
utilizam como ferramentas para absorver e incorporar capitais culturais importantes ao
letramento.
Os resultados que revelam a relação que esses jovens estabelecem entre os temas
propostos e espaços exteriores ao espetáculo evidenciam uma incorporação de capital cultural
necessária à dimensão social do letramento. Também foi conclusivo que os estudantes
puderam ampliar concepções prévias e compreender melhor diversos temas, o que aponta a
dimensão individual do letramento. Trata-se de habilidades e capacidades específicas de
120
compreensão de textos, leitura, vocabulário, capacidade interpretativa, recriação de
personagens e enredo, dentre outras.
Com o aporte de dados estatísticos da cidade de São Paulo, tais como o IVJ 2000, o
IDH e outros índices consultados na plataforma ObservaSampa, a pesquisa ressaltou a
importância de se investir em projetos atuantes no campo cultural. Introduzir o conceito de
capital social trouxe, também, uma contribuição no sentido de concluir o trabalho afirmando a
121
necessidade de criação e manutenção de espaços que aumentam as redes de relações socais
desses jovens, numa perspectiva cultural. Os equipamentos culturais são ferramentas
importantes para a redução dos abismos sociais da realidade brasileira.
122
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129
ANEXO I – Termo de consentimento livre e esclarecido
Eu, _____________________________________________________________,
portador do documento de identidade RG nº ____________________, responsável pelo
aluno(a) _______________________________________________________________, fui
informado(a) dos objetivos do estudo de maneira clara e esclareci minhas dúvidas. Sei que a
qualquer momento poderei solicitar novas informações e modificar minha decisão de
participar se assim for meu desejo.
Declaro que concordo com a participação de meu filho(a) nesse estudo. Recebi uma
cópia deste termo de consentimento livre e esclarecido e me foi dada a oportunidade de ler e
esclarecer as minhas dúvidas.
_________________________
Assinatura do responsável
130
ANEXO II - Questionário socioeconômico
QUESTIONÁRIO SOCIOECONÔMICO
21. Quais atividades culturais você mais gosta? (pode escolher mais de uma resposta)
( ) cinema
( ) teatro
( ) museu/exposições
( ) show
( ) assistir a jogos de futebol no estádio
( ) assistir a outros esportes no campo/na quadra
22. De modo geral, com que frequência você faz as atividades marcadas acima?
( ) semanal ( ) quinzenal ( ) mensal ( ) semestral ( ) anual ( ) nunca
132
24. Onde você encontra livro, jornal e/ou revista: (pode escolher mais de uma resposta)
( ) em casa
( ) na escola
( ) na Fábrica de Cultura
( ) em biblioteca pública
( ) outro lugar – Onde? ______________________________
30. Por que você veio para o Fábricas de Cultura? (pode escolher mais de uma resposta)
( ) decisão pessoal ( ) indicação dos pais
( ) indicação da escola ( ) outro motivo – Qual? _____________
32. Indique o grau de importância de cada motivo abaixo para participar do Projeto
Espetáculo (sendo 0 = nenhuma importância e 5 = maior importância):
Interesse pelas artes do teatro ....................................................... ( 0 – 1 – 2 – 3 – 4 – 5 )
Ser um profissional das artes do teatro ......................................... ( 0 – 1 – 2 – 3 – 4 – 5 )
Falar melhor em público/ controlar a timidez .............................. ( 0 – 1 – 2 – 3 – 4 – 5 )
Influência de amigos e/ou parentes ............................................... ( 0 – 1 – 2 – 3 – 4 – 5 )
Curiosidade ................................................................................... ( 0 – 1 – 2 – 3 – 4 – 5 )
Preencher o tempo livre ................................................................ ( 0 – 1 – 2 – 3 – 4 – 5 )
Outro – Especificar: _________________________________ ... ( 0 – 1 – 2 – 3 – 4 – 5 )
133
ANEXO III – Entrevistas (respostas e quadros de análise)
AGENTE A
1ª Entrevista 2ª Entrevista
Amor Gênero Morte Amor Gênero Morte
Só menção X X
Livro
Dandara X
Cemitério
Cotidiano X
Outras X
Índice 3 0 0 1 0 1
R. 1: “Então... A gente está falando muito sobre, a gente está discutindo muito sobre a
questão da reconstrução da arcádia através do amor e etc. E uma das discussões, uma das
coisas que a gente está levando muito em conta é um dos acontecimentos que levaram a gente
a construir essas primeiras cenas do primeiro semestre, que foi a morte da Dandara, de uma
travesti. A gente fala sobre a questão de não ter tido amor, e tal, e muitas pessoas não terem
ajudado ela. E... Eu acho que é isso. A questão que a gente está discutindo muito é o amor,
está também desconstruindo essa coisa de conto de fada, de amor, e está desconstruindo o
tema inteiro para depois conseguir chegar num bom senso. E é isso.”
134
R. 2: “Então, acho que a desconstrução do tema foi o que me chamou mais a atenção
porque a gente não focou só no amor nas arcádias da Paulicéia, né. A gente desconstruiu o
tema inteiro para depois surgir nele e conseguir, tipo, entender ele realmente. Porque é muito
complexo, tipo, os contos e os livros que ele falou pra gente, mostrou e tal. Então, tipo, a
desconstrução do tema acho que foi o mais importante e o que eu achei mais interessante.
Porque, aí, levou a gente para outros caminhos também. E agora, principalmente, que a gente
está falando sobre morte e vida. Então a desconstrução foi a parte mais importante para mim.”
AGENTE B
1ª Entrevista 2ª Entrevista
Amor Gênero Morte Amor Gênero Morte
Só menção X
Livro X X
Dandara X X
Cemitério X
Cotidiano X X X
Outras
Índice 3 3 0 2 1 3
R. 1: “Eu acho um tema muito interessante porque o amor, a gente começou o ano
pensando que seria, tipo, ah, fazer casalzinho e... (risos). Só que a gente está se aprofundando
muito nesse tema e a gente vê que é muito mais do que isso. Que a gente está trabalhando
muitas coisas, tipo, sobre LGTB são espancados, sobre o amor por si próprio, vários tipos
assim. E eu estou achando um tema muito interessante. A gente está também vendo sobre
livros. Tipo, a gente está se inspirando no Grande Sertão: Veredas, que é um livro muito bom.
Eu não li, mas dei uma folheada. E... Não sei muito o que falar (risos).” O que você lembra
sobre o Grande Sertão: Veredas? “Ah, eu li um pouco do resumo, assim, eu dei umas
folheadas. Mas, é... Sobre a história lá de Diadorim e Riobaldo, que o Diadorim se vestia de
homem e ia para a guerra, sei lá. Aí ele acabou morrendo e o Riobaldo acabou se apaixonando
por ele, que, no caso, seria ela. E é uma história muito bonita, quero muito ler, assim, inteira.
A gente também, no início do ano, trabalhou umas cenas sobre isso, criando uma arcádia e lá
tinha Diadorim. Diadorim era tipo um símbolo, uma busca que a gente tinha que encontrar.”
135
Tem mais alguma coisa que te chama a atenção no Projeto, dentro desse tema? “Não (risos). É
que eu sou um pouco tímida e eu tenho, eu não consigo expressar muito o que eu falo.”
R. 2: “Então, nesses últimos meses a gente está falando muito sobre a morte. É um
assunto muito delicado. A gente foi fazer uma visita no cemitério recentemente, no sábado. E
é um assunto que engloba muita coisa, tipo, tem várias razões pela qual você pode morrer,
pela qual você pode, tipo, se entregar para a morte e um conjunto morrer, sei lá, um monte de
coisa. E é um assunto muito delicado. E me chama muito a atenção também. E a gente está
falando sobre androgenia. Eh... Ah, lá vai me dar branco (risos)! Eh... Sobre o amor também,
de todas as maneiras, entra a amizade, tipo, o amor em si mesmo, sobre você mesmo. E a
gente usa muito poemas. Eu trago, eu gosto de trazer muitos poemas porque me inspiram
muito para fazer as coisas. E a gente tem usado muito como base o texto mesmo que o
dramaturgo trouxe. Eh... E também o Grande Sertão: Veredas, obviamente.”
AGENTE C
1ª Entrevista 2ª Entrevista
Amor Gênero Morte Amor Gênero Morte
Só menção
Livro X X
Dandara
Cemitério
Cotidiano X
Outras
Índice 0 3 0 0 2 0
R. 1: “Estamos trabalhando sobre o livro Grande Sertão: Veredas, que conta sobre a
história de Diadorim, de Riobaldo. Que Diadorim era uma moça que se vestia de homem. E...
O que está me chamando muito a atenção é a questão dos gêneros, que é uma coisa que a
gente está trabalhando muito. E eu estou descobrindo coisas que eu também eu não sabia, e
isso está sendo muito importante porque eu estou tendo ideias de como trazer coisas para as
cenas, coisas que acontecem no dia a dia e a gente também, a gente nem passa pela nossa
136
cabeça que acontece. E a gente discute isso em roda. Então está sendo uma coisa muito, não
só nova para mim no teatro, como enxergar melhor as coisas lá fora, em tudo. E é uma das
coisas que a gente está trabalhando bastante que está me chamando muito a atenção.”
AGENTE D
1ª Entrevista 2ª Entrevista
Amor Gênero Morte Amor Gênero Morte
Só menção
Livro X X
Dandara X
Cemitério
Cotidiano X X
Outras
Índice 0 3 0 3 2 0
137
R. 2: “O tema amor é um pouco difícil de trabalhar, confesso, porque a gente quer
fugir desse negócio de clichê. Aí, às vezes a gente volta para isso. Mas, tipo, eu estou
gostando de trabalhar com o tema ‘amor’ porque eu fui prestar atenção e o amor está em tudo.
Assim, né... A gente é envolvido pelo amor. E eu estou gostando muito de trabalhar. E o que
mais me chamou a atenção foi o livro, o conto. Do... Qual é o nome mesmo? Que tem o... Não
sei. A gente está trabalhando em cima de um livro que tem o Orlanti, Mona Lisa. Não sei. Eu
esqueci, na verdade. Mas, tipo, é um livro de um conto bastante famoso, que ele é bem
grosso, que fala, assim, sobre... Não sei. É um casal, que a mulher se transveste. É meio, é um
amor andrógeno. E eu estou gostando muito. E é isso!” Se quiser acrescentar mais alguma
coisa “Ah, eu não sei o que eu acrescento, só sei dizer que eu fui prestar mais atenção, me fez
prestar mais atenção no amor. Eu acho... É, é uma forma de... E amor não é só isso, tipo, a
gente fala só de amor carnal, entre homem e mulher. Mas a gente está falando também de
amor de toque, de... Amor de estar com as pessoas e essa energia boa. Eu gosto bastante desse
tema.”
AGENTE E
1ª Entrevista 2ª Entrevista
Amor Gênero Morte Amor Gênero Morte
Só menção
Livro X
Dandara X
Cemitério
Cotidiano X
Outras X
Índice 3 2 0 2 0 0
R. 1: “No começo, eu achava que era um clichê, tipo Romeu e Julieta. Só que depois
eu percebi que era um tema muito legal, como uma utopia. Os diretores, os dramaturgos,
incentivaram bastante falando da arcádia, que era como se fosse uma utopia. Eles indicaram
até o livro O Sertão, de Brás... Não sei. Éh... Fala da vida de Diadorim, Riobaldo e esse amor
que elas tinham. Também fala do Muriquinho e de Dandara, que foi a travesti espancada. E
esse ano eu espero que seja uma peça muito boa, com esses temas que são bastante fortes.”
138
R. 2: “Eu acho o tema muito forte, só que tem que tomar muito cuidado para não virar
um amor clichê. E é isso que a gente está trabalhando nesse, nos encontros em geral. Mas é
um tema muito forte e muito pesado que, se a gente conseguir fazer, estudar bastante o
material, vai ficar uma peça maravilhosa.” Você se lembra de alguns detalhes do que foi
discutido, as referências que vocês usaram? “Diadorim, Mona Lisa e Orlanti. Essas são as
principais inspirações que a gente está tendo. Quilombo também. A gente está tendo muito
desses tipos de inspirações.”
AGENTE F
1ª Entrevista
Amor Gênero Morte
Só menção
Livro X
Dandara
Cemitério
Cotidiano X
Outras X
Índice 3 0 0
R. 1: “Então, eu acho o assunto bem interessante. Amor, né. Amor, porque, no caso,
quando eu entrei, eu falei Ah! É aquela coisa romântica, né. Mas, não. Com o tempo, nesse
segundo mês, eu descobri muita coisa. Que amor pode ser afeto, assim, sabe, não aquela coisa
clichê do romantismo e tudo mais. E isso que me interessou bastante. Também sobre a
arcádia, eu descobri o mundo imaginário, e tal. E também tem um livro, que eu ainda
pretendo ler, pra, né, saber mais sobre o conteúdo. E tem os diários de bordo, que ajuda muito
na criação com o dramaturgo, com o diretor.” Os diários de bordo são os diários que vocês
escrevem depois dos encontros? “Sim, que até ajuda o dramaturgo a fazer, escrever a peça.
Que a gente ajuda, a gente tem a nossa ideia. E é isso. É uma experiência muito interessante.”
Você falou dos livros, que você ainda não leu, pode citar estas referências? “É do Guimarães
Rosa, o... Esqueci o nome... Sertão... Vere... Ah! Desculpa. É um livro muito grosso, com
muitas páginas. Desculpa, realmente esqueci.”
139
R. 2: (Participante deixou de frequentar o Projeto Espetáculo, por isso a segunda parte
da entrevista não foi realizada)
AGENTE G
1ª Entrevista 2ª Entrevista
Amor Gênero Morte Amor Gênero Morte
Só menção
Livro X
Dandara
Cemitério
Cotidiano X
Outras X X
Índice 3 0 0 3 0 0
R. 1: “Então, a gente tem trabalhado bastante sobre os temas atuais. Então, o amor que
a gente trata é, não seria bem o amor em si, mas a falta dele. Porque a gente fala muito sobre o
sofrimento das pessoas hoje em dia. E eu acho que isso está sendo muito interessante porque
realmente é a nossa realidade, de quem vive na periferia, sabe que é difícil e que a gente
sempre vai ter dificuldades. E é bom trabalhar isso em grupo, e principalmente em grupos de
pessoas com a nossa idade, que pensam mais ou menos igual. Então está sendo muito legal. E
a gente tem estudado alguns livros e algumas coisas para a construção da peça e tem sido
muito bom porque a gente aprende coisas que a gente vai levar para a vida inteira.”
R. 2: “Então, o tema é ‘Amor nas Arcádias de Paulicéia’, mas a gente não trabalha
tanto o amor. E eu achei isso interessante porque a gente trabalha preconceito, a gente
trabalha agressão. E tudo, querendo ou não, se encaixa. E eu achei muito interessante, porque
eu achei que fosse ser uma historinha de amor clichê. Mas a gente trata de vários problemas
da sociedade, e eu acho isso muito bom. E a gente usa como base alguns livros, como a gente
usou Grande Sertão: Veredas no começo, e a gente tem usado alguns, alguns livros e algumas
obras que o diretor traz e os outros educadores. E é isso.”
140
AGENTE H
1ª Entrevista 2ª Entrevista
Amor Gênero Morte Amor Gênero Morte
Só menção
Livro X
Dandara X X
Cemitério X
Cotidiano
Outras X X
Índice 0 3 0 0 3 3
R. 1: “Bom, a gente está trabalhando sobre Diadorim, que foi também uma
intervenção de algum travesti, alguma coisa relacionada ao gênero. E a gente está também
trabalhando sobre o fato recente da travesti espancada, a Dandara. A gente está trabalhando o
contexto dela, que ela foi espancada por 12 agressores, e gravaram isso, e a pessoa, ao invés
de gravar, ela, quer dizer, ao invés dela ajudar, ela acabou gravando aquilo. E... Foi um fato
ocorrido no Ceará, e, a Dandara, a gente resolveu acolher ela como personagem. E... É um
trabalho que conscientiza, né, as pessoas contra o preconceito. E... É um Projeto maravilhoso.
E... Acho que vai ajudar bastante, assim, as pessoas a se conscientizar do preconceito.”
R. 2: “Então, a gente está trabalhando sobre... Eh... Androgenia. Eh... Sobre... Eu não
sei explicar, é algo muito, sabe, que está se misturando vários, diversos temas que são
discutidos pela sociedade. A gente está juntando tudo e transformando numa coisa só. Como...
Eh... Travestis que sofreram linchamento. Eh... Que mais?... A gente também está trabalhando
sobre o livro do Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, alguma coisa assim. Eu não sei
muito bem. Mas... E a gente está tentando buscar, e agora, isso foi o tema passado, e agora a
gente está se aprofundando mais no tema de morte, que é como as culturas, diversas culturas
lidam com a morte e como a gente pode lidar com isso. É isso que a gente está trabalhando. E
esses dias aí, acho que foi no sábado, a gente foi no cemitério para descrever o que mais
chamou a atenção no cemitério. Que o cemitério é aqui do lado, por isso que a gente está se
aprofundando em morte, por causa que o cemitério é do lado da Fábrica. Então a gente está
141
aprofundando nesse assunto. E está sendo muito legal trabalhar com isso, que aí a gente está
unindo tudo e transformando numa coisa só.”
142
ANEXO IV – Mapa: Grupos de vulnerabilidade juvenil
Escala de vulnerabilidade
Grupo 2: de 22 a 38 pontos
Grupo 3: de 39 a 52 pontos
Grupo 4: de 53 a 65 pontos
143