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ANÁLISE DE POEMAS DE ÁLVARO DE CAMPOS

FASE DECADENTISTA

Opiário

Ao Senhor Mário de Sá-Carneiro

É antes do ópio que a minh' alma é doente.


Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.

Esta vida de bordo há-de matar-me.


São dias só de febre na cabeça
E, por mais que procure até que adoeça,
Já não encontro a mola pra adaptar-me.

Em paradoxo e incompetência astral


Eu vivo a vincos de ouro a minha vida,
Onda onde o pundonor é uma descida
E os próprios gozos gânglios do meu mal.

É por um mecanismo de desastres,


Uma engrenagem com volantes falsos,
Que passo entre visões de cadafalsos
Num jardim onde há flores no ar, sem hastes.

(excerto)

Linhas de Leitura

 A nostalgia do além, sugerida pelas referências ao Oriente, traduzem a saturação ou a incapacidade de


integração na civilização ocidental e remetem o sujeito poético para um estado de divagação alienante e
um pessimismo desistente.

«Eu acho que não vale a pena ter ido ao Oriente e visto a índia e a China.»
«Volto à Europa descontente...»

 A evasão através do sonho, da evocação de espaços irreais ou inexistentes, é alternada pela procura de
sensações novas e extremas que só a embriaguez do ópio pode proporcionar. No entanto, a falta de
vontade e de energia interior parecem anular qualquer solução que este pudesse representar.

«E eu vou buscar ao ópio que consola / Um Oriente...»


«Por isso eu torno ópio. É um remédio.»
«Qu' ria outro ópio mais forte...»

 O tédio, o cansaço, a apatia, a descrença e a morbidez do sujeito poético traduzem a sua incapacidade
de viver a vida, a inércia perante uma existência anuladora e monótona.

«...a minh' alma é doente.»


«Trabalhei para ter só o cansaço...»
«E a minha mágoa de viver persiste.»
«E ver passar a vida faz-me tédio.»
«Não tenho personalidade alguma.»

 A náusea e a demissão da vida, que marcam a poesia decadentista, representam também o assumir de
um fracasso pessoal.
«…isto acaba mal e há-de haver (...) sangue e um revólver lá pró fim...»
«Deixe-me estar aqui, nesta cadeira, / Até virem meter-me no caixão.»

Recursos expressivos

 A atitude irónica ou sarcástica:

«Nasci pra mandarim de condição, / Mas falta-me o sossego, o chá e a esteira.»


«Quantos sob a casaca característica / Não terão como eu horror à vida?»

 O vocabulário entre precioso e banal:

«Em paradoxo e incompetência astral.»


«...os próprios gozos gânglios do meu mal.»
«O comissário de bordo é velhaco! Viu-me coa sueca...»
«Que um raio as parta!»

 As imagens e os símbolos:

«Um Oriente ao Oriente do Oriente.»


«...vincos de ouro...»
«...minha vida, cânfora na aurora.»
«O absurdo, como uma flor da tal índia...»

FASE FUTURISTA / SENSACIONISTA

Ode Triunfal

À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica


Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r eterno!


Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical -


Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força -
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro -
Porque o presente é todo o passado e o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro de Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.
Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!

(excerto)

Linhas de Leitura

IMPORTÂNCIA DO TÍTULO

A palavra ode, de origem grega, significa cântico laudatório ou de exaltação de uma pessoa, instituição
ou acontecimento. Com o epíteto de Triunfal, pretendeu o poeta não só vincar, mas também
hiperbolizar o significado de ode, apontando para qualquer coisa de grandioso, não apenas no conteúdo,
mas também na forma, imprimindo-lhe uma sugestão de força ou exagero, em nítida coerência com a
estética do Futurismo / Sensacionismo.

ASSUNTO

Sob influência de Marinetti e Walt Whitman, a Ode Triunfal canta o triunfo da técnica, as máquinas, os
motores, a velocidade, a civilização mecânica e industrial, o comércio, os escândalos da
contemporaneidade... Sentir tudo de todas as maneiras é o ideal esfuziantemente revelado pelo sujeito
poético, sentir tudo numa histeria de sensações, que lhe permitam identificar-se com as coisas mais
aberrantes («Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!/ Ser completo como uma
máquina!»).

DESENVOLVIMENTO DO ASSUNTO

A exaltação da civilização moderna

O poema começa com uma estranha iluminação de lâmpadas eléctricas. Despertando em sobressalto e
em sonhos febris, o sujeito poético reconhece-se transportado para o meio de uma fábrica em
actividade. O homem adoentado, enfraquecido pela febre, exposto a estes barulhos, é subitamente
arrebatado pelas oscilações dos motores e a sua cabeça abrasada começa a vibrar também. Diante dos
seus olhos acumula-se uma multiplicidade de impressões e todos os seus sentidos estão despertos:
«Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos, / De vos ouvir demasiadamente perto, / E arde-me a
cabeça de vos querer cantar com um excesso / De expressão de todas as minhas sensações...».
A fábrica aparece então como motivo inspirador para a homenagem a esta civilização moderna, que
submerge o eu poético, nevrótico e fragilizado («tenho febre»; «fúria fora e dentro de mim», «meus
nervos», «arde-me a cabeça»). É este universo de «lâmpadas eléctricas», «rodas», «engrenagens»,
«máquinas», «correias de transmissão», «êmbolos» e «volantes» que o faz sentir-se simultaneamente
incomodado e atraído pela ruidosa dinâmica dos «maquinismos em fúria».

A vertigem das sensações

Estabelecendo com esta «flora estupenda, negra, artificial e insaciável» uma ligação eufórica e
exaltada, o sujeito poético deixa-se seduzir vertiginosamente por um excesso de sensações que mal tem
tempo de fixar na sua «mente turbulenta e encandescida». Sente-se arrebatado por um universo, onde a
velocidade, a força e o progresso têm expressão e, por isso, confessa: «Nem sei se existo para dentro.
Giro, rodeio, engenho-me. / Eia! sou o calor mecânico e a electricidade!». A violência de sensações fá-lo
desejar «ser toda a gente e toda a parte» e limitar a si próprio e ao gozo do instante qualquer noção de
temporalidade («O Momento estridentemente ruidoso e mecânico....»).

A temporalidade unificada

O fulcro do tempo é, assim, o presente, o instante em que o sujeito poético se mostra permeável a todos
os estímulos da civilização mecânica e industrial, porque o presente é uma síntese do passado e do
futuro («Porque o presente é todo o passado e todo o futuro...»; «Eia todo o passado dentro do
presente! / Eia todo o futuro já dentro de nós!»).

A atracção erótica pelas máquinas

Esta visão excessiva e intensa do real provoca no sujeito poético um estado de quase alucinação,
marcadamente sensual: «Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.»; «Poder
ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,/ Rasgar-me todo, abrir-me completamente...»; «Amo-
vos carnivoramente,/ Pervertidamente...»; «Possuo-vos como a uma mulher bela...». Esta paixão quase
erótica pelas máquinas e este entusiasmo pela civilização moderna assume aspectos de um certo
masoquismo sádico, que inspira no sujeito poético sensações novas e violentas, experimentadas até ao
histerismo: «Atirem-me para dentro das fornalhas! / Metam-me debaixo dos comboios! / Espanquem-me
a bordo de navios! / Masoquismo através de maquinismos!».
Não é estranha, por isso, não só a tendência do sujeito poético para humanizar as máquinas («Forte
espasmo retido dos maquinismos em fúria!»; «Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força...»),
como também a tentativa de ele próprio se materializar, ou tornar-se parte delas: «Ah, poder exprimir-
me todo como um motor se exprime! / Ser completo como uma máquina!»; «Rugindo, rangendo,
ciciando, estrugindo, ferreando...».

A denúncia social

Convém registar ainda que a força e a agressividade do sujeito poético são permanentemente quebradas
pela evocação irónica do reverso da medalha da civilização industrial: a desumanização («Progressos dos
armamentos gloriosamente mortíferos!»; «...injustiças, violências...»), a hipocrisia e a futilidade («...ó
grandes, banais, úteis, inúteis, / Ó coisas todas modernas...»), a corrupção, os escândalos políticos e
financeiros («Orçamentos falsificados!»; «Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos...»), os
falhanços da técnica («Eh-lá grandes desastres de comboios! / Eh-lá desabamentos de galerias de
minas!»), a miséria e a devassidão das multidões («Maravilhosa gente humana que vive como cães, / Que
está abaixo de todos os sistemas morais...»).
A aguda sensibilidade do sujeito poético revelada na denúncia do lado negativo e desumano da
civilização moderna é uma atitude literária, em que a perfeição e a força das máquinas parecem ser,
afinal, compensações para os seus próprios fracassos e para a sua inadaptação, que irão marcar a última
fase poética de Álvaro de Campos.

Recursos expressivos

O estilo vagabundo, paradoxal e vertiginoso deste heterónimo traduz a expressão desmedida de


sensações desmedidas. À convulsa avalanche do pensamento sensacionista, corresponde a vertigem de
um estilo caudaloso, torrencial e aparentemente caótico. O poema constitui, por isso, uma ruptura com
a lírica tradicional, como o confirmam os seguintes aspectos:
- a irregularidade estrófica, métrica e rimática, que resulta num ritmo irregular e nervoso;
- a presença de alguns desvios sintácticos («..fera para a beleza disto...»; «Por todos os meus nervos
dissecados fora...»);
- a frequência das expressões exclamativas que sublinham a emoção do sujeito perante os fenómenos da
vida moderna;
- as repetições, as enumerações e as onomatopeias que constituem um processo retórico aparentemente
caótico que se destina a esgotar a expressão, num estilo torrencial, em catadupa;
- o recurso a palavras desprovidas de carga poética e de índole técnica;

As metáforas e as imagens deste texto evidenciam a íntima relação do sujeito poético com o mundo
mecânico e industrial, permitindo até a sua plena integração na civilização moderna («E arde-me a
cabeça...»; «...Natureza tropical...»; «Pervertidamente enroscando a minha vista...»; «Grandes trópicos
humanos de ferro e fogo e força...»; «E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes
eléctricas...»);

As enumerações traduzem o frenético desejo do sujeito poético de sentir tudo de todas as maneiras,
registando de forma aparentemente caótica as sensações que experimenta («Desta flora estupenda,
negra, artificial e insaciável!»; «Eh, cimento armado, betão de cimento, novos processos!»).
As anáforas expressam a sucessão caótica dos fenómenos da civilização industrial, permitindo ao sujeito
poético acompanhar o seu ritmo alucinante e vigoroso («Por todos os meus nervos (...) Por todas as
papilas...»; «Poder ir na vida triunfante (...) Poder ao menos penetrar-me...»; «Ó coisas todas
modernas, / Ó minhas contemporâneas...» );

Os neologismos («parte-agente»; «quase-silêncio») e os estrangeirismos («music-halls»; «Luna-Parks»;


«rails») traduzem a ligação do sujeito poético às inovações da modernidade e à universalidade do
progresso técnico, assim como o vocabulário de carácter técnico («motores»; «fornalhas»; «guindastes»;
«êmbolos»);

A adjectivação traduz o excesso de sensações que dominam o sujeito perante a modernidade («flora
estupenda, negra, artificial e insaciável»; «promíscua fúria»; «rodar férreo e cosmopolita»; «giro lúbrico
e lento»; «quase-silêncio ciciante e monótono»);

Os advérbios de modo evidenciam a atracção erótica e carnal do sujeito pelas máquinas e pela
modernidade («demasiadamente»; «carnivoramente»; «pervertidamente»); As interjeições confirmam o
louvor do sujeito poético à civilização mecânica e a sua contínua agitação («Ó fábricas, ó
laboratórios...»; «Eh-lá hô fachadas das grandes lojas!»; «Eia túneis...»; «Ah, poder exprimir-me...);

As onomatopeias sugerem a tentativa do sujeito poético de imitar os sons ruidosos das máquinas,
exprimindo assim o barulho e a velocidade estonteantes da vida moderna («r-r-rr»; «Hup-lá, hup-lá, hup-
lá-hô»; «z-z-z-z-z-z-z»);

As apóstrofes confirmam o estilo laudatório do poema e a exaltação da civilização industrial («Ó rodas, ó
engrenagens...»; «Ó fazendas nas montras! Ó manequins!»), tal como as exclamações («Forte espasmo
retido dos maquinismos em fúria!; «Ser completo como uma máquina!»).

FASE INTIMISTA

Não, não é cansaço...

Não, não é cansaço...


É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
É um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo...

Não, cansaço não é...


É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Com tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.

Não. Cansaço porquê?


É uma sensação abstracta
Da vida concreta –
Qualquer coisa como um grito
Por dar,
Qualquer coisa como uma angústia
Por sofrer,
Ou por sofrer completamente,
Ou por sofrer como...
Sim, ou por sofrer como...
Isso mesmo, como...
Como quê?...
Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.

(Ai, cegos que cantam na rua,


Que formidável realejo
Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!)

Porque oiço, vejo.


Confesso: é cansaço!...

Álvaro de Campos, in Poesias, Ed. Ática

Linhas temáticas

PERCURSO EMOCIONAL DO SUJEITO POÉTICO

Nesta composição lírica, sujeito poético afirma no primeiro verso que não é cansaço aquilo que sente,
reiterando essa afirmação ao longo do poema. No entanto, e talvez um pouco paradoxalmente, refere
que a desilusão se lhe “entranha na espécie de pensar”, sublinha a monotonia da vida (“é a mesma coisa
variada em cópias iguais”), exprime a angústia perante o mistério e a indefinição que perpassam nesse
“falso cansaço”; finalmente aceita que, “porque ouve e vê”, o estado em que se encontra é de cansaço:
“Confesso: é cansaço!...” Assim, pode-se afirmar que, progressivamente, o sujeito poético se deixa
dominar por uma letargia, um estado de cansaço e desistência, que o afasta do mundo.

RELAÇÃO ENTRE O SUJEITO, O MUNDO E OS OUTROS

Há entre o sujeito poético, os outros e o mundo um distanciamento, decorrente da incapacidade de


relação; o único ponto comum é o facto de todos existirem: “É eu estar existindo/ E também o mundo”.
Os outros, os “cegos que cantam na rua”, são apenas aqueles que o sujeito poético observa, mas com
quem não se relaciona.

IMPORTÂNCIA SIMBÓLICA DOS PARÊNTESES

Do ponto de vista simbólico, os parênteses constituem um momento em que o sujeito poético abandona
o tom reflexivo, se volta para o exterior e o vê como um “formidável realejo”. Os parênteses são como
que um oásis num texto de características claramente negativas, uma vez que é o próprio sujeito poético
que lhes confere uma conotação positiva. Simbolicamente, poder-se-ia afirmar que a felicidade só é
possível para quem é “cego”, ou seja, para quem não vê a verdadeira realidade do mundo.

FASE POÉTICA

Este poema integra-se na fase abúlica de Álvaro de Campos, pelo que revela de incapacidade de viver a
vida, pelo que transmite de tédio, de uma certa desistência perante o mundo e os outros. Nada motiva o
sujeito poético, nada lhe interessa, tudo se resume a um “supremíssimo cansaço”.

Recursos expressivos

A primeira estrofe inicia-se com a repetição do advérbio de negação “não” empregue numa frase
reticente, o que revela uma certa indefinição. O discurso assume um tom claramente metafórico
(“…domingo às avessas/Do sentimento, /Um feriado passado no abismo...”), terminando a estrofe
também com uma frase reticente. O conjunto destes recursos expressivos, aliado à repetição anafórica
presente nos versos dois e quatro, traduz a tentativa de definir o estado de espírito que domina o sujeito
poético

Acaso

No acaso da rua o acaso da rapariga loira.


Mas não, não é aquela.

A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.

Perco-me subitamente da visão imediata,


Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,
E a outra rapariga passa.

Que grande vantagem o recordar intransigentemente!


Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.

Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!


Ao menos escrevem-se versos.
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por génio, se calhar.
Se calhar, ou até sem calhar,
Maravilha das celebridades!

Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...


Mas isto era a respeito de uma rapariga,
De uma rapariga loira,
Mas qual delas?
Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,
Numa outra espécie de rua;
E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade,
Numa outra espécie de rua;
Porque todas as recordações são a mesma recordação,
Tudo que foi é a mesma morte,
Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?

Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.


Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?
Pode ser... A rapariga loira?
É a mesma afinal...
Tudo é o mesmo afinal...
Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isso é o mesmo também afinal.

O poema "Acaso" pertence à terceira fase de Álvaro de Campos, a sua fase de pessimismo, em que
Campos se aproxima cada vez mais do próprio Fernando Pessoa-ele-mesmo.

Deitado a um abulismo intenso, Campos deixara já o futurismo da "Ode Triunfal", substituindo as estrofes
poderosas que realçavam a energia e o poder das tecnologias da revolução industrial por palavras mais
soturnas e pessoais, num intimismo silencioso.

Toda a vida de Campos é afinal um flash rápido que poderá condensar num momento talvez um dia de
Fernando Pessoa, passando da reflexão do passado (1.ª fase - nostalgia) à modernidade furiosa e
optimista (2.ª fase - futurismo), dando finalmente lugar à ansiedade pela falta de realização das coisas (3.ª
fase - pessimismo). Num dia poderá falar-se em esquizofrenia, numa vida em evolução...

Análise do poema

Acaso fala precisamente de um desses momentos fugidios que sintetizam o sentimento que invade
Campos nesta sua 3.ª fase. Tudo lhe foge e nada faz sentido. Há ansiedade e confusão emocional nos seus
poemas, que apenas são de Campos porque lhes foge a rigorosa forma de Reis e a intensa tristeza de
Fernando Pessoa. Seja como for, ele busca, no seu desespero e solidão, o refúgio nas suas memórias.

É uma memória que faz este poema "Acaso". Ao ver uma rapariga loura na rua ele lembra-se de si mesmo
a um outro tempo - "A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro". Seria Durban, na África do
Sul? É bem possível. Certamente entre as raparigas de Durban muitas seriam louras e de que outra cidade
falaria Campos, senão da Durban em que nasceu Pessoa, ou talvez a Glasgow onde teria tirado o curso de
engenheiro naval...

Seja como for, a visão remete-o para esse outro tempo. Eis como a análise da realidade efectiva e
intelectual não lhe basta e lhe dá acesso, num conforto, a uma memória passada, a um "outro tempo “a
um” “outro eu”. Nessa confusão entre o passado e o presente Campos vê uma vantagem - ele diz que
recordar "intransigentemente" é uma vantagem que merece ser realçada. Quer ele dizer que o facto de o
seu tempo ser uma linha confusa, sem princípio ou fim, lhe dá a impressão nítida de poder avançar ou
recuar sem justificação - tudo é válido enquanto memória e realidade.

O seu falso entusiasmo, numa intensa ironia, leva a que ele comemore o facto de ter "a alma do avesso".
Dizer isto é dizer que se sente deslocado do tempo e da vida. Ter a alma do avesso é ter uma
incapacidade grande de enfrentar a vida sem recorrer às memórias do passado perdido. É ter as
memórias por fora da pele e por dentro uma vida que não encontra outras personagens com a qual
poderá ser partilhada.

Ao menos uma vantagem nesta "loucura" - o escrever versos. Isto justifica o facto de Campos não querer
mudar, porque se mudar deixará de escrever versos. Deixa-se a esta média luz que o puxa para baixo.
"Porque tudo é a mesma memória", "porque tudo é a mesma morte".

Que dizer de Campos que se enfrenta à realidade do tempo-espaço? Ele perde-se mas encontra-se. Sabe-
se agora diferente do que era: afinal o homem evolui e muda, mesmo que fique na mesma - é diferente a
cada período de tempo e não há como regressar, e isso é uma grande mágoa para quem o consegue
pensar.

Tudo mudou para Campos, mas tudo ficou na mesma: eis a conclusão. Ele vê a rapariga, parece-lhe a
mesma, mas não é a mesma. No entanto - é a mesma, porque tudo se manteve igual. Ele é diferente, mas
é o mesmo. Há uma indefinição que lhe agrada, porque a loucura lhe permite o verso rápido, mas segue-
se a depressão, a perda de identidade, porque "tudo é sempre o mesmo", "sempre".

"Tudo é o mesmo afinal...

O QUE HÁ EM MIM É SOBRETUDO CANSAÇO

O que há em mim é sobretudo cansaço -


Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,

Cansaço.

A sutileza das sensações inúteis,


As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas -
Essas e o que falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,

Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,


Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -

Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:


Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimno, íssimo, íssimo,
Cansaço...

Pessoa diz, na célebre carta em que relata a origem dos heterónimos (e que pode ler na secção Ensaios do
Major Reformado), o seguinte: O difícil para mim é escrever a prosa de Reis – ainda inédita – ou de
Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea em verso.)"

O assunto da simulação, vasto em Pessoa, encontra em Álvaro de Campos uma encruzilhada. Porque para
Pessoa, escrever a Prosa de Campos é "difícil". Porquê? Porque em Campos, encontramos temas sensíveis
a Pessoa e que Pessoa deslocaliza, pelo menos emocionalmente, para a caneta do seu heterónimo
engenheiro naval. Esses temas são nomeadamente, os relativos à infância, à memória da sua mãe e das
viagens para a África do Sul.

Como nasce Campos? Pessoa diz na mesma carta: "E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo
Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem
interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o homem
com o nome que tem.". Ou seja, Campos surge em oposição a Reis, o que Reis tem de exacto, Campos
tem de maleável, o que Reis apresenta de rigoroso, Campos demonstra irracional.

Poeta sensacionista por excelência, escandaloso e moderno, Campos descreve um mundo em mudança,
por efeito retardado (pelo menos em Portugal) da revolução industrial. Mas há, mesmo em Campos, 3
fases distintas (Prado Coelho). A do Opiário (1914); a das grandes Odes (1914-16) e a fase pessoal, que
termina com a própria morte de Pessoa (1916-35).

Choca em contraste que o poeta poderoso, à Whitman, que exorta delirante a máquina, que fala do peito
as proezas da Energia e do Progresso, surja por vezes tão assumidamente deixado ao tédio, que quase
abúlico, fica morto de entusiasmo e capturado pelo niilismo. Prado Coelho diz-nos que "Campos sentiu
como Whitman para deixar de sentir como Campos" (in Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa). Tão
semelhante se torna a Pessoa, que Pessoa o traz consigo para a vida do dia-a-dia, falando por exemplo
dele a Ophélia de Campos, como se pela sua própria voz.

Campos é a parte desligada da realidade emocional de Pessoa. Nele, Pessoa escreve mais despreocupado
do que se escrevesse em nome próprio, e sente segurança para se deitar ao lamento de uma vida de
sofrimento. Campos é menos sereno, é mais intranquilo, mais solto, energético mesmo quando deitado
ao tédio, do que Pessoa-ele-mesmo.

O poema de que pede uma análise é um poema típico de abulia de Campos, é um texto filho da herança
do grande texto em prosa Passagem das Horas (1916). O tom heróico, Whitmaniano, deixa de se ouvir,
para Campos se deixar dominar por Pessoa, num tom mortal e lento, litanias nocturnas, textos deixados à
confissão, sem filtros racionais.

A consciência que Caeiro quer não enfrentar, Campos perde-a pelo exagero (Eduardo Lourenço). A noite
"materna" invade-o. Porque assombrado pela memória da mãe, da infância perdida, a sua sinceridade
acha apenas cansaço, quando ele se vê perto da morte, sem esperança de um regresso impossível à
felicidade infantil. A noite é, em sentido literal, a sua própria mãe, que o abandona, mas nunca deixa de o
dominar.

Analisando o poema:

"O que há em mim é sobretudo cansaço/ Não disto nem daquilo, /Nem sequer de tudo ou de
nada:/Cansaço assim mesmo, ele mesmo, /Cansaço."

Ele fala do cansaço assumido como coisa em si mesma, sem já ser condição. Este tédio, que perpassa
também na obra de Bernardo Soares, soa muito a desapontamento, a conclusões falhadas, objectivos não
atingidos.

"A subtileza das sensações inúteis, /As paixões violentas por coisa nenhuma, /Os amores intensos por o
suposto alguém. /Essas coisas todas - /Essas e o que faz falta nelas eternamente -; /Tudo isso faz um
cansaço, /Este cansaço, /Cansaço." É um discurso contra a acção, contra a vontade, que no mundo não é
operante, mas destinada ao fracasso. Campos elenca coisas que todos perseguem - as sensações, as
paixões, o amor - e diz que todas elas falham em significado.

"Há sem dúvida quem ame o infinito, /Há sem dúvida quem deseje o impossível, /Há sem dúvida quem
não queira nada - /Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles: /Porque eu amo infinitamente o finito,
/Porque eu desejo impossivelmente o possível, /Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
/Ou até se não puder ser..." Aqui Campos ironiza com aqueles que pretendem ter maiores pretensões do
que aquelas que ele acha possível. Há quem ame o infinito - os amantes do conhecimento, os filósofos e
os religiosos; há quem deseje o impossível - os sonhadores, os ambiciosos; há quem não queira nada - os
pessimistas, os humildes. Todos eles - segundo Campos - erram, por serem idealistas. Ele ama
infinitamente o finito - ou seja, quer tudo no nada, quer a compreensão subtil do desconhecido - quer o
paradoxo, inatingível, mas contínuo na sua loucura.

"E o resultado? /Para eles a vida vivida ou sonhada, /Para eles o sonho sonhado ou vivido, /Para eles a
média entre tudo e nada, isto é, isto... /Para mim só um grande, um profundo, /E, ah com que felicidade
infecundo, cansaço, /Um supremíssimo cansaço. /Íssimo, íssimo. íssimo, /Cansaço...". O resultado -
Campos anuncia-o, pondo-se acima de todos aqueles que critica - é para os outros a vida. Mas para
Campos, a vida não chega, em parte porque ele próprio nunca se sente satisfeito - não tem a riqueza, a
fama, a mãe, a infância, sobretudo a tranquilidade e a paz de espírito para trabalhar. Por isso ele, quando
se diz insatisfeito, revela-se invejoso da vida alheia.
Campos-Pessoa está cansado por não ter atingido o que para os outros é tão fácil, porque os outros não
duvidam, são empreendedores, mesmo quando nada desejam. Deixam-se à vida, serenos ou irados, mas
completos, humanos, que vivem e que morrem sem perguntas. Campos-Pessoa não é um ser assim, pois
em si mesmo rumina uma intensa intranquilidade, que ele justifica como cansaço, não-agir, em razão de
não aceitar o seu fracasso no mundo."

Apêndice

O poema divide-se em 4 partes:

· Explicação das sensação de cansaço,

· A racionalização/explicação da sensação de cansaço,

· Comparação

· Conclusão

O poema é da "3.ª Fase", a fase pessoal (Jacinto Prado Coelho) ou "Fase Pessimista".

Atenção que a 3.ª fase é posterior não só ao futurismo mas ao sensacionismo (a vivência exagerada das
emoções) da 2.ª fase. Ele de facto "lutou que nem um desgraçado", embora possa soar melhor se disser
que ele "ficou desiludido com os seus esforços e energia despendidos na exortação do sonho".

Cuidado ao comparar Caeiro com Campos.

Caeiro não sofre do cansaço, como Campos, porque Caeiro é "contente", "satisfeito", vê beleza em não
compreender. Caeiro aceita a derrota de não pensar, enquanto Campos se desilude com ela. O cansaço
não é de algum modo igual em ambos os heterónimos. A palavra-chave em Caeiro é "Ataraxia"
(tranquilidade) enquanto em Campos será "Intranquilidade".

O exagero traz o cansaço, porque a energia se dilui na realidade que não o satisfaz.

Na comparação é que se encontra a semelhança a Caeiro - o Afastamento dos outros. Caeiro também se
afasta, dizendo que os outros pensam desnecessariamente as coisas, quando as devem só viver sem
pensar. Campos e Caeiro têm essa característica, do afastamento.

Na conclusão, a palavra "isto...", julgo que ele se refere à vida. Relembro-lhe que o cansaço de que ele
fala, é o cansaço de não atingir o sonho que ele desenhou para si mesmo. O "isto..." que ele vê nos
outros, é, para ele, um "isto..." insuficiente. O adjectivo infecundo faz todo o sentido. Veja que ele está
com ódio de não ter conseguido, por isso dá-se (quase masoquistamente) por contente por ter
fracassado. É uma maneira de ele justificar o seu cansaço, assumindo de tal modo a derrota, que lhe
parece um sucesso fracassar assim, de modo tão magnífico e total. Parece estranho, mas era assim que
pensava Pessoa, no seu íntimo, pelo que me é dado analisar e por comparação pela minha própria
experiência de vida.
ANIVERSÁRIO

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,


Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,


Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,


O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui - ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,


Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...


Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas - doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . .
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

Considerações

Escrito em 1929, portanto já um poema de maturidade de Pessoa, o poema "Aniversário" pode


certamente contar-se entre os poemas mais tristes e simultaneamente pungentes de toda a obra do
poeta.

Lembremos porém, e em antecipação à análise propriamente dita, a biografia deste heterónimo. Campos
é o heterónimo da modernidade em Pessoa, é o escandaloso, o extrovertido, cuja poesia (sobretudo em
prosa) propicia a oralidade e, é feita quase para ser declamada em voz alta.

Sem métrica definida, muitas das vezes autor de longas odes, Campos marca a diferença também por
essa forma de encarar a poesia. O caos do seu método é o caos do mundo moderno que ele retrata tão
magistralmente, quer nos momentos activos (fase modernista), quer passivos (fases decadentista e
pessimista).

O poema "Aniversário" enquadra-se precisamente na última fase do poeta, a fase dita "pessimista", em
que os temas abordados por Campos voam em redor da sua desilusão com a vida, com a amargura e a
lembrança de um passado para onde nunca mais poderá regressar.

"Aniversário" é mesmo marcado por essa recordação da infância. "No tempo em que festejavam o dia dos
meus anos, / Eu era feliz e ninguém estava morto". Campos parece referir-se aos anos de infância de
Pessoa, em que nenhum dos seus irmãos tinha ainda morrido, e o seu próprio pai ainda o acompanhava.
Nesse "tempo", festejar os anos era ainda uma festa inocente e feliz.

Tudo isto na "casa antiga", na casa de infância. Talvez a casa do Largo de S. Carlos, ao Chiado, onde
nasceu.

Esse tempo passado é um tempo feliz, mas simultaneamente um tempo perdido, porque as crianças não
sabem que são felizes, só mais tarde quando recordam. As crianças têm "a grande saúde de não perceber
coisa nenhuma".

Tudo isso se perdeu. Perdeu-se "o menino".


"O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas), / O que eu sou
hoje é terem vendido a casa, / É terem morrido todos, / É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um
fósforo frio..."

Passa uma grande desilusão nestas palavras. A infância perdeu-se para nunca mais regressar igual e, hoje,
o poeta sente essa perda como a perda da sua identidade feliz. Ele apenas sobrevive, como "um fósforo
frio", ou seja, um cadáver que vive, mas sem função, abandonado, sem utilidade.

Campos deseja reatar o fogo apagado,", comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga
nos dentes!", mas não o vai conseguir.

Ele sabe-o quando diz:

"Pára, meu coração! / Não penses! Deixa o pensar na cabeça!"

Deixar de pensar é, em Pessoa, alcançar a paz dos simples de espírito, daqueles que vivem simplesmente
a vida. Um objectivo que paradoxalmente sempre perseguirá, sendo ao mesmo tempo, o maior dos
poetas racionais.

RETICÊNCIAS

Arrumar a vida, pôr prateleiras na vontade e na acção.


Quero fazer isto agora, como sempre quis, com o mesmo resultado;
Mas que bom ter o propósito claro, firme só na clareza, de fazer qualquer coisa!

Vou fazer as malas para o Definitivo,


Organizar Álvaro de Campos,
E amanhã ficar na mesma coisa que antes de ontem - um antes de ontem que é sempre...
Sorrio do conhecimento antecipado da coisa-nenhuma que serei.
Sorrio ao menos; sempre é alguma coisa o sorrir...
Produtos românticos, nós todos...
E se não fôssemos produtos românticos, se calhar não seríamos nada.
Assim se faz a literatura...
Santos Deuses, assim até se faz a vida!

Os outros também são românticos,


Os outros também não realizam nada, e são ricos e pobres,
Os outros também levam a vida a olhar para as malas a arrumar,
Os outros também dormem ao lado dos papéis meio compostos,
Os outros também são eu.
Vendedeira da rua cantando o teu pregão como um hino inconsciente,
Rodinha dentada na relojoaria da economia política,
Mãe, presente ou futura, de mortos no descascar dos Impérios,
A tua voz chega-me como uma chamada a parte nenhuma, como o silêncio da vida...
Olho dos papéis que estou pensando em arrumar para a janela,
Por onde não vi a vendedeira que ouvi por ela,
E o meu sorriso, que ainda não acabara, inclui uma crítica metafísica.
Descri de todos os deuses diante de uma secretária por arrumar,
Fitei de frente todos os destinos pela distracção de ouvir apregoando,
E o meu cansaço é um barco velho que apodrece na praia deserta,
E com esta imagem de qualquer outro poeta fecho a secretária e o poema...
Como um deus, não arrumei nem uma coisa nem outra...

Considerações

Campos ocupa um lugar especial no tríptico dos heterónimos principais de Fernando Pessoa. Talvez
porque, segundo alguns biógrafos, seja o heterónimo mais honesto e aquele que melhor demonstra as
suas emoções.

Parece-nos que o poema em questão se enquadra na terceira fase de Álvaro de Campos, a fase
pessimista, onde ele cai num torpor diferente do da primeira fase, porque menos optimista e mais
saudosista e frágil.

Embora haja alguma decisão nestes versos, vê-se logo de seguida que é uma decisão inconsequente:
“Arrumar a vida, pôr prateleiras na vontade e na acção. / Quero fazer isto agora (...) / com o mesmo
resultado / Mas que bom ter o propósito claro, firme só na clareza, de fazer qualquer coisa!”

É o “propósito claro” que o poeta elogia, porque é aquele pouco que consegue atingir, ficando muito
aquém da realização dos seus objectivos. Afinal “arrumar a vida” é mais difícil do que parece. E muito
mais complexo será “pôr prateleiras na vontade e na acção”, ou seja, tentar disciplinar o que se quer fazer
e o que se pode fazer.

Ele quer tudo isto. Quer disciplinar a sua vida, pôr tudo em ordem, ter objectivos claros, um propósito. No
entanto, não lhe basta querer. O resultado é o “mesmo”, ou seja, ele nunca consegue ordenar nada.
Resta-lhe só um orgulho pobre de querer, mesmo que não consiga nada.

Campos não deixa que a sua vida se organize, não deixa que ele próprio faça “as malas para o Definitivo”,
ou seja, que possa desejar uma vida mais definida, mais simples e sem problemas.

O seu “antes de ontem é sempre”. Campos nunca se vai organizar, e ele sabe-o de uma maneira que é
quase dolorosa.

O seu sorriso (as aliterações “sorriso do...”, “sorrio ao...”) é falso, fingido. Sorri romanticamente, ninguém
realiza nada, ninguém organiza a vida como quer, ninguém consegue tudo aquilo que imagina poder ser
seu.
Se Campos é assim, também assim são os “outros”. “Os outros também são românticos, / Os outros
também não realizam nada, e são ricos e pobres,”...

Os outros afinal são como ele: “os outros também são eu”. É talvez dos raros momentos na poesia de
Pessoa em que ele por momentos se identifica com a “humanidade” e não insiste numa posição solitária
de conforto ilusório. É na solidão que muitas das vezes Pessoa encontra o reduto para a sua energia
poética.

Mas, como em outros poemas (lembramo-nos da “Tabacaria”, onde ocorre um momento parecido),
Campos é arrancado dos seus pensamentos por um movimento do “mundo real”. Desta vez é a
vendedeira com o seu pregão. Campos levanta os olhos dos papéis para a janela de onde vinha a canção
popular.

O sorriso ainda o tinha nos lábios e, deixa que por momentos o sorriso, de triste, passe a metafísico. Um
sorriso de crítica.

Seja como for, ele agora está “acordado” novamente. Caiu da metafísica para física, concluindo o que
pensou: “Descri de todos os deuses diante de uma secretária por arrumar, / Fitei de frente todos os
destinos pela distracção de ouvir apregoando”.

Mas qual a conclusão do seu raciocínio?

Nenhuma. Ele fecha a secretária e o poema, sem arrumar nem a secretária nem o poema. Afinal a
confusão de pensamentos contínua na sua mente, por arrumar e Campos sente que o poema saiu
confuso, como o que pensava. A semelhança da confusão entre os versos e os pensamentos alicia a
interpretação de que a linguagem poética lhe fluiu do corpo para o mundo, a maneira de interpretação
válida dos acontecimentos que não podiam ser interpretados de outra forma.

ARRE, QUE TANTO É MUITO POUCO!

Arre, que tanto é muito pouco!

Arre, que tanta besta é muito pouca gente!

Arre, que o Portugal que se vê é só isto!

Deixem ver o Portugal que não deixam ver!

Deixem que se veja, que esse é que é Portugal!

Ponto.

Agora começa o Manifesto:

Arre!

Arre!
Oiçam bem:

ARRRRRE!

Onde muitos vêem apenas um Campos existem, na realidade, uma variedade de Campos. Isto porque
Álvaro de Campos evolui como poeta, mais ou menos ao lado de Fernando Pessoa-ele-mesmo.

Marcam-se três fases distintas na escrita de Campos:

· Uma que se inicia com o Opiário

· Outra a das grandes Odes

· Finalmente uma fase terminal, pessoal e abúlica.

Vê-se então que Campos passa de um sensacionismo fantástico, um modernismo explosivo, de exaltação
da indústria e das máquinas, para um Campos vencido na vida, rendido a um tédio imenso que o afoga
em mágoa.

Este poema é curioso, porque intermediado nos dois últimos versos, Campos parece revoltar-se, parece
usar o tom heróico de Whitman que usara nas grandes Odes, a Triunfal e a Marítima, mas aqui, este tom,
decai já ligeiramente para a análise pessoal. Ele fala já de si mesmo e não do mundo exterior e, o seu tom,
embora exaltado, é de uma grande mágoa pessoal, é um tom de desilusão e ele apenas se serve da voz
alta para reforçar a realidade de uma dor interior.

Tocante é a maneira como o poema, que começa por invocar a impessoalidade do Portugal deixado às
bestas, se transforma num relato poético do interior daquele que acusa. Se Portugal está mal, pior ainda
está o poeta - a sua situação transfigura-se na massa maior do país, mas, na sua pessoalidade, assume um
grau horrivelmente mais poderoso.

"Amor, glória, dinheiro são prisões", diz Campos.

Mas esta frase não pode ser de alguém que exalta o poder e a nobreza de se alcançar alguma coisa na
vida. Afinal o que é a liberdade que Campos tanto quer?

A sua liberdade é já uma liberdade na loucura, na solidão extrema que partilha com o seu irmão Fernando
Pessoa. A realidade é que Campos se deixou das ilusões da juventude modernista. Campos é neste poema
um Campos desiludido, rendido às evidências de uma vida que o prende e o oprime com as suas regras: o
amor, a glória e o dinheiro.

Campos quer antes a loucura, a grande liberdade: "Nada de paredes - ser o grande entendimento - Eu e o
universo". Então ser como os gnósticos que procuravam a verdade no contacto directo com Deus, mesmo
correndo o risco da loucura imediata. Ao menos é um risco pela liberdade total, pela redenção.

Deixar o espectro do guarda-fato pelo esplendor do infinito - eis o objectivo astral de Campos. Ou seja,
deixar a vida pela loucura, o quotidiano sem sabor pelo risco enorme do Universo vazio.
É triste o seu desespero, que nos toca ao coração. É um homem perdido: "Graças a Deus que estou doido!
Que tudo quanto dei me voltou em lixo". Mas é um homem perdido que se acha. Porque na loucura, para
ele, "como na bebedeira, Isto é uma solução". Uma solução.

Quando ficar louco é ter uma solução para o desespero, nada mais se pode oferecer em comparação. E é
uma solução gutural, de intestinos, como ele próprio diz, é uma solução extrema, de instinto, sem
regresso possível.

Campos que fizera poesia transcendental e lírica e nada nelas achou de solução parecida a esta. Agora
sente que a náusea a tudo é a resposta a tudo. Comer o Universo e vomitá-lo, como quem recusa a
própria existência, como quem recusa a própria vida como coisa real. Uma atitude horrível, mas com um
fim, "E assim como sou não tenho nem fim nem vida...".

"Ser indiferente!", "Ser alheio até a si mesmo!", "Ser esquecido de que se existe!".

Numa linha e sem que Campos o ouse pensar: ser imune à dor da vida

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