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ERNST CASSIRER

ANTROPOLOGia FILOSÓFica
ENSAIO SOBRE O HOMEM

INTRODUÇÃO A UMA FILOSOFIA


DA CULTURA HUMANA
--

I TRADuçÃO DO
DR. VICENTE FELIX DE QUEIROZ

.I

l'

EDITORA MESTRE JOU


SÃo PAULO
Primeira edição em inglês . 1944
Primeira edição em espanhol . 1945
Quinta edição em espanhol . 1968
Décima nona edíção vem inglês . 1968
Primeira edição em português . 1972 )
Se:gunda edição em portugUjês . 1977

TITULO ORIGINAL

AN ESSAY ON MAN

REVISÃO DE

YARA SCHRAMM

CAPA DE

LAPUENTE

CHARLES W. HENDEL

© Yale Univ,ersity Press, New Haven, Connecticut, U.S.A.


Em penhor de amizade e gratidão

Direitos autorais reservados para os países de língua portuguesa


pela
EDITORA MESTRE JOU
Rua Guaipá, 518 - Vila Leopoldina
(Alto da Lapa) - São Paulo
.\
I
I
PREFACIO

o primeiro impulso para escrever este livro me


veio de meus amigos ingleses e norte-americanos, que
repetida e urgentemente me pediram que publicasse
uma tradução inglesa da minha FILOSOFIA DAS FOR-
MAS SIMBÓLICAS 1. Confesso que teria gostado muito
de corresponder a seus desejos; mas, após as primei-
ras tentativas, verifiquei que seria impraticável e,
nas atuais circunstâncias, injustificável reproduzir
o livro em sua inteireza. Quanto ao leitor, a lei-
tura de um estudo em três volumes, sobre assunto di-
fícil e abstrato, se tornaria num esforço excessivo para
sua atenção. Mas, mesmo para o autor, seria pouco
praticável ou aconselhável a publicação de um traba-
lho planejado e escrito há mais de vinte e cinco anos.
Desde então o autor continuou seus estudos sobre o
assunto. Aprendeu muitos fátos novos e viu-se diante
de novos problemas e até os antigos são vistos por ele
de um ângulo diferente e se lhe apresentam com nova
luz. Por todas estas razões,decidi recomeçar e escre-
ver um livro inteiramente novo. Este livro teria de
ser menos extenso que o primeiro. "Um livro grande",
disse Lessing, a é um grande mal". Enquanto escre-
via minha FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBÓLICAS, de tal
maneira me deixei absorver pelo assunto que esqueci
ou desprezei essa máxima estilística. Hoje me sinto
muito mais inclinado a endossar as palavras de Les-
sing. Em vez de apresentar um relato pormenorizado
de fatos e uma longa discussão de teorias, procurei,

1. 3 volumes, Berlim, Bruno Cassirer, 1923-29.


10 .Ernst Cassirer
Antropologia Filosófica 11

neste livro, concentrar-me em alguns pontos que me


uma explicação e uma ilustração do que propriamente
pareciam de especial importância filosófica, expressan-
u~a demonstração de minha teoria. Para uma dis-
do meus pensamentos tão breve e sucintamente quan-
to possível. cussão e uma análise mais minuciosas dos problemas
em questão, rogo-Ihes consultar a descrição pormeno-
De qualquer modo, o livro precisou tratar de
rizada em minha FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBÓLICAS.
assuntos que, à primeira vista, podem parecer muito
divergentes. Um livro que se ocupa de questões psi- Sinceramente não pretendo impor ao espírito de
cológicas, ontológicas e epistemológicas e contém ca- meus leitores. uma teoria acabada, expressa em estilo
pítulos sobre Mito e Religião, Linguagem e Arte, Ciên- dogmático; antes desejei coloeá-los na posiçõo de fa-
cia e História, está sujeito à objeção de que trata de zer um julgamento próprio. É evidente que não foi
um mixtum compositum das coisas mais díspares e he- possível apresentar-Ihes o cabedal todo de provas em-
terogêneas. Espero que, depois de ler estas páginas, píricas sobre as quais repousa minha tese principal.
o leitor considere infundada a objeção. Um de meus Pelo menos me esforcei, oferecendo amplas e detalha-
propósitos principais foi convencê-lo de que todos os das citações de obras de valor reconhecido modelar
assuntos aqui tratados são, em resumo, um único sobre os vários assuntos. O que o leitor encontrará
assunto. São estradas diferentes que conduzem ao não é, de maneira alguma) uma bibliografia completa
mesmo centro - cabendo a uma filosofia da cultura - só os títulos de uma bibliografia nestas condições
descobri-Io e determiná-Io, conforme penso. teriam excedido o espaço que me foi concedido. Con-
Quanto ao estilo do livro, foi naturalmente uma tentei-me em citar os autores dos quais me sinto mais
séria dificuldade o fato de precisar escrever num idio- devedor e em escolher exemplos que me pareceram
ma que não é o meu próprio. E dificilmente teria su- possuir típica significação e soberano interesse filo-
perado este obstáculo sem a ajuda de meu amigo J a- sófico.
mes Pettegrove, do State Teachers College de Nova Dedicando este trabalho a Charles W. Hendel, de-
Jérsei, que reviu o manuscrito dando-me bons conse- sejo expressar meus sentimentos de profunda gratidão
lhos sobre todas as questões lingüísticas e estilísticas. a um homem que, com zelo infatigável, me ajudou a
Mas devo-lhe também muitas valiosas observações r prepará-Io. Foi ele o primeiro com quem falei sobre o
pertinentes ao tema do livro. seu plano geral. Não fora seu profundo interesse pelo
Não tencionei escrever um livro ((popular" sobre I assunto do livro e sua grande amizade pelo autor, di-
um assunto que, em muitos sentidos, resiste a qual- I ficilmente eu teria tido a coragem de publicá-lo. Leu
quer vulgarização. Por outro lado, este livro não se o manuscrito diversas vezes e sempre me foi possível
destina somente a filósofo.s e eruditos. Os problemas acatar-lhe as sugestões críticas, que se revelaram uti-
fundamentais da cultura humana possuem um interes- líssimas e valiosíssimas:
se humano geral e deveriam ser postos ao alcance do A dedicatória tem, contudo, não só um significa-
grande público. Tentei, portanto, evitar termos e de- do pessoal) mas também ((simbólico". Ao dedicar
talhes técnicos, expressando meus pensamentos com a este livro ao Presidente do Departamento de Filosofia
maior clareza possível. Devo, porém, advertir meus e ao Diretor dos Estudos Graduados da Universidade
críticos de que tudo quanto aqui apresento foi mais de Yale, desejo expressar ao próprio Departamento
r
12 Ernst Cassirer

meus agradecimentos cordiais. Quando, há três anos,


cheguei à Universidade de Vale, foi agradável surpre-
sa encontrar uma estreita cooperaçiio, que se estendia
a um vasto campo. Constituiu-se para mim num pra-
zer especial e num grande privilégio trabalhar com
meus colegas mais moços, em seminários conjuntos,
sobre vários temas. Foi esta, na verdade, uma nova
experiência em minha longa existência acadêmica, in-
te:ressantíisima e muito estimulante. Sempre guarda-
PRIMEIRA PARTE
rei grata recordação desses seminários coletivos -
um sobre a filosofia da história, outro sobre a filoso-
fia da ciência, um terceiro sobre a teoria do conheci-
mento, dirigidos por Charles Hendel e Hajo Holborn,
F. S. C. Northrop e Henry Margenau, Monroe Beartls-
ley, Frederic Fitch e Charles Stevenson. ,
Devo considerar este livro, em grande parte, co-
mo conseqüência de meu trabalho na Graduate School
QUE E o HOMEM?
da Universidade de Yale e prevaleço-me desta oportu-
nidade para expressar meus agradecimentos ao seu
Diretor, Edgar S. Furniss, pela hospitalidade que me
ofereceu nestes últimos três anos. Devo também aos
meus alunos uma palavra cordial de agradecimento.
Discuti com eles quase todos os problemas contidos
neste livro e confio em que encontrarão muitos traços
do nosso trabalho comum nas páginas que se seguem.
Confesso-me grato ao Fluid Research Fund da
Universidade de Yale por uma subvenção de pesquisa
que me ajudou a preparar este livro.

ERNST CASSIRER

Universidade de Yale

1 .~
I
A CRISE NO CONHECIMENTO DO
HOMEM SOBRE SI MESMO

1
PARECE ser universalmente admitido que a meta mais
elevada da indagação filosófica é o conhecimento
de si próprio. Em todos os conflitos travados entre as
diferentes escolas filosóficas, este objetivo permane-
ceu invariável e inabalado: revelou-se o ponto de Ar-
quimedes, o centro fixo e imutável, de todo pensa-
mento. Nem mesmo os mais céticos pensadores nega-
ram a possibilidade e a necessidade do conhecimento
próprio. Desconfiavam de todos os princípios gerais
relativos à natureza das coisas, mas esta desconfiança
pretendia apenas despertar um novo e mais seguro
método de investigação. Na história da filosofia, o
ceticismo tem sido, muito amiúde, simplesmente a con-
trapartida de um resoluto humanismo. Pela negação
e pela destruição da certeza objetiva do mundo exter-
no, espera o cético fazer com que todos os pensamen-
tos do homem voltem a convergir para seu próprio
ser. O conhecimento de si mesmo - declara ele - é
a primeira precondição da auto-realização. Precisa-
mos tentar romper a cadeia que nos traz atados ao
mundo exterior para podermos gozar nossa verdadeira
liberdade. "La plus grande chose du monde c'est de
sçavoir etre à soy", escreve Montaigne.
Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 17
16

Todos os homens, por natureza, desejam saber. Uma prova


Entretanto, nem mesmo o modo de focalizar o disto é o prazer que encontramos em nossos sentidos; pois,
problema - o método da introspecção - é seguro mesmo independentemente da sua utilidade, eles são amados
por si próprios; e, acima de todos os outros, o sentido da
contra as dúvidas céticas. A filosofia moderna co- vista: não só para ver nossas ações, mas também, quando nada
meçou com o princípio de que a prova do nosso ser é fazemos, gostamos de ver a tudo o mais. A razão é que este
sentido, principal entre todos, nos faz conhecer e traz à luz
inconquistável e inexpugnável. Mas os progressos do muitas diferenças entre as coisas. 1
c~n.hecimen~opsicológico não confirmaram esse prin-
CIpIOcartesiano. A tendência geral do pensamento Esta passagem é altamente característica da con-
hoje em ~i~, volta a dirigir-se para o pólo oposto: cepção aristotélica do conhecimento em contraposição
~oucos psicólogos modernos seriam capazes de admi- à concepção platônica. Um panegírico filosófico da
tI~ ou recomendar um simples método de introspecção. vida sensorial do homem seria impossível na obra de
DIZem-nos em geral que tal método é muito precário. Platão, que jamais compararia o desejo do conheci-
Estão convencidos de que o único enfoque possível da mento com o prazer que encontramos em nossos sen-
psicologia científica é uma atitude behaviorista rigo- tidos. Em Platão, a vida dos sentidos. e a do intelecto
rosamente objetiva. Mas um behaviorista coerente e estão separadas por vasto e intransponível abismo. O
radical não atinge sua finalidade. Pode acautelar-nos conhecimento e a verdade pertencem a uma ordem
contra possíveis erros metodológicos, mas não resol- transcendental - ao domínio das idéias puras e eter-
ve todos os problemas da psicologia humana. Pode- nas. O próprio Aristóteles está convencido de que o co-
mos critica~ o ponto de vista puramente introspectivo nhecimento científico não é possível apenas através do
o~ ~es~onfIar dele, mas não podemos suprimi-Io nem ato da percepção. Mas fala como um biologista quando
e~Imma-Io. S:m a introspecção, sem a percepção ime- nega a separação platônica entre o mundo ideal e
diata de sentimentos, emoções, percepções, pensamen- o mundo empírico. Procura explicar o mundo ideal, o
tos, ~ão poderíamos sequer definir o campo da psi- mundo' do conhecimento, em termos de vida. Em am-
colo~1ahumana. Não obstante, é forçoso admitir que, mos os domínios, de acordo com Aristóteles, encon-
segumdo apenas este caminho, nunca poderemos che- tramos a mesma continuidade ininterrupta. Tanto na
gar a uma ampla visão da natureza do homem. A in- natureza quanto no conhecimento humano, as formas
trospecção só nos revela o pequeno setor da vida hu- mais elevadas evolvem-se das formas inferiores. A
mana acessível à nossa experiência individual. Nunca percepção dos sentidos, a memória, a experiência, a
poderá cobrir todo o campo dos fenômenos naturais. imaginação e a razão estão todas ligadas por um elo
Ainda que nos fosse possível coligir e combinar todos comum; são apenas estádios diferentes e diferentes ex-
os da~~s, teríamo.s uma imagem muito pobre e frag- pressões da mesma atividade fundamental, que atin-
mentár~a -,- um simples torso - da natureza humana. ge sua mais alta perfeição no homem mas que, de
Aristóteles declara que todo o conhecimento hu- certo modo, é partilhada pelos animais e por todas
mano se origina de uma tendência básica da natureza as formas de vida orgânica.
humana; que se manifesta nas ações e reações mais
elementares do homem. Toda a extensão da vida dos
1. Arist6teles, Metafísica, Livro A. 1980" 21. Tradução inglesa de
sentidos é determinada por essa tendência e dela está W. D. Ross, The Works ot Aristotle (Oxford, Clarendon Press, 1924),
impregnada. VoI. VIII.
18 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 19

Se adotássemos este ponto de vista biológico, te- rico, lei religiosa' e moral básica. Neste imperativo
ríamos de esperar que as primeiras etapas do conheci- sentimos, por assim dizer, uma súbita inversão do
mento humano concernissem exclusivamente ao mun- primeiro instinto natural de conhecer - percebemos
do externo. No tocante a todas as suas necessidades uma transposição de todos os valores. Na história de
imediatas e interesses práticos, o homem depende do todas as religiões do mundo - judaísmo, budismo,
seu meio físico. Não pode viver sem se adaptar cons- confucionismo e cristianismo - podemos observar os
tantemente às condições do mundo circundante. Os passos individuais deste desenvolvimento.
passos iniciais para a sua vida intelectual e cultural O mesmo princípio vale para a evolução geral do
podem ser descritos como atos que envolvem uma es- pensamento filosófico. Em suas primeiras fases, a fi-
pécie de ajustamento mental ao meio imediato. Mas, losofia grega parece exclusivamente interessada pelo
à proporção que progride a cultura humana, não tar- universo físico. A cosmologia predomina claramente
damos em tropeçar com uma tendência oposta da vi- sobre todos os outros ramos da investigação filosófica.
da humana. Desde o despontar da consciência huma- Não obstante, o que caracteriza a profundidade e a
na , encontramos uma visão introvertida da vida, que amplitude do espírito grego é o fato de quase todo
acompanha e complementa a extrovertida. Quanto pensador grego representar, ao mesmo tempo, um no-
mais longe seguirmos o desenvolvimento da cultura vo tipo geral de pensamento. Além da filosofia física
humana, a partir desses primórdios, tanto mais se da Escola de Mileto os pitagóricos descobriram uma
evidenciará a visão introvertida. A curiosidade natural filosofia matemática: enquanto os pensadores eleáti-
do homem principia, lentamente, a mudar de direção. cos são os primeiros a conceber o ideal de uma filo-
Podemos estudar este paulatino desenvolvimento em sofia lógica. Heráclito encontra-se nas fronteiras en-
quase todas as formas de sua vida cultural. Nas pri- tre o pensamento cosmológico e o antropológico. Em-
meiras explicações mitológicas do universo encontra- bora ainda fale como filósofo natural e pertença aos
mos sempre uma antropologia primitiva ao lado de "antigos fisiologistas", está convencido de que é im-
uma cosmologia primitiva. O problema da origem do possível penetrar o segredo da natureza sem haver es-
mundo está inextricavelmente entrelaçado com o da tudado o segredo do homem. Precisamos satisfazer à
origem do homem. A religião não destrói estas primei- exigência da introspecção se q~ise~os aprende~ a
ras explicações mitológicas. Pelo contrário, preserva realidade e compreender-lhe o significado, Por ISSO
a' cosmologia e a antropologia mitológicas dando-lhes foi possível a Heráclito caracterizar toda sua filosofia
nova forma e nova profundidade. A partir desse mo- em duas palavras: Eõ~çY)aCtlJ:(lV Ef1EW'tOV ("Procurei por
mento, já não se concebe o conhecimento de si mesmo mim mesmo"). 1 Mas embora fosse, em certo senti?o,
como um interesse meramente teórico. Não é simples- inerente à primitiva filosofia grega, esta nov~ tenden-
mente um tema de curiosidade ou especulação; passa cia do pensamento só atingiu plena maturidade n~
a ser proclamado a obrigação fundamental do homem. época de Sócrates. Assim, o problema d~ ~omem ,e
Os grandes pensadores religiosos foram os primeiros o marco divisório entre o pensamento socrático e pre-
a inculcar essa exigência moral. Em todas as formas
superiores da vida religiosa, a máxima "Conhece-te a
L Fragmento 101, em DieIs, Die Fragmente der Vorsokratiker,
ti mesmo" é considerada como um imperativo categó- editado por W. Krantz (5.' edição, Berlim, 1934), r, 173.
Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 21

-socrático. Sócrates jamais ataca nem critica as teorias lução direta para o novo problema. Sócrates nos dá
dos seus predecessores. Não tenciona introduzir uma uma análise detalhada e meticulosa das qualidades in-
nova doutrina filosófica. Nele, porém, todos os anti- dividuais e virtudes humanas. Procura determinar e
gos problemas são vistos dentro de uma nova luz, por definir a natureza destas qualidades: bondade, justiça,
se referirem a um novo centro intelectual. Os proble- temperança, coragem e assim por diante, sem nunca
mas gregos da filosofia natural e da metafísica são se arriscar a definir o homem. Como explicar. esta
repentinamente eclipsados por uma nova questão, que aparente deficiência? Teria Sócrates adotado delibe-
parece, daí por diante, absorver todo o interesse teó- radamente um abordo indireto - que lhe permitisse
rico do homem. Em Sócrates já não encontramos uma apenas arranhar a superfície do problema sem jamais
teoria independente da natureza nem uma teoria ló- lhe penetrar as profundezas e o verdadeiro âmago?
gica independente; muito menos uma teoria ética, coe- Neste ponto, mais do que em qualquer outro, devería-
rente e sistemática - no sentido de se ter desenvol- mos desconfiar da ironia socrática. É precisamente a
vido em sistemas éticos posteriores. Só resta uma per- resposta negativa de Sócrates que projeta nova e ines-
gunta: Que é o homem? Sócrates mantém e defende perada luz sobre a questão e nos proporciona uma vi-
sempre o ideal de uma verdade objetiva, absoluta, são positiva de sua concepção do homem. Não pode-
universal- Mas o único universo que conhece, e ao mos descobrir a natureza' do homem da mesma ma-
qual se referem todas suas indagações, é o universo neira pela qual podemos desvendar a natureza das
do homem. Sua filosofia - se alguma possuir - coisas físicas. Estas podem ser descritas em termos de
é estritamente antropológica Num dos diálogos de suas propriedades objetivas, mas o homem só pode
Platão, descreve-se Sócrates conversando com seu ser descrito e definido em termos de sua consciência,
discípulo Fedro. Passeiam e, em breve, chegam a um fato que origina um problema inteiramente novo, in-
ponto fora das portas de Atenas. Sócrates se extasia solúvel por nossos métodos usuais de investigação.
com a beleza do lugar. Delícia-se com a paisagem, Aqui se revelaram ineficazes e inadequadas a obser-
que não cessa de elogiar. Porém Fedro o interrom- vação empírica e a análise lógica no sentido em que
pe. Admira-se de que Sócrates proceda como um es- estes termos foram empregados na filosofia pré-socrá-
trangeiro acompanhado de um guia, que lhe mostra tica; pois só convivendo com seres humanos é que
os sítios mais aprazíveis. "Nunca cruzais a frontei- teremos a visão do caráter do homem. Para com-
ra?" pergunta ele. Sócrates responde simbolicamen- preendê-lo, precisamos efetivamente defrontá-Io face
te: "É verdade, meu bom amigo, e espero que me a face. Por isto, o traço distintivo da filosofia socrá-
desculparás quando ouvires o motivo, isto é, que sou tica não é um novo conteúdo objetivo, mas nova ma-
um amante do conhecimento e os homens que habi- nifestação e função do pensamento. Até então con-
tam na cidade são meus mestres, e não as' árvores, cebida como monólogo intelectual, a filosofia trans-
nem o campo". 1 forma-se em diálogo. Só por meio do pensamento dia-
\Entretanto, quando estudamos os diálogos socráti- logal ou dialético podemos abordar o conhecimento da
cos de Platão, em parte alguma encontramos uma so- natureza humana. Antes disto teria sido possível ima-
ginar a verdade como coisa já estabelecida, que pode-
1. Platão, Fedro 230A (tradução de Jowett). ria ser entendida por uni esforço do pensador indivi-
22 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 23

dual e prontamente revelada a outros. Mas Sócrates da civilização. Não existe, talvez, meio mais seguro
já não endossava este ponto de vista. É tão impossí- nem mais rápido de nos convencermos da profunda
vel - diz Platão na República - implantar a verda- unidade e da perfeita continuidade do pensamento fi-
de na alma de um homem quanto dar a visão a um losófico antigo do que o confronto desses primeiros
cego de nascença. Por sua natureza, a verdade é filha estádios da filosofia grega com um dos últimos e mais
do p.ensamento dialético. Só pode ser obtida, por con- nobres produtos da cultura greco-romana, o livro
seguinte, pela constante cooperação' dos assuntos em Para Si Mesmo, escrito pelo Imperador Marco Aurélio
mútua interrogação e resposta. Não tem, portanto, Antonino. À primeira vista, a comparação pode pare-
~enhuma semelhança com um objeto empírico, pre- cer arbitrária, pois Marco Aurélio não era um pensa-
cisando ser compreendida como resultado de um ato dor original, nem seguia um método rigorosamente
social. Temos aqui a resposta, nova e indireta, à per- lógico. Ele mesmo dá graças aos deuses porque, quan-
gunta "Que é o homem?". Dizem que é a criatura do veio a interessar-se por filosofia, não se converteu
que está em contínua procura de si mesmo - e que, em escritor filosófico nem em solucionador de silogis-
em todos os momentos de sua existência, precisa es- mos. 1 Mas Sócrates e Marco Aurélio têm em comum
crutar as condições da mesma. Neste exame, nesta a convicção de que, para descobrirmos a verdadeira
atitude crítica em relação à vida humana, está o ver- natureza ou essência do homem precisamos, antes de
dadeiro valor da vida humana. "Uma vida que não tudo, separar do seu ser todas as características ex-
é examinada", diz Sócrates, na Apologia, "não vale ternas e incidentais.
a pena ser vivida". I Sintetizamos seu pensamento di- Não dígaís que seja de homem nenhuma dessas coisas que não
zendo que el~ define o homem como o ser que, a uma lhe pertencem como homem. Não podem ser afirmadas de um
homem; a natureza do homem não as garante; elas não são
pergunta racional, pode dar uma resposta racional. consumações daquela natureza. Conseqüentemente, nem o fim
Neste círculo estão compreendidos tanto seu conheci- por que vive o homem está colocado nessas coisas, nem o que
mento quanto sua moral. É por esta faculdade funda-
-somente uns poucos estádios típicos, a fim de ilustrar a linha geral
mental, por esta faculdade de dar uma resposta a si de pensamento. A história da filosofia do homem ainda é um deside-
mesmo e aos outros, que o homem se torna um ser rato. Ao passo que a história da metafísica, da filosofia natural, do
"responsável", um indivíduo moral. pensamento ético e científico foi estudada em todos os seus porme-
nores, ainda estamos no princípio. Durante o último século, a impor-
tância deste problema foi sentida cada vez mais intensamente. Wilhelm
Dilthey concentrou todos os esforços em sua solução. Mas, embora
2 rica e sugestiva, a obra de DiIthey permaneceu incompleta. Um de
seus discípulos, Bernhardt Groethuysen, apresentou excelente descri-
Em certo sentido, essa primeira resposta sempre ção do desenvolvimento geral da filosofia antropológica. Infelizmente,
porém, sua descrição termina antes da passagem derradeira e decisiva
permaneceu a resposta clássica. O problema socrático - a de nossa era moderna. Veja B. Groethuysen, "Philosophische An-
e o ~étodo socrático jamais poderão ser esquecidos ou thropologíe", Handbuch der Philosophie (Munique e Berlim, 1931),
III, 1-207. Ver também seu artigo "Para uma Filosofia Antropológica",
suprimidos. Por ~termédio do pensamento platônico Filosofia e História, Ensaios apresentados a Ernst Cassirer (Oxford,
deixou sua marca em todo o desenvolvimento futuro Clarendon Press, 1936), pp. 77-89.
1. Marcus Aurelius Antoninus, Ad se ipsum (E~Ç Eau'tOv), Livro I,
par. 8. Na maioria dos trechos seguintes cito a versão inglesa de
1. Platão, Apologia 37E (tradução de Jowett). C. R. Haines, The Communings with Himselfof MarCus Aurelius An-
2. N~s páginas seguintes não tentarei apresentar um apanhado do tontnus (Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1916), Loeb
desenvolVImento histórico da filosofia antropológica. Escolherei tão- Classical Library.
1
24 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 25

conduz à perfeição do fim, a saber, o Bem. Além disso, se o Eu conquista sua forma interior, essa forma perma-
al~as dessas coisas pertencessem a um homem, não lhe ca-
bería desprezá-Ias nem s.e opor a elas, ... mas sendo tudo como nece inalterável e imperturbável. "Depois de forma-
é, quanto ~~s puder llbertar-se,... dessas e de outras coisas da, a esfera continua redonda e autêntica." 1 Esta,
com equanímídade, tanto melhor será o homem. 1
por assim dizer, é a última palavra da filosofia grega
Tudo O que acontece ao homem, vindo de fora é - uma palavra que, mais uma vez, encerra e explica
Irrito e nulo. Sua essência não depende de circunstân- o espírito em que foi originalmente concebida. Esse
cias externas; depende exclusivamente do valor que espírito foi um espírito de julgamento, de discerni-
ele dá a si mesmo. Riquezas, posição, distinção social mento crítico entre o Ser e o Não-Ser, entre a verda-
e até a saúde ou os dotes intelectuais - tudo isso se de e a ilusão, entre o bem e o mal. A vida em si mes-
torna indiferente (ao~arpopov). Só tem importância a ma é mutável e flutuante, mas o verdadeiro valor da
tendência, a atitude interior da alma; e esse princípio vida deve ser buscado numa ordem eterna, que não
interior não pode ser perturbado. "O que não pode admite mudança. Não está no mundo de nossos sen-
tornar o próprio homem pior do que antes também tidos, e é só pelo poder de nosso juízo que podemos
não pode piorar-lhe a vida, nem prejudicá-Ia, quer compreender essa ordem. O juízo é o poder central
venha de fora quer de dentro." 2 do homem, a fonte comum da verdade e da moral.
A exigência da interrogação de si mesmo aparece, Pois é a única coisa em que o homem depende intei-
por~to, não só no estoicismo mas, também, na con- ramente de si mesmo; é livre, autônomo, auto-sufi-
cepçao de Sócrates, como privilégio do homem e sua ciente. 2
obrigação fundamental. 3 Mas esta obrigação é agora "Não te aflijas", diz Marco Aurélio, não sejas muito ansioso, mas
sê teu próprio amo e olha para a vida como um homem, como
compreendida num sentido mais amplo; seus antece- ser humano, como cidadão, como criatura mortal. ( ... ) As coi-
dentes não são apenas morais senão também univer- sas não tocam a alma, porque são externas e permanecem imó-
sais e metafísicos. "Nunca deixes de fazer a ti mesmo veis, mas a nossa perturbação vem apenas daquele juizo que
formamos em nós mesmos. Todas estas coisas, que vês, mudam
esta pergunta e a te reperguntares assim: Que relação imediatamente, e já. não serão; e tem sempre em mente o nú-
tenho eu com esta parte de mim que denominam a mero das mudanças que já presenciaste. O Universo - mutação,
a Vida - afirmação. ~
Razão governante ("to 1l'YEtt.OVtXOV)?" 4 Quem vive em
harmonia com seu próprio eu, o seu daemon, vive em O maior mérito desta concepção estóica do homem
harmonia com o universo; pois tanto a ordem univer- reside no fato de que ela dá ao homem, ao mesmo
sal quanto a ordem pessoal não são mais do que ex- tempo, um profundo sentimento de sua harmonia com
pressões e manifestações diferentes de um princípio
fundamental comum. O homem demonstra seu po- 1. Idem, Livro VIII, par. 41.
2. Cfr. idem, Livro V, par. 14: '0 ÀOyo~ xat 11ÀOYL"ll 't!xvll Suva-
der inerente de crítica, de julgamento e de discerni-
ILW'; I;~OtV l;au'tCXtç apXOVltEvat .XCXt'to~~ xa6' Eau'ta~ I;pyoq;.
mento ao conceber que, nessa correlação, o Eu, e não 3. 'O xoo[.l.oç aÀÀo~WOt~ o ~LOÇ u7tOÀlJrpOtç. Livro IV, par. 3. O
termo "afirmação" ou "julgamento" me parece uma expressão multo
o Universo, representa o papel principal. Depois que mais adequada do pensamento de Marco Aurélio do que "opinião",
que encontro em todas as versões inglesas que consultei. "OpinlAo"
1. Marcus Aurelius, op. cit., Livro V, par. 15. (a platônica ooÇa) contém um elemento de incerteza e de mudança
2. Idem; Livro IV, par. 8. não pretendido por Marco Aurélio. Como termos equivalentes a
3. Idem, Livro lII, par. 6. 01tOÀlJt!lOtç encontramos em Marco Aurélio XptOt~, xpt[.l.a, OtaxptOt~.
4. Idem, Livro V, .par. 11. cr. Livro III, par. 2; VI, par. 52; VIII, pars. 28, 47.
I

Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 27


26

a natureza e de sua independência moral da natureza.· antítese. Não obstante, existe uma coerência interior,
Na mente do filósofo estóico estas asserções não en- uma ordem lógica, clara, que liga as diferentes etapas
t~am em conflito, são correlativas. O homem se en- do processo dialético. A filosofia antropológica, por
contra em perfeito equilíbrio com o universo, e sabe outro lado, apresenta um caráter totalmente diverso.
que este equilíbrio não deve ser perturbado por ne- Se quisermos apreender-lhe o significado e sua verda-
nhuma força externa. Tal é o caráter dual da "im- deira importância, precisamos escolher não o estilo
passibilidade" (1X'tlXpIXÇLIX) estóica. A teoria estóica re- épico de descrição, mas o dramático. Pois defronta-
velou-se uma das mais vigorosas forças formadoras da mos, não um pacífico desenvolvimento de conceitos e
cultura antiga. Mas, de repente, viu-se em presença teorias, senão um embate entre forças espirituais em
de uma força nova, até então desconhecida. O confli- conflito. A história da filosofia antropológica está
to com a nova força abalou, até seus fundamentos, o cheia das mais profundas paixões e emoções humanas.
ideal clássico do homem. As teorias estóica e cristã Não se ocupa de um problema teórico isolado, por mais
sobre o homem não são necessariamente hostis: tra- geral que seja seu âmbito; nela está em jogo todo o
balham conjuntamente na história das idéias e, não destino do homem, clamando por uma decisão final.
raro, as encontramos em estreita conexão no mesmo Este caráter do problema encontrou sua expres-
pensador. Entretanto, existe sempre um ponto em que são mais clara na obra de Agostinho, que se situa na
os ideais cristão e estóico se mostram irreconciliáveis. fronteira entre duas épocas. Vivendo no quarto sé-
A afirmada independência absoluta do homem, que culo da era cristã, cresceu na tradição filosófica grega
na teoria estóica era considerada virtudefundamen- e foi sobretudo o sistema neoplatônico que marcou to-
tal, transformou-se, na teoria cristã, em seu vício e da sua filosofia. Por outro lado, porém, é o pioneiro
erro fundamentais. Enquanto nele perseverar, o ho- do pensamento medieval; é o fundador da filosofia
mem não terá caminho possível para a salvação. A medieval e da dogmática cristã. Nas Confissões pode-
luta entre os dois conceitos antagônicos perdurou por mos seguir, passo a passo, seu caminhar da filosofia
muitos séculos e, no início da época moderna, na era grega para a revelação cristã. De acordo com ele, to-
da Renascença e no século XVII - ainda sentimos to- da a filosofia anterior ao advento de Cristo estava su-
da sua força. 1 jeita a um erro fundamental e se achava infestada
Aqui podemos entender um dos traços mais carac- por uma mesma heresia. O poder da razão era exal-
terísticos da filosofia antropológica, que não é, como tado como o mais alto poder do homem. Mas o que o
outros ramos da investigação filosófica, um lento e homem nunca poderia saber, enquanto não fosse ilu-
contínuo desenvolvimento de idéias gerais. Até na minado por uma revelação divina especial, é que a
história da lógica, da metafísica e da filosofia natural própria razão é uma das coisas mais discutíveis e am-
encontramos as mais acerbas oposições. História que bíguas do mundo. A razão não pode mostrar-nos o
pode ser descrita, em termos hegelianos, como um caminho para a claridade, a verdade e a sabedoria.
processo dialético em que cada tese é seguida por sua Ela mesma é obscura em seu significado e sua origem
está envolta em mistério - mistério que só a revela-
1. Sobre uma narrativa minuciosa consulte Cassirer, Descartes
ção cristã é capaz de solucionar. Para Agostinho, a
pp.
(Estocolmo, 1939), 215 e seguintes. razão não tem uma natureza simples e única, senão
28 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 29

dupla e dividida. O homem foi criado à imagem de tarefa como nenhum outro escritor. Possuía um dom
Deus; e no estado original, em que se viu, ao sair das incomparável de elucidar as questões mais obscuras,'
mãos de Deus, era igual ao seu arquétipo. Porém, tudo de condensar e concentrar sistemas complexos e dis-
se perdeu pela queda de Adão. A partir desse momen- persos de pensamento. Nada parece impenetrável ao
to se obscureceu todo o poder original da razão, que, seu pensamento e à lucidez de seu estilo. Nele se
sozinha, entregue às suas próprias faculdades, jamais unem todas as vantagens da literatura e da filosofia
encontrará o caminho de volta. Não pode reconstruir- modernas, embora as utilize como armas contra o es-
-se nem retornar, por suas próprias forças, à pura pírito moderno, o espírito de Descartes e sua filosofia.
essência anterior. Esta reforma só será possível, pela À primeira vista, Pascal parece aceitar todas as pres-
ajuda sobrenatural e poder da graça divina. É a nova suposições do cartesianismo e da ciência moderna.
antropologia, no entender de Agostinho, a que se man- Nada há na natureza capaz de resistir ao esforço da
tém. em todos os grandes sistemas de pensamento me- razão científica, pois nada existe que possa resistir à
dievaL Mesmo Tomás de Aquino, discípulo de Aris- geometria. Foi curioso acontecimento na história das
tóteles, que volta às fontes da filosofia grega, não se idéias que um dos maiores e mais profundos geôme-
atreve a desviar-se deste dogma fundamental. Con- tras se convertesse em paladino extemporâneo da an-
cede à razão humana um poder muito maior do que tropologia filosófica da Idade Média. Aos dezesseis
Agostinho; mas está convencido de que a razão não anos, Pascal escreveu o tratado sobre seções cônicas,
pode utilizar-se corretamente desses poderes se não que abriu novo campo, rico e fecundo, ao pensamento
for guiada e iluminada pela graça de Deus. Aqui che- geométrico. Não era ele apenas grande geômetra, mas
gamos a uma completa inversão de todos os valores filósofo; e, assim, não se contentava em absorver-se
sustentados pela filosofia grega. O que outrora pare- com problemas geométricos, desejando também com-
cia ser o mais alto privilégio do homem revela-se ago- preender o verdadeiro uso, a extensão e os limites da
ra o seu perigo e tentação; o que constituía seu orgu- geometria. Deste modo, viu-se levado a estabelecer a
lho, agora se converte em sua mais profunda humi- distinção fundamental entre o "espírito geométrico" e
lhação. O preceito estóico, segundo o qual o' homem o "espírito agudo ou sutil". O espírito geométrico so-
precisa obedecer e reverenciar seu princípio interior, bressai em todos os assuntos suscetíveis de uma análise
o daemon que traz consigo, agora se reputa perigosa perfeita - que podem ser divididos até seus primeiros
idolatria. elementos. 1 Parte de certos axiomas, extraindo deles
Seria impraticável continuar descrevendo aqui o inferências cuja verdade pode ser demonstrada por
caráter desta nova antropologia, analisar-lhe os moti- regras lógicas universais. A vantagem deste espírito
vos fundamentais e acompanhar-lhe o desenvolvimen- consiste na clareza de seus princípios e na necessidade
to. Mas, para compreender seu sentido podemos optar' de suas deduções. Mas nem todos os objetos admitem
por um caminho diferente e mais curto. No princípio
dos tempos modernos surgiu um pensador que deu a 1. Sobre a distinção entre l'esprit çéometrique e l'esprit de fines-
esta antropologia novo impulso e esplendor; Na obra se, compare o tratado de Pascal "De l'esprit géométrique" e Pensées
de Pascal, editados por Charles Louandre (Paris, 1858),capo IX, p. 231.
de Pascal encontrou ela sua última e, talvez, mais no- Nos trechos que se seguem cito a tradução inglesa de O. W. Wight
tável expressão. Pascal estava preparado para esta (Nova Iorque, 1861).
Antropologia Filosófica 31
30 Ernst Cassirer

tra que existe dualidade no homem - o homem antes


tal tratamento. Existem coisas que, pela sua sutileza
e depois da queda; estava destinado à mais alta glória
e infinita variedade, desafiam todas as tentativas de
mas foi destronado. Com a queda perdeu o poder e
análise lógica. E se há alguma coisa no mundo que
perverteram-se-lhe a razão e a vontade. Compreen-
precisamos tratar desta segunda maneira, é o espírito
dida em seu sentido filosófico, no sentido de Sócrates,
do homem. O que caracteriza o homem é a riqueza e
Epicteto e Marco Aurélio, a máxima clássica "Conhe-
a sutileza, a variedade e a versatilidade de sua natu-
ce-te a ti mesmo" é, portanto, não só ineficaz mas tam-
reza. Por isto mesmo, a matemática nunca poderá vir
bém enganosa e errônea. O homem não pode confiar
a ser o instrumento de uma verdadeira doutrina do
em si mesmo nem ouvir de si para si. Tem que guar-
homem, de uma antropologia filosófica. É ridículo
dar silêncio próprio a fim de ouvir uma voz superior
falar do homem como se se tratasse de uma proposi-
e mais verdadeira. "Que será feito, então, de ti, ó
ção geométrica. Uma filosofia moral em termos de
homem! que indagas qual é tua verdadeira condição
um sistema de geometria - uma Ethica more geome-
por meio de tua razão natural? .. Conhece, pois, ho-
trico demonstrata -. é para o espírito de Pascal um
mem soberbo, que paradoxo és para ti mesmo. Humi-
absurdo, um sonho filosófico. Nem a lógica ou a me-
lha-te, razão impotente; emudece , natureza imbecil',
tafísica tradicionais estão em melhor posição para
aprende que o homem sobrepuja infinitamente o ho-
compreender e resolver o enigma do homem. Sua pri-
mem, e ouve de teu amo tua verdadeira condição: que
meira e suprema lei é o princípio de contradição. O
ignoras. Ouve a Deus." 1
pensamento racional, o pensamento lógico e metafí-
O que aqui se expõe não pretende ser uma solu-
sico, só pode compreender os objetos que estão livres
ção teórica do problema do homem. A religião não
da contradição e possuem uma natureza e verdade
pode oferecê-Ia, e tem sido sempre acusada, por seus
coerentes. Entretanto, é precisamente esta homoge-
adversários, de obscura e incompreensível. Mas a cen-
neidade que nunca encontramos no homem. Não é
sura se converte no mais alto louvor quando conside-
lícito ao filósofo construir um homem artificial', cum-
ramos seu verdadeiro objetivo. A religião não pode
pre-Ihe descrever um homem verdadeiro. Todas as
ser clara e racional; conta-nos uma história obscura
chamadas definições do homem não serão mais do
e sombria: a história do pecado e da queda do homem.
que mera especulação, enquanto não se basearem em
Revela um fato para o qual não há explicação racional
nossa experiência sobre ele, dela tendo a confirmacão.
possível. Não podemos explicar o pecado do homem,
Não há outro caminho para se conhecer o homem a
pois não foi produzido nem exigido por nenhuma cau-
não ser o de compreender-lhe a vida e seu procedi-
sa natural. Nem podemos explicar sua salvação, de-
mento. Mas o que encontramos aqui desafia toda ten-
pendente de um ato inescrutável da graça divina. É
tativa de inclusão numa fórmula única e simples. A
dada e negada livremente; não há ação nem mérito hu-
contradição é o próprio elemento da existência huma-
mano que possam merecê-Ia. A religião, portanto, nun-
na. O homem não tem "natureza" - não é simples
ca pretende esclarecer o mistério do homem, apenas o
e homogêneo. É uma estranha mistura de ser e não-
confirma e aprofunda. O Deus de que ela fala é um
-ser. Seu lugar fica entre estes dois pólos opostos.
Só existe, portanto, uma forma de abordarmos o
1. Pensées, capo x, seç. 1.
segredo da natureza humana: a religião. Ela nos mos-
32 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 33

Deus absconditus, um Deus oculto; por isso, até sua ma e, por assim dizer, se eleva a um nível superior.
imagem, o homem, não pode deixar de ser mistério. Neste ponto, o importante não é tanto o descobrimento
O homem é também um homo absconditus. A religião de fatos novos quanto o descobrimento de um novo
não é "teoria" de Deus e do homem e das suas rela- instrumento do pensamento. Agora, pela primeira vez,
ções mútuas. A única resposta que recebemos da reli- o espírito científico, no sentido moderno da palavra,
gião é que é vontade de Deus ocultar-se. "Então, estan- entra em cena. Procura-se uma teoria geral do ho-
do Deus oculto, nenhuma religião que não nos diga que mem baseada em observações empíricas e em princí-
Deus está oculto é verdadeira; e nenhuma religião que pios lógicos gerais. O primeiro postulado desse espíri-
não ofereça razão para isto é instrutiva. A nossa faz to novo e científico foi a eliminação de todas as bar-
tudo isto: Vere tu es Deus absconditus. 1 '" Pois reiras artificiais que, até então, haviam separado o
a natureza é tal que, em toda a parte, indica um Deus mundo humano do resto da natureza. Para compreen-
perdido, tanto no homem quanto fora do homem "2 der a ordem das coisas humanas precisamos começar
Por conseguinte, a religião, por assim dizer, é uma ló- com um estudo da ordem cósmica. E esta ordem cós-
gica do absurdo; pois só assim consegue entender a mica surge agora a uma luz inteiramente nova ... A
absurdeza, a contradição interior, o ser quimérico do nova cosmologia, o sistema heliocêntrico introduzido
homem. "Nada, por certo, nos impressiona tão rude- na obra de Copérnico, é a única base sólida e cientí-
mente quanto esta doutrina; e, todavia, sem este mis- fica para uma nova antropologia.
tério, o mais incompreensível de todos, somos incom- Nem a metafísica clássica nem a religião e a teo-
preensíveis para nós mesmos. O nó de nossa condição logia medievais estavam preparadas para esta tarefa.
se retorce e remoinha nesse abismo; de sorte que o Ambos corpos de doutrina, embora diferentes nos mé-
homem é mais inconcebível sem este mistério que este todos e propósitos, fundam-se num princípio comum.
mistério é inconcebível para o homem "3 Ambos concebem o universo como uma ordem hierár-
quica, em que o homem ocupa o supremo lugar. Na fi-
3 losofia estóica e na teologia cristã descrevia-se o homem
como o fim do universo. As duas doutrinas estavam
O que aprendemos com o exemplo de Pascal é convencidas de que existe uma providência geral, que
que, no princípio dos tempos modernos, ainda se sen- governa o mundo e o destino do homem. Este conceito
tia em toda a sua força o velho problema. Até depois é uma das pressuposições básicas do pensamento es-
do aparecimento do Discours de la méthode de Des- tóico e cristão. 1 Tudo isto é repentinamente posto em
cartes, o espírito moderno ainda lutava com as mesmas dúvida pela nova cosmologia. A pretensão do homem
dificuldades. Achava-se dividido entre duas soluções de ser o centro do universo perdeu sua razão de ser.
inteiramente incompatíveis. Mas, ao mesmo tempo, O homem está colocado num espaço infinito em que
começa um lento desenvolvimento intelectual, atra-
seu ser parece resumir-se num ponto de fuga isolado.
vés do qual a pergunta Que é o homem? se transfor- Está cercado de um universo mudo, de um mundo
1. Idem, capo XII, seç. 5.
2. Idem, capo XIII, seç. 3. 1. Sobre o conceito estóico de providência (1tpovo\a;) veja, por
3. Idem, capo X, seç, 1. exemplo, Marco Aurélio, op. cit., Livro lI, par. 3.
34 Ernst Cassirer 35
Antropologia Filosófica

hermético para seus sentimentos religiosos e para suas tensão, a esta mesquinha e provinciana maneira de
mais profundas necessidades morais. pensar e de julgar.
É compreensível, e até necessária, que a primeira
reação à nova concepção do mundo fosse apenas nega- QuandO as vinhas da nossa aldeia. são destr~ídas _pela geada, o
vigário da paróquia logo conclui que a índígnação de Deus se
tiva - uma reação de dúvida e temor. Nem mesmo voltou contra toda a raça humana... E quem, ao. ver. nossas
os maiores pensadores puderam libertar-se deste sen- guerras civis não brada que a. máquina do mundo ínteíro está
desandando ~ que o dia. do juizo final está próximo!... Mas
timento. "Le silence éternel de ces espaces infinis quem figurar em sua imaginação, como num quadro, 8: gran-
m'effraye", diz Pascal. 1 O sistema copernicano tor- diosa imagem de nossa mãe natureza, em toda sua majestade
e esplendor; quem souber reconhecer em sua .face uma var:e-
nou-se um dos mais vigorosos instrumentos do agnos- dade tão geral e constante, e que se veja a SI mesmo, e nao
ticismo e ceticismo filosóficos que se desenvolveram só a si mesmo mas a um reino inteiro, menor que um ponto
de lápis em comparação com o todo, será capaz de avaliar as
no século XVI. Em sua crítica da razão humana, Mon- coisas de acordo com seu verdadeiro valor e grandeza. 1
taigne emprega os conhecidos e tradicionais argumen-
tos dos sistemas de ceticismo grego. Acrescenta-lhes, Estas palavras de Montaigne nos fornecem a pi~-
porém, uma nova arma, que, em suas mãos, se revela ta de todo o desenvolvimento subseqüente da :;or~a
poderosíssima e de suma importância. Nada melhor moderna do homem. A filosofia moderna e a ciencia
para nos humilhar e quebrar o orgulho da razão hu- moderna precisavam aceitar o desafio contido nessas
mana que uma visão sem preconceitos do universo palavras. Precisavam provar que, longe de enfraque-
físico. Que o homem, diz ele num trecho famoso de cer ou dificultar o poder da razão humana, a nova
sua Apologie de Raimond Sebond, cosmologia o estabelece e confirma. Tal, f~i a taref~,
combinando esforços, dos sistemas metafísícos dos se-
me faça compreender, pela força da sua razão. sobre que alicerces
construiu as grandes vantagens que julga ter sobre as outras culos XVI e XVII, que seguem caminhos diferentes,
criaturas. Quem o fêz acreditar que esse admirável movimento mas todos se dirigem para a mesma m~ta. Esforçam-
da abóbada celeste, a luz eterna das luminárias que giram tão
alto sobre sua cabeça, os maravilhosos e terríveis movimentos -se, por assim dizer, para transformar .em b~nção a
do oceano infinito foram estabelecidos e continuam há tantos aparente maldição da nova cosmologia. GlOr?anO
séculos para seu serviço e conveniência? Pode-se imaginar al-
guma coisa mais ridícula do que esta miserável e desgraçada Bruno foi o primeiro pensador a pisar nesse camm~?,
criatura, que nem sequer é dona de si mesma, exposta às injú- que, em certo sentido, veio a ser o de toda a metafísi-
rias de todas as coisas, íntítular-se senhora e imperatriz do
mundo, do qual não tem o poder de conhecer a menor parte, ca moderna. O que caracteriza sua filosofia é que ne-
quanto mais de governar o todo? 2 la o termo "infinito" muda de sentido. No pensamen-
to clássico grego o infinito é um conceito negativo, é
O homem está sempre propenso a considerar o o que não tem limites ou o indeterminado. Sem limi-
pequeno horizonte que o cerca como o centro do mun- tes nem forma, é, portanto, inacessível à razão huma-
do e a fazer, de sua vida particular e privada, o mo- na, que vive no domínio das formas e nada ~a~s com-
delo do universo, mas precisa renunciar a esta vã pre- preende senão formas. Nesse sentido, o finito e_o
infinito, 7tEpaç e aTC-ê~pov, são, segundo declara Platao
1.Pascal, op. eit., capoXXV, seç, 18. no Filebo, os dois princípios fundamentais que se
2. Montaigne,Essais, II, cáp. XII. Tradução inglesa de William
Hazlitt, The Works 01 Michael de Montaigne (2." edição, Londres,
1845),p. 205. 1. Idem, r, capo xxv. Tradução inglesa, pp. 65 e seguintes.
Ernst Cauirer Antropologia Filosófica 37
36

opõem necessariamente. Na doutrina de Bruno o in- ticas do que nós, mas, no tocante à certeza objetiva,
finito já não significa uma simples negação ou limi- as poucas verdades conhecidas pela mente humana
tação. Pelo contrário, significa a incomensurável e são conhecidas tão perfeitamente pelo homem quanto
inexaurível abundância de realidade e o poder ilimi- por Deus. 1 Descartes principia com sua dúvida uni-
tado do intelecto humano. É neste sentido que Bruno versal, que parece encerrar o homem nos limites da
compreende e interpreta a doutrina de Copérnico. A própria consciência. Parece não haver meios de sair
seu ver, foi esta doutrina o primeiro passo decisivo no deste círculo mágico nem possibilidade de aproxima-
sentido da autolibertação do homem. O homem já não ção da realidade. Neste ponto, a idéia do infinito se
vive no mundo como prisioneiro encerrado dentro das revela o único instrumento para desfazer a dúvida
estreitas muralhas de um universo físico finito.Pode universal. Só por meio deste conceito podemos de-
atravessar os ares, rompendo todas as fronteiras ima- monstrar a realidade de Deus e, de maneira indireta,
ginárias das esferas celestes, erguidas por uma meta- a realidade do mundo material. Leibniz combina esta
física e uma cosmologia falsas. 1 O universo infinito prova metafísica com uma nova prova científica. Des-
não impõe limites à razão humana; ao contrário, é o cobre um novo instrumento do pensamento matemá-
seu grande incentivo. O intelecto humano toma cons- tico - o cálculo infinitesimal, cujas regras tornam in-
ciência da própria infinidade medindo seus poderes teligível o universo físico; e que as leis da natureza
pelo universo infinito. são apenas casos especiais das leis gerais da razão.
Tudo isto está expresso na obra de Bruno poeti- É Espinosa quem se aventura a dar o último passo de-
camente, não em linguagem científica. Ainda desco- cisivo nesta teoria matemática do mundo e do espírito
nhecia o novo mundo da ciência moderna, a teoria humano. Constrói uma nova ética, uma teoria das
matemática da natureza, não lhe sendo possível, por- paixões e afeições, uma teoria matemática do mundo
tanto, prosseguir no caminho até sua conclusão lógica. moral. Está convencido de que só por meio desta teo-
Foram necessários os esforços combinados de todos. os ria podemos atingir nossa finalidade: o objetivo de
metafísicos e cientistas do século XVII para superar a uma "filosofia do homem", de uma filosofia antropo-
crise intelectual provocada pelo descobrimento do sis- lógica, liberta dos erros e preconceitos de um sistema
tema coperniciano. Todo grande pensador - Galileu, meramente antropocêntrico. Tal é o tópico, o tema
Descartes, Leibniz, Espinosa - teve sua participação geral, que, em suas várias formas, impregna todos os
especial na solução do problema. Afirma Galileu que, grandes sistemas metafísicos do século XVII. É a so-
no campo da matemática, o homem atinge o ponto lução racionalista do problema do homem. A razão
culminante de todo o conhecimento possível - um matemática representa o elo entre o homem e o uni-
conhecimento não inferior ao do intelecto divino. verso; permite-nos passar livremente de um para o
Claro está que o intelecto divino conhece e concebe outro. A razão matemática é a chave da verdadeira
um número infinitamente maior de verdades matemá- compreensão da ordem cósmica e da ordem moral.

l. Sobre maiores detalhes veja Cassirer, Individuum und Kosmos 1. Galileu, Dialogo dei due masstmt sistemi de~ mondo, I (Edi·
tn der Philosophie der Renaissance (Lípsia, 1927),pp. 197 e seguintes. zlone nazíonale), VII, 129.
Antropologia Filosófica 39
38 Ernst Cassirer

em melhor situação que aquele que não tem fortuna


4
alguma. Está próximo, todavia, o momento em que
Em 1754, Denis Diderot publicou uma serre de superaremos este preconceito e, então, teremos alcan-
aforismos intitulada Pensées sur Z'interprétation de Za çado um ponto novo e culminante na história da
nature. Neste ensaio declarava que a superioridade da ciência natural.
matemática no domínio da ciência já não é incontes- Cumpriu-se a profecia de Diderot? Acaso lhe
tada. A matemática, asseverava, alcançou tão alto confirmou o ponto de vista o desenvolvimento das
grau de perfeição que já não é possível nenhum pro- idéias científicas no século XIX? Num ponto, sem
gresso; daqui por diante, permanecerá estacionária. dúvida, seu erro é patente. Sua expectativa de que o
pensamento matemático se deteria, de que os grandes
Nous touchons au moment d'une grande révolution dans Ies
scíences. Au penchant que Ies esprits me paroissent avoir à Ia matemáticos do século XVIII haviam alcançado as
rnorale, aux belles Iettres, à I'histoire de Ia nature et à Ia physi- Colunas de Hércules, revelou-se totalmente falsa. A
que expérímentaíe j'oserois presque assurer qu'avant qu'il soit
cent ans on ne comptera pas trois grands géometres en Europe. constelação do século XVIII devemos agora juntar os
Cette science s'arrêtera tout court ou l'auront laíssé Ies Ber- nomes de Gauss, Riemann, Weierstrass, Poincaré. Por
nouíllí, Ies Euler, les Maupertuís et Ies d'Alembert. Ils auront
posés les colonnes d'Hercule, on n'íra point au delà. 1 toda parte, na ciência do século XIX, encontramos
com a marcha triunfal de novas idéias e conceitos ma-
Diderot é um dos grandes representantes da filo- temáticos. Não obstante, a predição de Diderot con-
sofia do iluminismo. Como editor da EncycZopédie se tinha um elemento de verdade, pois a inovação da es-
achava no verdadeiro centro de todos os grandes mo- trutura intelectual do século XIX está no lugar que
vimentos intelectuais de sua época. Ninguém teve o pensamento matemático ocupa na hierarquia cien-
uma perspectiva mais clara do desenvolvimento geral tífica. Nova força principia a aparecer. O pensamen-
do pensamento científico nem uma percepção mais to biológico precede o pensamento matemático. Na
apurada de todas as tendências do século XVIII. E o primeira metade do século XIX ainda existem meta-
que Diderot tem de mais característico e notável como físicos como Herbart e psicólogos como G. Th. Fech-
representante de todos os ideais do iluminismo, é o ner, que alimentam a esperança de fundar uma psico-
fato de ter começado a duvidar deles, em sua valida- logia matemática. Mas esses projetos se dissipam ra-
de absoluta. Espera que surja uma nova forma de pidamente após a publicação da obra de Darwin
ciência - de caráter mais concreto, apoiada antes na Sobre a Origem das Espécies. A partir deste momen-
observação dos fatos que na presunção de princípios to parece definitivamente fixado o verdadeiro caráter
gerais. A seu ver, sobrestimamos em demasia nossos da filosofia antropológica. Depois de um sem-número
métodos lógicos e racionais. Sabemos comparar, orga- de tentativas infrutíferas, a filosofia do homem pisa,
nizar e sistematizar fatos conhecidos; mas não culti- afinal , terreno firme. Já não precisamos entregar-nos
.
vamos os únicos métodos pelos quais nos seria possí- a especulações vãs, pois não estamos à cata de uma
vel descobrir novos fatos. Vivemos na ilusão de que definição geral da natureza ou da essência do homem.
o homem que não sabe contar sua fortuna não se acha Nosso problema se resume em reunir as provas em-
píricas que a teoria geral da evolução colocou à nossa
1. Diderot, Pensées sur l'interprétation de Ia nature, seç. 4; cr, disposição, farta e ricamente.
seçs. 17, 21.
40 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 41

Tal era a convicção de que compartiam cientistas terminologia aristotélica, são causas "acidentais".
e filósofos do século XIX. Mas o que se tornou ainda Aristóteles sustentou enfaticamente a impossibili-
mais importante para a história geral das idéias e dade de se compreender os fenômenos da vida por
para o desenvolvimento do pensamento filosófico não estas causas acidentais. A teoria moderna aceita o
foram os fatos empíricos da evolução, mas a interpre- desafio. Os pensadores modernos sustentaram que,
tação teórica destes fatos. Esta interpretação não era depois de inúmeras e baldadas tentativas anteriores,
determinada, num sentido sem ambigüidades, pela conseguiram explicar, claramente, a vida orgânica
própria prova empírica, mas por certos princípios como simples produto de câmbio. As mudanças aci-
fundamentais que tinham um caráter metafísico po- dentais que ocorrem na vida de todo organismo são
sitivo. Embora raras vezes reconhecido, o modelo me- suficientes para explicar a gradativa transformação
tafísico do pensamento evolutivo era uma força moti- que nos conduz, das formas mais simples de vida en-
vadora latente. Num sentido filosófico geral, a teoria contradas num protozoário, às formas mais elevadas
da evolução não era, de maneira alguma, uma con- e complicadas. Uma das mais notáveis expressões
quista recente. Recebera sua expressão clássica na desse ponto de vista oferece-nos o próprio Darwin, em
psicologia de Aristóteles e na sua visão geral da vida geral tão reticente no que concerne às suas concep-
orgânica. A distinção característica e fundamental, ções filosóficas. "Não somente as várias raças domés-
entre a versão aristotélica e a versão moderna da evo- ticas", observa Darwin no final do seu livro, The Va-
lução, consistia no fato de que Aristóteles lhe dava riation of Animals and Plants under Domesticaium,
uma interpretação formal, ao passo que os modernos mas os gêneros e ordens mais distintos dentro da mesma grande
tentavam apresentar uma interpretação material. classe - por exemplo, mamíferos, pássaros, répteis e peixes -
Aristóteles estava convencido de que, para compreen- sáo todos descendentes do mesmo progenitor comum, e precisa-
mos admitir que toda a vasta quantidade de diferenças entre
der o plano geral da natureza, as origens da vida, as estas formas surgiu, em primeiro lugar, da simples variabili-
formas inferiores precisavam ser interpretadas à luz dade. A consideração do assunto por esse prisma é suficiente
para deixar-nos perplexos. Mas nosso assombro diminuirá se
das formas superiores. Em sua metafísica, em sua' de- refletirmos que um número quase infinito de seres, durante um
finição da alma como "a primeira realização de um lapso quase infinito de tempo, teve amiúde toda sua organização

i
plástica em certo grau, e que cada ligeira modificação de estru-
corpo natural potencialmente dotado de vida", a vida tura, que de algum modo era benéfica, em condições excessiva-
orgânica é concebida e interpretada em termos de mente complexas de vida, se preservou, enquanto que toda modi-
.~
ficação nociva foi rigorosamente destruída. E a acumulação,
vida humana; seu caráter teleológico se projeta em processada durante tão longo tempo, de variações benéficas
todo o domínio dos fenômenos naturais. Na teoria
moderna, inverte-se a ordem: as causas finais de
Aristóteles são caracterizadas como mero "asylum
j terá infalivelmente conduzido a estruturas tão diversificadas, tão
formosamente adaptadas a várias finalidades e tão excelente-
mente coordenadas como vemos nas plantas e animais que nos
cercam, Por isso falei em seleção como a força suprema, quer
aplicada pelo homem à formação de raças domésticas, quer
ignorantiae". Um dos principais escopos da obra aplicada pela natureza à produção de espécies... Se um arqui-
de Darwin foi libertar o pensamento moderno da teto decidisse erguer um nobre e amplo edifício, sem o emprego
da pedra lavrada, escolhendo, entre os fragmentos esparsos na
ilusão das causas finais. Precisamos buscar com- base de um precipício, pedras em forma de cunha para seus
preender a estrutura da natureza orgânica somente arcos, pedras alongadas para seus dintéis e pedras achatadas
pura seu telhado, nós lhe admiraríamos a habilidade e o consi-
pelas causas materiais, pois, do contrário, não pode- deraríamos como a força suprema. Pois bem, os fragmentos
remos compreendê-Ia. Mas as causas materiais na de pedra, julgados indispensáveis pelo arquiteto, estão para o
42 Ernst Cassirer
Antropologia Filosófica 43

edifício por ele construido COJJlO estão as flutuantes variações


dos seres orgânicos para as variadas e admiráveis estruturas seus sentimentos, inclinações, idéias, pensamentos e
finalmente adquiridas pelos seus descendentes modificados. 1
na produção de obras de arte, o homem jamais pode
Mas era preciso dar outro passo, talvez o mais sair deste círculo mágico. Podemos consíderá-lo como
importante, antes que se pudesse desenvolver uma um animal de espécie superior, que produz filosofias
verdadeira filosofia antropológica. A teoria da evolu- e poemas como os bichos-da-seda produzem seus ca-
ção destruíra os limites arbitrários entre as diferentes sulos ou as abelhas constroem seus alvéolos. No pre-
formas de vida orgânica. Não há espécies separadas; fácio de sua grande obra, Les origines de Ia France
há somente uma contínua e ininterrupta corrente de contemporaine, declara Taine que vai estudar a trans-
vida. Mas podemos aplicar o mesmo princípio à vida formação da França como resultado da Revolução
humana e à cultura humana? Será o mundo cultural, Francesa tal qual faria com a "metamorfose de um
como o mundo orgânico, feito de mudanças aciden- inseto".
tais? - Não possui ele uma estrutura teleológica de- Surge aqui, porém, outra pergunta. Podemos
finida e inegável? Com isto se apresentou um novo contentar-nos .em enumerar, de maneira meramente
problema a todos os filósofos que faziam da teoria ge- empírica, os diferentes impulsos que encontramos na
ral da evolução seu ponto de partida. Era-lhes preciso
natureza humana? Para termos deles uma visão real-
provar que o mundo cultural, o mundo da civilização
mente científica, teriam de ser classific~dos e sistema-
humana, é reduzível a umas poucas causas gerais,
tizados, e é óbvio que nem todos estão no mesmo ní-
que são as mesmas para OS fenômenos físicos e para
vel. Precisamos supô-Ios dotados de uma estrutura
os chamados fenômenos espirituais. Tal foi o novo ti-
definida - e uma das primeiras e mais importantes
po de filosofia da cultura introduzido por Hippolyte
Taine em sua Filosofia da Arte e em sua História da tarefas da nossa psicologia e da nossa teoria da cul-
Literatura Inglesa. "Aqui, como em toda a parte", tura é descobrir essa estrutura. No complicado me-
disse Taine, canismo da vida humana precisamos descobrir a força
propulsora oculta, que põe em movimento todo o me-
temos apenas um problema mecânico; o efeito total é um resul- canismo de nosso pensamento e vontade. O objetivo
tado, que depende inteiramente da magnitude e da direção das
causas produtoras... Posto que os meios de notação não são principal de todas estas teorias era provar a unidade
os mesmos nas ciências morais e nas ciências físicas, em ambas e a homogeneidade da natureza humana. Mas se exa-
a matéria é idêntica, igualmente feita de forças, magnitudes e
direções, e podemos dizer que em arnbas o resultado final é minarmos as explicações que elas pretendiam dar a
produzido de acordo com o mesmo método. 2 unidade da natureza humana se nos afigura extre-
É mesmo anel de ferro da necessidade, envol-
O
mamente duvidosa. Todo filósofo acredita haver en-
vendo tanto nossa vida física quanto a cultural. Em contrado a mola mestra e a faculdade principal -
l'idée maitresse, como lhe chamava Taine. Mas no
l. Darwin, The Variation ot Animals and Plants uruier Domes- que concerne ao caráter dessa faculdade principal to-
tication (Nova Iorque, D. Appleton & Co., 1897), rr, capo XXVIII, das as explicações diferem amplamente uma da outra
pp. 425 e seguintes.
2. Taine, Histoire de la littérature ançloise, Intro. Tradução ingle-
e se contradizem. Cada pensador nos dá uma visão
sa de H. van Laun (Nova Iorque, Holt & co., 1872), I, pp. 12 e especial da natureza humana. Todos estes filósofos
seguintes.
são empiristas decididos: querem mostrar fatos e na-

j
Antropologia Filosófica 45
44 Ernst Cassirer

sua quem que voluptas: cada autor parece, em última


da mais que fatos. Mas sua interpretação da prova
análise, movido pela própria concepção e valorização
empírica contém, desde o princípio, uma suposição
da vida humana.
arbitrária - e essa arbitrariedade se torna mais e mais
Que este antagonismo de idéias não é apenas um
manifesta à proporção que a teoria se desenvolve e
grave problema teórico, mas uma ameaça iminente a
assume um aspecto mais requintado e complicado.
toda a extensão de nossa vida ética e cultural, não
Nietzsche proclama a vontade do poder, Freud assi- padece dúvida. Em recente pensamento filosófico,
nala o instinto sexual, Marx entroniza o instinto eco-
Max Scheler foi um dos primeiros a tomar consciên-
nômico. Cada teoria se transforma num leito de Pro-
cia deste perigo e a chamar a atenção para ele. "Em
custo, onde se esticam os fatos empíricos para que se nenhum outro período do conhecimento humano",
adaptem a um padrão preconcebido.
declara Scheler,
Em virtude deste desenvolvimento, nossa moder-
na teoria do homem perdeu seu centro intelectual. o homem se tornou mais problemático para si mesmo do que
em nossos dias. Dispomos de uma antropologia científica, uma
Ganhamos, em seu lugar, uma completa anarquia de antropoíogta filosófica e uma antropologia teológica que se igno-
pensamento. Até nas épocas anteriores, evidentemen- ram entre si. Por conseguinte, já não possuímos nenhuma
idéia clara e coerente do homem. A multiplicidade cada vez
te, havia grande discrepância de opiniões e teorias em maior das ciências particulares, que se ocupam do estudo dos
relação ao problema. Mas subsistia, ao menos, uma homens, antes confundiu e obscureceu do que elucidou nossa
orientação geral, um ponto de vista, a que se podiam .concepção do homem. 1
referir todas as diferenças individuais. A metafísica
Tal é a estranha situação em que se encontra a
a teologia, a matemática e a biologia assumiram su-
.
cessivamente, a orientação, do pensamento sobre o
' filosofia moderna. Nenhuma outra idade se viu em
problema do homem e lhe determinaram a linha de posição tão favorável no que concerne às fontes do
conhecimento da natureza humana. A psicologia, a
investigação. A verdadeira crise do problema se ma-
etnografia, a antropologia e a história reuniram um
nifestou quando deixou de existir o poder central' ca-
cabedal de fatos surpreendentemente rico e de cons-
paz de dirigir todos os esforços individuais. Percebia-
tante crescimento. Nossos instrumentos técnicos de
-se ainda a suma importância do problema em todos
observação e experimentação foram imensamente
os di~;rs~s ra~o~ do conhecimento e da investigação. aperfeiçoados e nossas análises se tornaram mais apu-
Mas ja nao existia uma autoridade estabelecida, para
radas e mais penetrantes. Apesar disto, não parece
a qual se pudesse apelar. Teólogos, cientistas, políti-
que tenhamos encontrado ainda um método para o
cos, ~ociólogos, biologistas, psicólogos, etnólogos, eco- .
domínio e a organização deste material. Cotejado com
nomistas, todos abordavam o problema pelos seus pon-
nossa própria abundância, o passado pode parecer pau-
tos de vista. Era impossível combinar ou unificar os
pérrimo. Entretanto, nossa riqueza de fatos não é
aspectos e perspectivas particulares. Nem mesmo
necessariamente uma riqueza de pensamentos. A não
dentro dos campos especiais havia um princípio cien-
tífico geralmente aceito. O fator pessoal passou a pre-
valecer cada vez mais, e o temperamento do escritor 1. Max Scheler, Die Stellunç des Menschen im Kosmos (Darms-
tadt, Reichl, 1928), pp. 13 e seguinte.
começou a desempenhar um papel decisivo. Trahit

....01
4.6 Ernst Cassirer

ser que consigamos encontrar o fio de Ariadne que nos


tire deste labirinto, não poderemos ter uma visão do
caráter geral da cultura humana, e continuaremos per-
didos no meio de um conjunto de dados desconexos e
desintegrados, carente, ao que parece, de toda unidade
conceitual. II
UMA CHAVE PARA A NATUREZA DO
HOMEM: O SíMBOLO

o BIOLOGISTA Johannes von Uexkül1 escreveu um


livro em que procede a uma revisão crítica dos prin-
cípios da biologia. De acordo com Uexküll, a biolo-
gia é uma ciência natural, que precisa ser desenvol-
vida por meio dos métodos empíricos usuais - os da
observação e experimentação. O pensamento bioló-
gico, por outro lado, não pertence ao mesmo tipo do
pensamento físico ou do químico. Uexküll é um re-
soluto campeão do vitalismo, defendendo o princípio
da autonomia da vida. A vida é uma realidade final
e dependente de si mesma. Não pode ser descrita nem
cxplicada em termos de física ou de química. Partin-
do deste ponto de vista, Uexküll desenvolve um novo
esquema geral de pesquisa biológica. Como filósofo,
ú idealista ou fenomenalista. Mas seu fenomenalismo
não se baseia em considerações metafísicas ou episte-
mológicas, mas, antes, em princípios empíricos. Como
ele assinala, seria de um dogmatismo muito ingênuo a
presunção de que existe uma realidade absoluta de
coisas, idêntica para todos os seres vivos. A realidade
não é uma coisa única e homogênea; imensamente di-
versificada, possui tantos padrões e planos diferentes
quantos são os organismos diferentes. Todo organis-
mo, por assim dizer, é um ser monadário. Tem um
48 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 49

mundo próprio, porque tem uma experiência própria. o organismo não poderia sobreviver. O sistema re-
Os fenômenos que encontramos na vida de certas es- ceptor, pelo qual uma espécie biológica recebe os es-
pécies biológicas não são transferíveis para nenhuma tímulos externos e o sistema pelo qual reage a ele
outra espécie. As experiências - e portanto as rea- estão, em todos os casos, intimamente entrelígados.
lidades - de dois organismos diferentes são incomen- São elos da mesma cadeia, descrita por Uexküll como
suráveis entre si. No mundo de uma mosca, diz o círculo funcional (Funktionskreis ) do animal. ~
Uexküll, só encontramos "coisas de moscas"; no mun- Não posso entrar aqui na discussão dos princí-
do de um ouriço do mar só encontramos "coisas de pios biológicos de Uexküll. Referi-me tão-somente
ouriços do mar". aos seus conceitos e à sua terminologia a fim de for-
Partindo desta pressuposição geral, Uexküll de- mular uma pergunta geral. Será possível utilizar o
senvolve um planooriginalíssimo e engenhoso do mun- plano proposto por Uexküll para uma descrição e ca-
do biológico. Desejando evitar .todas as interpreta- racterização do mundo humano? É evidente que este
ções psicológicas, segue um método inteiramente obje- mundo não constitui exceção às regras biológicas que
tivo ou behaviorista. A única chave para a vida ani- governam a vida de todos os outros organismos. En-
mal nos é proporcionada pelos fatos da anatomia com- tretanto, no mundo humano encontramos uma nova
parada. Se conhecermos a estrutura anatômica de característica, que parece ser a marca distintiva da
uma espécie animal, possuiremos todos os dados ne- vida humana. O círculo funcional do homem não foi
cessários à reconstrução de seu modo especial de ex- apenas quantitativamente aumentado; sofreu também
periência. Um estudo cuidadoso da estrutura do cor- uma mudança qualitativa. O homem, por assim dizer,
po animal, do número, da qualidade e da distribuição descobriu um novo método de adaptar-se ao meio.
dos vários órgãos dos sentidos e das condições do -Entre o sistema receptor e o sistema de reação, que se
sistema nervoso, nos dará uma imagem perfeita do encontram em todas as espécies animais, encontramos
mundo interior e exterior do organismo. Uexküll no homem um terceiro elo, que podemos descrever
principia suas investigações com um estudo dos or- como o sistema simbólico. Esta nova aquisição trans-
ganismos inferiores; estendeu-as gradativamente a forma toda a vida humana. Em confronto com os ou-
todas as formas da vida orgânica. Em certo sentido, tros animais, o homem não vive apenas numa reali-
recusa-se a falar em formas inferiores ou superiores dade mais vasta; vive, por assim dizer, numa nova
de vida. A vida é perfeita em toda parte; é idêntica, dimensão da realidade. Existe uma diferença inequí-
tanto no menor como no maior dos círculos. Todo voca entre as reações orgânicas e as respostas huma-
organismo, até o mais rudimentar, não só se acha nas. No primeiro caso, a resposta dada a um estímulo
adaptado, num sentido vago (angepasst) ao seu meio, exterior é direta e imediata; no segundo, a resposta é
mas também inteiramente coordenado (eingepasst) diferida. É interrompida e retardada por um lento e
com seu ambiente. complicado processo de pensamento. A primeira vis-
De acordo com sua estrutura anatômica, possui ta, este atraso pode parecer uma vantagem. muito dis-
certo Merknetz e certo Wirknetz - um sistema re-
ceptor e um sistema destinado a responder à estimu- 1. Veja Johannes von Uexküll, Theoretische Biologie (2." edição,
Berlim, 1938); Umwelt unâ lnnenwelt der Tiere 0909; 2." edição, Ber-
laçâo. Sem a cooperação e o equilíbrio destes sistemas 11m, 1921).
50 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 51

cutível. Inúmeros filósofos lançaram advertências cionalismo moderno, a definição do homem como
contra este pretenso progresso. "L'homme qui médi- animal rationale não perdeu sua força. A raciona-
te", diz Rousseau, "est un animal dépravé": não se lidade, com efeito, é uma característica inerente a
aprimora, mas se deteriora a natureza humana quan- todas as atividades humanas. A própria mitologia
do ultrapassa as fronteiras da vida orgânica. não é, pura e simplesmente, um conjunto vulgar
Entretanto,não existe remédio contra essa inver- de superstições ou de grosseiras ilusões. Não é pu-
são da ordem natural. O homem não pode fugir à ramente caótica, pois possui forma sistemática ou con-
própria consecução. Não pode deixar de adotar as ceitual. 1 Mas, por outro lado, fora impossível carac-
condições da própria vida. Já não vive num universo terizar como racional a estrutura do mito. A lingua-
puramente físico, mas num universo simbólico. A gem foi freqüentemente identificada com a razão, ou
linguagem, o mito, a arte e a religião são partes deste com a própria origem da razão. Mas é fácil ver que
universo. São os vários fios que tecem a rede simbó- esta concepção não consegue abarcar todo o campo.
lica, a teia emaranhada da experiência humana. Todo É uma pars pro toto; oferece-nos uma parte pelo todo.
o progresso humano no pensamento e na experiência Pois lado a lado com a linguagem conceitual há a lin-
aperfeiçoa e fortalece esta rede. Já não é dado ao ho- guagem emocional; lado a lado com a linguagem ló-
mem enfrentar imediatamente a realidade; não pode gica ou científica há a linguagem da imaginação poé-
vê-Ia, por assim dizer, face a face. A realidade física tica. Em primeiro lugar, a linguagem não expressa
parece retroceder proporcionalmente, à medida que pensamentos nem idéias, mas sentimentos e afeições.
avança a atividade simbólica do homem. Em lugar de E até uma religião "dentro dos limites da razão pura",
lidar com -as próprias coisas, o homem, em certo sen- como a concebeu e elaborou Kant, não é mais que
. tido, está constantemente conversando consigo mes- uma simples abstração. Transmite apenas a configu-
mo. Envolveu-se por tal maneira em formas lingüís- ração ideal, a sombra de uma genuína e concreta vida
ticas, em imagens artísticas, em símbolos míticos ou religiosa. Os grandes pensadores que definiram o ho-
em ritos religiosos, que não pode ver nem conhecer mem como um animal rationale não eram empiristas,
coisa alguma senão pela interposição desse meio ar- nem jamais tentaram oferecer uma explicação empíri-
tificial. Tanto na esfera teórica quanto na prática, a ca da natureza humana. Por meio desta definição, ex-
situação é a mesma. Nem mesmo nesta última vive o pressavam antes um imperativo moral fundamental.
homem num mundo de fatos indisputáveis, ou de . Razão é um termo muito pouco adequado para abran-
acordo com suas .necessidades e desejos imediatos. Vi- ger as formas da vida cultural do homem em t~da ~ua
ve antes no meio de emoções imaginárias, entre espe- riqueza e variedade. Mas todas estas formas sao SIm-
ranças e temores, ilusões e desilusões, em seus so- bólicas. Portanto, em lugar de definir o homem co-
nhos e fantasias. "O que perturba e alarma o ho- mo um animal raiumale, deveríamos defini-I o como
mem", diz Epicteto, "não são as coisas, são suas opi- um animal symbolicum. Deste modo, podemos desig-
niões e fantasias a respeito das coisas". nar sua diferença específica, e podemos compreender
Do ponto de vista a que acabamos de chegar, o novo caminho aberto ao homem: o da civilização.
podemos corrigir e ampliar a definição clássica do
1. Veja Cassirer, Die Begriffsform im mythischen Denken (Líp-
homem. A despeito de todos os esforços do irra- sia, 1921).
III
DAS REAÇõES ANIMAIS ÀS
RESPOSTAS HUMANAS

P ELA nossa definição do homem como animal symbo-


licum chegamos ao nosso primeiro ponto de partida
para novas investigações. Agora, porém, se torna im-
perativo desenvolvermos um pouco essa definição pa-
ra dar-lhe maior precisão. É inegável que o pensa-
mento simbólico e o comportamento simbólico figu-
ram entre os traços mais característicos da vida hu-
mana, e que todo o progresso da cultura humana se
baseia nessas condições. Mas temos, porventura, o di-
reito de considerá-Ias como dote especial do homem
com exclusão de todos os outros seres orgânicos? Não
é o simbolismo um princípio a cuja origem, muito mais
profunda, podemos remontar, e que possui uma ampli-
tude de aplicabilidade muito maior? Se respondermos
negativamente à pergunta, estaremos confessando, ao
que parece, nossa ignorância acerca de muitas pergun-
tas fundamentais que têm perenemente ocupado o cen-
tro de atenção na filosofia da cultura humana. A per-
gunta sobre a origem da linguagem, da arte, da religião
torna-se irrespondível, e ficaremos com a cultura hu-
mana como com um fato dado, que subsiste, em certo
sentido isolado e, portanto, ininteligível.
É compreensível que os cientistas se tenham sem-
pre recusado a aceitar uma solução desta ordem. Enví-
54 Antropologia Filosófica 55
Ernst Cassirer

daram grandes esforços para ligar o fato do simbolis- longados experimentos de treinamento demonstraram
mo a outros fatos conhecidos e mais elementares. Per- a ocorrência de processos simbólicos no comportamen-
cebeu-se que o problema é de suma importância mas, to de macacos antropóides. Robert M. Yerkes, que
infelizmente, raras vezes tem sido abordado com um descreve tais experiências em seu último livro, extrai
espírito inteiramente sem preconceitos. Desde o prin- delas importante conclusão geral.
cípio vem sendo obscurecido e perturbado por outras É evidente que [os processos simbólicos] são relativamente raros
questões, que pertencem a um campo inteiramente di- e difíoeis de se observar. Poder-se-á razoavelmente contest~r-
-lhes a existência, mas desconfio que, dentro em. POUC?, serao
ferente das discussões. Em vez de nos dar uma des- identificados como antecedentes dos processos símbólícos hu-
crição e uma análise imparciais dos próprios fenôme- manos. Assim, deixamos este assunto. numa fase em~olgante de
desenvolvimento, quando parecem iminentes descobrImentos de
nos, a discussão deste problema converteu-se em dispu- importância. 1
ta metafísica. Tem sido o pomo da discórdia dos dife-
rentes sistemas metafísicos: entre idealismo e mate- Seria prematuro fazermos quaisquer predições no
rialismo, entre espiritualismo e naturalismo. Para to- tocante ao futuro desenvolvimento deste pr~blem~.
dos estes sistemas, a questão do simbolismo tornou-se Deve-se deixar campo aberto para ulter~ores l~lVesh-
um problema crucial, em torno do qual parecia girar gações. A interpretação dos fatos experIm~ntaIs, por
a futura forma da ciência e da metafísica. outro lado, sempre depende de certos conceitos funda-
Não nos ocuparemos aqui desse aspecto do pro- mentais que terão de ser esclarecidos antes qu~ o m~te-
blema, pois nos propomos uma tarefa muito mais mo- rial empírico possa produzir seus frutos. A pSIcolog~ae
desta e concreta. Tentaremos descrever a atitude sim- a psicobiologia modernas tomam este fato em co~sIde-
bólica do homem de maneira mais precisa, a fim de ração. Parece-me altamente significativo que, hoje ~m
podermos contrapô-Ia a outros modos de comporta- dia, não sejam os filósofos e sim os observ~dores : 1I:-
mento simbólico, encontrados em todo o reino animal. vestigadores empíricos que parecem assunnr os p:mcI-
Evidentemente, não se discute que os animais nem pais papéis na solução do problema. Estes nos dizem,
sempre reagem aos estímulos de maneira direta, que afinal de contas, que o problema não é simplesmen:e
são capazes de uma reação indireta. As conhecidíssi- empírico, porém, em grande parte, lógico. .Georg Re-
mas experiências de Pavlov nos proporcionam farto vész publicou recentemente uma série de artigos e~
conjunto de provas empíricas no que se refere aos que começa propondo a questão calorosame~te debati-
chamados estímulos representativos. No caso dos maca- da da linguagem animal não poder ser resolVIdaapenas
cos antropóides, interessantíssimo estudo experimen- com base em fatos de psicologia animal. Quem quer
tal de Wolfe mostrou a eficácia das "recompensas si- que examine as diferentes teses e :eorias ?sicológicas,
muladas". Os animais aprendiam a responder a sinais com espírito crítico e sem prevençoes, tera de _chegar,
como substitutos das recompensas de comida, da mes- finalmente, à conclusão de que o problema nao pode
ma maneira pela qual respondiam à própria comida. 1 ser elucidado pela simples referência às f~rmas ~e co:
No entender de Wolfe, os resultados de diversos e pro- municação animal e a certas demonstraçoes obtidas a

1. J. B. wolre, "Effectiveness or Token-rewards for Chimpanzees", 1. Robert M. Yerkes, Chimpanzees. A Laboratory Colony (New
Comparative Psychology Monographs, 12, N.o 5. Haven, Yale University Press, 1943), p. 189.
Antropologia Filosófica 57
56 Ernst Cassirer

analogias e paralelos com a linguagem emocional. No


custa de exercicios e treinamento. Todas elas admi-
que se refere a chimpanzés, Wolfgang Koehler afirma
tem as mais contraditórias interpretações. Por isto é
que eles conseguem um grau considerável de expres-
necessário, antes de tudo, um ponto de partida correto
são por meio de gestos. Raiva, terror, desespero, so-
e lógico, que possa levar-nos a uma interpretação na-
frimento, súplicas, desejo, jogralices e prazer pronta-
tural e válida dos fatos empíricos. Este ponto de par-
mente se expressam dessa maneira. Não obstante, fal-
tida é a definição da linguagem (die Begriffsbestim-
mung der Sprache). 1 Mas em lugar de darmos uma ta um elemento, característico de toda linguagem hu-
mana e indispensável a ela: não encontramos sinais
definição acabada da linguagem, seria melhor talvez
que tenham uma referência ou um significado obje-
procedermos por tentativas. A linguagem não é um
tivo. "Pode aceitar-se como positivamente provado",
fenômeno simples e uniforme. Consiste em diferentes
diz Koehler,
elementos, que, tanto biológica quanto sistematica-
mente, não se encontram no mesmo nível. Precisamos que a escala fonética d;les é totalmente "subjetiva", podendo
ap~mas expressar emoçoes, e nunca designar nem descrever
tentar encontrar a ordem e as relações recíprocas de objetos. .M~ eles possuem tantos elementos fonéticos, comuns
seus elementos constituintes; precisamos, por assim t~mbém à lmguagem humana, que a ausência de fala articulada
nao pode ser atribuída a limitações secundárias (glosso-labiais).
dizer, distinguir os vários estratos geológicos da lin- ~ mesma forma, seus esgares e gestos, bem como suas expres-
guagem. O primeiro e mais fundamental é, evidente- soes sonoras. nunca designam nem "descrevem" objetos (Büh-
mente, a linguagem das emoções. Grande parte de ler). 1

toda a expressão oral humana ainda pertence a esse Tocamos aqui o ponto crucial de todo o nosso
estrato. Mas há uma forma de linguagem que nos problema. A diferença entre a linguagem proposicio-
mostra um tipo totalmente diverso. Aqui a palavra nal e a linguagem emocional, verdadeiro marco divi-
não é simples interjeição; não é uma expressão invo- sório entre o mundo humano e o mundo animal. To-
luntária de sentimento, mas parte de uma sentença das as teorias relativas à linguagem animal carecem
que tem estrutura sintática e lógica defínida.P É ver- de significação se deixarem de reconhecer esta dife-
dade que nem mesmo na linguagem altamente desen- rença fundamental. 2 Em toda a literatura sobre o
volvida, na linguagem teórica, se acha inteiramente assunto parece não haver uma única prova concluden-
partida a conexão com o primeiro elemento. Difi-
cilmente se encontrará uma sentença - com ex- 1. . woírgang Koehler, "Zur Psychologie des Schimpansen", Psy-
ceção talvez das sentenças formais puras da matemá- cboloçische Eorschunç, I (1921), 27. Cf. a edição inglesa, The Menta-
lity'Ol Apes (Nova Iorque, Harcourt, Brace, 1925), p. 317.
tica - que não tenha certo matiz afetivo ou emocio- 2. U~a tentativa anterior para estabelecer uma nítida distinção
nal.ê Encontram-se, abundantes, no mundo animal, entre a lmguagem proposícíonal e a linguagem emocional foi realizada
no campo .da psícopatologia da linguagem. O neurologista inglês
Jackson introduziu a expressão "linguagem proposicíonal" no intuito
1.G. Révész, "Die menschlichen Kommunikationsformen und die de explicar alguns fenômenos patológicos interessantíssimos. Desco-
sogenannte Tiersprache", Proceedings ot the Netnerlands Akademie briu que muitos' pacientes que sofriam de afasia não tinham de ma-
van Wetenschappen, XLIII (1940), N.oS 9, 10; XLIV (941), N.o 1. neira alguma, perdido o uso da fala, mas não podiam empregar suas
2. Sobre a distinção entre meras expressões emotivas e "o tipo palavras em Sentido objetivo, proposicíonal. A distinção de Jackson
normal de comunicação de idéias, que é a linguagem", veja as obser- revelou-se sumamente proveitosa. Desempenhou papel importante no
vações introdut6rias de Edward Sapir, Language (Nova Iorque, Har- desenvolvimento subseqüente da psicopatologia da linguagem. Sobre
court, Brace, 1921). detalhes, veja Cassirer, Philosophie der s1/mbolischen Formen, III.
3. Sobre maiores detalhes veja Charles Bally, Le langage et la vie capo VI, pp. 237-323.
(Paris. 1936).
.... _ ..... _ .... -._-_._-~-_._----------------------

58 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 59

te de que algum animal tenha dado o passo decisivo tão analítica e fenomenológica. A análise lógica da
da linguagem subjetiva para a objetiva, da linguagem linguagem humana sempre nos conduz a um elemen-
afetiva para a proposicional. Koehler insiste, enfáti- to primordial, que não tem paralelo no mundo animal.
co, em que a fala está positivamente fora do alcance A teoria geral da evolução não se opõe, de maneira
das faculdades dos macacos antropóides. Sustenta que alguma, ao reconhecimento deste fato. Até no campo
a falta deste recurso técnico inestimável e a grande dos fenômenos de natureza orgânica aprendemos que
limitação dos importantíssimos componentes do pen- a evolução não exclui uma espécie de criação original;
samento, as chamadas imagens, representam as. causas deve-se admitir o fato da mutação súbita e da evolu-
que impedem os animais de atingir s~uer os primór- ço emergente. A biologia moderna já não fala em evo-
dios do desenvolvimento cultural. 1 A mesma conclu- lução em termos do primitivo darwinismo; nem ex-
são chegou Révész.iA linguagem.lassevera.v urn con- é

plica da mesma maneira as causas da evolução. Po-


ceito antropológico que, como tal, deveria ser inteira- demos admitir sem dificuldade que, no desenvolvimen-
mente rejeitado pelo estudo da psicologia animal. Se to de certos processos simbólicos, os macacos antro-
partirmos de uma definição clara e precisa da lingua- póides deram um significativo passo para a frente.
gem, todas as outras formas de expressão oral, que Mas tornamos a insistir em que não chegaram ao li-
também encontramos nos animais, são automaticamen- miar do mundo humano. Entraram, por assim dizer,
te eliminadas.r Yerkes, que estudou o problema com
é
num beco sem saída.
especial interesse, fala num tom mais positivo. Está Zelando por uma exposição clara do problema,
persuadido de que, mesmo no que respeita à lingua- precisamos distinguir cuidadosamente entre sinais e
gem e ao simbolismo, existe estreita relação entre o símbolos. Parece ser fato confirmado o havermos en-
homem e os macacos antropóides. "Isto dá a enten- contrado sistemas complexos de sinais no comporta-
der", escreve ele, "que podemos ter dado com um mento animal. Podemos até dizer que alguns animais,
estádio filogenético primitivo da evolução do processo sobretudo os domesticados, são extremamente susce-
simbólico. Existem fartas provas de que vários outros tíveis a sinais. 1 Um cão reagirá às mais ligeiras mu-
tipos de processos de sinais, além dos simbólicos, são danças no comportamento do amo; chegará até a dis-
de ocorrência freqüente e funcionam eficazmente no tinguir as expressões do rosto humano ou as modula-
chimpanzé't.f Entretanto, tudo isto ainda é positiva- ções da voz humana. 2 Existe, porém, uma grande
mente pré-lingüístico. Até ao juízo de Yerkes todas
essas expressões funcionais são excessivamenterudi- 1. Essa suscetibilidade ficou provada, por exemplo, no caso famoso
mentares, simples e de utilidade limitada em con- do "esperto Hans", que, há algumas décadas, provocou certo alvoroço
entre os psicobiologistas. O esperto Hans era um cavalo que parecia
fronto com os processos cognitivos humanos. 4 Não possuir assombrosa inteligência. Era até capaz de resolver problemas
se deve confundir aqui a questão genética com a ques- aritméticos complicados, extrair raízes cúbicas e assim por diante
batendo com a pata no chão tantas vezes quantas requeresse a solu-
ção do problema. Um comitê especial de psicólogos e outros cientis-
tas foi chamado para investigar o caso. Logo se tornou claro que o
1. Koehler, The Mentality ot Apes, p. 277, animal reagia a certos movimentos involuntários do dono. QuandO o
2. Révész, op. cü., XLIII, par. II (940), p. 33. dono estava ausente ou não compreendia a pergunta, o cavalo não
3. Yerkes e Nissen, "Pre-línguístíc Sign Behavíor in Chimpanzee", podia responder a ela.
Science, LXXXIX, p. 587. 2. Para ilustrar este ponto eu gostaria de mencionar outro exem-
4. Yerkes, Chimpanzees, p. 189. plo muito revelador. O psicobiologista, Dr. Pfungst, autor de alguns
Antropologia Filosófica 61
60 Ernst CG.3sirer

sendo entendidos e usados como tais, os sinais têm


distância entre estes fenômenos e a compreensão da
uma espécie de ser físico ou substancial; os símbolos
l~guagem simbólica e humana. As famosas experiên-
têm apenas valor funcional.
eras de. Pavlov provam apenas que os animais podem
Conservando em mente esta distinção, podemos
ser facilmente adestrados a reagir não só a estímulos
encontrar um modo de abordar um dos problemas mais
diretos mas também a toda a sorte de estímulos inter-
controvertidos. A questão da inteligência dos animais
mediários ou representativos. Uma sineta, por exem-
sempre foi um dos maiores quebra-cabeças da filosofia
plo, pode tornar-se num "sinal para jantar" e o ani-
antropológica. Tremendos esforços, de pensamento e
mal pode ser ensinado a não tocar na comida enquan-
observação, têm sido despendidos para responder a es-
to não ouvir o sinal. Mas isto nos revela, tão-somente,
ta questão. Mas a ambigüidade e vagueza do próprio
que o experimentador, neste caso, conseguiu modifi-
termo "inteligência" têm sempre impedido uma solu-
car a situação de comida do animal. Complicou a si-
ção clara. Como poderemos responder a uma pergunta
tuação introduzindo nela, voluntariamente, um novo
cujo significado não compreendemos? Metafísicos e
elemento. Todos os fenômenos que comumente se des-
cientistas, naturalistas e teólogos têm empregado a pa-
crevem como reflexos condicionados estão não só mui-
lavra inteligência com sentidos variados e contraditó-
to longe do caráter essencial do pensamento simbólico
rios. Alguns psicólogos e psicobiologistas recusaram-se
humano mas também se opõem a ele. Os símbolos -
terminantemente a falar em inteligência dos animais.
no sentido próprio do termo - não podem ser reduzi-
Em todo comportamento animal viam apenas o jogo de
dos a sinais. Sinais e símbolos pertencem a duas es-
um certo automatismo. Esta tese era abonada pela
feras diferentes da expressão das idéias: o sinal é uma
autoridade de Descartes, tendo sido, porém, reafir-
parte do mundo físico do ser; o símbolo' é uma parte
mada na psicologia moderna. "O animal", diz E. L.
do' mundo humano do sentido. Os sinais são "opera-
Thorndike em seu trabalho sobre a inteligência ani-
dores"; os símbolos são "designadores't.! Mesmo
mal, "não pensa que um é igual ao outro, nem, como
tantas vezes se diz, troca um pelo outro. Não pensa,
métodos novos e interessantes para o estudo do comportamento ani-
mal, contou-me, certa vez, que recebera carta de um major a respeito de maneira alguma, a respeito disso; apenas, pen-
de um problema curioso. O major tinha um cão, que o acompanhava sa-o. .. A idéia de que o animal reage a uma im-
em s.eus passeios. Todas as vezes que o dono se aprestava para sair,
o animal dava mostras de grande alegria e excitação. Um belo dia pressão sensorial particular e perfeitamente definida
p~rém, o ~ajor decidiu fazer uma experienciazinha. Fingindo sair: e consciente e de que uma reação similar a uma im-
pos ~ chapeu na cabeça, pegou da bengala e fez os preparativos cos-
tumeíros - sem, todavia, nenhuma intenção de passear. Para sua
pressão sensorial, que varia desde o princípio, prova
grande surpresa, o cão não se -deixou enganar; continuou tranqüilo em uma associação por similaridade, é um mito". 1 Ob-
seu c~to. Depois d~ breve período de observação, o Dr. Pfungst pôde
solucionar o mistério. No quarto do major havia uma escrivaninha
servações posteriores, mais precisas, conduziram a
com uma gaveta em que ele guardava alguns documentos valiosos e uma conclusão diferente. No caso dos animais supe-
Importantes: O major tinha o costume de experimentar essa gaveta
antes de sair de c~sa a ~im de certificar-se de que ela estava segura-
riores tornou-se claro que eram capazes até de re-
mente trancada. Nao o fizera no dia em que não pretendia sair. Para solver problemas difíceis e que estas soluções não
o. cachor.r0' e~tretanto, isto se tornara um sinal, um elemento necessã-
rto da situação de passeio. Sem esse sinal, o animal não reagia.
1. Sobre a distinção entre operadores e designadores veja Charles 1. Edward L. Thorndike, Animal Inteüiçence (Nova Iorque, Mac-
Mo.rris, H~e Foundation of the Theory of Sígns", Encyclopedia 01 the millan, 1911), pp. 119 e seguíntes, .
timttea Sciences (938).
Antropologia Filosófica 63
62 Ernst Cassirer

periência capaz de projetar luz inesp;rada sobre o


se conseguiam de forma meramente mecânica, por
assunto em questão. Temos os casos classicos de Lau-
ensaio e erro. Como assinala Koehler, existe notabilís-
ra Bridgman e Helen Keller, duas crianças cegas e
sima diferença entre uma simples solução casual e
surdas-mudas, que, por meio de métodos especiais,
uma solução genuína, de modo que uma pode ser fa-
aprenderam a falar. Embora estes casos sejam bem
cilmente distingui da da outra. Parece ser incontestá-
conhecidos e tenham sido tratados com freqüência na
vel que pelo menos algumas reações dos animais supe-
literatura psicológica, 1 vejo importância em recor-
riores não são mero produto do acaso, senão guiadas
dá-los mais uma vez por encerrarem, talvez, a melhor
pela visão mental. 1 Se, por inteligência entendermos
ilustração do problema geral de que nos ocupamos.
a adaptação ao meio ambiente ou a modificação adap-
A Sra. Sullivan, professora de Helen Keller, registrou
tativa do meio, deveremos, por certo, atribuir aos ani-
a data exata em que a criança realmente principiou a I
mais uma inteligência relativamente bem desenvolvi-
compreender o sentido e a função da linguagem hu-
da. Cumpre reconhecer também que nem todas as' I,
mana .. Cito-lhe as próprias palavras: I
ações animais são governadas pela presença de um
estímulo imediato. O animal é capaz de toda a sorte Preciso escrever-lhe uma linha hoje cedo porque' algo muito ím-
portante aconteceu. Helen deu o segundo grande passo em sua
de rodeios em suas reações. Pode aprender não só a educação Aprendeu que tudo tem um nome, e que o alfabeto
usar instrumentos mas também a inventá-l os para manual é a. chave -de tudo o que ela deseja saber.
... Hoje cedo. enquanto se lavava, ela quis saber o nome
seus propósitos. Por isto, alguns psicobiologistas não correspondente a "água". Quando quer saber o ~ome de al~a
duvidam em falar de uma imaginação criadora ou coisa aponta para essa ooísa e dá umas palmadínhas na minh~
mão.' Soletrei "á-g-u-a" e não pensei mais no assunt? até depois
construtiva dos animais.f Mas nem esta inteligência do café ... [Maís tarde] fomos à casa da bomba, e fIZ que Helen
nem esta imaginação são do tipo especificamente hu- segurasse sua caneca debaixo da bica, enquanto e.u,,~omrn:~va.
Ao jorrar a água fria, enchendo a caneca, escrevi a-g-u-á na
mano. Em suma, podemos dizer que o animal possui mão aberta de Helen. A palavra, que se juntava à sensaçao d~
uma imaginação e uma inteligência práticas, ao passo água fria que lhe escorria pela mão, pareceu sO.bressaltá-la. DeI-
que só o homem criou uma forma nova: uma imagi-. xou cair a caneca e quedou como que paralisada, Nova 1';1Z
iluminou-lhe o rosto. Soletrou "água" várias vezes. A seguir,
nação e uma inteligência simbólicas. inclinou-se até o soto e perguntou-lhe o nome, apontando para
Além disto, no desenvolvimento mental do espí- a bomba e para o caramanchão e, voltando-se de repente, per-
guntou o meu nome. Soletrei "professora". Durante a volta
rito, é evidente a transição de uma forma a outra - para casa, mostrou-se excítadíssíma, e aprendendo o nome ~e
de uma atitude meramente prática a uma atitude sim- todo objeto que tocava, de modo que, em poucas ~ora.s, havia
acrescentado trinta palavras novas ao seu voc~buláno. ~a ma-
bólica. Todavia, este passo é o resultado final de um nhã seguinte, levantou-se como uma fada radiosa. ~~eJou de
11m objeto a outro, perguntando o nome de tudo e beíjando-me
processo lento e contínuo. Não é fácil distinguir as
alegremente. Tudo agora precisa ter um nome. . Aonde quer
etapas individuais deste complicado processo pelos que vamos, pergunta, ansiosa, os nomes das co~sas que nao
métodos usuais da observação psicológica. Existe, po- aprendeu em casa. Espera, sôfrega, que os amigos soletrem
e vive aflita por ensinar as letras a todas as pessoas que en-
rém, outro caminho de se obter plena visão do caráter contra. Abandona os sinais e a pantomima que antes empregava,
geral e da extraordinária importância dessa transição.
A própria natureza, por assim dizer, realizou uma ex- 1 Sobre Laura Bridgman veja Maud Howe e Florence. Howe
Hall . Laura Bridgman (Boston, 1903); Mary Swift Lams~n, Ltle and
Edu~ation 01 Laura Dewey Bridgman (Boston, 1881); w~elm Jeru-
1.Veja Koehler, op. eit., capo VII, "'Chance' and 'Imitation' ".
salem, Loura Bridgman. Erziehung einer Taubstumm-Bltnden (Ber-
2.Veja R. M. e A. W. Yerkes, The Great Apes (New Haven, Yale
lim, 1905).
University Press, 1929), pp. 368 e seguintes, 520 e seguintes.
_._------------,~---~----------.,..
64 Ernst Casstrer Antropologia Filosófica 65

uma vez que dispõe de palavras para substitui-Ias, e a aqui si ão à


uma palavra nova me proporciona o mais mtenso praz:l· i o mesmo podemos observar no caso de Laura
notamos que seu rosto se torna cada dia mais expressivo:1 Bridgman, embora sua história seja rrienos espeta-
cular. Tanto em habilidade mental quanto em desen-
. O passo decisivo que leva do uso de sinais e pan- volvimento intelectual Laura Bridgman era muito in-
tomm~as ao uso de palavras, isto é, de símbolos, não ferior a Helen Keller. Sua vida e sua educação não
p~derIa ser d~scrito de maneira mais notável. Qual contêm os mesmos elementos dramáticos que encon-
fOI o verdadeiro descobrimento da criança neste mo- tramos em Helen Keller. Porém, em ambos os casos
ment?? Anteriormente, Relen Keller aprendera a se achavam presentes os mesmos elementos típicos.
combinar certa coisa ou acontecimento com certo si- Depois de aprender o uso do alfabeto digital, Laura
na! do alfabeto manual. Estabelecera-se entre estas Bridgman também, de repente, chegou ao ponto em
COIsase certas impressões tácteis uma associação fixa. que principiou a compreender o simbolismo da lin-
Mas UI~a séri~ de tais associações, embora repetidas guagem humana. Neste sentido verificamos surpreen-
e a~p.h~das, ainda não implica inteligência do que é dente paralelismo entre os dois casos. "Nunca me es-
o significado da linguagem humana. A fim de poder quecerei", escreve a Srta. Drew, uma das primeiras
chegar a esta compreensão, a criança precisou fazer professoras de Laura Bridgman, "a primeira refeição
u:n novo descobrimento, muito mais importante. Pre- tomada depois que ela compreendeu o uso do alfabeto
CISO':co~pr~~nder que tudo tem um nome - que a digital. Todo objeto que tocasse precisava ter um
funçao simbólica não se restringe a casos particulares nome; e eu era obrigada a chamar alguém para aju-
mas é um princípio da aplicabilidade universal que dar-me a tomar conta das outras crianças, enquanto
abarca todo o campo do pensamento humano. N~ caso ela me mantinha ocupada soletrando novas palavras".'
de Helen Keller, este descobrimento veio como um Com sua universalidade, sua validade e sua apli-
choque súbito. Era uma menina de sete anos que cabilidade geral, o princípio do simbolismo é a palavra
com.exceção de defeitos no uso de certos órgãos dos mágica, o Abre-te Sésamo!, que dá acesso ao mundo
ser:tIAdo~,
gozava de excelente saúde e possuía uma in- especificamente humano, ao mundo da cultura. Uma
teligência altamente desenvolvida. Pelo descuido de vez que o homem se acha de posse desta chave mági-
sua educação, mui~o se atrasara. Depois, de repente, ca tem assegurado o progresso ulterior. Tal progresso,
ocorre o desenvolvimento crucial, operando como uma evidentemente, não é detido nem impossibilitado por
revolução intelectual. A menina principia a ver o nenhuma lacuna do material do sensível. O caso de
mundo ~ uma nova luz. Aprende a empregar as pa- Helen Keller, que atingiu um altíssimo grau de desen-
lavras nao apenas como símbolos ou sinais mecânicos volvimento mental e cultura intelectual, mostra-nos
mas como um ins~rumento inteiramente novo de pen~ de maneira clara e irrefutável que, na construção de
samento. Desc?rtma-se um novo horizonte, incompa- seu mundo humano, o ser humano não depende da
r.avelmente mais aberto e mais livre, e desde então qualidade de seu material sensível. Se fossem corre-
ela o dominará à vontade. ' , tas as teorias do sensacionalismo, se cada idéia não

Dou~ied~ejap Helen Keller, The Story ot My ut« (Nova Iorque 1. Veja Mary Swüt Lamson, Life anã Education ot Laura Dewq
Ed - Y'd age & Co., 1902,1903),Narrativa Suplementar da Vida e ~ Bridgman, the Deaj, Dumb, anã Blind llirl (Boston, Houghton, Mifflin
ucaçao e Helen Keller, pp. 315 e seguintes. co., 1881), pp. 7 e seguinte.
66 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 67

fosse outra coisa senão a copia apagada de uma im- esta última, e forma seu correlativo necessário. Um
pressão sensorial original, a situação de uma criança símbolo não é apenas universal, porém extremamente
cega, surda e muda seria, com efeito, desesperadora: variável. Posso expressar o mesmo significado em vá-
estaria privada das próprias fontes do conhecimento rios idiomas; e até dentro dos limites-de uma única
humano; seria, por assim dizer, uma exilada da rea- língua o mesmo pensamento ou idéia pode ser expres-
lidade. Mas se estudarmos a autobiografia de Helen so em termos muito diferentes. Um sinal está rela-
Keller, perceberemos incontinenti que isto é falso e, cionado, com a coisa a que se refere, de forma fixa
ao mesmo tempo, compreendemos por que é falso. A e única. Qualquer sinal concreto e individual se refe-
cultura humana não extrai seu caráter específico e re a certa coisa individual. Nos experimentos de Pav-
seus valores intelectuais e morais do material de que lov se ensinavam facilmente os cães a só procurarem
se compõe, mas de sua forma e estrutura arquitetural. comida quando fossem dados sinais especiais; não
E esta forma pode expressar-se em qualquer sentido comiam enquanto não ouvissem determinado som, que
material. A linguagem verbal leva vantagem técnica poderia ser escolhido à vontade do experimentador:
muito grande sobre a linguagem táctil; mas os defei- Mas isto não apresenta analogia alguma, como tantas
tos técnicos desta última não lhe destroem o uso es- vezes se tem interpretado, com o simbolismo humano;
sencial. O livre desenvolvimento do pensamento sim- pelo contrário, opõe-se ao simbolismo. Um símbolo
bólico e da expressão simbólica não é dificultado pelo humano genuíno não se caracteriza pela uniformida-
uso de sinais tácteis em lugar de sinais vocais. Se a de, mas pela versatilidade. Não é rígido nem infle-
criança conseguiu aprender o sentido da linguagem xível, é móvel. Diga-se, em verdade, que a plena
humana, pouco importa o material particular em que consciência desta mobilidade parece constituir-se uma
este sentido se lhe torne acessível. Como o prova o conquista tardia no desenvolvimento i~t~l~ctual .e
caso de Helen Keller, o homem pode construir seu cultural do homem. Na mentalidade primitiva mui-
mundo simbólico com os materiais mais pobres e es- to raramente se atinge esta consciência: o símbolo ain-
cassos. O que tem vital importância não são os tijo- da é considerado propriedade da coisa, à semelhança
los e as pedras mas sua função geral como forma ar- de outras propriedades físicas. No pensamento míti-
quitetônica. No domínio da linguagem, é a sua fun- co o nome de um deus é parte integrante de sua natu-
ção simbólica geral que vivifica os sinais materiais e reza; se não for invocado pelo seu devido nome, a fór-
"os faz falar". Sem este princípio vivificante o mun- mula mágica ou a oração se tornam inefieazes. O mes-
do humano permaneceria, de fato, surdo e mudo. Com mo ocorre com as ações simbólicas. Para que surtam
ele, até o mundo de uma criança surda, muda e cega efeito, o rito religioso, o sacrifício, deverão sempre ser
pode tornar-se incomparavelmente mais vasto e mais executados da mesma maneira invariável e na mesma
rico do que o mundo do animal mais altamente de- ordem. 1 As crianças sentem-se, não raro, muito con-
senvolvido. fusas quando aprendem, pela primeira vez, que nem
Pelo fato de tudo ter um nome, a aplicabilidade todo nome de um objeto é um "nome próprio", e
universal é uma das maiores prerrogativas do simbo-
lismo humano. Mas não é a única. Existe outra ca- 1. Sobre maiores detalhes veja Cassirer, Sprache und Mythos,
ructertstica dos símbolos, que acompanha e completa (Lípsía, 1925).
68 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 69

que a mesma coisa pode ter nomes inteiramente dife- Drew não poderia ser o mesmo para Morton. I É evi-
rentes em várias línguas. Tendem a pensar que uma dente que os "ruídos" anteriores sofreram uma im-
coisa "é" o que é chamada. Mas este é apenas o pri- portante e interessantíssima mudança de sentido. Já
meiro passo. Toda criança normal aprenderá logo que não são emissões especiais, inseparáveis de situação
pode usar vários símbolos para expressar o mesmo de- concreta particular. Converteram-se em nomes abs-
sejo ou pensamento. Esta variabilidade e mobilidade tratos. Pois o novo nome inventado pela criança não
não encontram paralelo no mundo animal. I Muito designava um novo indivíduo, mas o mesmo indivíduo
antes de haver aprendido a falar, Laura Bridgman numa nova relação.
criara um processo curiosíssimo de expressão, uma Surge agora outro aspecto importante de nosso
linguagem própria. Esta linguagem não consistia de problema geral - o problema da dependência em
sons articulados, mas apenas de vários ruídos, des- que se encontra o pensamento relacional com o pen-
critos como "ruídos emocionais". Tinha o costume de samento simbólico. Sem um sistema complexo de
emiti-los em presença de certas pessoas. Estas, assim, símbolos, o pensamento relacional não poderia sequ~r
se tornavam inteiramente individualizadas; cada pes- surgir, quanto mais alcançar seu pleno desenvolvi-
soa, ao seu redor, era saudada com um ruído especial. mento. Não seria correto afirmar que a simples cons-
"Sempre que encontrava inesperadamente um conhe- ciência das relações pressupõe um ato intelectual, um
cido" - escreve o Dr. Lieber - "descobri que ela ato de pensamento lógico ou abstrato. Esta consci~-
emitia, repetidamente, a palavra relativa a essa pessoa cia é necessária até nos atos elementares de percepçao.
antes de começar a falar. Era a manifestação da iden- As teorias sensacionalistas costumavam descrever a
tificação prazenteíra'i.P Mas quando, por meio do percepção como um mosaico de simples dados senso-
alfabeto digital, a criança entendeu o significado da riais. Os pensadores que acreditavam nisto, passavam
linguagem humana, o caso modificou-se. Agora o som constantemente por alto o fato de que a própria sen-
se tornava realmente um nome: e este nome não es- sação não é, de maneira alguma, um simples agregado
tava ligado a uma pessoa individual, mas poderia ser ou feixe de impressões isoladas. A moderna psicolo-:
mudado se as circunstâncias o exigissem. Um dia, por gia da Gestalt corrigiu este ponto de vista. Mostrou
exemplo, Laura Bridgman recebeu uma carta da an- que até os mais simples processos perceptivos impli-
tiga professora, a Srta. Drew, que, por se ter casado cam elementos estruturais fundamentais, certos pa-
se tornara a Sra. Morton. Nessa carta, a convidava a drões ou configurações, princípio aplicável tanto para
visitá-Ia, o que lhe proporcionou grande prazer, mas o mundo humano como para o animal. Até em está-
censurou a Srta. Drew por haver assinado a carta com dios relativamente inferiores da vida animal foi expe-
o nome de solteira em vez de usar o nome do marido. rimentalmente provada a presença destes elementos
Disse mesmo que agora precisaria encontrar outro estruturais - especialmente de estruturas espaciais e
ruído para a professora, pois o que correspondia a óticas. 2 A simples percepção das relações, por conse-
1. Veja Mary Swift Lamson, op. cit., p. 84.
1. Sobre este problema veja W. M. Urban, Language and Reality, 2. Veja WoUgang Koehler, "Optische Untersuchungen am S~him-
par. I, rn, pp. 95 e seguintes. pansen und am Haushuhn' Nachweis einfacher StrukturfunktlOnen
2. Veja Francis Lieber, "A Paper on the Vocal Sounds of Laura beim Schimpansen und be~ Haushuhn", Abhandlungen der Berlsner
Bridgman", Smithsonian Contributions to Knowledge, II, Art. 2, p. 27. Akaàemie der Wissenschaften (1915, 1918).
70 Antropologia Filosófica 71
Ernst Cassirer

guinte, não pode ser considerada como característica sentido, os animais são capazes de abstrair a cor do
específica da consciência humana. Encontramos to- tamanho e da forma, ou a forma do tamanho e da
davia, no homem um tipo especial de pensamento re- cor. Em algumas experiências, levadas a efeito pela
lacional, que não tem paralelo no mundo animal. No Sra. Kohts, um chimpanzé foi capaz de selecionar, de
homem se desenvolveu a capacidade de isolar as rela- uma coleção de objetos extremamente variados quan-
ções - para considerá-Ias em seu sentido abstrato· to às suas qualidades visuais, os que tinham alguma
para assimilá-Io o homem já não depende de dados qualidade em comum; conseguia, por exemplo, reunir
sensoriais concretos, de dados visuais auditivos tác- todos os objetos de determinada cor e colocá-los numa
teis, cinestésicos - considera tais ;elações "~m si caixa. Tais exemplos parecem provar que os animais
mesmas" - «o'to x«6 au'to , como disse Platão. O exem- superiores são capazes desse processo que Hume, em
plo clássico deste ponto decisivo na vida intelectual do sua teoria de conhecimento, denomina fazer uma
homem é a geometria. Nem sequer na geometria ele- "distinção da razão".I Mas todos os experimentado-
mentar estamos presos à apreensão de figuras indivi- res, empenhados nestas investigações, ressaltaram
duais concretas; não nos preocupam as coisas físicas também a raridade, o caráter rudimentar e a imper-
nem os objetos perceptuais, pois estudamos relações feição desses processos. Mesmo depois de terem apren-
espaciais universais, para cuja expressão temos um dido a distinguir uma qualidade particular e a tentar
simbolismo adequado. Sem o passo preliminar da lin- alcançá-Ia, os animais estão sujeitos a toda sorte de
guagem humana, não teria sido possível semelhante erros curiosos. 2 Se existirem alguns traços de uma
conquista. Este ponto tornou-se evidente em todos os distinctio rationís no mundo animal estarão, por assim
teste~ qu: se fizeram dos processos de abstração e ge- dizer, envoltos num casulo. Não podem se desenvol-
neralização em animais. Koehler conseguiu mostrar ver por não terem o auxílio inestimável, e, na verda-
a capacidade dos chimpanzés para responder à relação de, indispensável da linguagem humana, de um sis-
entr~ dois ou. mais objetos em lugar de a um objeto tema de símbolos.
particular. DIante de duas caixas contendo comida O primeiro pensador a ter uma clara visão deste
o chímpanzé, em virtude de um treinamento geral problema foi Herder. Falou como um filósofo da hu-
prevIO; escolhe sempre a maior - embora o objeto manidade que desejava colocar a questão em termos
escolhido pudesse ter sido rejeitado, numa experiên- inteiramente "humanos". Rejeitando a tese metafísi-
cia anterior, por ser o menor. Demonstrou-se seme- ca ou teológica de uma origem sobrenatural ou divina
~ante capacídade para responder ao objeto mais pró- da linguagem, começa com uma revisão crítica da pró-
ximo, a caixa mais brilhante, mais azul, em vez de pria questão. A linguagem não é um objeto nem uma
resp~nder ~ uma determinada caixa. Experimentos coisa física, para a qual tenhamos que procurar uma
ulteriores VIeram confirmar e ampliar os resultados de causa natural ou sobrenatural. É um processo, uma
~oeWer: Foi possível mostrar que os animais supe-
riores sao capazes do que se denominou o "isolamen- 1. A teoria de Hume sobre a "distinção da razão" está explicada
~o dos fatores perceptivos". Possuem a capacidade de em seu Treatise 01 Human Nature, par. I, seç. 7 (Londres, Green and
Grose, 1874), I, pp. 332 e seguintes.
ISolar uma qualidade perceptiva particular da situa- 2. Exemplos são dados por Yerkes em Chimpatizees, pp. 103 e
ção experimental e de reagir de acordo com ela. Neste seguintes.
72 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 73

função geral da mente humana; não podemos descre- síssimos elementos lógicos e psicológicos. Todos os
vê-lo psicologicamente com a terminologia usada por processos de generalização e abstração em animais,
todas as escolas psicológicas do século XVIII. Para que foram investigados e descritos com precisão, 1
Herder, a linguagem não é uma criação artificial da carecem claramente da marca distintiva realçada por
razão, nem deve ser explicada por um mecanismo es- Herder. Mais tarde, porém, seu ponto de vista encon-
pecial de associações. Em sua própria tentativa de trou uma elucidação e uma confirmação um tanto
expor a natureza da linguagem, põe todo relevo no inesperadas, provenientes de um setor muito diferen-
que denomina "reflexão". A reflexão ou pensamento te. Pesquisas recentes, realizadas no campo da Psico-
reflexivo é a capacidade do homem que consiste em patologia da linguagem, levaram à conclusão de que a
discernir, na correnteza dos fenômenos sensoriais, que perda ou grave alteração da fala, causadas por uma
flutuam como massa indiscriminada, certos elementos lesão cerebral, nunca são fenômenos isolados. Tal de-
fixos a fim de isolá-Ios e concentrar a atenção so- feito altera todo o caráter do comportamento humano.
bre eles. Pacientes que sofrem de afasia, ou de outras enfermi-
o homem revela reflexão quando o poder de sua alma atua dades semelhantes, não só perdem o uso da palavra
tão livremente que pode segregar, de todo o oceano de sensa- mas também experimentam mudanças corresponden-
ções que se encapela através de todos os seus sentidos uma
o~da, por assim dizer; e pode deter esta onda, prestar-Ih~ aten- tes da personalidade. Estas são dificilmente observá-
çao e ter consciência desta atenção. Revela reflexão quando, veis em seu comportamento exterior, pois, neste sen-
de todo sonho-devaneio, de imagens que se desencadeiam em
seus sentidos, pode concentrar-se, num momento de vigília, e tido, tendem a agir de maneira perfeitamente normal.
deter-se espontaneamente em uma imagem, observando-a com São capazes de executar tarefas da vida cotidiana, che-
maior tranqüilidade e clareza, e abstrair características que lhe
mostrem que este, e não outro, é o objeto. Assim, revela refle- gando alguns a desenvolver considerável habilidade
xão quando pode não s6 perceber, de um modo claro e preciso, em todos os testes deste gênero. Mas vêem-se intei-
toda" 'lS aualidades, mas também reconhecer uma ou várias den-
tre ela." corno qualidades distintas. . . Em virtude de que meio ramente perdidos quando a solução do problema exi-
se dá este reconhecimento? Mediante uma característica que ge alguma atividade especificamente teórica ou re-
ele possui para abstrair e que, como um elemento de conscíên-
da. pl'l. nrónría se apresenta claramente. Então, podemos excla- flexiva. Já não são capazes de pensar por meio de
rnar : Eureca! Este caráter inicial da consciência era a língua- conceitos ou categorias gerais. Tendo perdido o do-
. gem da alma. Com isto, criou-se a linguagem humana. 1 mínio dos universais, apegam-se aos fatos imediatos,
Esta descrição mais parece um retrato poético que a situações concretas. Tais pacientes são incapazes de
uma análise lógica da linguagem humana, cuja ori- realizar qualquer tarefa só realizável mediante a com-
gem, pela teoria de Herder, permaneceu inteiramente preensão do abstrato. 2 Tudo isto é altamente signi-
especulativa. Não provinha de uma teoria geral do
conhecimento nem de uma observação de fatos empí- 1. Veja, por exemplo, as observações de R. M. Yerkes sobre "res-
postas generalizadas" no chimpanzé, op. cit., pp. 130 e seguintes.
ricos. Baseava-se no seu ideal de humanidade e em 2. Um relato pormenorizado e interessantíssimo destes fenômenos
sua profunda intuição do caráter e do.desenvolvimen- encontra-se em várias publicações de K. Goldstein e A. Gelb. Goldstein
apresentou um apanhado geral de seus pontos de vista teóricos em
to da cultura humana. Não obstante, contém valio- Human Nature in the Light ot Psychopathology, leituras comentadas
de William James na Universidade de Harvard, 1937-38 (Cam-
bridge, Mass_, Harvard University Press, 1940)_ Discuti o problema de
1. Herder, Über âen Ursprunç der Sprache (1772), "Werke", ed. um ponto de vista filosófico geral em Philosophie der symbolischen
Suphan, V, pp. :u e seguinte. Formen, lII, VI, pp. 237-323.
74 Ernst Cassirer

ficativo, porque nos mostra até que ponto o tipo de


pensamento que Herder denominou "reflexivo" de-
pende do pensamento simbólico. Sem o simbolismo, a
vida do homem seria semelhante à dos prisioneiros da
famosa caverna de Platão. Ficaria encerrada dentro
dos limites de suas necessidades biológicas e de seus
interesses práticos; não encontraria acesso ao "mun-
do ideal", que lhe descortina de todos os lados, a reli-
IV
gião, a arte, a filosofia, a ciência.
o MUNDO HUMANO DO ESPAÇO
E DO TEMPO

o ESPAÇO e o tempo são o arcabouço que sustenta


toda realidade. Não podemos conceber coisa algu-
ma real senão sob as condições de espaço e tempo. De
acordo com Heráclito, nada no mundo pode exceder
suas medidas - e estas são limitações espaciais e
temporais. No pensamento mítico, o espaço e o tempo
nunca se consideram como formas puras ou vazias,
mas como as grandes forças misteriosas, que gover-
nam todas as coisas, que dirigem e determinam não
só nossa vida mortal mas também a dos deuses.
Descrever e analisar o caráter específico que o
espaço e o tempo assumem na experiência humana é
uma das tarefas mais atraentes e importantes da filo-
sofia antropológica. Seria uma presunção ingênua e
infundada considerar a aparência do espaço e do tem-
po como necessariamente a mesma para todos os se-
res orgânicos. É óbvio que não podemos atribuir aos
organismos inferiores a mesma espécie de percepção
espacial que atribuímos ao homem. Mesmo entre o
mundo humano e o dos antropóides superiores subsis-
te, a este respeito, uma diferença inconfundível e in-
delével. Entretanto, não será fácil explicar esta dife-
rença se nos limitarmos a aplicar nossos métodos psi-
cológicos habituais. Precisamos seguir um caminho
76 Ernst Cassirer AntropoLogia Filosófica 77

indireto: analisar as formas da cultura humana para plexíssima, contém elementos de todas as diferentes
podermos descobrir o verdadeiro caráter do espaço e espécies de experiência sensória - ótica, táctil, acústi-
do tempo em nosso mundo humano. ca e cinestésica. O modo pelo qual todos estes elemen-
A primeira coisa que se torna clara, em semelhan- tos cooperam na construção do espaço perceptivo cons-
te análise, é que existem tipos fundamentalmente di- titui uma das questões mais difíceis da moderna psi-
ferentes de experiência espacial e temporal; nem to- cologia da sensação. O grande cientista Hermann
das as formas desta experiência se encontram no mes- von Helmholtz achou necessário fundar um ramo in-
mo nível. Existem estratos mais baixos e mais altos, teiramente novo do conhecimento, criar a ciência da
dispostos em certa ordem. O mais baixo pode ser des- ótica fisiológica, a fim de resolver os problemas aqui
crito como o espaço e o tempo orgânicos. Todo orga- defrontados. Entretanto, ainda existem muitas ques-
nismo vive num certo ambiente, em cujas condições se tões que, por enquanto, não podemos resolver de ma-
deve adaptar constantemente a fim de sobreviver. Até neira clara e inequívoca. Na história da psicologia
nos organismos mais rudimentares a adaptação requer moderna, a luta travada "no escuro campo de bata-
um sistema complicado de reações, uma diferenciação lha do nativismo e empirismo" tem parecido inter-
entre os estímulos físicos e a resposta adequada aos minável. 1
mesmos; o que não é aprendido pela experiência in- Não nos interessa aqui este aspecto do problema.
dividual. Animais recém-nascidos parecem possuir A questão genética, a referente à origem da percep-
um sentido nítido e preciso de distância e de direção ção espacial, que por longo tempo, ofuscou e eclipsou
espacial. Um pintinho, ao sair da casca, já tem seus todos os outros problemas, não é a única nem a mais
pontos de referência e apanha os grãos espalhados pelo importante. Do ponto de vista de uma teoria geral do
seu caminho. As condições especiais de que depende conhecimento e da filosofia antropológica outra ques-
este processo de orientação espacial têm sido cuidado- tão agora nos prende o interesse e deve ser focalizada.
samente estudadas por biologistas e psicólogos. Em- Antes de investigar a origem e o desenvolvimento do
bora incapazes de responder a todas as intricadas per- espaço perceptivo, precisamos analisar o espaço sim-
guntas relativas à faculdade de orientação das abe- bólico. Ao abordarmos este tema nos encontramos na
lhas, das formigas e das aves de arribação, podemos fronteira entre o mundo humano e o mundo animal.
pelo menos dar uma resposta negativa. Não é possí- No que se refere ao espaço orgânico, ao espaço da
vel presumir que, ao realizarem essas complicadíssi- ação, o homem parece, em muitos sentidos, inferior
mas reações, os animais sejam guiados por processos aos animais. Uma criança precisa aprender muitas
ideacionais. Ao contrário, parecem movidos por im- habilidades, que são inatas no animal. Mas esta defi-
pulsos corpóreos de um gênero especial; não possuem ciência do homem é compensada por outro dom, que
imagem mental nem idéia do espaço, como não têm só ele desenvolve e que não tem analogia com coisaal-
uma prospecção das relações espaciais. guma na natureza orgânica; não imediatamente, mas
A medida que nos aproximamos dos animais su- após um processo mental muito complexo e dilicil che-
periores, deparamos com uma nova forma de espaço,
1. Veja as observações de Wllliam 8tem em sua PS1lchology ot
que podemos intitular espaço perceptivo. Este espaço Early Childhood, traduzida por Anna Barwell (2." edição, Nova Iorque,
não é um simples dado dos sentidos: de natureza com- Holt & Co., 1930), pp. 114 e seguintes.
----------------------------------

Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 79


78

ga à idéia do espaço abstrato - e é esta idéia que lhe ginário - uma ficção do espírito humano. E se admi-
aclara o caminho, não só para um novo campo de tirmos os princípios gerais da teoria do conhecimento
conhecimento mas também para uma direção inteira- de Berkeley, ser-nos-á difícil refutar seu ponto de vis-
mente nova de sua vida cultural. ta. Somos obrigados a admitir que o espaço abstrato
Desde o princípio, os próprios filósofos encontra- não tem contrapartida nem fundamento em qualquer
ram as maiores dificuldades na explicação e na des- realidade física ou psicológica. Os pontos e linhas do
crição da verdadeira natureza do espaço abstrato geômetra não são objetos físicos nem psicológicos; mas
ou simbólico. O fato da existência de uma coisa apenas símbolos de relações abstratas. Se atribuirmos
como o espaço abstrato foi uma das primeiras e mais "verdade" a estas relações, o sentido do termo ver-
importantes descobertas do pensamento grego. Tanto dade exigirá, desde logo, uma redefinição. Pois, no
os materialistas como os idealistas destacaram a caso do espaço abstrato, não nos ocupamos da verdade
significação deste descobrimento; mas uns e outros - das coisas, mas da verdade de proposições e juízos.
se viram em dificuldades para elucidar seu caráter Mas antes que este passo pudesse ser dado e ser
lógico, e propenderam a refugiar-se em asserções sistematicamente estabelecido, a filosofia e a ciência
paradoxais. Demócrito declara que o espaço é o precisariam percorrer longo caminho e passar por
não-ser «(l1j ov) mas que este não-ser, entretanto, pos- muitos estádios intermediários. A história deste pro-
sui uma realidade verdadeira. Platão, no Timeu, re- blema ainda não foi escrita, embora seja tarefa muito
fere-se ao conceito de espaço como um ÀOyLa(lO~ vo60, atraente acompanhar os passos individuais de seu de-
- "conceito híbrido", difícil de se descrever em ter- senvolvimento. Proporcionariam uma visão do próprio
mos adequados. Mesmo na ciência e na filosofia mo- caráter e da tendência geral da vida cultural humana.
dernas estas primeiras dificuldades continuam insolú- Contentar-me-ei em selecionar alguns estádios típicos.
veis. Newton nos adverte para que não confundamos Na vida primitiva e nas condições da sociedade pri-
o espaço abstrato - o verdadeiro espaço matemático mitiva raramente encontramos algum vestígio da
- com o da nossa experiência sensória. As pessoas idéia de um espaço abstrato. O espaço primitivo é
comuns, diz ele, só pensam no espaço, no tempo e no um espaço de ação; e a ação está centrada em torno
movimento de acordo com o princípio das relações que de necessidades e interesses práticos imediatos. Na
estes conceitos mantêm com objetos sensíveis. Mas medida em que podemos falar de uma primitiva "con-
precisamos abandonar este princípio se quisermos atin- cepção" do espaço, tal concepção não tem caráter pu-
gir uma verdade real, científica ou filosófica: em filo- ramente teórico: ainda está cheia de sentimentos pes-
sofia precisamos abstrair-nos dos nossos dados sensí- soais ou sociais concretos, de elementos emocionais.
veis. 1 Este ponto de vista newtoniano tornou-se o "Na medida em que o homem primitivo leva a cabo
cavalo de batalha de todos os sistemas sensualistas. atividades técnicas no espaço", escreve Heinz WerneJ;",
Berkeley concentrou sobre ele todos os seus ataques em que mede distância, dirige sua canoa, arremessa seu dardo
críticos, sustentando que o "verdadeiro espaço mate- contra dete~ado alvo e, assim por diante, seu espaço como
campo de açao, como espaço pragmático, não difere, do nosso,
mático" de Newton não era, de fato, mais que ima- em sua estrutura. Mas quando o homem primitivo faz deste
espaço um tema de representação e pensamento reflexivo, surge
1. Veja os Principia de Newton,Livro I, Definição8, Comentário. uma idéia especificamente primordial, que difere radicalmente
,
1
Antropologia Filosófica 81
80 Ernst Cassirer I

de qualquer versão intelectualizada. A idéia do espaço, para o Quando rema ou veleja, segue com a máxima precisão
homem primitivo, mesmo quando sistematizada, está sincretica- todas as voltas do rio que está subindo ou descendo.
mente ligada ao tema. É uma noção muito mais afetiva e con-
creta que o espaço abstrato do homem de cultura avançada ... Mas depois de um exame mais atento descobrimos,
Não é tão objetiva, mensurável e de-caráter abstrato. Revela surpresos, que, a despeito desta facilidade, parece ha-
características egocêntrícas ou antropomórficas, e é fisionômico-
-cmamica, arraígada no concreto e no substancial. 1 ver uma estranha deficiência em sua apreensão do es-
paço: se lhe pedirmos que nos dê uma descriçã~ geral,
Do ponto de vista da mentalidade e da cultura ou delineie o curso do rio, será incapaz de fazê-lo; se
primitivas é, com efeito, tarefa quase impossível dar lhe pedirmos que trace um mapa do rio e de seus di-
esse passo decisivo, único capaz de nos levar do espa- versos meandros, nem sequer parece compreender o
ço da ação a um conceito teórico ou científico do es- pedido. Com isto percebemos distintamente a diferen-
paço - ao espaço da geometria, no qual foram supri- ça entre a apreensão concreta e a abstrata do .espaço e
midas todas as diferenças concretas da nossa experiên- das relações espaciais. O nativo se acha perfeitamente
cia sensória imediata. Já não temos um espaço visual, familiarizado com o curso do rio, mas esta familiarida-
táctil, acústico ou olfativo. O espaço geométrico faz de está bem longe do que podemos denominar conhe-
abstração de toda a variedade e de toda a heterogenei- cimento em sentido abstrato, teórico; significa apenas
dade que nos são impostas pela natureza dessemelhan- apresentação, ao passo que o conhecimento inclui e
te dos nossos sentidos. Temos então um espaço homo- pressupõe a representação. A representação de um ob-
gêneo, universal; e só por meio desta forma nova e jeto é um ato muito diferente do seu simples ma~,:-
característica do espaço o homem pôde chegar ao con- seio. Este último não exige mais do que uma serie
ceito de uma ordem cósmica única, sistemática. Se- definida de ações, de movimentos corpóreos coordena-
melhante idéia, da unidade e legitimidade do universo, dos entre si ou que se seguem uns aos outros. É uma
nunca poderia ter sido alcançada sem a de um espaço questão de hábito, adquirido através da execução in-
uniforme. Mas foi preciso que se passasse muito tempo variável e constantemente repetida de certos atos; mas
para que este passo pudesse ser dado. O pensamento a representação do espaço e das relações espaciais s~g-
primitivo não só é incapaz de pensar num sistema do nifica muito mais. Para representarmos alguma COIsa
espaço como não pode sequer conceber um esquema não basta sermos capazes de manipulá-Ia corretamen-
do espaço. Seu espaço concreto não pode ser trazido te e utilizá-Ia com finalidades práticas. Precisamos ter
a uma forma esquemática. A etnologia nos mostra uma concepção geral do objeto e considerá-lo de ângu-
que as tribos primitivas são habitualmente dotadas de los diferentes, a fim de descobrir-lhe as relações com
uma percepção extraordinariamente aguda do espaço. outros objetos; e localizá-lo determinando sua posição
Um nativo destas tribos tem capacidade de notar to- num sistema geral.
dos os pormenores mais sutis do seu meio; é extrema- Na história da cultura humana, essa grande gene-
mente sensível a toda e qualquer mudança na posição ralização que conduziu à concepção de uma ordem
dos objetos comuns ao seu redor. Até em circunstân- cósmica, 'parece ter sido iniciada pela astronomia ~a?i-
cias dificílimas é capaz de encontrar seu caminho. lônica. Nela encontramos a primeira prova positiva
de um pensamento que transcende a esfera da vida
1. Heinz Werner, Comparative Psychology ot Mental Development prática e concreta do homem, que se atreve a abarcar
(Nova Iorque, Harper & Bros., 1940),p. 167.
82 Antropologia Filosófica
Ernst Cassirer 83

todo o universo numa visao compreensiva, Por esta matemática teórica. De acordo com Neugebauer, a
razão, a cultura babilônica tem sido considerada como análise crítica de todas as fontes disponíveis conduz a
o berço de toda a vida cultural. Muitos estudiosos sus- uma interpretação diferente, tornando-se claro que o
tentaram que todas as concepções mitológicas, religio- progresso realizado na astronomia babilônica não era
sas e científicas do gênero humano provieram dessa um fenômeno isolado. Dependia de um fato mais fun-
fonte. Não discutirei aqui estas teorias pam babilôni- damental- dependia do descobrimento e do emprego
cas, 1 pois desejo formular outra pergunta. Será pos- de um novo instrumento intelectual. Os babilônios
sível alegar uma razão para o fato de não terem sido haviam descoberto a álgebra ,simbólica que, cotejada
os babilônicos apenas os primeiros a observar os fe- com desenvolvimentos ulteriores do pensamento ma-
nômenos celestes, mas também os primeiros a estabe- temático, era ainda, naturalmente, muito simples e ele-
lecer os fundamentos de, uma astronomia e de uma mentar. Entretanto, encerrava nova e fertilíssima
cosmologia científicas? A importância dos fenômenos concepção, que Neugebauer acompanha até os. pró-
celestes nunca foi completamente descurada. O ho- prios primórdios da cultura babilônica. Para com-
mem não deve ter tardado a tomar consciência do fato preender a forma característica da álgebra babilônica,
de que toda sua vida dependia de certas condições aconselha-nos que tenhamos em conta os antecedentes
cósmicas gerais. O nascer e o pôr do Sol, da Lua, das históricos da civilização babilônica, desenvolvida em
estrelas, o ciclo das estações - todos estes fenômenos condições especiais, sendo o produto da confluência e
naturais são fatos bem conhecidos, que desempenham colisão de duas raças diferentes - os sumerianos e os
papel importante na mitologia primitiva. Mas para acadianos, as quais, de origem diferente, falavam lín-
que pudessem ser reunidos num sistema de pensa- guas sem a menor relação entre si. A linguagem dos
mento, era mister outra condição, que só poderia ser acadianos pertence ao tipo semítico; a dos sumerianos
realizada em circunstâncias especiais. Estas circuns- corresponde a outro grupo, que não é semítico nem
tâncias favoráveis prevaleceram na origem da cultura indo-europeu. Quando estes dois povos se encontra-
babilônica. Otto Neugebauer escreveu um estudo in- ram e passaram a partilhar de uma vida política, so-
teressantíssimo sobre a história da matemática antiga, cial e cultural comum, precisaram resolver novos pro-
em que corrige muitas opiniões anteriores relativas ao blemas, e para solucioná-lcs se viram na necessidade
assunto. Segundo o ponto de vista tradicional antes de desenvolver novas faculdades intelectuais. A lín-
da época grega não se encontram provas da existência gua original dos sumerianos não podia ser compreen-
de uma matemática científica. Presumia-se, do modo dida nem seus textos escritos podiam ser decifrados
geral, que os babilônios e os egípcios haviam realizado pelos acadianos sem uma grande dificuldade e cons-
grandes progressos práticos e técnicos; mas ainda não tante esforço mental. Graças a este esforço, os babi-
haviam descoberto os primeiros elementos de uma lônios foram os primeiros a compreender o significado
e os usos de um simbolismo abstrato. "Toda operação
. 1. Sobre estas teorias veja os escritos de Hugo Winck1er, espe- algébrica", diz Neugebauer,
cíalments Hirnrnelsbilâ und Weltenbild der Babutonier ais Gruruiiaçe
der Wel~anschau.unll utui Mytholollie aller Volker (Lípsía, 1901) e Die pressupõe a posse de certos símbolos fixos, tanto para a. opera-
babylonlsche Geisteskultur in ihren Beziehungen zur Kulturentwicklunll ção matemática quanto para as quantidades, às quais se aplicam
der Menschheit (Lípsía, 1901).
estas operações. Sem um simbolismo conceitual dessa ordem
84 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 85

não seria possível combinar quantidades que não são numerica-


mente determinadas e indicadas e não seria possível extrair so humano. Sentindo que seu mundo estava ligado,
delas no,:,as c?mbinaçóes. lI:'1asum simbolismo assim se apre- por um sem-número de laços visíveis e invisíveis, à
s~ntava, Imediata enecessanamente, na redação de textos aca-
d~anos. . . Desde o. princípio, puderam os babilônios, portanto, ordem geral do universo, tentou penetrar nessa mis-
dispor da base mais Importante de um desenvolvimento algé- teriosa conexão. Assim, os fenômenos celestes não po-
'brico - de um simbolismo apropriado e adequado. 1.
deriam ser estudados com um espírito desapaixonado
Na astronomia babilônica, todavia, só encontra- de meditação abstrata e ciência pura, por serem enca-
mos as primeiras fases do grande processo, que final" rados como donos e dirigentes do mundo e os gover-.
mente conduziu à conquista intelectual do espaço e nadares da vida humana. E o homem, para organizar
ao descobrimento de uma ordem cósmica, de um sis- sua vida política, social e moral, teve necessidade de
tema do universo. O pensamento matemático como se voltar para os céus. Nenhum fenômeno humano
tal não poderia conduzir a uma solução imediata do parecia explicar-se por si mesmo, precisando ser ex-
problema, porque nos albores da civilização humana plicado em referência a um fenômeno celeste corres-
o pensamento matemático jamais aparece com sua pondente, do qual dependia. Em face destas conside-
verdadeira forma lógica, e se encontra, por assim di- rações, vemos claramente que o espaço dos primeiros
zer, envolto na atmosfera do pensamento mítico. Os sistemas astronômicos não poderia ser um mero espa-
primeiros descobridores de uma matemática científi- ço teórico, e porque não o poderia ser. Não consistia
ca não puderam romper este véu. Os pitagóricos fa- em pontos ou linhas, em superfícies, no sentido geo-
lavam do número como de um poder mágico e miste- métrico abstrato destes termos. Estava prenhe de po-
~ioso, e até em sua teoria do espaço empregam uma deres mágicos, divinos e demoníacos. O primeiro e
hnguagem mítica. Essa interpenetração de elementos essencial objetivo da astronomia era o esclarecimento
apa~entemente heterogêneos torna-se principalmente acerca da natureza e atividade destes poderes a fim
n?tavel em todos os sistemas primitivos de cosmogo- de prever e evitar suas influências perigosas. A as-
t;Ia. A. astronomia babilônica, em seu conjunto, ainda tronomia não poderia surgir senão nesta forma mítica
e uma mterpretação mítica do universo' já não se res- e mágica - em forma de astrologia. Preservou este
tri~g~a.à estreita esfera do espaço con;reto, corpóreo, caráter por muitos milhares de anos; em certo sentido,
primitivo. Transporta-se o espaço, por assim dizer, da era o caráter que ainda prevalecia nos primeiros sé-
terra para o céu. Mas quando se voltava para a ordem
culos de nossa própria época, na cultura da Renascen-
dos fenômenos celestes, o gênero humano não podia ça. O próprio Kepler, o verdadeiro fundador de nossa
esquecer suas necessidades e interesses terrestres. astronomia científica, precisou lutar a vida inteira
Quando o homem, pela primeira vez, ergueu os olhos com este problema. Finalmente, porém, foi preciso
para o céu, não foi para satisfazer a uma curiosidade dar o passo derradeiro. A astronomia suplanta a as-
meramente intelectual. O que realmente buscava no
trologia; o espaço geométrico ocupa o lugar do espaço
céu era seu próprio reflexo e a ordem do seu univer- mítico e mágico. A forma falsa e errônea de pensa-
mento simbólico foi a primeira a preparar o terreno
1:. Otto. Neugeb~uer, "Vorgriechische Mathematik", em Vorlesun-
gen ~ber tiie G:eschwhte der antiken Mathematischen wissenschatten para um novo e verdadeiro simbolismo, o da ciência
(Berlím, J. Sprrnger, 1934),I, pp. 68 e seguintes. moderna.

i
86 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 87

Uma das primeiras e mais difíceis tarefas da fi- "Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio". Tra-
losofia moderna foi compreender este simbolismo em tando do problema da vida orgânica precisamos, pri-
seu verdadeiro sentido e em toda sua significação. meiramente, libertar-nos do que Whitehead denomi-
Se estudarmos a evolução do pensamento cartesiano, nou o preconceito da "simples localização". O orga-
veremos que Descartes não começou com o seu Cogito nismo nunca está localizado num instante isolado. Em
ergo sum, mas com o conceito e o ideal de uma ma- sua vida, os três modos do tempo - passado, presen-
thesis universalis, baseado num grande descobrimento te e futuro - foram um todo que não pode ser desa-
matemático - a geometria analítica. Com ela o pen- gregado em elementos individuais. "Le présent est
samento simbólico avançou outro passo, que teria as chargé du passé, et gros de I'avenir", disse Leibniz.
mais importantes conseqüências sistemáticas. Eviden- Não podemos descrever o estado momentâneo de um
ciou-se que todo nosso conhecimento do espaço e das organismo sem tomar em consideração sua história e
relações espaciais poderia ser traduzido numa nova sem relacioná-lo com um estado futuro, para o qual
linguagem, a dos números, e que, mediante esta tra- o presente é tão-somente um ponto de passagem.
dução e transformação, o verdadeiro caráter lógico do Um dos mais distintos fisiologistas do século XIX,
pensamento geométrico poderia ser concebido de ma- Ewald Hering, defendeu a teoria de que a memória
neira muito mais clara e adequada. deve ser considerada como a função geral de toda a
Encontramos o mesmo progresso característico se matéria orgânica. 1 Não é apenas um fenômeno da nos-
passarmos do problema do espaço ao problema do sa vida consciente, mas se estende sobre todo o domínio
tempo. É verdade que não há apenas rigorosas ana- da natureza viva, teoria aceita e desenvolvida por R.
logias, mas também diferenças características no de- Semon, que, partindo desta base, criou um novo plano
senvolvimento de ambos os conceitos. No dizer de geral de psicologia. De acordo com Semon, o único
.Kant, o espaço é a forma de nossa "experiência exte- enfoque possível de uma psicologia científica deve ser
rior", o tempo é a de nossa "experiência interior". feito através de uma "biologia mnêmica". Semon de-
Na interpretação de sua experiência interior, viu-se o finiu "mneme" como o princípio de conservação na
homem diante de novos problemas: já não podia usar mutabilidade de todos os acontecimentos orgânicos.
os mesmos métodos empregados na primeira tentati- A memória e a hereditariedade são dois aspectos da
va de organizar e sistematizar seu conhecimento do mesma função orgânica. Todo estímulo que atua so-
mundo físico. Existe, todavia, um pano de fundo co- bre um organismo deixa nele um "engrama" *, um
mum para ambas as questões. O próprio tempo é con- traço fisiológico definido; e todas as futuras reações
siderado, a princípio, não como forma específica da do organismo dependem da cadeia desses engramas,
vida humana, mas como condição geral da vida orgâ-
nica, existente na medida em que se desenvolve no
tempo. Não é uma coisa, mas um processo - uma 1. Veja Ewald Hering, Uberdas Getiiichtnis als eine allgemeine
Eunktioti der organischen Materie
(1870l.
corrente contínua, incessante, de acontecimentos, on- ••• NOTADO TRADUTOR: ENGRAMA (do gr. en, e gramma, marca).

r
de jamais nada se repete com a mesma forma idêntica. Marca, sinal ou transtorno persistente provocados no protoplasma por
um determinado estimulo, que seria o fundamento. da memória, he-
O que disse Heráclito vale para toda a vida orgânica: reditariedade etc.
88 Ernst Cassirer- Antropologia Filosófica 89

do encadeado "complexo engrâmico". 1 Mesmo admi- um capítulo especial à investigação e ao esclarecimen-


tindo a tese geral de Hering e Semon, estaremos mui- to do problema. Esses animais, pergunta ele, referin-
to longe de haver explicado o papel e a significação do-se aos chimpanzés,
da memória em nosso mundo humano. O conceito an- agem como se fossem capazes de recordar, relembrar, reconhecer
tropológico de mneme, ou memória, é algo muito di- experiências anteriores, ou o que está longe da vista está real-
ferente. Se compreendermos a memória como função mente longe da mente? Podem eles antecipar, esperar, imaginar
e, baseados nessa consciência, preparar-se para acontecimentos
geral de toda a matéria orgânica, estaremos indican- futuros? . . Podem resolver problemas e, de modo geral, adap-
do apenas que o organismo preserva alguns traços de tar-se a situações ambientais com a ajuda de processos simbó-
licos análogos aos nossos símbolos verbais, e na dependência
sua experiência anterior e que estes traços têm in- de associações que funcionam como sinais? 1
fluência definida sobre suas reações ulteriores. Mas
para se ter memória, no sentido humano da palavra, Yerkes mostra-se propenso a responder afirmati-
não basta que subsista "um resíduo latente da ação vamente a todas estas perguntas: Mas ainda que lhe
anterior de um estímulo". 2 A simples presença, a aceitemos todas as provas,' subsiste a questão crucial.
soma total destes resíduos não pode explicar o fenô- Pois o que importa neste caso não é tanto o fato da
meno da memória. A memória supõe um processo existência de processos ideacionais em homens e ani-
de reconhecimento e identificação, um processo idea- mais mas a forma destes processos. No homem não
cional de natureza complexíssima. Não é preciso ape- podemos descrever a lembrança como o simples retor-
nas que as impressões anteriores se repitam; é neces- no de um acontecimento, como uma pálida imagem ou
sário também que sejam ordenadas, localizadas e re- cópia de impressões anteriores. Não se trata unica-
lacionadas com diferentes pontos no tempo. Esta loca- mente de uma repetição, senão de um renas cimento
lização não é possível sem a concepção do tempo como do passado; supõe um processo criativo e construtivo.
um plano geral - como uma ordem serial, que com- Não basta recolhermos dados isolados da nossa expe-
preende todos os acontecimentos individuais. A cons- riência passada; precisamos realmente recordá-los, or-
ciência do tempo implica necessariamente o conceito ganizá-Ios, sintetizá-los e reuni-los num foco de pen-
de uma ordem serial dessa espécie, correspondente samento. Esta espécie de recordação nos dá a forma
àquele outro plano que chamamos espaço. humana característica da memória e a distingue de
A memória, como simples reprodução de um todos os outros fenômenos da vida animal ou orgânica.
acontecimento anterior, ocorre também na vida dos Está visto que, em nossa experiência comum, en-
animais superiores. Até que ponto depende dos pro- contramos muitas formas de recordação ou memória
cessos ideacionais comparáveis aos que encontramos que, obviamente, não correspondem a esta descrição.
no homem é um problema difícil e muito controver- Muitos casos de memória, talvez a maioria deles, po-
tido. Em seu último livro, Robert M. Yerkes dedica dem ser adequadamente explicados pelo enfoque ha-
bitual das escolas sensacionalistas, isto é, por um sim-
1. Sobre pormenores veja Mneme (1909)e Die Mnemischen Emp- ples mecanismo de "associação de idéias". Muitos psi-
findungen (1909)de Semon. Uma versão inglesa resumida destes livros, cólogos estão convencidos de que não existe melhor ma-
editada por Bella Duffy, foi publicada sob o titulo de Mnemic Psycho-
logy (Nova Iorque, 1923).
2. "Der latente Rest einer frUh·erenRe1zw1rkung"(Sernon), 1. Yerkes, ctumixmeees, p. 145.
• i
90 Ernst Cassirer
1 Antropologia Filosófica 91

neira de testar a memória de uma pessoa do que ave- fica governar-se e julgar-se. 1 A poesia é uma das for-
riguar quantas palavras ou sílabas sem sentido podem mas em que o homem pode proferir sentença sobre si
ser conservadas na mente e repetidas depois de certo 4. mesmo e sobre sua vida - é auto conhecimento e au-
1

tempo. As experiências baseadas nesta suposição se- tocrítica. Não se compreenda esta crítica num sentido
riam as únicas a proporcionar uma medida exata da moral; não significa elogio nem censura, justificação
memória humana. Uma das contribuições de Bergson nem condenação, mas uma nova e mais profunda com-
à psicologia consiste em seus ataques a todas estas preensão, uma reinterpretação da vida pessoal do poe-
ta. O processo não se restringe à poesia e é possível
teorias mecânicas da memória. De acordo com o seu
em todos os outros meios de expressão artística. Se
ponto de vista, desenvolvido em Matiere et Mémoire,
examinarmos os auto-retratos de Rembrandt, pintados
a memória é um fenômeno muito mais profundo e
em diferentes épocas, encontraremos, em seus traços,
complexo. Significa "interiorização" e intensificação;
toda a história de sua vida, de sua personalidade e de
significa interpenetração de todos os elementos de seu desenvolvimento como artista.
nossa vida passada. Na obra de Bergson, esta teoria
Entretanto, a poesia não é a única forma, nem tal-
se converteu num novo ponto de partida metafísico,
vez a mais característica, de memória simbólica. O
que se revelou a pedra angular de sua filosofia da primeiro grande exemplo do que é e significa uma au-
vida. tobiografia nos deram as Confissões de Agostinho, on-
Não nos interessa agora o aspecto metafísico do de encontramos um tipo muito diferente de auto-exa-
problema. Nosso objetivo é uma fenomenologia da me. Agostinho não relata os acontecimentos de sua
cultura humana. Precisamos, portanto, tentar ilus- vida, pouco merecedores, para ele, de serem relem-
trar e elucidar a questão com exemplos concretos, ti- brados ou recordados. O drama que nos descreve é o
rados da vida cultural do homem. Uma ilustração drama religioso da humanidade. Sua própria conver-
clássica se encontra na vida e nas obras de Goethe. são não é mais que a repetição e o reflexo do processo
A memória simbólica é o processo pelo qual o ho- religioso universal - a queda e a redenção do homem.
mem não só repete sua experiência passada mas a Cada linha do livro de Agostinho possui, além de um
reconstrói. significado histórico, um outro simbólico e oculto.
A imaginação torna-se elemento necessário da Não poderia compreender a própria vida, nem falar
verdadeira recordação. Por este motivo Goethe deu dela, a não ser na linguagem simbólica da fé cristã.
à sua autobiografia o nome de Poesia e Verdade (Di- Com este procedimento tornou-se, ao mesmo tempo,
chtung und Wahrheit), não querendo dizer que tives- um grande pensador religioso e o fundador de uma
se inserido, na narrativa de sua vida, elementos ima- nova psicologia, de um novo método de introspecção
ginários ou fictícios. Queria descobrir e descrever a e de auto-exame.
verdade acerca de sua vida; mas só a encontraria se Até aqui só tomamos em consideração um aspec-
emprestasse, aos fatos isolados e dispersos de sua exis- to do tempo - a relação do presente com o passado.
tência, uma forma poética, isto é, simbólica. Tam-
1. "At leve er - krig med trolde i hjertets og hjernens hvaelv.
bém outros poetas consideraram sua obra de forma. Att âiçte, - det er at holde dommedag over síg selv."
semelhante. Ser poeta, declarou Henrik Ibsen, signi- Ibsen, Diqie (5." edição, Copenhagen, 1886), p. 208.
92 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 93

Mas existe ainda um outro, que parece ser mais ca- Em certo sentido, esta tendência parece não ex-
racterístico e até mais importante para a estrutura da ceder os limites de toda a vida orgânica. Caracteriza
vida humana. É o que poderia ser chamado a terceira todos os processos orgânicos indescritíveis para nós
dimensão do tempo, a dimensão do futuro: Em nossa sem referência ao futuro. A maioria dos instintos ani-
consciência do tempo, o futuro é um elemento indis- mais deve ser interpretada deste modo. As ações ins-
pensável. Já nas primeiras etapas da vida começa a tintivas não são inspiradas por necessidades imediatas;
representar um papel dominante. "É característico são impulsos dirigidos para o futuro e, não raro, para
de todo o desenvolvimento inicial da vida das idéias", um futuro remotíssimo. O efeito destas ações não se-
escreve William Stern, "que elas não apareçam tanto rá notado pelo animal que as executa, uma vez que
como lembranças que apontam para alguma coisa do pertence à vida da geração seguinte. Se estudarmos
passado, mas como expectativas dirigidas para o futu- um livro como o Souvenirs entomologiques de Jules
ro - mesmo que se trate apenas de um futuro ime-
Fabre, encontraremos em quase todas as páginas
diatamente tocável. Topamos aqui, pela primeira vez,
exemplos extraordinários desta característica dos ins-
com uma lei geral do desenvolvimento. A referência
tintos animais.
ao futuro é apreendida pela consciência mais depressa
do que a referência ao passado". 1 Em nossa vida ul- Nada disso requer, nem demonstra, alguma
terior esta tendência cada vez mais se acentua. Vive- "idéia", alguma concepção ou consciência do futuro
mos muito mais de nossas dúvidas e temores, ansie- nos animais inferiores. Mas logo que nos aproxima-
dades e esperanças ligadas ao futuro, do que de nossas mos da vida dos animais superiores, o caso se torna
recordações ou de nossas experiências presentes. Isto duvidoso. Muitos observadores competentes já se re-
se apresentaria, à primeira vista, como um discutível feriram à previsão dos animais superiores; e dir-se-ia
dom do homem, pois introduz um elemento de incer- que, sem esta presunção, dificilmente poderíamos
teza em sua vida, estranho a todas as outras criaturas. apresentar uma descrição adequada de seu comporta-
Dir-se-ia que o homem seria mais sábio e feliz se se mento. Se, nas experiências de Wolfe, um animal
libertasse dessa idéia fantástica, dessa miragem do fu- aceita recompensas simuladas por recompensas reais,
turo. Filósofos, poetas e grandes mestres religiosos
isto parece implicar uma consciente antecipação de
advertiram os homens, em todos os tempos, contra
fatos futuros; o animal "espera" que os sinais sejam,
essa fonte de constantes decepções. A religião acon-
selha o homem a não temer o dia de amanhã, e 'a mais tarde, trocados por comida. "É pequeno o nú-
sabedoria humana lhe recomenda que desfrute o dia mero de observações", escreve Wolfgang Koehler,
presente, sem se preocupar com o futuro. "Quid sit em que seja reconhecível qualquer tomada em consideração de
futurum eras fuge quaerere" , diz Horácio. Mas o ho- uma contingência futura, e a mim me parece teoricamente impor-
mem nunca pôde seguir este conselho. Pensar no tante que a mais clara consideração de um evento futuro ocorra
então, quando o evento antecipado é um ato planejado do próprio
futuro e nele viver é parte integrante de sua natureza. animal, Num caso assim, pode acontecer realmente que o ani-
mal gaste um tempo considerável em trabalho preparatório (num
sentido inequívoco>. " Quando este trabalho preliminar, obvia-
1. Stern, op. cit., pp. 112 e seguintes. mente empreendido com vistas ao objetivo final, dura muito
94 AntropoLogia Filosófica 95
Ernst Cassirer

tempo, mas por si mesmo não proporciona qualquer aproxi- guma se acha mais expresso do que nas vidas dos
mação visível do objetivo, aí temos os sinais de, pelo menos, grandes profetas religiosos. Estes mestres religiosos
algum sentido do futuro. 1
nunca se contentavam, simplesmente, em prever acon-
Baseados nestas provas, parece podermos inferir tecimentos futuros ou em advertir contra futuros ma-
que a antecipação de acontecimentos futuros e até o les. Nem falavam como áugures ou aceitavam provas
planejamento de futuras ações não estão inteiramente de agouros ou presságios - seu propósito era outro
fora do alcance da vida animal. Mas nos seres huma- - na verdade, exatamente o contrário do que preten-
nos a consciência do futuro sofre a mesma mudança diam os adivinhos. O futuro de que falavam não era
característica de significado que já notamos em rela- um fato empírico, mas uma tarefa ética e religiosa.
ção à idéia do passado. O futuro não é apenas uma Assim, a predição se transformou em profecia, que
imagem, mas torna-se um "ideal". O significado des- não significa apenas um vaticínio, mas uma promessa.
ta transformação manifesta-se em todas as fases da Esta é uma nova visão que, pela primeira vez, se tor-
vida cultural do homem. Enquanto ele permanece in- na clara nos profetas de Israel - Isaías, Jeremias e
teiramente .absorto em suas atividades práticas a di- Ezequiel. Para eles, futuro ideal significa a negação
ferença não é claramente observável. Parece ser tão- do mundo empírico, o "fim de todos os dias"; mas
-somente uma diferença de grau e não específica. Cla- contém, ao mesmo tempo, a esperança e a afirmação
ro está que o futuro contemplado pelo homem se es- de "um novo céu e uma nova terra". Neste caso tam-
tende por uma área muito mais ampla, e o seu plane- bém, o poder simbólico do homem se aventura' além
jamento é muito mais consciente e muito mais cuida- de todos os limites de sua existência finita. Mas esta
doso. Mas tudo isto pertence ao domínio da prudên- negação implica um novo e grande ato da inte-
cia, não ao da sabedoria. O termo "prudência" (pru- gração; assinala uma fase decisiva em sua vida ética
dentia) está etimologicamente relacionado ao de "pro- e religiosa.
vidência" (providentia). Significa a capacidade de
prever acontecimentos futuros e de se preparar para
futuras necessidades. Mas a idéia teórica do futuro
- a idéia que é um pré-requisito de todas as mais
altas atividades culturais do homem - é de uma es-
pécie inteiramente distinta. É mais que uma simples
expectativa; torna-se um imperativo da vida humana,
que vai muito além das necessidades práticas imedia-
tas do homem - em sua forma mais elevada vai além
dos limites de sua vida empírica. É o futuro simbólico
do homem que corresponde ao seu passado simbólico
e se encontra em rigorosa analogia com ele, podendo
ser chamado futuro "profético", porque em parte al-

1. Koehler, The Mentality ot Apes, p. 282.


v
FATOS E IDEAIS

E M sua Crítica do Julgamento, Kant indaga se é pos-


sível descobrir um critério geral com o qual possa-
mos descrever a estrutura fundamental do intelecto
humano e distingui-Ia de todos os outros modos pos-
síveis de conhecimento. Após profunda análise chega
à conclusão de que semelhante critério deve ser bus-
cado no caráter do conhecimento humano, que é de
tal índole que o entendimento se vê na necessidade de
fazer uma distinção nítida entre a realidade e a possi-
bilidade das coisas. Esse caráter do conhecimento hu-
mano é que determina o lugar do homem na cadeia
geral do ser. A diferença entre o "real" e o "possí-
vel" não existe nem para os seres que lhe estão abai-
xo nem para os que estão acima. Os que estão abaixo
do homem se encontram confinados dentro do mundo
de suas percepções sensoriais; suscetíveis aos estímu-
los físicos presentes, reagem a eles sem poderem for-
mar idéia de coisas "possíveis". Por outro lado, o in-
telecto sobre-humano, a mente divina, não conhece
distinção entre realidade e possibilidade. Deus é actus
purus. Tudo o que concebe é real. A inteligência de
Deus é um intellectus archetypus ou intuitus origina-
rius: não pode pensar numa coisa sem criá-Ia e pro-
duzi-Ia pelo próprio ato do pensamento. Apenas no
homem, em sua "inteligência derivativa" (intellectus
ectypus) surge o problema da possibilidade. A dife-
98 Ernst Cassirer
Antropologia Filosófica 99

rença entre a realidade e a possibilidade não é metafí- no progresso ulterior da cultur.a huma~a sente-se cla-
sica, mas epistemológica. Não denota nenhum cará- ramente a diferença entre COIsase símbolos, o qu.e
ter das coisas em si mesmas; aplica-se apenas ao nosso quer dizer que a distinção entre a reali.dade e a p.OSSI-
conhecimento delas. Kant não pretendeu afirmar, de bilidade também se torna cada vez mais pronunciada.
maneira positiva e dogmática, que exista realmente Esta interdependência pode ser provada por via
um intelecto divino, um intuitus originarius; apenas indireta. Verificamos que, em condições especiais, nas
empregou o conceito de semelhante "entendimento quais a função do pensamento simbóli~o é impedida
intuitivo" a fim de descrever a natureza e os limites ou. obscurecida, a diferença entre a realidade e a pos-
do intelecto humano. Este último é um "entendimen- sibilidade também se torna incerta; já não pode ser
to discursivo", que depende de dois elementos hetero- claramente percebida. A patologia da linguagem pro-
gêneos; não podemos pensar sem imagens, nem intuir
jetou uma luz interessante sobre e~te pro~~:m~. Em
sem conceitos. "Conceitos sem intuições são vazios; casos de afasia se constatou, com muita freqüência, que
intuições sem conceitos são cegas." Este dualismo nas os pacientes haviam não só perdido o uso de classes
condições fundamentais do conhecimento é o que, se- especiais de palavras mas também, ao mesmo tempo,
gundo Kant, se encontra no fundo da nossa distinção mostravam curiosa deficiência na atitude intelectual
entre possibilidade e realidade. 1 geral. Praticamente falando, vários destes pacientes
Do ponto de vista do nosso problema presente,
não se afastavam muito do comportamento das pes-
esta passagem de Kant - uma das mais importantes soas normais. Mas quando enfrentavam um problema
e mais difíceis em suas obras críticas - reveste es- que exigia um modo mais abstrato de pensar, quando
pecial interesse. Assinala um problema crucial para precisavam pensar em meras possibilidades em lugar
qualquer filosofia antropológica. Em lugar de dizer de realidades, viam-se imediatamente às voltas com
que o intelecto humano é um intelecto que "necessita grandes dificuldades. Não conse~t1Íam pensar .nem
de imagens'P, melhor diríamos que necessita de sím- falar de coisas "irreais". Um paciente que sofria de
bolos. Em sua essência, o conhecimento humano é hemiplegia de uma paralisia da mão direita, não po-
simbólico - traço que caracteriza, ao mesmo tempo, ,
dia, por exemplo, . as palavras: "Posso es-
pronunciar
sua força e limitações. E para o pensamento simbólico crever com a mão direita". Recusava-se até a repe-
é indispensável estabelecer nítida distinção entre o ti-Ias quando pronunciadas pelo médico; mas dizia fa-
real e o possível, entre coisas reais e ideais. Um sím- cilmente: "Posso escrever com a mao - esquer d a " , por-
bolo não possui existência real como parte do mundo que isto, para ele, era a comprovação de um fato e
físico, sim um "significado". No pensamento primi- não de um caso hipotético ou irreal. I "Estes e outros
tivo ainda é muito difícil distinguir entre as duas es- exemplos semelhantes", declara Kurt Goldstein,
feras do ser e do significar, por se encontrarem cons-
tantemente confundidas: o símbolo é considerado co- I Até as crianças parecem encontrar, às vezes, grande dificuldade
mo se fosse dotado de poderes mágicos ou físicos. Mas para· imaginar casos hipotéticos. Isto se torna particularmente. cl~ro
quando o desenvolvimento da criança é retardado por clrcunstan~las
especiais. Ilustração notavelmente semelhante aos. casos patológlC?S
acima mencionados, por exemplo, encontra-se na vida e na educação
l. Veja Kant, Crítica do Julgamento, seçs. 76, 77.
de Laura Bridgman. "Observou-se", escreve uma das suas .professo.
2. " ... ein der Bilder bedUrftiger Verstand" (Kant),
ras, "que era muito difícil no começo fazê-Ia compreender figuras de
100 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 101

mostram que o paciente é incapaz de tratar com qualquer situa- em fatos seria, sem dúvida, um castelo no ar. Mas
ção meramente "possível". Assim, podemos descrever adefi-
ciência destes pacientes como a incapacidade de abordar uma esta não é resposta para o problema de um verdadei-
situação "possível". .. Nossos pacientes encontram a maior difi- ro método científico; pelo contrário, é o próprio pro-
culdade em ínícíar qualquer ato que não seja diretamente deter-
minado por estímulos externos... Encontram muita dificuldade blema. Qual é, então, o significado de "fato científi-
na mudança voluntária, em mudar voluntariamente de um tópico co"? Está visto que uma observação fortuita ou um
a outro. Conseqüentemente, falham nos atos em que esta mu-
dança é necessária... A mudança pressupõe que tenho em simples acúmulo de dados sensoriais não nos fornece
mente, simultaneamente, o objeto ao qual estou reagindo no um fato de tal espécie. Os fatos da ciência implicam
momento e o objeto ao qual vou reagir. Um está em primeiro
plano, o outro em segundo. Mas é essencial que o objeto em sempre um elemento teórico, isto é, um simbólico.
segundo plano aí esteja como possível objeto para uma futura Muitos ou senão a maioria destes fatos científicos,
reação. Só então poderei mudar de um para o outro. Isto
pressupõe a capacidade de abordar coisas apenas imaginadas, que mudaram por completo todo o curso da história
coisas "possíveis", e que não são dadas na situação concreta ... da ciência, foram hipotéticos antes de se tornarem ob-
O homem mentalmente doente é incapaz disto por sua incapaci-
dade de captar o abstrato. Nossos pacientes não conseguem serváveis. Quando Galileu fundou sua nova ciência
imitar ou copiar algo que não faça parte de sua experiência da dinâmica, precisou começar com a concepção de
concreta imediata. É uma expressão interessantíssima desta um corpo inteiramente isolado, que se movesse sem
incapacidade o fato de encontrarem a maior dificuldade em repe-
tir uma sentença que não tem sentido para eles - isto é, cujo a influência de nenhuma força externa. Um corpo nes-
conteúdo não corresponde à realidade que são capazes de cap- sas condições nunca fora observado e nunca poderia
tar... Dizer tais coisas requer, ao que parece, a adoção de
uma atitude dificílima. Exige, por assim dizer, a capacidade ser observado. Não era um corpo real, senão um cor-
de viver em duas esferas, uma concreta, onde as coisas reais po possível - e, em certo sentido, nem possível era,
tomam lugar e a não-concreta, a meramente "possível". . . Isto
o paciente é incapaz de fazer; somente pode viver e agir na pois a condição em que Galileu baseava sua conclusão,
esfera concreta. 1 a ausência de todas as forças exteriores, nunca se rea-
liza na natureza. 1 Tem sido destacado com razão que
Aqui tocamos num problema universal, de suma
nenhuma das concepções que conduziram ao descobri-
importância para o caráter global e desenvolvimento
mento do princípio da inércia é evidente ou natural;
da cultura humana. Os empiristas e positivistas sem-
e que para os gregos como para os homens da Idade
pre sustentaram que a tarefa mais elevada do conhe-
Média, tais concepções se teriam afigurado evidente-
cimento humano consiste em proporcionar-nos os fa-
mente falsas, e até absurdas. 2 Não obstante, sem a
tos e nada mais que os fatos. Uma teoria não baseada
ajuda destas concepções totalmente irreais, Galileu
retórica, fábulas ou casos supostos de qualquer espécie, e esta difi- não teria podido propor sua teoria do movimento; nem
culdade ainda não foi inteiramente superada. Quando lhe dão algum teria podido criar "uma nova ciência, que tratava de
problema aritmético, a primeira impressão é de que o que se supõe
realmente aconteceu. Por exemplo, há umas poucas semanas, quando um assunto muito antigo". E o mesmo se aplica a
sua professóra tomou de uma aritmética para ler-lhe um problema, ela quase todas as outras grandes teorias científicas.
perguntou: "Como é que o homem que escreveu esse livro sabia que
eu estava aqui?" O problema que lhe foi proposto era este: "Se você Eram, à primeira vista, invariavelmente, grandes pa-
pode comprar um barril de cidra por quatro dólares, quanta cidra
poderá comprar com um dólar?" E o seu primeiro comentário re-
sumiu-se no seguinte: "Não posso gastar muito com cidra porque é 1. Sobre um tratamento mais minucioso do problema veja Cassi-
muito azeda". Veja Maud Howe e Florence Howe Hall, Laura Brid- rer, Substanzbegritt und Funktionsbegritt. Tradução inglesa de W. C.
gman, p. 112. e M. C. Swabey, Substance and Function (Chicago e Londres, 1923).
1. Kurt Goldstein, A Natureza Humana à Luz da Psicopatologia, 2. Veja A. Koyré, "GalUeu e a Revolução Cientifica do Século
pp. 49 e seguintes, e 210. XVII", Phtlosophical Bevtew, LI! (1943), pp. 892 e seguintes.
Antropologia Filosófica 103
102 Ernst Cassirer

radoxos, cuja proposição e defesa exigiam inusitada damentais se revelavam cheios de equívocos e obscuri-
coragem intelectual. dades, que não puderam ser eliminados enquanto não
Não há, talvez, melhor maneira de demonstrar se reconheceu claramente o caráter geral dos conceitos
este ponto do que considerar a história da matemática. matemáticos - enquanto não se reconheceu que a ma-
Um dos seus conceitos fundamentais é o número. Des- temática não é uma teoria das coisas, mas de símbolos.
de o tempo dos pitagoristas, o número tem sido reco- A lição que aprendemos na história do pensa-
nhecido como o tema central do pensamento matemá- mento matemático pode ser completada e confirmada
tico. E~contrar uma teoria compreensiva e adequa- por outras considerações que, à primeira vista, pare-
da do numero tornou-se a maior e mais urgente tare- cem pertencer a uma esfera diferente. A matemática
fa dos estudiosos nesse campo. Mas a cada passo que I não é o único campo em que se pode estudar a fun-
ção geral do pensamento simbólico. A natureza ver-
davam nesta direção, matemáticos e filósofos tropeça-
vam com a mesma dificuldade. Viam-se constante-
mente na necessidade de alargar seu campo e introdu-
I dadeira e a plena força deste pensamento se tornam
ainda mais evidentes se nos voltarmos para o desen-
." novos ", numeros, to dos de carater altamente pa-
zir r

radoxal. Seu primeiro aparecimento despertou as


mais profundas suspeitas de matemáticos e lógicos e
f volvimento de nossas idéias e ideais éticos. A obser-
vação de Kant, de que é necessário e indispensável ao
entendimento humano distinguir entre realidade e
foram considerados absurdos ou impossíveis. Pode- possibilidade das coisas, não só expressa uma carac-
mos acompanhar este desenvolvimento na história dos terística geral da razão teórica mas também uma ver-
números negativos, irracionais e imaginários. O pró- dade acerca da razão prática. É característico de todos
prio termo "irracional" (a:PP1)'tov) significa uma coisa os grandes filósofos éticos não pensarem em termos
impensável, sobre a qual não se pode ,falar. Os nú- de simples realidade. Suas idéias não podem sequer
meros negativos aparecem, pela primeira vez, no sé- dar um passo à frente sem ampliar e até transcender
culo XVI, na Arithmetica integra de Michael Stifel - os limites do mundo real. Dotados de grande força
sendo chamados "números fictícios" (numeri ficti). intelectual e moral, os mestres éticos da humanidade
Durante muito tempo, até os maiores matemáticos possuíam ainda profunda imaginação, impregnando e
consideraram a idéia dos números imaginários como animando todas as suas asserções.
um mistério insolúvel. O primeiro a apresentar uma Os escritos de Pia tão e de seus seguidores sempre
explicação satisfatória e uma teoria sólida acerca des- estiveram expostos à objeção de que se referem a um
tes números foi Gauss. As mesmas dúvidas e hesita- mundo completamente irreal. Mas os grandes pensa-
ções se repetiram no campo da geometria, quando os dores éticos não temiam esta objeção. Aceitaram-na
primeiros sistemas não euclidianos - os de Lobat- e passaram a desafiá-Ia abertamente. "A República
schevski, Bolyai e Riemann -'- principiaram a aparecer. platônica", escreve Kant na Crítica da Razão Pura,
Em todos os grandes sistemas do racionalismo , a ma- ~em .sido. considerada notável exemplo de perfeição puramente
temática tem sido considerada o orgulho da razão hu- ímazínãria. Converteu-se em quimera, em algo que só poderia

[
existir no cérebro de um pensador ocioso... Melhor faríamos,
mana - a província das idéias "claras e distintas". entretanto, ao seguir este pensamento se tratássemos de colo-
Mas logo esta reputação pareceu vacilar. Longe de cá-Ia. por nossos próprios esforços, debaixo de uma luz mais
Clara, em lugar de rejeitá-Ia por inútil, sob O pretexto rníse-
serem claros e distintos, os conceitos matemáticos fun-
104 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 105

rável e realmente perigoso de sua impraticabilidade... Pois xar de admitir. "Comecemos", diz ele, na Introdução
nada pode ser mais nocivo e mais indigno de um filósofo do
que o apelo vulgar ao que se denomina a experiência adversa ao seu Discours sur l'origine et les fondements de
~ ql!al. t~lvez nunca teria existido se, na ocasião apropriada, ~ l'inégalité parmi les hommes,
ínstítuíções houvessem sido formadas de acordo com estas idéias
e nao segundo grosseiras concepções que, por derivarem apena~ pondo de lado os fatos [par écarter tous les faits] por não afe-
da expenencia, frustraram todas as boas intenções. tarem a questão. As pesquisas abordadas nesta ocasião não
devem ser tomadas por verdades históricas, mas tão-somente
As teorias éticas e políticas modernas, modeladas como. raciocínios hipotéticos e ?ondicionais, mais apropriados
para ítustrar a natureza das COIsas do que para mostrar sua
pela República de Platão, foram concebidas no mesmo ~erdadeira origem; como esses sistemas que os nossos natura-
estilo de pensamento. Quando escreveu sua Utopia, Iístas fazem todos os dias sobre a formação do mundo.
T}lOmasMore expressou este ponto de vista no próprio
titulo da obra. Uma Utopia não é o retrato de um mun- Com estas palavras, Rousseau tenta introduzir, no
do real, nem da ordem política ou social reais. Não campo das ciências morais, o método hipotético em-
existe em momento algum do tempo e em nenhum' pregado por Galileu no estudo dos fenômenos natu-
ponto do espaço - é um "nenhures". Mas foi exata- rais; e está convencido de que só por meio deste "ra-
mente esta concepção que suportou a prova e provou ciocínio hipotético e condicional" (des raisonnements
sua força no desenvolvimento do mundo moderno. Se- hypothétiques et conditionelles) podemos chegar a
gue-se da própria natureza e caráter do pensamento uma verdadeira compreensão da natureza do homem.
ético que ele nunca pôde condescender em aceitar
"o dado". O mundo ético nunca é dado; está sempre
em formação. "Viver no mundo ideal", disse Goethe,
f A descrição do estado de natureza, feita por Rousseau,
não pretendia ser uma narrativa histórica do passado.
Era uma construção simbólica destinada a retratar
"é tratar o impossível como se fosse possível". 1 Os um novo futuro para a humanidade. Na história da
grandes reformadores políticos e sociais vêem-se cons- civilização, a Utopia sempre cumpriu esta tarefa. Na
tantemente na necessidade de tratar o impossível co- filosofia do Iluminismo converteu-se num gênero li-
mo se fosse possível. Em seus primeiros escritos po- terário genuíno, revelando-se uma das armas mais po-
líticos, Rousseau parece falar como um resoluto na- derosas em todos os ataques à ordem política e social
turalista; deseja restaurar os direitos do homem e tra- existentes. Com esta finalidade foi utilizada por Mon-
zê-lo de volta ao seu estado original, o estado da natu- tesquieu, por Voltaire e por Swift. No século XIX,
reza. O homem natural (l'homme de nature) deve Samuel Butler fez dela uso semelhante. A grande
substituir o convencional, o homem social (l'homme de missão da Utopia é abrir lugar para o possível em
l'homme). Mas se acompanharmos o desenvolvimento contraposição à aquiescência passiva ao estado atual
ulterior do pensamento de Rousseau, veremos clara- dos assuntos humanos. É o pensamento simbólico que
mente que até este "homem natural" está longe de supera a inércia natural do homem, conferindo-lhe
ser um conceito físico, por ser, na realidade, um con- nova capacidade, a de arquitetar constantemente seu
ceito simbólico - fato que ele próprio não pôde dei- universo humano.

1." "In der Idee leben heisst das Unmõglíche 80 behandeln als
wenn es mõglích wâre". Goethe, Sprilche in Prosa, "Werke" (edição
de Weimar), XLII, par. II, p. 142.
SEGUNDA PARTE

HOMEM E CULTURA
VI
DEFINIÇÃO DO HOMEM EM
TERMOS DE CULTURA

FOI um momento decisivo na cultura e pensamento


gregos quando Platão interpretou a máxima "Co-
nhece-te a ti mesmo", num sentido inteiramente novo.
Esta interpretação não só introduziu um problema es-
tranho ao pensamento pré-socrático como também
ultrapassava os limites do método socrático. Obede-
cendo a ordem do deus délfico e cumprindo a obriga-
ção religiosa do auto-exame e do conhecimento de si
próprio, Sócrates abordara o homem individual. Pla-
tão reconheceu as limitações do método socrático de
investigação; e declarou que para resolver o problema
precisamos projetá-lo num plano mais amplo. Os fe-
nômenos que encontramos em nossa experiência indi-
vidual são tão vários, complexos e contraditórios que
dificilmente conseguimos destrinçá-Ios. Deve-se estu-
dar o homem, não em sua vida individual, mas em sua
vida política e social. No entender de Platão, a natu-
reza humana é como um texto difícil, cujo significado
precisa ser decifrado pela filosofia; mas escrito, em
nossa experiência pessoal, em letras tão miúdas que
se torna ilegível. O primeiro trabalho da filosofia se-
rá ampliar essas letras. A filosofia não poderá dar-nos
uma teoria satisfatória do homem enquanto não tiver
desenvolvido uma teoria do Estado. A natureza do
Antropologia Filosófica 111
110 Ernst Cassirer

que nosso método de estudar o homem deve ser de


homem está escrita em letras maiúsculas na natureza
fato, subjetivo, mas não pode ser individual, pois o
do Estado. Nela surge, de repente, o significado ocul-
tema que desejamos conhecer não é a consciência in-
to do texto, e o que parecia obscuro e confuso torna-se
dividual, mas o tema universaL Se nos referirmos a
claro e legível.
este tema com a expressão "humanidade", precisare-
Mas a vida política não é a única forma de exis-
mos afirmar que não é a humanidade que deve ser
tência humana em comum. Na história do gênero hu-
explicada pelo homem, senão o homem pela humani-
mano, o Estado, em sua forma presente, é um produ-
dade. O problema precisa ser reformulado e reexa-
to tardio do processo de civilização. Muito antes de
minado; precisa ser colocado sobre bases mais amplas
haver descoberto esta forma de organização social, o
e mais sólidas. Estas bases se encontram no pensa-
homem fizera outras tentativas para organizar seus
mento sociológico e histórico. "Para conhecer-te", diz
sentimentos, desejos e pensamentos. Tais organizações
Comte, "conhece a história". Doravante a psicologia
e sistematizações estão contidas na linguagem, no mi-
histórica completa e suplanta todas as formas ante-
to, na religião e na arte. Precisamos aceitar esta base
riores de psicologia individual. "As chamadas obser-
mais ampla se quisermos desenvolver uma teoria do
vações feitas sobre a mente, consideradasein si mes-
homem. Embora importante, o Estado não é tudo
mas e a priori", escreveu Comte numa carta, "são pu-
nem pode expressar ou absorver todas as outras ativi-
ras ilusões. Tudo o que denominamos lógica, metafí-
dades humanas. É certo que, em sua evolução histó-
sica, ideologia é vã fantasmagoria e um sonho, quan-
rica, estas atividades estão estreitamente ligadas ao
do não um absurdo". 1
desenvolvimento do Estado; dependem, em muitos
No Cours de philosophie positive de Comte pode-
sentidos, das formas da vida política. Mas, conquanto
mos acompanhar, passo a passo, a transição por que
não possuam existência histórica separada, têm, não
passaram os ideais metodológicos no século XIX.
obstante, significado e valor próprios.
Comte começou como simples cientista, cujo interesse,
Na filosofia moderna, Comte foi um dos primei-
aparentemente, se concentrava em problemas matemá-
ros a abordar -este problema e a formulá-Io de maneira
ticos, físicos e químicos. Em sua hierarquia do conhe-
clara e sistemática. É um tanto paradoxal que, neste
cimento humano a escala vai da astronomia, através
aspecto, devamos considerar o positivismo de Comte
da matemática, da física e da química, à biologia. Em
como um paralelo moderno da teoria platônica do ho-
seguida, vem o que parece uma súbita inversão desta
mem. É certo que Comte nunca foi platônico nem po-
ordem. A medida que nos aproximamos do mundo
deria aceitar as pressuposições lógicas e metafísicas
humano, os princípios da matemática ou das ciências
em que se baseia a teoria das idéias de Platão. Por
naturais não se invalidam, mas já não bastam. Os fe-
outro lado, todavia, opunha-se vigorosamente aos pon-
nômenos sociais estão sujeitos às mesmas regras que
tos de vista dos ideologistas franceses. Em sua hierar-
os fenômenos físicos, mas têm um caráter diferente e
quia do conhecimento humano, duas novas ciências, a
ciência da ética social e a ciência da dinâmica social, , l. Comte, Lettres à Valat, p. 89; apud Lévy-Bruhl, La philosophie
ocupam a posição mais elevada. Deste ponto de vista d Auuus..te Comte. Sobre maiores detalhes veja L. Lévy-Bruhl, op. cit_
sociológico, Comte ataca o psicologismo de sua época. Traduçao inglesa, A Filosofia de Comte (Nova Iorque e Londres 1903)
pp, 247 e seguintes. ' ,
Uma das máximas fundamentais de sua filosofia é
112 Ernst Cassirer J
~l

t
i
Antropologia Filosófica 113

muito mais complicado. Não devem ser descritos ape- de combater, ardentemente, esta teoria. Restava de-
nas em termos de física, química e biologia. "Em to- monstrar a mesma homogeneidade não só na estrutu-
dos os fenômenos sociais", diz Comte, ra anatômica e fisiológica mas também na estrutura
percebemos a operação das leis fisiológicas do indivíduo; e, mental' do homem. Com esta finalidade, todos os ata-
além disso, algo que lhes modifica os efeitos e que pertence à ques à antiga maneira de pensar deveriam concentrar-
influência dos indivíduos entre si - singularmente complicada,
no caso da espécie humana, pela influência das gerações sobre -se num único ponto, cumprindo provar que o que
seus sucessores. Assim se torna evidente que a nossa ciência chamamos a inteligência do homem não é, de modo
social deve surgir da que se relaciona com a vida do indivíduo. algum, uma faculdade autônoma original. Os propul-
Por outro lado, não há motivo para se supor, como o fizeram
eminentes fisiologistas, que a Física Social é apenas um apêndice sores das teorias naturalísticas podiam pedir provas
da Fisiologia. Os renõmenos de ambas não são idênticos, em- aos princípios de psicologia estabelecidos pelas velhas
bora sejam homogêneos; e é importantíssimo manter as duas
ciências separadas. À proporção que as condições sociais modi- escolas sensualistas. Taine desenvolveu os fundamen-
ficam a operação das leis fisiológicas, a Física Social deve possuir tos psicológicos de sua teoria geral da cultura huma-
um conjunto de observações próprias. 1
na numa obra sobre a inteligência do homem. 1 Se-
Os discípulos e seguidores de Comte, todavia, não gundo ele, o que denominamos "comportamento inte-
se mostravam inclinados a aceitar esta distinção. Ne- ligente" não é um princípio especial nem um privilé-
gavam a diferença entre a fisiologia e a sociologia, por- gio da natureza humana; é apenas um jogo mais re-
que temiam que, ao reconhecê-Ia, poderiam retornar quintado e complicado do mesmo mecanismo associa-
a um dualismo metafísico. Ambicionavam estabelecer tivo e do mesmo automatismo que encontramos em
uma teoria puramente naturalística do mundo social todas as reações animais. Se aceitarmos esta explana-
e cultural. Com este objetivo, julgaram necessário ne- ção, a 'diferença entre inteligência e instinto se torna
gar e destruir todas as barreiras que parecem sepa- desprezível; é uma simples diferença de grau, não de
rar o mundo humano do animal. A teoria da evolu- qualidade. O próprio termo inteligência passa a ser
ção apagara, evidentemente, todas estas diferenças. inútil e cientificamente sem significação.
Mesmo antes de Darwin, o progresso da história na- A característica mais surpreendente e paradoxal
tural frustrara todas as tentativas de semelhante di- das teorias deste tipo é o notável contraste entre o
ferenciação. Nas primeiras fases da observação em- que nos prometem e o que realmente nos dão. Os
pírica ainda era possível, ao cientista, acalentar a es- pensadores que edificaram estas teorias eram severís-
perança de encontrar eventualmente um caráter ana- simos no tocante aos seus princípios metodológicos.
tômico reservado ao homem. Até o século XVIII ain- Não se contentavam em falar da natureza humana em
da era uma teoria geralmente aceita a de que existe termos de nossa experiência comum, pois almejavam
acentuada diferença e, em alguns aspectos, nítido con- um ideal muito mais alto, com absoluta exatidão cien-
traste, entre a estrutura anatômica do homem e a dos tífica. Mas se cotejarmos seus resultados com este
outros animais. Um dos grandes méritos de Goethe, padrão, não 'podemos ocultar nosso grande desaponta-
no campo da anatomia comparada, foi exatamente o mento. "Instinto" é um termo muito vago; pode ter
algum valor descritivo mas não tem, evidentemente,
1. Cornte, Cours de philosophie positive. Tradução inglesa de
Harriet Martineau, Positive Philosophy (Nova Iorque, 1855),Intro., capo
n, pp. 45 e seguinte. 1. De l'intelligence (Paris, 1870). 2 volumes.
114 Ernst Cassirer
Antropologia Filosófica 115

nenhum valor explanatório. Reduzindo algumas clas- tenta! restringir as atividades orígínaís a um número definido
ses de fenômenos orgânicos ou humanos a certos ins- de classes de instintos nitidamente demarcadas; e o res~ltado
pratico dessa tentativa é desastroso. O classificar, na realidade,
tintos fundamentais, não aduzimos uma nova causa; é tão útil quanto natural. A multidão indefinida de eventos
apenas introduzimos um novo nome. Formulamos particulares e mutáveís é enfrent.ada pela. mente c?m atos de
definição, inventariação, enumeraçao, redução a .rubncas comuns
uma pergunta, sem responder nenhuma. O termo e reunião em grupos... Mas quando presumimos que nos~as
"instinto" nos dá, na melhor das hipóteses, um idem listas e nossos grupos representam separações fixas e coleçoes
per idem e, na maioria dos casos, um obscurum per in rerum natura, dificultamos em lugar de facilitar nossa,:; tran-
sações com as coisas. Somos culpados de uma presunçao que
obscurius. Até na descrição do comportamento ani- a natureza não tarda a castigar. Tornamo-nos incompetentes
mal, os biologistas e psicobiologistas modernos, em sua para lidar eficazmente com as sutilezas e novid~es da ~a~ur:za
e da vida... A tendência para esquecer a função das dístínções
maioria, se têm mostrado muito cautos no seu empre- e classificações e considerá-Ias a marcação de coisas. por SI mes-
go e nos advertem contra as falácias ligadas a ele, mas é a falácia corrente do especialismo científico... Esta
atitude que já floresceu na ciência física, governa agora as
inextricavelmente. Procuram antes evitar ou abando- teorias' sobre a natureza. humana. O homem foi reduzido a uma
nar "o conceito de instinto, carregado de erros, e o coleção definida de instintos primários, que podem ser nume-
conceito demasiadamente simples de inteligência". rados, catalogados e exaustivamente descritos, um por um. Os
teóricos diferem apenas ou principalmente no que concerne ao
Em uma de suas publicações mais recentes, Robert seu número e ordem. Alguns dizem um, o amor próprio: ou-
M. Yerkes declara que os termos "instinto" e "inteli- tros, dois, egoísmo e altruísmo; alguns, .t~ês, ambição, ~emor e
glória; ao passo que hoje, autores de feitio mais empírico, che-
gência" estão fora de moda e os conceitos que repre- gam a contar cinqüenta ou sessenta. :r:ra~ verda.de haverá tantas
sentam necessitam imperiosamente de uma redefini- reações especificas para diferentes oondíções estimulantes quanto
tempo houver para elas, e nossas listas são apenas classificações
ção. 1 Mas no campo da filosofia antropológica ainda
para um objetivo. 1
nos achamos, aparentemente, muito longe de tal rede-
finição. Nele estes termos são aceitos, com freqüência Depois deste breve exame dos diversos métodos
e ingenuamente, sem análise crítica. Empregado des- até agora empregados na resposta à pergunta: Que é
ta maneira, o conceito de instinto torna-se um exem- o homem? chegamos à nossa questão central. Serão es-
plo do erro metodológico típico, descrito por William tes métodos suficientes e exaustivos? Ou existirá ain-
James como a falácia do psicólogo. A palavra "instin- da outro enfoque da filosofia antropológica? Existirá
to", que pode ser útil para a descrição do comporta- outro caminho aberto além da introspecção psicológi-
mento animal ou humano, é hipostasiada numa espé- ca, da observação e da experiência biológicas e da
cie de poder natural. Por curioso que pareça, este investigação histórica? Procurei descobrir um enfo-
erro foi reiteradas vezes cometido por pensadores que, que alternativo dessa natureza em minha Filosofia das
em todos os demais aspectos, se sentiam seguros con- Formas Simbólicas. 2 O método deste trabalho não
tra recaídas no realismo escolástico ou "psicologia das significa, de maneira alguma, uma inovação radical;
faculdades". Uma crítica muito clara e impressionan- não procura suprimir, mas completar pontos de vista
te deste modo de pensar está contida em Human Na- anteriores. A filosofia das formas simbólicas parte
ture and Conduct de John Dewey. "É anticientífico",
1. John Dewey, numa» Nature and Canduct (Nova Iorque, Holt
escreve ele, & Co., 1922), par. II, seç. 5, p. 131.
2. Philosaphie der symbalischen Farmen. VoI. I, Die Sprac~e
1. Chimpanzees, p. 110. (1923); VaI. II, Das mythische Denken (1925); VoI. III, Phaenamenalag~e
der Erkenntnis (1929).
Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 117
116

do pressuposto de que, se existe alguma definição da te e da ciência, sentimos constante necessidade de uma
natureza ou "essência" do homem, só pode ser com- terminologia psicológica; falamos em "sentimento"
preendida como funcional, não como substancial. Não religioso, em "imaginação" artística ou mítica, em
podemos definir o homem por nenhum princípio ine- pensamento lógico ou racional. E não podemos pe-
rente que constitui sua essência metafísica - nem netrar em todos estes mundos sem um sólido método
defini-lo por nenhuma faculdade ou instinto inatos, científico psicológico. A psicologia infantil ~os oferece
passíveis de serem verificados pela observação empí- valiosas chaves para o estudo do desenvolVlDlento ge-
ral da linguagem humana. Ajuda ainda mais valiosa
rica. A característica notável do homem, a marca que
parece ser a que nos fornece o estudo da sociologia
o distingue, não é sua natureza metafísica ou física
geral. Não podemos compreender a forma d~ pens~-
- mas seu trabalho. É este trabalho, o sistema das
mento .mítico primitivo sem .tomar em eonsideração
atividades humanas, que define e determina o círculo
as formas da sociedade primitiva. E mais urgente
de "humanidade". A linguagem, o mito, a religião, a ainda é o emprego de métodos históricos. A pergun-
arte, a ciência, a história são os constituintes, os vá- ta sobre o que "são" a linguagem, o mito e a religião
rios setores desse círculo. Uma "filosofia do homem" não pode ser respondida sem um estudo penetrante de
seria, portanto, uma filosofia que nos desse a visão seu desenvolvimento histórico. .
da estrutura fundamental de cada uma dessas ativida- Mas ainda que fosse possível responder a todas
des humanas, e que, ao mesmo tempo, nos permitisse estas perguntas psicológicas, sociológicas e históricas,
compreendê-Ias como um todo orgânico. A linguagem, continuaríamos permanecendo no átrio do mun?o
a arte, o mito, a religião não são criações isoladas ou propriamente "humano", cujos umbrais não teria-
fortuitas, são unidas entre si por um laço comum; este mos cruzado. Todas as obras humanas surgem em
não é um vinculum substantiale, como foi concebido particulares condições históricas e sociológicas. Mas
e descrito pelo pensamento escolástico; é antes um jamais poderíamos compreender estas condições ~sP:
vinculum functionale. É a função básica da lingua- ciais se não fôssemos capazes de apreender os pnnci-
gem, do mito, da arte, da religião que devemos pro- pios estruturais gerais que se encontram na basedes-
curar muito além de suas formas e expressões inume- sas obras. Em nosso estudo da linguagem, da arte e
ráveis e que, em última análise, devemos tentar ras- do mito, o problema do sentido precede o problema do
trear até uma origem comum. desenvolvimento histórico. E aqui também podemos
Está visto que na execução desta tarefa não po- constatar uma lenta e contínua mudança nos conceitos
demos desprezar nenhuma fonte possível de informa- e ideais metodológicos da ciência empírica. Em lin-
ção. Precisamos examinar todas as provas empíricas güística, por exemplo, a concepção de que a ~ist?~a
disponíveis e utilizar os métodos de introspecção, ob- da linguagem cobre todo o campo dos estud~s língüis-
servação biológica e investigação histórica. Estes mé- ticos foi, por muito tempo, um dogma aceito. . Este
todos mais antigos não devem ser eliminados, mas dogma deixou sua marca sobre todo o dese~volvlme.n-
correlacionados com um novo centro intelectual, e, to da lingüística durante o século XIX. HOJe,todavia,
portanto, vistos de um novo ângulo. Ao descrevermos parece que esta unilateralidade foi definitivamente
a estrutura da linguagem, do mito, da religião, da ar- superada.
Antropologia Filosófica 119
118 Ernst Cassirer

Se o lingüista e o historiador de arte requerem


A necessidade de métodos independentes de aná- categorias estruturais fundamentais para sua" auto-
lise descritiva é geralmente reconhecida. 1 Não pode- preservação intelectual", tais categorias são ainda mais
mos querer medir a profundidade de um ramo espe- necessárias a uma descrição filosófica da civilização.
cial da cultura humana sem a precedência de uma aná-
A filosofia não pode contentar-se em analisar as for-
lise descritiva. A visão estrutural da cultura deve pre-
mas individuais da cultura humana. Busca uma vi-
ceder à meramente histórica. A própria história se
são sintética universal, que inclui todas as formas in-
veria perdida na massa infinita de fatos desconexos
dividuais. Mas não será uma visão assim, que tudo
se não possuísse um plano estrutural geral por meio
engloba, tarefa impossível, uma simples quimera? Na
do qual pudesse classificar, ordenar e organizar estes
experiência humana não encontramos, de maneira al-
fatos. Por exemplo, no campo da história da arte um
guma, em perfeita harmonia, as várias atividades que
plano semelhante foi desenvolvido por Heinrich Wõlf-
flin: o historiador de arte seria incapaz de caracterizar constituem o mundo da cultura. Pelo contrário, ve-
a arte de diferentes épocas se não estivesse de posse mos em perpétua porfia as diversas forças conflitan-
de algumas categorias fundamentais da descrição ar- teso O pensamento científico contradiz e suprime o
tística, que encontra estudando e analisando os dife- pensamento mítico. Em seu mais alto desenvolvimen-
rentes modos e possibilidades de expressão artística. to teórico e ético, a religião se vê na necessidade de
Tais possibilidades não são ilimitadas' , na realidade , defender a pureza do próprio ideal contra as fanta-
podem reduzir-se a um pequeno número. Partindo sias extravagantes do mito ou da arte. Assim, a uni-
deste ponto de vista, Wõlfflin concretizou sua famosa dade e-harmonia da cultura humana parecem ser pou-
descrição do clássico e do barroco: os termos "clássico" co mais que um pium desiderium - uma piedosa
e "barroco" não foram usados como nomes de fases fraude - constantemente frustrada pelo curso real
históricas definidas. Pretendiam designar alguns pa- dos acontecimentos.
drões estruturais gerais, não circunscritos a determi- Mas aqui precisamos fazer uma nítida distinção
nada época. "Não é a arte dos séculos XVI e XVII" , entre um ponto de vista material e um formal. A cul-
diz Wõlfflin no final dos seus Princípios de História tura humana, indubitavelmente, está dividida em vá-
da Arte, rias atividades, que seguem linhas diferentes e perse-
que ~evia ~er analisada - apenas o plano e as possibilidades guem diferentes objetivos. Se nos contentarmos de
visuais e cnadoras dentro das quaís permanecia a arte em ambos contemplar seus resultados - as criações do mito, os
os casos .. Para ilustrar este ponto, naturalmente só poderíamos
prosseguir fazendo referência à obra individual de arte mas ritos ou credos religiosos, as obras de arte, as teorias
tudo o que se disse de Rafael e Ticiano, de Rembrandt e Veláz- científicas - parecerá impossível reduzi-los a um de-
qu.ez tinha apenas o objetivo de elucidar o curso geral das nominador comum. Mas uma síntese filosófica signi-
coisas. .. Tudo é transição e é difícil responder ao homem que
considera a história como Intérmlna correnteza. Para nós a fica algo diferente. Não procuramos uma unidade de
autopreservação intelectual exige que Classifiquemos a infinid~de efeitos, mas uma unidade de ação; não uma unidade
de acontecimentos com referência a uns poucos resultados. 2
. de produtos, mas uma unidade de processo criador .
1.
Sobre uma discussão mais completa do problema, veja o Capo Se o termo "humanidade" tiver alguma significação,
VIII, pp. 175.
2. Wi:ilffl!n, Kunstgeschichtliche Grunâbeçríj]e. Tradução inglesa isto quer dizer que, apesar de todas as diferenças e
de M. D. Hottinger (Londres, G. Bell & Sons, 1932) pp. 226 e seguinte.
120 Ernst Cassirer

oposições existentes entre suas varias formas , todas


elas, entretanto, cooperam para um fim comum. Fi-
nalmente, forçoso será encontrar um traço notável, um
caráter universal, em que todas concordem e se har-
monizem. Se conseguirmos determinar este caráter,
os raios divergentes poderão ser enfeixados e trazidos
para um foco de pensamento. Como já foi assinalado,
semelhante organização dos fatos da cultura humana
VII
já foi iniciada nas ciências particulares - na lingüís- MITO E RELIGIÃO
tica, no estudo comparativo do mito e da religião, na
história da arte. Todas estas ciências buscam certos
princípios, "categorias" definidas, em virtude dos
quais os fenômenos da religião, da arte, da linguagem D E todos os fenômenos da cultura humana, o mito
serão trazidos a uma ordem sistemática. Não fora e a religião são os mais refratários a uma análise
esta síntese prévia, realizada pelas próprias ciências puramente lógica. O mito parece ser, à primeira vista,
a filosofia não teria ponto de partida. Por outro lado: um mero caos - massa informe de idéias incoeren-
a filosofia não pode parar aqui; cumpre-lhe tentar con- tes; e buscar as "razões" destas, idéias parece vã futi-
seguir uma condensação e uma centralização ainda lidade. Se algo existe que seja característico do mito
maiores. Na multiplicidade e variedade ilimitadas das é o fato de ser "inexplicável". Quanto ao pensamento
imagens míticas, dos dogmas religiosos, das formas religioso, não se opõe necessariamente ao racional ou
lingüísticas, das obras de arte, o pensamento filosó- filosófico. Determinar a verdadeira relação entre estes
fico revela a unidade de uma função geral, pela qual dois modos de pensamento foi uma das principais ta-
todas estas criações se conservam unidas. O mito, a refas da filosofia medievaL Nos sistemas do alto es-
religião, a arte, a linguagem, a própria ciência são colasticismo o problema parecia estar resolvido; se-
hoje considerados como outras tantas variações de um gundo Tomás de Aquino, a verdade religiosa é sobre-
tema comum - e cabe à filosofia torná-lo audível e natural e supra-racional; mas não "irracional". Só
compreensíveL pela razão não podemos penetrar nos mistérios da fé;
entretanto, estes mistérios não contradizem, mas com-
pletam e aprimoram a razão.
Apesar disto, sempre houve profundos pensadores
religiosos que se opuseram a todas as tentativas para
conciliar as duas forças antagônicas. Sustentavam
uma tese muito mais radical e sem compromisso. O
dito de Tertuliano Credo quia absurdum nunca perdeu
sua força. Pascal declarou que a obscuridade e a in-
compreensibilidade são os verdadeiros elementos da
religião. O verdadeiro Deus, o Deus da religião cristã,
122 Ernst Cassirer
Antropologia Filosófica 123

sempre foi um Deus absconditus, um Deus oculto. 1


Kierkegaard descreve a vida religiosa como o grande que não seja suscetível de uma interpretação mí-
"paradoxo". Para ele, a tentativa para atenuá-lo sig- tica .e que não reclame semelhante interpretação. To-
nifica a negação e a destruição da vida religiosa. E a das as tentativas das várias escolas de mitologia com
religião continua sendo um enigma não só num sen- parada para unificar as idéias mitológicas e reduzi-Ias
tido teórico mas também ético, e repleta de antinomias a certo tipo uniforme estavam fadadas a completo ma-
teóricas e contradições éticas. Promete-nos uma co- logro. Entretanto, e apesar desta variedade e discre-
munhão com a natureza, com os homens, com os po- pância das produções mitológicas, à função mito-cria-
deres sobrenaturais e com os próprios deuses. No en- dora não falta uma real homogeneidade. Antropolo-
tanto, seu efeito é exatamente o oposto. Em sua apa- gistas e etnologistas se admiraram muitas vezes , ao
rência concreta torna-se fonte das mais profundas dis- encontrar os mesmos pensamentos elementares espa-
sensões e lutas fanáticas entre os homens. Afirma es- lhados pelo mundo todo, e nas mais diferentes condi-
tar de posse da verdade absoluta; mas sua história é ções sociais e culturais. O mesmo ocorre com a his-
uma história de erros e heresias.' Oferece-nos a pro- tória da religião. Os artigos de fé, os credos dogmáti-
messa e a perspectiva de um mundo transcendental - cos, os sistemas teológicos estão empenhados numa lu-
muito além dos limites de nossa humana experiência ta interminável. Mesmo os ideais éticos de religiões
- e continua humana, demasiado humana. diferentes divergem amplamente e dificilmente se con-
O problema, contudo, se apresenta em nova pers- ciliam. Entretanto, nada disto influi na forma especí-
p~ctiva logo que decidimos modificar nosso ponto de
VIsta. Uma filosofia da cultura humana não formula
1
I
fica do sentimento religioso e na unidade interior de
seu pensamento. 1 Os símbolos religiosos mudam sem
cessar, mas o princípio básico, a atividade simbólica
a mesma pergunta que um sistema metafísico ou teo-
lógico. Não estamos investigando o tema em questão, como tal, permanece o mesmo: una est religio in n-
\
mas a forma da imaginação mítica e do pensamento tuum varietate.
religioso. Os assuntos, temas e motivos do pensa- Uma teoria do mito, entretanto, se apresenta, des-
mento mítico são imensuráveis. Se abordarmos o de o princípio, carregada de dificuldades. O mito, em
mundo mítico por este lado, sempre será - usando de seu verdadeiro sentido e essência, não é teórico.
palavras de Milton, Afronta e desafia nossas categorias fundamentais de
pensamento. Sua lógica - se tiver alguma - é inco-
a dark illimitable ocean,
mensurável com todas as nossas concepções de verda-
negro oceano sem limites,
de empírica ou científica. Mas a filosofia nunca poderia
without bound, without dimension, where length,
admitir tal bifurcação, por estar convencida de que as
[breadth and height,
criações da função mito-criadora deveriam ter um
sem dimensões, onde se perdem â extensão, a amplitude,
a profundeza,
"sentido" filosófico, compreensível. Se o mito oculta
and Time and place are lost. este sentido debaixo de toda a sorte de imagens e sím-
') Tempo e o espaço bolos, cabe à filosofia desmascará-Io; desde o tempo
Não existe fenômeno natural nem da vida humana
1. Excelente descrição desta unidade interior foi apresentada na
1. Veja o Capo r, p. 15. obra de Archibald AlIan Bowrnan, Stuâies in tne Philosophy 01 Reli-
çton (Londres, 1938), 2 volumes.
124 Ernst Casstrer Antropologia Filosófica 125

dos estóicos, a filosotia crIOU uma técnica especial, experimentaram os dois caminhos. Muitas escolas et-
muito minuciosa, de interpretação alegórica. Por mui- nológicas e antropológicas partiram da pressuposição
tos séculos, considerou-se esca técnica como o único de que, em primeiro lugar, precisamos procurar um
acesso possível ao mundo mítico; prevaleceu durante centro objetivo do mundo mítico, "Para os escritores
a Idade Média e se mantinha em pleno vigor no prin- dessas escolas", diz Malinowski,
cípio da Idade Moderna. Bacon escreveu um tratado todo mito possui, como núcleo ou realidade final, algum fenô-
especial sobre a "Sabedoria dos Antigos", onde reve- meno natural ou outro, tão cuidadosamente elaborado numa
fábula, a tal ponto que chega, às vezes, quase a mascará-Ia ou
lou grande sagacidade na interpretação da mitologia dissímulá-lo. Não há muita concordância entre esses estudiosos
antiga. acerca do tipo de fenômeno natural que se encontra no fundo
da maioria das produções mitológicas. Existem extremados mí-
Estudando este tratado, desejamos sorrir das in- tólogos lunáticos, tão completamente aluados com sua idéi~,
terpretações alegóricas que, ao leitor moderno, na que não admitirão que nenhum outro fenômeno possa conduzir
maioria dos casos, parecem extremamente ingênuas. a uma bárbara interpretação rapsódica a não ser o satélite no-
turno da terra... Outros ... consideram o Sol como o único
Não obstante, nossos próprios métodos, muito mais re- motivo em tomo do qual o homem primitivo teceu suas fábulas
quintados e sofisticados, estão, em grande parte, su- simbólicas. A seguir, vem a escola dos intérpretes meteoroló-
gicos que consideram o vento, o tempo e as cores do céu como
jeitos à mesma objeção. Sua "explicação" dos fenô- a essência do mito... Alguns destes mitólogos departamentais
menos míticos torna-se, no fim, uma inteira negação lutam ferozmente a favor de seu corpo ou principio celeste;
dos mesmos. O mundo mítico aparece como um mun- outros de gosto mais católico, estão dispostos a concordar que
o homem primitivo construiu seu mundo mitológico com todos
do artificial, um pretexto para outra coisa qualquer; os corpos celestes reunidos. 1.
em lugar de ser uma crença, é um simples faz-de-con- Por outro lado, na teoria psicanalítica do mito,
ta. O que distingue estes métodos modernos das for- proposta por Freud, todas estas criações foram consi-
mas primitivas de interpretação alegórica é que eles já deradas como variações e disfarces de um mesmo te-
não consideram o mito como mera invenção feita com ma psicológico - a sexualidade. Não precisamos en-
um propósito especial. Embora o mito seja fictício, é trar em detalhes sobre estas teorias. Por mais diver-
uma ficção inconsciente; a mente primitiva não tinha gentes que sejam em seu conteúdo, todas nos mostram
consciência do sentido das próprias criações. Mas a a mesma atitude metodológica. Esperam fazer-nos
nós, com nossa análise científica, cabe revelar este sig- compreender o mundo mítico por um processo de re-
nificado - desvendar o rosto verdadeiro, oculto por dução intelectual; mas nenhuma consegue atingir seu
máscaras inumeráveis. Esta análise pode seguir dupla objetivo sem pressionar e exagerar, constantemente, os
direção, aplicando um método objetivo ou subjetivo. fatos a fim de tornar a teoria em todo homogêneo.
No primeiro caso, tentará classificar os objetos do pen- O mito combina um elemento teórico com um ele-
samento mítico; no segundo, tentará o mesmo com seus mento de criação artística. O que primeiro nos im-
motivos. Uma teoria parece ser tanto mais perfeita pressiona é sua estreita afinidade com a poesia. Já
quanto mais caminhe neste processo de simplificação. se disse que "o mito antigo é a 'massa' da qual evol-
Se, ao cabo de tudo, conseguir descobrir um único ob- veu lentamente a poesia moderna, pelos processos que
jeto ou um simples motivo, que contenha e compreen- os evolucionistas denominam diferenciação e espe-
da todos os outros, terá atingido seu objetivo e cum- l. Malinowski, Myth in Prímítíve Psychology (Nova Iorque, Nor-
prido sua tarefa. A etnologia e a psicologia modernas ton, 1926), pp. 12 e seguinte.
Antropologia Filosófica 127
126 Ernst Cassirer

tudo, não poderia resistir a uma análise crítica; a an-


cialização. A mente mito-criadora é o protótipo; e a tropologia moderna parece haver abandonado inteira-
do poeta... continua a ser essencialmente criadora mente as opiniões de Frazer. 1 Admite-se hoje, de mo-
de mitos'L! Mas, apesar desta conexão genética, não do geral, que é uma concepção muito inadequada do
podemos deixar de reconhecer a diferença especial en- mito e da magia encará-los como tipicamente etiológi-
tre mito e arte. Uma chave desta diferença se en- cos ou explanativos. Não podemos reduzir o mito a
contra na afirmação de Kant, segundo a qual a con- certos elementos estáticos fixos, mas procurar apreen-
templação estética é "inteiramente indiferente à exis- dê-lo em sua vida interior, em sua mobilidade e ver-
tência ou inexistência de seu objeto". Entretanto e satilidade, em seu princípio dinâmico.
precisamente esta indiferença é de todo alheia à ima- Será mais fácil descrever este princípio se abor-
ginação mítica, onde há sempre, implicitamente, um darmos o problema de um ângulo diferente. O mito,
ato de crença. Sem a crença na realidade de seu obje- por assim dizer, tem duas caras: de um lado, mostra-
to, o mito perderia seu fundamento. Esta condição in- -nos uma estrutura conceitual; de outro, uma estrutu-
trínseca e necessária parece conduzir-nos ao pólo opos- ra perceptual. Não é uma simples massa de idéias de-
to. Nesse sentido se afigura possível, e até indispensá- sorganizadas e confusas; depende de um modo defi-
vel, comparar o pensamento mítico com o científico. nido de percepção. Se o mito não percebesse o mundo
Está claro que não seguem os mesmos caminhos, não de forma diferente, não poderia julgá-lo ou interpre-
obstante procurarem a mesma coisa; a realidade. Na tá-lo em sua maneira específica. Precisamos voltar a
antropologia moderna, esta relação foi salientada por este estrato mais profundo da percepção a fim de com-
Sir James Frazer, cuja tese propõe não existir frontei- preender o caráter do pensamento mítico. O que nos
ra marcante separando a arte mágica de nossos cientí- interessa no pensamento empírico são as característi-
ficos modos de pensar. Por mais imaginária e fantás- cas constantes da nossa experiência sensorial; nela fa-
tica que seja em seus meios, a magia também é cien- zemos sempre uma distinção entre o que é substancial
tífica em seu objetivo. Teoricamente, a magia é ciên- ou acidental, necessário ou contingente, invariável ou
cia,embora seja, praticamente falando, uma ciência transitório. Essa discriminação nos conduz à concep-
ilusória - uma pseudociência, pelo fato de argumen- ção de um mundo de objetos físicos, dotado de quali-
tar e atuar na pressuposição de que, na natureza, um dades fixas e determinadas. Mas tudo isto envolve um
acontecimento se segue necessária e invariavelmente processo analítico, que se opõe à estrutura fundamen-
a outro sem a intervenção de qualquer influência es- tal da percepção e do pensamento mítico. O mundo
piritual ou pessoal. Guarda a convicção de que "o mítico, por assim dizer, se encontra num estádio mui-
curso da natureza é determinado, não pelas paixões ou to mais fluido e flutuante do que o nosso mundo teó-
caprichos de seres pessoais, mas pela operação de leis rico de coisas e propriedades, de substâncias e aciden-
imutáveis, agindo' mecanicamente". Por conseguinte, tes. No intuito de apreender e descrever essa diferen-
a magia é uma fé, implícita, porém real e firme, na ça podemos dizer que o que o mito percebe principal-
ordem e uniformidade da natureza. 2 Esta tese. con-
1. F n. Prescott, Pnetn and Myth (Nova l:orque.Macmillan.~927).p.l0. 1. Sobre uma crítica da tese de Frazer veja R. R. Marett, The
2. Veja Frazer, The Magic Art anâ tne Evolution 01 Kinçs, VoI. Thresholâ ot Religion (2." edição, Londres, Methuen, 1914), pp. 47 e
I de The Golden Bough (2.' edição Macmillan, 1900), pp. 61 e seguín- seguintes e 177 e seguintes.
tes, 220 e seguintes.
128 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 129

mente não são caracteres objetivos, mas fisiognomô- negá-los nem passar sem eles, pois mantêm seu lugar
nicos. No sentido empírico ou científico, a natureza e sua significação. Na vida social, em nosso trato diá-
pode ser definida como "a existência das coisas na rio com os homens, não podemos apagar esses dados.
medida em que é determinada por leis gerais". 1 Uma Até na ordem genética a distinção 'entre qualidades fi-
"natureza" assim não existe para os mitos. O mundo siognomônicas parece preceder a distinção entre as
do mito é dramático - de ações, forças e poderes con- qualidades perceptivas. Uma criança parece sensível a
flitantes. Em todo fenômeno da natureza nada mais vê elas, nas primeiras etapas de seu desenvolvimento. 1
Embora a ciência tenha de fazer abstração destas qua-
que o embate destes poderes. A percepção mítica está
sempre impregnada destas qualidades emocionais: o lidades a fim de realizar sua tarefa, não pode suprimi-
que se vê ou se sente é cercado de uma atmosfera espe- -Ias completamente. Não foram erradicadas, mas ape-
cial - de alegria ou tristeza, angústia, excitação, exul- nas circunscritas ao seu próprio campo. Esta restri-
tação ou depressão. E não podemos falar de "coisas" ção das qualidades subjetivas é que marca o caminho
como de matéria morta ou indiferente. Todos os ob- geral da ciência, que delimita sua objetividade, mas
jetos são benignos ou malignos, amigos ou inimigos, não lhes destrói completamente a realidade, porque
familiares ou sobrenaturais, encantadores e fascinan- cada aspecto de nossa experiência humana reclama
tes ou repelentes e ameaçadores. Podemos reconstruir sua realidade. Em nossos conceitos científicos reduzi-
facilmente esta forma elementar da experiência hu- mos a diferença entre duas cores, digamos o vermelho
mana, pois nem mesmo na vida do homem civilizado e o azul, a uma diferença numérica. Mas seria uma
ela perdeu seu poder original. Ainda que estejamos forma muito imprópria de falar, se disséssemos que o
sob tensão de violenta emoção, teremos esta concep- número é mais real que a cor. O que de fato se quer
ção dramática de todas as coisas. Já não apresentam dizer é que ele é mais geral. A expressão matemática
seu aspecto habitual; mudam abruptamente de fisio- nos dá uma visão nova e mais ampla, um horizonte
nomia; mostram-se coloridas com o matiz específico de mais livre e mais dilatado de conhecimento. Mas hi-
nossas paixões, de amor ou ódio, de medo ou esperan- postasiar o número, como fizeram os pitagóricos e fa-
ça. Dificilmente poderá haver maior contraste do que lar dele como realidade final, a própria essência e subs-
o existente entre esta direção original de nossaexpe- tância das coisas, é uma falácia metafísica. Se racio-
riência e o ideal de verdade, introduzido pela ciência. cinarmos sobre este princípio metodológico e episte-
Todos os esforços do pensamento científico são dirigi- mológico, até o estrato mais baixo da nossa experiên-
dos no sentido de apagar qualquer vestígio dessa pri- cia sensorial - o de nossas "qualidades afetivas" -
meira visão. À nova luz da ciência, a percepção mí- surgirá sob uma nova luz. O mundo de nossas percep-
tica tende a desaparecer. Mas isto não significa que ções sensoriais, das chamadas "qualidades secundá-
os dados de nossa experiência fisiognomônica sejam rias", ocupa uma posição intermediária. Abandonou
destruídos e aniquilados como tais. Perderam todo o e superou o primeiro estádio rudimentar da experiên-
valor objetivo ou cosmológico, mas seu valor antropo- cia fisiognomônica, sem haver alcançado a forma de
lógico persiste. Em nosso mundo humano não podemos generalização que se atinge nos conceitos científicos -
l. Em relação a esse problema veja Cassirer, Philosophie der sllm·
l. Cfr. Kant, Proleçomena to Every Puture Metaphysics, seç. 14. bolischen Formen. VoI. m, pt. I. caps. II e m.
130 Ernst Cassirer
Antropologia Filosófica 131
os conceitos do mundo físico. Mas todos estes três es-
tádios têm seu valor funcional definido. Nenhum de- Por conseguinte, se quisermos explicar o mundo
les é mera ilusão; cada qual, em sua importância, é da percepção e da imaginação mítica não devemos co-
um passo em nosso caminho para a realidade. meçar com uma crítica de ambas do ponto de vista de
O melhor e mais claro enunciado deste problema, nossos ideais teóricos de conhecimento e de verdade,
a meu ver, foi feito por John Dewey, um dos primei- mas acolher as qualidades da experiência mítica em
ros a reconhecer e destacar o direito relativo destas seu "imediato caráter qualitativo". O que precisamos
qualidades afetivas, que provam todo seu poder na não é de uma explicação de simples pensamentos ou
percepção míticae aqui são consideradas como os ele- crenças, mas de uma interpretação da vida mítica. O
mentos básicos da realidade .. Foi precisamente sua mito não é um sistema de credos dogmáticos. Con-
concepção da tarefa de um empirismo autêntico que o siste, muito mais, em ações do que em meras imagens
levou a esta conclusão. "Empiricamente", diz Dewey, ou representações. O fato de haver este ponto de vis-
as coisas são pungentes. trágicas, belas, jocosas, estabelecidas, ta prevalecido, cada vez mais, é um sinal de progresso
conturbadas, confortáveis, maçantes, áridas, ásperas, consolado. definido na antropologia moderna e na moderna histó-
r~s, . esplêndídas, temíveis; e o são de um modo imediato e por
díreíto própz:lO... Estes traços se apresentam, precisamente, ria da religião. Hoje parece ser máxima geralmente
no mesmo nível das cores, dos sons, das qualidades tácteis, de adotada que o ritual é anterior ao dogma, não só no
gosto e de cheiro. Qualquer critério que chegue à conclusão
de que este~ últi~os são dados finais e "rigorosos", chegará, sentido histórico como psicológico. Ainda que chegás-
se. aplicado írnparcíalmente, à mesma conclusão a respeito dos semos a analisar o mito em seus últimos elementos
prrmeiros. Qualquer qualidade como tal é final' é ao mesmo
tempo, inicial e terminal; é, exatamente, como e~st~. Pode ser
conceituais, nunca aprenderíamos, com este processo
r~laclOnada com outras coisas, e tratada como um efeito ou um analítico, seu princípio vital, que é dinâmico e não
sinal, Mas isto envolve uma ampliação e um emprego estranhos. estático; só pode ser descrito em termos de ação. O
Leva-r:os além da. qualidade em sua qualificação imediata. . .. A
reduçao das qualidades imediatas, sensoriais e significativas co- homem primitivo não expressa seus sentimentos e
mo objetos ~e ciêr;cia, como formas apropriadas de classific~ção emoções por meros símbolos abstratos, mas de modo
e cornpreensao .deixou, na realidade, estas qualidades imediatas
exatament~ como eram; por serem iiâas, não havia necessidade concreto e imediato; e precisamos estudar o conjunto
de conhecê-tas. Mas ... o ponto de vista tradicional de que o desta expressão a fim de tomarmos consciência da es-
objeto 9-0 conhecimento é a realidade par ezcellence levou à
c~mclusao de que o objeto da ciência era preeminente e metafí- trutura do mito e da religião primitiva.
sl~a~ente real. Por isso mesmo, sendo extensões do objeto da Uma das teorias mais claras e coerentes sobre
~ienc?a, as qualidad~s in:edi~tas desprenderam-se do objeto
A

~eal. Como sua existêncta nao poderia ser negada foram reu- essa estrutura nos foi apresentada pela escola socio-
m~as num reino psíquico do ser, confrontadas com'o objeto da lógica francesa, na obra de Durkheim e seus discípu-
rísíca. Dada esta premissa, seguem-se necessariamente todos os
pr~blemas que dizem respeito à relação entre a mente e a ma-
los e seguidores. Parte do princípio de que não pode-
~éna, o psíquico e o corpóreo. Altere-se a premissa metafísfca: remos dar uma explicação adequada do mito enquanto
~sto é, devolva-~e às qualidades imediatas a posição a que faze~ procurarmos suas origens no mundo físico, numa in-
JU~ como qualidades de situações inclusivas, e estes problemas
d~lxan: de ser p~~blem.as ~Pistemológicos. Tornam-se problemas tuição dos fenômenos naturais. O verdadeiro modelo
cíentífícos específicáveis; ISto é, questões sobre como realmente do mito não é a natureza, mas a sociedade. Todos os
Ocorrem tais e tais acontecimentos, que têm tais e tais quali-
dades.> seus motivos fundamentais são projeções da vida so-
cial do homem, mediante as quais a natureza se torna
1. Experience and Nature <Chicago, Open Court Publishing Co.,
1925), pp. 96, 264 e seguinte. a imagem do mundo social; reflete-lhe todos os traços
fundamentais, a organização e a arquitetura, as divi-
132 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 133

sões e subdivisões. 1 A tese de Durkheim chegou ao terogeneidade entre nossa lógica e a do espírito pri-
seu pleno desenvolvimento na obra de Lévy-Bruhl; mitivo, enquanto as julgarmos especificamente dife-
mas deparamos com uma característica mais geral. O rentes e radicalmente opostas uma à outra, dificilmen-
pensamento mítico é descrito como "pensamento pré- te poderemos explicar este fato. Mesmo na vida primi-
-lógico". Quando pede causas, estas não são lógicas tiva encontramos sempre uma esfera secular ou pro-
nem empÍricas, são "causas místicas". "Nossa ativi- fana, fora da esfera sagrada. Há uma tradição secular,
dade diária implica uma confiança serena e perfeita, composta de normas consuetudinárias ou legais, deter-
na invariabilidade das leis naturais. A atitude do ho- minando o modo de conduta da vida social. "As re-
mem primitivo é muito diferente: para ele, a natureza, gras que aqui encontramos", diz Malinowski,
em cujo meio vive, se apresenta sob um aspecto total- completamente independentes da magia, das sanções sobrenatu-
mente diferente; todas as coisas e criaturas nela exis- rais, nunca são acompanhadas de quaisquer elementos cerimo-
tentes se acham envoltas por uma rede de participa- niais ou rituais. É um erro supor que, numa fase inicial de
desenvolvimento, o homem vivesse num mundo confuso, onde
ções e exclusões místicas." No entender de Lévy- o real e o irreal se misturam, onde o misticismo e a razão fos-
-Bruhl, este caráter místico da religião primitiva pro- sem tão intercambiáveis como as moedas falsas e verdadeiras,
num país desorganizado. Para n6s, o ponto mais essencial em
cede do fato de que suas representações são "repre- relação ao ritual mágico e religioso é que ele s6 entra onde
sentações coletivas". A estas não podemos aplicar as falha o conhecimento. O cerimonial com fundamentos sobrena-
regras da nossa própria lógica, destinada a propósitos turais nasce da vida, mas nunca estultifica os esforços práticos
do homem. Em seus ritos mágicos ou religiosos, o homem tenta
muito diferentes. Ao pisarmos este terreno, a própria representar milagres, não porque ignore as limitações de seus
lei da contradição e as demais leis do pensamento ra- poderes mentais, mas, ao contrário, por conhecê-los plenamente.
rara dar um passo a frente, o reconhecimento disto nos parece
cional se invalidam.P A meu ver, a escola sociológica indispensável se quisermos, de uma vez por todas, estabelecer
francesa apresentou provas plenas e concludentes da a verdade de que a religião tem seu próprio tema, seu pr6prio
primeira parte de sua tese, mas não da segunda. O ca- e legítimo campo de desenvolvimento. 1
ráter fundamentalmente social do mito é incontrover- E até neste último campo, no campo legítimo do
so. Mas que toda mentalidade primitiva seja necessa- mito e da religião, a concepção da natureza e da vida
riamente pré-lógica ou mística parece contradizer as humana não é, de maneira alguma, desprovida de
provas antropológicas e etnológicas. Encontramos significado racional. O que nós, do nosso ponto de
muitas esferas da vida e da cultura primitivas que vista, podemos denominar irracionais, pré-lógicas, mís-
mostram aspectos bem conhecidos de nossa própria ticas, são as premissas com que se inicia nossa inter-
vida cultural. Enquanto supusermos uma absoluta he- pretação mítica ou religiosa, mas não o modo de in-
terpretação. Se aceitarmos tais premissas e as com-
1. Cf. Durkheim, Les formes élémentaires de la vie reliçieuse preendermos corretamente - se as virmos à mesma
(Paris, 1912);tradução inglesa, Elementary Forms 01 the Beliçurus Lile luz a que as vê o homem primitivo - as inferências
(Nova Iorque, 1915).
2. CI. Lévy-Brubl, Les tonctums mentales dans les sociétés inié- que delas se colhem deixarão de parecer ilógicas ou
rieures (Paris, 1910); tradução inglesa, How Natives Think (Londres
e Nova Iorque, 1926); La mentalité primitive (Paris, 1922);tradução ín-
glesa, Primitive Mentality (Nova Iorque, 1923); L'Ame primitive (Paris, 1. Malinowski, The Foundations 01 Faith and Morals (Londres,
1928); tradução inglesa, The "Soul" ot the Primitive (Nova Iorque, Oxford University Press, 1936; publicado para a Universidade de
1928). Durham), p. 34.
Antropologia Filosófica 135
134 Ernst Cassirer
apreender as diferenças empirrcas das coisas. Neste
antilógicas. É verdade que todas as tentativas para sentido, o selvagem, muito freqüentemente, demons-
intelectualizar o mito - para explicá-lo como expres- tra sua superioridade em relação ao homem civiliza-
são alegórica de uma verdade teórica ou moral - fa- do, por ser suscetível a inúmeros traços distintivos,
lharam completamente; 1 ignoraram os fatos funda- que escapam à nossa atenção. Os desenhos e pinturas
mentais da experiência mítica. O verdadeiro substra- de animais, que encontramos nos estádios mais baixos
to do mito não é de pensamento, mas de sentimento. da cultura humana, na arte paleolítica, foram amiúde
O mito e a religião primitiva não são, de maneira al- admirados pelo seu caráter naturalista. Revelam as-
guma, totalmente incoerentes, nem destituídos de sen- sombroso conhecimento de toda sorte de formas ani-
so ou de razão; mas sua coerência depende muito mais mais. A existência inteira do homem primitivo depen-·
da unidade de sentimento que de regras lógicas. Esta de, em grande parte, de seus dotes de observação e
unidade é um dos impulsos mais vigorosos e profun- discriminação: se for caçador, deverá estar familiari-
dos do pensamento primitivo. Se o pensamento cien- zado com os menores detalhes da vida animal e' ser
tífico desejar descrever e explicar a realidade será capaz de distinguir os rastros de vários animais. Tudo
obrigado a empregar seu método geral, que é o de clas- isto está pouco de acordo com a presunção de que a
sificação e sistematização. A vida é dividida em pro- mente primitiva, por sua própria natureza e essência,
víncias separadas, que se distinguem nitidamente uma é indiferenciada ou confusa, pré-lógica ou mística.
da outra. As fronteiras entre os reinos das plantas, O que caracteriza a mentalidade primitiva não é
dos animais, do homem - as diferenças entre as espé- sua lógica, mas seu sentimento geral da vida. O ho-
cies, famílias e gêneros - são fundamentais e indelé- mem primitivo não vê a natureza com os olhos do
veis. Mas a mente primitiva ignora e rejeita todas naturalista que deseja classificar coisas com a finali-
elas. Sua visão da vida é sintética e não analítica; dade de satisfazer uma curiosidade intelectual, nem
não se acha dividida em classes e subclasses. É perce- dela se acerca com um interesse puramente pragmáti-
bida como um todo ininterrupto e contínuo, que não co ou técnico. Não a considera mero objeto de conhe-
admite distinções bem definidas e incisivas. Os limi- cimento nem o campo de suas necessidades práticas
tes entre as diferentes esferas não são barreiras in- imediatas. Temos o hábito de dividir nossa vida nas
transponíveis, mas fluentes e flutuantes. Não existe duas esferas da atividade prática e da teórica. Nesta
diferença específica entre os vários reinos da vida. divisão, somos propensos a esquecer que existe um es-
Nada possui forma definida, invariável, estática: por trato inferior debaixo de ambas. O homem primitivo
súbita metamorfose qualquer coisa pode transformar- não é vítima deste tipo de esquecimento; seus pensa-
-se em qualquer coisa. Se existe algum traço caracte- mentos e sentimentos estão ainda encerrados nesse es-
rístico e notável do mundo mítico, alguma lei que o trato original inferior. Sua visão da natureza não é
governe - é a da metamorfose. Mesmo assim, dificil- meramente teórica nem meramente prática; é simpá-
mente poderemos explicar a instabilidade do mundo tica. Se deixarmos escapar este ponto não poderemos
mítico pela incapacidade do homem primitivo de abordar o mundo mítico. O traço mais fundamental
do mito não é uma direção especial de pensamento
1. Até na literatura moderna ainda encontramos muitos traços
desta tendência intelectualista. Veja, por exemplo, F. Langer, ltüellec- nem uma direção especial da imaginação humana; é
tualmythologie (Lípsía, 1916).
136 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 137

fruto da emoção e seu cenário emocional imprime, em espécie de semente, era considerada pelo seu povo
todas as suas produções, sua própria cor específica. O como sendo a própria planta que produz a semente. 1
homem primitivo não carece, de maneira nenhuma, da Vemos, por estes exemplos, como a firme crença
capacidade de apreender as diferenças empíricas das na unidade da vida eclipsa todas as diferenças que, do
coisas. Mas, em sua concepção da natureza e da vida, nosso ponto de vista, parecem inequívocas e inapagá-
todas as diferenças são apagadas por um sentimento veis. Não precisamos presumir, de maneira alguma,
mais forte: a profunda convicção de uma fundamental que estas diferenças são completamente ignoradas.
e indelével solidariedade da vida, 'que transpõe a mul- Não são negadas num sentido empírico, mas se procla-
tiplicidade e a variedade de suas formas isoladas. Não mam irrelevantes em sentido religioso. Para o senti-
atribui a si mesmo um lugar único e privilegiado na mento mítico e religioso a natureza se torna uma gran-
escala da natureza. A consangüinidade de todas as de sociedade, a sociedade da vida. Nesta sociedade,
formas de vida parece ser uma pressuposição geral do o homem não ocupa uma posição destacada. Faz par-
pensamento mítico. Os credos totêmicos figuram en- te dela sem ocupar, absolutamente, posição mais alta
tre os traços mais característicos da cultura primitiva. que qualquer outro de seus membros. A vida possui
Toda a vida religiosa e social das tribos mais primiti- a mesma dignidade religiosa em suas formas mais hu-
vas - como, por exemplo, as tribos aborígines austra- mildes e em suas formas mais elevadas. Os homens
lianas, cuidadosamente estudadas e descritas por e os animais, os animais e as plantas estão todos no
Spencer e Gillen 1 - é governada por concepções to- mesmo nível. Nas sociedades totêmicas encontramos
têmicas. E até num estádio muito mais avançado, na plantas-totens ao lado de animais-totens. E encontra-
religião de nações altamente cultas, encontramos um mos o mesmo princípio - o da solidariedade e inin-
sistema muito complexo e elaborado de zoolatria. No terrupta unidade da vida - ao passarmos do espaço
totemismo, o homem não se considera simplesmente para o tempo. Este princípio é válido não só na ordem
descendente de certa espécie animal; um vínculo ao da simultaneidade mas também na de sucessão. As
mesmo tempo atual, real e genético liga toda a sua gerações dos homens formam uma cadeia única e
existência física e social aos antepassados totêmicos. ininterrupta. Os estádios anteriores da vida são pre-
Em muitos casos esta conexão é sentida e expressa servados pela reencarnação. A alma do avô aparece
como identidade. O etnologista Karl von den Steinen no recém-nascido em estado rejuvenescido. O presen-
refere que os membros de certos clãs totêmicos de te, passado e futuro fundem-se sem qualquer linha
uma tribo índia afirmavam ser idênticos aos animais precisa de demarcação; os limites entre as gerações do
de que derivavam sua origem: declaravam expressa- homem tornam-se incertos.
mente ser animais aquáticos ou papagaios vermelhos. 2 O sentimento da unidade indestrutível da vida é
Frazer relata que, na tribo dos dieris da Austrália, a tão forte e inabalável que chega a negar e desafiar
cabeça de um totem, que consistia numa determinada o fato da morte. No pensamento primitivo, a morte
jamais é encarada como fenômeno natural, que obe-
1. Sir Baldwin Spencer e F. J. Gillen, The Native Tribes 01 Cen-
tral Austraua, The Norihern Tribes 01 Central Australia.
2. CI. Karl von den Steinen, Unter âen Naturuõlkern Zentral-Bra- 1. Prazer, Lectures on the Early Htstory 01 Kinllship (Londres.
stliens (Berllm, 1897),p. 307. Macmillan, 1905), p. 109.
138 Ernst Cassirer
Antropologia Filosófica 139
dece a leis gerais; sua ocorrência não é necessária, mas
acidental, sempre dependendo de causas individuais e principal e dominante que neles se encontra é um pro-
fortuitas. É obra de feitiçaria ou de magia, ou de ~,esto insist~nte, apa~onado mesmo, contra a morte.
alguma outra influência inimiga pessoal. Em sua des- Pode-se dizer que sao o registro da primeira revolta
crição das tribos aborígines da Austrália, Spencer e suprema da humanidade contra a grande treva e o
Gillen assinalaram que o nativo jamais compreende a grande silêncio donde ninguém regressa. A palavra
morte natural. O homem que morre terá sido, neces- 'morte' jamais ocorre nos textos das Pirâmides, ex-
sariamente, morto por outro ou talvez até por uma cet.o em sentido negativo ou aplicada a um inimigo.
mulher; e, mais cedo ou mais tarde, esse homem ou ReIteradamente ouvimos a afirmativa inabalável de
essa mulher serão atacados. 1 A morte não existiu que o morto vive." 1
sempre; veio a existir em razão de algum evento par- Em seu sentimento individual e social, o homem
ticular, de uma falha do homem ou de um acidente. primitivo vive enlevado nessa certeza. A vida do ho-
Muitos relatos míticos se ocupam da origem da morte. mem não tem limites definidos no espaço ou no tempo;
A concepção de que o homem é mortal, por sua essên- estende-se sobre todo o reino da natureza e sobre toda
cia e natureza, parece inteiramente estranha ao pensa- a história do homem. Herbert Spencer propôs a tese
mento mítico e religioso primitivo. Neste sentido exis- de que o culto dos antepassados deve ser considerado
te notável diferença entre a crença mítica na imortali- como a primeira fonte e origem da religião. Como
dade e todas as formas subseqüentes de pura crença quer que seja, representa um dos motivos religiosos
filosófica. Se lermos o Fédon de Platão, sentiremos mais gerais. Parece haver poucas raças no mundo que
todo o esforço do pensamento filosófico para dar uma n.ãú pratiquem, de uma ou de outra forma, uma espé-
prova clara e irrefutável da imortalidade da alma hu- CIe de culto da morte. Um dos mais altos deveres do
mana. No pensamento mítico o caso é inteiramente sobrevivente, após a morte de um parente, é propor-
diferente. Aqui o peso da prova cabe sempre ao lado cionar-lhe comida e demais coisas necessárias para
contrário. Se algo necessita de prova não é o fato da mante- Io no novo estado em que ingressou. '2 Em
A

imortalidade, senão o fato da morte. E mito e re- muitos casos, o culto dos antepassados surge como o
ligião primitiva nunca admitem tais provas. Negam, traço geral que caracteriza e determina toda a vida re-
enfaticamente, a possibilidade real da morte. Em cer- ligiosa e social. Na China, sancionado e regulado pela
to sentido, todo pensamento mítico pode ser interpre- religião estatal, o culto dos antepassados é concebido
tado como constante e obstinada negação do fenômeno como a única religião que o povo pode ter. Significa,
da morte. Em virtude desta convicção da ininterrup- diz de Groot em sua descrição da religião chinesa,
ta unidade e da continuidade da vida, o mito precisa que os laços familiais com os mortos não se rompem de maneira
afastar esse fenômeno. A religião primitiva é talvez a~guma ~ que el~s. continuam a exercer sua autoridade e prote-
çao. Sao as divindades padroeiras naturais do povo chinês,
a mais vigorosa e enérgica afirmação da vida que en- seus deuses do lar, que asseguram proteção contra os espectros
contramos na cultura humana. Numa descrição dos
mais velhos textos das Pirâmides, diz Breasted, a nota . 1.. James Henry Breasted, Depelopment 01 Religion and Thought
m Anc~ent Egypt (Nova Iorque, Charles Scribner's Sons, 1912), p. 91.
2. Encontra-se rico material etnológico, que ilustra este ponto,
1. Spencer e Gillen, The Native Tribes 01 Central Australia, p. 48. no artigo sobre o Culto dos Antepassados na Encyclopedia o/ Reliçioti
and Ethics, de Hastings, I, pp. 425 e seguintes.
140 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 141

e promovem, assim, a felicidade. .. l!: o culto dos antepassados essencial da religião primitiva. E será impossível
que, conferindo ao homem a proteção do membro falecido da
família, proporciona-lhe riqueza e prosperidade. Por conse- compreender este elemento, em seu verdadeiro sen-
guinte, suas posses, efetivamente, são as dos mortos; estes, na tido, enquanto continuarmos pensando que toda reli-
verdade, continuam a morar e viver com ele e as leis da autori-
dade paterna e patriarcal estatuem que os pais são os donos gião se origina do medo. Teremos de procurar outra
de tudo o que a criança possui. .. Precisamos, pois, considerar origem mais profunda se quisermos compreender o
o culto aos pais e aos antepassados como a verdadeira essência
da vida religiosa e social do povo chinês. 1 vínculo comum que une o fenômeno do totemismo ao
do culto dos antepassados. É verdade que o Santo, o
A China é o país clássico do culto aos antepassa- Sagrado e o Divino sempre contém um elemento de
dos, em que podemos estudar todos os seus traços fun- medo; é, ao mesmo tempo, um mysterium fascinosum
damentais e todas as suas implicações especiais. Sem e um mysterium tremendum. 1 Mas se seguirmos nos-
embargo, os motivos religiosos gerais, que se encon- so plano geral - se julgarmos a mentalidade do ho-
tram no fundo do culto aos antepassados, não depen- mem primitivo não só por suas ações como por suas
dem de condições culturais ou sociais particulares. En- representações ou credos - verificaremos que estas
contramo-los em meios culturais inteiramente dife- ações implicam um motivo diferente e mais forte. De
rentes. Se lançarmos os olhos para a antigüidade clás- todos os lados e a todos os momentos, a vida do ho-
.sica, encontraremos os mesmos motivos na religião ro- mem primitivo é ameaçada por perigos desconhecidos .
mana - onde também marcaram seu caráter. Em seu O velho adágio Primus in orbe deos fecit timor con-
famoso livro, La cité antique, Fustel de Coulanges tém, portanto, uma verossimilhança psicológica inte-
apresentou uma descrição da religião romana, pro- rior. Dir-se-á, porém, que até nos primeiros e mais
curando demonstrar que toda a vida social e política baixos estádios da civilização o homem encontrou uma
dos romanos traz a marca do culto aos manes. O culto nova força, que lhe permitia resistir ao medo da mor-
dos antepassados sempre foi uma das características te e apartá-I o de si. O que ele opunha ao fato da
básicas e preponderantes da religião romana. 2 Por morte era sua confiança na solidariedade, na íntegra
outro lado, um dos traços mais acentuados da religião e indestrutível unidade da vida. O próprio totemismo
dos índios americanos, partilhado por quase todas as expressa esta profunda convicção de uma comunidade
inúmeras tribos que se estendem do Alasca à Patagô- de todos os seres vivos - uma comunidade que precisa
nia, é sua crença na vida após a morte, baseada na ser preservada e reforçada pelos esforços constantes
crença, igualmente geral, na comunicação entre o gê- do homem, pela rigorosa execução de ritos mágicos e
nero humano e os espíritos dos rnortos.P Tudo isto observâncias religiosas. Um dos grandes méritos do
mostra de maneira clara e inequívoca que chegamos a livro de W. Robertson-Smith sobre a religião dos se-
uma característica realmente universal, irredutível e mitas é o destaque dado a este ponto. Foi-lhe possí-
vel, assim, relacionar os fenômenos do totemismo com
1. J. J. M. de Groot, The Religion ot ihe Chinese (Nova Iorque, outros da vida religiosa, os quais, à primeira vista,
Macrnillan, 1910), pp, 67, 82. Sobre novas iriformações veja de Groot,
The Reliçious System ot China (Leida, 1892), VIs. IV-VI.
parecem ser de um tipo totalmente diverso. Até as
2. Fustel de Coulanges, La cité antique; Wissowa, Religion der mais cruas e cruéis superstições surgem sob uma luz
Rõrner (1902), pp. 187 e seguintes.
3. Ci. Culto dos Antepassados, na Encyclopedia de Hastings.
I, 433. 1. Cf. Rudolf Otto, Das Heilille (Gotínga, 1912).
Antropologia Filosófica 143
142 Ernst Cassirer

dir que veja o caminho pelo qual é conduzido ao tú-


diferente quando vistas por esse ângulo. "Alguns tra- mulo.1 Na maioria dos casos, porém, prevalece a ten-
ços mais notáveis e constantes de todo antigo paganis- dência oposta. Com todas as suas forças, os sobrevi-
mo", diz Robertson-Smith, ventes procuram reter o espírito ao pé de si. Muito
d? tote~ismo dos selvagens para cima, encontram sua explicar freqüentemente o cadáver é enterrado na própria ca-
çao suficiente na afinidade física que une os membros humanos sa, onde conserva sua residência permanente. Os es-
e sobre-humanos da mesma comunidade religiosa e social. . . O
laço indissolúvel que liga os homens ao seu deus é o mesmo píritos dos mortos transformam-se em deuses do lar
laço de comunhão de sangue que, na sociedade primitiva cons- e a vida e a prosperidade da família dependem de sua
titui, o único elo que vincula o homem ao homem e o' único
princípio sagrado de obrigação moral. Vemos assim que, até assistência e benevolência. No momento da morte
em suas formas mais grosseiras, a religião era uma força mo- implora-se ao genitor que não se vá. "Sempre o ama-
ral. . . Desde os primeiros tempos, distinta da magia ou da
feitiçaria, a religião se dirige a seres aparentados e amigos, que mos e tratamos com carinho", diz uma canção cita-
podem realmente zangar-se com seu povo durante algum tempo, da por Tylor, "e juntos vivemos por muito tempo de-
mas sao sempre aplacáveis, exceto para os inimigos dos seus
adoradores ou para os membros renegados da comunidade ... baixo do mesmo teto. Não o deixe agora! Venha para
Nesse sentido, a religião não é filha do terror e a diferença entre sua casa! Está varrida e limpa para você; e'lá estão
ela e o pavor, que sente o selvagem pelos seus inimigos invisí-
veis, é tão absoluta e fundamental nos primeiros quanto nos todos os que sempre o amaram; e há arroz preparado
últimos estádios de desenvolvimento. 1 e água. Venha para casa, venha para casa, volte
Os ritos funerários, que encontramos em todas as para nós". 2
partes do mundo, tendem para o mesmo ponto. O me- Nesse sentido, não há diferença radical entre o
do da morte, sem dúvida, é um dos instintos humanos pensamento mítico e o pensamento religioso. Ambos
mais gerais e mais profundamente arraigados. A pri- se originam dos mesmos fenômenos fundamentais da
meira reação do homem diante de um corpo morto de- vida humana. No desenvolvimento da cultura huma-
ve ter sido abandoná-Ia à própria sorte e fugir, apa- na não podemos fixar um ponto onde termina o mito
vorado. Mas esta reação só se encontra em alguns ca- e a religião começa. Em todo o curso de sua história,
sos excepcionais. Não tarda a ser suplantada pela a religião permanece indissoluvelmente ligada a ele-
atitude oposta, pelo desejo de reter ou chamar de vol- mentos míticos e repassada deles. Por outro lado, até
ta o espírito do morto. Nosso material etnológico mos- em suas formas mais grosseiras e rudimentares, o mito
tra-nos a luta entre estes dois impulsos. De hábito, contém motivos que, em certo sentido, antecipam os
todavia, é o último que parece levar a melhor. É- ver- ideais religiosos mais elevados, que vieram depois.
dade que sabemos de muitos recursos para impedir Desde o princípio, o mito é uma religião em potencial.
que o espírito do morto regresse a casa. Espalham-se O que leva de um estádio ao outro não é uma súbita
cinzas atrás do caixão, quando este está sendo levado crise de pensamento nem uma revolução de sentimen-
para a sepultura, a fim de despistar o espírito. O cos- tos. Em Les deux sources de la morale et de lareligion,
tume de fechar os olhos de uma pessoa morta foi ex- Henri Bergson tenta convencer-nos de que existe uma
plicado como tentativa de lhe vendar os olhos e impe-
1. Sobre o material etnológico veja 8ir Edward Burnett Tylor
1. W. Robertson-Smith, Lectures on the Religion oi the Semites PrimitiveCulture (Nova Iorque, Henry Holt & Co., 1874), capo XIV. '
(Edimburgo, A. & C. Black, 1889), Conferência II, pp. 53 e seguintes. 2. Tylor, op. cito (3.' edição), II, pp. 32 e seguinte.
Cf. Conferência X, pp. 334 e seguintes.
144 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 145

oposição irreconciliável entre o que ele descreve como se destinava a encontrar sua esfera de ação em pequenas comu-
nidades, e sua inteligência a favorecer a vida individual e de
"Religião Estática" e "Religião Dinâmica". A primei- grupo. Mas, expandindo-se através dos próprios esforços, a
ra é um produto da pressão social; a última se baseia inteligência desenvolveu-se inesperadamente. Libertou os homens
de restrições a que estavam condenados pelas limitações de sua
na liberdade. Na Religião Dinâmica não cedemos a natureza. Assim sendo, não era impossível que alguns deles,
uma pressão, mas a uma atração - e, por essa atra- especialmente dotados, reabrissem o que estava fechado e fizes-
sem. ao menos para si, o que a natureza, possivelmente, não
ção, rompemos todos os elos sociais anteriores de uma pouería ter leito para a humanidade. 1
moral estática, convencional e tradicional. Não chega-
mos à mais alta forma de religião, à religião da huma- A ética de Bergson é conseqüência e corolário de
nidade, gradativamente, através dos estádios da famí- sua metafísica. A tarefa que se propôs foi interpretar
lia e da nação. "Devemos", diz Bergson, a vida ética do homem em termos de seu sistema me-
tafísico. Em sua filosofia da natureza o mundo orgâ-
num único salto, ser transportados muito além dela e sem
tê-Ia feit? nossa meta, alcançá-Ia, ultrapassando-a. .. Que; fale- nico foi descrito como o resultado da luta entre duas
mos a línguagem da religião ou da filosofia, quer se trate de forças contrárias. De um lado encontramos o mecanis-
~a questão de amor ou de respeito, sobrevém uma moral
dlf~rente, outra espécie de obrigação, acima e além da pressão mo da matéria, de outro a força criadora e construtora
SOCIal... Enquanto a obrigação natural é uma pressão ou força do élan vital. O pêndulo da vida oscila constantemente
propulsora, a moral completa e perfeita faz o efeito de um
apelo. . . Não é por um processo de expansão do eu que pode- entre um pólo e outro; a inércia da matéria resiste à
mos passar do primeiro estado ao segundo... Quando disper- energia do impulso vital. De acordo com Bergson, a
samos as aparências para chegar à realidade... nos dois extre-
mos encontramos pressão e aspiração: a primeira, tanto mais vida ética do homem reflete a mesma luta metafísica
perfeita quanto se torna mais impessoal, mais próxima das for- entre um princípio ativo e outro passivo. A vida social
ças naturais que denominamos hábito ou mesmo instinto, a se- repete e reflete o processo universal, que encontramos
gunda, tanto mais poderosa quanto em maior grau seja desper-
tada em nós por determinadas pessoas e quanto mais aparen- na vida orgânica, dividido entre duas forças opostas.
temente triunfe sobre a natureza.v Uma delas tende a manter e eternizar o atual estado
de coisas; a outra luta por novas formas de vida hu-
É surpreendente que Bergson, cuja doutrina foi
mana, que nunca existiram antes. A primeira tendên-
amiúde descrita como uma filosofia biológica, como
cia caracteriza a religião estática, a segunda a dinâ-
uma filosofia da vida e da natureza, em sua última
mica; ambas nunca poderão ser reduzidas ao mesmo
obra pareça ser conduzido para um ideal moral e re-
denominador comum. A humanidade só poderia pas-
ligioso que vai muito além deste campo.
sar de um ponto a outro de um salto repentino; da
o homem supera a natureza quando estende a solidariedade passividade à atividade, da pressão social a uma vida
so?ial à fraternidade do homem; mas, não obstante, a engana,
pOIS aquelas sociedades, cujo propósito estava prefigurado na ética individual, autônoma.
estrut~r~ original da: alma humana... exigiam que o grupo Não nego que haja uma diferença fundamental
f<;>sse
mtIma~ente unido, mas que entre grupo e grupo reinasse
VIrtual hostilIdade... Recém-saído das mãos da natureza o entre as duas formas de religião descritas por Bergson,
homem era um ser tão inteligente como social, cuja sociabilid~de como a de "pressão" e de "apelo". Seu livro apresen-
ta uma análise claríssima e impressionante de ambas
1. Bergson, Les deux sources de Ia morale et de Ia religion. Tra- as formas. Entretanto, um sistema metafísico não pode
dução inglesa de R. Ashley Audra e Cloudesley Brereton, The Two
Sources ot Morality and Religion (Nova Iorque, Holt & CO., 1935), lI,
pp. 25, 26, 30, 42. 1. Bergson, op. cit., pp. 48 e seguintes.
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Antropologia Filosófica 147

contentar-se com uma simples descrição analítica de


fenômenos; cumpre-lhe tentar rastreá-Ios até suas cau- ram para abalar o dogma do mecanismo e automatis-
sas finais. Bergson precisou, portanto, inferir os dois mo completos da vida social primitiva. No entender
tipos de vida moral e religiosa de duas forças diver- de Malinowski, este dogma colocou a realidade da
gentes: uma, que governa a vida social primitiva; ou- vida primitiva numa falsa perspectiva. C~mo ele ~s-
tra, que rompe a cadeia da sociedade, a fim de criar sinala, o selvagem tem, sem duvida, o maior respeito
o novo ideal de uma vida pessoal livre. Se aceitarmos por seus costumes e tradições tribais; mas a força do
esta tese, não haverá nenhum processo contínuo que costume ou da tradição não é a única na vida selva-
possa conduzir de uma forma à outra. Uma crise sú- gem. Até num nível muito baixo de cultura encon-
bita do pensamento e uma revolução do sentimento tramos vestígios definidos de uma força diferente. 1
assinalam a transição entre a religião estática e a re- Uma vida de mera pressão, uma vida humana em que
ligião dinâmica. todas as atividades individuais eram completamente
Entretanto, um estudo mais atento da história da suprimidas e eliminadas, parece mais um~ constr~-
religião dificilmente pode corroborar esta concepção. ção sociológica ou metafísica que uma realidade hIS-
De um ponto de vista histórico é muito difícil manter tórica.
a distinção incisiva entre as duas fontes de religião e Na história da cultura grega encontramos um pe-
moral. Bergson, sem dúvida, não tencionou alicerçar ríodo em que os velhos deuses, os deuses de Homero
sua teoria ética e religiosa em simples razões metafí- e Hesíodo, principiam a declinar; as concepções popu-
sicas. Refere-se constantemente às provas empíricas lares destes deuses são vigorosamente atacadas. Sur-
contidas nas obras de sociólogos e antropologistas. En- ge um novo ideal religioso, formado por homens indi-
tre os estudiosos de antropologia, efetivamente, pre- viduais. Os grandes poetas e OS grandes pensadores -
valeceu por muito tempo a opinião de que, nas condi- Ésquilo e Eurípides, Xenófanes, Heráclito, A~axágo-
ções da vida social primitiva, não podemos falar em ras - criam novos padrões intelectuais e morais. Me-
nenhuma atividade da parte do indivíduo. Na socieda- didos por estes padrões, os deuses homéricos perdem
de primitiva - segundo se presumia - o individual sua autoridade; seu caráter antropomórfico é clara-
ainda não tinha um lugar próprio. Os sentimentos, os mente visto e severamente criticado. Entretanto, este
pensamentos, os atos do homem não procediam dele; antropomorfismo da religião popular grega não era
eram-lhe impostos por uma força externa. A vida pri- desprovido de valor e significado positivos. A huma-
mitiva caracteriza-se por um mecanismo rígido, uni- nização dos deuses era um passo indispensável na evo-
forme, inexorável. A tradição e o costume eram obe- lução do pensamento religioso. Em muitos cultos gre-
decidos servil e inconscientemente, por pura inércia gos locais ainda encontramos traços definidos de zoo-
mental ou por um dominante instinto de grupo. Esta latria e até de credos totêmicos. 2 "O progresso da
submissão automática de todo membro da tribo às religião grega", diz Gilbert Murray,
suas leis foi, por muito tempo, considerada como o
axioma fundamental sobre o qual se baseava a inves- 1 Veja Malinowski, Crime and Custam in Savage Society (Londres
tigação da ordem primitiva e do primitivo apego à e Nova Iorque, 1926). .
lei. As recentes pesquisas antropológicas muito fize- 2. Sobre maiores detalbes veja Jane Ellen Harrtson, Prolegomena
to ihe Study ot Greek Religion (Cambridge, 1903), capo L
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efetua-se naturalmente em três etapas, todas historicamente im- Neste progresso do pensamento religioso toma-
portantes. Primeiro vem a primitiva Euetheia, ou Idade da mos conhecimento do despertar de uma nova força e
Ignorância. antes que Zeus aparecesse para perturbar o espírito
dos homens. etapa para a qual os nossos antropologistas e ex- de nova atividade do espírito humano. Filósofos e
ploradores encontram paralelos em todas as partes do mundo ... antropólogos nos têm dito, com freqüência, que a ori-
Se em algum; aspectos é caracteristicamente grega, em outros
se apresenta tão típica como etapas semelhantes de pensamento,
gem verdadeira e final da religião é o sentimento de
em qualquer outra parte, que nos sentimos tentados a consíde- dependência do homem. De acordo com Schleierma-
rá-la corno n início normal de toda religião, ou pelo menos como
a matéria-prima normal com que se faz a religião. 1
cher, a religião nasceu do "sentimento de absoluta
dependência do Divino". Em The Golden Bough
Vem em seguida o processo que, no trabalho de J. G. Frazer adotou esta tese. "Assim a religião", diz
Gilbert Murray, se descreve como a "conquista olím- ele, "começando como um ligeiro e parcial reconheci-
pica", depois da qual o homem concebeu a natureza, mento de poderes superiores ao homem, tende, com o
e o seu próprio lugar dentro. dela, num sentido dife- aumento do conhecimento, a aprofundar-se numa con-
rente. O sentimento geral de solidariedade da vida fissão da total e absoluta dependência do homem para
cedeu lugar a um motivo novo e mais forte - ao com o Divino; sua antiga atitude livre troca-se por
sentido específico da individualidade humana. Já não outra da mais profunda prostração diante dos miste-
havia um parentesco natural, uma consangüinidade riosos poderes do invisível". 1 Mas se esta descrição
que liga o homem às plantas ou animais. Em seus da religião contém alguma verdade, só nos dá metade
deuses pessoais, o homem começou a ver sua própria dela. Em nenhum campo da cultura humana, uma
personalidade a uma nova luz, progresso que se per- "atitude da mais profunda prostração" pode ser con-
cebe claramente no desenvolvimento do deus supre- siderada com o impulso genuíno e decisivo. De uma
mo - Zeus olímpico. Também Zeus é um deus da atitude inteiramente passiva não pode surgir nenhu-
natureza, um deus adorado no topo das montanhas, ma energia criadora. Neste sentido, a própria magia
governando as nuvens, a chuva, o trovão. Gradativa- deve ser considerada como passo importante no de-
mente, porém, vai assumindo nova forma. Em És- senvolvimento da consciência humana. A fé na magia
quilo tornou-se a expressão dos mais elevados ideais é uma das primeiras e mais notáveis expressões do
éticos, guardião e protetor da justiça. "A religião ho- despertar da confiança do homem em si mesmo. Já
mérica", diz Murray, não se sente à mercê de forças naturais ou sobrena-
turais' começa a desempenhar seu próprio papel, tor-
é um passo na auto compreensão da Grécia... O mundo não na-se 'ator no espetáculo da natureza. Toda prática
era concebido nem como totalmente sem governo externo, nem
como meramente sujeito às incursões de serpentes mana e tou- mágica se baseia na convicção de que os efeitos natu-
ros e raios e monstros, mas governado por um corpo organi- rais dependem, em grande parte, de atos humanos.
zado de dirigentes pessoais e raciocinantes, sábios e dadivosos
pais. semelhantes ao homem na mente e na forma, porém incom- A vida da natureza depende da distribuição e coope-
paravelmente superiores. 2 ração perfeitas das forças humanas e sobre-humanas.
Um ritual rigoroso e elaborado regula esta coopera-
1. Gilbert Murray, Five Stages ot Greek Religion, Conferências na ção. Cada campo particular dispõe de suas próprias
Universidade de Colúmbia (Nova Iorque, Colurnbia University Press,
1930), p. 16.
2. Idem, p. 82. 1. Prazer, The Golden Bough, I, 78.
150 Antropologia Filosófica 151
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regras mágicas: especiais para a agricultura, para a ça nos próprios poderes - a considerar-se como um
ca_çae pesca. Nas sociedades totêmicas, os diversos ser que não precisa submeter-se simplesmente às for-
elas possuem diferentes ritos mágicos, que constituem ças da natureza, mas é capaz de regulá-Ias e controlá-
seu privilégio e seu segredo; e se tornam tanto mais -Ias pela energia espiritual.
neces~ário~ quanto mais difícil e perigoso for o que A relação entre a magia e a religião é um dos
se ,V~I realizar. .A magia não é usada para finalidades assuntos mais obscuros e controvertidos. Os antro-
práticas, para ajudar o homem em suas necessidades pólogos filósofos têm tentado, reiteradamente, escla-
cotidianas; destina-se a fins mais elevados, a perigo- recê-Ia, mas suas teorias divergem amplamente e, não
sas. e ousadas aventuras. Em sua descrição da mito- raro, se colocam em flagrante contradição. É natural
10gI~ dos nativos das ilhas Trobriand, na Melanésia, que desejemos uma definição nítida, que nos permita
Malmowski ~bserva que nas tarefas que não exigem delimitar perfeitamente magia e religião. Teorica-
e.sf~rç~s partI~u~ares e excepcionais, coragem ou re- mente falando, estamos convencidos de que não po-
sIst.encIa especiais, não encontramos magia nem mito- dem significar a mesma coisa e relutamos em reduzi-
logia, Mas sempre ocorre a magia altamente desen- -Ias a uma origem comum. Pensamos na religião co-
volvida e, :m c~nexão com ela, a mitologia, quando mo a expressão simbólica de nossos supremos ideais
a e~presa e pengosa e de resultado incerto. Nos co- morais; e na magia como um grosseiro conjunto de
metimentos econômicos de menor importância como superstições. A crença religiosa parece tornar-se me-
nas ~rtes e ofícios, na caça, na coleta de raizes e na ra credulidade supersticiosa se admitirmos que tenha
colheita de frutos, o homem não tem necessidade de alguma relação com a magia. Por outro lado, o ca-
. 1 S'
magia. o quando se sente sob forte tensão emocio- ráter de nosso material antropológico e etnográfico
nal recorre aos seus ritos. Mas é precisamente a exe- dificulta sumamente a separação dos dois campos. As
cução destes ritos que lhe dá nova sensação dos pró- tentativas feitas nesta direção tornaram-se cada vez
p~lOSpoderes - seu domínio de si mesmo e sua ener- mais duvidosas. Parece que um dos postulados da
gia. O que o homem consegue com ela é a mais alta moderna antropologia é a existência de uma comple-
c?nc:ntração de todos seus esforços, que, em circuns- ta continuidade entre magia e religião. 1 Frazer foi
tâncias comuns, estariam dispersos ou seriam incoe- um dos primeiros a tentar provar que, mesmo de um
~entes. É a técnic: da própria magia que requer tão . ponto de vista antropológico, magia e religião não po-
mtens~ concentraçao. Toda prática mágica necessita dem ser incluídas numa rubrica comum. No seu en-
da mais alta atenção. Se não for executada na ordem tender, são inteiramente diferentes na origem psico-
c:,rta e ~e, acor.do com as mesmas regras invariáveis, lógica e tendem para objetivos opostos. O malogro e
nao surtIra. efeito. Neste sentido, é possível dizer-se a decadência da magia prepararam o terreno para que
que a magia representa a primeira escola pela qual a religião pudesse surgir. "O homem viu que tomara
teve de ~ass~r ~ homem, primitivo. Ainda que não por causas as que não o eram, e que todos seus esfor-
c.onduza as fmalIdades praticas almejadas, ou não sa-
tísfaça aos desejos do homem, ensina-o a ter confian-
1. Veja, por exemplo, R. R. Marett, Faith, Hope, and Charity in
Primitive Reliçion, Conferências Gifford (Macmíllan, 1932), Conferência
1. Malinowski, The Foundations 01 Faith anâ Morais, p. 22.
n. pp. 21 e seguintes.
152 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 153

ços para trabalhar por meio destas causas imaginárias tinguem incisivamente; combinam-se e fundem-se na-
haviam sido vãos. Sua penosa labuta se baldara, seu quele sentimento fundamental que tentamos descre-
curioso engenho se desperdiçara sem qualquer provei- ver como o sentimento de solidariedade da vida, fonte
to; andara percutindo cordas soltas" Desesperando comum da magia e da religião. A magia não é uma
da magia o homem encontrou a religião e lhe desco- espécie de ciência - uma pseudociência. Nem deriva
briu o verdadeiro sentido. "Se o grande mundo seguia do princípio que a psicanálise moderna descreveu co-
seu caminho sem a ajuda dele nem de seus compa- mo a "onipotência do pensamento" (Allmacht des
nheiros, era porque havia, seguramente, outros seres Gedankens). 1 Nem o mero desejo de saber, nem o
parecidos, porém muito mais fortes, que, invisíveis, mero desejo de possuir e dominar a natureza podem
dirigiam o curso do mundo, produzindo toda a vasta explicar os fatos da magia. Frazer faz uma distinção
série de acontecimentos que ele, até então, acreditara clara entre duas formas de magia, que designa pelos
dependentes da própria magia" 1 nomes de "magia imitativa" e "magia simpática". 2
Esta distinção, entretanto, parece ser artificial, Mas toda magia é "simpática" na origem e no signi-
tanto de um ponto de vista sistemático como pelo as- ficado; pois o homem não entraria em contacto má-
pecto dos fatos etnológicos. Não possuímos nenhuma gico com a natureza se não tivesse a convicção de
prova empírica de que tenha existido jamais uma ida- que existe um laço comum unindo todas as coisas -
de da magia, seguida e superada por uma idade da re- de que a separação entre ele e a natureza e entre as
ligião. 2 E a própria análise psicológica em que se diferentes espécies de objetos naturais é, afinal de
estriba a distinção entre as duas idades é contestável. contas, uma separação artificial e não real.
Frazer considera a magia como resultado de uma ati- Em linguagem filosófica esta convicção foi ex-
vidade teórica ou científica, conseqüência da curiosi- pressa pela máxima estóica, oU!l1tcxllm\:: ttov oÀwv , que,
dade do homem, a qual o instigou a buscar as causas em certo sentido, expressa com muita concisão a cren-
das coisas; mas, incapaz de descobrir as reais, teve de ça fundamental que existe no fundo de todos os rituais
se contentar com as fictícias. 3 A religião, por outro mágicos. É verdade que parece perigoso e arbitrário
lado, não tem objetivos teóricos; é uma expressão de aplicar uma concepção da filosofia grega às crenças
ideais éticos. Mas ambos estes pontos de vista são in- mais rudimentares da humanidade. Mas os estóicos,
sustentáveis quando olhamos para os fatos da religião que inventaram o conceito da "simpatia do Todo",
primitiva. Desde o princípio, a religião precisou exer- não tinham, de maneira alguma, deixado completa-
cer uma função teórica e outra prática. Encerra uma mente para trás os pontos de vista da religião popu-
cosmologia e uma antropologia; responde à pergunta lar. Em virtude de seu princípio das notitiae commu-
sobre a origem do mundo e sobre a origem da socie- nes - dessas noções comuns que se encontram em
dade humana. E desta origem derivam os deveres e toda parte e em todos os tempos - trataram de con-
obrigações do homem. Os dois aspectos não se dis- ciliar o pensamento mítico e o filosófico, admitindo
que até o último contém alguns elementos de verdade.
1. Frazer, op. cit., I, pp. 76 e seguinte.
2. Veja a crítica da teoria de Frazer em Marett, The Threshold
01 Reliçion, pp. 29 e seguintes. 1. Cf. Freud, Totem und Tabu (Viena, 1920).
3. Veja p. 75.
2. Cf. Frazer, op. eU., I, p. 9.
154 Ernst Cassirer
Antropologia Filosófica 155

Não vacilaram em utilizar o argumento da "simpatia


do Todo" para interpretar e justificar crenças popula- le~r~m tais festividades, que executam suas danças
res. Na realidade, a doutrina estóica de um 1tVWf.11l magicas, fundem-se entre si e com todas as coisas na
(pneuma), que tudo penetra -. sopro difundido por natureza. Não estão isolados; sua alegria é sentida
todo o universo, conferindo a todas as coisas a ten- por toda a natureza e partilhada por seus antepassa-
são que as mantém unidas - ainda mostra notabilís- dos. Desvaneceram-se o espaço e o tempo; o passa-
simas analogias com conceitos primitivos, com o mana do tornou-se o presente e a idade de ouro da humani-
dade voltou. 1
dos polinésios, o oretula dos iroqueses, o wakan dos
sioux, o manitu dos algonquianos. 1 Claro está que . A religião não tinha o poder, nem poderia tender
seria absurdo colocar a interpretação filosófica no Jamais para isso, de suprimir ou erradicar estes mais
mesmo nível da interpretação mítico-mágica. Não profundos instintos da humanidade. Cumpria-lhe rea-
obstante, podemos reduzir ambas a uma raiz comum, lizar uma tarefa diferente - utilizá-los e conduzi-Ios
a uma camada verdadeiramente profunda do senti- a novos rumos. A crença na "simpatia do Todo" é
mento religioso. Para penetrar nesta camada não de- um dos mais finries fundamentos da própria religião.
vemos tentar construir uma teoria da magia basea- Mas a simpatia religiosa é de uma espécie diferente a
da nos princípios da nossa psicologia empírica, sobre- da simpatia mítica e mágica. Dá vazão a um novo
tudo nos da associação de idéias. 2 Devemos abordar sentimento, o da individualidade. Entretanto tudo
o problema pelo lado do ritual mágico. Malinowski indica que enfrentamos aqui uma das antinomias
apresentou uma descrição muito impressionante das fundamentais do pensamento religioso. A individua-
festividades tribais dos nativos das ilhas Trobriand; lidade parece ser uma negação ou, pelo menos, uma
são sempre acompanhadas de estórias míticas e ceri- restrição da universalidade de sentimentos, postula-
mônias mágicas. Durante a estação sagrada, a esta- d~ .pela religião: omnis determinatio est negatio. Sig-
ção do júbilo pela colheita, os mais velhos recordam à nifica existência finita - e enquanto não conseguir-
geração mais nova que os espíritos dos antepassados mos derrubar as barreiras desta existência finita não
estão prestes a voltar da região dos mortos. Os espí- poderemos apreender o infinito. Esta dificuldade e
ritos vêm por umas poucas semanas e tornam a esta- este enigma precisaram ser resolvidos pelo progresso
belecer-se nas aldeias, encarapitados nas árvores, sen- do pensamento religioso. Podemos acompanhá-Io nu-
tados em altas plataformas especialmente erguidas ma tríplice direção e descrevê-lo em suas implicações
para eles, observando as danças mágicas. 3 Um rito psicológicas, sociológicas e éticas. O desenvolvimen-
mágico desta natureza nos dá uma impressão clara e to das consciências individual, social e moral tende
concreta do verdadeiro sentido da "magia simpática",
1. o povo arunta dos desertos centrais da Austrália diz Marett
.
e de sua função social e religiosa. Os homens que ce- "est~beleceu, por meio dos seus ritos dramáticos, uma e~pécie de Al:
cherínga eterna, para a qual pode voltar-se, fugindo aos trabalhos de seu
1. Sobre uma descrição mais minuciosa destes conceitos e da sua destrno presente, de modo que possa restaurar-se pela comunhão com
significação no pensamento mítíco veja Philosophie der symboltschen seres transcendentes, que são ao mesmo tempo seus antepassados e
Formen, lI, pp. 98 e seguintes. seus egos ideais. Quanto ao resto, cumpre notar que estes super-ho-
2. Esta teoria foi desenvolvida por Frazer, Lectures on the Early mens da Alcheringa não têm quase nenhuma individualidade distintiva.
History ot Ktngship, pp. 52 e seguintes. O coro procura simplesmente saciar sua alma coletiva com o fascínio
3. cr. Malinowski, op. cit., p. 14. da linhagem - com a consciência da raça. O mana de que participam
é tribal". Faith, Hope, and Charity in Primitive ReUgion, p. 36.
156 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 157

para o mesmo ponto; mostra uma diferenciação pro- não poderia dar aos seus deuses uma forma individual
gressiva, que finalmente conduz a uma nova integra- definida enquanto não tivesse encontrado um novo
ção. As concepções da religião primitiva são muito princípio de diferenciação em sua própria existência
mais vagas e indeterminadas do que nossas próprias e em sua vida social. Não encontrou este princípio
concepções e ideais. O mana dos polinésios, como as no pensamento abstrato, mas no trabalho. Foi, com
concepções correspondentes que encontramos em ou- efeito, a divisão do trabalho que introduziu uma nova
tras partes do mundo, mostra este caráter vago e flu- era de pensamento religioso. Muito antes do apare-
tuante. Não possui individualidade subjetiva nem ob- cimento dos deuses pessoais encontramos os deuses
jetiva. É concebido como matéria misteriosa comum, denominados funcionais. Ainda não são como os deu-
que impregna todas as coisas. Consoante a definição de ses pessoais da religião grega, os deuses olímpicos de
Codrington, primeiro a descrever o conceito de mana, Homero; todavia, já não apresentam a vagueza das
trata-se de "um poder ou influência, não físico, e de primitivas concepções míticas. São seres concretos;
certo modo sobrenatural; mas revela-se na força física mas são concretos nas ações, não na aparência ou exis-
ou em qualquer espécie de poder ou excelência que o tência pessoais. Não têm, portanto, nomes próprios
homem possua". 1 Pode ser o atributo de uma alma - como Zeus, Hera, Apolo - senão nomes qualifica-
ou espírito; mas não é espírito em si mesmo - não é tivos, que lhes caracterizam a função ou a atividade
uma concepção animista, mas pré-animísta.P Encon- especial. Em muitos casos estão ligados a determinado
tra-se em todas as coisas, independente de sua natu- sítio; são deuses locais e não gerais. Se desejarmos
reza especial e de sua distinção genérica. Uma pedra I compreender o verdadeiro caráter destes deuses fun-
que atraia a atenção pelo tamanho ou pela forma sin- !" cionais e o papel que representaram no desenvolvi-
gular está cheia de mana e exercerá poderes mági- mento do pensamento religioso, basta olhar para a re-
cos.P Não se acha vinculado a um sujeito especial; o ligião romana. Nela a diferenciação alcançou o mais
mana de um homem pode ser-lhe roubado e transfe- alto grau. Na vida de um lavrador romano, todo ato,
rido para um novo possuidor. Não podemos distin- por mais especializado que fosse, tinha seu significado
guir nele traços individuais, nem identidade pessoal. religioso especial. Existia uma classe de divindades
Uma das primeiras e mais importantes funções de to- - de Di Indigites - que vigiava a semeadura, outra
das as religiões mais elevadas foi descobrir e revelar a gradagem e o estercar; existia um Sator, um Occa-
tais elementos pessoais no que se denomina o Santo, tor, um Sterculinus.1 Em todo trabalho agrícola não
o Sagrado, o Divino. havia um só ato que não estivesse sob a orientação e
Mas para atingir este objetivo, o pensamento re- proteção de divindades funcionais, e cada classe tinha
ligioso precisou percorrer longo caminho. O homem seus próprios ritos e observâncias.
Neste sistema religioso vemos todos os traços tí-
picos do espírito romano - é sóbrio, prático, enér-
1. R. H. Codrington, The Melanesians (Oxford, Clarendon Press,
1891), p. 118.
2. Sobre esse problema veja Marett, "The Conception of Mana",
The Threshold 01 Relígion, pp. 99 e seguintes. 1. Sobre pormenores veja Philosophie der symbolischen Formen,
3. Codrington, op. cit., p. 119. lI, pp. 246 e seguintes.

I
Antropologia Filosófica 159
158 Ernst Cassirer

trutura social da vida romana, que triunfou do túmu-


gico, dotado de grande poder de concentração. Para
10 e possuiu uma imortalidade que o indivíduo não
um romano, vida significava vida ativa; e possuía o
logrou obter". 1
dom especial de organizá-Ia, de regular e coordenar
Uma tendência muito diferente de pensamento e
todos seus esforços. A expressão religiosa desta ten-
dência se encontra nos deuses funcionais romanos, que sentimento parece haver prevalecido, desde os pri-
precisam executar tarefas práticas definidas. Não são meiros tempos, na religião grega, onde também en-
produto da imaginação ou da inspiração religiosas; são contramos vestígios positivos do culto aos antepassa-
concebidos como dirigentes de atividades particulares. dos. 2 A literatura clássica grega preservou muitos
São, por assim dizer, deuses administrativos, que par- destes vestígios. Ésquilo e Sófocles descrevem os pre-
tilharam entre si os diferentes estados da vida huma- sentes - as libações de leite, as grinaldas de flores,
na. Não têm personalidade definida; mas distinguem- os cachos de cabelo - colocados na tumba de Aga-
-se claramente por seu ofício, do qual depende sua mémnon por seus filhos. Mas, sob a influência dos
dignidade religiosa. poemas homéricos, todas as características arcaicas da
De um tipo diferente são os deuses que eram ve- religião grega começam a dissipar-se, ofuscadas por
nerados em toda casa romana: os deuses do lume no uma nova direção do pensamento mítico e religioso.
lar. Não se originam de uma esfera especial e restri- A arte grega preparou o terreno para uma nova con-
ta da vida prática. Expressam os mais profundos sen- cepção dos deuses. Como disse Heródoto "Romero
timentos da vida familiar; são o centro sagrado do lar e Resíodo deram aos deuses. gregos seus nomes e de-
romano. Nasceram da piedade para com antepassa- senharam, suas figuras". E o
trabalho que havia sido
dos, sem possuírem fisionomia individual. São os Di iniciado pela poesia foi completado pela escultura:
Manes - os "bons deuses" - concebidos em sentido dificilmente poderemos pensar no Zeus olímpico sem
coletivo e não pessoal. A palavra "manes" nunca apa- representá-Io na forma que recebeu de Fídias. O que
rece no singular. Somente num período ulterior, se negou ao espírito romano, ativo e prático, foi reali-
quando a influência grega se tornou preponderante, zado pelo espírito contemplativo e artístico dos gre-
estes deuses assumiram uma forma mais pessoal. No gos. Não foi uma tendência moral que criou os deuses
estado inicial, os Di Manes eram ainda um conjunto homéricos. Os filósofos gregos tinham razão quando
indefinido de espíritos, unidos pela sua relação comum se queixavam do caráter destes deuses. "Homero e
com a família, e descritos mais como simples poten- Hesíodo ", diz Xenófanes, "atribuíram aos deuses to-
cialidades figuradas em grupos do que como indiví- dos os atos que são vergonhosos e desonrosos entre os
duos. "Os séculos subseqüentes", já se disse, "satu- homens: o roubo, o adultério, a fraude". No entanto,
rados de filosofia grega e cheios de uma idéia de in-
dividualidade, que faltava completamente nos primei-
ros dias de Roma, identificaram esta pobre potencia- 1. Veja J. B. Carter num artigo na Encyclopedia de Hastings, I,
p. 462.
lidade indistinta com a alma humana e acreditaram 2. Sobre .es~ questão veja Erwin Rohde, Psyche. The Cult ot
reconhecer no assunto a crença na imortalidade". Em Souls and Beliej m Immortality among the Greeks (Nova Iorque, Har-
court, Brace, 1925).
Roma, "a idéia de família foi tão fundamental na es-
161
160 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica

e pela astúcia .. , É sempre assim o pensamento em teu peito e


estas mesmas falhas e defeitos dos deuses pessoais por isso não posso abandonar-te com tua tristeza, por seres
meigo no falar, agudo de engenho e prudente. 1
gregos puderam transpor o abismo entre a natureza
humana e a divina. Nos poemas de Homero não en- Aspecto muito diferente, do Divino en~or::ram~s
contramos nenhuma barreira definida entre os dois nas grandes religiões monoteístas. Estas religiões ,sa.o
mundos. O que o homem retrata em seus deuses é decorrência de forcas morais; concentram-se num um-
ele mesmo, em toda sua variedade e multiformidade, co ponto, no probl~ma do bem e do mal. Na religião
tendências, temperamento e até suas idiossincrasias. de Zoroastro há apenas um Ser Supremo, Ahura-
Mas não é, como na religião romana, o lado prático -Mazda o "senhor sábio". Além dele, fora dele e sem
de sua natureza que o homem projeta sobre a divin- ele nada existe. É o primeiro e o principal, o mais
dade. Os deuses homéricos não representam ideais perfeito ser, o soberano absoluto; n~o encontramos
morais, expressam ideais espirituais muito caracterís- nenhuma individualização, nem pluralidade de deuses
ticos. Não são as divindades funcionais e anônimas que representem diferentes poder~s nat~rais. o~ .qua:
lidades espirituais diferentes. A mitologia prlmItlV~ .e
que precisam velar por uma atividade especial do ho-·
atacada e superada por uma nova força, puramente étí-
mem: estão interessados pelo homem individual e
ca. Nas primeiras concepções do santo, do sobrenatural,
o protegem. Todo deus e toda deusa têm seus favori-
esta força é inteiramente desconhecida. O mana, o
tos, que são apreciados, amados e assistidos, não em wakan, o orenda podem ser usados para bons ou m~us
razão de uma simples predileção pessoal, mas em vir- propósitos - sempre operam da mesma man;~a.
tude de uma espécie de afinidade espiritual que liga Atuam como diz Codrington, "em todas as especles
o deus e o homem. Mortais e imortais não corporifi- de meios , para o bem e para o ma 1"'.2 O mana. po de
cam ideais morais, porém dotes e tendências espiri- ser descrito como a dimensão primeira, ou existen-
tuais especiais. Nos poemas homéricos encontramos cial do sobrenatural - mas não tem nada a ver com
freqüentemente expressões claras e características sua' dimensão moral. As boas manifestações do poder
deste novo sentimento religioso. Quando Ulisses re- sobrenatural, que em ~udo se difunde,. estão ~o mes-
gressa a Ítaca sem saber que chegara ao seu país na- mo nível que as malignas ou destrwdoras. _ Desd.e
tal, Atena aparece-lhe sob a forma de um jovem pas- seus primórdios, a religião de Zoroastro, se opo~ r~dl-
tor e pergunta-lhe o nome. Ansioso por manter-se calmente a esta mítica indiferença ou aquela mdlf,:-
incógnito, Ulisses inventa imediatamente uma estória rença estética que caracteriza o politeísmo g;~go; ~ao
cheia de mentiras e engodos. A deusa sorri ao ouvi- é um produto da imaginação mítica ou estetlca; e a
-Ia, reconhecendo o que ela mesma lhe conferira: expressão de uma grande vontade mora~ p;ss?al. A
própria natureza assume nova forma, pOISe VIsta ex-
Astuto e manhoso terá de ser aquele que quiser superar-te em clusivamente pelo espelho da vida ética. Nenhuma
todas as maneiras de enganar, ainda que fosse um deus. Homem
atrevido, solerte no conselho, insaciável no artifício, nem mesmo 1. A Odisséia, Livro XIII, pp. 291 e seguintes. Tradução de A.
em tua própria terra, ao que parece, renuncias à fraude e às T. Murray r Loeb Classical Library,Harvard Universlty Press, Cambndge,
e~t6rias falazes, que amas do fundo do teu coração. Mas vamos, Mass.. 1930)
<I. coormgton, op. cit., p. 118.
nao falemos mais nisto, por sermos bem versados na arte, visto 3. Veja Marett, "A Concepção do Mana", op. cit., pp. 112 e se-
que és, sem sombra de dúvida, o melhor dos homens no conselho
e no discurso, e eu, entre os deuses, sou famosa pela sabedoria guintes.
162
Ernst Cassirer
Antropologia Filosófica 163

religião poderia jamais pensar em cortar ou mesmo


afrouxar o laço que une a natureza ao homem. Mas ta. O Divino já não é procurado ou abor~ad~ através
nas grandes religiões éticas este laço é atado e aper- de poderes mágicos, mas pelo poder da justiça, ,I?o-
tado num sentido novo. Não se nega ou se destrói a ravante não haverá um único passo na VIda prática
conexão simpática que encontramos na magia e na cotidiana do homem que, num sentido religioso e ~o-
mitologia primitiva; mas agora, a natureza é aborda- ral, seja reputado insignificante ou indiferente. Nin-
da' pelo lado racional e não pelo emocional. Se a na- guém pode manter-se alheio ao combate entre o poder
tureza contém um elemento divino, este não aparece divino e o poder demoníaco, entr~ Ahu:~ M~zda e
na abundância de sua vida, mas na simplicidade da Angra Mainyu. Os dois espíritos primordiais, ~IZ um
sua ordem. A natureza não é, como na religião po- dos textos, que na visão se revelaram .co~? gemeos,
liteísta, a grande mãe benéfica, divino regaço donde são o Melhor e o Pior. Entre eles os JUdICIOSOS sou-
se origina toda vida. É concebida como a esfera da beram escolher corretamente, os néscios não. :~do
lei e da legitimidade, e só por esta caracteríajíca de- ato, por humilde ou comum que, s.eja, =.
,:,alor ético
monstra sua origem divina. Na religião de Zoroastro definido e um matiz ético especifico; significa ordem
a natureza é designada pelo conceito de Asha. Asha ou desordem, preservação ou destruição '. , O .homem
é a sabedoria da natureza, que reflete a sabedoria do que cultiva ou rega o solo, que planta uma arvor.e,.que
seu criador, Ahura-Mazda,o "senhor sábio". Esta mata um animal perigoso, cumpre um dever religioso;
ordem universal, eterna e inviolável, governa o mun- prepara e assegura a vitória final do ,poder do ~e~,
do e determina todos os acontecimentos isolados: o do "senhor sábio", sobre o seu demomaco adversário,
curso do Sol, da Lua e das estrelas, o crescimento das Em tudo isto sentimos um esforço heróico da huma-
plantas e dos animais, a direção dos ventos e das nu- nidade para libertar-se da pressão e compulsão das
vens - tudo é mantido e preservado, não por meras forças mágicas, um novo ideal de liberdade. Apenas
forças físicas, mas pela força de Deus. O mundo con- pela liberdade, pelo livre-arbítrio o homem se poe em
verteu-se num grande drama moral, em que a natu- contacto com o divino, e assim se torna aliado da
reza e o homem devem representar seus papéis. divindade.
Até num estádio muito primitivo do pensamen- A decisão entre os dois modos de vida cabe ao indiv.Iduo; o
to mítico encontramos a convicção de que o homem, homem é árbitro de seu destino. Tem o poder e ~ ~1?~rdade
de escolher entre a verdade e a mentira, a justiça e a íníqüídade,
para poder alcançar um fim desejado, precisa coope- o bem e o mal. É responsável pela opçao ~oral que faz e é,
rar com a natureza e com seus poderes divinos ou de- conseqüentemente, responsável por suas açoes. Se escolher
direito e optar pela justiça, colherá sua recompen~~, mas se,
moníacos. A natureza não lhe confere seus dons sem como agente livre, optar pela íníqüidade, ~ responsab~hdade será
sua ativa colaboração. Na religião de Zoroastro encon- sua e seu próprio daena ou eu, o conduzirá ao CastIgO". [No
fim chegará] o periodo ~m que cada individuo, por sua prõpria
tramos a mesma concepção, mas apontando para uma capacidade, seguirá a retidão e agirá de acordo. com ela! e ~ssun
direção inteiramente nova. O sentido ético substituiu fará que o mundo inteiro dos homens gravíte na d.Ireçao de
Asha. . . Todos. .. deverão contribuir para esta grandlO.saobra.
e suplantou o sentido mágico. A vida inteira do ho- Os justos que vivem em diferentes épocas e lugares C!.Iferentes
mem se converte numa luta constante pelo amor da formam os membros de um grupo de justos, pOIS sao todos
levados pelo mesmo motivo e trabalham pela causa comum. 1
justiça. A tríade dos "bons pensamentos, boas palavras
e boas ações" desempenha a parte principal nesta lu- 1. M. N. Dhalla, History ot Zoroastrianism (Nova Iorque, Oxford
Utúversity Press, 193B),pp. 52 e seguintes.
164
Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 165

Es~aforma de simpatia ética universal, na religião mesmo estes poderes individuais teriam podido mo-
m?~oteIsta, ~lca~ça a vitória sobre o sentimento pri- dificar-lhe o caráter fundamentalmente social. Não po-
rnitjvo de solidariedadj, da vida natural ou mágica. deriam criar do nada uma nova religião. Os grandes
. . Quando a filosofia grega abordou o problema, di- reforma dores religiosos individuais não viviam no de-
ficilmento poderia ultrapassar a grandeza e a subli- serto, no espaço de sua própria experiência e inspira-
midade destes pensamentos religiosos. Nos últimos ção religiosa; mil laços os ligavam ao seu meio social.
tempos helenísticos, conservou muitíssimos motivos Não é por uma espécie de revolta que a humanidade
religiosos e até míticos. Na filosofia estóica é central passa da obrigação moral à liberdade religiosa. O
o conceito de uma providência universal (1tpovOta), que próprio Bergson admite que, historicamente falando,
governa e conduz o mundo ao seu objetivo. Nela o espírito místico que ele julga ser o espírito da ver-
o homem, como ser consciente e racional, precisa dadeira religião não constitui uma solução de conti-
trabalhar por amor da providência. O universo é nuidade. O misticismo nos revela, ou melhor, nos re-
uma grande sociedade de Deus e dos homens "urbs velaria se realmente o desejássemos, uma perspectiva
Dis hominibusque communis't.! "Viver com ~s Deu- maravilhosa; mas nós não o desejamos e, na maioria
ses" (OllÇ'l)V (lEOtç ) significa trabalhar com eles. O dos casos, não poderíamos desejá-lo; entraríamos em
homem não é um simples espectador- dentro de seus colapso devido ao esforço. Por conseguinte, perma-
limites, é o criador da ordem cósmica, O sábio é um necemos com uma religião mista. Na história encon-
sacerdote e ministro dos deuses. 2 Aqui também en- tramos, interpostas, transições entre duas coisas que,
contramos a concepção da "simpatia do Todo", mas na realidade , são de natureza. radicalmente diferente
compreendida e interpretada num novo sentido ético. e que, à primeira vista, dificilmente podemos julgar
Tudo isto só poderia ser atingido por um lento e merecedoras do mesmo nome. 1 Para o filósofo, para
contínuo desenvolvimento do pensamento e sentimen- o metafísico, estas duas formas de religião sempre per-
to religiosos. A transição das formas mais rudimen- manecem antagônicas. Não podem derivar da mesma
tares para as superiores e supremas não poderia ope- origem, pois são expressões de forças totalmente di-
rar-se por um salto repentino. Bergson declara que, ferentes. Uma se baseia inteiramente no instinto; foi
sem este salto, a humanidade não teria sido capaz de o instinto da vida que criou a função de criadores de
encontrar o caminho de uma religião dinâmica pura mitos. Mas a religião não decorre do instinto, nem da
-: uma. ~eligião baseada, não na pressão e na obriga- inteligência ou da razão. Necessita de um novo Ím-
çao sociais, mas na liberdade. Mas sua própria tese peto, de um gênero especial de intuição e inspiração.
metafísica da "evolução criadora" escassamente apóia
este ponto de vista. Sem os grandes espíritos criado- Para chegarmos à própria essência da religião e compreender-
mos a história da humanidade, temos de passar da religião
res, sem os profetas que se sentiram inspirados pelo estática e externa para a religião dinâmica, interna. A primeira
poder de Deus e destinados a revelar sua vontade a se destinava a afastar os perigos a que a inteligência pode expor
o homem; era infra-intelectual. .. Mais tarde, e por um esforço
religião não teria encontrado seu caminho. Mas nem que poderia muito facilmente nunca ter sido feito, o homem li-
bertou-se deste movimento sobre seu próprio eixo. Tornou a
mergulhar na corrente da evolução, empurrando-a, ao mesmo
1. Sêneca, Ad Mareiam de eonsolatione, p. 18.
2. Marco Aurélio, Ad se ipsum, Livro III, par. 4.
1. Bergson, op. cit., pp. 201 e seguintes.
166 Antropologia Filosófica 167
Ernst Cassirer

te!ll~)Q,para a f~ente. Ali estava a religião dinâmica, unida sem de Deus, mas também a linguagem do homem. Os
dúvida a ~m~ mtelectualidade mais elevada, porém diferente
dela. A pnmeira forma de religião havia sido infra-intelectual. grandes profetas de Israel, todavia, já não falavam
a segunda era supra-intelectual. 1 .. apenas às suas nações. Seu Deus era um deus de J us-
tiça e sua mensagem não se restringia a um grupo es-
Uma nítida distinção dialética desta natureza en- pecial. Os profetas prediziam um novo céu e uma
tre três poderes fundamentais - o instinto, a inte- nova terra. O que é realmente novo não é o conteúdo
ligência e a intuição mística - está, contudo, em de- desta religião profética, mas sua tendência interior,
sa~ordo com os fatos da história da religião.' A pró- seu significado ético. Um dos maiores milagres que
pria tese de Frazer, segundo a qual a humanidade todas as religiões superiores precisavam realizar era
principiou com uma idade de magia, mais tarde segui- desenvolver seu novo caráter, sua interpretação ética
da e superada por uma idade de religião é insustentá- e religiosa da vida, partindo da grosseira matéria-pri-
vel. A magia perdeu terreno por um processo muito ma das mais primitivas concepções, das superstições
l:n:~. ~e consid~rarmos a história da nossa própria mais vulgares.
civilização europeia, verificaremos que até nos está- Não há talvez melhor exemplo desta transforma-
dios mais avançados, de uma cultura intelectual alta- ção do que o desenvolvimento do conceito de tabu.
n:ente desenvo~vida e requintada, a crença na magia Existem muitos estádios da civilização humana em
na~ estava senamente abalada. A própria religião, que não encontramos quaisquer idéias definidas de
ate certo ponto, a admitia. Proibia e condenava al- poderes divinos e nenhum animismo definido - ne-
gumas práticas mágicas, mas havia uma esfera de ma- nhuma teoria da alma humana. Mas parece não haver
gia "branca" que se reputava inócua. Os pensadores nenhuma sociedade, por primitiva que seja, que não
da Renascença - Pomponazzi, Cardano, Campanella, tenha criado um sistema de tabus - e, na maioria
Bruno, Giambattista della Porta, Paracelso - expu- dos casos, um sistema de estrutura complexíssima.
seram suas próprias teorias filosóficas e científicas da Nas ilhas polinésicas, de onde nos veio o termo "tabu",
arte mágica. Um dos mais nobres e piedosos pensa- o nome representa todo o sistema de religião. 1 E en-
dores da Renascença, Giovanni Pico della Mirandola , contramos muitas sociedades primitivas em que o
estava convencido de que a magia e a religião se único pecado conhecido é a violação do tabu. 2 Nas
achavam ligadas entre si por laços indissolúveis. etapas elementares da civilização humana o termo
"Nulla est scientia", diz ele, "quae nos magis certi- abrange todo o campo da religião e da moral. Neste
ficet de divinitate Christi quam Magia et Cabala". sentido, muitos historiadores da religião atribuíram
Podemos inferir destes exemplos o que realmente sig- ao sistema de tabus o mais elevado valor. Apesar dos
nifica a evolução religiosa. Não significa a completa seus defeitos óbvios, foi declarado o germe primeiro
destruição das primeiras e fundamentais característi- e indispensável de uma vida cultural mais elevada;
cas do pensamento mítico. Se os grandes reformado- houve até quem dissesse que se tratava de um prin-
res religiosos individuais desejavam ser ouvidos e
compreendidos, precisavam falar não só a linguagem 1. Cf. Marett, "15 Taboo a Negative Magic?" The Threshold ot

1. Idem, pp. 175 e seguinte.


r Religion, p. 84.
2. Cf. F. B. Jevons, An Introduction to the History ot Religion
(Londres, Methuen, 1902), p. 70.
168 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 169

cÍpio a priori do pensamento moral e religioso. Jevons vos as crianças no dia do nascimento eram de tal for-
qualifica o tabu como uma espécie de imperativo ca- ma tabu que não podiam ser colocadas no chão. E em
tegórico, o único conhecido do homem primitivo e conseqüência do princípio da transmissibilidade da
acessível a ele. A opinião de que há algumas coisas infecção original não há limite possível à sua pro~a-
que "não devem ser feitas", diz ele, é puramente for- gação. Como já se disse, "uma só coisa tabu pode m-
mal e desprovida de conteúdo. A essência do tabu é fectar o universo inteiro". 1 Não há sombra sequer de
afirmar a priori, sem consultar a experiência, que cer- responsabilidade individual neste sistema. Se um ho-
tas coisas são perigosas. mem comete um crime, não só ele é marcado - a
família os amigos, toda a tribo passam a exibir a
Estas coisas, na realidade, não eram perigosas, e a crença no
seu perigo era irracional. Entretanto, a não existir esta crença, mesma' marca; estão estigmatizados e participam no
não teria havido moral e, conseqüentemente, não teria havido mesmo miasma. E os ritos de purificação correspon-
civilização. . . A crença era urna falácia... Mas esta falácia
era a bainha que encerrava e protegia a concepção que flores- dem a esta concepção. A ablução se consegue exclu-
ceria e produziría
gação Social. 1
um fruto inestimável - o conceito da Obri- sivamente mediante processos físicos e exte::nos. A
água corrente pode lavar a nódoa do crime. As vezes,
o pecado é transferido para um animal, um "bode ex-
Mas como poderia uma concepção desta natureza t

desenvolver-se de uma convicção que, em si mesma, piatório" ou a um pássaro que voando o lev~ embora. 2
não tinha nenhuma relação com valores éticos? Em Para todas as religiões superiores, foi extrema-
seu sentido original e literal, tabu parece significar mente difícil superar este sistema do tabuísmo primi-
apenas uma coisa marca da - que não se situa no tivo; mas depois de muitos esforços tudo foi conseg~-
mesmo nível de outras coisas usuais, profanas, ino- do. Para isto, necessitaram do mesmo processo de dIS-
fensivas. É envolta por uma atmosfera de temor e pe- criminação e individualização que tentamos descre-
rigo, amiúde descrito como sobrenatural, mas não é, ver acima. O primeiro passo indispensável era en-
de maneira alguma, de tipo moral. Se for distinto de contrar uma linha demarcatória que separasse a es-
outras coisas, tal distinção não significa discriminação fera santa da impura ou sobrenatural. Não cabe a
moral nem supõe um juizo ético. O homem que comete mínima dúvida de que todas as religiões semíticas,
um crime torna-se tabu, o mesmo acontecendo a uma em sua forma original, se baseavam num complicadís-
parturiente. A "impureza infecciosa" estende-se a to- simo sistema de tabus. Em suas investigações sobre
das as esferas da vida. Um toque do Divino é tão a religião dos semitas, W. Robertson-Smith declara
perigoso como o contacto com coisas fisicamente im- que as primeiras regras semíticas de sa~tidade e im-
puras; o sagrado e o abominável estão no mesmo ní- pureza são indistinguíveis, nas suas origens, dos ta-
vel. A "infecção da santidade" produz os mesmos re- bus selvagens. Até em religiões que se apóiam. n?s
sultados que a "poluição do impuro". Quem toca num mais puros motivos éticos, ainda se conservam mu-
cadáver torna-se impuro; e até uma criança recém-
-nascida é temida da mesma forma. Entre alguns po- 1. Sobre o material antropológico veja Frazer, The Golden Bouçh,
I, pp. 169 e seguintes e Pt. VI, The Scapegoat; e Jevons, op. cit.,
caps. VI-VIII. . ..t N ta
1. Idem, pp. 86 e seguinte. Citado por cortesia de Methuen & 2. Sobre maiores detalhes veja Robertson-Smíth, op. cu., o
Co. e dos executores testamentários de F. B. Jevons. G, pp. 427 e seguintes.
170 Ernst Cassirer
Antropologia Filosófica 171

meros traços que denunciam uma fase anterior de inspirados pelo respeitoso temor do sobrenatural, mas há uma
pensamento religioso, em que a pureza ou impureza grande diferença moral entre as precauções contra poderes
misteriosos hostis e as fundadas no respeito às prerrogativas
eram entendidas num sentido meramente físico. A de um deus amistoso. A primeira pertence à superstição má-
religião de Zoroastro, por exemplo, contém severís- gica ... que, fundando-se apenas no medo, atua meramente como
obstáculo ao progresso e impedimento à livre utilização da na-
simas prescrições contra a poluição dos elementos fí- tureza pela energia e pela indústria humanas. Mas as restrições
sicos. Sujar o elemento puro do fogo com o toque à licença individual, devidas ao respeito por um poder conhecido
e amigo, aliado do homem, por mais triviais e absurdas que
de um cadáver ou de qualquer outra coisa impura é possam parecer em seus detalhes, encerram os princípios ger-
considerado pecado mortal. É até um crime trazer minativos do progresso social e da ordem moral. 1
de volta o fogo a uma casa em que um homem mor-
reu, dentro de nove noites no inverno e um mês no Para desenvolver estes princípios era imperativo
verão. 1 Até para as religiões superiores era impos- estabelecer uma nítida distinção entre a violação sub-
sível desprezar ou suprimir todas essas regras e ritos jetiva e a objetiva de uma lei religiosa. Uma distin-
lustrais. O que poderia e tinha de ser alterado no ção desta natureza é inteiramente estranha ao sistema
progresso do pensamento religioso não eram os pró- primitivo de tabus. O que aqui importa é a ação pro-
prios tabus materiais, senão os motivos que havia por priamente dita, não o seu motivo. O perigo de se tor-
trás deles, totalmente irrelevantes no sistema original. nar tabu é físico e se encontra inteiramente fora do
Além da região das nossas coisas comuns e familiares alcance dos nossos poderes morais. O efeito é quase
há outra, cheia de poderes e perigos desconhecidos. o mesmo no caso de um ato voluntário ou involuntá-
Uma coisa pertencente a este campo fica marcada, mas rio. A infecção é inteiramente impessoal e se trans-
o que assinala é unicamente a diferenciação e não o mite de maneira meramente passiva. Falando de mo-
sentido da mesma. Pode ser tabu por sua superiori- do geral, o significado de um tabu pode ser descrito
dade ou por sua inferioridade, por sua virtude ou por como uma espécie de Noli me tangere - é o intocável,
seu vício, por sua excelência ou por sua corrupção. uma coisa, da qual, nem de perto, devemos nos apro-
No princípio, a religião não se atreve a rejeitar o tabu ximar. O modo ou intuito da aproximação não im-
propriamente dito, pois se arriscaria a perder o pró- portam. Um tabu pode ser transmitido não só pelo
prio terreno por um ataque a esta esfera sagrada, mas toque mas também pela audição ou pela vista, e as
começa introduzindo um novo elemento. "O fato de conseqüências são as mesmas se deliberadamente olho
todos os semitas terem regras de impureza como as para um objeto tabu ou se o vejo sem querer. Ser
de santidade", diz Robertson-Smith, visto por uma pessoa tabu, por um sacerdote ou um
rei, é tão perigoso como se o tivesse olhado.
de ser freqüentemente incerta a fronteira entre ambas e de
apresentarem, tanto uma como a outra, a mais assombrosa ... a ação do tabu é sempre mecânica; o contacto com o objeto
concordância no que respeita aos detalhes com tabus selvagens, tabu comunica sua infecção tão certamente quanto o contacto
não admite dúvidas razoáveis quanto à origem e às relações com a água comunica umidade, ou uma corrente elétrica produz
finais da idéia de santidade. Por outro lado, o fato de fazerem um choque. As intenções do violador do tabu em nada influem
os semitas... distinção entre o santo e o impuro assinala um sobre seus efeitos: pode tocá-lo por ignorância, ou em benefício
progresso real em relação aos selvagens. Todos os tabus são da pessoa que toca, mas se torna tabu de um modo tão certo
como se seus motivos fossem irreverentes ou sua ação hostil.
1. Sobre maiores detalhes veja Dhalla, op. cit., pp. 55, 221 e se·
guintes.
1. Robertson-Smith, op. cit., pp. 143 e seguinte.
172 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 173

Nem as disposições das pessoas sagradas o Mikado o chefe palavra esconde ameaças e perigos desconhecidos. Na
polinésío, a sacerdotisa de Artemis Hymni~, modific~ a ação
mecamca d? ~a~u; s~u toque ou seu olhar são tão fatais ao amigo
Polinésia não é só proibido pronunciar o nome de um
quanto ao mnrugo, a VIda vegetal quanto à vida humana. Pouco chefe ou o de uma pessoa falecida; mesmo outras pa-
Importa a m?r.alidade do violador do tabu, porque o castigo, como lavras ou sílabas em que esse nome aparece podem
a chuva, cal Igualmente sobre justos e pecadores. 1
não ser usadas na conversação habitual. Foi aqui que
Mas aqui se inicia esse lento processo que tenta- a religião, em seu progresso, encontrou nova tarefa,
mos designar com o nome de "mudança de significa- mas o problema que teve de enfrentar era extrema-
do" religioso. Se considerarmos o desenvolvimento mente difícil e, em certo sentido, parecia insolúvel.
do judaísmo, perceberemos como foi completa e de- A despeito de todos seus defeitos óbvios, o sistema de
cisiva esta mudança de significado. Nos livros profé- tabu era o único com restrições e obrigações sociais
ticos do Antigo Testamento encontramos uma direção que o homem descobrira; era a pedra angular de toda
inteiramente nova de pensamento e sentimentos. O a ordem social. Não havia parte alguma do sistema
ideal de pureza significa algo totalmente diverso de social que não fosse regulada e governada por tabus
todas as concepções míticas anteriores. Tornou-se im- especiais. As relações entre governantes e governa-
possível procurar a pureza ou a impureza num objeto, dos, a vida política, a sexual e a familial não possuíam
numa coisa material. As próprias ações humanas, co- nem conheciam outro laço mais sagrado. O mesmo
mo tais, já não são consideradas puras ou impuras. pode ser dito de toda a vida econômica. Até a pro-
A única pureza que tem significado e dignidade re- priedade, em suas origens, parece ter sido uma insti-
ligiosa é a pureza do coração. tuição tabu. A primeira maneira de tomar posse de
Com esta primeira discriminação somos levados uma coisa ou de uma pessoa, de ocupar um lote de
a outra, não menos importante. O sistema de tabu terra ou contratar casamento com uma mulher, era
impõe ~o homem inúmeros deveres e obrigações, mas marcá-los com um sinal tabu. Teria sido impossível
todos tem um caráter comum - são inteiramente ne- à religião ab-rogar este complexo sistema de interdi-
gativ.os e não incluem nenhum ideal positivo. É pre- ções. Sua supressão teria redundado em completa
ciso evitar certas coisas; é preciso abster-se de outras. anarquia. Apesar disto, os grandes mestres religiosos
O que aqui encontramos são inibições e proibições, e da humanidade encontraram um novo impulso, por
não mandamentos morais ou religiosos. Pois é o me- intermédio do qual, dali por diante, toda a vida do
do que domina o sistema de tabu; e o medo sabe ape- homem foi conduzida para uma nova direção. Desco-
nas como proibir, não como dirigir. Adverte contra briram em si mesmos um poder positivo, não de ini-
o perigo, mas não pode despertar no homem uma bição, mas de inspiração e aspiração. Converteram
nova energia ativa ou moral. Quanto mais se desen- a obediência passiva em sentimento religioso ativo. O
volve o sistema de tabu, tanto mais ameaça congelar sistema de tabu ameaçava transformar a vida do ho-
a vida do homem, reduzindo-a à completa passivida- mem num fardo que, afinal de contas, se tornava in-
de: não pode comer nem beber, não pode parar nem tolerável; sua existência física como moral era sufoca-
andar. A própria linguagem se torna penosa; cada da pela contínua pressão desse sistema. Neste ponto in-
tervém a religião. Todas as religiões éticas superiores
1. Jevons, op. cit., p. 91. - a dos profetas de Israel, o Zoroastrismo, o Cristia-
174 Ernst Cassirer

nismo - impuseram-se uma tarefa comum. Aliviam


o fardo insuportável do sistema tabu; mas revelam,
por outro lado, um sentido mais profundo de obriga-
ção religiosa que, em lugar de ser uma restrição ou
compulsão, é a expressão de um novo ideal positivo
de liberdade humana.
VIII
A LINGUAGEM

L INGUAGEM e mito são parentes próximos. Nos pri-


meiros estádios da cultura humana suas relações
são tão estreitas, e tão evidente sua cooperação, que
se torna quase impossível separá-Ios. São dois brotos
diferentes da mesma e única raiz. Sempre que en-
contramos o homem, vemo-lo na posse do dom da lin-
guagem sob a influência da função mito-criadora.
Torna-se, assim, uma tentação para uma antropologia
filosófica reduzir a um mesmo denominador estas duas
características especificamente humanas. As tentativas
neste sentido foram freqüentes. F. Max MüIler aven-
tou uma teoria curiosa, pela qual o mito era explicado
como simples produto secundário da linguagem. Con-
siderava o mito como uma espécie de enfermidade da
mente humana, cujas causas deviam ser buscadas na
faculdade da fala. Por sua própria natureza e essên-
cia, a linguagem é metafórica. Incapaz de descrever
diretamente as coisas, recorre a modos indiretos de
descrição, a termos ambíguos e equívocos. A esta ine-
rente ambigüidade da linguagem, segundo Max Mül-
ler, o mito deve sua origem e nela sempre encontrou
seu alimento espiritual. "A questão da mitologia",
diz Mül1er,
176 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 177

converteu-se, de fato, numa questão de psicologia e, como nossa gências surtem o efeito desejado. O homem primitivo
psique se torna objetiva para nós principalmente através da
linguagem, converteu-se numa questão da Ciência da Linguagem. transfere esta primeira experiência social elementar
Isto explicará por que ... chamei [ao mito] uma Moléstia da à totalidade da natureza. Para ele, a natureza e a so-
Linguagem e nao ao Pensamento.. ambos são inseparáveis e ... ciedade não estão apenas entreligadas pelos laços mais
uma moléstia da linguagem é, portanto; o mesmo que uma
moléstia do pensamento. .. Representar o Deus supremo como estreitos; formam um todo coerente e indistinguível.
capaz de cometer toda classe de crimes, como ser enganado pe- Nenhuma linha precisa de demarcação separa os dois
los homens, encolerizado com a esposa e violento com seu filhos,
é uma prova segura de enfermidade, de uma estranha condição campos. A própria natureza não é mais que uma
de pensamento ou, para falar mais claramente, de verdadeira grande sociedade - a sociedade da vida. Deste ponto
loucura... É um caso de patologia mitológica ...
A linguagem arcaica é um instrumento difícil de manejar, de vista, podemos compreender perfeitamente o uso
especialmente no que se refere às finalidades religiosas. l!: im- e a função específica da palavra mágica. A crença
possível à linguagem humana expressar idéias abstratas a não na magia se baseia numa profunda convicção da so-
ser por metáforas, e não será exagero afirmar que o dicionário
inteiro da religião antiga é composto de metáforas. .. Aqui está lidariedade da vida. 1 Para a mente primitiva, o po-
uma fonte constante de mal-entendidos, muitos dos quais con- der social da palavra, experimentado em casos inu-
servaram seu lugar na religião e na mitologia do mundo an-
tigo. 1 meráveis, converte-se em força natural e até sobrena-
tural. O homem primitivo sente-se rodeado por toda
Mas encarar uma atividade humana fundamen- sorte de perigos visíveis e invisíveis, sem esperar ven-
tal como simples monstruosidade, como uma espécie cê-los por meios puramente físicos. Para ele, o mun-
de moléstia mental, dificilmente será aceito como ade- do não é uma coisa morta ou muda; pode ouvir e com-
quada interpretação. Não precisamos de teorias es- preender. Assim, se forem corretamente invoc?dos,
tranhas e forçadas de tal ordem para verificar que, os poderes da natureza não poderão recusar sua ajuda.
na mente primitiva, mito e linguagem figuravam, por Nada resiste à palavra mágica, carmina vel coelo pos-
assim dizer, como irmãos gêmeos. Ambos se baseiam sunt deducere lunam.
numa experiência muito geral e primitiva da humani- Quando o homem começou a perceber ~ue es~a
dade, de natureza mais social que física. Muito antes sua confiança era vã - que a natureza era mexora-
de aprender a falar, a criança já descobriu outros vel, não por se negar a satisfazer seus pedidos, m~s
meios, mais simples, de comunicar-se com outras pes- por não lhe compreender a linguagem - o descobri-
soas. Os gritos de aflição, de dor e fome, de medo ou mento deve ter-lhe causado um choque. Neste ponto,
susto, que encontramos em todo o mundo orgânico, foi-lhe preciso enfrentar um novo problema, que assi-
principiam a assumir nova forma. Já não são simples nalou uma revolução e uma crise em sua vida inte-
reações instintivas, pois são empregadas de maneira lectual e moral. Desde então, o homem deve ter-se
mais consciente e deliberada. Quando fica sozinha, a encontrado num profundo isolamento, sujeito a sen-
criança exige, por sons mais ou menos articulados, timentos de completa solidão e absoluto desespero.
a presença da ama ou da mãe, e percebe que estas exi- Dificilmente os teria superado se não tivesse desen-
volvido uma nova força espiritual, que lhe fechava o
1. F. Max MüIler, Contributions to the Science ot Mythology (Lon- caminho da magia mas que, ao mesmo tempo, lhe
dres, Longmans, Green & Co., 1897),I, pp. 68 e seguinte, e Lectures on
the Science ot Reliçion (Nova Iorque, Charles Scribner's Sons, 1893),
pp. 118 e seguinte. 1. Veja o Capo VII, pp. 135-42.
Antropologia Filosófica 179
178 Ernst Cassirer

abria outro mais promissor. Todas as esperanças de físicos - erramos a porta para a filosofia. Mesmo no
submeter a natureza pela palavra mágica se haviam pensamento de Heráclito, a palavra, o Logos, não é
frustrado e o resultado foi que o homem começou a simplesmente um fenômeno antropológico. Não está
ver a relação entre a linguagem e a realidade sob uma confinada nos estreitos limites do mundo humano, pois
luz diferente. Eclipsou-se a função mágica da pala- possui verdade cósmica universal. Mas em lugar de
vra, substituída pela função semântica. A palavra já ser um poder mágico, é compreendida em sua função
não é dotada de poderes misteriosos nem tem uma semântica e simbólica. "Não me ouças", escreve He-
influência física ou sobrenatural imediata. Não pode ráclito , "mas ouve a Palavra e confessa que todas as
alterar a natureza das coisas, nem compelir a vontade COIsas -
. sao uma so", .
dos deuses ou demônios; no entanto, não é desprovida O primitivo pensamento grego passou, assim, da
de sentido nem destituída de poder. Não é simples- filosofia da natureza para a filosofia da linguagem,
mente um flatus vocis, mero hálito. Seu traço deci- mas encontrou novas e graves dificuldades. Talvez
sivo, porém, não está em seu caráter físico, mas no não exista problema mais desnorteante e controverso
lógico. Fisicamente, a palavra pode ser declarada im- que o "do sentido do sentido". 1 Até nos dias atuais,
potente, mas, logicamente, é alçada a um nível mais lingüistas, psicólogos e filósofos sustentam, sobre ~ste
alto, ao superior. O Lagos transforma-se no princípio assunto, pontos de vista muito divergentes. A filo-
do universo e no primeiro princípio do conhecimen- sofia antiga não poderia enfrentar diretamente este
to humano. intricado problema em todos os seus aspectos, mas
Essa transição se verificou na primitiva filosofia apenas oferecer uma tentativa de solução. Esta se
grega. Heráclito ainda pertence à classe de pensa- baseava num princípio que o primitivo pensamento
dores gregos que, na Metafísica de Aristóteles, são grego geralmente aceitou e que parecia firme~~nte
citados como os "antigos fisiologistas" (OL apxawr. estabelecido. As diversas escolas - tanto dos fisiolo-
qlUOLOÀOyOL ). Todo seu interesse se concentra no mun- gistas como dos diaIéticos - partiam da presunção de
do dos fenômenos. Não admite que, acima do mun- que, sem uma identidade entre o objeto a ser ~onhe-
do fenomenológico, o mundo do "vir-a-ser", exista cido e a realidade conhecida, o fato do conheCImento
uma esfera mais elevada, uma ordem ideal ou eterna seria inexplicável. Embora diferissem na aplicação
de puro "ser". Entretanto, não se satisfaz com o deste princípio, o idealismo e o realismo concordavam
simples fato da mudança; procura o princípio da mu- em reconhecê-lo verdadeiro. Parmênides declarou que
dança. De acordo com Heráclito, este princípio não não podemos separar o ser do pensamento, por serem
se encontra numa coisa material; a chave para a in- a mesma coisa. Os filósofos da natureza compreende-
terpretação correta da ordem cósmica não está no ram e interpretaram esta identidade num sentido es-
mundo material, mas no humano. Neste mundo, a tritamente material. Se analisarmos a natureza do
faculdade da palavra ocupa lugar central. Por con- homem encontraremos a mesma combinação de ele-
seguinte, precisamos compreender-lhe o significado mentos que ocorre em toda a parte no mundo físico.
a fim de compreender o "sentido" do universo. Se
assim não conseguirmos abordar o problema - isto 1. Veja C. K. Ogden e 1. A. Richards, The Meaning ot Meaning
é, por intermédio da linguagem e não pelos fenômenos (1923; 5.' edição, Nova Iorque, 1938).
180 Ernst Cassirér Antropologia Filosófica 181

Sendo o microcosmo uma réplica exata do macrocos- bora já não se apresente nas mesmas formas ingênuas
mo, possibilita que este se torne conhecido. "Pois é com que aparece no Crátilo.
com terra", diz Empédocles, "que vemos a Terra, e a A objeção óbvia a esta tese é o fato de que, ao
Agua com água; através do ar vemos o Ar luminoso, analisarmos as palavras da linguagem comum, na maio-
pelo fogo o Fogo destruidor. Através do amor vemos ria dos casos, ficamos sem saber como descobrir a
.

Amor, e Ódio pelo nefando ódio". 1 pretensa similaridade entre sons e objetos. Isto, po-
Aceitando-se esta teoria geral, qual é o "sentido rém, poderia ser eliminado assinalando-se que a lin-
do sentido"? Primeiro e principalmente, o significa- guagem humana, desde o princípio, esteve sujeita à
do precisa ser explicado em termos de ser; pois o ser mudança e à decadência. Portanto, não podemos con-
ou substância é a categoria mais universal, que vin- tentar-nos com seu estado atual. Precisamos acompa-
cula entre si verdade e realidade. Uma palavra não nhar nossos termos até suas origens para detectar o
poderia "significar" uma coisa se não houvesse, ao elo que os une a seus objetos. Das palavras derivad~s
menos, uma identidade parcial entre ambas; a cone- precisamos voltar às primitivas; precisamos descobnr
xão entre o símbolo e seu objeto precisa ser natural o étimo, a forma verdadeira e original, de cada termo.
e não apenas convencional. Sem uma conexão natu- De acordo com este princípio, a etimologia se tornou
ral desta natureza, a palavra da linguagem humana não só o centro da lingüística mas também uma das pe-
não poderia realizar sua tarefa; tornar-se-ia ininteli- dras angulares da filosofia da linguagem. E as primei-
gíveL Admitida esta pressuposição, que se origina ras etimologias utilizadas pelos gramáticos e filósofos
mais de uma teoria geral do conhecimento que de gregos não padeciam de escrúpulos teóri~os,o.u hi~tó~-
uma teoria da linguagem, defrontamos imediatamen- cosoNenhuma etimologi~, b~seada em prmc~plOsclentI~
te com a doutrina onomatopéica. Só esta doutrina ficos, surgiu antes da prrmeira metade do seculo XIX:
parece capaz de lançar uma ponte sobre o abismo exis- Até então, tudo era possível e prontamente se admi-
tente entre os nomes e as coisas. Por outro lado, a tiram as mais fantásticas e estapafúrdias explicações.
nossa ponte ameaça cair à primeira tentativa de uti- Ao lado das etimologias positivas havia as famosas
lizá-Ia. Entendia Platão que bastava desenvolver esta etimologias negativas, do tipo lucus a non lucendo.
tese onomatopéica em todas as suas conseqüências pa- Enquanto perdurou este esquema, a teoria de uma
ra refutá-Ia. No diálogo platônico Crátilo, Sócrates relação natural entre os nomes e as coisas pareceu fi-
aceita a tese à sua maneira irônica. Mas sua aprovação losoficamente justificável e defensável.
tenciona apenas destruí-Ia pela própria absurdidade Mas outras considerações, de ordem geral, desde
inerente. A descrição, feita por Platão, da teoria de o princípio, militavam contra esta teoria. Em certo
que toda linguagem se origina da imitação dos sons sentido, os sofistas gregos eram discípulos de Herá-
acaba em grotesca caricatura. Não obstante, a tese dito. Em seu diálogo Theetetos, Platâo chegou a dizer
onomatopéica prevaleceu por muitos séculos. Nem que a teoria sofística do conhecimento não podia pre-
desapareceu por completo da literatura recente, em- tender originalidade, não passando de uma decorrên-

l.
Philosophy
Empédocles, fragmento 335. Veja John Bumet, Early Greek
(Londres e Edimburgo, A. & C. Black, 1892),Livro II, p. 232. r 1. Cf. A. F. Pott, Etymologische Forschungen aus dem Gebiete der
indogermanischen Sprachen (IB33 e seguintes).
182
Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 183

cia e corolário da doutrina de Heráclito do "fluxo de pressar a natureza das coisas, nem possuem correla-
~odas.as, coisas". Entretanto, havia uma diferença I tos objetivos. Sua verdadeira função não é descrever
mexhrpavel entre Heráclito e os sofistas. Para ele a pa- coisas, mas despertar emoções humanas; não é trans-
lavra, o Logos, era o princípio metafísico universal, mitir simples idéias ou pensamentos, mas levar os
possuía verdade geral, validez objetiva. Mas os sofis- homens a certas ações.
tas já não admitiam a "palavra divina" que, segundo Até agora chegamos a uma tríplice concepção da
Heráclito, era origem e primeiro princípio de todas as função e do valor da linguagem: a mitológica, a meta-
coisas, de ordem cósmica e moral. A antropologia, e física e a pragmática. Mas todas estas explicações pa-
não a metafísica, desempenha o papel principal na teo- recem, em certo sentido, incorretas, pois nenhuma se
ria da linguagem. O homem tornou-se o centro do uni- apercebe de um dos traços mais conspícuos da lin-
verso. Consoante a máxima de Protágoras, "o homem guagem. As expressões humanas mais elementares
é a medida de todas as coisas, das que são, enquanto não se referem a coisas físicas nem são apenas sinais
o são - e das que não são, enquanto não o são". Por arbitrários. A alternativa rplJOELov ou 8EaEL ov não se
conseguinte, buscar uma explicação da linguagem no aplica a elas. São "naturais", e não "artificiais", mas
mundo das coisas físicas é baldado e inútil. Os sofis- não guardam relação alguma com a natureza dos ob-
tas haviam encontrado um modo novo e muito mais jetos externos. Não dependem da simples convenção,
simples de encarar a linguagem humana. Foram os do costume ou do hábito, por serem muito mais pro-
primeiros a tratar os problemas lingüísticos e grama- fundamente enraizadas; são expressões involuntárias
ticais de maneira sistemática. Entretanto não se de sentimentos humanos, interjeições e exclamações.
ocupavam destes problemas num sentido ~xclusiva- Não foi por acaso que esta teoria interjecional foi in-
mente teórico. Uma teoria da linguagem tem outras troduzida por um cientista da natureza, o maior en-
tarefas, mais urgentes, a realizar - ensinar como de- tre os pensadores gregos. Demócrito foi o primeiro a
vemos falar e agir em nosso atual mundo social e po- propor a tese de que a linguagem humana se origina
lítico. Na vida ateniense do século quinto, a lingua- de certos sons, de caráter puramente emocional. Mais
gem se tornara instrumento para propósitos práticos tarde, Epicuro e Lucrécio, apoiados na autoridade de
definidos e concretos, sendo a mais poderosa das ar- Demócrito, esposaram a mesma opinião, que teve in-
mas nas grandes lutas políticas. Sem ela ninguém po- fluência permanente sobre a teoria da linguagem.
deria esperar desempenhar um papel importante. Era Até o século XVIII ainda aparece, quase na mesma
de vital importância seu emprego correto, aprimoran- forma, em pensadores como Vico e Rousseau. Do pon-
do-a e aguçando-a continuamente. Com este fim, os to de vista científico é fácil compreender as grandes
sofistas criaram um novo ramo do conhecimento , a vantagens da tese interjecional, na qual, ao que pa-
retórica, seu principal interesse, e não a gramática rece, já não precisamos depender apenas da especula-
nem a etimologia. Em sua definição da sabedoria ção; descobrimos certos fatos verificáveis, que não se
(sophia), a retórica ocupa uma posição central. To- restringem à esfera humana. A linguagem humana
das as disputas em torno da "verdade" ou "corre-
- " ( op801:"l)o) dos termos e nomes tornaram-se fú-
çao
teis e supérfluas. Os nomes não se destinam a ex-
( pode ser reduzida a um instinto fundamental, implan-
tado pela natureza em todas as criaturas vivas. Gri-
tos violentos - de medo, raiva, dor ou alegria - não
184 E rnst Cassirer Antropologia Filosófica 185

são propriedade específica do homem; encontramo-los guagem perdiam-se em detalhes e não tinham uma
em toda parte no mundo animal. Nada era mais plau- visão clara de conjunto. Partiram da pressuposição
sível do que reduzir o fato social da linguagem a esta de que um caminho direto conduz da interjeição à
causa biológica geral. Se aceitarmos a tese de Demó- fala. Mas isto é uma petição de princípio, não uma
crito e de seus discípulos e seguidores, a semântica solução. Não era o simples fato, senão a estrutura da
deixará de ser uma província separada e se converte- linguagem humana que exigia uma explicação. Uma
rá num ramo da biologia e da fisiologia. análise desta estrutura revela radical diferença entre
No entanto, a teoria interjecional não poderia a linguagem emocional e a proposicional, tipos que
atingir a maturidade enquanto a própria biologia não não estão no mesmo nível. Ainda que fosse possível
tivesse encontrado nova base científica. Não bastava Iigá-los geneticamente, a passagem de um tipo para
ligar a fala humana a certos fatos biológicos. Tal li- seu oposto permaneceria sempre, logicamente, uma
gação teria de fundamentar-se num princípio univer- metabasis eis allo genos, uma transição de um gêne-
sal, o que foi proporcionado pela teoria da evolução. ro para outro. Pelo que me é dado observar, nenhu-
Quando surgiu, o livro de Darwin foi saudado com o ma teoria biológica alcançou jamais obliterar esta dis-
maior entusiasmo não só pelos cientistas e filósofos tinção lógica e estrutural. Não possuímos nenhuma
mas também por lingüistas. August Schleicher, cujos prova psicológica do fato de algum animal ter cruza-
primeiros escritos o apresentam como seguidor e do a fronteira que separa a linguagem proposicional
discípulo de Hegel, converteu-se às idéias de Darwin. 1 da linguagem emocional. A chamada "linguagem
O próprio Darwin 'tratara deste assunto rigorosamen- animal" permanece sempre inteiramente subjetiva;
te pelo prisma de um naturalista. Não obstante , seu expressa vários estados de sentimentos mas não desig-
método geral era facilmente aplicável aos fenômenos na nem descreve objetos. 1 Por outro lado, não há
lingüísticos e, até neste campo, parecia abrir um ca- prova histórica de que o homem, mesmo nos estádios
minho ainda inexplorado. Em The Expression of the inferiores de sua cultura, se tenha visto alguma vez
Emotions in Man and Animals, Darwin mostrara que reduzido a uma linguagem exclusivamente emocional
sons ou atos expressivos são ditados por certas neces- ou à linguagem mímica. Se quisermos seguir um
sidades biológicas e usados de acordo com regras bio- método' estritamente empírico, precisamos excluir
lógicas definidas. Visto deste ângulo, o velho que- toda e qualquer presunção desta natureza que, não
bra-cabeça da origem da linguagem poderia ser tra- sendo totalmente improvável, é pelo menos dúbia e
tado de maneira rigorosamente empírica e científica. hipotética.
A linguagem humana deixava de ser "um estado den- Na realidade, um exame mais acurado destas teo-
tro do estado" e se tornava, assim, um dom natural. rias sempre nos leva a um ponto em que se torna dis-
geral. cutível o próprio princípio em que elas se apóiam.
Subsistia, contudo, uma dificuldade fundamental. Após dar alguns passos com seus argumentos, os de-
Os criadores das teorias biológicas da origem da lin- fensores de tais teorias são obrigados a admitir e a

1. Veja August Schleicher, Die Darwin'sche Theorie unâ die 1. Veja os pontos de vista de W. Koehler e G. Révész citados no
(Weimar, 1873).
Sprachwissenschajt Capo III, p. 56-7.
186 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 187

acentuar a mesma diferença que, à primeira vista, cia metafórica" que encerra, em poucas palavras, to-
pareciam negar ou, pelo menos, reduzir à expressão do nosso problema, e significa que emissões de sons,
mais simples. Para ilustrar este fato escolherei dois que até então haviam sido simples gritos, descargas
exemplos concretos, o primeiro tirado da lingüística, involuntárias de emoções fortes, estavam realizando
o segundo da literatura psicológica e filosófica. Otto uma tarefa inteiramente nova. Estavam sendo usa-
J espersen foi talvez o último lingüista moderno que das como símbolos contendo um significado definido.
conservou profundo interesse pelo velho problema da O próprio Jespersen menciona uma observação de
origem da linguagem. Não negava que todas as so- Benfey, segundo a qual entre a interjeição e a palavra
luções anteriores do problema haviam sido muito ina- há um abismo suficientemente amplo para permitir-
dequadas; na realidade, estava convencido de haver -nos dizer que a Interjeição é a negação da linguagem,
descoberto um novo método mais promissor. "O mé- pois só é empregada quando alguém não pode ou não
todo que recomendo", afirma Jespersen, quer falar. Segundo Jespersen, a linguagem surgiu
e que sou o primeiro a empregar coerentemente é acompanhar quando a "comunicabilidade prevaleceu sobre a ex-
nossas linguagens modernas até o ponto em que a história e clamação". Este passo, entretanto, não é explicado
nossos materiais nos permitirem... Se por este processo che-
garmos finalmente a sons emitidos de tal natureza que já não por si só, mas pressuposto por essa teoria.
possam ser chamados uma linguagem verdadeira, mas algo ante- A mesma crítica se aplica à tese desenvolvida por
rior à linguagem - neste caso, o problema terá sido resolvido;
pois a transformação é algo que podemos compreender, ao Grace de Laguna em seu livro Speech. Its Function
passo que uma criação vinda do nada jamais poderá ser plena- and Development onde encontramos uma exposição
mente compreendida pelo entendimento humano.
muito mais detalhada e elaborada do problema. São
De acordo com esta teoria, uma transformação eliminados os conceitos um tanto fantásticos que, às
assim se verificou quando as emissões vocais huma- vezes, deparamos no livro de Jespersen. A transição
nas, que a princípio não eram mais do que gritos emo- do grito para a fala é descrita como um processo gra-
cionais ou talvez frases musicais, foram usadas como dual de objetificação. As qualidades afetivas primiti-
nomes. O que originariamente nada mais era que bal- vas, ligadas à situação como um todo, diversificam-se
búrdia de sons inexpressivos tornou-se, deste modo e e, ao mesmo tempo, se distinguem dos traços perce-
subitamente, um instrumento de pensamento. Por bidos da situação. " ... objetos emergem, mais conhe-
exemplo, uma combinação de sons, entoados com cer- cidos do que sentidos. .. Ao mesmo tempo, esta con-
ta melodia, e empregados num canto de triunfo con- dicionalidade acrescida assume forma sistemática ...
tra o inimigo derrotado e morto, poderia ser mudada Finalmente,. .. a ordem objetiva da realidade aparece
em nome próprio para este peculiar acontecimento ou e o mundo se torna realmente conhecido." 1 Esta ob-
até para o homem que matara o inimigo. E o desen- jetificação e sistematização, com efeito, é a tarefa prin-
volvimento poderia agora prosseguir por uma trans- cipal e mais importante da linguagem humana. Mas
ferência metafórica da expressão para situações simi- não vejo como uma teoria meramente interjecional
lares. 1 Entretanto, é precisamente esta "transferên-
Naiure, Development and Origin (Londres e Nova Iorque, 1922), pp.
418, 437 e seguintes.
1. Esta teoria foi proposta, pela primeira vez, por Jespersen em
1. Grace de Laguna, Speech. Its Function atui Development (New
Progress in Language (Londres,1894). Veja também seu Language, Its Haven, Yale University Press, 1927), pp. 260 e seguinte.
188 Ernst ClUMrer Antropologia Filosófica 189

pode explicar este passo decisivo. Na explicação do doxal, todavia, encontrar esta mesma tendência ainda
Professor de Laguna o hiato entre as interjeições e os prevalecendo no pensamento filosófico: por muitos
nomes não foi transposto; pelo contrário, ainda existe séculos, a questão sistemática foi eclipsada pela gené-
com maior evidência. É de notar que os autores que, tica. Pensava-se como conclusão evidente que, em se
de um modo geral, se mostraram inclinados a acredi- resolvendo a questão genética, todos os outros proble-
tar que a linguagem se tenha desenvolvido de um es- mas logo teriam solução. Entretanto, do ponto de vis-
tado de meras interjeições, foram levados à conclusão ta epistemológico geral, a suposição era gratuita. A
de que, afinal de contas, a diferença entre as interjei- teoria do conhecimento nos ensinou que precisamos
ções e os nomes é muito maior e mais patente que sempre traçar uma correta linha divisória entre os
sua suposta identidade. Gardiner, por exemplo, co- problemas genéticos e os sistemáticos. Confundi-Ios,
meça dizendo que, entre a linguagem humana e a ani- traz enganos e perigos. Como é possível que esta má-
mal, existe uma "homogeneidade essencial". Mas, ao xima metodológica, que em outros ramos do conheci-
desenvolver sua teoria, acaba por admitir que entre mento parecia firmemente estabelecida, fosse esqueci-
a expressão animal e a fala humana há uma diferen- da quando se tratou de problemas lingüísticos? Seria,
ça tão vital que chega quase a eclipsar a homogenei- naturalmente, do maior interesse e da máxima impor-
dade essencial. 1 A aparente similaridade , com efeito, tância possuirmos as provas históricas completas re-
,
e apenas uma conexão material que, longe de excluir lativas à linguagem -- para podermos responder à
a heterogeneidade funcional ou formal, a acentua. pergunta sobre se todas as línguas do mundo derivam
de um tronco comum ou de raizes diferentes e inde-
pendentes, e acompanhar, passo a passo, o desenvol-
2
vimento dos idiomas individuais e tipos lingüísticos.
Tudo isso, no entanto, ainda seria insuficiente para
À questão da origem da linguagem exerceu, em
resolver os problemas fundamentais de uma filosofia
todos os tempos, estranha fascinação sobre o espírito
da linguagem. Em filosofia não podemos nos conten-
humano. Aos primeiros lampejos de seu intelecto, o
tar com o mero fluir das coisas nem com a cronolo-
homem principiou a se empolgar com este assunto.
gia dos acontecimentos; precisamos, em certo sentido,
Em muitos racontos míticos temos notícia da maneira
aceitar sempre a definição platônica, segundo a qual
pela qual o homem aprendeu a falar do próprio Deus
o conhecimento filosófico é um conhecimento do "ser"
.ou com a ajuda de um mestre divino. Este interesse
e não do simples "vir-a-ser". A linguagem, por cer-
pela origem da linguagem será facilmente compreen-
to, não tem existência fora e além do tempo; não per-
sível se aceitarmos as primeiras premissas do pensa-
tence ao reino das idéias eternas. A mudança - a
mento mítico. O mito não conhece outra forma de mudança fonética, analógica, semântica - é elemen-
explicação senão retroceder ao passado remoto e de-
to essencial da linguagem. Não obstante, o estudo de
rivar o estado atual do mundo físico e humano desse
todos estes fenômenos não basta para que possamos
estádio primevo das coisas. É surpreendente e para- compreender a função geral da linguagem. Depende-
mos de dados históricos para analisar cada forma sim-
1. Alan H. Gardiner, The Theory 01 Speech and Language (Ox-
ford, 1932), pp. 118 e seguinte.
bólica. A questão de se saber o que "são" o mito, a
190 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 191

religião, a arte, a linguagem, não pode ser respondida campo da psicologia. Eram estas as duas pedras an-
de maneira puramente abstrata, por uma definição ló- gulares dos estudos lingüísticos: "Paul e a maioria
gica. Por outro lado, quando estudamos a religião a dos seus contemporâneos", diz Leonard Bloomfield,
arte e a linguagem, esbarramos sempre com proble- tratam apenas das línguas indo-européias e, entre outras causas,
mas estruturais gerais, que pertencem a um tipo di- ao lado de sua negligência pelos problemas descritivos, recusa-
vam trabalhar cérn línguas cuja história fosse desconhecida.
ferente de conhecimento; precisam ser tratados sepa- Esta limitação os privou do conhecimento de tipos estrangeiros
radamente; não podem ser considerados nem resolvi- de estrutura gramatical, que lhes teria aberto os olhos para o
dos por meio de investigações puramente históricas. fato de que até os traços fundamentais da gramática indo-
-européia ... não são, de maneira alguma, universais na lingua-
No século XIX era ainda opinião corrente e ge- gem humana... Ao lado da grande corrente de pesquisa his-
ralmente aceita que a história é a única chave para tórica fluiu, entretanto, outra menor, porém cada vez mais
crescente, de estudos lingüísticos gerais... Alguns estudiosos
um estudo científico da linguagem. Todas as grandes viram melhor e mais claramente a relação natural entre os
consecuções da lingüística foram logradas por estudio- estudos descritivos e os históricos. .. A fusão destas duas cor-
rentes de estudos, a histórico-comparativa e a filosófico-descri-
sos cuj~ interE:s~~histórico prevalecia a tal ponto que tiva, esclareceu alguns princípios não aparentes aos grandes
quase impossibilitava qualquer outra tendência do indo-europeístas do século XIX... Todo estudo histórico da
linguagem se baseia na comparação entre duas ou mais séries
pensamento. Jakob Grimm estabeleceu as primeiras de dados descritivos; e pode ser tão exato e completo quanto
bases de uma gramática comparativa das línguas ger- estes dados o permitirem. Para descrever uma linguagem não
precisamos de nenhum conhecimento histórico; na verdade, o
mânicas. A gramática comparativa das línguas indo- observador que permitir que este conhecimento influa em sua
-européias foi inaugurada por Bopp e Pott e aperfei- descríção falseará forçosamente seus dados. Nossas descrições
precisam ser isentas de preconceitos para que possam oferecer
çoada por A. Schleicher, Karl Brugmann e B. Del- uma sólida base de trabalho comparativo. ~
brück. O primeiro a levantar a questão dos princí-
pios da história lingüística foi Hermann Paul. Tinha Este princípio metodológico encontrara sua pri-
plena consciência do fato de que a pesquisa histórica meira e, em certo sentido, sua expressão clássica, na
sozinha não podia resolver todos os problemas da lin- obra de um grande lingüista e filósofo: Wilhelm von
guagem humana, insistindo que o conhecimento his- Humboldt deu o primeiro passo para classificar as lín-
tórico necessita sempre de um complemento sistemá- guas do mundo e reduzi-Ias a certos tipos fundamen-
tico. A cada ramo do conhecimento histórico, decla- tais. Com este objetivo não poderia empregar métodos
rou, corresponde uma ciência que trata das condições puramente históricos. As línguas que estudou não
gerais em que evolvem os objetos históricos e a pes- correspondiam unicamente aos tipos indo-europeus.
quisa dos fatores que permanecem invariáveis em to- . Seu interesse era realmente amplo por incluir todo o
das as mudanças dos fenômenos' humanos. 1 O século campo dos fenômenos lingüísticos. Apresentou a pri-
XIX não foi apenas um século histórico, mas também meira descrição analítica das línguas aborígines ame-
psicológico. Era, pois, perfeitamente natural, pare- ricanas, valendo-se da riqueza de material que seu ir-
cendo até evidente por si mesmo, supor que os prin- mão, Alexander von Humboldt, trouxera de suas via-
cípios da história lingüística deveriam ser buscados no gens exploratórias ao continente americano. No se-

1. Herma~ Paul, Prinzipien der Sprachqeschichte (HaIle, 1880), 1. Bloornfield, Lançuaçe (Nova Iorque, Holt & Co., 1933), pp.
capo r. TradUZIdopara o inglês por H. A. Strong (Londres, 1889). 17 e seguinte.
192 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 193

gundo volume da grande obra sobre as variedades da trabalho sempre repetido do espírito humano para
linguagem humana, 1 W. von Humboldt lançou a pri- utilizar sons articulados na expressão do pensamento. 1
meira gramática comparativa das línguas austroné- A obra de Humboldt foi mais do que um notável
sias, as indonésias e as melanésias. Entretanto, para progresso do pensamento lingüística; assinalou tam-
fazer esta gramática não dispunha de nenhum dado bém uma nova época na história da filosofia da lin-
histórico, pois a história dessas línguas era completa- guagem. Não era um acadêmico especializado em de-
mente desconhecida. Humboldt precisou abordar o terminados fenômenos lingüísticas nem um metafísico
problema de um ângulo inteiramente novo e prepa- como Schelling ou Hegel. Seguia o método "crítico"
rar seu próprio caminho. de Kant e não se entregava a especulações sobre a
Seus métodos, porém, permaneceram rigorosa- essência ou a origem da linguagem. Este último pro-
mente empíricos; baseavam-se em observações e não blema nem sequer foi mencionado em sua obra: o
em especulações. Mas não se contentou com a descri- que ocupa o primeiro plano são os problemas estru-
ção de fatos particulares e, imediatamente, sacou de turais da linguagem. Hoje se admite geralmente que
seus fatos inferências gerais de grande alcance. É tais problemas não podem ser resolvidos por métodos
impossível, afirmava, obter-se uma visão verdadeira meramente históricos. Eruditos de diferentes escolas,
do caráter e da função da linguagem humana enquan- que trabalham em campos diferentes, são unânimes
to nela pensarmos como simples coleção de "pala- em acentuar o fato de que a lingüística descritiva ja-
vras". A verdadeira diferença entre as línguas não é mais se tornará supérflua a favor da lingüística histó-
uma diferença de sons ou sinais, mas uma diferença rica pois esta última precisará basear-se sempre na
de "perspectivas universais" (Weltansichten). Uma descrição das etapas do desenvolvimento da língua
que nos são diretamente acessíveis. 2 Do ponto de
língua não é simplesmente um agregado mecânico de
vista da história geral das idéias é um fato interes-
termos. Dividi-Ia em palavras ou termos é o mesmo
santíssimo e notável que a lingüística, neste aspecto,
que desorganizá-Ia e desintegrá-Ia. Tal concepção não
tenha passado pela mesma mudança que encontramos
só é prejudicial como desastrosa para qualquer estudo
em outros ramos do conhecimento. O passado positi-
de fenômenos lingüísticos. As palavras e regras que,
vismo foi· suplantado por um novo princípio, que po-
de acordo com nossas idéias correntes, constituem
demos denominar estruturalismo. A física clássica es-
uma língua, só existem realmente, asseverava Hum-
tava convencida de que, a fim de descobrir as leis
boldt, no ato da linguagem conexa. Tratá-Ias como
gerais do movimento, precisamos sempre começar pe-
entidades separadas é "nada mais do que um produ-
10 estudo dos movimentos d"e pontos ma teriais"
eriais . A
to morto de nossa achavascada análise científica". A
Mécanique analytique de Lagrange baseava-se nes:e
linguagem precisa ser considerada mais como uma
princípio. Mais tarde, as leis do campo eletromagne-
energeia e não como um ergon. Não é uma coisa já
pronta e acabada, mas um processo contínuo - o
1. Hurnboldt, op. eit., pp. 46 e seguinte. Um relato mais circuns-
tanciado da teoria de Humboldt encontra-se na minha Philosoptue der
symbolischen Formen, l, pp_ 9B e seguintes.
1. Berlim (1836-39). Veja Gesammelte Sehrilten de Humboldt 2. Veja, por exemplo, Jespersen, The Philosophy 01 Grammar
(Academia de Berlim), Vol. VII, pt. 1.
(Nova Iorque, Holt & CO., 1924),pp. 30 e seguinte.
194
Ernst Cassirer
Antropologia Filosófica 195
tico, descobertas por Faraday e Maxwell, tenderam
para a conclusão oposta; tornou-se claro que o campo garam a dizer que a combinação dos pontos de
~le~r~ma~nético n~o poderia ser dissociado em pontos vista descritivo e histórico, que caracterizou a lin-
mdIVIduaIs. O electron já não era considerado como güística durante todo o século XIX, representa,
e-?tidade independente, com existência própria; defi- de um ponto de vista metodológico, um engano.
ma-se como um ponto-limite no campo tomado como Ferdinand de Saussure declarou, em suas conferên-
um todo. Surgiu assim um novo tipo de "física de cias, que toda a idéia de uma "gramática históri-
campo", que, em muitos aspectos, divergia da antiga ca" teria de ser posta de lado, por ser, como sus-
concepção de mecânica clássica. Em biologia encon- tentava ele, um conceito híbrido. Contém dois ele-
tramos um desenvolvimento análogo. As novas teo- mentos díspares, que não podem ser reduzidos a um
rias holísticas, que passaram a prevalecer desde o iní- denominador comum e fundidos num todo orgânico.
cio do século XX, voltaram à velha definicão aristo- Segundo Saussure, o estudo da linguagem humana
télica do organismo; insistiram em que, no mundo or- não é·tema de uma ciência, mas de duas. Num estu-
gânico, "o todo é anterior à parte". Estas teorias não do desta natureza, temos sempre de distinguir dois
negam os fatos da evolução, mas já não podem inter- eixos diferentes, "o da simultaneidade" e "o da su-
pretá-los no mesmo sentido em que o fizeram Darwin cessão". Por sua natureza e essência, a gramática
e ~s darwinistas ortodoxos. 1 Quanto à psicologia, se- pertence ao primeiro tipo. Saussure traça uma li-
guru, com poucas exceções, o método de Hume, du- nha nítida entre la langue e la parale. A linguagem
rante todo o século XIX. O único método de explicar (la langue) é universal, ao passo que o processo da
um fenômeno psíquico era reduzi-Io aos seus primei-
fala (la parale), como processo temporal, é individual.
ros elementos. Todos os fatos complexos eram consi-
Cada indivíduo tem sua própria maneira de falar. Mas
derados como um acúmulo, um agregado de simples
numa análise científica da linguagem não nos interes-
dados sensíveis. A moderna psicologia da Gestalt cri-
sam estas diferenças individuais; estudamos um fato
ticou e destruiu esta concepção e, assim, preparou o
terreno para um novo tipo de psicologia estrutural. social, que segue regras gerais, totalmente indepen-
Se a lingüística adota hoje o mesmo método e se dentes do indivíduo que fala. Sem elas, a linguagem
concentra cada vez mais nos problemas estruturais não realizaria sua tarefa principal, nem poderia ser
não quer isto dizer, naturalmente, que os pontos de empregada como meio de comunicação entre todos os
vista anteriores tenham perdido algo em sua impor- membros da comunidade que fala. A lingüística "sín-
tância e interesse. No entanto, em vez de mover-se crônica" trata das relações estruturais constantes; a
em linha reta e de se ocupar exclusivamente da or- "diacrônica" trata dos fenômenos que variam e se de-
deI? cronológica dos fenômenos da linguagem, a pes- senvolvem com o tempo. 1 A unidade estrutural funda-
q~sa lingüística está descrevendo uma elipse, com mental da linguagem pode ser estudada e posta à prova
dOISpontos focais diferentes. Alguns estudiosos che- de duas maneiras: surge tanto do lado material quan-

1. Veja J. B. S. Haldane, The Causes ot Evolution (Nova Iorque 1. Veja as. conferências de Ferdinand de Saussure, publicadas pos-
e Londres, 1932). . tumamente sob o título Cours de iinçuistique générale (1915; 2.' edição,
Paris, 1922). .
196 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 197

to do formal, manifestando-se não só no sistema das romântico amor ao passado Jakob Grimm recebeu sua
formas gramaticais mas também em. seu sistema foné- primeira e mais profunda inspiração. O mesmo espí-
tico. O caráter de uma língua depende de ambos os fa- rito romântico levou Friedrich Schlegel ao seu desco-
tores, mas os problemas estruturais da fonologia foram brimento da língua e da sabedoria da índia. 1 Na se-
descobertos muito depois dos problemas da sintaxe ou gunda metade do século XIX, entretanto, o interesse
da morfologia. Que existe uma ordem e uma coerência pelos estudos lingüísticos era ditado por outros impul-
nas formas de linguagem é óbvio e indubitável. A sos intelectuais, e principiou a predominar uma inter-
classificação destas formas e a sua redução a regras pretação materialista. A grande ambição dos chama-
definidas tornaram-se uma das primeiras tarefas da dos "neogramáticos" era provar que os métodos da
gramática científica; numa fase muito anterior, os mé- lingüística se situavam no mesmo nível dos métodos
todos para este estudo foram levados a alto grau de das ciênciais naturais. Se a lingüística pretendia ser
perfeição. Os lingüistas modernos ainda aludem à gra- considerada como ciência exata, não poderia se conten-
mática sânscrita de Panini, que corresponde à época tar com vagas regras empíricas que descreviam ocor-
entre 350 e 250 a. C., como a um dos maiores monu- rências históricas particulares. Teria de descobrir leis
mentos da inteligência humana, e insistem em que que, por sua forma lógica, fossem comparáveis às le~s
nenhum outro idioma, até hoje, foi descrito com tama- gerais da natureza. Os fenômenos da mudança fone-
nha perfeição. Os gramáticos gregos levaram a cabo tica pareciam provar a existência de tais leis. Os neo-
uma análise cuidadosa das partes da linguagem que gramáticos negavam a existência de uma mudança
encontraram em sua língua, e se interessaram por to- fonética esporádica. De acordo com eles, toda mudan-
da sorte de assuntos sintáticos e estilísticos. O aspecto ça fonética obedece a regras invioláveis. Donde se
material do problema, entretanto, era desconhecido e conclui que a tarefa da lingüística consiste em rastrear
sua importância só foi reconhecida no princípio do sé- todos os fenômenos da linguagem humana até chegar
culo XIX, quando encontramos as primeiras tentati- a este estrato fundamental: as leis fonéticas que são
vas para estudar os fenômenos das mudanças fonéti- necessárias e não admitem exceções. 2
cas, de maneira científica. A lingüística histórica mo- O estruturalismo moderno, tal como foi desenvol-
derna começou com uma investigação das correspon- vido nas obras de Trubetzkoy e nos Travaux du Cer-
dências fonéticas uniformes. Em 1818, R. K. Rask ele Linguistique de Prague, enfocou o problema de
mostrou que as palavras das línguas germânicas apre- um ângulo inteiramente diferente. Não renunciou à
sentam uma relação formal regular, em questão de esperança de encontrar uma " necessiid a d e " nos f"eno-
fonética, com as palavras de outras línguas indo-eu- menos da linguagem humana; ao contrário, ressal-
ropéias. Em sua gramática alemã Jakob Grimm fez tou-a. Para o estruturalismo, porém, o próprio concei-
uma exposição sistemática das correspondências de to de necessidade tinha de ser redehnido e compreen-
consoantes entre as línguas germânicas e outras lín- dido mais num sentido teleológico que num meramen-
guas indo-européias. Estas primeiras observações se
constituíram na base da lingüística moderna e da 1. Uber die Sprache und Weisheit der Inder (1808).
2. Este programa, por exemplo, foi desenvolvido por H. Osthoff
gramática comparada, mas foram compreendidas e in- e K. Brugmann em Morphologische Untersuchungen (Lípsía, 1878).
terpretadas num sentido puramente histórico. De um Sobre pormenores, veja Bloornfield, op. cit., caps. I, XX, XXI.

I
198 Antropologia Filosófica 199
Ernst Cassirer

admitir a existência de uma base exclusivamente ma-


te casual. A linguagem não é tão-somente um agregado
terial. A distinção entre forma e matéria revela-se
de sons e palavras, mas um sistema. Por outro lado,
artificial e inadequada. A linguagem é uma unidade
sua ordem sistemática não pode ser descrita em ter- indissolúvel, que não pode ser dividida nos dois fato-
mos de casualidade física ou histórica. Cada idioma res independentes e isolados, em forma e matéria. É
individual tem uma estrutura própria, tanto num sen- exatamente neste princípio que reside a diferença en-
tido formal como material. Se examinarmos os fone- tre a nova fonologia e os tipos anteriores de fonética.
mas de línguas diferentes, encontraremos tipos diver- Na fonologia estudamos, não sons físicos, mas signi-
gentes, que não podem ser incluídos num plano uni- ficativos. A lingüística não se interessa pela natureza
forme e rígido. Na escolha destes fonemas as diversas dos sons, mas pela sua função semântica. As escolas
línguas exibem suas próprias características peculia- positivistas do século XIX estavam convencidas de que
res. Sem embargo disso, sempre se pode mostrar a a fonética e a semântica requeriam estudos separados,
existência de rigorosa conexão entre os fonemas de de acordo com métodos diferentes. Consideravam-se
determinada língua. Conexão relativa, não absoluta; os fonemas meros fenômenos físicos, que poderiam e
hipotética, não apodítica. Não podemos deduzi-Ia tinham, na realidade, de ser descritos, em termos de
a priori de regras lógicas gerais; temos de confiar em física ou de fisiologia. Do ponto de vista metodológico
nossos dados empíricos. Entretanto, os próprios da- geral dos neogramáticos, semelhante concepção era
dos revelam uma coerência interior. Depois de des- não só compreensível mas necessária, pois sua tese
cobrirmos certos dados fundamentais, ficamos em con- fundamental - que as leis fonéticas não admitem ex-
dições de inferir outros dados, invariavelmente liga- ceção - se estribava na presunção de que a mudança
dos a eles. "II faudrait étudier", escreve V. Brõndal, fonética é independente de fatores não fonéticos.
formulando o programa de seu novo estruturalismo Visto que a mudança fonética não é mais que uma
"les conditions de Ia structure linguistique, distingue; mudança no hábito da articulação - supunha-se -
dans les systêmes phonologiques et morphologiques afetará um fonema em todas as ocorrências, sem de-
ce qui est possible de ce qui est impossible, le contin- pender da natureza da forma lingüística particular em
gent du nécessaire". 1 que o fonema possa ocorrer. Este dualismo desapare-
Se aceitarmos este ponto de vista, até a base ma- ceu da lingüística recente; a fonética já não é um
terial da linguagem humana, até os próprios fenôme- campo separado, mas tornou-se parte essencial da se-
nos fonéticos precisarão ser estudados de nova forma mântica, pois o fonema não é uma unidade física, mas
e sob aspecto diferente. Na realidade, já não podemos uma unidade de sentido. Foi definido como "unidade
mínima de característica fonética distintiva". Entre as
1,; v,. Brõndal,
"Structure et variabilité des systemes morphologi- grandes características acústicas de qualquer expres-
ques (agosto de 1935), p. 119. Sobre uma exposição deta-
, Scientia são há algumas que são significativas por serem em-
lhada dos problemas e métodos do estruturalismo língüístíoo moderno
veja os artigos publicados em Travaux âu Cercle Linguistique de Pra- pregadas para expressar diferenças de sentido, ao
gue 0929 e seguintes); sobretudo H. F. Pos, "Perspectives du structu- passo que outras não são distintivas. Toda língua tem
r~lis~e", Travaux (929), pp. 71 e seguintes. Um apanhado geral da
hístõría do estruturalismo foi apresentado por Roman Jakobson, "La seu sistema de fonemas, de sons distintivos. Em chi-
SC~lOlaLinguistica di Praga", La cultura (Ano XII), pp. 683 e se- nês a mudança de altura de um som é um dos meios
guíntes.
200 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 201

mais importantes para mudar o significado das pala- de que toda linguagem tem sua forma individual im-
vras, ao passo que em outras línguas tal fato não tem plicasse que é inútil procurar traços comuns na lin-
importância. 1 Dentre a desmedida multidão de sons guagem humana, teríamos de admitir que a simples
físicos possíveis, cada língua escolhe um limitado nú- idéia de uma filosofia da linguagem é um castelo no
mero para seus fonemas. Mas a seleção não se faz ao ar. Mas o que está sujeito à objeção, de um ponto de
acaso, pois os fonemas constituem um todo coerente' , vista empírico, não é tanto a existência quanto a cla-
podem ser reduzidos a tipos gerais, a certos padrões ra exposição destes traços comuns. Na filosofia gre-
fonéticos. 2 Estes parecem figurar entre os traços ga, o próprio termo "Logos" sugeria e sustentava sem-
mais persistentes e característicos da linguagem. Sa- pre a idéia de uma identidade fundamental entre o
pir dá ênfase ao fato de que toda língua tem uma ato de falar e o de pensar. Concebiam-se a gramática
forte tendência para conservar intacto seu padrão e a lógica como dois ramos diferentes do conhecimen-
fonético: to, versando sobre o mesmo assunto. Até os lógicos
Devemos atribuir as principais concordâncias e divergências das modernos, cujos sistemas se afastaram consideravel-
formas lingüísticas - padrão fonético e morfologia - ao im- mente da lógica clássica aristotélica ainda têm man-
pulso autônomo da linguagem, não aos traços isolados ou di-
fusos que complicam, ora agrupados de um modo, ora de outro. tido a mesma opinião. John Stuart Mill, fundador de
Provavelmente a linguagem é o fenômeno social que opõe uma uma "lógica indutiva", afirmava que a gramática é
resistência maciça a todas as influências e o que mais se basta
a si mesmo. É mais fácil exterminar totalmente uma língua a parte mais elementar da lógica porque é o início da
que desintegrar sua forma individual. 8 análise do processo de pensar. Segundo Mill, os prin-
cípios e regras da gramática são os meios pelos quais
É muito difícil, porém, responder à pergunta so-
se estabelece a correspondência entre as formas da
bre o que realmente significa esta "forma individual"
linguagem e as formas universais do pensamento; mas
da linguagem. Ao defrontarmos com esta pergunta
não se contentou com esta declaração. Presumiu até
nos achamos sempre diante de um dilema. Há dois
que um sistema particular de categorias gramaticais
extremos que precisamos evitar, duas soluções radi-
- um sistema deduzido da gramática latina e gre-
cais, e ambas, de certo modo, inadequadas. Se a tese
ga - possuía validade geral e objetiva. As distinções
1. Entre as línguas da família indo-européia, o sueco, pelo que
entre as várias partes da oração, entre os casos dos
sei, é a única em que a altura de um tom ou a Inflexão possuem fun- substantivos, os modos e os tempos dos verbos e as
ção semântica definida. Em algumas palavras suecas o significado pode
ser completamente modificado pelo som agudo ou grave.
funções dos particípios eram, no entender de Mill, dis-
2. Sobre pormenores veja Bloomfield, op. cit., especialmente os tinções do pensamento e não apenas distinções de pa-
caps. V e VI.
3. Sapír, Language, p. 220. Sobre a diferença entre "fonética" e
lavras. "A estrutura de cada sentença", declara ele,
"fonologia" veja Trubetzkoy, "La phonologíe actuelle", em Journal de "é uma lição de lógica".1 Os progressos da pesquisa
psyehologie (Paris, 1933), Vol. XXX. De acordo com Trubetzkoy, a
função da fonética é estudar os fatores materiais dos sons da fala
lingüística tornaram esta posição cada vez mais insus-
humana, as vibrações do ar, que correspondem a diferentes sons ou tentável. Pois veio a reconhecer-se geralmente que o
movimentos produtores de som da pessoa que fala. Em lugar de es-
tudar os sons físicos, a fonologia estuda os "fonemas", isto é, os
sistema das categorias gramaticais não apresenta um
elementos constitutivos do significado lingüístico. Do ponto de vista
da fonologia o som é apenas "o símbolo material do fonema". O ro- 1. O parágrafo seguinte baseia-se no meu artigo, "The Influence
nema propriamente dito é "ímateríal", visto que o significado não pode of Language upon the Development of Scientific Thought", iour-
ser descrito' em termos de Física ou de Fisiologia. nal 01 Philosophy, XXXIX, N.o 12 (junho de 1942), 309-327.
202 Ernst Cassirer
1 Antropologia Filosófica 203

caráter fixo e uniforme, mas varia de uma língua lhada por todos os especialistas. Envidaram-se sérios
para outra. Observou-se, além disso, que muitas ca- esforços no sentido de manter e defender a concepção
racterísticas, até de línguas derivadas do latim, não de uma gramática filosófica. Otto J espersen escreveu
podem ser adequadamente expressas nos termos e ca- um livro especialmente consagrado à filosofia da gra-
tegorias usuais da gramática latina. Estudiosos do mática,em que tentou provar que, além, acima ou
francês ressaltaram com freqüência o fato de que a atrás das categorias sintáticas, que dependem da es-
gramática francesa teria assumido forma totalmente trutura de cada língua, como realmente se verifica,
diversa se não tivesse sido escrita pelos discípulos de há categorias independentes dos fatos mais ou menos
Aristóteles. Sustentaram que a aplicação das distin- acidentais de línguas existentes. São universais por-
ções da gramática latina ao inglês ou ao francês havia que se aplicam a todas as línguas. Jespersen propôs
resultado em muitos erros graves e se havia revelado chamar-lhes "riocionais" e opinou que competia ao
sério obstáculo à descrição, sem prejuízos dos fenô- gramático, em cada caso, investigar a relação 'entre as
menos lingüísticos. 1 Muitas distinções gramaticais, categorias nocionais e as sintáticas. Idêntico ponto de
que julgamos fundamentais e necessárias, perdem o vista foi expresso por outros eruditos, como, por
valor ou, ao menos, se tornam muito incertas, logo exemplo, Hjelmstev e Brõndal, 1 De acordo com Sa-
que examinamos outras línguas que não pertençam à pir, toda língua contém certas categorias necessárias
família indo-européia. Verificou-se que é ilusória a e indispensáveis, ao lado de outras, de caráter mais
necessidade da existência de um sistema único e de- acidental. 2 Por conseguinte, a idéia de uma gramá-
finido de categorias gramaticais, que deveria ser con- tica geral ou filosófica não foi, de maneira nenhuma,
siderado constituinte do discurso e do pensamento invalidada pelos progressos da pesquisa lingüística,
racionais. 2 embora já não possamos esperar realizar semelhante
Nada disso prova, necessariamente, que devemos gramática pelos meios simples empregados em tenta-
renunciar ao velho conceito de uma grammaire géne- tivas anteriores. A linguagem humana tem de cum-
rale et raisonnée, uma gramática geral baseada em prir não só uma tarefa lógica universal mas também
princípios racionais. Mas precisamos redefinir este uma tarefa social, que depende das condições sociais
conceito e formulá-lo num sentido novo. Esticar to- específicas da comunidade lingüística. Portanto não
das as línguas sobre o leito de Procusto de um único podemos esperar identidade real, exata correspondên-
sistema de categorias gramaticais seria uma tentativa cia entre as formas gramaticais e lógicas. Uma análi-
baldada. Muitos lingüistas modernos chegaram a pon- se empírica e descritiva das formas gramaticais se
, . -",
to de advertir-nos contra a propria expressao grama- propõe uma tarefa diferente e conduz a outros resul-
tica geral", entendendo que ela representa mais um tados, em confronto com a análise estrutural que, por
ídolo que um ideal científico. 3 Entretanto, esta ati- exemplo, é apresentada no trabalho de Carnap sobre
tude intransigentemente radical não tem sido parti- a Logical Syntax of Language.

1. Veja F. Brunot, La pensée et Ia langue (Paris, 1922). 1. Veja Hjelmstev, Principes de grammaire générale (Copenha-
2. Sobre maiores detalbes veja Bloomfield, op. cit., pp. 6 e se- gen, 1928), Brõndal, Ordklassarne. (Résumé: Les partíes du discours,
guintes e Sapir, op. cit., pp. 124 e seguintes. partes oratíonís, Copenhagen, 1928.)
3. Veja, por exemplo, Vendryes, Le langage (Paris, 1922),p. 193.
, 2. Sapir, op. cit., pp. 124 e seguintes.

I
204 Ernst Cassirer AntropOlogia Filosófica 205

3 jeto, entre atributo e predicado, varie amplamente de


língua para língua. Sem forma, a língua assume a
Para encontrar o fio de Ariadne que nos conduza aparência não só de uma construção histórica alta-
através do complicado e desconcertante labirinto da mente contestável, mas também de um conceito que
linguagem humana, podemos proceder de duas manei- se contradiz a si mesmo. As línguas das nações menos
.ras: tentar encontrar uma ordem lógica e sistemática civilizadas não são, de maneira alguma, informes; ao
ou uma ordem cronológica e genética. No segundo contrário, exibem, na maioria dos casos, estrutura
caso tentamos seguir os idiomas individuais e os vá- complicadíssima. A. Meillet, lingüista moderno que
rios tipos lingüísticos até um estádio anterior, relati- possuía vastíssimo conhecimento das línguas do mun-
vamente simples e amorfo. Tentativas desta natureza do, declarou que nenhum idioma conhecido nos dá a
foram levadas a efeito freqüentemente por lingüistas menor idéia do que poderia ter sido a linguagem pri-
do século XIX, quando se tornou corrente a opinião mitiva. Todas as formas de linguagem humana são
de que, antes de poder atingir sua forma presente, a perfeitas na medida em que conseguem expressar os
linguagem humana tivera de passar por uma fase em sentimentos e pensamentos humanos de maneira clara
que não havia formas sintáticas nem morfológicas de- e apropriada. As chamadas línguas primitivas se har-
finidas. A princípio, as línguas consistiam em ele- monizam tanto com as condições da civilização primi-
mentos simples, em raizes monossilábicas. O roman- tiva e com a tendência geral do espírito primitivo
ticismo favoreceu este ponto de vista. A. W. Schlegel quanto as nossas próprias línguas estão em concor-
propôs uma teoria, segundo a qual a linguagem evo- dância com as finalidades de nossa cultura requintada
luiu de um estado anterior, desorganizado e amorfo, e elaborada. Nas línguas da família bantu, por exem-
do qual passou, numa ordem fixa, para outros está- plo, todo substantivo pertence a uma classe definida
dios mais avançados - de isolamento, aglutinação e e cada uma dessas classes é caracterizada por um pre-
de flexão. As línguas flexionais, de acordo com fixo especial. Tais prefixos não aparecem apenas nos
Schlegel, representam o último passo nesta evolução próprios substantivos, mas têm de ser repetidos, de
e são as línguas realmente orgânicas. Uma análise acordo com um sistema complicadíssimo de concor-
descritiva completa destruiu, na maioria dos casos, as dâncias e congruências, em todas as outras partes da
provas em que se alicerçaram estas teorias. No caso sentença que se referem ao nome. 1
do chinês, habitualmente citado como exemplo de lín- A variedade dos idiomas individuais e a hetero-
gua que consistia em raizes monossilábicas, se fez ver geneidade dos tipos lingüísticos aparecem a uma luz
como provável que seu atual estádio de isolamento totalmente diversa conforme as encaramos de um
foi precedido de um anterior estádio flexional. 1 Não ponto de vista filosófico ou científico. O lingüista se
conhecemos língua nenhuma desprovida de elementos compraz nesta variedade; mergulha no oceano da lin-
formais ou estruturais, se bem que a expressão das guagem humana sem esperar sondar-lhe a verdadeira
relações formais, como a diferença entre sujeito e ob- profundeza. Em todas as épocas a filosofia se orien-

1. Veja B. Karlgren, "Le Proto-Chinois, langue flexionelle", Jour- 1. Sobre outras minúcias veja c. Meinhof, Grundzüge einer ver-
7UZl asiatique (1902). gleichenden Grammatik der Bantu·Sprachen (Berlím, 1906).
Antropologia Filosófica 207
206 Ernst Cassirer

no campo da filosofia. O problema da lingua Adamica


tou na direção oposta. Leibniz insistiu em' que sem continuou a ser seriamente discutido pelos pensadores
uma Characteristica generalis jamais encontraremos filosóficos e místicos do século XVII. 1
uma Scientia generalis. A lógica simbólica moderna Entretanto, a verdadeira unidade da linguagem,
segue a mesma tendência. Mas ainda que esta tarefa se porventura existe, não pode ser substancial; terá
fosse cumprida, a filosofia da cultura humana teria de de ser antes definida como funcional, não pressupon-
enfrentar o mesmo problema. Numa análise da cultu- do uma unidade material ou formal. Duas línguas
ra humana precisamos aceitar os fatos em sua forma diferentes podem representar extremos opostos, tanto
concreta, em toda a sua diversidade e divergência. A no que concerne aos sistemas fonéticos quanto no que
filosofia da linguagem vê-se aqui às voltas com o mes- respeita aos sistemas de categorias gramaticais, o que
mo dilema que aparece no estudo de cada forma sim- não as impede de desempenhar a mesma tarefa na
bólica. A mais alta, a única tarefa de todas estas for- vida da comunidade lingüística. O importante aqui
mas é unir os homens. Mas nenhuma delas provocará não é a variedade dos meios, mas sua adequação e
esta unidade sem, ao mesmo tempo, dividir e separar harmonia com o fim. Podemos pensar que este fim
os homens. Assim, o que se destinava a assegurar a comum é atingido mais perfeitamente por um tipo
harmonia da cultura se converte na fonte das mais lingüístico do que por outro. O próprio Humboldt,
profundas discórdias e dissensões. Esta é a grande an- que, de um modo geral, relutava em formular juízos
tinomia, a dialética da vida religiosa. 1 Sem linguagem sobre o valor dos idiomas particulares, considerava as
não haveria a comunidade dos homens. Entretanto, línguas flexionais como uma espécie de exemplo e'
não há mais sério obstáculo à comunidade do que a modelo de excelência. Para ele, a forma flexional era
diversidade de línguas. O mito e a religião recusam- die einzig gesetzmaessige Forrn (a única forma legal),
-se a considerar esta diversidade como fato necessário a única forma inteiramente coerente e que obedece
e' inevitável. Atribuem-na antes a uma falta ou culpa a regras estritas. 2 . Os lingüistas modernos nos adver-
do homem do que à sua constituição original e à na- tiram contra tais julgamentos. Dizem-nos que não te-
tureza das coisas. Em muitas mitologias encontramos mos um padrão comum e único para aquilatar o va-
surpreendentes analogias com o conto bíblico da Torre lor dos tipos lingüísticos. No confronto dos tipos tal-
de BabeI. Até nos tempos modernos o homem conti- vez pareça que um deles tem vantagens definidas so-
nua a ansiar por aquela Idade de Ouro em que a hu- bre o outro, mas uma análise mais atenta geralmente
manidade ainda possuía uma única linguagem. Volve nos convence de que o que denominamos defeitos de
o olhar para seu estado primevo como para um paraí- certo tipo são compensados e contrabalançados por
so perdido. Nem o velho sonho da língua Adamica- outros méritos. Se quisermos compreender a lingua-
da "verdadeira" língua dos primeiros antepassados do gem, declara Sapir, devemos libertar nossa mente
homem, que não consistia apenas em sinais convencio- de valores preferidos e acostumar-nos a olhar para o
nais mas expressava a própria natureza e essência
das coisas - se dissipou completamente, nem mesmo 1. Veja, por exemplo, Leibniz, Nouveaux essais sur l'entendement
humain, Livro llI, capo lI.
2. Humboldt, op. cit., VII, pt. n, 162.
l. Veja ° capo VII, p. 121.
208 Ernst Cassírer Antropo"logia Filosófica 209

inglês e para o hotentote com o mesmo desprendimen- sos de Helen Keller e Laura Bridgman 1 ilustrou o
to imparcial e, contudo, interessado. 1 fato de que, com a primeira compreensão do simbo-
Se a tarefa da linguagem humana consistisse em lismo da linguagem, ocorre verdadeira revolução na
copiar ou imitar a ordem dada ou já pronta das coisas, vida da criança. A partir deste momento, toda
dificilmente poderíamos manter um alheamento des- sua vida pessoal e intelectual assume forma inteira-
ta natureza. Não fugiríamos à conclusão de que, afi- mente nova. De um modo geral, a mudança pode ser
nal de contas, uma das cópias era a melhor; que uma descrita dizendo-se que a criança passa de um estado
delas estava mais próxima do original que a outra. mais subjetivo para um objetivo, de uma atitude me-
Entretanto, se atribuirmos à linguagem uma função ramente emocional.para uma teórica. A mesma mu-
mais produtiva e construtiva do que reprodutiva, nos- dança se observa na vida de toda criança normal, em-
so juízo será muito diferente. Neste caso, não é a bora se processe de maneira muito menos espetacular.
"obra" da linguagem, porém sua "energia", que assu- A própria criança tem um sentido claro da significa-
me soberana importância. Para medi-Ia precisamos ção do novo instrumento para o seu desenvolvimento
estudar o próprio processo lingüístico em lugar de mental. Não se contenta em ser ensinada de maneira
analisar-lhe o efeito, o produto e os resultados finais. puramente receptiva, mas partilha ativamente do pro-
Os psicólogos são unânimes em acentuar que, cesso da linguagem, que é, ao mesmo tempo, um
sem uma visão da verdadeira natureza da linguagem processo de objetificação progressiva. As professoras
humana, nosso conhecimento do desenvolvimento do de Helen Keller e Laura Bridgman nos descreveram
espírito humano permaneceria perfunctório e inade- a ansiedade e a impaciência com que as duas crianças,
quado. Existe, ainda, todavia, considerável incerteza depois de haverem compreendido o uso dos nomes,
quanto aos métodos de uma psicologia da linguagem. continuaram a perguntar os nomes particulares de to-
Quer estudemos os fenômenos num laboratório psi- dos os objetos que as cercavam. 2 Esta é também uma
cológico ou fonético, quer nos apoiemos em métodos característica geral do desenvolvimento normal da
puramente introspectivos, invariavelmente nos acode linguagem. "No início do vigésimo-terceiro mês", diz
a mesma impressão de que tais fenômenos são tão D. R. Major, "a criança desenvolveu a mania de dar
evanescentes e flutuantes que desafiam todos os es- nome às coisas, como se quisesse contar aos outros os
forços estabilizadores. Em que consiste, portanto, a seus nomes ou nos chamar a atenção para as coisas
diferença fundamental entre a atitude mental que po- que está examinando. Olha e aponta para um objeto,
demos atribuir a uma criatura sem fala - um ser ou toca-o com a mão, diz-lhe o nome olhando para os
humano antes da aquisição da linguagem ou um ani- companheiros". 3 Tal atitude não seria compreensível
mal - e aquele outro estado de espírito que caracte- não fora o fato de que o nome, no desenvolvimento
riza o adulto no pleno domínio de sua língua materna? mental da criança, exerce função de primeiríssima
Por curioso que pareça, é mais fácil responder a importância. Se, quando estivesse aprendendo a falar,
esta pergunta com base em casos anormais de desen-
volvimento da linguagem. Nossa consideração dos ca- 1. Veja o capo lII, p. 53.
2. Idem, pp. 63·5.
3. David R. Major, First Steps in Mental Growth (Nova Iorque,
1. Sapir, op. eit., p. 130. Macmillan, 1906), pp. 321 e seguinte.
210 Ernst Cassirer AntropoLogia FilOsófica 211

.a criança precisasse apenas aprender certo vocabulá- nomes; assinalam o desejo de detecção e conquista de
rio, se tivesse apenas de gravar na mente e na memó-
um mundo objetivo. 1
ria uma grande soma de sons arbitrários e artificiais,
Ao aprendermos uma língua estrangeira, ainda
o processo seria puramente mecânico, extremamente
podemos sujeitar-nos a uma experiência semelhante
laborioso e cansativo, e exigiria da criança um esforço
consciente demasiado grande, que ela só faria com
à da criança. Não basta aqui adquirir um novo vo-
alguma relutância, pois o que se esperaria que ela fi- cabulário ou familiarizar-nos com um sistema de re-
zesse estaria totalmente desligado de suas necessida- gras gramaticais abstratas. Tudo isto é. necessário,
des biológicas reais. A "fome de nomes", que, em mas é apenas o primeiro passo e o menos Importante.
certa idade, se manifesta em toda criança normal e Se não aprendermos a pensar na nova língua todos os
que foi descrita por todos os estudiosos de psicologia nossos esforços serão infrutíferos. Na maioria dos ca-
infantil ! prova o contrário. Recorda-nos que aqui es- sos nos parecerá dificílimo satisfazer este propósito.
tamos diante de um problema inteiramente diverso. Lingüistas e psicólogos têm perguntado mui,tas.vezes
Aprendendo a nomear as coisas, a criança não acres- como é possível a uma criança, por seus proprios es:
centa simplesmente uma lista de sinais artificiais ao forços, levar a cabo uma tarefa que ~enhum ~dulto e
seu conhecimento anterior de objetos empíricos já capaz de realizar da mesma maneira, ou tao bem.
prontos. Aprende, antes, a formar os conceitos destes Talvez possamos responder a esta pergunta descon-
objetos, a entrar em acordo com o mundo objetivo. certante voltando os olhos para nossa análise anterior.
Daí por diante, pisa terreno mais firme. Suas percep- Numa etapa ulterior e mais avançada de nossa vida
ções vagas, incertas, flutuantes, e seus sentimentos consciente jamais poderemos repetir o process.o que
confusos principiam a assumir nova forma. Pode di- nos conduziu pela primeira vez, ao mundo da lmgua-
zer-se que eles se cristalizam em torno do nome como gem humana: No viço, na agilidade e na el~sti.c~dade
em torno de um centro fixo, um foco de pensamento. da primeira infância este processo tem um slgmflCad.o
Sem a ajuda do nome, todo novo progresso feito no muito diverso. Por paradoxal que pareça, a verdadei-
processo da objetivação correria sempre o risco de ra dificuldade consiste muito menos na aprendizagem
perder-se outra vez no momento seguinte. Os primei- da nova língua do que no esquecimento da língua an-
ros nomes de que a criança se utiliza conscientemente terior. Já não nos encontramos na situação mental da
podem ser comparados à bengala com o auxílio da criança que, pela primeira vez, se aproxima de uma
qual um cego consegue abrir caminho. A linguagem, concepção do mundo objetivo. Para o adulto, o..~u~-
tomada em conjunto, converte-se na porta de um novo do objetivo já tem forma definida, em consequencia
mundo. Todo progresso aqui realizado abre uma nova do uso da palavra que, em certo sentido, afeiç~ou
perspectiva, dilata e enriquece nossa experiência con- todas as nossas outras atividades. Nossas percepçoes,
creta. A ansiedade e o entusiasmo por falar não se intuições e conceitos amalgamara~-se com os tenn?s
originam do simples desejo de aprender ou de usar e categorias gramaticais de nossa lmgua materna. Sao

1. Sobre uma discussão mais circunstanciada deste p.rob,~emaveja


L Veja, por exemplo, Clara e William Stern, Die Kituiersprache
(Lípsía, 1907), pp. 175 e seguintes. Cassirer, "Le langage et Ia construction du monde des objets , Jourruii
de psychologie, XXX' Année (1933), pp. lB·44.
212 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 213

necessários grandes .~sforços para desatar o elo que dem ser interpretados desta maneira invariável. Não
se forma entre as palavras e as coisas. E, no entanto, se destinam a referir-se a coisas substanciais, a enti-
quando nos propomos' aprender uma nova língua, pre- dades independentes que existem por si mesmas. São
cisamos fazer tais esforços e separar os dois elementos. antes determinados por interesses e propósitos huma-
A superação desta dificuldade assinala sempre um no- nos, que não s~o fixos nem invariáveis. Nem são fei-
vo passo importante no' aprendizado de uma língua. tas ao acaso as classificações que se encontram na
Ao penetrarmos no "espírito" de uma língua estran- linguagem humana; baseiam-se em certos elementos
geira, temos invariavelmente a impressão de nos apro- constantes, que se repetem, da nossa experiência sen-
ximarmos de um novo mundo que possui uma estru- sorial. Sem tais repetições não haveria posição segu-
tura intelectual própria. É como uma viagem de des- ra nem ponto de apoio para nossos conceitos lin-
cobrimento a uma terra estranha, e o maior proveito güísticos. Mas a combinação ou a separação de dados
que tiramos é o fato de aprendermos a olhar para nos- perceptuais depende da livre escolha de uma teoria.
sa língua materna a uma nova luz. "Wet fremde Não existe um plano rígido e preestabelecido, de acor-
Sprachen nicht kennt, weiss nichts von seiner eige- do com o qual seriam feitas, de uma vez por todas,
nen", disse Goethe.1 Enquanto não conhecermos nossas divisões e subdivisões. Nem em línguas estrei-
línguas estrangeiras ignoramos, de certo modo, a nos- tamente aparentadas e que concordam em suaestru-
sa, pois não conseguimos discernir-lhe a estrutura es- tura geral encontramos nomes idênticos. Como assi-
pecífica e os traços distintivos. Um cotejo entre di- nalou Humboldt, os vocábulos gregos e latinos para
ferentes línguas nos mostra que não existem sinôni- designar a Lua, conquanto se refiram ao mesmo obje-
mos exatos; os termos correspondentes de duas lín- to, não expressam a mesma intenção nem o mesmo
guas raro se referem aos mesmos objetos ou às mes- conceito. O vocábulo grego (men) denota a função
mas ações. Abrangem campos diferentes, que se cru- da Lua de "medir" o tempo; o vocábulo latino (Zuna,
zam e nos dão visões multicores e variadas perspecti- Zue-na) denota a luminosidade ou brilho da Lua.
vas de nossa experiência. Assim, isolamos e focalizamos obviamente a atenção
Isto se torna especialmente claro quando refle- em duas características muito diferentes do objeto.
timos nos métodos de classificação empregados em Mas o ato propriamente dito, o processo de concen-
línguas diversas, sobretudo nas de tipos lingüísticos tração e condensação, é o mesmo. O nome de um
divergentes. A classificação é uma das características objeto não tem pretensões à sua natureza; não pre-
fundamentais da linguagem humana. O próprio ato tende ser <PUO€L OV, dar-nos a verdade de uma coisa.
de denominação depende de um processo de classifi- A função do nome se limita sempre a ressaltar um as~
cação. Dar nome a um objeto ou a uma ação equivale pecto particular de uma coisa, e é precisamente desta
a incluí-lo em certo conceito de classe. Se esta inclu- restrição e desta limitação que depende seu valor. Não
são fosse, de uma vez por todas, prescrita pela natu- é função do nome referir-se exaustivamente a uma si-
reza das coisas, seria única e uniforme. Entretanto, tuação concreta, mas apenas destacar e mencionar certo
os nomes que ocorrem na linguagem humana não po- aspecto. O isolamento deste aspecto não é um ato ne-
gativo, mas positivo, porque no ato da denominação
1. Goethe, Sprüche in Prosa, "Werke", XLII, pt. lI, 118. escolhemos, no meio da multiplicidade e difusão de
Antropologia Filosófica 215
214 Ernst Cassirer

nho, à cor, à idade e ao andar do animal. 1 Estas di-


nossos dados sensoriais, certos centros fixos de per-
visões ainda estão muito longe de qualquer classifica-
cepção que não são os mesmos do pensamento lógico
ção científica ou sistemática, mas servem a propósi-
ou científico. Os termos da linguagem comum não se
tos inteiramente diversos. Em muitas línguas das tri-
medem pelos mesmos padrões daqueles com que ex-
bos aborígines americanas encontramos uma pasmosa
pressamos conceitos científicos. Confrontadas com a
variedade de termos para designar determinada ação
terminologia científica, as palavras da linguagem co-
como, por exemplo, o andar e o bater. Estes termos
mum revelam sempre certa vagueza; quase sem ex-
apresentam, entre si, mais uma relação de justapo-
ceção, são tão indistintas e mal definidas que não su-
sição que de subordinação. Um golpe desferido com
portam a prova da análise lógica. Apesar desta defi-
o punho não pode ser descrito pelo mesmo termo que
ciência inevitável e inerente, nossos termos e· nomes
um golpe vibrado com a palma da mão, e um golpe
de uso diário são os marcos miliários da estrada que com uma arma requer outro nome que um golpe de
conduz a conceitos científicos; por meio deles recebe- uma varada ou chicotada. 2 Em sua descrição da lín-
mos nossa primeira visão objetiva ou teórica do mun- gua bacairi - idioma falado por uma tribo índia no
do. Esta visão não é simplesmente "dada", mas o re- Brasil central - Karl von den Steinen relata que ca-
.sultado de um esforço intelectual construtivo que, " . da espécie de papagaio e de palmeira tem seu nome
se~ ~ constante assistência da linguagem, não poderia .t individual, ao passo que não existe nome algum para
atingir sua finalidade. I, designar o gênero "papagaio" nem o gênero "palmei-
Tal finalidade, contudo, não se alcança a qual- i ra". "Os bacairis", assevera ele, "dão tanta impor-
quer momento. A ascensão a níveis mais altos de abs- tância às numerosas noções particulares que não têm
tração, ~ ~?mes e idéias mais gerais e mais amplos, é nenhum interesse pelas características comuns. Abar-
tarefa d.iflCile laboriosa. A análise da linguagem nos rotados pela abundância do material, não podem lidar
propor~IOna uma riqueza de materiais para o estudo economicamente com ele. Possuem apenas dinheiro
do carater dos processos mentais que finalmente le- miúdo, mas nisto devem ser considerados muito mais
vam à realização dessa tarefa. A linguagem humana ricos do que pobres". 3 Na realidade, não existe uma
evolve de um primeiro estado, relativamente concre- medida uniforme para se avaliar a riqueza ou a po-
to, para um mais abstrato. Nossos primeiros nomes breza de determinado idioma. Toda classificação é di-
são ~oncretos. Ligam-se à apreensão de fatos ou ações rigida e ditada por necessidades especiais, e é evidente
particulares. Todas as gradações ou matizes que en- que estas necessidades variam de acordo com as dife-
contramos em nossa experiência concreta são descri- rentes condições da vida social e cultural do homem.
tos minuciosa e circunstanciadamente, mas não se in- Na civilização primitiva predomina o interesse pelos
cluem num gênero comum. Hammer-Purgstall escre-
veu. um artigo em que enumera os vários nomes que 1. Veja Hammer-Purgstall, Academia de Viena, Classe filosófico-
d.esIgnam o. can;telo em árabe: são nada menos que -histórica, Vols. VI e VII (1855 e seguinte).
2. Sobre maiores detalhes veja Philosophie der symbolischen For-
cmc~ ou seis mil, entretanto, nenhum deles nos pro-
men, I, 257 e seguintes.
porciona um conceito biológico geral. Todos expres- 3. K. von den Steinen, Unter den Naturvôtkerti Zentral-Brasiliens,
sam minúcias concretas, relativas à forma, ao tama- p. 81.
216 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 217

aspectos concretos e particulares das coisas. A lin- referência a diferentes classes de objetos. 1 A ascen-
guagem humana sempre se conforma com isto e se são aos conceitos e categorias universais, por conse-
acomoda com certas formas da vida humana. O in- guinte, parece ser muito lenta no desenvolvimento da
teresse por meros "universais" não é possível nem linguagem humana; mas cada novo progresso nesta
necessário numa tribo índia. É suficiente, e mais im- direção conduz a um levantamento mais amplo, a uma
, orientação e a uma organização melhores de nosso
portante, distinguir objetos por certas características ~
visíveis e palpáveis. Em muitas línguas, uma coisa
f
mundo perceptual.
redonda não pode ser tratada da mesma maneira pela
qual se trata uma coisa quadrada ou oblonga, pois per-
tencem a gêneros diferentes, que se distinguem por
meios lingüísticas especiais, como o emprego de pre-
fixos. Em línguas da família bantu encontramos na-
da menos do que vinte classes genéricas de substanti-
vos. Em línguas de tribos aborígines americanas co-
mo, por exemplo, a dos algonquianos, alguns objetos . I
pertencem a um gênero animado, ao passo que outros j
a um gênero inanimado. Mesmo aqui é fácil com-
preender como e por que esta distinção, do ponto de
vista da mente primitiva, deve ter um interesse es-
pecial e ser de vital importância. Trata-se, com efei-
to, de uma diferença muito mais característica e notá-
vel do que a que se expressa em nossos nomes de
classes lógicas abstratas. A mesma lenta passagem
dos nomes concretos para os nomes abstratos pode
também ser estudada na denominação das qualidades
das coisas. Todo matiz de determinada cor tem seu
nome especial, ao passo que faltam os termos gerais
- azul, verde, vermelho etc. Os nomes das cores va-
riam segundo a natureza dos objetos: uma palavra
que designa o cinzento, por exemplo, pode ser usada
quando se fala de lã ou de gansos, outra quando se
fala de cavalos, outra quando se fala de gado, ainda
outra quando se fala do cabelo dos homens ou de ou-
tros animais. 1 O mesmo se aplica à categoria dos nú-
meros: diferentes números são necessários para fazer
2. Sobre maiores detalhes veja Philosophie der symboLischen For-
1. Veja os exemplos dados em Jespersen, Language, p. 429. men, I, pp. 188 e seguintes.
IX
A ARTE

1
A BELEZA parece ser um dos fenômenos humanos
mais claramente conhecidos. Não sendo obscure-
cida por nenhuma aura de sigilo ou mistério, seu cará-
ter e natureza dispensam teorias metafísicas sutis e
complicadas para sua explicação. Palpável e inconfun-
dível, a beleza é parte essencial da experiência humana.
Não obstante, na história do pensamento filosófico, o
fenômeno da beleza sempre se revelou como um dos
maiores paradoxos. Até à época de Kant, uma filoso-
fia da beleza significava sempre uma tentativa de re-
duzir nossa experiência estética a um princípio estra-
nho e de sujeitar a arte a uma estranha jurisdição. Na
Crítica do Juizo, Kant foi o primeiro a dar uma prova
clara e convincente da autonomia da arte. Dela, todos
os sistemas anteriores haviam procurado um princípio,
quer na esfera do conhecimento teórico, quer na da
vida moral. Se a arte era considerada decorrência de
uma atividade teórica, tornava-se necessário analisar
as regras lógicas a que esta determinada atividade se
conforma. Neste caso, porém, a própria lógica deixa-
va de ser um todo homogêneo. Precisava ser dividida
em partes separadas e relativamente independentes.
Devia-se distinguir a lógica da imaginação .da lógica
J do pensamento racional e científico. Em sua Aesthe-
Antropologia Filosófica 221
220 Ernst Cassirer

tica (1750), Alexander Baumgarten levara a efeito o das vantagens que ele possui em relação aos animais
primeiro ensaio sistemático para construir uma lógica inferiores é a de ser a criatura mais imitativa do mun-
da imaginação. Mas nem mesmo este ensaio, que, em do e aprender, a princípio, pela imitação". E a imi-
certo sentido, se revelou decisivo e inestimável, pode- tação é também fonte inexaurível de prazer, como o
ria assegurar à arte um valor realmente autônomo.. prova o fato de que, embora os objetos propriamente
Porque a lógica da imaginação nunca poderia preten- ditos não nos agradem aos olhos, nos comprazemos,
der a mesma dignidade da lógica do intelecto puro. não obstante, em ver na arte suas mais realistas re-
Se houvesse uma teoria da arte, só poderia ser uma presentações - as formas, por exemplo, ,dos animais
gnosiologia inferior, uma análise da parte sensória inferiores e dos corpos mortos. Aristóteles descreve
"inferior", do conhecimento humano. Por outro lado, este prazer mais como experiência teórica que especi-
ficamente estética. "Estar aprendendo alguma coisa",
a arte seria descrita como emblema da verdade mo-
declara, "é o maior dos prazeres, não só para o filóso-
ral, concebida como alegoria, expressão figurativa
fo mas também para o resto da humanidade, por me-
que, sob sua forma sensória, escondia um sentido
nor que seja sua capacidade; a razão do prazer em
ético. Mas em ambos os casos, tanto na interpreta-
ver a pintura é que a pessoa, ao mesmo tempo, está
ção moral quanto na teórica, a arte não possuía um
aprendendo - gravando o significado das coisas, por
valor independente próprio. Na hierarquia do conhe-
exemplo, que tal homem é assim ou de outro jeito".!
cimento e da vida humana era apenas um estádio pre- À primeira vista, este princípio parece aplicar-se ape-
paratório, um meio subordinado e subserviente, que nas às artes representativas. Poderia, contudo e facil-
apontava para um objetivo mais elevado. . mente, transferir-se para todas as outras formas. A
A filosofia da arte mostra o mesmo conflito entre própria música se tornou imagem de coisas. O tocar
duas tendências antagônicas que encontramos na fi- flauta ou a dança, afinal de contas, não são mais que
losofia da linguagem. Não se trata, naturalmente, dê imitação; porque o flautista ou o dançarino represen-
simples coincidência histórica. Reporta-se à divisão tam, pelos seus ritmos, caracteres dos homens, tão
básica na interpretação da realidade. A liIlguagem e bem como o que fazem e sofrem. 2 Toda a história da
a arte oscilam constantemente entre dois pólos opos- poética sofreu a influência da divisa de Horácio, "ut
tos, um objetivo e outro subjetivo. Nenhuma teoria pictura poesis" e do dito de Simônides; "a pintura é
da linguagem ou da arte poderia esquecer ou supri- poesia muda e a poesia uma pintura que fala". A poe-
mir qualquer um destes pólos, embora a importância sia se diferencia da pintura pelo modo e meios, mas
possa recair ora em um, ora em outro. não pela função geral da imitação.
No primeiro caso, a linguagem e a arte estão in-, Cumpre observar que as teorias mais radicais da
c1uídas sob a mesma rubrica, a categoria da imitação e : imitação não tencionavam restringir a obra de arte a
sua função principal é mimética. A linguagem se ori- uma reprodução meramente mecânica da realidade.
gina de uma imitação de sons, a arte é uma imitação
de coisas exteriores. Instinto fundamental, fato irre- 1. Arist6teles, Poética, 4. 1448b 5·17. Em Aristotle on the Art 01
dutível 'da natureza humana, "a imitação", diz Aris- Poetry, ed. por logram Bywater (Oxíord, 1909),pp. 8-11.
2. Idem, 1. 1447a26. Ed. Bywater, pp. 2-5.
tóteles, "é natural ao homem desde a infância, e uma
AntropOlogia Filosófica 223
222 Ernst Cassirer

Iidade, a resposta certa é que é melhor que eles sejam


T~da.s.tomavam em consideração, até certo ponto, a assim, pois o artista deve produzir coisa melhor que
criatividade do artista. Não era fácil conciliar as duas seu modelo. 1
exigênci~s". A ser a imitação o verdadeiro objetivo da Os neoclássicos - desde os italianos do século
art~, esta Vlst~ que,a espontaneidade, a faculdade pro- XVI até a obra do Abbé Batteux, Les beaux aris re-
dutiva ~o artista e um fator mais perturbador que duits à un même principe (1747) - faziam do mes-
construtivo. Em vez de descrever as coisas em sua mo princípio seu ponto de partida. A arte não repro-
verdadeira natureza, falsifica-lhes o aspecto. Esta duz a natureza num sentido geral e indiscriminado;
perturbação introduzida pela subjetividade do artista reproduz "la belle nature". Mas se a imitação é o
não poderia ser negada pelas clássicas teorias da imi- verdadeiro propósito da arte, o próprio conceito de
ta~ão.. M~s poderi~ .ser confinada dentro de seus pró- uma "bela natureza" é altamente contestável. Pois
prios limites e sujeita a regras gerais. Assim seria como poderemos melhorar nosso modelo sem desfígu-
impossível manter o princípio da ars simia ~turae rá-lo? E transcender a realidade das coisas sem ofen-
num sentido estrito e sem compromissos, pois nem der as leis da verdade? Do ponto de vista desta teo-
m~smo a própria natureza é infalível e nem sempre ria, a poesia e a arte em geral só conseguirão ser uma
atmge seus objetivos. Neste caso, a arte deve vir agradável falsidade.
auxiliar a natureza e realmente corrigi-I; ou aper- A teoria geral da imitação pareceu sustentar sua'
feiçoá-Ia. posição e desafiar todos os ataques até a primeira "
metade do século XVIII. Mas mesmo no tratado de ' .,!
Ma Ia natura Ia dà sempre scema,
Batteux, talvez o último defensor resoluto desta teo- .
Mas a natureza a dá sempre imperfeita,
ria, 2 sentimos certo constrangimento no tocante à sua
Similemente operando all'artista , validade universal. O obstáculo à teoria sempre fora
Igualmente operando ao artista, o fenômeno da poesia lírica. Os argumentos com os
C'ha l'abito dell'arte, e man che trema. 1 quais Batteux tentou incluir a poesia lírica sob o plano
Que tem perícia na arte e mão que treme. geral da poesia imitativa são fracos e inconcludentes.
Com efeito, todos estes argumentos superficiais foram
Se '~toda beleza é verdade", nem toda verdade é, subitamente destruídos pelo aparecimento de uma
necessariamente beleza. Para alcançar a beleza su- nova força. Até no campo da estética o nome de Rous-
prema é tão essencial desviar-se da natureza como seau assinala um ponto crítico decisivo na, história ge-
reproduzi-Ia. Determinar a medida, a proporção cor- ral das idéias; rejeitou toda tradição clássica e neo-
re~a, .de~te afastamento ou desvio, tornou-se uma das clássica da teoria da arte. Para ele, a arte não é uma
p;mClpaIStarefas de uma teoria da arte. Afirmara Aris- descrição nem uma reprodução do mundo empírico,
t~teles que, .para os efeitos da poesia, uma impossibi- mas um transbordamento de emoções e paixões. A
~dade .convmce~te é preferível a uma possibilidade
~convmcente. A objeção de um crítico de que Zêuxis 1. Aristóteles, op. cit., 25. 1461b.Ed. Bywater, pp. 86-87.
pmtarahomens como jamais poderiam existir na rea- 2. No século XIX, sem dúvida alguma, a teoria geral da imi-
tação ainda representava papel importante. É, por exemplo. sustentada
e defendida na Philosophie de l'art de Taine.
1. Dante, Paradiso, XIII, v. 76.
.,
I
224 Ernst Casstrer Antropologia Filosófica 225

Nouvelle Héloise revelou-se uma nova força revolu- . Com Rousseau e Goethe iniciou-se um novo pe-
cionária. O princípio mimético que prevalecera por; ríodo de teoria estética. A arte característica logrou
muitos séculos precisou, daí por diante, dar lugar a! um triunfo definitivo sobre a imitativa. Mas no in-
uma nova concepção e a um novo ideal - o da "arte tuito de compreendê-Ia, em. seu verdadeiro sentido,
característica". A partir deste ponto, podemos acom- precisamos evitar uma interpretação unilateral. Não
panhar o triunfo de um novo princípio em toda a li- basta destacar o lado emocional da obra de arte. É
teratura européia. Na Alemanha, Herder e Goethe verdade que toda arte característica ou expressiva é
seguiram o exemplo de Rousseau. Desta maneira, to- "o espontâneo transbordamento de sentimentos pode-
da a teoria da beleza precisou asumir nova forma. A rosos". Mas se viéssemos a aceitar sem reserva esta
beleza no sentido tradicional do termo já não é, de definição de Wordsworth, seríamos apenas conduzidos
maneira alguma, o principal objetivo da arte; trata-se, a uma mudança de sinal, não a uma mudança decisi-
de fato, de uma característica secundária e derivativa. va de significado. Neste caso, a arte permaneceria re-
"Não permita que um equívoco surja entre nós"; ad- I produtiva; mas, em vez de ser uma reprodução de
verte Goethe ao leitor em seu artigo "Von deuts- coisas, de objetos físicos, tornar-se-ia uma reprodução
cher Baukunst"; de nossa vida interior, de nossas afeições e emoções.
Empregando ainda uma vez nossa analogia com a filo-
não permita que a doutrina efeminada do moderno traficante
da beleza o faça delicado demais para apreciar a rudeza signi- sofia da linguagem, podemos dizer que, neste caso,
ficativa, para que seus sentimentos debilitados, afinal, não sejam teríamos apenas trocado uma teoria onomatopéica da
capazes de suportar outra coisa senão a suavidade sem propó- arte por uma teoria interjecional. Mas não é esse o
sito. Tentam fazê-Io acreditar que as belas-artes nasceram de
nossa suposta inclinação para aformosear o mundo que nos sentido em que a expressão "arte característica" foi
rodeia. Isto não é verdade,.,
Muito antes de ser bela a arte é formativa, quando ainda é compreendida por Goethe. O trecho acima citado foi
a verdadeira e grande Arte, muitas vezes mais verdadeira e escrito em 1773, no juvenil período do "Sturm und
maior que a própria arte bela. Pois o homem tem em si uma
natureza formativa, que se revela em atividade logo que sua Drang" de Goethe. Entretanto, em nenhum período
existência está segura; '.. E, assim, o selvagem remodela, de sua vida pôde ele descurar, um momento sequer,
com traços esquisitos, formas horríveis e cores grosseiras, seus
cocos, suas penas, seu próprio corpo. E muito embora este
do pólo objetivo de sua poesia. A arte, com efeito, é"
conjunto de imagens consista nas formas mais caprichosas, expressiva, mas não pode ser expressiva sem ser for-
ainda que não tenha proporções de forma, suas partes se har- mativa. E este processo formativo é posto em prática
monizarão entre si, pois um único sentimento as criou num
todo característico. Ora, esta arte característica é a única em certo meio sensório. "Assim que se liberta dos
verdadeira. Quando atua sobre o que está à sua volta, partindo cuidados e do medo", escreve Goethe, "semideus,
de um sentimento interior, único, individual, original, indepen-
dente, descuidado e até ignorante de tudo o que lhe é. alheio, criativo em repouso, tateia ao seu redor, à procura de
então, quer tenha nascido da rude selvageria, quer tenha pro- matéria em que possa insuflar seu espírito". Em
vindo da sensibilidade cultivada, é completa e viva. l.
muitas teorias estéticas modernas - especialmente a
de Croce e de seus discípulos e seguidores - este fa-
1. Goethe, "Von deutscher Baukunst", "Werke", XXXVII, pp. tor material é esquecido ou reduzido à expressão mais
148 e seguinte. Traduzido para o inglês por Bemard Bosanquet em simples. Croce se interessa apenas pelo fato da ex-
Three Lectures on Aesthetic (Londres, Macmillan, 1923), pp. 114 e
seguintes. pressão, não pelo modo. No seu entender, o modo é
226 Ernst Cassirer Antropologia Filos6fica 227

irrelevante, tanto para o caráter quanto para o valor templação da obra de arte. Cada gesto já não é mais
da obra de arte. A única coisa que importa é a intui- - uma obra de arte nem cada interjeição um ato de lin-
ção do artista, não a corporificação desta intuição num guagem. Tanto um como o outro carecem de uma ca-
material particular, que tem importância técnica, mas racterística essencial e indispensável. São reações in-
não estética. A filosofia de Croce é uma filosofia do ' voluntárias e instintivas, que não possuem esponta-
espírito, que acentua o caráter puramente espiritual neidade verdadeira. Assim, o momento da intencio-
da obra de arte. Mas em sua teoria, toda a energia nalidade é necessário à expressão lingüística como à
espiritual se contém e se gasta na formação da intui- expre~~()._~(sticª! Em_t.od<?'!tode linguagem e em
ção. Completado o processo, está realizada a criação toda criação artística encontramos uma estrutura te-
artística. O que se segue é apenas uma reprodução leológica definida. O. ator, num drama, _.realmente
externa, necessária à comunicação da intuição, mas "representa" seu papel 'roda expressão individual é
sem sentido no que respeita à sua essência. Para um parte de um todo estrutura). coerente. A:infle}C~? __
e o
grande pintor, um grande músico ou um grande poe- ritmo das palav~ªªLªIIlod1l1.açã.oda voz, as expressões
ta, as cores, as linhas, os ritmos e as palavras não são do rosto e as ·posturas do corpo t~.ndeill,·-i9~asao-mes-
simplesmente uma parte do seu aparelhamento técni- mo fim - encarnar um caráter humano. Nada disto
co; são momentos necessários ao próprio processo é simpiesin~nte-'{expiéssaoj',-ê:iamb~in; representa-
produtivo. ção e interpretação. Nem mesmo um poema lírico
Isto é tão verdadeiro em relação às artes especi- é totalmente destituído desta tendência geral da arte.
ficamente expressivas quanto em relação às artes re- O poeta lírico não é apenas um homem que se entre-
presentativas. Nem mesmo na poesia lírica a emo- ga a expressões de sentimentos. Deixar-se arrastar
ção é a característica única e decisiva. Está visto, na- apenas pela emoção é sentimentalismo, não é arte. O
turalmente, que os grandes poetas líricos são capazes artista que se absorve, não na contemplação e na cria-
das mais profundas emoções e que o artista não do- ção de formas, mas no próprio prazer ou no gozo da
tado de sentimentos vigorosos jamais produzirá coisa "alegria da dor" torna-se um sentimentalista. Por-
alguma senão arte superficial e frívola. Mas deste fa- tanto, dificilmente poderemos atribuir à arte lírica um
to não podemos concluir que a função da poesia lírica caráter mais subjetivo do que a todas as outras for-
e da arte em geral possa ser adequadamente descrita mas de arte. Pois contém a mesma espécie de perso-
como a capacidade do artista de "confessar seus senti- nificação e o mesmo processo de objetivação. "A poe-
mentos". "O que o artista está tentando fazer", diz sia", escreveu Mallarmé, "não se escreve com idéias,
R. G. Collingwood, "é expressar determinada emoção. escreve-se com palavras". Escreve-se com imagens,
Expressá-Ia, e expressá-Ia bem, são a mesma coi- sons e ritmos, que, exatamente como no caso da poe-
sa. .. Toda expressão e todo gesto de cada um de sia e da representação dramáticas, se aglutinam num
nós é uma obra de arte". 1 Mas aqui, mais uma vez, todo indivisível. Em todo grande poema lírico encon-
passa-se inteiramente por alto todo o processo cons- tramos esta unidade concreta e indivisível.
trutivo, requisito tanto da produção quanto da con- Como as demais formas simbólicas, a arte não é r
a mera reprodução de uma realidade dada, já pronta. '
1. R. G. Collingwood, The PrincipIes 01 Art (Oxford, Clarendon
Press, 1938), pp. 279, 282, 285. É um dos caminhos que conduz à visão objetiva das
228 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 229

coisas e da vida humana. Não é imitação, mas desco- sumir uma forma definida e tornar-se um todo siste-
brimento da realidade. Não descobrimos, porém, a na- mático. O que a ciência está procurando são algumas
tureza através da arte no mesmo sentido em que o características centrais de determinado objeto, das
cientista emprega o termo "natureza". A linguagem quais talvez derivem todas as suas qualidades parti-
e a ciência são os dois principais processos por cujo culares. Conhecendo o número atômico de certo ele-
intermédio verificamos e determinamos nossos con- mento, o químico possui a chave de uma visão com-
ceitos do mundo externo. Precisamos classificar nos- pleta de sua estrutura e constituição. Deste número
sas percepções sensoriais e agrupá-Ias sob noções e re-
deduz todas as propriedades características do ele-
gras gerais a fim de dar-lhes um significado objetivo.
mento. Mas a arte não admite esta espécie de sim-
Esta classificação é o resultado de um esforço persis-
plificação conceitual e generalização dedutiva. Não
tente no sentido da simplificação. Igualmente, a obra
indaga das qualidades e das causas das coisas; dá-nos
de arte supõe um ato semelhante de condensação e
a intuição de sua forma. Mas isto também não é, ab-
concentração. Quando quis descrever a verdadeira
solutamente, uma simples repetição de algo que tínha-
diferença entre poesia e história, Aristóteles insistiu
nesse processo. O que o drama nos dá, afirma ele, é mos antes. É uma verdadeira e genuína descoberta.
uma ação isolada (lUa: 1tpa:~[~) que é um todo completo O artista é tanto um descobridor das formas da natu-
em si mesmo, com toda a unidade orgânica de uma reza quando o cientista o é de fatos ou leis naturais.
criatura viva; ao passo que o historiador tem de lidar Os grandes artistas de todos os tempos tiveram co-
não com uma ação mas com um período e com tudo nhecimento desta tarefa especial e deste dom especial
o que aconteceu nesse período a uma ou mais pessoas, da arte. Leonardo da Vinci falou do escopo da pin-
por desconexos que possam ter sido os diversos acon- tura e da escultura com estas palavras: "saper vede-
tecimentos. 1 re", De acordo com ele, o pintor e o escultor são os
Neste sentido, tanto a beleza quanto a verdade grandes mestres do reino do mundo visível, pois a
podem ser descritas em termos da mesma fórmula consciência das formas puras das coisas não é, de ma-
clássica: são "uma unidade no múltiplo". Nos dois neira alguma, um dom instintivo, uma dádiva da na-
casos, todavia, há uma diferença de ênfase. A lingua- tureza. Podemos ter encontrado mil vezes com um
gem e a ciência abreviam a realidade; a arte intensi- objeto de nossa experiência sensorial sem jamais lhe
fica-a. A linguagem e a ciência dependem do mesmo ter "visto" a forma. Ainda ficaremos perplexos se nos
processo de abstração; a arte pode ser descrita como pedirem para descrever, não suas qualidades ou efei-
um contínuo processo de concreção. Em nossa descri- tos físicos, mas sua forma visual pura e sua estrutura.
ção científica de determinado objeto começamos com À_arte enche esta lacuna: nela vivemos no reino das
um grande número de observações que, à primeira formas puras, muito mais do que no reino da análise
vista, são apenas um frouxo conglomerado de fatos e do exame dos objetos sensoriais ou do estudo de
separados. Mas à proporção que prosseguimos, estes seus efeitos.
fenômenos individuais tendem, cada vez mais, a as- De um ponto de vista meramente teórico pode-
mos endossar as palavras de Kant, segundo as quais
1. Arist6teles, op. cit., 23. 14598 17·29.Ed.Bywater, pp. 70·73. a matemática é o "orgulho da razão humana". Mas
Antropologia Filosófica 231
230 Ernst Cassirer

do que riossa percepção sensorial comum. Na percep-


por este triunfo da razão científica temos de pagar
ção sensorial nos contentamos de apreender os traços
um preço elevadíssimo. Ciência significa abstração, e
comuns e constantes dos objetos que nos cercam. A
abstração é sempre um empobrecimento da realidade.
experiência estética é incomparavelmente mais rica;
As formas das coisas, tais como são descritas em con-
é fértil de infinitas possibilidades, que permanecem
ceitos científicos, tendem, cada vez mais, a tornar-se
não realizadas na experiência sensorial comum. Na
simples fórmulas, de surpreendente simplicidade. obra do artista, tais possibilidades se tornam realida-
Uma única fórmula, como a lei newtoniana da gravi- des; trazidas para o ar livre, assumem forma definida.
tação, parece compreender e explicar toda a estrutu- A revelação desta inexauribilidade dos aspectos das
ra de nosso universo material. Dir-se-ia que a reali- coisas é um dos grandes privilégios e um dos mais
dade seria não só acessível às nossas abstrações cien- profundos encantos da arte.
tíficas mas também esgotável por elas. Mas logo que O pintor Ludwig Richter relata em suas memó-
nos aproximamos do campo da arte, isto se revela rias que, certa vez, quando moço, achando-se em Tí-
uma ilusão. Pois os aspectos das coisas são inumerá- voli, com três amigos puseram-se a pintar a mesma
veis, variando de um momento para outro. Qualquer paisagem. Estavam todos firmemente resolvidos a não
tentativa para encerrá-los numa simples fórmula se- se afastarem da natureza, desejando reproduzir o que
ria baldada. O dito de Heráclito, segundo o qual o Sol viam com a maior fidelidade possível. Não obstante,
se renova todos os dias, é verdadeiro para o sol do o resultado foi quatro quadros totalmente diferentes,
artista, ainda que não o seja para o sol do cientista. tão diferentes um do outro como as personalidades
Quando o cientista descreve um objeto, caracteriza-o dos artistas. Desta experiência concluiu o pintor que
por uma série de números, por suas constantes físicas não existe o que se poderia chamar uma visão obje-
e químicas. A arte tem não só um objetivo diferente tiva, e que a forma e a cor são sempre apreendidas de
mas também um objeto diferente. Se dissermos de acordo com o temperamento individual. 1 Nem os
dois artistas que pintam "a mesma" paisagem, des- mais resolutos defensores de um rigoroso e intransi-
creveremos muito inadequadamente nossa experiência gente naturalismo poderiam desprezar ou negar este
estética. Do ponto de vista da arte esta pretensa mes- fator. Émile Zola define a obra de arte como "un coin
mice é totalmente ilusória. Não podemos falar da de la nature vu à travers un tempérament". O que
mesma coisa como tema de ambos os pintores. Pois aqui se menciona como temperamento não é apenas
o artista não retrata nem copia certo objeto empírico a singularidade ou a idiossincrasia. Quando nos absor-
- uma paisagem com suas colinas e montanhas, seus vemos na contemplação de uma grande obra de arte,
córregos e seus rios. O que ele nos dá é a fisionomia não sentimos a separação entre os mundos subjetivo
individual e momentânea da paisagem. Deseja ex- e objetivo. Não vivemos em nossa realidade comum e
pressar a atmosfera das coisas, o jogo de luzes e som- vulgar das coisas físicas, nem vivemos inteiramente
bras. Uma paisagem não é "a mesma" ao amanhecer, dentro de uma esfera individual. Além destas duas es-
ao calor do meio-dia ou num dia chuvoso ou ensola-
rado. Nossa percepção estética exibe muito maior va- 1. Tirei essa história dos PrincipIes of Art History de Heinrlch
riedade e pertence a uma ordem muito mais complexa Wõlfflin.
T
I.

232 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 233

feras, detectamos um novo reino, o das formas plás- ou um romance de Dostoievski não são exclusivamente
ticas, musicais, poéticas; e estas formas possuem uma representativos nem exclusivamente expressivos. São
universalidade real. Kant distingue nitidamente en- simbólicos num sentido novo e mais profundo. As
tre o que denomina "universalidade estética" e "va- obras dos grandes poetas líricos - de Goethe ou Hõl-
lidade objetiva", que pertence aos nossos juízos lógi- derlin, de Wordsworth ou de Shelley - não nos dão
cos e científicos. 1 I Em nossos julgamentos estéticos, disjecti membra poetae, fragmentos esparsos e incoe-
argumenta ele, não nos ocupamos do objeto como tal, rentes da vida do poeta; não são, simplesmente, um
mas de sua pura contemplação. A universalidade es- transporte momentâneo de um sentimento apaixona-
tética significa que o predicado da beleza não se res- do, mas revelam uma unidade e continuidade profun-
tringe a um indivíduo especial, mas se estende a todo das. Os grandes autores trágicos e cômicos, por ou-
o campo dos indivíduos que julgam. Se a obra de tro lado - Eurípides e Shakespeare, Cervantes e Mo-
arte fosse tão-só a extravagância e o frenesi de um liere - não nos entretêm com cenas isoladas do es-
artista, não possuiria essa comunicabilidade univer- petáculo da vida. Tomadas em si mesmas, estas ce-
sal. A imaginação do artista não inventa arbitraria- nas são apenas sombras fugitivas. De repente, po-
mente as formas das coisas, mas vem mostrá-Ias em rém, começamos a ver através delas e a contemplar
sua verdadeira configuração, tornando-as visíveis e uma nova realidade. Através de seus personagens e
reconhecíveis; escolhe certo aspecto da realidade, mas ações, o poeta cômico e o trágico revelam sua visão
este processo de seleção é, ao mesmo tempo, de obje- da vida humana como um todo, nas suas grandezas e
tificação. Depois de havermos penetrado em sua pers- fraquezas, na sua sublimidade e em seus absurdos.
pectiva, somos obrigados a olhar para o mundo com "A arte", escreve Goethe,
olhos de artista. Parece como se nunca tivéssemos
não se propõe emular a natureza em sua amplitude e profun-
visto o mundo a esta luz peculiar. No entanto, esta- didade. Permanece à superfície dos fenômenos naturais; mas
mos convencidos de que esta luz não é simplesmente possui sua própria profundidade e própria força; cristaliza os
momentos mais altos destes fenômenos superficiais, reconhe-
um clarão momentâneo e que, graças à obra de arte cendo neles o caráter de legalidade, a perfeição da proporção
se tornou durável e permanente. E depois que a rea- harmoniosa, o auge da beleza, a dignidade da Significação, o
clímax da paixão. 1
lidade nos foi revelada nesta forma particular, assim
continuamos a vê-Ia. A fixação dos "mais altos momentos dos fenôme-
Por conseguinte, é difícil estabelecer uma distin- nos" não é imitação de coisas físicas nem simples
ção nítida entre as artes objetivas e subjetivas, repre- transbordamento de sentimentos poderosos. É uma
sentativas e expressivas. O friso do Partenão ou uma interpretação da realidade - não através de concei-
Missa de Bach, a "Capela Sistina" de Miguel Ângelo tos, mas de intuições; não por meio do pensamento,
ou um poema de Leopardi, uma sonata de Beethoven mas das formas sensórias.
l. Na terminologia de Kant a primeira se denomina Gemeingültig- Desde Platão até Tolstoi, a arte tem sido acusada I"
keit, ao passo que a última é chamada Allgemeingültigkeit- distinção de excitar nossas emoções, assim perturbando a or-I
difícil de se traduzir em outra língua. Sobre uma interpretação sis-
temática dos dois termos, veja H. W. Cassírer, A Commentary on
Kant's "Critique ot iuâçment", de Kant (Londres),193B, pp. 190 e se- 1. Goethe, Notas a uma tradução do "Essai sur Ia peinture" de \
guintes. Diderot, "Werke", XLV, 260.
234 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 235

dem e harmonia de nossa vida moral. De acordo com Nas tragédias de Shakespeare não somos infetados
PIatão, a imaginação poética rega nossa experiência pela ambição de Macbeth, pela crueldade de Ricardo
de concupiscência e cólera, de desejo e dor, fazendo-a III ou pelos ciúmes de Otelo. Não ficamos à mercê
florescer quando devia morrer de sede. 1 Tolstoi vê destas emoções; olhamos através delas, procurando
na arte uma fonte de infecção. "Não somente a in- penetrar em sua verdadeira natureza e essência. Nes-
fecção", diz ele, "é sinal de arte, mas o grau de infec- te sentido, a teoria de Shakespeare sobre a arte dra-
ção é também a única medida de excelência na arte". mática, se porventura a teve, está perfeitamente de
A falha desta teoria é óbvia: Tolstoi suprime um fator acordo com a concepção das belas-artes dos grandes
fundamental da arte, o da forma. A experiência es- pintores e escultores da Renascenca. Endossaria as
tética - a experiência da contemplação - é um esta- palavras de Leonardo da Vinci, quando diz que «sa-
do de espírito diferente da frieza de nosso julgamento per vedere" é o supremo dom do artista. Os grandes
teórico e da sobriedade de nosso juizo moral. Está pintores nos mostram as formas das coisas exteriores;
cheia das mais vivas energias da paixão, mas a pró- os grandes dramaturgos as da nossa vida interior. A
pria paixão se encontra transformada não só em sua arte dramática descobre uma nova amplitude e pro-
natureza como no sentido. Wordsworth define a poe- fundidade da vida. Transmite uma consciência das
sia como "emoção recordada na tranqüilidade". Mas coisas e destinos humanos, da grandeza e da miséria
a tranqüilidade que sentimos na grande poesia não é humanas, em confronto com a qual nossa existência
a da recordação. As emoções despertadas pelo poeta habitual parece pobre e trivial. Todos nós sentimos,
não pertencem a um passa d o remoto. E st-" ao aqui." vaga e confusamente, as infinitas potencialidades da
- vivas e imediatas. Temos consciência de toda sua vida, que esperam silenciosas o momento em que se-
força, mas esta força tende para uma nova direção. rão despertadas de sua letargia para a clara e intensa
É antes vista que imediatamente sentida. Nossas pai- luz da consciência. Não é o grau de infecção mas o
xões já não são forças escuras e impenetráveis; tor- de intensificação e luminosidade que mede a excelên-
nam-se, por assim dizer, transparentes. Shakespeare cia da arte.
nunca nos deu uma teoria estética. Não especula , Se aceitarmos este ponto de vista da arte, pode-
sobre a natureza da arte. Entretanto, no único trecho remos chegar a uma compreensão melhor do proble-
\.
em que se refere ao caráter e à função da arte dramá- ma inicial encontrado na teoria aristotélica da catarse.
tica, toda a ênfase é colocada sobre este ponto. "O Não precisamos abordar todas as dificuldades do ter-
propósito da representação", explica Hamlet, "tanto mo aristotélico, nem os inúmeros esforços dos comen-
no princípio como agora, era e é, por assim dizer, tadores para esclarecê-Ias. lOque parece ser claro,
segurar o espelho para a natureza; mostrar à virtude e hoje se admite de um modo geral, é que o processo
seus próprios traços, desprezar-lhe a imagem, e à épo- catártico descrito por Aristóteles não significa purifi-
ca e ao corpo do tempo sua forma e consistência". cação nem mudança de caráter e qualidade das pró-
Mas a imagem da paixão não é a própria paixão. O
poeta que representa uma paixão nos infeta com ela. 1. Sobre pormenores veja Jakob Bernays, Zwei Abhandlungen
iiber die Aristotelische Theorie des Dramas (Berlim, 1880) e Ingram
Bywater, Aristotle on the Art 01 Poetry (Oxford, 1909), pp. 152 e
l. Platão, a República, 606D (tradução de Jowett). seguintes.
236 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 237

própria vida - a contínua oscilação entre pólos OpOS-i


prías paixoes, mas sim mudança da alma humana.
tos, entre a alegria e a tristeza, esperança e medo,
Pela poesia trágica, a alma adquire uma nova atitude
exultação e desespero. Dar forma estética às nossas
em relação às suas emoções; experimenta compaixão paixões significa transformá-Ias num estado livre e
e medo mas, em lugar de se sentir perturbada e an- ativo. Na obra do artista o poder da própria paixão
siosa, é levada a um estado de repouso e paz. À pri- foi' convertido em força criadora.
meira vista, isto pareceria uma contradição, pois o que Pode objetar-se que tudo isto se aplica ao artista 'I
Aristóteles considera como o efeito da tragédia é uma e não a nós, espectadores e ouvintes. Mas tal objeção!
síntese de dois momentos que, na vida real, em nossa significaria incompreensão do processo artístico. Co-,
existência prática, se excluem mutuamente. A mais mo o processo da linguagem, o processo artístico é'
alta intensificação de nossa vida emocional é vista dialógico e dialético. Nem mesmo o espectador é dei-
como se, ao mesmo tempo, nos proporcionasse um sen- xado num papel meramente passivo. Não podemos
tido de repouso. Vivemos através de nossas paixões compreender a obra de arte sem repetir e reconstruir,
sentindo toda sua amplitude e sua máxima tensão, até certo ponto, o processo criador que lhe deu vida.
mas o que deixamos para trás ao cruzar o limiar da Pela natureza deste processo, as próprias paixões se
arte, é a dura opressão, a compulsão de nossas emo- transformam em ações. Se na vida real tivéssemos de
ções. O poeta trágico não é o escravo, mas o senhor de suportar todas as emoções que vivemos no Édipo de
suas emoções, e é capaz de comunicar este domínio Sófocles ou no Rei Lear de Shakespeare, dificilmente
aos espectadores. Em sua obra não somos dominados sobreviveríamos ao choque e à tensão. Mas a arte
e arrebatados por nossas emoções. A liberdade es- transforma todos os sofrimentos e violências, cruelda-
tética não é a ausência de paixões, não é a apatia es- des e atrocidades em meios de autolibertação, dando-
tóica, mas é exatamente o contrário. Significa que -nos assim uma liberdade interior que não pode ser
nossa vida emocional adquire sua maior força e que, alcança da de nenhum outro modo.
nesta mesma força, modifica sua forma; ou que já não Por conseguinte, a tentativa de caracterizar uma
vivemos na realidade imediata das coisas, mas num obra de arte por algum aspecto emocional particular
mundo de puras formas sensórias. Neste mundo, to- deixará, inevitavelmente, de fazer-lhe justiça. Se o
dos os nossos sentimentos sofrem uma espécie de tran- que a arte tenta expressar não é um estado especial,
substanciação no que tange à sua essência e seu cará- mas o próprio processo dinâmico de nossa vida inte-
ter. As próprias paixões são libertadas de sua carga rior, qualquer qualificação semelhante pouco mais se-
material: sentimos sua forma e vida, mas não o peso. ria do que perfunctória e superficial. A arte deve
A calma da obra de arte, paradoxalmente, é dinâmi- sempre nos proporcionar mais o movimento que a
ca, e não estática; a arte nos dá os movimentos da simples emoção. Mesmo a distinção entre arte trági-
alma humana em toda sua profundidade e variedade. ca e cômica é muito mais convencional que necessária.
Mas a forma, a medida e o ritmo destes movimentos Refere-se ao conteúdo e aos motivos, mas não à forma
não se comparam a nenhum estado emotivo em par- e essência da arte. Platão já negara, há muito tempo,
ticular. O que sentimos na arte não é uma simples e a existência destes limites artificiais e tradicionais. No
única qualidade emocional. É o processo dinâmico da fim do Banquete, descreve Sócrates entretido numa
~

l
238 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 239

conversação com Agatão, o poeta trágico, e Aristófa- das emoções humanas, desde a nota mais baixa até a
nes, o poeta cômico. Sócrates compele os dois poetas mais alta; é o movimento e a vibração de todo o nosso
a admitirem que o trágico verdadeiro é o verdadeiro ser. Nem os maiores comediógrafos nos podem ofere-
artista na comédia, e vice-versa. 1 No Filebo se inclui cer uma beleza fácil. Sua obra, não raro, está cheia
um comentário sobre esta passagem; na comédia co- de uma grande amargura. Aristófanes é um dos mais
mo na tragédia, sustenta Platão nesse diálogo, experi- incisivos e severos críticos da natureza humana; Mo-
mentamos um sentimento misto de prazer e dor. Nis- líêre em nenhum momento é tão grande quanto no
to, o poeta segue as regras da própria natureza, visto Misanthrope ou em Tartuffe. Entretanto, o azedume
que retrata "toda comédia e tragédia da vida".2 Em dos grandes autores cômicos não é a acerbidade do
todo grande poema - nas peças de Shakespeare, na satírico nem a severidade do moralista. Não conduz
Divina Commedia de Dante, no Fausto de Goethe - a um veredicto moral sobre a vida humana. A arte
temos de passar, realmente, por toda gama de emoções cômica possui, no mais alto grau, a faculdade comum
humanas. Se fôssemos incapazes de captar os mati-
a toda a arte de visão simpática. Em virtude desta
zes mais delicados das diferentes gradações de senti-
faculdade, pode aceitar a vida humana com todos os
mentos, e de seguir as contínuas variações de ritmo e
seus defeitos e fraquezas, seus vícios e tolices. A gran-
de tom, se não nos comovessem as súbitas mudanças
dinâmicas, não poderíamos compreender e sentir a de arte cômica tem sempre uma espécie de encomium
criação poética. Podemos falar do temperamento in- moriae, um elogio da tolice. Na perspectiva cômica
dividual do artista, mas a obra de arte, como tal, não todas as coisas principiam a assumir uma face nova.
tem temperamento especial. Não podemos incluí-Ia Nunca estamos talvez mais próximos do nosso mundo
em nenhum conceito tradicional e psicológico de clas- humano como nas obras de um grande escritor cômi-
se. Dizer que a música de Mozart é festiva ou serena, co - no Don Quiljote de Cervantes, no Tristram
que a de Beethoven é grave, sombria ou sublime, re- Shandy de Sterne ou nos Pickwick Papers de Dickens.
velaria um gosto superficial. Neste caso, também, a Passamos a observar os mínimos detalhes, vendo este
distinção entre tragédia e comédia se torna irrelevan- mundo em toda a sua estreiteza, mesquinhez e nece-
te. A pergunta sobre se Don Giovanni de Mozart é dade. Vivemos neste mundo restrito, mas já não so-
uma opera buffa, apenas merecerá resposta. A com- mos prisioneiros dele. Tal é o caráter peculiar da ca-
posição de Beethoven baseada no "Hino à Alegria" tarse cômica. As coisas e os acontecimentos princi-
de Schiller expressa o mais alto grau de exultação, piam a perder o peso material; o desprezo dilui-se em
mas ao ouvi-Ia nem por um momento esquecemos as riso e riso é liberação.
trágicas expressões da Nona Sinfonia. Todos estes Que a beleza não é propriedade imediata das coi-
contrastes precisam estar presentes e ser sentidos em sas, e que estabelece necessariamente uma relação ,I

toda a sua força. Nossa experiência estética se funde com a mente humana, é ponto que parece pacífico
num todo indivisível. O que ouvimos é a escala total em quase todas as teorias estéticas. Em seu ensaio
"Of the Standard of Taste" Hume declara: "A beleza
1. Platão, o Banquete, 223(tradução de Jowett). não é uma qualidade existente nas próprias coisas:
2. Filebo, 48 e seguintes (tradução de Jowett). existe apenas na mente que as contempla". Mas esta
240 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 241

afirmação é ambígua. Se entendermos a mente no bonita árvore. No seu entender, a natureza é estúpi-
próprio sentido de Hume, e pensarmos no eu como da quando cotejada com a arte; é muda a não ser
num simples feixe de impressões, será muito difícil quando o homem a faz falar. A contradição entre es-
encontrar neste feixe o predicado que denominamos tas concepções poderá talvez resolver-se se estabele-
beleza. A beleza não pode ser definida pelos seus me- I cermos uma distinção bem definida entre a beleza or-
ros percipi, como "sendo percebida"; precisa ser defi-: gânica e a beleza estética. Existem muitas belezas
nida em termos de uma atividade da mente, da fun- naturais sem nenhum caráter especificamente estéti-
ção de perceber e por uma direção característica desta' co. A beleza orgânica de uma paisagem não é idên-
função. Não consiste em perceptos passivos; é um tica à beleza estética que sentimos nas obras dos gran-
modo, um processo de perceptualização. Mas este des pintores paisagistas. Até nós, espectadores, temos
processo não tem caráter meramente subjetivo; ao plena consciência desta diferença. Posso passear por
contrário, é uma das condições de nossa intuição de uma paisagem natural e sentir-lhe os encantos: gozar
um mundo objetivo. O olho artístico não é o olho da suavidade do ar, do frescor da relva, da variedade
passivo que recebe e registra a impressão das coisas; e vivacidade do colorido e da fragrância das flores.
é construtivo, e só por meio de atos construtivos po- Mas posso experimentar uma súbita mudança em meu
demos descobrir a beleza das coisas naturais. O sen- ' estado de espírito: vejo então a paisagem com os olhos
tido da beleza é a suscetibilidade à vida dinâmica das do artista - com ela começo a formar uma pintura.
formas, e esta vida não pode ser apreendida senão ' Acabo de entrar num novo reino - o reino, não das
por um processo dinâmico correspondente em nós coisas vivas, porém das "formas vivas". Deixando a
imediata realidade das coisas, vivo agora no ritmo das
mesmos.
formas espaciais, na harmonia e no contraste das co-
Nas várias teorias estéticas esta polaridade que, res, no equilíbrio de luz e de sombras. Nesta absor-
como vimos, é uma inerente condição da beleza, con- ção no aspecto dinâmico da forma consiste a experiên-
duziu, sem dúvida, a interpretações diametralmente cia estética.
opostas. Segundo Albrecht Dürer, o verdadeiro dom
do artista é "extrair" a beleza da natureza. "Denn 2
wahrhaftig steckt die Kunst in der Natur, wer sie
heraus kann reissen, der hat sie." 1 Por outro Todas as controvérsias entre as vanas escolas' ('
lado, encontramos teorias espiritualistas que ne- estéticas, num sentido, podem reduzir-se a um ponto.
gam qualquer conexão entre a beleza da arte e O que todas precisam admitir é que a arte constitui
a chamada beleza da natureza. A beleza da natu- um "universo do discurso" independente. Até os mais
reza é compreendida como simples metáfora. Para radicais defensores de um realismo rigoroso, que de-
sejava limitá-Ia a uma exclusiva função mimética,
Croce, é pura retórica falar de um belo rio ou de uma
precisaram tomar em consideração a força específica
da imaginação artística. Mas as várias escolas dife-
1. "Pois a arte está firmemente fixa na natureza - e s6 a possui riam consideravelmente na avaliação dessa força. As
quem consegue arrancá-Ia de lá." Veja William M. Conway, Literary
Remains 01 Albrecht Dürer (889), p. 182. teorias clássicas e neoclássicas não estimulavam a li-
242 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 243

vre atividade da imaginação, e pelo seu ponto de vis- O maravilhoso, gradativamente, sobrepuja e eclipsa o
ta, a imaginação do artista é um grande dom, porém provável como tema literário. A nova teoria parecia
contestável. O próprio Boileau não negava que, psi- corporificada nas obras dos maiores poetas. O pró-
cologicamente falando, o dom da imaginação é indis- prio Shakespeare a ilustrara na descrição da imagina-
pensável a todo verdadeiro poeta. Mas se o poeta se ção do poeta:
entregar à simples atividade do seu impulso natural e
força instintiva, nunca atingirá a perfeição. A imagi- The lunatic, the lover, and the poet
o lunático, o amante e o poeta
nação do poeta deve ser guiada e controlada pela ra- Are of imagination aIl compact:
zão e sujeita a suas regras. Mesmo quando se afasta São todos feitos de imaginação:
do natural, o poeta precisa respeitar as leis da razão, One sees more devils than vast hell can hold,
que o restringem ao campo do provável. O classicis- Um vê mais demônios que o vasto inferno abriga,
mo francês definiu este campo em termos puramente That is, the madman; the lover, all as frantic,
É o insano; e o frenesi do amante,
objetivos. As unidades dramáticas de espaço e tempo
Sees Helen's beauty in a brow of Egypt:
tornaram-se fatos físicos, mensuráveis por um padrão De Helena a formosura vê pairar no Egito:
linear ou por um relógio. The poet's eye, in a fine frenzy rolling,
Uma concepção inteiramente diferente do caráter i o olhar do poeta, revolvendo um suave delírio
e da função da imaginação poética foi introduzida pe- ' Doth glance from heaven to earth, from earth to
Ia teoria romântica da arte. Esta teoria não é obra da [heaven;
Vai da terra ao céu e do céu à terra;
chamada "escola romântica" na Alemanha. Desen-
And, as imagination bodies forth
volvida muito antes, começou a desempenhar um pa- E, como a imaginação encarna
pel decisivo na literatura inglesa e francesa, durante The forms of things unknown, the poet's pen
o século XVIII. Uma das melhores e mais concisas As formas de desconhecidas coisas, a pluma do poeta
expressões desta teoria se encontra nas Conjectures Turns them to shapes, and gives to airy nothing
on Original Composition de Edward Young (1759). As converte em figuras, dando às ninharias do ar
"A pena de um escritor original", diz Young, "como A local habitation and a name. 1
Morada e nome.
a vara de condão de Armida, faz de um deserto esté-
ril uma florida primavera". A partir deste momento, Entretanto, a romântica concepção da poesia não
os pontos de vista clássicos sobre o provável foram encontrou sólido apoio em Shakespeare. Se precisás-
suplantados, cada vez mais, pelo seu oposto. Acredi- semos de provas de que o mundo do artista não é um
ta-se agora que o maravilhoso e o milagroso são os universo meramente "fantástico", não encontraría-
únicos temas que admitem uma verdadeira descrição mos melhor testemunha, nem mais clássica, que a de
poética. Na estética do século XVIII podemos acom- Shakespeare. A luz com que vê a natureza e a vida
panhar, passo a passo, a ascensão deste novo ideal. Os humana não é a simples "luz da fantasia presa à fan-
críticos suíços Bodmer e Breitinger apelam para Mil- tasia". Mas existe outra forma de imaginação à qual
ton a fim de justificar o "maravilhoso na poesia". 1 a poesia parece indissoluvelmente ligada. Quando Vico

1. ef. Bodmer e Breitinger, Diskurse der Maler (1721-23)_ 1. Sonho de Uma Noite de Verão, Ato V, cena 1.
244 Ernst Cassirer
245
Antropologia Filosófica

fez o primeiro ensaio para criar uma "lógica da ima- To every natural form, rock, fruits or flower,
ginação", voltou-se para o mundo do mito; fala-nos A toda forma natural, rochedos, frutos e fiores,
em três idades diferentes: a idade dos deuses, a idade Even the loose stones that cover the highway,
Mesmo às perdidas pedras do caminho,
dos heróis e a idade do homem. E, nas duas primeiras,
r gave a moral life: r saw them feel,
declarou que precisamos buscar a verdadeira origem Eu dei vida moral: vi que sentiam
da poesia. A humanidade não poderia começar com Or linked them to some feeling: the great mass
o pensamento abstrato nem com a linguagem racio- Ou as fiz ter sentimento: a grande massa
nal; teve que passar pela era da linguagem simbólica, Lay imbedded in a quickening soul, and all
Fica inundada em uma alma viva,. e tudo
do mito e da poesia. As primeiras nações não pensa-
That r beheld respired with inward meaning. 1
vam por meio de conceitos, mas por imagens poéticas; O que vejo respira com sentido interior.
falavam fabulando e escreviam hieróglifos. O poeta e
o criador de mitos parecem, de fato, viver no mesmo Mas com estes poderes de invenção e animação
mundo. Dotados do mesmo poder fundamental, o po- universal estamos apenas na ante-sala da arte. O ar-
der da personificação, não podem contemplar nenhum tista precisa não só sentir p "sentido interior" das
objeto sem lhe dar vida interior e forma pessoal. O coisas e sua vida moral, mas também exteriorizar seus
poeta moderno volve muitas vezes o olhar para os sentimentos. O poder mais alto e mais característico
tempos místicos, os tempos "divinos" ou "heróicos", da imaginação artística aparece neste último ato. A·
como para um paraíso perdido. Em seu poema "Os exteriorização significa a encarnação visível ou tan-
Deuses da Grécia", Schiller expressou este sentimen- gível, não apenas num meio material especial -, b~-
to. Desejava remem orar os tempos dos poetas gregos, ro bronze ou mármore - mas em formas senSlvelS,
para os quais o mito não era uma alegoria vazia, mas nos ritmos no padrão da cor, nas linhas e desenhos,
uma força viva. O poeta anseia por esta idade de ouro nas formas plásticas. Esta estrutura, o equilíbrio e
da poesia, em que todas as coisas ainda estavam cheias a ordem destas formas é o que nos influenciam na
de deuses, toda colina era a morada de uma oréade, obra de arte. Toda arte tem sua própria linguagem
cada árvore o lar de uma dríade. característica inconfundível e impermutável. As lin-
Mas esta aspiração do poeta moderno parece in- guagens das 'diversas artes podem es~Í' :~treli,gadas
fundada. Pois um dos grandes privilégios da arte é como, por exemplo.. quando uma poesia lírica e mu-
que nunca pode perder esta "idade divina". Nela, a sicada ou um poema é ilustrado; mas não pode~ s:r
fonte da imaginação criadora jamais pode secar por traduzidas uma na outra. Cada uma tem uma missao
ser indestrutível e inexaurível. Em todas as idades e especial a cumprir na "arquitetônica" da arte. "Os
em todo grande artista a operação da imaginação rea- problemas da forma que surgem desta estrutura ar-
parece em novas formas e com nova força. É prin- quite tônica" , declara Adolf Hildebrand,
cipalmente nos poetas líricos que sentimos este con- embora não nos sejam dados, imediatamente e de forma. evi-
tínuo renascimento e regeneração. Não podem tocar dente por si só, pela Natureza, são, n.o.entanto! os verdadeiros
problemas da arte. O material adquir'ido mediante ~ est?dO
uma coisa sem imbuí-Ia de sua própria vida interior. rnreto da Natureza se transforma pelo processo arqwtetômco,
Wordsworth descreveu este dom como a força ineren-
te à sua poesia: 1. Prelúdio, IU. 127-132.
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247
246 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica

numa unidade artística. Quando aludimos ao aspecto imitativo incidentes da história" em Otelo, Macbeth ou Rei Lear'
da arte, estamos referindo-nos ao material ainda não desen- _ não é indispensável compreender e sentir a arte trá-'
volvido desta maneira. Através do desenvolvimento arquitetõ-
nico, portanto, a escultura e a pintura passam da esfera do gica de Shakespeare. Sem sua linguagem e a força
simples naturalismo ao reino da verdadeira arte. 1
de seu estilo dramático, tudo isto deixaria de nos im-
Também na poesia encontramos este desenvolvi- pressionar .. Não se pode separar o contex~o de u.m
mento arquitetônico, sem o qual, a imitação ou inven- poema de sua forma - do verso, da melodia, ?o rit-
ção poéticas perderiam sua força. Os horrores do mo. Estes elementos formais não são apenas meIOSex-
Inferno de Dante permaneceriam horrores oprimen- ternos ou técnicos para reproduzir uma dada intui-
tes, os êxtases do Paradiso seriam sonhos visionários ção; são parte essencial da própria intuição ar:ístic_a.·
se não fossem moldados numa nova forma pela magia No pensamento romântico, a teoria da imagmaçao
do estilo e os versos do poeta. poética alcançou seu clímax. A imaginação já não é
Em sua teoria da tragédia, Aristóteles destacava j aquela atividade humana especial que constrói o n;~n-
a invenção do enredo trágico. De todos os ingredien-, do humano da arte; possui agora um valor metafísico
tes necessários da tragédia - espetáculo, persona- • , universal. A imaginação poética é a única chave da
gens, fábula, estilo, melodia e pensamento - conside- :,\' . realidade. O idealismo de Fíchte baseia-se na sua
rava a combinação das peripécias da história ( Yj 'tWV' ! concepção da "imaginação, produtiva" . Schelling de-
1tpa:y!J.<X'twvaua'ta:at~) a mais importante. Pois a tragédia' clarou, em seu Sistema de Idealismo Transcendental,
é essencialmente uma imitação, não de pessoas, mas que a arte é a consumação da filosofia .. Na natureza,
da ação e da vida. Numa peça, os personagens não na moral, na história, ainda estamos VIvendo no pro-
atuam para retratar os caracteres; mas estes são re- pileu da sabedoria filosófica; com a art~ ~enetramos
presentados em benefício da ação. É impossível uma no próprio santuário. Os autores romantlcos, tanto
tragédia sem ação, mas pode haver tragédia sem ca- em verso como em prosa, expressaram-se no mesmo
ráter.? O classicismo francês adotou e enfatizou esta sentido' acreditou-se que a distinção entre poesia e fi-
teoria aristotélica. Nos prefácios de suas peças, Cor- losofia 'fosse fútil e superficial. Segundo Friedrich
neille insiste sempre neste ponto. Fala com orgulho SchIegel o trabalho mais importante do poeta é por-
de sua tragédia Herâclio, onde o enredo era tão com- fiar por' alcançar uma nova forma de poesia, que ele
plicado que exigia um esforço intelectual especíalpa- descreve como "poesia transcendental". Nenhum ou-
ra ser compreendido e esclarecido. Está visto, contu-: tro gênero poético nos pode dar a ess~ncia d~ espí.rito
do, que esta espécie de atividade e prazer intelectual \ poético, a "poesia da poesia". 1 Poetlzar a ~losofIa e
não é um elemento necessário ao processo artístico .. filosofar a poesia - tal era o escopo ma~s alto de
Para apreciar os enredos de Shakespeare - para se- todos os pensadores românticos. O verd~de~ro p~ema
guir com o mais agudo interesse "a combinação dos não é a obra do artista individual; é o propno uruve~-
so a única obra de arte que está sempre se aperfei-
1. Adolf Hildebrand, Das Problem der Form in der bildenden çoando, Por isto, os mais profundos mistérios das
Kunst. Traduzido para o inglês por Max Meyer e R. M. Ogden, The
Problem ot Form in Painting and Sculpture (Nova Iorque, G. E. Ste-
chert Co., 1907), p. 12. 1. Cf. Schlegel, "Athenl!.umsfragmente", 238, em Prosaische lugen-
2. Aristóteles, op. cit" 6. 1450a 7-25. Ed. Bywater, pp, 18-19. dschriften, ed. por J_ Mirior (2." edição, Viena, 1906), lI. 242.
."
1
I
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Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 249


248

artes e ciências pertencem à poesia. 1 "Poesia", diz tos mais prosaicos, Novalis ficou profundamente de-
Novalis, "é o que é absoluta e genuinamente real. cepcionado. Não somente revogou seu primeiro juizo,
mas também acusou Goethe de trair a causa da poe-
Tal é a essência de minha filosofia. Quanto mais poé-
sia. Wilhelm Meister passou a ser considerado como
tico, tanto mais verdadeiro". 2
sátira, um "Candide contra a poesia". Quando a poe-
Com esta concepção, a poesia e a arte pareciam
sia perde de vista o maravilhoso, perde seu sentido e
elevar-se a uma posição e a uma dignidade que nunca justificação. A poesia não pode medrar em nosso
haviam conhecido antes. Converteram-se num novum mundo trivial e vulgar. O miraculoso, o maravilhoso
organum para o descobrimento da riqueza e da pro- e o misterioso são os únicos temas que permitem um
fundidade do universo. Não obstante, este louvor exu- tratamento verdadeiramente poético.
berante e extático da imaginação poética tinha suas Esta concepção da poesia, entretanto, é antes uma
rigorosas limitações. Para poderem alcançar seu alvo qualificação e uma limitação que uma autêntica des-
metafísico os românticos precisavam fazer um sério crição do processo criador da arte. Por curioso que
sacrifício. Proclamara-se que o infinito era o verda- pareça, os grandes realistas do século XIX possuíam,
deiro, o único tema da arte. Concebia-se o belo como neste sentido, uma visão mais aguda do processo ar-
representação simbólica do infinito. Só será artista, tístico que seus adversários românticos.' Sustentavam
de acordo com Friedrich Schlegel, quem tiver uma um naturalismo radical e intransigente, e precisamen-
religião própria, uma concepção original do infinito. 3 te este naturalismo os levou a uma concepção mais
Mas, neste caso, que é feito de nosso mundo finito, do profunda da forma artística. Negando as "formas pu-
mundo da experiência sensorial? Está visto que este ras" das escolas idealistas, concentraram-se no aspec-
mundo, como tal, não tem pretensões à beleza. Em to material das coisas. Em virtude desta concentra-
confronto com o verdadeiro universo, o universo do ção absoluta, foram capazes de superar o dualismo
poeta e do artista, nosso mundo comum e prosaico nos convencional entre as esferas poética e prosaica. No
parece desprovido de toda beleza poética. Um dua- entender dos realistas, a natureza de uma obra de
lismo desta espécie é traço essencial em todas as teo- arte não depende da grandeza ou da pequenez do
rias românticas da arte. Quando Goethe começou a tema. Nenhum tema, seja qual for, é impermeável à
publicar Wilhelm Meister's Lehrjahre, os primeiros energia formadora da arte. Um dos maiores triunfos
críticos românticos saudaram a obra com extravagan- da arte é fazer-nos ver as coisas comuns em sua for-
tes expressões de entusiasmo. Novalis viu em Goethe ma real e à sua verdadeira luz. Balzac mergulhou nas
"a encarnação do espírito poético da terra". Mas, à características mais insignificantes da "comédia hu-
proporção que a obra continuou, à medida que as fi- mana", Flaubert fez análises profundas dos mais mes-
guras românticas de Mignon e do harpista foram ofus- quinhos personagens. Em alguns romances de Émile
cadas por personagens mais realísticos e acontecimen- Zola encontramos minuciosas descrições da estrutura
de uma locomotiva, de uma loja comercial ou de uma
1. Schlegel,"Gesprâch über die Poesie" (1800), op. cít., 11, 364. mina de carvão. Nenhum pormenor técnico, por in-
2_ Novalis, ed. J. Minor, 111, 11. Cf. O. Walzel, German Roman- significante que fosse, era omitido nessas narrativas.
ticism, tradução inglesa de Alma E. Lussky (Nova Iorque, 1932),p. 28.
3. Idem, 13, em Prosaische Jugendschriften, II, 290.
.. Não obstante, impregnando as obras de todos esses
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250 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 251

realistas se observa grande força imaginativa, que não processo formador e criador. "Quicquid essentia dig-
é, de maneira alguma, inferior à dos autores român- num est", diz Bacon no Novum Organum, "id etiam
ticos. O fato de não poder esta força ser abertamen- scientia dignum est". 1 O dito se aplica tanto à arte
te reconhecida era um sério estorvo para as teorias quanto à ciência.
naturalísticas da arte. Em suas tentativas de refutar
as concepções românticas de uma poesia transcenden-
tal, voltavam elas à velha definição da arte como imi- 3
tação da natureza. Ao fazê-lo, deixavam de parte o As teorias psicológicas da arte gozam de uma cla-
ponto principal, visto que não reconheciam o caráter ra e palpável vantagem sobre todas as teorias meta-
simbólico da arte. Se admitíssemos uma caracteriza- físicas. Não são obrigadas a apresentar uma teoria
ção desta ordem, não parecia haver possibilidades de geral da beleza. Limitam-se a um âmbito menor, pois
fugir às teorias metafísicas do romantismo.~ arte, se ocupam apenas do fato da beleza e por sua análise
com efeito, é simbolismo, mas este simbolismo prê'Ci::' descritiva. A primeira tarefa da análise psicológica
Sé! ser compreendido num _ sentido imanente e não consiste em determinar a classe de fenômenos a que
transcendente. A beleza é "O Infinito apresentado fi- pertence nossa experiência da beleza. Este problema
nitamente", no dizer de Schelling. O verdadeiro tema não oferece dificuldades. Ninguém jamais poderá ne-
da arte, contudo, não é o Infinito metafísico de Schel- gar que a obra de arte nos proporciona o maior prazer,
líng, como não é o Absoluto de Hegel. Deve ser pro- talvez o mais intenso e duradouro de que é capaz a
curado em certos elementos estruturais fundamentais natureza humana. Logo que escolhemos este encon-
de nossa própria experiência sensorial - nas linhas, no tro psicológico, o segredo da arte parece resolvido;
desenho, nas formas arquitetônicas e musicais. Tais nada existe menos misterioso que o prazer e a dor.
elementos, por assim dizer, estão onipresentes. Livres Pôr em dúvida estes fenômenos tão conhecidos - não
de todo mistério, são patentes e não dissimulados; são só da vida humana mas também da vida em geral -
visíveis, audíveis, tangíveis. Neste sentido, Goethe seria absurdo. Aqui, mais do que em qualquer outro
não titubeou em dizer que a arte não pretende mos- lugar, encontramos um õoç !l0~ 1tOU ouo , um ponto fixo
trar a profundidade metafísica das coisas, apenas per- e imóvel para ficar. Se conseguirmos ligar nossa ex-
manece à superfície dos fenômenos naturais. Mas esta periência estética com este ponto, já não mais haverá
superfície não se entrega de pronto; só a conhecemos incerteza quanto ao caráter da beleza e da arte.
depois de descobri-Ia nas obras dos grandes artistas. A total simplicidade desta solução parece reco-
Este descobrimento, porém, não se circunscreve a um mendá-Ia. Por outro lado, todas as teorias do hedo-
campo especial. No mesmo grau em que a linguagem nismo estético têm os defeitos de suas qualidades. Co-
humana pode expressar todas as coisas, as mais baixas meçam com o estabelecimento de um fato simples,
e mais elevadas, a arte pode abranger e penetrar a inegável e óbvio; mas, logo após os primeiros passos,
esfera inteira da experiência humana. Nada no mun- em lugar de atingirem seu propósito, estacionam d~ \
do físico ou moral, nenhuma coisa natural e nenhuma repente. O prazer é um dado imediato de nossa ex- ! \
ação humana, se acha excluída por sua natureza e
essência, do reino da arte, porque nada resiste ao seu 1. Bacon, Novum Orçanum, Liber I, Aphor. CXX.
252 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 253

periência, porém, tomado como princípio psicológico, Pois como pode o prazer - o estado mais subjetivo
seu significado se torna extremamente vago e ambí- de nossa mente - ser objetificado? A ciência, diz
guo. O termo se estende por um campo tão vasto que Santayana, "é a resposta ao pedido de informação e
cobre os fenômenos mais diversos e heterogêneos. É nela perguntamos por toda a verdade e nada mais
sempre tentador introduzir um termo geral suficien- que a verdade. A arte é a resposta ao pedido de en-
temente amplo para incluir as referências mais dís- tretenimento,. .. e a verdade só se revela quando fa-
pares. Entretanto, se cairmos nesta tentação, correre- vorece estes fins". 1 Mas se tal fosse a finalidade da
mos o risco de perder de vista diferenças significativas arte, seríamos obrigados a dizer que ela, em suas mais
e importantes. Os sistemas de hedonismo ético e es- altas realizações, não atinge seu verdadeiro objetivo.
tético sempre propenderam a obliterar estas diferen- O "pedido de entretenimento" pode ser satisfeito por
ças específicas. Kant realça este ponto numa obser- meios muito melhores e mais baratos. Pensar que os
vação característica da Crítica da Razão Prática. Se grandes artistas trabalharam com este objetivo, que
a determinação de nossa vontade, argumenta, repou- Miguel Ângelo construiu a Catedral de São Pedro,
sa no sentimento de agrado ou desagrado que espera- que Dante ou Milton escreveram seus poemas, com
mos de qualquer causa, então não nos fará diferença fito de entretenimento, é impossível. Teriam, sem
a espécie de idéias que poderão nos influir. A única dúvida, endossado a máxima de Aristóteles, segundo
coisa que nos interessa é a escolha da extensão, du- a qual "esforçar-se e trabalhar por amor ao entrete-
ração, facilidade e freqüência desse agrado. nimento parece tolo e totalmente ínfantil't.P Se arte
ASSllIlcomo, para o homem que quer dinheiro para g~star,
é prazer, não é o prazer das coisas, mas das formas.
pouco importa que o ouro proceda da montanha ou seja retirado, O gozo das formas é muito diferente do das coisas ou
por lavagem da areia, contanto que em toda parte tenha o mesmo das impressões sensoriais. As formas não podem ser
valor assim o homem que se interessa exclusivamente em gozar
a vida não pergunta se as idéias vêm do entendimento ou dos simplesmente impressas em nossa mente; precisamos
sentidos, mas apenas quanto e quão intenso prazer lhe propor- produzi-Ias para sentir-lhes a beleza. É uma falha co-
cionarão pelo maior espaço de tempo. 1
mum, a todos os sistemas antigos e modernos de he-
Sendo o prazer o denominador comum, é apenas donismo estético, o fato de nos oferecerem uma teo-
o grau, não a espécie, o que realmente importa - to- ria psicológica do prazer estético que não consegue,
dos os prazeres, sejam quais forem, estão no mesmo de forma alguma, explicar o fato fundamental da cria-
nível e podem ser reportados a uma origem psicológi- ção estética. Na vida estética experimentamos uma
ca e biológica comum. transformação radical. O próprio prazer já não é um
No pensamento contemporâneo, a teoria do hedo- simples modo de ser, mas se converte em função. Por-
nismo estético encontrou sua expressão mais clara na que o olho do artista não é apenas um olho que rea-
filosofia de Santayana. A seu ver, a beleza é o prazer ge a impressões sensoriais ou que as reproduzem. Sua
considerado como qualidade das coisas; é o "prazer atividade não se restringe a receber ou registrar as
objetificado". Mas isto é uma petição de princípio.
1. The Sense 01 Beauty (Nova Iorque, Charles Scribner's Sons,
l. Crítica da Razão Prática, traduzida para o inglês por T. K. 1896), p. 22.
Abbott (6.' edição, Nova Iorque, Longmans, Green & Co., 1927),p. 110. 2. Arist6teles, Nicomachean Ethics, 1776b 33.
254 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 255

impressões das coisas exteriores ou a combinar estas compreender a obra de arte sujeitando-a a. regras ló-
impressões de maneiras novas e arbitrárias. Um gicas. Um manual de poesia não pode ensmar-nos a
grande pintor ou músico não se caracteriza por sua escrever um bom poema, pois a arte nasce de outras e
sensibilidade às cores ou aos sons, mas pelo poder de mais profundas fontes. Para descobri-Ias precisamos,
extrair deste material estático uma vida dinâmica de
primeiro, esquecer nossos padrões comuns, e mergu-
formas. Só neste sentido, portanto, pode ser objetifi-
lhar nos mistérios de nossa vida inconsciente. O ar-
cado o prazer que encontramos na arte. Por conse-
tista é uma espécie de sonâmbulo, que deve seguir
guinte, definir a beleza como o "prazer objetificado"
seu caminho sem a interferência ou controle de qual-
é encerrar em poucas palavras todo o problema. A
quer atividade consciente. Despertá-lo seria destruir-
objetificação é sempre um processo construtivo. O
-lhe o poder. "O princípio de toda poesia", disse
mundo físico - o mundo das coisas e qualidades cons-
tantes - não é um simples feixe de qualidades sen- Friedrich Schlegel, "é abolir a lei e o método da ra-
soriais, assim como o mundo da arte não é um feixe zão que procede racionalmente e, uma vez mai~, dar
de sentimentos e emoções. O primeiro depende de um mergulho na fascinante confusão da fantasia, no
atos de objetificação teórica, objetificação por concei- caos original da natureza humana". 1 A arte é um so-
tos e construções científicas; o segundo, de atos for- nho acordado, a que nos entregamos voluntariamente.
mativos de um tipo diferente, atos de contemplação. Esta mesma concepção romântica deixou sua marca
Outras teorias modernas, que protestam contra nos sistemas metafísicos contemporâneos. Bergson
todas as tentativas de identificar a arte e o prazer, es- formulou uma teoria da beleza que era considerada a
tão sujeitas às mesmas objeções que se opõem às teo- prova 'última e mais concludente dos s:us ~rincípios
rias do hedonismo estético. Tentam encontrar a expli- metafísicos gerais. No seu entender, nao ha melhor
cação da obra de arte ligando-a a outros fenômenos ilustração do dualismo fundamental, da incompatibi-
bem conhecidos. Estes, entretanto, são de nível inteira- lidade entre intuição e razão que a obra de' arte. O
mente diverso; são estados passivos de espírito, não que denominamos verdade racional ou científica é su-
ativos. Entre as duas classes podemos encontrar algu- perficial e convencional. A arte é a fuga deste mundo
mas analogias, mas não reduzi-Ias à mesma origem convencional, vazio e estreito; e nos faz voltar às ver-
metafísica ou psicológica. É a luta contra as teorias ra- dadeiras fontes da realidade. Se a realidade é "evolu-
cionalistas e intelectualistas da arte que constitui um ção criadora", no poder criador da arte devemos bus-
traço comum e um motivo fundamental destas teorias. car as provas disto e sua manifestação fundamental
Em certo sentido, o classicismo francês transformou a do poder criador da vida. A primeira vista, isto pa-
obra de arte num problema aritmético, que seria resol- receria uma filosofia realmente dinâmica ou energé-
;ido por uma espécie de regra de três. A reação contra tica da beleza; mas a intuição de Bergson não é um
esta concepção era necessária e foi benéfica. Mas os princípio realmente ativo. É um modo de rece?tiv~-
primeiros críticos românticos - sobretudo os român- dade, não de espontaneidade. Em toda parte, a intui-
ticos alemães - atiraram-se imediatamente ao extre-
mo oposto, declarando que o intelectualismo abstrato 1 Sobre uma documentação mais completa e uma critica dessas
prímeiras teorias românticas da arte, veja Irving Babbitt, The New
do Iluminismo era um travesti da arte. Não podemos Laokoon, capo IV.
256 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 257

ção estética é também descrita por Bergson como uma ao campo agreste, nem às flores que crescem em nossa volta,
nesta alfombra verdejante. E, no entanto, por mais formosas
capacidade passiva, não como forma ativa. " . .. o que sejam estas formas da natureza, a relva cintilante ou o
objetivo da arte", escreve ele, musgo prateado, o florido tomilho, a rosa selvagem ou a ma-
.Ú dressilva, não são suas belezas que fascinam os rebanhos vizi-
é adormecer as forças ativas, ou melhor, resistentes de nossa nhos deliciam o cervato e o cabrito no pasto, e espalham a
personalidade e colocá-Ia, assim, num estado de perfeita recepti- aleg;ia que vemos entre as manadas. Não é a Forma que satis-
vídade, em que compreendemos a idéia que nos é sugerida e faz, mas o que está debaixo dela: é o cheiro que atrai, a fome
simpatizamos com o sentimento expresso. Nos processos da que impele;... pois nunca a forma pode ter força real onde
arte encontraremos, em forma atenuada, uma versão requintada não é contemplada, nem julgada e examinada, onde só figura
e, até certo ponto, espiritualizada dos processos comumente como nota ou sinal acidental do que satisfaz ao sentido provo-
usados para provocar o estado de hipnose... O sentimento do cado. . . Se os animais, portanto. .. são incapazes de conhecer
belo não é um sentimento específico... todo sentimento expe- e apreciar a beleza, por serem animais, e só terem sentidos ...
rimentado por nós assumirá um caráter estético, sempre que para seu próprio interesse; donde se conclui que também o
tenha sido sugerido e não causado... Existem, pois, fases dis- homem não pode pelos mesmos sentidos .. , conceber ou apre-
tintas no progresso de um sentimento estético, como no estado
de hipnose ... 1 ciar a beleza' mas toda a beleza... ele a aprecia da maneira
mais nobre e' com a ajuda do que tem de mais nobre, o espirito
e a razão. 1
Nossa experiência de beleza, entretanto, não tem
este caráter hipnótico. Pela hipnose podemos levar Os elogios feitos por Shaftesbury ao espírito e à
um homem à execução de certos atos ou impor-lhe razão estavam muito longe do intelectualismo do Ilu-
alguma opinião. Mas a beleza, em seu sentido genuí- mmismo. Sua rapsódia sobre a beleza e infinito po-
no e específico, não pode ser impressa desta forma em der criador da natureza representa um traço inteira-
nosso espírito e para senti-Ia, precisamos cooperar mente novo na história intelectual do século XVIII.
com o artista: não basta apenas simpatizar com seus Neste aspecto, foi ele um dos primeiros campeões do
sentimentos, mas entrar também em sua atividade romanticismo. Mas o romanticismo de Shaftesbury
criadora. Se o artista conseguisse adormecer as forças era de tipo platônico. Sua teoria da forma estética
ativas de nossa personalidade, paralisaria nosso sen- era deste tipo, por cuja virtude foi levado a reagir
tido da beleza. A apreensão da beleza, a consciência e protestar contra o sensacionalismo dos empiristas
do dinamismo das formas não podem ser comunica das ingleses. 2
deste modo. Pois a beleza depende tanto dos senti- A objeção levantada contra a metafísica de Berg-
mentos de um gênero específico quanto de um ato de son vale também à teoria psicológica de Nietzsche.
julgamento e contemplação.
Num de seus primeiros escritos, A Tragédia Nascida
Uma das maiores contribuições de Shaftesbury do Espírito da Música, Nietzschedesafiou as concep-
para a teoria da arte foi insistir neste ponto. Em seu ções dos grandes clássicos do século XVIII. Não é, ar-
"Moralistas" oferece-nos um relato impressionante da
gumenta ele, o ideal de Winckelmann que encontra-
experiência da beleza - que ele considerava como
mos na arte grega. Em Ésquilo, em Sófocles ou Eurí-
privilégio específico da natureza humana. "Não ne-
gareis beleza", escreve Shaftesbury,
1.
Shaftesbury, "Os Moralistas", seç, 2, pt. IlI. Veja Characteris-
tics (1714), lI, pp. 424 e seguinte.
1. Bergson, Essai sur les données immédiates de Ia conscience. 2. Sobre uma discussão circunstanciada do lugar de Shaftesbury
Traduzido para o inglês por R. L. Pogson, Time and Free Will (Lon- na filosofia do século XVIII, veja Cassirer, Die platonische Renaissance
dres, Macrnillan, 1912), pp. 14 e seguintes. in England unâ die Schule von Cambridge (Lípsía, 1932), capo VI.
258 Ernst Cassirer
Antropologia Filosófica 259

pides em vão buscamos "a nobre simplicidade e a se- é completamente desinteressado. Nenhuma das qua-:
rena grandeza". A grandeza da tragédia grega con- lidades e condições específicas da obra de arte parece,
siste na profunda e extrema tensão das emoções vio- portanto, faltar na atividade lúdica. A maioria dos ex-
lentas. A tragédia grega era filha do culto dionisíaco; positores da teoria lúdica da arte nos asseguraram,
sua força era uma força orgiástica. Mas só a orgia com efeito, que foram incapazes de encontrar qual-
não poderia produzir o drama grego; a força de Dioní- quer diferença entre as duas funções. 1 Declararam
sio era contrabalança da pela de Apolo. Esta polari- não existir nenhuma característica da arte que não se
dade fundamental é a essência de toda grande obra de aplique a jogos de ilusão, e nenhuma característica
arte. A grande arte de todos os tempos nasceu do destes jogos que também não se possa encontrar na
entrelaçamento de duas forças opostas - de um im- arte. Mas todos os argumentos aduzidos em favor
pulso orgiástico e um estado visionário. O mesmo con- desta tese são puramente negativos. Psicologicamen-
traste existe entre o estado de sonho e o estado de em- te falando, o jogo e a arte apresentam estreita seme-
briaguez ou tóxico. Ambos liberam toda sorte de lhança entre si; não são utilitários nem estão ligados
forças artísticas dentro de nós, mas cada qual tem po- a qualquer finalidade prática. Em ambos, deixamos
deres de espécie diferente. O sonho nos dá a força para trás nossas necessidades práticas imediatas a fim
da visão, da associação, da poesia; a embriaguez de dar ao nosso mundo uma nova forma. Mas esta
nos dá o poder das grandes atitudes, da paixão, analogia não basta para provar uma identidade real.
do canto e da dança. 1 Mesmo nessa teoria sobre! A imaginação artística se distingue sempre, nítida;
sua origem psicológica desapareceu um dos aspectos mente, do gênero de imaginação que caracteriza nossa
essenciais da arte, pois a inspiração artística não é atividade lúdica. No jogo lidamos com imagens simu-
embriaguez nem a imaginação artística é sonho ou ladas, que se podem tornar tão vivas e impressionan-
alucinação. Toda grande obra de arte se caracteriza tes que às vezes se tomam por realidades. Mas, defi-
por uma profunda unidade estrutural. Não podemos nir a arte como simples soma de imagens simuladas
explicar esta unidade reduzindo-a a dois estados dife- desta natureza indicaria uma bem mesquinha concep-
rentes que, como o estado de sonho e o de embriaguez, ção de seu caráter e finalidade. O que denominamos
são inteiramente difusos e desorganizados, nem inte- "aparência estética" não é o mesmo fenômeno que ex-
grar um todo estrutural com elementos amorfos. perimentamos em jogos de ilusão. O jogo nos dá ima-
De um tipo diferente são as teorias que esperam j -...••
'
gens ilusórias, quando a arte nos oferece nova espécie.
elucidar a natureza da arte reduzindo-a à função do de verdade - não de coisas empíricas, mas de for-
jogo. Não podem ser objetadas por descuidarem ou mas puras.
subestimarem a livre atividade do homem. O jogo é Nesta análise estética que traçamos, distinguimos
.. , três espécies diferentes de imaginação: o poder de in-
uma função ativa; não se circunscreve aos limites do
empiricamente dado; o prazer que nele encontramos! venção, o poder de personificação e o poder de produ-
zir puras formas sensórias. No brinquedo de uma
.'

I CL Nietzsche, The Will to Pouier, Traduzido para o inglês por


\. M. Ludovici (Londres, 1910), p. 240. 1. Veja, por exemplo, Konrad Lange, Das Wesen der Kunst (Ber-
11m, 1901). 2 volumes.
260 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 261

criança encontramos os dois primeiros poderes, mas valor propedêutico. O menino que brinca de guerra
não o terceiro. A criança brinca com coisas e o ar- e a menina que veste a boneca estão ambos realizan-
tista com formas, linhas e desenhos, ritmos e melodias. do uma espécie de preparação e educação para deve-
Na criança que brinca, admiramos a facilidade e a ra- res mais sérios. Não se pode explicar desta maneira
pidez da transformação; as maiores tarefas são reali- a função da arte pura; nela não existe diversão nem
zadas com meios insignificantes. Qualquer pedaço de preparação. Alguns estetas modernos entenderam ne-
pau pode ser convertido em ser humano. Não obstan- cessário estabelecer nítida distinção entre dois tipos de
te, esta transformação significa apenas uma metamor- beleza: uma é a da "grande" arte; a outra, a beleza
fose dos próprios objetos e não de objetos em formas. "fácil". 1 Mas, rigorosamente falando, a beleza da
No jogo nos limitamos a um novo arranjo e distribui- obra de arte nunca é "fácil". O gozo da arte não se
ção dos materiais oferecidos à percepção sensória. A origina de um processo de abrandamento ou relaxa-
arte é construtiva e criadora em sentido diferente e ção, mas da intensificação de todas as nossas energias.
mais profundo. Uma criança que brinca não vive no A diversão que encontramos no jogo é exatamente o
mesmo mundo de fatos rígidos e empíricos que o adul- oposto da atitude que é um pré-requisito necessário
to; seu mundo tem muito maior mobilidade e transmu- da contemplação estética e do julgamento estético. A
tabilidade. Apesar disto, quando brinca nada faz senão arte exige a mais completa concentração. Assim que
trocar as coisas reais em seu redor por outras coisas deixamos de concentrar-nos e nos entregamos a um
possíveis. Nenhuma troca desta ordem caracteriza a mero jogo de sentimentos e associações agradáveis,·
genuína atividade artística; a exigência é muito mais perdemos de vista a obra de arte como tal.
severa. Pois o artista dissolve a matéria bruta das A teoria lúdica da arte desenvolveu-se em duas
coisas no crisol da imaginação e o resultado desta direções inteiramente distintas. Na história da estéti-
faina é o descobrimento de um novo mundo de for- ca, Schiller, Darwin e Spencer são habitualmente con-
mas plásticas, poéticas e musicais. Está visto que siderados como os principais representantes desta teo-
grande número de pretensas obras de arte estão mui- ria. Entretanto, é difícil encontrar um ponto de con-
to longe de satisfazer tal exigência. Cabe ao julga- tacto entre os pontos de vista de Schiller e as moder-
mento estético ou ao gosto artístico distinguir entre nas teorias biológicas da arte. Em sua tendência fun-
uma autêntica obra de arte e aqueles produtos es- damental, estes pontos de vista não são apenas diver-
púrios que são, na realidade, brinquedos ou, quando gentes; em certo sentido são incompatíveis. O próprio
muito, "a resposta ao pedido de entretenimento". termo "jogo" é compreendido e explicado nas narra-
Uma análise mais detida da origem psicológica e tivas de Schiller num sentido totalmente diverso
dos efeitos psicológicos do jogo e da arte conduz à do de todas as teorias subseqüentes. A teoria de Schil-
mesma conclusão. O jogo nos proporciona diversão ler é transcendental e idealista; as de Darwin e Spen-
e recreação, mas tam,bém serve a um propósito dife- cer são biológicas e naturalistas. Darwin e Spencer
rente; tem uma relevância biológica geral na medida
em que antecipa atividades futuras. Tem-se assina- 1. Veja Bernard Bosanquet, Three Lectures on Aesthetics, e S.
lado com freqüência que o jogo de uma criança tem Alexander, Beauty and Other Forms 01 Value.
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Antropologia Filosófica 263


262 Ernst Cassirer

consideram o jogo e a beleza como fenômenos na- a consciência das formas vivas é o passo inicial e in-
turais gerais, ao passo que Schiller os liga ao mundo dispensável que leva à experiência da liberdade. A
da liberdade. E, de acordo com seu dualismo kan- contemplação ou a reflexão estética, segundo Schiller,
tiano, liberdade não é o mesmo que natureza; pelo é a primeira atitude liberal do homem em relação
contrário, representa o pólo oposto. Tanto a liberdade ao universo. "Enquanto que o desejo se apodera ime-
quanto a beleza pertencem ao mundo inteligível, não diatamente de seu objeto, a reflexão o coloca a distân-
ao fenomênico. Em todas as variedades naturalistas cia e o torna inalienavelmente seu, salvando-o das
da teoria lúdica da arte, o jogo dos animais foi estu- garras da paixão." 1 Precisamente esta atitude "libe-
dad.o lado .a.lado com o dos homens. Schiller não po- ral", consciente e reflexiva, falta ao jogo da criança,
dería admitir um ponto de vista desta espécie. Para assinalando a fronteira entre o jogo e a arte.
ele, o jogo não é uma atividade orgânica geral, mas Por outro lado, esse "colocar a distância", que
uma atividade especificamente humana. "O homem aqui se descreve como um dos traços necessários e
só brinca quando é homem no pleno sentido da pala- mais característicos da obra de arte, sempre se reve-
vra, e só o é completamente quando brinca." 1 Falar lou um obstáculo para a teoria estética. Objetou-se
em analogia, e muito menos em identidade entre o que, sendo isto verdade, a arte deixaria de ser algo
jogo humano e o animal ou, na esfera humana entre realmente humano, pois teria perdido toda conexão
jogo da arte e os chamados jogos de ilusão, é inteira- com a vida humana. Os defensores do princípio l'art
mente estranho à teoria de Schiller. Para ele, esta pour l'art, todavia, não temiam tal objeção; ao con-
analogia teria representado uma interpretação funda- trário, desafiavam-na abertamente. Sustentavam que o
mentalmente falsa. mais alto mérito e privilégio da arte consiste em quei-
Quando se tomam em consideração os anteceden- mar todas as pontes que a ligam à realidade vulgar,
tes históricos da teoria de Schiller, este ponto de vista permanecendo um mistério inacessível para o profa-
é facilmente compreensível. Não hesitou em ligar o num vulgus. "Um poema", disse Stéphane Mallarmé,
mundo "ideal" da arte ao jogo da criança porque, no "deve ser um enigma para o homem vulgar, música
seu entender, o mundo da criança sofreu um proces- de câmara para o iniciado". 2 Ortega y Gasset escre-
so' de idealização e sublimação. Pois Schiller falava veu um livro em que prevê e defende a "desumaniza-
como discípulo e admirador de Rousseau, e via a vida ção" da arte. Neste processo, acredita ele, que se atin-
da criança à nova luz em que o filósofo francês a co- girá, finalmente, o ponto em que o elemento humano
locara. "Há uma profunda significação no jogo de desaparecerá quase por completo da arte. 3 Outros
uma criança", afirmava Schiller. Entretanto, ainda críticos sustentaram tese diametralmente oposta.
que admitamos esta tese, cumpre dizer que o "signi- "Quando olhamos para um quadro, lemos um poema
ficado" do jogo é diferente do da beleza. O próprio ou ouvimos música", insiste L A. Richards,
Schiller define a beleza como "forma viva". Para ele,
1. Schiller, op. cit., Carta xxv. Tradução inglesa, p. 102.
2. Citado por Katherine Gilbert, Studies in Recent Aesthetic (Cha-
1. Schiller, Briefe über die ãsthetische Erziehung des Menschen
pel Hill, 1927), p. 18.
(1795), Carta XV. Tradução inglesa, Ensaios Estéticos e Filosóficos 3. Ortega y Gasset, La. deshumanización dei arte (Madrid, 1925>'
(Londres, George Bell & Sons, 1916), p. 71.
264 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 265

?ãO est~mos fazendo algo diferente do que fazemos ao dirigir-nos definição da arte, dada pelos autores românticos, 1
a Galeria ou. quando nos vestimos pela manhã. A maneira pela
qual a_expe~lenc~a e ca~sada em nós é diferente e, em geral, a contradiz-se a si mesma. Toda obra de arte possui
experrencia e mais complexa e, se tivermos êxito, mais unificada. uma estrutura.intuitivac.oque significa um caráter 'de
Mas nossa atividade não é de uma espécie fundamentalmente
diferente. 1 raciõn:alidad~~ Cada elemento i~~fí:ulodeve' ser senti-
____ • __ " h •• _ _.~ •• o •• _ .__ _ __ ••

do como parte de um todo compreensivo. Se, num


Mas este antagonismo teórico não representa uma poema lírico, mudarmos uma palavra, uma inflexão
verdadeira antinomia. Se a beleza, consoante a defi- ou um ritmo, corremos o risco de destruir o tom e o
nição de Schiller, é uma "forma viva", une, em sua encanto específicos do poema. A arte não está alge-
natureza e em sua essência, os dois elementos que mada à racionalidade das coisas ou dos acontecimen-
aqui se apresentam opostos. Claro está que não é a tos. Pode infringir todas as leis da probabilidade que
mesma coisa viver no reino das formas e no das coi- os estetas clássicos declararam ser suas leis constitu-
sas, dos objetos empíricos que nos rodeiam. As for- cionais. Pode dar-nos a visão mais estapafúrdia e
mas da arte, por outro lado, não são formas vazias. grotesca e, não obstante, conservar uma racionalidade
Realizam uma tarefa definida na construção e na or- própria - a da forma. Neste sentido, podemos inter-
ganização da experiência humana. Viver no mundo pretar uma frase de Goethe que, à primeira vista, pa-
das formas não significa fugir dos problemas da vida; rece paradoxal: "Arte: uma segunda natureza; tam-
mas, pelo contrário, a realização de uma das mais al-
bém misteriosa, porém mais compreensível, pois se
tas energias da própria vida. Não podemos falar em
origina do entendimento". 2
arte como algo "extra-humano" ou "sobre-humano" A ciência põe ordem em nossos pensamentos, a \
sem passar por alto uma de suas características fun-
damentais, seu poder construtivo no aperfeiçoamento moral em nossas ações e a arte na apreensão das:
do nosso universo humano. aparências visíveis, tangíveis e audíveis. A teoria es-;
Todas as teorias estéticas que tentam explicar a tética, realmente, tardou muito a reconhecer e com-Í
arte em termos de analogias extraídas de esferas de- preender plenamente estas diferenças fundamentais.'
sordenadas e desintegradas da experiência humana - Mas se, em lugar de buscarmos uma teoria metafí-.
da hipnose, do sonho ou da embriaguez - erram o sica da beleza, analisarmos simplesmente nossa expe-
alvo principal. Um grande poeta lírico tem o poder riência imediata da obra de arte, dificilmente erra-
de dar forma definida aos nossos sentimentos mais remos o alvo. A arte pode ser definida como lin-
obscuros. Isto só é possível porque seu trabalho, em- guagem simbólica, o que nos dá apenas o gênero
bora trate de um assunto aparentemente irracional e comum, não a diferença específica. Croce insiste
inefável, possui uma organização e uma articulacâo em que não só há uma íntima relação, mas também.
claras. Nem mesmo nas mais extravagantes criaçÕes completa identidade entre a linguagem e a arte. Na '
da arte encontramos as "fascinantes confusões da fan-
tasia", o "caos original da natureza humana". Esta 1. Veja pp. 254 e seguinte.
2. "Kunst: eine andere Natur, auch geheimnisvoll, aber verstãn-
d1icher; denn sie entspringt aus dem Verstande". Veja Maximen und
1 :. A. Richards, PrincipIes ot Literary Criticism (Nova Iorque, Reflexumen, ed. Max Hecker, em "Schrüten der Goethe-Gesellschaft",
Harcourt, Brace, 1925), pp. 16-17. XXI, (907), 229.
266 Ernst Casstrer
Antropologia Filosófica 267

sua opimao, é totalmente arbitrário distinguir entre


e pergunta "Para que serve isto?". A outra se ocupa
as duas atividades. Quem estuda lingüística geral, se- das causas das coisas e pergunta "De onde vem ?". Ao
gundo ele, estuda problemas estéticos - e vice-versa. penetrarmos, porém, o reino da arte precisamos es-
Existe, contudo, uma indisfarçável diferença entre os quecer todas estas perguntas. Por trás da existêncía..
símbolos da arte e os termos lingüísticos do falar ou do da natureza, das propriedades empíricas das coisas.'
escrever comuns. As duas atividades não concordam descobrimos, de súbito, as suas formas. Estas não são
entre si nem pelo seu caráter nem pelo seu propósito; elementos estáticos. Mostram uma ordem móvel, que
não empregam os mesmos meios, nem tendem para os nos revela um novo horizonte da natureza. Até os
mesmos objetivos. Nem linguagem nem arte nos pro- . maiores admiradores da arte nos falam sempre dela
porcionam uma simples imitação de coisas ou de como sendo um simples acessório, um embelezamen-
ações; ambas são representações. Mas uma represen- to ou adorno da vida, o que significa subestimar-lhe
tação no meio de formas sensórias difere amplamente o verdadeiro sentido e o verdadeiro papel na cultura
de uma representação verbal ou conceitual. A descri- humana. Uma simples duplicata da realidade teria
ção de uma paisagem feita por um pintor ou poeta e sempre um valor muito contestável. Somenteconce-
a realizada por um geógrafo ou geólogo dificilmente bendo a arte como direção especial, como nova orien-
terão alguma coisa em comum. Tanto o estilo da des- tação de nossos pensamentos, de nossa imaginação e
crição quanto o motivo são diferentes na obra do cien- de nossos sentimentos, poderemos compreender sua
tista e na do artista. O geógrafo pode descrever a função e sentido verdadeiros. As artes plásticas nos
paisagem de maneira plástica e até pintá-Ia com vivas fazem ver o mundo sensível em toda a sua riqueza e
e ricas cores; mas o que deseja transmitir não é a diversidade. Que saberíamos nós dos inumeráveis ma-
visão da paisagem, e sim seu conceito empírico. Com tizes do aspecto das coisas se não fossem as obras dos
esta finalidade, terá de comparar-lhe a forma com ou- grandes pintores e escultores? Da mesma maneira,
tras e descobrir, pela observação e indução, os as- a poesia é a revelação de nossa vida pessoal. O poeta
pectos característicos. O geólogo vai ainda mais lírico, o romancista e o dramaturgo trazem à luz as
adiante nesta descrição empírica; não se contenta com infinitas potencialidades de que só tínhamos um vago
o registro de fatos físicos, por desejar divulgar suas e obscuro pressentimento. Esta arte não é, de manei-
origens. Distingue os estratos por meio dos quai~ .0 ra alguma, simples contrafação ou mero fac-símile,
solo foi configurado, notando as diferenças cronológi- porém genuína manifestação de nossa vida interior.
cas:, e retrocede às leis causais gerais em obediência. Enquanto vivermos apenas no mundo das im-
às quais a terra atingiu sua forma atual. Para o artis- pressões sensoriais não faremos senão tocar a super-
ta não existem estas relações empíricas, nem compa- fície da realidade. A consciência da profundidade das
rações com outros fatos, nem pesquisas de relações coisas sempre requer um esforço da parte das nossas
causais. Nossos conceitos empíricos comuns, falando energias ativas e construtivas. Como estas energias
grosso modo, podem ser divididos em duas classes, se- não se movem na mesma direção nem tendem para o
gundo a natureza prática ou teórica dos interess~s a mesmo fim, não podem nos dar o mesmo aspecto da
que se aplicam. Uma classe se ocupa do uso das COIsas realidade. Existe uma profundidade conceitual como

1
268 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 269

existe uma profundidade puramente visual. A pri- causas. Na experiência ordinária ligamos os fenôme-
meira é descoberta pela ciência, a segunda é revelada nos de acordo com a categoria de causalidade ou fina-
pela arte; uma nos ajuda a compreender a razão das lidade. Segundo estamos interessados pelas razões
coisas; a outra, a ver suas formas. Na ciência procura- teóricas ou pelos efeitos práticos das coisas, pensamos
mos seguir os fenômenos até suas causas primeiras, nelas como causas ou como meios. Assim, de ordiná-
suas leis e princípios gerais. Na arte nos absorvemos rio, perdemos de vista sua aparência imediata até que
em sua aparência imediata e a saboreamos ao máximo já não podemos vê-Ias frente a frente. A arte, por ou-
em toda sua riqueza e variedade, sem nos interessar- tro lado, nos ensina a visualizar e não apenas a con-
mos com a uniformidade das leis, mas com a multifor- ceptualizar ou utilizar as coisas. Dá-nos uma imagem
midade e diversidade das intuições. A própria arte mais rica, mais vívida e colorida da realidade e uma
pode ser descrita como conhecimento, só que é de uma visão mais profunda em sua estrutura formal. É ca-
espécie peculiar e específica. Podemos endossar per- racterístico da natureza do homem não se limitar a
feitamente a observação de Shaftesbury de que "toda uma única maneira específica de abordar a realidade,
beleza é verdade". Mas sua verdade não reside numa mas poder escolher seu ponto de vista e, assim, passar
descrição teórica ou numa explanação das coisas; con- de um aspecto das coisas para outro.
siste antes na "visão simpática" das coisas. 1 Os dois
pontos de vista da verdade se contrastam, mas sem
conflito ou contradição. Como a arte e a ciência se
movem em planos inteiramente diversos, não podem
contradizer-se nem estorvar-se. A interpretação con-
ceptual da ciência não impossibilita a interpretação
intuitiva da arte. Cada qual tem sua perspectiva pró-
pria e, por assim dizer, seu próprio ângulo de refra-
ção. A psicologia da percepção sensorial ensinou-nos
que, sem o uso de ambos os olhos, sem uma visão
binocular, não haveria consciência da terceira dimen-
são do espaço. A profundidade da experiência huma-
na, no mesmo sentido, depende de sermos capazes de
variar nossos modos de ver, de alternar nossas visões
da realidade. Rerumi videre formas não é tarefa me-
nos importante e indispensável que rerum cognoscere

1. Veja De Witt H. Parker, The Principles ot Aesthetics, p. 39:


"A verdade científica é a fidelidade de uma descrição dos objetos ex·t
temos da experiência; a verdade artística é a visão simpática - a
clara organização da própria experiência". A diferença entre experíên-
cia científica e experiência estética foi recentemente ilustrada num
artigo assaz instrutivo do Prof. F. S. C. Northrup na revista Furioso,
I, N.· 4, 71 e seguintes.
x
A HISTóRIA

DEPOIS de todas as várias e divergentes definições da


natureza do homem, dadas na história da filosofia,
os filósofos modernos chegaram, muitas vezes, à con-
clusão de que a própria questão, em certo sentido, é
desorientadora e contraditória. Em nosso mundo mo-
derno, diz Ortega y Gasset, estamos assistindo a um
colapso da teoria clássica, da teoria grega do ser e,
por conseguinte, da teoria clássica do homem.
A natureza é uma coisa, uma grande coisa, composta de muitas
coisas menores. Ora, sejam quais forem as diferenças entre as
coisas, todas têm um traço básico comum, que consiste simples-
mente no fato de que as coisas são, de que elas têm o seu ser.
E isso significa não só que elas existem, que estão diante de
nós, mas também que possuem uma dada e fixa estrutura ou
consistência. .. Uma expressão alternativa é a palavra "nature-
za". E a tarefa da ciência natural consiste em penetrar debaixo
das aparências mutáveis até chegar à natureza ou textura per-
manente. . . Hoje sabemos que todas as maravilhas das ciên-
cias naturais, embora inesgotáveis em princípio, precisarão
sempre deter-se diante da estranha realidade da vida humana.
Por quê? Se todas as coisas entregaram grande parte do seu
segredo às ciências físicas, por que só esta resiste com tamanho
vigor? A explicação precisa aprofundar-se, chegar às raizes.
Talvez seja pura e simplesmente esta: o homem não é uma
coisa, é falso falar em natureza humana, o homem não tem
natureza... A vida humana ... não é uma coisa, não tem
natureza e, conseqüentemente, precisamos resignar-nos a pensar
nela em termos, categorias e conceitos que serão radicalmente
diferentes dos que projetam luz sobre os fenômenos da maté-
ria ...
Até agora nossa lógica tem sido uma lógica do ser,
baseada nos conceitos fundamentais do pensamento
272 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 273

eleático, mas com estes conceitos nunca poderemos es- faz Ortega y Gasset, na história como sistema. Um
perar compreender o caráter distintivo do homem. O sistema pressupõe sempre, senão uma natureza idênti-
eleatismo era a intelectualização radical da vida huma- ca, pelo menos uma idêntica estrutura. Na verdade,
na. Já é tempo de rompermos este círculo mágico. "Pa- essa identidade estrutural - identidade de forma, não
ra falarmos no ser do homem precisamos elaborar pri- de matéria - sempre foi posta em relevo pelos grandes
meiro um conceito não eleático do ser, como outros historiadores. Eles nos disseram que o homem tem uma
elaboraram uma geometria não euclidiana. Chegou o história porque tem uma natureza. Tal foi o julga-
momento em que a semente lança da por Heráclito mento dos historiadores da Renascença, como, por
produza sua farta colheita." Tendo aprendido a imu- exemplo, Maquiavel, e muitos outros modernos sus-
nizar-nos contra o intelectualismo, temos agora cons- tentaram o mesmo ponto de vista. Debaixo do fluxo
ciência de uma liberação do naturalismo. "O homem temporal e atrás do polimorfismo da vida humana,
não tem natureza, o que ele tem é. .. história. 1 JJ esperaram descobrir os traços constantes da natureza
O conflito entre o ser e o vir-a-ser, que no Tee- humana. Em seus Pensamentos Sobre a História do
teto de PIatão se descreve como o tema fundamental Mundo, Jakob Burckhardt definiu a tarefa do histo-
do pensamento filosófico grego, não estará, entretan- riador como uma tentativa para descobrir os elementos
to, resolvido se passarmos do mundo da natureza para constantes, recorrentes, típicos, porque elementos co-
o da história. Desde a Crítica da Razão Pura de Kant mo estes são capazes de evocar um eco ressoante em
concebemos o dualismo entre o ser e o vir-a-ser mais nosso intelecto e em nossos sentimentos. 1
como um dualismo lógico que como metafísico. Já O que denominamos "consciência histórica" é um
não falamos de um mundo de mudança absoluta em produto muito serôdio da civilização humana; não a
oposição a um outro de absoluto repouso. Não consi- encontramos antes da época dos grandes historiadores
deramos a substância e a mudança como reinos dife- gregos. E os próprios pensadores gregos ainda foram
rentes do ser mas como categorias - como condições incapazes de oferecer uma análise filosófica da forma
e pressuposições do nosso conhecimento empírico. Es- específica do pensamento histórico. Essa análise só
tas categorias são princípios universais; não se res- apareceu no século XVIII. O conceito da história
tringem a objetos especiais do conhecimento. Deve- atinge a maturidade, pela primeira vez, na obra de
mos, portanto, esperar encontrá-Ias em todas as for- Vico e Herder. Quando o homem começou a ter co-
mas da experiência humana. Na realidade, nem o nhecimento do problema do tempo, quando já não se
mundo da história pode ser compreendido e interpre- confinava no círculo estreito de seus desejos e necessi-
tado em termos de simples mudança. Este mundo in- dades imediatas, quando entrou a indagar da origem
clui também um elemento substancial, um elemento das coisas, só encontrou uma origem mítica, não his-
de ser - que não deve ser definido, porém, no mes- tórica. A fim de compreender o mundo - tanto fí-
mo sentido em que se define no mundo físico. Sem sico como social - precisou projetá-lo sobre o passa-
este elemento dificilmente poderíamos falar, como o
1. Jakob Burckhardt, Weltgeschichtliche Betrachtungen, ed. por
1. Ortega y Gasset, "A História como Sistema", em Filosofia e Jakob Oeri (Berlím e Stuttgart, 1905), p. 4. Traduzido para o inglês por
História, Ensaios Apresentados a Ernest Cassirer, pp. 293, 294, 300, James Hastings Nichols, Force and Freedom; Retlections on History
305, 313. (Nova Iorque, Pantheon Books, 1943), p. 82.
274
Ernst Cassirer
Antropologia Filosófica 275

do mítico. No mito encontramos as primeiras tenta- Estudei Commines e os relatos contemporâneos apensos às edi-
tivas para descobrir a ordem cronológica das coisas e ções deste autor, e convenci-me de que um Luis XI e um Carlos,
dos acontecimentos, para apresentar uma cosmologia o Temerário, tais como se descrevem no Quentin Durward de
Scott, nunca existiram. Nesse cotejo descobri que a prova hís-
e uma genealogia dos deuses e dos homens mas estas t6rica era mais bela e, de qualquer maneira, mais interessante
não significam uma distinção histórica em sentido do que toda a ficção romântica. Afastei-me desta última resol-
vido a evitar toda invenção e fabulação em meus trabalhos e
próprio. O passado, o presente e o futuro ainda estão ater-me aos fatos. 1
ligados entre si; forma uma unidade não diferenciada
e um todo não discriminado. O tempo mítico não tem Definir a verdade histórica como "concordância
com os fatos" - adaequatio res et intellectus - to-
estrutura definida; ainda é um "tempo eterno": Do
davia, não constitui solução satisfatória para o pro-
ponto de vista da consciência mítica, o passado nunca
blema. É uma petição de princípio em vez de ser uma
pa~s0.u;.está sempre aqui e agora. Quando o homem
solução. Que a história tem de começar com fatos e
pr?~ClpIa a desenredar a teia complexa da imaginação que, em certo sentido, estes fatos são não só o princí-
rnitica, sente-se transportado para um novo mundo' pio mas também o fim, o alia e o ômega de nosso co-
começa a formar um novo conceito da verdade. ' nhecimento histórico, é inegável. Mas que é um fato
Podemos acompanhar as etapas individuais deste histórico? Toda verdade fatual implica uma verdade
processo ao estudarmos o desenvolv.imento do pens _ teórica. 2 Quando aludimos a fatos não nos referimos
~e~to h~stórico grego de Heródoto a Tucídides. T~- simplesmente aos nossos dados sensoriais imediatos.
c~dI~e~ e o primeiro pensador a ver e descrever a Estamos pensando em fatos empíricos, isto é, em fatos
hIS~O~Iada sua época e a olhar para o passado com objetivos. Esta objetividade não é gratuita; supõe sem-
espírito c:aro e crítico, tendo consciência do fato de pre um ato e um complicado processo de julgamento.
q.ue este e um passo novo e decisivo. Está conven- Se quisermos conhecer a diferença entre fatos cientí-
CI~~de que a clara discriminação entre o pensamento ficos - da física, da biologia e da história - precisa-
mitico e o histórico, entre a lenda e a verdade é mos, portanto, começar sempre com uma análise. de
traço característico que fará de sua obra uma'" o julgamento. Precisamos estudar os modos de conhe-
t " 1 posse
e erna. O~tros grandes historiadores pensaram da cimento pelos quais estes fatos são acessíveis.
mesma rnanerra. Num esboço autobiográfico, Ranke Em que consiste a diferença entre um fato físico
nos c~nt~ como se apercebeu, pela primeira vez, da e um fato histórico? Ambos são considerados como
sua missao ,de historiador. Jovem, sentiu-se profunda- partes de uma realidade empírica; a ambos atribuí-
mente atrai do pelos escritos históricos-românticos de mos uma verdade objetiva. Mas se quisermos averi-
Walter. Scott. Leu-os com viva simpatia, mas também guar a natureza desta verdade, procedemos de ma-
se melindrou em certos pontos. Sentiu-se escandali- neiras diferentes. Um fato físico é determinado pela
zado q~ando descobriu que a descrição do conflito en- observação e pela experiência. O processo de objeti-
tre LUl~ ~I e Carlos, o Temerário, estava em flagrante ficação atinge sua finalidade quando conseguimos des-
contradlçao com os fatos históricos.
1. Ranke, "Aufsiitze zur eigenen Lebensgeschichte" (novembro de
1885),em Siirnrntliche werke", ed. A. Dove, LUI, 61.
1. y.1:'lJJ.ta EÇ aEt, Tucídides, De bello Petoponnesiaco, I, 22. 2. "Das Hõchste wiire: zu begreifen, dass alles Faktische schon
Theorie ist." Goethe, Maximen und nettexumen, p. 125.
276 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 277

crever os fenômenos dados em linguagem matemáti- mundo de símbolos. Primeiramente, precisa apren-
ca, na linguagem dos números. Um fenômeno que não der a ler estes símbolos. Todo fato histórico, por mais
pode ser descrito, que não se pode reduzir a um pro- simples que pareça, só pode ser determinado ~ co~-
cesso de mensuração, não faz parte de nosso mundo preendido pela análise prévia de símbolos. Nao sao
físico. Definindo a tarefa da física, Max Planck diz coisas nem acontecimentos, porém documentos ou
que o físico tem de medir todas as coisas mensuráveis monumentos os primeiros e imediatos objetos de nosso
e tornar mensuráveis todas as coisas imensuráveis. conhecimento científico. Somente através da media-
Nem todas as coisas ou processos físicos são imedia- ção e intervenção desses dados simbólicos p.odemos
captar os dados históricos reais - os aconteCImentos
tamente mensuráveis; em muitos casos, senão na
maioria deles, ficamos na dependência de métodos in- e os homens do passado.
Antes de entrar numa discussão geral do proble-·
diretos de verificação e mensuração. Mas os fatos fí-
ma, gostaria de esclarecer esse pont,o. fazend? refe-
sicos estão sempre ligados por leis causais a outros rência a um exemplo concreto específico. Há cerca
fenômenos, diretamente observáveis ou mensuráveis. de trinta e cinco anos, encontrou-se um velho papiro
Se um físico estiver em dúvida no tocante aos resulta- egípcio debaixo dos escombros de uma casa. Continha
dos de uma experiência, pode repeti-Ia e corrigi-Ia. diversas inscrições, que se diriam apontamentos d,e
Seu objeto se encontra presente a qualquer momento, um advogado ou notário público relativos ao seu ofi-
pronto para responder às suas perguntas. Para o his- cio - esboços de testamentos, contratos legais, etc.
toriador, contudo, o caso é diferente. Seus fatos per- Até este momento, o papiro pertencia simplesmente
tencem ao passado, e o passado foi-se para sempre. ao mundo material; não tinha importância histórica
Não podemos reconstruí-lo nem despertá-lo para uma e, por assim dizer, carecia de existência hist.órica. De~-
nova vida num sentido físico, objetivo. Tudo o que cobriu-se então um segundo texto debaixo do pri-
podemos fazer é "recordá-lo" - dar-lhe uma nova meiro q~e apó~ exame mais cuidadoso, foi identifi-
existência ideal. A reconstrução ideal, não a observa- cado ~omo' os remanescentes de quatro comédias, até
ção empírica, é o primeiro passo no conhecimento his- então desconhecidas, de Menandro. A partir de então
tórico. O que denominamos fato científico é sempre a a natureza e a significação do manuscrito modifica-
resposta a uma pergunta científica formulada de an- ram-se completamente. Já não se tratava de um sim-
temão. Mas a quem dirigirá o historiador essa pergun- ples "pedaço de matéria"; o papiro se convertera em
ta? Não pode pôr em confronto os acontecimentos documento histórico do máximo valor e interesse, tes-
mesmos nem entrar nas formas de uma vida anterior. temunha de um estádio importante do desenvolvimen-
Só lhe é dado abordar indiretamente o tema. Precisa to da literatura grega. Tal significação, todavia, não
consultar suas fontes. Mas estas não são coisas físicas era imediatamente óbvia. O manuscrito teve de ser
no sentido usual do termo. Todas implicam um mo- submetido a toda a sorte de testes críticos, a cuidado-
mento novo e específico. Como o físico, o historiador sas análises lingüísticas, filológicas, literárias e esté-
vive num mundo material. Entretanto, o que encon- ticas. Depois deste processo complicado, deixou de
tra desde o início de sua pesquisa não é um mundo ser uma simples coisa; estava carregado de significa-
de objetos físicos, mas um universo simbólico - um ção. Transformara-se em símbolo, que nos proporcio-
278
Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 279

nou uma nova visão da cultura grega - na vida e na sempre uma unidade interior e uma homogeneidade
poesia grega. 1 lógica. Os pensamento histórico e científico não se dis-
Tudo isto parece óbvio e inequívoco. Mas o que tinguem pela forma lógica, mas por seus objetivos e
é curioso, foi precisamente esta característica funda- por seu assunto. Se desejássemos descrever esta dis-
mental do conhecimento histórico que foi inteiramen- tinção não nos bastaria dizer que o cientista se ocupa
te descuidada pela maioria de nossas discussões mo- com objetos presentes ao passo que o historiador com
dernas do método e da verdade histórica. A maioria os passados. Uma distinção desta natureza seria ilu-
dos autores procurava a diferença entre história e sória. Como o historiador, o cientista pode investigar
ciência na lógica, não no objeto da história. Deram-se perfeitamente a origem remota das coisas. Semelhan-
ao imenso trabalho de construir uma nova lógica da te tentativa, por exemplo, foi feita por Kant quando,
história. Mas todas estas tentativas estavam destina- em 1755, desenvolveu uma teoria astronômica que
das ao malogro. Pois a lógica, afinal de contas, é uma também se tornou uma história universal do mundo
coisa muito simples e uniforme. É una, porque a ver- material; aplicou o novo método da física, o método
dade é una. Em sua busca da verdade o historiador newtoniano, à solução de um problema histórico. Ao
está sujeito às mesmas regras formais que o cientista. fazê-lo, desenvolveu a hipótese da nebulosa, por meio
Em seus modos de raciocinar e argumentar em suas da qual tentou descrever a evolução da atual ordem
inferências indutivas, em sua investigação das causas cósmica a partir de um estado anterior da matéria, in-
obedece às ~~smas regras gerais de pensamento a qu~ diferenciado e sem organização. Tratava-se de um
obedece o físico ou o biologista. Enquanto nos refe- problema de história natural, mas não de história no
rirmos a estas atividades teóricas fundamentais do sentido específico do termo. A história não pretende
espírito humano não poderemos fazer discriminacão descobrir um estado anterior do mundo físico, mas
entre os diferentes campos do conhecimento. No ~ue um estádio anterior da vida e da cultura humanas.
tange a este problema será mister endossarmos as pa- Na solução deste problema pode fazer uso de métodos
lavras de Descartes científicos, mas não pode restringir-se aos dados obte-
níveis por estes métodos. Nenhum objeto está isento
:s ciências consíderadas em conjunto são idênticas à sabedoria
urnana, .que e sempre una e sempre a mesma, ainda que apli- das leis da natureza. Os objetos históricos não pos-
cada a. diferentes assuntos, e não sofre maior diferenciação em suem realidade separada, com eloqüência própria; es-
decorr~~cu~:deles d~ que a que experimenta a luz do sol em
consequenCla da variedade das coisas que ilumina. 2 tão incorporados em objetos físicos. Mas, apesar desta
incorporação, pertencem, por assim dizer, a uma di-
Por mais heterogêneos que possam ser os obje- mensão mais elevada. O que denominamos sentido
tos do conhecimento humano, suas formas revelam histórico não modifica a forma das coisas, nem detec-
-r-,ta nelas uma nova qualidade, mas empresta a elas e

1. Sobre pormenores deste descobrimento veja Gustavo Lefebre


Fragments â'un ma,nusc:it de Ménandre, décou;erts et publiés (Le Cai~
re, ImpresslOn de lInstItut Français d'Archéologie, 1907).
2. Descartes, Regulae ad directionem ingenii, I, "Oeuvres", ed.
) aos acontecimentos nova profundidade. Quando o
cientista deseja retroceder ao passado não emprega
conceitos ou categorias de suas observações do pre-
~:les Adam e Paul Tannery (Paris, 1897),X, 360. Traduzido para o
mgles por Elizabeth S. Haldane e G. R. T. Ross, "The Philosophical sente. Liga o presente ao passado seguindo, retrospec-
Works of Descartes" (Cambridge University Press, 1911), I, 1. tivamente, a cadeia de causas e efeitos. Estuda no

f
280 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 281

presente os vestígios materiais deixados pelo passado. este material não é fato petrificado, mas forma viva.
Tal é, por exemplo, o método da geologia ou da pa- A história é a tentativa de fundir todas essas disjecta
leontologia. A história também tem de começar com membra, os membros esparsos do passado, sintetizá-
estes vestígios, uma vez que, sem eles, não poderia -los e modelá-los de novo.
dar um só passo. Mas esta é apenas uma primeira ta- Entre os modernos fundadores da filosofia da his-
refa preliminar. A esta reconstrução real, empírica, a tória, Herder possuía a visão mais clara deste lado
história acrescenta outra simbólica. O historiador do processo histórico. Suas obras não nos oferecem
precisa aprender a ler e interpretar seus documentos apenas uma recordação mas também uma ressurrei-
e monumentos, não só como restos mortos do passa- ção do passado; não era um historiador propriamente
do, mas também como suas mensagens vivas, que se dito, não nos deixou nenhuma grande obra histórica,
dirigem a nós em sua própria linguagem. O conteúdo e nem mesmo o que realizou no campo filosófico pode
simbólico destas mensagens, entretanto, não é imedia- comparar-se com a obra de Hegel. Entretanto, foi
tamente observável. Cabe ao lingüista, ao filólogo e o pioneiro de um novo ideal de verdade histórica. Sem
ao historiador fazê-Ias falar e fazer-nos compreen- ele não teria sido possível a obra de Ranke nem a
der essa linguagem. A distinção fundamental entre de Hegel. Pois ele possuía o grande poder pessoal de
as obras do historiador e do geólogo ou paleontólogo revivificar o passado, de emprestar eloqüência a todos
não consiste na estrutura lógica do pensamento his- os fragmentos e remanescentes da vida moral, reli-
tórico, mas nessa tarefa especial, nessa missão especí- giosa e cultural do homem. Foi este aspecto da obra
fica. Se o historiador não conseguir decifrar a lingua- de Herder que despertou o entusiasmo de Goethe.
gem simbólica de seus monumentos, a história conti- Como escreveu em uma de suas cartas, não encontrou
nuará sendo para ele um livro fechado. Em certo nas descrições históricas de Herder apenas as "cascas
sentido, o historiador é muito mais lingüista que cien- e conchas dos seres humanos". O que excitava sua
tista. Mas não estuda apenas as línguas faladas e es-
critas da humanidade; procura penetrar no sentido de I profunda admiração era a "maneira de varrer" de
Herder - "não apenas extraindo ouro do entulho
todos os idiomas simbólicos. Não encontra seus textos
somente em livros, anais ou memórias. Precisa ler
hieróglifos ou inscrições cuneiformes, olhar para as
cores de uma tela, para estátuas de mármore ou de
I
;
mas também regenerando este entulho para conver-
tê-lo em uma planta viva". 1
Esta "palingenesia", este renascimento do passa-
do, assinala e distingue o grande historiador. Friedrich
bronze, para catedrais ou templos, para moedas ou
gemas. Mas não considera todas estas coisas simples-
I Schlegel chamava ao historiador einen TÜckwêirts ge-
kehrten Propheten, um profeta retrospectivo. 2 Existe
mente com o espírito de um antiquário, que deseja
colecionar e preservar os tesouros dos velhos tempos;
t também uma profecia do passado, uma revelação da
sua vida oculta. A história não prediz os acontecimen-
o que procura é antes a materialização do espírito de tos futuros; só interpreta o passado. Mas a vida huma-
uma era passada. Detecta o mesmo espírito em leis 1. "Deine Art zu fegen - und nlcht etwa aus dem Kehricht Gold
e estatutos, em cartas e declarações de direitos, em zu sieben, sondem den Kehricht zur lebendigen Pflanze umzupalin-
genesieren, legt mich immer auf die Knie meínes Herzens." Goethe an
instituições sociais e constituições políticas, em ritos Herder, maio de 1775, Brieje (ed. de weímar), II, 262.
e cerimônias religiosas. Para o verdadeiro historiador 2. "Athenãumsfragmente", 80, op. cit., n, 215.
282 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 283
,.
na é um organismo em que todos os elementos se im- tura moderna, Nietzsche lançou um repto ao chama-
plicam e explicam entre si. Conseqüentemente, uma do "senso histórico" de nossos tempos. Procurou pro-
nova compreensão do passado nos dá, ao mesmo tem- var que este senso, longe de ser um mérito e um pri-
po, uma nova perspectiva do futuro, que, por sua vez, vilégio de nossa vida cultural, é o seu perigo intrín-
se transforma num impulso para a vida intelectual e seco. Era a doença que sofríamos. A história só tem
social. Para esta dupla visão do mundo em perspecti- sentido como serva da vida e da ação. Se a serva
va e em retrospecto, o historiador precisa escolher seu usurpa o poder, e fica no lugar do senhor, obstrui as
ponto de partida. Não pode encontrá-lo senão em seu energias da vida. Por excesso de história nossa vida
próprio tempo, nem pode ir além das condições de se atrofiou e degenerou. A história se opõe ao vigo-
sua experiência presente. O conhecimento histórico roso impulso para novos feitos e paralisa o agente.
é a resposta a perguntas definidas, que tem de ser Pois quase todos nós só podemos realizar quando es-
dada pelo passado; mas as próprias perguntas são co- quecemos. O senso histórico irrestrito, levado ao seu
locadas e ditadas pelo presente - por nossos interes-
ses intelectuais presentes e por nossas necessidades
morais e sociais presentes.
Esta conexão entre o presente e o passado é ine-
gável; dela podemos tirar conclusões muito diferentes
! extremo lógico, destrói o futuro. 1 Mas este julgamen-
to depende da discriminação artificial de Nietzsche
entre a vida da ação e a vida do pensamento. Quando
levou a cabo seu ataque, Nietzsche era ainda adepto
e discípulo de Schopenhauer. Concebia a vida como
no que concerne à certeza e ao valor do conhecimento manifestação de uma vontade cega. A cegueira pas-
histórico. Na filosofia contemporânea Croce é o cam- sou a ser a própria condição de Nietzsche para a vi-
peão do mais radical "historicismo". Para ele, a his- da realmente ativa; o pensamento e a consciência opu-
tória não é apenas um ramo especial da realidade, nham-se à vitalidade. Se rejeitarmos esta pressupo-
mas a realidade inteira. Sua tese de que toda histó- sição, as conseqüências de Nietzsche se tornam insus-
ria é história contemporânea conduz, portanto, a uma tentáveis. Está visto que a nossa consciência do pas-
completa identificação da filosofia com a história. sado não deveria enfraquecer nem invalidar nossas
Acima e além do reino humano da história não existe forças ativas. Empregada de maneira correta, nos
outro reino do ser, nenhuma outra matéria de pen- proporciona um exame mais livre do presente e revi-
samento filosófico. 1 A inferência oposta foi deduzida gora nossa responsabilidade em relação ao futuro. O
por Nietzsche. Ele também insistia em que "só pode- homem não pode modelar a forma do futuro sem ter
mos explicar o passado pelo que é mais elevado no consciência das condições presentes e das limitações
presente". Mas esta asserção só lhe serviu de ponto de seu passado. Como Leibniz costumava dizer:
de partida para um violento ataque ao valor da his- on recêde pour mieux sauter, recua-se para saltar
tória. Em seus "Pensamentos Extemporâneos", com mais alto. Heráclito inventou para o mundo físico
os quais encetou sua obra de filósofo e crítico da cul- a máxima oooç avw XiXtW fJ.Lr), o caminho para cima e

1. Sobre esse problema veja Guido Calogero, "Sobre a Chamada 1. Nietzsche, Vom Nutzen und Nachteü der Historie !ür das Le-
Identidade da História com a Filosofia", em Filosofia e História, Bn- ben, em "Unzeit gemãsse Betrachtungen" (874), Pt. IH. Traduzido pa-
satos Apresentados a Ernst Cassirer, pp. 35·52. ra o inglês por Oscar Levy, VoI. H.

1
284 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 285

o caminho para baixo são uma mesma coisa. 1 Em tão de Agostinho e de Marsilio Ficino; um Platão ra-
certo sentido, podemos aplicar o mesmo enunciado ao cionalista, o Platão de Moisés Mendelssohn; e, há pou-
mundo histórico. Até nossa consciência histórica é cos decênios, nos ofereceram um Platão kantiano. Po-
uma "unidade de contrários": liga os pólos opostos demos sorrir de todas estas diversas interpretações
do tempo e nos dá, assim, o nosso sentimento da con- que, contudo, apresentam não só um lado negativo
tinuidade da cultura humana. mas também um positivo. Todas, cada qual dentro de
Esta unidade e continuidade se tornam especial- seus limites, contribuíram para uma compreensão e
mente claras no campo de nossa cultura intelectual, avaliação sistemática da obra de Platão. Cada qual in-
na história da matemática, da ciência ou da filosofia. sistiu em certo aspecto contido em sua obra, mas que
Ninguém poderia jamais tentar escrever uma história só poderia tornar-se manifesto graças a um complica-
da matemática ou da filosofia sem possuir uma visão do processo de pensamento. Ao referir-se a Platão,
clara dos problemas sistemáticos das duas ciências. em sua Crítica da Razão Pura, Kant indica este fato:
Os fatos do passado filosófico, as doutrinas e. sistemas " ... não é absolutamente fora do comum", disse ele,
dos grandes pensadores, não têm sentido sem uma in- "ao compararmos os pensamentos que um autor ex-
terpretação. E este processo de interpretação nunca pressou em relação ao seu assunto, ... descobrir que
se detém de todo. Assim que atingimos um novo cen- o compreendemos melhor do que ele mesmo se com-
tro e uma nova linha de visão em nossos próprios pen- preendeu. Como não determinou suficientemente seu
samentos, precisamos revisar nossos juízos. Neste
sentido, nenhum exemplo será porventura mais carac-
terístico e instrutivo que o que nos oferecem as mu-
j conceito, às vezes falou, ou mesmo pensou, contra-
riamente à sua própria intenção". 1 A história da fi-
losofia nos mostra muito claramente que a plena de-
danças de nossa visão de Sócrates: temos o Sócrates terminação de um conceito rarissimamente é obra do
de Xenofonte e de Platão; um Sócrates estóico, cético, pensador que o apresentou pela primeira vez. Pois,
místico, racionalista e um Sócrates romântico. São to- falando de modo geral, um conceito filosófico é antes
talmente diferentes. Não obstante, não deixam de ser um problema que a solução do mesmo - e sua com-
verdadeiros e cada um nos dá um novo aspecto, uma pleta significação não poderá ser compreendida en-
perspectiva característica do Sócrates histórico e de quanto estiver em seu estado implícito inicial. Precisa
sua fisionomia intelectual e moral. PIatão via em Só- tornar-se explícito a fim de ser compreendido em seu
crates o grande dialético e o grande mestre ético; Mon- verdadeiro sentido, e a transição do estado implícito
taigne via nele o filósofo antidogmático, que confes- para o explícito é obra do futuro.
sava a própria ignorância; Friedrich Schlegel e os pen- Pode objetar-se que este contínuo processo de in-
sadores românticos puseram em relevo a ironia socrá- terpretação e reinterpretação é de fato necessário na
tica. E no caso do próprio PIatão, poderíamos traçar história das idéias, mas que a necessidade deixa de
o mesmo desenvolvimento: temos um Platão místico, existir quando chegamos à história "verdadeira"
o Platão do neoplatonismo; um Platão cristão, o Pla-
1. Kant, Crítica da Razão Pura (2." edição), p. 370. Traduzido
1. Fragmento 60, em Diels, Die Fragmente der Vorsokratiker, para o inglês por Norman Kemp Smith (Londres, Macmillan, 1929),
I, 164. p. 310.
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286 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 287

à história do homem e das ações humanas. Aqui se pende de nossa concepção dos homens que neles esti-
diria que temos de lidar com fatos constantes, óbvios, veram empenhados. Assim que vemos estes homens
palpáveis, e que precisam apenas ser relatados para a uma nova luz, somos obrigados a alterar nossas
ser conhecidos. Mas nem mesmo a história política idéias dos acontecimentos. Entretanto, mesmo assim,
constitui exceção à regra metodológica geral. O que não se obtém uma visão histórica verdadeira sem um
se aplica à interpretação de um grande pensador e constante processo de revisão. A Grandeza e Deca-
de suas obras filosóficas também se aplica a juízos dência de Roma, de Ferrero, difere em muitos pontos
sobre uma grande figura política. Friedrich GundoH importantes da descrição do mesmo período feita por
escreveu um livro inteiro, não sobre César, mas sobre Mommsen. Este desacordo deve-se, em grande parte,
a história de sua fama e das várias interpretações de ao fato de que os dois autores têm uma concepção in-
seu caráter e missão política, desde a antigüidade até teiramente diferente de Cícero. A fim de formar um
nossos dias. 1 Até em nossa vida social e política mui- juizo justo de Cícero não basta, contudo, conhecer
tas tendências fundamentais só revelam toda sua for- simplesmente todos os acontecimentos do seu consu-
ça e sentido numa etapa relativamente tardia. Um lado, a parte que ele desempenhou na revelação da
ideal político e um programa social, há muito tempo conspiração de Catilina ou nas guerras civis entre
concebidos em sentido implícito, tornam-se explícitos
Pompeu e César. Todos estes assuntos permanecerão
através de um desenvolvimento ulterior. " ... muitas
dúbios e ambíguos enquanto não conhecermos o ho-
idéias do norte-americano germinal", escreve S. E.
mem, nem compreendermos sua personalidade e
Morison em sua História dos Estados Unidos,
seu caráter. Para isto, faz-se mister alguma interpre-
podem ser rastreadas até a mãe pátria. Na Inglaterra estas tação simbólica. Não me basta estudar suas orações
idéias persistiram através dos séculos, apesar de certo falsea-
mento e obstrução nas mãos dos monarcas Tudor e dos aristo- e seus escritos filosóficos; devo ler as cartas a sua
cratas Whig; na América encontraram oportunidade de um livre filha, Túlia, e aos amigos íntimos; e ter simpatia pelos
desenvolvimento. Assim encontramos ... vigorosos e antigos
preconceitos ingleses embalsamados nas Declarações de Direitos encantos e defeitos de seu estilo pessoal. Só pela reu-
norte-americanos e em instituições havia muito obsoletas na nião de todas estas provas circunstanciais chegarei a
Inglaterra ... que duraram, com poucas modificações, nos Es-
tados norte-americanos até os meados do século XIX. Foi uma uma imagem verdadeira de Cícero e de seu papel na
missão inconsciente dos Estados Unidos tornar explícito o que vida política de Roma. - A menos que o historiador
estivera implícito por muito tempo na Constituição britânica
e provar o valor de princípios que haviam sido em grande seja um mero redator de anais, e se contente com
parte esquecidos na Inglaterra de Jorge IIl.2 uma narração cronológica dos acontecimentos, preci-
sará sempre realizar esta tarefa dificílima, a de de-
Na história política não são, de maneira alguma,
tectar a unidade por trás das expressões inumeráveis
os simples fatos que nos interessam. Desejamos com-
e, não raro, contraditórias de um personagem histórico.
preender não só as ações mas também os atores. Nosso
Para ilustrar este ponto, desejo citar outro exem-
julgamento do curso dos acontecimentos políticos de-
plo característico, tirado da obra de Ferrero. Um dos
1. Friedrich Gundolf, Caesar, Geschichte seines Ruhm (Berlím, acontecimentos mais importantes da história de Roma
1924). - que decidiu seu futuro e, em conseqüência, o fu-
2_ S. E. Morison, The Oxiorâ History 01 the United States (Ox-
ford, Clarendon Press, 1927), I, pp. 39 e seguinte. turo do mundo - foi a Batalha de Actium. Consoan-
288 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 289

te a versão comum, Antônio perdeu a batalha porque provocada pelo medo, nem um ato de amor cego e
Cleópatra, apavorada e sem esperanças quanto ao re- apaixonado, mas um ato político cuidadosamente pla-
sultado, voltou com seus barcos e fugiu. Por seu nejado de antemão.
amor, Antônio decidiu segui-Ia, abandonando seus
Com a obstinação, a segurança e a veemência de uma mulher
soldados e amigos. A ser correta esta versão tradicio- ambiciosa, de uma rainha confiante e obstinada, Cle6patra
nal, devemos endossar o dito de Pascal, reconhecendo procurou persuadir o triúnviro... a atacar de novo o Egito por
mar. . . Em princípios de julho, Antônio parece haver pensa-
que, se o nariz de Cleópatra tivesse sido mais curto, do em abandonar a guerra e voltar ao Egito. Era-lhe impossí-
toda a face da terra teria sido alterada. 1 Ferrero, po- vel, entretanto, proclamar sua intençãc,>de abandon~r a Itália
a Otavíano, de desertar a causa republicana e de trair os sena-
rém, interpreta o texto histórico de maneira totalmen- dores romanos, que haviam deixado a Itália por sua causa. O
te diversa. Declara que a história do amor entre engenho de Cle6patra, por conseguinte, concebeu outro plano;
Antônio e Cleópatra é uma lenda. Antônio, diz-nos travar-se-ia uma batalha naval para disfarçar a retirada. Parte
do exército seria enviada a bordo da esquadra, outras tropas
ele, não desposou Cleópatra porque estivesse perdida- receberiam ordens de guardar os pontos mais importantes na
mente apaixonado por ela. Pelo contrário, Antônio ti- Grécia; a frota partiria em ordem de batalha e atacaria. se o
inimigo avançasse; em seguida se faria à vela para o EgIto. ~
nha em mente um grande plano político.
Antônio queria o Egito e não a formosa pessoa de sua rainha; Não estou opinando aqui sobre a correção desta
pretendia, com seu casamento dinástico, estabelecer o proteto- afirmação. O que desejo ilustrar, com este exemplo,
rado romano no vale do Nilo e poder dispor, para a campanha
persa, dos tesouros do Reino dos Ptolomeus... Com um casa- é o método geral da interpretação histórica de even-
mento dinástico, seria possível assegurar para si todas as van- tos políticos. Em física os fatos se explicam quando
tagens da posse efetiva, sem correr os riscos da anexação; por
isso optou por esse artifício que ... fora provavelmente imagi- conseguimos díspô-los numa ordem serial tríplice: na
nado por César. .. O romance entre Antônio e Cle6patra enco- ordem do espaço, do tempo, das causas e efeitos. Des-
bre, pelo menos no início, um tratado político. Com o casa-
mento, Cle6patra procura firmar seu vacilante poder; Antônio ta maneira, eles se tornam plenamente determinados;
trata de colocar o vale do Nilo debaixo do protetorado roma- e é precisamente esta determinação que temos em
no. . . A verdadeira hist6ria de Antônio e Cle6patra é um dos
mais trágicos epis6dios de uma luta que lacerou o Império Ro- mente quando nos referimos à verdade ou à realida-
mano durante quatro séculos, até que finalmente o destruiu, a de dos fatos físicos. A objetividade dos fatos históri-
luta entre o Oriente e o Ocidente. .. A luz destas considerações,
o procedimento de Antônio se torna claríssimo. O casamento cos pertence, todavia, a uma ordem diferente e mais
em Antioquia, pelo qual ele coloca o Egito sob o protetorado elevada. Aqui também precisamos determinar o local
romano, é o ato decisivo de uma política que visa transportar
o centro de seu governo para o Oriente ... 2 e o momento dos acontecimentos. Quando chegamos,
porém, à investigação de suas causas surge um novo
Se aceitarmos esta interpretação dos caracteres problema. Se conhecêssemos todos os fatos na ordem
de Antônio e Cleópatra, os sucessos individuais, e en- cronológica, teríamos um plano geral e um esqueleto
tre eles a própria Batalha de Actium, surgem a uma da história; mas não teríamos sua vida real. No en-
luz nova e diferente. A fuga de Antônio do campo de tanto, a compreensão da vida humana é o tema geral
batalha, declara Ferrero, não foi, de maneira alguma, e o objetivo final do conhecimento histórico. Na his-
1. Pascal, Pensées, ed. Louandre, p. 196.
2. Guglielmo Ferrero, "A História e a Lenda de Antônio e Cleó- 1. Ferrero, Granâezza e decadenza di Roma (Milão, 1907), IrI,
patra", em Personagens e Acontecimentos da História Romana, de 502-539. Tradução inglesa de H. J. Chaytor, Greatness and Decline 01
César a Nero (Nova Iorque, G. P. Putnam's Sons, 1909),pp. 39-68. Rome (Nova Iorque, G. P. Putnam's Sons, 1908), IV, pp. 95 e seguintes.
290 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 291

tória encaramos todas as obras do homem e todos seus construídas para a eternidade. Os grandes artistas
atos como precipitados de sua vida; e desejamos re-
pensam em suas obras, e a elas se referem, como se
constituí-los no estado original, desejamos compreen-
fossem monumenta aere perennius. Estão certos de
der e sentir a vida de onde derivaram.
haver erguido um monumento que não será destruído
Neste sentido, o pensamento histórico não é a
pelos anos sem conta e pela fuga dos séculos. Mas esta
reprodução, mas o reverso do processo histórico real.
pretensão está presa a uma condição especial. Para
Em nossos documentos e monumentos históricos en-
poderem perdurar, as obras do homem precisam ser
contramos uma vida passada que assumiu certa forma.
constantemente renovadas e restauradas. Uma coisa
O homem não pode viver esta vida sem fazer esforços
constantes por expressá-Ia. Os modos desta expres- física permanece em seu estado atual de existência
são são variáveis e inumeráveis. Mas são todos ou- através da inércia física. Conserva a mesma natureza
tros tantos testemunhos da mesma tendência funda- enquanto não é alterada nem destruída por f?rç~s ex-
mental. A teoria do amor de Platão define o amor ternas. Mas as obras humanas são vulneráveis por
como um desejo de imortalidade. No amor, o homem um ângulo muito diferente. Sujeitas à mudança e à
luta por romper a cadeia de sua existência individual decadência não só num sentido material mas também
e efêmera. Este instinto fundamental pode ser satis- num sentido espiritual, ainda que sua existência con-
feito de duas maneiras. tinue, correm constantemente o risco de perder seu
sentido. Sua realidade é simbólica, não é física; e esta
Aqueles que têm a semente fecunda no corpo, apenas lançam
mão de mulheres e geram filhos - este é o caráter de seu amor; realidade nunca deixa de requerer interpretação e
.sua prole, como esperam, preservará sua memória e lhes dará reinterpretação. E aí começa a grande tarefa da his-
a bem-aventurança e a imortalidade... Mas se a semente está
na alma, esta concebe o que é próprio da alma conceber ou tória. O pensamento do historiador guarda uma rela-
conter. 1 ção com seu objeto muito diferente que o físico ou o
naturalista com os seus. Os objetos materiais existem
Daí que uma cultura possa ser descrita como pro-
independentemente da obra do cientista, mas os his-
duto e conseqüência desse amor platônico. Até no
tóricos só têm existência real enquanto recordados -
estádio mais primitivo da civilização humana, até no
e o ato da recordação precisa ser ininterrupto e con-
pensamento mítico, encontramos este protesto apaixo-
nado contra o fato da morte. 2 Nas camadas culturais tínuo. O historiador não só deve observar seus obje-
tos, como o naturalista, mas também preservá-Ios. A
superiores - na religião, na arte, na história, na filo-
esperança de mantê-Ias em sua existência física pode
sofia - este protesto assume nova forma. O homem
ser frustrada a qualquer momento. Pelo incêndio que
começa a ver, dentro de si, um novo poder, com o
destruiu a biblioteca de Alexandria, inúmeros e ines-
qual se atreve a desafiar o poder do tempo. Emerge
timáveis documentos se perderam para sempre. Mas
do mero fluir das coisas, lutando por eternizar e imor-
talizar a vida humana. As pirâmides egípcias parecem até os monumentos sobreviventes aos poucos desapare-
ceriam se não fossem constantemente mantidos vivos
pela arte do historiador. Para possuir o mundo da
1. PIatão, o Banquete, 208-209;tradução de Jowett, I, pp. 579 e
seguinte. cultura precisamos reconquistá-Ia incessantemente pe-
2. Veja pp. 137-139.
la recordação histórica, que não significa simplesmen-
292
Ernst Cassirer AntropOlogia Filosófica 293

te o ato da reprodução. É uma nova síntese intelec- plo, a história da cunhagem ,de ~oedas ou do direito
tual - um ato construtivo. Nesta reconstrução o es- público romano. Mas tudo e feito com o mesmo es-
pírito humano se move na direção oposta à do proces- írit o O Rômisches Staatsrecht (Direito público
plrl dif ro-_
so original. Todas as obras de cultura nascem de um mano) de Mommsen não é uma simples co I lc~çao
ato de solidificação e de estabilização. O homem não de leis constitucionais. Estas leis estão cheias de vId~;
poderia comunicar seus pensamentos e sentimentos, e sentunos, por detrás delas, as grandes forças necessa-
não poderia, por isso mesmo, viver num mundo social, rias à construção de um sistema desta ordem, e as
se não possuísse o dom especial de objetificar seus grandes forças intelectuais .e morais, ~s. únicas ca~a-
pensamentos e dotá-Ias de uma forma sólida e perma- zes de produzir esse orgamsmo do direito r~mano, o
nente. Atrás destas formas fixas e estáticas, destas dom lia espírito romano para ordenar, orgamzar e co-
obras petrificadas da cultura humana, a história des- mandar. Também neste caso, a intenção de Mommse~
cobre os impulsos dinâmicos originais. É dom dos foi mostrar-nos o mundo romano no espelho da lei
grandes historiadores reduzirem todos os simples fa- romana "Enquanto a jurisprudência ignorou o E~-
tos aos seus fieri, todos os produtos a processos, todas tado e o povo", disse ele, "e a história e _a f~lologIa
as coisas ou instituições estáticas às suas energias cria- ignoraram o direito, ambas bateram em vao a porta
doras. Os historiadores políticos nos dão uma vida do mun d o romano."
cheia de paixões e emoções, lutas violentas de par- Se compreendermos desta maneira a tarefa. da
tidos políticos, de conflitos e guerras entre diferen- história muitos problemas que, nos últimos decêmos,
tes nações. têm sido discutidos tão vivamente e têm encontrado
Mas nem tudo isto é necessário para dar a urna respostas tão diversas e divergentes, podem ser so~u-
obra histórica seu caráter e cunho dinâmicos. Quan- cionados sem dificuldade. Os filósofos modernos tem
do Mommsen escreveu sua História Romana, falou tentado, com freqüência, construir uma lógica es~e-
como grande historiador político e num tom novo e cial da história. A ciência natural, dizem eles, base~a-
moderno. "Queria fazer descer os antigos", disse ele -se numa lógica de universais, a história numa lógica
numa carta, "do fantástico pedestal em que apare- de indivíduos. Windelband declarou que o julgamen-
cem, para o mundo real. Por isso o cônsul precisava to da ciência natural é nomotético, os julgamentos da
transformar-se no burgomestre. Talvez tenha eu exa- história são idiográficos. 1 O primeiro nos dá leis ge-
gerado, mas minha intenção era perfeitamente váli- rais' os últimos descrevem fatos particulares. Esta
da".1 As obras ulteriores de Mommsen parecem ter distinção tornou-se a base de toda a teori~ de Ricke:t
sido concebidas e escritas em estilo totalmente dife- sobre o conhecimento histórico. "A realidade empi-
rente; entretanto, não perdem o caráter dramático. rica torna-se natureza se a consideramos em relação
Pode parecer paradoxal atribúir este caráter a obras ao universal; torna-se história, se a consideramos em
. Iar. "2
relação ao particu
que tratam dos assuntos mais áridos como, por exem-
I Windelband, "Geschichte und Naturwissenschaft", em Priüu-
1. Mommsen em carta a Henzen; citado por G. P. Gooch, History
dien l5.' edição, Tubinga, 1915). Vol. li. .
anâ Historians in the Nineteenth Century (Londres, Longmans, Green &
Co., 1913;nova edição, 1935),p. 457. 2 Rickert, Die Grenzen der ruiturunssenschajtlicheti Beçrittsbü
dung (Tubínga, 1902), p. 255.
294 Antropologia Filosófica 295
Ernst Cassirer

Mas não é possível separar os dois momentos de que são a riqueza e a variedade, a profundidade e a
universalidade e particularidade desta maneira abs- intensidade de sua experiência pessoal que constituem
trata e artificial. Um julgamento é sempre a unidade a marca distintiva do grande historiador. De outro
sintética de ambos os momentos; contém um elemen- modo, sua obra permaneceria sem vida e sem . .cor.
to de universalidade e de particularidade. Estes ele- Mas como podemos, desta maneira, esperar atingir o
mentos não se opõem mutuamente; implicam-se e in- objetivo final do conhecimento histórico, como ,Pode-
terpenetram-se. "Universalidade" não é um termo mos descobrir a verdade das coisas e dos acontecimen-
que designe determinado campo de pensamento; é tos? Uma verdade pessoal não será uma autocontra-
uma expressão do próprio caráter, da função do pen- dição? Ranke manifestou, certa vez, o desejo de ex-
samento. O pensamento é sempre universal. Por ou- tinguir seu próprio eu para se converter em puro es-
tro lado, a descrição de fatos particulares, de um pelho das coisas, a fim de ver os acontecimentos tal
" aqur." e d e um " agora,,,-, nao e, d e maneIra
. alguma,
qual como ocorreram. Está claro, todavia, que esta
privilégio da história. A unicidade dos acontecimen- declaração paradoxal foi feita como um problema,
tos históricos foi muitas vezes considerada o caráter não como uma solução. Se o historiador conseguisse
que distingue a história da ciência. Entretanto, este apagar sua vida pessoal nem por isso lograria maior
critério não basta. O geólogo que nos dá uma descri- objetividade; pelo contrário, se privaria do próprio
ção dos vários estados da terra em diferentes períodos instrumento de todo pensamento histórico. Se apago
geológicos nos demonstra acontecimentos concretos e a luz da minha experiência pessoal, não poderei ver
únicos. Estes acontecimentos não podem repetir-se; nem julgar a experiência dos outros. Sem uma rica
não ocorrerão na mesma ordem uma segunda vez. experiência pessoal no campo da arte ninguém pode-
Neste sentido, a descrição do geólogo não difere da do rá escrever uma história da arte; ninguém, a não ser
historiador que, por exemplo, como Gregorovius, nos um pensador sistemático, poderá dar-nos uma histó-
conta a história da cidade de Roma na Idade Média. ria da filosofia. A aparente antítese entre a objetivi-
Mas o historiador não nos relata simplesmente uma dade da verdade histórica e a subjetividade do his-
série de eventos em ordem cronológica definida. Para toriador terá de ser resolvida de maneira diferente.
ele, tais eventos são apenas a carapaça debaixo da A melhor solução talvez não se encontre nas pa-
qual procura uma vida humana e cultural - vida de lavras de Ranke, mas em suas obras. Nelas encontra-
ações e paixões, de perguntas e respostas, de tensões mos a verdadeira explicação do que realmente deve
e soluções. O historiador não pode inventar uma nova significar ou não a objetividade histórica. Quando
linguagem e uma nova lógica para tudo isto. Não Ranke publicou seus primeiros escritos, seu ideal da
pode pensar nem falar sem usar termos gerais. Mas verdade histórica não foi, de um modo geral, com-
infunde em seus conceitos e palavras seus próprios preendido por seus contemporâneos; sua obra sofreu
sentimentos interiores e lhes dá assim um novo som violentos ataques. Um conhecido historiador, Hein-
e uma nova cor - a cor de uma vida pessoal. rich von Leo, censurou-lhe a "tímida abstenção de
O dilema fundamental do pensamento histórico pontos de vista pessoais"; descreveu, desdenhoso, os
começa precisamente neste ponto. Não há dúvida de escritos de Ranke como pintura em porcelana, delí-
296 Antropologia Filosófica 297
Ernst Cassirer

cia de damas e amadores. Hoje em dia, um juízo des- era-lhe preciso estudar todos os partidos e todos os
ta ordem pareceria não só completamente injusto mas atores desta peça histórica. A simpatia de Ranke, sim-
também absurdo e grotesco. Sem embargo disso, foi patia do verdadeiro historiador, é de um tipo especí-
repetido por críticos subseqüentes, sobretudo pelos fico. Não supõe amizade nem partidarismo. Abrange
historiadores da Escola Prussiana. Heinrich von Trei- amigos e adversários. Esta forma de simpatia pode
tschke queixou-se da insensível objetividade de Ran- comparar-se melhor à dos grandes poetas. Eurípides
ke, "que não diz para que lado pende o coração do não simpatiza com Medéia; Shakespeare não simpati-
narrador''L! Às vezes, os adversários de Ranke, em za com Lady Macbeth nem com Ricardo lil. Entre-
tons de troça, comparavam sua atitude e estilo pessoal tanto, eles nos fazem compreender estes personagens;
com a atitude das esfinges, na segunda parte do entram em suas paixões e motivos. A máxima tout
Fau.sto de Goethe: comprendre est tout pardonner não se aplica nem às
obras dos grandes artistas nem às dos grandes histo-
Sitzen vor den Pyramiden, riadores. Sua simpatia não supõe julgamento moral,
Diante das pirâmides sentadas,
não implica aprovação ou desaprovação de atos isola-
Zu der Võlker Hochgericht;
para justiçar os povos.
dos. Está visto que o historiador se acha em plena
Überschwemmung, Krieg und Frieden - liberdade para julgar mas, antes de fazê-lo, quer com-
Inundações, guerra, paz preender e interpretar.
Und verziehen kein Gesicht. 2 Schiller inventou o dito Die Weltgeschichte ist
e nem sequer se incomodam. das Weltgericht ("a história universal é o juízo fi-
nal"), dito que Hegel propagou -e do qual fez uma
Tal sarcasmo, todavia, é muito superficial. Nin-
das pedras angulares de sua filosofia da história. "Os
guém pode estudar os escritos de Ranke sem tomar
destinos e atos dos estados particulares e dos espíritos
consciência da. profundidade de sua vida pessoal e particulares", diz Hegel,
de seu sentimento religioso, que impregna toda sua
obra histórica. Mas o interesse religioso de Ranke constituem a dialética fenomênica da finitude destes espíritos
dos quais surge o espírito universal, o espírito infinito do mun~
era suficientemente amplo para cobrir todo o campo do. Este espírito utiliza seu direito - e seu direito é o mais
da vida religiosa. Antes de aventurar-se à descrição alto - neles, na história universal, no julgamento do mundo.
A história universal é o julgamento do mundo, porque contém
da Reforma, ele concluíra sua grande obra sobre a em sua universalidade autodependente, todas as formas especiai~
História dos Papas *. Foi precisamente o caráter pe- - a família, a sociedade civil e a nação, reduzidas à idealidade
culiar de seu sentido religioso que não lhe permitiu
tratar as questões religiosas à maneira de um fanáti-
J
~.
isto é, a membros subordinados, porém orgânicos, de si mesma:
Compete ao espírtto produzir todas estas formas especiais. 1

-co ou de simples apologista. Concebia a história como Embora se opusesse aos pontos de vista funda-
de Hegel. o próprio Ranke teria podido en-
. perpétuo conflito entre grandes idéias políticas e reli-
giosas. Para ver este conflito à sua verdadeira luz ,
t mentais

I Hegel. Rechtsphilosophie, seçs. 340 e seguinte. Tradução ingle-


1. Sobre esta crítica da obra de Ranke, veja G. P. Gooch op. cito
caps. VI, VIII. ' , sa das nuas últimas sentenças de J. Macbride Sterrett, The Ethics 01
2. Fausio, Pt. li, "Classische Walpurgisnacht".
Heqel. T'runslateâ Selections trom. his "Rechtsphilosophie" (Boston,
*Ed. F. C. E., México. (.rim; & Go., 1893). p. 207.
298 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 299

dossar este conceito. Mas a sua concepção da missão crever-se uma obra de história política sem paixões
do historiador era menos presunçosa. Entendia que, políticas e sem parcialidade nacional. Treitschke, re-
no grande processo da história do mundo, ao histo- presentante da Escola Prussiana, recusava-se até a
riador cabia preparar, não pronunciar, seu julgamen- estudar o material de arquivos que não fossem prus-
to. Isto está muito longe da indiferença moral; ao sianos. Receava ser perturbado, num estudo assim,
contrário, é um sentimento da mais alta responsabi- em seu julgamento favorável da política prussiana. 1
lidade moral. No entender de Ranke, o historiador Esta atitude pode ser compreensível e escusável num
não é promotor público nem advogado da defesa. Se panfletário ou propagandista político. Num historia-
fala como juiz, fala como juge d'instruction. Precisa dor, porém, simboliza o colapso e a bancarrota do
reunir todos os documentos atinentes ao caso a fim conhecimento histórico. Podemos compará-Ia ao es-
de submetê-los à mais alta corte de justiça,à história tado de espírito dos adversários de Galileu, que siste-
do mundo. Se falhar nesta tarefa, se, por favoritis- maticamente se recusavam a olhar pelo telescópio e
mo ou ódio partidário, suprimir ou falsificar uma úni- a convencer-se da verdade de seus descobrimentos as-
ca peça do processo, terá descurado de seu supremo tronômicos, por não quererem ser perturbados em
dever. sua fé implícita no sistema aristotélico. A semelhante
Esta concepção ética de sua tarefa, da dignidade concepção da história podemos opor as palavras de
e responsabilidade do historiador, é um dos principais Jakob Burckhardt,
méritos de Ranke e abre a sua obra seus grandes e além dos. cegos elogios a nossa pátria, outra obrigação, mais
livres horizontes. Sua simpatia universal podia abar- onerosa aínda, nos cabe como cidadãos, a saber, educar-nos para
sermos seres hu.m.anos capazes de compreender, para os quaís
car todas as épocas e nações. 1 Foi-lhe possível escre- a verdade e a afínídads com as coisas do espírito são o supremo
ver a história dos Papas e a história da Reforma, a bem, e capazes de extrair deste conhecimento nosso verdadeiro
de.ver de cidadãos, ainda que ele não fosse inato em nós. No
história da França e a da Inglaterra, uma obra sobre r~m? do pensamento, é supremamente justo e certo que se
os otomanos e a monarquia espanhola, com o mesmo eliminem todas as fronteiras. 2
espírito de imparcialidade e sem prevenções nacionais.
Para ele, as nações latinas e teutônicas, os gregos e Como diz Schiller, em suas Cartas Estéticas, há
romanos, a Idade Média e os Estados nacionais mo- uma arte da paixão, mas não pode haver uma "arte
dernos significavam um organismo coerente. Cada apaixonada". 3 Este mesmo ponto de vista das paixões
obra nova lhe permitia ampliar seus horizontes his- também se aplica à história. O historiador que igno-
tóricos e oferecer uma perspectiva mais livre e mais
1. Veja Ed. Fueter, Geschichte der neueren Historiographie (3.'
ampla. edíção, Munique e Berlim, 1936), p. 543.
Muitos adversários de Ranke, que não possuíam 2. "Es gibt aber neben dem blinden Lobpreísen der Heimat eine
ganz andere und schwerere Pflicht, namlich sich auszubilden zum erken-
este espírito livre e imparcial, tentaram fazer da ne- nenden Menschen, dem die Wahrheit und die Verwandtschaft mit allem
cessidade uma virtude. Afiançaram ser impossível es- Geistigen über alles geht und der aus dieser Erkenntnis auch seine
Bürgerpflicht würde ermitteln kõnnen, wenn sie ihm nicht schon rnit
seínem Temperament eingeboren isto Vollends im Reiche des Gedan-
1. Numa excelente apreciação da personalidade e da obra de Ran· kens gehen alle Schlagbáume billig in die Hõhe ," Jakob Burckhardt,
ke, Alfred Dove faz menção de sua "Universalitiit âes Mitempfindens". op. cit., p. 11. Tradução inglesa, p. 89.
Veja Dove, Ausgewiihlte Schrijtcheti (898), pp. 112 e seguintes. ~ Ensaios Estéticos e Filosóficos, Carta XXII
300 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 301

rasse O mundo das paixões - das ambições políticas, linguagem ou a arte, a história é fundamentalmente
do fanatismo religioso e dos conflitos econômicos e antropomórfica. Apagar-lhe os aspectos humanos se-
sociais - nos daria um resumo muito seco dos acon- ria destruir-lhe a natureza e o caráter específicos.
tecimentos históricos. Mas se tiver alguma pretensão Mas o antropomorfismo do pensamento histórico não
à verdade histórica, não poderá permanecer neste representa nenhuma limitação e nenhum impedimento
mundo. Terá que dar forma teórica a todo este mate- à sua verdade objetiva. A história não é o conheci-
rial das paixões; e esta forma, como a forma da obra mento de fatos ou acontecimentos externos; é uma for-
de arte, não é produto nem conseqüência da paixão. ma de conhecimento de si mesmo. Para conhecer-me,
A história é uma história de paixões; mas se tentar não posso tentar ir além de mim mesmo, saltar, por
ser apaixonada, deixará de ser história. O historia-
assim dizer, sobre minha própria sombra. Devo optar
dor não. deve exibir as afeições, as fúrias e frenesis
pelo caminho contrário. Na história, o homem volta
que descreve. Sua simpatia é intelectual e imaginati-
constantemente a si mesmo; tenta recordar e atualizar
va, não emocional. O estilo pessoal que percebemos
toda sua experiência passada. Mas o eu histórico não
em todas as linhas de um grande historiador não é
emocional nem retórico. O estilo retórico pode ter é um mero eu individual. É antropomórfico não ego-
muitos méritos; pode comover e deliciar o leitor. Mas cêntrico. Usando uma forma paradoxa, podemos di-
não atinge o ponto principal: não nos conduz a uma zer que a história se empenha por um "antropomor-
intuição e a um julgamento livre e sem prevenções
das coisas e dos acontecimentos.
Se tivermos em mente esse caráter do conheci-
j físmo objetivo". Dando-nos conhecimento do' poli-
morfismo da existência humana, liberta-nos das sin-
gularidades e preconceitos de um momento especial
e isolado. É este enriquecimento e ampliação do eu,
mento histórico, ser-nos-á fácil distinguir a objetivi-
dade histórica da outra forma de objetivid,ade que é não seu apagamento, do nosso eu cognoscente e sen-
o objetivo da ciência natural. Um grande cientista, sitivo, a meta do conhecimento histórico.
Max Planck, descreveu todo o processo do pensamen- Este ideal de verdade histórica desenvolveu-se
to científico como um esforço constante para eliminar muito lentamente. Nem mesmo o espírito grego, com .1---/
todos os elementos "antropológicos". Para estudar a toda sua riqueza e profundidade, pôde trazê-lo à plena
natureza e descobrir e formular as leis da natureza , maturidade. Mas no progresso da consciência moder-
precisamos esquecer o homem. 1 No desenvolvimen- na, o descobrimento e a formulação deste conceito da
to do pensamento científico, o elemento antropomór- história tornaram-se uma das tarefas mais importan-
fico é progressivamente empurrado para segundo pla- tes. No século XVII, o conhecimento histórico ainda
no até desaparecer de todo na estrutura ideal da física. é eclipsado por outro ideal de verdade. A história
A história procede de maneira muito diferente. Ela ainda não encontrou seu lugar ao sol. Ofuscam-na a
só pode viver e respirar no mundo humano. Como a matemática e a física matemática. Mas, a seguir, com
o início do século XVIII, principia uma nova orien-
1. Veja Max Planck, Die Einheit des physikalischen Weltbildes tação do pensamento moderno. O século XVIII fora'
(Lípsia, 1909). Sobre maiores detalhes veja Cassirer, Substância e
"Função, traduzido do inglês por W. C. e M. C. Swabey (1923), pp.
amiúde considerado um século não histórico ou anti-
306 e seguintes. -histórico. Mas este é um ponto de vista unilateral e

1
302 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 303

falso. Os pensadores do século XVIII são os verda- ciência justificar nem condenar. As cíêncías morais precisam
operar de modo idêntico ao da botânica, que, com o mesmo
deiros pioneiros do pensamento histórico. Formulam interesse, estuda a laranjeira e o loureiro, o pinheiro e a faia.
novas perguntas e inventam métodos novos para res- Elas não são outra coisa senão uma espécie de botânica apli-
pondê-Ias. A investigação histórica foi um dos ins- cada, que não lida com plantas, mas com as obras dos homens.
Tal é o movimento geral, por meio do qual, presentemente, as
trumentos necessários da filosofia do Iluminismo. 1 ciências morais e as ciências naturais se estão aproximando
Mas no século XVIII ainda prevalece uma concepção uma das outras e em virtude do que as primeiras lograrão a
pragmática da história. Nenhum conceito novo surgiu mesma certeza e o mesmo progresso das últimas. ~
antes do início do século XIX, antes do advento de
Se aceitarmos este ponto de vista, o problema da
Niebuhr e Ranke. A partir deste momento, porém,
objetividade da história parece estar resolvido da ma-
estabelece-se firmemente o conceito moderno da his-
neira mais simples. Como o físico ou o químico, o
tória e estende sua influência sobre todos os campos
historiador deve estudar as causas das coisas ao in-
do conhecimento e da cultura humanas.
vés de julgar-lhes o valor. "Não importa que os fatos
Não foi fácil, porém, determinar o caráter espe-
sejam físicos ou morais", diz Taine,
cífico da verdade e do método históricos. Grande nú-
mero de filósofos se mostrava mais inclinado a negar todos têm suas causas; há uma causa para a ambição, para a
coragem, para a verdade, como existe um~ causa
que a explicar este caráter específico. Enquanto o his- para a digestão, o movimento muscular, o calor arum~l. O
toriador continuar a manter pontos de vista pessoais vicio e a virtude são produtos, como o vitríolo e o açucar; e
todo fenômeno complexo tem suas origens em outros fenôme-
especiais, enquanto censurar ou louvar, aprovar ou de- nos mais simples, aos quais está preso. Procuremos, portanto,
saprovar, disseram eles, nunca realizará convenien- os fenômenos simples ligados às qualidades morais, como pro-
curamos os fenômenos simples ligados às qualidades físicas.
temente a tarefa que lhe cabe. Falseará, consciente
ou inconscientemente, a verdade objetiva. O historia- Em ambos os casos encontraremos as mesmas
dor precisa perder seu interesse pelas coisas e pelos causas universais e permanentes,
acontecimentos a fim de enxergá-los em sua verdadei-
ra forma. Este postulado metodológico recebeu sua presentes a todo momento e em todos os casos, operando em
toda parte e sempre, indestrutíveis e, afinal, infaliv~l~ente su-
expressão mais clara e impressionante nas obras his- premas, visto que os acidentes que as obstruem, límítados e
tóricas de Taine. O historiador, declarou Taine, pre- parciais, acabam cedendo à incessante repetição de suas forças;
de tal maneira que a estrutura geral das coisas e os grandes
cisa proceder como o naturalista, libertar-se, não só traços dos acontecimentos são sua obra; religiões, filosofias,
de todos os preconceitos convencionais, mas também poesias, indústrias, a estrutura da sociedade e das famílias são,
na realidade, apenas impressões deixadas por seu selo. 2
de todas as predileções pessoais e todos os padrões
morais. "O método moderno que sigo", disse Taine na Não pretendo entrar numa discussão e na crítica
introdução da sua Filosofia da Arte, deste sistema de determinismo histórico. 3 Uma ne-
e que agora começa a penetrar em todas as cíências morais,
consiste em considerar as obras humanas... como fatos e pro- 1. Taine, Philosophie de l'ari (15. edição, Paris, Librairie Hachette,
0

dutos cujas propriedades têm de ser exibidas e cujas causas 1917), pt. r, capo r, p. 13.
têm de ser investigadas. Encarada dessa maneira, não cabe à 2. Taine, Histoire de la littérature anglaise, lntro. Tradução ingle-
sa, I, pp. 6 e seguinte.
3. Tratei desta questão num artigo intitulado "Naturalistische und
1. Sobre maiores detalbes veja Cassirer, Die Philosophie der humanistische Begründung der Ku1turphi1osophie" Gõteborgs Kungl.
Aulklarung (Tubínga, 1932), capo V, pp. 263-812. Vetenskaps-och Vitterhets-SamhaJ.lets Hand1ingar (Gotemburgo, 1939).
304 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 305

gação da causalidade histórica seria precisamente a (ciência do espírito). Taine negi1 enfaticamente este
maneira errada de combater esse determinismo. Pois ponto de vista. A história nunca será uma ciência en-
a causalidade é uma categoria geral, que se estende quanto pretender seguir seu próprio caminho. Existe
a todo o campo do conhecimento humano. Não se res- apenas um modo e um caminho para o pensamento
tringe a um reino particular, ao mundo dos fenôme- científico. Mas este ponto de vista é Imediatamente
nos materiais. A liberdade e a causalidade não devem corrigido quando Taine inicia a própria investigação
ser encaradas como forças metafísicas diferentes ou e descrição dos fenômenos históricos. "Qual é a vossa
opostas; são simplesmente modos diversos de julga- primeira observação" , pergunta ele,
mento. O próprio Kant, o mais decidido paladino da ao vírar as grandes folhas duras de um fólio, as páginas ama-
reladas de um manuscrito - um poema, um código de leis, uma
liberdade e do idealismo ético, nunca negou que todo declaração de fé? Isto, dizeís, não se criou sozinho. É apenas
nosso conhecimento empírico, o conhecimento dos ho- um molde, como a concha de um fóssil, uma impressão, c?mo
uma dessas formas gravadas em relevo na pedra por um animal
mens como o das coisas físicas, tem de reconhecer o que viveu e morreu. Debaixo da concha havia um animal e
princípio da causalidade. Pode-se admitir, disse Kant, atrás do documento havía um homem. Por que estudais a con-
cha, senão para figurar o animal? Assim estudais o documento
no único intuito de conhecer o homem. A concha e o animal
que, se fosse possível ter uma vísão tão profunda do caráter são destroços sem vida, valiosos apenas como chave da existên-
mental de um homem, revelado por suas ações tanto internas cia inteira e víva. Precisamos voltar a esta existência, tentar
como externas, como é possível conhecer-lhes todos os motivos, recriá-Ia. É um erro estudar o documento como se estivesse
até os menores e, igualmente, todas as ocasiões externas que isolado. Isto seria tratar as coisas como um pedante, incidir
podem influenciá-Ias, seria possível calcular o comportamento no erro do bibliomaníaco. Por detrás de tudo, não temos mito-
futuro de um homem com uma certeza tão grande quanto aquela logia nem línguas, mas somente homens, que dispõem as pala-
com que calculamos um eclipse lunar ou solar; e, nãoobstante, vras e as imagens... Nada existe senão através de algum ho-
podemos sustentar que o homem é livre. 1 mem indivídual; é com este indivíduo que devemos familiarizar-
-nos. Quando tivermos estabelecido a paternidade dos dogmas,
Não nos interessa agora este aspecto do problema, ou a classificação dos poemas, ou o progresso das constituições,
ou a modificação dos idiomas, teremos apenas limpado o terreno:
o conceito metafísico ou ético da liberdade. Interessa- a história genuína só principia a existir depois que o historiador
-nos apenas a repercussão deste conceito sobre o mé- começa a desvendar, depois de um período de tempo, o homem
vivo, que labuta, apaixonado, entríncheírado em seus costumes,
todo histórico. Ao estudar as obras principais de Tai- com sua voz e seus traços, seus gestos e suas roupas, tão distinto
e tão completo quanto o homem de quem acabamos de nos
ne surpreendemo-nos ao verificar que, praticamente despedir na rua. Em seguida, procuraremos, tanto quanto pos-
falando, essa repercussão foi muito pequena. Dir-se-ia, sível, anular esse grande intervalo de tempo, que nos impede de
ver o homem com nossos olhos, com os olhos da nossa cabeça ...
à primeira vista, não haver maior nem mais radical Uma língua, uma legislação, um catecismo nunca são mais do
diferença que a que existe entre as respectivas con- que coisas abstratas: a coisa completa é o homem que age, o
homem corpóreo e visível, que come, caminha, luta, trabalha ...
cepções de Taine e Dilthey sobre o mundo histórico. Façamos do passado o presente: a fim de julgar uma coisa,
Os dois pensadores abordam o problema de dois ân- precisamos tê-Ia diante de nós; não há experiência relativa ao
que está ausente. Esta reconstrução, sem dúvida, é sempre in-
gulos inteiramente diversos. Dilthey dá ênfase à au- completa; só pode produzir julgamentos incompletos; mas a
tonomia da história, à sua irredutibilidade a uma ciên- isto devemos resignar-nos. É melhor possuir um conhecimento
imperfeito que um fútil ou falso; e não há outro meio de nos
cia natural, ao seu caráter de Geisteswissenschaft familiarizarmos aproximadamente com os acontecimentos de ou-
tros tempos do que ver aproximadamente os homens de outros
tempos.:
l. Kant, Critica da Razão Prática, traduzida por T. K. Abbott
(6.' edição, 1927),p. 193. Taine, op cit" pp. 1 e seguintes.
306 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 307

Tudo isto está perfeitamente de acordo com o Isto nos leva a outro problema muito controver-
ponto de vista da história e do método que tentamos tido. É claro que a história não pode descrever todos
expor e defender até agora. Mas, a ser correto este os fatos do passado, e apenas anota os fatos "memo-
ponto de vista, é impossível "reduzir" o pensamento ráveis", os que são "dignos" de recordação; mas onde
histórico ao método do pensamento científico. Ain- existe a diferença entre estes e todos os outros caídos
da que nos fosse dado conhecer todas as leis da natu- no esquecimento? Rickert procurou provar que, no
reza, ainda que pudéssemos aplicar ao homem todas as intuito de distinguir entre os fatos históricos e não
nossas regras estatísticas, econômicas e sociológicas, históricos, o historiador precisa estar de posse de certo
isso não nos ajudaria a "ver" o homem nesse aspecto sistema de valores formais e utilízá-lo como padrão
especial e em sua forma individual. Não nos move- para selecioná-los, Mas esta teoria está sujeita a gra-
mos num universo físico, mas simbólico. E para com- ves objeções. 1 Pareceria muito mais natural e plausí-
preender e interpretar símbolos precisamos desenvol- vel dizer que o verdadeiro critério não consiste no
ver outros métodos além dos da pesquisa de causas. A valor dos fatos, mas em suas conseqüências práticas.
categoria do sentido não deve ser reduzida à categoria Um fato se torna historicamente importante quando
do ser. 1 Se procurássemos uma rubrica geral onde pu- repleto de conseqüências. Muitos historiadores emi-
déssemos incluir o conhecimento histórico deveríamos nentes sustentaram esta teoria. "Se perguntarmos a
descrevê-lo, não como um ramo da física, mas como nós mesmos", diz Eduard Meyer,
um ramo da semântica. As regras da semântica e dentre os acontecimentos que conhecemos, quais são os hístõrí-
não as leis da natureza, são os princípios gerais 'do cos, temos de responder: histórico é tudo que seja efetivo ou
que assim se tenha tomado. O que é efetivo experimentamos
pensamento histórico. A história está incluída no logo no presente, percebendo imediatamente o efeito, mas tam-
campo da hermenêutica, não no da ciência natural. bém podemos experimentá-Io em relação ao passado. Em am-
bos os casos podemos ver um conjunto de estados de ser, isto
Isto é o que Taine admite na prática, embora o negue é, de efeitos. A pergunta histórica é: por que foram produzidos
em teoria. Sua teoria reconhece apenas duas tarefas estes efeitos? O que puder ser reconhecido como causa de um
efeito, é um acontecimento histórico. 2
do historiador: coligir os "fatos" e investigar suas
causas. Mas o que escapa completamente a Taine é Mas nem mesmo este caráter distintivo é suficien-
que estes próprios fatos não são dados imediatamente te. Se estudarmos uma obra histórica, em particular
ao historiador, nem são observáveis como os fatos fí- . uma biografia, poderemos encontrar em quase todas
sicos ou químicos; precisam ser reconstituídos. E as páginas alusões a coisas e eventos que, de um pon-
'para essa reconstituição, o historiador necessita pos- to de vista meramente pragmático, significam pou-
suir uma técnica especial e complicadíssima, e apren- quíssimo. Uma carta de Goethe, ou uma observação
der a ler seus documentos e compreender os monu- feita no correr de uma de suas conversações, não dei-
mentos, a fim de ter acesso a um único e simples fato. xou vestígios na história da literatura. Não obstante,
Na história, a interpretação dos símbolos precede a
1. Sobre uma crítica desta teoria veja Ernest Troeltsch, Der His-
coleta dos fatos e, sem ela não há maneira de se chegar torismus unâ seine Probleme, em "Gesammelte Schriften", Vol. lU, e
à verdade histórica. Cassirer, Zur logik der Kulturunssensctuüten (Gotemburgo; 1942), pp.
41 e seguintes.
2. Eduard Meyer, Zur Theorie und Methodik der Geschichte
1. Veja págs. 179-181. (Halle a. S., 1902),pp. 36 e seguintes.
308
Ernst Cassirer Antropologia Filosófica. 309

podemos julgá-Ia notável e memorável. Sem qual-


Na segunda metade do século XIX muitos his-
quer efeito prático, esta carta ou aquela manifestação
ainda podem ser incluídas entre os documentos com toriadores acalentaram esperanças extravagantes em
cujo auxílio tentamos construir nosso retrato históri- relação à introdução de métodos estatísticos. Profe-
co de Goethe. Nada disto é importante em suas con- tizavam que, graças ao uso correto desta nova e po-
seqüências, mas pode ser altamente característico. To- derosa arma, surgiria uma nova era de pensamento
dos os fatos históricos são fatos característicos, pois na histórico. Se fosse possível descrever fenômenos his-
história - tanto das nações como dos indivíduos _ tóricos em termos estatísticos, isto produziria, de fato,
não olhamos apenas para feitos ou ações, vemos tam- um efeito revolucionário sobre o pensamento huma-
bém a expressão do caráter. Em nosso conhecimento no. Neste caso, todo nosso conhecimento do homem
histórico - que é um conhecimento semântico - não assumiria, de repente, um novo aspecto. Teríamos
aplicamos os mesmos padrões que aplicamos em nosso atingido um grande objetivo, uma matemática da na-
conhecimento prático ou físico. Uma coisa que física ou tureza humana. Os primeiros autores históricos a ex-
praticamente não tem importância, talvez tenha ain- porem este ponto de vista estavam convencidos de
da um grande significado semântico. A letra iota nos que não só o estudo dos grandes movimentos coletivos
termos gregos homo-ousios e homoi-ousios não ~gni- mas também o estudo da moral e da civilização de-
ficava coisa alguma num sentido físico; mas, como pendiam, em grande parte, de métodos estatísticos.
símbolo religioso, como expressão e interpretação do Pois existe uma estatística moral como uma estatísti-
dogma da Trindade, converteu-se no ponto de partida ca sociológica ou econômica. Com efeito, nenhum de-
de intérminas discussões, que despertaram as paixões partamento da vida humana está isento de regras nu-
mais violentas e abalaram os alicerces da vida reli- méricas rigorosas, que se estendem a todos os campos
giosa, social e política. Taine gostava de basear suas da ação humana.
descrições históricas no que ele denominava "de tout Esta tese foi vigorosamente defendida por BuckIe
petits faits significatifs". Tais fatos não eram signifi- na introdução geral da sua História da Civilização na
cativos no tocante aos seus efeitos, mas eram "ex- Inglaterra (1857). A estatística, declarou ele, é a me-_
pressivos"; eram símbolos com os quais o historiador lhor e a mais concludente refutação do ídolo do "livr~
poderia ler e interpretar os caracteres individuais ou -arbítrio". Temos agora as mais extensas informações,
os caracteres de toda uma época. Conta-nos Macau- não só no tocante aos interesses materiais dos homens,
lay que, ao escrever sua grande obra histórica, for- mas também no que diz respeito às suas peculiarida-
mou sua concepção da índole dos partidos políticos e des morais. Estamos agora familiarizados com o ín-
religiosos, não numa única obra, porém em milhares dice de mortalidade e de casamentos e também com
de ensaios, sermões e sátiras, já esquecidos. Nenhu- o índice de criminalidade dos povos mais civilizados.
ma destas coisas tinha grande peso histórico, exer- Estes fatos, e outros semelhantes, foram coligidos, me-
cendo, talvez, mínima influência sobre o curso geral todizados e estão agora prontos para serem usados.
dos acontecimentos. São, no entanto, valiosas e até A circunstância de ter havido um retardamento na
indispensáveis ao historiador, porque o ajudam a criação da ciência histórica, e que a história nunca
compreender personagens e acontecimentos. houvesse sido capaz de competir com a física ou a

I
Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 311
310

química, foi devida ao fato de se negligenciarem os dos só mais tarde apareceu. 1 Refere-se, às vezes, às leis
métodos estatísticos. Não tínhamos compreendido que estatísticas de maneira um tanto esquisita. Parece con-
também neste campo cada acontecimento está ligado siderá-Ias não como fórmulas que descrevem certos
ao seu antecedente por uma conexão inevitável, que fenômenos mas como suas forças produtoras. Isto,
cada antecedente está ligado a um fato precedente, e naturalmente, não é ciência, é mitologia. Para ele, as
que assim o mundo inteiro - tanto moral como físi- leis estatísticas, em certo sentid -" causas "ueq
1 o, sao

co - forma uma cadeia necessária em que, na ver- nos impõem certas ações. O suicídio, afirma, parece
dade, cada homem pode desempenhar seu papel. Mas ser um ato inteiramente livre. Mas se estudarmos a
não pode, de maneira alguma, determinar qual será estatística moral chegaremos a conclusão muito di-
esse papel. "Rejeitando, pois, o dogma metafísico do versa. Descobriremos que
livre-arbítrio, ... somos levados à conclusão de que,
o suicídio é apenas o produto da condição ge:al da sociedade
por serem determinadas unicamente por seus antece- e que o criminoso individual ~penas .lev~ a efeito o que é uma
dentes, as ações dos homens devem ter um caráter de conseqüência necessária de cU'cunstanClas precedentes.. N~
dado estado da sociedade, certo número de pessoas pre~lsa por
uniformidade, isto é, em circunstâncias precisamente termo à pr6pria vida.... E a força da lei maior é tao írresístí-
idênticas, devem sempre produzir, precisamente, os vel que nem o amor à vida. nem o medo do outro mundo podem
f~r algo para sustar-lhe os efeitos. 2
mesmos resultados. "1
",."
Não se pode negar que a estatística, sem dúvida, Será ocioso dizer que este e preCISO contéem
representa um grande e valioso auxiliar do estudo uma grande dose de falácias metafísicas. O historia-
dos fenômenos sociológicos ou econômicos. Até no dor contudo não se ocupa deste aspecto do proble-
campo da história será preciso admitir a uniformidade ma: Quando' se refere a um caso individual - di~a-
e a regularidade de certas ações humanas. A história mos o suicídio de Catão - é evidente que, para a m-
não nega que estas ações, sendo como são o resultado
de causas amplas e gerais, que atuam sobre o agrega-
do da sociedade, produzem certas conseqüências sem
relação com a vontade dos indivíduos de que se com-
põe a sociedade. Mas quando tratamos de descrever
historicamente um ato individual, temos de enfrentar
I
t*
1
terpretação deste fato, não pode espe~ar. ajuda _ do~
métodos estatísticos. Sua intenção principal nao e
fixar um acontecimento físico no espaço e no tempo,
mas desvendar-lhe o "sentido". O sentido da morte
de Catão, expresso no verso de Lucano, "Victrix cau-
sa diis placuit sed victa Catoni". 3 O suicídio de Catão
um problema totalmente diferente. Por sua própria não foi apenas um ato físico, foi um ato simbólico, a ex-
natureza, os métodos estatísticos se restringem aos t pressão de um grande caráter, o último protesto d~ ro-
fenômenos coletivos. As regras estatísticas não se des-
tinam a determinar um caso isolado; tratam somente
de casos "coletivos". Buckle está muito longe de
I mano republicano contra uma nova ordem de COIsas.
Tudo isso é completamente inacessível àquelas "gran-

uma visão clara do caráter e da intenção dos métodos Sobre a moderna literatura em torno da estatística, veja Key-
1
estatísticos. Uma análise lógica adequada destes méto- nes, A
Treatise on Probability (Londres, 1921 e 1962), e von Mises,
Wahrscheinlichkeit, Statistik und Wahrheit (Viena, 1928).
2. Buck1e, op. cit., p. 20. .
1. Buckle, História da Civilização na Inglaterra (Nova Iorque, 3. "A causa vencedora agradou aos deuses, mas a vencída agra-
1858), pp. 14 e seguinte. dou a Catão."
Antropologia Filosófica 313
312 Ernst Cassirer

des causas gerais" que podemos julgar responsáveis mudanças estão ligadas a um plano fixo e rígido.
pelos grandes movimentos coletivos da história. Pode- Portanto a história deve deixar de ser um estudo de
remos tentar reduzir as ações humanas a regras estatís- indivíduos; precisa libertar-se de toda a sorte de cul-
ticas, mas com elas jamais atingiremos o fim reconhe- tos de heróis. Seu principal problema se refere a fa-
cido até pelos historiadores da escola naturalista. Neste tores psicossociais, em contraposição e confronto com
caso, não "veremos" os homens de outros tempos, nem fatores psicoindividuais. Nem as diferenças indivi-
a vida real, o drama da história; mas apenas os movi- duais ou nacionais podem influenciar ou alterar o
mentos e gesticulações das marionetes em cena e os curso regular de nossa vida psicossocial. A história
cordéis que as movimentam. da civilização nos mostra, sempre e em toda a parte,
A mesma objeção é válida contra todas as ten- a mesma seqüência e o mesmo ritmo uniforme. Desde
tativas de reduzir o conhecimento histórico ao estu- uma primeira etapa, descrita por Lamprecht como
do de tipos psicológicos. À primeira vista pareceria animismo, passamos a uma idade de simbolismo, ti-
evidente que, se podemos falar em leis gerais da his- pismo, convencionalismo, individualismo e subjetivis-
tória, estas não podem ser as leis da natureza, mas mo. Este plano é imutável e inexorável. Se aceitar-
somente as da psicologia. A regularidade que pro- mos esse princípio, a história deixará de ser uma ciên-
curamos e desejamos descrever na história não per- cia meramente indutiva. Estaremos em condições de
tence à nossa experiência exterior, mas interior. É fazer afirmações dedutivas gerais. Lamprecht extraiu
uma regularidade de estados psíquicos, de pensamen- seu plano dos fatos da história alemã, mas não tencio-
tos e sentimentos. Se nos fosse dado descobrir uma na~a, de man.eira alguma, restringí-Io a sua área pró-
regra geral inviolável, que governasse estes pensa- pria. Entendia que seu plano era um princípio uni-
mentos e sentimentos e lhes prescrevesse uma ordem versalmente aplicável, a priori, de toda a vida histó-
definida, neste caso poderíamos pensar haver encon- rica. "Obtemos do material total", escreveu, "não só
trado a chave do mundo histórico. a idéia de unidade, histórica e empírica, mas também
Entre os historiadores modernos foi Karl Lam- urna impressão psicológica geral que, de maneira ab-
precht quem se convenceu ter descoberto esta lei. soluta, proclama e exige essa unidade; todos os inci-
Nos doze volumes da sua História Alemã tentou pro- dentes psíquicos simultâneos, tanto psicoindividuais,
var sua tese geral por meio de um exemplo concreto. quanto psicossociais, tendem a aproximar-se da simi-
De acordo com Lamprecht, existe uma ordem inva- laridade comum'L! O mecanismo psíquico universal
riável, em que se sucedem os estados do espírito hu- do curso dos vários períodos repete-se em toda a
mano. Esta ordem determina, de uma vez por todas, parte, tanto na Rússia moderna quanto na história da
o processo da cultura humana. Lamprecht rejeitou Grécia ou de Roma, na Asia como na Europa. Se aten-
os pontos de vista do materialismo econômico. Todo tarmos com cuidado para todos os monumentos do
ato econômico, como todo ato mental , declarou , de- norte, do centro e do sul da Europa, e para os do
pende de condições psicológicas. Mas não precisamos
de uma psicologia individual, mas social, uma psicolo- 1. Que é História? traduzido para o inglês por E. A. Andrews
gia que explique as mudanças da psique social. Tais (Nova Iorque, Macmillan, 1905),p. 163.
314 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 315

Mediterrâneo oriental e da Asia Menor, veremos que vida cultural. Muitos dos seus argumentos mais im-
todas estas civilizações progrediram ao longo de li- portantes se estribam numa cuidadosa análise da vi-
nhas paralelas. "Quando isto estiver concluído, pode- da religiosa, das obras musicais e literárias. Um dos
remos calcular a importância, para a história do mun- seus maiores interesses era o estudo da história das
do, de cada comunidade ou nação individual. Poder- belas-artes. Na história da Alemanha, não fala apenas
-se-á, então, escrever uma W el tgesc h·2C hte cien
. tíf
1 ica, " 1
em Kant e Beethoven, mas em Feuerbach, Klinger,
O plano geral de Lamprecht é muito diverso da Boecklin. Em seu Instituto Histórico de Lípsia reuniu
concepção de Buckle do processo histórico. Entretan- materiais assombrosamente ricos sobre todas estas
questões. Mas é claro que, para interpretá-Ios teve,
to , as duas teorias têm um ponto de contacto. Em
antes, de traduzi-l os em linguagem diferente. Para
ambas defrontamos com o mesmo termo pressago '" e
usar as palavras de Taine, teve que encontrar, por
preciso". A um período de tipismo e convencionalis-
trás da "concha fóssil", o animal, e por trás do
mo é preciso sempre que se siga um período de indi-
documento, o homem. "Quando olhais com vossos
vidualismo e subjetivismo. Nenhuma idade especial olhos para o homem visível, que procurais?" pergun-
e nenhuma cultura especial, poderão fugir algum dia a I
r tou Taine.
esse curso geral das coisas, que parece ser uma espé- ~
I

cie de fatalismo histórico. Se essa concepção fosse ver- o homem invisível. As palavras que vos entram pelos ouvidos,
os gestos, os movimentos da sua cabeça, as roupas que enverga,
dadeira, o grande drama da história se converteria os atos e feitos visíveis de todo gênero são meras expressões.
num espetáculo cacete, que poderíamos dividir de Um homem interior está oculto atrás do homem exterior; o
segundo apenas revela o primeiro. .. Todas estas extertorídades
uma vez por todas, em atos isolados cuja seqüência não passam de avenidas que convergem para um centro; ingres-
seria invariável. Mas a realidade da história não é sais nelas simplesmente para chegardes a esse centro; e este
centro é o homem genuíno. .. Este submundo é um novo tema,
uma seqüência uniforme de acontecimentos, mas a próprio do historiador. 1
vida interior do homem. Esta vida pode ser descrita Precisamente, o estudo de historiadores "natu-
e interpretada depois de ter sido vivida; não pode ser ralistas", como Taine e Lamprecht, confirma nosso
antecipada numa fórmula geral abstrata e não pode ponto de vista e nos convence de que o mundo da
ser reduzida a um rígido plano de três ou cinco atos. história é um universo simbólico, e não um universo
Não tenciono discutir agora o contexto da tese de físico.
Lamprecht, mas apenas levantar uma questão formal, .. Após a publicação dos primeiros volumes da
metodológica. Como conseguiu Lamprecht as provas História Alemã de Lamprecht, a crise crescente que
empíricas em que pôde basear sua teoria construtiva? se registrava no pensamento histórico se tornou
Como todos os historiadores que o precederam, preci- cada vez mais manifesta e foi sentida em toda sua
sou começar com um estudo de documentos e monu- intensidade. Travou-se longa e exasperada contro-
mentos. Não lhe interessavam apenas os acontecimen- vérsia em torno do caráter do método histórico.
tos políticos, as organizações sociais, os fenômenos Lamprecht declarara que todos os pontos de vista an-
econômicos. Desejava abarcar toda a amplitude da teriores eram obsoletos. Considerou seu próprio mé-

1. Idem, p. 219. 1. Taine, op. cit., I, 4.


316 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 317

todo como o único "científico" e o único "moderno". 1 físicas precisam ser estudadas por métodos físicos.
Seus adversários, por outro lado, estavam convenci- Tanto o espaço histórico quanto o tempo histórico es-
dos de que o que ele apresentara não passava de uma tão encerrados num todo maior. O tempo histórico é
caricatura do pensamento histórico. 2 Ambos os lados apenas um fragmento do tempo cósmico universal.
se expressaram em linguagem peremptória e intran- Se quisermos medi-Io, se estivermos interessados na
sigente. A reconciliação parecia impossível. O teor cronologia dos acontecimentos, precisamos dispor de
erudito dos debates foi reiteradas vezes rompido por instrumentos físicos. Na obra concreta do historiador
preconceitos pessoais ou políticos. Mas se encararmos não encontramos oposição entre estes dois pontos de
o problema com espírito inteiramente despreconcebi- vista, por estarem fundidos perfeitamente num só.
do e de um ponto de vista exclusivamente lógico, Somente com nossa análise lógica podemos separar
encontraremos, a despeito de todas as diferenças de um fato do outro. Na investigação de um complicado
opinião, certa unidade fundamental. Como já disse- problema cronológico, o historiador pode proceder de
mos, nem os historiadores naturalistas negaram, e de diferentes maneiras, empregando critérios materiais
fato não poderiam negar, os fatos históricos não per- ou formais; ou experimentando métodos estatísticos
tencem ao tipo dos fatos físicos. Sabiam que seus do- ou métodos ideais de interpretação. A intrincadíssima
cumentos e monumentos não eram simples coisas fí- questão da cronologia dos diálogos platônicos pode-
sicas e tinham de ser lidos como símbolos. Por outro ria, em grande parte, ser resolvida pelas observações
lado, é evidente que todo símbolo - um edifício, uma estatísticas relativas ao estilo de Platão. Através de
obra de arte, um rito religioso - tem seu lado mate- vários critérios estilísticos independentes, seria possí-
rial. O mundo humano não é uma entidade separada vel verificar que um certo grupo de diálogos - o
nem uma realidade que só depende de si mesma. O Sofista, o EstadiSta, Filebo e Timeu - pertence ao
homem vive num meio físico, que exerce constante período da velhice de Platão. 1 E quando Adickes pre-
influência sobre ele e imprime sua marca em todas as parou sua edição dos manuscritos de Kant, não en-
formas de sua vida. Para podermos compreender suas controu melhor critério para colocá-los em ordem cro-
criações - seu "universo simbólico" - precisamos nológica definida que a análise química da tinta com
ter sempre em mente esta influência. Em sua obra- que as várias notas haviam sido redigidas. Se, em
-prima, Montesquieu tentou descrever o "espírito das lugar de empregar estes critérios físicos, começarmos
leis". Mas descobriu que este espírito, em toda a par- com uma análise dos pensamentos de Platão ou de
te, está ligado às suas condições físicas. Considerou Kant e sua conexão lógica, precisaremos de conceitos
que o solo, o clima, o caráter antropológico das várias que, obviamente, pertencem a outro domínio. Se, por
nações figuravam entre as condições fundamentais de exemplo, encontro um desenho ou esboço posso re-
suas leis e instituições. É óbvio que estas condições conhecê-Io imediatamente como obra de Rembrandt;
e até dizer a que período da sua vida pertence. Os
1. Cf. Lamprecht, Alte und neue Riciüunçeti in der Geschichts-
unssenschatt (896). .
2. Sobre maiores detalhes veja Bernheim, Lehrbuch. der historis- 1. Sobre maiores detalhes veja W. Lutoslawski, The Origin and
chen Methode (5.a edição, Munique, Duncker, 1908), pp. 710 e se- Growth ot Plato's Logic, with an Account ot Plato's Style and ot the
guintes. Chronology ot His Writings (Londres e Nova Iorque, 1907).
318 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 319

critérios estilísticos, com os quais decido a questão, grande parte, poesia; uma s~rie das mais b.elas e pito-
são de ordem totalmente diferente dos critérios ma- rescas composições". 1 Idêntico ponto de VIsta susten-
teriais. 1 Este dualismo de métodos não prejudica o tou Mommsen, que não era apenas um gênio ci~ntífico,
trabalho do historiador, nem destrói a unidade do mas , ao mesmo tempo, um dos maiores .orgamzadores
..
pensamento histórico. Ambos cooperam para o mes- do trabalho científico. Criou o Corpus mscrtptwnum;
mo fim, sem se perturbarem e empecerem recipro- organizou o estudo da numismática e publicou sua
camente. História da Cunhagem. Isto seria escassamente obra
A questão de se saber qual destes métodos tem de um artista. Mas quando foi nomeado reitor da
primazia lógica sobre o outro, e qual é o método ver- Universidade de Berlim e pronunciou seu discurso
dadeiramente "científico", dificilmente admitirá uma inaugural, definiu seu ideal do método his~órico di-
resposta definida. Se aceitarmos a definição de Kant, zendo que talvez o historiador pertença mais aos ar-
tistas que aos eruditos. Embora fosse ele mesmo um
segundo a qual, no sentido próprio do termo, só po-
dos mais eminentes professores de história, não teve
demos denominar "ciência" um conjunto de conheci-
escrúpulos ao afirmar que a história não é coisa que
mentos cuja certeza é apodítica, 2 é evidente que não
possa ser imediatamente adquirida pelo ensino e
poderemos falar em ciência da história. Mas o nome
aprendizado.
que damos à história pouco importa, contanto que
tenhamos uma visão clara de seu caráter geral. Sem O pedal que urde um milhar de fios e a visão da indivi~ualidade
dos homens e das nações são dons do gênio, que desafiam todo
ser uma ciência exata, manterá sempre seu lugar e ensino e todo aprendizado. Se um professor de história se
sua natureza inerente no organismo do conhecimento julgar capaz de educar historiadores no mesmo sentido em que
podem ser educadC!s h~anistas e ?1a~e?1áticos,.est9:rá sen<!o
humano. O que procuramos na história não é o co- vitima de uma ilusao pengosa e prejudícíal, O historiador nao
nhecimento de uma coisa externa, mas o conhecimen- se faz, nasce; não pode ser educado, educa-se. 2
to de nós mesmos. Em sua obra sobre Constantino, o Mas ainda que não possamos negar que toda
Grande, ou sobre a civilização da Renascença, um grande obra histórica contém e supõe um elemento
grande historiador como Jakob Burckhardt não pre- artístico, nem por isso se torna uma obra de ficção.
tendeu ter dado uma descrição científica destas épo- Em busca da verdade, o historiador está sujeito
cas. Nem hesitou em propor o paradoxo de que a às mesmas regras severas que sujeitam o cientis-
história é a menos científica de todas as ciências. 3 ta. Precisa utilizar todos os métodos da investigação
"O que construo historicamente", escreveu numa car- empírica, reunir todas as provas disponíveis e cotejar
ta, "não é o resultado da crítica ou da especulação, e criticar todas as fontes. Não lhe é permitido esque-
mas da imaginação que procura preencher as lacunas cer nem passar por alto nenhum fato importante. En-
das observações. Para mim, a história ainda é, em tretanto, o ato derradeiro e decisivo é sempre um ato
da imaginação produtiva. Numa conversação com
L Discuti o caráter lógico destes "conceitos estilfsticos" em Zur
Loçik: der Kulturwissenschaften (Gotemburgo, 1942), pp. 63 e seguintes.
2. Kant, Metaphysische Antançsçriinae der Naturunssenschait, Vor- 1. Baseler Jahrbilcher (1910), pp. 109 e seguinte; citado por Karl
rede, "Werke" (ed. Cassirer). IV,370. JolH Jakob Burckharât als Geschichtsphilosoph (Basiléia, 1918).
3. Jakob Burckhardt. Weltgeschichtliche Betrachtungen, p. 8l. Tra- 2. Th. Mommsen, "Rektoratsrede" (1874), em Reden und Au!slitl.e
dução inglesa, Force and Freedom, p. 167. (Berlim, 1912).
!'

320 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 321

'I
r

Eckermann, Goethe se queixava de que havia poucos " I


co", já se disse, "exatamente como os vários persona-
homens que possuíam "imaginação para a verdade da gens de uma peça de Eurípides empregam todos um
realidade" ("eine Phantasie für die Wahrheit des estilo semelhante". 1 Entretanto, não transmitem
Realen") . "A maioria prefere países e circunstâncias
apenas idiossincrasias pessoais; são representativos da
estranhas", disse ele, "a cujo respeito nada sabe e
época como um todo. Neste sentido são objetivos, não
por cujo intermédio sua imaginação possa ser culti-
subjetivos; possuem uma verdade ideal, quando não
vada, por estranho que pareça. Em seguida, vêm os
uma verdade empírica. Nos tempos modernos nós
que se aferram inteiramente à realidade e , como ca-
nos tornamos muito mais suscetíveis às exigências da
recem de espírito poético, são demasiado severos em
suas exigênclas"." Os grandes historiadores evitam verdade empírica, mas corremos freqüentem ente o
ambos os extremos. São empiristas, cuidadosos ob- risco de perder de vista a verdade ideal das coisas e
~! das personalidades. O justo equilíbrio entre estes dois
servadores e investigadores de fatos especiais, mas não I

lhes falta o "espírito poético". É do sentido agudo ( momentos depende do tacto individual do historiador' ,
não pode ser reduzido a uma regra geral. Na consciên-
da realidade empírica das coisas, combinado com o I
livre dom da imaginação, que depende a verdadeira j cia histórica moderna modificou-se a proporção, mas
os elementos permaneceram os mesmos. No que con-

I
síntese ou sinopse histórica.
? equilíbri? destas forças opostas não pode ser cerne à distribuição e ao vigor das duas forças, todo
historiador tem sua equação pessoal.
descrito numa formula geral. A proporção parece va-
riar de uma época a outra e de um a outro escritor f Todavia, a idealidade da história não é idêntica
Na história antiga encontramos uma concepção da ta~ à da arte. Esta nos dá uma descrição ideal da vida
refa do historiador diferente da concepção da história humana por uma espécie de processo alquímico; trans-
moderna. Os discursos que Tucídides inseriu em sua muda nossa vida empírica na dinâmica das formas
obra histórica não têm base empírica, nem foram pro- puras. 2 A história não procede deste modo. Não vai
feridos como os apresentados. Entretanto, não cons- além da realidade empírica das coisas e dos aconte-
tituem ficção pura nem mero adorno retórico. São cimentos, mas modela esta realidade com nova forma,
história, não porque reproduzem acontecimentos reais dando-lhe a idealidade da recordação. À luz da his-
~as, ~orq~e, na obra de Tucídides, exercem funçã~ tória, a vida continua a ser um grande drama realis-
histórica Importante. Constituem, de maneira fecun- ta, com todas suas tensões e conflitos, sua grandeza e
da e concentrada, uma caracterização de homens e miséria, suas esperanças e ilusões, seu espetáculo de
eventos. A grande oração fúnebre de Péricles é, talvez energias e paixões. Este drama, contudo, não é ape-
a melhor e mais impressionante descrição da vida e nas sentido; é intuído. Presenciando este espetáculo
da cultura atenienses no quinto século. O estilo de no espelho da história, enquanto ainda vivemos em
todos estes discursos traz a marca pessoal e autêntica nosso mundo empírico de emoções e paixões, toma-
de Tucídides. "Trazem todos seu estilo característi- mos consciência de um sentido interior de clareza e

1. Goethe a ECkennann, 25 de dezembro de 1825em Conversações


1. Veja J. R. Bury, The Ancient Greek Historians, Conferências
de Goethe com Eckermann e Sorel, traduzidas para o inglês por John
Oxenford (Londres, 1874), p. 162. de Harvard (Nova Iorque, Macrnillan, 1909), Conferência IV.
2. Veja pp. 235-7.
322 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 323

tranqüilidade - da lucidez e serenidade da contem- sugerido por estes dados introspectivos, poderíamos
plação pura. "O espírito", escreveu Jakob Burckhardt apelar para métodos mais objetivos; realizar experiên-
em suas Reflexões Sobre a História do Mundo, "pre- cias psicológicas ou coligir dados estatísticos. Mas,
cisa transmutar numa posse a recordação de sua pas- apesar disto, nossa imagem do homem permaneceria
sagem através das idades do mundo. O que foi outro- inerte e sem cor, apenas encontraríamos o homem
ra alegria e tristeza precisa agora converter-se em co- "médio" - o homem de nosso convívio cotidiano,
nhecimento ... Nosso estudo, entretanto, não é tão-so- prático e social. Nas grandes obras da história e da
arte começamos a ver, atrás da máscara do homem
mente um direito e um dever; é também uma suprema
convencional, os traços do homem real, individual.
necessidade. É a nossa liberdade na própria consciên-
Para encontrá-lo precisamos recorrer aos grandes his-
cia da servidão universal e na corrente das necessi-
toriadores ou aos grandes poetas - aos autores
dades"." Escrita e lida pela maneira correta, a his-
trágicos, como Eurípides ou Shakespeare, aos escrito-
tória nos eleva a esta atmosfera de liberdade no meio
res cômicos como Cervantes, Moliêre ou Laurence
de todas as necessidades de nossa vida física, política,
Sterne, ou aos nossos romancistas modernos, como
social e econômica.
Dickens ou Thackeray, Balzac ou Flaubert, Gogol ou
Não era meu intuito, neste capítulo, tratar dos
Dostoievski. A poesia não é uma simples imitação
problemas de uma filosofia da história. No sentido
da natureza; a história não é uma narrativa de fatos
tradicional do termo, a filosofia da história é uma teo-
e acontecimentos mortos. A história, como a poesia,
ria especulativa e construtiva do próprio processo his-
é um órgão do nosso auto conhecimento, um instru-
tórico. Uma análise da cultura humana não tem ne-
mento indispensável à construção de nosso universo
c:ssidade de entrar nesta questão especulativa; pro-
humano.
poe-se uma tarefa mais simples e mais modesta. Pro-
cura determinar o lugar do conhecimento histórico
no organismo da civilização humana. Não pode haver
a. menor dúvida de que, sem a história, teríamos per-
dído um elo essencial da evolução deste organismo.
A arte e a história são os mais poderosos instrumen-
tos de que dispomos para investigar a natureza hu-
mana. Que saberíamos nós sobre o homem se nos
faltassem estas duas fontes de informações? Ficaría-
mos n~ dependência dos dados de nossa vida pessoal,
que so nos podem proporcionar uma visão subjetiva
e que, na melhor das hipóteses, nada mais são que
pedaços esparsos do espelho quebrado da humanida-
de. Na realidade, se desejássemos rematar o quadro

1. Burckhardt, op. cit., pp. 8 e seguinte. Tradução inglesa, pp.


86 e seguinte.
XI
A CIÊNCIA 1

A CIÊNCIA é o último passo no desenvolvimento es-


piritual do homem e pode ser considerada como a
mais alta e mais característica conquista da cultura
humana. Produto verdadeiramente tardio e requin-
tado, só poderia desenvolver-se em condições espe-
ciais. A própria concepção de ciência, em seu sen-
tido específico, inexistia antes do tempo dos grandes
pensadores gregos - antes dos pitagoristas e dos ato-
mistas, de Platão e de Aristóteles. E esta primeira
concepção pareceu esquecida e eclipsada nos séculos
seguintes. Foi preciso redescobri-la e restabelecê-Ia
na época da Renascença; depois disto, o triunfo da
ciência pareceu ser completo e inconteste. Não há ou-
tro poder, em' nosso mundo moderno, que se possa
comparar com o do pensamento científico. Conside-
ra-se como o pináculo e a consumação de todas as
nossas atividades humanas, o último capítulo da his-
tória da humanidade e o tema mais importante de
uma filosofia do homem.
1. Este capítulo, naturalmente, não pretende apresentar um esbo-
ço de uma filosofia da ciência ou de uma fenomenologia do conheci-
mento. Discuti o último problema no. terceiro volume de Philosophie
der symbolischen Formen (1929); o primeiro em Substance and Eunc-
tion e Einstein's Theory ot Relativity (1910); traduzido para o inglês
por W. C. e M. C. Swabey, Chicago e Londres, 1923) e em Determinis
mus und Indeterminismus in der modernen Physik (Gõteborgs Hõgsko-
Ias Arsskrift, 1936: 1). Aqui tentei apenas indicar sucintamente a fun-
ção geral da ciência e determinar-lhe o lugar no sistema das formas
simbólicas.
326
Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 327

Podemos discutir acerca dos resultados da ciên- Para Kant, portanto, toda a questão da objetividade
cia ou de seus primeiros princípios, mas sua função do conhecimento humano está indissoluvelmente liga-
gera~ parece incontestável. É a ciência que nos pro- da ao fato da ciência. Sua Estética Transcendental se
porciona a segurança de um mundo constante e a seu ocupa do problema da matemática pura; sua Análise
respeito podemos aplicar as palavras de Arquimedes: Transcendental tenta explicar o fato de uma ciência
ooç !t0t ~u OtW XlXt xo0!t0V Xtv'Y)ow ("Dai-me um ponto matemática da natureza.
de apoio e moverei o universo"). Num universo mu- Mas uma filosofia da cultura humana precisa ras-
tável, o pensamento científico fixa os pontos de re- trear o problema até uma fonte mais remota. O ho-
pouso, os pólos imovíveis. Na língua grega; até o mem viveu num mundo objetivo muito antes de viver
termo episteme deriva etimologicamente de uma raiz num mundo científico. Antes mesmo de ter desco-
que significa firmeza e estabilidade. O processo cien- berto o caminho da ciência, sua experiência já não era
tífico conduz a um equilíbrio estável, à estabilização uma simples massa amorfa de expressões sensoriais.
e à consolidação do mundo das nossas percepções e Era uma experiência organizada e articulada. Possuía
pensamentos. estrutura definida. Mas os conceitos que dão a este
Por outro lado, a ciência não está só na realiza- mundo sua unidade sintética não são do mesmo tipo
ção desta tarefa. Em nossa moderna epistemologia, nem estão no mesmo nível de nossos conceitos cientí-
tanto na escola empírica como na racionalista, mui- ficos. São conceitos míticos ou lingüísticos. Se os ana-
tas vezes tropeçamos com a concepção de que os pri- lisarmos, verificaremos que não são, de maneira al-
meiros dados da experiência humana se encontram guma, simples ou "primitivos". As primeiras classi-
em estado inteiramente caótico. O próprio Kant, nos ficações dos fenômenos que encontramos na lingua-
pri~eiros capítulos da Crítica da Razão Pura, parece gem ou no mito, em certo sentido, são muito mais
partir desta pressuposição, e diz que a experiência é complicadas e requintadas do que nossas classifica-
sem dúvida o primeiro produto do nosso entendimento , ções científicas. A ciência começa com uma busca da
mas não é um fato simples; é um composto de dois simplicidade. Simplex sigillum veri parece ser um de
fatores opostos, a matéria e a forma. O fator material seus lemas fundamentais. Esta simplicidade lógica,
é aldado em nossas percepções sensoriais', o fator for- porém, é um terminus ad quem, e não um terminus a
m e' representado pelos nossos conceitos científicos. quo, É um final, não um começo. A cultura humana
Tais conceitos, os conceitos do entendimento puro se inicia com um estado de espírito muito mais com-
dão aos fenômenos sua unidade sintética. O que d~ plexo. Quase todas as nossas ciências da natureza
nominamos unidade de um objeto não pode ser outra precisaram passar por uma etapa mítica. Na histó-
coisa senão a unidade formal da nossa consciência na ria do pensamento científico a alquimia precede a quí-
síntese do múltiplo em nossas representações. Quan- mica, a astrologia precede a astronomia. A ciência só
?o ~p:esenta~os a unidade sintética no múltiplo da poderia ir além dos primeiros passos introduzindo
mtuição, e so então, dizemos conhecer um objeto. 1 uma nova medida, um diferente padrão lógico de ver-
dade. Declara que a verdade não será atingida en-
quanto o homem se confinar no círculo estreito de sua
1. Kant, Crítica da Razão Pura (L' edição alemã), p. 105.
experiência imediata, dos fatos observáveis. Em lu-
328 Ernst Cassirer AntropoLogia Filosófica 329

gar de descrever fatos destacados e isolados, a ciência tou as primeiras classificações, precisou corrigir e su-
se esforça em nos dar uma visão compreensiva. Mas perar estas similaridades superficiais. Os termos cien-
esta visão não pode ser alcançada por uma simples tíficos não se fazem ao acaso; seguem um princípio
extensão, uma ampliação e um enriquecimento da ex- definido de classificação. A criação de uma terminolo-
periência comum. Exige um novo princípio de ordem, gia sistemática coerente não é, de maneira alguma,
uma nova forma de interpretação intelectual. A lin- simples característica acessória da ciência; é um de
guagem é a primeira tentativa do homem para arti- seus elementos inerentes e indispensáveis. Quando
cular o mundo de suas percepções sensoriais. Esta Lineu criou sua Philosophia Botanica precisou enfren-
tendência é uma das caracteristicas fundamentais da tar a objeção de que o que nela se apresentava era
linguagem humana. Alguns lingüistas julgaram até apenas um sistema artificial, não um sistema natural.
necessário presumir a existência de um instinto clas- Mas todos os sistemas de classificação são artificiais.
sificador especial no homem a fim de explicar o fato A natureza, como tal, só contém fenômenos indivi-
e a estrutura da linguagem humana. "O homem", duais e diversificados. Se incluirmos estes fenômenos
diz Otto Jespersen, sob conceitos de classe e leis gerais não estaremos des-
crevendo fatos da natureza. Todo sistema é uma obra
é um animal classificador: em certo sentido se pode dizer que
todo o processo do falar nada mais é que distribuir fenômenos,
de arte - resultado de uma atividade criadora cons-
dentre os quais não existem dois iguais em todos os aspectos, ciente. Até os sistemas biológicos chamados "natu-
em 'Classes diferentes com base nas semelhanças e dessemelhan- rais", surgidos depois e que se opunham ao sistema
ças percebidas. No processo de nomínação, encontramos a mes-
ma tendência inextirpável e utilíssima de ver a parecença e de Lineu, precisaram empregar elementos conceptuais
expressar a similaridade dos fenômenos por meio da similari- novos. Baseavam-se numa teoria geral da evolução.
dade do nome. 1
Mas a própria evolução não é um mero fato de his-
Mas o que a ciência procura nos fenômenos é tória natural; é uma hipótese científica, uma máxima
muito mais do que a similaridade; é a ordem. As reguladora para nossa observação e classificação dos
primeiras classificações que encontramos na lingua- fenômenos naturais. A teoria de Darwin abriu novos
gem humana não têm uma finalidade rigorosamente e mais amplos horizontes, apresentou um apanhado
teórica. Os nomes dos objetos executam sua tarefa mais completo e coerente dos fenômenos da vida or-
quando nos permitem comunicar nossos pensamentos gânica. Isto não era, de maneira alguma, uma refu-
e coordenar nossas atividades práticas. Têm uma fun- tação do sistema de Lineu, que foi sempre considera-
ção teleológica, que lentamente se desenvolve numa do pelo seu autor como um passo preliminar. Tinha
função mais objetiva, "representativa". 2 Toda e qual- plena consciência de que, em certo sentido, apenas
quer similaridade aparente entre fenômenos diversos criara uma nova terminologia botânica, mas estava
é suficiente para designá-los por um nome comum. convencido de que esta terminologia possuía um va-
Em algumas línguas se designa a borboleta como pás- lor tanto verbal como real. "Nomina si nescis", disse
saro ou a baleia como peixe. Quando a ciência ence- ele, "perit et cognitio rerum".
Neste sentido não parece haver solução de con-
1. Jespersen, Language, pp. 388 e seguinte. tinuidade entre a linguagem e a ciência. Nossos no-
2. Em relação a este problema veja Philosophie der symbolischen
Formen, I, 255 e seguinte.
mes lingüísticos e nossos primeiros nomes científicos
Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 331
330

podem ser considerados como o resultado e o fruto diferentes grupos de estrelas e a divisão em doze par-
do mesmo instinto classificador. O que é feito incons- tes do zodíaco foram introduzidas pelos astrônomos
cientemente na linguagem é conscientemente preten- babilônios. Nenhum destes resultados teria sido al-
dido e metodicamente executado no processo científi- cançado sem uma nova base teórica. Mas fazia-se mis-
co. Em suas primeiras etapas, a ciência ainda precisou ter uma generalização muito mais ousada para criar
aceitar os nomes das coisas no sentido em que eram a primeira filosofia do número. Os pensadores pita-
usados na linguagem comum. Empregou-os para des- góricos foram os primeiros a conceber o número co-
crever os elementos ou qualidades fundamentais das mo elemento que tudo abrange, e realmente univer-
coisas. Nos primeiros sistemas gregos de filosofia na- sal. Seu emprego já não se restringe aos limites do
tural, em Aristóteles, verificamos que os nomes co- campo especial de investigação. Estende-se a todo o
muns ainda têm grande influência sobre o pensamen- reino do ser. Quando Pitágoras fez seu primeiro grande
to científico. 1 Mas no pensamento grego este poder descobrimento, quando descobriu que a altura do som
já não é único nem predominante. No tempo de Pi- dependia do comprimento das cordas que vibravam,
tágoras, e dos primeiros pitagoristas, a filosofia grega não foi o fato em si, mas sua interpretação que se
descobrira uma nova linguagem, a dos números. Este tornou decisiva para a futura orientação do pensa-
descobrimento assinalou a hora natalícia de nossa mo-
r mento filosófico e matemático. Pitágoras não podia
derna concepção da ciência. pensar nesta descoberta como num fenômeno isola-
A existência de uma regularidade, de certa uni- do. Um dos mais profundos mistérios, o da beleza, se
formidade , nos acontecimentos naturais - no movi-
. desvendara então. Para o espírito grego a beleza sem-
mento dos planetas, no nascer do Solou da Lua, na pre tivera um significado inteiramente objetivo. A
mudança das estações - é uma das primeiras gran- beleza é a verdade; é um caráter fundamental da rea-
des experiências da humanidade. Até no pensamento lidade. Se a beleza que percebemos na harmonia dos
mítico esta experiência encontrara seu pleno reconhe- sons pode ser reduzida a uma simples relação numé-
cimento e sua expressão característica. Aqui encon- rica, é o número que nos revela a estrutura funda-
tramos com os primeiros indícios da idéia de uma mental da ordem cósmica. "O número", diz um dos
ordem geral da natureza. 2 Muito antes de Pitá goras, textos pitagóricos, "é o guia e amo do pensamento
esta ordem fora descrita não só em termos míticos humano. Sem seu poder tudo permaneceria obscuro
mas também em símbolos matemáticos. A linguagem e confuso". 1 Não viveríamos num mundo de verda-
mítica e a linguagem matemática se entrelaçavam, de de, mas num mundo de engano e de ilusão. No nú-
maneira muito curiosa, nos primeiros sistemas da as- mero, e só no número, encontramos um universo
trologia babilônica, que podemos acompanhar até um inteligível.
período de uns 3800 anos a.C. A distinção entre os Que este universo é um novo universo do discur-
so - que o mundo do número é um mundo simbólico
1. Cf. Cassírer, "A Influência da Linguagem Sobre o Desenvolvi- - eis aí uma concepção inteiramente alheia ao espí-
mento do Pensamento Científico", Journal ot Philosophy, XXXIX, N.·
12 (junho de 1942), 309-327.
1. Veja Filolau, Fragmentos 4, 11, em Diels, Die Fragmente der
2. Veja Philosophie der symbolischen Formen, lI, pp, 141 e
Yorsokratiker, I, 408, 411.
seguintes.

1
332 Ernst Cassirer .An.tropologia Filosófica 333

rito dos pitagoristas. Neste caso, como em todos os lidade independente. Seu significado é definido pela
outros, não poderia haver nenhuma distinção bem de- posição que ocupa no conjunto do sistema numérico.
finida entre o símbolo e o objeto. O símbolo não só A série dos números naturais é uma série infinita.
explicava o objeto, também, sem dúvida, tomava-lhe Mas esta infinidade não impõe limites ao nosso conhe-
o lugar. As coisas não estavam apenas ligadas aos nú- cimento teórico. Não significa nenhuma indetermina-
meros ou eram expressas por eles; as coisas eram ção, um Apeiron no sentido platônico; significa exa-
números. Já não aceitamos esta tese pitagórica da tamente o contrário. No progresso dos números não
realidade substancial do número; não consideramos esbarramos numa limitação externa, num "último
o número como a própria essência da realidade. termo". O que aqui encontramos é a limitação em vir-
Mas precisamos reconhecer que o número é uma tude de um princípio lógico intrínseco. Todos os ter-
das funções fundamentais do conhecimento humano , mos estão ligados por um elo comum. Originam-se da
um passo necessário no grande processo de objeti- mesma relação generativa, a relação que liga o núme-
ficação. Este processo se inicia na linguagem, mas ro n ao seu sucessor imediato (n + 1). Desta relação
na ciência assume forma inteiramente nova. Pois simplíssima podemos derivar tódas as propriedades dos
o simbolismo do número é de um tipo lógico inteira- números inteiros. A marca distintiva e o maior pri-
mente diverso do simbolismo da linguagem. Na lin- vilégio lógico deste sistema é sua completa transpa-
guagem encontramos os primeiros esforços de classi- rência. Em nossas teorias modernas - nas teorias de
ficação, mas estes, ainda descoordenados, não podem Frege e Russell, de Peano e Dedekind - o número
conduzir a uma verdadeira sistematização. Pois os
perdeu todos os segredos ontológicos. Concebemo-lo
próprios símbolos da linguagem não têm ordem sis-
como um novo e poderoso simbolismo que, para to-
temática definida. Cada termo lingüístico isolado
dos os propósitos científicos, é infinitamente superior
possui uma "área de significação" especial. É, como
ao simbolismo da linguagem. Pois o que encontramos
diz Gardiner, "um raio de luz, que ilumina primeiro
aqui já não são palavras destacadas, porém termos
esta porção, depois aquela, do campo dentro do qual
está a coisa, ou melhor, a completa concatenação de que operam de acordo com o mesmo plano fundamen-
coisas significada pela sentença". 1 Mas nenhum des- tal e que, portanto, nos mostram uma lei estrutural
tes diferentes raios de luz tem um foco comum. Estão clara e definida.
dispersos e isolados. Na "síntese do múltiplo" cada Não obstante, a descoberta pitagórica significou
nova palavra começa de novo. apenas um primeiro passo no desenvolvimento da
Este estado de coisas modifica-se completamente ciência natural. Toda a teoria pitagórica do número
assim que entramos no reino do número. Não pode- foi repentinamente posta em dúvida por um novo fa-
mos falar de números únicos ou isolados. A essência to. Quando descobriram que num triângulo retângu-
do número é sempre relativa, não absoluta. Um nú- lo a hipotenusa não era comensurável com os catetos,
mero singular é apenas um lugar singular numa or- os pitagoristas tiveram de enfrentar um problema to-
dem sistemática geral. Não tem ser próprio, nem rea- talmente novo. Em toda a história do pensamento
grego, mormente nos diálogos de Platão, sentimos a
1. Gardiner, The Theory ot Speech and Language, p. 51. profunda repercussão deste problema, que assinala
334 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 335

uma crise autêntica na matemática grega. Nenhum Se o espírito humano, pelo próprio poder, criasse ar-
pensador antigo poderia resolver o problema à nossa bitrariamente uma nova esfera de coisas, teríamos
maneira moderna, pela introdução dos chamados "nú- de mudar todos os nossos conceitos sobre a verdade
meros irracionais". Do ponto de vista da lógica e da objetiva. Mas aqui também o dilema perde sua força,
matemática gregas, os números irracionais eram uma assim que tomamos em consideração o caráter sim-
autocontradição. Eram um IXpPl')tOV , coisa em que não bólico do número. Neste caso se torna evidente que,
se devia pensar e da qual não se devia falar. 1 Visto na introdução de novas classes de números, não cria-
que o número havia sido definido como um número mos novos objetos, porém novos símbolos. Nesse sen-
inteiro ou uma relação entre números inteiros, o com- tido, os números naturais estão no mesmo nível dos
primento incomensurável era um comprimento que números fracionais ou irracionais. Também não são
não admitia nenhuma expressão numérica, desafiava descrições nem imagens de coisas concretas, de obje-
e afrontava todos os poderes lógicos do número. O tos físicos. Expressam antes relações muito simples.
que os pitagoristas haviam procurado, e o que tinham A ampliação do âmbito natural dos números, sua ex-
encontrado no número, era a perfeita harmonia de tensão a um âmbito maior, significa apenas a introdu-
todas as espécies de seres e de todas as formas de co- ção de novos símbolos, que tendem a descrever rela-
nhecimento, percepção, intuição e pensamento. A ções de uma ordem mais elevada. Os novos números
partir de então, a aritmética, a geometria, a física, a não são símbolos de simples relações, porém de "re-
música, a astronomia pareciam formar um todo único lações de relações", de "relações de relações de rela-
e coerente. Todas as coisas no céu e na terra se tor- ções", e assim por diante. Nada disto está em con-
naram "uma harmonia e um número". 2 O descobri- tradição com o caráter dos números inteiros; mas o
mento das distâncias incomensuráveis, entretanto, foi elucida e confirma. A fim de preencher a lacuna en-
o colapso desta tese. Daí por diante já não houve tre os números inteiros, que são quantidades comen-
harmonia verdadeira, entre a aritmética e a geome- suráveis, e o mundo dos acontecimentos físicos conti-
tria, entre o reino dos números racionais e o reino do no continuum do espaço e do tempo, o pensamen-
das quantidades contínuas. to matemático viu-se obrigado a encontrar um novo
Foram precisos os esforços de muitos séculos de instrumento. Se o número fosse uma "coisa", uma
pensamento matemático e filosófico para restaurar substantia quae in se est et per se concipitur, o pro-
tal harmonia. Uma teoria lógica do continuum mate- blema teria sido insolúvel. Mas, sendo uma lingua-
mático é uma das últimas descobertas do pensamen- gem simbólica, bastava desenvolver coerentemente o
to matemático. 3 Sem ela, toda a criação de novos nú- vocabulário, a morfologia e a sintaxe desta linguagem.
meros - das frações, dos números irracionais, etc. - O que aqui se requeria não era uma mudança da na-
parecia sempre uma empresa contestável e precária. tureza e da essência do número, mas apenas uma mu-
dança de sentido. Uma filosofia da matemática pre-
1. Cf. Heinrich Scholz e H. Hasse, Die Grundlagen Krise der çrie-
eniscnen Mathematik (Charlotemburgo, 1928). cisava provar que esta mudança não conduz a uma
2. Cf. Aristóteles, Metafísica, I, 5, 985b. ambigüidade nem a uma contradição - que as quan-
3. Veja Hermarm Weyl, Das Kontinuum. Kritische Untersuchun-
gen über die Grundlagen der Analysis (Lipsia, 1918). tidades que não podiam ser expressas exatamente por
336 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 337

números inteiros, ou as relações entre os números in- retrato, uma imagem do átomo, semelhante aos obje-
teiros, se tornavam inteiramente compreensíveis ou tos comuns de nosso macrocosmo. Os átomos se dis-
expressíveis pela introdução de novos símbolos. tinguiam um do outro pela forma, pelo tamanho e pela
Que todas as questões geométricas admitem uma disposição de suas partes; sua conexão era explicada
transformação dessa natureza foi uma das primeiras por elos materiais; os átomos isolados dispunham de
grandes descobertas da filosofia moderna. A geome- colchete de gancho, de saliências e reentrâncias, que
tria analítica de Descartes forneceu a primeira prova os tornavam encaixáveis. Todas estas imagens, esta
convincente desta relação entre a extensão e o núme- ilustração figurativa, desapareceram em nossas teorias
ro. Daí por diante a linguagem da geometria deixou modernas do átomo. No modelo atômico de Bohr já
de ser um idioma especial. Tornou-se parte de uma não há vestígios dessa linguagem pitoresca. A ciên-
linguagem muito mais ampla, de uma mathesis uni- cia já não fala a linguagem da experiência sensória
versalis. Para Descartes, todavia, ainda não era pos- comum; fala a linguagem pitagórica. O puro simbo-
sível dominar o mundo físico, o mundo da matéria e lismo do número supera e suprime o simbolismo da
do movimento, da mesma forma. Suas tentativas pa- linguagem comum. Não só o macrocosmo mas tam-
ra criar uma física matemática fracassaram. O mate- bém o microcosmo - o mundo dos fenômenos intera-
rial de nosso mundo físico é composto de dados senso- tômicos - poderiam agora ser descritos nesta lingua-
gem; e isto veio a ser o início de uma interpretação
riais, e os fatos persistentes e refratários representa-
sistemática inteiramente nova. "Após o descobrimen-
dos por estes dados sensoriais pareciam resistir a to-
to da análise espectral", escreveu Arnold Sommerfeld
dos os esforços do pensamento lógico e racional de
no prefácio do seu livro Estrutura Atômica e Linhas
Descartes. Sua Física continuou a ser uma rede de
Espectrais, 1
suposições arbitrárias. Mas se Descartes, como físico,
ninguém que esteja familiarizado com a física poderia duvidar
~odi~ ~rrar em seus meios, não errou em seu objetivo de que o problema do átomo viesse a ser resolvido quando os
filosófico fundamental. Daí por diante o objetivo foi físicos aprenderam a compreender a linguagem do espectro.
Tão multiforme era a enorme quantidade de material acumu-
claramente compreendido e· firmemente estabelecido. lado em sessenta anos de pesquisa espectroscópica que parecia,
Em todos os seus ramos isolados a física tendia para a principio, impossivel destrinçar. O que ouvimos hoje em dia
da linguagem dos espectros é uma verdadeira "música das esfe-
o mesmo ponto; tentava trazer o mundo todo dos fe- ras" dentro do átomo, acordes de relações integrais, uma ordem
nômenos naturais para o controle do número. e uma harmonia que se tornam cada vez mais perfeitas apesar
da multiforme variedade. Todas as leis integrais das linhas
Neste ideal metodológico geral não encontramos espectrais e da teoria atômica decorrem originalmente da teoria
antagonismo entre a física clássica e a física moderna. dos quanta. É o misterioso orçanxm em que a natureza executa
A mecânica quântica, em certo sentido, é o verdadei- sua música dos espectros e, de acordo com cujo ritmo, regula
a estrutura do átomo e dos núcleos.
ro renascimento, a renovação e a confirmação do
ideal pitagórico clássico. Mas aqui também se fazia A história da química é um dos melhores e mais
mister introduzir uma linguagem simbólica muito notáveis exemplos desta lenta transformação da lin-
mais abstrata. Quando descreveu a estrutura de seus guagem científica. Muito depois da física, entrou a
átomos, Demócrito recorreu a analogias tiradas do
1. (Edição alemA de 1919). Tradução inglesa de Henry L. Brose
mundo de nossa experiência sensória. Apresentou um (Nova Iorque, Dutton, 1923).
339
Antropologia Filosófica.
338 Ernst Cassirer

gresso. Quando Dalton descobriu a le~ das pr?porções


química "na estrada real da ciência". Não foi, de
equivalentes ou múltiplas, novo cammho fOI abe~to.
maneira alguma, a ausência de novas provas empíri-
A força do número estava firmemente estabelecIda:
cas que impediu, por muitos séculos, o progresso do
pensamento químico e conservou a química dentro Entretanto, restavam ainda grandes campos ~e. exp:-
das fronteiras dos conceitos pré-científicos. Se estu- riência química ainda não completamente ~U]:ltoS as
darmos a história da alquimia verificaremos que os regras do número. A lista dos elementos quumcos era
alquimistas possuíam um pasmoso talento de observa- uma simples lista empírica; não dependia d~ nen~~m
ção. Reuniram grande acervo de fatos valiosos, ma- princípio fixo nem mostrava uma ?rdem s~stematIca
téria-prima sem a qual a química dificilmente poderia definida. Mas até este último obstaculo fOI afastado
desenvolver-se. 1 Mas o modo de apresentação desta com o descobrimento do sistema periódico dos ele~en-
matéria-prima era totalmente impróprio. Quando o al- tos. Cada elemento encontrara seu lu~ar num sI~te- A

quimista começou a descrever suas observações, não ti- ma coerente, lugar marcado por seu numero atomIC?
nha outro instrumento disponível a não ser uma lin- "O verdadeiro número atômico é simplesmente o nu-
guagem semimítica, cheia de termos obscuros e mal mero que dá a posição do elemento no sistem_anat~-
definidos. Falava com metáforas e alegorias, e não com ral quando se levam na devida conta as relaçoes qUI-
, I ., T
conceitos científicos. Esta linguagem obscura deixou micas ao decidir a ordem de cada e emento. ornan-
sua marca em toda sua concepção da natureza, que se do-se por base o sistema periódico, foi p~ssível pre-
tomou um reino de obscuras qualidades, compreensí- dizer a existência de elementos desconheCIdos e des-
veis apenas para os iniciados e adeptos. Uma nova cobri-los subseqüentemente. Assim a química adqui-
corrente de pensamento químico principia no período rira uma nova estrutura matemática e dedutiva. I
da Renascença. Nas escolas da "iutroquímica" passou Podemos acompanhar a mesma tendência geral
a preponderar o pensamento biológico e médico. Mas do pensamento na história da biologia. Como todas
só no século XVII se logrou abordar verdadeira e cien- as outras ciências naturais, teve que começar com uma
tificamente os problemas da química. O Chymista simples classificação de fatos, orientada ainda pelos.
scepticus de Robert Boyle (1677) foi o primeiro gran- conceitos de classe da nossa linguagem ordinária. A
de exemplo de um ideal moderno de química, basea- biologia científica deu a estes conceitos um significado
do numa nova concepção geral da natureza e das leis mais definido. O sistema zoológico de Aristóteles e o
naturais. Entretanto, mesmo aqui como no subse- sistema botânico de Teofrasto revelam alto grau de
qüente desenvolvimento da teoria do flogístico encon- coerência e ordem metodológica. Mas na biologia mo-
tramos apenas uma descrição qualitativa dos proces- derna todas estas formas anteriores de classificação
sos químicos. Só no fim do século XVIII, época de são eclipsadas por um ideal diferente; está passando,
Lavoisier, a química aprendeu a falar uma linguagem aos poucos, por uma nova etapa de "teoria formulad.a
quantitativa. A partir de então se observa rápido pro- dedutivamente". "Toda ciência em seu desenvolvi-
mento normal", diz o Professor Northrop,
1. Sobre a história da Alquimia veja E. O. von Lippmann, Enis-
tehung und Ausbreitung der Alchimie (Berlim, Springer, 1919), e Lynn
Thorndike, A History ot Magic and Experimental Science (Nova lor- 1. Sobre detalhes veja, por exemplo, Sommerfeld, op. cit., capo 11.
que, 1923-41),6 volumes.
340 Ernst Casstrer Antropologia Filosófica 341

pass~ po~ duas etapas - a primeira, que denominamos a etapa a pouco e pouco, e se converte numa espécie de fé me-
da história natural, a segunda que chamamos teoria prescrita
po~ ~ostulados. .A c~a yma destas etapas pertence um tipo tafísica. Na filosofia de Platão o número já não está
defm.Ido ~e conceito cíentítíco. O tipo de conceito para a etapa envolto em mistério. Ao contrário, é considerado
da histórI~ natural cham~mos conceito por inspeção; o da outra
etapa _desIgnamoS CO~cCltopor postulação. O conceito por como o próprio centro do mundo intelectual - tor-
mspe?ao ~ um conceito cuj.o significado completo é dado por
algo Imediatamente apreendido. Um conceito por postulação é nou-se a chave de toda verdade e de toda inteligibi-
um .conceit~ cujo significado é prescrito pelos postulados da lidade. Quando Platão, já na velhice, expôs sua teo-
teoria dedutiva em que ele ocorre.v
ria do mundo ideal, tentou descrevê-Ia em termos de
Para este passo decisivo, que conduz do simples- número puro. Para ele, a matemática éo reino inter-

mente apreensível ao compreensível, precisamos sem- mediário entre o mundo sensível e o supra-sensível.
pre de um novo instrumento de pensamento. Deve- Nisto também é um verdadeiro pitagorista - e, como
mos referir nossas observações a um sistema de sím- tal está convencido de que o poder do número se es-
bolos bem ordenados a fim de torná-los coerentes e tende sobre todo o mundo visível. A essência meta-
interpretáveis em termos de conceitos científicos. física do número, porém, não pode ser revelada por
Que a matemática é uma linguagem simbólica nenhum fenômeno visível. Os fenômenos participam
universal - que não se ocupa da descrição de coisas desta essência mas não podem expressá-Ia adequada-
mas de expressões gerais de relações - é uma con- mente - ficam necessariamente aquém dela. É um
cepção que surge um tanto tardiamente na história erro considerar os números visíveis que encontramos
da filosofia. Urna teoria da matemática baseada nesta nos fenômenos naturais, nos movimentos dos corpos
pressuposição só aparece no século XVII. Leibniz foi celestes, como números matemáticos verdadeiros' , não
o primeiro grande pensador moderno a ter urna visão são mais que "indicações" (7tIXPIXOEL"{!J.IX'tIX) dos números
clara do verdadeiro caráter de simbolismo matemáti- ideais puros. Tais números devem ser apreendidos
co e que colheu imediatamente proveitosas e fecun- pela razão e pela inteligência, não pela vista.
das conseqüências. Neste sentido, a história da ma- Os céus cintilantes deveriam ser usados como padrão e com
temática não difere da história de todas as outras for- vistas a um conhecimento mais elevado; sua beleza é como a
beleza das figuras ou pinturas excelentemente produzidas pela
mas simbólicas. Até para a matemática se revelou mão de Dédalo, ou por outro grande artista, que por sorte
dificílimo descobrir a nova dimensão do pensamento contemplamos; qualquer geômetra que os visse apreciaria a
perfeição do artesanato, mas nunca sonharia poder encontrar
simbólico, que era empregado pelos matemáticos mui- nelas o verdadeiro igualou o verdadeiro duplo, ou a verdade
to ~~tes que pudess~m explicar seu caráter lógico es- de outra proporção qualquer... E o mesmo não sentirá o
verdadeiro astrônomo ao olhar para os movimentos das estré-
pecífico. Como os símbolos da linguagem e da arte Ias? Não pensará que o céu e as coisas celestes são operadas
os matemáticos, desde o início, se apresentam rodeá- pelo Criador da maneira mais perfeita? No entanto, nunca ima-
ginará que as proporções da noite e do dia, ou de ambos em
dos de uma espécie de atmosfera mágica, e considera- relação ao mês, ou do mês em relação ao ano, ou das estrelas
dos. com um respeitoso temor religioso e veneração. em relação a estes e em relação umas às outras, e quaisquer
outras coisas materiais e visíveis também podem ser eternas e
MaIS tarde, esta fé religiosa e mística se desenvolve , não estar sujeitas a nenhum desvio - isto seria absurdo; e é
igualmente absurdo dar-se a tanto trabalho para investigar sua
exata verdade. 1
1. F._S. C. Northrop, "O método e as teorias da ciência física em
sua relação com a organização biológica" Suplemento de Growth
(1940), pp. 127-154. ' 1. Platão, a República, 529, 530 (tradução de Jowett).
343
342 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica

A epistemologia moderna já não aceita esta teo- expressão na famosa fórmula, ~e Laplace: 1 Mas _o
ria platônica do número. Não considera a matemáti- verdadeiro determinismo científico, o do n,:mero, nao
ca como um estudo de coisas, quer visíveis quer invi- está sujeito a estas objeções. Já não consI~er~mos o
síveis, mas como um estudo de relações e tipos de re- número como força mística ou como a es~encIa me-
lações. Quando falamos na objetividade do número, tafísica das coisas. Encaramo-Io como um mst:ume~-
não pensamos nele como numa entidade metafísica to específico do conhecimento. Esta concepçao, eVI-
ou física separada. O que desejamos expressar é que dentemente, não é posta em dúvida por nenhu~ ~e-
sultado da física moderna. O progresso da mecam~a
o número é um instrumento para a descoberta da
quântica mostrou-nos que n?ssa li~gua~e~ mate~~-
natureza e da realidade. A história da ciência nos
tica é muito mais rica e multo mais elástica e ductil
dá exemplos típicos deste contínuo processo intelec-
que se supunha nos sistemas da física ~lá:si~a. É adap-
tuaL O pensamento matemático parece amiúde adian-
tável a novos problemas e a novas eXIgenCIas. Quan-
tar-se à investigação física. Nossas teorias matemáti- do Heisenberg apresentou sua teoria, empr~gou .uma
cas mais importantes não decorrem de necessidades nova forma de simbolismo algébrico, um simbolismo
práticas ou técnicas imediatas. São concebidas como para o qual algumas das nossas regras algébricas co-
planos gerais de pensamento anteriores a qualquer muns se tornaram inválidas. Mas a forma geral do
aplicação concreta. Quando desenvolveu sua teoria número é preservada em todos estes planos subse-
geral da relatividade, Einstein voltou à geometria de qüentes. Disse Gauss que a matemática é a rain~a
Riemann, criada muito antes, mas que Riemann con- da ciência e que a aritmética é a rainha ~a matema-
siderava apenas como simples possibilidade lógica. Es- tica. Num estudo histórico do desenvolvImento , ~o
tava convencido, porém, de que precisávamos de tais pensamento matemático durante o sécul~ XIX, Fel,lx
possibilidades, a fim de estarmos preparados para a Klein declarou que um dos aspectos maI.s ca,~ac~erIs-
descrição de fatos reais; precisamos de uma plena ticos deste desenvolvimento é a progressiva antme-
liberdade na construção das várias formas de nosso tização" da matemática. 2 Na história da física mo-
simbolismo matemático, no intuito de dotar o pensa- derna também podemos acompanhar o pro~esso d~
mento físico com todos seus instrumentos intelectuais. aritmetização. Desde os quatérnios de Hamilton ate
A natureza é inesgotável - sempre nos apresentará os diferentes sistemas da mecânica quântica encon-
novos e inesperados problemas. Não podemos ante- tramos sistemas cada vez mais complexos de simbolis-
cipar os fatos, mas podemos fazer provisões para sua mo algébrico. O cientista procede baseado no princí-
interpretação intelectual através do poder do pensa- pio de que, até nos casos mais complicados, conse-
mento simbólico. guirá finalmente encontrar um simbolismo adequado.
Se aceitarmos este ponto de vista encontraremos que lhe permitirá descrever suas observaçoes n~ma
resposta para um dos mais difíceis e debatidos pro- linguagem universal e universalmente compreensIvel.
blemas da ciência natural moderna - o problema do
determinismo. A ciência não está precisando de um 1. Sobre este problema veja Cassirer, Determrnismus und tnâe-
terminismus in der modernen Physik. 'k
determinismo metafísico, mas metodológico. Podemos 2. Félix Klein, Vorlesungen über die Entwicklung der Mathemah
repudiar o determinismo mecânico que encontrou sua im 19. Jahrhundert (Berlim, 1926·27).

L
344 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 345

É verdade que o cientista não nos dá uma prova Estas palavras descrevem, de maneira bem clara,
lógica nem empírica desta presunção fundamental. A a atitude geral do espírito científico. O cientista sabe
única prova que nos dá é o seu trabalho. Aceita o que há ainda imensos campos de fenômenos que não
princípio do determinismo numérico como máxima se puderam reduzir a leis rigorosas e a regras numé-
orientadora, como idéia reguladora que lhe empresta ricas exatas. Não obstante, permanece fiel ao seu cre-
à obra sua coerência lógica e sua unidade sistemática. do pitagórico geral: crê que a natureza, tomada em
Uma das melhores exposições deste caráter geral do conjunto e em todos os seus campos especiais, é "um
processo científico pude encontrar no Tratado de número e Uma harmonia". Diante da imensidade da
6tica Fisiológica de Helmholtz. Se os princípios de natureza, muitos dos grandes cientistas podem ter ex-
nosso conhecimento científico, por exemplo a lei da perimentado aquele sentimento especial expresso num
causação, fossem apenas regras empíricas, diz Helm- famoso dito de Newton. Podem ter pensado que, em seu
holtz, sua prova indutiva estaria em má situação. trabalho, eram como a criança que caminha ao longo
O melhor que poderíamos dizer é que estes princípios da praia de um oceano imenso e se diverte, de vez em
não teriam muito maior valor que as regras de meteo- quando, apanhando uma pedrinha cuja forma ou cuja
rologia, como a lei da rotação do vento etc. Mas apre- cor lhe atraiu a atenção. Este modesto sentimento é
sentam o caráter de leis puramente lógicas, porque as compreensível, mas não proporciona uma descrição.
conclusões que deles se inferem dizem respeito, não à verdadeira e completa da obra do cientista. O cientista
nossa experiência real nem aos simples fatos da natu- não atinge seu objetivo sem uma estrita obediência
reza, porém à nossa interpretação da natureza. aos fatos da natureza. Mas esta obediência não é urna
submissão passiva. A obra de todos os grandes cien-
o processo de nossa compreensão, no que tange aos fenômenos tistas naturais - de Galileu e Newton, de Maxwell e
naturais, é que tentamos encontrar noções gerais e leis da natu-
reza. As leis da natureza são simplesmente noções genéricas Helmholtz, de Planck e Einstein - não foi uma sim-
relativas às mudanças que ocorrem na natureza... Por conse- ples reunião de fatos; foi um trabalho teórico, o que
guinte, quando não conseguimos vincular os fenômenos naturais
a uma lei. .. cessa a própria possibilidade de compreendê-los. quer dizer, construtivo. Esta espontaneidade e pro-
o Entretanto, precisamos tentar compreendê-los. Não há outro dutividade são o próprio centro de todas as atividades
~etod.o .de subm~tê-Ios ao controle do intelecto. E, assim, ao
u:vestlga-Ios, pr~cIsamos agir na suposição de que são compreen- humanas. É o poder supremo do homem e assinala,
~Ivels. Conseqüentemente, a lei da razão suficiente nada mais ao mesmo tempo, os limites naturais de nosso mundo
e, na realidade, do que o vigoroso desejo de nosso intelecto para
s~bmeter todas nossas percepções ao seu controle. Não é uma humano. Na linguagem, na religião, na arte e na
lei da natureza. Nosso intelecto é a faculdade de formar concep- ciência, o homem não pode fazer mais que construir
ções geraís, Não tem n~?a. que ver com nossas percepções
sensoriais e no~sas exp~rIencIas, a menos que seja capaz de seu próprio universo - um universo simbólico, que
formar concepçoes gerais ou leis... Além do intelecto, não lhe permite compreender e interpretar, articular e
existe outra faculdade igualmente sistematizada, pelo menos para
compreender o mun~o ex~erior. Assim, se formos incapazes organizar, sintetizar e universalizar sua experiência
de conceber uma COIsa,nao poderemos imaginá-Ia como exis- humana.
tente. I

1. Helrnholtz, Tratado de 6tica Fisiológica, traduzido para o inglês


por ~ames P. C. Southall (Optical Society of America; George Banta
Publíshíng Co., 1925; copyright, G. E. Stechert ), nr, 33-35.
l

XII
SUMÁRIO E CONCLUSÃO

i
S Eao término de nossa longa jornada, volvermos os
, olhos para o ponto de partida, talvez duvidemos
de haver atingido nosso fim. Uma filosofia da cul-
tura começa com a suposição de que o mundo da cul-
tura humana não é um mero agregado de fatos soltos
e destacados. Procura compreender estes fatos como
um sistema, como um todo orgânico. Para uma visão
empírica ou histórica pareceria suficiente coligir os
dados da cultura humana; mas o que interessa é o
alento da vida humana. Absortos no estudo dos fe-
nômenos particulares, em sua riqueza e variedade,
apreciamos a policromia e a polifonia da natureza do
homem. Mas uma análise filosófica se propõe tarefa
diferente. Seu ponto de partida e a hipótese de tra-
balho estão incluídos na convicção de que os raios,
variados e aparentemente dispersos, podem ser reu-
nidos e concentrados em um foco comum. Os fatos
aqui se reduzem a formas, e supõe-se que estas mes-

,
mas formas possuem uma unidade interior. Mas te-
remos sido capazes de demonstrar este ponto essen-
cial? Não terão todas as nossas análises individuais
mostrado exatamente o contrário? Pois tivemos de
pôr em destaque, durante toda a caminhada, a estru-
tura e o caráter específicos das várias formas simbóli-
cas - do mito, da linguagem, da arte, da religião, da
348 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 349

história e da ciência. Tendo em mente este aspecto A definição do homem como "animal social", da-
de nossa investigação, talvez nos sintamos inclinados da por Aristóteles, não é suficientemente ampla. Dá-
a sustentar a tese contrária, a da descontinuidade e -nos um conceito genérico mas não a diferença espe-
da heterogeneidade radical da cultura humana. cífica. A sociabilidade como tal não é característica
De um ponto de vista puramente ontológico ou exclusiva do homem, nem seu único privilégio. Nos
metafísico teria sido, com efeito, dificílimo refutar esta chamados estados animais, entre as abelhas e formi-
tese. Para uma filosofia crítica, porém, o problema gas, encontramos uma divisão bem definida do traba-
assume outro aspecto. Aqui não temos obrigação algu- lho e uma organização social surpreendentemente
ma de provar a unidade substancial do homem. O ho- complicada. Mas no caso do homem encontramos não
mem já não é considerado como simples substância apenas, como entre os animais, uma sociedade de ação
que existe em si mesma e deve ser conhecida por si mas também uma sociedade de pensamento e senti-
mesma. Sua unidade é concebida como funcional e não mento. A linguagem, o mito, a arte, a religião, a ciên-
pressupõe a homogeneidade dos vários elementos de cia são os elementos e condições constitutivas desta
que é consistida. Não somente admite, mas também forma superior de sociedade. São os meios pelos quais
exige, a multiplicidade e a multiformidade de suas as formas de vida social, que encontramos na nature-
partes constituintes. Pois esta é uma unidade dialéti- za orgânica, evolvem para um novo estado, o da cons-
ca, uma coexistência de contrários. ciência social, que depende de um duplo ato, de iden-
"Os homens não compreendem", disse Heráclito, tificação e discriminação. O homem não pode encon-
"como aquilo que é separado em direções diferentes trar-se, não pode ter consciência de sua individualida-
entra em acordo consigo mesmo - a harmonia na de, senão por intermédio da vida social. Para ele, con-
contrariedade, como no caso do arco e da lira". 1 Para tudo, este meio significa mais que uma força externa
demonstrar esta harmonia não precisamos provar a determinante. Como os animais, o homem se subme-
identidade ou similaridade das diversas forças pelas te as regras da sociedade mas, além disto, participa
quais é produzida. As várias formas da cultura hu- ativamente da produção e da mudança das formas da
mana não se juntam mercê da identidade de sua natu- vida social. Nos estádios rudimentares da sociedade
reza, senão da conformidade de sua função fundamen- humana, esta atividade é ainda escassamente percep-
tal. Se existe um equilíbrio na cultura humana, este tível, parecendo reduzida ao mínimo. Mas quanto mais
só pode ser descrito como um equilíbrio dinâmico, nos adiantamos, tanto mais explícita e significativa se
não como estático; é o resultado de uma luta entre torna esta característica. Este lento desenvolvimento
forças opostas, luta que não exclui a "recôndita har- pode ser acompanhado em quase todas as formas da
monia" que, segundo Heráclito, "é melhor que a cultura humana.
gritante". 2 É um fato sobejamente conhecido que muitas
1. Heráclito, Fragmento 51, em Diels, Die Fragmente der Vorso- ações executadas nas sociedades animais são não so-
kratiker (5.>edição). Traduzido para o inglês por Charles M. Bakewell, mente iguais mas, em certos sentidos, superiores às
Souree Book in Aneient Philosophy (Nova Iorque, Charles Scribner's obras do homem. Tem-se assinalado repetidas vezes
Sons, 1907),p. 81.
2. Idem, Fragmento 54, em Bakewell, op. eit., p. 31. que, na construção de seus favos, as abelhas operam
Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 351
350

como um geômetra perfeito, logrando a mais alta pre- tre as duas, uma das quais procura preservar as ve-
cisão e exatidão. Tal atividade requer um sistema lhas formas, ao passo que a outra forceja por produ-
complexíssimo de coordenação e colaboração. Mas em zir novas. Há uma luta que não cessa entre a tradi-
nenhuma destas consecuções animais encontramos a ção e a inovação, entre as forças reprodutoras e cria-
diferenciação individual. São todas produzidas da mes- doras. Este dualismo se encontra em todos os domí-
ma maneira e consoante as mesmas regras invariáveis. nios da vida cultural. O que varia é a proporção dos
Não existe nenhuma liberdade de escolha ou de capa- fatores que se opõem. Ora um fator, ora outro, pa-
cidade individual. Unicamente ao chegarmos às eta- rece preponderar. Esta preponderância determina, em
pas superiores da vida animal encontramos os primei- alto grau, o caráter das formas isoladas e dá a cada
ros vestígios de certa individualização. As observações uma delas sua fisionomia particular.
de Wolfgang Koehler, em relação a macacos antropói- No mito e na religião primitiva a tendência para
des, parecem provar que existem muitas diferenças na a estabilização é tão forte que sobrepuja o pólo opos-
inteligência e na habilidade destes animais. Um deles to. Estes dois fenômenos culturais parecem ser as for-
pode ser capaz de resolver uma tarefa que para os ças mais conservadoras da vida humana. Por sua ori-
outros permanece insolúvel. E aqui podemos até falar gem e princípio, o pensamento mítico é o pensamento
de "invenções" individuais. Para a estrutura geral da tradicional. Pois o único meio que tem o mito de
vida animal, entretanto, tudo isto é irrelevante. Esta compreender, explicar e interpretar a forma presente
estrutura é determinada pela lei biológica geral, se- da vida humana é reduzi-Ia a um passado remoto. O
gundo a qual os caracteres adquiridos não são passí- que tem suas raizes nesse passado mítico, o que foi
veis de transmissão hereditária. Toda perfeição con- desde então, o que existiu desde tempos imemoriais,
quistada por um organismo no correr de sua vida in- é firme e indiscutível. Contestá-lo seria sacrilégio.
dividual circunscreve-se à sua própria existência e Para o espírito primitivo nada é mais sagrado que a
não exerce influência na vida da espécie. O próprio sacrossanta idade. A idade dá a todas as coisas aos
homem não constitui exceção a esta regra biológica objetos físicos e às instituições humanas seu valor
geral. Mas o homem descobriu uma nova maneira de sua dignidade, sua excelência moral e religiosa. Para
estabilizar e propagar suas obras. Não pode viver sua manter esta dignidade torna-se imperativo continuar
vida sem expressá-Ia. As várias modalidades desta e preservar a ordem humana na mesma forma inalte-
expressão constituem uma nova esfera, possuem uma rável. Qualquer solução de continuidade destruiria
vida própria, uma espécie de eternidade pela qual so- a própria substância da vida mítica e religiosa. Do
brevivem à existência individual e efêmera do ho- ponto de vista primitivo, a menor alteração no plano
mem. Em todas as atividades humanas encontramos estabelecido das coisas é desastrosa. As palavras de
uma polaridade fundamental que pode ser descrita uma fórmula mágica, de um conjuro ou encantamento,
de várias formas. Podemos falar de uma tensão entre as fases isoladas de um ato religioso, de um sacrifício
a estabilização e a evolução, entre uma tendência que ou de uma oraçâo.. tudo isto precisa ser repetido na
leva a formas fixas e estáveis de vida e outra para mesma ordem invariável. Qualquer alteração anula-
romper este plano rígido. O homem é dilacerado en- ria a força e a eficiência da palavra mágica ou do rito
Antropologia Filosófica 353
352 Ernst Cassirer

religioso. A religião primitiva, por conseguinte, pode e a mudança semântica não são apenas aspectos aci-
não dar azo a nenhuma liberdade de pensamento in- dentais no desenvolvimento da linguagem; são condi-
dividual. Prescreve suas regras fixas, rígidas, inviolá- ções inerentes e necessárias do mesmo. Uma das prin-
cipais razões desta mudança contínua é o fato de que
veis, não só para toda ação humana mas também para
a linguagem precisa ser transmitida de geração a ge-
todo sentimento humano. A vida do homem está sob
ração. A transmissão não será possível pela simples
constante pressão, encerrada no círculo estreito de exi-
reprodução de formas fixas e estáveis. O processo da
gências positivas e negativas, de consagrações e proibi-
aquisição da linguagem sempre supõe uma atitude ati-
ções, de observâncias e tabus. Sem embargo disto, a
va e produtiva. Os próprios erros da criança são mui-
história da religião nos mostra que esta primeira forma
to característicos neste sentido. Longe de serem me-
do pensamento religioso não expressa, absolutamente,
ras falhas, decorrentes de um poder insuficiente de
seu verdadeiro significado e objetivo. Aqui também en-
memória ou reprodução, são as melhores provas de
contramos um avanço contínuo na direção oposta. O
atividade e espontaneidade da criança. Num estádio
anátema, sob o qual a vida humana foi colocada pelo
relativamente precoce do seu desenvolvimento , a
pensamento mítico e religioso primitivo, vai-se afrou-
criança parece haver adquirido certo senso da estru-
xando gradativamente e, afinal, parece ter perdido
tura geral de sua língua materna sem, evidentemente,
sua força compulsiva. Está surgindo uma nova forma
possuir qualquer consciência abstrata de regras lin-
dinâmica de religião, que abre uma viçosa perspecti-
güísticas. Usa palavras ou sentenças que nunca ouviu
va de vida moral e religiosa. Numa religião dinâmica
e que são infrações das regras morfológicas ou sintá-
desta natureza os poderes individuais conquistaram a
ticas. Mas nestas mesmas tentativas é que transparece
preponderância sobre os meros poderes de estabili-
o senso agudo pelas analogias. Nelas demonstra sua
zação. A vida religiosa alcançou sua maturidade e
capacidade de aprender a forma da linguagem em vez
sua liberdade; quebrou o feitiço de um rígido tradi-
de lhe reproduzir simplesmente a matéria. A trans-
cionalismo. 1
ferência da língua de uma geração para outra, portan-
Se, do campo do pensamento mítico e religioso, to, nunca poderá ser comparada à simples transferên-
passarmos à linguagem, encontraremos, em forma di- cia de propriedade, pela qual uma coisa material, sem
ferente, o mesmo processo fundamental. A própria nenhuma alteração de sua natureza, muda apenas de
linguagem é uma das forças conservadoras mais fir- dono. Em seus Prinzipien der Sprachgeschichte, Her-
mes da cultura humana. Sem este conservantismo , mann Paul deu especial destaque a este ponto. Mos-
não poderia realizar sua principal tarefa, a comunica- trou, com exemplos concretos, que a evolução histó-
ção. A comunicação requer regras estritas. Os símbo- rica de uma língua depende, em grande parte, dessas
los e as formas lingüísticas precisam ter estabilidade e lentas e contínuas mudanças que ocorrem na transfe-
constância a fim de resistir à influência dissolvente e rência das palavras e das formas lingüísticas de pais
destrutiva do tempo. Não obstante, a mudança fonética para filhos. No entender de Paul, este processo deve
ser considerado como uma das principais razões dos
fenômenos da mudança fonética e da mudança semân-
1. Sobre maiores detalhes veja o Capo VII, pp. 143 e seguintes.
354 Ernst Cassirer 355
Antropologia Filosófica

tica. 1 Em tudo isto percebemos muito distintamente indicadores, com os quais desejamos designar objetos
a presença de duas tendências diferentes - uma que empíricos. Tropeçamos com uma espécie de metamor-
conduz à conservação, e outra à renovação e ao fose de todas as nossas palavras comuns. Cada verso
rejuvenescimento da linguagem. Dificilmente, po-
de Shakespeare, cada estrofe de Dante ou Ariosto, to-
rém, poderemos falar numa oposição entre as duas do poema lírico de Goethe tem seu som peculiar.
tendências. Estão em perfeito equilíbrio; são os dois Lessing afirmou que é tão impossível roubar um ver-
elementos e as duas condições indispensáveis à vida so de Shakespeare quanto roubar a clava de Hércules.
da linguagem.
E o que é ainda mais assombroso, um grande poeta
Novo aspecto do mesmo problema encontramos nunca se repete. Shakespeare falou uma linguagem
no desenvolvimento da arte. Neste caso, entretanto, o nunca ouvida até então - e seus personagens falam
segundo fator - o da originalidade, da individualidade a mesma linguagem incomparável e inconfundível.
e o poder criador - parece predominar de maneira de-
Em Lear e Macbeth, em Brutus ou Hamlet, em Rosa-
finida sobre o primeiro. Em arte não nos contentamos
lind ou Beatrice, ouvimos essa linguagem pessoal que
com a repetição ou a reprodução de formas tradicio-
é o espelho de uma alma. Só desta maneira a poesia
nais. Sentimos uma nova obrigação; introduzimos no-
é capaz de expressar todos os matizes inumeráveis, as
vos padrões críticos. "Mediocribus esse poetis non di,
non homines, non concessere columnae", diz Horácio delicadas gradações de sentimentos, que são impossí-
em sua Ars Poetica ("A mediocridade dos poetas não veis em outros modos de expressão. Se a linguagem,
é permitida, nem pelos deuses, nem pelos homens, em seu desenvolvimento, necessita de constante reno-
nem pelos pilares que sustentam as lojas dos livrei- vação, não encontrará para isto fonte melhor nem
ros"). Sem dúvida alguma, até aqui a tradição ainda mais profunda que a poesia. A grande poesia sempre
desempenha um papel soberano. Como no caso da faz uma incisão aguda, uma cesura definida, na his-
linguagem, as mesmas formas se transmitem de uma tória da linguagem. A língua italiana, a inglesa e a
geração a outra. Os mesmos motivos fundamentais da alemã já não eram as mesmas, por ocasião da morte
arte se repetem indefinidamente. Não obstante, todo de Dante, de Shakespeare e de Goethe, que haviam
grande artista, em certo sentido, faz uma nova época. sido no dia em que os poetas nasceram.
Temos consciência deste fato quando confrontamos as Em nossas teorias estéticas sempre foi percebida
formas do nosso linguajar comum com a linguagem e expressa a diferença entre a força conservadora e a
poética. Nenhum poeta é capaz de criar uma lingua- força construtora das quais depende a obra da arte.
gem inteiramente nova. Precisa adotar as palavras e Em todos os tempos houve tensão e conflito entre as
respeitar as regras fundamentais da sua língua. A tu- teorias da imitação e da inspiração. A primeira de-
do isto, porém, empresta não apenas novo feitio mas clara que a obra de arte tem de ser julgada de acordo
vida nova. Em poesia, as palavras não são significa- com regras fixas e constantes ou de acordo com
tivas somente de um modo abstrato; não são simples modelos clássicos. A segunda rejeita todos os padrões
ou cânones de beleza. A beleza é única e incompará-
1. H. Paul, Prinzipien der Sprachgeschichte (4.' edição, 1909). vel, é obra do gênio. Foi esta concepção que, após
p.63.
longa luta contra as teorias do classicismo e do neo-
356 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 357

classicismo, passou a prevalecer no século XVIII e tífico é a eliminação de todos os elementos pessoais e
preparou o caminho para a nossa estética moderna. antropomórficos. No dizer de Bacon, a ciência tenta
"O gênio", disse Kant em sua Crítica do Julgamento, conceber o mundo "ex analogia universi", não ((ex
"é a disposição mental inata (ingenium) através da analogia hominis". 1
qual a natureza governa a arte". É "um talento para Tomada em conjunto, a cultura humana pode ser
produzir aquilo para o que não se podem dar regras descrita como o processo da autolibertação progressi-
definidas; não é uma simples aptidão para o que pode va do homem. A linguagem, a arte, a religião, a ciên-
ser aprendido por meio de regras. Daí que a origina- cia são várias fases deste processo. Em todas elas o
lidade deva ser sua primeira propriedade". Esta for- homem descobre e prova um novo poder - o de edifi-
ma de originalidade é a prerrogativa e a distinção da car um mundo próprio, um mundo "ideal". A filosofia
arte; não pode estender-se a outros campos da ativi- não pode renunciar à sua busca de uma unidade fun-
dade humana. "Por intermédio do gênio, a natureza damental neste mundo ideal. Mas não confunde a
não dita regras à ciência, mas à arte; e isto apenas na unidade com a simplicidade. Não ignora as tensões
medida em que ela deva ser uma bela arte." Podemos e atritos, os vigorosos contrastes e os profundos con-
falar de Newt~n como de um gênio científico; mas, flitos entre as várias forças do homem. Estas não po-
neste caso, porem, falaremos apenas metaforicamente. dem ser reduzidas a um denominador comum. Ten-
"Assim poderemos aprender de pronto tudo o que dem para direções diferentes e obedecem a princípios
Ne~ton ~xpôs em sua obra imortal sobre os princípios diferentes. Mas a multiplicidade e a disparidade não
da f:l~sofla natural, por maior que fosse a cabeça ne- denotam discórdia ou desarmonia. Todas as funções
cessaria para descobri-lo: mas não poderemos apren- se completam e complementam. Cada qual rasga um
de~ a escrever ~oesia vigorosa, por mais expressos que novo horizonte e nos mostra um novo aspecto da hu-
sejam os preceitos da arte e mais excelentes os seus manidade. O dissonante está em harmonia consigo
modelos." 1 mesmo; os contrários não se excluem, mutuamente,
A relação entre a subjetividade e a objetividade mas são interdependentes: "a harmonia na contrarie-
a individualidade e a universalidade não é realmente dade, como no caso do arco e a lira".
a mesma na obra de arte e na do cientista. É verda-
de que um grande descobrimento científico também
traz a marca do espírito de seu autor. Nele encontra-
mos não só um novo aspecto objetivo das coisas mas
também uma atitude individual do espírito e até um
estilo pessoal. Mas tudo isto tem apenas importância
psicológica, não sistemática. No conteúdo objetivo da
ciê.ncia estes traços individuais se esquecem e apagam,
pOISum dos escopos principais do pensamento cien-

. ~. Kant, Crítica do Julgamento, seçs. 46, 47. Traduzido para o


mgles por J. H. Bernard (Londres, Macrnillan, 1892),pp. 188.190. 1. Cf. Bacon, Novum Organum, Liber I, Aphor. XLI.
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versity Press, 1929. bém Ceticismo Macacos
Agostinho, 27-8, 91, 285 Antropologia cristã, 26-32; em-
Ahura-Mazda, 161 pírica, ver Etnologia; filo-
Alegoria, arte como, 220; in- sófica, 19-20, 37; grega, 19-
terpretação alegórica da, -25; primitiva, 18 .
ver Mito Antropomorfismo, 147, 159-60;
d'Alembert, 38 e história, 301, e linguagem,
Álgebra, origem histórica da, 58
83; simbólica, 83 Apresentação, e representa-
Analogias, na linguagem, 353 ção, 81
Anatomia, comparada, 48, 112 Ariosto, 355
Anaxágoras, 147 Aristófanes, 238, 239
Angra Mainyu, 163 Aristóteles: biologia, 40, 194,
Animais (ver também Maca- 339; ética, 253; física, 330;
cos): associação de idéias, lógica, 202, 325; metafísica,
61; emoções, 56-7; estados, 40, 178; poética, 221, 222-3,
349; expressão de emoções, 228, 235-6, 246; política, 349;
184; gestos, 57; imaginação, psicologia, 16-7, 40
62; instintos, 93, 113-4, 349- Aritmética, 102; "arítmetíza-
-50; inteligência, 61-2; jogo, ção" da matemática, 343
262; linguagem, 55-60, 185; Arquimedes, 326
memória, 89; mundo inte- Arte, 219-69 (ver também Be-
rior e exterior, 47-9; proces- leza, Estética, Poética); ca-
sos simbólicos, 55, 59; rea- tegorias da arte, 118; e ciên-
ções, 49, 53-62; reações ani- cia, 228-9, 265-7
369
Antropologia Filosófica
368 Ernst Cassirer
dor", 328; na história natu-
Estrutura: arte e lin- BABILÔNICA, cultura: álgebra, Breitinger, 242 ral, 328-9; na linguagem,
Bridgman, Laura, 63·9, 99 n.,
guagem, 220-1, 265; e lógica, 83; astrologia, 330; astrono- 327-8; no mito, 327
219-20; e mito, ver Mito, mia, 81-4; matemática, 82-3; 209 Cleópatra, 286
Brandal, 198, 203-4 Codrington, R. H., 155-6
Poética; e moralídade, 220, origem da, 81-2; teoria pan- Brugmann, K., 190
265-6; e natureza, 222-3, 240- -babilônica, 82 Coletivas representações, 132.
Bruno, Giordano, 35·6, 166 Ver também Primitiva,
-1; e vida, 261-4 Bach, J. S., 232 Buckle, 309, 314 mentalidade
Experiência estética: Bacon, F., 124, 251, 357 Burckhardt, J., 273, 318, 322
231-41; elementos da: con- Balzac, 249, 323 Collingwood, R. G., 286
templação, 231-7, 256-7; emo- Bantu, linguagem. Ver Lin- Comte, August, 110-1
ção, 233-9; expressão, 225-33; guagem CAMPANELLA, 166 Conhecimento, caráter do
imaginação, 241-51; imita- Batteux, 223 Cardano, 166 conhecimento humano, 97-9,
ção, 220-1; imitação e ins- Baumgarten, A., 220 Carnap, 203 teoria do, 180. Ver tam-
piração, 355-6; intuição, 226- Beethoven, L., 232, 238, 315 Cartesianismo. Ver Descartes bém Autoconhecimento
-32; reflexão, 263 Beleza (ver também Arte e Casualidade (acaso), 41, so- Consangüinidade, solidarieda-
Psicologia da arte: arte Estética), estética e orgã- luções, 62; variações, ver de, entre homens e deuses,
e hipnose, 256; e intoxica- . níca, 240-1; beleza "fácil", Acidentais, variações 142
ção, 258; jogo, ver Estética; 239, 261; e liberdade, 262-3; Catarse, 235-9 Consciência, de si, 21 (ver
prazer, 251-4; e sonho, 255-8 e número, 331; psicologia Categorias, da arte, ver. Arte; também Autoconhecimen-
Artes: arquitetura, 245-6; es- da, ver Arte; e verdade, categorias estrutur81s ~a to); história, 273, 283; uni-
cultura, 229, 246, 267; ex- 222-3 cultura humana, 118-20, sm- dade de, 327
pressiva, 226-7, 232-3; mú- Definições de : metafísi- táticas, 203 Continuum, matemático, 334-5
sica, 221, 232-3, 238-9; pin- ca: representação simbóli- Catão, 311 . Contradição, lei da, 29-30, 132-
tura, 221, 229, 232-3, 246; ca do infinito, 248; psicoló- Causalidade, histórica, ~03; leI -3; na natureza humana,
poesia, ver Poética; repre- gica: "forma interior", 257, da, 343. Ver tambem De- 26-32
sentativa, 221, 227, 233 ."forma viva", 241, Hume, terminismo Corneille, 246
239-40, prazer objetificado, Cervantes, 233, 239, 323 Cosmogonia, cosmologia: gre-
Asha, 162, 163
Associação de idéias, 61, 64, 252-3; unidade no múltiplo, César, 286 . ga, 19-20; idéia de ordem
228 Ceticismo, 34; e humamsmo, cósmica, 79-80; mítíca, 152-3;
113, 154
Astrologia, babilônica, 84-5; Benfey, 187 15 primitiva, 84-5; sistema co-
Bergson, H., 90, 143-5, 164, Chineses, culto aos antepas- pernicano, 33-6. .•
na cultura da Renascença, sados, ver Religião; língua,
255-7 Criança, psícología : conscien-
85, 327
Berkeley, 78-9 ver Linguagem cia do futuro, 99; fala, 60·9,
Atomismo: estrutura atômi- Bernoulli, 38 Cícero, 286 116-7, 208, 211-2, 352-3; gri-
ca, 336-7; grego, ver Demõ- Biologia (ver também Darwi- Ciência, 207-345; arte e,. 355-?; tos 176; jogo, 259-62; me-
crito; modelos de átomos, nísmo, Evolução, Psícobiolo- filosofia da, 325-6; histÓ~la mó'ria 92' possibilidade e
336-7; moderno, 337; núme- gia), cultura e, 349-52; dedu- da, 327-342 (da astronomia, realid~de,' 57; qualidades
ro atômico, 339 ção na, 339; influência na matemática etc., ver Astro- afetivas, 129; simbolismo,
Australianas, tribos, 136, 138 linguagem, 184-5; matemáti- nomia Matemática etc.): 60-9
Autoconhecimento, crises no, ca e, 36-7 linguagem e, 330; métodos, Croce, B., 225-6, 240, 226, 282
15-46; história filosófica do: História: Arístóteles, 339; indutivo e dedutivo, 339;
estoícísmo, 23-6, Heráclito, Cultura, fenomenologia ~a,
Darwin, ver Darwinismo; mito e, 125-9; objetificação 90-1; homem e, 103-345; sim-
19, Montaigne, 15, Pascal, Líneu, 329; Teofrasto, 339; na, 325-6, 321-2; origem da, bolismo e, 47-51, 64-74 (ver
29-30, Platão, 22, 109, Sócra- UexküIl, 47-9 325-6, 327; padrão de ver- também Simbolismo); um-
tes, 19-20; na história, 300-1, Bloomfield, L., 191 dade, 327; processos de. clas- dade funcional da, 119, 347-
319; na poesia, 322-3; na re- Boecklin, A., 315 sificação, 328-9, terrmnolo- -57' visão histórica e estru-
ligião, 18-19, 90-1. Ver tam- "Bode expíatõrío", 169 gia científica, 330 tu;al da cultura humana,
bém Psicologia (íntrospec- Bodmer, 242 Ciências. Ver Álgebra, Arit- 115-20
ção) Bohr, H. N., 337 mética, Astronomia, Biolo-
AutoIiberação, cultura como, Boileau, 242 gia, Botânica, Física, Geo-
357 Bolyai, 103 metria, História Natural, DALTON, 319,
Automatismo, 113; na vida Bopp, F., 190 IJante, 222. 238, 246, 253, 355
primitiva, 147 Botânica, sistema natural e ótica Darwin 39-41, 112, 184, 260,
Classicismo. Ver Estética 329. 'Ver também Darwi-
Autonomia, da arte, 219; da artificial na, 329 Classificação, das artes,. "!ler
história, 304; da razão, 40; Bowman, A. A., 123 n Arte; "instinto classlflca- nismo, Evolução
da vida, 47 Breasted, J. H., 138-9
370 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 371

Darwinísmo, 39-41, 59, 194; in- (ver também' Irüinituâe); religiosa, ver Religião; sen- Frazer, Sir James, 126, 136-7,
fluência nas ciências cul- mágico e mítíco, 85-6; orien- sorial, ver Percepção 149, 151-2, 166
turais, 42; na Iínguístíca, tação espacial, nos animais, Expressão, das emoções, no Frege, 333
184. Ver também Evolução 75-6; percepção do espaço, homem e animal, 184-5, na Freud, S., 44, 125. Ver tam-
Dedekind, 212 77-8; representação do, 81-2; arte, ver Arte bém Psicanálise
Definição do homem. Ver Ho- simbólico, 77-8; universali- Ezequiel, 95 Fustel de Coulanges, 140
mem, dade do, 80 Futuro, 91-5; ético, 95; ideal
Delbrlick, 73, 190 Espaço e tempo, 75-94; esté- (simbólico), 93-5; idéia teo-
Demócrito, 183, 184, 336-7 FABRE, J., 93 rética do, 94; senso do fu-
tica (unidade de espaço e Fala, definição, 56-7, 191-2;
Descartes, dúvida universal, tempo), 191-2; no pensa- turo em animais, 94, em cri-
37; física, 336-7; geometria
desenvolvimento, 187-8 (ver anças, ver Criança, psico-
mento histórico, 316-7; no também Criança, psicolo-
analítica, 86; influência do pensamento mítíco, 75-6 logia
cartesianismo, 28-9, 32-3, 61; gia); função geral, 6~-7,
Espectral, análise, 337-8 184-5; patologia, ver Afasl,a;
maihesis universalis, 86, Espinosa, 36-7 GALILEU, 367, 101, 105, 299, 345
336; teoria do conhecimen-
tabus, 171-2. Ver também
Estatística, 310; moral, 308-9; Linguagem Gardiner, A. H., 188, 322
to, 16, 278 na história, 308-9,316-7,322-3 Gauss, K., 39, 102, 343
Determinismo, e. indetermi- Família, 158-9. Ver também
Estética, 219-69 (ver também Antepassados, culto aos Geisteswissenschaften, 304-5_
nísmo, na física moderna, Arte, Beleza, Poética); expe- Ver também, morais, ciên-
343, histórico Faraday, M. 194
riência, ver Arte Fatos, científicos, 101-2;. fí- cias
Deus, deuses. Ver Religião História da: Aristóteles, Gelb, A., 73
Dewey, John, 114-5 sicos e históricos, 275-6,
220-1, 222, 228, 246; Baum- 288-9, 290, 305-6; ideais e, Gênio, definição de Kant do,
Dialética, hegeliana, 297; so- garten, 220; Croce, 225-6, 356; teoria estética do, 355-7
crãtíca, 21 97-105; teorias e, 275-6
240; classicismo francês, Fechner, G. Th., 39 Geometria, analítica, 86, 336;
Dickens, Charles, 239, 323 223, 242, 254; Kant, 219, 232; Ferrero, G., 287 esprit géometrique, 29-30;
Dilthey, W., 22, 304 Pla.tão, 233-8; platonísmo, Feuerbach, A., 315 não euclídíana, 102, 342; pí-
Dinâmica, 101 257; romantismo, 242-4; Fichte, J. G., 247 tagórico, 334_ Ver também
Distinção de razão, 71 Shaftesbury, 256-7; Schiller, Fícino, Marsílío, 285 Matemática, Espaço
Dostoievski, 233, 323 244; Suíça, escola, 242 Fídías, 159 Gesto, e fala, 57·
Dürer, A., 240 Teoria da arte: hedonis- Filosofia: da arte, ver Esté- Gíllen, F. J., 136, 138
Dürkheim, E., 131 mo, 251-4; jogo, 258-64; me- tica; da ciência, ver Mate- Goethe, 90, 104, 212, 224, 233,
tafísica, 246-51; naturalis- mática, Ciência; da cultura, 238, 249, 250, 264, 281, 296,
EGÍPCIOS,138-9; matemática, mo, 231-2, 249-50; teoria do 115-8; das formas simbóli- 307, 320, 355
gênio, 35{i cas, 115-6; da história, ver Gogol, N_, 323
82-3
Einstein, A., 342, 345 Estímulo, representativo, 55, História; da linguagem, ver Goldstein, K., 73, 99, 100
Eleática, escola, 19-20, 178-80, 59-60 Linguagem; moral, ver Éti- Graça, e natureza, 28, 30-2
271-2. Ver também Parmê- Estoicismo, 23-6, 123-4, 153, ca; da religião, ver l.teligião Gramática: filosofia da, 203;
nides 165 Final, causa. Ver Teleologia grammaire générale et rai-
Elementos, químicos, 339. Ver Ética, 30, 37, 95, 102-3, 144; Física, 193-4, 326-7, 336-7, 340-1; sonneé, 202; grega, história
também Química e religião, ver Religião campo da, 193-4; clássica, da, 196; influência da gra-
Eletromagnético, campo, 192 Etimologia, científica, 181; 193-4 mática latina sobre, 202; ló-
Emoções, arte e, ver Arte; uso não crítico da, 181 Fisiognomônica, experiência, gica e 201; parte do siste-
linguagem emocional, ver Etnologia, 80, 124, 131, 147 127-8 ma-de-fala, 196-9; sânscrita,
Linguagem Euler, L., 38 Flaubert, G., 249, 323 196
Empédocles, 226-7 Eurípedes, 147, 233, 257-8, 297, Flogístico, 338 Comparativa: línguas ban-
Empirismo, e natívísmo, 76-7 321, 323 tu, 205; línguas gerrnãnícas,
Fonemas, fonética. Ver Lin- 190, 196; indoeuropéia, 191,
Epicuro, 183 Evolução, criativa, 164; e esta- guística
Epicteto, 31, 50-1. Ver tam- bilização, na cultura huma- 196; indonesiana e melane-
Forma, filosofia das formas siana, 191-2
bém Estoicismo na, 350-1; teoria da, 39-40, simbólicas, 115-20 (ver tam-
Espaço, abstrato, 77-8; astro- 59-60; 112-3, 184-5, 193-4, bém Simbolismo); "forma Grega, filosofia, 18-22, 35-6,
lógico e astronômico, 84-5; 194-5, 328-9. Ver também viva", 241, 261 (ver também 78-9, 153, 163-4, 178-9, 325-6,
de ação, 77-8; fisionômico, Darwinismo Beleza); matéria e, 325-6; 327, 331-2. Ver também in-
79-80; geométrico, ver Geo- Experiência, tipos de: cientí- na arte, 225-31, 234-5, 235-6, dividualmente: Aristóteles,
metria; homogeneidade do, fica, ver Ciência; estética, 244-5, 253-4, 256-7, 259-60, Heráclito, Platão etc.
79-80; infinitude do, 32-3 ver Arte; mítica, ver Mito; 267-8 Grimm, Jakob, 190, 197
372 Ernst Cassirer 373
Antropologia Filosófica

Groethuysen, B., 22 Imitação, na arte. Ver Es- bém Criança, psicologia; Es-
ter dos fatos históricos
De Groot, J. J. M., 140 275-6, 306; fatos "ex:
289, tética tética
p!essivos", 308, 316; objeti- Imortalidade, 138-41, 290 Judaísmo. Ver Religião
HAMILTON, W., 343 vídade do conhecimento Incomensurabilidade, proble-
Hammer-Purgstall, 214 ~stórico, 296-.303; traços tí- ma da, 332-4 KANT,estética, 126, 219, 230,
Harmonia, 334, 345 pICOS da história 272-3· Indeterminismo, na física mo- 232, 356; ética, 103-4, 252,
Hedonismo, estético, 252-4; "unicidade" da história' derna. Ver Determinis~o 285, 304, 326; filosofia da
ético, 251-2 293-4, "universalidade", 293-4 Indianas, línguas. Ver Lm- religião, 51; filosofia teoré-
Hegel, G. W., 250, 281, 297-8 Métodos do conhecimen- guagem tíca, hipótese nebular, 279;
Heisenberg, 343 to histórico: crítico, 302· tribos, 135-6, 140-1, 154-5, 86, 97-9, 193, 229-30, 272-3
Helmholtz, H. V., 77, 344, 345 estatístico, 309; pragmáti: 214-5 Keller, Helen, 63-5, 208-9
Heráclito, 75, 87, .147, 178-9, co, 302, 307; redução a ti- Individualidade, e sociedade, Kepler, J., 85
182, 230, 272, 283, 348 pos psícolõgícos, 312-5 146-7, 155-6, 158-60, 164-5, Kierkegaard, S., 122
Herbart, 39 Valor da, 283-4; como au- 313-4, 349-50 Klinger, M., 315
Herder, 71-3, 273, 281 tcconheoímento, 110-1; con- Inércia, lei da, 101-2; da ma- Koehler, W., 57, 62, 69-70, 350
Hereditariedade, 87-8 cepçao ética da, 298 téria, 145-6 Kohts, Nadie, 71
Hering, E., 87 Hjelmstev, 203. Infinitesimal, cálculo, 37
Infinito infinitude : Apeiron
Hermenêutica, 306 HOlderlin, 233 (Platão), 333; como objeto LAGRANGE, 193
Heródoto, 159 Homem: e natureza, 161-2 da arte, 248; conceito mo- Laguna, Grace de, 187-8
Hesíodo, 147, 159 Definição de: animal ra- derno de, 32-3, 35-6, 36-7; Lamprecht, K., 312-6
Hildebrand, A., 245 tionale, 21-6, 50-1; animal Laplace, 343
Hipnose, arte e, 256 concepção religiosa do, 156
social, 349-50; animal sym- Instintos, animais, 93, 113-4, Lavoisier, 338
Hipóteses, fatos e, 97-105· na bolicum, 50-1; como ser 165,. 349; classificação dos, Leibniz, 87, 206, 283, 340
ética, 104· ' histórico, 271-2; em termos Leonardo da Vinci, 229, 235
113-4; inteligência e, 113-4
História, 271-323 de cultura humana, 109-20; Intelecto, divino, 97-8 . Leopardi, 232
Consciência. histórica: de- estética (jogo), 260-1; fun- Inteligência, animal, ver Ani- Lessíng, 355
senvolvimento da, 273-4; cional, 116-7 mais, definição de, 61; hu- Lévy-Bruhl, 132
"senso histórico", 280-4 Problema do: na filosofia mana, 112 Liberdade, e causalidade, 303-
Estrutura da: ciência na- cristã, 25-33; na filosofia. Interjeições, 56-7, 183, 185-6, -4; estética, 235-9, 260-6; ideal
tural e, 278-9, 293; filosofia, grega: Sócrates, 21-2; sofis- estóico da, 23-6; ideal reli-
226-7
282-4; história e mito, ver tas, 181-2; na filosofia estõí- Interpretação, na arte, 226-7, gioso da, 161-3; vontade li-
Mito; natureza e, 271-4; poe- ca, 22-6; na filosofia moder- 232-3, histórica, ver Histó- vre, Ver Determinismo
sia e, 320-3 na, 32-46 Lieber, F., 68
ria Linguagem, 175-217 (ver tam-
Filosofia da, 282-3; deter- Homer, 147, 159 Introspecção, 90-1. Ver tam-
minismo histórico, 303-4; bém Psicologia, Autoco- bém Gramática, Linguística,
Horácio, 92, 221, 354 Fala); como "forma simbó-
materialismo econômico, Humanidade, ideal de, 72-3, nhecimento
311-3; naturalismo, 315 Intuição, na arte, 225-6, 232-3; lica", 50-1; função da, 188-92;
110-1, 116-7, 118, 119-20
Função geral da : inter- conceitos e intuições, 97-8; linguagem animal, ver Ani-
Hume, 71, 194, 239 mais; mito e, 175-6, 183; ob-
pretação de símbolos (mo- na metafísica, 255-6; religio-
numentos e documentos), sa, 164-5 jetificação na, 187-8; poesia
277-93, 303-5; reconstrução IBSEN,H., 90-1 Irracionais, números. Ver e, 355; realidade e, 178
simbólica, 275-6, 281, 291-2, Ideais, éticos, 103; experiên- Número, Incomensurabili- Filosofia da: Estrutura:
306; recordação na, 291, 321 cia e, 104; fatos e, 97-105; dade "forma interna", 200-1, 205-6;
Historiografia, desenvol- idéias e impressões, 64-5; Irracionalismo, 50-I, 121-2; linguagem emocional e pro-
vimento da: Burckhardt, J., mundo ideal, 74 romântico, 255-6 porcional, 51, 56-7, 57-8,
273, 299, 318; Burckle, 309- Idealismo, ético, 103; teoréti- Isaias, 95 184-5; linguagem e razão,
-10; Herder, 281; historia- co, 179 50-1. Gregos, 178-82; Hurn-
dores políticos (Treítschke), Ideologistas, franceses, 110 JACKSON, 57 boldt, 191-3. Psicologia da,
296; Lamprecht, 312-7; Ma- Iluminismo, 105, 302 . Jacobson, R., 198 Ver Criança, psicologia. Psi-
caulay, 308; Mommsen, 287, Imaginação, 90-1; estética, ver James, William, 114 copatologia da, ver Afasia
292, 319; Niebuhr, 302; Ran- Arte; ética, 104; histórica, Jeremias, 95 Origem da, 53-4; explica-
ke, 275-6, 281, 295-9; Taine, 319-20; no jogo, 260; produ- Jespersen, O., 186, 203, 328 ção mítíca, 188-9; gritos ani-
302-7; Tucídides, 320 tiva, 247; teoria romântica Jevons, F. B., 167 mais (teoria ínterjeícional).
Lógica da história: carã- da, 247 Jogo, e arte, 258-60. Ver tam- 183; imitação de sons (teo-
374 375
Ernst Cassirer Antropologia Filosófica

ria onomatopéica), 180, raí- imaginários, 102, integrais,


ge.bra, Aritmética, Geome- Morais, ciências, 303. Ver
,~zes monos,silábicas, 204 333, irracionais, 102, 333,
tría) : concepção mítica da também Geisteswissenschatt
Linguagens: . americana 191 84-5 (ver também PitagÓri~ Moral, filosofia. Ver Ética negativos, 102-3; ciência na-
215; bantu, 205; chÍnesa: cos); história da, 82-3, 102-3, Morison, S. E., 286 tural, 230; conceito moder-
199-200, 204; indo-européia 272-3, 340-1; mathesis uni- Morris, Charles, 60 no de, 333; como sistema de
191, 202; indonesiana, 192; versalis, 86, 336. Filosofia Morte: culto aos mortos, 138; símbolos, 332; e método
melanesiana, 192; "primiti- da, 336; como linguagem mitos da origem da, 137-8; científico, 229-30
va", 205; tipos (aglutinação sim_bólica, 340-1; orgulho da no pensamento primitivo, Teoria filosófica do: rea-
flexão, isolamento), 204 ' razao humana, 229-30 137. Ver também Imorta- lidade e, 129 (ver também
Lingüística (ver também Lin- Matéria, e forma, 325-6 lidade Pítagóricos): verdade e,
guagem, Gramática): etí- ~aupertuis, 38 Mor e, Thomas, 104 331-2; objetividade do, 341-2;
mología, 181; gramática Maxwell, 194, 345 Mozart, 238 teoria platônica, 340-1; uni-
comparativa, ver Gramática Medicina, história da 337-8 Mudança, fonética e semân- versalidade do, 329-30
Desenvolvimento históri- Meillet, A., 205 ' tica. Ver Linguagem
co: J. Grimm, 197; neogra- ~emória, nos animais ver Müller, F. Max, 175 OBJETIFICAÇÃO: na arte, 226-7,
mãtícos, 197, 199; Trubetz. Animais; simbólica (r~em6- Murray, Gilbert, 147-8 232-3, 240-1, 253-4, na ciên-
koy (escola de Praga), 197- na e recordação) 87-92'. Música, 321, 334-5. Ver tam- cia, 253-4, 325-6, 321-2; na
-8; W. von Humboldt,192-3 teoria biOlÓgica, ver' ~nem~ bém Arte linguagem, 187-8
Fonética (fonologia): ro- Menander, 277 Mutação, 59 Obrigação, religiosa, 170-4; so-
nemas, definição, 199-200' ~endelssohn, Moses, 285 cial, 167-74. Ver também
leis fonéticas, 196-7; mudan: Mental, visão, nos animais Tabu
62 ' NÃO-EUCLIDIANA, geometria. Ogden, C. K., 179
ça fonética, 188-9, 196-200 Ver Geometria
351-2; padrões fonéticos, 20Ó ~etafísicas, 29-30, 35-7, 53-4, Onomatopéica, teoria. Ver
90-1, 145-6 Nativismo, 77 Linguagem
Linnaeus, 329
~etáforas, 175 Naturalismo, na arte, ver Orenda, 154
Lobatschevski, 102 Orgânica, beleza. Ver Beleza
Lógica, 29-30, 132-3; da histó- Meyer, Eduard, 307 Arte; na filosofia cultural,
Míguel Angelo, 232 112 Organismo, 48-9, 75-6, 86-7.
ria, 227-8; da imaginação, Ver também Biologia, Vida
219-20, 243-4; gramaticae Míll, John Stuart, 201 Natureza arte e, 222-3; ciên-
~ilton, 242, Originalidade, e tradição,
200-1;simb6lica, 206 ' cia natt'.tral, ver Química, Fí-
~ito: arte e, 125-6; ciência e, 353-4
Logos, 178, 182, 201 sica; concepção religiosa
125-6, 129-30, 327; classifica- Original, pecado, 31-2
Lucrécio, 183 da 161-3 (natureza e graça,
ção no, 327; espaço e tem- Ortega y Gasset, 263, 271-2
ve~ Graça); história natu-
po, 76; estrutura do, con- ótica, fisiológica, 76-7
ral 278-9, 328-9, 338-9 (ver
MACACOS, 58-60, 69-70, 350 ceptual e perceptual, 127-30, ta~bém Biologia); socie-
~acrocosmo e microcosmo, 135-6; lunar, mitos solares, dade e, 176-7 (estado de na-
180-1, 337-8 PANINI, 196
ver Mitología; e, poesia 125- tureza, 104) Pantominas. Ver Gesto
Magía ; branca e negra, 166; -6; religião e, 121-74; ritual Neogramáticos, 197, 199 Paracelso, 166
como pseudociência, 126, e, 131-2 Neoplatonismo, 27 Parmênides, 179. Ver tam-
. 151-3; írnítatíva e simpáti- Interpretação do: alegó- Newton, 78, 345, 356 bém Eleática, escola
c~, 153; palavra mágica, 177; rica, como "forma simbó- Nietzsche, 44, 257, 283 Parte-do-sistema-de. fala. Ver
ntos mágicos, 154; religião lica", 50-1; sociológica, 131-7 Nomes, 62-6; científicos, ~29- Gramática
e, 141-2, 149-50, 161-2, 166-7, ~isticismo, 164-5; participa- -30; coisas e, 211-2; conceitos Participação, mística, 131-2
170-1; teorias da, 125-6, 132-3 e, 214-5; de deuses, 67-8; fun-
166-7 ' ção mística, 131-2; razão e Pascal, B., 28-32, 121, 288
133 ' ção geral dos, 209-10, 212-3; Paul, Hermann, 190, 353
~alinowski, B., 125, 147, 150, ~itologia, comparativa 122-3' interjeições e, 184-8; origem Pavlov, 54, 67
154 linguagem e, 175-6;' lunar: dos 185-6; processo de no- Peano, 333
~allarmé, Stéphane, 227, 263 83, 124; metereolõgtca 125-6' mear, 328-9; próprios, 67-8 Percepção, 69-70, 325-6; mítíca,
Mana, 148, 154, 156, 161 solar, 83, 124 " Northrop, F. S. C., 339-40 127-30; sensorial e estética,
Manes, Di, 158 Mneme, 87; biologia mnêmí. 229-31, 240-1
Novalis, 248
~anitu, 154 ca, 87 Péricles, 320
Número( s): conceito estético
Maquíavel, 273 Periódico, sistema. Ver Quí-
Molíêre, 233, 239, 323 do (número e beleza), 321;
Marco Aurélio, 23-4, 31 mágico, 84-5 mica
Marx, K., 44
Mommssn, Th., 287, 292, 319
Montaígne, 15, 34, 35, 284 Ciência: conceito mate- Personificação, no mito e poe-
~atemática (ver também AI- Montesquísu, 105, 316 mático : fracionários, 333, sia, 243-4

L
376 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 377

Pfungst, 59 Psicanálise, 125-6, 153. Ver Religiões: budismo, 19; chi- Seleção, natural, 41. Ver tam-
Pico della Mirandola, 166 também Freud nesa, 139-40; confucionismo, bém Darwinismo
Pitagóricos, 84, 102, 129, 325, Psícobiologta, 55-7, 62, 75-6. 19; cristã, 27-32, 173-4; Semântica, função da, 178,
330-3, 340-1 Ver também Animais, Bio- grega 147-8; judaísmo, 19, 199; e história, 306, 308; mu-
Planck, M., 276, 300, 345 logia 95, 167, 172, 173; primitiva, dança semântica, ver Sen-
Platão: amor, 290; astrono- Psicologia (ver também Psi- 131-2, 136-9, 152-3, 156, 168-9, tido
mia, 342; cronologia dos cobíología, Psicopatologia) : 171-2, 351-2; romana, 140, Semon, R., 87
diálogos, 316-8; espaço, 78-9; animal, ver Animais; da 157-8; serníta, 141, 169, 173; Sensacionalismo, 65-6, 69, 78,
finito e infinito, 35-6, 332-3; cultura, ver Arte, Lingua- zoroastrismo, 161-2, 170, 173 89, 112-4
imcrtalidade, 138-9; ínter- gem, Mito, Religião; infan- Rembrandt, 91 Sensorial, percepção, 64, 268·
pretações de sua filosofia, til, ver Criança Ver também Percepção
Renascença, 26, 166, 273, 325,
284-5; linguagem, 179-80, 181- Métodos: behaviorismo, Sentido: e estética, sentido
338 do jogo, 261-2; e ser, 98-9;
-2; números ideais, 340-1 15, 16, 17, 47-8; da memó-
Poesia: e autoconhecimento, Representação, 81 na história, 276-7, 291, 311.
ria, 87-9; da percepção, ver Respostas, humanas, 53-4
90-1; e filosofia (poesia Percepção; da percepção Linguística : "área do sen-
"transcendental"), 247-8; e Responsabilidade, 21-2, 163; tido", 322; dos mitos, 122-4;
do espaço, 77-8; Gestalt, 38;
história, 228, 319-23; e mi- introspecção, 15-6, 208 (ver coletiva, 169 dos sons, 199-200 (ver tam-
to. ver Mito; e verdade, 90· também Autoconhecimen- Retórica, 182-3 bém Linguagem: tonemas):
-1; origem da, 243-4 to) Révész, G., 55 mudança de, 353-4. "Sentido
Gêneros: comédia,. 233, Psicopatologia, da fala. Ver Richards, I. A., 179 n., 263-4 do sentido", 179
238, 239; drama, 226-7, 234-5, Afasia Richter, L., 231 Shakespeare, 233-5, 237, 243,
242, 258; lírico, 224, 227, 245, Rickert, H., 293 n., 307 246-7, 323, 355
263; tragédia (ver também Riemann, B., 39, 342 Shelley, 233
Catarse), 232-3, 237-8, 246-7, RANKE, L. v., 275, 281, 295-302 Simbolismo, e cultura huma-
Rask, R. K., 196 Rito, anterior ao dogma, 131;
258-9 culto aos mortos, 138-9; pu- na, 49-50; espaço simbólico,
Poética (ver também Estéti- Reconhecimento, 72, 88 77; ético, 103-4; na arte, ver
Recordação, 89-90, 321 rificação, 169-70; ritos fune-
ca), história: Aristóteles, rários, 142-3; ritual, 133, 154 Arte; imaginação simbólica
220, 246; Boileau, 242; elas- Reencarnação, 137 e inteligência, 62; na fala,
Reflexos, condicionados, 60 Robertson-Smith, W., 141, 169
sicismo francês, 246; Horá- 322 (vet também Lingua-
cio, 221, 354; romantismo, Relações, e número, 334-5; e Romanos, 157-8; filosofia, 23-~;
lei, 293; religião, ver Reli- gem), na física, 101; na his-
247; Suíça (Bodmer, Brei- pensamento simbólico, 69- tória, 275-6; na matemática,
tinger ), 242 -70; sentido abstrato das, gião 84, 330-4, 340-1; pensamento
Poíncaré, H., 39 69-70 Romanticismo, 204, 242, 247, simbólico, caráter do, 62-71;
Pomponazzi, 166 Relatividade, teoria geral da 254-5 símbolos e sinais, 59-60, 66;
Porta, Giambattista, 166 342 Rousseau, J. J., 50, 104, 183, universalidade do simbolis-
Pos, H. F., 198 Religião, 121-74: e ética, 166-7; 224, 262 mo, 65-7; variabilidade do,
Possibilidade, e realidade, 97- e magia, 142; e mitologia, Russel, B., 333 67
-105 18; e razão, 31, 51, 121-2; Simônides, 221
Pott, 190 estática e dinâmica, 143-4, Simpatia, magia simpática,
Prazer. Ver Hedonismo 165-6, 352-2; origem da, 139- SÂNSCRITO, descoberta moder- ver Magia; sentido ético e
Pré-anímísmo, 156 -41, 147-8; razão e revelação, na do, 196, gramática (Pa- religioso, 163-1; sentido mí-
Pré-lõgíco, pensamento, 132 31-2
níní ), 196 tico (simpatia do Todo),
Primitiva, mentalidade, 98-9, Formas de culto: culto Santayana, 252 153-4; (ver também Solida-
131-2, 133, 136, 350-1; espa- aos antepassados, 136, 139, Sapir, E., 200 n., 208 n. riedade de vida)
ço na, 79-80. Linguagem China, 139-40, Grécia e Ro- Saussure, F. de, 195 Sinais, e símbolos, 59-61
primitiva, ver Linguagem. ma, 140, 157-60; culto ao Scheler, Max, 45 Sociedade, animal, ver Ani-
Religião primitiva, ver Re- animais, 136-7, 147 (ver Schelling, 247, 250 mais; e individual, ver In-
ligião também Totemismo); culto Schiller, F., 244, 261-4, 297, dividualidade; humana, for-
Profetas, profetismo, 95, 164-5, às plantas, 136-7 299 ma específica da, 349; So-
166-7, 172, 173-4 Idéia de Deus, 97; deuses Schlegel, A. W., 204 ciedade de vida no pensa-
Proposicional, linguagem. Ver funcionais, 157, 160; deuses Schlegel, Friedrich, 197, 247, mento mítico, 137, 141, 177
Linguagem pessoais, 148, 160 248, 255, 281 Sociologia, ciências sociais,
Propriedade, origem da, 173 Origem psicológica do: Schleicher, A., 184, 190 109-11; 131-2; dinâmica so-
Protágoras, 182 medo, 141-2; sentimento de Schleiermacher, F., 149 cial, 110; física social, 112;
Providência, 33, 163 dependência, 27-8 SChopenhauer, 283 psicologia social, 313

,'~ ---",...
,

378 Ernst Cassirer

Sócrates, 19-20, 21-2, 284 Trubetzkoy, 197


Sofistas, 181-2
Solidariedade de vida, 135-42, UTOPIAS,104-5
163-4, 177 UexküIl, 47-8
Spencer, Sir B., 136
Spencer, Herbert, 139, 261 VERDADE, beleza e, ver Beleza;
Steinen, Karl v. d., 136, 215 e poesia, 90-1, padrão cien-
Stern, Clara, 210 n. tífico de, 327-8
Stern, William, 77, 92, 210 n. Vico, G., 183, 243, 273
Sterne, Laurence, 239, 323 Vitalismo, 47 íNDICE GERAL
Sugestão, e arte, 256 Voltaire, 105
Sullivan, Sra., 63
Swift, J., 105
WAKAN,154
TABU,167-8 Weierstrass, 39
Taine, H., 42-3, 133, 223 n., Werner, H., 79
302, 308, 315 Whitehead, 87
Winckelmann, 257 PREFÁCIO 9
Teleologia, Aristóteles, 40; ob-
jeções críticas, 40-1 Windelband, W., 293
Tempo, como ordem serial, Wolfe, J. B., 54-5, 93
88; histórico, ver História; WOlfflin, H., 118
Wordsworth, 225, 233, 244 PARTE I. QUE É O HOMEM?
mítico, ver Tradição; orgâ-
nico, 76, 86-7. Ver também
Espaço e tempo. XENÓFANES,147, 159 I. A Crise no Conhecimento do Homem So-
Thackeray, 323 Xenofonte, 284 bre Si Mesmo . 15
Thorndike, E. L., 61
Tolstoi, 233, 234 lI. Uma Chave Para a Natureza do Homem:
Tomás de Aquino, Sto., 28, 121 YERKES, R. M., 55, 58, 62 n. o Símbolo . 47
Totemismo, na religião dos 73 n. III. Das Reações Animais às Respostas Hu-
semítas, 141; tribos india- Young, Edward, 242
nas e' australianas, 136, 141- manas . 53
-2, 150. Ver também Ani- IV. O Mundo Humano do Espaço e d9 Tempo 75
mais, culto aos ZEUS, 148
Tradição, 147; e inovação, 350- Zeuxis, 222 V. Fatos e Ideais . 97
-4; no mito, 351 Zola, E., 231, 249
Treitschke, H. v., 296 Zoroastro, zoroastrísmo, 161-3
PARTE n. O HOMEM E A CULTURA
VI. Definição do Homem em Termos de Cul-
tura 109
VII . Mito e Religião 121
VIII. A Linguagem 175
dX. A Arte 219
X. A História 271
XI. A Ciência ,..... 325
XII. Sumário e Conclusão 347
BIBLIOGRAFIA 359
íNDICE ANALíTICO 367
ÍNDICE GERAL 379

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