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O Advogado e o Crime de Falso Testemunho

I – O Fim da Palavra
Dado que o fim da palavra é expressar a verdade, bem se
entende que a mentira passa por um dos defeitos mais reprováveis do
homem (1). E mais avulta essa falta (e pois se justifica a fulminem com
extremos de rigor), se estava a palavra empenhada sob formal
juramento. Há casos, com efeito, em que a contravenção da verdade,
sobre constituir quebra insigne do caráter e mácula moral intensa, cai
também debaixo da nota de infração penal: o crime de falso testemunho.
Tal é a repulsa que, por sua enormidade, mereceu desde todo o sempre
o falso testemunho, que o mesmo Deus quis significá-lo, assentando-o
na tábua que deu a Moisés. Dos dez preceitos que nelas constavam,
um em verdade era este: Não dirás falso testemunho contra o teu próximo (2).

II – O Falso Testemunho
Consoante a fórmula do art. 342 do Código Penal, cometerá este
crime a testemunha que fizer afirmação falsa, negar ou calar a verdade,
em processo (3). Réu de falso testemunho, portanto, não será só aquele
que mentir (ou afirmar inverdade), senão o que negar a verdade sabida
ou ocultá-la (4). A falsidade, nunca é demais encarecê-lo, há de recair
sobre fato juridicamente relevante (5); do contrário, visto não prejudica
a prova, será reputada inócua (6).
À violação do juramento, que as antigas legislações
denominavam perjúrio, sempre se cominaram castigos da última
severidade (7). Com o que se conformava a prudência do tempo, que
punha timbre em não tolerar se introduzisse no processo judicial
coisa alguma capaz de comprometer-lhe o intuito precípuo: a pesquisa
da verdade real.

III – O Advogado e o Falso Testemunho


Num mundo em que nada se mostra seguro (bem ao invés, até
as montanhas como que se abalam), não admira que ainda aos
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advogados firam cruéis desgraças, e entre estas a de serem processados


criminalmente por falso testemunho. O advogado, ninguém ignora
que é de seu particular ofício promover defesas, e juntamente
aconselhar quem o procure, o que pressupõe comunicação ou trato
pessoal não apenas com o cliente, mas também com terceiros que
intervenham em processo, máxime as testemunhas.
Tão para escrúpulos é esta matéria do relacionamento entre o
advogado e as testemunhas, que, tratando-se das que arrolou a defesa
do réu, convém não mais que ouvi-las previamente dos fatos sobre
que tenham de depor em Juízo, e recomendar-lhes falem só verdade;
pelo que respeita às indicadas pelo órgão da acusação, é de bom aviso
fuja delas o patrono do réu como da peste, se quiser manter sua altivez
e independência (necessárias no instante de reperguntá-las), e a paz de
espírito (8). Se o acusado, no entanto, por sua conta e risco, pretender
com elas encetar conversação, deixá-lo fazer, que sua condição de réu
bem houvera de sofrê-lo; nunca, porém, o advogado, em cujas mãos
não cabem armas desleais. Não lhe esqueçam estas graves palavras de
Eduardo Couture: O processo é a realização da Justiça, e nenhuma Justiça pode
apoiar-se na mentira (9).

IV – O Falso Testemunho e o Concurso de Pessoas


Tem este assunto suscitado pareceres encontrados no grêmio
dos penalistas. Querem alguns que, delito de mão própria (10), o falso
testemunho não pode ser cometido salvo pelas pessoas às quais a lei
expressamente se refere: testemunha, perito, tradutor e intérprete.
Para outros, firmes na regra do art. 29 do Código Penal, é possível em tal
crime a participação ou coautoria.
A primeira opinião — que enjeita a hipótese de codelinquência
nos crimes de falso testemunho — é, contudo, a que tem recebido
sufrágios mais numerosos, mostrando-se benemérita de acolhida.
Esforça-se, de feito, em argumento de solidez e boa lógica, inspirado
no art. 343 do Código Penal, que, segundo a lição do saudoso e diligente
Celso Delmanto, “pune quem suborna aquelas pessoas, não se concebendo que
acabe punido com iguais penas quem só pediu, sem subornar” (11).
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Os julgados que dizem em crédito desta doutrina são mais que


muitos. Anotaremos apenas dois, que vêm aqui de molde:
a) “É impossível a coautoria no delito de falso testemunho, dado o caráter
personalíssimo da infração, que só pode ser cometida por testemunha, perito ou
intérprete” (Rev. Tribs., vol. 655, p. 281);
b) “Firme corrente jurisprudencial tem entendido que o delito do art. 342 do
Código Penal de 1940 é de mão própria, somente podendo ser praticado pelo
autor da infração. Não admite a coautoria, a coparticipação através de instigação
ou orientação, nem mesmo por parte do advogado do acusado” (Rev. Tribs., vol.
601, p. 321).
A despeito de o termos versado muito em sombra, não se
afigura este ponto do falso testemunho de todo indigno da reflexão do
advogado, enquanto se dirija, para suas audiências, ao Fórum (cuja
estrada real é fama que o célebre Catão, por amor do caráter sagrado
da Justiça e por sua humildade, costumava percorrer descalço) (12).

Carlos Biasotti
Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

Notas

(1) Para Kant, “a mentira é a falta individual mais grave porque perverte o
fim natural da palavra” (Castro Nery, Filosofia, 1931, p. 99).
(2) Êx 20, 16.
(3) Deste crime também pode ser sujeito ativo o perito, o tradutor
ou o intérprete.
(4) Como quer que vem ao nosso propósito, cabe aqui alusão
àquelas três coisas que os persas haviam pelas mais
importantes: “montar a cavalo, atirar com o arco e dizer a verdade”
(Heródoto, História, 1950, p. 72; trad. Brito Broca).
(5) “Tanto a doutrina como a jurisprudência exigem o requisito da relevância
jurídica do fato para a configuração do delito de falso testemunho” (Rev.
Tribs., vol. 570, p. 284).
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(6) Cf. E. Magalhães Noronha, Direito Penal, 1968, vol. IV, p. 442.
(7) Rezavam textualmente as Ordenações Filipinas: “A pessoa que
testemunhar falso, em qualquer caso que seja, morra por isso morte
natural” (liv. V, tít. LIV). Pelo mesmo teor, o Código Criminal do
Império do Brasil, com respeito aos que jurassem falso em Juízo:
prescrevia, na hipótese de juramento prestado para a
condenação do réu em causa capital, a pena “de galés perpétuas no
grau máximo” (art. 169). A Lei das XII Tábuas assentara: “Se alguém
profere um falso testemunho, que seja precipitado da Rocha Tarpeia” (táb.
7a., inc. 16); apud Silvio Meira, A Lei das XII Tábuas, 2a. ed., p.
172). Ajuntou, ao propósito, Jayme de Altavila: “Eis a razão por
que os romanos, que puniam atrozmente o roubo, diziam que falsi testes
pejores sunt latronibus. As testemunhas falsas são piores que os ladrões”
(Origem dos Direitos dos Povos, 4a. ed., p. 80).
(8) Bem que não seja defeso ao advogado o contacto prévio com
testemunhas, todavia, como o advertiu o abalizado criminalista
Paulo Sérgio Leite Fernandes, “a atitude não é recomendável, pelos
problemas que traz” (Na Defesa das Prerrogativas do Advogado, vol. II,
p. 62).
(9) Apud Ruy A. Sodré, Ética Profissional e Estatuto do Advogado, 1977,
p. 112.
(10) “Crimes de mão própria ou de atuação pessoal são aqueles que só podem
ser cometidos pela própria pessoa” (Orlando Mara de Barros,
Dicionário de Classificação de Crimes, 2a. ed., p. 68).
(11) Código Penal Comentado, 5a. ed., p. 620.
(12) Cf. Jayme de Altavila, A Testemunha na História e no Direito, 1967,
p. 67).

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