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Sustentação Oral nos Tribunais

I – Eduardo Couture, numa obra de raro esplendor que escreveu para


os cultores do Direito (1), pôs em questão matéria de certa gravidade, e
foi esta: para que círculo do Inferno irão um dia os bacharéis que
comparecem à tribuna das câmaras julgadoras e aí sustentam suas
razões e recitam seus memoriais, não advertindo em que os
esclarecidos juízes que os ouvem conhecem bem o processo e, pois,
escusam o empenho oratório do patrono do réu?! Será muito de
temer, por certo, o fogo desse inferno; muito mais, no entanto,
houvera de confranger a alma do advogado o anátema com que o
pudesse fulminar um dia o constituinte, por não ter empregado em
seu prol algum dos meios de defesa que o Direito lhe assegura! E a
sustentação oral, por sem dúvida, não é o menos importante deles.
Tem curso desembaraçado, nos círculos forenses, o preceito de
que a Defesa não deve, pelo comum, usar da palavra em sede recursal.
A causa seria porque, uma vez conhecidas já as razões do recurso, fora
supérfluo reeditá-las oralmente perante aqueles que o vão julgar.
Demais, encarecendo seus argumentos na superior instância, como
que o réu deixava descobrir sua dúvida acerca da justiça dos
magistrados cuja benevolência invoca, e tal configuraria, se não
absurdo, decerto injúria gravíssima. O silêncio, a essa conta, não
valera menos do que a palavra!

II – A sustentação oral de recurso, a nosso aviso, nada tem de


superfetação ou despropósito: ao revés, sobre arguir clara ciência do
ofício, entende-se por documento de zelo profissional do advogado.
Por fim, toda a manifestação da Defesa é alento e coragem para a
inocência oprimida (2).
Mas, porque a sustentação oral colime seu fim precípuo, que é
argumentar para convencer (3), não haverá o advogado descurar das regras
que aproveitam geralmente aos discursos em suas partes principais: a
invenção, a disposição e a elocução (4).
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Conforme Caldas Aulete, é a invenção “a operação mental que sobre


um dado assunto o espírito produz” (5). Tal aptidão se adquire com os
conhecimentos, assim os de cunho geral como os especiais. Estes se
granjeiam com o ativo e aturado estudo das mais reputadas obras
acerca da matéria do debate.
Não só das leituras, também da conversação com os excelentes
modelos da tribuna judiciária formará o advogado seu cabedal de
ciência particular (6).
Escolhido o assunto e delimitado o raio da controvérsia, entrará
o orador a ordenar seu discurso, catando observância à disposição
clássica: exórdio, narração, confirmação e peroração (7). No exórdio,
buscará conciliar a benevolência dos juízes, que “não se contentam com
ser instruídos na causa, querem também ser deleitados” (8). Em seguida lhes
exporá o orador os fatos, narrando-lhos com precisão e fidelidade; ao
depois, na confirmação, levará o fito em persuadi-los com provas e
argumentos; na peroração, que é o remate do discurso, porá o intento
em fazer triunfar suas ideias pela força da evidência.
Chamam os retóricos elocução à terceira e última parte da
eloquência, que se ocupa da seleção das palavras e frases que darão
vigor, luz, beleza e majestade aos pensamentos. Passa pela mais difícil
das operações do orador e é a que lhe demanda maior aplicação e
esmero, visto pressupõe o conhecimento exemplar e firme não
somente da língua, senão também da “linguagem das paixões, a qual só
se aprende bem com o longo exercício e com o profundo estudo do coração
humano” (9).

III – Mais que o gênio ou dom criador, é a arte (conjunto de preceitos


para executar qualquer obra) a que sempre comunica à elocução
oratória o timbre da perfeição. Benditas, portanto, as longas vigílias de
estudo e trabalho, que a elas deve o advogado o brasão de suas glórias
tribunícias!
Ponto de reconhecida relevância na Oratória, vem aqui de
molde tratarmos por igual da maneira de enunciar o discurso.
Querem uns, alegando com o grave da matéria e do momento, que se
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leia como o trouxeram escrito; outros, fiados de sua feliz memória,


têm para si que devem declamá-lo como o compuseram; há, por
último, os que, após diuturna preparação do tema, que assimilaram
pontualmente, asseveram não precisar mais que de breves notas
esquemáticas para garantir a perfeita comunicação com os ouvintes.
Das três opções de articulação do discurso, é a última a que, por mais
segura e natural, recomendam os mestres da arte de falar. Ler,
simplesmente, o arrazoado forense, o mesmo fora que admitir o
advogado a própria falta ou negligência ao preparar a sustentação
oral, defeito insigne, que ordinariamente se lhe não sofre nem
perdoa (10). Dar de cor a mensagem, será arriscar-se o advogado às
insidiosas contingências dos lapsos e dos esquecimentos, que lhe
poderão comprometer o fluxo natural das ideias. Se, contudo, a tanto
o “ajudar o engenho e arte” (11); se, pupilo dileto da fortuna, gozar de
memória privilegiada; se, afeiçoado à arte declamatória, preferir o
advogado pronunciar de cor sua sustentação, não há que se lhe
oponha ou objete. Cada qual, enfim, sabe até onde pode ajudar-se das
próprias forças!
Outra questão, a que deve atender o advogado que se propõe
sustentar oralmente perante o Tribunal, é esta da improvisação. No
sentido de produção intelectual repentina e sem preparo, ela não há;
tampouco a tolera a seriedade do múnus advocatício, o qual tudo quer
perfeito e bem acabado. “Na realidade, a improvisação é o resultado de um
longo trabalho de acumulação” (12).
Ao discutir, habitue-se o advogado a fazê-lo em pé (ainda que
lhe seja idolatrada prerrogativa o falar sentado). Além de argumento
de sua deferência para com os ouvintes (cuja benevolência haverá de
conquistar), é a aprumada postura de quem trava combate, de que a
defesa oral constitui bom simulacro (13).
Mediante a observância destas regras, que para a mais bela das
artes cunharam nossos maiores, é sem dúvida que os advogados
aprendizes colherão merecidos gabos, com pouca diferença daqueles
com que a posteridade cingiu a fronte imortal de Cícero: “Foi, de todos
os oradores, aquele que melhor fez sentir aos romanos o encanto que a eloquência
acrescenta às coisas honestas e o invencível poder da justiça quando é sustentada
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pela força da palavra” (14).

Carlos Biasotti
Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

Notas

(1) Os Mandamentos do Advogado, 1979, p. 67.


(2) A defesa oral — escreveu o distinto criminalista Mauro Otávio
Nacif, em brilhante ensaio, no qual versou com diligência a
matéria — “a defesa oral é a coroação de todo o esforço realizado pelo
advogado nos processos criminais” (Revista Ajuris, nº 3, março/1975,
pp. 141-144).
(3) Edmundo Dantès Nascimento, Linguagem Forense, 1980, p. 12.
(4) A. Cardoso Borges de Figueiredo, Instituições Elementares de
Retórica, 1875, p. 7.
(5) Oratória, 1875, p. IV.
(6) À imitação, como estímulo criador, consagrou Aristóteles não
poucos lugares de sua Arte Poética (cf. caps. I, III, etc.). Pelo
mesmo teor, Antônio Albalat (A Arte de Escrever, 1953; trad.
Cândido de Figueiredo). Ouvindo os paradigmas de sua classe,
conhecerá o advogado os segredos da arte oratória. Da gloriosa
milícia dos tribunos do foro criminal, leve-se-nos em gosto, por
isso, mencionemos aqui alguns dos mais conspícuos, de cuja
destreza em desenrolar o pendão da eloquência até os mestres
apurados no dizer têm muito que aprender e invejar: Paulo
Sérgio Leite Fernandes, José Roberto Batochio, Antônio Carlos
de Carvalho Pinto, José Carlos Dias, Tales Castelo Branco,
Miguel Reale Júnior, Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, Luiz
Flávio Borges D’Urso, Roberto Delmanto, Mário de Oliveira
Filho, João Meireles Câmara, Roberto Podval, Alberto
Zaccharias Toron, Eugênio Malavasi, Mauro Octávio Nacif,
Antônio Sérgio de Moraes Pitombo, Daniel Bialski, etc. (que,
mercê de Deus, oradores forenses de alta estofa sempre houve
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entre nós, e isso em todos os quadrantes da Pátria!). É escutá-los


pois o novel advogado, se aspira deveras à primeira tribuna!
(7) Simetria: “Até no Inferno, que é o centro da confusão, há ordem, como
adverte Santo Agostinho” (Francisco de Pina, Retórica, 1766, p. 53).
(8) Quintiliano, Instituições Oratórias, 1788, t. I, p. 255; trad. Jerônimo
Soares Barbosa.
(9) A. Cardoso Borges de Figueiredo, op. cit., p. 72.
(10) Aliás, como a prevenir inconvenientes, dispôs o Regimento
Interno do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que, “na
sustentação oral, é permitida a consulta a notas e apontamentos, sendo
vedada a leitura de memoriais” (art. 476).
(11) Camões, Os Lusíadas, canto I, v. 16.
(12) Henri Robert, apud Evandro Lins e Silva, A Defesa Tem a Palavra,
1a. ed., p. 23.
(13) No Diálogo dos Oradores, Tácito “compara o advogado ao soldado que
marcha para a batalha provido de todas as armas, pois aquele também
comparece ao Fórum armado de todas as ciências” (Alberto Sousa
Lamy, Advogados, Elogio e Crítica, 1984, p. 96). Não apenas é
importante que os advogados falem de pé; ajuntam provectos
oradores, com malícia espirituosa, que deveriam fazê-lo
também apoiados sobre uma perna só, por advertência que fossem
breves!
(14) Plutarco, Cícero e a Queda da República, p. 24; trad. Lobo Villela.

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