You are on page 1of 3

ANÁLISE FÍLMICA DE SHARASOJYU, DE NAOMI KAWASE

Hanna Vasconcelos de Barros

SHARA, filme de Naomi Kawase, se inicia com uma sequência na qual a


câmera investiga um ambiente, como se seguisse um silêncio procurando algo. Quando
esse silêncio é rompido, escutamos o som de um rítmico sino, usado durante as orações
num templo desse bairro, que acompanha diversos momentos do filme e é elemento
integrante de sua paisagem sonora. Os sons do filme são todos construídos a partir dos
aspectos que formam essa comunidade:o sino das orações, um sussurrar baixo de
conversas, o barulho das refeições, o som dos passos, o silêncio do cotidiano e o som
das lembranças, que parecem vazar das cabeças dos personagens e nos atingir.

Na sequência inicial, ouvimos além desse sino, a voz de duas crianças brincando
e quando as encontramos, seguimos seus passos. É interessante o fato dos dois irmãos
serem colocados como tão idênticos nessa cena (além de gêmeos eles vestem roupas
iguais), que é uma cena deles dois brincando de correr, na qual Shun persegue Kei até
que ele simplesmente desaparece. A partir daí, Shun parece ter que conviver e aprender
a se relacionar com a falta quase sólida desse irmão, como se sempre o procurasse. O
desfecho dessa procura se materializa pela produção de um quadro em tamanho real do
irmão, em simbiose com a natureza, o que em si simboliza uma renovação.

É visível que esse filme trata, para (muito) além da perda, de sutilezas da vida,
dos detalhes sutis de suas alegrias e tragédias. Shara se constrói nessa investigação
íntima da vida dessa comunidade, principalmente a partir da família de Shun, sem tentar
atestar ou fazer um recorte exato sobre a tristeza irreparável da perda ou a alegria
sublime de um renascimento. As situações são mostradas como se
acompanhássemos um outro personagem invisível que observa atento e investiga as
relações simples do cotidiano, do estado da vida dessas pessoas, dessa comunidade. Isso
acontece de maneira tão delicada que durante o filme somos totalmente imersos nessas
vidas, como se fossemos mais um deles.

O filme retrata, acima de tudo, situações cotidianas que se costuram e constroem


sua narrativa, que tem sua força a medida que explora as sensações e sentimentos desses
personagens principalmente a partir da relação que se estabelece entre os corpos desses
personagens e a câmera. Essa aproximação é dada tanto pela forma de capturar e
trabalhar uma atuação dessa gestualidade cotidiana, como pela simplicidade das
escolhas de enquadramentos e estética de filmagem, utilizando-se de uma câmera com
referências documentais que investiga e se aproxima, busca essa intimidade, inclusive
com sequências de câmera na mão em momentos emblemáticos do filme, como nas
cenas de corrida de Shun e Kei e posteriormente, Shun e Yun.

As situações dramáticas do filme se desenvolvem principalmente a partir das


preparações da comunidade em torno do festival de rua, que acaba sendo uma
celebração a vida marcadíssima no filme. A cena em que se concebe a organização do
festival se dá num jantar no qual os membros dessa comunidade confraternizam, trocam
opiniões, tomam decisões.

O festival acontece em uma das cenas mais emocionantes e sensoriais do filme,


que é a cena da coreografia na rua, em que a comunidade toda parece celebrar, uns
dançando e outros contagiando-se pela energia dessa dança. A construção do som dessa
cena ajuda muito para que essa energia transborde a tela e invada o corpo de quem
assiste, uma vez que ela traz uma relação da música animada da coreografia, os sons dos
corpos sincronizados nessa dança (passos, palmas), os sons da platéia, bem mais baixo,
mas ainda presente, e o ponto mais emocionante, que é o som da chuva forte e repentina
que toma conta da cena, da dança e também marca um momento de maior interação do
público com quem dança, uma comunhão da comunidade através do banho de chuva.

Essa cena também é preciosa pela movimentação dos corpos e a energia que
esses corpos trazem. O momento da chuva, no qual todos são molhados e todos
vivenciam esse banho de chuva em meio a uma onda de calor traz essa energia da
renovação, da força da natureza que vai ser tão importante no desfecho do filme. É
interessante percebermos também que a esse ponto, o filme se revela como uma história
de renovação muito forte, mas também numa história marcada e feita por momentos
simples e cotidianos tanto familiares, quanto dessa comunidade.

A sequência final do filme é um nascimento de um novo membro na família de


Shun. Essa cena, de estética muito documental,é forte desde a criação de expectativa
para o momento até o momento posterior da chegada da criança, marcada por uma
afetividade e leveza. Essa parte se inicia com a notícia de uma possível complicação
com a mãe, que faz com que Shun e Yun saiam do colégio, onde contemplavam o
retrato de Kei, correndo para casa. O mais emblemático nessa cena é a naturalidade e a
carga de afetividade na qual essa chegada acontece. A família e amigas se reúnem
durante todo o período do trabalho de parto, dando apoio e tranquilidade a mãe,
vivenciando essa experiência coletivamente. A captura dessa cena é muito emocionante,
tanto através dos planos fechados em closes nos personagens mostrando as emoções do
momento, tanto quanto os planos em que se mostra a interação e envolvimento de todos
nesse momento de renovação e celebração da vida, novamente.

O filme trata de um ciclo de perda e renovação da vida, da família, que não passa
pelo esquecimento do irmão que se foi, mas a partir de quando essa presença se anuncia
como concreta, material. Marcado por movimentos sutis de atuação, enquadramento,
construção de mise-em-scène, luz e sons que nos transportam a uma atmosfera intimista,
Shara acaba relacionando essas vidas às nossas, provocando uma análise bem mais
profunda sobre o movimento da vida e da morte, luz e sombra.

You might also like