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Capa
Élio Chaves Desenhos sobre obra de Ricardo Enei

Projeto Gráfico
Élio Chaves Desenhos

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Bruno Enei: aulas de literatura italiana e


desafios críticos / Sigrid Lange Scherrer Renaux,
Hein Leonard Bowles, (orgs.). -- Ponta Grossa,
PR : TODAPALAVRA, 2010.

Bibliografia

1. Enei, Bruno, 1908-1967 2. Literatura


italiana - História e crítica I. Renaux, Sigrid
Lange Scherrer. II. Bowles, Hein Leonard.

10-01783 CDD-850-9

Índices para catálogo sistemático:


1. Literatura italiana : História e crítica
850.9

Depósito legal na Biblioteca Nacional

ISBN: 978-85-62450-07-5

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Ponta Grossa – Paraná – 84030-090
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Sumário

APRESENTAÇÃO. ........................................................................ 9
SOBRE BRUNO ENEI................................................................ 13
AGRADECIMENTOS................................................................. 19
AULAS DE LITERATURA ITALIANA
DO MESTRE BRUNO ENEI. ................................................... 21

LITERATURA ITALIANA I (1956)......................................... 23


A LITERATURA MEDIEVAL................................................... 25
A ORIGEM DA LÍNGUA ITALIANA....................................... 28
A LITERATURA ITALIANA NO SÉCULO XIII..................... 31
A literatura didascálico-alegórica da França setentrional..... 34
A literatura amorosa da França meridional........................... 35
A poesia religiosa no século XIII.......................................... 36
A escola do Dolce Stil Nuovo............................................... 40
A poesia religiosa: Giacomino da Verona,
Bonvesin da la Riva, San Francesco d’Assisi
e Iacopone da Todi................................................................ 45
A poesia realística e burguesa............................................... 47
A Scuola Siciliana até o Dolce Stil Nuovo............................ 49
A LITERATURA ITALIANA NO SÉCULO XIV..................... 52
Vida de Dante Alighieri (1265-1321)................................... 54
Obras de Dante...................................................................... 58
A Divina Comédia sob um ponto de vista humano.............. 70
Impressões sobre o Inferno de Dante.................................... 75
Francesco Petrarca (1304-1374)........................................... 81
Obras de Petrarca.................................................................. 83
Obras de Petrarca em italiano............................................... 84
Giovanni Boccaccio (1313-1375)......................................... 89
Obras de Boccaccio.............................................................. 93
Aspectos menores da literatura italiana do século XIV........ 99

LITERATURA ITALIANA II (1957)...................................... 101


O HUMANISMO..................................................................... 103
Angelo Poliziano (Agnolo Ambrogini) (1454-1494).......... 106
Obras de Poliziano.............................................................. 107
Lorenzo de’ Medici: Il Magnifico (1449-1492).................. 111
Obras de Lorenzo de’ Medici.............................................. 112
Luigi Pulci (1432-1484)...................................................... 115
Obras de Pulci..................................................................... 116
Matteo Maria Boiardo (1441-1494).................................... 119
Obras de Boiardo................................................................ 120
Jacopo Sannazaro (1457-1530)........................................... 123
Obras de Sannazaro............................................................ 124
Leon Battista Alberti (1404-1472)...................................... 126
Obras de Alberti.................................................................. 127
Leonardo da Vinci (1452-1519).......................................... 129
A LITERATURA ITALIANA NO SÉCULO XVI................... 131
Ludovico Ariosto (1474-1543)........................................... 132
Obras de Ariosto................................................................. 135
Niccolò Machiavelli (1469-1527)....................................... 140
Obras de Machiavelli.......................................................... 143
Obras políticas de Machiavelli........................................... 145
Obras históricas de Machiavelli.......................................... 149
Obras literárias de Machiavelli........................................... 150
Torquato Tasso (1544-1595)............................................... 153
Vida de Tasso...................................................................... 154
Obras de Tasso.................................................................... 157
A LITERATURA ITALIANA NO SÉCULO XVII.................. 161
Giambattista Marino (1569-1625)...................................... 164
Galileo Galilei (1564-1642)................................................ 165
Paolo Sarpi (1552-1623)..................................................... 166
Pietro Metastasio – poeta da Arcádia (1698-1782)............. 167
A LITERATURA ITALIANA NO SÉCULO XVIII................. 172
A historiografia no século XVIII........................................ 176
A renovação da crítica literária italiana no século XVIII... 178
Carlo Goldoni e a segunda parte do século XVIII.............. 180
Giuseppe Parini (1729-1799).............................................. 182

LITERATURA ITALIANA III (1958).................................... 185


O ROMANTISMO................................................................... 187
O Romantismo italiano....................................................... 196
Ugo Foscolo (1778-1827)................................................... 199
Análise da produção poética de Foscolo............................. 205
A crítica de Foscolo............................................................ 222
Vida de Foscolo.................................................................. 223
Giacomo Leopardi (1789-1837)......................................... 225
Vida de Leopardi................................................................. 241
Obras de Leopardi............................................................... 252
A Silvia e Il sabato del villaggio, de Leopardi, com
tradução de Bruno Enei....................................................... 259
Alessandro Manzoni (1785-1873)...................................... 265
Vida de Manzoni................................................................. 269
Obras de Manzoni............................................................... 275
A crítica literária e a estética de Francesco De Sanctis....... 287
Giosuè Carducci e o Romantismo...................................... 288
Obras de Carducci............................................................... 292
A crítica de Carducci........................................................... 294
A LITERATURA DO DECADENTISMO............................... 295
Giovanni Pascoli (1855-1912)............................................ 296
Obras de Pascoli.................................................................. 298
Pascoli crítico...................................................................... 298
Gabriele d’Annunzio (1863-1938)...................................... 299
Obras de d’Annunzio.......................................................... 308
La pioggia nel pineto, de d’Annunzio,
com tradução e comentário de Bruno Enei......................... 312
A LITERATURA ITALIANA APÓS D’ANNUNZIO............. 322
Poemas de Giuseppe Ungaretti, Guido Gozzano e
Antonia Pozzi, com tradução e análise de Bruno Enei....... 327

ESCRITOS DE BRUNO ENEI. .............................................. 335


Justiniano............................................................................ 337
A propósito de “Uma Interpretação das Américas”............ 339
Leonardo da Vinci............................................................... 343
Da inutilidade da literatura................................................. 345
Necessità di un ritorno........................................................ 348
Gêneros literários................................................................ 350
Impressões do Rio (I) Colóquio com
Carlos Drummond de Andrade........................................... 354
Impressões do Rio (II) - Apartes e sugestões...................... 357
Cristóforo Colombo e sua época......................................... 359
Esperanças da crítica........................................................... 362
Literatura na Princesa dos Campos Gerais......................... 366
O Humanismo e a Renascença............................................ 373
Carta a Sigrid Renaux......................................................... 378
Impressões de um leitor contemporâneo............................ 382
A dor da poesia contemporânea.......................................... 384
Breve introdução ao estudo da estética............................... 385
Duas notas sobre estética.................................................... 396

PRONUNCIAMENTOS DE BRUNO ENEI........................ 401


O conceito da filosofia moderna relativamente
ao homem............................................................................ 403
À margem da história.......................................................... 417
Saudação à turma de bacharéis “Bruno Enei”.................... 424
ESCRITOS SOBRE BRUNO ENEI....................................... 431
Homenageado o professor Bruno Enei por
sua atuação no recente concurso......................................... 433
Profundo interesse cultural da mocidade
universitária carioca............................................................ 435
Professor Bruno Enei – Um homem dentro da vida........... 438
Le celebrazioni dantesche a Ponta Grossa.......................... 443
Bruno Enei – A personificação da cultura........................... 444
Bruno Enei.......................................................................... 446
Perfis da cidade................................................................... 449

ORGANIZADORES.................................................................. 451
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

APRESENTAÇÃO

Estes “Apontamentos de História da Literatura Italiana”, assim


chamados pelo próprio professor Bruno Enei, foram taquigrafados e da-
tilografados durante os anos de 1956-1958, período em que fui sua aluna
de Língua e Literatura Italiana no Curso de Letras Neolatinas da Univer-
sidade Estadual de Ponta Grossa (naquela época, Faculdade Estadual de
Filosofia, Ciências e Letras). Eles foram preservados, desde então, pela
simples razão de que eram preciosos demais para serem descartados e,
assim, foram guardados, juntamente com os livros de história da litera-
tura italiana que o professor Bruno havia recomendado aos alunos. Em
três volumes, os “Apontamentos” abrangem, em sequência, a história
da literatura italiana a partir da literatura medieval até o século XIV; do
Humanismo ao século XVIII; e do Romantismo até a literatura italiana
após d’Annunzio.
Evidentemente algumas dessas anotações estão incompletas, ou
até falhas, visto que, por um lado, eu não era taquígrafa profissional, e,
por outro, pela rapidez e paixão com que o professor Bruno falava, sem
apontamentos – com exceção de títulos de obras e datas de nascimento
dos autores, que ele escrevia no quadro-negro –, em seu entusiasmo em
transmitir aos alunos toda sua apaixonante erudição e conhecimento pro-
fundo de literatura, arte, filosofia e história. O entusiasmo do professor
Bruno também se revelava no fato de, em suas aulas, referir-se constan-
temente a críticos como Attilio Momigliano, Francesco Flora e Frances-
co De Sanctis, entre outros, citando-os apenas pelo sobrenome e com
aquela naturalidade de quem está convivendo com eles a todo instante.
Foram essas as razões que me fizeram entregar os originais ao
Dr. Álvaro Augusto Cunha Rocha, amigo pessoal do professor Bruno,
no ano de 1983, numa primeira tentativa de publicá-los pela Universi-
dade Estadual de Ponta Grossa. Por motivos alheios a esta iniciativa, a
publicação não chegou a ser concretizada naquela ocasião. A tentativa
foi, entretanto, registrada por Álvaro Rocha no texto “Bruno Enei”, pu-
blicado no jornal ponta-grossense Diário dos Campos em 5 de novem-
bro de 1983,1 no qual ele ressalta a importância da publicação desses
“Apontamentos”.

,1
Texto reproduzido em sua íntegra nas páginas 446 a 449.
Bruno Enei
10 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

[...] ao longo das considerações expendidas a respeito das escolas e


autores estudados – destinadas à análise do jogo dialético de influências
e à identificação dos diferentes processos de criação literária – e aí,
portanto, as reflexões do professor sobre a linguagem, o tempo, as
aspirações, as transfigurações místicas, o peso histórico e social –
há sempre, reverberando por estas páginas, a poderosa e instigante
”atualidade” do mestre. Exatamente como se ele estivesse de fato
“entre nós”, nítido e intenso, aqui e agora.

Como observa ainda Álvaro Rocha, esta iniciativa coincidia


com a tramitação de um projeto na Câmara Municipal de Ponta Grossa
de promover anualmente uma semana de atividades culturais variadas,
com o nome “Semana da Cultura Bruno e Maria Enei”.
Este projeto, de autoria dos vereadores José Ruiter Cordeiro
e Manoel Ozório Taques, foi transformado na lei n0 3.589, de 8 de
novembro de 1983, conforme consta na crônica Perfis da Cidade, de
Vieira Filho, publicada no Diário dos Campos em 25 de novembro de
1983,2 na qual o cronista também destaca a importância de se homenagear
postumamente “um casal de Mestres cuja passagem entre nós se
constituiu num exemplo permanente de saber, sensibilidade, humanismo
e beleza estética raramente encontrado no seio de uma comunidade por
mais evoluída que ela pretenda ser.”
A intenção de contribuir para a preservação da memória da figura
intelectual e humana do professor Bruno Enei para as atuais e futuras
gerações de estudantes finalmente se concretiza, com a publicação em
livro desses “Apontamentos” pela Todapalavra Editora.
Na organização do livro, diversas decisões tiveram evidentemente
de ser tomadas. Em relação aos textos datilografados, cuidou-se de
preservar ao máximo a sua oralidade. Entretanto, mesmo retendo alguns
detalhes estilísticos próprios da língua italiana, optou-se, de modo geral,
por padronizar em língua portuguesa as variações do mestre entre usar o
português ou o italiano ao se referir a títulos de obras, nomes de autores,
cidades, movimentos e escolas literárias.
O livro inclui, além das aulas expositivas, também trechos em
prosa e poemas das obras citadas, que foram lidos e analisados em sala
de aula − datilografados pelo próprio professor Bruno, com cópias em
papel-carbono para distribuição aos alunos – demonstrando assim sua
preocupação com que todos tivessem acesso aos textos. Além disso,
inclui também a análise de alguns poemas, como La pioggia nel pineto,
de Gabriele d’Annunzio; Non gridate più, de Giuseppe Ungaretti; e

2
Texto reproduzido em sua íntegra nas páginas 449 e 450.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 11

L’assenza, de Guido Gozzano, traduzidos pelo próprio professor Bruno,


e que retêm, portanto, a espontaneidade com que brotaram do original
italiano, comprovando a sensibilidade e profundidade com que o professor
Bruno trabalhava os textos em aula e a facilidade com que transitava
da perspectiva ampla de épocas e autores à leitura e interpretação de
textos.
A fim de dar um alcance mais amplo ao livro, e novamente
pensando na preservação da memória não só da vida acadêmica, mas
também da vida pessoal do professor Bruno –, incluindo-se assim a figura
de sua esposa, Dra. Maria Biancarelli Enei – esta “competentíssima e
suave professora de grego” − como a ela se refere o professor Álvaro
Rocha −, da qual tive também o privilégio de ter sido aluna, optou-se
do mesmo modo pela inclusão, neste livro, de uma síntese biográfica,
fotografias, ensaios e pronunciamentos do professor Bruno, bem como
de textos jornalísticos escritos a respeito dele; além disso, relativa à
correspondência que eu mantinha com o casal Enei, especialmente uma
carta do professor Bruno – em resposta à indagação que eu lhe havia
feito sobre uma citação de Dante em T. S. Eliot – na qual transparece
novamente toda sua erudição e humanismo.
Em conclusão, e ciente de toda a responsabilidade que assumo
perante a crítica, perante o próprio autor, que não teria talvez autorizado a
publicação destes “Apontamentos” − como disseram Bally e Sechehaye
ao organizarem e publicarem o Curso de Linguística Geral de Saussure
− sem a sua cuidadosa revisão, gostaria de expressar meu desejo de que
este livro possa simultaneamente servir de leitura instigante e prazerosa
não só aos alunos dos cursos de Letras, mas a todos os interessados
pela Literatura Italiana, em diálogo constante com a arte, a filosofia e a
história.

Sigrid Lange Scherrer Renaux


Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 13

SOBRE BRUNO ENEI

Não sou nada. Não tenho nada.


Querem até dizer que nem brasileiro eu sou:
eu que nasci na minha Barra Bonita e que tantos anos fiquei longe
de meus avós e de meus pais, que aqui estão sepultados, para sentir mais
profunda a vontade de agir e de servir esta terra que a nós cabe pôr na
história e na vanguarda do progresso e da nobreza sem o otimismo de um
instante e sim no trabalho de todo dia [...]3

Bruno Enei nasceu em Barra Bonita, interior de São Paulo,


no dia 8 de junho de 1908. Era o mais velho de seis irmãos, filhos de
um casal de lavradores originário da região de Marche, na Itália, que
tinha imigrado para o Brasil no dia de seu casamento. Concluiu o curso
primário em sua cidade natal. Em 1919, logo após a I Guerra Mundial,
a família voltou para Itália, e, três meses depois, seus pais desistiram
dessa nova empreitada e retornaram definitivamente para o Brasil. Mas
lá deixaram o menino Bruno, então com 11 anos, porque eles queriam
que um dos filhos estudasse na Itália.
Na Itália, Bruno iniciou seus estudos como interno em um
seminário na cidade de Ferno e, em 1927, transferiu-se para Gubbio, onde
estudou no Liceo Classico Parificato Vicenzo Armanni. Ingressou então
na Universidade de Pisa, onde estudou Letras e Filosofia. Finalmente,
estudou na Universidade de Florença, onde defendeu tese, doutorando-
-se em Literatura Italiana em 1936. Era esportista. Praticou boxe na
universidade e jogou futebol em Gubbio, como atacante e goleador, o
que lhe rendeu o apelido de Togo. Casou-se em 10 de agosto de 1939,
em Gubbio, com Maria Biancarelli, doutora em Letras Clássicas pela
Universidade de Roma. Tiveram dois filhos: Giuliana e Ricardo.
Bruno Enei viveu todo o episódio fascista, desde o surgimento
de Mussolini na esfera política até a sua queda, em 1943. Segundo relato
de Ricardo Enei, baseado nas histórias que seu pai lhe contava, na Itália,

3
Bruno Enei, dirigindo-se, como patrono, aos formandos da Faculdade Estadual de
Filosofia, Ciências e Letras de Ponta Grossa, em dezembro de 1954, texto reproduzido
em sua íntegra nas páginas 424 a 430.
Bruno Enei
14 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

no anteguerra, a filiação ao Partido Fascista era praticamente obrigatória,


já que, sem essa credencial, o italiano, além de outras formas de
discriminação, não tinha acesso nem mesmo ao trabalho. E assim, Bruno
Enei, que não acreditava no fascismo e que, por formação e convicção,
era contrário a regimes totalitários, entrou no Exército. Foi a forma que
ele encontrou para não se ver forçado a filiar-se ao Partido Fascista.
Como militar, chegou a Capitano Fanteria. Ainda segundo
Ricardo Enei, durante a II Guerra, a unidade do exército italiano de que
Bruno Enei fazia parte foi rendida, na França, pelos alemães. Quando
ele e seus companheiros de farda estavam sendo conduzidos, a pé,
para um campo de concentração, Bruno resolveu que tentaria fugir, e
assim avisou alguns de seu grupo, dizendo que, quem quisesse, que o
acompanhasse. Então, quando estavam passando por uma estrada que
ficava em um lugar elevado, com um despenhadeiro (burrone) em um
dos lados, ele se desgarrou do grupo, correu e foi rolando ladeira abaixo,
sob o fogo dos alemães. Recebeu dois tiros e ficou estatelado ao pé do
desfiladeiro, fingindo-se de morto. E os alemães, dando-o como morto,
prosseguiram a sua jornada. Bruno foi então socorrido por camponeses,
que cuidaram dele, e no meio deles ficou durante seis meses. Mais
tarde, quando restabelecido, obteve, mediante contato com a resistência
francesa, documento de identidade francês e embarcou em um trem da
França para a Itália, numa viagem muito tensa, já que esse mesmo trem
transportava um grande contingente de tropas alemãs.
De volta à Itália, reencontrou sua família, em Gubbio, e em
seguida engajou-se no movimento de resistência italiano, de que também
participava sua esposa, Maria Biancarelli Enei. Como partigiano,
comandou o II Batalhão Aldo Bologni. Participou, entre outras, de ações
armadas em Tristina, Pietralunga e Camporeggiano. Foi ainda diretor de
Il Coriere de Perugia, órgão do Comitê de Libertação e Resistência. O
Exército lhe concedeu duas condecorações Croce al Merito di Guerra,
uma pela sua atuação como Capitano Fanteria, e outra pela sua attività
partigiana.
Como professor, na Itália, Bruno Enei lecionou italiano, latim e
grego no Ginásio de Gubbio, italiano e latim no Liceu de Perugia, italiano
e história no Istituto Magistrale Superiore de San Genesio e, finalmente,
ocupou a cátedra de italiano na Universidade para Estrangeiros em
Perugia.
Voltou ao Brasil em janeiro de 1951. Neste ano, a serviço do
Consulado Italiano e da Sociedade Dante Alighieri, proferiu palestras e
ministrou cursos em São Paulo e Curitiba.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 15

Em 1952, Bruno Enei fixou-se em Ponta Grossa, como professor


de Literatura Italiana e, mais tarde, de Teoria da Literatura na Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras de Ponta Grossa. Sua esposa, Maria
Biancarelli Enei, também trabalhou nesta instituição, como professora
de Didática Especial das Línguas Neolatinas, Grego, Filologia Românica
e Latim. O casal Enei também lecionou no Colégio Estadual Regente
Feijó.
Em junho de 1956, Bruno Enei participou de um concurso,
na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da então Universidade do
Paraná, para provimento da cátedra de Língua e Literatura Italiana, evento
que despertou grande interesse nos meios culturais e universitários de
Curitiba, com ampla cobertura da imprensa. Os dois candidatos foram
aprovados, mas o professor Bruno ficou em segundo lugar, obtendo
o título de Livre-Docente, com defesa da tese La Poesia di Giuseppe
Gioacchino Belli.
Na verdade, esse concurso foi um episódio bastante estranho
e constrangedor, que repercutiu intensamente no meio intelectual e
acadêmico, já que, ao que tudo indica, o professor Bruno foi seriamente
prejudicado por membros da banca examinadora. Na ocasião, o crítico
literário e escritor Wilson Martins assim se manifestou: “Muitas das
notas que lhe atribuíram não corresponderam às suas provas. [...] houve,
por parte dos que as atribuíram, ou ignorância ou má fé”, o que acabou
produzindo, ainda em suas palavras, um “resultado monstruoso”. Além
disso, e no mesmo pronunciamento, Wilson Martins afirmou que,
nesse concurso, o professor Bruno Enei tinha enfrentado “um ambiente
declaradamente hostil”.4
Durante os quinze anos em que residiu em Ponta Grossa, até a sua

4
Wilson Martins, em discurso por ocasião de um jantar oferecido por vários intelectuais
paranaenses a Bruno Enei, no dia 20 de julho de 1956. O evento, o nome dos participantes e
o discurso de Wilson Martins foram registrados nas páginas do jornal O Dia, de Curitiba,
em sua edição do dia 22 deste mesmo mês, texto este que se encontra transcrito nas
páginas 433 a 435. Ainda a respeito desse concurso, merece destaque o pronunciamento
da professora Marcella Mortara, catedrática de Língua e Literatura Italiana da Faculdade
de Filosofia da Universidade do Distrito Federal, em uma entrevista à Gazeta do
Povo, de Curitiba (21/6/1956), texto em que constam também as notas dadas aos dois
candidatos. Única entre os cinco membros da banca examinadora a dar vantagem ao
professor Bruno, por uma diferença expressiva na pontuação, ao ser indagada a respeito
de sua impressão sobre o concurso, a professora Mortara disse: “Minha impressão sobre
esse concurso está expressa nas notas que atribuí aos dois candidatos”. Finalmente, mais
de dez anos depois, Raul Rodrigues Gomes, em um artigo sobre Bruno Enei logo após a
sua morte, no Diário Popular, de Curitiba (14/1/1967, transcrito nas páginas 444 a 446),
ainda fala, com amargura e indignação, sobre esse incidente.
Bruno Enei
16 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

morte, em 8 de janeiro de 1967, Bruno Enei desenvolveu intensa atividade


cultural e acadêmica. Publicou vários ensaios literários em jornais de
Ponta Grossa e Curitiba, fez a tradução, para o italiano, do livro Uma
Interpretação das Américas, de Bento Munhoz da Rocha Netto e, além
de Ponta Grossa, ministrou cursos e proferiu palestras em instituições
culturais e universitárias de Curitiba e do Rio de Janeiro.
A título de curiosidade, em 1956, na ocasião em que ministrava
um curso de literatura italiana na Universidade do Brasil, na capital federal,
teve a oportunidade de entrevistar Carlos Drummond de Andrade.5
Culto e de formação humanista, Bruno não nutria simpatias pelo
academicismo, distante e autossuficiente, tampouco por dogmas. Não
prelecionava; dialogava. Sabia ouvir. Era uma pessoa afável e gregária.
Ao mesmo tempo, idealista, vibrante e dotado de forte espírito libertário.
Às idéias prontas e às certezas, ele opunha dúvida e questionamento; ao
julgamento e ao preconceito, tolerância e reflexão; e à rotina, inquietação
e procura.
O texto abaixo é particularmente revelador do pensamento do
mestre Bruno.

Matai a gramática6

E não falo só desse “sujeito” que – coitado – pode


contemporaneamente ser simples e composto, abstrato e concreto,
expresso e oculto, agente e complexo. Não falo só desse “predicado”,
ele também expresso e oculto, simples e composto, parcial e total, e
não sei o que mais. [...] Falo de todas as “gramáticas”. Porque todas as
disciplinas têm uma gramática. Na história, essa gramática se chama
cronologia pela cronologia, fato pelo fato, nome pelo nome; na geografia,
essa gramática se chama comprimento, medida, nomenclatura; na
filosofia, essa gramática se chama silogismo, definição, resumo; nas
línguas, essa gramática se chama colocação de pronomes, frases
modelos, estandardização.
Matai tudo isso, até que tudo seja feito como fim e não como
meio. O fim é a cultura, é a educação, é a personalidade, é o homem
na sua espiritualidade e na sua formação. O resto, tudo o resto é meio
e instrumento. Que errem, meus afilhados, que errem quanto quiserem
os vossos alunos; mas que falem, que digam, que se exprimam, que se
abram, que demonstrem de interessar-se e de ler, que demonstrem que

5
Texto transcrito em sua íntegra nas páginas 354 a 356.
6
Bruno Enei, na mesma preleção a que faz referência a nota 3.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 17

sabem distinguir, que criticam, que se estão formando e educando.


Não é a elegância que conta, mas sim a propriedade. Um dia eles
irão procurar a “gramática” – assim como eu estou fazendo –, mas, se
– como um tapa na cara – dareis, agora, àquelas almas só gramática e
sempre gramática – não há dúvida – acabareis matando a sensibilidade,
o desejo de exprimir, a alegria de dizer a própria opinião: e tudo ficará
genérico, monótono, insignificante, retórico, repetido na base de
modelos e de preconceitos. [...]
Matai a gramática, e dizei continuamente a vós mesmos e aos
vossos alunos o que é humanamente a história, a geografia, a literatura.
Ler e ler, discutir e discutir, analisar e analisar por um processo crítico e
consciente de cada instante para ter um panorama vivo e real do estudo,
da vida deste nosso mundo que, apesar de tudo, é um mundo humano.

Por meio de seu exemplo e de suas idéias, Bruno Enei ajudou a


moldar o caráter e o espírito de centenas de estudantes em Ponta Grossa.
Formou e inspirou uma geração de professores.

Hein Leonard Bowles


Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

AGRADECIMENTOS

A publicação deste livro foi possível graças ao patrocínio da


Itaipu Binacional, que arcou integralmente com os custos de impressão,
projeto gráfico e diagramação. Assim, o profundo reconhecimento e
os sinceros agradecimentos da Todapalavra Editora a Jorge Samek,
Diretor-Geral Brasileiro da Itaipu Binacional, que deu acolhida ao
projeto e soube dimensionar o seu significado e a sua envergadura. Seu
aval certamente levou em conta também, e talvez primordialmente, a
importância que esta obra tem regionalmente, tanto assim é que Ponta
Grossa, além de abrigar a Biblioteca Pública Municipal Professor Bruno
Enei, promove anualmente, por meio de sua Secretaria de Cultura, a
“Semana da Cultura Bruno e Maria Enei”, em reconhecimento ao
trabalho e ao valor desse ilustre e tão querido casal de intelectuais. Ao
mesmo tempo, com esse gesto ele ajuda a sanar uma enorme carência, já
que, de um modo geral, e isso falando principalmente das gerações mais
recentes, simplesmente não se sabe quem foram Bruno e Maria Enei,
porque praticamente inexistem informações a respeito deles.
Somos, de igual modo, gratos à Diretora Financeira Executiva da
Itaipu Binacional, Margaret Mussoi L. Groff, nosso primeiro e principal
contato dentro da instituição, que, já de início, mostrou interesse pelo
projeto e deu-lhe apoio, ensejando que tivesse um trâmite rápido.
Destaque-se que, segundo se fez constar no contrato celebrado
entre a Itaipu Binacional e a Todapalavra Editora, o projeto não envolve
remuneração ou compensação financeira de qualquer ordem e o livro
não será comercializado. Ele será encaminhado a instituições de ensino
de Ponta Grossa, a bibliotecas e entidades culturais da cidade, bem como
a várias bibliotecas universitárias e entidades culturais do país. De outra
parte, ele será disponibilizado, em sua versão integral, como e-book,
no site da Todapalavra Editora (todapalavraeditora@hotmail.com),
para todos aqueles que por ele se interessem e que queiram fazer o seu
download gratuito, para leitura e/ou divulgação.
A ajuda de Ricardo Enei, filho de Bruno e Maria, foi decisiva
para moldar o livro, para dar-lhe o formato em que está sendo publicado.
Além de seu depoimento, Ricardo nos deu acesso a um rico acervo de
documentos de seu pai, em que encontramos alguns ensaios que para
nós eram inéditos, bem como importantes informações sobre sua vida
Bruno Enei
20 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

e sua carreira. Assim, agradecemos ao Ricardo, e também à sua esposa,


Jeanine Degraf Enei, por esse gesto de generosidade.
No processo de finalização do livro, contamos com a valiosa
colaboração da professora Dra. Lucia Sgobaro Zanette, da Universidade
Federal do Paraná, como consultora na área de Literatura Italiana, e do
professor Ms. Luiz Ernani Fritoli, da mesma universidade, que traduziu
alguns poemas.
Nossa expressão de gratidão também à professora Vera Marilha
Florenzano, cujas informações foram decisivas na fase de levantamento
de documentos, e à professora Roselis Oliveira de Napoli, que, como
professora de Literatura Brasileira no antigo Departamento de Letras da
Universidade Estadual de Ponta Grossa, empenhou-se ativamente pela
publicação dos “Apontamentos”, ainda na época em que eles chegaram
à instituição, em 1983, e que muito nos incentivou quando soube que a
Todapalavra estava desenvolvendo esse projeto.
Finalmente, cumprimentamos e parabenizamos a professora
Sigrid Lange Scherrer Renaux, de início, por ter tido a lucidez e a
sensibilidade de reconhecer o valor intelectual e humanístico do professor
Bruno; em seguida, pela sua decisão de registrar taquigraficamente as
suas aulas, para que elas pudessem ser perpetuadas; e, finalmente, pela
sua coragem e persistência.
E hoje, quando já se vai tanto tempo desde que Sigrid Renaux
registrou a última aula de Literatura Italiana do professor Bruno a
que assistiu, a Todapalavra Editora sente-se honrada em ter tido a
oportunidade de participar de seu projeto, como instrumento acessório
para que ela pudesse realizar esse desejo tão longamente acalentado.

Todapalavra Editora


AULAS DE
LITERATURA ITALIANA
DO MESTRE
BRUNO ENEI
LITERATURA ITALIANA I (1956)
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 25

A LITERATURA MEDIEVAL

A verdadeira literatura em língua vulgar (em língua, isto é, ita-


liana) começa somente no século XIII. É justamente neste período que
encontramos, pela primeira vez, obras e autores que manifestam uma
espiritualidade, um conjunto de motivos, uma expressão e um modo de
pôr e resolver problemas que merecem o nosso estudo e a nossa apre-
ciação. É justamente neste período que encontramos a poesia e a prosa
dos escritores de literatura épica, didática e moral, religiosa, amorosa,
popular e burguesa, que representam os vários momentos e períodos da
primeira fase da história literária italiana.
Antes disso (ou seja, antes do século XIII), vemo-nos diante
de uma literatura que, embora em latim, não é mais latina e não é ainda
italiana. Não é mais latina porque lhe faltam o espírito, os motivos, os
temas da verdadeira espiritualidade latina: o apego à vida, o conceito
de dignidade romana, a certeza de um dever terreno e humano, o senso
da luta, o gosto alegre e firme de viver, o valor da política, o orgulho
do Império, a exaltação de Roma. Faltam-lhe justamente os ideais que
foram próprios da literatura latina e que vibram nas obras de Cícero,
de Virgílio, de Ovídio, de César, de Horácio. Entretanto, não podemos
ainda dizer que essa literatura seja propriamente italiana.
Ela representa, no seu conjunto, a crescente e extrema decadência
da literatura latina e, simultaneamente, a lenta e confusa formação de
uma nova literatura, onde se refletem e se manifestam conceitos novos;
uma visão nova da vida, dos problemas humanos e uma nova atitude do
espírito. Essa literatura – nem latina e nem italiana – chama-se literatura
da Idade Média. E dela queremos agora fixar os caracteres essenciais, as
obras e autores mais importantes, relativamente ao longo período que
vai do século VI ao século XIII, numa rápida visão de conjunto.
Os demais séculos dessa literatura medieval serão objeto de
um estudo mais particular e de uma análise mais ampla até chegarmos
à literatura dos séculos XV e XVI, que, com o Humanismo e com a
Renascença, representam o fim da literatura medieval e o início da
literatura moderna.
Estudamos, pois, aqui, em resumo, os sete séculos (do VI ao
XIII) durante os quais a decadência do Império Romano, a vinda do
cristianismo, as invasões dos bárbaros, a insuficiência do idealismo
Bruno Enei
26 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

romano e o aparecimento de novos ideais morais e religiosos


determinaram a criação dessa nova literatura, à qual pertencem – de um
modo e de outro – escritores do valor de San Francesco d’Assisi (1182-
1226), de Iacopone da Todi (1236-1306), de Marco Polo (1254-1324),
de Dante Alighieri (1265-1321), de Francesco Petrarca (1304-1374), de
Giovanni Boccaccio (1313-1375), os primeiros dois sendo os autores das
mais populares e profundas poesias religiosas da época; o terceiro sendo
o autor do imortal Il Milione; Dante, sendo o autor da Divina Comédia;
Petrarca, sendo o autor de Il Canzoniere e Giovanni Boccaccio, sendo o
autor de Il Decamerone.
A literatura medieval desse período (séculos VI-XIII) tem três
fases principais: a primeira, que abrange os séculos VI-VIII; a segunda,
que abrange os séculos VIII-X; a terceira, que abrange os séculos
X-XIII.
Da primeira fase (séculos VI-VIII) faz-se mister lembrar dois
escritores: Severino Boezio (480-525), autor da obra De Consolatione
Philosophiae, e Marco Aurelio Cassiodoro (480-575), autor da obra
Variae, onde são evidentes os motivos fundamentais da literatura
medieval, ainda ligada à língua e à cultura latina, mas já orientada num
sentido de defesa e de exaltação dos princípios novos do cristianismo.
Da segunda fase (séculos VIII-X), convém lembrar dois
escritores: Paolo Diacono (720-797), autor da obra Historia
Longobardorum, e Liutprando da Pavia (922-972), autor da obra
Antapodosis. Foi este período o momento mais caótico e mais obscuro
da Idade Média, marcado pelas grandes e trágicas invasões dos bárbaros,
pelos choques de cultura e de hábito, pelo terror, pela preocupação do
futuro, quando a cultura se tornou mais rara e menos livre e limitada
aos círculos religiosos dos conventos e da Igreja, que se constituem
juntamente nos depositários da língua, da cultura, da hierarquia, da
universalidade da Roma imperial.
Da terceira fase (séculos X-XIII), faz-se mister lembrar, ao
menos, dois grandes filósofos: San Tommaso d’Aquino (1225-1274),
autor da Summa Theologica contra Gentiles, e San Bonaventura da
Bagnorea (1221-1274), autor da obra Itinerarium mentis in Deum. Foi
este um período de ressurreição, de estudos, de entusiasmo pela cultura,
de uma dramática e firme procura de elaborar teoricamente os princípios
da religião na base da filosofia greco-latina, pondo o pensamento
de Aristóteles e de Platão ao serviço das ideias e dos princípios do
cristianismo. Foi este um período extraordinariamente intenso e férvido,
rico de atividades, de cultura, de pesquisa, durante o qual floresceram, de
uma vida nova, a Filosofia, a Teologia, o Direito e a Ciência.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 27

Sede excelsa de estudos jurídicos foi então Bolonha (Bologna


docet), para onde se dirigiam os estudiosos de toda a Europa.
Sede notável de estudos científicos foi então Salerno, onde se
criou a famosa Scuola Medica Salernitana, que fez com que a Medicina
abandonasse aquele seu caráter de empirismo e de magia, para tornar-
-se, sempre mais, um estudo sério e racional, baseado na análise, na
experiência, na observação crítica da Patologia e da Terapêutica.
Sede dos estudos de Teologia e de Filosofia foram sobretudo
os conventos, e seu primeiro e maior cultivador foi o clero, dividido
em duas escolas, em duas tendências, em dois endereços filosóficos
principais: a Escolástica, com San Tommaso, racionalista e aristotélica;
e a Patrística, com San Bonaventura, idealista e platônica.
A Filosofia não tinha ainda a autonomia de hoje: era considerada
um instrumentum da Teologia, um seu aspecto e momento secundário:
era a Ancilla Theologiae. E a Teologia era tudo, sendo a ciência de Deus e
reunindo em si, numa hierarquia férrea, todas as outras ciências, criando
aquela sabedoria tipicamente medieval que se chama Enciclopedismo.
Mais tarde, todas essas disciplinas e ciências tornar-se-ão livres e
autônomas, cada uma no seu mundo, com as suas leis e métodos, com as
suas precípuas finalidades. Mas, para isso, devemos chegar aos séculos
do Humanismo e da Renascença.
O que aqui interessa é saber que do século VI ao século XIII
se elaboram todos os princípios, todos os ideais, todos os temas que
serão próprios da literatura medieval. Sem conhecer esses princípios e
ideais e motivos torna-se impossível compreender o espírito e o valor da
literatura medieval, no seu significado histórico e estético.
O período de 700 anos, pois, que vai do século VI ao século
XIII, representa o nascimento da literatura medieval, o nascimento de
uma nova espiritualidade. Fica ainda, e se conservará séculos afora, a
língua latina; mas o espírito de Roma acaba. Acaba a Roma imperial e
temos a Roma da Igreja. Desaparece a concepção heroica e imanentística
da literatura latina e temos a concepção ética e cristã, baseada nos
princípios eternos do Evangelho, nas palavras de Cristo, nos deveres
de uma nova religião, mais íntima e essencial, que vinha substituindo a
velha e decaída fé do paganismo.
E aparece a preocupação do Além, criando um dualismo entre
Deus e o homem, entre Terra e Céu, entre ser e dever ser. Toda a literatura
medieval se caracteriza por essas perspectivas: a bondade, a fraternidade,
a paz, a justiça, a meiguice, o amor, o temor de Deus, Deus prêmio
e castigo, justiça e misericórdia, Paraíso e Inferno, pecado, virtude,
redenção, perdão, desespero da carne, anseio do espírito, renúncia aos
Bruno Enei
28 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

bens terrenos, procura da salvação, desejo de morrer (Cupio dissolvi)


de Santa Catarina de Siena, a felicidade do Além, a imortalidade como
prêmio e castigo, a pureza, a obediência.
Todos estes temas e ideais estarão de um modo e de outro
presentes em toda a literatura da Idade Média. Não era, portanto, mais
possível escrever no velho latim clássico, precisava-se de uma nova
língua latina: as línguas neolatinas, e entre elas, a mais querida e a mais
íntima, a filha de Roma: a língua italiana.

A ORIGEM DA LÍNGUA ITALIANA


Como a francesa, a portuguesa, a espanhola e a romena, também
a língua italiana deriva do latim. Entretanto, essa asserção não deve ser
tomada no sentido de que a língua italiana seja algo de novo, de contrário,
de improvisamente e fisicamente diferente da língua latina. Nada na
história do homem e de seu espírito surge de repente e negando – ab
imis – a sua paternidade. Deve-se, portanto, entender que a língua italiana
é a mesma língua latina, a continuação da língua latina em moldes e
formas novas, respondendo a novos fatos, a novas exigências, a novas
ideias. Na sua dialética, o espírito procura sempre novos “meios” para
novas perspectivas. Assim, o mundo latino veio preparando, através dos
séculos da decadência do Império Romano e das invasões dos bárbaros,
a sua nova língua, a sua nova – poderíamos dizer – nova língua latina
que, de vez em vez, recebeu, nos vários países e por diferentes razões,
formas e flexões e nomes diferentes (como seja: o português, o francês,
o espanhol, o italiano, etc.).
Duas objeções poderiam ser, a esta altura, movidas: como se
justifica, além da aparente analogia, a diversidade das línguas neolatinas
perante a língua latina? Como se explica a pluralidade das línguas
neolatinas, diferentes do próprio latim e entre si mesmas, embora todas
de uma mesma origem? Tornam-se ambas as dificuldades claramente
explicáveis através do exame e da análise do desenvolvimento histórico
e prático do latim, sobretudo nas vicissitudes do período da decadência
do Império Romano e da primeira fase da Idade Média, ao contato vivo
e cotidiano com outros povos, de outras línguas, de outros costumes,
de outros hábitos e de outras espiritualidades. É preciso observar esse
encontro de culturas diferentes, esse choque de civilizações diferentes.
Roma conquistava e impunha sua língua. Mas uma coisa é programa e
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 29

outra, realidade. Além do mais, os romanos das regiões conquistadas nem


sempre eram os mais cultos. A língua desses romanos nem sempre era a
língua pura e castiça de Cícero, de César ou de Horário e Virgílio, e sim
uma língua popular de colonos, de soldados, um latim falado, vulgar:
sermo rusticus, sermo vulgaris, sermo plebeius. Com o tempo, foram-se
formando duas línguas latinas paralelas: a dos clássicos, usada nos textos,
e a falada, a viva, usada pelo povo nas conversações, nos negócios de
todos os dias.
A unidade política de Roma contribuiu para manter a unidade da
língua latina; mas quando a unidade política começou a vacilar e a perder-se
até a dissolução, também a língua latina começou a vacilar e a perder-se
até decompor-se em mil dialetos, em tantas línguas particulares, adquirindo
matizes e moldes e formas fonéticas, morfológicas, sintáticas diferentes.
E nasceram novas formas de expressão, novas inflexões, novas palavras,
aparentemente latinas – na maior parte – mas já não somente e propriamente
latinas. Esses parlari tornar-se-iam, daí a pouco, as línguas neolatinas ou
românicas dos povos que tinham pertencido ao mundo político e cultural
do Império Romano, à grande família do romanice loqui.
A transformação do latim nas futuras línguas neolatinas foi
facilitada, inicialmente, pelo fracionamento da vida medieval, pela
divisão da família dos povos latinos, pela angústia anárquica e ciumenta
da vida feudal, pelo isolamento e separatismo desconfiante e fechado das
várias regiões, pela falta de intercâmbio intelectual e econômico, pelo
quase abandono da cultura, sobretudo no período mais obscuro e sombrio
da Idade Média, entre o século VI e o IX.
Houve, mais tarde, um período melhor. Voltou o interesse pela
cultura, voltou a organização do comércio, o intercâmbio econômico.
Surgiram as escolas nos seus ciclos do quatrivio e do trivio. Os conventos e
as pequenas elites voltaram ao Direito, à Filosofia, à Teologia, às ciências.
Estamos falando do período entre o século X e o século XIII; o período da
Universidade de Direito de Bologna, da filosofia de Tommaso d’Aquino
e de Bonaventura da Bagnorea, da Escolástica e da Patrística, da Scuola
Medica de Salerno. Podia, pois, ter sido este período o mais oportuno e
indicado para uma volta à língua latina clássica. Mas, nada. A História
não volta para trás ou volta para continuar assimilando e transformando.
Era já tarde. Muitas coisas tinham mudado; e o velho (o latim) não cabia
no novo (as línguas neolatinas). Foi, aliás, justamente nesse período que
as línguas neolatinas tomaram consciência da própria nascente força, da
própria nascente riqueza, da sua histórica e irresistível necessidade.
Na verdade, não se abandonou nunca o latim. Nem seria
possível, pois que até hoje aquela língua e aquela civilização constituem
Bruno Enei
30 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

uma necessidade cultural para todos, até para os povos não latinos. Por
outro lado, a igreja de Roma – herdeira de tantas instituições romanas
– fez sua aquela língua como a fizeram sua, durante tanto tempo, e, às
vezes, ainda hoje, a Filosofia, a Teologia, a Ciência. Mas, foi desde
então que começaram a aparecer obras e escritores das novas línguas,
dessas pequenas e ingênuas e claudicantes filhas de Roma, já, contudo,
suficientemente tentadoras e eficazes para oferecer à fantasia e ao intelecto
dos povos neolatinos as primeiras expressões de uma linguagem própria,
individual, cônsona a cada um.
Na “maré” dos dialetos – como sempre acontece – veio, então,
prevalecendo aquele da região mais organizada, mais viva e exuberante,
imprimindo uma diretriz e um caráter de disciplina e de uniformidade aos
demais. É esse o passo lento e histórico da formação da língua nacional de
um povo. Na Itália, por exemplo, existiam vários dialetos. Uns deles eram
até anteriores ao do Lácio, ao latim. Mas quando a língua de Roma decaiu
e se desfez, nessa maré de dialetos itálicos (o dialeto siciliano, o dialeto
sardo, o dialeto napolitano, o dialeto umbro, o dialeto vêneto, etc.), foi o
dialeto florentino que tomou a dianteira, galvanizando em torno de si os
demais, dando-lhes uma fisionomia, uma linha, uma disciplina e um vigor
de aperfeiçoamento e de nacionalidade. Foi, assim, o dialeto florentino que
determinou a língua italiana. E isso por ser a Toscana a região mais central
da Itália, a mais linguisticamente semelhante ao latim, a mais rica, a mais
política e economicamente organizada, devendo-se ainda acrescentar que
foi em Firenze que – logo de chegada, no século XIV – nasceram a
Divina Comédia de Dante Alighieri, o Canzionere de Francesco Petrarca
e o Decamerone de Giovanni Boccaccio: três obras-primas da literatura
italiana, representando cada uma delas, respectivamente, a mais alta
expressão da espiritualidade medieval, a límpida e saudosa melancolia
da passagem da Idade Média ao mundo moderno e a serena e realística
visão de nossa vida terrena feita de trabalho, de inteligência, de crítica,
de amor e de humanidade.
Eis, então, a língua italiana. E, alhures, surgem, ou já surgiram,
o espanhol, o português, o francês, o romeno. Línguas neolatinas estas,
destinadas – talvez – a criarem outras línguas neo-... (como está justamente
acontecendo aqui, no Brasil, onde a nossa língua – ao dizer de vários
filólogos – não é já mais somente o português de Portugal).
Quais as transformações, quais as diferenciações mais
representativas e peremptórias entre essas línguas neolatinas e o latim,
entre o italiano e a velha língua de Roma? Pois bem, a língua italiana
morfologicamente cria o artigo determinativo e indeterminativo, cria a
preposição composta, casando o artigo com a preposição simples (os
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 31

verbos em ere longo junto aos outros em ere breve), torna auxiliar o verbo
avere, dá um jeito para liquidar os verbos “depoentes”, pede auxílio ao
verbo essere para acabar com a conjugação autônoma passiva, acrescenta
o modo condicional, desenvolve o modo supino, etc. E as palavras deixam
de ser enquadradas nos grilhões da declinação. Ficam soltas, voltam à
liberdade, dançam entre o singular e o plural, entre o masculino e o
feminino, com um mínimo de variações que se limitam ao campo das
vogais: O e I para o masculino singular e plural, A e E para o feminino
singular e plural.
Sintaticamente, o trabalho de transformação é mais profundo e
delicado. A língua italiana prefere as formas finitas às infinitas, prefere a
coordenação à subordinação. E, acima de tudo isso, a particularidade do
gênio humano da alma italiana: o gosto pela clareza, pela simplicidade,
pela naturalidade, dando preferência à vogal límpida e aberta no corpo
e no fim do substantivo, evitando a cacofonia de consoantes antitéticas
e de difícil pronúncia, procurando uma equivalência e uma temperada
distribuição de vogais e consoantes, fazendo questão que a palavra saia
horizontalmente, sem verticalidade nenhuma, sem esforço nasal ou
gutural ou palatal: ler e dizer como está escrito, sem as sombras e os
impressionismos de outras línguas – a francesa, por exemplo. Língua,
pois, límpida, objetiva, firme, lírica, sem tristeza e sem exaltações, sem
equívocos e sem sensações, completamente livre da necessidade do
“requinte” fonético.
Dizer dos primeiros documentos da língua italiana não parece
essencial. Quem pode saber quando acaba e quando começa uma língua?
Essas criações são o resultado de todo dia, de todo momento. (Precisam,
entretanto, séculos para perceber que uma língua nasceu ou nascera.)
De qualquer forma, por enquanto, costuma-se dizer que um Documento
Lecchese de 746, a Carta Cassinese de 960 e um livro de banqueiros
florentinos de 1211 são os primeiros índices de que a língua latina já
era... italiana.

A LITERATURA ITALIANA NO
SÉCULO XIII
A literatura de um povo é sempre um fato posterior e sucessivo
à mera aquisição da língua. Surge uma literatura quando um conjunto de
Bruno Enei
32 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

ideias e de sentimentos, uma particular consciência de problemas e de


anseios, um uniforme e dinâmico patrimônio de tradições, de cultura, de
perspectivas e uma comum predileção de formas e de moldes expressivos
caracterizam um povo, dando-lhe uma inconfundível unidade espiritual
e humana.
Por isso, é somente ao começar o século XIII que nós podemos
falar em uma história da literatura italiana em volgare. Ao longo do
século XIII há já um suficiente número de obras em poesia e em prosa,
importantes “centros” de cultura e de arte e um grupo conspícuo de
escritores em volgare, donde podemos afirmar que existe já efetivamente
uma literatura italiana. Os documentos anteriores são poucos e escassos
de valor: provam o nascimento da língua, mas não ainda o nascimento
de uma literatura.
Numa visão de conjunto, a literatura italiana do século XIII
abrange obras de caráter épico-cavalheiresco, didascálico-alegórico,
lírico, religioso, burguês e realístico, e obras em prosa de caráter
doutrinário, novelístico e historiográfico. A Scuola Siciliana e Il Dolce
Stil Nuovo, a poesia religiosa de San Francesco d’Assisi e de Iacopone
da Todi, as rimas de Cecco Angiolieri, a doutrina de Brunetto Latini e Il
Milione de Marco Polo são os documentos mais vivos e significativos
para uma definição dos interesses espirituais e do valor estético da
literatura neste século.
Mas, antes de mais nada, uma peculiaridade da literatura italiana
das origens cabe aqui salientar. Nova e cheia ainda de imperfeições e de
deficiências, a língua italiana, não muito notável em geral a sua produção
literária, não se pode, contudo, absolutamente dizer que – desde já –
fosse a Itália um país de escasso patrimônio cultural. Verdade é, aliás, o
contrário. A grande filosofia da Patrística e da Escolástica, os aprimorados
estudos jurídicos de Bolonha, a Ciência, a Medicina, a Oratória são
provas da existência de um ambiente de alta e profunda cultura. E, além
do mais, toda a tradição e a cultura clássica estavam lá presentes num
grande esforço de assimilação e de adaptação às novas ideias e aos novos
problemas da espiritualidade cristã.
Por isso, a literatura italiana das origens apresenta-se com um
cunho particular; nada há nela de primitivo, de juvenil, de apaixonado,
de popular. Faltam-lhe a fantasia, o lirismo, a espontaneidade, o senso de
aventura, a inspiração romântica e democrática de outras literaturas ao
seu nascer. Nova na língua, essa literatura parece já avançada e austera
e requintada em seu conteúdo. Parece mais uma continuação do que um
princípio.
A literatura italiana do século XIII deve, em parte, a outros o
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 33

temário de suas obras e o modo de tratá-lo. Mais “romana” do que as


outras, ela surge mais tarde. Assim, Roma, por um lado, a Igreja por
outro, e a França são, num primeiro momento, as fontes a quem a Itália
deve a sua primeira literatura ou, quanto menos, o caráter peculiar dessa
sua primeira produção literária tão intelectual e tão evidentemente alheia
a qualquer atitude popular, democrática e primitiva.
A literatura francesa da langue d’oil deve à Itália do século
XIII dois gêneros: a poesia épico-cavalheiresca e a poesia didascálico-
-alegórica. A literatura francesa da langue d’oc deve à Itália do século XIII
um terceiro gênero literário: a poesia do amor. Três motivos que deram
origem a uma vastíssima produção literária nos séculos XIII e XIV e,
sobretudo, nos séculos XV e XVI, quando a poesia épico-cavalheiresca
alcança a sua maior expressão artística e humana com aquelas obras-
-primas que são: Il Morgante, de Luigi Pulci (1432-1484), L’Orlando
Furioso, de Ludovico Ariosto (1474-1543), L’Orlando Innamorato, de
Matteo Maria Boiardo (1441-1494), e La Gerusalemme Liberata, de
Torquato Tasso (1544-1595).
Faz-se mister chegar lá para compreender em que consistem a
originalidade e o sentido que os italianos souberam imprimir a esses
temas, que só indiretamente foram seus. E, desde já, vale anteciparmos
que a Itália do século XIII não atingiu o nível da literatura francesa épico-
-cavalheiresca, didascálico-alegórica e amorosa, mas ela soube – quer
traduzindo, quer compilando, quer imitando – dar a esses vários motivos
um caráter próprio e original, uma interpretação sua, um espírito seu,
fundindo os dois “ciclos” da poesia épico-cavalheiresca, levando, para
um plano mais alto e religioso, o motivo didascálico-alegórico, dando
ao amor – sobretudo com Dante e Petrarca – um sentido de humana
pureza, de espiritual elevação e de religiosa contemplação verdadeira-
mente singular.
A literatura épico-cavalheiresca da França setentrional teve três
centros:
I – Em torno das figuras de Carlos Magno e de seus paladinos
surge um mundo de lendas e de mitos, caros aos povos neolatinos. A luta
contra os mouros em favor da Igreja, o sonho do Sacro Império Romano, a
defesa dos desamparados e dos humildes, o respeito para com a mulher, o
heroísmo de Orlando e de Rinaldo, a traição e a inveja de Ganelon foram
os temas das chansons de geste. Destas, a mais famosa foi a Chanson de
Roland de Turoldo, verdadeira apoteose de Orlando, que cai heroicamente
na sua última luta contra os mouros em Roncevaux (778);
II – Também em torno das figuras do Rei Artur e de seus paladinos
surge – embora com outro espírito – um mundo de lendas e de mitos:
Bruno Enei
34 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

o mundo dos cavaleiros da Távola Redonda, o mundo de Ginevra, de


Isolda, de Tristão, de Lancelote; o mundo romântico e individualístico
dos cavaleiros que lutam pelo amor, pela aventura, pela coragem e
lealdade;
III – Por último, como esquecer as figuras imortais dos heróis
da Antiguidade? Como esquecer Alexandre, César, Eneias? Como evitar
a tentação de torná-los contemporâneos, como um patrimônio comum,
contra o espírito de violência e de destruição dos chefes bárbaros? Surge,
assim, um terceiro “ciclo” de poesia épico-cavalheiresca: o dos antigos
heróis e das antigas damas, transformados em cavaleiros e em castelãs
da Idade Média.
Os troveri,7 cantando na “viola”, e os giullari,8 visitando cidades
e cortes, difundiram, também na Itália, esses contos da magnanimidade,
do valor e da fidelidade. E os italianos começaram a traduzir, a imitar,
a compilar, escrevendo até em francês ou em um misto de francês e
de dialeto. Não se pode conceber que a alma italiana ficasse insensível
diante do fundador do Sacro Império Romano. Não se pode conceber
que a alma italiana ficasse insensível diante daqueles antigos heróis que
a Eneida e o De Bello Gallico imortalizaram no verso mais límpido e
gentil e na prosa mais simples e concreta da literatura latina.
Da penetração e da presença da poesia épico-cavalheiresca do
Ciclo Carolíngio na Itália são provas, além de tantas outras anônimas
e inferiores, a Entrée d’Espagne de Minocchio da Padova e a Prise de
Pampelune, de Niccolò da Verona.
Da penetração e da presença da poesia épico-cavalheiresca do
Ciclo do Rei Artur na Itália são provas, além de tantas outras, La Tavola
Rotonda, La storia di Merlino e Tristano Riccardiano.
Da penetração e da presença da poesia épico-cavalheiresca do
Ciclo dei Cavalieri Antichi na Itália são provas, além de outras, I Fatti di
Cesare e I Conti di Antichi Cavalieri.

A literatura didascálico-alegórica da
França setentrional

Toda a literatura medieval se caracteriza por um espírito prático


de educação e por uma tendência ao Enciclopedismo. A arte não era
7
Trovadores.
8
Jograis.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 35

autônoma. Tinha a finalidade de instruir, de educar, de iluminar. Era a


“veste” da verdade. Era um “meio” a serviço da religião e da moral,
justamente como a Filosofia, considerada nada mais do que uma
Ancilla Theologiae. E tudo, quase imitando o espírito gótico, tendia
a resumir-se na pirâmide das Summae. O escritor obedecia ainda ao
binômio horaciano: utile et dulce. Daí a razão dessa literatura com uma
finalidade didascálica, daí a razão dessa literatura repleta de imagens e
figuras (a alegoria). Da França chegaram à Itália do século XIII e foram
muito populares: Le Roman de Renart e os Fabliaux. Começa, assim,
a literatura didascálico-alegórica italiana, que, já no século XIII, tem Il
Fiore de Durante e a obra anônima Rainardo e Isengrino.

A literatura amorosa da França meridional

Outra região (a Provença), outra língua (langue d’oc), outro


conteúdo (o amor). São poetas desta literatura: Bertram de Born (Dante,
Inferno, Canto XXVIII), Arnaut Daniel e Giraut de Borneill (Dante,
Purgatório, Canto XXVI), Jaufre Rudel, etc. E da Provença são os poetas
Peire Vidal e Rambaldo di Vaqueiras, presentes nas cortes italianas já no
século XII e aos quais, mais tarde, no século XIII, sobretudo após o ano
de 1209, seguiram-se outros e numerosos. Teve, assim, também a Itália
a sua poesia amorosa de inspiração provençal. Começou-se mesmo
escrevendo em provençal, nos metros e nas formas daquela escola.
Alberto Malaspina, Rambertino Buvalelli, Bartomoleo Zorzi, Lanfranco
Cigala e Sordello di Goito (Dante, Purgatório, Canto VI) são os poetas
mais dignos dessa poesia, antes de falarmos da Escola Siciliana.
Trata-se de uma lírica essencialmente amorosa, que provinha
de uma sociedade de apuro, extremamente culta e fechada no ambiente
aristocrático e difícil das cortes e dos palácios, onde rodeiam as altas
figuras da burocracia e do mundo feudal; onde vivem as damas numa
atmosfera de respeito, de cumprimento, cercadas por um cerimonial de
homenagens, de galanteio formal e de atenções. A mulher do mundo
feudal era quase uma divindade, um ser colocado num pedestal de
virtudes e de perfeições que lembravam – de certo modo – a hierarquia
político-social dos tempos dos feudatários e dos vassalos. Vivia ela no
incenso da adoração, dos suspiros e do desejo. E a palavra peregrina
e a expressão polidamente elaborada e elegante e a frase procurada e
singular dos poetas cantavam esses temas da gentileza num esquema
Bruno Enei
36 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

de amor, de felicidade e de primavera, que – na repetição – acabava


tornando-se monótono e artificial. Um amor que não era espontâneo e
vivo e sim consciente e intelectual; uma felicidade sem drama e quase
expressão de uma satisfação aristocrático-cultural; uma primavera de
flores, de perfumes, de estrelas, de luas e de luzes que somente em
algumas daquelas canzoni e daquelas ballate alcançavam o vigor e a
luminosidade das fulgurazioni da verdadeira poesia. Era, porém, um
mundo que tinha a sua razão histórica de ser, como expressão repousada e
formalística de uma sensibilidade que tendia à abstração de uma cultura,
sem frêmitos e sem apegos a anseios de renovação da realidade.

A poesia religiosa no século XIII

Um dos motivos dominantes e profundos da literatura italiana


do século XIII é o sentimento religioso. Mas o caráter popular, íntimo,
profundamente vivido e sentido, a urgência apaixonada com que ele
é cantado, a sinceridade, o empenho com que ele é expresso, fugiria
à nossa compreensão, se ficássemos somente num plano de literatura
religiosa tradicional e dogmática.
Não há na poesia religiosa do século XIII nada que nos
lembre aquele caráter jurídico, aquele cunho teológico, aquela
essência ortodoxa que são caracteres próprios dos grandes filósofos
do cristianismo medieval. O terreno onde surge a poesia religiosa do
século XIII é um terreno menos oficial, menos rígido do que este.
Uma veia de espontaneidade, de sinceridade, de popularidade permeia
a inspiração religiosa dos escritores do século XIII.
Há nesses escritores um anseio profundo de renovação, uma
saudade profunda dos tempos idos e iniciais do cristianismo, uma
solicitação mortificada que sai da insatisfação diante da Igreja, que
se vai cada dia mais transformando numa entidade política, num
organismo teocrático, numa autoridade inflexível, numa hierarquia
que se fecha na infalibilidade do chefe da Igreja.
Tudo isso, no século XIII, é prova de uma diferença que torna
quase irreconhecível aquela igreja dos primeiros tempos do cristianismo
em que as únicas preocupações eram os deveres, as virtudes e os ideais
do Evangelho; em que a Igreja era mais um conjunto democrático
de crentes do que um exército guiado e chefiado pelos dogmas, pela
autoridade do clero, pela infalibilidade do chefe da Igreja.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 37

Naquelas lutas entre Império e Igreja, num plano político


e territorial, se a Igreja ia ganhando como potência, ia, porém,
perdendo como espiritualidade. Daí essa insatisfação no seio popular
da Igreja. Daí essa insatisfação do povo diante do enriquecer-se e do
corromper-se do clero, que se tornava potente, rico, elemento de uma
burocracia teocrática.
Surgiram então movimentos religiosos saudosos da primitiva
honestidade, intimidade e pureza da Igreja. Surgiram movimentos
reagindo contra a realidade da igreja contemporânea. Alguns desses
movimentos eram decididamente hostis e adversários abertos da Igreja
e criaram aqueles movimentos que se chamaram “heresia”. Outros
lutavam no seio próprio da Igreja, na órbita da Igreja, fiéis à Igreja.
Mas, uns e outros num ponto concordavam: na necessidade de voltar ao
primitivismo dos alvores do cristianismo, num desejo de espiritualidade,
numa vontade de ação moral. A Igreja condenou não poucos desses
movimentos e outros ela soube acompanhar, sustentar e reconhecer.
Na Itália, sobretudo a Úmbria foi o primeiro centro dessas
afirmações de fidelidade ao Evangelho e de retorno àquela pureza
humilde e heroica dos primeiros tempos. Esse movimento religioso
surgia, em geral, nas cidades, nos conventos, no meio dos homens do
comércio.
Lembremos apenas dos escritores da Itália setentrional,
Bonvesin da la Riva e Giacomino da Verona, que são poetas mais
do aspecto supersticioso do que do aspecto ideal dessas aspirações
religiosas do século XIII. São dois poetas da Úmbria que exprimem na
sua pureza e na sua sublimidade o sentido e o espírito dessas aspirações
religiosas italianas do século XIII: San Francesco d’Assisi e Iacopone
da Todi.
O Inferno e o Paraíso de Giacomino da Verona são muito
materiais para serem a expressão dessa sensibilidade religiosa; é, em
vez, na poesia humana e aberta de São Francisco que o leitor pode colher
os aspectos verdadeiramente singulares das aspirações cristãs do povo
italiano do século XIII. Nasceu em Assis, em 1182.
São Francisco é o poeta que exprime, sobretudo, um anseio de
amor, de solidariedade, de alegria diante da natureza. O seu Cantico
delle Creature redime a natureza em que vivemos, santifica os elementos
da realidade. A natureza, que na Idade Média era um pecado, torna-se na
sua poesia, ela também uma manifestação da grandeza de Deus, de sua
divindade. A natureza com esse seu céu de estrelas, de sol, de ar, com
esses seus rios claros e meigos, com aquela sua sorella morte, com o seu
fogo, com seus ventos, nada mais é do que um ser como nós, uma filha
Bruno Enei
38 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

de Deus, uma nossa irmã, a quem devemos o amor, a compreensão e a


admiração como testemunha da grandeza infinita da criação. E, tudo o
que Deus fez tem em São Francisco a sua razão de ser.
Nada da criação é supérfluo, inútil ou pernicioso para São
Francisco. Na aparente discordância de elementos contrários, como
a luz e a escuridão, como a vida e a morte, como o céu e a Terra, há
uma substancial unidade e um feliz equilíbrio, estabelecendo por essa
diversidade e variedade a harmonia e a melodia de um mundo que Deus
criou. Nenhuma maldição por isso, nenhum receio; e sim uma atitude
de alegria e de solidariedade diante dessa natureza vária e bonita, que,
justamente na sua beleza e variedade, é prova da onipotência a que nós
homens também devemos a nossa vida.
Está aqui o segredo da poesia de São Francisco. Está aqui a
modernidade desse escritor que, na sua humildade e simplicidade, supera
o século e a mentalidade do século em que viveu para oferecer-nos
elementos que nos dão a possibilidade de considerá-lo o precursor do
Humanismo e da Renascença quando justamente a cultura italiana chega
a uma atitude naturalística.
Um naturalismo, aquele de São Francisco, que se sublima em
um conteúdo de profunda religiosidade; uma religiosidade que não sai
da cabeça, que nada tem de cerebral, que não é produto da cultura e
da teologia e sim de um sentimento de alegre humildade, de simples
espontaneidade, de humana compreensão.
É alegre, santamente alegre e vivo, o rosto deste poeta italiano.
Não há esforço no seu hino! É uma adesão inteira e cordial, quer à sua
pobreza, que ele considera uma verdadeira riqueza, quer à humildade
que não é perda de dignidade e quer à pureza que não é a renúncia à vida
e sim um ritmo nobre de apego à existência. Nenhuma elocução fria e
silogista neste poeta que Dante admirou profundamente, dedicando-lhe
um dos cantos mais cordiais e espontâneos do seu Paraíso.
Não é a palavra e a oratória que define São Francisco, mas a
ação, o trabalho, a convicção, o viver coerentemente e profundamente
com a moral do cristianismo. Parece um rei diante dos papas Honório
III e Inocêncio III, que autorizam a fundação de sua ordem. Parece um
homem cavalheiro e digno diante do sultão do Egito, aonde ele vai levar
a sua palavra sincera de humildade e de amor. Parece um personagem
de lenda esse santo que fala com as aves de Deus, que humaniza Il Lupo
de Gubbio.
E parece um novo evangelista, em 1224, quando o visita Cristo,
que fica com ele nos estigmas que o santo levou consigo à morte. E da
Terra sobe, enfim, para o Céu, em 1226, esse cantor da pobreza, esse
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 39

lírico do amor, esse apóstolo da solidariedade, esse fundador de uma das


mais eficazes e positivas instituições religiosas da Igreja, como é a ordem
franciscana dos “frades menores”, das “Clarissas”, dos “terciários”.
A posteridade lhe deu o nome de Alter Christus. E a poesia italiana
viu nele, até d’Annunzio, uma fonte de inspiração. E a pintura, desde
Giotto, nele se inspirou. E a Itália de hoje o invoca como seu patrono.
E o Humanismo e a Renascença viram nele um precursor que soube,
sobretudo com ação, abrir o egoísmo, a crueldade, a violência da idade
dura em que ele viveu.
Outro temperamento, outras exigências, outro conteúdo anima a
poesia religiosa de Iacopone da Todi. Nasceu em Todi, em 1230. Iacopone
é um lutador, um intransigente e apaixonado crente e defensor dos seus
ideais. Mas, não os vive e não se satisfaz em vivê-los pessoalmente.
Encontra ele uma igreja que não é a que ele sonha. Encontra ele uma
realidade que nega os seus ideais. Encontra ele um papa que não lhe
parece o digno sucessor de São Pedro.
Então, após a experiência de vida mundana até 1278, a tudo isso
declara ele a sua guerra aberta, inflexível, audaciosa, sem incertezas, sem
fraqueza, com um ímpeto heroico e unilateral de protesto e de violência,
chegando até, ele franciscano, a tomar partido ao lado dos adversários
da Igreja, a tomar parte numa guerra contra o papa Bonifácio VIII e a
ser preso até 1303, para depois viver seus últimos anos em Collazzone,
onde morreu em 1306.
Aqui também, na poesia de Iacopone da Todi, não é a doutrina,
o saber, o dogma e a teologia que nos interessam. Embora culto, não é
isso que define a personalidade de Iacopone da Todi. É o fervor para com
os seus ideais, o misticismo com que os afirma, a intransigência com
que luta contra quem os nega que nos revela o espírito de sua obra. Uma
amargura sem limite e desesperada domina o seu canto.
Não há poesia nas suas Laudi onde não se sinta um desprezo,
indistintamente, para com todos os que traem os ensinamentos do
Evangelho. Toda a sua poesia é um constante desvendamento da
hipocrisia, da assimilação da mentalidade de compromisso entre fé e
moral, entre crença e modo de viver. Contra ele e contra os demais,
contra o cidadão, o pai, o clero, as hierarquias da Igreja e o próprio papa,
que ele chama de Lucifero e lingua di blasfema, de acordo aqui com
Dante, que mais tarde condenará aquele mesmo papa.
São duas, sobretudo, as notas da poesia de Iacopone: o
pessimismo e o misticismo. As poesias que exprimem o seu pessimismo
chegam a expressões quase cínicas de condenação da carne e de
desespero do perdão de Deus, qualquer que seja a obra de penitência
Bruno Enei
40 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

que o homem possa fazer para descontar seus vícios. E as poesias que
se inspiram no seu misticismo chegam a verdadeiras expressões de uma
exasperada sublimidade. A musa de São Francisco é o amor. A musa de
Iacopone é a dor.
Os críticos consideram Iacopone da Todi como a maior
personalidade italiana do século XIII, como aquele que melhor parece
prenunciar a figura angulosa, lutadora, enérgica de Dante. No quadro
da literatura italiana do século XIII, antes de chegarmos, então, à
grande lírica do Dolce Stil Nuovo, é a poesia religiosa de Iacopone da
Todi e de São Francisco que nos fala de um motivo já propriamente
italiano, que surge como reflexo de um meio italiano e como
expressões da sensibilidade e da espiritualidade italiana, que abandona
as solicitações estrangeiras da França e da Provença, dobrando-se em
si mesmo e cantando os seus sentimentos e os anseios desse idealismo
religioso.

A escola do Dolce Stil Nuovo

Não é, portanto, nem de repente, que a literatura italiana do


século XIII chega à grande afirmação lírica da escola do Dolce Stil
Nuovo. Esta escola é mais uma conclusão do que um início; é uma
síntese de um trabalho secular que vai dos primórdios da formação da
língua “vulgar” até os últimos anos do século XIII. Nenhuma escola,
aliás, com um programa claro de técnica de linguagem e de conteúdo
surge repentinamente. Isto poderia ocorrer com manifestações de
caráter popular que surgiriam no meio do povo, representando os seus
sentimentos, as suas paixões, a realidade em que ela vive e age.
Mas a literatura do Dolce Stil Nuovo não é uma poesia popular.
Ela nada possui de primitivo, de vivo, de fácil, de espontâneo, posto que
a facilidade e a espontaneidade são os caracteres fundamentais da poesia
popular. A poesia do Dolce Stil Nuovo é, aliás, altamente aristocrática,
restrita a um grupo de poetas que Dante chama de saggi, isto é, sábios e
cultos, limitados a uma cultura essencialmente filosófica e teológica.
Por isso, a poesia do Dolce Stil Nuovo deve ser considerada
como a consequência de outras seculares experiências artísticas, como a
conclusão de outras tentativas, como o momento em que a língua possui
já os seus meios de expressão bem acabados, e a alma italiana, em seu
conteúdo autóctone, exprime já uma espiritualidade definida.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 41

Assim é que não é possível falar na poesia do Dolce Stil Nuovo


sem brevemente lembrar o que a literatura italiana até então tinha
realizado, no campo da poesia religiosa, da poesia didascálico-alegórica,
da poesia amorosa, da poesia cavalheiresca.
Lembrando essas várias etapas da literatura, abrimos a estrada
para uma compreensão historicamente mais profunda do sentido humano
e poético desta escola do Dolce Stil Nuovo com que se fecha a literatura
do século XIII e que prepara já os elementos formais e de conteúdo
sobre os quais surgirá a grande literatura do século XIV. É só chegando
à poesia do Dolce Stil Nuovo que o leitor poderá ver como tudo o que
até agora foi estudado na história da literatura italiana nada mais é do
que uma propedêutica, em que a alma italiana vai se preparando para
uma sua pessoal e original poesia, para uma sua pessoal e original visão
e interpretação da realidade, dos problemas humanos, da concepção
religiosa da vida.
A poesia cavalheiresca diante do Dolce Stil Nuovo carece
daquele sentido original que justamente lhe será impresso, nos séculos
XV e XVI, quando os poetas italianos saberão fazer própria essa
matéria, subjetivando-a com um conteúdo tipicamente humanístico
e renascentista. É então que encontramos a verdadeira poesia
cavalheiresca italiana, com Luigi Pulci, com Matteo Maria Boiardo,
com Ludovico Ariosto. Neles, aquela matéria não será mais supina
imitação, mas original canto de amor, de virtude, de uma realidade
onde prevalece um naturalismo que, embora não deixando de ser ideal,
perde aquele conceito de mito e de lenda próprio da primeira poesia
cavalheiresca.
E mais ou menos as mesmas observações poderiam ser feitas
a respeito da produção literária didascálico-alegórica que até aqui
estudamos como conteúdo de importação da França. E a poesia amorosa
da Scuola Siciliana empalidece diante dos poetas da escola a que
pertenceu Dante. Lendo os poetas do Dolce Stil Nuovo, compreendemos
a imensa distância entre estes e aqueles e percebemos profundamente
o orgulho e a razão daqueles versos com que Dante condena os poetas
anteriores ao Dolce Stil Nuovo:

“O frate, issa vegg’io”, diss’elli, “il nodo


che ‘l Notaro e Guittone e me ritenne
di qua dal dolce stil novo ch’i’ odo!”9
(Purgatorio XXIV, 49-57)
9
“Oh irmão, agora eu vejo”, disse ele, “a barreira / que manteve o Notaro e Guittone e
a mim / aquém do dolce stil nuovo que eu ouço!”
Bruno Enei
42 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

E não seria possível chegar ao Dolce Stil Nuovo sem fazer


menção à poesia religiosa do século XIII. Tudo converge então para
essa escola, que herda do passado formas e conteúdos que ela se
encarregará de renovar. E, além disso, não seria possível silenciar
sobre outros fatores aos quais o Dolce Stil Nuovo deve o seu
aprimoramento; toda a Filosofia, toda a Teologia, todos os estudos
de caráter científico e mesmo as condições econômicas e políticas da
Idade Média preparam a grande afirmação desta escola. E, se tudo
isso serve para compreender a sua gênese, o ambiente em que surge
completa essa nossa compreensão. O Dolce Stil Nuovo nasce numa
cidade de cultura, no meio de estudos de Teologia e de Direito, em
Bolonha, que era então a cidade aonde confluíam os estudiosos da
Europa.
Assim, também historicamente a poesia do Dolce Stil Nuovo
representa uma etapa essencial na história da literatura italiana. Essa
escola surge quando a Escola Siciliana morre. Surge quando a política
de Frederico II e de Manfredi jaz nos campos da derrota de Benevento,
em 1266.
Desde então, a Itália central, com Bolonha antes, e com Florença
depois, pode tornar-se o fulcro da inteligência, do pensamento, da arte
e da ciência italiana. É por todas essas razões que, quando se fala no
Dolce Stil Nuovo, fala-se numa escola não mais de caráter regional,
numa língua ainda dialetal, mas sim numa escola de caráter nacional,
na inspiração e na língua. Na inspiração, porque o programa da escola é
tipicamente italiano, surgindo na Itália em meio a uma cultura própria,
nada devendo a motivos exteriores e importados, sendo até, como
procuramos demonstrar, a superação da literatura anterior não original.
Na língua, porque os escritores não pouparam esforços no sentido de
levar para um plano nacional o meio expressivo, elaborando sobretudo
o dialeto vivo e cintilante da Toscana.
O fundador do Dolce Stil Nuovo foi Guido Guinizelli,
professor, filósofo e jurista da Universidade de Bologna. Dante
reconhece em Guido Guinizelli o pai do Dolce Stil Nuovo:

mio e delli altri miei miglior che mai


rime d’amore usar dolci e leggiadre
(Purgatorio XXVI, 98-99)

O poeta Guinizelli é considerado o fundador desta escola


justamente por ser autor de uma canzone que é considerada como
manifesto do Dolce Stil Nuovo: Al cor gentil rempaira sempre Amore.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 43

Para este sábio, o amor é sinônimo de gentileza, como a luz


é sinônimo de sol; o amor purifica e enobrece, como o sol; para esse
sábio, a mulher é um ser espiritual, cujo amor não é pecado, mas virtude,
meio, origem de todas as virtudes. Para esse sábio, diante até da justiça
divina, a mulher se torna um elemento de garantia da pureza moral, da
dignidade, e é a razão primeira do prêmio celeste. A canção fecha-se
com os versos:

Dir Li porò: “Tenne d’angel sembianza


Che fosse del Tuo regno;
Non me fu fallo, s’in lei posi amanza”.10

Esse conteúdo de Guinizelli, em ritmos diferentes, com


paisagens várias e numa tonalidade individual, foi tema de todos os
poetas do Dolce Stil Nuovo. Para todos, a mulher deixa de ser a cortesã
e o objeto de uma homenagem formal. Ela se torna um espírito, uma
imagem, uma mensagem quase aparição e presença breve e juvenil da
divindade.
Em nenhum desses poetas a mulher alcança uma perspectiva
individual. Em nenhum deles há uma simpatia particular em descrever
os aspectos físicos ou as impressões morbosas. Tudo se dá num plano
de alta espiritualidade e de íntima religiosidade. Trata-se, enfim, de uma
concepção religiosa do amor e da mulher. A finalidade do homem é
sempre o Além, é sempre o cumprimento dos deveres do Evangelho.
Mas tais deveres só podem ser cumpridos na base de um afeto e de
um amor por meio de uma mulher, que represente o estímulo real de
nossa elevação, de nossa espiritualização. E sem o amor, o homem não
é cristão, nem mesmo homem, e se assemelha mais ao animal. Nessa
adoração que vive de sentimento e de anseio, corre toda a poesia do
Dolce Stil Nuovo, de Guinizelli até Dante Alighieri.
O saber, a coragem, a ciência, a família, a pátria, a amizade e
qualquer outra manifestação da vida estão todas subordinadas a esse
amor ideal, a essa mulher-imagem, a esse platonismo profundamente
religioso. E tudo isso em geral fica expresso numa linguagem de alta
melodia, num ritmo em que nada manifesta sensualidade, morbosidade,
vulgaridade. As palavras límpidas e planas, em que prevalecem sobretudo
as vogais, sucedem-se lentamente umas às outras, no mesmo verso, e
o verso cai no outro com o mesmo tempo, fixando-se no quarteto, e

Dizer-lhe poderei: “Teve de anjo semblante / Que fosse do Teu reino; / Não foi falta
10

minha, se nela deitei amor”.


Bruno Enei
44 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

depois no terceto. Daí o soneto, esse conjunto de quatorze versos em


que são imagens e sentimentos que se exprimem.
A espontaneidade, a adesão da linguagem ao sentir, a
correspondência entre a vida do espírito e a realidade, esse imperativo
de unidade entre palavra e sentimento, entre corpo e alma, ficam para
sempre claros nos versos com que Dante se apresenta no Purgatório
como poeta do Dolce Stil Nuovo:

E io a lui : “I’ mi son un che, quando


Amor mi spira, noto, e a quel modo
Ch’e’ ditta dentro vo significando”.11
(Purgatorio XXIV, 52-54)

Depois do fundador Guinizelli, o ferreiro dessa escola foi


Cino da Pistoia, como diz Francesco De Sanctis, e seu poeta, Guido
Cavalcanti. Lapo Gianni e Gianni Alfani aumentaram o número dos
poetas desta escola.
Mas o poeta que soube verdadeiramente transformar em
altíssima lírica e em valor absoluto de canto a espiritualidade e os temas
da escola do Dolce Stil Nuovo foi Dante Alighieri. O Dolce Stil Nuovo
representa a fase de iniciação da poesia de Dante. O grande autor da
Divina Comédia não poderia ter sido aquele sublime intérprete da
humanidade e dos seus altos e nobres destinos se não tivesse sido antes
o intérprete de si mesmo, de sua alma, de seus sentimentos e ideais,
impulsionados pela presença viva e nobre, pela aparição beatificadora
e angelical de uma jovem que empolgou e iluminou os seus anos
juvenis. No centro da mocidade de Dante, desde os nove anos, aparece
uma figura feminina cuja existência real só um positivismo mesquinho
e banal poderia negar. E, aliás, essa capacidade idealizadora de Dante,
capaz de tornar símbolo um ser real, como foi Beatrice Portinari, é
bem o sinal de sua participação na poesia imaterial e quase estática do
Dolce Stil Nuovo.
Dante, antes da Divina Comédia, escreve um breve livrinho
de prosas e poesias intitulado La Vita Nuova. Esse livrinho foi por
antonomásia chamado Libretto Aureo porque é justamente o áureo
capítulo dos nobres sentimentos e ideais e anseios que acenderam
a sua alma de moço, antes que os problemas da realidade lhe
enrugassem a fronte. Esse livrinho vive completamente na esfera

11
E eu a ele: “Eu sou um que, quando / Amor me inspira, anoto, e daquele modo / Que
ele dita dentro [de mim] vou exprimindo”.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 45

da sentimentalidade, da psicologia, da espiritualidade do Dolce Stil


Nuovo.
No último capítulo desse romance juvenil, Dante anuncia A
Divina Comédia, assim como os versos, a língua e o alto valor poético
da escola do Dolce Stil Nuovo parecem anunciar a grande literatura
italiana do século XIV, com Dante, Petrarca e Boccaccio, os autores
que concluem os temas, os motivos dessa literatura em sua primeira
fase, antes que o Humanismo e a Renascença lhe confiram outra
linguagem, outro espírito e novas perspectivas, ou seja, justamente as
linhas da literatura moderna, que vai do século XV ao século XIX, na
véspera da chegada do Romantismo.

A poesia religiosa: Giacomino da Verona,


Bonvesin da la Riva, San Francesco d’Assisi
e Iacopone da Todi

A poesia religiosa tem começo com poetas rústicos, mas notáveis


sob muitos aspectos.
O cristianismo consagrou a ideia da igualdade, a ideia do próximo
e a ideia de uma justiça final e definitiva, que anula as iniquidades e as
disparidades da Terra. Ensinou a desviar os olhos das belas aparências
do mundo, a procurar no próprio íntimo as verdades profundas e
inalteráveis. Os poetas, em sua maioria frades, que caracterizam esta
época são muitos; deter-nos-emos, porém, em quatro.

Giacomino da Verona
Irmão franciscano da segunda metade do século XIII, possuidor
de pouca cultura. Escreveu De Babilonia civitate infernali, onde
descreve um Paraíso e um Inferno materiais e caóticos, em conjunto
com os aspectos sobrenaturais de outras obras medievais. É uma poesia
em dialetos de importância histórica, mostra que há poetas de amor, de
moral, etc. Poderia fazer pensar ser o precursor de Dante, mas há uma
distância imensa de cultura entre um e outro.

Bonvesin da la Riva
Bonvesin era milanês. Desapareceu depois de 1313. Deu-nos
algumas obras de caráter moral, didático e religioso que nos mostram
uma literatura humilde de seu tempo, muito embora seja edificante. A
Bruno Enei
46 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

mais vasta dessas obras é Libro delle tre scritture. Três são os elementos
contidos na poesia: o negro – doze penas, castigos materiais que ele
imagina serem impostos aos pecadores; o rosso – ele descreve as
dores da paixão e do sofrimento de Jesus Cristo; o aureo – o Paraíso,
naturalmente em proporções bem pequenas. O amor e a luz são dois
elementos que invadem suas linhas.

San Francesco d’Assisi


A biografia de São Francisco de Assis pertence não apenas
à história da Igreja, mas também à história civil, graças à influência
pacificadora exercida por ele. Viveu de 1182 a 1226 e foi fundador e
difundiu uma das maiores ordens religiosas da Igreja. Não foi sempre
um santo e era filho de pais muito ricos. No início de sua vida de moço
levava a vida mundanamente: era bonito, culto e espadachim.
Em 1206, teve uma grave doença e, durante os horrores
dessa doença, viu a morte. Teve consciência do que viu e isso lhe
serviu de incentivo para aliar-se ao movimento religioso. Tornou-se
profundamente pio, meigo, cheio de fé. Finalmente, em 1212, diante
do bispo, renunciou a todas as suas riquezas e conforto e fez voto com
a pobreza. Tornou-se Il poverello d’Assisi. A pobreza era a mulher que
desde a morte de Cristo fora esquecida. O seu amor a ela foi tamanho
que criou uma ordem onde ingressaram muitos homens ricos e de
posição. São Francisco foi chamado Alter Christus. Dois anos depois
de sua morte, sua mão ainda conservava os sinais das chagas.
Os dois conceitos pregados na vida espiritual de São Francisco
eram: o amor, a caridade e a compreensão; e o amor para com todos os
objetos da natureza.
As pregações de São Francisco são famosas. Em O Lobo de
Gubbio, ele falava com esse animal, conseguiu convertê-lo e mais tarde
sempre o acompanhava. Falava também com as aves. A única obra
escrita que deixou foi Laudes Creaturarum, mas indiscutivelmente
muito famosa e escrita em dialeto umbro.
A literatura italiana o considera uma das maiores expressões
poéticas. Uma expressão poética não mais cruenta, fragmentária, mas
sim, compreensiva.

Iacopone da Todi
Nasceu em 1236 e morreu em 1306. Foi um homem de cultura:
estudou Direito, exerceu a profissão de advogado. Vivia do seu trabalho,
frequentava a sociedade rica e gostava dela. Uma ocasião em que fora a
um baile com sua esposa, isso em 1268, ela ficou gravemente enferma
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 47

e morreu. Quando ele foi recolhê-la, abaixo de suas vestes elegantes ela
carregava o cilício. Nesse momento percebeu que ela era profundamente
religiosa e apenas o acompanhava por obediência. Ficou muitíssimo
impressionado, de tal forma que em 1278 renunciou à vida mundana e
tornou-se religioso.
Foi tão fiel que, quando da luta entre os conventuais e
espiritualistas, manteve-se com estes últimos, combateu contra
Bonifácio VIII, que favorecia os conventuais. Na luta travada entre a
Igreja e o Império, ele foi a favor da Igreja, foi firme e grande.
Numa guerra com uma família, pelo Castelo no Lácio, que
devia pertencer ao papa, ele combateu contra este. Foi preso cinco anos
(de 1298 a 1303). Na prisão ele lançou contra Bonifácio uma sátira
impetuosa, chamando-o de “O novo Lúcifer”, “Língua de Blasfêmia”.
Dante condenou Iacopone ao Inferno antes de morrer. Ele morreu no
convento de Collazone.
Atualmente é ainda muitíssimo estudado. Se há poeta que faça
lembrar Dante é Iacopone. É a maior personalidade poética da época
religiosa. O ambiente de que promanam suas poesias não é apenas
religioso, mas também moral e político. Tem, não obstante, as suas
deficiências. Aliado a seus defeitos, ele mostra a sua personalidade
própria de poeta. Entre as obras que deixou, menciona-se Pianto de la
Madonna de la passione del figlio Gesù Cristo.

A poesia realística e burguesa

O século XIII tem o seu fim com o aparecimento da poesia


realística e burguesa, a qual surge em caráter de oposição à poesia do
Dolce Stil Nuovo, e em geral a toda a poesia do século XII. Primeiramente
façamos um comentário sobre os ideais que foram a base das poesias que
antecederam a poesia realística e burguesa.
A poesia religiosa teve sua inspiração nos sentimentos cristãos,
na humildade, no amor, na irmandade, enfim, em todas as virtudes e
em todos os ideais nobres. Essa época teve poetas notáveis e que se
destacaram na história da literatura italiana. Em seguida surge a história
da Scuola Siciliana, cujos poetas, obras e inspiração são motivos de
admiração.
A fonte de inspiração dos poetas da Scuola Siciliana era o amor,
a beleza feminina, o gosto de viver colocando nesse amor um sentido
Bruno Enei
48 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

de adoração. Apesar disso, o amor é cantado ou parece ser, na rigidez


convencional do estilo, exercício literário e moda.
Tem lugar então a escola denominada Escola de Transição; os
artistas que dela fizeram parte muito se esforçaram pelo aprimoramento
da cultura. Eram escritores de sentido religioso, valor espiritual e
profundamente italiano.
Surge após, em Bolonha, a Scuola del Dolce Stil Nuovo. O
objetivo dessa escola foi também procurar a natureza do amor, porém
com muito mais sutileza e espiritualidade. Os objetos da poesia eram a
interpretação do amor num sentido altíssimo, nobre e juvenil. O maior
poeta dessa escola foi Dante, que escreveu A Divina Comédia. Ele
representa e interpreta toda a época do Stil Nuovo.
Finalmente, aparece a poesia realística e burguesa, assim
denominada por tomar como tema de suas poesias as paixões vividas,
o amor às sociedades, ao ambiente alegre e feliz. Procurava afastar-se
o máximo possível das preocupações, dedicando o tempo cantando,
amando e tocando. Essa vida que foi o motivo da obra de Boccaccio.
Em relação às poesias anteriores, ela é feita de imitação, bastante
falha, poesia de transição linguística. É uma lírica realista ou sensual,
folgazã e geralmente de escasso valor.
Os poetas deste período foram: Cecco Angiolieri, o florentino
Rustico di Filippi, Cene della Citarra e Folgore da San Gimignano.

Cecco Angiolieri
Nasceu em Siena em 1260, morreu em 1312. Foi considerado pela
crítica como no grupo dos poetas cômicos. Teve uma vida desregrada,
ímpia e triste. Deixou mais ou menos cento e cinquenta sonetos, sendo
o principal aquele em que canta seus vícios. Pode ser chamado de cínico
pela coragem que teve de mostrar nos seus versos o ódio imoral que
dedicava ao pai e à mãe.
Ele cantou principalmente uma mulher, Bechina, filha de Agevol,
a quem ele amou, com quem casou, porém não foi correspondido. Aí
começou sua infelicidade. Cantou contra o pai, que, apesar de ser rico,
não o ajudava e o deixava na pobreza. Alegrou-se quando o pai morreu.
O seu ódio era tanto que escreveu que até na morte não queria visitar
seu pai. À mãe ele odiou também e perto desse ódio detestou todo o
mundo.
Nos últimos três versos ele acorda, pensando como seria roubar
as mulheres bonitas para si e deixar as feias para os outros.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 49

Rustico di Filippi
O caráter de sua poesia não é amoroso, mas sim sonetos de
caricatura. Ele tinha uma capacidade extraordinária para descrever as
pessoas daquele tempo. Escreveu Sonetti, constituído de cinquenta e sete
versos, onde ele se revela um autêntico caricaturista da vida florentina.
Era entretanto um escritor de escassos conhecimentos históricos e seus
sonetos, muitas vezes, deixavam o leitor indiferente, porém se este o
entende, observa quadrinhos de valor político.

Folgore da San Gimignano


Foi um suave narrador das festas e da vida cavalheiresca da
Toscana. Ele escreveu um grupo de poesias denominadas Corone.
Sonetti de’ mesi: sobre os dias do mês, com catorze sonetos
dedicados a um chefe de brigada. Nesses sonetos ele sugere o que se
deve fazer em cada mês para gozar a vida tranquilamente. Mostra a luz
e os perfumes da natureza.
Sonetti della settimana: sete sonetos, um para cada dia da semana,
mostrando o que se devia fazer. Canta o sentimento da vida natural, o
prazer de viver quando a vida é tão bela.

Cene della Citarra


Sua poesia foi de um cantar popular, quase sem preparo,
assemelhando-se a uma paródia dos sonetos de Gimignano, porém num
sentido oposto, isto é, sugeria as coisas com o que de pior os “meses”
oferecem. A paródia é como um jogo.

A Scuola Siciliana até o Dolce Stil Nuovo

A literatura italiana na sua origem não pode ser considerada


como grandiosa, nem viva e nem mesmo autóctone. Literariamente,
ela está ligada à França e Roma. Com a queda do Império Romano do
Ocidente, ao iniciar-se o século XIII, tem lugar na Itália uma literatura
que, não sendo já latina, ainda não é italiana.
É nos séculos XI e XII que ressurgem com as Comunas os
destinos da Itália. Deve-se a este ressurgimento de caráter político
e mercantil a sequência, o desabrochar das artes, particularmente o
desenvolvimento da arquitetura romana e a renovação dos estudos
jurídicos e teológicos. A literatura verdadeira e autêntica, porém, continua
Bruno Enei
50 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

silenciosa. Os documentos que interessam são poucos e sem interesse de


desenvolvimento futuro.
Somente no século XIII é que o italiano vulgar começa a ser
empregado em escritos de caráter literário. A nova literatura nasce com
caráter de interioridade que não é suficiente para defini-la, que também
não é constante, porém retorna nos grandes poetas distanciados por
séculos entre si – Dante, Petrarca, Tasso, Alfieri, Foscolo, Leopardi,
Manzoni, Pascoli – como sinal de uma revolução espiritual, impossível
de refrear.
E já no período das origens essa maior interioridade se traduz
na poesia do Stil Nuovo, na mística úmbrica e em Dante, isto é, nas mais
duráveis criações poéticas da época.
Só no século XIII é que podemos ver uma orientação de caráter
artístico na poesia italiana, com o aparecimento de uma escola de poetas
que se denomina La Scuola Siciliana. Os componentes dessa escola têm
uma consciência precisa da poesia provençal. Os toscanos prendem-se
a eles e ajuntam ao adestramento técnico uma cultura filosófica mais ou
menos ampla.
A Escola Siciliana assim se denomina não porque fosse formada
por um grupo de poetas essencialmente sicilianos. A razão do seu nome se
deve a Frederico II, rei da Sicília de 1208 a 1250, ano em que morreu. Ele
teve na sua corte o primeiro centro de cultura no período das origens. Esse
rei, pela sua cultura e generosidade, foi considerado um dos precursores
da Renascença e do Humanismo.
O material e as formas poéticas da Escola Siciliana são antes de
tudo de origem provençal. Os motivos não são espontâneos e sim liga-
dos à lírica provençal. O tema é o amor, concebido com um refinamento
aristocrático em que se notam os reflexos dos costumes feudais das cortes
de Provença.
Os poetas da Escola Siciliana cantaram o amor, a beleza feminina,
o gosto de viver, colocando nesse amor o panorama da natureza, no
sentido de adoração e homenagem à primavera. Nesta poesia falta não
só uma mulher viva, mas mesmo um coração vivo de poeta. O amor é ou
parece ser, na rigidez convencional do estilo, exercício literário e moda
elegante.
Os principais poetas desta escola são: Odo delle Colonne,
Federico II, seus filhos Enzo e Federico d’Antiochia, Rinaldo d’Aquino,
Giacomino Pugliese, Giacomo da Lentino e Pier della Vigna.
A Escola Siciliana é lembrada com grande honra, pela primeira
vez, por Dante, que, no De Vulgari Eloquentia, falando de Frederico II e
de seu filho Manfredi, escreve:
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 51

Os homens nobres de coração e dotados de galhardia se esforçam


por conformar-se à majestade de tão grandes príncipes: de tal forma
que, tudo o que no seu tempo produziram os mais ilustres dos latinos,
primeiramente vinha à luz na corte daqueles reis tão grandes. E
porque a sede real era na Sicília, aconteceu que tudo quanto os nossos
predecessores fizeram em vulgar foi denominado siciliano: e este uso
também nós outros o conservamos e nem saberão mudá-lo os nossos
pósteros.

A Escola Siciliana teve vigor até 1266, quando teve lugar a


derrota de Benevento. Nessa época aparece a Escola de Transição e
se transfere da Sicília, que fora o centro das artes e das ciências da
Itália, para Florença. Alguns artistas da Escola de Transição muito se
esforçam pelo aprimoramento da cultura, e se destacam entre eles:
Bonaggiunta Urbiccini da Lucca, Folcacchiero dei Folcacchieri, Dante
da Maiano, Guittone d’Arezzo, Campiata Donzele.
Esses escritores eram de sentido muito mais religioso, valor
espiritual e profundamente italiano. Em alguns poetas deste tempo,
sente-se já uma delicadeza artística maior e uma feitura mais suave e
mais leve, que prenunciam o estilo novo.
A Scuola del Dolce Stil Nuovo surge em Bolonha, centro de
cultura da Europa, onde os estudiosos iam terminar e aperfeiçoar
seus estudos. O fundador da escola foi Guido Guinizelli, homem de
letras em toda a acepção da palavra e professor da Universidade de
Bologna.
A designação dessa escola vem de Dante: Nuovo indica
a distância que a separa da poesia antecedente; Dolce, a entonação
dominante nesta lírica amorosa. Não há mais a entonação cavalheiresca,
mas psicológica e altamente ideal. Busca também ela, como fizeram
alguns poetas da Escola Siciliana, saber qual é a natureza do amor,
porém com muito maior espiritualidade e maior sutileza. Esta poesia
tem, realmente, um fundamento a um tempo religioso e filosófico. É
poesia filosófica quando obtém da Escolástica a precisão das distinções
e da linguagem, e estuda o amor com uma severidade científica; é
poesia religiosa quando faz do amor um meio de elevação espiritual e
da mulher amada uma criatura celestial.
Foi na Scuola del Dolce Stil Nuovo que teve início a concepção
do amor e da mulher, amor esse não mais cavalheiresco, mas no
sentido de religiosidade. A unidade do amor em que ele se torna
de caráter moral, onde não há gentileza sem amor e nem amor sem
gentileza. A mulher é antes de tudo anjo, embora seja cheia de vida,
é como uma visão. Ela nunca é descrita nestes poetas e sim os seus
Bruno Enei
52 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

sentimentos íntimos e humanos. A mulher não é motivo de desejo e


sim de contemplação num amor juvenil e eterno. O motivo do amor
não era o do ser fisicamente amado, e sim de elevar o homem afim de
que ele abandonasse as mesquinhezas da vida. O objeto desta poesia
era a interpretação do amor num sentido elevadíssimo.
Com a poesia do Dolce Stil Nuovo a idealização da mulher, já
iniciada pela Escola Siciliana, dá um passo à frente com Dante, que é o
maior poeta do estilo novo; a idealização da mulher se diviniza.
Os principais autores do estilo novo foram: Guido Guinizelli
– fundador –, Lopo Gianni, Gianni Alfani, Cino da Pistoia, Guido
Cavalcanti, Dino Frescobaldi e Dante Alighieri. A canção de Cavalcanti
é, realmente, como que o enredo filosófico da escola; é ordenada e precisa
como um raciocínio, pois estuda, com minúcias, qual é a sede do amor,
qual a sua causa, a sua virtude, o seu poder, os seus efeitos, etc.
Um pouco dessa disposição lógica se encontra em outros
poetas da mesma época. Em todos, afinal, sente-se pelo menos algumas
vezes o convencionalismo daquela especial mitologia que o estilo novo
criara, personificando na forma etérea, conveniente a uma poesia tão
imaterial, os estados d’alma do poeta e da mulher. Dante é considerado
o maior poeta das origens; escreveu A Divina Comédia, obra grandiosa
e magnífica, onde ele descreve o Paraíso e o Inferno.

A LITERATURA ITALIANA NO
SÉCULO XIV
Neste século encontram-se três personalidades da literatura
italiana, que, pela importância das obras, são também três grandes
personalidades da literatura universal. Não há, pois, povo que não
conheça Dante Alighieri, Francesco Petrarca e Giovanni Boccaccio.
E interessante é notar que eles representaram três momentos de uma
idade, três fases da espiritualidade italiana, três momentos da dinâmica
espiritual e artística da literatura. A primeira fase é representada por
Dante, a segunda por Petrarca e a terceira por Boccaccio, fases estas
que são indicadas pela forma com que Dante exprime o seu mundo
artístico, o terceto; Petrarca o seu, o soneto; e Boccaccio o dele, a
prosa.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 53

Esses três poetas representam também a passagem, não só


métrica e sintática, mas igualmente num sentido humano, de uma forma
à outra, isto é, do terceto, que é severo em Dante, ao soneto, que é um
pequeno retrato de gentileza, de saudade, em Petrarca, à prosa narrativa,
descritiva, representativa de Boccaccio. Temos, por conseguinte, três
obras: La Divina Commedia, Il Canzoniere e Il Decamerone.
A Divina Comédia é a representação do drama humano,
sob o ponto de vista da eternidade. Il Canzoniere é uma análise da
dúvida, da melancolia, representada pela crise espiritual de Petrarca. Il
Decamerone é a narração objetiva do mundo como ele é, e não como
deveria ser, o que acontece na Divina Comédia.
Petrarca é o poeta que, entre a Idade Média e o Humanismo,
fica numa melancolia, num tom musical de análise da sua alma. Seus
catorze versos são os suspiros e as saudades que o atormentam.
O século XIV é aquele em que se fecham as lutas da Idade
Média, e, através da literatura desses escritores, abre-se a possibilidade
de ver as primeiras antecipações da cultura que prepara o Humanismo
e a Renascença. É, pois, um século que abandona a Idade Média e
anuncia a Idade Moderna. Dante fecha e sintetiza a Idade Média,
Petrarca está entre ela e a Renascença, e Boccaccio é um humanista
sob muitos aspectos. Daí a grande importância que tem o século XIV.
Dante é considerado o pai da literatura italiana, porque faz seus,
na Divina Comédia, todos os problemas da Idade Média, sintetizando
todos os aspectos secundários inferiores; ainda, porque toda a literatura
até então, como a poesia cavalheiresca, religiosa, etc., dificilmente
alcançará o ritmo que a poesia moderna exige; e Dante põe tudo isso
numa forma eterna. Ele é o intérprete daquela idade, o seu lírico. Nada
criou de novo, de extraordinário. Tudo o que escreveu já se encontra
em outros escritores da literatura italiana. E é justamente nisso, em
não haver nada de novo e especial, que está a sua grandeza, pois suas
criações eram sentidas por todos e ele interpreta a todos numa forma
definitiva, singular, nova. Eis o grandíssimo poeta.
Dante é o pai da literatura italiana também por ter escrito obras
de caráter linguístico, como De Volgari Eloquentia; por ter definido
o que deva ser uma língua; dispondo de uma linguagem ainda ligada
ao dialeto florentino, criou uma nova expressão, com palavras que não
são mais regionais mas que permanecerão para sempre incorporadas à
língua, ao patrimônio linguistico universal. Eis o vulto, a personalidade
de Dante.
Bruno Enei
54 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Vida de Dante Alighieri (1265-1321)

Dante nasceu em maio de 1265, em Firenze, filho de Alighiero


di Bellincione, de família guelfa nobre, mas não rica. Seus antepassados
foram heróis, como seu trisavô, um mártir cristão, que estimula Dante
a ser herói como poeta e não como militar. Podemos dividir a vida de
Dante em três períodos fundamentais:
O primeiro é o da sua infância, da qual pouco sabemos. Aos
nove anos, em 1274, encontrou pela primeira vez Beatrice Portinari, que
também tinha nove anos. Houve um período na crítica europeia que negou
a existência de Beatrice, mas é viva demais a forma com que Dante fala
dela para que se possam ter dúvidas quanto à sua existência, pois sendo ele
um dos poetas menos sonhadores, cuja reação poética foi sempre devida
a um choque, e portanto não há nenhuma razão para acreditarmos nessa
crítica. Alguns chegaram a dizer que ele pôs apenas um “b” maiúsculo
ao verbo beare (beatificar), o que vem a ser um disparate.
E nove anos mais tarde, em 1283, Dante reviu essa moça, tendo
ele já completado 19 anos; então compreenderam-se e amaram-se,
formando-se La Vita Nuova. Beatrice morre em 1290, tendo casado
por questões políticas com um senhor riquíssimo chamado Simone dei
Bardi.
De 1265 a 1290, ele estudou regularmente nas escolas de então as
artes do trívio e do quadrívio. Um outro fato importante de sua mocidade
é o seu amor por Beatrice, o que põe em evidência o seu idealismo, a
sua honestidade, a sua pureza de sentimentos. Todas as suas lembranças
são baseadas em sentimentos de altíssima nobreza, como num sorriso
que o enobrece e o transporta a um mundo de idealidade, um traço de
seu caráter.
Assim como foi puro e honrado para com Beatrice, também o
foi para a pátria, pois foi igualmente um lutador, um combatente. Em
1298 combateu com o exército florentino contra Arezzo, sendo ferido na
batalha de Campaldino, da qual lembra muitas pessoas no Canto V do
Purgatório.
Nesse ano também tomou parte num assédio da ilha Caprona
(sendo que no Canto XXXIII do Inferno ele canta a tragédia de um pai
que antes de morrer foi obrigado a ver a morte dos seus filhos).
Até aqui tivemos um Dante estudioso, enamorado e lutador,
começando em 1290 uma outra fase na vida de Dante, pois é nesse ano
que morre Beatrice, como morrem todas as moças do Dolce Stil Nuovo,
que eram visões passageiras. Nesta nova fase Dante está insatisfeito,
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 55

vê somente vácuo, considera a vida inútil porque desapareceu o seu


amor. Dante torna-se amante da Filosofia, abandonando a Gramática e
procurando na Filosofia o raciocínio para compreender a realidade e por
que razão os ideais são verdadeiros. Beatrice então torna-se o símbolo
do amor e da verdade, e mais tarde também da Teologia.
Dante estuda Filosofia frequentando as escolas filosóficas
de Firenze, ministradas em três conventos: Santa Maria Novella,
dos Domenicani ou do racionalismo de São Tomaz; Santa Croce, dos
Francescani ou do sentimento; Santo Espírito, dos Agostiniani ou da
dúvida.
É pois através desses três sistemas filosóficos que se formou a
personalidade de Dante, que se atira ao pensamento, à Filosofia e define
sua personalidade. Este é o período em que forma sua cultura, que nunca
é racionalista, pois foi um admirador do mundo de São Francisco, que
não é árido, mas fértil e ameno, e seus seguidores pensam e sentem
ao mesmo tempo. Dante é um caráter exuberante, generoso, de forma
que aquela filosofia fria, calculada, não é a que pode combinar com sua
mentalidade.
Em 1295 ele está pronto para enfrentar a vida como homem,
quando começa outra fase, a de Dante moço, infante, capaz de jogar a
vida pelo seu ideal; é a primeira fase. Agora, é o estudioso que sente a
vida através da cultura, tomando atitudes na vida, sendo político sem ser
partidário, tendo ideais para poder agir na vida.
Por isso Dante entra na vida política, e é interessante saber-se
que Dante, sendo nobre, não podia tomar parte ativa na vida política,
pelo fato de em Florença haver uma confederação chamada Ordinamenti
di Giano della Bella, cujo espírito era essencialmente democrático
e popular. Naquela época não podiam tomar parte na vida política os
homens que não pertenciam a uma profissão: ou a uma arte maggiore
ou a uma arte minore. Os nobres não podiam tomar parte nessa vida
pública, mas houve uma reforma, com a condição de que eles se
inscrevessem numa arte, tornando-se plebeus. Dante então tomou parte
na arte dos medici e speziali para poder entrar na vida política. Fez parte
do Consiglio dei Cento, sendo um dos conselheiros. O chefe da cidade
era o priore, e para nomeá-lo escolhiam-se cem cidadãos, que indicavam
quem deveria ser o priore. Eles eram escolhidos pelos bairros. No bairro
de Dante, ele era algo conhecido pelas suas qualidades e cultura.
Ainda pertenceu depois ao Consiglio dei Savi, a elite dos priori,
e que cuidavam dos interesses externos e internos da cidade, que era
um Estado independente. Mas a coisa mais triste e feliz aconteceu a
Dante em 1300, quando, do dia 15 de junho a 15 de agosto, durante dois
Bruno Enei
56 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

meses então, foi nomeado priore de Firenze, chegando ao posto mais


alto, o de chefe da nação. No entanto, foi a sua tragédia, pois com a sua
honestidade, os seus inimigos o destruíram.
Pois Florença era uma cidade dividida por facções políticas.
Existiam em Florença e na Toscana dois partidos tradicionais: os Guelfi e
os Ghibellini, que desaparecem em 1265, o ano da batalha de Benevento, e
com isso os Guelfi tornam-se vencedores. Mas como acontece geralmente
aos vencedores, a vitória é causa de contrariedades. O partido dos Guelfi
começa a dividir-se em várias tendências, como a ala revolucionária,
etc. Há, sobretudo, duas facções: os Neri e os Bianchi, que dominavam
a situação política de Florença. Dante foi sempre Bianco; os Neri eram
chefiados por uma família chamada Donati e sobretudo por um que
Dante condena no Inferno, chamado Corso.
Qual a dificuldade entre os Bianchi e os Neri? Os Neri
representavam principalmente a força agrícola, os arredores de
Florença, os ricos e fortes proprietários de terra, e, para chegar ao poder,
até permitiriam que a Igreja ocupasse Florença. O papa de então era
Bonifácio VIII, que tinha ideias de dominação territorial e foi o primeiro
adversário de Dante.
Os Bianchi representavam a tradição da cidade, a cultura, a classe
burguesa, a aristocracia florentina e as artes; eram pessoas que tinham
muitos haveres sob o ponto de vista monetário e faziam absoluta questão
da autonomia de Florença, pois nunca teriam permitido que alguém
ocupasse Florença a não ser eles próprios, os florentinos.
Daí a atitude de indiferença, daí a razão de tantos cantos da Divina
Comédia, descrevendo-se a figura de Bonifácio VIII como proprietário e
não como chefe da Igreja.
Em 1300, quando Dante era priore, teve de ir a Roma. Durante
a sua ausência, aconteceu algo contra ele: os Neri tomaram força e
afastaram os Bianchi. Em janeiro de 1301, Dante teve uma condenação,
isto é, ele foi expulso de Florença e deveria pagar uma multa em dinheiro
para resgatar o crime de que era acusado: o furto, a barateria, isto é, a
pessoa que se serve do dinheiro público para fins próprios.
Dante soube disso, que ele foi condenado à morte se aparecesse em
Florença. Ele deveria ser igne comburatur sic ut muriator, queimado pelo
fogo até ser morto, em 1302. Acontecera que o papa durante a sua ausência
serviu-se do rei francês Carlos de Valois, que veio a Florença com uma
política habilíssima, em nome do papa. Os cidadãos acreditaram nele e
Carlos impôs a vontade da Igreja e Dante foi perseguido e condenado.
De 1302 em diante, Dante nunca mais reviu sua caríssima cidade.
Deixou lá sua mulher, chamada Gemma Donati, e três filhos: Iacopo,
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 57

Piero e Antonia, que tornou-se freira, tomando o nome de Beatrice. Dante


teve de abandonar os amigos mais íntimos, sua casa, suas ocupações, sua
vontade de agir; bem pobre, sem nada, sem recursos, durante dezenove
anos ele viveu no exílio, com a contínua preocupação de ser preso, sem
nunca poder ver sua cidade, que lembra nos seus cantos, desde o batismo
até ser priore.
Dante foi vagabundeando pelos castelos da Itália, sofrendo
humilhações, mas amadurecendo sua alma, desabafando o seu idealismo,
porque vinha escrevendo suas obras. Imagine-se o que isto significa para
Dante, cheio de coragem, honestidade, cultíssimo, este exílio, pedindo
para deixarem-no viver, saudoso de sua cidade. Nunca mais ele voltou,
apesar de em 1315 oferecer-se uma possibilidade: um parente de Dante
escreveu-lhe uma carta convidando-o a voltar a Florença porque havia
uma lei que favorecia sua volta. Mas era uma lei de vergonha, pois se ele
reconhecesse publicamente o crime de que era acusado, poderia voltar. E
é nessa ocasião que Dante escreve a seu amigo uma de suas cartas mais
bonitas pela sinceridade, na qual Dante responde o seguinte: “Non haec
est via redeundi”,12 pois nunca ele aceitará a esmola que joga sombra
sobre sua moralidade. Esta sua reação é a de quem tem uma família e
serve para descrever sua personalidade e o enorme valor que tem uma
poesia que escreve no exílio: “L’esiglio che m’è dato onor mi tengo”.13
Dante viajou muito na Itália. Esteve em Verona com um grande homem:
Can Grande della Scalla. Esteve também na Lunigiana, numa família
chamada Malaspina. Em Lucca ele enamorou-se de uma moça chamada
Gentucca, e nas terras de Gubbio ele conta o famoso episódio de São
Francisco. Também esteve em Paris.
Em 1321, Dante encontrava-se numa cidadezinha perto do
Pó chamada Ravenna, com suas grandes igrejas feitas no tempo de
Teodorico, em 425 de nossa era, e onde há uma famosa pineta. O chefe
dessa cidade era Guido da Polenta, pai de uma das moças mais imortais
e sugestivas da Divina Comédia: Francesca da Rimini. Dante, voltando
de Veneza onde tinha ido levar uma incumbência, ficou doente e morreu
em setembro de 1321, sendo sepultado em Ravenna, num mausoléu
nesta pineta (campo cheio de pinheiros, muito famoso porque nele bate
o vento do mar, e este pinheiral é lembrado por Dante no Purgatório: a
ondulação melodiosa das árvores batidas pelo vento do mar).

12
Não é esta a estrada pela qual posso aceitar voltar a Florença.
13
O exílio que me foi dado eu o considero uma honra.
Bruno Enei
58 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Obras de Dante

Cada uma das obras dá um aspecto da personalidade de Dante,


e em conjunto dão o valor da poesia de Dante.

La Vita Nuova
É um livro que Dante chama Libretto, dedicado a um amigo seu,
o poeta Guido Cavalcanti, do Dolce Stil Nuovo. Provavelmente Dante
escreveu esta obra entre 1292 e 1293. Ela é formada de duas partes:
uma em prosa e outra em poesia. A prosa foi toda escrita entre 1292 e
1293, no período em que o poeta pensou em descrever, em narrar os seus
sentimentos, no período de amor para com Beatrice. E não apresenta por
isso diferenças de estilo. A poesia, em vez, sente os vários períodos em
que foi escrita, porque as poesias foram escritas em 1274 e 1292, isto é,
apresentam situações diferentes. Psicologicamente, porque representam
períodos de felicidade, morte, exaltação e diferenças de linguagem.
Estão divididas em trinta e uma poesias, que compreendem vinte e cinco
sonetos, quatro canções, uma balada e uma stanza.
O total desta obra é La Vita Nuova, e os críticos procuraram, uns,
dizer que ela assim se chama porque Dante aqui conta a sua mocidade,
sua vida dos primeiros anos; mas outros há que dizem que ela assim se
chama porque conta a vida de Dante que se transforma pela influência
de um nobilíssimo sentimento de amor. No entanto, as duas categorias
de críticos são unilaterais, pois nenhuma delas é justa; é em vez as duas
coisas ao mesmo tempo, como Dante diz na Vita Nuova, que ele está
descrevendo: os efeitos que esse amor provocava na sua mocidade,
naturalmente num sentido fisiológico e místico ao mesmo tempo.
Muito mais razões devem ser dadas aos críticos que chamaram
esse livro de Libretto Aureo, justamente porque fora de acontecimentos
materiais externos; é a sistematização de Dante de 1274 a 1292, e
transformando esse conceito até à teologia.
O enredo dessa obra é o seguinte: Dante começa descrevendo
quando ele viu pela primeira vez, aos nove anos, Beatrice, que entrava
no seu nono ano. Nove anos depois, quando Beatrice entrava no décimo
oitavo ano, Dante a viu outra vez, e Beatrice correspondeu à simpatia
de Dante com um sorriso que indicava simpatia mútua, e isso renova a
vida de Dante, ficando ele tão ciumento no estudo da alma, que se cria
no seu espírito, que ele procura esconder isto, amando outras mulheres,
para que as coetâneas de Beatrice não falassem sobre este seu amor, que
ele queria que fosse uma coisa misteriosa e ignorada por todos, pois
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 59

era puro e sacro demais para que fosse objeto de intrigas, e por isso ele
procurou esconder seu amor, fingindo amar as mulheres que chama de
donne dello schermo.
Mas acontece que Beatrice, entristecida, fica julgando Dante
inferior ao que ela sonhava e imaginava que fosse, de forma que ela lhe
tolhe a saudação (segunda fase).
A terceira fase é uma que se pode considerar incompreensível
hoje, mas perfeitamente real no Dolce Stil Nuovo, pois Dante continua
amando Beatrice, humanizando atitudes reais e concretas, também
suspendendo a saudação a Beatrice e ficando indiferente dela, vivendo
num sentido platônico e ideal. Seu amor torna-se profundamente
religioso, humilde e íntimo e lhe é indiferente a existência de Beatrice,
sua saudação, pois tudo isso é separado pela profunda paixão, pela
delicadeza de sentir do poeta, que vive somente do pensamento de
Beatrice, que se torna dominante em sua alma. Dante se fixa num
idealismo sereno, vivendo consigo mesmo de um sentimento que é só
seu e que não é realizado. A terceira fase é, pois, platônica.
Na quarta fase Dante descreve ter ficado doente, e imagina, no
furor da febre, um sonho no qual a morte do pai e da própria Beatrice
é iminente. Dante sara, mas em 1290, pouco tempo após este sonho,
morrem justamente o pai e Beatrice. Então temos poesias maravilhosas,
de uma dor nobilíssima, em que um sentimento individual torna-se quase
dor universal. Tem-se a impressão que Florença fica sem sol, sem céu,
e quando Dante vê cidadãos entrarem na cidade, ele pergunta por que
eles entram rindo em Florença.
Depois da morte de Beatrice, Dante enamora-se das donne
gentili, moças que, vendo esse poeta meio solitário, desesperado, sem
ter confiança na vida, procuraram consolá-lo; Dante ficou amando essas
moças. Mas, num desses momentos, Dante sonhou que Beatrice lhe
aparece, queixando-se dessa sua paixão por essas moças, e Dante então
afasta essas tentações e retoma sua pureza ideal, prometendo que nunca
mais dirá algo sobre essa mulher, até que escreva uma obra em que
Beatrice seja o símbolo do saber e da teologia, até que, depois de ter
conhecido a vida e estudado, escreva uma obra tão vasta, geral, universal,
que nela entrarão os dois elementos antípodas: o Céu e a Terra. La Divina
Commedia é, portanto, uma obra que ele já pensa em escrever desde
1292.
La Vita Nuova, na Itália, foi estudada até nos seminários, onde
os padres liam esta obra aos alunos, como uma obra de religião que
purificava o espírito, que fazia com que a mocidade se fechasse numa
esfera de religiosidade, pois a nobreza está nesta obra, em que não há um
Bruno Enei
60 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

verso que fale dos cabelos ou dos beijos de Beatrice: nada disto existe.
Tudo o que Dante fala é uma reflexão religiosa diante de uma aparição
que ele imagina quase como um milagre de Deus na Terra.
Vê-se como o cristianismo soube influenciar até nos sentimentos
que parecem ser menos puros e mais inferiores na vida humana. É o amor
que se livra de qualquer sensação sensual, que chega a um silêncio, a uma
meditação. Essa é a razão da moralidade da obra de Dante. E nesse sentido
vê-se a distância entre a poesia do amor em Dante e a poesia provençal,
ou da Escola Siciliana, daquelas atitudes acadêmicas de homenagem.
Há em Dante a profunda subjetividade, fora de qualquer objeto alheio a
ela; é o seu sentimento com Beatrice que cria seu vocabulário, palavras
essas que são condensações do seu espírito, enquadradas em vinte e
cinco poemas.
Essa obra deve ser considerada em si e por si. Porém, lendo a
Divina Comédia e as outras obras de Dante, sente-se como ele, antes
de ser o cantor de uma virgem, foi o cantor de Beatrice e transformou e
viveu nobremente esse sentimento de amor, e a ela deve sua atitude na
vida, que é um bem e um mal ao mesmo tempo, pois até a tragédia da
vida de Dante influi nas suas obras.
Tudo dá uma razão de viver: o amor de Beatrice renovou sua
vida. Ele será um missionário, num sentido mais amplo, pela escola
de nobreza que ele teve e esse amor de Beatrice que faz com que ele
alheie-se à realidade e se acostumasse que a poesia fosse a expressão
do nosso sentir e não de literatura por literatura. La Vita Nuova é
o romance da mocidade de Dante, a obra em que ele descreve sua
juventude ideal, a pureza da sua alma de moço.
Suas outras obras, em vez, têm outro caráter: não são repletas
de idealismo, de sentimentos puros, elas não se movem numa atmosfera
de religião, com o amor colocado num plano ideal de pureza, mas sim
pelo interesse de um homem culto pela língua, e de um cidadão pelo
Estado.

De Monarchia
É escrita em latim não clássico, o que não tem nada que dizer com
a perfeição rítmica de Cícero ou de Tito Lívio, pois é um latim medieval,
com um ritmo quase vulgar. É escrita nessa língua porque Dante dirigia
esta obra aos homens de cultura, aos políticos, à aristocracia daquele
tempo.
Parece que foi escrita entre 1312 e 1313, isto é, durante aquele
período em que aparece na Itália um imperador alemão sonhador, chamado
Arrigo VII, de Luxemburgo; ele era cheio de ilusões e veleidades, tendo
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 61

descido da Alemanha à Itália com a esperança de reconstruir o Império


Romano. Sua concepção de fé era a da unidade política de Roma, com
a união dos povos. Porém ele não realizou isso, por não ter sido grande
político: logo após sua chegada à Itália, em 1313, ocupando-a até
Florença, ele morre numa cidadezinha chamada Buonconvento.
De Monarchia é composta de três livros; sua importância é a de
ter sido a obra em que Dante expõe a sua convicção política, narrando
e defendendo o seu ponto de vista.
No primeiro livro, Dante prova cientificamente que o Império
Romano não foi somente uma conquista de energia, do valor genial
romano, pois o Império Romano não podia ser uma criatura humano-
-política que deva a sua realização exclusivamente a meios humanos.
Para Dante, o Império Romano é uma criação de intervenção divina,
um milagre, é Deus que favoreceu este povo com uma finalidade
profundamente cristã. Deus quis a unidade política do mundo, porque só
depois disso teria sido possível a unidade religiosa.
Assim como no Evangelho existe um que anuncia a vinda de
Cristo, que é Il Prenunziatore, também no mundo da História houve
um anunciador da força política do Império Romano e que foi Dante.
Ele é então uma espécie de João, prenunciando o cristianismo. Isto é a
sua fé, a sua concepção política e religiosa, compreendendo-se então o
problema religioso ao lado do problema político.
Nesta obra Dante também quer demonstrar algo mais, apesar
de ser profundamente cristão e de ter uma concepção religiosa: ele faz
questão de pôr em evidência os deveres e os campos das duas forças
que são a religião e a política. Então ele traça os deveres da Igreja e
os do Império: o imperador tem a incumbência de cuidar do bem-estar
terreno, econômico, e o papa, da espiritualidade, da moral, da alma, de
modo que os homens, vivendo à luz do Evangelho, cheios de virtude,
possam chegar ao Além.
Dante afirmou uma coisa que teve transformações profundas,
como a presença de Deus na História, porque Deus é um ser
transcendente. Como é que Ele permanece no mundo? Através da
política e da religião, do papa e do imperador, o primeiro, profundo,
íntimo, religioso, honesto como a face de uma outra imagem de Deus
na Terra; o segundo, nobre, puro e digno. São estes, então, os dois
conceitos de Dante: a religião é necessária como a política, pois ambas
representam Deus.
Numa outra parte desta obra, Dante fixa as relações entre essas
duas forças, isto é, entre o imperador e o papa: eles não devem ter
nenhuma relação de hierarquia; a política fora da religião e esta fora da
Bruno Enei
62 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

política, uma representando a atualidade e a outra, a moral, como dois


momentos do espírito.
Dante sonhou esta unidade político-religiosa do mundo, tendo
como centro Roma, que era para ele a caput mundi. A Itália era o jardim
do Império e Roma era a aiuola do Império. A humanidade movia-se
em torno de Roma, o centro político-religioso do mundo. Foi na fase
dessa ilusão, dessa profundíssima convicção, que Dante escreveu, lutou
e sofreu o exílio, conservando-se esse apóstolo da literatura italiana.
Suas palavras são credos que ele suporta, sofrendo privações enormes.

De Vulgari Eloquentia
É uma obra de caráter cultural e significa “sobre a língua italiana”.
Foi escrita nos primeiros anos do exílio, de 1304 a 1307. Deveria ser
composta de quatro livros, mas Dante não completou esta obra e parou
no capítulo XIV do segundo livro. Também esta obra é escrita em latim,
pela seguinte razão: Dante dirige-se à parte culta da nação, aos que
falavam latim.
O problema de Dante nesta obra é o seguinte: ele havia sonhado
com uma unidade religiosa e política e sonhava com uma linguística.
Com esta obra ele queria criar uma língua italiana literária, que não fosse
dialetal, nem provençal, mas que fosse de todos os italianos.
Até o século XIV, cada qual escrevia no seu dialeto. Dante quer
que se separe este conceito de língua como dialeto, ele quer uma língua
literária que seja a síntese de todos os dialetos, que seja aceita por todos
os escritores e que seja compreendida por todos. É uma grande exigência
de Dante, mas que terá continuadores em todos os séculos.
O conceito da língua literária: Dante faz a história da origem
das línguas. Depois, uma análise dos dialetos europeus, classificando os
dialetos italianos em catorze grupos: meridional, central, setentrional,
etc. Então analisa cada um desses dialetos e nota que nenhum deles
possui qualidades para ser a língua italiana literária, nem mesmo o
dialeto florentino, o seu, é digno de ser elevado a língua literária. Esta
língua imaginária deveria ter caracteres possuidores do melhor de cada
um dos dialetos. “Essa língua está em todos os dialetos e não está em
nenhum, pois o melhor deve formar esta língua.”
A língua italiana deveria ser: illustre, cortigiana, curiale e aulica.
Illustre: não deveria ser vulgar, do povo, da rua, mas sim nobre, limpa,
clássica. Cortigiana: devia ter como endereço a língua que se falava
nas cortes. Curiale: Dante imaginava que no seio da unidade político-
-religiosa haveria um lugar que fosse a cúria dos escritores: aquele grupo
de pensadores que formava as academias. Aulica: devia ser o fruto não
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 63

da espontaneidade e da vivacidade, mas sim do estudo e da derivação


das línguas clássicas, devendo ser escolástica, culta, trabalhada.
Foi um sonho, porém, porque o primeiro traidor foi o próprio
Dante, que nunca escreveu assim. A Divina Comédia é escrita repleta de
barbarismos e dialetos. Mas, por esta obra, Dante é chamado na literatura
de fundador, de pai. Ele projetou os caracteres, sendo o primeiro teórico;
seguindo suas observações, temos Pietro Bembo, que criou no século
XVI o Bembismo, e no século XIX temos Allessandro Manzoni, que
cria uma língua viva, e mais tarde temos Gabriele d’Annunzio.

Il Convivio
Esta obra é escrita em italiano, em língua vulgar. É necessário,
portanto, ao se estudar as obras, atender à razão do autor ao escrever
a obra.
O De Monarchia é escrito em latim, porque Dante expõe um
princípio de sua fé, e como é uma obra austera, emprega o latim, por se
tratar de uma questão delicada, falando à classe culta, aos poetas de sua
cidade. Ao passo que, escrevendo Il Convivio, Dante tem diante de si
um outro público, uma outra assistência, mais numerosa, menos culta:
o povo, o qual não podia falar em latim, somente em italiano, em língua
vulgar. Esta é a razão primeira.
Dante concebeu esta obra como um conjunto de catorze tratados
ou livros, isto indicando que a atitude de Dante é tipicamente medieval,
pois é próprio da Idade Média escrever obras que se poderiam chamar
summas, obras universais. A espiritualidade contemporânea é bem a
contrária. Hoje nós procuramos a universalidade num sentido crítico.
E é tipicamente medieval também por uma outra razão: a finalidade
dessa obra. Dante pensa ser útil oferecer o mínimo de cultura que ele
pode oferecer.
Nessa obra Dante fala de um banquete secular, em que o povo
está convidando a um jantar em que o pão e todo o resto têm um valor
alegórico. Trata-se de dar a moral ao público. Foi escrita logo após o
exílio. Dante nunca a acabou, somente quatro livros dos que pretendeu
escrever.
O primeiro livro é o da introdução à obra, no qual afirma as
razões pelas quais escreve em língua italiana e qual o plano desta obra.
Os outros três livros são três tratados nos quais Dante demonstra o sentido
alegórico, místico, religioso das canções que os compõem. É uma obra de
divulgação, que poderia lembrar Dante como aluno de Brunetto Latini,
o que também explica a mentalidade de Dante, quanto ele está ligado à
mentalidade da Idade Média.
Bruno Enei
64 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Um ponto interessante do Convivio é onde Dante diz que a língua


italiana deverá surgir onde a língua latina morrerá. Aqui ele sente-se
livre de certos preconceitos da Idade Média, nos quais se considera a
língua latina como indispensável. Dante sente que ele deveria aperfeiçoar
a língua italiana, sendo que a latina fica somente como referência dos
clássicos.

Le Epistole
Dante escreveu treze cartas, todas em latim, dirigidas ao imperador
Arrigo VII, aos senhores da Itália, aos florentinos, que ele chama de
scelerati, a Can Grande della Scalla, ao qual ele dedica a terceira parte
da Divina Comédia. A mais importante é A l’amico fiorentino. Esta foi
escrita entre 1315-16, e é a resposta a este florentino que convidava Dante
a voltar a Florença. Esta carta é interessantíssima porque é uma das páginas
autobiográficas mais profundas de Dante.
Aqui aparece sua honestidade, sua intransigência, pois Dante,
apesar de saber que o povo era conhecedor da sua inocência e que ele
poderia viver tranquilamente, nega voltar e é desta carta a frase: “Não é
esta a estrada pela qual posso aceitar voltar a Florença.”
As outras cartas demonstram assuntos que já são tratados. A para
Arrigo VII é de caráter político, na qual ele estimula a realizar rapidamente
a reconstrução do Império Romano. Aquelas aos senhores da Itália também
têm sentido político, nas quais convida a estes senhores a abrir as portas
e aceitar a chegada de Arrigo VII, fundador do Império Romano.
Importante é também uma outra, mas que fica num plano normal,
a carta aos florentinos, porque Dante ofende a esse povo, chamando-os de
bárbaros, isto porque considera este povo o mais fechado, o mais hostil
à abertura e à aceitação de Arrigo VII; no entanto, Florença era a única
que defendia a pátria.

Le Rime (Il Canzoniere)


Esta obra não pode ser chamada de Il Canzoniere, porque não tem
harmonia esse conjunto de poesias, que por isso chamam-se Le Rime. É o
conjunto de todas as poesias que Dante não incluiu na Vita Nuova, escrita
entre 1292 e 1293. São de caráter sentimental, amoroso e de inspiração
novista.
Primeiro achamos nela também um outro conjunto de poesias,
que são ofensas contra Forese Donati, pois Dante também gostava de
lutas e brigas. No entanto, na Divina Comédia, Dante se arrepende e pede
perdão ao amigo, o que é interessante saber-se para compreender a gênese
de muitos cantos da Divina Comédia.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 65

Ele cria dois cantos no Purgatório, que são dos mais bonitos,
comparando-se os olhos de Donati a um anel do qual caiu a pérola.
Mas em Le Rime há um outro conjunto de poesias, que se chamam
Pietrosi, porque se referem a Pietra, por serem, voluntariamente, ásperas
e vítreas, quando Dante amou e não teve correspondência.
Essas são as obras menores de Dante. Cada uma tem a sua
importância, a sua função, e elas explicam um aspecto desse prisma que
é Dante. Hoje, elas nada mais são que uma propedêutica à leitura da Divina
Comédia. E isto é fato, não por ser mais interessante, mas porque mesmo
para Dante há mais consciência dessa obra, que parece a conclusão de
duas personalidades. Dante deixa as outras obras por serem secundárias,
como em Il Convivio e em De Vulgari Eloquentia; em La Vita Nuova,
Dante tinha a impressão de que teria escrito uma obra de caráter muito
mais universal, na qual haveria o Céu e a Terra. Nessa época ele já sente
que poderá ser o autor dessa obra.

La Divina Commedia
É um poema em três cantos, divididos em três partes ou cantigas:
a primeira parte chama-se Inferno; a segunda, Purgatório; a terceira,
Paraíso. Estas três cantigas praticamente possuem o mesmo número de
cantos, isto é, trinta e três cada uma delas, porque o primeiro canto deve
ser considerado como uma introdução à obra toda. E, considerando-o à
parte, é claro que todos têm trinta e três cantos.
O Inferno tem este canto a mais. É escrito em versos
hendecassílabos, formando tercetos (terzine).
No trigésimo quinto ano de sua vida, isto é, em 1300, e que
para a Idade Média era a metade do caminho da vida, quando em Roma
tínhamos o primeiro jubileu no mundo católico, decretado por Bonifácio
VIII, que Dante odiou, ele em vez de ir a Roma, imaginou uma viagem
ao Além.
A Divina Comédia é a narração viva, dramática, religiosa, de
um ser que visita o Além, levando consigo todos os seus ideais, paixões,
sentimentos, simpatias e ódios, sua cultura e religião, de forma que, pela
primeira vez na história da literatura universal, encontramo-nos com um
homem que leva à história do Além, como se o Além fosse a imagem do
Aquém.
Os três mundos da Divina Comédia são mundos de fé até um
certo ponto, porque eles adquirem todos os caracteres da vida humana:
poetas, políticos, papas, pessoas chorando, outras felizes, encontram a
vida em todos os seus aspectos. Nada há na Divina Comédia de fantástico,
de irreal, porque tudo é verdadeiro, concreto, positivo, de uma atualidade
Bruno Enei
66 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

extraordinária: primeiro, porque Dante descreve como se estivesse vendo


tudo aqui; segundo, porque aquilo nada mais é do que uma reação irreal
de Dante para com a Terra.
A Divina Comédia deve ser considerada como uma imensa lírica
na qual quem está falando, sentindo, agindo é sempre o poeta. E para
reforçar este conceito da Divina Comédia, Leopardi lembra também que
A Divina Comédia é a expressão do respeito moral de Dante, de forma
que, apesar de ser ela uma obra tipicamente medieval, a mais medieval
de todas da Idade Média, porque tem uma finalidade didascálica,
procurando levar o leitor a compreender e procurar ver nela a parte
do ensino, da educação, devemos considerá-la como intencionalmente
escrita, à base dos princípios da estética medieval.
Ela é o superamento da estética da Idade Média, pois Dante foi
mais poeta do que teórico; como teórico ele pensa pôr a Divina Comédia
na Idade Média, mas sua natureza é tão forte, que ele supera esse
conceito, o que teria sido um limite na sua personalidade de poeta.

O Inferno − É uma verdadeira pirâmide virada cujo vértice se


encontra para baixo e cuja base está para cima. Pode ser dividido em
três partes: o Pré-Inferno, o Alto Inferno e o Baixo Inferno.
O Inferno compreende nove círculos, que se chamam cerchi.
Esses círculos começam no Alto Inferno, sendo que do primeiro ao sexto
pertencem ao Alto Inferno e do sétimo ao nono, ao Baixo Inferno.
O primeiro círculo chama-se Limbo; o segundo, Lussuriosi; o
terceiro, Golosi; o quarto, Avari e Prodighi; o quinto, Accidia; o sexto,
Eretici.
Os outros são mais complexos, mais difíceis, e se dividem
em vários setores, de forma que o sétimo círculo chama-se Violenti e
subdivide-se em três partes: Violenti contro se stessi: suicidas; Violenti
contro Dio: blasfemadores (as três partes desse círculo chamam-se
Gironi); Violenti contro natura: sodomitas.
O oitavo círculo chama-se Malebolge e divide-se também em
várias partes, que têm o nome de Bolge (furnas) e são em número de
dez: Fraudolenti: fraudulentos; Ruffiani: casamenteiros; Adulatori:
bajuladores; Simoniaci: vendedores de objetos sagrados; Indovini:
sortistas; Ladri: ladrões; Baratieri: aproveitadores dos fundos públicos;
Ipocriti: hipócritas; Consiglieri di discordia: semeadores de discórdia;
Falsari: falsificadores. O nono círculo é o dos Traditori e está dividido
em quatro zone: Caina: traidores da família; Antenora: traidores da
pátria; Tolomea: traidores do hóspede; Giudecca: traidores do imperador
e papa, como representantes de Deus.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 67

O Inferno é uma criação fantástica do Além. Mas isto é feito


por um poeta com tal precisão de distâncias topográficas e medidas,
que um dos maiores cientistas do mundo, Galileu Galilei, deu o seu
reconhecimento, com a sua simetria universal.

O Pré-Inferno − Dante o coloca, no centro da Terra, o Inferno.


O que seria? Um imenso buraco, devido à caída de Lúcifer, expulso do
Céu. Deus o joga com tanta violência que a terra abre-se e fica o buraco.
Esta terra vai ao antípodo, indo para cima.
Quando a pessoa é pura, chega a um mundo de igualdade, isto
é, circular, porque todos os pontos distam igualmente do centro. Para
Dante, só a circularidade pode dar a ideia de igualdade, o lugar onde
está Deus.
O Pré-Inferno compreende os primeiros três cantos da Divina
Comédia. Lá existe um lugar que se chama Vestibolo, e aqui encontramos
o primeiro grupo de almas, onde Dante toma contato com os primeiros
seres que deixaram a vida e que aí estarão eternamente; é um grupo de
almas que viverá sempre fora do Inferno, sem ter possibilidades de ir
ao Purgatório e ao Paraíso. Estes seres são: gli ignavi.
Neste canto Dante descreve uma multidão de seres dos quais ele
não diz nem o nome, seres amorfos, nus, correndo atrás de uma bandeira,
e essa corrida não é estimulada por um ideal, por uma aspiração espiritual.
O que provoca essa corrida são vespas e moscões, que enchem o corpo de
feridas e sangue. Os ignavi são os que na vida não tiveram atitudes, que
nunca viveram por um ideal, ou agiram por ele, tanto bom como mau,
contra ou a favor da religião, do Estado, da bondade. Eles só viveram
vegetando e são dignos do maior desprezo porque não viveram.
Dante não os condena ao Inferno porque este é da maldade. Os
ignavi não ofenderam a ninguém, portanto só viveram e não tomaram
atitudes. Dante então os condena lá. Não os põe no Céu porque eles não
têm nenhum documento do bem, pois são nus de ideais na Terra.
Dante criou uma lei chamada “legge del contrapasso”: ele
imagina no Inferno os personagens numa atitude ou igual ou contrária
do que eles foram na Terra, como castigo. O Além nada mais é do que
uma fotografia do Aquém, mas a pessoa ou aparece pura como é, ou
na pena do que ela merece, pelo que fez. Por exemplo: os ignavi são
pessoas que nunca tiveram ideais, então Dante os vê nus, pois eram nus
de ideais na Terra, então lá eles correm, não por ideais, mas perseguidos
por animais, pois na Terra não perseguiram nenhum ideal. E essas almas,
que nunca tiveram um ideal, agora vão atrás de um.
Somente uma pessoa é nomeada, não com o seu nome, mas com
Bruno Enei
68 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

uma perífrase, com um giro de palavras que fazem adivinhar facilmente


quem ele é. No meio dessa multidão, Dante vê uma pessoa, que ele
assim chama: “colui che fece per viltate il gran rifiuto”.14 Foi o papa
Celestino V, e que por vileza não queria ser papa. Tinha sido um frei
muito simples, que gostava da vida interna do seu convento. Por essas
razões foi escolhido papa, e quando ele o soube, sentiu não ter a energia
para frear esses movimentos e então renunciou; havia muitos interesses
contrários para que ele renunciasse. Fato é que sua renúncia significou a
eleição de Bonifácio VIII. E então Dante vinga-se de Celestino V, que,
em vez de ser papa, duro e forte, renunciou, e coloca-o no Inferno. Este
canto é famosíssimo.
Os trinta e três cantos do Inferno estão divididos da seguinte
maneira: os três primeiros descrevem o Pré-Inferno. Do quarto ao
décimo primeiro temos o Alto Inferno. Os outros cantos, do décimo
segundo ao trigésimo quarto, são os do Baixo Inferno.

O Purgatório − Dante divide o Purgatório em três partes:


o Antepurgatório, o Verdadeiro Purgatório e o Paraíso Terrestre. O
Antepurgatório compreende os cantos primeiro ao nono; o Verdadeiro
Purgatório, do décimo ao vigésimo sétimo; e o Paraíso, do vigésimo
oitavo ao trigésimo terceiro.
No Antepurgatório Dante encontra quatro diferentes grupos
de almas: I contumaci; I negligenti; Morti di morti naturale; Morti di
morti violente, I principi della valetta amena.
O Verdadeiro Purgatório é dividido por Dante em sete cornici
(molduras): Superbia; Invidia; Ira; Accidia; Avarizia e Prodigalità;
Gola; Lussuria.

O Paraíso Terrestre − Dante imagina que as almas lá chegam


purificadas pelos castigos que elas sofreram ao longo do Purgatório.
Mas, embora purificadas, elas nunca mereceriam chegar a Deus se não
houvesse purificação ulterior, o que não seria possível pelas próprias
almas e com meios terrestres; essa purificação só é possível pela
intervenção de Deus, e na Divina Comédia é representada pelas águas
de um rio, que se divide em dois braços, com eficácias diferentes:
um é chamado Ennoé e o outro, Letè, isto é, o rio em que as almas,
emergindo-se, esquecem-se de haver pecado. Esta purificação foi
efetuada pelas próprias almas, mas elas não mereceriam o Céu se
não pudessem esquecer seus pecados, pois só a lembrança deles já

14
Aquele que, por covardia, fez a grande recusa.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 69

as enodava. E essa purificação acontece através das águas do Letè.


Depois passam através do Ennoé, no qual lembram-se exclusivamente
das coisas boas, dos bons atos que praticaram, e, com essa disposição
de espírito, elas sobem ao Céu.

Il Paradiso − É um único lugar, um único Céu; não há mais


de um Paraíso, somente um que se chama Empireo: o Céu de fogo, de
luz. É um lugar que Dante imagina imóvel, perfeito, cheio de luz, de
uma luz perfeita, meridiana.
Este círculo que representa o Céu é então um único lugar,
onde estão os beatos. Eles estão na parte baixa do Empireo, dispostos
na forma de uma “cândida rosa”, formando esta flor, a mais bonita e
simbólica na Igreja, com suas pétalas brancas de inocência, após o
Purgatório. Esta rosa está viva, iluminada pelos raios da luz divina, que
é símbolo de uma eterna felicidade. Então a felicidade está mais longe
da luz, iluminando-a. Lá no alto, esta divindade é tríplice e una.
Porém, Dante no seu Paraíso não descreve um só Céu, mas nove
Céus, isto quer dizer que ele, por uma razão didática de solidariedade
com a inteligência humana, para fazer ver que estas pétalas embora
pertençam à mesma rosa e os beatos são diferentemente iluminados por
Deus, apesar de formarem uma única rosa, para mostrar essa diferença
de valor, de distância, de beatitude, Dante distribui essa unidade em
nove graus, que são os nove Céus que ele descreve no Paraíso.
Dante fala de nove Céus, e nós nos encontramos diante de dez:
é que o Paraíso é um só Céu, na verdade, que tem no fundo uma cândida
rosa e na frente, Deus; nove Céus que não são reais, só representam o
símbolo real de um grau ideal de beatitude, sendo nove sinais de nove
diferentes formas de beatitude. Estes Céus são: Cielo della Luna; Cielo
di Mercurio; Cielo di Venere; Cielo del Sole; Cielo di Marte; Cielo di
Giove; Cielo di Saturno; Cielo delle stelle mobili; Cielo delle stelle fisse.
Todos estes Céus formam o Empireo, o décimo Céu.
A Lua é o Céu mais baixo do Paraíso dantesco, isto é, o Céu
onde estão as almas menos beatas, que estão mais longe de Deus, que
menos merecem ser iluminadas.
No Mercurio estão as almas que também não são beatíssimas,
entretanto mais luminosas que as da Lua. E, quanto mais nos
aproximarmos do Empireo, vai aumentando o valor das almas, e sua
luminosidade, pois ascensão de valor é virtude.
Bruno Enei
70 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

A Divina Comédia
sob um ponto de vista humano

Devemos imaginar o Inferno como um mundo donde é preciso


tirar os seguintes elementos:
O tempo: o Inferno é eterno, lá não há tempo, as almas são o que
são, eternamente; Dante os vê pelo que os entes são no momento em que
vêm julgados por Deus.
A esperança: é o segundo caráter do Inferno, pois lá não existe
qualquer sentimento de esperança. O Inferno é um desespero eterno em
que não é possível sonhar com o futuro, pois é absurdo que aquelas
almas possam iludir-se com um futuro melhor que o presente. Elas estão
sempre numa atitude de eterna e imóvel dor, de uma dor que, para ser
eterna, sempre se renova, e torna a ser dor, pecado e castigo. Não é, pois,
algo que liquida, que mata e que acaba.
A luz: é também preciso tirar a luz, que é uma consolação, a
prova da serenidade, da vitalidade, da esperança. Ao contrário, o Inferno
é feito de eterna tenebra e escuridão.
Com esses elementos, podemos compreender a dramaticidade
da Divina Comédia: o mundo de desespero, sem luz, sem esperança.
Mas isto não daria o valor da poesia de Dante se ele parecesse igual aos
outros livros da Idade Média. Pois, a tudo que foi dito e escrito com uma
perfeição singular, tanto que Dante é o maior da Idade Média, a tudo isso
tem que se acrescentar a humanidade naquele mundo, porque ele não é
feito só de dor, desespero, falta de luz, mas sim de homens que viveram,
agiram, sentiram na Terra, que foram pais, mães, cidadãos, afinal homens
que já foram homens e que por um milagre da arte voltam a ser homens,
com o aparecimento de Dante, de um ser humano, levando para lá um
mundo que eles viveram, e então aquelas almas voltam a viver, por uma
milagrosa força da poesia, esquecendo-se de serem danados, ou, pelo
menos têm a possibilidade de viver, num breve parêntesis, a vida que
eles viveram, de forma que essa saudade torna mais trágico o homem
que lá fica, condenado por Deus.
Dante torna-se interessantíssimo, mas falando de nossa própria
vida, o que ela seria para nós, se mortos pudéssemos pensar a voltar a
ser o que fomos, como poderíamos ter agido, sofrido, pensado. Porque
não é somente Dante falando, condenando, como o intérprete de Deus, o
que seria excessivamente soberbo, abstrato, até paradoxal, ao passo que
Dante está substituindo Deus no que Ele faria somente no fim do mundo,
e ao fazê-lo tem-se a impressão que é Deus quem fala e ao mesmo tempo
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 71

como se fosse um homem. Dante condena, mas revive a vida do pecador,


com solidariedade ou desprezo. Só assim se justifica a eternidade da
Divina Comédia.
O Pré-Inferno compreende os cantos Introdução I e II; então
começam os do Inferno: o III de Gli ignavi, o IV do Limbo, que é o reino
dos que não foram batizados.
O Limbo de Dante, além de ser dos meninos que não foram
batizados, é também das pessoas que viveram antes de Cristo, e também
aqui Dante coloca os grandes filósofos, os literatos, os historiadores, de
forma que isso se transforma numa universidade. É o encontro de certa
idade com outra, de um poeta cristão com filósofos pagãos: Homero,
o mundo grego, Virgílio, o latino. Porém a Dante não interessam os
meninos. Ele vai direto a um castelo, com sete muros, e entra na filosófica
família, dominada por Sócrates e Aristóteles. Depois vai ao grupo dos
poetas, os quais, guiados por Homero, gritam: “volta a alma de Virgílio
que tinha se afastado de nós”.
É um lugar onde se é feliz, onde estão todos os literatos e nele
Dante declara o seu parentesco com o mundo antigo, em que diz ser ele
o continuador da cultura antiga, dando as mãos aos antigos, sendo um
verdadeiro trait d’union entre o mundo clássico e o cristão.
O Limbo é um mundo do Inferno, mas por só ter homens dignos
de respeito, lá não há pena, é o único lugar do Inferno onde isso acontece,
sendo o único castigo o seguinte: os seres estão como suspensos num
desejo que nunca se tornará realidade; “senza speme vivono in deseo”.15
O seu pecado foi o de alcançarem a razão do mundo, mas não o poderem
atingir, apesar de grandes, porque isso só seria possível com a chegada
de Deus na Terra, pois só Cristo deu a ideia de Deus; a nobreza desses
literatos foi a de estudarem a vida toda para supor como se criou o
mundo, apesar de não o atinarem, e a sua pena foi o amargor disso.
O Canto IV tem a sua razão topográfica de colocação, porque
deve ser colocado vis-à-vis ao Canto III, isto é, dos ignavi, que não
tiveram desejos nem nada.
O Limbo, em vez, contém os que só trabalharam, sendo sua
única fatalidade a de terem vivido antes de Cristo. Falamos de um
Limbo que não é o mundo dos meninos, mas do saber, da filosofia, dos
grandes homens da humanidade: é a homenagem de um homem da
Divina Comédia a um mundo a que, embora pagão, a humanidade muito
deve. E esse canto tem um valor antitético de contraste com o anterior,
que era o dos vis.

15
Sem esperança, vivem em desejo.
Bruno Enei
72 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

O Canto V do Inferno de Dante é um dos mais populares, mais


universais, mais famosos, do qual tem-se tirado inspiração para poesia.
É o canto de Francesca da Rimini. Aqui também, como dissemos antes,
devemos ver os dois aspectos da personalidade de Dante: o juiz que
condena e o homem que sublima, que exulta, que toma atitudes, que faz
reviver o passado, revivendo o mundo em que viveu e que volta pela sua
presença.
Esse canto pode ser considerado como o de contraste das
concepções de Dante. Num certo sentido é a negação da Vita Nuova,
a negação do Dolce Stil Nuovo, no qual o amor adquire um sentido
ideal, religioso, no qual a mulher é um anjo que desaparece, como era
Beatriz, que temos a exaltação do amor num sentido diferente, sendo
exaltado como pecado, levando a ele, mas é algo humano e digno, por
isso. Essa pecadora Francesca era uma moça de Ravenna, a cidade
dos últimos anos da vida de Dante. O senhor de Ravenna chamava-se
Polenta, que parte para uma cidade do mar Adriático, cujo dono era
Malatesta.
Por razões políticas entre os dois, chegou-se a um acordo: as
duas cidades não mais lutariam entre si, com o casamento de Gianciotto
Malatesta e Francesca da Rimini. Gianciotto, porém, era um ser infeliz,
feio fisicamente, disforme, mentiroso, hipócrita, não digno do amor
de uma moça. No entanto, ela casou com ele, porém quando foi-lhe
apresentada, não foi Gianciotto e sim, por uma insídia do pai, ao irmão
Paolo, que era um homem leal, bonito, e então ela quis casar com
ele, sentindo que as aspirações políticas estavam de acordo com suas
convicções sentimentais. E ela com felicidade aceita. Mas quando chega
o dia do casamento, ela nota que não é Paolo e sim Gianciotto.
Ela vai morar em Rimini. E mora no mesmo castelo (que ainda
existe) onde vivem os dois irmãos. E naturalmente, aquela simpatia
escondida, pura e íntima é perfeitamente correspondida. Um certo dia,
naqueles salões que davam para o mar, cujos vidros eram mosaicos
expressando a beleza da Idade Média, Francesca estava lendo uma
página das poesias amorosas do Ciclo do Rei Arthur, quando aparece
Paolo, no momento em que ela lê que o cavaleiro da Távola Redonda
Lancelot beija Guinevere; então, sem nada de preparado, os dois se
unem, revela-se sua mútua simpatia. Eles então viveram o próprio
romance: “la bocca mi basciò tutto tremante”.
Mas infelizmente Gianciotto sabe disso e, traindo os dois,
vinga-se, matando-os: “O amor levou-os à mesma morte”.
E para Dante católico, juiz, os dois vão então para o segundo
círculo do Inferno, o círculo da Lussuria. Sua pena é a do contrapasso,
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 73

isto é, ambos no Inferno serão eternamente levados pelo ar, de um lado


ao outro, numa eterna tempestade, como na vida a própria interioridade
foi levada numa tempestade de paixões como é o amor deles. Aquele
vento que continuamente se produz é a imagem da paixão de que foram
vítimas. Até aqui temos o Dante juiz, e ele vê não só os dois, mas todos
os lussuriosi também do mundo grego e latino, todos temas muito
bonitos. Lá está também Cleópatra, que se apresenta com uma cara
de corrupta, um ser horroroso. A figura de Dido, amada por Eneias,
Helena, Semiramis, rainha da Assíria, que fez com que cada cidadão
pudesse fazer o que quisesse, de modo que ela fez essa lei para sua
própria corrupção. E muitos outros homens, também.
Passam diante de Dante esses pecados, como pássaros, leves e
pequenos stornelli16 que o ar tem a força de levantar em grupos, que o
vento leva de um lugar ao outro, no céu desesperador do Inferno.
Depois Dante imagina que no meio daquele céu saiam dois
pombos: e são justamente Francesca e Paolo, aí acabando Dante juiz e
aparecendo Dante homem. Ele a convida a falar sobre seu amor e ela então
se torna a advogada do seu amor, o que se torna para ela uma qualidade,
uma virtude, para atenuar a qual ela não tem medo até de morrer. Então
é um pecado que se transforma numa virtude, num sentimento natural
que não pode ser traído. Ela não fez mais nada do que obedecer a uma
lei natural.
E aí ela se torna a brilhante advogada que se levanta na tempestade
do Inferno e defende o seu pecado, que é virtude. Sua defesa é baseada na
repetição tripla do amor: “O amor é um sentimento que imediatamente
surge na alma da pessoa gentil.”; “O amor é um sentimento que a ninguém
perdoa de não amar, sendo amado.”; “O amor invoca a morte que ela
sofreu.”
Dante pede mais e diz uma das expressões que ficaram famosas
no mundo: “nenhuma dor pode ser maior do que a de lembrar-se do tempo
em que se era feliz, quando agora se sofre”. Esse canto tem uma realidade
lírica eterna. E como ele interpreta esse sentimento, não tem nada de juiz,
é uma coisa humana e justificável, apesar de moralmente ser pecado.
O Canto VI também deve ser lembrado: é o do terceiro círculo
do Inferno: os golosi, que só viveram para comer. A vida para eles foi
alimentação, foi o gosto de comer, de devorar. A sua pena no Inferno
é o contrário: eles vivem abaixo de uma chuva cheia de barro, que os
transforma em porcos, e no meio deles Dante vê um cidadão de Florença,
Ciacco, e como Dante também é de lá, conversam, e a sua discussão

16
Estorninhos.
Bruno Enei
74 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

recai sobre a política de Florença, e então temos a primeira discussão


política.
Este canto é famoso porque constitui uma trilogia, porque Dante,
deliberadamente ou não, faz com que os Cantos VI, tanto do Inferno,
do Purgatório e do Paraíso, refiram-se à política. O do Inferno sobre
Florença, o do Purgatório sobre a Itália, e o do Empireo sobre o Paraíso;
portanto, do município à nação e ao universo. São estes os cantos de
choques políticos.
O Canto VII é o dos avari e prodighi. Esse círculo é dividido
assim: de um lado, os avari, e do outro, os prodighi. Ao se encontrarem,
ofendem-se; os avaros queixando-se dos pródigos porque sempre
guardaram seu dinheiro. Sua pena é também a do contrapasso. Os
avarentos tiveram sempre trancado seu dinheiro, então Dante os imagina:
avarentos e pródigos puxando com o peito uma imensa pedra que carrega
o dinheiro, que uns amaram e outros guardaram.
O conceito de fortuna, que é um anjo também, quando todos
ainda estavam no seu Céu, tinha uma vez a incumbência de volver
dinheiro no mundo, de modo que hoje uns sejam ricos e amanhã pobres.
Os homens acreditam que isto seja arbítrio, blasfemando contra Deus.
O Canto VIII é o dos accidiosi, cuja pena é a de permanecer
mergulhados no lodo. Encontra Filippo Argenti. E abaixo estão
gargalhando nessa água suja os accidiosi, que têm o pecado da indolência,
da falta de energia, e estão submersos numa água pesada. Essa accidia
cria uma inquietação contínua. Filippo Argenti faz com que Virgílio
exulte a mãe de Dante, que teve um filho que sabe reagir.
O Canto X é o dos heréticos, os que se servem da razão para
negar os princípios da verdade cristã. Dante encontra personagens
de importância extraordinária: Farinata degli Uberti e Cavalcante dei
Cavalcanti. Temos aqui outro grandíssimo canto da Divina Comédia,
conhecido como o XIII e XIV do Inferno. Farinata degli Uberti foi o
chefe do partido ghibellino, contrário ao guelfi, ao que pertencia Dante.
Quando Dante nasceu, Uberti acabava seu prestígio político e
Dante deve ter ouvido falar desse homem corajoso, vencedor, e lembra
a batalha da Arbia; encontra nesse canto dois adversários políticos:
um chefe do partido ghibellino e um dos guelfi. O choque entre eles é
forte, mas quem ganha é Dante, porque Uberti procura ignorar Dante,
perguntando se ele fora nobre ou não.
Dante descreve Farinata no meio dos túmulos e imagina que os
heréticos estão fechados em túmulos inflamados por dentro.
No momento em que Dante aí aparece, abre-se o túmulo de
Farinata. Depois, fecha-se para sempre. Dante descreve o grande
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 75

florentino quando ele entra em cena como a aparição de um herói, que


domina com a sua atitude de imenso desprezo pelo Inferno. O que lhe
interessa é somente o seu partido. E então começa este diálogo que se
conclui com a vitória de Dante, que diz: “Fui exilado, mas os teus também
não voltaram a Florença”. Mas quando Dante lhe dá a possibilidade de
falar, ao perguntar-lhe por que matara tantos florentinos, Farinata diz:
“Disso não sou responsável, pois somente eu impedi que Florença não
fosse destruída”. Sua honra está em ser considerado não o chefe de um
partido, mas o cidadão amando a própria pátria, e mandando-a não ser
destruída.
Cavalcanti é pai de Guido, poeta do Dolce Stil Nuovo, e do seu
túmulo ouve a conversa entre os dois. Ao notar que Dante está sozinho,
pergunta-lhe por que está no Inferno, se merece visitar o Além, e como o
seu filho não está junto a ele. Dante fica sem responder alguns instantes e
depois diz que não está por pecado, quem o acompanha é Virgílio, a quem
teu filho odiou (usa o verbo no passado apesar de Guido viver ainda).
Cavalcanti pergunta por que ele não vive, caindo então completamente
no seu túmulo para sempre.
Temos ao lado do cidadão apaixonado um canto épico, essa
página de um pai sofrendo, glorioso e feliz, sabendo que seu filho é
culto. E, um canto trágico, quando supõe que seu filho está morto, só
porque Dante usou o verbo no passado. Então só agora começa o Inferno
para esse pai, pois o Inferno, apesar de ser fora da vida, é a continuação
da vida, num sentido desesperado e trágico.

Impressões sobre o Inferno de Dante

Costuma-se considerar a personalidade de Dante Alighieri


completamente fechada na espiritualidade e na forma mentis da
Idade Média. Dante seria o expoente daquela cultura, o poeta daquela
sensibilidade, o homem que soube levar a um plano de absoluto valor
lírico os sentimentos, as ideias, as aspirações da humanidade da Idade
Média. Dante seria o poeta a ser colocado ao lado dos teólogos, ao lado
de São Tomás, dos doutrinários daquele então.
Há de fato muitos elementos, muitos motivos que nos levam
a considerar a poesia de Dante como a expressão mais representativa
da Idade Média. A sua filosofia, a sua política, o seu idealismo, a sua
concepção pedagógica da arte são todos aspectos da espiritualidade da
Bruno Enei
76 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Idade Média, e as suas obras são claras manifestações de uma poesia


e de uma inspiração ligadas a uma determinada concepção de vida, a
uma determinada sensibilidade, a uma determinada exigência que não
poderiam ser de outras idades.
A obra juvenil La Vita Nuova, a obra Il Convivio, com aquele
seu caráter enciclopédico e didascálico, a obra De Monarchia, com
aquela sua fé no Império, e, sobretudo, a Divina Comédia, com essa
visão ascensional do Além, são todos momentos e documentos de uma
educação da Idade Média. Não há dúvida nem é possível negar que Dante
seja um poeta daquela idade. Não é possível negar e, aliás, justamente
pelo fato de serem os motivos da sua poesia motivos comuns, é que
Dante é grande poeta; nem é possível negar que Dante seja o cantor
máximo da espiritualidade da Idade Medieval.
Entretanto, nós sabemos que a verdadeira poesia fica sempre fora
do espaço e do tempo. Nós sabemos que o poeta não é tanto poeta pelo
conteúdo das poesias quanto pela sua particular linguagem fantástica,
pelo valor de sua expressão, pela eternidade da sua realização, como
imagem. Nesse sentido, embora poeta da Idade Média, Dante fica fora da
Idade Média, pelo sentido, pelo valor, pela humanidade do seu canto.
Poetas há na Idade Média que hoje se ofuscaram diante da nossa
sensibilidade moderna. Eles perderam importância e valor, seja do ponto
de vista da forma e seja do ponto de vista do conteúdo. Estes poetas,
sim, que são só poetas unicamente de uma idade, expressões de uma
época. Mas Dante, não. Dante não, porque a ele aconteceu justamente
o contrário; ele ganhou no tempo, foi crescendo através dos séculos até
adquirir o valor e o símbolo não tanto e não mais de uma idade quanto de
uma civilização, de uma espiritualidade, aquela, justamente, neolatina.
Nós devemos dizer que, depois da desconfiança relativa dos
humanistas e dos escritores da Renascença, é com a segunda metade do
século XIII e durante todo o século do Romantismo até nossos dias que
a Divina Comédia foi objeto de estudos, de procuras, de análises e de
sínteses, num plano mais propriamente estético. Longe por isso no leitor
o desejo de ver e de fixar quais são os motivos e as razões da eternidade da
poesia de Dante. E então se sente, através da leitura da Divina Comédia,
quanto esse poeta fica também fora da Idade Média. Sente-se quanto de
moderno, de atual, de eterno está presente na poesia de Dante, embora
pertença ela ao século XIV e seja cheia de referências a fatos particulares
contingentes e ligados historicamente àquela longínqua idade. Dante
aparece, assim, moderno no conteúdo e na forma. Não somente na forma,
como também justamente no conteúdo, que seria a razão única pela qual
ele fica ligado à Idade Média.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 77

Vendo Dante com essa nova perspectiva, o leitor percebe quanta


parte de Dante está já fora da Idade Média, quanta parte da poesia de
Dante prenuncia sucessivas idades e perenes atividades humanas.
Dante também, no quadro do século XIV, deve ser considerado como
preparador de outros climas, como o poeta de sentimentos, que será
próprio da inspiração poética de outras idades.
Palpitam e vibram na Divina Comédia situações, atitudes,
sensibilidades, interesses, anseios, esperanças e amarguras que pertencem
à humanidade em geral, à humanidade de todos os tempos e de todas as
latitudes. Poeta ele é justamente por esse fundo constante de sinceridade,
de humanidade, de austeridade, de onde surge sempre a sua poesia
severa e sublime. Talvez seja justamente o preconceito de colocar Dante
como hermeticamente fechado na Idade Média, talvez seja justamente
esse frisar que ele cantou tantos séculos antes da presente existência,
talvez esse querer a todo custo ligá-lo à cultura, à filosofia e à teologia
de uma idade, talvez seja tudo isso que faz com que frequentemente
se fale desse poeta com indiferença, quase de um poeta alheio aos
nossos problemas e à nossa humanidade de hoje. Mas se o leitor souber
vencer esses preconceitos, se o leitor souber pôr-se diante de Dante e
de sua poesia, considerando somente o poeta e considerando somente
poesia a sua poesia, então ele encontrará no verso de Dante uma eterna
mocidade, uma atualidade constante, uma presença que muitas vezes é
mais presente do que a própria presença dos poetas contemporâneos.
Quais são, na sua poesia, deixando de lado as divisões, os
elementos da sua inspiração? A humanidade, o saber, o amor, a pátria,
o heroísmo, a coerência, a arte, a virtude, a família não são que alguns
dos temas de seu canto. E nenhum desses motivos é alheio à nossa
espiritualidade de hoje. Ao lado da coerência entre a palavra e a ação,
a unidade do artista e do homem dão à poesia de Dante o valor de uma
mensagem ética e artística verdadeiramente rara e singular.
A Divina Comédia apresenta-se como projeção de uma luta,
como a autobiografia de um homem de fé, como a expressão de um
drama. A insatisfação diante de uma realidade cultural, social, política,
religiosa e moral desse poeta o leva a colocar num plano altíssimo e
definitivo o mundo contingente da vida. Assim, a vida na Divina Comédia
se torna eternidade, onde o homem é julgado como num juízo universal
antecipado.
Dante, como Deus, coloca desde o século XIV a humanidade
numa sentença de dor, de esperança ou de felicidade nos três reinos
do Além. E o Além fica assim cheio de Aquém. E o Aquém se torna
o Além. Nada então de árbitro, nada que não seja humano, nada que
Bruno Enei
78 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

seja superficial ou artificial nesse Inferno de Dante, nesse Purgatório


de Dante, nesse Paraíso de Dante. Aquelas almas não perderam, não
esqueceram o corpo e a vida. O corpo e a vida continuam no Além;
ou desesperadamente ou luminosamente, ou como remorso ou como
satisfação, ou como castigo ou como prêmio.
Nós poderíamos esquecer que o canto de Dante se refere a um
mundo do Além. Mas, neste caso, é justamente o Aquém que perderia.
Porque é normal, é comum, o canto da nossa humanidade nos limites de
um panorama natural e humano. Raro é em vez cantar a humanidade nas
profundezas da sua alma, ou nas alturas de seus destinos. E Dante é quem
escolheu esta segunda via, enquanto Shakespeare e Goethe escolheram
a primeira.
De modo que aquele Além onde Dante projeta a humanidade,
sublima a humanidade, a torna mais categórica, mais essencial, mais
eterna, não é a humanidade desta ou daquela idade, deste ou daquele
continente, mas é a humanidade eterna, considerada exclusivamente
como humanidade.
Assim, não será lembrando aqui os cantos e as cantigas, não será
lembrando aqui as divisões do Inferno, do Purgatório e Paraíso, não será
lembrando aqui as questões teológicas e os dogmas que nós poderemos
definir o valor, humanidade e atualidade da Divina Comédia. Devemos
recorrer às situações, às emoções, e aos episódios que ao longo da Divina
Comédia são a prova da humanidade de Dante, da sensibilidade deste
poeta diante do homem e do seu viver aqui, no mundo, na História. Será
lembrando os elogios, as exaltações, a delicadeza e o desprezo com que
Dante se inspira na ação humana, na sua realização de vida, que nós
poderemos sentir o quanto ele seja ligado à nossa vida daqui.
Leia-se o Canto III do Inferno; sai daí aquela atitude de desprezo
diante da ambiguidade do homem e sai daí aquele estímulo e aquela
admiração para a vida heroica, considerando o heroísmo como um dever
propriamente cristão. Não haveria necessidade de colocar esse desprezo
e essa admiração num lugar fora do mundo; entretanto, é justamente essa
colocação no Além, no vestibular do Além, que torna mais significativo
esse desprezo e mais solene essa admiração, parecendo o desprezo e a
admiração divina.
Leia-se o Canto VI, onde, pelo contrário, Dante coloca os sábios
da Antiguidade, quase num vis-à-vis antitético entre Limbo e Vestibolo.
A humildade cheia de admiração e de afeto com que Dante descreve a
solidão austera e pensativa daqueles grandes é outro trecho de profunda
comoção, e esse canto vale também como a prova da homenagem da
Idade Média à Idade Antiga, do cristianismo ao paganismo; entretanto,
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 79

se tudo isso fosse colocado aqui num plano imanente, que permanece
dentro da experiência possível, não teria a grandeza e o sentido eterno
que adquire justamente porque colocado fora do mundo, fora do tempo,
na eternidade, como um obséquio da própria divindade à cultura.
Leia-se o Canto V do Inferno, onde um pecado se torna ao
invés o símbolo e a expressão da nossa humanidade. Francesca não é a
pecadora que condena e, embora condenada, as justificações, a saudade,
o pudor, a inocência com que ela evoca, não o seu pecado e sim o seu
amor, a redimem e a colocam naquele ar como o eterno feminino, como
a imagem de um sentimento sobre o qual a poesia nunca se cansará de
voltar.
Leia-se o Canto X, onde Farinatta se ergue magnânimo e
superior, na certeza da boa-fé, da honestidade, do seu heroísmo de
homem político, de vencedor e de cidadão.
Leia-se o Canto XIII, onde a figura do suicida se redime na
certeza de sua fidelidade e honestidade. Aquela selva contorta e árida
fica como a imagem do desespero, mas aquele desespero é a prova da
exasperação, da honestidade.17
Leia-se o Canto XV, onde Brunetto Latini não é o sodomita
condenado e sim o mestre que, também no Além, sente a dor de não
viver para continuar ao lado do aluno, aconselhando e indicando o rumo
da virtude e da glória.18
Leia-se o Canto XXVI, onde Ulisses não se aposenta como fazem
os vencedores comuns, mas, até esquecendo de ser pai, até esquecendo
de ser marido, até esquecendo de ser filho, e velho, já bem velho, é
apresentado como o desejoso de um mundo que não seja somente a
Europa, de um mundo que seja todo o mundo, desejoso de conhecer uma
humanidade que seja toda a humanidade, desejoso de conhecer outras
terras, além do Atlântico, para que a História desde então pudesse ser
não somente a história da Europa e sim a história de todos os povos, de
todas as experiências.19

17
Numa palestra, em outra ocasião, o prof. Bruno assim se referiu a este assunto: “O
canto XIII, naquela floresta habitada por Harpias, em que cada árvore é a alma de um
suicida, imagens do desespero e onde é redimida a figura de um suicida pela sua fé na
sua honestidade e fieldade”.
18
Na mesma palestra de que trata a nota anterior, o prof. Bruno assim se referiu a este
assunto: “Ao ler-se o Canto XV, é o mestre que sente também a dor de não viver junto
ao discípulo, recordando os primeiros anos de sua mocidade e predizendo-lhe um futuro
glorioso, e não o sodomita que aparece na figura de Brunetto Latini”.
19
Na mesma palestra de que trata a nota 17: “O vulto de Ulisses surge, no Canto XXVI,
como ansioso de descobrir e conhecer novas terras, do além-mar, para que a história da
Europa se tornasse a história universal, e para isso ele esqueceu Penélope, sua esposa,
Bruno Enei
80 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Leia-se o Canto XXXIII, onde a figura de Ugolino traidor se


torna a figura de um pai traído e eternamente desesperado, numa dor que
se renova diante do espetáculo de seus filhos inocentes caindo de inédia
e de fome.20
Leia-se, enfim, o Canto XXXIV, que fecha a visão do Inferno,
numa planície gélida, árida, onde se perfilam os rostos comidos
e pendentes, da boca de Lúcifer, dos maiores traidores dos ideais
mais eternos da História, quais são para Dante a pureza da religião
e a honestidade da política. O Inferno abrira-se com os negligentes
e fecha-se com os traidores de Cristo e de César. Abrira-se com uma
multidão anônima e fecha-se com Bruto, Cássio e Judas.21
Rapidamente é essa a impressão que nos deixa a primeira
cantiga da Divina Comédia. Ninguém vivendo esses episódios pensa no
Inferno; o Inferno só torna mais dramático, mais eterno o motivo da
inspiração. É como o tempo, que deixa nas coisas da vida, nas paredes
das catedrais, dos monumentos, um sinal de majestade, de sacro, de
respeito, de austeridade.
Assim, o Inferno de Dante, esse Inferno que é dor, que é castigo,
que é eterno, que é julgamento, torna mais séria, mais sublime, mais
amarga e mais pura a humanidade, nesse seu caminho que é feito de bem
e de mal, de vícios e virtudes, de heroísmos e de fraquezas, de escuridão
e de luz. E o Inferno, que é tudo isso, é então a imagem eterna do nosso
Aquém, da nossa vida, do nosso drama histórico e doloroso e feliz da
vida.22

Eneias, seu filho, e seu velho pai. Também ao incitar os companheiros a seguirem-no
nas viagens, diz: [...]”.
20
Na mesma palestra de que trata a nota 17: “No Canto XXXIII ergue-se a tétrica figura
do conde Ugolino, traidor, e ao mesmo tempo traído, desesperado, numa eterna dor
perante a morte de seus quatro filhos, e esta narração tão dolorosa é um dos episódios
mais trágicos da Divina Comédia”.
21
Na mesma palestra de que trata a nota 17: “Finalmente, no Canto XXXIV, que encerra
o Inferno, está a Judeca, uma enorme geleira onde habita Lucifero, com três fauces, e
rói com os dentes os traidores de Deus e da pátria, que são para ele [Dante] os maiores
pecadores possíveis e que são Judas, Bruto e Cássio: o primeiro, traidor de Cristo, os
outros dois, de César, que representa o Império de Roma”.
22
Na mesma palestra de que trata a nota 17: “Assim encerra-se o Inferno de Dante,
um Inferno que não é somente dor e castigo, mas também é julgamento. Esse sentido
ético e religioso de Dante é um dos maiores segredos da Divina Comédia, e ela pode
ser considerada como uma intenção de Dante de querer induzir os homens a encontrar
a verdadeira vida cristã. E essa viagem é uma viagem do próprio espírito humano pelo
caminho mundano dos erros e expiações, até chegar ao fim da dor extrema ou da eterna
beatitude. E o Inferno, que é o fim desse caminho cheio de mal, vícios, fraquezas e es-
curidão, é, pois, um reflexo mais terrível e medonho da tragédia e da comédia humana,
da qual somos ao mesmo tempo atores e espectadores”.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 81

Francesco Petrarca (1304-1374)

Nasceu em Arezzo, uma cidade da Toscana, filho de Ser Petraccolo


e de Eletta Canigiani, a 20 de julho de 1304. Passou a primeira infância
com a mãe em Valdarno, mas em 1311 vão a Pisa, onde o menino conhece
Dante. Seu pai era do partido dos Bianchi e foi exilado juntamente com
Dante para longe de Firenze, essa a razão de Petrarca nascer em Arezzo.
Perdendo Petraccolo as esperanças de retornar, conduz sua família para
Avignone, em 1312, mandando Petrarca à vizinha cidade de Carpentras,
na escola de Convenevole da Prato. Remontam àquele tempo a primeira
excursão a Valchiusa e talvez as primeiras impressões de paz que tantas
vezes deviam depois ser renovadas no Petrarca daquela solidão. Mas
em 1316 foi enviado a Montpellier para estudar Direito, onde estudou
sobretudo os clássicos. Quatro anos permaneceu na França. Depois, no
fim de 1320, acolheu-o Bolonha, onde continuou os estudos jurídicos,
aos quais, todavia, sempre preferiu Virgílio e Cícero.
Por destino, quase todos os poetas encontram no princípio de sua
vocação o obstáculo dos estudos jurídicos: Petrarca foi um dos primeiros
a vencer esta prova, ligado às necessidades do viver cotidiano; enquanto
que as Letras, a Filosofia, eram, também agora, pobres e singelas. E para
conservar a fé na poesia e nas letras, Petrarca, ao retornar a Avignone
pela morte do pai, dirigiu-se com seu irmão Gherardo à condição
eclesiástica; não foi além das ordens menores, mas foi canônico leigo e,
a título de honra, incluído ao Capitolo: os benefícios que lhe advieram
por aquela sua qualidade permitiram-lhe cuidar das obras de poesia.
Foi culpado de não dedicar-se completamente ao clero, não procurando
aumentar seu patrimônio, não percebendo os outros quanta luz trouxe
à sua vida de intrigantes a poesia do ozio23 ativíssimo de Petrarca, e
que seus contemporâneos pagaram com tão pequena moeda, como as
prebendas canonicais.
Na sexta-feira, 6 de abril de 1327, na Igreja de Santa Chiara,
teve a sorte ou azar de encontrar uma moça de nome Laura e amou-a
profundamente, dedicando-lhe tantos cantos de sua obra, e mesmo ao
morrer ela, vítima da peste em 1348, continuou a cantá-la. Laura no
Canzoniere é certamente uma pessoa determinada, mas é transformada
de modo a recolher todos os afetos do poeta, todas as naturezas, todos
os cantos, todas as memórias. Daquele 6 de abril de 1327 até o 6 de
abril de 1348, data da morte de Laura, e mesmo até os últimos anos da
vida de Petrarca, aquele amor e aquela matéria de poesia significaram
23
Ócio.
Bruno Enei
82 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

sobretudo como exercício da mais secreta humanidade do poeta e a


razão providencial de sua arte.
Em 1330, Petrarca segue o novo bispo Colonna a Guascogna; em
seguida, volta a Avignone junto ao cardeal Colonna, irmão do bispo. O ano
1333 é o de viagens para Petrarca: visita a França, Flandres, Alemanha.
Essas viagens tiveram uma função de desabafo e de esquecimento. Em
1337, visitou Roma, que nunca havia visto, enamorando-se desta bela
cidade. Depois vai ao setentrião, à Inglaterra, sempre levado pelo desejo
de conhecer lugares e costumes. Nasce seu filho Giovanni, de uma
desconhecida. Retirando-se em seguida a Valchiusa, onde possuía uma
casa perto do rio Sorga, em 1337, onde inicia uma vida de solidão e de
estudo, até 1341. É a época de profundo fervor: em 1338 inicia o Africa,
que termina em Parma.
A sua fama cresceu na Itália e na França: da Universidade de
Paris e do Senado de Roma chegam-lhe, a 10 de setembro de 1340, cartas
que lhe oferecem a coroação poética. Preferida Roma, e examinado
durante três dias em Napoli pelo doutíssimo rei Roberto d’Angiò, foi
solenemente coroado sobre o Campidoglio, na páscoa de 1341. Ao
voltar, fechou-se com seu amigo Azzo da Correggio em Parma e, na
solidão de Selvapiana, continuou o Africa, que havia interrompido.
Em 1343 nasceu sua filha Francesca. É o ano de uma grande
crise interior, pois seu irmão que ficou monge em Montreux chamava-o
por uma carta convidando-o a recitar o Ofício. Também em 1343 é
enviado como embaixador do papa às cortes de Napoli. Em 1344,
escreve a famosa canção Italia Mia. Em 1347, visita o irmão na Certosa
di Montrieux; e inspirado na morada dos cartuxinos, surge sua obra De
ocio religiosorum. Vai a Roma encontrar Cola di Rienzo, mas interrompe
a viagem em Gênova.
Em 1348, a mulher que havia inspirado sua mais íntima poesia,
Laura, morreu no contágio da peste. Na sua dor nasce uma nova e mais
profunda substância de poesia. No ano seguinte, ordenou a primeira
silogge24 do Canzoniere, duzentas e quinze poesias a oferecer a Azzo da
Correggio. Em abril de 1351, os priores das artes e o magistrado supremo
de Florença mandam-lhe o amigo Boccaccio com uma carta na qual lhe
é oferecida uma cátedra no Studio e a restituição dos bens confiscados de
seu pai em 1302. Mas Petrarca recusou e voltou a Valchiusa em junho.
Permanece, em seguida, oito anos em Milão, a convite do
arcebispo Giovanni Visconti. Viagens e embaixadas cumpriu ainda;
em 1355, enviado embaixador em Praga junto ao imperador Carlos, o

24
Antologia, florilégio.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 83

filho do tabelião Ser Petraccolo tornou-se conde paladino; em 1361,


foi embaixador de Visconti em Paris, junto ao rei Giovanni. Voltando a
Milão, a peste o força a refugiar-se em Pádua e depois em Veneza, onde
o Senado lhe cedeu um palácio à margem do Schiavoni, com o pacto de
que o poeta deixasse à República seus livros.
Fixa finalmente sua moradia em Arquà, em 1370, junto com
sua filha Francesca; lá morre em 19 de julho de 1374 e lá foi, pelo seu
desejo, sepultado. Suas dúvidas e antigos contrastes acalmam-se agora;
ao seu irmão escreveu em 1373: “Qui, sebbene infermo, vivo con l’animo
tranquillo, senza agitazioni né errori né preoccupazioni, sempre leggendo
e scrivendo, e lodando Dio”. Teve funerais solenes, último sinal da fama
que havia gozado junto dos literatos e dos poderosos da época.
Viveu somente para os estudos, e ele próprio descobriu as cartas
de Cícero, num livro. Petrarca é cheio de dúvidas, tem um desejo imenso
de ser religioso e, no entanto, apegado à vida; nunca soube tomar uma
atitude heroica de persuadir alguém com sua fé.
Sua alma e seu modo de viver ficam muito pertos do nosso, pois
tem nossa psicologia e analisa a alma. Faz mostrar a diferença de sua época
e a de Dante: este se põe no meio da vida e quer modificá- la; Petrarca se
afasta da realidade, desejando ser apenas espectador. Se Dante é heroico,
Petrarca é elegíaco, isso é evidente em suas palavras, que são aveludadas
e moldadas harmoniosamente. As poesias de Dante parecem criar figuras,
as de Petrarca se transformam em melodia.

Obras de Petrarca

Podem ser divididas em dois grupos, isto é, o das obras escritas


em latim e as escritas em italiano. Em italiano, as mais famosas são:
Il Canzoniere, que, aliás, não é o verdadeiro título da obra, pois
Petrarca chamou esta obra, com desprezo, Rerum vulgarium fragmenta
– com desprezo, orgulho e satisfação do clássico, com a confiança,
otimismo e fé e consciência de ser um grande latinista, não dando
importância às obras que escrevia em italiano. I Trionfi é a segunda obra
escrita em italiano.
As obras em latim seriam bastante numerosas se quiséssemos
lembrar todas. As mais importantes, que estão ligadas à espiritualidade
das outras duas, são: De Africa (poema épico); Le Epistolae (grupo de
cartas); Epistolae metricae (outras cartas em poesia); Secretum; De ocio
Bruno Enei
84 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

religiosorum; De vita solitaria; De remedius utriusque fortunae; Rerum


memorandarum libri; De viris illustribus.
Deixa de lado uma infinidade de obras escritas em latim.
Petrarca deve ser considerado como um precursor do Humanismo e da
Renascença.

Obras de Petrarca em italiano

Foi um crítico italiano, um grandíssimo crítico, que procurou


primeiro ver na obra de arte não tanto a língua, a eloquência e oratória,
mas humanidade e unidade de linguagem, como artista que procura a
síntese entre conteúdo e linguagem, se a forma não é a síntese de um
conteúdo. Foi precisamente Francesco De Sanctis quem pôs numa justa
visão crítica a personalidade de Petrarca.
Até para De Sanctis o vulto de Petrarca mudou completamente,
porque passou a ser grande não tanto pela linguagem e beleza da língua
e cultura, mas pelas obras de caráter emotivo, pela personalidade lírica,
pela psicologia e drama interior que são evidentes nas suas obras. Vê-o
então não como latinista, não como personalidade do Humanismo,
mas como personalidade da poesia lírica italiana, que se inspira nos
sentimentos, na felicidade, no anseio, no drama interior da própria alma,
e como Il Canzoniere é o conjunto das poesias em torno do amor, do
desabafo de todos os sentimentos humanos, Petrarca tornou-se famoso
não pela obra que ele esperava, De Africa, mas pela que não apreciava e
que era Il Canzoniere.
Petrarca foi grande numa época serena, realista, como Homero,
porque é poeta lírico e por isso criou uma escola na Itália, França,
Espanha, Portugal; as líricas de Camões repetem motivos da poesia de
Petrarca, motivos de analogia sentimental e linguística, o que faz Camões
considerá-lo o melhor.

Il Canzoniere
É o conjunto de trezentos e sessenta e seis poesias, das quais
mais de trezentas são sonetos; possui muitas canções, madrigais,
baladas. A obra é dividida em duas partes: a primeira é intitulada In vita
di Madonna Laura e a segunda, In morte di Madonna Laura. A distinção
feita entre as duas partes não tem um verdadeiro valor cronológico, isto
é, não quer dizer que todas as poesias que estão na primeira parte foram
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 85

escritas durante a vida de Laura, pois muitas delas foram escritas depois
de 1348, quando ela morre, ao passo que outras escritas antes pertencem
à segunda metade. O tempo tem sua função, mas a disposição de espírito
tem mais valor.
Na primeira parte Petrarca pôs as que exprimem uma poesia
diferente, na segunda revela outros aspectos da sua psicologia. O assunto
fundamental é o amor, isto é, o sentimento de Petrarca para com Laura,
mas não é somente amor que o poeta canta no Canzoniere. Temos poesias
religiosas, políticas, de caráter filosófico, descritivas, da natureza, mas o
núcleo fundamental é naturalmente o amor.
Agora temos que dizer que esse amor em Petrarca nunca foi
motivo de alegria, de felicidade, de forma que, em geral, Il Canzoniere
não é uma obra feliz: a expressão, a finalidade dessa obra não é otimística
porque esse amor não se realiza e porque o amor criou na alma de Petrarca
atitudes de tristeza, de melancolia, de crise religiosa, que eram próprios
da personalidade de Petrarca.
Il Canzoniere na base do amor é o desabafo de uma alma, o
desabafo de um homem em crise, e como isto é também a expressão de
uma idade em crise. Petrarca representa aquele período da passagem
entre a Idade Média e a Renascença em que muitos ideais vão caindo e
os novos ainda não têm força profunda, personalidade e convicção.
Petrarca tem apego à natureza e à mulher, que são conceitos
próprios da Idade Média. Sua maior preocupação é o Além, e tem pouco
apego à vida. Bem ao contrário como nos séculos XIV e XV, quando
se acendem na alma humana desejos de criar, explorar, conhecer coisas
novas, e então temos as descobertas geográficas com Colombo e tantos
outros, e por essa razão temos os pintores no século XV; é por isso que
se inventa a imprensa, a pólvora, a bússola, que são a prova de que o
homem deixou a Idade Média e seu empenho maior é a vida, a Terra
que ele deve melhorar, pois é seu dever a transformação de tudo num
mundo melhor. A história do mundo torna-se a da Europa e depois, da
América.
Petrarca é o poeta que prenuncia tudo isso, e em certos aspectos
que são os mais nobres, os mais delicados e humanos: o seu amor
pela cultura, pelo saber, quer conhecer, explorar a Antiguidade, ver o
que ela foi, com seus escritores que foram apóstolos antes de Cristo,
apresentando seus juristas, seus filósofos, seus heróis.
A beleza da natureza ele exulta sem medo, com uma claríssima
solidariedade, a natureza como criadora e renovadora. Aprecia as
paisagens matinais e vê entre os homens a mulher, e no meio delas, a
bela, que é Laura.
Bruno Enei
86 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Laura ainda não é uma personalidade com esses ou aqueles


defeitos, mas é puríssima em ideais, é um símbolo, mas não um religioso,
espiritual, como no Dolce Stil Nuovo, nada disso; Laura é o símbolo da
pureza, da perfeição do mundo grego, transformado em mulher. É uma
ideia platônica, símbolo da natureza. É um conceito moderno, conceito
petrarquista. Um outro seu conceito moderno é o apego para com essa
beleza e a preocupação e a consciência da tentação dessa beleza.
Petrarca está preocupado com a beleza, que o puxa para um
lado, e com o Além, pois não esquece Dante e São Tomás, e então tem
dúvidas, sente-se incapaz de decidir se continuará a seguir Dante ou se
entrará no mundo moderno. Foi portanto um elegíaco cantando esses
dois polos opostos.
Um outro conceito seu é o da consciência da fugacidade da vida,
da natureza, das coisas bonitas, que desaparecerão e acabarão. Como
também os homens morrem, sente esse desejo imenso de fazer algo de
valor. E então essa finalidade elegíaca da poesia, pois preocupa-se com
o que é bonito e com a brevidade do tempo dado à beleza. Afasta-se pois
da realidade e vive sobretudo da imagem das lembranças.
É o poeta que nunca enfrenta a realidade por si diretamente,
procura contar a realidade longe dela, como em Valchiusa. Lá ele sonha
ver Laura, deitada num verde prado, banhando-se, e aí o desejo de viver
com ela e a decepção que teria se vivesse com ela. É o desejo que, quando
se torna realidade, já é decepção. O ideal é o sonho e a ilusão, mas se
a consciência desse sonho cria nele uma decepção, então é diferente de
um Goethe romântico, desesperado, mas sempre uma afirmação da vida.
Para ele a dor é quase um prazer, porque gosta de sofrer, porque vê a
alegria de poder se exprimir. O desabafo poético é sua alegria.
Muitas poesias suas são de caráter religioso, como a que fecha
Il Canzoniere: La Vergi. Ela é diferentíssima da poesia de Dante, onde a
mulher é algo de deusa, ao passo que aqui é a virgem descrita como se
fosse Laura: é bonita, melancólica, humana, cheia de compreensão. As
virgens de ambos os escritores são muito diferentes.
Il Canzoniere pode ser considerada uma obra da história da
literatura europeia. Petrarca criou uma escola na Alemanha, Espanha,
França, onde se encontram petrarquistas. D’Annunzio pode ser
considerado um filho de Petrarca, pelo latinismo da palavra; por outro
lado, ele foi o corruptor da língua porque ele cria um estilo que foi
um defeito em muitos poetas nos séculos XVI a XVIII, o que foi uma
maladie na história da literatura italiana.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 87

I Trionfi
É a segunda obra de Petrarca em italiano (1352). É um poema
alegórico feito à imitação da Divina Comédia, que Petrarca escreveu
nos últimos anos de sua vida, depois da sua volta da França para a Itália,
onde ficou morando definitivamente.
Esta obra artisticamente não tem nada de novo, não pede uma
comparação com Il Canzoniere, e não nos dá nada de novo, nem no sentido
dos motivos de valor artístico do Canzoniere. Petrarca é verdadeiramente
grande porque escreveu o Canzoniere, porém, psicologicamente, I Trionfi
tem valor notável. Com esta obra, nos últimos anos de vida do seu amor,
da sua decepção e da morte de Laura, voltando à Itália, quis num certo
sentido retratar o seu passado, confessar os erros da sua vida até então
e procurou também retomar o seu passado num sentido de mostrar, de
procurar, de enquadrar num sentido de nobreza, religiosidade, todos os
ideais que tinha no Canzoniere, que foram o motivo de sua vida.
Procurou o seu amor, o desejo imenso da glória, da honra,
procurou ser o maior poeta e de retomar o seu apego diante da natureza e
da vida, que podia ser considerada um pecado. Então procurou enquadrá-
-los num sentimento de divindade para que nunca pudesse ser dito que
ele esqueceu da existência de Deus. Então ele tentou religiosizar esses
seus anseios de mocidade. Portanto, I Trionfi é a descrição de uma visão
da vida em que, num primeiro momento, é o amor o primeiro triunfo, e
Petrarca o canta em todas as situações psicológicas que ele determina.
Sobre o amor há um outro triunfo, a castidade, a pureza,
desaparecendo então o amor. Sobre a castidade há o triunfo da morte.
Chega o momento em que o pensamento dominante é o fim, a consciência
de abandonar o mundo, a preocupação da morte, com versos belos sobre
Laura. Agora, o triunfo da fama: é verdade que a morte triunfa sobre a
vida, mas o homem que a tornou culta adquire um outro tempo, a vida
da fama, da glória, que às vezes não somente continua, mas começa
depois da morte, quando o homem continua sua vida junto aos seus
leitores e os que tiveram simpatia com ele; a fama, pois, vence a morte.
Depois temos o triunfo do tempo. A fama voa, diz Virgílio, porém ela
tem um limite e desaparece, empalidece, porque o tempo está acima
dela. Este é o quinto triunfo. E além do tempo, um outro triunfo ainda,
da eternidade, que é o pensamento de Deus e do Além. A vida humana
passa, pois, através desses triunfos: amore, castità, morte, fama, tempo,
eternità.
Nessa obra temos um Petrarca arrependido e desejoso de
purificar os seus sentimentos, fazendo ver como todas essas coisas que
o preocuparam durante a vida na sua alma sentimental, como esses
Bruno Enei
88 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

sentimentos tinham uma linha de ascensão, que é o pensamento de


Deus.
É uma obra interessantíssima, porque é a reveladora das dúvidas,
dos choques, do drama interior da alma de Petrarca. É evidente que nela
falta uma fé firme, insofismável, como em Dante. Petrarca é incerto,
viveu numa crise, reflexo de uma idade em crise. Por isso ele exprime
bem a passagem da Idade Média à Renascença; sente profundamente
não ser mais da Idade Média, mas ainda a lembra. Está entre Dante e
Ariosto, e surgem então outra vez essas preocupações.

Secretum, De remedius utriusque fortunae, De ocio


religiosorum e De vita solitaria
São quatro obras que poderiam ter um único título. São de
caráter ascético, místico, com essa atitude e perspectiva.
A mais famosa é Secretum, quer dizer, segredo. É uma obra
autobiográfica, em que Petrarca se confessa diante de um seu irmão
espiritual que é Santo Agostinho, que o compreende, aprecia, também
é emotivo, cheio de sentimentalismo, bem semelhante a Petrarca: lírico
e não racionalista. Petrarca imagina confessar-se diante dele, contando
os seus desejos, o que aspira da vida, o que esta deveria ser para ele,
os seus pecados, seus segredos, os seus instintos. Assim nasce esta
confissão, os seus sonhos para a glória, o amor, etc. Santo Agostinho diz
que ele está errado, que Deus e o Além devem preocupar o homem, mas
Petrarca continua a revelar-se, sem se mostrar convencido do que ele
disse. Como testemunha a esta confissão temos uma personagem que
nunca fala, mas assiste a tudo, e que é Verità. Ela escuta o que Petrarca
diz, nota que ele está fora da estrada certa e que ele não sente nenhuma
necessidade de obedecer a Santo Agostinho. É uma obra de caráter
autobiográfico, porque Petrarca desabafa, pondo em evidência o caráter
humano.
De remedius utriusque fortunae − Diante da fortuna da sorte
boa e da sorte má, qual o remédio que o homem deverá usar para isso?
É um dos livros que mais põem em evidência o lado culto, o aspecto
humanístico e moderno de Petrarca. E qual seria o remédio que ele
sugere aos homens diante da sorte? O equilíbrio, a serenidade, a calma,
a alma, que é o imperativo categórico da Idade Moderna: diante da sorte
má não precisa desesperar-se, e diante da boa não precisa exultar-se; é
preciso saber ser feliz com equilíbrio e enfrentar as amarguras da vida
com equilíbrio, que sabe dominar os próprios instintos.
De ocio religiosorum − É a vida solitária e a exaltação da vida
dos padres nos conventos, a meditação desses padres que vivem lendo,
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 89

rezando, pregando, e é evidente que nesta obra revela-se o caráter de


Petrarca que sempre viveu na solidão. É a exultação do mundo latino
nos estudos da meditação, a visão de um mundo sereno, em que a
realidade fica longe, tudo isso torna esta obra um drama.
Petrarca escreveu muitas epistole e que são em vinte e quatro
volumes: são milhares de cartas, escritas em latim e divididas em quatro
tomos, cujos títulos são: De rebus familiaribus; Variae; Sine nomine;
Senili.
De rebus familiaribus são cartas sobre assuntos da cultura,
de amizade, de pessoas que Petrarca conhecia, assuntos políticos e
culturais. Variae são de caracteres diversos. Sine nomine são cartas em
que ele enfrenta o problema da volta dos papas a Roma, como Santa
Catarina da Siena. Senili são as últimas cartas de Petrarca.
Petrarca também é o autor de Epistolae metricae, que são
sessenta e seis cartas, apostilas escritas em verso.

De Africa
É a última obra de Petrarca, quase só em latim. São nove
livros em hexâmetros latinos, escritos entre 1338 e 1340, antes que
fosse coroado poeta. Petrarca fala não tanto da África, mas do Império
Romano, da história de Roma, das glórias da ascensão da potência
romana, sobretudo aproveitando a Segunda Guerra Púnica, em que
Cipião ganhou de Aníbal. Essa obra deu a Petrarca a sua glória. Mas,
com o Romantismo, começou-se a se afastar das obras em latim e
apreciar-se nele o escritor em língua vulgar, e o primeiro crítico foi
Francesco De Sanctis.

Giovanni Boccaccio (1313-1375)

É o terceiro grande poeta do século XIV. Sua vida: também é


toscano como Dante e Petrarca. Porém, não é de uma grande cidade
como Firenze ou Arezzo, pois num certo sentido nem é italiano, pois
nasceu em Paris. Seu pai chamava-se Messer Boccaccio di Chellino, que
era de um lugarejo perto de Firenze, Certaldo. É possível que se ouça
dizer il certaldese. Isto se chama antonomásia, como no caso de Rafael,
chamado l’urbinate.
O pai de Boccaccio era um negociante e mercantejava muito
entre a Itália e a França, sendo um homem muito rico, e a seda sua
Bruno Enei
90 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

indústria, e sócio do maior banco europeu daquela época, o Banco dei


Bardi, uma família que possuía um dos mais bonitos prédios em Florença
e que foi feito por Leon Battista Alberti.
Messer Boccaccio, embora tivesse família na Itália, amou uma
moça na França, pertencente à aristocracia, chamada Giovanna, e daí o
nome que deu a seu filho, que é o fruto ilegítimo desse amor, e essa é a
razão pela qual Boccaccio nasceu em Paris.
Seu pai o reconheceu como filho e levou-o à sua família em
Certaldo e o pôs junto aos seus outros filhos, mas teve de afastá-lo de sua
família, como era natural, e mandou-o a Napoli.
Este é então o primeiro período na vida de Boccaccio: 1313-
1325.
Agora podemos considerar um segundo aspecto na vida de
Boccaccio, o período que vai de 1325 a 1340, passado em Napoli. Lá
achou o seu ambiente. Era sem preocupações, sem receios, bonito,
inteligente e teve por isso muita sorte, fazendo parte da melhor sociedade
napolitana e sendo introduzido na corte, entre moços da alta aristocracia
francesa e napolitana, e o rei naquela época era Roberto d’Angiò, tendo
sido culto, e que durante três dias interrogou Boccaccio, para ver se era
digno de ser coroado poeta.
Boccaccio era riquíssimo, e por isso não tinha nenhuma
preocupação, e sua maior simpatia intelectual era a literatura francesa e
latina, quer dizer que desde os primeiros anos é evidente uma simpatia,
não para com o problema moral, do Direito, da Filosofia, ou com os
problemas da Idade Média; era uma simpatia no sentido de romance,
de contos, e é evidente a simpatia de Boccaccio para com Dante e
Petrarca.
Seu pai queria que ele se dedicasse ao comércio e deu-lhe uma
incumbência, mas ele não revelou nenhuma qualidade nesse sentido,
pois não sabia comerciar. Mais tarde seu pai autoriza-o a abandonar o
comércio e estudar Direito Canônico (Diritto Canonico), mas também
nesse campo Boccaccio não tinha atitudes, não podia brilhar, pois as
leis exigem serenidade e ele não tinha preocupações e por isso não tinha
atitudes. E assim abandonou também o Direito.
No entanto, vinha escrevendo os seus primeiros romances
e foram três que lhe deram fama e consideração. Boccaccio, além de
ser considerado um dos melhores intelectuais do ambiente cultural de
Napoli e ser amigo de Roberto d’Angiò, teve nesse período um amor
muito importante, teve uma relação profunda, não num caráter ideal,
nem platônico, como o de Dante e Petrarca, com uma filha natural
do rei Roberto; sua mãe, Maria d’Aquino, teve relações com Roberto
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 91

e então nasceu esta filha, uma das moças mais bonitas da sociedade
napolitana.
Boccaccio amou profundamente essa moça. Mas é interessante
saber que ela é objeto nas suas obras de muitas páginas de caráter
autobiográfico. Porém ela não é lembrada com o nome de Maria, mas
como Fiammetta (Flamazinha). Pensem em Beatrice e em Laura, e
agora em Fiammetta, o fogo amoroso de Boccaccio, para compreender
a mentalidade desses escritores. E Fiammetta abandonou Boccaccio,
passando a outros amores, e isso o deixou numa amargura que só esqueceu
na velhice e que é objeto de páginas satíricas e que são intituladas Il
corbaccio, nas quais ele chicoteia a mulher como infiel.
A sua vida nesse ambiente foi tão serena, tão bonita, tão alegre,
em Napoli, pela sua beleza, inteligência, que Boccaccio nesse período
nem era chamado assim, mas, latinamente: Joannes Tranquillitatum (João
das Tranquilidades), pois tudo era risonho em torno dele.
Porém, isto vai até 1340, quando tinha 27 anos, porque no
terceiro período de sua vida as coisas mudam. De 1340 a 1345 apresenta
este período caracteres opostos àqueles com os quais ilustrava sua vida
em Napoli. Em 1340, o Banco Bardi faliu e então Boccaccio teve que
trabalhar e conhecer a realidade, pois não podia mais viver de riquezas, de
cheques, como aconteceu até então. Agora tudo muda. Então Boccaccio,
com 27 anos, deve começar uma experiência dura, amarga, de todos os
dias, ele que era o moço que não conhecia preocupações. Começou a ser
empregado em Florença, como mensageiro junto ao papa, sendo uma
espécie de embaixador, levando informações da república florentina aos
senhores da Itália.
Em 1352, ele teve da república de Florença a honra e a incumbência
de ir a Padova, e lá, convidar para a Universidade de Firenze ninguém
menos que Petrarca. Ele apresentou esse homem famoso à Europa e
ficaram amigos, mas com uma diferença, pois não era tão sério, honesto
e famoso como Petrarca, e foi uma amizade num plano de admiração de
Boccaccio para com Petrarca e simpatia desse para com Boccaccio.
Em 1362, Boccaccio já começava a manifestar sinais da
decadência e sobretudo pela sua miséria. Por um conjunto de coisas,
Boccaccio envelheceu física e espiritualmente; a sua velhice espiritual
constituiu uma preocupação de caráter religioso, que só se apresentou
depois de 1360, quando ele começa a pensar no Além, que ele não tinha
feito nada até então e que seus livros eram uma negação, sobretudo seus
diálogos fizeram que ele pensasse nisso.
Em 1362, quando estava em Certaldo, apareceu-lhe a fazer uma
visita imprevista um humilde frei que se chamava Gioacchino Ciani, que
Bruno Enei
92 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

era portador de uma gravíssima mensagem; a informação que ele levava a


Boccaccio era justamente que um seu colega de convento, Pietro Petroni,
ao morrer teria pedido a Gioacchino falar a Boccaccio e pedir-lhe que
mudasse de vida, porque numa das suas últimas visões, Boccaccio iria
ser condenado ao Inferno.
Isso deixou uma impressão grandíssima na alma de Boccaccio.
Ele pensou em mudar de vida, em estudos sérios da verdade, abandonando
tudo o que tinha feito até então e queria queimar todos os seus livros
e principalmente Il Decamerone, e por isso ele escreveu a Petrarca
pedindo-lhe conselhos. E foi justamente Petrarca, tão cheio de dúvidas,
que lhe disse que poderia perfeitamente salvar-se sem ter nada que ver
com religião as suas obras. É bonito, sobretudo, pois foi afirmado por
um poeta cheio de dúvidas, e, no entanto, é ele mesmo quem convida
Boccaccio a não preocupar-se com suas obras, porque ele poderia mudar
de vida e abraçar a religião sem negar sua genialidade, e é esse conselho
que nos dá hoje a faculdade de podermos ler suas obras.
Um outro fato que nós podemos ainda lembrar é 1373. É uma
data bonita, porque pode ser considerada como o coroamento, como
o ano de homenagem à figura de Boccaccio: a república de Florença
deu-lhe a incumbência, pela primeira vez honra pública, de comentar
numa igreja de Florença, Santo Stefano di Badia, A Divina Comédia,
uma obra que é a visão do Além comentada por um escritor que
comentou a visão do Aquém.
E Boccaccio faz cem aulas sobre a Divina Comédia, não tendo
chegado a concluir a décima sétima. Esse comentário foi publicado e o
possuímos ainda hoje, mas não tem agora a importância de antigamente.
No entanto, ainda é útil esta obra, pelas infinitas informações que contém,
pois Boccaccio era pequeno quando Dante morreu, então conheceu
pessoalmente pessoas das quais a Divina Comédia está cheia.
Em 1373 ele se retira definitivamente à sua casa de Certaldo e,
no meio da doença, da preocupação, da tristeza e solidão, esse homem
que teve uma vida alegre, brilhante, social, conhecido na Europa e até na
Inglaterra, morre em 1375.
Teve uma vida serena de letrado, de homem que não tem
nenhum empenho no sentido moral, nenhuma luta no sentido religioso,
é um daqueles para quem sempre vale o lema epicurélio Carpe diem,
que até 1370 viveu assim e depois conheceu a dor, a amargura da vida
e sentiu a sombra da Idade Média na sua alma, mas que teve grandes
amizades e que morre depois de ter escrito uma grandíssima produção
literária, o seu Il Decamerone.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 93

Obras de Boccaccio

Il Decamerone
O título desta obra é de origem grega: deca = dez; emeron =
dia. É pois uma obra comutável: novelas em dez dias, contadas por dez
diferentes personagens. Dez dias x dez personagens dá cem.
Foi escrita entre 1348 e 1351, quando Boccaccio tinha 35 ou
36 anos, num período não mais de mocidade, em que ele podia sentir
a vida com maior equilíbrio e objetividade. O enredo desta obra é o
seguinte: durante a peste que havia em Florença em 1340, quando ela
era mais cruel, matando Laura, homens e mulheres, o poeta imagina que
um grupo de sete moças e três moços, encontrando-se numa das mais
famosas igrejas – Santa Maria Novella –, combinassem de ir viver nas
colinas de Florença durante a peste.
Os moços se chamavam: Filostrato, Panfilo e Dionello. Os
nomes querem ter algo de alegórico, e pelo menos um tem um sentido
autobiográfico: Dionello, que é o personagem que mais possa lembrar
os acontecimentos da vida juvenil de Boccaccio. Mas também os outros
dois nomes desta obra têm um sentido figurado. Filostrato é o vencido
pelo amor e Panfilo é todo amor. Dionello é um moço vivo, aberto, sem
disciplina, amante da vida, e é a imagem de Boccaccio.
As mulheres ou moças, nenhuma delas é mais nova do que
dezenove anos e mais velha do que vinte e seis, isso quer dizer que se
determina tudo num mundo de mocidade: Filomena, Fiammetta, Emilia,
Elisa, Lauretta, Neifile e Pampinea.
Estamos então diante de um mundo de mocidade, diante de dez
diferentes caracteres, diante de dez diferentes psicologias, e isso dá o
caráter de universalidade, de diferenciação que esse conjunto de novelas
possui. Os dias durante os quais o poeta imagina que esse grupo de
moços vive longe de Florença são na verdade catorze, mas a sexta-feira e
o sábado não são contados por serem os dias da penitência e da salvação.
Então, dois dias da semana não se contam, de forma que, durante os
quatro dias que sobram das duas semanas, ficam dez, um dia de cada
um dos personagens, que conta uma novela.
As novelas são contadas à tarde, quando os moços estabelecem
viver nos campos, gozando o ar, e vão contando a novela, e depois
dizem as próprias impressões, e assim temos também essa conclusão
viva, que contém essas impressões. No fim de cada dia há uma ballata
em verso, de modo que todos os dias do Decamerone se fecham com
versos, contados pelos moços e moças; e todo dia se nomeia um rei e
Bruno Enei
94 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

uma regina, que será quem deverá dizer as novelas, isto é, os temas das
novelas daquele dia.
Um dia se falará sobre o amor feliz, o infeliz, a inteligência, a
arte, a morte, e então as novelas devem ser inspiradas pelo rei ou rainha,
a não ser Dionello, que é livre de contar o que quer. É o moço mais livre
e cria por isso também uma variedade, isto é, a variedade do conjunto
desta obra.
Toda obra é precedida por uma introdução, que é a parte mais
trágica, mais triste, mais dolorosa do romance, em que Boccaccio
descreve a peste de Florença, mas como ele diz na introdução, o seu
livro é como uma montanha, é preciso subi-la para gozar de uma lúcida
paisagem, assim é a introdução.
Dois dias desses dez são livres, quer dizer que no primeiro e no
nono o assunto é livre, eles podem ser de qualquer assunto. Isso contribui
a quebrar a monotonia no conjunto da obra dessas cem novelas.
Portanto, estão bem construídas e estão ligadas a uma lógica
filosófica e existência artística. É interessante observar que as novelas são
cem, como cem são os cantos da Divina Comédia, o que confirma uma
impressão nos italianos: como a Divina Comédia é a comédia divina, o
Decamerone é a comédia humana. Esses elementos são indispensáveis
para compreender o Decamerone.
O espírito de Boccaccio coloca sua figura no seu lugar no
século XIV. Boccaccio representa o terceiro momento da dinâmica e
da dialética da literatura italiana no século XIV. Se uma literatura se
pode dizer que possua dialética, isto é, movimento, então diremos que
o primeiro aspecto da literatura é Dante, o segundo Petrarca e o terceiro
Boccaccio. O primeiro é o poeta do terceto, o segundo, do soneto, das
diretrizes psicológicas, da nossa sensibilidade. O terceiro é o do escritor
objetivo, sereno, da vida assim como ela é.
Em Dante nós temos um apóstolo julgando a vida humana, não
pelo que ela é, mas pelo que deveria ser na base de um ideal religioso e
político. Ele não se compraz com a realidade, que é para ele condenada,
e ele quer por meio dela transformá-la; ela torna-se o ideal político e
religioso que ele defende nas suas obras. Ele olha a realidade não
objetivamente.
Petrarca é o poeta que vive numa crise espiritual, na preocupação
que sente em si, a força de uma tradição moral, religiosa, política, que é
própria da espiritualidade da Idade Média, e ao mesmo tempo pressente
uma nova, que é a da Renascença. Então cria-se na sua consciência
esse choque, entre amor para a realidade e a preocupação de um mundo
severo do Além. Então essa poesia melancólica, essa descrição do papa,
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 95

alma com grande preocupação, o desabafo de uma situação crítica, qual


é aquela de um poeta de transição.
Em vez, Boccaccio, com seu Decamerone, é um poeta que
não tem nenhuma preocupação religiosa pelo Além, mas quando ele
escreve as cem novelas, descreve-as da realidade, não sob a perspectiva
de um dever ser, mas pelo que ela é, aceitando a realidade pelo que
ela é, sem querê-la melhor, ele descreve a vida como é; não há nele
uma preocupação moral, ele não se faz apóstolo à base de que queira
revolucionar o mundo. Descreve o mundo como é, nos seus aspectos
realistas, olhado, porém, com distância, com objetividade, que é
possível na mentalidade de um escritor que escreve com trinta e cinco
anos, e então olha sorrindo, sem malícia, quer descrever a vida real e
também com uma certa simpatia. É justo dizer que Boccaccio é o poeta
que descreve a vida com uma objetividade que, porém, não lhe fecha
a possibilidade de exultar a vida, quer dizer que o Decamerone é um
hino à vida, é uma exaltação da vida, um reconhecimento dos valores
da vida, que é um valor não pela virtude da penitência, mas é um valor
pelo que o homem faz instintivamente.
E duas coisas lá põe em evidência: o amor sentido não
platonicamente, mas naturalisticamente, como algo que nasce e vive,
como um homem que ama porque instintivamente é levado a amar. E
então não é pecado. Tanto é verdade que nas suas novelas não poucas
são as freiras e os padres que amam. Mas isso não é um absurdo na sua
mentalidade. Pois se o amor é algo natural e eles são humanos, por que
não devem amar? E isso é interessante, pois todas as literaturas modernas
muito se baseiam neste conceito naturalista do amor. Mas até em Dante
achamos isso, com Francesca e Paolo.
A outra característica é a inteligência. Ela é capaz de desvendar
os segredos da natureza feminina e capaz de criar a arte, a música, que
ilumina a natureza, pois é épica. Então essa exaltação e confiança na
inteligência humana, que são dois aspectos típicos da literatura moderna.
No século XV, descobertas, navegações, só não havia essa imensa
confiança na inteligência humana, em contradição à Idade Média, onde
tudo se baseava numa fé e não numa crítica. Em vez, no século XV,
com Boccaccio, Petrarca e Dante, precursores com essa mentalidade
dos valores humanos e imanentes, é que se determinam bases novas na
Ciência, na Medicina; então todo o movimento no século XVI.
Boccaccio conta também essa inteligência. A Igreja condena
Boccaccio porque é considerado autor de obra imoral, porque muitas
novelas falam de amores não puríssimos, mas não só de homens como
também de clérigos. Não para defender Boccaccio, diremos que,
Bruno Enei
96 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

primeiro, numa obra de arte não se julga o conteúdo que não pode ser
separado da forma, mas a obra de arte não vale pelo que diz, mas como
se diz aquilo. Deve ser profundamente educativa, não pelo que diz, mas
como o diz. Expressar-se educa muito mais do que dizer. A poesia tem
um outro modo de persuadir, de tocar nossa personalidade, portanto,
Boccaccio é um grande artista.
Boccaccio não tinha nenhuma preocupação ao escrever sua obra,
portanto não é nem imoral nem moral, é amoral, fica fora do julgamento.
Nós devemos pensar que Boccaccio no século XIV é um dos escritores
que mais reflete essa tendência para uma nova visão e concepção do
valor, e sua intuição da realidade é livre de preocupação e é considerada,
pois tira sua conclusão em si mesma.
Portanto, o Decamerone descreve a vida como é, e para
Boccaccio é uma belíssima coisa, porque é um conjunto de contrastes,
de artistas, de bobos e de medíocres, e o homem age, atua, realiza suas
aspirações e anseios. Tantas páginas das novelas de Boccaccio são um
hino ao aspecto do homem na vida. Não é verdade que suas novelas
falem só de corrupção. Porque ele trata da vida dos padres e freiras e
dos homens com uma delicadeza raríssima, onde descreve a candura das
moças e dos homens e a liberalidade das pessoas, de todos os clérigos, o
que quer dizer que ele também é idealista e agora o homem é virtuoso,
porque obedece a um catálogo de virtude. A liberalidade é uma virtude
religiosa e também humana.
O ser cavalheiro, ser leal, culto, são coisas boas ou não? O
fato que uma diferente religião sugira tudo isso, se esses elementos são
imperativos de todas as idades, o que é que há de imoral? Só o fato de
atribuir tudo isso não à religião. É verdade que o amor em Boccaccio,
descrito mais como um vício e naturalmente visto pelo conteúdo, pudesse
ser condenado, mas outros aspectos são esquecidos em que o assunto do
amor enobrece o leitor; quer dizer que sempre há essa objetividade da
vida, vista pelo que ela é, pela sua imanência fora do reflexo do Além.
É um espelho da vida, do que se faz, de nosso viver, do nosso desejar
quando somos moços, da nossa melancolia quando somos velhos; é a
vida como ela é, e o importante para compreender isso é ter um senso
lógico da passagem da vida à prosa.
Petrarca escreve sonetos que são pequenos instantâneos da
sensibilidade pessoal de um período longo, objetivo, narrador, depois
gozando aqueles aspectos da vida que constituem a realidade da vida,
de forma que é uma obra belíssima, juvenil, cheia de uma visão romana,
clássica da existência, porque os valores que ele canta são os mesmos que
ele hoje põe em evidência. Dante é o poeta do homem na espiritualidade
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 97

e Boccaccio, na sua humanidade. Dante o vê sob um prisma espiritual e


Boccaccio, pelo da humanidade.

Obras anteriores ao Decamerone (antes de 1348)


Filocolo (poema); Filostrato (romance); Teseida (romance);
Fiammetta (poesia); Il ninfale d’Ameto (poema); Il ninfale fiesolano
(poema).
Após tudo o que dissemos sobre o Decamerone, depois de
ter ilustrado a espiritualidade de Boccaccio no espírito do século XIV
e tê-lo comparado com Dante e Petrarca, e tendo feito ver a dinâmica
do século, para melhor documentar o valor da obra-prima e para
documentar psicologicamente a figura de Boccaccio, seria interessante
dizer que todas estas obras antes de 1348 são obras que só deviam ser
estudadas do ponto de vista da propedêutica, são obras em que se colhe
o mesmo Boccaccio do Decamerone, porém num plano menor, porque
todos estes poemas indicam as verdadeiras atitudes de Boccaccio do
Decamerone, porém essas atitudes ainda não chegaram a uma clareza, a
uma firmeza, que é evidente só na experiência do autor, antes de chegar
ao Decamerone.
Nelas estão presentes num plano de alta poesia, de alta arte, quer
dizer que Boccaccio é mais autobiográfico, isto é, acontecimentos de
sua vida, sua vida alegre e feliz, o que é nada mais do que autobiografia,
ele se serve disso para nela pôr sua autoexperiência.
Sempre teve uma simpatia para com a realidade, agora uma
coisa é a realidade autobiográfica e outra coisa é a visão realista da
realidade.
Isso é um dos aspectos das obras menores. Quando lá sentimos a
simpatia de Boccaccio para com a prosa, sente-se que ele não é um lírico
ou um trágico, é essencialmente narrador, mas entre o modo de narrar
nas obras menores e maiores, porque aqui Boccaccio ainda demonstra
inspiração literata, e no Decamerone ele é um artista próprio.
A terceira obra é sobre a língua. É verdade que Dante fundou
a língua, mas Boccaccio colabora para uma determinada prosa em
italiano. Mas está muito ligado à prosa de Cícero e sente-se nas obras
a imitação, sente-se que aquela língua italiana é uma poesia latina. Mas
no Decamerone, prosa italiana.
Esses são os aspectos das suas obras. Exaltar a figura de
Boccaccio é demonstrar que as obras anteriores são o difícil trabalho de
aperfeiçoamento das suas atitudes, que justificarão a sua última obra.
Bruno Enei
98 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Obras pós-1348
Il corbaccio; De claris mulieribus; De casibus virorum illustrium
(plutarquiana); De genealogia deorum gentilium. As mais importantes
são: De montibus, silvis, fontibus, lacubus (histórico-geográfico);
Trattatello in laude di Dante (comentário da Divina Comédia); La vita
di Dante. Temos ainda Buccolicum Carmen, poesia em latim.
São obras escritas depois do Decamerone. E podemos dizer pelos
títulos, documentam com elas a grande transformação que encontramos em
Boccaccio, arrependido de uma vida que o preocupa. Boccaccio nos últimos
anos de sua vida, depois de 1362, mudou completamente o seu modo de
viver, preocupado com o Além, e o monge que lhe comunicou a visão fez
com que Boccaccio se fechasse no mundo moral, clássico e literário.
Em De claris mulieribus, fala das ilustres mulheres que souberam
ser ótimas mães e cidadãs: Andrômaca, Penélope, etc. Sabe exultar o
caráter das mulheres.
De casibus virorum illustrium fala dos acontecimentos de
homens ilustres e de homens destruídos, isto é, uma obra que faz pensar
na obra de Plutarco.
E seria interessante ilustrar, Il corbaccio é de origem espanhola,
quer dizer chicote; é uma obra em que Boccaccio descreve uma visão
que ele imagina ter tido, pelo seguinte: ele enamorou-se em 1348 de uma
viúva moça, bonita, mas que não escutou aos seus amores, e ele vinga-
-se dessa não-correspondência descrevendo uma visão em que o marido
descreve todos os vícios da mulher; é um livro de caráter misógino, que
instiga o ódio para a mulher. Boccaccio antes de 1348 não era misógino,
não odiava as mulheres.
De montibus, silvis, fontibus, lacubus e De genealogia deorum
gentilium são obras que poderiam ser a expressão da seriedade de
Boccaccio. Na primeira se interessa pela origem dos deuses pagãos.
Na segunda, de caráter científico, fala dos bosques, montes, lagos; é o
segundo aspecto clássico de Boccaccio.
Seus últimos livros, ele que era tão oposto de Dante, o amor que
teve justamente para com Dante poderia ser objeto de uma dissertação.
Petrarca era mais cheio de dúvidas, teve pouca simpatia para com
Dante, de forma que não admirava a intransigência moral de Dante.
Mas Boccaccio, embora o contrário de Dante, teve uma grandíssima
simpatia para com Dante.
Embora lhe interesse a vida e não os ideais, portanto estas duas
últimas obras são uma verdadeira prova de amor, de simpatia; têm uma
importância que prenuncia o Humanismo e a Renascença, de um autor
da Idade Média.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 99

Aspectos menores da literatura italiana


do século XIV

O que resta do século XIV é uma conclusão. Também esse resto


do século, também os escritores, além de Dante, Petrarca e Boccaccio,
também eles, embora menores, todos eles, e é por isso que queremos
lembrá-los em todos os campos, nos vários setores de suas obras,
revelam essa tendência que pusemos em evidência, essa tendência
de uma literatura que abandona os idealismos medievais, e isto vai
tomando uma nova personalidade, de realidade, e é prova sobretudo de
um realismo, de uma simpatia, um interesse por tudo, o que quer dizer
que esses escritores menores vão modelando essa visão que prepara o
Humanismo e a Renascença; e então não se pode dizer que isso brotou
de repente, mas preparou-se através de todo um século, e até com San
Francesco notam-se já sinais da Renascença, e nos escritores menores,
que se interessavam por problemas históricos, que dão a impressão que
o Humanismo e a Renascença são preparados por uma arte e os ideais da
Idade Média vão desaparecendo e os da vida vão aparecendo.
Então, compreende-se por que Colombo, com sua descoberta,
e todos os outros, e por que esse interesse de todos pelos mares, e pelo
desconhecido, é uma mentalidade nova que surge, que não se restringe à
Itália, mas espalha-se em todos os países da Europa, em todos os campos
da Filosofia, das descobertas, das ciências, criando o que se chama Idade
Moderna.
Na historiografia, temos como escritores importantes:
Dino Compagni, que escreveu Cronica delle cose occorrenti ne’
tempi soui. Não é mais a crônica num sentido medieval, de origem do
mundo, de um ponto mítico, mas sim o interesse em falar da realidade
contemporânea, da qual o autor sente que tomou parte.
Giovanni Villani discute os mesmos assuntos, de um ponto
de vista econômico, na sua obra La cronica. Começa a sua crônica da
Torre de Babel, para chegar à fundação de Florença, depois aos fatos
contemporâneos. Na sua obra falta a alma, como em todas as obras que
narram fatos e não pensamentos.

Literatura religiosa
Domenico Cavalca escreveu uma obra, Vite dei santi padri,
em que são descritos os padres do antigo Oriente, o que sentiam, suas
tentações, etc. O conteúdo do livro é monótono, mas em algumas vidas,
como a de São João Batista, de Abraão, o estudo é íntimo e revela na
Bruno Enei
100 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

alma do autor uma capacidade singular de retratar a força persuasiva da


virtude e a perturbação do remorso.
Iacopo Passavanti recolheu suas pregações na obra Specchio di
vera penitenza. É um pregador dominicano e as distinções escolásticas
dão-lhe um aspecto claro, mas árido. O ambiente destes contos é infernal
e incute um medo maior do que o dantesco, e a imaginação, muito
medieval, faz do diabo o protagonista exaltado desta obra.
Santa Catarina da Siena é famosa pela sua paixão, misticismo e
coragem ante os papas, exigindo que eles voltassem a Roma; suas obras
estão reunidas em Le Lettere. Ela morre com trinta e três anos, e uma sua
frase famosa, com a qual fechava suas cartas, era: “Cupio dissolvi”,25 quer
dizer que não ligava a vida, para ela só a caridade importava, era uma
espécie de São Francisco no século XIV, que acompanhava ao patíbulo os
homens. Numa sua carta, em que descreve a decapitação de um inocente
que não queria receber de ninguém os confortos religiosos, mas Catarina
vence sua resistência, morrendo então ele serena e santamente.
Temos a obra I fioretti di San Francesco, uma obra
espetacularmente bonita, não havendo outra que tenha sido tão lida como
essa. É serena, límpida, pura, e descreve os milagres de São Francisco,
que domesticava os lobos, que falava às pombas, etc. A obra toda é
um louvor, ora pequeno ora grandioso, da criação. Foi escrita por um
anônimo toscano, na primeira metade do século XIV.

Novellieri
Como escritores de novelas, imitadores de Boccaccio, temos:
Giovanni Sercambi: um escritor inexperiente, querendo imitar o
Decamerone com sua obra.
Giovanni Fiorentino, apenas notável por uma certa clareza
expositiva, assinala o início da novela boccaccesca com sua obra Il
Pecorone.
Franco Sacchetti, o mais famoso de todos. Alguns de seus temas
têm semelhança com Boccaccio. Nos seus I sermoni evangelici aparecem
suas considerações morais, de homem religioso e bom cidadão.
E, finalmente, um humilde poeta, Antonio Pucci, com seu amor
por Florença, sendo um espírito mais pobre e simples que Sacchetti, e
suas obras melhores, os poemas Gismirante e La Reina d’Oriente.
Citamos apenas os nomes de Alesso di Guido Donati, Fazio
degli Uberti e Federico Frezzi, com os quais se encerra o século XIV,
com a sua dinâmica confirmada através dos artistas menores.

25
“Desejo morrer”.
LITERATURA ITALIANA II (1957)
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 103

O HUMANISMO

O Humanismo não surge improvisadamente. É um movimento


literário preparado de longa mão, sobretudo no século XIV, pelos
três grandes escritores: Dante, Petrarca e Boccaccio. E desses três,
principalmente Petrarca. Esse escritor, autor de Il Canzoniere, exultador
da beleza, do amor, esse poeta angustiado, melancólico, preocupado,
no meio de dúvidas, de incertezas, com uma forma elegante, com um
desejo de escrever bonito, preocupado com o estilo e admirador sem
limites da literatura latina, de Cícero, de Tito Lívio, esse escritor deve
ser considerado, no século XIV, como o iniciador do Humanismo e da
Renascença.
Então temos razão em afirmar que o Humanismo não surgiu
improvisadamente; os nossos conceitos, convicções, ideias, são fruto
de superamentos que não podem ser desenvolvidos de um momento ao
outro. O Humanismo é um fenômeno literário do século XV, com suas
origens inteiramente baseadas no período clássico.
O que é o Humanismo? É uma nova concepção da realidade,
da vida. É uma nova visão e interpretação da realidade e dos problemas
humanos. Essa é a definição de Humanismo: uma nova concepção do
homem e da vida, nova porque é diferente da concepção que da vida
e do homem teve a literatura medieval e a anterior ao Humanismo. A
concepção humanística, embora não seja uma negação da medieval, é
porém uma afirmação polêmica, diante da concepção da Idade Média,
isto é, o Humanismo afirma valores que a Idade Média negava. Afirma
uma visão da vida diferente da Idade Média; embora passando através
dos conceitos da literatura medieval, afirma coisas diferentes, sem
contudo negar os valores da Idade Média.
Embora o Humanismo não seja ligado aos ditames da Idade
Média, a literatura humanista tem suas religiosidades. Qual é o elemento
fundamental do Humanismo? É uma infinita confiança nas faculdades
humanas. Com este conceito tem-se em síntese a definição dele: uma
expressão de absoluta confiança nas faculdades humanas, na potência
do homem, na energia espiritual e intelectual do homem. É um hino ao
homem.
Toda essa literatura é exultante do homem, esse lutador na Terra.
É uma concepção imanentística da vida e do homem. Imanência é uma
Bruno Enei
104 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

concepção filosófica na qual se acredita nos problemas do homem na


Terra, é o contrário do dualismo. Por essa imensa confiança no idealismo
humano é que temos os pintores e arquitetos da Renascença, os heróis
como Vasco da Gama e Colombo, que desafiam os mares; por essa razão
é que surge a imprensa, que difundiu a cultura no mundo, a pólvora, que
cria a artilharia, tudo isso determinou a literatura do Humanismo: uma
visão nova da vida que se chama moderna.
Qual a diferença entre Humanismo e Renascença? O Humanismo
é um movimento literário, ao passo que a Renascença é um movimento
mais complexo, isto é, espiritual, filosófico e moral. O Humanismo
é que prepara a Renascença; a Renascença é uma consequência do
Humanismo; o Humanismo é a fase literária da Renascença. E como se
caracterizou essa fase literária? O caráter fundamental foi uma volta aos
antigos, um retorno aos gregos e aos romanos, sobretudo; mas foi um
retorno objetivo, com uma atitude científica.
Durante a Idade Média, os escritores tinham uma atitude
subjetiva, transfigurando o pensamento antigo, ao passo que os
humanistas se avizinharam dos gregos com objetividade, com uma
atitude crítica e científica. Não se tratava mais de servir-se dos conceitos,
cristianizando-os. Podemos dizer que justamente nesta atitude é que se
distingue o Humanismo da Idade Média, pois ele volta a uma atitude
pagã, em contraste com a atitude cristã da Idade Média.
O cristianismo também influiu no Humanismo, porém de um
modo diferente: os escritores são estudados com objetividade, sem
nenhuma preocupação de cristianizá-los. Os humanistas estudaram
Cícero, Horácio, Sêneca, entre outros, pelo que eles haviam dito e não
pelo que deveriam ter dito. É um estudo analítico, uma atitude crítica
que transformou um conceito de filosofia: põe os homens diante dos
fenômenos da natureza.
Com o Humanismo, o homem começa a estudar a realidade. No
século XVII, os escritores se põem diante dos fenômenos da natureza,
estudando-os cientificamente, como Galileu e Kepler, dando conceitos
novos de História, de Astronomia, de Ciência, de Religião. Cria-se o
movimento literário, o científico, o crítico, preocupando-se somente
com a realidade. É um movimento tipicamente italiano.
O Humanismo surge em Pádua e Florença; depois é que ele se
torna mais vivo e se espalha, como na Alemanha, onde o Humanismo
e a Renascença adquirem caracteres diferentes, mais profundos até, no
campo religioso. Também na França, Inglaterra e Península Ibérica ele
se espalha, de modo que o Humanismo foi um movimento europeu, não
só italiano, revolucionando todos os movimentos culturais. E pelo fato
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 105

de ter sido um movimento europeu, embora nascido na Itália, é que tem


a sua importância. Ele anuncia uma idade moderna, a idade da pesquisa,
da procura, quando as pessoas não mais creem em tudo que está escrito,
mas comentam-no, dão suas opiniões, iniciando, assim, a Ciência.
Isso influencia a Igreja também, apesar de serem convictos; e
um dos aspectos fracos do Humanismo é a diferença entre cultura e fé.
O Humanismo e a Renascença não são um movimento cultural
popular, mas sim um da alta aristocracia, sobretudo dos ricos, e nas grandes
cidades; então não é de caráter geral, difundido popularmente, tanto
assim que a Itália, politicamente dividida, o é também culturalmente.
O movimento humanista, nos centros mais importantes, está sob
a proteção de famílias senhoriais, tais como: em Florença, com os Medici
(Lorenzo), chamados mecenati. Em Ferrara, com os Estensi (Ippolito
e Alfonso), que protegeram Ariosto, que lhes dedicou L’Orlando
Furioso, e Tasso. Em Mantova, com os Gonzaga. Em Milão, com os
Visconti, protetores de Leonardo da Vinci. Em Napoli, que, apesar de
ser dividida por pertencer à Espanha, com os Aragonesi, que eram os
reis espanhóis que dominavam nesse período (Ferdinando, O Católico).
Em Urbino, com os senhores Della Rovere (Il Cortigiano desenvolve-se
lá). Embora Roma fosse a sede da Igreja, não poucos foram os papas a
quem o Humanismo e a Renascença tanto deve. Estes movimentos até
costumam ser chamados de o Século de Ouro ou de Leone. Temos ainda
outros papas, como Clemente XIV e Júlio II.
Esses foram os fulcros do Humanismo, e foi daí que se difundiram
pela Europa esses conceitos que mostram como no Humanismo houve
uma concepção quase divina e como o homem era considerado um alter
Deus, porque Deus não é considerado um Deus que condena, mas um
que cria, ao passo que na Idade Média Deus é um ser severo, que pune,
bem o contrário do Humanismo, onde Ele é o criador que transforma.
Então o homem também quer criar, quer embelezar.
É nesse período que Florença embeleza-se. E esse conceito de
otimismo deriva de Platão, não tanto de Aristóteles, pois Platão era um
idealista, como o Humanismo o é.
Como os humanistas conheciam o mundo grego e latino?
Porque o estudaram, e a Itália deve às imigrações e aos gregos, que nesse
período abandonaram a Grécia e foram viver na Itália, a sua cultura,
pois os gregos eram de imensa cultura e saber. Lá os gregos traduzem
objetivamente para o italiano os escritos gregos e latinos, criando-se as
academias.
Temos Manuele Crisolora e Giorgio Gemisto, que adotou o nome
de Platone em honra a Platão. Esses, no meio de centenas de mestres
Bruno Enei
106 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

gregos, foram a todas as cidades e difundiram a cultura e ciência gregas,


criando esse movimento que foi o Humanismo. E, com seu discípulo que
era Marsilio Ficino, surgiu a Academia Platônica em Florença.

Angelo Poliziano (Agnolo Ambrogini)


(1454-1494)

Para mostrar o que foi o Humanismo e quanto esse escritor estava


transformado pelo Humanismo, quanto a sua sensibilidade era humana e
delicada como esse sentimento literário, ele mudou seu nome para Angelo,
que é menos arcaico. O equilíbrio de vogais faz muito mais límpido
o nome desse autor, e também seu sobrenome é um qualquer, mas ele
mudou-o para Poliziano, que é muito mais bonito; ele se chamou assim
porque nasceu perto do Monte Pulciano, que em latim é Mons Politianus.
Chama-se, portanto, Angelo Poliziano. Os nomes representam a obra de
um artista.
Angelo Poliziano nasceu em 1454 e morreu em Florença em
1494. Os humanistas quase todos morrem moços, consumidos pelo gosto
de estudar, de descobrir; é um período quase de loucura. Ele morre com
quarenta anos.
Quando Poliziano tinha dezesseis anos, isto é, em 1470, ele era
um perfeito conhecedor do grego e do latim, tanto assim que ele escrevia
poesias e prosa nessas línguas, e justamente em 1470 ele traduziu uma
obra à qual ele deve a sua fama: L’Iliade. Deve sua sorte, sua vida, sua
fortuna e amizades pelo fato de ter vivido na corte mais humanística,
mais generosa, mais delicada da Renascença, na corte de Lorenzo de’
Medici, que ficou entusiasta da poesia de Poliziano e logo depois de
1480 confiou a ele a educação de seu filho Piero de’ Medici, que foi um
aluno particular de Poliziano. É uma grande consideração, sendo muito
rara, como com outros grandes estudiosos, como Aristóteles, professor
de Alexandre, filho de Filipe da Macedônia, ou Descartes, professor da
rainha Cristina da Suécia.
Em 1480 ele foi nomeado professor de eloquência greco-
-latina na Universidade de Firenze, neste período em que surgem tantas
universidades e professores. Faleceu em 1494, dois anos após a descoberta
da América e da morte de seu grande protetor Lorenzo de’ Medici.
Sua vida é a menos romântica, menos audaciosa que podemos
estudar, porque é uma vida de estudioso, de humanista, rodeado de livros
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 107

antigos; é um desses escritores que se afastam da realidade, que vivem


num mundo de melancolia, de cultura, o que raramente se vê hoje em dia.
É meigo, religioso, calmo, delicado, sempre com um olhar sonhador.
Momigliano foi o seu grande biógrafo. Poliziano foi protegido
por Lorenzo, não tinha preocupações econômicas; era amadíssimo pelos
seus alunos, tinha bibliotecas e tudo que desejava; teve uma vida muito
bonita, livre dos anseios que perturbam a nossa vida de hoje.

Obras de Poliziano

Miscellanea e Silvae, em latim; Le Stanze, L’Orfeo, Rispetti e


Canzoni a ballo, em italiano.
As duas primeiras obras são dois documentos da personalidade
humanista de Poliziano. Se quisermos procurar sua cultura, temos que
ler Miscellanea e Silvae; através delas vemos quanto ele conhecia o
grego e o latim. Miscellanea é um conjunto de opúsculos filológicos.
Esse aspecto da personalidade de Poliziano é o de fundador da filologia
italiana, pois estuda a língua latina e grega tecnicamente, sendo um
profundo filólogo desses dois mundos, procurando o valor da palavra
sem nenhum símbolo, ao contrário do que se diz, que os alemães foram
os fundadores da Filologia.
A maior preocupação do Humanismo foi a de restaurar os textos
antigos, e não transformá-los, como aconteceu na Idade Média. Esta
também amou o mundo grego e latino, mas subjetivamente, ao contrário
do Humanismo.
Silvae é um conjunto de quatro aulas inaugurais, que se chamam
Prolusioni: quatro introduções de quatro cursos na Universidade de
Firenze. Poliziano apresentava-se falando em grego e latim, fazendo as
introduções em verso, que eram o resumo do curso que iria fazer.
Esse é o seu aspecto cultural e humanístico, motivo para
considerar-se a sua imensa cultura, o que o torna uma das maiores
expressões do italiano. O que o torna o maior poeta do Humanismo
italiano não são, no entanto, as obras em latim, porém as em italiano.
Le Stanze é um comprimento poético de oito versos, e esse
conjunto se chama oitava ou stanza, sendo rimado alternativamente: ab/
ab/ab/cc. A obra de Poliziano traz esse título porque foi escrita em rima
oitavada. Mas por que foi chamada Stanze? A razão está no seguinte:
o título não é dele, porque ele não acabou a obra, chegando somente à
Bruno Enei
108 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

quadragésima sexta stanza do segundo livro. É uma obra inacabada e


sua primeira obra poética.
O conteúdo é o seguinte: Poliziano escreveu esta obra com
uma intenção encomiástica, isto é, de homenagem e louvor. Ele quer
prestar uma homenagem a um irmão de Lorenzo de’ Medici, chamado
Giuliano de’ Medici; este, em 1475, venceu numa giostra (torneio) ou
palio (corrida), que é uma reminiscência da Idade Média, um aspecto do
folclore italiano. Para celebrar este fato, Poliziano escreveu esta obra.
Nada disso, porém, é o vivo, o essencial da obra de Poliziano.
Ele não é um bajulador, não vende facilmente seu sentimento, pois é
livre, independente, sereno. Ele inventa em torno disso uma fábula,
transformando os nomes italianos em latinos: Giuliano fica Iulo.
Então o poeta imagina que Iulo de’ Medici seja um moço
corajoso, bonito, forte, mas que não ama as mulheres, que não gosta
de amores: é um misógino, despreza as mulheres. Gosta, em vez, dos
cavalos, das matas, de lutas, gosta de coisas viris e não aprecia os que
ficam vítimas de mulheres e do amor.
O poema começa assim, com essa descrição psicológica. O
poeta então descreve que uma manhã Iulo vai caçar javalis, quando num
certo momento seu cavalo vai para um prado coberto de flores, bonito
como a intimidade de um quarto familiar. Neste prado, Iulo segue uma
corça, que repentinamente se transforma numa ninfa, numa deusa da
qual ele fica enamorado, encantado, pois estava seguindo um animal e
encontra um ser humano, apesar de ser o que ele não aprecia, mas que
o seduz, e ele, seduzido pela sua beleza, fica normal, como todos os
outros.
A natureza se transforma de real (corça) num ser ideal (ninfa),
em uma paisagem de sonho. Ele então vive um sonho de moço normal,
que deve amar, pois aquela ideia dele é um complexo, tanto que, quando
ele não controla seu coração, uma corça se transforma em mulher. Aí
está a delicadeza do poeta. A ninfa não é a ninfa e a corça não é a corça,
pois na verdade Poliziano sabia que Iulo amava uma moça chamada
Simonetta Cattaneo. O poeta transforma os elementos empíricos em
fatos, em sonhos, pois é uma coisa dizer que, em vez de encontrar
Simonetta, ele encontra uma ninfa.
Nos conceitos de moço enamorado, a moça não é uma
moça qualquer, mas uma deusa, uma ninfa, e são com esses olhos de
enamorado que ele imagina encontrar Simonetta no meio do verde e das
águas. Ela não é um ser real, é quase como no Dolce Stil Nuovo, só que
lá encontravam-se santas e aqui encontram-se ninfas, isto é, espíritos
pagãos. Aqui é uma Simonetta que é tão bonita como uma ninfa, e
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 109

por isso esse caçador fica enamorado, perdendo a corça e os animais e


ficando lá, a adorar essa mulher bonita.
E compreende-se o valor poético desta obra, a sensibilidade da
sua poesia; o poema acaba com uma corrida de um ser que hoje para
nós é só sentimento: a corrida de Cupido. Cupido é um moço com uma
flecha, representando o amor. Ele flecha o coração de Iulo e faz com
que ele ame, faz com que ele vá atrás da corça, até chegar à ninfa. Então
Cupido, satisfeito, vai junto à sua mãe, Vênus, que mora na ilha Cipro,
contar-lhe a sua vitória. Vênus fica satisfeita e apresenta um sonho a
Iulo, dizendo-lhe para ir à luta, porque dessa vitória depende o amor de
Simonetta.
Aqui Poliziano termina para descrever a luta de Iulo. Mas como
ele não é um poeta heroico, não tem a mesma eficácia que teve até
agora. É muito bonita essa sua honestidade, acabando aqui. Esta obra
tem o seu valor psicológico, porque é o estudo, o acompanhamento da
passagem da insensibilidade ao sentimento, do não-amor ao amor, é um
hino à mocidade, com um terno véu de melancolia, porque a mulher e a
mocidade são valores que passam, do que o Humanismo tem consciência.
Essa paisagem de sonho nada mais é que um sonho, que uma realidade
muito pouco duradoura; então há nesse poema oitavado a consciência da
brevidade desse sonho.
L’Orfeo: é uma obra de Poliziano em italiano, sendo uma azione
scenica. Durante muito tempo, os historiadores da literatura italiana
deram a essa obra uma importância essencialmente histórica. Essa razão
histórica consistiu em que essa seria a primeira obra cênica dramática
italiana em que o assunto não é de caráter religioso, mas pagão; de forma
que L’Orfeo seria também um documento desse caráter pagão, leigo, da
cultura do Humanismo e da Renascença: seu valor histórico estaria nisso,
que Poliziano pega um gênero literário próprio da literatura medieval em
que a representação é atingir o mundo greco-latino de caráter pagão.
Isso poderá ter o seu sentido, o seu valor, isso importa algo, mas
não daria nenhum valor a Poliziano se não fosse esteticamente uma grande
obra. Devemos julgá-la pelo seu valor estético. Ela é inferior a Le Stanze,
porém devemos acrescentar que tem o seu notável valor artístico.
Orfeu é o personagem mitológico da Grécia, que com o som
da sua lira era capaz de mover as árvores e fazer com que os animais
parassem para escutá-lo. Ele é o divino cantor, o transformador das
multidões, com a sua música, dos vícios e paixões, em profunda alegria.
A Orfeu deve-se a concepção de que a arte deve ser pedagógica, pois ele
procura serenar os nossos sentidos, fazendo com que nós sejamos mais
nobres.
Bruno Enei
110 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Orfeu amou uma moça chamada Eurídice. Esta, um dia mordida


por uma serpente, morre. Desespero por parte de Orfeu, desse cantor
sereno e meigo; ele quer matar-se, porém um último recurso ele ainda
possui: servir-se do seu canto para atrair, para seduzir o demônio, de
modo que o Inferno o ajude; então ele vai ao Inferno e lá toca sua lira; e
o Inferno também se transforma. O demônio fica bom e acede em ouvir
o que Orfeu quer dele. Então Orfeu lhe pede que dê outra vez a vida, a
luz do céu à sua querida mulher. Satan promete-lhe isso. A lira de Orfeu
deixa estáticos os danados do Inferno, pois lá também eles são sensíveis
à arte e à música. O Humanismo transformou até o Inferno numa plateia
delicada e sensível à música.
E Orfeu leva Eurídice. Mas havia uma condição: ele não devia
olhar Eurídice até que ela saísse do Inferno, pois só quando ela chegasse
ao mundo é que ele poderia olhá-la e ficar beato diante de sua beleza.
Mas Orfeu não pode resistir à beleza de sua mulher, e não pode pensar
que somente mais tarde ele poderia contemplá-la, e olha Eurídice,
perdendo-a para sempre. As bacantes matam também a Orfeu, e o jogam
no Inferno.
Na aristocracia, nos palácios, no teatro dos senhores, no meio
de gente rica, sem necessidade nenhuma, com todos os trajes que eles
tinham, com suas toilettes, aquela gente sentada lá, ouvindo L’Orfeo,
é uma coisa maravilhosa, cheia de Humanismo, que caracteriza bem.
Poliziano aqui não nega as suas melhores qualidades. Afinal de contas,
o espírito dessa obra é que a beleza é um sonho que desaparece, a
mocidade é breve e o resto é o fim. Eurídice aparece como uma sombra
e desaparece para sempre.
É uma obra tangida de melancolia, cheia de estupor, de dor e de
meditação, como em Le Stanze, quando aparece a corça. Aqui também
Eurídice aparece um só momento, e quando Orfeu vai olhá-la, ela se
transforma. E fica no Inferno, com as suas mãos vazias, tendo perdido
o seu ideal que tinha obtido com a sua música. É um sonho cheio de
tristeza. Mas não é trágico como os românticos, como Goethe, que é
desesperado: é uma melancolia doce, que deixa uma ponta de dor na
alma. É uma imagem que nunca se torna realidade, quer dizer, uma
realidade que nunca é verdade, realidade porque é uma aparente imagem
que aparece até um certo momento, realidade assim como desaparece o
dia na noite. É uma obra delicada e brevíssima, tendo sido escrita em
três dias.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 111

Lorenzo de’ Medici: Il Magnifico (1449-1492)

Viveu quarenta e três anos, sendo notável sobretudo como


político. Ele foi por antonomásia chamado L’ago della bilancia,
isto é, a agulha da balança; isto porque sua política sempre foi de
equilíbrio.
No século XV, a Itália era dividida em muitos Estados e
senhorios. Esses senhorios intervinham em luta para conquistar maiores
pedaços de terra, maiores riquezas, mais influências, havendo então
lutas, como Nápoles contra Sicília, Milão contra Veneza, etc. Lorenzo
de’ Medici foi o político que pregou durante o seu governo o equilíbrio
entre os Estados italianos, afirmando que, se esses continuassem
lutando um contra o outro, enfraquecer-se-iam todos, permitindo ao
estrangeiro conquistar a Itália. A sua habilidade foi essa, que até 1492
a Itália pertencia aos italianos. Depois de sua morte ela foi ocupada
por estrangeiros, como os franceses, que dominaram a Itália em
1494, com Carlos VIII. Ele chegou a Nápoles e depois vieram outros
conquistadores, até 1918, quando a Itália voltou a ter os confins a que
ela tinha direito.
Então, Lorenzo de’ Medici tem esta grande importância, de
haver permitido aos italianos de conservarem a própria independência.
Ele foi um grande político e administrador. Florença, que já tinha sido
a cidade de Dante, Petrarca e Boccaccio, no século XV é a cidade da
beleza e da arte; erguem-se nesse período os grandes palácios, as ruas
são alargadas e surgem as calçadas. Lorenzo de’ Medici transformou a
cidade, tornando-a serena e esplêndida como ela é hoje, tirando dela as
sombras medievais, com suas fortalezas.
Além disso, ele não foi somente um grande administrador, mas
também um grande mecenate, foi protetor dos poetas, dos músicos e
dos artistas. A sua corte se encheu de músicos e poetas, como a famosa
Companhia de [Vincenzo] Galilei, e a [Camerata dei] Bardi. Poliziano
foi protegido de Medici e o mestre do seu filho. Também os gregos
e o filósofo Ficino foram seus protegidos. Lorenzo é um homem
cultíssimo; sua cultura, embora vasta, não era muito profunda; notável,
mas não original.
Momigliano definiu Lorenzo como “la mente poliedrica del
Umanismo italiano”, isto é, era a alma que refletia em si todos os
aspectos do Humanismo.
Na sua poesia Il trionfo di Bacco e Arianna, temos estes
versos:
Bruno Enei
112 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Quant’è bella giovinezza, Quanto é bela a juventude


Che si fugge tuttavia! Que foge, porém, continuamente!
Chi vuol esser lieto, sia Quem quiser ser feliz, seja-o
Di doman non c’è certezza Do amanhã não há certeza.

Obras de Lorenzo de’ Medici

Um homem como Lorenzo de’ Medici, com toda sua atividade,


era culto. Um homem cheio, que tinha tempo para tudo, até para educar-se.
Suas obras podem ser divididas em três grupos: opere classiche: Ambra
e Corinto; opere populari: I Beoni, La caccia col falcone, La Nencia da
Barberino; opere erudito-platoniche: Altercazione, Canzoniere, Le selve
d’amore.

Opere classiche
Quer dizer, obras escritas em latim, onde é evidente o desejo
dele de alcançar a perfeição da linguagem. Aquele espírito próprio do
Humanismo, de num só sentido lutar junto com os clássicos, numa
inspiração de perfeição. Ambra é o nome de uma ninfa, de uma figura
mitológica, uma figura pagã grega. Esta ninfa era perseguida por um
bichão que se chamava Ombrone, que é o nome de um rio. Nos gregos
havia essa tendência de transformar um ser em humano e vice-versa,
como Ambra, que não queria saber nada de Ombrone, apesar de ele a
amar, isto é, um rio amando uma ninfa. Então ela pede à deusa da caça,
Diana, para ser transformada em pedra.
Mas o que é esta rupe?26 É um lugar perto de Florença, perto
do rio Ombrono, que se chama Poggio a Caiano, uma aldeiazinha num
lugar feio, por ter muita pedra.
Mas o poeta transforma tudo isso. Para ele a pedra se chama
Ambra, e Ombrono é um homem.
Em Poggio a Caiano, Lorenzo de’ Medici havia feito construir a
sua melhor vila. Este político, este administrador tinha a dois passos de
Florença uma maravilhosa vila, que ainda hoje existe: jardins imensos,
salões enormes, onde havia leituras, solenidades e banquetes. Nesta
vila ele ia descansar. E como se ama a casa em que se mora, então a
transformou em algo mitológico, levando essa vila a um plano de paraíso.
Esse lugar é Poggio. Lá tudo surgiu, porque uma ninfa quis ser pedra,
26
Rochedo.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 113

sendo o lugar desta maravilhosa vila o lugar das amizades de Lorenzo.


Esta é uma obra clássica, fina e elegante.
Corinto é escrita em tercetos. É uma obra em que um pastor que
se chama Corinto canta a beleza e chora a saudade da ninfa da qual ele
está enamorado. Ele não vive procurando unir-se a ela, mas pensa e vive
dela através do idealismo da saudade, da melancolia, e canta com a sua
zampogna27 diante do seu rebanho as belezas da moça, o que faz lembrar
os poetas idílicos latinos e gregos, como Virgílio e Teócrito.

Opere populari
Até aqui, um ar grego, latino, literário. Agora teremos as obras
populares, obras que um crítico quis dizer que eram uma espécie de
doppe, que Lorenzo dava aos seus súditos: aquelas obras eram o estímulo
que jogava no povo para enganá-lo. Mas ele não era demagogo. Ele
queria que o povo brincasse. Ele tinha uma simpatia pelo povo, tomando
parte no carnaval, bebendo vinho com o povo. Sabia viver no meio dele,
de modo que suas três obras populares apresentam um aspecto de sua
personalidade.
I Beoni, La caccia col falcone, La Nencia da Barberino são as
obras populares, das quais foi dito que tinham um valor demagógico, que
Lorenzo de’ Medici quis simpatizar com o povo para que este não tivesse
consciência da sua escravidão. Mas nada disso. Elas são a sensibilidade
desse homem político que também sabia amar o povo, sendo o autor de
cantos carnavalescos, como Bacco e Ariana. As três obras acima são
pequenas e escritas em verso.
I Beoni é uma descrição humorística, mas sem despeito, sem
raiva, em vez, com uma atitude risonha de bonomia e solidariedade.
É uma descrição dos maiores bebedores de vinho de Florença. A
obra torna-se uma análise da sociedade florentina daquele período.
No entanto, esta obra perdeu muito do seu valor, porque não temos
documentos suficientes dos nomes dos bebedores; muitos deles eram da
alta sociedade, ocupando cargos importantes, de autoridade. E teria sido
interessante saber quem foram.
Lorenzo confunde os bêbados numa mesma classe, isto é, gente
do povo e gente de cultura, e os descreve saindo de uma cantina de
Florença, voltando para suas casas; é um desfile de bebedores. O fundo
desta obra é claramente popular.
La caccia col falcone põe em evidência o aspecto de homem
viril de Lorenzo de’ Medici, que não foi somente poeta, político,

27
Gaita de foles.
Bruno Enei
114 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

escritor, mas gostava da vida de ação. Apreciava muito a caça, tendo


grande amor à natureza. Essa simpatia dos italianos pela natureza nasceu
com o Humanismo, então esse amor pela natureza vária, magnífica e
criadora. O Humanismo nunca concebeu a natureza como mística, mas
como ela é, natura naturans, isto é, uma natureza que continuamente se
naturaliza e se transforma. Ele descreve uma caçada na sua vila; caçada
muito bonita, o rei e a nobreza a cavalo, as damas com suas toilettes,
etc. Os homens da corte e da vila, todos fazendo barulho nos campos,
para caçar o falcão. Cegava-se com uma agulha os olhos dele e com seu
grito, então, convidava os animais a pousar na árvore. É um imã que eles
usavam para poder caçar.
La Nencia da Barberino é uma obra historicamente importante,
embora não seja artisticamente grande. O Humanismo foi à procura de
um estilo limpo. Por isso, os canzonieri do Humanismo e Renascença
se inspiram em Petrarca, que é o rei do soneto. Lorenzo de’ Medici,
em vez, escreve uma obra em polêmica com essa tradição, com esse
gosto de bela expressão. Ele descreve as expressões com que Vallera,
um trabalhador dos campos, exulta o amor que ele tem por Nencia, uma
moça bonita, forte, cheia de saúde; não é bonita e ideal como Laura. Será
uma boa mãe e dona de casa, essa agricultora que é de Barberino.
Toda vez que falamos de literatura amorosa, neste século temos
até mulheres que escreveram poesias amorosas. Todo o século XVI é
ligado ao formalismo de Petrarca. Lorenzo descreve, em vez, o amor
como ele é. A adesão do poeta a esse amor banal, popular, é sincera e
viva, não sendo por nada a descrição de um homem superior, que julga
até com desprezo o amor de duas pessoas que não são cultas. Aqui se vê
apenas sentimentos. Esta é a poesia popular de Lorenzo de’ Medici.

Opere erudito-platoniche
Altercazione − Em italiano é um termo que vem da palavra
altercare, que quer dizer discussão um pouco forte, acesa, quase uma
briga. Lorenzo imagina então uma discussão acerca deste problema: se
o homem é mais feliz na cidade, no meio civil, com todo conforto, ou
se a felicidade consiste em viver nos campos, na solidão, na natureza,
afastado dos luxos da cidade. Em que consiste a felicidade: em viver na
cidade ou longe dela?
Aqui intervém Ficino, o maior filósofo, que também vivia na
corte de Lorenzo, junto a Poliziano. Ficino é o fundador da Escola
Platônica e intervém como defensor de Platão. Afirma que a felicidade
não consiste nos bens naturais, isto é, vivendo na cidade ou no campo.
E sim, que a felicidade consiste em chegar ao sumo bem, consiste em
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 115

uma contemplação, que faz com que o homem abandone tudo, todas as
coisas terrenas. É uma obra platônica, uma contradição. Esse homem
que exulta o amor de dois pastores, esse homem abandona o chão. Essas
são suas contradições. É um outro aspecto, isto é, a poliedricidade de
Lorenzo. A felicidade é essa atitude platônica de elevar-se das ambições
terrenas, até chegar a Deus.
Canzoniere é uma obra que recolhe os madrigais de Medici
durante sua vida, e de vários períodos. Ele recolheu os que dedicava à
moça que amou. Obra de caráter humanístico, imita os grandes clássicos,
sobretudo Petrarca. Temos então Lorenzo de’ Medici popular e poeta,
escrevendo o Canzoniere num sentido clássico e ideal.
Le selve d’amore: obras não completas, em que ele recolheu
poesias sem ordem, de vários momentos, e que por isso se chamam
selve, isto é, não têm uma única linha, são caminhos diferentes. Nelas
está recolhida toda sua sensibilidade no campo do amor.
É uma figura não notabilíssima, mas digna de ser lembrada,
porque Medici, com sua multiplicidade de simpatias clássicas e platônicas
ou populares, de sensibilidade, é o espelho em que se refletem três, quatro
ou cinco aspectos próprios do Humanismo. Nele, o Humanismo, embora
não tenha chegado, representa seus vários aspectos.

Luigi Pulci (1432-1484)

Esses escritores são quase todos contemporâneos, florentinos e


morando no mesmo palácio, sob a proteção de Lorenzo de’ Medici. É
admirável esse gosto do rei, poderoso e rico, de ter ao seu lado homens
de valor.
Luigi Pulci nasceu em Florença e morreu em Pádua. Apreciado
por Lorenzo de’ Medici, a convite deste, foi morar no seu palácio.
Lucrezia Tornabuoni, também o nome da rua que desce de Santa Maria
Novella, e mãe de Lorenzo, foi sua grande amiga. Tinha uma imensa
simpatia por Pulci, que era de família pobre. Ele viveu na miséria, era
popular, gostava do sotaque dialetal, e não do linguajar bonito, elegante.
Era popular por essa linguagem viva, espontânea, quase vulgar. Muito
inteligente e vivo, apesar de ser espiritualmente infeliz, cheio de
complexos, devido à sua inteligência. Lucrezia Tornabuoni, que era
católica, gostava desse tormento de Pulci e procurava consolá-lo, sem
nunca ter conseguido isso.
Bruno Enei
116 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Lorenzo deu muitos cargos políticos a Pulci. Mas ele nunca


soube aproveitar-se do que a vida lhe oferecia. Foi sempre generoso e
solitário. Dois irmãos dele também eram poetas: Luca e Bernardo.
Pulci foi sempre pobre, perseguido e odiado pelo clero, tanto
que, em 1484, seu corpo ficou sem sepultura por ser herético. Morreu
em Padova, porque tornou-se inimigo de Lorenzo, indo viver junto ao
príncipe Sanseverino, e lá morreu.

Obras de Pulci

Escreveu muitas: La Giostra, La Beca da Dicomano, Epistolario,


mas a obra que mais nos interessa, sua obra-prima, é Il Morgante.
Momigliano formou-se com este trabalho sobre Luigi Pulci.

La Giostra
É uma obra que poderia lembrar Le Stanze de Poliziano, embora
seja muito inferior como estilo e sensibilidade, que Poliziano soube
levar tão alto. É uma obra encomiástica, de cumprimento, de simpatia
a Lorenzo de’ Medici. Trata-se de uma giostra, uma luta que houve em
Florença em 1469 (ano em que nasce Niccolò Machiavelli), que Lorenzo
ganhou, e então ela exulta esta vitória.

La Beca da Dicomano
Faz ver como é grande a simpatia de Luigi Pulci para com
Lorenzo e vice-versa, sendo uma simpatia também de caráter intelectual.
Aqui também Pulci descreve um pastor que exulta Beca, que é de
Dicomano. Temos então amores populares, exultando-se a saúde. Mas é
muito superior pela personalidade de Luigi Pulci.

Epistolario
É o conjunto das cartas de Pulci. Elas são importantes porque,
ao contrário daquelas de Petrarca, que se interessavam pela língua, pelo
estilo, estas são verdadeiras confissões e têm um valor autobiográfico,
mostrando a psicologia e preocupação de caráter cultural de Pulci,
sobretudo sua luta religiosa e suas dúvidas.
Pulci viveu num período em que os aspectos dogmáticos da Igreja
iam caindo. Todos os princípios da fé nem sempre souberam subsistir.
Ele então, diante de Copérnico e Ficino, começa a vacilar em sua fé. Mas
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 117

ele não tinha nenhuma fé que pudesse substituir essa fé. É o drama de
tanta gente e que pode ser objeto de tantas críticas. Esses poetas lembram
Pascal, que foi torturado por uma crise de fé, que substitua uma fé que
estava caindo. Essa obra põe em evidência a amargura interior de Pulci,
que é o mais popular dos humanistas – sincero, grandioso, simpático –
da literatura italiana do século XV. É o poeta que no Morgante exulta um
mundo diferente do Epistolario.

Il Morgante
É o título de um poema de Pulci constituído de vinte e oito
cantos em versos hendecassílabos oitavados. Essa forma métrica é
própria da poesia épico-cavalheiresca e que, por isso, aqui assume um
caráter italiano. Quem deu este caráter de italianidade foi justamente
Pulci. Outros serão Boiardo, Ariosto e Tasso.
Il Morgante é constituído de vinte e oito cantos, sendo os
primeiros vinte e um mais ou menos os acontecimentos de um poema
intitulado L’Orlando. Os sete outros imitam outro poema, La Spagna in
ruina.
O poema de Pulci como material de inspiração não é original.
Isso dá prazer, porque a verdadeira poesia não está na originalidade do
conteúdo, mas no tratamento do conteúdo e na forma. Porque o mundo
não possui muitos conteúdos novos. O mundo é sempre o mundo, que
se desenvolve entre mal e bem. O interessante é saber dar uma forma
própria. O seu valor está nisso, em ter sido original como forma, por
ter sido um tema já tratado por outros, ao qual ele deu sua própria
originalidade.
O conteúdo serve até um certo ponto somente para dizer por que
é que esta obra deve ser considerada como uma continuação da literatura
épico-cavalheiresca. Pomos em evidência um aspecto exterior histórico:
a literatura cavalheiresca, com o Ciclo Carolíngio, ligada à Idade Média,
essas canções de gesta estão presentes aqui. Mas não é o espírito da obra,
ela não é grande por isto, o seu valor não é somente épico. Seu valor está
fora da sua tradição.
Cada uma dessas obras, seja de Pulci, Boiardo, Ariosto ou
Tasso, ligadas pelo conteúdo à poesia épico-cavalheiresca, está ligada
pela arte e originalidade e estética da própria obra, por isto é que devem
ser lembradas.
O valor dessa obra está na popularidade de Pulci, no humorismo,
nessa capacidade de tornar contemporâneo, assim como ela pode aparecer
ao povo. Esta obra nada mais é que a visão do mundo cavalheiresco pelo
povo, pelos homens não cultos do século XV. Então a importância desta
Bruno Enei
118 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

obra naquela época, num mundo de cultura, de imitação greco-latina,


de anseio pelo Classicismo, em que esta poesia é, em vez, risonha e
popular. Este conteúdo tem um valor muito limitado para julgar-se sua
personalidade.
Orlando está em Paris, paladino de Carlos Magno, que aqui
não é um herói brilhante, mas uma vítima da corte, um injusto que
não compreende o valor dos heróis. Orlando então abandona Paris,
vai procurando aventuras, amores, lutas, como os cavaleiros da Távola
Redonda. Ele chega a um convento de pedras e luta contra três gigantes,
matando dois e ferindo o terceiro, que se chama Morgante. Este sara e
se converte ao cristianismo, disposto a acompanhar Orlando nas suas
aventuras, e torna-se seu escudeiro, quase como um Sancho Pança.
Outra coisa: o nome desta obra não é dado a um cavaleiro
famoso na canção, em que ninguém se lembra de um qualquer. Em vez,
aqui o personagem principal é Morgante, que põe um sino na cabeça
como capacete e, como lança ou espada, luta com o badalo do sino. Ele
é um homem do povo, e então cai toda essa dignidade dos cavaleiros. É o
povo que transfigura os antigos, tirando-os do pedestal da nobreza, para
como eles deveriam ser, então temos a transfiguração do cavalheiresco.
A um certo momento, um outro personagem acompanha os
dois: Margutte, que é meio homem e meio gigante, é um monstro.
Enquanto Morgante é ingênuo e forte, tanto Margutte é astuto e fraco;
um, com sua força primitiva, e o outro, com sua cabeça de monstro.
Também Astarotte, que é até um diabo que vem viver aqui na Terra, com
seus ideais ateus, criando problemas, acompanha os três. O poema vai
narrando todas essas aventuras, até que num certo momento Orlando
volta a Paris. Em Roncisvalle é circundado pelas tropas de Marsílio, que
foi solicitado a mover guerra contra Carlos Magno e que é adversário de
Orlando. Lá então os dois exércitos encontram-se, e Orlando é traído,
perdendo sua vida, e Gano, o traidor, é esquartejado.
Esse é o material da tradição das poesias épico-cavalheirescas
de Pulci, e aí está sua originalidade, pois o espírito dessa obra é
popular, é a simpatia e a solidariedade de Pulci para com o povo de
Florença no século XV. Ele quis descrever como o povo imaginaria
a cavalaria. É originalíssimo. É a interpretação de um homem culto,
que, personificando-se com o povo, procura ver como o povo vê essa
literatura em que os piores são os maiores; aqui é degradado Carlos
Magno, que não entende as insídias da corte, e o protagonista é um
pobre gigante.
Morgante é o cavalheirismo popular, em que o povo imagina
o herói como um ser superior. (Em Homero temos um herói assim, que
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 119

lembra Morgante: Polifemo). Morgante é bom, generoso, estúpido e


ridículo.
Margutte é o diabo, o fingidor que só confessa os seus pecados
mortais, que são setenta e sete, sem confessar os pecados veniais. Ele
morre porque tira as botas, e um macaco as põe. Esse macaco é sua
imagem, isto é, um ser caprichoso, viciado, ruim, mesquinho. É o
personagem mais interessante. No meio dos personagens reais históricos,
temos até um diabo. Qual é a sua função? A de criar contínuas discussões,
acontecendo ao acompanhar Rinaldo. Tem o seu valor autobiográfico,
por ser a imagem da vida espiritual de Pulci, sempre incerto da sua
fé. E tem o seu valor histórico porque Astarotte é a imagem da cultura
humanística, que sempre se apresenta aos dogmas da Idade Média. Ele é
o carimbo da idade em que surgiu esta obra.
Nesta idade, a crítica começou a desmanchar a intransigência
da Idade Média. Ela critica os problemas fundamentais da fé. Bem à
imagem de Pulci, que teve problemas de crise religiosa. Então este
poema é interessantíssimo pela configuração popular: todos os cantos
começam sempre com uma fábula, e toda última oitava fecha-se com
uma reza a uma virgem ou a um santo.
No meio do poema está o popular, pondo em dúvida os
problemas da Igreja, fazendo os leitores rirem. É cheio de ensinamentos
da mentalidade popular do século XV, influenciado pelo Humanismo. É
uma das obras mais alegres e discutidas e que foi apreciada em certos
períodos por estas dúvidas de caráter religioso e outras vezes apreciada
pelo povo.
Sob o ponto de vista estético, esta obra é uma das melhores
do século XV, por esse senso de popularidade e coerência. A poesia
cavalheiresca recebe uma extraordinária transfiguração, que é a seguinte:
talvez Pulci seja o primeiro escritor a quem nós devemos a fusão dos
dois ciclos, o Carolíngio e o Bretão, aos quais a Itália tanto deve. Temos
acontecimentos num plano de defesa da Igreja e do Império e também
temos aventuras que lembram a Távola Redonda. Então, a fusão dos
dois ciclos começa com Pulci e continua mais tarde com Ariosto.

Matteo Maria Boiardo (1441-1494)

Pulci é um tipo original, pobre, popular; Boiardo é um senhor


generoso, estudioso, cheio de genialidade, é quase o oposto de Pulci.
Boiardo é emiliano, conde em Scandiano, na província de Reggio
Bruno Enei
120 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Emilia. E a cidade mais famosa dessa região é Ferrara, onde havia uma
grande corte dominada pelos Estensi. Lá a mesma vida de riquezas,
de estudos do Humanismo de Florença, embora com uma importância
muito maior.
Boiardo viveu muito tempo em Ferrara, e seu cargo na corte era
de bibliotecário dos Estensi. Biblioteca cheia de volumes preciosíssimos,
a começar do século XIV. Sua vida lá não tem grandes acontecimentos.
Ele foi governador desta cidade, e quando Carlos VIII desceu à Itália, ele
conta defender Emilia das tropas, mas justamente lá é que os soldados
inimigos fizeram o que quiseram. Ele morre quando a Itália cai sob
Carlos VIII.

Obras de Boiardo

É autor de Il Timone e Il Canzoniere, que têm apenas uma


importância relativa perto de L’Orlando Innamorato, que é sua obra-
-prima.

Il Timone
É uma ação teatral em que, à guisa das sacras representações,
ele reproduz um diálogo de Luciano. Serve para pôr em evidência sua
cultura, pois ele traduz latim e grego. Esta obra nada mais é do que uma
prova da sua cultura.

Il Canzoniere
Dedicado à moça que ele amou, que foi Antonia Caprara. Este
Canzoniere é feito à imitação daquele de Petrarca, nutrido dos mesmos
sentimentos, dos mesmos ideais, da mesma delicadeza de Petrarca.
Pode-se ver o Canzoniere considerando três momentos:
O primeiro é o da felicidade, em que o poeta ama Antonia e é
por ela amado. Aqui o poeta exprime-se com exuberância, devido ao
estado da alma feliz. O segundo é o da tristeza, é a parte elegíaca, em que
o poeta expõe a sua decepção, pois Antonia esqueceu-o. Então esse véu
de tristeza sobre o soneto. A terceira parte é o da superação, pois o poeta
supera sua tristeza numa visão de caráter religioso, em que ele inclui seu
amor, sublimando-o, com aquela pureza que é própria do platonismo do
século XV.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 121

L’Orlando Innamorato
Descreve o amor de Orlando. Mas o poema mais famoso da
literatura italiana do século XVI é o de Ariosto, a quem Camões tanto
deve, e chama-se L’Orlando Furioso. Ariosto é o continuador. Orlando
começa enamorado com Boiardo e acaba louco com Ariosto. É o cúmulo
da mentalidade do Humanismo e da Renascença. L’Orlando Innamorato
deveria ser um poema de cem cantos, mas a morte improvisada de
Boiardo deixou o poema incompleto, com sessenta e nove cantos. Qual
é o resumo desta obra?
Angelica, esta figura de moça brilhante, bonita, pura, brincando
com o fogo, uma dessas mulheres que não têm paixão, mas é naturalística,
sem procurar encontrar amores, sem sentido de corrupção, é filha do rei
Galifrone de Cataio, na China, cheia de esplendores e riquezas, que já
temos desde Il Miglione de Marco Polo. Angelica decide abandonar sua
família e seu país e, junto com seu irmão Argalia, vai para Paris.
O poema começa assim, com a chegada de Angelica e seu
irmão ao palácio de Carlos Magno, onde ela, depois de um riquíssimo
banquete, desafiou os paladinos de Carlos Magno, em nome do irmão.
Este luta com os paladinos e cobre-se de glória. A beleza de Angelica faz
com que os paladinos enamorem-se dela. E quando ela decide abandonar
Paris e voltar a Cataio, os paladinos vão atrás dela, prontos a enfrentar
privações, para poder contemplá-la; entre eles estão Orlando e Rainaldo,
os mais famosos.
A um certo momento, Angelica enamora-se secretamente de
Rainaldo e ele dela. Rainaldo não tem nada de novo por gostar dela, que
era uma coisa natural. Mas quando chegam à selva de Ardennes, entra a
parte mágica do poema. Rainaldo bebe da água do ódio e ela, a do amor.
Angelica fica loucamente apaixonada por ele e Rainaldo, odiando-a.
Orlando continua amando-a, mas não amado por ela.
Orlando e Rainaldo cobrem-se de glórias, no Oriente e Ocidente,
até chegarem a Albracà, onde Angelica é presa. Orlando toma parte em
duelos fortíssimos para libertá-la, enquanto Rainaldo fica indiferente,
mas Angelica gosta de Rainaldo e não de Orlando.
Num certo momento, eles ficam sabendo que Agramante, rei do
exército pagão dos mouros, agrediu Paris, e instado por Gano, marcha
contra a cidade. Facilmente teria a melhor contra Carlos Magno se
Orlando e Rainaldo, seus melhores paladinos, não voltassem a Paris,
tendo antes libertado Angelica. Porém, ao chegarem a Ardennes,
acontece o contrário: Rainaldo enamora-se novamente e Angelica odeia
loucamente Rainaldo. E chegam a Paris nesta situação, na véspera da luta.
Carlos Magno pede a Angelica ficar sob a proteção de Naimo, duque da
Bruno Enei
122 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Baviera, e que é um cavaleiro coberto de honra e glória, prometendo-a


ao cavaleiro que mais pagãos matar, ao que mais glória alcançar.
O poema fica nessa expectativa, acabando no nono canto da
terceira parte, quando o poeta começa a descrever a luta entre cristãos
e pagãos, e Angelica à espera do seu destino de casar com Orlando ou
Rainaldo, ambos enamorados por ela. Ariosto continua na quarta parte
com o seu Orlando Furioso.
L’Orlando Innamorato tem um valor duplamente histórico:
Primeiro, porque é notável o esforço desse escritor em fazer com
que o dialeto florentino se tornasse língua nacional. Ele não é toscano,
vive em Emilia, sobretudo na corte de Ferrara, onde falavam o dialeto
emiliano. Boiardo procurou imitar Dante, Petrarca e Boccaccio, e seu
valor está nessa tentativa, nessa colaboração de estender para fora da
Toscana a língua florentina, fazendo com que ela se tornasse a língua
italiana. Sua obra é lida em toda a Itália e a língua toscana começa a ser
usada fora da região.
Segundo, pela tradição do conteúdo. Ao lado de Pulci, Boiardo
tem a função de ter fundido os dois ciclos cavalheirescos, misturando
os caracteres peculiares do Ciclo Carolíngio com o Bretão, isto é, o
ciclo de Carlos Magno, que defendia os fracos, com o ciclo da Távola
Redonda, com suas aventuras e simpatias. Vemos então o amor no
meio dos cavaleiros de Carlos Magno e o heroísmo deste no meio dos
cavaleiros da Távola Redonda. Essa é a base essencial para entendermos
L’Orlando Furioso.
Pomos em evidência o aspecto mais louvado por Momigliano,
que exulta sobretudo o primitivo, a força, a potência, a ingenuidade
nesta obra: a nobreza de sentir, a força do sentimento, o amor na sua
honestidade, intensidade e pureza. Então as figuras que aparecem no
Orlando Innamorato são figuras de gigantes, de nobres, embora possuam
algo de antigo, de velho, pois estão ligados ao antigo. São como feitos
de pedra, que despertam em nós admiração, admiração pela nobreza,
pelo idealismo. Esses conceitos são os que mais enobrecem a poesia de
Boiardo.
Nota-se a diferença entre ele e Pulci, que transformou a
cavalleria em algo popular, cômico e até cheio de polêmicas religiosas.
Boiardo exulta essa nobreza primitiva, esse sentir dos paladinos, como
se fosse um mundo de aristocráticos.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 123

Jacopo Sannazaro (1457-1530)

Nasceu em Napoli, em cuja corte foi poeta e funcionário.


Viveu por isso num ambiente de cultura, de alta aristocracia, de grandes
negócios públicos. Foi organizador das festas da monarquia aragonense
em Napoli. Neste período, no século XV, Napoli pertencia à Espanha e
ainda hoje é possível ver no dialeto napolitano a influência espanhola.
Naquela época, sobretudo de 1458 a 1492, houve grande movimento
cultural. Napoli (isto é, toda a Itália meridional) foi uma das cidades
italianas famosas pela sua cultura, humanismo, poesia, música, pintura
e escultura.
Aí também temos esse movimento de desbravamento da Idade
Média, como em Ferrara com os Estensi e em Roma com os papas, entre
outros. Em Napoli deve-se ao rei Alfonso d’Aragona, que promoveu os
estudos em Napoli, fazendo fundar uma Academia Pontaniana, porque é
fundada em Pontani, recolhendo as culturas da Itália meridional. Dessa
academia fez parte Iacopo Sannazaro, com o nome latino de Actius
Sincerus.
Sannazaro foi um homem que escreveu em latim e grego, que
preparou todas as festas da corte, que organizou os espetáculos festivos
na corte, que foi adorado pelas damas, porque era bonito, delicado, cheio
de cultura, sabendo mover-se nessa sociedade aristocrática da corte
espanhola, admirado por todos.
Fiel e honesto, pois quando os aragonenses foram expulsos de
Napoli em 1501 ele vendeu seus bens, suas riquezas, abandonou seus
costumes, seus amigos, seus livros e acompanhou seu senhor no exílio
− Federico, filho de Alfonso −, fiel a esse senhor a quem ele devia toda
sua glória.
O Humanismo e a Renascença são os períodos em que se critica
muito a honestidade dos artistas. Em vez, Jacopo Sannazaro mantém-se
fiel ao seu senhor, e quando ele volta a Napoli em 1504, após a morte de
Federico de Aragón, vive seus últimos vinte e seis anos lá.
Sannazaro amou duas moças: a primeira, num romance delicado,
um amor juvenil que era Carmosina Bonifacio. Mais tarde, depois do
exílio, ele amou outra mulher, que se chamava Cassandra Marchese, que
foi o amor de sua maturidade.
Em Napoli há um bairro sobre uma colina que domina o mar e que
se chama Margellina. Neste lugar há uma vila com uma igreja chamada
Santa Maria del Parto, dedicada à Virgem, que protege o nascimento dos
filhos. Essa vila é a que ele fez, vivendo lá seus últimos anos, tendo sido
Bruno Enei
124 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

uma doação do rei Federico. Sannazaro era o dono dessa vila e lá morreu
em 1530, sempre contemplando o mar, em sua colina.

Obras de Sannazaro

Sannazaro é autor de uma infinidade de obras:

De partu Virginis
Escrita em latim, é de caráter religioso-mitológico; mas o título
não justifica a obra, pois é simplesmente o pretexto para encher de
mitologia esse acontecimento. É uma imensidão no mundo clássico e
mitológico.

Eclogae piscatoriae
Conjunto de églogas, que aqui, em vez de falarem de campos e
pastores, falam de pescadores, de mar, e têm o valor de representarem o
início de uma tradição literária napolitana, em que o mar e os pescadores
constituem o começo dessa tradição.

Il Canzoniere
Conjunto de poesias em que o poeta exulta o amor por
Carmosina.

L’Arcadia
É a obra sobre a qual devemos mais falar e que deu nome às
academias literárias. O título desta obra é universal, porque foi muito
lida do século XV em diante, não somente na Europa, mas na Ásia e
na América, tornando-se seu título tão comum, que ficou como nome
de uma academia e de um movimento literário que se chamou Arcádia.
Chama-se de arcádicos os escritores ou as agremiações que não têm
grandes recursos. Sannazaro foi conhecido e teve uma grande influência
na literatura europeia e mundial.
L’Arcadia é um poema idílico, formado de doze prosas e doze
poesias, em que o escritor, com os nomes mudados, fala de si, de forma
que a obra tem um sentido autobiográfico. Sincerus, como se sabe, era o
nome de Sannazaro na Academia Pontaniana de Napoli. Então o poeta
imagina que Sincerus, para esquecer um amor seu, para evitar a sua
paixão, sua insatisfação, vai a um lugar afastado da realidade, um lugar
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 125

de naturalística beleza, um mundo bucólico, uma região que nos lembra


uma passagem da Eneida, isto é, a Arcádia: fala-se de uma região da
Grécia que vivia das leis naturais, cheia de pastores que cuidavam das
próprias ovelhas, no meio dos bosques, então esse mundo de paz, de
amor, de felicidade, sem polêmicas, sem lutas, apenas amando e sendo
amado.
O poeta, pois, imagina ir a essa região, que dá nome a essa obra.
Sincerus vai para lá, para esquecer o seu amor. Lá ele fala com a natureza,
vive com os poetas, vê aquelas paisagens, mas não pode esquecer o seu
amor. Um dia, ele encontra um pastor chamado Carino, ao qual confessa
suas penas de amor, sua incapacidade de esquecer; descreve-lhe a beleza
da moça de que está enamorado e sua não-correspondência. Carino, que
é mais velho e esperto, que também amou, mas que superou as penas do
amor vivendo nos campos, consegue persuadi-lo e estimula-o a esquecer
sua paixão, vivendo com os pastores. Sincerus começa a esquecer em
parte suas amarguras. Mas um dia ele tem um sonho no qual vê sua
moça amada, longe em Napoli, morta. Então abandona os campos, os
pastores, a Arcádia e volta a Napoli e lá encontra morta sua Carmosina
Bonifacio.
A Arcádia que Sannazaro lembra é a Arcádia clássica de Virgílio,
esse mundo de leis naturais, de uma felicidade que consiste numa beleza
naturalística, sem a dor da crítica da consciência. É o mundo que os
clássicos idealizaram e que ele volta a idealizar. Um mundo em que
não chegam os rumores da vida, em que não há nada de dramático, é o
mundo próprio das Bucólicas de Virgílio, o mundo dos livros VII e VIII
da Eneida.
A importância deste livro na história da literatura italiana, à
parte dos sentimentos e da delicadeza dos fatos aqui descritos, está na
forma literária, no modo como o poeta soube tratar este seu momento
autobiográfico. É sobretudo a rica mitologia a que recorre continuamente;
é tão cheia de reminiscências mitológicas e referências clássicas, que é
considerada uma pérola literária.
Se num momento foi julgada grandíssima, num segundo
momento, julgada péssima. Hoje a crítica volta a um juízo mais
equilibrado. E essa mitologia não é um artifício na sua obra, porque
é a expressão da admiração de Jacopo Sannazaro para com o mundo
clássico. Recorrendo a essas evocações clássicas, ele nada mais faz que
idealizar seu problema autobiográfico. Foi excessivamente considerado,
até o século XVIII. Sannazaro criou em todas as cidades da Espanha,
França e outros países o nome das Arcádias, que foi a doença da Itália
do século XVIII.
Bruno Enei
126 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Ele é o escritor que no Humanismo representa essa atitude


literária e idílica, que é um outro aspecto do Humanismo.

Leon Battista Alberti (1404-1472)

Leon Battista Alberti com Leonardo da Vinci são figuras muito


complexas: são escritores, além de representarem atitudes múltiplas,
como pintor, crítico, arquiteto, escultor, de forma que temos neles a
realização daquilo que foi o ideal do Humanismo e da Renascença, isto
é, um homem completo, que fosse um pouco de toda aquela mentalidade
enciclopédica. Esse é o complexo do mundo do Humanismo e da
Renascença. Eles vão além da personalidade de simples literatos.
Leon Battista Alberti nasceu perto do mar, em Gênova. Porém,
se por um lado é interessante dizer que nasceu em Gênova, o que faz
ver como o Humanismo estava presente em centros diferentes, não
podemos esquecer que era de origem florentina, podendo assim frisar
essa genialidade contínua dos toscanos, que se revelava de Dante para
frente.
Ele morreu em Roma, onde viveu por muito tempo. Viveu
sessenta e oito anos, uma vida dedicada à escultura e, sobretudo, à
arquitetura. Ao Humanismo dedicou as críticas e obras que escreveu.
É uma das figuras mais completas do Humanismo, um dos personagens
mais representativos do homem. O ideal do Humanismo parece
incorporado na figura de Leon Battista Alberti.
Como Leon Battista Alberti poderia ser considerado a expressão
equilibrada do Humanismo, assim Leonardo da Vinci representa o
Humanismo apaixonado, rebelde e insatisfeito, em cuja consciência não
vive a serenidade, e sim, o desespero, de caráter quase religioso, que faz
com que se veja nele um homem que já queira superar o Humanismo,
numa atitude religiosa.
Leon Battista Alberti é conhecido por três aspectos: como
artista, isto é, como arquiteto; é o seu primeiro aspecto. Ele construiu,
entre outros, quatro monumentos que ainda hoje são objeto de admiração
na Europa: o Palácio Rucellai e a fachada de Santa Maria Novella em
Florença; a Basílica de Santo Andrea em Mantova; o templo Malatestiano
(que se chama também Igreja de San Francesco a Rimini). É então um
arquiteto que glorifica a arte italiana do século XV.
Mas foi também um humanista notável (seu segundo aspecto),
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 127

e a ele se deve uma iniciativa: em 1441, ele promoveu um certame


coronario, que se chamava assim porque o prêmio do vencedor era
uma coroa. Esse concurso deveria ser para estimular os escritores do
Humanismo a escrever em italiano e abandonar o latim. Tem um grande
significado histórico, pois o Humanismo teve essa imensa simpatia pelo
latim, e os escritores faziam questão de escrever em latim, como o faziam
Cícero e Horácio; mas Alberti, seguindo as teorias de Dante, sentia que o
mundo latino tinha desaparecido; então, ele dizia que precisava trazer a
perfeição da língua latina, em italiano, isto é, escrever bonito em italiano
e não em latim.
Ele traz então esta revelação ao Humanismo: é um dos escritores
(terceiro aspecto) que não consideram o Humanismo um fenômeno
literário, mas também espiritual, moral, complexo, isto é, total. É uma
revelação no sentido humano, filosófico e linguístico, e ele foi o criador
desta teoria que Bembo continua no século XVII e Manzoni, no século
XIX.

Obras de Alberti

I Trattati
Os séculos XV e XVI na Itália são séculos em que se escreviam
muitos tratados de fama internacional, como Il Galateo, um tratado do
século XV, que naquele tempo era o máximo dos bons costumes, hoje
considerados um horror. Era uma das preocupações dos humanistas,
a de saber viver em sociedade, algo muito coerente com essa cultura.
Temos outros tratados, como II Cortegiano, que tratava do ideal do
homem cortesão, que, pelas suas maneiras, muitas vezes pensamos que
é hipocrisia. Há centenas de trattati que falam de tudo.
Mas os tratados antes de Leon Battista Alberti eram escritos em
latim, por serem de origem ciceroniana. Cícero tem muitos tratados, obras
de caráter filosófico, que naquele tempo se chamavam trattati. Então, a
língua oficial deles era o latim.
Leon Battista Alberti começa a tratar dos assuntos de arte na
própria língua. Isto depois era uma coisa normal: na França, escreveu-se
em francês, na Espanha, em espanhol, e assim por diante. Mas antigamente,
se quiséssemos ler obras, tínhamos que ler em latim. Até Spinoza escreveu
em latim. Essa é, pois, a importância de Alberti, que os tratados com ele
abandonam o latim e começam a ser escritos em italiano.
Bruno Enei
128 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Il Teogenio
É um tratado em que Alberti fala da contingência dos bens
materiais, como o homem sábio deve aceitar essa volubilidade da sorte,
da fortuna, da riqueza, da vida. A vida espiritual não consiste na posse de
bens, pois a vida espiritual sabe que os bens vêm e vão e que isso não é
caso de desesperar-se. A vida é sobretudo um desenvolver-se espiritual, é
um tornar-se sempre mais homem. Essa é a maior riqueza: a espiritual.
É este o conteúdo dessa obra, como teoria ligada à filosofia
greco-romana, ao estoicismo, que fazia questão da pobreza, como
Diógenes. Então é baseado nessas tradições, num sentido ético-
-moral: o homem deve ser forte pelo domínio das próprias paixões e
sentimentos.

Della tranquillità dell’animo


Esta obra também não fala de bens materiais e sim das paixões,
como o homem deve dominá-las, como deve e pode dominar os
sentimentos de hostilidade, de violência, sua subconsciência, como o
homem é lobo do homem. Ele deve dominar isso refletindo, pensando
na beleza, na felicidade da serenidade espiritual.
É uma obra serena, de homem de cultura que considera a virtus
como uma conciliação dos opostos, no meio. Poucos de nós sabemos ser
equilibrados, harmoniosos, belos. Esse é o conceito que Alberti queria
inculcar nos italianos, como uma filtração moral do Humanismo, como é
possível falar numa atitude moral, numa atitude literária. O Humanismo
não fica apenas num plano de língua, mas procura também dar uma
educação moral e religiosa ao homem, mudando os problemas da vida,
ao contrário do que acontecia na Idade Média, onde tudo era uma visão
triste da humanidade.

De iciarchia
Quer dizer: do governo da casa. Trata da casa e do seu governo,
em relação ao governo do Estado. Faz essa comparação entre o modo
como um pai administra e se comporta com sua família com o modo
como um chefe de Estado deveria se comportar com o povo, que é seu
filho.

Della famiglia
É o tratado em que fala da figura do pai, da escolha da mulher, das
qualidades que deve ter a mulher, da educação dos filhos e, por ultimo,
da escolha e da amizade dos amigos. A figura do pai é esse homem que
providencia, que rege a casa, com o seu sentido de responsabilidade. A
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 129

mulher deve ser culta, educada, conhecedora da arte, para poder instruir
seus filhos; a necessidade de educar os filhos nos livros do savoir faire.
Exulta também o valor do sentido dos amigos. Temos então imagem das
ordens: o pai está no centro da tela, dirigindo e preparando os filhos para
a vida, tudo numa completa harmonia.
Em conclusão, Leon Battista Alberti, no meio da literatura
do Humanismo, tem a importância de ser o poeta, o representante,
o idealizador do conceito de homem, assim como o Humanismo o
concebia, como o homem deveria ser na mentalidade do Humanismo. É
o homem que fica satisfeito com o homem assim como ele é, ou como
deveria ser pela educação, pela perspectiva da vida.
Ele representa o ideal do homem sonhado pelo Humanismo, isto
é, o homem equilibrado, uma síntese da cultura e da experiência, da
inteligência e do coração, que fosse estudioso, que soubesse tudo, num
conjunto harmônico. Esse é o homem que Alberti descreve nas suas obras
e que ele mesmo encarnou, ao contrário de Leonardo da Vinci, que foi
um apaixonado do Humanismo e que sai fora dele, dessa serenidade.
Então esta figura nobre, bela, o que o italiano nunca soube ser,
mas num sentido frio e temperado, que é a prova do domínio sobre as
emotividades, que o espírito deve ter sobre as paixões, o que alcança
nos anos maduros. Alberti ama esta mentalidade de homem moderno,
equilibrado, aristotélico e cortesão, mas tudo sem excessos, num
equilíbrio perfeito. Essa é a sua figura, como o ideal do Humanismo.

Leonardo da Vinci (1452-1519)

Nasceu em Vinci, perto de Florença, em 1452, e morreu em 1519,


em Cloux, na França, ao serviço de Francisco I, o famoso adversário de
Carlos V, rei da Espanha.
Leonardo é escultor, pintor (La Gioconda, La Madonna delle
Rose, etc.), engenheiro, astrônomo, físico e matemático. Desde menino,
em Florença, trabalhou com Andrea Verrocchio, já dando provas da sua
inteligência. Depois foi a Roma e a Milão, trabalhou lá com Lodovico il
Moro, e por último foi viver na França. Sob ordens de Francisco I, fez
estradas, aquedutos, fortalezas militares, entre outras obras.
Foi um profundo técnico da cor. A Gioconda é feita com uma
tinta inventada por ele e que era capaz de durar através dos séculos. Seus
desenhos foram de invenção no campo marítimo, pois foi o iniciador e
Bruno Enei
130 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

projetador dos submarinos. Quando moço, quebrou uma perna tentando


inventar uma espécie de aeroplano, pois confiava nos seus planos, o que
fazia com que ele tentasse pessoalmente. São coisas que foram inventadas
mais tarde. No campo da engenharia, ele pensou em transformar o esgoto
de Milão e assumiu a possibilidade de fazer estradas abaixo da terra.
Em suma, foi um homem cheio de iniciativas. Vai além do
Humanismo pregado por Alberti, este com seu equilíbrio e aquele com
sua admiração por essa maravilha que tem diante de si, a natureza.
Sua cultura é diferente da dos humanistas porque, enquanto os outros
eram cultos, ele dizia que não apreciava os latinos e gregos. Apreciava
a natureza, analisando as relações entre os seus elementos. Ele é um
religioso diante de uma divindade. Para ele, a natureza não se apresenta
como uma coisa material, mas como um transformar-se contínuo, como
um ser humano, como uma divindade que eternamente se cria, na base da
lei que ele procura ver. Que desejo imenso dele, de possuir a natureza!
Seu drama principal é justamente o de poder chegar e criar ele
mesmo algo da natureza, o que parece um esforço louco. Ele não esteve
ao lado dos humanistas, que procuravam ser iguais a todos os poetas
antigos. Ele não quer imitar, não quer aperfeiçoar nada, ele quer criar! O
homem é um infeliz. Por isso seu esforço em criar tantas coisas. Encheu
o céu, o mar e a Terra com coisas novas. Gostaria de ser Deus, mas vê
que há um abismo entre ele, que vê a natureza e que não pode criar esta
lei. Ele conhece todas as leis pelas quais se verificam os fenômenos,
mas estas não lhe permitem criar. Gostaria, na base desta lei, formar um
mundo seu. Sente em si a necessidade de tornar-se Deus – um sonho,
uma utopia, uma ilusão que o levou até sua velhice.
Às vezes parece alucinado, dizendo: “Donde va, Leonardo? Sine
lassitudine”. Este servidor religioso traz, leva e põe no Humanismo um
tormento, uma aspiração, uma dor, uma insatisfação, que são próprios
de uma alma romântica. Alberti representa tudo que o Humanismo não
podia dar. Leonardo da Vinci, o que o Humanismo não podia dar, mas
que será próprio do século XVIII, que ele previu.
Suas obras estão ainda hoje sendo publicadas, porque ele escrevia
de um modo esquisito: com vidro, etc. Tinha um alfabeto particular. Há
nos Estados Unidos um instituto chamado Leonardo da Vinci, onde
os engenheiros dedicam-se exclusivamente a traduzir e estudar seus
escritos. E isto no século XX, interessando-se por um escritor do século
XV. Suas leis ainda hoje podem ser aproveitadas na Ciência. Em 1952,
foi fundada uma universidade onde só se estudam suas obras, de modo
a poder publicá-las.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 131

A LITERATURA ITALIANA NO
SÉCULO XVI

Entre o fim do século XV e os primeiros anos do século XVI,


passa-se do Humanismo à Renascença. Prova-se com isso a verdade da
afirmação de um crítico estrangeiro sobre o Humanismo e a Renascença,
dizendo que esta nada mais é do que a continuação e a conclusão, num
plano filosófico e artístico, de tudo o que o Humanismo no século XV
pre­parou em todos os campos.
É muito errado destacar o Humanismo do Renascimento, dizendo
que não há relação entre ambos. Verdade é justamente o contrário, isto
é, não havia um sem outro. O Humanismo preparou a renascença do
espírito. Se assim não fosse, o que quer dizer Renascença? Não quer
dizer renascimento do espírito? Não quer dizer nova concepção da vida,
da realidade? Novos valores, um modo de viver diferente, uma forma
mentis nova? Não foi o Humanismo, com seu amor pelos pagãos, pela
língua latina e grega, com seus estudos científicos, que preparou esta
renovação espiritual? O Renascimento não é como um filho do século
XV? O século XVI foi por isto mesmo chamado de Século de Ouro, em
que todos os princípios e hipóteses, ideais, orientações e perspectivas
da consciência humanista se realizarão numa perfeita harmonia. O
pensamento chegará aos grandes pensadores, elaborado, aperfeiçoado
e sistematizado. A arte do século XV chegará aos grandes artis­tas do
século XVI e neles achará sua mais pura expressão.
Em conclusão sobre isto, diremos que os dois aspectos do
Humanismo eram justamente a arte e o pensamento. E quando é que
estes dois chegarão à própria perfeição? No século XVI: o pensamento
na obra política de Machiavelli e a arte na poesia de Ariosto.
Estes dois escritores, Machiavelli (1469-1527) e Ariosto (1474-
1543), representam no século XVI tudo aquilo que o Humanismo
pensou e poetizou. Este leva ao máximo da expressão lírica a poesia
do Humanismo e aquele, à mais clara filosofia todos os pensamentos
do Humanismo. Machiavelli é a expressão mais alta do pensamento do
Humanismo e da Renascença e Ariosto, da lírica.
O Humanismo cala-se e esquece-se na Renascença, quando esta
é a expressão de uma consciência realmente nova. E com o século XVI é
Bruno Enei
132 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

que podemos dizer que estamos diante de uma nova visão da realidade,
pois com ela Machiavelli está longe do mundo da Idade Média e Ariosto,
da arte da Idade Média. O binômio utile et dulce, isto é, a utilidade do
conteúdo à doçura da palavra, não interessa a Ariosto: o seu conceito de
arte, a razão pela qual escreve, o seu desejo de contar não têm nenhuma
preocupação moral; escreve pelo gosto de contar, exprimindo nos seus
versos o ritmo da harmonia do universo.
Ariosto conta os vários elementos antagônicos que formam a
harmonia da vida, e sua poesia só tem esta aspiração, de ser a imagem
dessa harmonia. O mundo flui, corre, nele há bem e mal, ele é feito de
contradições, que dão a harmonia que é a vida. A finalidade de Ariosto é
essa, a de ser a imagem dessa harmonia.
Portanto, Ariosto é o ponto máximo da arte do Humanismo
e Machiavelli, do pensamento do Humanismo e Renascença: o que a
Itália pensou encontra-se em Machiavelli e o que ela cantou, em Ariosto.
Mais de que todos os outros, eles levaram para a Europa o espírito do
Humanismo e da Renascença, fazendo com que se nutrissem dessa
cultura e fizessem muito mais do que os italianos souberam fazer.
Depois do século XVI, os italianos caíram no rococó, foram dominados
e divididos. Então os franceses, alemães e ingleses criam os grandes
movimentos religiosos, na Alemanha com Lutero, o Classicismo na
França e a Filosofia na In­glaterra, com Hume e Kant.
A Itália receberá de volta toda essa cultura, com Newton
e Descartes, no fim de século XVIII e no século XIX, quando ela
começará a repensá-la, vinda de fora. A importância então que deve ter
a liberdade da própria pátria. A Itália era rica e feliz até o século XVI,
criando tudo isso. Depois foi escrava dos espanhóis, depois dos franceses
até 1714, depois dos alemães até 1918, e tudo isso impediu muito aos
italianos desenvolverem-se, como até com as últimas consequências do
Humanismo e Renascença: na França com a revolução, na Alemanha
com o protestantismo, e na Inglaterra com Hume.

Ludovico Ariosto (1474-1543)

Foi um poeta queridíssimo de Camões. Nasceu em Reggio


Emilia. Seu pai chamava-se Niccolò Ariosto e a mãe, Daria Malaguzzi.
Era o mais velho de dez filhos, sendo cinco irmãos e cinco irmãs. Morreu
em Ferrara.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 133

Os dez primeiros anos de sua vida, portanto de 1474 a 1484,


viveu em Reggio Emilia, aí fazendo seus primeiros estudos. Mas com dez
anos seu pai transferiu-se para Ferrara, esta importante e culta cidade do
Humanismo, que ao lado de Florença, Roma, Nápoles, foi um dos centros
da cultura humanística da Itália, governada pela família dos Estensi, onde
temos a presença do poeta cavalheiresco Matteo Maria Boiardo.
Em Ferrara Ariosto completou seus estudos secundários e entrou
para o Direito. Seu pai queria que ficasse advogado, porque os estudos
de advocacia ofereciam grandes possibilidades de emprego com os
senhores do governo de Ferrara. Mas, como com Petrarca, Ariosto não
tinha qualidades para ser um bom jurista: foi um homem sonhador, que
gostava de viver de estudos, de poesia, de imaginação. Mais tarde, então,
seu pai autorizou-o a es­tudar Letras. Ariosto forma-se conhecendo latim
e grego, sobretudo latim, revelando às vezes sua apreciação pelo latim.
Não foi um Poliziano com o grego.
Até 1500, com vinte e seis anos, Ariosto teve uma vida calma,
tranquila, serena, de estudos, sem aborrecimentos, sem dramas. Viveu
na riqueza, na comodidade, podendo com disposição dedicar-se aos
seus estudos pre­feridos, que eram os de literatura. Em 1500 perdeu seu
pai, e então, ele, que era o mais velho dos seus irmãos, sentiu-se com a
responsabilidade de cuidar da vida deles, preparando os dotes das suas
cinco irmãs para casarem. É algo muito bonito essa sua sensibilidade, que
se põe em evidência ao manter durante toda a vida seu irmão paralítico
Gabrielle, que escrevia e passava a limpo seus versos.
Como a situação econômica de Ariosto não era boa, procurou
um modo de viver, empregando-se com os Estensi. Primeiramente com
o cardeal Ippolito d’Este, irmão do duque Alfonso d’Este. Aquele era
um político que gostava de lutar com os interesses em Milão e Veneza,
sendo amigo de Ariosto, que não era político, nem homem de negócios.
Era, em vez, um sonhador. Por isso, nas sátiras dele há uma página em
que descreve sua vida com esse cardeal. E Ariosto, confessando isso
na sua autobiografia, diz que “De poeta, Ipolitto me transformou em
cavallaro”28 Era então uma espécie de Sancho Pança, ele, que vivia no
meio de amores, de cortesias, tornou-se um cavallaro, pois o cardeal o
mandava a todos os lugares.
Serviu junto a Ippolito de 1503 a 1517, tendo sido seu secretário.
Em 1517, o cardeal foi nomeado bispo em Budapeste, e Ariosto não quis
acompanhá-lo, por ter nove irmãos, por viver bem em Ferrara e por estar
cansado dessa vida, sendo então licenciado.

28
Pastor de cavalos.
Bruno Enei
134 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Um ano depois, em 1518, ele foi reassumido no serviço pelo


irmão de Ippolito, que é duque de Ferrara, lá então vivendo até 1522,
quando teve outra incumbência: foi nomeado a administrar uns bens
de Alfonso, umas propriedades, numa zona da Toscana chamada
Garfagnana, cheia de florestas e castanhas, zona de pessoas violentas e
prepotentes. Então imagina-se esse poeta governando essa região, onde
era necessário uma pessoa de pulso. Queixa-se de viver aí, onde não se
sabia nada, onde só se matava e caçava, no meio de doenças, pois onde o
mar entrava nas matas deixava a água estagnada criar epidemias.
Lá viveu até 1525, quando volta a Ferrara. Os seus seis últimos
anos de vida foram os mais bonitos, quando já havia publicado seu
poema, que era admirado em toda a Europa, pois era o símbolo de toda
a Renascença. Separa-se do seu irmão e constrói uma vila, em 1527,
num bairro de Ferrara que se chama Mirasole, isto é, o lugar onde se
pode ver nascer o Sol. Nesta sua pequena vila ele mandou escrever um
dístico: “Parva sed apta mihi”, isto é, pequena, porém é dada para mim.
Não teve mais casa desde 1500, quando perdeu seu pai, ele, que nunca
amou viajar, e, por ter sido obrigado a isso, sentiu-se transformado
num cavallaro. Construiu então sua casa, que é a sua intimidade, onde
poderá continuar sua poesia. Sobretudo faz um ato bonito que prova sua
honestidade.
No ano de 1513, quando era secretário de Ipolitto, foi mandado
a Florença, onde conheceu o papa Leone X e também uma moça, que
ele amou profundamente, com a qual teve relações de uma simpatia
instintiva, baseada num idealismo. De 1513 a 1527 viveu com esta moça
um amor livre. Ela chama-se Alessandra Benucci. Ariosto começa a
dizer que falará também da loucura de Orlando, que essa mulher o faz
louco, e que, se ela permitir de ele não enlouquecer, então contará a
loucura de L’Orlando Furioso.
Ariosto morre em 1543. Uma vida sem grandes acontecimentos
externos, sem dramas nem paixões fortes, sem privações políticas e
econômicas; é uma vida feita de estudo, de recolhimento, de sossego, de
verdadeiro literato, de amador de Letras, que vive em ozio, mas ócios de
literato e de estudioso, transformando a realidade em motivos ideais.
Ele sempre sentiu repugnância pela realidade. Nunca entrou na
vida real, porque sempre se sentiu alheio à vida real. É bem parecido
com Petrarca, sendo que seu afastamento, que para outros significaria
tristeza, para ele é uma felicidade. É bem diferente de Alberti, de caráter
impetuoso, e de Dante, que gostava de viver no meio de brigas. Ariosto é
um poeta risonho que não tem amarguras, preocupações, remorsos; é um
poeta que quer viver naturalisticamente, sem incomodar, transformando,
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 135

idealizando tudo. Uma vida, enfim, que naturalmente não é em nada a


vida de hoje.

Obras de Ariosto

Quando se fala em Ariosto na Itália, não se põe em evidência


suas primeiras produções literárias, que estão muito longe da terceira. A
verdadeira poesia dele, essa grande expressão do Humanismo, está no
Orlando Furioso. Mas para conhecer melhor Ariosto, é preciso conhecer
também as outras duas, que o põem em evidência como humanista e
como homem.

Le Commedie
São La Cassaria, La Lena, II Negromante, I Suppositi e La
Scolastica. No século XVI, que é de grande admiração pelo Classicismo,
muitas foram as comédias que se representavam nos teatros, e sobretudo
nos teatros dos senhores, as comédias latinas. Elas eram representadas
na língua original, isto é, em latim. A cultura era tão difundida que os
assistentes podiam encontrar os dramas na língua original.
O Humanismo foi justamente um período de alto nível cultural.
O teatro representado durante a Renascença era o velho teatro latino
de Plauto e Terêncio, ambos do período arcaico, muito anteriores a
Cícero e Horácio. Foram os primeiros representantes da literatura latina.
Neles não havia nada de extraordinário: eram suas peças baseadas num
fatalismo no qual o personagem não tinha nada do drama interior.
Depois do século XVII, na Itália e na Europa, depois dos
séculos XVI e XIX, o teatro teve uma transformação espetacular, com
Ibsen e Pirandello, cujos dramas são verdadeira arte, pois o drama é a
representação de um sentimento, é o choque entre dois desejos. O teatro
de Plauto não tinha nada disso, pois era baseado em assuntos leves e
fáceis, não tocando a intimidade do homem, como Othello e Macbeth.
Portanto, as comédias eram representadas em latim na Itália,
no século XVI. E Ariosto foi o primeiro que começou a fazer com
que o teatro iniciasse representações em língua italiana. As comédias
de Ariosto são muito fracas, porque são de imitação. Para ele o grande
comediógrafo é Terêncio, e ele o imita escrevendo em italiano. Suas
comédias podem ser consideradas como as primeiras em língua italiana,
representadas no século XVI, o que representa a vitória da língua italiana
Bruno Enei
136 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

sobre o latim. Procurava-se com que o italiano chegasse à perfeição da


língua latina; nesse sentido, vê-se a grande influência que tem Boiardo,
que sempre procurou estimular os italianos a estimar sua língua.
As comédias de Ariosto também põem em evidência sua
cultura humanística, isto é, nenhum dos escritores do Humanismo fica
completamente livre do que foi a cultura pagã, sobretudo de Roma,
porque Ariosto não chegou a saber bem o grego. São dois, então, os
valores das comédias: com elas Ariosto iniciou a representar em língua
italiana; nelas evidencia-se sua cultura humanística.

Le Satire
As sete sátiras em Ariosto não querem dizer o que é hoje, isto é,
ofensas, polêmicas, obra ofensiva, desnudadora, que apresenta as coisas
como são. Em Ariosto, sátira tem um sentido mais horaciano, querendo
dizer cheio de acontecimentos, de humanidade; vem de satura, então
na sua etimologia antiga quer dizer conto autobiográfico, autoconfissão
dos problemas, dos anseios, entre outros. Elas são a produção em que
Ariosto conta os acontecimentos da sua vida, numa delas narrando
suas desventuras como cavallaro. Mandou-as a seus amigos em forma
de carta. Uma delas foi enviada a Pietro Bembo. É interessante lê-las,
porque explicam tudo que aconteceu na sua vida, pois têm esse valor de
confissão.
As comédias dão o Ariosto humanista e as sátiras, o Ariosto
homem.

L’Orlando Furioso
Se as comédias dão o humanista e as sátiras, o homem, esta obra
nos dá o Ariosto artista.
Trata-se de um poema épico-cavalheiresco, formado
definitivamente de quarenta e seis cantos, mas na primeira vez que foram
publicados, em 1516, eram apenas quarenta. Também na segunda vez que
foi publicado, em 1521, aparece com quarenta cantos, mas na última
edição antes de sua morte, em 1532, o poema saiu com o acréscimo de
seis cantos, então com quarenta e seis cantos.
Em 1503, quando entrou para o serviço de Ippolito d’Este, já
tinha começado a trabalhar no Orlando Furioso, trabalhando nele mais ou
menos trinta anos. E isso é a prova da seriedade, da honestidade, do amor,
da profunda unidade que havia entre Ariosto e o seu poema. Levado a um
plano mais alto, tem a unidade que deve haver entre o artista e a obra.
Não há poeta mais fácil que Ariosto. Leopardi é fácil e outros
o são, mas nenhum deles é tão limpo, tão simples, tão sublime na sua
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 137

humildade, na sua castiça pureza, como Ariosto. E nenhum outro corri-


giu tanto o que escreveu. Ariosto tem exemplos das correções que fazia.
Essas correções têm uma importância enorme, porque querem dizer que
Ariosto queria mesmo que seus versos fossem a imagem da visão que
tinha da vida.
Esta obra é escrita em oitava rima: ab/ab/ab/cc. É dedicada àquele
famoso cardeal que ele serviu de 1503 a 1517. E Ippolito recebeu o poema
dizendo “queste corbellerie”: essas bobagens. Esse homem a quem tinha
dedicado o maior poema da literatura italiana, um dos homens que todo o
mundo leu e traduziu, foi considerado como o autor de umas bobagens. E
isto porque Ippolito era um cardeal muito vivo, ativo, lutador, e Ariosto
só fala de amor, de sonhos, então definiu assim a obra de Ariosto.
O conteúdo é pouco importante: é a continuação de Orlando
Innamorato, de Boiardo, que acaba no sexagésimo nono canto, com a
morte do autor, em que Angelica é presa do duque Namo da Baviera, pela
ordem de Carlos Magno, para que Rainaldo e Orlando pudessem lutar
contra os sarracenos. Então, na quinta estrofe Ariosto começa a descrever
que Angelica, presa, vendo que tudo estava perdido, foge, escondida atrás
de uma sebe. Os cavaleiros vão-lhe atrás, esquecendo seus deveres.
E de acontecimento em acontecimento, um dia Orlando, vagando
pelos campos, vê uns dizeres nas árvores, nos quais se fala de um amor de
Angelica para com um soldado: era Medoro, loiro, ingênuo. E Orlando,
ao saber que Angelica, essa mulher que venceu os corações dos paladinos,
tinha acabado na honestidade de uma vida familiar, burguesa, enlouquece;
o amor dele chega a um ritmo tal que o cega. É muito humano, em
comparação com toda a tradição cavalheiresca, que sempre o apresentou
como um invencível.
Mas Ariosto, que é humanista e renascentista, que é um poeta
moderno, vê um Orlando furioso, pois não há nada mais humano do que
fazer que se torne louco não por heroísmo, mas por amor. Isto terá uma
paródia em Dom Quixote. Então Orlando fica louco, quebrando florestas,
parecendo um pouco com o Morgante. Carlos Magno, que se interessa
por seus paladinos, envia um de seus paladinos, Astolfo, à procura da
cabeça de Orlando. Astolfo, montado num cavalo alado, o hipogrifo, vai
até o castelo do mago Atlante e até à Lua, que é o lugar ao qual confiamos
nossos segredos e pensamos achar as coisas que perdemos na Terra. A
Lua seria esse poço de riqueza, esse poço de tudo que o mundo não tem.
Então, como Orlando não tinha mais cabeça, onde poderia procurá-la
senão na Lua? Encontra-a lá, trazendo-a de volta numa ânfora fechada,
e então Orlando sara, começando a combater novamente e, vencendo,
acaba com a batalha entre cristãos e sarracenos.
Bruno Enei
138 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

O conteúdo move-se sobre três pontos:


1. A guerra contra Carlos Magno e os sarracenos, o que seria
natural do motivo épico tradicional;
2. A loucura de Orlando. É a parte completamente nova, que
se pode chamar de motivo lírico. É loucura, não enamoramento. Aqui,
a matéria cavalheiresca sofre uma profunda transformação, levando-se
até o excesso o enamoramento;
3. O casamento do pagão Ruggiero com Bradamante, que é o
motivo encomiástico, com o qual Ariosto, não ferindo a honestidade,
faz ver as origens nobres da família que está servindo, pois desse
casamento é que deriva a família dos Estensi. É a parte de homenagens
aos seus senhores, que justifica sua dedicação.
L’Orlando Furioso representa a síntese artística e estética
do Humanismo e da Renascença, porque, se o Humanismo e a
Renascença foram uma nova concepção da realidade, de uma nova
visão da vida, não mais influenciada com tanta intransigência pelo
ideologismo e pela transcendência próprios da Idade Média, se
foi uma visão nova, serena e confiante da vida e dos problemas e
significa apego à humanidade, se significa viver a vida com confiança
nos meios humanos, enfrentando-a com heroísmo, então L’Orlando
Furioso é justamente a expressão mais alta dessa visão harmoniosa da
humanidade.
De forma que, aqueles críticos que na obra procuraram uma
definição e julgaram-na como escrita exclusivamente num sentido de
arte pela arte não estão certos. Porque essa definição não é profunda e
não colhe o sentido profundamente real e admirativo da aparição desse
poema no quadro da literatura italiana do Humanismo e da Renascença.
Porque nada significa dizer que escreveu na concepção da arte pela arte.
Se assim fosse, nunca seria um grandíssimo artista. Se o consumado
fato o é, o é porque sua obra é a imagem daquela espiritualidade, é a
realização fantástica dessa concepção da vida, porque L’Orlando
Furioso é exclusivamente a representação da harmonia em que se realiza
e define e conclui a dramática existência humana. Nossa vida é feita de
amores, de amarguras, de esperança, de passado, presente, futuro, de
decepções, de injustas bajulações, de ilusões, de contraste, mas todos
esses elementos diferentes e antagônicos se compõem numa harmonia
que se chama vida, e L’Orlando é a imagem dessa harmonia.
Ariosto canta não por um cantar vácuo, literário, superficial.
Canta porque a vida nada mais é do que um canto. É um canto feito
de altos e baixos, mas numa perspectiva, numa serenidade da qual o
verso de Ariosto é a imagem, o símbolo.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 139

Daí o caráter não tanto realístico que o Orlando Furioso possui.


Daí a humana e pessoal elaboração do material cavalheiresco que Ariosto
atinge, e que é um material de uma tradição secular, que vai da Chanson
de Roland a Boiardo e Pulci, nos séculos XV e XVI. Há um elemento
importante que confirma essa nossa impressão sobre a obra: é a ironia
da poesia de Ariosto. Os cantos de L’Orlando Furioso sempre se abrem
a uma atitude de ironia, sobretudo diante de fatos heroicos, diante da
paixão, da inalterabilidade. Não é o ceticismo essa interferência de
Ariosto; é, em vez, o esforço de abaixar os cumes de certas paixões,
nivelando-as a outras e criando um mundo de equilíbrio, de modo que
nada se sobrepuje. Angelica não é mais bonita ou superior do que as
outras moças anteriores ao Orlando Furioso. Este não é somente herói,
mas também um enamorado, um louco. O amor não é apenas paixão cega,
mas é algo que faz rir e confiar na vida. Então todos colaboram numa
igualdade cavalheiresca, como se fossem paro e anteparo. De forma que
essa ironia é o elemento mais importante para entender a personalidade
de Ariosto. Tem-se necessidade de acabar com aquela hierarquia pela
qual se cantam certos sentimentos antes de outros. A vida não é feita
deste ou daquele sentimento, mas de um conjunto de fatos que formam
a vida.
L’Orlando Furioso é o Céu do Humanismo e da Renascença. Não
nega o homem nem Deus; então, é esse diálogo que é feito dos complexos
psicológicos e emotivos de cada um de nós: é alegria e tristeza, é sorriso
e melancolia, é heroísmo e fraqueza. Então que há de mais humanístico
e renascimental, que outra obra pode exprimir isto melhor?
Assim erra quem procura pôr em evidência no Orlando Furioso
a guerra entre Carlos Magno e os sarracenos. Não é o único motivo. Erra
também quem evidencia que a loucura é a parte fundamental do poema.
Erra quem disser que foi escrito para bajular os Estensi, o que é apenas
um dos motivos.
O poema nada mais é do que a visão objetiva e ao mesmo tempo
ideal da vida nos seus contrastes, nas suas diferenças. É verdade que no
Orlando Furioso nota-se a simpatia, o amor, o cor cordium de Ariosto e
sente-se que tem admiração pela beleza, que não tem nada que ver com
o Dolce Stil Nuovo, pois é mais humano, menos transcendente e menos
religioso. Esse conceito de beleza, pela qual Angelica é comparada à
rosa, que é bonita no galho e que não o é mais quando tirada do galho,
esse conceito que é mais objeto de admiração serena é evidente em todos
os cantos de Ariosto.
Um outro ideal na obra é o da mocidade. Raramente há velhas
ou velhos, principalmente. Esses são magos, que também são jovens. Há
Bruno Enei
140 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

esse hino à mocidade, sem seriedade. Por isso essa variedade evidente
no Orlando Furioso, o que o torna o poema menos estático e o mais
dinâmico da literatura italiana: não há canto em que os assuntos não
sejam cinco ou seis diferentes, como de Paris aos bosques e estradas,
procurando algo que não se alcança, com esse senso de entusiasmo que
é próprio do moderno.
Angelica foi definida como a criatura centrífuga, a força que
tira os cavaleiros de Paris. Paris faz com que os cavaleiros unam-se
num ideal político-religioso. Angelica é a vida, a expressão da vida,
que tira o homem dos seus propósitos de intransigência. Como a vida,
propósitos que se amenizam e se fecham na realidade. Por esta razão
que é grandíssimo Ariosto, o mais pictórico dos escritores italianos. Sua
obra é uma música, nada há nela de arquitetônico. Em Boiardo temos
cavaleiros fortes, mas Ariosto não tem nada disso. Ele prenunciou as
cores e a pintura de Rafael, que representa essa serenidade circular de
sine curis, não como a preocupação de Michelangelo. Ariosto é um
pouco essa visão. Serviu-se de um material de séculos de tradição e que
ele renovou.

Niccolò Machiavelli (1469-1527)

Niccolò Machiavelli nasceu em Florença, em 1469. Não era


de família nobre nem rica, porém seus pais não eram pobres; possuíam
terras num lugar perto de Florença, onde eles tinham uma vila que se
chamava Albergaccio, em La Lenuta de San Casciano.
É difícil dizer qual foi a formação cultural dele, é difícil
contar os primeiros anos de sua vida, sua infância, sua mocidade. Mas
seus críticos e biógrafos têm todos a certeza de que ele foi educado
humanisticamente. Machiavelli seguiu por isso as escolas regulares no
século XV e aprofundou-se nos estudos clássicos. Embora não seja um
literato, embora a literatura não tenha sido a coisa mais importante na sua
personalidade e na sua vida, embora não seja um artista, não podemos
negar que tenha sido um grande humanista. E se ele, como parece, não
conheceu o grego, era um conhecedor do latim e da literatura latina.
Entre os latinos, não procurou os líricos ou trágicos ou os
oradores. São duas suas simpatias. Machiavelli estudou, sobretudo,
os comediógrafos, e mais ainda, os historiadores: Plauto entre os
comediógrafos, e entre os historiadores, o que mais o empolgou foi Tito
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 141

Lívio. É importante pôr em evidência esse amor por Tito Lívio, que o
ajudou durante a vida a julgar a realidade, e por isso mesmo é um dos
maiores historiadores do Humanismo italiano e europeu. É uma figura
universal por ter sido um dos maiores políticos que existiu, criando uma
ideologia política e uma concepção histórica. Machiavelli atingiu sua
orientação histórica, examinando a história do seu tempo como também
os tempos do Império Romano.
É notável desde já esse casamento entre Humanismo e realidade,
entre experiência pessoal e cultura. Nele havia essa unidade. Ele não
procura a literatura latina por um desejo de elegância, mas para descobrir
nos acontecimentos históricos as leis eternas dos acontecimentos
humanos, a dialética dos Estados, a descendência de um povo, sua
hegemonia, o que significa povo, religião. Esses são os problemas da
grande figura de Machiavelli. Por esta razão é importante lembrar o ano
de 1498.
Esta data é a que representa o ano em que tomou parte direta na
política, nos negócios públicos, com um cargo de responsabilidade de
direção em que tinha possibilidade de observar os movimentos políticos
dos vários Estados italianos e europeus, as ambições dos chefes de
nações da Europa. O que houve em 1498?
Foi nomeado secretário da Seconda Cancelleria da república
florentina. Lorenzo de’ Medici morreu em 1492, e a Itália perdeu um
dos homens mais sábios politicamente, que pregava a harmonia. Dois
anos depois, em 1494, quando era justamente herdeiro o seu filho Piero,
a Itália foi invadida pelos franceses, que ocuparam os vários Estados
italianos até Napoli, com facilidade. Dizia-se que Carlos VIII ocupava a
Itália con il gesso. Quando ocupou Florença, os Medici foram exilados,
abandonaram Florença e só voltaram em 1512.
Nesses 18 anos, Florença foi república, sendo o presidente Piero
Soderini, e seu grandíssimo secretário foi Machiavelli. Nesse período
há lá uma agitação política e de caráter religioso, dirigida por um frei
que foi queimado, diante do qual Machiavelli riu quando era moço,
um frei generoso, que tinha uma coragem extraordinária. Foi Girolamo
Savonarola, e enquanto era queimado vivo, Machiavelli começou sua
vida de político, porque, enquanto Girolamo Savonarola poderia lembrar
Iacopone da Todi, desejando uma paz anacronística, Machiavelli é uma
expressão do mundo moderno, ao passo que Savonarola convidava os
florentinos a chorar por Deus.
Foi nesse período que Machiavelli sobe à Seconda Cancelleria,
que era o Ministério dos Negócios Internos e da Guerra. Então ele era
secretário com dois ministérios na mão: o do Interior e o da Guerra. De
Bruno Enei
142 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

forma que, com esses cargos, ele tinha possibilidade de conhecer a situação
econômica, política e moral da república florentina, mas, sobretudo, de
conhecer os vários Estados que se contendiam pelo predomínio.
Machiavelli esteve viajando muito. Esteve na França até 1510,
observando tudo em Carlos XVIII e Luiz XII, o que queriam fazer. Também
viveu muito tempo na Áustria e acompanhou as ambições políticas de
Maximiliano. Foi a Roma, então um Estado, e observou Alessandro VI,
um dos papas tão famosos daquele tempo, e também Giulio II e Clemente
VII, cujas ambições ele conhecia. Foi a Urbino, onde viveu um filho de
Alessandro VI, famoso por sua crueldade, e que era Cesare Borgia, com
o título de Duque de Valentino.
Então Machiavelli tinha na mão a situação da Europa, e a
incumbência de fato que ele tinha, viajando nesses lugares, era de
observar e escrever objetivamente o que via. Em vez, a coisa bonita é,
no entanto, sua objetividade, uma pessoalíssima, de forma que são obras
de extraordinário valor, revelando a capacidade, os segredos ideais que
determinavam aqueles planos e ações dos políticos de então.
Ele se consumia na Secretaria, trabalhando, discutindo, mas
acontece que em 1512 há na Itália uma guerra entre os Estados e a França,
que se fecha com a batalha de Ravenna e com a derrota dos italianos,
voltando a Florença os Medici em 1512. E Machiavelli, que tinha sido
secretário de 1498 a 1512, deve abandonar o seu cargo, porque os Medici
não confiavam nele por ter sido secretário da república florentina. Embora
não tivessem razão de afastá-lo, ele foi afastado e perseguido, porque
houve uma conjuração contra os Medici, e ele foi viver em San Casciano,
na vila de Albergaccio.
Salvo breves aparições em Florença, ele viveu nesse lugar até
1527, quando morre no dia 20 de julho. E esses anos, embora fossem
anos de dor, de provação, de penúria, pois como político nunca roubou
nada – e seu filho, escrevendo aos amigos, conta que seu pai não
deixou nada –, mas o que houve de bonito é que nesse silêncio ele
pôde completar suas grandíssimas obras. Todas elas escritas como num
relâmpago, com uma paixão, com um desespero, nesse período em
que a realidade o tinha afastado do mundo político de Florença, em
que se suspeita e ameaça, cheio de preocupações, é nesse período que
escreveu suas obras.
Em uma carta ele conta como vivia em Albergaccio, onde havia
um bosque em que mandava cortar a lenha, comendo com esses operários,
jogando cartas com eles, e à noite andava bem vestido e punha-se a falar
com os grandes políticos romanos da História de Tito Lívio, escrevendo
suas Considerazioni.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 143

Os Medici, que em 1512 tinham voltado, em 1527 outra vez


abandonam Florença, ano em que houve o Sacco di Roma, em que
levaram tudo. Nesse período então houve a Segunda República florentina.
Machiavelli estava em Albergaccio, e quando soube dessa derrota, ele,
com o maior entusiasmo, dizia que voltaria para lá com outro cargo,
porque não foi somente honesto, mas escreveu livros e tinha sido afastado
de 1512 a 1527. Mas os homens da Segunda República o recusaram, por
inveja e por uma acusação entre Machiavelli e os Medici, pois sua miséria
econômica obrigou-o a dirigir-se à Universidade de Firenze para que lhe
desse algo para viver, e aí o papa Clemente VII deu-lhe o encargo de
escrever a história de Florença, pelo que ele é considerado um faltoso da
política e não recebe o cargo.
Isso determina nele um choque tão forte que morreu em 20 de
julho de 1557. É um homem como Dante, que acredita no que faz com uma
pureza de espírito que o leva até à morte. Sua vida foi objeto de grandes
obras, contos, dramas. Napoleão e Bismarck foram admiradores dele. Sua
genialidade política fez com que seja um dos seres mais famosos até hoje,
pois ele era a vanguarda da visão política num mundo moderno.

Obras de Machiavelli

Suas obras devem ser estudadas numa tríplice divisão:


obras políticas, históricas e literárias, pois são três aspectos da sua
personalidade.
A Renascença italiana dos séculos XV e XVI concentra-se em
dois grandes escritores: Ariosto e Machiavelli. Ariosto é, sobretudo, a
maior expressão da arte italiana, é um artista, é o poeta que soube exprimir
poeticamente mais do que qualquer outro o mundo da Renascença.
Machiavelli soube exprimir com profundidade, seriedade e com um
caráter de universalidade o pensamento dos italianos. Machiavelli é um
pensador, o maior da Renascença, é filósofo e historiador. A obra principal
de Ariosto é L’Orlando Furioso e a de Machiavelli é Il Principe.
Por que se deve dizer que Machiavelli exprime nas suas obras
o pensamento da Renascença italiana? Como é que ele pode ser o
representante dela? Porque ele é o escritor que soube sentir mais que
qualquer outro o Humanismo intelectualmente, porque é o poeta que
mais entendeu o que a Renascença deveria ser filosoficamente, e por isto
é o criador de uma determinada concepção política, o fundador, dando a
Bruno Enei
144 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

ela uma definição filosófica e uma concepção autônoma e independente


e livre de qualquer outra sugestão. Política: polis + techné = técnica da
cidade. A política já existia, mas ele deu esse novo caráter a ela. Disse que
o homem, além de ser moral e artista, é também fatalmente um homem
político, e o grande valor da sua obra está em ele ter distinguido a política
da moral.
Aí está a sua personalidade e o grande equívoco com respeito
à sua pessoa: dele se fala como se fosse um bárbaro. Ele é, em vez, um
realista, chegando a uma definição da política pelo que ela é, não devendo
ser confundida com a moral. O espírito humano age politicamente e
moralmente.
Uma das finalidades do homem é o aspecto prático da vida, que
se realiza com a política; o aspecto estético, com a arte; e o aspecto moral,
com a ética. Machiavelli supera a Idade Média e colhe a espiritualidade
do Humanismo e da Renascença, porque teve por primeiro a coragem de
distinguir a política da moral. Antes havia confusão entre ambas: homo
politicus, homo ethicus.
Como é que Machiavelli cria um conceito novo de política?
Pelo fato de que o Humanismo e a Renascença tinham um particular
conceito da vida e da História. A vida humana era exclusivamente uma
responsabilidade do homem, esse conceito heroico do homem, o homem
para tudo é centro da verdade, essa confiança nos sentimentos humanos,
enfim, uma concepção humanista. A História era feita não pelos povos,
mas pelo homem, pelo indivíduo, um homem forte, prático, realizador,
que impõe sua vontade aos outros. Esta a concepção histórica.
Machiavelli tem uma concepção pragmática. Pragmatismo é uma
corrente filosófica que mais tarde difundiu-se, sobretudo na Inglaterra,
com William James, que adota como critério da verdade a utilidade
prática, identificando o verdadeiro com o útil. Machiavelli sente que o
povo se move em torno de uma vontade. Então, o conceito pragmático
que ele teve da História levou-o a ter uma atitude heroica: a História não
é esse conjunto do trabalho de todos. A História para Machiavelli não é
essa comunhão de todos, esse agir de indivíduos e desconhecidos, não é
esse coro. Porém, é o terreno onde age o homem, o homem é que impõe
certas ações e realizações. Então Machiavelli é o poeta desse Prometeu,
dessas figuras que dominam o povo, por isso que ele é o maior pensador
do Humanismo e da Renascença.
Em outros países esses movimentos culturais levaram a grandes
lutas. Mas na Itália não houve nada disso, pois foram poucas as pessoas
que se ofendessem com o problema religioso, como o protestantismo.
Portanto, para Machiavelli a História é o resultado da vontade de um
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 145

indivíduo. É o indivíduo que cria um Estado, uma história. Hoje a


História é algo que vai além de um país, pois é feita pela humanidade,
é todo o mundo. Então o caráter individual do pensamento político-
-histórico de Machiavelli.

Obras políticas de Machiavelli


Considerazioni sulla prima deca di Tito Livio (Discorsi)
Nesses três livros (1513-1521), Machiavelli expõe seu
pensamento político e histórico, como um apêndice às obras históricas
de Tito Lívio, que é o maior historiador do Império Romano,
escrevendo uma grande Histoire, tendo sido perdida uma parte desses
volumes. Ficou um conjunto de dez livros, e Machiavelli forma-
-se estudando esse historiador e olhando a realidade da Europa no
período em que foi secretário florentino, pois, viajando bastante, via
a realidade daquele período. E observando a realidade, faz essas suas
considerações, suas conclusões sobre Tito Lívio. Quais são?
Para ele, os romanos são os verdadeiros grandes políticos de
antes de Cristo. Nenhum outro povo teve a consciência política dos
romanos. Tanto assim que Virgílio considera o Império Romano como
uma preparação para a vinda de Cristo. Roma teria ganhado o mundo
para que depois fosse transformada num sentido religioso.
É nesta obra que Machiavelli afirma o seguinte: para fundar um
Estado, é necessário um monarca, uma pessoa, a vontade heroica, clara,
consciente de uma pessoa, que se imponha a todos. Machiavelli diz que,
se para fundar um Estado é necessária a vontade granítica e individual
de uma pessoa, para conservar esse Estado é necessária a vontade de
um povo inteiro. Isso é muito democrático. Por que é que um Estado se
conserva pela vontade de todos? Porque todos estão interessados, ri­cos e
pobres. Um Estado tanto mais se conserva quanto mais houver harmonia.
Depende dos cidadãos, que fazem com que o Estado se conserve. Não
há povo que possa querer a abolição do Estado. É bobagem, porque
seria uma anarquia, apesar de ser uma necessidade. Todos combatem
tudo. O Estado é uma necessidade. Que fariam os indivíduos que não
tivessem quem os organizasse, disciplinasse? Então Machiavelli afirma
que o Estado é necessário porque o homem é necessariamente político-
-social. Se, para criar o Estado, é só necessária a força de um indivíduo,
para mantê-lo são necessários todos os indivíduos.
Bruno Enei
146 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Machiavelli afirma que as grandes vitórias dos romanos são


devidas ao fato de que os soldados eram romanos e não soldados pagos.
Afirma o conceito da necessidade de um exército nacional. É o primeiro
a pôr na Idade Média o problema do exército nacional, pois durante a
Idade Média os exércitos nunca eram de uma só nação, eram tropas
mercenárias, combatiam senza ira, como diz Manzoni. Machiavelli
substituiu a concepção medieval por uma mais moderna: diz que a
divinidade de um homem é o Estado, de forma que todas as outras forças
e ideais e aspectos devem trabalhar em função do Estado, inclusive a
religião: religio instrumentum regni. Tudo deve empolgar-se a favor de
sua pátria, até a religião.
Aí ele faz uma observação: dizia que, pelo que ele via na história
italiana, sentia que a religião da Igreja não ajudava os italianos como
a pagã, que algo impedia o italiano de ser italiano, pois o paganismo
tinha algo de mais forte, imanente. Não que ele negasse a religião,
mas faz distinção entre o cristianismo e o catolicismo. O paganismo,
em vez, faz com que os italianos vivessem a vida, é com o paganismo
que a Itália era aquela força. E com o catolicismo os italianos perdem
tudo isso. É um ponto discutível, em que se deve pensar, se, para ser
religioso, se deva esquecer os deveres da religião.

Il Principe
Quer dizer: senhor absoluto. Não se entenderia esta obra se
não se lembrasse do significado. Machiavelli, quando usa a palavra
príncipe, não a entende num sentido democrático, mas latino, o homem
que impõe a uma nação a sua vontade.
Esta obra foi escrita em 1513, isto é, no período fecundo da
atividade literária e filosófica de Machiavelli, quando o encontramos
exilado em San Casciano. É uma obra bem pequena, formada de vinte
e seis capítulos, sendo o último um capítulo cheio de fé, de entusiasmo,
porque é o capítulo com o qual ele convida um príncipe italiano dos
Medici a levantar os destinos da Itália.
Uma das razões de toda sua produção histórica, filosófica e
literária foi justamente isso, ele procurou estimular os políticos italianos
a unificar a Itália. A maior amargura de Machiavelli era a de ver que os
italianos eram os herdeiros legítimos de Roma. Diante desses blocos
fortes no século XVI, ele via a Itália como uma ovelha devorada pela
França, Espanha e Alemanha. Toda a sua obra era para acordar os
italianos a examinar, a espelhar-se na História de Tito Lívio, para ver o
que os seus ancestrais fizeram. Mas isto nunca aconteceu.
É por esta razão que Machiavelli fica na Itália como uma das
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 147

colunas da História. Dante falando de Império e Machiavelli, de Estado:


são os dois precursores do ressurgimento italiano. Os italianos sempre se
lembrarão de Dante e Machiavelli. Ele não foi um simples literato. Escreveu
para ser prático, para acordar os italianos, para concluir melhor isso.
II Principe termina poeticamente, com versos de Petrarca à Itália:
“Virtù contro a furore / Prenderà l’arme, e fia el combatter corto”.29
E a luta será brava, porque o antigo valor ainda não morreu nas almas
dos italianos. Então, no vigésimo sexto capítulo Machiavelli faz essa
apóstrofe, convidando-os a tornar nação a Itália.
Porém, se na Itália tudo isso tem um sentido particular, no mundo
a razão da fama de Machiavelli não está nisso. Está em vez nos conceitos
políticos que ele expõe nesta obra:
1. Fala da origem do Estado, do modo como se deve conquistar
um Estado, como se deve considerar um Estado, defendê-lo. Os primeiros
sete ou oito capítulos falam somente disso;
2. Fala da milícia, das tropas. Sustenta como experiência pessoal
que um Estado não se pode conservar sem milícia própria. Nunca os
italianos poderão surgir servindo-se de outros soldados que não têm, com
o mesmo, amor. Deste modo, se pode dizer que Machiavelli é o fundador
do exército nacional;.
3. Fala das virtudes que deve possuir o chefe de Estado, o príncipe.
O termo virtude não tem nada de moral, não tem nada de religioso, o que
aparece com o Evangelho, com o catolicismo. Virtude é uma palavra
puramente clássica e serve-se dela porque vem do latim: virtus, virtutis
é o abstrato de vir: o homem, o varão. Então é: energia, e não todos os
conceitos que o cristianismo soube incluir nesta palavra. É a capacidade
de atinar, uma ideia que ele tem na cabeça, capacidade realizadora. A
moralidade está justamente nessa confiança entre o dizer e o fazer, entre
o pensar e o agir. Um homem é virtuoso pelo que ele realiza. O homem
de Estado não olha se mata alguém ou não, mas olha se realiza o que
quer realizar. O seu valor está na atuação, não importa o meio, pois, se
ele realiza o plano, ele é moral, se não, é imoral. É um conceito triste,
feliz e doloroso, pois não podemos admitir que um ser mais forte liquide
os outros, que il fine justifica il mezzo.
Machiavelli diz: “io non guardo la realtà como dov’essere”. Ele
se põe nas coisas como são, não como deveriam ser. Há algo na nossa
consciência que Machiavelli não conheceu. Há algo que grita e que reage
e que sofre se fazemos algo que não está bem. Ele quer que o homem
sufoque esta voz. Temos que sufocar o naturalismo.

29
O valor consciente reagirá contra o furor bestial dos adversários.
Bruno Enei
148 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Qual o animal símbolo do Principe de Machiavelli? La volpe e il


leone. O príncipe deve ser esse binômio: astucioso e fortíssimo; quando
precisa descobrir, torna-se raposa, quando deve derrubar, torna-se leão.
É assim, mas não deveria ser, ainda que seja, não deveria ser.
A Inglaterra apreciou a Machiavelli, adotando seus conceitos.
Com sua habilidade, impõe sua vontade. Mas nós devemos ir num sentido
político muito mais humano, aberto, delicado, baseado nos direitos e no
dever, e suas restrições poderão ser sentidas hoje. Naquele então, todos
o faziam sem ter ideia teórica do que faziam;
4. Fala do conceito de fortuna.30 Para os gregos, um personagem
muito alto ao qual eram devidos os acontecimentos humanos era o
acaso. Jove obedecia à necessidade, aos fatos. Depois cria o conceito de
fato. O cristianismo substitui-o com a providência, o mistério de Deus,
mas também ainda hoje há um outro conceito ao qual nós atribuímos o
acontecer das coisas: falamos de azar, de acaso. Muita coisa depende
do acaso. Machiavelli diz então o que é fortuna, que ela coincide com a
nossa fraqueza, pois ela é subjetiva e não objetiva: “a sorte está em mim,
não fora de mim; se eu quero, nenhum acontecimento me pode estragar”.
Nada pode impedir ao homem a realização da própria subjetividade.
Então o valor do homem está em saber se inserir nas ocasiões favoráveis
da História. O valor do homem está em alcançar esta oportunidade. O
valor do homem escraviza a fortuna.
Então, no Principe ele compara a fortuna com uma bonita
mulher, que gosta mais de um homem forte, vigoroso, corajoso. Por isso
a fortuna gosta de príncipes, porque são como o leão. O homem cria
situações favoráveis para seu plano, e não há loteria nenhuma que lhe
faça ser feliz, não é a sorte que lhe dá esta ou aquela vitória. E aqui temos
o conceito heroico do homem, mas sobretudo esse valor individual e
heroico do homem. Individualidade e personalidade são coisas diferentes.
Machiavelli é o pai de Nietzsche.
Nas Considerazioni, faz o comentarista. No Principe, apresenta
uma mensagem: é o sugeridor de um programa de ação. Para realizar
esse programa, esta obra deveria ser considerada como um vade mecum,
obra que se leva consigo.

Dell’arte della guerra (Dialoghi)


Se nas duas obras anteriores, é comentarista e sugeridor, nessa
terceira obra política (1519-1520) temos o meio para realizar isso. Fala

30
Sorte, acaso.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 149

da força do exército, que deve ser o instrumento sobre o qual se devem


apoiar os desígnios de um príncipe. É interessante dizer que Machiavelli,
tão avançado em ideias, se demonstrasse passadista no fato de não ser
favorável à criação da artilharia. Ele contava muito mais com a infantaria
e repete aqueles conceitos de exércitos nacionais.
Os Dialoghi concluem a parte política de Machiavelli. Quer
dizer que, se as Considerazioni continham um comentário sobre Tito
Lívio, no Principe expôs suas teorias, e nos Dialoghi indica qual é o
meio para a realização da guerra. É um conjunto de sete livros em que
imagina uns diálogos entre capitães de ventura, em reuniões nas quais
falavam sobre o exército, sobre a artilharia, cavalaria, infantaria, e
Machiavelli aproveita desses ensinamentos para indicá-los ao príncipe.
É uma obra técnica.
O importante para nós leitores que não somos oficiais é saber
que Machiavelli também afirma a necessidade das milícias nacionais e
faz questão de dizer que os cidadãos devem amar a pátria como amam a
própria família. Temos de defender e libertar a pátria. É um grito para o
militarismo, para a força, e que ficará por muito tempo esquecido na Itália,
mas quando ela tem necessidade de sentir-se livre, no século XIX, lembrar-
-se-á de Machiavelli, quando ele terá importância. Ele realiza um sonho
no século XIX, que se afirma já com Alfieri, antes do Romantismo.

Obras históricas de Machiavelli

La vita di Castruccio Castracani


Também como histórico, Machiavelli foi um filósofo. O valor de
suas obras históricas está no fato de que ele interpreta os acontecimentos
históricos na base de sua teoria e princípios. A História torna-se uma
prova da verdade de suas teorias.
Castruccio não é descrito como o que ele realmente foi, isto é,
capitão de ventura. Guiava tropas pagas para este ou aquele senhor, sem
idealismo. Conquistou, venceu, foi derrotado. Machiavelli narra tudo isto
fazendo ver Castruccio como se fosse um personagem que encarnasse
os seus conceitos e, com sua coragem de chefe, é o típico exemplo do
príncipe como Machiavelli o sonhava.
Esta história é a idealização de Castruccio. Não temos os
acontecimentos como o são, mas temos a subjetivização da História, a
intervenção dos princípios de Machiavelli. Ele procura ver sua própria
Bruno Enei
150 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

teoria nesta obra. Então, as obras políticas representam suas teorias e as


históricas, a história realizada das suas teorias.

Istorie fiorentine
É uma obra voluminosíssima, em que Machiavelli descreve
a história de Florença, que é antiquíssima, pois vem do período de
Roma, e Catilina, que destruiu Florença. Mas a história de Florença
tornou-se mais importante em 1466, quando se transferiu para Florença
toda a história italiana, todos os acontecimentos. A política teve uma
importância enorme, devido à imensa cultura de Florença e à sua
colocação no centro da Itália. Machiavelli vai descrevendo tudo até a
morte de Lorenzo de’ Medici em 1492. O importante são os últimos
cinquenta anos, que em parte são acontecimentos que ele ouviu ou
pessoalmente viu, de 1469 em diante. Então, o enfraquecer-se do
exército italiano, e Machiavelli tenta fazer os italianos verem o que era
preciso para impedir a invasão da Itália.
Esta obra não foi escrita pela história nem pela boa linguagem,
também não é uma obra encomiástica. O seu objetivo é de analisar a
história de Florença e ver quais são as situações dos séculos XV e
XVI, para que seja possível um reerguimento da própria Itália. Ela
tem o mesmo valor de Castruccio Castracani, pois é uma visão de
acontecimentos históricos na base de uma teoria política.

Obras literárias de Machiavelli

La Mandragola (comédia), La Clizia (comédia), Belfagor


(novela), I Capitoli, Canzoni, Sonetti, Canti carnascialeschi, entre
outras.

La Mandragola
Calímaco, um moço bonito, inteligente, rico, gosta de uma
moça chamada Lucrezia e prepara um plano para fazer com que ela
também o ame: manda presentes à mãe da moça, Sostrata, que é
muito boba. Tinha um servo de grande habilidade, Ligúrio, que diz a
Lucrezia como ele está louco por ela. O marido de Lucrezia é muito
rico e bobo, Micchia. E como ela sempre vai à igreja, ele se dá com
o frade Timóteo, e por fim realiza seu plano, fazendo-se amar por ela.
Calímaco realiza seu plano como um príncipe realizaria seu plano
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 151

político. Esta comédia não tem o sentido torpe do século XVI, mas um
sentido amargo: que plano, que firmeza, que frieza com que Calímaco
realizou isso.
É uma comédia importante na literatura italiana, porque
no século XVI há um certo adormecimento do espírito religioso.
Espiritualmente a Renascença é uma polêmica, não é tão cristã como
a Idade Média, interessa-se mais pela cultura, e o problema religioso
fica adormecido. Os italianos ficam hipócritas religiosamente até o
século XIX, que faz com que muitos voltem ao catolicismo. Mas no
século XVIII a Itália foi muito hipotética, interessando-se mais pela
cultura, ciência e arte. Temos o Consiglio di Trento (1541-1560), em
que houve o imenso movimento de reação da Igreja contra a Reforma.
No século XVII há a inconsciência e a imoralidade, que se revela em
Manzoni com I promessi sposi, obra dominada pela imoralidade.
Sendo fraco o espírito religioso e moral no século XVI, é
evidente que a literatura transcendeu, caindo em manifestações como
o teatro, as farsas, o drama. Toda esta literatura é muito fácil, não é
muito pura; há um gosto pelo macabro, pelo lúgubre, imoral, fatos
sensuais, como em Pietro Aretino, de onde a palavra “aretinesco”.
Então, La Mandragola tem este enredo mais ou menos comum
no teatro da Itália. Porém, o espírito dela é bem diferente. É de uma
amargura e realismo extraordinários. A amargura deriva do realismo
com que Machiavelli observa as relações entre os indivíduos. Observa
com a mesma objetividade com que observava as relações entre os
Estados. No mundo sempre haverá pobres e ricos, fortes e fracos,
sinceros e falsos. O mundo é feito destes opostos, e quem ganha não
é a virtude, mas o vício, a força, a corrupção. La Clizia, uma outra
comédia de Machiavelli, não é importante.

Belfagor
Há uma revista dirigida por um dos maiores professores de
literatura italiana da Universidade de Pisa, Luigi Russo, intitulada
Belfagor. É importante essa novela. Tem o nome de um diabo de
Dante, que aparece nos Bolge, no oitavo círculo. É justamente este
diabo que aparece na novela. Machiavelli imagina que este demônio
volta à Terra e que a condição de voltar seja a de casar novamente com
a mulher dele, e a isto ele prefere o Inferno, deixando de sonhar com a
beleza da Terra e o que poderia voltar a fazer.
Machiavelli põe em evidência os defeitos, o egoísmo da vida
conjugal. Tem um valor misógino. Não é justa essa superioridade, mas
é uma obra muito viva polemicamente, e é por isso que Russo a adotou
Bruno Enei
152 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

como título de sua revista de crítica literária. Esta obra é a prova de


uma qualidade fantástica que faz com que se pense na fé. É um grande
artista. O valor literário está em que esta obra não foi escrita segundo os
ditames do século XVI, com a perfeição de linguagem da Renascença,
em que se procura uma idealidade linguística, em que se procura igualar o
Classicismo. Em vez, Machiavelli se distingue do aulicismo, dos anseios
de perfeição, justamente pela vivacidade, cheio de anacolutos, abandona
verbos, esquece o sujeito. Essa improvisação é importante, porque o seu
espírito literário é aceito pelo Romantismo italiano pelo valor dado à
popularidade, pois escreve com uma ansiedade que não lhe permite ir
atrás de regras.
Machiavelli é a vítima do maquiavelismo dos homens. Não foi ele
quem inventou isso, mas foi inventado pelos homens. Devemos libertar
a sua figura de qualquer impressão precipitada e desfavorável. Ele não é
cruel, não ensinou aspectos ruins, não sugeriu ações ruins a fazer. É um dos
homens mais solidamente morais da literatura italiana. É difícil no século
XVI achar uma figura tão amargurada, pessimista como Machiavelli. Essa
amargura não era devida ao seu sentimentalismo, mas Machiavelli era
pessimista porque a realidade não poderia despertar nele um sentimento
de otimismo. A vida, pelo que ela é, é bem o contrário do que ela deveria
ser. Ou nós estamos com a vida como ela é ou como ela deveria ser.
Ou seremos Dom Quixote ou sabemos que a vida é uma difícil luta, é
responsabilidade, feita de contradições, e o que infalivelmente ganha é
a força, a potência.
Machiavelli descreve a realidade como é: a raiva, o desejo, a
ambição dos senhores. Ele reduz todas as ambições do Estado a um defeito
individual do príncipe. É uma análise também dos homens, com os seus
limites, apresentando esse ecce homo. Todas essas coisas que ele sugere
com sua obra e que andam por aí comentadas como os princípios de
Machiavelli ele as disse não com o espírito que hoje se dá a essas teorias.
Ele as disse com amargura, com uma insatisfação diante dessa realidade
que ele descrevia. Ele queria que a vida fosse outra coisa, mas é uma
utopia. Então descreve a realidade, mas não que essa realidade deva ser
sempre a mesma, embora acredite que nunca será diferente, é por esta
razão de amargura.
Os ingleses disseram dele, na Igreja de Santa Croce, onde o
primeiro monumento à direita é dedicado a ele: tanto nomini nullum par
elogium.31

31
A um tão grande nome nenhum elogio é par.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 153

Torquato Tasso (1544-1595)

Antes de falar em suas obras, antes de expor sua vida infeliz,


cheia de acontecimentos e amarguras deste poeta italiano do século XVI,
que por muitos aspectos é considerado um dos pré-românticos italianos,
devemos dizer o que Torquato Tasso representa no quadro da literatura
italiana da Renascença,
É preciso dizer que com ele desaparece aquela confiança no
homem e na inteligência humana, que eram próprias da Renascença.
Para ele a vida não é mais imaginosa, fabulosa, não é mais prazer,
realização, confiança. Com ele acaba aquele otimismo que era próprio
da espiritualidade da humanidade da Renascença e do Humanismo,
aquele heroísmo de Machiavelli, a serenidade de Leonardo, aquele idílio
de Poliziano, o equilíbrio de Leon Battista Alberti, todas essas figuras
cujas obras nada mais faziam do que idealizar o homem na Terra.
Tudo isso desaparece com Tasso. Sua poesia é cheia de dúvidas
e turva, amarga, cheia de sombras. Não é mais uma poesia descreven­do
luminosamente os aspectos da nossa alma, mas é, em vez, pesquisando,
analisando a nossa alma. Conta o contraste entre o real e o ideal, denuncia
aquela confiança da Renascença e faz com que no poeta sejam mais
evidentes os aspectos tristes e preocupados da nossa alma.
Se os outros poetas, ou eram líricos, idílicos ou heroicos, Tasso
é, em vez, elegíaco: é das confissões e desabafos. Se para os ou­tros
havia necessidade de uma serenidade, de rios, de natureza, de matas,
para ele havia necessidade de luar, de solidão, de um dobra­mento em si
sem necessidade de outros elementos que o acompanhem nes­sa solidão,
meditação e amargura. Costuma-se dizer que com ele a Re­nascença
italiana manda a sua última grande voz poética. Melhor se­ria ainda dizer
que com ele a Renascença italiana acaba com o movi­mento literário e
se percebe nele uma insatisfação que não estava presente na Renascença
italiana. Se não é justo dizer que Tasso é o filho da Contrarreforma,
é justo dizer que com ele temos outras tonalidades, uma humanidade
muito mais íntima, amarga e moderna.
É por isso que muitos críticos querem ver nele um prenunciador
do Romantismo, um poeta que foi objeto de uma infinidade de simpatias
em todo mundo. A literatura francesa e inglesa têm obras sobre ele. Todos
falaram deste poeta, crítico, amargurado, pesquisador da própria alma,
das nossas ansiedades interiores. Sua vida é dig­na de um romance. Porque
Tasso era de uma cultura extraordinária, um dos homens mais dignos do
Humanismo e da Renascença. Era de uma beleza extraordinária, moço,
Bruno Enei
154 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

vivo, inteligente, culto, elegante, delicado, nobre, todas essas qualidades


maravilhosas. Era um orador extraordinário, um homem de iniciativas
que maravilhavam.
Tinha nascido em Sorrento, tinha a palavra fácil, que encontrava
nas cortes. Foi o mais infeliz dos poetas italianos, porque ele ficou
louco e sua loucura é uma tristeza que arrepia, porque na sere­nidade
da Renascença vê-se esse homem que prenuncia Dom Quixote. Tem
medo da poesia, da política, tem medo dos amigos, desconfia de tudo e
acaba louco. É a única figura que impressionou Giacomo Leopardi. Sua
loucura era alternada, o que lhe permitia escrever em certos momentos.
Um homem amargurado, pobre, e que entretanto estava sem família,
sem ser amado, cheio de dúvidas e de crises interiores.
Sobretudo nas obras comove-se profundamente pela sua vida
grande. Não há nada da serenidade de Ariosto. Com Tasso vê-se essa
incerteza, essa dúvida que é a dos homens de hoje, esse querer e ficar
católico porque os avós foram, e não estar satisfeito com nada. Traz
consigo uma tradição cultural, mas que não lhe dá nada. Isso coincide
com a Contrarreforma, e ainda por essa razão é nobilíssimo, porque a
Contrarreforma, querendo defender os dogmas da Igreja, querendo
arguir o protestantismo e estabelecer uma infinidade de dogmas que
salvaram aparentemente a Igreja, mas não renovaram o espírito religioso
da Igreja.
Tasso é vítima da Reforma e da Contrarreforma, quer dizer,
nunca na poesia é possível achar um poeta verdadeiramente grande que
não escreva o que sinta, que não vibra por um ideal. Mas o dele não é um
verdadeiro. A cultura da Reforma não lhe basta, a Contrarreforma não o
satisfaz, pois surgirá com o Romantismo. Tasso tem na poesia a abertura
de uma alma que não é serena.

Vida de Tasso

Nasceu em Sorrento, em 1544. Já haviam falecido Ariosto


e Machiavelli, já tinham desaparecido as duas maiores expressões da
Renascença i­taliana, um representando a arte e o outro, a Filosofia, o
pensamento.
Seu pai era poeta também, e se chamava Bernardo Tasso, autor
de um poema Amadigi, que ele queria escrever para dar à Itália uma
glória do gênero épico, obedecendo às regras de Aristóteles. Mas é um
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 155

péssimo poeta, apesar de ser muito fiel e honesto. A mãe de Tasso é


Porzia de Rossi, nobre e nascida na Itália setentrional, em Bergamo. Seu
pai era secretário de um príncipe que se chamava Sanseverino e amava
esse homem, que era liberal, culto, adversário da dominação espanhola
em Napoli. Era tão fiel que, quando em 1552 Don Pedro di Toledo, que
era o vice-rei de Napoli, representando os aragoneses, declarou rebelde
o príncipe Sanserverino, condenando-o ao exílio, Bernardo Tasso o
acompanha, deixando em Sorrento a mulher, Torquato e uma filha.

Primeiro período (1544-1565)


Se há poetas dos quais se deva lembrar a vida, Tasso é um
daqueles em que é indispensável conhecer a vida. Nasce em 1544. Em
1552, isto é, quando tinha oito anos, seu pai abandona a família para
seguir o príncipe, que tinha sido expulso. Ele não teve então a presença
de um homem culto, de um afeto firme em sua casa. Em 1554, com dez
anos, ele abandona sua família e alcança seu pai em Roma, viven­do com
ele no exílio. Tasso, que num primeiro momento vive sem o pai, agora
está sem a mãe, perdendo o ambiente materno. Logo depois, com doze
anos, em 1556, a mãe morre, ficando sem a mãe, e nunca mais pode­rá
ver sua irmã, a não ser em 1578, quando está alienado e chega à sua casa
com uma barba comprida, dizendo que conhece a Itália, para procurar a
irmã, dizendo que havia morrido só para ver se alguém ainda o amava.
Em 1557, Tasso vai junto aos pais da mãe em Bergamo. Em
1560, Tasso abandona Bergamo e vai viver em Urbino, uma cidade de
Guidobaldo de la Rovere, onde estudou com o filho dele, Francesco
Maria. Agora começam os estudos verdadeiros. Em 1561 ele vai estudar
Direito em Padova. Porém, não gosta de Direito e se dedica aos estudos
literários, tanto assim que em 1562, com dezoito anos, ele publica o seu
primeiro poema, Rinaldo, em oitava rima, que canta a mocidade des­se
cavaleiro. Em 1565, Tasso começa sua vida de cortesão, fazendo parte
da corte.

Segundo período (1565-1576)


É o período mais operoso, mais ativo e mais feliz da vida de
Tasso; moço, bonito, culto, organizador de festas, poeta, admirador,
escritor de sonetos, ótimo esgrimista, teve neste ambiente de Hu­manismo
momentos cheios de atividade. Em 1565, começa a sua vida na corte,
servindo primeiro o cardeal Luigi d’Este. Com este, vai em 1570 a 1571
viajar pela França, conhecendo a literatura francesa. Em 1571, deixa o
cardeal e torna-se secretário do duque Alfonso II d’Este. Em 1573, Tasso
escreve uma de suas obras mais famosas, L’Aminta.
Bruno Enei
156 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Em 1575, escreve sua maior obra, La Gerusalemme Liberata,


dedicada ao duque Alfonso II. Logo depois da publicação dela é que
o poe­ma começa a ser conhecido na Itália. Nota-se em Tasso um
desequilíbrio: primeiro, como esgotamento mental; segundo, como razão
de caráter literário-religioso. A literatura do Humanismo não satisfaz os
escritores amargurados como ele. Vivia na corte em que Renata de Valois
(protestante) fazia propaganda do protestantismo, tornando as dúvidas
de Tasso ainda mais agudas. Ele então é acusado pelos críticos. Além
disso, havia uma razão psicológica: Tasso não confiava na amizade dos
outros, tinha medo de qualquer crítica, pois esta o dimi­nuía. Pede então
para ser examinado, por duas vezes, num exame da Inquisição. Mas os
críticos foram muito ferozes com ele, sobretudo Iperone Iperoni e C.
Scipione Maffei, que acabaram com sua vida.
Não era poeta épico, mas elegíaco. Além dessa inquisição em
1577, Tasso falava com a irmã de Alfonso, Lucrezia (duas recíprocas
simpa­tias), mas percebeu que atrás de uma cortina havia a sombra de um
ser­vo. Lançou então uma faca contra esse servo, o que causou um grande
escândalo. Foi então que, fechado no convento de San Francesco, a sua
dor, melanco­lia e loucura foram aumentando. Mais tarde, saiu pobre e
foi a pé de Ferrara a Palermo. Lá, vestido pobremente, apresentou-se em
sua própria casa, encontrando sua irmã, à qual perguntou sobre sua vi­da,
se tinha irmão, pais. Ela então contou que tinha um irmão que havia ido
a Roma e que não tinha mais dado notícia. Tasso diz então que conheceu
esse moço e que ele, depois de um escândalo, morre. Sua irmã então cai
em terrível pranto. Tasso então vê que alguém ainda o quer e declara sua
verdadeira identidade.
Mais tarde, abandona outra vez Palermo e, a pé, chega a Torino.
Mas seu sonho foi sempre Ferrara, seu paraíso e seu inferno. Paraíso
porque foi onde passou seus anos mais felizes. Inferno porque foi lá que
teve suas maiores crises interiores.
Em 1579, chega a Ferrara. Chega no momento em que Alfonso,
ficando viúvo, casa pela segunda vez, com Margherita Gonzaga, princesa
de Mantova. Nesta ocasião chega fazendo barulho na corte e vê que
ninguém o liga. Ele, que tinha inúmeras obras, ninguém o convida a
entrar, e seu desespero é maior ainda.
Tasso sabe de segredos que poderiam atirar toda a Igreja contra
a corte. É preso e posto na cadeia durante sete anos: 1579–1586. Nesta
cadeia, inicialmente recebeu os piores tratamentos e, por essa razão,
muitas biografias falam de falta de reconhecimento por parte de Alfonso
II. Entretanto, não é verdade que Alfonso desejasse isto. Tasso mesmo aí
escreve inúmeras obras, pois sua loucura era alternada.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 157

Em 1586, Tasso teve a autorização de Alfonso de sair da cadeia


e ir morar em Mantova, junto ao sogro de Alfonso. Tasso não gosta
de Mantova, foge e vai para Roma, a cidade dos seus últimos anos. É
em Roma que, no meio de sua loucura, trai sua obra, escreven­do uma
contradição de sua grande obra, para ser a favor dos críticos. Em 1595,
tem certeza de ser coroado poeta no Capitólio. Entre­tanto, no mesmo
ano, no hospital de Sant’Onofrio, falece. Este hospi­tal está situado em
Gianicolo.

Obras de Tasso

Rinaldo (1562), L’Aminta (1573), La Gerusalemme Liberata


(1575), Torrismondo (1586, tragédia), Epistolario, Rime, Dialoghi e
Gerusalemme Conquistata (1592).
­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­
L’Aminta
É um drama pastoral, breve, feito de cinco atos curtos, que são
precedidos por um prólogo, que está na boca de Cupido. São fechados
por um epílogo feito por Cupido e Vênus.
Seu conteúdo é: um pastor romântico, Aminta, ama, tinha uma
paixão ideal, simples, por Silvia, admiradora de Diana, que vive nos
bosques caçando e é inacessível ao amor. Um dia Aminta recebe a
notícia de que um lobo havia comido Silvia. Esta notícia, apesar de não
ter sido boa, pareceu ser realidade, pois foram encontradas suas vestes,
espalhadas pelo bosque. Desesperado, joga-se num precipício, mas uns
galhos o protegem e ele não morre. Quando Silvia sabe que a paixão de
Aminta por ela o tinha levado ao suicídio, apaixona-se por ele. A obra
acaba com o casamento.
Esta obra foi representada durante a primavera de 1575 em
Belvedere, uma ilha do Pó perto de Ferrara, onde os Estensi iam passar
o verão.
O conceito é que Aminta é o drama pastoral em que Tasso descre­
ve a passagem da adolescência à mocidade. Qual é o elemento que ma­
nifesta esta passagem? Como se concretiza esta passagem? Diz-se que
a humanidade existiu sempre e sempre se realiza através do amor. Por
isso, neste drama pastoril Tasso descreve o evoluir psicológico de Silvia,
afastada, alheia às simpatias de Aminta, e que num segun­do momento,
quando se espelha nas águas do rio, por uma autoconsciência e por um
Bruno Enei
158 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

sentido de emoção diante do drama de Aminta, é que ela aceita essa lei
natural da vida que é o amor. Então é um drama pastoril que se fecha
ainda otimisticamente. Embora aqui já se esteja longe da atmosfera
da Renascença, não podemos dizer que haja pessimismo, amargura,
contraste. O amor é uma lei natural à qual nem Silvia pode subtrair-se.
Por isso, se fecha otimisticamente, embora te­nha momentos de tragédia;
apesar disso, o fecho é otimístico.
Diante dessa sociedade culta e burguesa do século XVI, a sua
linguagem adquire dois caracteres que são dele, isto é, a musicali­dade
e a sombra, uma tonalidade de bemol. Quanto encanta sua música,
quase como a técnica de Petrarca. Tasso não é transparente, mas é
mórbido e musical, íntimo, cheio de sombras. Os desabafos de Aminta
são lindos.
Tudo isso é o prenúncio do Romantismo, do melodrama,
preparando, no fim do século XVI e no século XVII, o melodrama, pois
não foi es­crito com a função de ser citado, mas para ser cantado. Temos
então Vivaldi, Scarlatti, com palavras e música ou música e palavras.
De todos esses artistas, o maior no século XVIII é Metastasio.

La Gerusalemme Liberata
É um poema épico, formado de vinte cantos. Os versos são em
decassílabos e rimados de oito em oito, formando oitavas. O assunto
está preso num período histórico que se refere às Cruzadas, nos últimos
dias do ano 1099. Os países europeus, com o início do caráter religioso,
jogaram-se no Oriente, com uma atitude comercial-­econômica. A obra
tem uma importância pelo caráter mercantil. Tasso decla­ra num seu
Discurso sobre o poema épico32 qual a razão pela qual vai buscar seu
assunto em 1099: ele sempre quis criar para a literatura ita­liana um
gênero que os italianos não possuíam, isto é, o poema épico. Então,
Tasso seria o criador do gênero épico na Itália. Essa foi sua mania,
que criou nele depois de 1585 um complexo que o levou à loucura.
Diz Tasso que o poema épico só poderia ser escrito quando ao poeta
fosse possível entrar num assunto com uma percentagem mínima de
imaginação e quando não fosse permitido um máximo de imaginação.
Tasso escolhe um fato que não fica nem muito longe de sua existência
nem muito perto. Ele nega a arbitrariedade da imaginação de um
Ariosto, mas não sabe conceber a poesia épica como unicamente
baseada na História, pois o poeta sempre deve acrescentar algo.

Tasso publicou, em 1587, I discorsi dell’arte poética, e, em 1594, I discorsi del poe-
32

ma epico, as duas obras a respeito das discussões sobre os poemas heroicos ou épicos.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 159

A literatura grega e latina tiveram poemas épicos, mas eles eram


pagãos. Tasso, poeta italiano católico, pensava que um motivo épico só
poderia ser de um acontecimento histórico de caráter religioso. Há uma
cruzada, guiada por Goffredo di Buglione, que possui todos os caracteres
de herói, de rei, de imperador, de idealista, uma espécie de Aquiles e de
Eneias. Empolga a todos os outros. Ele, após haver ocupado cidades
como Damasco e outras, prepara-se para conquistar Jerusalém. Mas neste
momento as forças hostis contra a religião cristã e as forças divinas se põem
contra a realização de Goffredo di Buglione. Começam então dificuldades
que o impedem de libertar Jerusalém.
Uma mulher, Armida, uma maga bonita, apaixonada e infeliz,
pois o pai dela, Idraote de Damasco, tinha perdido o reino e ela então
estava perdida, um dia ela vai ao exército cristão pedir a Goffre­do ajuda
para voltar a Damasco. Depois de uma discussão, ele adere a esta mentira,
permitindo a dez cavaleiros acompanhá-la. Entretanto, muitos diante
de sua beleza vão atrás dela, de modo que o exército perde os melhores
cavaleiros. Rinaldo é um dos melhores comba­tentes do exército, mas, pelo
seu caráter impulsivo, ele deve afas­tar-se e é outra força que Goffredo
perde.
Há também um mago entre os pagãos, que encanta as selvas, e
os cristãos não podem fazer escadas para agredir os mouros. Mas depois
intervém a vitória para as forças aliadas: surge um grande combatente
cristão, Tancredi, que é sentimental, embora forte. Está enamorado de
uma pagã, Clorinda, que é uma mulher bonita, mas violenta.
Quantos laços interiores e escondidos há entre os inimigos, que são
amigos por outras razões. Uma pagã, Erminia, ama Trancredi, que não a
ama. E tudo isso desmancha aquele caráter épico. Tasso es­creveu, em vez,
um poema elegíaco, de dúvidas, de contrastes, de profundo conhecimento
das amarguras; ele escreveu­ o que se agita nas almas das pessoas, em
contraste com a realidade. Tudo isso afasta sua poesia da serenidade.
Chega a intervenção dos arcanjos, e um deles desencanta o mago Ismeno,
e então os cristãos poderão cortar as árvores. Clorinda morre, matada pelo
homem que a amava, Tancredi, que não a reconhece. É a maior ottava da
literatura italiana do sé­culo XVII.
Tudo isso cria uma tradição que faz que só se descrevessem as
mulheres morrendo, desde Beatriz, Laura, Francesca, Silvia, entre outras.
As melhores poesias cantam mulheres que estão morrendo. Todas elas,
ao morrer, diante do amor e da beleza, souberam inspirar-se sobretudo
na fugacidade da vida, pois os italianos não souberam encontrar a mulher
até uma idade avançada, vendo-a como mãe ou tornando-a sedutora.­Por
fim, os cristãos acabam ganhando.
Bruno Enei
160 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

O espírito desta obra está na imensa diferença entre o Orlando


Furioso e a Gerusalemme Liberata. A primeira canta o a­mor natural,
instintivo, como uma lei, e isso é um pouco de Tasso na Aminta. Aqui
o amor não é felicidade, alegria. O homem não se a­cha feliz, porque o
amor é irrealizável, então torna-se uma tortu­ra, uma infelicidade. No
interior da Gerusalemme Liberata, o amor é como motivo de infelicidade,
porque o amor é um sentimento que não se realiza. É verdade que o
poeta descreve fatos que mostram isso: Tancredi ama Clorinda, mas
Clorinda não ama Tancredi, Erminia ama Tancredi, mas este não a ama.
O amor não é causa de alegria, mas de infelicidade. Então, a paisagem de
Gerusalemme, a humanidade e espiritualidade mudam de tom.
Qual era o tom do Orlando Furioso? Era de alegria, de otimismo,
tudo é generoso. Em vez, aqui o amor não produz mais alegria, ventura,
mas torna passivos, tristes, os que amam. Temos então não uma natureza
aberta, não um sol iluminando a natureza, mas a solidão, os rios, a noite,
a escuridão, porque a noite convida a gente a pensar, serve de fundo às
confissões e à solidão, no meio de pastores.
Quando Erminia desabafa, quando sabe que Tancredi está
ferido, é delicado então contar como ela veste as armas de Clorinda e,
mascarada, vai tratar das feridas de Tancredi. Mas as armas de Clorinda
deixam os soldados desconfiados que seja Clorinda mesmo, não a deixam
entrar e a perseguem, e então Erminia, sem mais guiar o cavalo, acaba
numa planície, no meio de ovelhas, no rio Jordão, ouvindo ao longe uns
pastores. Ela se avizinha a eles e conta ao pastor a sua vida infeliz.
Sua figura é a autobiografia ideal de Tasso. A outra é Tancredi. É
um tema elegíaco. Se Ariosto é a expressão alta da Renascença musical,
Tasso é o filho de Petrarca, com a diferença que Petrarca é feliz em
sonhar e Tasso é infeliz, é amargura sem esperança, sem solução. Por
isso, prenuncia os elementos da literatura italiana do século XVII. Então
vale a humanidade, esses contrastes, essa insatisfação, esse apego a algo
que não se realiza. Porém, no poema ele tinha sido escrito com uma
finalidade épico-religiosa. Mas o motivo existe do começo ao fim, e aí
se encontra a retórica de Tasso. Ele vibra nos momentos de confissão, de
sonho, de saudade.
De forma que a Gerusalemme é um poema menos dinâmico do
que o Orlando Furioso, com o seu dinamismo; em vez, na Gerusalemme
está a arte nos seus parênteses, nas suas elegias, quando deixa os assuntos
e desabafa seus personagens. É verdade que um crítico disse que é o
primeiro romance, porque tem todos os caracteres de um romance. As
figuras dos atores nada têm de luminoso, mas o que interessa é a alma.
Se os heróis do Orlando Furioso são claros e inconfundíveis, os da
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 161

Gerusalemme são confundíveis, também os caracteres românticos o são,


e a obra se fecha como visão psicológica dos personagens, cujas almas
são todas torturadas. É a imagem de uma nova humanidade que sofre.
Tasso é a última grande voz do século XVI da literatura italiana. É a
revelação das insuficiências que se devem reconhecer da Renascença
italiana, porque, se o Humanismo e a Renascença foram importantes,
faltava-lhes uma dose de fé, uma razão, um motivo que pudesse criar
uma energia. Tasso é vítima dessa volta de energia, e então, prenuncia
o Romantismo. Ele então fecha um período e, juntamente com Petrarca
– aos quais um outro período deverá dirigir-se –, como os precursores
melancólicos do Romantismo.

A LITERATURA ITALIANA NO
SÉCULO XVII
O século XVII na literatura italiana é um século que, apesar dos
últimos estudos que procuraram valorizar os aspectos positivos deste
século, é um século em conjunto considerado de decadência. Nos últimos
anos depois de d’Annunzio, sobretudo depois do período dos futuristas
e da poesia de Papini,33 Ungaretti34 e outros, procurou-se explicar, para a
poesia italiana valorizar o que de positivo havia no século XVII e o que
tinha sido negado até então. A crítica literária italiana do século XVIII,
com Baretti e De Sanctis, sempre procurou admitir que foi um século de
decadência.
Agora há uma tentativa de revalorizar o século XVII, mas
tirando-se a comédia da arte, as ciências, a historiografia, a literatura
italiana é muito inferior às tradições de Dante, Petrarca e Boccaccio,
muito inferior ao nível clássico da literatura do Humanismo e da
Renascença. Por que ela deve ser considerada de decadência? Por duas
razões:
1. Os poetas do século XVII cantaram sem sentir profundamente
o que cantavam. Não tiveram grandes ideais, não sentiram anseio de
caráter religioso, moral, não sentiram as grandes idealidades que devem
sempre estar como alicerces da poesia. Não é possível uma literatura
onde não haja grandes sentimentos, ideais e consciência. É verdade que
33
Giovanni Papini (1881-1956).
34
Giuseppe Ungaretti (1888-1970).
Bruno Enei
162 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

eles não representam e não definem e não dão o valor definitivo de uma
obra de arte se não surgem sobre um ideal e persuasão. E o século XVII
não apresenta poetas que sentiram esses ideais, tanto num plano nacional
como social. Não há aspiração de justiça, de religião. A razão ficou em
conformismo, e poucos poetas ficaram evidentes nessa crise. Se se
quisesse julgar pelo conteúdo das obras, deve-se dizer que os poetas
nunca vão além da sensualidade, da musicalidade. Morboso de exterior
e poroso de sentimentalismo;
2. O caráter literário nada mais é, do ponto de vista de forma e
expressão, do que a continuação do Humanismo e da Renascença, porém
com a diferença que, como movimento literário, o século XVII, apesar
de não ter sido um grandíssimo século, como o do Humanismo e da
Renascença, sempre teve grandes, nobres e últimas concepções, aquela
aspiração de equilíbrio, a uma forma que fosse clássica, que fez com
que aquela literatura, embora não cheia de sentimento, não vibrando,
embora tudo isso, sempre fosse uma grande literatura, pela serenidade,
pelo gosto, pelo sentido de perfeição, pelos seus ideais de perfeição.
Nos séculos XV e XVI há também uma filosofia que se
conclui com Machiavelli, isto é, uma visão ideal da realidade, uma
visão magnânima do homem. Sem falar dos filósofos que continuam
no neoplatonismo com Giordano Bruno e Tommaso Campanella. Em
vez, no século XVII não há idealidade, são apenas, no aspecto literário,
imitadores do Humanismo e da Renascença. Mas eles se tornam
extraordinariamente elegantes. Quando só se propõem a alcançar a
beleza e ela não pode ser alcançada, porque já o foi, só resta um jogo,
um cerebralismo, um capricho, um arbítrio do poeta, que se esforça em
procurar formas novas, dando um ritmo musical, equívoco, recorrendo a
figuras gramaticais, que transformam a literatura em algo extravagante,
como a metáfora, a alegoria de coisas brevíssimas.
Temos como exemplo o Seiscentismo, também chamado
Marinismo, Gongorismo e Barroco, em que o poeta mais representativo
deste século e o mais inventor dessas fórmulas foi Giambattista Marino.
Era um estilo grandioso, extraordinário, extravagante, onde o que
interessa é o capricho das formas, o objeto é maravilhar o visitante.
Temos estes quatro nomes para designar este século.
Como exemplo de suas palavras: para exprimir a dor, diziam
“aborti di dolore”;35 outro dizia que a caneta e o papel eram “faccio
strale de la penna e campo il foglio”.36 Isto tudo não é normal, sereno,

35
“abortos de dor”
36
“da pena faço flecha e campo a folha”
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 163

íntimo. Uma mulher antipática era chamada “uno scoglio di superbo


orgoglio”.37 Como no século XVII há uma guerra, um poeta marinista,
querendo dizer algo de novo, para dizer que precisavam de armas e
canhões, disse “sudate, o fochi a prepar metalli”.38 E para concluir os
versos, para dizer o que foi a literatura barroca, os versos de Marino, que
com eles define a função do poeta, qual deva ser a arte: “è del poeta il fin
la meraviglia: chi non sa far stupir, vada alla striglia”.39
Qual era a poética do século XVII? A maravilha. Mas isso não
é poesia, pois faltam sentimentos, razões, ideais, nobreza. É considerada
um meio qualquer para exprimir a maravilha. A preocupação do artista
não é a dele mesmo, mas a dos leitores. Aonde chega este lema do século
XVII? Chega a Giuseppe Artale, a loucura de um escritor que queria
considerar a poesia só um meio de estupefação:

Che ‘l crin se è un Tago e son due soli i lumi,


prodigio tal non rimirò natura
bagnar coi soli e rasciugar coi fiumi.40

Imagina que Madalena tivesse os cabelos loiros, comparados


a um rio, então, sendo este amarelo, porque corre na areia e seus dois
olhos são dois sóis, milagre tal nunca a natureza pode ver: molhava os
pés de Cristo com o sol e secava-se com o rio (silogismo).
O maior destes poetas foi Marino, que nasceu em 1569 e
morreu em 1625. Cem anos antes, em 1469, nascia Machiavelli, o maior
pensamento italiano, e agora este que brinca. Houve uma infinidade de
marinistas: Giuseppe Artale, Girolamo Preti, G. Fontanella e Claudio
Achillini. A poesia deles é toda cheia de metáforas, de conceitos
abstratos, quase caprichos da inteligência. De notável possuem apenas a
capacidade musical de representar bem a sensualidade.
Há também os clássicos, isto é, os que tentaram imitar os
clássicos com pouca eficácia: Vincenzo da Filicaia, Francesco Redi,
Gabriello Chiabrera, Fulvio Testi. Eles reagem ao Marinismo.
Francesco Redi era um médico e escreveu I trionfi di Bacco
in Toscana, que descreve Baco correndo pelos campos, bebendo para
escolher qual vinho é o melhor. Então acontece que, apesar de ser um
deus, embebeda-se, e por fim vê uma mulher, Ariana. São quinhentos
37
“um recife de soberbo orgulho”
38
“suem, oh fogos, a preparar metais”
39
“o objetivo do poeta é a maravilha; quem não souber causar maravilha, vá se lixar”
40
Que a crina se é um Tejo e são dois sóis os lumes, / Prodígio tal não admirou a
natureza / Lavar com os sóis e enxugar com os rios.
Bruno Enei
164 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

versos: então andava nessa sensualidade pelo vinho e acaba com o vinho
do Monte Pulciano.

Giambattista Marino (1569-1625)

Obras de Marino: La lira, La galeria, La sampogna, L’Adone.


L’Adone (1623) faz com que ficasse o poeta triunfal da Europa. É
um poema de vinte cantos e quarenta mil versos, que esse abençoado
escreveu sobre o episódio tão famoso da mitologia grega. Adônis
amava Vênus e, mordido por um porco, morre. Baseia-se nisso para
fazer quarenta mil cantos, todos cheios de capacidade, como as
cinquenta oitavas em que descreve a morte de um rouxinol. Sua arte
em ir atrás do canto dele aí está, mas o perigo de estupefação, essa sua
tentação de querer maravilhar o leitor. Teve uma enorme importância.
Quem deve muito a ele são os poetas contemporâneos italianos,
como Ungaretti,41 Quasimodo,42 Onofri, poetas que ainda vivem e
que, para fazer uma reação a d’Annunzio, voltaram ao Marinismo, e
nessa procura do extraordinário souberam achar aquela fraqueza que é
própria da poesia contramarinista italiana.
La sampogna é uma obra clássica, sulcada de sensualismo e
musicalidade. La galeria é formada de poesias, madrigais, sonetos,
em que, com sua habilidade, descreve suas impressões de pintura, etc.,
inspiradas por outras manifestações de arte.
A literatura italiana do século XVII não foi somente
sensualidade e musicalidade e Marinismo num esforço literário,
capricho linguístico, como apêndices da literatura do século XVI.
Não foi só isso. Houve no século XVII umas obras, uns escritores
que merecem o nosso apreço e que ainda hoje vibram não só na
arte, mas como puros sentimentos, idealismo, beleza. O século XVII
poeticamente não foi notável, porque teve um grande defeito de
origem: era excessivamente literário. É grande quando surge sobre a
suavidade, sobre o sentimento, e esta literatura, a não ser a suavidade
e sentimento, só pensou em criar figuras linguísticas, o que era prova
de vacuidade, de pobreza. Seus escritores nada mais são do que
apêndices do espírito externo da Renascença, isto é, eles pensavam
que a prosa do século XVI, a obra da arte, deveria ser não perfeição e
41
Giuseppe Ungaretti (1888-1970).
42
Salvatore Quasimodo (1901-1968).
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 165

equilíbrio, mas desequilíbrio, equidade de engenho, deveria ser coisa


surpreendente.
E, naturalmente, a verdadeira arte e a poesia sempre têm
algo de melancólico. A obra da arte sempre é de uma beleza que
não é serena, otimista, intelectual. As verdadeiras belezas são essas,
epicúrias, felizes, devem ter algo delicado no rosto ou na linguagem
do poeta. Porém, os do século XVII abusam de tudo isso. Mas um
aspecto da literatura do século XVII foi grande: a prosa. Nela a
literatura soube dar grandes coisas: Galileo Galilei e Paolo Sarpi.

Galileo Galilei (1564-1642)

Nasceu em Pisa, em 1564, e faleceu em 1642. Ele foi vítima


da cultura e da ciência europeias quando sentia a verdade das teorias,
afirmando no campo da ciência aqueles valores que já na literatura
viveu. É o símbolo da ciência, da experiência. Não deve, segundo ele,
o indivíduo crer, mas observar, viver espiritualmente e através da vida,
da experiência, deve chegar às leis, à fé. É o homem que se põe diante
do céu diretamente e não com os olhos de Aristóteles, da Bíblia, da
Teologia. O elemento natural nasce com o anseio, com a análise, então
se põe diante do firmamento e vê que a Terra não é imóvel, mas o Sol
é imóvel, e essa visão nova é o ponto de saída para as descobertas de
Newton, com os seus princípios.
A maior amargura de Galilei foi o processo que teve depois
de 1632, pela religião. Era muito católico, e sua filha, Maria Celeste,
era freira. Ele acreditava na religião, mas no campo teológico. Então
sofreu seu processo, que o deixou amargo, e depois da última inquisição,
disse “Eppure si muove” (apesar de tudo isso, a Terra se move). Nesta
inquisição teve de retratar todas as suas ideias e princípios. Dever retratar
uma verdade, dizendo que não era verdade o que sabia ser verdade, ele
que via que a Terra se move, que os astros pertenciam ao universo, que o
tempo, a gravidade, que tudo aquilo não tinha nada a ver com a religião,
ele teve de retirar tudo o que disse.
Obras: Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo, entre
outras.
Era toscano, então escreveu esse diálogo, e faz como Sócrates,
afirma suas verdades através de uma conversa. É socrático, alcança a
verdade através da discussão. Nesta obra discutem três personagens:
Bruno Enei
166 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Simplicio, Sagredo e Salviati, acerca dos dois máximos sistemas,


o ptolemaico e o copernical. Salviati representa Galilei, a favor do
ptolemaico; Sagredo é simpatizante do copernical e equilibra os dois
contrários. Simplicio é ptolemaico, de Aristóteles.
O problema é de pôr em evidência que Deus revela-se através
dos escritores num sentido moral e através da ciência e da natureza no
sentido físico. Ao papa cabe interpretar a Bíblia pelo que se refere ao
espírito, e ao cientista cabe analisar a natureza para chegar às leis de
dinâmica da natureza.
Galilei dizia: “ipse dixit” (Aristóteles disse). Em vez, levou
todos os professores debaixo da torre de Pisa. O que ele quer pôr em
evidência é a distinção entre Teologia e Ciência. Galilei é o fundador da
ciência objetiva, analítica, baseada na experiência. Se não houvesse posto
esse princípio em evidência, que só olhando a natureza é que podemos
descobrir as leis dela, não poderíamos ter chegado ao que chegamos até
hoje. A religião não tem nada a ver com isso.
Nos últimos anos, ficou cego, na vila de Arceti. E a sua filha
lutava em sua alma entre a obediência à Igreja e o amor ao pai.

Paolo Sarpi (1552-1623)

É também um frei, mas é um daqueles padres sérios, objetivos,


estudiosos, humanizados, que querem a realidade. Escreveu uma obra
histórica, que é um monumento: Istoria del Concilio di Trento, na qual
tem a coragem de dizer que a Contrarreforma da Igreja representou um
regresso, porque a Igreja só pensou em defender todos os pontos que
Lutero pôs em evidência.
Depois de 1517, ele via na atitude da Igreja uma simples defesa
política. Isso é importante, porque nele, além do problema político, ele
vê na atitude da Igreja algo que prejudicará a Itália no sentido político,
fazendo com que se desinteressassem da política, fazendo com que
se tornassem hipócritas. Foi um continuador de Machiavelli. Expõe
situações e sabe concluir.
Temos ainda no século XVII o melodrama, o drama transformado
em música. Claudio Monteverdi, esse músico que, difundindo na Europa
a música de câmara, cheia dessa elegia, baseada no contrabbasso, sereno,
aéreo, cheio de melodia, que ainda hoje se faz em Vivaldi. Também a
comédia de arte, que a Itália criou como seu particular gênero dramático,
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 167

faz-se na base de um sketch, em que um homem inventa um assunto e


confia aos atores. Um faz o empregado, outro, o namorado, etc. Chama-se
le maschere, como o arlequino, o hipócrita e todos os outros atores.
Mas Carlo Goldoni quer acabar com a comédia de arte, porque
não sai daquilo, os personagens são sempre os mesmos; em vez, o drama
deve ser a representação do homem, da vida real.

Pietro Metastasio – poeta da Arcádia


(1698-1782)

Desse mundo da Arcádia, caracterizado por um sentido de


graça e de delicadeza que se move numa tonalidade melancólica
e docemente morbosa, assim disposta por aqueles motivos de
sensibilidade e de volúpia onde nunca se chega à tragédia e sempre
se vive numa atmosfera de devaneio, dessa poesia arcádica que é
a imagem da expressão de uma particular espiritualidade e de uma
particular humanidade que se manifestou nos primeiros anos do século
XVIII, foram muitos os poetas e muitas as obras em que se reflete essa
sensiblerie feminina, nervosa, musical, feita mais de caprichos do que
de verdadeiros sentimentos.
E não seria inútil lembrar que a Arcádia tem certas atitudes às
vezes hiperbólicas e exageradas, também porque ela nasceu como uma
reação a um gosto, a uma mentalidade e a uma retórica da poesia, que
é aquela do século XVII. Parece que ao exagero de uma intenção de
reação correspondia muitas vezes o exagero da realização, que se torna
maneira nos poetas medíocres. Mas a Arcádia tem seus valores positivos
e inegáveis, não somente porque reage ao Barroco, mas porque nos
seus melhores poetas soube verdadeiramente exprimir aquele desejo
de simplicidade, de ingenuidade e de clareza que são os caracteres de
uma idade feliz, como foi a primeira metade do século XVIII, antes
que os ideólogos franceses e os escritores da Enciclopédia lançassem
ideias e ideais que mais tarde, ao cair do século, determinariam aquela
trágica transformação da França e da Europa, jogando uma sombra de
morte sobre a alegria da aurora do mesmo século.
De bem outros teatros conheceremos os dramas, os atores e as
vítimas, depois de 1789, lembrando os atores e as atrizes da primeira
metade desse século, quando floresceu justamente a poesia da Arcádia.
Bruno Enei
168 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

E se Giovanni Battista Zappi43 foi o inzuccheratissimo poeta daqueles


sonetos que justamente mereceram a crítica mordaz de Francesco
De Sanctis, se o fundador da Arcádia foi um poeta medíocre, cujos
merecimentos não vão além da grande admiração que ele tinha pelos
clássicos e do fato de ter sido ele inicialmente o educador do maior
poeta da Arcádia, devemos, porém, acrescentar que poetas houve que
souberam com uma musicalidade tênue e delicada, com uma atitude
psicológica sincera e solidária, souberam interpretar esse mundo de sonho
e de ilusão, essa euforia de gentileza e de devaneio, que é próprio da
sociedade e da humanidade daquele então. Porque devemos nos guardar
de dar à Arcádia uma interpretação exclusivamente literária, dizendo
que ela surgiu literariamente a uma literatura barroca. É uma reação
também humana e espiritual, que não se vê representada por aquele estilo
excessivamente luminoso e fulgurante do século XVII. É uma poesia que
reflete uma humanidade espiritualmente despida de graves problemas,
mas dotada de uma ternura e de um desejo de paisagens mais simples
e mais delicadas.
Dessa poesia e dessa espiritualidade, o intérprete mais ilustre,
o intérprete mais íntimo, aquele que soube verdadeiramente colocá-la
em ritmos e imagens, foi Pietro Metastasio: um poeta que vai além da
literatura italiana, para ser o poeta de um período da Europa, tanto assim
que de 1730 a 1782, durante cinquenta e dois anos, ele viveu na serena,
burguesa, meiga Viena de Carlos VI e de Maria Teresa.
Foi de Viena que se espalharam para a Europa as canzonette, as
ariette e os melodrammi de Pietro Metastasio. Curioso o destino deste
poeta. Nascido em 1698 em Roma, com o nome de Pietro Trapassi, logo
em seguida, pela sua beleza, pela sua delicadeza e pela sua precocidade,
foi justamente Gianvincenzo Gravina44 quem o recolheu e quem lhe deu as
primeiras diretrizes no campo da cultura e da produção literária. E como
Gravina era um estudioso e um admirador da literatura grega e latina,
assim ele pensava que o Metastasio pudesse ser o grande restaurador desse
seu gosto clássico. Por isso, num primeiro momento, Pietro Metastasio
foi mandado estudar na Calábria, junto a grandes e ilustres mestres da
literatura clássica. Mas foi uma decepção para Gravina a sempre mais
evidente inclinação do seu discípulo para os autores proibiti e que seriam
os seus preferidos em vez.
Assim, quando em 1718 morreu o Gravina, que era também
um advogado, Pietro Metastasio abandonou o Direito, abandonou os

43
Giovanni Battista Zappi (1667-1710).
44
(1664-1718)
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 169

estudos clássicos e se deu à literatura profunda e íntima dos dramas


pastorais dos séculos XV e XVI, da Aminta de Tasso, do Pastor Fido de
Guarini. Transformou a sua educação. E como Metastasio sempre teve
sorte na sua vida, a completar esta sua educação pastoral, bucólica,
delicada, contribuiu não pouco uma das mais famosas mulheres e
atrizes daquela idade: Marianna Bulgarelli, que Metastasio muito
oportunamente sempre chamou de Mariannina.
Foi a Bulgarelli que ensinou a música a Pietro Metastasio.
Foi ela que lhe fez conhecer a intimidade dos salotti, foi ela que lhe
fez conhecer os segredos e os abandonos dos canapés, foi ela que lhe
fez conhecer o teatro. Assim Metastasio completa sua educação e se
prepara, por instinto, por cultura e por um conhecimento direto da
música, a ser o autêntico intérprete da espiritualidade arcádica.
Em 1730, ele é convidado a ir como poeta cesareo45 a Viena,
e lá permanecerá até seus últimos dias, morrendo com oitenta e quatro
anos e fechando com a sua atividade poética uma idade que poderíamos
considerar como um parêntese na história dramática e frequentemente
sangrenta da Europa.
Em 1721, Metastasio escreveu uma azione que foi o início de
sua brilhante carreira de poeta. Essa azione é Gli orti esperidi, onde
atuou como prima donna a sua Mariannina. Em 1724, Metastasio
escreveu o seu primeiro melodrama, intitulado Didone abbandonata.
Depois desta data, as ariette, as canzonette, os melodrammi se
sucederam, de ano em ano, formando uma produção portentosa, que
foi admirada não somente por críticos dispostos a compreender a alma
arcádica, mas também por críticos ideologicamente contrários a essa
sensibilidade, por críticos e pensadores que são considerados como
revolucionários e preparadores da Revolução Francesa de 1789.
Voltaire, Diderot, Rousseau foram admiradores sinceros
da poesia de Metastasio. Admiraram nele essa clareza límpida, essa
simplicidade espontânea, essa musicalidade arcana que representam a
alma da Europa dos primeiros anos do século XVIII. É por isso que,
quando se fala em Arcádia, não se fala em um movimento literário
localizado em Roma, onde verdadeiramente esse movimento surgiu
em 1690, mas se fala de uma realidade italiana e, mais ainda, europeia.
Em todos os teatros da época, na Itália e na Europa, Metastasio
representou e cantou os seus melodramas, fascinando uma assistência
que via naqueles versos e naqueles enredos a própria alma e a própria
vida.

45
Poeta dos reis.
Bruno Enei
170 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Metastasio é o poeta que, com os seus vinte e seis melodramas,


fez aqueles milagres poéticos, literários, de difundir a palavra com a
música, e a música com a palavra, encurtando os versos, reduzindo
os personagens, fazendo prevalecer a mulher ao homem, dando ao
cenário algo de mágico, de íntimo, de sentimental. Nunca é o tema
heroico que prevalece na poesia de Metastasio. Nunca é o tema
dramático que o preocupa, nunca é um problema ou uma dúvida que o
amargura. Em Metastasio é justamente a incerteza sem dramaticidade
nenhuma, é justamente a conciliação num plano sentimental e emotivo
que caracterizam os seus melodramas. Uma falta de propósitos, uma
incapacidade de resolver-se, um querer e não querer, um partir e um
não partir, um si e um no: entre esses contrastes se move a palavra
doce, a música aérea, o torpor lânguido da inspiração de Metastasio.
E mais do que lembrar o título dos seus melodramas (dos quais não
nos poderíamos esquecer os maiores, como: Didone abbandonata,
L’Attilio Regolo, La clemenza di Tito, Achille in Sciro, Il Demofoonte,
L’Olimpiade), apraz-nos lembrar aqui umas de suas arietas para sentir
a sugestão ainda hoje extraordinária desse poeta.
Citarei, por exemplo, esta arieta de L’Olimpiade:46

Se cerca, se dice:
“L’amico dov’è?”.
“L’amico infelice”,
rispondi, “morì”.
Ah no! sì gran duolo
non darle per me:
rispondi ma solo:
“Piangendo partì”.
Che abisso di pene
lasciare il suo bene,
lasciarlo per sempre,
lasciarlo così!

Ou então, estes versos da Betulia Liberata:47

46
Se procura, se diz: / “O amigo, onde está?” / “O amigo infeliz”, / responde, “morreu”.
/ Ah, não! Tão grande dor / não lhe dês por mim: / responde, mas somente: / “Chorando
partiu”. / Que abismo de penas / Deixar o seu bem, / Deixá-lo para sempre, / Deixá-lo
assim!
47
Se Deus tu quiseres ver, / Olha-o em todo objeto; / Procura-o no teu peito, / E o
encontrarás contigo! / E se, onde Ele mora / Não entendestes ainda, / Confunde-me, se
puderes; / Dize-me, onde Ele não está.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 171

Se Dio vedertu vuoi,


Guardalo in ogni oggetto;
Cercalo nel tuo petto,
Lo troverai con te!
E se, dov’Ei dimora
Non intendesti ancora,
Confondimi, se puoi;
Dimmi, dov’Ei non è.

De Didone abbandonata, acho que a imagem mais característica


esteja na seguinte arieta, onde Eneias, junto ao mar, não sabe decidir-se,
abandonando a sua Didone e obedecendo às ordens divinas:48

Se resto sul lido,


Se sciolgo le vele,
Infido, crudele
Mi sento chiamar.
E intanto, confuso
Nel dubbio funesto,
Non parto, non resto,
Ma provo il martire
Che avrei nel partire,
Che avrei nel restar.

A Arcádia com a poesia de Pietro Metastasio adquire a sua


importância histórica, o seu significado no desenvolvimento da literatura
italiana, e se pode justamente achar esse valor histórico da Arcádia no
fato de que ela representa uma superação da literatura do Marinismo.
Volta a firmar-se com ela uma aspiração à simplicidade e à clareza, que
sempre representam na história da poesia os momentos iniciais de uma
afirmação.
Sem a Arcádia, seria difícil entender Carlo Goldoni. A essa
literatura da Arcádia logo sucederão uma crítica mais austera e moral,
uma historiografia mais substancial e profunda, um programa de
renovações e de idealismo mais urgentes. A atmosfera da Revolução
Francesa queimará essa poesia fácil e despreocupada da Arcádia. Virá,
então, a literatura italiana da segunda metade do século XVIII.
48
Se fico sobre o lido, / Se solto as velas, / Infido, cruel / Me sinto chamar. / Enquanto
isso, confuso / Na dúvida funesta, / Não parto, não fico, / Mas provo o martírio / Que
teria ao partir, / Que teria ao ficar.
Bruno Enei
172 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

E aí Carlo Goldoni fixará o seu objetivo numa visão pictórica,


mais ligada à realidade de todos os dias, Giuseppe Parini saberá infundir
nessa realidade uma ânsia moral e renovadora de cristianismo e, por
último, Vittorio Alfieri colocará essa realidade nas suas tragédias e
os seus heróis tingir-se-ão de sangue pelos ideais da liberdade, da
nacionalidade.
Mas a Arcádia resta, apesar de tudo, resta sem ser alcançada
ou destruída pela sede revolucionária de 1789, sem ser negada por essa
literatura mais concreta, mais austera e mais trágica da literatura italiana
da segunda metade do século XVIII. Aquele mundo sempre fica como um
oásis de encantamento, eternizado no ritmo, na musicalidade, na ternura
fácil, mas clara e compreensível da grande arte de Pietro Metastasio.

A LITERATURA ITALIANA NO
SÉCULO XVIII
Com o século XVIII nós nos encontramos diante de uma nova
espiritualidade, diante de uma nova literatura, diante de novos métodos,
de novas acepções e atitudes na literatura italiana. O século XVIII é um
século muito complexo, cheio de acontecimentos, de atitudes que, nas
sucessões do seu dinamismo, levam ao Romantismo italiano. Parece
que este século seja como um trait d’union entre o Humanismo e a
Renascença e o Romantismo. O Humanismo e a Renascença foram dois
movimento construtivos, realizadores, duas verdadeiras afirmações.
Também o Romantismo será uma grande afirmação. Qual a diferença
entre as três afirmações?
O Humanismo e a Renascença afirmam sobretudo a cultura, o
equilíbrio, a beleza, a serenidade, a perfeição. Uma aspiração cultural
num sentido de nostalgia, de saudade com o mundo clássico. Parece que
os estudiosos, eruditos, filósofos do século XV e XVI da Itália, depois
da Idade Média, em que os problemas foram outros, parece que todos
eles sentiram a necessidade de renovar o ar, voltando aos temas e formas
do mundo clássico; através de meditação, de leitura, de uma secreta
competição eles quiseram renovar o mundo com um novo classicismo.
O Romantismo italiano foi uma afirmação no campo do
sentimento, da popularidade, da dor, da concepção de vida baseada na
vida, na amargura, entre o choque do real e do ideal; foi o contrário,
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 173

numa certa maneira, do Humanismo e Renascença, num certo sentido,


porque, se aqueles dois foram só cultura e racionalismo, este foi apenas
fantasia e sentimento.
Como é que se chega a essas duas bases positivas da história da
literatura italiana? Através de uma crise do Humanismo e Renascença,
representada pelo século XVIII. Então o século XVIII tem sua imensa
importância, é o século trait d’union entre os dois grandes movimentos
positivos. Veremos as várias atitudes desse século, que se abre com o
movimento da Arcádia e sucessivamente se transforma e fica mais
profundo, com o Iluminismo, com uma atitude de História que cria uma
nova visão, com Muratori e Vico, diante de uns escritores que, através de
reformas polêmicas e de uma nova atitude crítica, prepararam a segunda
metade do século XVIII, que é o século em que essas várias atitudes se
transformam em verdadeiras afirmações de arte: primeiro com Goldoni,
que é o poeta que volta nas comédias a descrever a realidade, dando à
literatura aquilo que lhe é próprio, isto é, inspiração na realidade. O realismo
volta nas suas comédias: não é apenas o poeta que renova a comédia, mas
o escritor que transforma todo o espírito da literatura italiana, fazendo
ver a necessidade de inspirar-se na realidade. Suas comédias são a visão
da vida e não da imaginação, fantasia e abstratismo.
Mais tarde ainda, a literatura se torna mais profunda, mais séria,
mais austera, mas tudo isso devido ao trabalho de Goldoni: com a obra de
Parini, o poeta italiano que vê a realidade através da amargura, da sátira,
da insatisfação com ideais cristãos, que vê contraditos na realidade.
Mais tarde ainda, com o realismo sereno e pictórico de Goldoni,
com o realismo moral e amargo de Parini, torna-se um realismo
desesperado e civil, trágico, heroico, através das tragédias de Alfieri, que
morre justamente em 1803, quando se fecha o século XVIII.
Estudaremos então o século XVIII em função desses três
escritores: a comédia com Goldoni, a sátira de Parini e a tragédia de
Alfieri, que são o coroamento de todo esse trabalho de elaboração que
representa a primeira metade do século XVIII. É evidente que podemos
dividir o século XVIII em duas partes: a primeira representada por essas
tentativas, por essa renovação lenta, mas firme, por essa força autóctone
e heterônoma; e a segunda parte, a positiva, em que esses três escritores
põem o leitor diante de uma literatura que não tem nada mais com a do
século XVII, tão abstrata, barroca, caprichosa.
Como começa esse movimento, essa renovação? Começa com a
consciência que os escritores italianos têm da decadência da literatura. Os
escritores italianos no fim do século XVII e nos primeiros anos do século
XVIII sentem a vacuidade da literatura, sentem que não está ligada à
Bruno Enei
174 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

realidade, que não está dizendo nada, sentem que é uma literatura abstrata,
sem conteúdo, sem sentimento, sem valor, sem humanismo. Sentem que
é supérflua, é inútil, não tem uma razão de ser. Eles gostariam que ela
fosse a acepção da vida, da realidade, dos anseios humanos, e em vez, é
barroca. Então se propuseram os moços dos últimos vinte anos do século
XVII e os moços dos primeiros vinte anos do século XVIII renovar a
literatura italiana. Pelo menos tiveram a consciência, a convicção que
todo o século estava errado. Isso é uma grande coisa, porque, quando
um povo sabe que está errado, é algo bom. Então tiveram a certeza que
aquele século não era literatura e propuseram de “combattere il cattivo
gusto ovumque esso s’annidi”.49
E o que era “cattivo gusto”? Era o Barroco, o Marinismo, o
Seiscentismo. Essas alegorias, metáforas e grandiosidades, o desejo
de surpreender. O que propuseram fazer? Substituir tudo isso pela
ingenuidade, simplicidade e clareza. Quais os objetivos da renovação
nos primeiros quarenta anos do século XVIII? Serem simples, claros,
ingênuos, naturais, acabar com as iluminações e dar, em vez, à palavra
um tom de penumbra, de sombra, um ritmo melancólico, íntimo, até
sentimental. Quer dizer que, quanto eram grandiosos os outros, tanto
queriam ser simples estes. É uma rebelião a essa saturação da imaginação,
do Barroco. E para isso eles criaram uma escola, uma academia, um
movimento chamado Arcádia. Como a criaram?
Em 1690, dez anos antes do fim do século XVII, havia um grupo
de catorze escritores que costumava reunir-se em Roma, no palácio da
rainha da Suécia, Maria Cristina, que renunciou ao trono e foi morar em
Roma, onde reunia em torno de si os homens cultos da Itália central,
que lá iam ler as obras estrangeiras. E tudo isso numa intimidade, numa
amizade. E quando ela morre em 1689, um ano depois, esses catorze
escritores continuaram a reunir-se, lendo cada um as próprias obras,
poesias, desabafando-se um ao outro. E num certo momento um desses
poetas saiu-se com uma expressão de beleza, pois, quando um amigo
seu estava lendo uma poesia, ele disse: “ei mi sembra di vivere in
l’Arcadia”.
Assim surgiu o desejo de fundar uma academia com o nome de
Arcádia, em que se exprimisse tudo numa atitude espiritual. Não foi por
acaso que foi escolhido este nome como de batismo dessa literatura do
século XVII. Eles nada mais queriam do que a simplicidade, a clareza, e
quando é que os homens viveram em simplicidade, em clareza, senão na
Arcádia? No livro VII da Eneida, com o rei Evandro e seu filho Palante,

49
Combater o péssimo gosto onde quer que se encontre.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 175

quando Eneias canta suas misérias e sua dor e vai com os deuses para uma
terra onde fundará uma cidade que deverá vingar a destruição de Troia, o
filho de Evandro pede licença para combater com Eneias e morre. Palante
vem de um mundo de pastores, de primitivos, de simples, vivendo do
que a natureza oferecia, afastado das lutas da idade, como num paraíso
ideal, a Arcádia. Como o mundo do iluminismo de Rousseau. Então, daí
fundou-se a Arcádia, as leis da Academia, que foram escritas em latim,
não o de luxo, de Cícero, Homero, Tito Lívio, mas o dos primitivos, das
doze tábuas romanas, tudo simples, e quem escreveu isso foi o poeta
Gianvincenzo Gravina, um enamorado do mundo clássico.
Os poetas que fundaram a Academia se chamavam pastores,
isto é, simples guiadores de ovelhas. O chefe, o patrono deles, era
naturalmente “il grande pastor dei pastori: Gesù Bambino”, não o da
cruz, que é muito trágico, mas o menino loiro e simples. E nenhum dos
poetas tem o próprio nome, pois em geral adotavam nomes gregos, tendo
muito gosto em escolhê-los. O maior deles, Pietro Trapassi, chamou-se
Metastasio.
Essa Arcádia difundiu-se em toda a Itália. Não é um fenômeno
romano, mas italiano. Em todos os lugares tomava nome diferente, como
em Perugia, onde se chamava Frontone. Esse é o perigo da Arcádia,
tanto que transformou tudo em amorzinhos e as mulheres se tornam
excessivamente etéreas e os homens efeminados, num certo sentido. Daí
a revolução de Alfieri, que não apenas põe o homem como herói, mas
também as mulheres masculinizam-se, como Nicol, Myrra, Clitemnestra.
Mas isto tudo se torna muito choroso, e o poeta que se excedeu nesse
sentido é Giovanni Battista Zappi, que foi tão criticado por De Sanctis.
Caiu então a literatura nesse absurdo, e ficou chata, num sensabor,
numa simplicidade excessivamente tola, sem vida, sem aspirações, sem
problemas, sem véu de sombras, sem amarguras, sem nada de triste, como
é a realidade. É muito fora do mundo essa atmosfera. Porém, a Arcádia
levou tudo que era ruim do século XVII e criou três grandes coisas que
são notáveis, isto é, le ariette, il melodramma e la canzonetta.
Le ariette são refrãos, leitmotifs, seis ou sete versos curtos em
que os poetas sabiam fazer o a solo no melodrama, esses momentos a
sós, que exprimiam tudo e são a alma do melodrama, cantados em geral
pela mulher. Il melodramma é uma continuação de Petrarca, é algo de
muito mais breve, de onde nascerá a canção de hoje. La canzonetta é a
criação maior da Arcádia, onde a palavra se transforma em música e a
música, um conjunto de palavras. Os poetas sabiam que o melodrama
escrito deveria ser cantado, com o ritmo do poeta e do músico. O maior
escritor foi Pietro Metastasio.
Bruno Enei
176 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

A historiografia no século XVIII

Um segundo momento da literatura italiana é representado


pela historiografia. Nele não podemos esquecer Ludovico Muratori,
Girolamo Tiraboschi, Pietro Giannone e, sobretudo, aquele a quem
a cultura contemporânea deve o novo conceito de estética, que é um
filósofo que tem uma grande importância de ter, ante literam, posto em
evidência as falhas de uma concepção racionalista da vida. Esse filósofo
é Giambattista Vico.
A este ponto devemos perguntar o que significa historiografia no
século XVIII. Na Idade Média houve muitas obras de História e grandes
escritores, como Compagni, Villani, entre outros. Mas qual era o caráter
da História na Idade Média? É, sobretudo, teologia, isto é, concebida
como uma narração da providência; a História torna-se uma exaltação a
Deus. Há uma visão não real, não concreta, não crítica dos acontecimentos
humanos, pois a História adquire um valor de apologia.
Há também uma historiografia no Humanismo italiano, cujo maior
representante é Machiavelli, e a historiografia com ele adquire um caráter
pragmático, isto é, ele vê a História como uma sequência de acontecimentos
que devem servir de ensinamentos às nossas ações. Apresenta-se como
um conjunto de normas, de princípios, de conclusões que nós devemos
aplicar. Ela é vista subjetivamente, ela serve para ammaestrare,50 é o
passado que criticamos, para, na base dele, continuar.
Em vez, qual é o caráter da História no século XVIII? A
História aqui tem um caráter de erudição, e isso é importante. O que
quer dizer? O caráter de erudição quer dizer que Vico procurou recolher
e interpretar os documentos e apresentar tudo o que foi escrito sobre
acontecimentos militares, sobre a política, sobre os governos, e os reúne
num armazém, em bibliotecas, em anais, apresentando-os na melhor
versão e objetividade.
Então, tem um caráter científico, o de exclusivamente recolher.
Não é criticar, subjetivizar, idealizar numa imagem, mas exclusivamente
esforço de estudo, de procura, de recolher. Aí então temos homens como
Muratori, que viviam em bibliotecas, procurando tudo acerca dos outros.
Ele teve uma importância enorme, pois, além de serem autênticos nesse
modo, no século XVIII podemos ter uma visão geral e objetiva da
Itália e Europa, pois essas obras chegaram no momento em que a Itália
estava despertando espiritualmente, no momento em que abandonava o
Barroco, em que deixava de cantar metastasicamente, em que estava para
50
Ensinar, amestrar.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 177

renovar-se com Goldoni, Parini e Alfieri, no momento em que no século


XIX procurava-se alcançar a independência; aí está todo o passado
italiano, acumulado, escolhido por esses grandes historiadores.
Veja-se a providência da inteligência de um povo, pois tudo isso
significa a insurreição desse povo. Num aspecto geral, os historiadores
desta idade pesquisaram sobretudo a Idade Média: aqueles reis, as
invasões, a vida comercial e mercantil, a vida dos marinheiros, a vida
no Oriente, o momento financeiro e a amargura e tristeza pela divisão
da Itália. Há um sentido interessantíssimo: o que significa esse desejo de
ir-se procurar na Idade Média? Nada mais do que o prenúncio de uma
atitude sentimental para com o passado, que foi a fantasia, o sentimento, o
misticismo, o idealismo transcendente. Significa o surgir do Romantismo,
que é justamente da França, Espanha, Portugal, Inglaterra, Alemanha
e Itália, que se baseia no conceito que a arte é essencialmente tristeza,
choque entre o real e o ideal.
Então, toda essa historiografia que representa o passado cheio de
tintas amargas, de dor, de tristeza, que apresenta um mundo de paixões,
tudo isso vai despertando esse sentimento na alma europeia que prepara
os italianos a entender o valor da Renascença, o drama e o suicídio, que
são os temas do Romantismo do século XIX. Mas na Alemanha essa
simpatia com a Idade Média alcança o absurdo, pois sempre tiveram
antipatia pelos romanos, que para eles eram conquistadores; em vez, os
alemães achavam a própria força nos Nibelungen e em Siegfried, por
isso os alemães valorizarão Grimm, Lessing, Schlegel, Goethe, que
propagaram o grande romantismo de Dante.
A historiografia no século XVIII, além de ter o caráter medieval,
teve também, com Giannone, um valor leigo, civil, pois ele, fazendo
a Istoria civile del regno di Napoli, é o escritor que procura pôr uma
distinção clara entre a Igreja e o Estado. Já havia sido de Dante essa
distinção, que é interessante para a Itália, para as suas guerras. E o maior
dos historiadores foi Vico.
Muratori é autor de Antiquitates italicae medii aevi e Annali.
Tiraboschi é autor da Storia della letteratura italiana, porque recolhe
edições, biografias, histórias em torno das obras italianas, das origens até
o século XVIII. Esta obra não tem valor crítico, porém, para consultar
sobre algum poeta. Isso é importante para as críticas que serão feitas
sobre a literatura italiana, pois aí surgem seus valores estéticos. Giannone,
como foi dito acima, é autor da Istoria civile del regno di Napoli. Vico é
o pai do idealismo italiano; quando se fala nele, pensa-se em De Sanctis,
que é o maior crítico do século XIX. Fala-se do idealismo italiano, tendo
como seus seguidores Croce e Gentile.
Bruno Enei
178 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Vico é o fundador da estética, do conceito novo de História e


de uma nova visão da História. Escreveu Principii di una scienza nuova
d’intorno alla natura comune delle nazioni. Um dos seus conceitos
básicos é o famoso: “Gli uomini prima sentono senza avvertire, poi
avvertono con animo perturbato e commosso, infine riflettono con
mente pura”.51
É o princípio de dignidade, em que os homens então, antes de
mais nada, sentem sem prestar atenção; depois, percebendo com uma
alma turbada e comovida; e, por último, refletem com mente objetiva:
a infância, a mocidade, a maturidade; a inconsciência, a fantasia, a
inteligência. Num primeiro momento a inconsciência; a arte, a filosofia,
em seguida, respectivamente. A vida do homem é esse conjunto de tudo
isso, de três momentos, que Vico via como uma distinção cronológica,
como se não pudesse ser só um deles e não todos os três ao mesmo
tempo.
Os idealistas que vieram depois fizeram esse trabalho, pois
eles viram essa distinção não como cronológica, mas sob um ponto de
vista dialético, pois no homem sempre há esses três momentos, que se
acompanham. A distinção existe. Não é na idade, mas na dialética. É
o que acontece nos indivíduos, é o que acontece aos povos: primeiro
bárbaros, depois homéricos e, finalmente, civilizados.

A renovação da crítica literária italiana


no século XVIII

A crítica adquire justamente nos limiares do Romantismo um


sentido não tanto literário, fisiológico, quanto, em vez, civil e moral. O
escritor, o poeta, o livro que os críticos julgam é julgado pela sua função
pedagógica, pelo seu valor moral. Eles querem que os poetas digam
alguma coisa, que cantassem ideais, que a literatura sirva para renovar e
transformar os homens, a inculcar na alma do leitor sentimentos nobres
no sentido religioso e patriótico. Porque ele é que será o iniciador do
movimento que na Itália vai sob o nome de “non parole ma cose”.
Houve um período em que um crítico (De Sanctis) disse isto,
isto é, ideias, sentimentos que indiquem uma substância moral no
escritor. Esta crítica é bem coerente com esta renovação, na qual, um
51
“Os homens antes sentem sem perceber, depois percebem com ânimo perturbado e
comovido, enfim refletem com mente pura.”
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 179

pouco com a Arcádia e com a historiografia, se está realizando uma


atitude hostil à do século XVII e da primeira parte do século XVIII,
que foi muito abstrata, feminina, lânguida. Em vez, aqui se quer o
homem, quer-se ideias.
O maior crítico nesse sentido é considerado também um artista:
Giuseppe Baretti (1719-1789). Nasceu em Piemonte. Não teve estudos
regulares, mas tem “bom senso” e conhece o mundo. Viajou na Itália,
Turquia, Oriente, combateu e viveu na Inglaterra. A filosofia racionalista
de Hume ajudou a formação deste crítico, que baseia toda sua crítica
no “bom senso”, na moralidade e civismo da obra de arte. Seu jornal
tem o nome de La frusta letteraria, quer dizer, o chicote literário. Já
é evidente que não é uma obra serena que nós podemos julgar pelo
equilíbrio das opiniões, pela serenidade. Devemos julgá-la pelo tom
polêmico, exasperado e insatisfeito com que julga os escritores dos
séculos XVII e XVIII.
Ele os considera verdadeiros animais que merecem o chicote
de sua polêmica. Ele escreve esse jornal, assinando um pseudônimo
que é interessante: Aristarco Scannebue.52 É o açougueiro dos poetas,
é muito bonito. Imagina voltar da guerra com uma perna a menos. Vai
fixar-se num lugarejo onde tudo é amargo, triste, e isso põe em evidência
os aspectos de misantropia e as ideias para com os outros. Quer viver
numa solidão e quer fazê-la habitar apenas pelos homens de letras dos
séculos XVII e XVIII. Então, nessa obra ele imagina que um padre,
Zamberlano, dessa aldeia, fornecesse-lhe todos os dias livros novos,
que se vão publicando, e imagina lê-los.
Duas coisas são então importantes: 1. o valor da crítica de Baretti,
no sentido de procurar no escritor algo de humano, sério, pedagógico
e religioso, observando-se o ódio que ele tinha pelos escritores que
consideram as palavras sem sentido, como se fossem só ritmo, música, e
não fossem também honestidade; 2. o valor artístico de Baretti, que, pelo
seu caráter bizarro, singular, ele sabe dar ao leitor imaginário, Aristarco
Scannabue, que volta da guerra, que não é muito ilustrado e que viveu
na vida e quer que as obras sejam expressões da vida.
Tudo isto está preparando uma alma nova na literatura italiana,
esse período em que os poetas Manzoni, Foscoli e outros deverão
considerar a obra de arte como expressão do sentimento, de ideais.

52
Este vocábulo significa cortar o pescoço dos bois.
Bruno Enei
180 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Carlo Goldoni e a segunda parte do


século XVIII

Goldoni nasceu em Veneza, em 1707, e justamente por essa


razão, por ficar isolada no mar, ela é considerada como um teatro: falta
pouco para transformar aquela praça de San Marcos num verdadeiro
teatro, sobretudo ao pôr-do-sol, quando a laguna se endourece e as
senhoras saem na praça e vão ocupar as pequenas mesas que estão
nos bares. E falta pouco para que aplaudam, falta pouco para que se
transforme a praça num salão de dança, tanta é a familiaridade com
que se cumprimentam. Está cheia de turistas, é uma cidade cheia de
cores, que se nota ao ver os quadros de Tiziano. De forma que lá se
respira o teatro, o mundo lá é uma comédia. Não se sente a amargura,
a dificuldade da vida, e raros são os poetas de Veneza que a descrevem
sob um ponto de vista pessimista. Não se preocupam com problemas
universais, os pintores e escritores escrevem numa linguagem não
muito exigente, não muito clássica, como a florentina. Em Veneza
a palavra adquire uma certa cor, uma certa palpabilidade, parece
mórbida, musical, serena, e se transforma em paisagem. E é por isso
que lá, pela musicalidade do dialeto ou por outra razão, fato é que lá já
se nasce comediógrafo.
Então quer dizer que, com Goldoni, estamos diante de um
escritor que não apresenta nada de dramático. Com Ibsen ou Pirandello,
ficamos horrorizados diante das suas situações, que são desesperadas
e impensadas. Mas o mundo de Goldoni é um mundo sereno, cheio
de cor, tudo é gentil, é felicidade, é real, mas com um véu de ilusão.
Tudo parece real, mas numa visão de imagem, a realidade se sfuma53
no perfil da imagem.
Os personagens que são todos reais no café e no bar de Veneza,
Goldoni os toma como inspiração; entretanto, todos eles têm algo que
fica entre a realidade e a imagem. Reais, mas quase idealizados, ideais,
mas com algo de real. O homem fica mais bonito, a mulher é vista
através de uma superfície de água. Suas comédias são ainda quadros de
uma sociedade bonita, serena, confiante. Não aparece ainda o homem
desesperado do Romantismo, mas o homem real, burguês, que vive
uma vida comum.
A comédia de Goldoni apresenta-se sob dois aspectos: a de
caráter e a de ambiente.
Comédias de caráter: são aquelas em que Goldoni procura
53
De sfumare: nuançar, matizar, diminuir a intensidade da cor.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 181

representar um homem através do seu espírito, do seu caráter. É um


estudo que ele faz sobre os defeitos e as qualidades de um homem.
Uma das mais famosas é Le Bourru bienfaisant (é um homem que
parece uma besta, mas é um benfeitor). Goldoni consegue captar o
caráter sentimental de uma pessoa.
Comédias de ambiente: são suas melhores, nas quais representa
uma família, uma praia, um mercado, uma praça de Veneza, como
Mirandolina. Representa um lugar, o folclore, a humanidade. La
famiglia dell’antiquario, com cenas cômicas no interno dessa casa.
Então essas duas comédias têm uma grande importância porque são as
peças com as quais ele inicia a revolução no teatro.
Quando ele nasceu, havia na Itália a comédia de entrecho, a
improvisada e a de arte. A comédia de entrecho é baseada exclusivamente
numa complicação enorme de casos, muito ligada a Plauto e Terêncio;
é um romance imoral. A improvisada é a que o escritor inventava
sobre um assunto e o confiava à técnica do especialista e improvisador,
que fazia isso durante o espetáculo. A comédia de arte tem caráter
acadêmico, literário.
Goldoni faz sua revolução com a comédia de caráter e ambiente,
acabando com a artificialidade, com a tradição, com essa literatura, e
trouxe para o teatro a realidade, escrevendo por completo a comédia,
do último ao primeiro ato, e os atores devem decorar o que aprendem.
Ele fixa em atos, em partes, a sua comédia e a confia a uma companhia
de atores.
Isso transformou em parte a literatura francesa, porque, de
1762 a 1793, ele viveu em Paris, onde faz a mesma revolução na
comédia. Ele renovou a comédia e a literatura, e é o primeiro que dá
o que a literatura deve ter: um senso de realidade, de substância, de
experiência, de vivida e não de inventado, de fantasiado, de abstrato.
Deve ser a imagem de como o homem vive ou gostaria de viver, mas
não deve ser invenção.
A literatura volta à fibra de Dante, ao caráter de Petrarca,
ao mundo de Boccaccio, de escritores que, um com uma concepção
religiosa interpreta o mundo, o outro com um sentimento de nostalgia
descobria a alma, e o terceiro, que, com suas novelas, descobria, o
mundo. Deve-se, portanto, a Goldoni esta transformação. Uma obra
tal é Les memoires, que escreveu até 1798, e é bonito para ver quanto
passou e conhecer de onde tirou o assunto de suas comédias. Faleceu
em 1793.
Bruno Enei
182 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Giuseppe Parini (1729-1799)

Nasceu em Bosisio, na Itália setentrional, e morreu em Milão.


Era filho de agricultores, e por isso conheceu os duros trabalhos da
vida dos agricultores. O pai e a mãe trabalhavam nos campos, vivendo
apertados, e ele nunca viveu num ambiente de comodidade, de luxo.
Por isso, desde o início da vida sentiu o amor por uma natureza aberta,
sadia, e sentiu uma particular simpatia para com o trabalho e o dever
de exultar a honra, a honestidade, aquelas virtudes que são dos homens
que lutam na vida.
Depois dos anos de grupo, foi mandado estudar em Milão, num
colégio de padres, e uma tia, também agricultora, mas economicamente
em melhor posição que seus pais, ao morrer lhe deixou uma herança,
com a condição de se fazer padre. Então Parini, para poder estudar,
para obter essa herança, tornou-se padre: l’abate Parini. Isto não quer
dizer que não tivesse vocação, pois ele foi um exemplar sacerdote, mas
através de sua poesia é possível ver aspectos de um Humanismo que
são alheios ao clero, porque ele amou a vida, foi sensível à beleza, ao
trabalho, à liberdade, à cultura. Ele era completo, e como sacerdote foi
perfeito.
Em 1752, ele publicou suas primeiras poesias, Alcune poesie di
Ripano Eupilino (é um anagrama, pois Ripano vem de Parini e Eupilino
é o lago onde nasceu, Eupili). Seu nome pertenceu a uma academia
no século XVIII que era dos Trasformati, quer dizer que houve um
grupo de poetas, cujo representante é ele, que se sentiram renovados,
transformados entre uma tradição italiana que devia concluir e, em vez,
as ideias novas que vinham através da Revolução Francesa, através do
Iluminismo e Racionalismo. Entre uma e a outra temos os Trasformati,
que aceitam os conceitos novos de cultura, de lumière, e ao mesmo tempo
ficam fiéis a uma tradição clássica de equilíbrio italiano, um conjunto
de ideias e sentimentos novos, sentidos por uma educação tradicional
italiana, por um mundo de cultura, que na Itália são seculares.
Parini não é um revolucionário, não é somente aquela cultura
ateia, anárquica, mas um conjunto desses conceitos e sentimentos na
base de uma cultura cristã e tradicional italiana, que se liga a Dante e
Metastasio. Parini é o poeta do equilíbrio, está entre duas tendências, uma
nova e revolucionária e outra, passada, que não queria destruir. Em vez,
ele faz essa síntese entre o velho e o novo, num equilíbrio representado
pelas suas atitudes de equilíbrio profissional. É a encarnação de um
equilíbrio cultural, seja como professor, poeta ou homem. Ele sempre
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 183

foi e representou esse in medio esse virtus, lema aristotélico da virtude


no meio de dois extremos.
Entre 1754 e 1762, ele foi preceptor, junto a uma casa de nobres,
do príncipe Serbelloni. São os homens de cultura a quem cabe a educação
de um filho, e estes oito anos de vida de um Parini agricultor, que vem de
uma cidadezinha, que não é nobre, em contato com a sociedade, podem
ser considerados como o período fundamental de sua vida, porque é
justamente durante oito anos que ele tem possibilidade de conhecer a vida
da aristocracia italiana. Pode ver de viso como a nobreza era o contrário
do que deveria ser, quanto era ociosa, inútil, passada, decaída; então,
para Parini, a nobreza assume o valor de um alvo para a sua polêmica,
de sátiras, de reação de uma pessoa de fé, cristã e culta.
E toda sua obra tem um valor educativo de preceptor. Como
homem, poeta e professor, sempre é o educador que procura vivificar no
espírito da nobreza um sentido nobre da vida, uma missão na vida, uma
atuação de princípios que são já vivos e eternos, de cristianismo, mas que
foram cantados também antes de Parini e que voltam a ser difundidos
por uma doutrina que, apesar de ser ateia, tem razão de exultar certos
princípios, porque concorda com o Evangelho.
Então, essa saúde de sua poesia, essa integridade, resultada
entre a nova e a velha, entre cristianismo e a cultura, que lança como
sátiras contra a nobreza, com a intenção de renovar a mocidade italiana
e prepará-la para as guerras de independência. Em 1862, saiu da casa do
príncipe, por ter brigado com a princesa (protestou diante dela porque
tinha dado um soco numa empregada).
Em 1763, justamente um ano depois, ele publicou a primeira
parte do seu grande poema, Il Giorno. Escreve um poema satírico-
-didascálico, dividido em quatro partes: a primeira é Il mattino (1763),
a segunda é Il mezzogiorno (1765), a terceira é Il vespro e a quarta é
La notte (póstumas). E, além do mais, são duas partes que não foram
completadas porque ainda ofereciam uma infinidade de correções e
partes que revelam a falta de acabamento.
Além de ter escrito isso, Parini escreveu dezenove odi; três são
de caráter amoroso e dezesseis, de caráter civil e moral. Tem também
aulas de estética, os Dei principii generali e particolari delle Belle
Lettere, que deu como professor, primeiro na Escola Palatina de Milão e,
depois, no ginásio de Breda. Tem também o Dialogo sopra la nobilità.
É interessante saber que Parini era manco, em virtude de
uma queda, e nos últimos anos os milaneses indicavam esse velhinho
mancando e admiravam sua figura austera de padre e professor. E entre
esses moços que tiveram a honra de conhecer esta austeridade havia um
Bruno Enei
184 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

dos maiores poetas italianos, Ugo Foscolo, que justamente dedica muitos
versos maravilhosos de uma sua obra a este velhinho que muitas vezes o
levava sob as tílias, onde contava o que era preciso para ser poeta.
Qual é o conceito de arte de Parini? Ele volta ao conceito clássico
da arte, que Dante já tinha, isto é, a poesia é utile et dulce, é um binômio
de utilidade e doçura, a arte deve ser bela, elegante, correta, lúcida, fácil
e horaciana, e ao mesmo tempo deve ter uma finalidade moral, civil,
quer dizer que Parini concebia a arte como Dante a concebia, e Horácio,
isto é, um binômio de utilidade e elegância, isto que está a provar o
Classicismo italiano, que prova o sentido moral de Parini, renovador
junto com Alfieri.
LITERATURA ITALIANA III (1958)
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 187

O ROMANTISMO

Já com a segunda metade do século XVIII, observa-se na


serenidade da literatura iluminista uma sensibilidade, orientada no
sentido de descrever o choque e a dor entre o sujeito e o objeto, entre o
real e o ideal. Já na segunda metade do século, os princípios estéticos do
Humanismo e da Renascença parecem não satisfazer mais a humanidade
amargurada da época. E essa visão amarga dará lugar ao Romantismo,
que é um movimento que surge justamente na segunda metade do século
XVIII e se afirma no século XIX. Surge primeiro na Inglaterra, com o
Pré-Romantismo, e depois na Alemanha, Espanha, Portugal e em outros
paises.
Portanto, o Romantismo é uma visão nova da vida, dos problemas
do homem diante da vida e do Além. Com ele, o homem se propõe a
definir as razões de viver, com ele o homem se propõe uma outra vez a
definir a finalidade da existência. Existe uma razão pela qual o homem
viva: qual é a finalidade de nossa existência? Sendo a vida infelicidade,
dor, amargura, luta, vale a pena enfrentar essas lutas, aguentar essas
amarguras? Qual é a razão da dor na vida? É um direito viver ou não?
Pelo que o Racionalismo, a filosofia do século XVIII tinha
então afirmado, os românticos afirmaram que não vale a pena viver. Os
românticos deverão procurar uma outra razão de viver, a razão romântica
da vida. É a razão que governa tudo na literatura inglesa, russa, alemã,
portuguesa, e que se chama Romantismo.
Quer dizer que, nos limiares do século XIX e durante a primeira
metade deste, temos uma luta que é uma polêmica contra a Renascença,
contra o Racionalismo e Iluminismo. Procurar-se-á destruir uma
concepção clássica da existência, substituindo um valor por outro valor:
para todos do século XVIII, o mundo não é somente razão, o homem
não é somente racionalidade, mas é, além de tudo, sentimento e paixão,
e é na base disso que surgirá uma nova literatura, espontânea, livre, viva,
que destruirá as leis do Classicismo, e que é a literatura romântica, que
é uma polêmica contra todas as leis de tempo, lugar, personagem que
estabelecem o poema épico e o teatro, entre outros, todas aquelas leis
imutáveis. O Romantismo quer a maior liberdade na arte, pois expõe o
sentimento do poeta. Isso é o Romantismo.
O que foi o Romantismo antes que ele chegasse a uma consciência
de si? Isto é o que devemos ver, quem é que prepara o Romantismo.
Bruno Enei
188 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Devemos estudar o período de cinquenta anos no século XVIII em que


se manifestam umas tendências de poesias procurando exprimir a dor,
a amargura, a morte, os limites humanos, que são considerados como
prolegômenos do Romantismo.
Houve de fato na literatura clássica, cartesiana da segunda
metade do século XVIII, nesta literatura límpida de Metastasio houve
uma tendência, na qual uns poetas, cujos versos eram sombrios, tristes,
nos quais a palavra adquire uma tonalidade amarga, profunda, não
musical, não leve: é a poesia que prepara a literatura romântica.
Essa literatura da segunda parte, que é pré-romântica, é
justamente orientada a cantar a escuridão da noite, os silêncios dos
túmulos, a cantar os choques interiores, as insatisfações da alma, a nossa
inquietude diante da realidade, diante da vida, o contraste entre o que
quereríamos e o que somos capazes de obter. Essa luta em ser e não ser
desenvolve-se justamente no fim do século XVIII. Os maiores poetas
nesse sentido não são italianos. Mas devemos falar em geral neles e ver
como surgem e como toda a Europa se orienta baseada no sentimento.
Toda a literatura do Romantismo é uma polêmica contra a
cultura do Iluminismo, do Racionalismo e da cultura francesa, pois
Descartes tinha reduzido tudo ao Racionalismo. Mas há tantas coisas
que não sabemos julgar com a razão mas com o coração, e é isso que
os românticos irão cantar: a amizade, as ilusões, a imortalidade, o amor.
Como a imortalidade é Deus, que nenhum nega. Assim é a pátria, o
amor, a beleza, a justiça, esses ideais pelos quais lutamos e pelos quais
toleramos todas as amarguras que a vida oferece.
Os primeiros poetas que dão um esqueleto filosófico ao
Romantismo são os alemães, como Kant, Hegel, os irmãos Schlegel,
Lessing e Goethe, entre outros. Foi todo esse movimento que recebeu seu
caráter filosófico sério junto aos alemães. É visível na literatura inglesa,
sobretudo nos poetas: Edward Young, autor de uma poesia, Pensieri
noturni (1744), que não escreve sub luce, não exalta a força do homem,
mas canta a noite, e deste virão Leopardi e Foscolo; Thomas Gray, que
escreveu Elegia sopra un cimitero di campagna (1752), com seu amor
calmo e profundo pela natureza, pela solidão; outro muito maior é James
Macpherson, autor dos poemas de Ossian Fingal e Temora; Fingal é um
poeta bardo da Escócia pré-romana, pai de Ossian, que é o poeta destes
poemas que Macpherson imagina achar lá. Ele, com sua mentalidade de
romântico, que sente essas paixões, esses amores, essas tragédias, esses
ideais, revelando um mundo de heróis num panorama de montanhas
azuladas, abismos, mortes, suicídios, tudo num conjunto de termos que
são tipicamente românticos. Este poema foi traduzido ao italiano em
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 189

dois períodos: 1764 e 1772, e o tradutor foi Cesarotti. É essa literatura


sombria, orientada para a noite, descrevendo essa insatisfação humana,
que prepara a literatura romântica.
Na Itália, quais são os poetas pré-românticos?
Ippolito Pindemonte, tradutor de uma obra de Homero, a
Odisseia. A Ilíada é o poema da mocidade, do heroísmo, e na Odisseia
Homero canta a volta de Ulisses, é o poema da saudade, da melancolia,
[Ulisses] que volta para casa, onde o esperam sua esposa e filho, onde o
atende um maravilhoso pai, já velho, e um cachorro; e Ulisses encontra
durante sua viagem imensas dificuldades. Pindemonte é também autor
de uma obra, I cimiteri, que é importante porque, quando falarmos do
maior poeta, que é Ugo Foscolo, este também é autor de I Sepolcri.
Poesie campestri, que é um grupo de poesias breves, curtas, em que
fala da meditação, da melancolia, da tristeza, também foram escritas por
Pindemonte: “Melancolia, ninfa gentil, a minha vida entrego a você”.
É um solilóquio.
Outro é Alessandro Verri, autor de Le notti romane, poema em
que imagina que as sombras dos maiores homens de Roma falam com as
sombras dos Cipione. E aí também descreve os colóquios que ele imagina
ter feito quanto à barbárie romana. É importante, por Alessandro Verri
ter feito questão de sublinhar com o espírito da civilização romântica,
pondo-se diante dos romanos, que eram violentos. Esses românticos,
que vivem preparando a independência dos povos, esses homens já se
põem diante da civilização romana já digna de ser apresentada com
limites e restrições. E junto aos românticos alemães, vemos como se
vão afastando do Classicismo. O Romantismo, lembrando tantas coisas
da Renascença e também dos ateístas, que procurarão os motivos junto
à Idade Média, à história deles mesmos, das selvas, nos Nibelungen,
motivos mais autóctones.
Temos ainda Vittorio Alfieri e Giambattista Vico, da crítica
literária italiana.
Então, todo esse quadro, para pôr em evidência o Pré-
-Romantismo, aquela atmosfera que prepara uma nova literatura, que
é livre, espontânea, popular, liberta de qualquer mitologia e baseada
sobretudo no sentimento e numa concepção amarga, triste, dolorida
da vida, que parece que se põe uma interrogação: a vida vale a pena
ser vivida? Deve ou não tolerar, suportar essas amarguras, diante dos
próprios ideais? Diante dessas decepções da vida, devemos continuar a
viver?
Aspecto histórico: uma outra razão do Romantismo é a
polêmica contra o Racionalismo e Descartes, contra o Enciclopedismo.
Bruno Enei
190 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Depois de Descartes, houve na França, com Voltaire, Rousseau, Diderot,


d’Alembert, um movimento em que o homem é essencialmente razão.
E quais as consequências? Que toda a história humana está no futuro,
destruindo-se o passado. Isso é falso, é impossível construir uma
felicidade destruindo o passado, porque a perfeição é uma consequência
da imperfeição. É radical negar o passado e pensar num futuro melhor. É
do passado que vem o melhor. Não negando o passado, mas através dele
é que se constrói o amanhã.
Esse é o limite desse movimento, o de negar o valor do passado,
projetando o homem numa polêmica, destituindo do que é e o pondo
diante de um futuro. Foi a tentativa que eles fizeram com a Revolução
Francesa, que foi um buraco n’água, pois fez e não fez. Não é possível
a luz sem a sombra e um dia que não seja sem noite. Isso é tipicamente
romântico. O Romantismo é que dirá dessa dialética entre bem e mal,
entre natureza e humanidade, que porá o problema do bem e mal, é uma
superação da moral, não uma negação que está in re. O bem e o mal são
dois abstratos. Está na síntese e na superação, numa outra realidade que
a síntese da tese e antítese.
O Racionalismo nega a História. O Romantismo afirma a
História. Quando os italianos, espanhóis, portugueses, com suas colônias
que se tornarão independentes, começarem a própria luta, cada um desses
países achará energia olhando no próprio passado. A Alemanha volta aos
Nibelungen, a Grécia volta aos grandes poetas, a Espanha volta-se contra
os árabes; quer dizer que nunca se poderá construir algo sem se basear
no passado. Vale mais o morto do que o vivo, afirmam os românticos. Os
verdadeiros vivos são os mortos.
Depois, os iluministas afirmam que o homem é exclusivamente
razão e negavam outra atitude de nossa alma. Não sentiam o valor das
paixões, das ilusões, só existiam as verdades claras e evidentes. Tudo isso
deveria ser aceito, mas quantas outras coisas não são claras e evidentes,
das quais vivemos. Nós gostamos de uma sombra até no amor, na amizade,
nos sucessos da vida. Há algo em nós, um gosto pelo ignoto. O homem
não é tão cristalino como queriam que o fosse os iluministas. E contra isso
luta a arte romântica, que quer no homem, sobretudo, até chegar ao ponto
de procurar no Romantismo um sentimento que é quase igual ao mal.
Muitos foram chamados de maudites, como Baudelaire e
outros, atacados do mal du siècle, com esses aspectos diabólicos da
subconsciência humana. Toda a insatisfação diante da romanilidade
superficial do Iluminismo tornava-os desejosos de conhecer os mistérios
do Além, e então surge essa gama de poetas na França, Inglaterra, Itália,
Espanha e outros países.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 191

Falando sobre o Romantismo, diremos o que será a literatura


do século XIX: sobretudo na primeira metade, é uma literatura
essencialmente romântica. Até 1860, para chegar ao máximo, temos
na Itália esse movimento caracterizado pelo Romantismo. Depois virá
uma nova literatura, no sentido do Positivismo: virá aquela literatura
que coincide com a caída de Napoleão III. A literatura do Positivismo
abandona os ideais, as idealidades, as abstrações, os sentimentalismos
da literatura romântica e procura pesquisar o homem, a sociedade, a
maldade, e se orienta numa descrição objetiva, amarga, quase pessimista,
em cores muito fortes de pobreza, de corrupção. Faz um diagnóstico da
sociedade europeia. Os maiores escritores são Émile Zola e Giovanni
Verga.
Depois teremos uma literatura mística e, no mais, romântica e
versátil, que se chamará Decadentismo.
Os grandes homens do Decadentismo italiano são três: Pascoli,
Carducci e d’Annunzio. Depois dele teremos a literatura contemporânea,
representada por três movimentos: Crepuscularismo, Futurismo e a
poesia do Hermetismo, que é a de hoje, com Ungaretti.
Dissemos que o Romantismo é preanunciado por todo um
movimento, uma literatura em que a expressão, a palavra, o período têm
uma acentuação grave, triste, profunda, de tonalidade baixa; as palavras
vão perdendo aquela limpidez e clareza que era própria do clássico e
da primeira metade do século XVIII e da Arcádia. Agora não temos
mais uma linguagem limpa como as gavottes, o rococó e Metastasio,
essa linguagem dos músicos como Vivaldi, no fim do século XVII e no
XVIII. Não há mais uma literatura que seja límpida como Ariosto, pois
vai ficando cada vez mais profunda. Até os nomes são fortes, cheios de
sugestões. A literatura romântica até na palavra adquire uma tonalidade
desesperada: All’ombra dei cipressi; é uma poesia bem diferente de
Ariosto.
Há uma crise espiritual enorme, de onde surge esta literatura.
Esta crise é esta desconfiança absoluta nas capacidades racionalistas do
homem. Desmorona toda a concepção racionalista da vida, ficando um
vácuo. Não é mais a deusa Razão que sabe explicar os problemas da vida,
o porquê do morrer; o que fazemos, não é mais a razão que pode explicar
tudo isso. Surgem problemas muito mais graves, sente-se a necessidade
de enfrentar a vida muito mais, construindo sugestivamente e vivendo,
vibrando, e tudo isso cria este estado d’alma, este pathos espiritual de
onde surge esta literatura de grandes veias e de grandes idealidades. É
uma espécie de faixa de luto na campa da literatura clássica do século
XVIII. Mas devagar essa faixa preta vai transformando a literatura
Bruno Enei
192 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

europeia, com este sentido de novas formas poéticas e novos ritmos,


preanunciados sobretudo por uma poesia e um cantar da morte, a tristeza
dos nossos momentos íntimos e pessoais, de crise, de não saber o que
fazer. Essa literatura, que num primeiro momento canta os grandes ideais,
canta agora o que a vida nos obriga a ser, essa confissão de amargura, de
tristeza, preferindo a morte a viver.
No começo, encontra-se nos ingleses, com Young, Gray, Ossian,
dando um caráter arcaico à sua obra. Na Itália temos um Cesarotti; mas
em Pindemonte, em Verri, essa literatura lúgubre, triste, que ainda não
constrói, que é a confissão de uma crise, é a poesia que surge sobre uma
concepção de vida subjetiva, mas que ainda não é substituída por uma
que constrói, que possa fazer com que o homem lute na sociedade e na
política.
Quando o Romantismo alcançar seus ideais e achar uma fé
otimista, quando não for somente expressão de tristeza, de amargura, mas
também hino e descrição de ideais vividos e sentidos, então no mundo
inteiro teremos os grandes heroísmos com as conquistas da pátria, como
no século XVIII. É o século da história da liberdade, da unidade, da
independência dos povos. É isso que soube fazer o século XIX quando
superada a crise do Racionalismo; o homem tem fé e acredita nas ilusões
e ideais de glória, de amor, e então morre na Grécia, na Polônia, Itália,
Portugal, México, Argentina e em outros países. É o período de San
Martin e outros, dessas figuras colossais que, por um ideal altíssimo
como o de criar a pátria, pela qual se deve viver lutando, morrem por
ela.
É preciso lembrar essa distinção entre o Romantismo e o
Iluminismo, que negava o valor da História, ao passo que os românticos
cantam o passado, através do qual é possível construir o futuro. Em
qualquer país, os românticos falam de conceitos tristes e nobres, que não
desprezam o passado. Então a literatura romântica reage a essa literatura
iluminística, que nega o valor do país e da arte e de tudo aquilo que é
produção de nossa fantasia, de nosso sentimento, porque o Racionalismo
e Iluminismo nascem e surgem sob uma concepção racionalista e só
afirmam o que é verdadeiro. E o que não é mais verdadeiro do que uma
nota, um som, um poema? Mas eles não apreciaram a produção emotiva
do homem, pois queriam acontecimentos, e o passado era um regresso,
uma decadência do homem.
O problema religioso: para o Iluminismo, a religião é uma
forma irracional, porque a religião é quase mitologia, é emulação da
razão, como a polêmica de Voltaire. Em vez, o romântico afirmará a
necessidade da religião. O romântico europeu é quase todo cristão, e
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 193

também os poetas cristãos estão dentro do catolicismo. O maior deles


é Manzoni, que é católico e que escreve as melhores poesias de caráter
religioso, além de I promessi sposi. No século XIX há uma necessidade
imensa de religião. Muitas vezes, quando não achavam no cristianismo
uma razão que os satisfizesse, que iluminasse a própria alma, iam
procurar até cultos ignotos e místicos: o mal du siècle.
A diferença entre o Iluminismo e o Romantismo é o problema da
pátria. O Iluminismo afirmava o cosmopolitismo, que era uma concepção
do cidadão como cidadão do mundo e não desta ou daquela pátria. Então,
para o Iluminismo o problema da pátria não era um problema vivo. Para o
romântico, é o problema de personalidade e não de individualismo, é um
problema de nacionalidade e não de cosmopolitismo. Somos, antes de
mais nada, brasileiros e pertencemos a uma pátria, pela qual vivemos. O
mundo não é uma unidade abstrata, mas um conjunto de personalidades
que se chama nação, que deve ser livre, independente, autônoma.
Outro conceito: no Iluminismo se fala essencialmente de les
droits de l‘homme. A revolução francesa, a revolução dos direitos. Em
vez, o Romantismo não fala de direitos, fala de deveres. Tudo o que
era direito torna-se dever dos românticos. É um dever ser forte, direito,
honesto. É uma conquista e não uma concessão, pois a lei não garante
nada disso, o que põe em evidência a ética romântica.
Observe-se um pouco o rosto dos românticos, como Goethe,
Lessing, Manzoni, Leopardi, e ver-se-á o rosto de apóstolos; não como
Voltaire, com a sátira, mas um rosto generoso, pronto para morrer,
figuras generosas, quase como Cristos. Há um soneto de Foscolo, “bello
di fama e di ventura”, como são os românticos, todos bonitos pela glória
e pela dor. Houve poetas que sempre vestiram luto, como Masini, porque
não tinham a mãe – a pátria – que era sem liberdade, e então andavam
de luto. A figura de Beethoven é a mais bonita. A missão do homem culto
de Fichte.
Quando se fala de nacionalidade, sentimento, vibração espiritual,
o perigo do Romantismo é o de transformar isso em sentimentalidade.
Não é uma queixa, mas um protesto contra a dor, um grito contra os
contrastes da realidade. Os românticos, porém, firmes, heroicamente
de pé diante das injustiças do conformismo, desse costume comum dos
homens de se transformarem em sapos, são vivos, vibrantes, lutadores,
preferindo a morte a viver.
O Romantismo filosoficamente se completa e se afirma sobretudo
junto aos alemães, com Kant (1724-1804), Emerson e outros. Depois,
adquire na França um caráter individualista, morboso, misterioso,
diabólico, um caráter social, político, oratório. Na Itália, o Romantismo
Bruno Enei
194 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

é um movimento que não se acha completamente adormecido. Na


segunda metade do século XVIII, não podemos dizer que a Itália esteja
adormecida, pois ela está acordando desde a Arcádia, que é uma reação
ao Barroco do século XVII. Agora tem esse equilíbrio que revela uma
renovação, que é mais evidente na segunda metade do século XVIII com
três escritores, que são Goldoni, Parini e Alfieri. Com Goldoni, voltando
à realidade; com Parini, voltando a uma seriedade moral com a História;
e com Alfieri, que, exaltando a pátria, transforma os homens e mulheres
em heróis.
O Romantismo que está vindo da Europa acha a Itália acordada.
Essa Itália onde tinham nascido o Humanismo e a Renascença, essa Itália
ainda meio adormecida e que se vai agora passando para um período de
convalescença, acorda com uma puxada de orelha de uma mulher viva,
cheia de entusiasmo, essa mulher que é Germana de Staël. Ela publica
sua obra na Itália em 1816 e cria um caso enorme, pois com ela insta os
italianos a entrar no meio da literatura europeia, a conhecer os poetas
alemães, franceses, espanhóis, a escrever coisas do presente e abandonar
esse mundo muito longe da sensibilidade. Surgem então dois partidos,
um a favor e um contra ela.
Mas o Romantismo vai tomando pé, é uma corrente que não
encontra uma Itália adormecida e acelera a inovação italiana e torna
mais rápido esse movimento político, cultural e artístico italiano.
O Romantismo se põe ao lado dessa inovação, acelerando-a. Nesse
sentido, é um elemento vindo de fora, mas que não encontra uma Itália
completamente morta, mas renovada, que se torna mais séria, mais
profunda, mais concisa, por essa injeção de sensibilidade romântica. E
temos assim a literatura romântica italiana.
Até o presente momento fizemos uma introdução ao Romantismo,
falando do Pré-Romantismo e, depois dele, em geral, como surge, onde e
a que ele aspira. Pusemos em relação o Romantismo e a cultura iluminista
e fizemos ver como o Romantismo quer ser a expressão de uma crise
espiritual. Nos primeiros anos do século XIX, uma grandíssima crise
espiritual surge, como hoje, depois de 1945, é tão evidente, em que os
valores antigos vão caindo, não têm mais razão. Mas não se pode viver
num governo em que só há injustiças, crueldades, dor, se não houver um
ideal, um conjunto de ideais, de mensagens que sejam os motivos de fé,
de esperança, de crença num mundo melhor. No fim do século XVIII
e começo do XIX, é isso que acontece: acontecimentos políticos de
grande importância, movimentos culturais de uma solidez são destinados
a desmantelar-se, a tornar-se poeira, e criam uma decepção enorme na
espiritualidade europeia.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 195

Os acontecimentos mais importantes serão a Revolução Francesa,


com o sangue, a crueldade, as guerras que até 1815 ensanguentarão a
Europa. Aquele desejo de liberdade, em que eles perdem a independência,
divididos por razões políticas pelo Congresso de Viena, será a razão
da sua estaticidade e imobilidade, que deixa insatisfeitos os homens,
procurando outros princípios religiosos. Será uma cultura que até então
tinha entusiasmado o homem, baseada no fato de que o homem é razão,
inteligência, capacidade, criando aquela atmosfera de otimismo, de
dinamismo, de polêmica, de crítica, e criando uma esperança e quase
uma certeza de que o mundo, desmanchando o passado, começaria a
viver melhor.
Era preciso que, com o Racionalismo e o Iluminismo e com
Voltaire, Rousseau, D’Alembert, e com a Enciclopédia e a Revolução
Francesa, se tentasse eliminar certos elementos do passado, como a
monarquia, o clero, a injustiça social, e pensava-se que, eliminando isso,
a ignorância, o dogmatismo, o mundo começaria a progredir e seria uma
imensa cidade da qual nós seríamos cidadãos.
O mundo, la patrie, é de todos, num plano de igualdade. Mas
isto é uma utopia, porque nunca o mundo será feito de um modo tal
que, estando na estrada do bem, continuaria nela. Nunca acontecerá no
mundo que a humanidade tenha visto a estrada boa e não saia dela. É tão
absurdo que o catolicismo, mais prudente e positivo, chega a dizer que
o Paraíso só é possível no Além. Aqui na Terra há bem e mal, estrelas e
lama, e o que é bonito sai do que é feio e o que é bonito cria o feio. O
fascismo é uma coisa horrenda, o nazismo também, mas deles sai algo
melhor. Seus defeitos farão com que se veja algo melhor. O progresso no
mundo é resultado de um choque. Não se pode eliminar o mal, porque
eliminar-se-ia o bem. O bem é uma consequência do mal. Mas não se
deve bater palmas diante do ruim. Nunca seremos ótimos. Precisamos
passar através do ruim. Deus é parado na sua perfeição. O homem,
platonicamente, virá a ser bom e mau, é uma eterna dialética.
A um certo momento, o que aconteceu na espiritualidade dos
moços? O Iluminismo, que só fala de liberdade, paz, traz uma decepção
enorme, porque os franceses só matam, só existe a morte com a guilhotina,
de 1792, 1795, 1800, 1802, 1807, 1809, 1813, 1814 a 1815, é uma eterna
luta. Nota-se que tudo isso está errado, é o que surge na psicologia europeia.
Além disso, parece que no mundo há um maquinismo que não justifica a
existência, parece tudo sem finalidade, não vale a pena, então, lutar, sofrer?
Tudo isso cria o Romantismo. Hoje nós também vivemos isto, é eterno.
Em qualquer país os moços e homens sentem, ao lado de uma
convicção, uma decepção; ao lado de ideais, algo chocando com eles.
Bruno Enei
196 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Se o moço não ficasse insatisfeito diante da realidade, ela seria horrível.


É preciso ser eternamente insatisfeito. Isso é essencial para entender o
Romantismo. É uma aspiração à beleza, uma confissão de amargura, da
incapacidade do homem; ele afirma tudo aquilo que o Iluminismo tinha
escondido com sua fé na razão, matando o passado. É bobagem, porque
o mundo nunca será imóvel na sua perfeição. O Romantismo é tudo isso,
que se observa na poesia dos séculos XVIII e XIX. Por isso, são tristes,
existe o Schmerz, existem Fausto, Marguerite, Lessing, os problemas de
Hölderling, etc.
Alguns caem no desespero, não é suficiente dizer que o mundo é
uma contradição, é preciso lutar contra isso. Se se pensa que sua missão
é ser como os outros, fica-se chato como os medíocres, ou herói, ou
suicida, chegando ao desespero. Então, essa literatura é amarga, triste,
séria, em que se tem a impressão de que quem escreve não é um literato,
quem escreve dá a impressão de que não o faz por bonito. É o contrário:
a sua luta é contra o formalismo, o que interessa a eles é uma coerência
entre o que sofrem e o que dizem, entre o que fazem e o que escrevem,
entre a inteligência e o coração. Tudo é uma confissão da verdade, da
própria realidade.
O Romantismo não é uma literatura descritiva como, em geral,
a dos outros séculos. Não interessa o céu, a Lua, os rios. O Romantismo
é todo um desabafo interior, e quando falam de Lua, é porque ela é a
imagem da alma, quando falam do céu, é porque ele é o símbolo do
idealismo, quando falam dos campos, é porque eles representam um desejo
de solidão. Então, quando procuram uma imagem na natureza, é porque
ela é a imagem da própria alma. A alma realiza uma imagem noturna, uma
provação interior do espírito. O infinito é um desejo de superar as sebes
da imobilidade, do silêncio, uma visão de uma coisa que queremos real,
e então, “quer-se naufragar neste mar”. Silvia, não chegando à mocidade,
é o símbolo dessa amargura de quem cresce para morrer.

O Romantismo italiano

Num certo momento, todo esse movimento chega à Itália e


encontra uma literatura em movimento. Quais são as relações entre
essa literatura iluminista já em movimento e o Romantismo que está
transformando a realidade europeia em algo de amargo? Não é algo
destrutivo, mas a acelera e faz mais profunda, mais consciente, mais
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 197

grave. É uma espécie de chicote num cavalo que já corre. E, ao chegar na


Itália, sua literatura se transforma e perde algo de excessivamente italiano
que possui, de nacional, de romano, de tradicional, e se torna europeia,
joga-se na Europa, e a literatura italiana então corre junto com a de outros
povos, num plano de igualdade, de intercomunicação. Ela não se fecha,
mas se joga no continente europeu, com os outros países, respirando os
mesmos ideais, sentindo as mesmas dores, desejando os mesmo ideais, e
sente que tudo isso deve ser cantado numa forma nova.
O Romantismo faz com que se resolva um problema antigo da
Itália, que era: a Itália nunca soube libertar-se da influência clássica.
Sempre teve uma tendência, uma saudade para com o mundo romano,
para a literatura romana, para a cultura clássica. A Itália sempre sentiu a
fascinação do Classicismo. É uma coisa nobre, muito bonita, mas uma
grande restrição, tão grande que nós não temos medo em dizer que seja
uma das razões pelas quais a literatura italiana não é rica em romances,
porque o escritor é muito cheio de classicismo e o romance quer uma
expressão livre. O italiano tem medo do romance como se fosse um
gênero inferior à lírica. Isso é notável. Mas os franceses são mais cheios
de romance e de comédia do que de obras firmes e acessíveis. Isso é
um defeito. O Romantismo ajudou a literatura italiana a libertar-se
definitivamente do formalismo clássico.
Do século XIX para frente, a literatura italiana se tornará muito
mais ágil, fácil, popular, e os ideais cantados agora são antes os ideais da
idade em que vivem, ideais de amor, infelicidade, e não os dos gregos,
romanos, etc. Jogam de lado a tradição, mas não combatendo-a, porque
sempre ficam as aspirações à expressão linda, firme, tanto assim que
Leopardi, Manzoni são bonitos de expressão e cheios de Romantismo.
Mas o Romantismo põe diante deles um desejo de um Classicismo
renovado, de um Classicismo romântico.
Até 1816, o Romantismo já era conhecido na Itália, mas pode-
-se considerar que este é o ano em que entra oficialmente na Itália, e
quem provoca esta discussão é Madame de Staël. Essa inteligente mulher,
admiradora do Romantismo, é quem convida os italianos a jogar-se na
literatura europeia e ler os problemas contemporâneos. Ela cria dois
partidos: o favorável e o contrário. O segundo é feito pelos velhos, como
Vincenzo Monti, que escreve uma obra para defender o Classicismo, não
podendo esquecer o mundo grego, o mundo renascentista. Mas os moços
se jogam ao lado dos românticos, dos insatisfeitos, e sobretudo Giovanni
Berchet,54 que entra escrevendo em 1816 uma carta na qual comenta

54
(1783-1851)
Bruno Enei
198 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

duas baladas de Bürger, Sul cacciatore feroce e sulla Eleonora di G. A.


Bürger. Nela expõe sua convicção sobre o Romantismo e dá seu apoio
ao movimento romântico. Essa atitude dele não é isolada, porque tem ao
seu lado um Pellico e um Manzoni, entre outros.
O que o Romantismo italiano aceitou do europeu?
1. A espontaneidade da obra d’arte. É uma coisa que não se
podia discutir. Tudo o que será escrito no Romantismo italiano deverá
obedecer a esse dogma romântico, da espontaneidade da obra d’arte, não
fria, estudada na biblioteca romana, mas a poesia que deve ser viva, com
a facilidade de um barco que corre, e não cerebral;
2. Para os românticos é indiscutível que a obra d’arte deva
ser uma produção da fantasia. Nasce no sentimento pelo sentimento.
É importantíssimo. A fantasia é aquele momento em que nós não
raciocinamos, mas sentimos. Escreve-se quando se sente. Se não há
uma razão emotiva, não se pode ser poeta. É preciso sentir. Não que o
sentimento seja o crisma, isso não. É preciso transformar o sentimento
em imagem, em ritmo, em canto;
3. O Romantismo aceita que não deve haver distinção entre
conteúdo e forma. Nem há distinção, porque as palavras surgem do
sentimento, do conteúdo, quer dizer que tanto sabemos dizer quanto
sentimos. A palavra nasce com o que queremos dizer. É a expressão, é
síntese de conteúdo e forma. Se fosse só sentimento, a expressão ficaria
fora. O sentimento é que se transforma em palavra. Nunca uma palavra
do dicionário tem o valor que ela tem num verso, como Silvana, Nerina,
etc. As palavras da poesia não são as mesmas do dicionário, nós é que
somos os criadores das palavras;
4. A modernidade da inspiração. A obra d’arte deve cantar os
problemas da idade em que vivemos. A poesia não é literatura, é ação,
quer dizer que nós não podemos sentir o que há dois mil anos foi objeto
do sentimento de uma nação. Devemos sentir aquilo que vivemos, os
sentimentos que são de nossa idade. A poesia deve ser atualidade. Os
antigos foram grandes, porque cantaram o momento. Devemos também
cantar o que vivemos hoje, é contemporaneidade;
5 O Romantismo aceitou fundamentalmente a nacionalidade. O
problema da pátria, os ideais. É o caráter que distingue o Romantismo
italiano do dos outros países. Ele serviu-se para a liberdade da Itália, foi a
serviço do problema político italiano. Uma literatura militante, nacional,
que faz questão de cantar a liberdade, a independência, a unidade;
6. Para os românticos, a arte deve ter finalidade pedagógica. Ela
deve instruir, iluminar, deve despertar na alma do povo o sentimento, os
ideais;
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 199

7. A popularidade da arte. Ela não deve nascer na biblioteca,


como resultado da corte dos Gonzaga, dos Aragonesi, da Igreja, não
deve ser cortigiana, mas deve ser popular, dirigida ao povo, deve ser
fácil, viva, vibrante.

Ugo Foscolo (1778-1827)

A primeira coisa que devemos observar: uma boa introdução e


uma descrição da figura humana e poética de Foscolo.
A confirmar o que já dissemos antes, que o Romantismo italiano
não é um contraste do Renascimento com a segunda metade do século
XVIII, a confirmar que o Romantismo renova o Classicismo italiano e este
acompanha o Romantismo italiano, a confirmar que entre Classicismo
e Romantismo e Romantismo e Classicismo há uma continuação, uma
reciprocidade, a confirmar que o Romantismo começa com uma atitude
neoclássica, temos entre o fim do século XVIII e os primeiros anos do
século XIX, com Foscolo, Leopardi, Manzoni, uma fase que se pode
chamar, pelo espírito, pelas atitudes que os poetas cantam, romântica;
e pela forma com que são descritos e vividos os sentimentos, pode-se
dizer que seja clássica, mas de um Classicismo romântico, romântica
de uma classicidade nova: menos literária, mais artística. É um diálogo
entre Classicismo e Romantismo.
O Classicismo é a expressão, o gosto de uma linguagem
aristocrática, que não desperdiça os sentimentos românticos numa
linguagem popular, e o Romantismo dá ao Classicismo uns matizes, umas
atitudes que o Classicismo anterior não tinha. O Romantismo enriquece
a alma clássica e o Classicismo enobrece a amargura do Romantismo
europeu.
Esse neoclassicismo com que se manifesta o primeiro
Romantismo italiano é representado por dois grandes escritores:
Vincenzo Monti55 e Ugo Foscolo. Monti não é famoso por ter escrito
uma imensidade de obras, mas porque traduziu a Ilíada de Homero, e
é o escritor cuja musicalidade, perfeição de linguagem, cujo gosto não
se pode pôr em dúvida. Porém, não teve as atitudes humanas, o caráter
heroico dos que acreditavam nos novos ideais; por isso, é um escritor
superficial, definido como um grande decorador da palavra fácil, cuja
alma não é cheia daquele pathos ideal que é próprio do Romantismo.
55
(1754-1828)
Bruno Enei
200 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Em vez, o verdadeiro escritor que representa a consciência


de sua idade, que levanta imediatamente o Romantismo num plano
europeu, fazendo com que o Romantismo italiano esteja à altura das
outras formações românticas da Europa, dando a ele um respiro europeu
e contemporâneo, é Ugo Foscolo. Porque o Romantismo ajuda a esse
poeta, à alma dele a esclarecer-se, porque é um poeta que escreve na
sinceridade, por uma crise espiritual que é a crise de todos os europeus.
É um poeta que no Romantismo acha os elementos do seu canto e na sua
vida acha, não os elementos literários, mas os reais de uma dor, e nele
é que o artista se casa com o homem, nele é que volta aquela unidade
entre poesia e humanidade, entre palavra e ideal, entre ação e sonho,
é a aspiração que constitui o valor essencial da arte, da poesia, que é
coerência, mensagem. Ele é primeira voz do Romantismo italiano.
Em que consiste a mensagem romântica de Foscolo? É o
poeta que, através de um drama interior, chega a dar uma interpretação
religiosa à vida, aos problemas da nossa existência. É um poeta trágico,
triste, amargo, que não cai na negação, no ceticismo, e que, através da
dor, da decepção, chega a uma afirmação religiosa, a uma justificação
religiosa da existência. Tudo na sua personalidade, na sua vida de moço
e cidadão, no seu coração e inteligência e sentimento, tudo o levaria para
uma negação da existência, o levaria a preferir a morte à vida. Entretanto,
através dos anos de sua poesia, de 1802 a 1827, durante e através das
várias obras dele em prosa, em poesia, de caráter fantástico ou crítico,
percebe-se o imenso heroísmo deste homem procurando justificar a dor,
a existência, resolver a existência humana.
Tudo seria favorável na psicologia dele a negar qualquer valor
da existência. Entretanto, sua poesia é piramidal e em ascensão para
uma afirmação do caráter altamente, idealmente religioso. A dor, que
num primeiro momento é diante de sua cultura, o choque, o contraste,
a decepção, tudo isso acha na dialética da sua poesia uma interpretação
luminosa, em vez, que lhe permite chegar a uma fé, a uma confiança,
a uma conquista. Toda sua poesia, embora dolorosa, cheia de tristeza,
toda ela é otimista. É um pessimismo cheio de otimismo. É uma voz
amarga da realidade, mas cheia de luz, porque ele nunca cai na tentação
de tomar uma atitude cética. Esse é o segredo da sensibilidade romântica
dele, a de resolver de qualquer modo. Porque Foscolo não chegou a
entender a filosofia, as conquistas da verdadeira filosofia romântica,
não chegou a realizar o drama do pensamento romântico, não faz sua a
filosofia romântica, que concebe a vida como dialética, o espírito como
formalismo, a História como progresso, a realidade como finalidade. A
realidade não é imóvel e mecânica, mas tem a sua finalidade; a História
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 201

não é um conjunto de acontecimentos ilógicos, mas é um drama de


sangue e de ideais, de derrotas e de vitórias, num sentido de progresso.
Foscolo não chegou a isso, sempre ficou na alma dele uma
cultura mecanicista e materialista, em contraste com o espiritualismo
e o idealismo do Romantismo, que era idealidade, finalidade. Para
o Romantismo, a realidade e o homem têm uma finalidade; em vez,
Foscolo nunca chegou a convencer-se disso, pois sempre fica na sua
poesia este contraste entre idealismo e materialismo, entre finalidade e
mecanicismo, entre a natureza e o homem. Ele não sabe conceber que o
problema da filosofia romântica está numa síntese do bem e do mal.
A História é também algo de alcançado e de não alcançado,
é uma afirmação e uma negação. Na realidade, há uma razão de ser,
nessa noite que vem depois do dia, nesse Sol que aparece quando não há
estrelas, nesses rios que descem, nesse verde dos campos; há uma razão
no chão e no céu, pois a natureza é algo de humano também, ela vive
e o homem também, e tudo isso deve ter uma razão, que é o progresso.
O século XIX é o da fé no progresso, do otimismo no melhoramento da
civilização.
Foscolo não chega a isso, e sua filosofia tem algo de amargo e
ideal. Mas sua grandeza está nisso: nunca é cético, mas sempre cheio de
entusiasmo. Ele acha poeticamente, humanamente e sentimentalmente
a razão do nosso existir, pois nós devemos viver, apesar de tudo, e não
somente viver, mas viver para uns deveres, uns ideais. Dever e ideal são
dois termos errados para Foscolo, pois, não tendo alcançado a convicção
da filosofia romântica, não poderia chamar de ideais aquelas razões
que justificam a nossa existência. Ideal é um conceito real e um valor.
Não deveríamos dizer que ele alcança a razão do existir: deve-se existir
para realizar, para atualizar altíssimos ideais. Mas está errado, porque
ideal é uma coisa real, nada é mais real do que o ideal. O ideal é uma
realidade ideal, que é muito mais eterna, categórica. Só será realidade se
se humanizar.
Uma poesia não é uma poesia até que eu a domine com o mundo
espiritual. É o domínio humano que transforma o material em ideal,
Foscolo não chegou ao ideal. Como chamou seus ideais? Chamou-os
de illusione. Nós devemos existir para realizar as nossas ilusões, e aqui
está a amargura e a sua beleza: ele sabe o que o homem sofre para viver;
é uma ilusão, em nome da qual devemos lutar, mais do que em nome de
uma fé clara, que é até interesseira.
Esse desejo, esse sentimento desse subconsciente emotivo é
a razão pela qual devemos viver. A pátria é uma ilusão para Foscolo,
pois nunca será aquilo que queremos que seja. O amor é uma ilusão, a
Bruno Enei
202 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

imortalidade é uma ilusão. Se fosse um ideal, teríamos uma realidade até


material na imortalidade, que para ele só consiste em ser lembrado pelos
póstumos. O homem não será imortal fisicamente, continuando velho ou
moço, isso é só uma aspiração. A mulher, a beleza, tudo isso são nomes
dessas ilusões pelas quais devemos viver, dessas ilusões que, por serem
excessivamente bonitas, acham e encontram sempre sebes, como a de
Leopardi, impedindo a realização do infinito, que fica diante de nossos
olhos como uma realidade fantástica.
Devemos pôr as ilusões no amor, na família, em todos os lugares
devemos levar esse mundo de ilusões e agir em nome dele. É uma
concepção altamente religiosa, não no sentido tradicional da palavra,
pois fica fora de qualquer religião. É mais um sentimento do que uma
fé, é mais do que um conjunto de dogmas, de elementos de fé, mais no
sentido de religiosidade do que de religião. Por isso, Foscolo é a primeira
voz do Romantismo italiano.
Os moços italianos amam imensamente sua poesia, porque é
a imagem do drama, da crise, da intimidade deles, dos anos cheios de
melancolia, de aspirações, cheios de desespero e de pudor, em que a
gente só quer uma infinidade de coisas bonitas e gasta os anos nos bancos
da escola, num ambiente banal, e então sente aquele choque, e a poesia
de Foscolo dá esses golpes de asas, e ele é o sermão dos juvenis.
Essa é a introdução de sua poesia. Ela tem sua dialética. É
uma poesia dinâmica, que não é estática, que não afirma, que não canta
sempre o mesmo tema, mas é um poeta numa eterna insatisfação, numa
eterna e interior dialética, procurando uma solução.
Sua poesia e obras deverão ser vistas sucessivamente, até
chegarmos ao ponto em que sentimos que ele se realiza completamente.
Foscolo não começa como acaba, ele se procura intimamente, escrevendo
não na base de uma cultura, mas de um sentimento. Seu espírito é que
lhe sugere de momento em momento atitudes que não são isoladas,
contraditórias, mas que se sucedem como faces, como aspectos diferentes,
é um crescendo de um motivo que se resolve no sucessivo. É como um
único volume, com momentos e atos diferentes, um ligado ao outro, um
resolvendo o outro. Quais são esses momentos? Os fundamentais são:

Ultime lettere di Iacopo Ortis


Observe-se o título. O que são? Um romance epistolar
autobiográfico. O interessante é que essas cartas não são intermináveis,
não abraçam muitos anos de vida. São as últimas dos últimos tempos,
e aqui já há muito de romântico. São a descrição de um drama, de um
choque, uma solução. São confissões e não contemplação; não são de
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 203

uma forma olímpica, serena, meiga, mas são desesperos, confissões,


aberturas de insatisfações, de ideais, de negações, de pessimismo, são
uma confissão que justificam até o final desse romance.
Iacopo Ortis são dois nomes sobretudo românticos. Como é
autobiográfico, não é o poeta que inventa, como Walter Scott; não é uma
obra da imaginação, como Júlio Verne; mas são coisas que ele próprio
sente e que confia a um personagem. Não é como acontece nos dramas
clássicos, não é uma figura objetiva da literatura contemporânea italiana,
porque é subjetiva, é uma projeção de si mesmo. Iacopo Ortis é Foscolo
idealizado, representado numa obra d’arte, abaixo de um nome que
destaca um pouco os fatos biográficos, num fato de arte.
Foi escrita em 1802, uma época triste na Europa por muitas
razões: é o período de Napoleão, que já tinha semeado de sangue a Itália
e decepcionado os grandes admiradores dele, entre os quais Foscolo, que
acreditava no corso, nesse revolucionário general, que levava a guerra à
Europa, dizendo que derrubava os tronos para levantar as cabanas e que
invadia os povos para dar-lhes a liberdade e a independência. Mas, entre
outras decepções, uma foi grandíssima: a de 1797. Napoleão invadiu
a Itália, conquistou a Itália setentrional e Veneza, que cai com os seus
séculos de história, que era um símbolo com suas naves, que trazia as
riquezas das Índias, que dominava o Oriente, essa Veneza dos doges,
depois de tantos séculos de sangue e de heroicidade, essa Veneza cai
podre abaixo da força e do vigor de Napoleão. Ele declara o Reino
Unido da Itália do Norte. Mas, por uma razão política, faz um acordo
com a Áustria: cede Milão à Áustria e a Áustria lhe cede a Lombardia.
A Áustria troca Milão por Veneza, e os franceses então vão dominar em
Milão. Há uma troca de povos. Napoleão troca o destino de um povo,
como se fosse um moço qualquer. É o Tratado de Campoformio.
Então, em 1797, com dezenove anos, imagina que o protagonista
deste romance seja um moço de Veneza que está estudando na
Universidade de Padova e sabe que Napoleão tinha vendido Veneza à
Áustria, trocando com Milão. Iacopo Ortis abandona os estudos, pega
sua roupa, beija sua mãe e vai para Veneza, ofendido, pondo-se diante
do mundo numa polêmica sem conciliação. Ele vê o seu ídolo Napoleão
tratando tão mal um dos ideais vivos na alma da mocidade, que é o
sentimento da pátria. Foi viver na solidão; escolhe um lugar perto de
Padova: o Colle Eugani. São os colles que dividem a Pianura Pagana.
Solitário, falando com as montanhas, ele tem outra imensa decepção de
ideal. Conhece uma moça, Teresa, bonita, gostando de poesia romântica
como ele, infeliz como ele, cheia de idealismos como ele. Ela é infeliz
porque é obrigada a casar com um moço que não ama, que é o protótipo
Bruno Enei
204 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

da burocracia: gosta de comodidade, etc. Esse moço é Odoardo, e deve


casar com ela por inspirar confiança aos pais de Teresa. Mas ela ama
Iacopo Ortis. Acontece que, para esquecer, para não pensar sempre nela,
ele viaja, sai, e vai viver em Pádua, em Bolonha, em Milão, e, por último,
volta a Colle Eugani. E tendo escrito uma carta a ela, finca um punhal
no coração.
São duas então as decepções deste poema: a pátria e o amor. A
mocidade, aos dezoito anos, entra na vida cheio de idealismo e pensa
que todos lhe querem bem, e ao entrar na realidade, nota que a pátria
é algo que se vende e que o amor é algo de triste para o coração de um
moço. Esta é a primeira obra em que a dialética de Foscolo adquire a
exasperação do seu pessimismo, em que sua alma se revela em toda sua
loucura, chegando a negar a vida e procurando a morte.
É a primeira grande obra do Romantismo italiano, é uma
voz dele. Porque é justamente em que aparece pela primeira vez essa
desconfiança diante da vida, em que os valores da vida são negados, em
que os choques com a realidade levam a uma negação e ao suicídio. Nesse
sentido, é uma obra romântica. Prevalecem as dores, as insatisfações.
Os ideais, os entusiasmos, manchados, curtidos, mortificados pela
realidade. A realidade da vida parece uma foice cortando as asas dos
nossos entusiasmos.
Então, nesta obra aparece tudo aquilo que é o pathos, o
conteúdo, a emotividade, o sentimento de onde sai o Romantismo. É
também tipicamente italiano, isto é, escrito por um italiano, quando na
literatura italiana do século XIX aparece o problema da italianidade, o
problema da pátria, com um ideal, uma exasperada saudade do que essa
terra foi e do que deveria ser. Aqui não fala um homem político, ligado
a este ou àquele partido. Não fala um homem que segue um ideal social,
isto é, que fale da justiça e da injustiça entre ricos e pobres, que tenha
ideais revolucionários. Quem está falando é um italiano que, num plano
superior, porque ama a terra em que vive, é a primeira expressão daqueles
ideais próprios da espiritualidade europeia, que neste momento sente,
em muitas partes da Europa, como deveres de homem e de cidadão,
a necessidade de realizar a liberdade, a unidade e a independência da
pátria.
Esta obra tem muitos defeitos, mas é uma grande obra. Eles
estão incluídos na definição, isto é, é mais uma definição do que
uma contemplação. O defeito fundamental é que Foscolo faz do seu
protagonista um moço que é um contraste, dominado por duas paixões
diferentes: uma, romântica, sentimental, isto é, o amor para com Teresa,
sua simpatia, a comunhão interior entre ele e essa moça sacrificada
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 205

ao interesse, a uma voz prática da vida; ele é também dominado pelo


sentimento pátrio, pela Itália, pela falta de liberdade.
A obra não teria nada de mal se ele resolvesse numa unidade
emotiva esses dois temas, mas o fato é que esse é o defeito da obra: nunca
o amor para com Teresa se põe num plano patriótico, nunca combina
com a pátria. Não é um enamorado que ama a pátria nem um patriota
enamorado. Parece estar em luta entre os dois sentimentos, faltando à
obra unidade sentimental. Onde Foscolo exulta sobretudo Iacopo Ortis
como cidadão, às vezes cai numa certa eloquência excessiva, e quando
fala no amor para com Teresa, alcança expressões muito sentimentais.
Falta equilíbrio no tema sentimental e no nacional. Apesar disso, essa
obra é imensamente grande.
É preciso lembrar duas obras: Die Leiden des jungen Werthers,
de Goethe, que se move sobre esses temas, e Ultime lettere di Iacopo
Ortis, dominada pelo amor e pela pátria.

Análise da produção poética de Foscolo

I Sonetti
Os sonetos (escritos de 1798 a 1802) são a primeira manifestação
poética de Foscolo. Conhecido como um dos maiores escritores italianos
de sonetos, Foscolo com eles continua aquela gloriosa tradição de
sonetistas italianos que começam com Guinizelli e perpetuam-se com
Dante, Petrarca, Tasso, tornam-se expressão altíssima com Alfieri e
tornam-se, com Foscolo, não um ideal transformado em suavidade, em
sonho, em fé, como em Dante e Petrarca, mas uma visão amarga, uma
dor parada, uma imobilidade e uma resignação diante da negação dos
ideais, e a morte é como um elemento da natureza. Foscolo, num plano
dantesco de altíssima idealidade, transmite ao soneto uma amargura de
expressão, uma densidade dolorosa, uma sensibilidade sem felicidade,
um desabafo parado, imóvel, quase desesperado, uma gravidade que o
soneto de Dante não pode ter, pois descreveu Beatriz numa base de fé,
e então Beatriz é cantada como uma melodia quase horizontal, aberta,
larga, simples. Petrarca, em vez, transforma seu motivo ideal numa
suavidade, numa visão, num sonho, é o poeta do violino com a surdina.
Foscolo, em vez, torna o soneto imóvel, com uma amargura, uma dor
parada, uma visão que não se consola, que não acha confiança, que
exprime uma resignação. Mesmo assim, os sonetos ainda são como
Bruno Enei
206 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

um intermezzo entre as paixões que tumultuam em Iacopo Ortis e a


serenidade apaixonada de I Sepolcri. Já são um volver-se interior do
desespero à resignação.
Foscolo é escritor de doze sonetos. E eles na sua poesia
representam uma serenação diante de Iacopo Ortis, porque, se as cartas
exprimem a exasperação do pessimismo, os sonetos representam uma
atitude mais íntima, mais calma, mais parada, desesperada, triste, mas
não negativa. Foscolo parece aceitar as leis naturais da vida, isto é, a
dor, a negação dos ideais, parece aceitar a morte como um elemento da
natureza. Há neles uma atmosfera imóvel, que não é mais o desespero
de Iacopo Ortis.
Três sonetos são essencialmente dignos de ser lembrados como
os melhores da literatura italiana: Alla sera, A Zacinto, In morte del
fratello Giovanni, que, com três títulos tão diversos, trazem em seu
germe a resignação da morte, como uma conclusão a todas as belas
imagens antes descritas.

Alla sera
É Foscolo diante do cair do Sol, diante dessas sombras que
fecham a luz, a atividade, o movimento do dia, e que jogam o mundo
nesse silêncio, nessa escuridão, nessa imobilidade que é a noite. Foscolo,
diante desse espetáculo, sente que há uma analogia entre a natureza e o
homem. Consiste no seguinte: como existe para a natureza a noite, assim
existe para a vida humana uma noite, que é a morte. A morte é essa
sombra que fecha as atividades humanas, que leva do cenário do mundo
o homem, com os seus ideais. Tira a morte o homem desse cansaço,
dessa responsabilidade, assim como a noite tira a natureza do seu esforço
ativo do dia. Se então a morte encontra sua imagem na noite, quando ela
desce ao mundo, tanto no inverno como no verão, nós a abençoamos e
saudamos com imensa saudade; embora ela no inverno apareça triste,
esquálida, trazendo nuvens impressionantes, ela é bonita também no
verão, quando, como uma jovem, passa, acompanhada pelos ventos, os
zéfiros. A noite, como a morte, leva o homem a pensar. E ele, pensando,
chega à conclusão que todo dia acabará, o que poderia dar motivo de
desespero incrível, de amargura. Entretanto, nesse soneto Foscolo
declara sua felicidade diante da constatação do fim, da realidade, porque
sente que seu espírito, seu pessimismo diante desse espetáculo da noite
e da morte o fazem pensar.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 207

A Zacinto56
É o soneto em que Foscolo chora sobre as coisas que nós
perdemos na vida. Tudo o homem perde, o que ele sonha e deseja na
infância, na adolescência, na idade que o leva justamente à vida. Então,
é o soneto em que Foscolo chora, medita, pensa, aperta-se-lhe o coração
diante do que ele e os homens perdem na vida. Tudo o homem perde:
quantos sonhos e imaginações não nos acompanham? Quantos ideais
não nos estimulam a desejar o futuro mais cedo do que ele vem? Não
vemos a hora de chegar aquilo, pois temos a impressão de que aí se
realizam.
É a poesia que Foscolo dedica à cidade em que nasceu, Zacinto,
uma ilha da Grécia que pertencia a Veneza, por isso é poeta italiano. É
uma saudação à pátria. Todos no mundo têm a sorte de rever a pátria,
menos ele, pois, entre as outras decepções e amarguras, sente que lhe
faltará também esse dom, o de rever a terra em que nasceu. Ele evoca sua
infância naquela pátria, sonhando na cidade, fantasticando naquela ilha
cheia de árvores, de atmosfera que se espelha no mar e que é vista mais
como uma imagem do mar do que em realidade na terra. Não é um mar
comum, igual aos outros, pois dele, num certo momento, saiu Vênus,
envolta de espuma. Ele deu ao mundo uma mulher, que é símbolo da
beleza. Então Foscolo evoca esta ilha, que é tão bonita que o próprio
Homero, cantando coisas que não tinham nada a ver com Zacinto, não
pôde diante daquela beleza silenciar e entoa um hino ao céu e às árvores
de Zacinto. Até que Homero acabou de cantar a peregrinação de um
infeliz, que, contrariamente a Foscolo, teve porém a sorte de voltar à
terra natal; uma terra menos bonita, mas é a pátria de Ulisses, que beijou
sua Ítaca pedrosa. Foscolo sente que morrerá longe da terra em que
nasceu e termina dizendo que os estrangeiros se lembrem de levar aos
olhos de sua mãe o seu corpo.
A Zacinto é todo um hino de saudação à sua pátria distante,
é todo um lamento por não poder mais rever sua terra natal, em que
exprime sua recordação, seu íntimo afeto para com a ilha em que nasceu
e que ele agora vê como através de um sonho, não como uma imagem
brilhante, cuja fulgurante beleza fere a vista, mas como um reflexo,
espelhada nas águas do mar, como a imagem das coisas perdidas na vida.
De certo modo, para Foscolo é o cantar de sua infância desaparecida,
do seu próprio eu que deixou em Zacinto, dessa sua meninice feliz e
despreocupada, rodeada de árvores, pelo céu límpido e pelo mar tão
belos, que só uma deusa poderia ter criado toda aquela beleza. É em

56
Soneto analisado em aula.
Bruno Enei
208 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Zacinto que ele vê sua cidade, não mais na materialidade de suas ruas e
palácios, mas apenas na sua delicada imagem, que se reflete no mar; é
em Zacinto que ele vê sua infância, onde seu “corpo fanciuletto giacque
nelle sacre sponde”,57 ainda não imaginando que a dor e a amargura
da existência logo fariam um outro berço para ele. E, ao envolver-se
no turbilhão da existência, as correntes das decepções arrastam-no de
um lugar ao outro em procura de um ancoradouro, que ele só encontra
quando uma vaga mais serena o leva de volta a Zacinto, neste mar
cujas ondas foram o berço de uma divindade. Foi a virgem Venere que,
nascendo do mar, deu a transparência do céu e a exuberância de suas
florestas com seu primeiro sorriso, que recorda este ambiente helênico
que preanuncia as Grazie.

In morte del fratello Giovanni58


Foscolo diz que, um dia, se ele não for obrigado eternamente
a fugir, um dia ele quer ir ao túmulo do seu irmão, chorando o destino
fatal desse Giovanni, que, ainda moço, preferiu morrer. A razão da morte
é banal: era oficial e se matou pela honra. Mas Foscolo transfigura a
razão, atribuindo ao irmão as razões pelas quais ele prefere morrer. Esta
é a segunda fase da personalidade poética de Foscolo, que se abre com
essa calma, com essa visão da morte, com essa resignação diante de
uma morte sentida como um motivo amargo, mas natural, e que deve ser
respeitada e considerada, embora com toda amargura.
A outra fase de sua poesia é representada, de 1800 a 1803,
por suas odes: A Luigia Pallavicini caduta da cavallo e All’amica
risanata.59
Por que essas duas odes representam um sucessivo momento na
poesia de Foscolo? O que é que nelas aparece de novo para colocá-las
depois de Ultime lettere e dos sonetos? O que há nelas de novo, qual é a
sua mensagem?
As duas odes são o hino nobre, clássico, límpido, entusiasta,
sincero que Foscolo levanta à beleza. É a homenagem de Foscolo a uma
das ilusões da existência, a beleza. Até agora, nas duas primeiras obras
vimos que Foscolo cantou sobretudo nas tonalidades graves da decepção,
da amargura, do choque, do desespero. Aqui não, pois está aparecendo
algo que poderia justificar a existência, que poderia dar uma razão ao
nosso viver. Como poderia gozar a beleza humana, a arte, a música, a
natureza, como poderia viver essas emoções se não houvesse a vida?
57
“corpo de criança jazeu nas sacras margens”
58
Analisado em aula.
59
Antonietta Fagnani Arese.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 209

Não vale a pena viver se, vivendo, gozamos tudo isso? Não é já algo,
tudo isso?
A vida não parece que seja somente negação e destruição. Nem
tudo é ruim, nem tudo está perdido. Há algo que a levanta e enobrece,
que lhe dá um conteúdo, uma razão pela qual podemos dizer que a vida é
uma coisa bonita. Essa é a razão: a contemplação da beleza. Só vivendo
é possível viver e adorar a beleza. A beleza, não somente num sentido
físico, natural, mas a beleza num sentido platônico, ideal. Se não houvesse
a existência, como o homem teria a visão do belo? Então há já uma razão
sobre a qual Foscolo coloca os seus pés. Ele já achou um dos motivos
pelos quais procura o viver: a beleza.
Nestas duas poesias, um outro motivo aparece pelo qual devemos
viver: é a poesia, ao lado da beleza. Como não é bonito ser poeta, que
satisfação maior do que de exprimir os próprios sentimentos, emoções,
num ritmo de expressão, de imagens, o que há de mais bonito do que
pegar uma caneta e escrever um conto, pintar um quadro, o que há de mais
bonito do que a arte? E como se poderia ser poeta se não se vivesse?
A poesia tem um valor formidável. Nada aguenta a poesia. Só
ela faz com que o homem possa eternizar o que ele sente. Há no homem
um elemento de imortalidade: Dante não morre, Petrarca, Beethoven, da
Vinci, pois o que eles cantaram é eterno, é vivo, é lido. A única coisa que
existe é a poesia: de um poeta não se pode esquecer, ainda que falem mal
dele. Então esse conceito altíssimo: o valor eternizador da poesia. Esses
dois motivos e ilusões já representam um aspecto construtivo da poesia
de Foscolo, estamos vendo esse dinamismo, como ele já encontrou duas
razões pelas quais já vale a pena viver: a beleza e a poesia.

A Luigia Pallavicini caduta da cavallo


Tece um hino à beleza. Suas duas odes são a homenagem, a
interpretação romântica, a expressão da admiração, da solidariedade,
da simpatia ideal do Foscolo para com a beleza. Com a beleza física
e, sobretudo, a ideal, que para ele já representa um elemento positivo
diante da negação, das decepções da vida. Ela se levanta das amarguras,
luminosa e cheia de fascínio e enérgica, capaz de criar em nós vibrações.
A beleza é uma das razões pela qual o homem sabe viver e morrer, porque
uma das coisas mais contraditórias e ao mesmo tempo verdadeiras,
como diz Camille,60 é que sempre o ideal pelo qual gostamos de viver
é o ideal pelo qual somos capazes de morrer. É um canto à beleza, num

Camila, irmã dos Horácios, morta pelo irmão porque chorava a morte de seu noivo,
60

um “Curiáceo”. Personagem da tragédia Os Horácios, de Corneille.


Bruno Enei
210 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

sentido complexo, pois em nome dela é que o homem sabe enfrentar as


dificuldades da vida.
A primeira das odes ainda conserva algo de físico. Parece
uma homenagem digna da literatura da Arcádia, porque ela fica ainda
num plano exterior, não é profunda, ideal, não é elemento teórico e
desinteressado, como é a segunda, mas apesar disso é um hino cheio
de tradições, uma ode cheia de uma atitude de receio diante dos perigos
que ameaçam a beleza.
Essa flor que dá vida ao mundo, esse perfume que nobiliza
a realidade, a mediocridade da vida real, essa flor corre infinitos
perigos. Às vezes o homem os cria, como, por exemplo, a equitação.
É um exercício vigoroso, viril. Entretanto, Luigia Pallavicini, que é o
símbolo da beleza lígure, que é o fulcro da sociedade genovesa, ama a
equitação. E um dia, galopando nas praias do mar lígure, entre Gênova
e Nova Lígure, numa praia cheia de pedras, deserta, bonita, cheia de
uma natureza romântica, que não tem nada de plácido, calmo, as ondas
do mar amedrontam o cavalo e o seu par cai dos estribos, e ele por um
comprido curso leva essa mulher bonita pelo chão, arrastada. Então,
o seu rosto, símbolo de beleza, fica cheio de feridas. Nada adiantam
as perícias dos médicos. Ela não tem mais a cintilação dessa Vênus
quando Foscolo era tenente em Nápoles. Então essa mulher teve,
daquele dia em diante, de velar o rosto com um véu preto, que escondia
as cicatrizes.
Esta poesia é justamente essa trepidação, essa amargura diante
dos perigos, das tempestades que derrubam essas flores bonitas, esses
rostos pelos quais os homens que sofrem são capazes de reconciliar-se
com a vida. Foscolo procura salientar a monstruosidade do cavalo, a
irracionalidade dele, e em vez, o que ele procura idealizar, tornar mais
delicado, mais gentil, é a mulher, que se transforma num véu branco,
como uma espuma, em algo de fácil que só se percebe como uma
cor. Então, essa coisa bonita, frágil, rara, singular, que é a beleza, se
transforma em algo de vítreo, em cima de um animal. E a paisagem
dessa calamidade é justamente a solidão da praia, as montanhas da
Ligúria e o furor desse cavalo inexorável, que destruiu a beleza, que é a
visão de algo que justifica a vida.

All’amica risanata61
Depois de uma doença, volta a sarar, volta a ser o que era.
Aqui, nesta poesia, a doença é um simples parêntese. Enquanto ela é o

61
Analisado em aula.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 211

fulcro da poesia, aqui é um simples parêntese, porque o que interessa a


Foscolo aqui é cantar esse retorno da beleza.
O ritmo, a melodia são numa ascensão que se torna mais aguda,
mais alta, é uma melodia que começa baixo e se levanta para os agudos.
Aqui não canta os perigos, a desgraça, mas os elementos da beleza desta
mulher, cujos olhos encantam, cuja elegância é tal que parece que pinta
e não desenha. Parece que ela pinta a dança, parece uma pintora, parece
uma divindade, parece aquela estrela maravilhosa que é a primeira a
aparecer e a última a sair do céu no amanhecer, porque, sendo Vênus,
é a divindade, enamorada do Sol; aparece antes das outras, porque vai
saudar o Sol que vai dormir. Por que quer ser a última a sair? Para saudar
o Sol que volta.
Então essa moça se levanta para a vida, para a sociedade, para
os moços de Milão, levanta-se santificada, portadora da felicidade,
justamente como se fosse uma deusa. O poeta que inicia, depois de ter
descrito o surgir de Vênus, diz que não é ela, afinal de contas, que esteve
doente. Era como se estivesse doente. A doença ela deixa na cama. E
se levanta, como era, cheia de fascínio, preocupando suas amigas, que
estão ciumentas, preocupando as mães das moças.
Como acaba esta poesia? A última parte dela é a seguinte:
Foscolo diz que não é a primeira vez que os poetas cantam deusas,
porque, no passado, na literatura grega, poetas cantaram seres humanos
destinados a morrer, contingentes como são os humanos. Mas como se
poderia lembrar hoje Antonietta Fagnani, que volta à sua mocidade, que
sabe que para ela também haverá um dia fatal? Como se poderia dizer
que também estaria submissa à lei total? Ela é uma das mulheres que
não morreram, assim como também não morreram as mulheres antigas,
Diana, a caçadora, Belona, a lutadora, e Vênus, a beleza, que, de seres
mortais que eram, ficaram deusas. Quem eram, afinal de contas, Diana,
Belona e Vênus? Nada mais do que moças, uma famosa por ser caçadora,
a outra porque combatia e a terceira por ser bonita. Mas quando a poesia
tocou esses três seres, a capacidade de Diana, Belona e o fascínio de
Vênus, como beleza, essas mortais se tornaram imortais.
Sai deste conceito que a poesia é justamente essa força que toca
as coisas mortais e as torna imortais, que se inspira em um ser humano
e o torna divino, que canta uma mulher e a torna deusa. A poesia é
capaz de transformar um sentimento numa coisa eterna. Nunca morre o
céu da poesia, nunca acaba o céu onde a poesia coloca seu sentimento.
É a única força que o homem possui para transformar tudo que é mortal
em algo de eterno, sublime, imorredouro. E a fé, a convicção profunda
no valor da literatura.
Bruno Enei
212 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Hoje em dia um poeta é um desprezado, considerado um coitado.


Em qualquer lugar do mundo, o artista vive fora da sociedade: Picasso,
Ungaretti, Thomas Mann, essas figuras de escritores que, amando a
liberdade, sempre foram desprezados. Vale mais um calibre 38 que um
maravilhoso verso. Entretanto, a única coisa que conta no homem é
essa capacidade de entusiasmar, essa fé no progresso que sai do poeta.
Não é o poeta que joga o ceticismo, é sempre a amargura de um poeta
que produz o entusiasmo. Não há um que não seja cheio de entusiasmo.
Ninguém tem coragem de dizer que o choro é uma bobagem.
A poesia é este anelo secreto que é capaz de reproduzir o
entusiasmo, ou de criá-lo, ou pelo menos tem essa mínima capacidade
de poder entendê-lo, o que já é uma satisfação. Já que não podemos
ser deuses, pelo menos tendo gosto, embora diferente do gênio, o
gosto é capaz de entender o gênio. O gênio sabe multiplicar a natureza,
tornando-a poesia.

I Sepolcri
É assim intitulada. Entretanto, numa poesia em que se canta
a morte, em que se chora diante do limite humano, diante do destino
amargo em que o homem sabe que tem uma duração que não vai além de
um certo período e que deve deixar amores, simpatias, então nesta obra,
em vez, em que só se fala da vida, em que não é a morte que interessa,
mas a vida, os ideais pelos quais devemos viver, então esse pessimismo
criando um otimismo, essa visão amarga criando o estímulo da vida. Essa
consciência do nosso morrer e ao mesmo tempo essa aspiração a uma
imortalidade que só se consegue através de uma atitude de honestidade,
de empenho.
I Sepolcri foram publicados em Bréscia em 1807. Há muitas
razões que justificam a publicação dessa obra. Mas três são essencialmente
fundamentais:
1. No Pré-Romantismo italiano houve um escritor, Ippolito
Pindemonte, que escreveu nesse mesmo período uns versos, uma poesia
em versos soltos, que ele nunca acabou, e cujo título era I Cimiteri. Sobre
essa obra Pindemonte teve com Foscolo conversações em Veneza. Um
dos motivos exteriores da publicação dessa obra é esse;
2. Há uma razão histórica mais importante: em 1804, Napoleão,
na lei de Saint-Cloud, tinha proibido na França que os mortos fossem
sepultados nas igrejas, de modo que os túmulos fossem colocados fora
da cidade, num lugar igual para todos, e que as inscrições tivessem os
nomes examinados antes de serem colocados, por uma comissão. Já em
1806, essa lei valia também na Itália. Então acabava aquele costume
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 213

medieval de levar o morto para a igreja, abaixo da igreja. Acabava também


aquela questão de dizer que este é importante, aquele é pobre. Acabava a
distinção. Havia também uma questão de caráter higiênico: eles deviam
ser sepultados longe da igreja, pois a cidade é viva, é alegre. Napoleão
não fazia isso por razões ideais, mas por demagogia. Ele queria fazer ver
que havia igualdade entre os povos. É uma razão de caráter polêmico,
pois, num momento Foscolo descreve as mulheres que vão rezar na igreja.
Naquele então, não era só igreja, era também o lugar dos mortos, então as
mais moças voltavam para casa à noite e afastavam os meninos recém-
-nascidos, pois viviam nesse conúbio de cheiro de altar e de mortos;
3. É uma razão de caráter pessoal e moral: I Sepolcri representam
o momento em que, decididamente, emotivamente, com todo seu
entusiasmo, religiosamente, Foscolo volta a crer na vida, em que resolve
seu drama romântico. Este poema é sua mensagem. Ele achou sob um
ponto de vista emotivo a razão pela qual ele vive e pela qual nós vivemos.
É que a morte é somente uma coisa física, um conceito material. Acima
da morte há algo muito mais importante, e esta ressurreição é somente
conseguida agindo e sendo nobres na vida. Morre somente quem não faz
nada, quem não gasta a existência, quem não tem fé, quem é egoísta, quem
não polemiza, não age para o melhor. Mas quem possui virtudes, quem
se mata por um ideal realiza o ideal pelo qual morre, “é morrendo que
o homem se torna imortal”, e é em nome dessa ilusão que nós devemos
viver.
O que é I Sepolcri? É uma poesia de duzentos e noventa e cinco
versos hendecassílabos soltos. Deve-se considerar como uma carta
epistolar dirigida a Ipolitto Pindemonte. Esta é a razão do precedente ser o
autor de I cimiteri. É uma carta de caráter lírico didascálico. Lírica, porque
é esse hino amargo, e dessa fé e dessa amargura é didascálica, porque
justamente é cheia de mensagem, de ensinamento, procura convencer,
lançar na alma amargurada dos românticos que sofrem, procura lançar
nessas almas uma fé, um motivo qualquer que justifique a nossa existência,
que faça com que o homem continue a viver e que realize suas ilusões, que
são a pátria, o amor, a poesia, pelos quais nós devemos viver, qualquer
que seja a fé filosófica que nós abraçamos. Acima de qualquer igreja, não
se pode negar certos ideais que são imanentes, na nossa razão prática há
ideais que nenhuma religião e filosofia podem negar. Quem pode negar
a beleza de uma pátria, de uma família honesta ou o conceito do amor,
se a vida é justamente isso? É em nome disso que o homem deve viver;
acabará morrendo, mas é o início de sua imortalidade, de sua historicidade.
Confunde-se nas páginas de um livro e nas vibrações de um coração que
lembra uma ação bonita e de quem a faz.
Bruno Enei
214 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Já explicamos os elementos de caráter introdutório e dissemos


as razões históricas, pessoais e polêmicas que originaram I Sepolcri e
pusemos em evidência o espírito desta obra.
Ela se move em torno de três pontos fundamentais, isto é, os temas
de I Sepolcri podem ser considerados sucessivamente em três momentos:
o primeiro, em que Foscolo fala do culto dos mortos; o segundo, em que
fala da função, do valor dos túmulos, da vivificação estimuladora dos
túmulos à civilização; o terceiro, em que exulta o conceito concreto,
positivo, ideal da poesia. Então temos três temas que naturalmente não
devem ser considerados como trajetoriamente sucessivos, mas como três
variações de um único. Um todo é a Divina Comédia, embora seja tétrica
no Inferno, cheia de paisagens no Purgatório e lírica no Paraíso. I Sepolcri
é sempre a expressão da alma, da sensibilidade romântica de Foscolo: na
primeira parte, que é a elegíaca, na segunda, que é a épica, e na terceira,
que é melódica e lírica.
Foscolo abre I Sepolcri com uma afirmação negativa, com uma
confissão de desespero, com uma atitude pessimista que nos lembra o autor
de Ultime lettere di Iacopo Ortis. Ele se pergunta se, sabendo o homem
ser sepultado ou de não ser sepultado o dia em que morrer, sabendo qual
o destino do seu corpo, ele pergunta se a certeza de ser sepultado pode
ser um conforto para ele: “O homem posto no túmulo, protegido pelos
ciprestes, defendido da chuva, dos animais, sabendo isso, será que o sono
da morte é menos doloroso?” Então, pergunta-se o que significa morrer.
Significa perder a possibilidade de contemplar a natureza, essa visão
variada e colorida de árvores, crescidas e criadas pelo calor e pela luz do
Sol; viver é amizade, amor, quer dizer poesia, canto, quer dizer servir, ter
diante de si um refúgio que não é possível encontrar no presente nem no
passado, pois o futuro é a idade em que esperamos o que se realiza hoje.
É uma espécie de dança da esperança, ou das esperanças.
Foscolo pergunta: “As obras futuras não dançarão mais diante
dos meus olhos? O que me representa se eu sou sepultado como todos
os outros que morrem em outros pontos da terra?” E responde: “Não há
possibilidade de ser feliz, de poder esperar além da morte. Não há nada
que possa levantar-nos nas asas de uma esperança qualquer.” Se o homem
olha o mundo como se fosse morto, nada mais vê na vida do que uma
força eterna, imortal, irracional, mecânica, que tudo consome e que, de
consumação em consumação, acaba com a realidade.
Mas agora vem um segundo momento. Apesar da amarga
constatação de que o túmulo nada serve e que até o túmulo é destinado
a destruir-se, apesar disso, por que o homem deverá negar a si mesmo a
ilusão da imortalidade, que o acompanha ao túmulo? Nenhum homem,
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 215

morrendo, tem a consciência verdadeiramente convencida de que morre


verdadeiramente, crente ou não crente. Nenhum homem tem matemática
certeza de que ele, fisicamente morrendo, morrerá também idealmente.
Há essa ilusão pela qual um morto, morrendo, é capaz de dizer arrividerci.
Ele sente que deve deixar nos outros uma esperança de sobrevivência,
que, até morrendo, deve deixar essa esperança.
É ilusão para Foscolo o que para outros é certeza. Não há essa
certeza para ele, pois Foscolo tem a ilusão ideal, histórica, humana de
uma sobrevivência ligada à nossa saudade, ao nosso afeto. Se o homem,
morrendo, tem a ilusão de que não morrerá, por que deve negar o valor
do túmulo? Nunca poderá negar, se o túmulo representa justamente o
afeto dos póstumos para com o morto, a solidariedade dos vivos para
com o morto. Não é o túmulo uma pedra fria, mas o símbolo ideal de
uma lembrança da imortalidade do homem que morreu, e a imagem
real, sublime, luminosa da ilusão que encontrou a morte no homem que
morreu. Não é o túmulo o conjunto de pedras, mas a imagem de que o
homem, morrendo, quer a imortalidade. O cemitério é uma chama viva
da História; nada mais é do que o mundo dos calmos, dos que serão
eternamente vivos, dos que não morrerão mais. Vivos, num sentido
ideal.
Então, o túmulo tem sua razão de ser e só uma pessoa não tem
nenhuma simpatia, só um povo não tem simpatia com os túmulos: é
com aquele que não fez nada na vida, que sabe que não será lembrado
por ninguém. Então, é uma ironia o túmulo desse homem, se não é
lembrado. Esse povo que não quer túmulo é o vil, o escravo, que não tem
a consciência de morrer por um ideal. Esse indivíduo, esse povo, por que
se preocupam diante do túmulo? Porque é só e tristemente a imagem da
morte e não de uma visão ideal; então, o cemitério é uma coisa tristíssima.
Mas, se vemos nele pessoas que deixaram lembrança, ele é a nossa casa,
como é nos povos modernos o cemitério dos ingleses.
Onde estão os cemitérios mais serenos? Na Grécia antiga e, hoje,
na Inglaterra. Porque os gregos e os ingleses são povos firmes, cheios de
ideais. Lá houve veneração para com os mortos. São lugares onde se vai
conduzir os meninos, para que aprendam com o exemplo dos grandes,
é onde se vai rezar para que voltem os grandes da pátria. Assim fazem
as moças inglesas, vão pedir a Deus que conceda o retorno daquele que
é Nelson, que venceu a Napoleão, a esse homem que tinha a certeza de
morrer, mas que soube ser tão herói, que já pensou em construir seu
caixão para lembrar-se de que deverá morrer, para estar pronto a morrer
a qualquer momento. Até aqui precisaria lembrar a evocação que faz de
Giuseppe Parini.
Bruno Enei
216 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Chegamos até o verso 150. A segunda parte é a heroica; não


triste, não amarga, não dolorosa, mas virgiliana, é a função do túmulo.
“Não é somente a imagem real de uma ilusão, que acompanha um morto
ao túmulo.” É também o lugar das inspirações, dos grandes exemplos, de
onde vêm os propósitos nobres. Toda vez que um povo quer fazer algo
de bonito, ele poderá confessar-se com um povo amigo, mas promete
sempre em nome de uma pessoa que morreu, na qual se inspira. “Duas
coisas os túmulos fazem: estimularam as grandes ações e fazem mais
bonita a terra onde estão.”
Mas num sentido ideal e humano, o lugar mais bonito é o
cemitério, porque é onde se recolhem os mortos, porque é um lugar mais
puro, por ter seres que são vivos idealmente. A presença da morte faz
mais bonita a terra onde o morto jaz. O cemitério se torna como uma
palpitação ideal do que de melhor haja na História. Aqui temos a famosa
página em que Foscolo exulta Santa Croce: é uma igreja onde estudou
Dante, que não é famosa pelo culto, mas de um certo período para cá
ela se transforma no cemitério dos grandes italianos. Então Santa Croce
representa aquela Itália ideal, que no campo das ciências, da arte, da
filosofia, do pensamento soube dar o que possuía de melhor; lá vive
a verdadeira Itália, não a mesquinha dos vivos, mas a dos grandes,
como Machiavelli, ensinando a política, Petrarca, ensinando o amor e
a poesia, Alfieri, inspirando os ideais da pátria, Galileu, lutando pela
Ciência, estimulando. Esses homens aí são o que de melhor deu a Itália.
São a verdadeira e eterna Itália. Representam a verdadeira italianidade,
enquanto os outros representam a Itália natural.
Foscolo, quando visitou Florença, sentiu a beleza da terra, as
águas, o céu, a Lua, mas a coisa que mais o impressionou foi o túmulo
de Machiavelli, de Petrarca, onde se lembrou de Dante, Galileu, Alfieri,
todos eternizados idealmente. Há também em Santa Croce uma lápide
onde se lembra Foscolo. “Essa confiança na eternidade” lembra também
que, no passado, os gregos que combateram em Maratona, embora
fossem inferiores em número aos persas, sentiram-se centuplicados,
porque ao lado dos vivos estavam os mortos.
A terceira parte é o grande conceito que Foscolo tem da poesia.
Siedon custodi de’ sepolcri: as musas, isto é, as deusas que protegem
a poesia invencível, estão em torno do cemitério, dos lugares em que
alguém caiu nobremente, e quando percebem que o tempo com as asas
frias vai destruindo pedra por pedra, “do túmulo elas se levantam e
começam a falar, a embaçar a morte, e o canto delas vence o silêncio de
mil séculos”. Será que a poesia tem essa força? É claro, por uma ação
extraordinária.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 217

A última parte é a exaltação do maior poeta que houve até hoje:


Homero era um cego. Como todos os poetas, ele não cantou por um
amor, um sentimento puro, pela melodia, pelo gosto de exaltar o que é
nobre na vida. Cego, velho, um dia viajou, queria ver os lugares onde
houve aquela luta de dez anos entre gregos e troianos. Naquele deserto
de mil anos começou a perguntar às ruínas, penetrou naqueles túmulos,
e de lá saíram as figuras de Aquiles e Andrômaca, os sacrifícios dos que
amam a pátria, de lá saiu essa Ilíada que canta a tragédia de um povo,
que, acima de sua derrota, por ter resistido à derrota com heroísmo, é
tão imortal e tão eterna como o vencedor. Diante da morte, o que conta
é o modo como se vence e se é derrotado. Aquiles volta, tanto como
Heitor; ambos são eternos, até que o Sol resplandeça sobre as amarguras
humanas, sobre as tristezas da vida.
Há, porém, a imortalidade, que é representada primeiro por
aquele túmulo material e mais tarde por aquele túmulo ideal. Não há
um canto em que, só falando de morte, seja mais dinâmico, enérgico,
juvenil. Parece que Foscolo se propunha em exaltar a morte. A crença, a
ilusão da imortalidade, lutando com a necessidade da morte. É verdade
que o homem morre, mas tudo em nós confirma o desejo de não morrer,
há uma divina força que impele o homem a não morrer, pois sua morte
ou sua vida ideal dependem de suas ações: não ser medíocre, ser capaz
de jogar-se, pois só assim se atinge a imortalidade. É uma declaração de
realizações, uma reconciliação com a vida. O que interessa saber que
morre? O importante é saber que viveu bem.
Este é o ensinamento mais nobre deste poeta. Temos essa síntese
de dois elementos contrários, pois Foscolo mostra a vida: sombra e luz,
tristeza e ilusão se encontram num desejo de viver heroicamente. Sai
desse choque, da certeza de morrer, a ilusão da imortalidade. Até a ilusão
de um ideal vale mais do que um fato. Quem vence a luta entre essas
duas coisas, em que a diferença de valor é enorme, é a ilusão. Então, é o
grande momento da poesia de Foscolo.
Depois de Iacopo Ortis, em que assume uma atividade negativa
diante da vida, depois de I Sonetti, onde aceita, sem reação, sem estímulo,
a lei natural da morte, depois de Le Odi, em que exulta a beleza, a poesia
como duas forças que dão uma razão ao viver, chega esta obra, I Sepolcri,
em que exalta todas as coisas bonitas pelas quais devemos vencer, apesar
das amarguras. Há uma razão na dor da existência. Pelo menos podemos
gastar a existência na ilusão da imortalidade. Esses ideais são a pátria,
a beleza, o amor, a solidariedade, esses conceitos e ideais eternos são
os pelos quais vale a pena viver e superar as amarguras da existência.
Essa exaltação da vida, sem negar que a vida é infelicidade e amargura,
Bruno Enei
218 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

essa valorização da existência, embora não se negue que a vida não seja
infelicidade e tristeza e amargura.

Le Grazie
Constituem um poema fragmentário, que Foscolo nunca pôde
acabar. Não, porém, no sentido da inspiração, isto é, no sentido lírico,
estético, mas simplesmente num sentido material, concreto, isto é, que
não é acabado, como as sinfonias de Schubert. É uma obra que Foscolo
nunca pôde completar, mas, lírica, estética e humanamente Le Grazie
constitui uma outra grande afirmação, um outro grande momento de
Foscolo.
Ele começou a escrever em 1803. Aliás, em 1803 publicou
uns versos que depois colocou neste poema, como se fossem versos
não seus, mas de autores desconhecidos, ignorados, da literatura grega.
Voltou mais tarde sobre o poema, em 1808, mas o período fundamental
em que se dedicou à obra é em 1812-1813.
Neste período, Foscolo se encontrava em Florença, e lá, um
grandíssimo escultor, famoso porque no campo da escultura traz o
Neoclassicismo, como Vincenzo Monti e Foscolo na literatura, e que
se chama Antonio Canova,62 faz a exposição de uma estátua de Vênus,
que deixou uma impressão extraordinariamente profunda na alma de
Foscolo, sobretudo por aquela seriedade própria do Neoclassicismo
na inspiração à beleza. Então Foscolo pensou em escrever um hino a
Vênus, mas este foi devagar alargando-se, completando-se, enchendo-se
de ideias, num plano vastíssimo. Pensou então em escrever, não um hino
a Vênus, mas a Le Grazie. Como elas são três, propôs-se a escrever três
hinos. Aí a origem de Le Grazie.
Depois de 1812-1813, voltou a esse poema, antes de ir ao exílio
em 1815. Mais tarde, em 1823-1824, voltou, sem acabá-lo. Como o
podemos ler hoje, foi feito desse modo por um crítico italiano, Giuseppe
Chiarini,63 que, na base dos versos de Foscolo, pôde dar aos versos
aquela ordem em que se os lê hoje.
Foscolo queria “idoleggiare tutte le idee metafisiche della
bellezza”. Era seu ponto de saída. Queria exaltar todas as ideias,
consequências, efeitos, num plano civil de educação, de sensibilidade,
que a beleza exerce física e espiritualmente. Para Foscolo, a arte, que
é sobretudo beleza no sentido estético, exerce uma função essencial,
categórica, indiscutível.

62
(1757-1822)
63
(1833-1908)
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 219

A beleza, a poesia, a literatura, a perfeição de forma, o ritmo,


o canto representam criação de ideais. Se existem ideais no mundo, é
devido à arte, se existe progresso, é devido à arte, que levanta o homem
num plano ideal de altíssima finalidade, destacando-o dos egoísmos de
aspecto primitivo que são próprios do homem selvagem. O homem chega
à civilização pela arte, que é o conceito altíssimo e verdadeiro que faz
com que tenhamos no poeta a solidariedade, que faz com que fiquemos
rindo diante dos que consideram a poesia um lazer. A arte é, em vez, um
empenho moral, tanto que atribui à beleza a missão de ideais. Como é
que Foscolo considera Le Grazie?
São como os anjos na religião cristã, são divindades
intermediárias entre o Céu e a Terra, elas vinham do alto para o baixo
e do baixo para o alto, distribuindo aos homens o que recebiam de
Deus: a beleza, o canto, o ritmo, a exaltação dos ideais. Isso elas trazem
ao mundo, à realidade, à vida humana, para dispersar, para afastar as
amarguras e criar a harmonia. Seriam os elementos da arte, da beleza e
da poesia, que fazem com que o Céu devagar se estabeleça no mundo.
Só trazem o que Deus lhes concede. Quer dizer que há possibilidade
que o mundo se torne um paraíso, um sorriso de compreensão de ideais,
quando a arte terá essa difusão e compreensão que elimina os choques,
os egoísmos, os aspectos amargos da existência. A arte para elas parece
um evangelho, não é somente poesia. A função de Le Grazie é de realizar
no mundo a harmonia.
A obra de Foscolo é dividida em três inni: o primeiro é dedicado
a Venere, o segundo a Vesta, e o terceiro a Pallade.
No primeiro hino, Foscolo descreve a aparição, o nascimento de
Le Grazie. Pensa-se em Schumann, nessa transparência do mar, numa
luz esplêndida e imóvel, e num certo momento Vênus aparecendo do
mar. Vão para a Grécia. E quando sente-se o efeito da presença de Le
Grazie no mundo grego? Na criação das ciências, da lírica, da tragédia,
então o povo, a civilização grega se humanizam, porque estão diante
da beleza. Le Grazie são esses anjos transferindo para a Terra o que
recebem de Deus e, diante de Sua presença, o mundo grego se humaniza.
Começa lá a origem da cultura ocidental, a civilização baseada na ideia,
na Filosofia, no Direito, na Arte, que é a origem de tudo que pensamos e
sentimos no mundo europeu.
E continua Foscolo nesse primeiro livro a descrição da passagem
das grazie64 do mundo grego ao romano, criando a civilização romana.

64
As três Graças, Aglaia, Talia e Eufrósina, divindades pagãs, personificações da beleza
graciosa e sedutora.
Bruno Enei
220 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Querem os romanos dizer serem descendentes dos deuses, mas, afinal de


contas, o próprio Eutrópio65 diz que viveram no meio de ladrões. Roma
era pobre e cheia de dificuldades, mas quando esse povo, dominando a
Grécia, foi vencido pela literatura grega, criando aquele senso prático
da existência, aquele senso de direito, que faz com que o povo romano
ainda hoje não seja esquecido, por aquilo que soube dizer em todos os
campos de ciências, ainda hoje o mundo latino não é esgotado.
Foscolo então descreve a aparição das grazie na Grécia e em
Roma, fundando na Itália o Humanismo e a Renascença. Aparece uma
poesia com Dante, Petrarca, Boccaccio, Ariosto, Machiavelli, mas
sobretudo com o Romantismo, que significou a luz diante das trevas,
do nada. O choque anunciando que as grazie estão iminentes a voltar,
depois de um período de decadência, que são o Parnasianismo e o rococó,
a voltar com os românticos, de quem Foscolo é um dos expoentes.
O segundo hino é aquele em que Foscolo descreve uma paisagem
florentina, um colle66 que se chama Bellosguardo. Foscolo amou
Florença intensamente, por ser o centro da cultura italiana, da liberdade,
da crítica, da ciência, da arte italiana. Foscolo, que era um humanista,
um grego de gosto, não podia deixar de apreciar Florença. Um dos colles
que mais amou foi Bellosguardo. Descreve então a criação de um altar,
improvisa um rito para as grazie, e as sacerdotisas não são padres, mas
mulheres, moças, que representam idealmente três grandes ideais: a
música, a poesia e a dança.
A música é representada por Eleonora Nencini (Florença),
a poesia, por Maddalena Bignami (Bolonha), e a dança por Cornelia
Martinetti (Milão). Assim, temos três expressões da beleza feminina
italiana: a florentina, uma moça viva, inteligente, fria, aguda; a bolonhesa,
loira, humana, simpática; a milanesa, calma, materna, familiar. São três
mulheres representando três amigas, três aliadas de Le Grazie. Entender
como os versos dançam na poesia do poeta. Neste segundo hino
descreve o auxílio que recebem das três, para a realização da harmonia
do mundo.
O terceiro hino é dedicado a Pallade. Ela nasceu da cabeça de
Júpiter. É a deusa a quem é dedicado o terceiro hino. Mas aqui Foscolo
não descreve mais o mundo em que se vive, mas uma ilha mitológica,
lendária, fantástica, a Atlântida, imaginada como o reino de Pallade.
Aí se retiram as três grazie, aí elas se refugiam, tornando-se alheias ao
mundo, pois elas não querem submeter-se às tentações, não querem que

65
Historiador latino do século IV.
66
Morro, outeiro.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 221

a beleza seja sujada pela presença da realidade. Exilam-se num mundo


irreal, e lá constroem um véu alegórico, com o qual se escondem, para
não permitir que a dor, o pranto, a violência, os instantes possam tentá-
-las, obscurecê-las.
Não há na poesia de Foscolo versos mais bonitos do que os
escritos para Le Grazie. São perfeitos, cristalinos, transparentes, de uma
musicalidade, desse sonho de uma intimidade que lembra a literatura
grega, de um esplendor que lembra Horácio, mas, com tudo isso,
podemos dizer que Le Grazie são inferiores a I Sepolcri. Porque Foscolo
é verdadeiramente poeta quando a felicidade é o resultado de uma
superação da dor, quando descreve uma realidade à sombra da amargura,
a alegria à sombra da tristeza, a perfeição à sombra de imperfeição. É
poeta quando os dois opostos se encontram e se chocam: a imortalidade,
as ilusões, a crença.
Foscolo é grande quando Heitor e Aquiles se tornam imortais;
mas fica o mundo sempre como infelicidade, mas já à luz de uma centelha,
sempre o Paraíso perto da Terra, sempre a aurora depois da noite, sempre
as estrelas como um reflexo do mundo. Mas, em Le Grazie, canta-se a
beleza fora de qualquer relação com as amarguras da vida. Nesta obra
falta o drama, a superação, pois canta um dos polos da visão da vida, a
beleza, essa ilusão, que foi um dos motivos fundamentais de Le Grazie.
Mas nós o apreciamos quando ele é amargurado, cheio de reflexos
sombrios. Foscolo não canta um Paraíso fora do Inferno, mas como
uma superação do Inferno, por isso sua obra-prima é I Sepolcri, e Le
Grazie, porquanto perfeita e gloriosa, deixa quase insatisfeito, quase frio
o leitor, porque tem-se a impressão de que é uma simples visão de uma
coisa irreal, que gostaríamos que fosse e que não existe, não havendo
um convite para lutar. É a felicidade já existente e não a conquista do
homem que luta, que realiza nesse mundo porque trabalha e porque está
pronto a se sacrificar.
Iacopo Ortis é a obra da paixão e da pátria, I Sonetti é o
momento da contemplação diante da lei natural que define e restringe,
Le Odi afirmam os dois motivos pelos quais se deve viver, a beleza e
a poesia, I Sepolcri descrevem o culto dos mortos, e agora, exultando
metafisicamente, Le Grazie canta esse mundo de beleza, que vinha ao
nosso mundo.
Bruno Enei
222 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

A crítica de Foscolo

Não se pode chamar Foscolo de renovador da crítica italiana do


século XIX, não é a ele que cabe este título, porque Foscolo não é um
filósofo do Romantismo, porque ele não abraçou os ideais da estética
romântica. O verdadeiro criador da crítica romântica italiana é, em vez,
Francesco De Sanctis, grandíssimo crítico. Um homem que teve uma
repercussão enorme também fora da Itália e que viveu entre 1817 e
1883. A ele devemos a famosa História da Literatura Italiana, os ensaios
Saggi, as monografias de Giacomo Leopardi e Francesco Petrarca, que
renovaram a crítica italiana.
Embora não caiba a Foscolo o título de renovador da crítica
italiana, não podemos colocá-lo perto dos outros críticos anteriores
ao século XIX, porque há uma grande diferença de valor, de gosto, de
sensibilidade, de seriedade entre a crítica de Foscolo e a anterior a ele. A
crítica anterior a Foscolo na Itália não ia além da biografia do escritor. E
quando a crítica se interessava pela obra d’arte, não ia além do formalismo
da obra d’arte. Antes, era ligada a um gosto literário que deixava a obra
no seu sentido universal, completamente indiferente à sensibilidade do
leitor. Não procurava o tema de inspiração. A crítica não sabia individuar
o interior de uma obra d’arte. Foscolo tem sobretudo esta qualidade.
Sendo um poeta que considera a obra d’arte como sentimento,
alma, avizinha-se aos grandes poetas italianos, procurando-os como
coerência. Na obra d’arte, procura o homem, não distingue o escritor do
homem, quer que a obra d’arte, seja uma provação do homem, é uma
responsabilidade humana de quem escreve. Quem escreve um poema
não é um escritor no sentido de literato, mas que se empenha na obra
d’arte como se fosse sua mensagem. Então é notável esse progresso
que a crítica faz com Foscolo, porque é o crítico de certos poetas e de
certos períodos, como Dante, Petrarca e Boccaccio, e sobretudo dos
primeiros vinte anos da literatura do século XIX, e depois, de um grupo
de escritores dramáticos. Por isso mesmo sua necessidade de procurar
em Dante o homem, em Petrarca o anunciador, em Boccaccio o poeta
que descreveu o nosso apego à existência, daí o fato de ele procurar nos
poetas dos primeiros vinte anos do século XIX, em que viveu, e o fato
de viver procurando sobretudo em outros períodos, nos dramáticos, tudo
isso significa alguma coisa na figura de Foscolo. Em suma, quer que a
obra d’arte seja a imagem do homem.
Quais os limites da crítica de Foscolo nesse sentido? Todos nós
queremos hoje que a obra d’arte seja a imagem do homem. Faltaria isso,
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 223

que o poeta escreve uma coisa e age de outro modo. Queremos que o
que o poeta diz seja sua fé, sua luta, que os ideais não sejam ideais de
eloquência, de retórica. Não, a obra d’arte deve ser a imagem do que
intimamente ele sente e acredita.
Mas chega isso para que ela seja uma obra d’arte? Além de o
conteúdo ser verdadeiro e coerente, além dessa moralidade, há algo
que a distingue de qualquer outra produção, isto é, a imagem, a forma,
essa síntese, essa unidade de ritmo e de sentir, que é a conquista do
Romantismo. A obra d’arte deve sair do sentimento, da sinceridade, de
uma exigência moral, deve ser uma coisa necessária, deve ter um caráter
universal. Não deve ser uma imitação, reprodução literária, lírica, de um
sentimento; o que faz um poeta não é somente isso, mas ele deve fazer
com que essa visão da realidade se transfigure numa realidade fantástica.
Então essa estética romântica, essa concepção de unidade, de conteúdo
e de linguagem, pela qual o conteúdo vale tanto quanto a expressão, aí
Foscolo é deficiente, pois não tem a clareza de De Sanctis e de Croce.
Obras críticas: Discorso sul testo della Commedia di Dante:
Foscolo procura a coerência da sorte de Dante, que era um homem
indignado com uma realidade medíocre, e da sua insatisfação, a imagem
era a Divina Comédia; Saggi sul Petrarca; Saggio storico sul testo del
Decamerone; Saggio sulla letteratura italiana; Della nuova scuola
drammatica in Italia.

Vida de Foscolo

Nasceu numa ilha famosa, Zante ou Zacinto, que é aquela a que


dedica o soneto A Zacinto. Seu pai era de Veneza e se chamava Andrea.
Sua mãe era grega, Diamantina Spathis. Foscolo teve uma irmã, que
se chamava Rubina, e dois irmãos, Giovanni e Diogini. Ugo, afinal de
contas, não nasceu na Itália, mas numa ilha do mar Jônio. Mas como é
que é italiano? Porque a ilha pertencia à república de Veneza.
Estudou num primeiro momento na ilha onde nasceu, e mais
tarde foi estudar em Spalato. Desde os primeiros anos, conhecia o grego
e o latim perfeitamente. Em 1788, isto é, quando tinha dez anos, o pai
dele morreu, e então Foscolo, com sua família, se transferiu para Veneza.
Depois das escolas secundárias, Foscolo frequentou a Universidade de
Pádua. Em Ultime lettere ele é imaginado como um estudante que teve
de interromper seus estudos porque, em 1797, Napoleão faz um acordo
Bruno Enei
224 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

com a Áustria, cedendo Veneza e, em compensação, recebendo Milão.


Esta troca foi uma decepção aos ideais juvenis dele.
É interessante saber qual a sua educação e orientação cultural.
Sempre na educação dele se observam esses dois fatos: Foscolo é o
poeta que concilia na sua formação o antigo e o moderno, o passado e o
contemporâneo, o Classicismo e o Romantismo. Sempre baseado nesse
idealismo de poetas gregos, latinos e românticos. Não é o homem que
se fecha na biblioteca, que se afasta da realidade contemporânea, mas
também não esquece o Classicismo. Há sempre nele essa unidade que é
o realizar de uma força contrária, uma de caráter formal, de tradição, e a
outra, em vez, romântica, contemporânea.
Assim é que Foscolo conheceu os poetas e prosadores da literatura
grega e latina e todos os contemporâneos a ele, não somente na Itália,
mas também na Inglaterra, França, Alemanha, entre outros. Foscolo,
além de ser um estudioso, era um homem de ação, um homem corajoso,
que amou profundamente viver. Essa é a expressão do Romantismo, do
seu anseio de viver. Ele apreciou a vida e, se dela se afastou, é porque
a queria melhor do que na realidade era. Sempre teve o anseio de agir,
de realizar ações. A vida, além de oferecer-lhe a possibilidade de ser
escritor, também lhe ofereceu a de atuar. Duas coisas são notáveis nele:
o amor e a ação.
É um dos poetas bonitos fisicamente: pescoço comprido, cabelos
vermelhos, magro, de rosto pálido. Por isso, amou e imensamente foi
amado: dezenove foram as moças enamoradas de Foscolo, num sentido
idealíssimo. É preciso ler o Epistolario dele para saber quais eram os
sentimentos, a amizade que ele sentia; ele gostava, tinha prazer em viver
junto a moços e encorajá-los, tudo isto no meio da mocidade. Essas
cartas são as coisas mais bonitas da literatura italiana. Ele fala sobre
a inocência, a intimidade, a sinceridade. Dois nomes famosos que ele
amou foram Luigia Pallavicini e Antonietta Fagnani Arese.
A ação para ele significa sobretudo heroísmo: foi militar
combatente, tomou parte como voluntário em guerras, foi ferido duas
vezes, em Cento e em Trebbia. Então isso demonstra não um homem
fechado na sua solidão, mas um homem que procurava reviver a
realidade. Ele teve uma coragem extraordinária e, enquanto Napoleão
era um de seus ideais, teve expressão de admiração extraordinária por
ele, escrevendo uma ode a Napoleão, mas quando traiu Veneza, com a
mesma coragem Foscolo publicou a traição de Napoleão.
Em 1815, Foscolo vai ao exílio, porque, depois da batalha de
Waterloo, Napoleão sendo derrotado, volta à Itália setentrional, voltando
a Áustria a dominar em Milão, até 1918. Então, diante da volta dos
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 225

austríacos, diante do inconformismo, Foscolo vai ao exílio, e assim, um


dos maiores políticos, que é Giuseppe Mazzini,67 disse que um poeta
ensinou aos italianos a rua da dignidade: afastar-se da terra para não ceder
a dignidade, preferindo a miséria do que viver insatisfeito na terra.
Esteve primeiro na Suíça e, depois, na França. Conheceu uma
moça inglesa e dela teve uma filha, que era Floriana. Mais tarde, também
abandonou a França e foi viver na Inglaterra, em Londres. Lá Foscolo
viveu dando aulas, escrevendo ensaios, traduzindo, e pôde a um certo
momento ter uma certa facilidade monetária, era quase rico, dispunha
de uma certa quantidade de dinheiro. Mas se há um poeta que nunca
apreciou dinheiro, pela sua generosidade e seu vício, pois era amador
de cavalos, por essas razões, por falta de equilíbrio, constrói uma casa
grande e acaba cheio de dívidas, numa pobreza esquálida.
É triste, porque um poeta tão idealista não devia conhecer
também a pobreza, com sua amargura e insatisfação. Apesar disso,
comprometeu até sua filha, pois a herança da mãe, ele a esbanjou. Em
1827, Foscolo morreu, num lugarejo perto de Londres. Em 1871, isto
é, depois da unificação italiana, quando Roma voltou a ser a capital da
Itália, em vinte de setembro de 1870, o governo fez tudo para que o corpo
dele voltasse à Itália, com as maiores honras. Esse homem, expressão
altíssima do Romantismo italiano e europeu, com sua sensibilidade, foi
trazido à Itália, e seu corpo está hoje na Igreja de Santa Croce, de quem
foi o maior exaltador. Num canto de Santa Croce, repousa já ao lado dos
grandes.

Giacomo Leopardi (1789-1837)

Onde é que nós achamos os motivos, as razões humanas,


culturais, psicológicas, íntimas, da participação de Leopardi no
movimento romântico? Quais são os motivos pelos quais Leopardi deve
ser enquadrado na atmosfera espiritual da literatura italiana do século
XIX?
Mais ou menos podemos dizer que as razões e os motivos da
participação de Leopardi no Romantismo europeu são os mesmos de
Foscolo, isto é, também em Leopardi, também na sua poesia, na sua
prosa, no seu pensamento, no seu epistolário, sempre nas suas obras se
vê um drama, um choque, uma contradição, um contraste, de onde surge
67
Patriota italiano (1805-1872).
Bruno Enei
226 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

sua afirmação lírica. Esta se distingue da afirmação lírica de Foscolo,


porque em Foscolo há de interessante e de singular o seguinte: este
homem, partindo de uma atitude profundamente pessimista, de uma
atitude cética, como ele o manifesta, como ele o diz e descreve nas
Ultime lettere di Iacopo Ortis, dessa atitude de negação, chega em vez a
uma afirmação de caráter humano e religioso altíssima.
Foscolo, que começa negando a existência, chega a dizer, em
1807, que a existência tem sua razão de ser, que o homem deve viver
e que o dever na vida se realiza atuando grandes ideais, que até ideais
não são, porque Foscolo não chega a afirmá-los como ideais, mas como
ilusões. Apesar de tudo isso, de serem nada mais que ilusões, Foscolo
chega a afirmar que não precisa morrer, que o homem não deve eliminar
a existência, mas empenhá-la na realização dos ideais.
Mas depois, Leopardi não tem esse dinâmico otimismo. O
drama nele não encontra uma solução. Nunca chega a uma fé diante da
existência. Sua poesia, por essa razão justamente mais sublime, menos
apostólica, menos oratória, por essa razão, ela, no seu desenvolver, dá a
impressão de um afastamento da realidade.
Enquanto em Foscolo o poeta escrevendo suas obras vai se
avizinhando da realidade e sentindo o dever de um homem de ser um
ator da realidade, o real para Leopardi é tão medíocre, tão modesto, que
seu idealismo o leva a afastar-se dele, pondo-se diante dos fenômenos
do mundo com uma atitude de contemplação, de espectador, de homem
que só olha. Poder-se-ia pensar num grande filósofo dessa idade, que
desperta as mais íntimas sensações: quando se fala em Leopardi, pensa-
-se em Schoppenhauer, que afirmou que o cristianismo venceu porque
era a filosofia do pessimismo, que disse que o homem só nasceu porque
o nascimento é um pecado original, porque são tantas as amarguras na
existência, que só poderia ser como um castigo. A vida é vontade de
viver e por isso é luta, é agressão, e na sua manifestação representa cada
um de nós, que é a vontade de viver.
A diferença, porém, entre essa amargura desesperada
de Schoppenhauer e a amargura de Leopardi está no seguinte:
Schoppenhauer deseja que o homem supere a própria individualidade,
porque, matando a vontade, mata o todo, e assim acaba o mundo, a
existência acaba no nada. Se nós matarmos a vontade, que quer dizer
querer viver, o que existe? Não existe a luta, o progresso, o mundo
para, e ele olha isso com satisfação. Mas em Leopardi há uma profunda
insatisfação diante da insuficiência da realidade. Ele não fica satisfeito
em afirmar que o mundo é pequeno e a realidade, inferior às nossas
aspirações. Ele queria que o mundo fosse mais puro, elegante, e então
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 227

ele se afasta da realidade. Ele faz isso por um excesso de idealismo, e


não por ceticismo.
Num diálogo de Francesco De Sanctis intitulado Schoppenhauer
e Leopardi, foi dito que, se Schoppenhauer entrasse na Itália com suas
ideias de pessimismo, o primeiro a parar as pernas de Schoppenhauer
seria Leopardi, o seu irmão, que, embora tenha uma concepção amarga
e triste da realidade, sofre por isso e gostaria que fosse diferente, que
fosse tão bonito como os nossos ideais, um mundo que poderia ser o
mundo dos ideais. E, como diz também Schoppenhauer, que poderia
ser feito não de fenômenos, isto é, de aparências, de enganos, mas de
realidade absoluta, como são justamente os ideais de Platão, que vivem
numa esfera longe do mundo e que ele chama de Hiperurânio, dos
nossos ideais e ideias na sua absoluta realidade, assim como é o Deus
do cristianismo.
Esta é a desolada e sublime poesia de Leopardi. Esse contraste
dessa visão amarga da realidade, cheia de lágrimas, que não se satisfaz
com isso, que gostaria que fosse diferente, que, para vencer sobre
a realidade, se afasta dela, colocando-se nessa visão ideal do que
verdadeiramente é o perfeito e que o mundo deveria ser, se não fosse
como é. Então, sua poesia é tipicamente lírica e moderna, e é essa a
razão pela qual, se Foscolo teve a importância que teve, exaltando
princípios e ideais que levaram a mocidade italiana às grandes guerras,
se é o cantor da beleza, da poesia, Leopardi não é somente um que
fica no âmbito nacional, mas um que fica num âmbito das impressões
mais puras e límpidas. Foi mais apreciado, num primeiro momento, no
estrangeiro do que na Itália.
Em que consiste a poesia de Leopardi? É feita de breves
líricas e são poucas as obras volumosas de Leopardi. Não é muito
grande a produção literária de Leopardi. As obras representam só as
suas líricas, sua poesia, essas coisas breves, em que ele se subjetiviza
numa esperança, numa lembrança. Então, quem é que dá força às suas
poesias? De onde sai essa tonalidade de amargo e de doce, de graves
e de agudos, de desespero e de esperança, de passado e de futuro, que
constitui o organismo de Leopardi?
Sai dos estados de alma, onde a contradição filosófica e emotiva
não sabe encontrar uma solução. Quer dizer que o drama dele é este: uma
contradição que determina, de momento em momento, na mocidade ou
mais tarde, uma emoção, uma psicologia; é o que de mais romântico
possa existir, porque nunca Leopardi escreveu uma poesia na base da
lógica, raciocinando, é sempre um canto de um estado de alma que ele
exclusivamente representa para si mesmo, numa confissão submissa,
Bruno Enei
228 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

numa confissão que não tinha testemunhas, num colóquio sem pudor e
com infinito pudor. Sem pudor, porque diz tudo que sente, e com pudor,
porque o diz com uma nobreza extraordinariamente grande.
Então, é a contradição que determina em Leopardi um particular
estado de alma, um particular estado de espírito, que provocam essas
expressões e revelações líricas que são as suas poesias, que começam
com o ano de 1817 até 1827, uns poucos dias, umas poucas horas, uns
minutos antes que morresse. Uma de suas poesias foi ditada minutos
antes de morrer.
Esse contraste, esse drama, em que consiste? Nessa
insatisfação tipicamente romântica e tipicamente nossa, também
nessa insatisfação que faz com que a gente não fique satisfeita com
a realidade. Há continuamente em cada um de nós, e sobretudo nos
sensíveis como Schoppenhauer, Leopardi, Goethe, Shakespeare, Dante,
essas grandíssimas expressões, há algo de intimamente polêmico
com a realidade, no meio da qual agem. Surge um pretexto que pode
ser religioso, político, musical, entre outros. Qual era seu problema?
Descobrir por que vivemos. Qual a razão da existência? Por que viemos
e por que devemos fazer o que devemos fazer?
Se a gente raciocina sobre tudo isso, a gente se desespera,
como aconteceu com Tolstoi. Essas perguntas são de uma tragicidade
extraordinária, essas perguntas demonstram o drama das pessoas. O
problema é esse: qual a razão da existência, por que devemos sofrer, a
dor é uma necessidade? Como é que a dor sai da perfeição, que a dor é
algo consciente ou é algo fatal, misterioso? Qual a razão dessas lutas,
dessas guerras, dessas epidemias, desse perigo eterno do homem? O que
faz a gente viver? Por que tudo isso? Essa é a vida, esse é o melhor dos
mundos? Leibnitz dizia que o mundo é formado de indivíduos no melhor
dos mundos. Há essa perfeição? Podemos ficar satisfeitos com o mundo
como é?
Leopardi era também de uma cultura extraordinária. Em 1809,
quando tinha onze anos, já escrevia tragédias e traduzia obras gregas
e latinas; com quinze, escreveu uma obra, Storia dell’ astronomia; em
1815, com dezessete anos, escreveu um enorme livro, que dedicou a seu
pai: Saggio sopra gli errori popolari degli antichi. Depois de 1812, com
catorze anos, já sabia francês, latim, hebraico, alemão, inglês e espanhol.
E durante sete anos, que ele chama de esperadíssimos, fechou-se Leopardi
na biblioteca de seu pai, de 1810 a 1817, e noite e dia estudou todos os
livros, o que foi a razão da sua enfermidade física, de uma corcunda e de
sua vista, que lhe proibia absolutamente de ler.
A cultura de Leopardi era uma cultura essencialmente baseada
Bruno Enei
Início da década de 1950
Autor: Não identificado
Acervo: Ricardo Enei
Bruno Enei
Década de 1930
Autor: Não identificado
Acervo: Ricardo Enei

Bruno Enei
Década de 1930
Autor: Não identificado
Acervo: Ricardo Enei
Da esquerda para a direita,
Giuliana Enei, Maria Enei e
Ricardo Enei
Década de 1950
Autor: Não identificado
Acervo: Casa da Memória

Bruno Enei e Maria Enei


Início da década de 1940
Autor: Não identificado
Acervo: Ricardo Enei
Bruno Enei (à direita)
No exército italiano
Década de 1930
Autor: não identificado
Acervo: Casa da Memória
Bruno Enei
No exército italiano
Década de 1930
Autor: não identificado
Acervo: Ricardo Enei

Bruno Enei (centro)


No exército italiano
Década de 1930
Autor: não identificado
Acervo: Ricardo Enei

Bruno Enei (terceiro da


direita para a esquerda)
No exército italiano
Década de 1930
Autor: não identificado
Acervo: Ricardo Enei
Bruno Enei (segundo da direita para a esquerda), em
uma reunião de amigos na Itália.
Década de 1930
Autor: não identificado
Acervo: Ricardo Enei

Bruno Enei na Itália


Década de 1940
Autor: não identificado
Acervo: Ricardo Enei
Bruno Enei em sua
juventude na Itália
Década de 1930
Autor: não identificado Da esquerda para a direita, Elias J. Curi, Bruno Enei e Barros
Acervo: Ricardo Enei Junior, em jantar oferecido na casa do cônsul Carlos Masini,
em Ponta Grossa.
Década de 1950
Autor: não identificado
Acervo: Casa da Memória

No mesmo jantar, Bruno Enei com Carlos Masini


Década de 1950
Autor: não identificado
Acervo: Casa da Memória
No mesmo jantar, da esquerda para a direita, Albari Guimarães, N.I., Bruno Enei e
Jovanni Masini.
Década de 1950
Autor: não identificado
Acervo: Casa da Memória

Ainda no mesmo jantar, da esquerda para a direita, Bruno Enei, Camila Concesi,
Maria Enei e Margherita Masini.
Década de 1950
Autor: não identificado
Acervo: Casa da Memória
Prof. Bruno discursando, como paraninfo, por ocasião da formatura
dos bacharéis em Letras Neo-Latinas, no Clube Guaíra, em 8/12/1958.
Autor: não identificado
Acervo: Sigrid Renaux

Cerimônia de formatura dos licenciados em Letras de 1959. Da esquer-


da para a direita, Prof. Meira de Angelis, N.I., Prof. Faris Michaele,
Prof. Paschoal Salles Rosa, Prof. Leonidas Justus, Manoel Machuca e
Prof. Robert Karel Bowles.
Autor: Não identificado
Acervo: Sigrid Renaux
Evento no Colégio Estadual Regente Feijó com a presença do e Bruno e
Maria Enei, sentados, à esquerda.
Década de 1950
Autor: não identificado
Acervo: Ricardo Enei

Ricardo Enei
descerrando a foto
em homenagem ao
seu pai na Biblioteca
Pública Municipal
Professor Bruno Enei,
em Ponta Grossa.
Década de 1960
Autor: não identificado
Acervo: Ricardo Enei
Discurso do professor Bruno Enei em evento cultural
Década de 1950
Autor: não identificado
Acervo: Casa da Memória

Bruno Enei em entrevista concedida ao Canal 12 de Curitiba


Década de 1960
Autor: não identificado
Acervo: Casa da Memória
Formatura dos licenciados em Letras Neo-latinas, na Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Ponta Grossa, em 1959, com Sigrid Renaux
recebendo diploma de licenciada e o Prof. Bruno Enei em pé, à direita.
Autor: não identificado
Acervo: Sigrid Renaux

Sigrid Renaux recebendo medalha de ouro do Rotary Club Ponta Grossa,


das mãos do Sr. Elício Mezzomo, em 8/12/1958, com o Prof. Bruno Enei
aparecendo de costas (primeiro à esquerda).
Autor: não identificado
Acervo: Sigrid Renaux
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 241

nos princípios do Iluminismo, no Racionalismo; pôs então a razão acima


de tudo, e explicando a natureza pela razão, como se isso fosse possível.
Além disso, aquela cultura não lhe fazia ver o que o Romantismo
afirmava, não lhe fazia ver uma mobilidade da natureza, uma lei de
progresso, de desenvolvimento da realidade. Diante da natureza e da
realidade, Leopardi via uma imobilidade, uma irracionalidade, um
mecanicismo sem razão e fim.
Leopardi precisou da filosofia romântica de Kant e, mais tarde,
do atualismo de Gentile e Croce para entender que a realidade tem
sua lógica e a natureza, sua razão de ser. Leopardi via esse contraste
enorme entre os inícios de sua alma, querendo e realizando ideais, e uma
realidade imóvel. De um lado, uma realidade sem fim e sem razão; do
outro, uma realidade querendo-se realizar, mas contradita eternamente
pela realidade. Esse é o drama da existência, dos que sofrem, como
Pascal e Montaigne, que se torturavam com problemas de espírito. Por
esses motivos, pela densidade, pela variação de temas, pela capacidade
de observação que tinha e que lhe permitia ver sua amargura e sua
visão triste da realidade, sempre realizada, sempre inata, por essa razão
Leopardi se torna uma das vozes mais puras do idealismo europeu.

Vida de Leopardi

Nasceu numa cidade pequena, Recanati, do interior italiano.


Existem duas: uma perto do mar Adriático, e à direita fica a vila de Gigli.
Mais longe, existe a cidadezinha que está entre o mar e os Apeninos, na
região de Marche. E no centro de uma praça está o palácio de Leopardi.
É uma cidade sem cultura, muito acanhada, habitada por operários,
fechada entre os Apeninos, onde Leopardi de amigos não tinha senão a
natureza: os montes, o mar e o monte do “Infinito”. O resto, a população,
odiou-o profundamente. Por isso que, numa poesia, Le ricordanze
(1829), ele lembra esse lugar e diz palavras amargas, o que é raro nele.
Aqui é amargo por ser excessivamente objetivo.
Quando nasceu, pertencia a região ao Estado da Igreja. Significa
que aquela região, junto à Úmbria e ao Lácio, vivia abaixo de princípios
políticos que não eram alheios àquela atitude dogmática da Igreja. Não
podemos falar de ideias liberais, abertas. Esta foi a atitude de Leopardi,
a não ser depois de 1817, por umas amizades e leitores ele abandonou
esses princípios dogmáticos, cantando as novas de liberdade.
Bruno Enei
242 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Seu pai era Monaldo, um homem de ótimo coração: um pai


meigo, gentil, mas não prático, cheio de cultura clássica. Escrevia e era
profundamente ortodoxo, quer no sentido da fé católica, quer na política.
Sua mãe chamava-se Adelaide Antici e era de origem romana. Tanto o
pai como a mãe eram marqueses, pertenciam à nobreza e eram ricos,
mas as poucas qualidades econômicas do pai prejudicaram a situação
econômica de Leopardi.
A administração cabia à mãe, que era severa, rígida, mas boa
de coração, e essa influência manifestou-se sobre o caráter dela, a quem
faltava essa sensibilidade que é própria da mãe. Muitos poetas sentem-
-se ligados à mãe, sobretudo os que pela mãe aprenderam a pintura, a
música, etc. Mas a de Leopardi era austera e pouco aberta à compreensão
de um filho tão genial e cheio de preocupações.
Foi o primeiro dos oito filhos. Sua infância é o período de sua
alegria, felicidade, seu entusiasmo e apego à vida. Sua precocidade o
ligou à realidade desde os primeiros anos de vida. Sentiu o prazer de
viver, da amizade, do amor, dos campos, das pessoas, da leitura, da
imaginação, que mais tarde será o tarlo68 que acabará ruindo sua alma e
que jogará uma sombra no seu espírito. Mas a infância é quanto de mais
bonito possa haver em sua vida. Bastaria lembrar versos como “Quanti
imagini...”. Uma infância extraordinariamente bonita, que é porque
Leopardi também realiza o que ele lia.
Na sua infância ele representa aos seus irmãos, fazendo defesas
na forma de Cícero, ou representando Brutus, ou os gregos, ou como
Demóstenes. Tudo que aprendia se tornava realidade: ele se fazia
levar num carrinho, representando Milcíades, entre outros. Porém, sua
felicidade também tem o limite, que é a infância. Porque, logo depois
dos primeiros doze anos, começaram a aparecer as consequências de
um desesperado estudo, que deformaram seus olhos, suas costas e seu
físico. Leopardi vê seu corpo deformar-se cada vez mais, vê seu corpo
tão inferior às suas qualidades e anseios espirituais.
Até 1812, os primeiros catorze anos foram no campo dos
estudos, guiados por dois padres: D. Giuseppe Torres e D. Sebastiano
Sanchini, e já com catorze anos ele tinha traduzido obras gregas e latinas
e escrito dramas. De 1812 a 1815, é o período de formação da cultura
dele. Começa quando se torna independente, quando se torna autodidata,
não precisa mais de mestres, trabalha sozinho. E seus interesses num
primeiro momento são filológicos. Por isso, começa a estudar o latim,
o grego, francês, alemão, espanhol, hebraico. E lia todos e escrevia no

68
Caruncho.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 243

original. Então esse início de saber, de conhecer tudo, não somente na


literatura, mas no campo da ciência.
Então começaram a sair os primeiros frutos desse gênio. Em
1814, escreveu uma Storia dell’astronomia; em 1815, sobre os erros dos
antigos. Seus primeiros interesses são de caráter filológico: quer conhecer
as línguas, a natureza, quer fazer uma cultura imensa, porque pensa que
poderá conhecer o mistério da existência, o segredo do mecanismo da
realidade humana e sobrenatural, tem o desejo de conhecer o porquê da
existência. Para isso, servia-lhe imensamente a biblioteca do pai. Dormia
na biblioteca. Dias inteiros escrevia, resumindo, fazendo dicionários.
Em Lo Zibaldone, recolhe todos os pensamentos e impressões,
considerações sobre obras que leu e que deixaram uma impressão em sua
alma. Até 1816, sua cultura tem um alvo exclusivo: a erudição. Mas em
1816 Leopardi sente o cansaço da erudição, sente o nojo do saber, sente
que o saber não tem valor quantitativamente, mas qualitativamente. Não
é necessário saber tudo, mas o problema é o ordenar, o criar um modo
de ver a realidade, é o descrever a si mesmo e fazer o exame da própria
consciência, e então Leopardi sente que deve tornar-se escritor e poeta e
procurar os meios de expressão de linguagem para exprimir tudo: suas
amarguras e insatisfações. Então, 1816 é o ano da conversão, em que
abandona a erudição e se põe no campo da literatura e filosofia.
Estuda os filósofos, para poder criar um sistema dele, para sentir
e ordenar a realidade e os problemas dos homens e ao mesmo tempo
conhecer aquele modo de exprimir toda sua sensibilidade. Começa a
estudar os escritores do Romantismo e depois, do século XVII, e depois,
do século XV, os trecentistas, e depois, a literatura contemporânea.
Aí sente Leopardi ser escritor, e começa suas primeiras atividades. E,
interessante, é um poeta tipicamente lírico, não poderia ser outra coisa
senão um lírico, um poeta que é expressão de atitudes íntimas, ligadas
à sua consciência e sensibilidade. Nunca acharemos descrições, coisas
que fiquem fora dele. Ele é a projeção de sua interioridade.
É lírico o poeta cuja poesia é exclusivamente imagem, projeção
melódica do que sente, fora de qualquer tradição e disciplina. Apesar
disso, Leopardi não começou como poeta lírico, mas justamente com
essa conversão que transformou suas ideias políticas, religiosas e morais,
começou exultando, sofrendo, cantando sobre o problema italiano. E aí
temos as poesias patrióticas (1818-1819).
Além dessa conversão, essas poesias são devidas a Pietro
Giordani, um homem que via em Leopardi o cantor dos problemas civis
e patrióticos italianos, porque era filho de condes e vivia no Estado
Pontifício. Incitou-o a escrever poesia de caráter político. Mas Leopardi
Bruno Enei
244 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

depois abandona tudo isso e se vai fechando cada vez mais diante de sua
intimidade, exprimindo sua amargura e infinitos anseios do infinito, que
é próprio de sua poesia.
Temos os Primeiros idílios (1819-1921). O primeiro período se
reduz a um ano: 1822-1823. Leopardi num primeiro momento acreditava
que sua infelicidade e insatisfação dependessem do lugar onde morava.
Achava-o mesquinho, e como ele fosse morar em Milão, Florença,
Bolonha, ele pensava que talvez fosse mais feliz, podia amar, apreciar e
criar aquele desejo imenso que era próprio e instintivo, o desejo de fama,
de imortalidade transcendente, mas num sentido romano: nome nominis,
como Dante.
Então aconteceu que Leopardi queria absolutamente sair da
cidade. Mas a sua administração era regida pela mãe, que não tinha a
compreensão de aderir ao desejo do filho. Leopardi tentou até sair de
noite e foi surpreendido no telhado procurando sair para Roma, sair
daquele lugarejo e ir a um lugar onde houvesse amor pelo saber. Mas só
meses mais tarde, diante das exigências suas, é que foi-lhe permitido ir a
Roma, junto aos parentes da mãe, os marchesi.
Foi uma viagem desastrosa, pois eram horrorosas as estradas
daquela época. Com exceção da Igreja, achou Roma uma imensa
decepção. Sua decepção, amargura e desespero foram sem possibilidade
de redenção. Disse que Roma era grande demais para os romanos. As
mulheres eram bonitas, mas não havia delicadeza, uma interioridade,
naquele pomar feminino que é próprio de Roma, cheia da flora que é a
primavera; não há nada de outonal que mais se avizinhasse disso. Não
gostou dos romanos, que eram todos empertigados e mentirosos, ele
que procurava o entusiasmo. E os homens de cultura o decepcionaram,
pois só viviam para um ordenado, e um bajulando o outro. Foi a maior
decepção dele.
Uma coisa somente o perturbou profundamente e o fez chorar,
que descreve numa carta a seu irmão: é aquele carvalho rígido de ferro,
abaixo de cujas sombras viveu Torquato Tasso, que é tão vizinho de
Leopardi. Esse Tasso triste, que joga uma sombra na literatura do século
XVI, com suas preocupações, que acaba louco, esse Tasso que é objeto
de tanta poesia, esse foi o único que penetrou na alma de Leopardi, que
faz com que veja nele um seu ideal irmão.
Leopardi volta à sua cidade. Escreve uma poesia, Alla sua
donna, que não existe, é só dele, de sua fantasia, e com essa poesia jura
não escrever mais poesia porque sente que está esgotada a esperança,
que não há razão para crer, que a felicidade humana depende de viver,
de nascer onde o homem nasce já infeliz, porque nasceu. Então essa
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 245

felicidade fecha o cantar de suas amarguras e entra numa fase de


pensamento, prosa e poesia de caráter filosófico.
Chegamos ao período em que está com vinte e sete anos. Já é
autor, poeta; volta então a Recanati, em 1823, e fica até 1825. Neste
período já temos muitas obras importantíssimas, como as “poesias
patrióticas”,69 os “primeiros idílios”,70 as “poesias filosóficas”, Lo
Zibaldone, Operette morali, etc. Agora vem o período que vai de 1825
a 1828, durante o qual Leopardi pela segunda vez abandona Recanati.
Em 1825, teve o convite de um editor de Milão para cuidar da
publicação das Orações de Cícero e do Canzoniere de Petrarca, que se
usa muito na Itália. Abandona sua querida terra de esperanças e ilusões
e ao mesmo tempo odiada, porque a achava pequena. Recanati é o
símbolo do que é a realidade para cada um de nós: temos que viver na
realidade, odiando-a e amando-a, primeiro quando se a considera sob
um ponto de vista contrário a nós e segundo quando se a considera sob
um ponto de vista ideal.
Leopardi vai a Milão, mas, com o clima frio, muda-se, vai morar
em Bolonha e vive quase isolado, e o dinheiro que recebe de Stella é
pouco, e deve viver então com aulas particulares, que se dão às pessoas
que não têm vontade de trabalhar. Então essa amargura desse homem de
gênio. De Bolonha passou para Florença, em 1827. Viveu em Florença,
onde teve oportunidade de conhecer um ambiente de primeiro plano,
pois lá viviam Manzoni e N. Masseo, e, sobretudo, muitos êxules da
Itália meridional, que tinham saído por razões de caráter político.
Leopardi viveu perto de um general notável, Pietro Colletta,
de Pepoli, e sobretudo de um moço muito superficial, mas bonito,
galã, honesto, que tinha todas as qualidades que Leopardi não tinha
e que criaram uma extraordinária simpatia para com esse moço, que é
Antonio Ranieri.
De Florença, foi viver uns meses em Pisa, onde o clima é mais
temperado, o céu, mais límpido, o ambiente mais cordial que existe na
Itália. Houve uma colaboração entre os estudantes e homens de cultura
e, ao mesmo tempo, de contraste, de competição, aí existe um colégio
do qual saíram muitos nomes famosos. Então, neste ambiente ele viveu
uns meses, e aqui neste clima espiritual e fisicamente bonito ele sentiu
voltar suas forças físicas, sua esperança, o otimismo, o apego à vida, e
aí saíram duas das suas maiores poesias: A Silvia e Il rissorgimento, em
que exulta o ressurgimento de seu corpo.
69
Entre outras, All’Italia e Sopra il monumento di Dante, que são classificadas como
“canções” por Francesco Flora.
70
I primi idilli: L’infinito, Alla luna, La sera del dì di festa, Il sogno, La vita solitaria.
Bruno Enei
246 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

No fim desse ano, Leopardi volta a Recanati, volta a este lugar


querido e odiado, doce e amargo, e aí começa com essas condições físicas
renovadas e condições espirituais melhores, sente o desejo de escrever
poesias, e então surgem as melhores: I seconde idilli.71 Em Recanati vive
durante 1828-1830. Temos a segunda primavera de sua poesia, que é
justamente a que constitui o grupo dos segundos idílios.
Em 1830, Leopardi, que gostava de viver em Florença, em Pisa,
não obteve de seu pai o dinheiro para viver longe de sua família. E disso ele
se queixava em suas cartas. Mas houve um homem em Florença, aquele
general Pietro Colletta, que fingiu lhe dar um cargo, um ordenado que
um editor pagaria para a edição de uma obra que se chamaria Escritores
Italianos do Século XIV. Leopardi aceita. Entretanto, não era verdade.
Leopardi não tinha nenhum convite. Era, em vez, um grupo de amigos, e
sobretudo esse general, que era admirador seu, que de seu bolso oferecia
um ordenado, com a promessa que o devolveria no dia em que os editores
o tivessem pagado.
Leopardi abandona definitivamente Recanati, porque irá
diretamente a Napoli, onde falece. Em Florença aconteceu uma das coisas
mais delicadas. Leopardi até agora tinha sido um solitário, esperando e
desejando ser compreendido e amado. Sentiu que a vida é exclusivamente
afeto, intimidade, colóquio, num plano de nobreza e confissão, não tanto
entre um homem e outro, mas sobretudo entre um homem e uma mulher,
entre dois espíritos que se entendem, que vejam a vida do mesmo modo.
Mas até agora considerava que a mulher fosse um conceito do homem e
nunca uma realidade, pensava que uma mulher ideal como a gente gostaria
de ter é mais uma abstração do nosso desejo do que uma realidade; em
vez, pela primeira vez, Leopardi nesse período teve a oportunidade de
conhecer uma moça real, que teve uma íntima simpatia para com ele.
E ele se iludiu pela primeira e última vez, amando essa mulher,
num plano nobre, espiritual, de entusiasmo, de delicadeza, que não vale
a pena analisar, tão delicado que é, que Leopardi dá a impressão de que
fala do amor e não de uma mulher. Essa mulher se chama Fanny Targioni,
mas era casada com um médico, Torati. É evidente que esta emoção não
ia além de simpatia para com Leopardi, com o desejo de confortá-lo. Mas
ele pensou que essa mulher pudesse transformar esse sentido de amor
nela numa realidade. Mas a decepção não podia faltar, e assim temos um
grupo de poesias ligadas a esse amor real: Il pensiero dominante, Amore
e morte, Consalvo, Aspasia e A se stesso.

71
A Silvia, Le ricordanze, La quiete dopo la tempesta, Il sabato del villaggio, Canto
notturno di un pastore errante dell’Asia, compostos entre 1828 e 1830.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 247

É um drama que se fecha com um desespero incrível, e com essa


última, quando fala a si mesmo, convida seu coração a não mais sentir,
porque cada amor se transforma num engano. Esse período é o que vai
de 1830 a 1833. Em 1833, Antonio Ranieri volta para Napoli, rico, nobre,
e convida Leopardi a viver com ele. Leopardi, sabendo que Napoli é
uma cidade feliz, cheia de belezas incontáveis, que há um senso de vida
otimístico, que o clima é sereno, vai viver com ele os últimos quatro anos
de sua vida, até 1827.
Aqui escreveu poesias sublimes, com Il tramonto della luna e
Alla mestra, e outras amargas e irônicas, e em 1837 ele morria, depois de
ditar nos últimos instantes a última estrofe daquela extraordinária poesia
que é Il tramonto della luna. Morre em 1837, e como aquele período era
o da cólera em Napoli, seu amigo escondeu seu corpo numa igreja numa
estrada que vai a Pozzuoli, a Igreja de San Vitale. Embora agora a Itália
tenha feito um monumento a ele.
É uma vida em que nada podemos colher que nos faça ver um
Leopardi igual a um Dante, nunca houve na vida dele uma participação
direta na realidade, é um poeta in medias res, é um lírico que vive
pensando, sofrendo, meditando, cujo mundo está na sua alma ferida desde
os primeiros anos de sua vida, nesta sua visão de idealismo e pessimismo,
o que fecha seu espírito a qualquer reconciliação. Se se quisesse dizer
alguma coisa sobre sua poesia, em conjunto deve-se dizer que é em escala
descendente, de que da primeira à última poesia é um afastar-se doloroso
da vida, que se fecha no mundo das ilusões, das esperanças empalidecidas,
mas nunca um apego à vida.
Ele disse que queria escrever um romance chamado História
de uma alma, em que só falaria do complexo mundo da subconsciência
humana, daquelas imagens que são os ideais de nossa alma. Essas ilusões
de simpatia e de ideias, esse conjunto que é a insensibilidade humana,
isso lhe ofereceria os motivos de sua história, que não seria do nome, da
religião, mas de sentimentos reais, de aspirações, daquele fluido, daquele
mover-se que fica muitas vezes como inconsciente em nosso íntimo. A
nossa existência não depende do que acontece fora da fé, que vem do
íntimo. Mas ele não escreveu esse romance.
Mas qual é a história da alma de Leopardi? São suas obras, porque
nenhuma delas fica fora de sua alma. Todas elas representam um ato de
sua sensibilidade, do seu tormento, do seu viver íntimo interior. Quais
são essas obras?
Leopardi, que é o maior lírico da literatura italiana do século
XIX, teve muitas qualidades para ser também filósofo. Sua lírica não é
descritiva, mas muito penetrante, de sínteses, de análises baseadas numa
Bruno Enei
248 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

consciência, numa cultura. Ele é de uma genialidade tão viva, tão atuante,
que se pode dizer que tenha elementos para ser brilhante, oferecendo-se
também como filósofo. Podemos até falar de uma filosofia leopardiana.
Mas falta-lhe aquela objetividade que se exige da verdadeira filosofia. Seu
pensamento é muito pessoal, subjetivo, incongruente, não é uma linha,
mas é cheia de contrastes, de influências diferentes, é real e, por isso, é
mais emotiva do que objetiva.
Quando se lê Dante justamente porque suas afirmações têm valor
de universalidade e de necessidade, os de Leopardi são sempre a sua
vida pessoal. Mas, de qualquer modo, isto se dá numa visão filosófica da
realidade viva. Sua consciência filosófica se baseia no seguinte: na sua
mocidade, afirma o positivo, um apostolado de caráter cético; o homem
procura a verdade, mas é impossível a ele alcançar a verdade. Ela consiste
para Leopardi em saber qual é a origem do mundo, qual é o fim do mundo
e por que existe o mundo. Entretanto, para o intelecto humano que tem
esse problema, por que existe tudo isso, para que serve, quando acabará,
tudo isso se resolvia com a fé.
Antes de aceitar uma religião tradicional, ele se choca com esse
problema, e através da Filosofia falou que é impossível ao intelecto
humano alcançar a razão da existência. Nós observamos que os acidentes
do mundo, o homem, o trabalho, a dor, nada mais são do que fenômenos.
Mas há esses fenômenos? A coisa em si que é? Por quê? Quando? Como?
Isso é o que a razão humana queria possuir. Então, ao homem é negada
a verdade.
Há uma outra afirmação importante que constitui um alicerce:
Leopardi tem também uma convicção materialista da realidade e da
natureza. Leopardi não vê uma finalidade na realidade humana, na
natureza. Por que existe o dia e a noite, por que o homem nasce e morre,
por que trabalha e sofre, para que servem as estrelas? Não poderia ser
de outro modo? Se cada um de nós se pesasse, esse problema é só a
religião que o resolve. Através de todas as correntes filosóficas atuais,
todas essas formas são aleatórias e não alcançam-se as razões da vida,
a razão do ser. Leopardi não via nenhuma razão na existência, não pode
admitir uma finalidade. Então a razão do ceticismo e do materialismo
no pensamento leopardiano.
Com esses dois sentimentos a priori, olha a realidade e, através
de uma conclusão de caráter empirista, ele nota e observa que no mundo
o homem não pode ser feliz e que a vida é infelicidade, é essa sua
conclusão. É triste, é uma afirmação gravíssima. Sua aspiração é a de ser
feliz, mas ele não alcançará a felicidade. Então essa negação da felicidade
como uma realidade. Só pode ser ilusão, nunca é uma realidade.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 249

Mas, de qualquer modo, não é fácil afirmar-se que o mundo é


infelicidade. O sábado é mais bonito do que o domingo. A felicidade é
algo que é bonita na véspera. A realidade é sempre inferior ao ideal e,
como o ideal não se enquadra nunca na realidade, não se pode ser feliz.
Mas qual é a razão disso? De quem é a culpa da infelicidade humana?
Ela é atribuída à nossa razão. Ela depende da razão, do intelecto
humano. O homem quer procurar o que ele não pode alcançar. O homem
quer defender a intimidade e a existência eterna e absoluta da realidade, e
isso ele não pode colher. É negado à razão humana. Então, a infelicidade
está no homem, nesse desejo de ir além do fruto proibido, como se ele
pudesse ir além do horizonte.
Mas por que a razão humana quer alcançar isso? Mas por que
ela quer isso? Quem é que deu a ela esse desejo de querer conhecer a
realidade humana? Ela se propõe a alcançar o quid das coisas. Então,
atribuiu a culpa essencial à natureza, que num primeiro momento
aparece benigna, gentil e cordial, que é uma verdadeira mãe, dando
ilusões, sonhos, esperanças, essa natureza é mascarada, porque mais
tarde a gente percebe que ela quer que a razão procure algo que não
alcançará. E de mãe se transforma em madrasta. É o canto noturno de
um pastor. A culpa é da natureza, que quer que o homem seja feliz e que
a razão procure as razões das coisas; é ela que proíbe ao homem de ser
feliz. Esse destino misterioso, essa força transcendente do homem, é ela
que domina a vida humana e quer que o homem deseje, sabendo que
esse desejo nunca se tornará realidade.
Com todas essas concepções, elas não fazem com que Leopardi
seja um poeta que jogue na alma da gente o frio, porque ele estimula o
amor, estimula o que é belo e bonito. Ou estamos pela mediocridade da
existência, ou pelos ideais. É esse excessivo amor pelo ideal que faz com
que Leopardi despreze a existência. Sua poesia é toda uma saudade dos
ideais que a gente sonhou na infância, porque o que gostaríamos, de ser
felizes, é o que sonhamos na infância.
Pusemos em evidência a base do ceticismo, que será como alicerce
de sua literatura. O materialismo leopardiano, considerando a realidade e
a natureza sem um fim, sem uma razão. Aquela observação leopardiana
que, por não poder o homem alcançar a verdade, a vida é infelicidade. O
seu problema é saber quem se responsabiliza por essa infelicidade: num
primeiro momento, é a razão, que se põe como objetiva, como uma coisa
impossível, isto é, a razão humana é responsável pela felicidade que
procura a coisa em si, sendo isso impossível. Mas dissemos mais tarde
que Leopardi, voltando sobre essa definição de causa, vê que a razão
procura a verdade, o porquê das coisas, vê que, se o homem deseja a
Bruno Enei
250 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

felicidade, toda a felicidade absoluta, isso não é devido a ela por si, mas
à natureza humana. É ela que leva o homem a um desejo de felicidade
absoluta, que faz com que o homem não se satisfaça com uma felicidade
relativa. É ela que torna infeliz o homem, porque provoca a razão além
dos seus limites.
Então, essa natureza, que num primeiro momento parecia como
uma boa mãe, que ofereceu como possibilidade de felicidade a fantasia,
agora se torna madrasta. Esse pensamento amargo, doloroso, sem solução
é a base de toda a literatura leopardiana, em prosa e em poesia. É essa
visão clara da realidade e da vida humana, é essa convicção clara, lúcida,
sem ilusões, que vai afastando continuamente Leopardi de qualquer
desejo de viver.
Chega a um momento em que é imobilidade, inerzia, não se
queixa do conteúdo da vida, não se queixará mais da infelicidade da
vida, do conteúdo de infelicidade que a vida oferece a cada um de nós.
Por isso é que a vida é insuportável, que não tem uma razão de ser, que
não alcança nem a realização dos nossos anseios, sem oferecer algo que
possa fazer com que o homem se justifique. O fato de o homem viver é
a sua infelicidade.
Isso Leopardi chama de noia, isto é, o tedium vitae. O cansaço
e o tédio, não porque a vida seja decepção, porque seja dor, porque seja
dificuldades, mas porque a vida é, pelo que ela é. A gente não sabe por
que é. A vida não oferece nenhuma realidade, não oferece uma dor que
não seja tragicamente dolorosa. A dor muitas vezes é mais na nossa
imaginação do que na realidade. Às vezes sofre mais porque persegue
com a fraqueza a dor, do que doloroso por si. Mas muitas vezes é uma
ilusão. A vida não tem nada de substancial, de definitivo. O mundo, a
existência, não têm nada que os justifique.
Um poeta que se põe numa posição tão extremista, como seria
possível para ele resolver seu problema? Leopardi nunca tem esse desejo
de negar-se, matando-se. Sempre sentiu essa necessidade de matar-se,
mas nunca o fez. Sempre teve uma reação, e isso é o aspecto heroico,
pois, sem fé, sem iluminação, só poderia liquidar-se, mas nunca o fez.
Primeiro conceito: Leopardi apresenta, na sua amarga poesia, não
um aspecto cético, como poderíamos pensar, mas apresenta uma solução
heroica. Qual é ela? Que, na humanidade, somos todos dominados pelo
mesmo destino, por uma única realidade misteriosa: a dor. Então, os
homens constituem um exército, em que cada um de nós tem o seu lugar
de soldado, que não é o que luta matando outro soldado, mas o que luta
no sentido de solidariedade entre eles.
A batalha dos homens não é de ofensiva, de morte, diante dos
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 251

outros, mas é uma batalha de amor, de solidariedade, de irmandade


entre eles. São os homens que lutam contra a dor, que se confortam,
suportando a existência. Há na sua filosofia e prosa uma tentativa heroica
de solução, uma proposta, uma mensagem: não promete a felicidade,
nem o cosmopolitismo, uma paz eterna e duradoura, mas promete o
compromisso que cada um de nós deve ter, no sentido de auxiliar-se
reciprocamente.
Surge o conceito do amor através da cruz. Schoppenhauer
disse que o cristianismo ganhou sobre o paganismo porque, enquanto
este pregava como se fosse uma coisa alcançada, aquele pregou como
se fosse infelicidade. É, portanto, mais perto da alma humana. O
cristianismo compensou esse pessimismo com a promessa de uma vida
fora da humanidade. É um dos pontos fundamentais.
Nas últimas operette, em que há um diálogo entre Porfírio e
Plotino,72 entende-se essa tese. Suas afirmações são amargas, mas
idealísticas e nobres. Quando Porfírio diz a Plotino que a vida é uma
negação de tudo, é uma incapacidade de atingir tudo, quer matar-se. Mas
Plotino diz que não, pois a morte quer dizer aumentar a dor na existência
humana, é uma realidade a menos na dor, e sentiríamos a falta da pessoa
que morre. E não poderíamos consolá-la, porque ela não existe mais, e
isso faz com que Porfírio desista de suicidar-se.
Segundo conceito: Leopardi teve a grande virtude, rara nos
homens infelizes, de ser poeta, de ser um escritor, de forma que, toda vez
que a sua filosofia lhe apresentava uma realidade, um perfil, um motivo
de amargura e de negação da existência e o levava a uma tentativa de
suicídio, nesses momentos ele se realizava como poeta. Veja-se o imenso
valor da poesia. Sabendo que tem o seu valor, é o sangue do seu sangue,
é uma mensagem. Poesia vem do grego: poiéo (fazer). Então, é uma
construção, é uma ação que os maiores poetas contemporâneos fazem,
que a poesia é catarse, purificação.
Se estamos amargurados e podemos jogar isso fora, numa cor,
numa nota, numa poesia, ele está a salvo, porque teria aquele pathos de
onde sai a poesia. É uma mensagem, uma necessidade. É tão natural
como a maternidade. E num sentido ideal de teoreticidade, é poeta aquele
que sabe realizar aquilo que intimamente o torna desesperado. Em geral,
a maior poesia é o fruto de uma insatisfação.
Então, assim se explica a sua poesia. A ação de Leopardi foram
suas obras. Esse homem solitário, que sempre mais se vai afastando da
realidade, porque sente-a inferior aos seus ideais e ilusões, achou na

72
Dialogo di Plotino e di Porfirio.
Bruno Enei
252 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

poesia sua idealidade ideal. Como os grandes, esses homens que tiveram
essa divinitas, essa capacidade superior de poder realizar.

Obras de Leopardi

Lo Zibaldone
É um conjunto de quatro mil e quinhentas páginas, escritas pelo
próprio punho, com uma letra pequena, que se pode ver em Recanati, nas
mesas da biblioteca, escritas entre 1817 e 1832. Então, Lo Zibaldone é o
conjunto de quinze anos de meditação e de leitura. Hoje este título (esse
conjunto de pensamentos, críticas, esboços) conserva-se assim. Leva este
nome, mas já foi tentado mudá-lo quando foi publicado pela primeira
vez, porque ele não tinha nenhuma intenção de publicar esta obra, pois
ela era simplesmente uma obra sua, uma espécie de regressione de seus
estudos, tinha caráter exclusivamente pessoal.
Mas quando morreu, foi nomeada uma comissão de grandes
estudiosos, e o chefe era Giosuè Carducci, para preparar a obra para o
centenário do nascimento de Leopardi. Por isso foi publicada entre 1838
e 1900. Então teve um título diferente. Chamou-se Pensieri di varia
filosofia e bella letteratura, mas não era um título leopardiano, mas de
estudiosos. Hoje em dia os poetas costumam chamar obras como essa de
“diário”. Vai-se escrevendo tudo que se sente e pensa, falando de Deus
ou de uma banalidade. Vai-se escrevendo, vai-se jogando e tem o valor
de ser de uma sensibilidade extraordinária. Tem-se ciúme de mostrá-lo.
É o diário que cada um faz por si, pondo em evidência sua interioridade,
que não se acredita em não dever dizer, por orgulho, inocência ou pureza,
aquilo que não se aprecia. No diário se vê o que diversamente parece
ser. Assim é Le Confessioni de Santo Agostinho, aquilo que Rousseau
chamou Les Confessions e Heine chamou de Tagebuch. Benvenuto
Cellini escreveu sua autobiografia.
Essa é a importância das confissões. Leopardi faz isso no
Zibaldone. Não podemos estudar nenhuma obra sem conhecer esta.
Leopardi, citando capítulos, páginas em línguas diferentes, programas de
estudo, diz que escreveu uma obra assim para estabelecer um programa
de trabalho. Ele constrói, apesar de toda sua amargura. É o espelho de
cada um de nós. São as aquarelas e os instantâneos de nossa vida. Essa
obra é de uma importância extraordinária. Ele se apresenta em toda sua
generosidade, pureza, beleza, humanidade, nesse trabalho contínuo, de
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 253

noite e de dia, nessa perseverança, nessa coerência entre o ler e o agir, lá


vamos vendo de onde sai, por que saiu, qual a razão dessa poesia, porque
não precisa pensar, mas lembrar que uma obra, se sai, é porque deve sair,
ou num plano histórico ou autobiográfico.
Sua segunda obra é Operette morali. Houve um período na sua
vida, depois de 1823, em que Leopardi sentiu-se tão abatido, tão triste,
tão sem inspiração, sem fantasia, sem imaginação, que ele prometeu não
escrever mais, porque a poesia é o fruto da fantasia, é a imagem de um
otimismo, ainda que num período de infelicidade. Não se pode ser poeta,
é difícil escrever-se uma obra, negando. Sempre deve ter uma afirmação.
E uma afirmação de fé, de uma crença no futuro, numa realidade ideal.
É aquilo de fechar-se pelo gosto da infelicidade, de uma angústia,
mas não é num plano lírico, pois qualquer poesia, porquanto dolorosa,
é sempre cheia de entusiasmo. Há esse vigor na poesia. Por mais triste
que possa ser, até Schoppenhauer num certo momento tem necessidade
de exaltar o santo, o homem que é capaz de dominar a vontade. Mas se o
homem pudesse dominar a vontade de viver, seria um santo. Ele resolve
seu pessimismo. Com Goethe, Shakespeare e Dante é a mesma coisa. Se
a gente lê o Inferno, lê apenas um terço da obra.
Leopardi tem a necessidade de cair numa ilusão. Se não percebe
esse refúgio, a vida seria uma negação de tudo. Leopardi num certo
momento sentiu que tinha se esgotado naquela sua inspiração. Começou
a escrever em prosa. Suas obras são de uma beleza extraordinária. São
isoladas, solitárias, que ficaram sem continuação.
Tudo pode ter uma explicação histórica. Estudar Boccaccio
em relação a Dante ou Petrarca; estudar Manzoni em relação aos
prosadores da Renascença. Mas não se vê em d’Annunzio e em Verri
uma continuação da prosa de Leopardi. Como ele está sozinho na
poesia, assim fica sozinho aquele enamoramento que tem por Fanny,
assim como fica a ginestra73 no mundo do Vesúvio. Em suma, sua prosa
é uma ação que não foi seguida, porque ela é algo de altamente clássico,
de altamente fantástico, cheia de imagens, não tem nada de popular, de
vivo, no sentido da espontaneidade, é enamorado.
É interessante porque é elaborada, porque é esquisitamente
clássica, é cheia de ilusões, de sonhos, de imaginações, cheia de imagens.
Lê-se aquilo e tem-se uma impressão de uma peregrina singularidade,
extraordinária. Parece mais uma página de filosofia do que poesia.
Aquele ritmo é a poesia dele, num certo período. Podemos fazer uma
observação de caráter estético, que é: não se deve fazer uma diferença

73
Giesta (arbusto, flor).
Bruno Enei
254 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

entre prosa e poesia, porque, quando a prosa e a poesia são imagem, os


dois modos de expressão se encontram em um único plano. Há prosas
muito mais poéticas do que poesias.
Esse ritmo solitário de violino chorando, meditando, desejando,
isso é o caráter de Le operette morali. Foram escritas quando Leopardi
tinha vinte e três anos, em 1834. São compostas de vinte e quatro prosas.
A primeira é Storia del genero umano e a última é Dialogo di Plotino
e di Porfirio. Essas prosas se movem entre uma primeira operetta, que
deve ser considerada como uma introdução, em que Leopardi examinou
a história do gênero humano. E, mais ou menos, os resultados são:
A história da civilização humana nada mais é do que a prova de
uma crescente infelicidade humana. Se quisermos ver em que consiste
a infelicidade humana, é só ver a história da civilização humana. No
início, quando tudo era pequeno, quando não se sabia nada das estrelas,
e tudo era plano, a humanidade foi feliz. Depois, começou a ser infeliz.
Acaba com Porfirio e Plotino, que é o diálogo em que surge essa
tese de uma mensagem prática da poesia, que, apesar de tudo, em nome
da dor é que os homens devem viver. O suicídio é um acréscimo da dor;
não se deve ser tão egoísta diminuindo a própria dor, suicidando-se, e
aumentar a dor dos outros.

Cento undici pensieri


É um grupo de pensamentos da última fase leopardiana, quando
vive em Napoli. São justamente cento e onze pensamentos, que foram
publicados póstumos e justamente no ano de 1845. Os temas, os motivos
desses pensamentos são os mesmos das outras obras de Leopardi;
ficam sempre como expressão do seu pessimismo, da sua concepção
mecanicista da vida e da sua sensibilidade e delicadeza, que é sobretudo
evidente nos Canti.
Esta obra, diante das outras, apresenta uma restrição: é um certo
cansaço, uma certa repetição dos motivos, uma negligência, um certo
desinteresse humano no que ele diz. É um grupo de pensamentos que
não representam o melhor de Leopardi.

L’Epistolario
É uma outra obra importantíssima para conhecer a alma
leopardiana. É um conjunto de novecentas cartas, que Leopardi escreveu
ao seu irmão Carlo, à sua irmã Paulina, a parentes como Pepoli, ao pai, à
sua mãe Antici e a Antonio Ranieri, Tomase, Colletta, aos seus amigos,
respondendo ou dirigindo-se a eles. Estas cartas têm uma importância
extraordinária, porque nunca o epistolário italiano foi tão íntimo, tão
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 255

delicado como este. Nunca se fala de coisas exteriores à sua alma, de


acontecimentos e de contingências reais, da vida de todos os dias.
São, sobretudo, a expressão daquela infelicidade, daquela
comoção e gosto de confessar-se à alma. Como se se tratasse de um
colóquio, quando, em vez, tem-se a impressão de que é um solilóquio.
Elas são importantes para entender quanta sensibilidade dominava a
alma deste gigante de amargura, de dor, de idealismo. São cartas em
que prevalecem sobretudo estes sentimentos: um desejo clássico, quase
pagão, de ser conhecido pela honra, fama, glória; um desejo de ser
amado, quer no sentido romântico, como no da amizade.
Essa imploração em todas suas cartas, este repetir das expressões
dolorosas, desesperadas, de uma pessoa incompreendida, que vive na
solidão e que quer que alguém lhe escreva, a amizade, o amor, a glória,
e esses lances, essas confissões de idealismo, são a parte vibrante das
cartas de Leopardi. É muito difícil que um moço não se sinta comovido,
que não se sinta pequeno diante dessas expressões, que nunca são
improvisadas, mas cheias de uma sensibilidade, de uma pureza e
sinceridade extraordinárias. Fazem estas cartas pensar em homens como
Torquato Tasso, que deve se considerar como o irmão ideal de Leopardi.
Fazem pensar em Petrarca, que está bem perto da personalidade
leopardiana. São cartas que deixam em quem as lê um sentimento de
ternura, de solidariedade extraordinária. Enobrecem, purificam o leitor.
E para mostrar um contraste, um verdadeiro contraste,
esquisito, na personalidade dele, queremos, logo depois de ter ilustrado
o Epistolario, mostrar que Leopardi foi também um poeta de obras
satíricas. Mas um poeta dominado pela dor, como era Leopardi, um
poeta cheio de aspirações altíssimas, desconfiado diante da possibilidade
real de qualquer idealismo, um poeta que viveu exclusivamente na sua
intimidade, numa esfera completamente teorética, espiritual, ideal, assim
aristocrática, assim transcendente, assim superior, com seus problemas
de universalidade, de necessidade, cuja poesia é sempre a expressão de
coisas ideais, de sentimentos, que nada tinham que fazer com a realidade
e que nunca são uma reação prática à realidade e sim uma projeção real
de modo a ser sonhado, um poeta assim dificilmente poderia ter a mesma
capacidade, altura, no campo da sátira, do humorismo.
Para que um poeta seja satírico, para que possa manejar bem o
humorismo, a ironia, esses meios que podemos chamar inferiores diante
da grande arte, precisaria que Leopardi soubesse odiar, jogar-se na
realidade; e então a sátira leopardiana é excessivamente amarga para que
possa ter um valor. O humorismo é excessivamente preto, desesperado,
para que possa despertar um sorriso. Sempre se vê que as sátiras não
Bruno Enei
256 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

são os meios melhores para exprimir sua alma, mas, em vez, a lírica e a
prosa. Nunca a sátira, nunca esse jogar, esse desprezo de acontecimentos
contemporâneos à vida do poeta.
Nunca Leopardi será o poeta que poderá transformar a realidade
política, social, econômica da idade em que viveu, fazendo sobre os
personagens essas sátiras, fazendo ironias e humorismo. Ele fica sempre
au dessus de la mêlée.74 Sempre o problema do conformismo italiano é o
motivo de sua sátira. Três obras devem ser lembradas nesse sentido:

I nuovi credenti
Trata-se de uma sátira contra o idealismo do século XIX.
Esses que acreditam no progresso, numa paz a vir, na solidariedade,
na espiritualidade humana, esses levianos idealistas do século XIX.
Entretanto, sabemos que Leopardi era profundamente idealista. E soa
mal saber que lança essas sátiras contra o espiritualismo do século
XIX.

Palinodia al marchese Gino Capponi


É um termo grego, isto é, retratação. É uma espécie de carta em
verso em que Leopardi num primeiro momento imagina retratar-se, isto
é, negar os conceitos, os sentimentos e os ideais na base dos quais até
agora cantou e viveu, mostrando, em vez, cantar os ideais dos outros.
Mas, na segunda parte, volta a afirmar seus conceitos eternos e seus
ideais. É uma falsa retratação, durante a qual joga seu humorismo sobre
os ideais e as crenças do século XIX.

Paralipomeni della Batracomiomachia


Em grego quer dizer conclusão fixa; ao que se acrescenta
batraco: rã; e mios: ratos; machia: batalha. Imagina-se atribuir a tradição
a Homero, uma obra de caráter satírico, em que cantaria a guerra entre
as rãs e os ratos. Qual é a conclusão dessa batalha? O poeta, referindo-se
a Homero, chega a usar este título descrevendo a situação particular da
Itália contemporânea ao escritor. Quem seriam os batráquios, os ratos?
Seriam os liberais e os racionais do século XIX. Os liberais seriam os
ratos que fogem, que nunca alcançam seus ideais. Os batráquios seriam
os reacionários, contrários à liberdade e independência italiana. Eles
ganharam em 1820, 1821 e 1823, com aquelas mortes de que tanto fala
Pellico.75 E o poeta até acrescenta um terceiro animal, que é i granchi,76
74
Acima da contestação.
75
Silvio Pellico (1789-1854), dramaturgo e poeta.
76
Caranguejos.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 257

representados pelos austríacos, e que eram aliados das rãs. É em oito


cantos em oitava rima.
Essas são as obras menores. Falaremos em vez agora da parte
mais viva, mais eterna, mais inicial de sua personalidade. Devíamos nos
construir sobre sua poesia e líricas, que são traduzidas em todo mundo e
que colocaram justamente Leopardi num plano altíssimo, não somente
na literatura romântica italiana, mas também na romântica universal.
Essas poesias vão de 1818 a 1837. Durante uns dezenove anos, Leopardi
escreveu mais ou menos quarenta e um cantos importantes: I Canti.
São melodias, expressões melódicas de uma amargura,
sinceridade, sensibilidade, que são a projeção rítmica de sua existência
ideal, íntima. Os primeiros impressionam porque são três cantos de caráter
patriótico. E nós, que sempre afirmamos que Leopardi é essencialmente
um lírico, ficamos maravilhados ao falar sobre assuntos que ficam fora
de sua alma. Mas ele os faz sob inspiração do seu amigo Giordani, que
encorajou Leopardi a ser escritor, e ele viu em Leopardi, pela sua nobreza,
o poeta que mais tarde poderia ter sido o poeta do ressurgimento italiano.
Ele estimulou Leopardi. E daí saíram três grandes líricas, que, apesar de
serem inferiores, são, porém, sempre expressão de uma sensibilidade,
de uma pureza de língua extraordinária. São elas: All’Italia, Sopra il
monumento di Dante, Ad Angelo Mai.
Mas podemos perguntar, como já se perguntou Francesco De
Sanctis, será que o ritmo é completamente alheio à alma, aos interesses
de inspiração leopardiana? Não o é, porque Leopardi, já em 1818 a
1819, já nessa idade, com vinte e um anos, tinha a sua visão filosófica
da vida. E já tinha construído seu pessimismo. E tinha ido além, para
ver que não só ele é uma prova da infelicidade humana, mas também os
outros indivíduos, até as nações. Se a Itália não tivesse sido a escrava
dividida, sem um anseio qualquer de liberdade, independência, talvez
ele não se tivesse inspirado na Itália. Ele via a Itália como uma irmã
de seu próprio destino. É esse aspecto de amargura, que existe também
nos outros homens e que prova a universal infelicidade humana, o que
provam suas três poesias.
Mas, logo depois temos o primeiro grupo da lírica leopardiana,
que se conclui em 1821, constituída por um grupo de poesias chamadas
I primi idili: L’infinito, La sera del dì di festa, Alla luna,77 Il sogno,
La vita solitaria. Essas cinco poesias tiveram um nome particular.
Aqui temos a originalidade de sua poesia, porque idílio é um termo
velho, secular, já existente na literatura grega e romana, e queria dizer

77
Esses três poemas foram analisados em aula.
Bruno Enei
258 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

poesia bucólica, campestre, descrição dos campos, da paz, o mundo da


natureza serena.
Em Leopardi, porém, I primi idili não têm um valor descritivo,
um sentido bucólico, não é uma expressão da satisfação em forma de
lazer, como em geral é a poesia descritiva e bucólica. É, em vez, uma
poesia cheia de meditação, de sensibilidade, de sentimento. As comoções,
as esperanças leopardianas se realizam fora, através de uma paisagem
da natureza, que não existe inteiramente nelas, mas como uma imagem
delas: A Lua não é algo de fora e exterior do poeta, mas é a imagem de
sua alma. O infinito é a imagem de uma aspiração, do infinito que existe
na sua interioridade. E assim com os outros poemas, são sentimentos,
estados de alma, que só se poderiam realizar servindo-se de elementos
da natureza subjetivizados, como imagens de uma subjetiva visão da
realidade.

Le poesie filosofiche
Alla sua donna (1823), Ad un vincitor di pallone, Nelle nozze
della sorella Paolina, Alla primavera, e Bruto minore. São as poesias em
que Leopardi abandona a finalidade melódica, que é própria dos primeiros
idílios. Aqui ele é mais desesperado e mais áspero e essencial. Aqui o
substantivo predomina sobre o adjetivo, os verbos estão no presente,
mais do que no perfeito. É uma constatação, não uma lembrança, é
uma poesia amarga, sem esperança, em que não há a consolação dos
primeiros idílios.
Depois de 1812, escreveu A Silvia e Il risorgimento. Mas
interessa lembrar que, quando voltou dessa viagem, depois de ter vivido
em Milão, Bolonha, Florença e Pádua, ele volta a Recanati, depois
desses anos de afastamento. Em 1829, ele volta a uma felicidade de
expressão que cria um grupo de poesias maravilhosas, de uma beleza
que eternamente a gente continua lendo e procura penetrar no fundo,
descobrindo mensagens sempre novas: Il passero solitário, Il sabato del
villaggio, La quiete doppo la tempesta, Canto notturno di un pastore
errante dell’Asia. Uma das mais bonitas é Le ricordanze. Há também
aquele grupo de poesias de amor para Fanny, que são cinco: Il pensiero
dominante,78 Amore e morte, Consalvo, Aspasia, A se stesso. Agora duas
poesias do período napolitano: Il tramonto della luna, cujas últimas
estrofes foram ditadas antes de morrer, e La ginestra.

78
Analisado em aula.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 259

A Silvia e Il sabato del villaggio, de Leopardi,


com tradução de Bruno Enei

A Silvia

Silvia, rimembri ancora


quel tempo della tua vita mortale,
quando beltà splendea
negli occhi tuoi ridenti e fuggitivi,
e tu, lieta e pensosa, il limitare
di gioventù salivi?
Sonavan le quiete
stanze, e le vie d’intorno,
al tuo perpetuo canto,
allor che all’opre femminili intenta
sedevi, assai contenta
di quel vago avvenir che in mente avevi.
Era il maggio odoroso: e tu solevi
così menare il giorno.
Io gli studi leggiadri
talor lasciando e le sudate carte,
ove il tempo mio primo
e di me si spendea la miglior parte,
d’in su i veroni del paterno ostello
porgea gli orecchi al suon della tua voce,
ed alla man veloce
che percorrea la faticosa tela.
Mirava il ciel sereno,
le vie dorate e gli orti,
e quinci il mar da lungi, e quindi il monte.
Lingua mortal non dice
quel ch’io sentiva in seno.
Che pensieri soavi,
che speranze, che cori, o Silvia mia!
Quale allor ci apparia
la vita umana e il fato!
Quando sovviemmi di contanta speme,
un affetto mi preme
acerbo e sconsolato,
Bruno Enei
260 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

e tornami a doler di mia sventura.


O natura, o natura,
perché non rendi poi
quel che prometti allor? perché di tanto
inganni i figli tuoi?
Tu pria che l’erbe inaridisse il verno,
da chiuso morbo combattuta e vinta,
perivi, o tenerella. E non vedevi
il fior degli anni tuoi;
non ti molceva il core
la dolce lode or delle negre chiome,
or degli sguardi innamorati e schivi;
né teco le compagne ai dì festivi
ragionavan d’amore.
Anche perìa fra poco
la speranza mia dolce: agli anni miei
anche negaro i fati
la giovanezza. Ahi come,
come passata sei,
cara compagna dell’età mia nova,
mia lacrimata speme!
Questo è quel mondo? questi
i diletti, l’amor, l’opre, gli eventi,
onde cotanto ragionammo insieme?
questa la sorte dell’umane genti?
All’apparir del vero
tu, misera, cadesti: e con la mano
la fredda morte ed una tomba ignuda
mostravi di lontano.

A Sílvia

Sílvia, relembras ainda


aquele tempo da tua vida mortal,
quando a beleza resplandecia
nos olhos teus risonhos e fugitivos,
e tu, feliz e pensativa, o limiar
da juventude subias?
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 261

Soavam os tranquilos
aposentos, e as ruas nas vizinhanças,
ao teu perpétuo canto,
quando aos trabalhos femininos cuidadosa
sentavas, muito contente
daquele vago futuro que tinhas em mente.
Era o maio perfumoso: e tu costumavas
assim passar o dia.
Eu os estudos elegantes
às vezes deixando e os suados papéis,
onde o tempo meu primeiro
e de mim se gastava a melhor parte,
de sobre os balcões do paterno refúgio
aguçava os ouvidos ao som da tua voz,
e à mão ligeira
que percorria a fatigante tela.
Olhava o céu sereno,
as ruas douradas e as hortas,
e aqui o mar longe, e acolá o monte.
Língua mortal não diz
o que eu sentia no coração.
Que pensamentos suaves,
que esperanças, que corações, ó minha Sílvia!
Como então nos aparecia
a vida humana e o destino!
Quando me lembro de tantas esperanças,
um sentimento me aflige
amargo e inconsolável,
e volto a maldizer minha desventura.
Ó natureza, ó natureza,
por que não dás pois
aquilo que prometes então? por que tanto
enganas os filhos teus?
Tu antes que as ervas secasse o inverno,
por fechada doença combatida e derrotada,
perecias, ó tenrazinha. E não vias
a flor dos anos teus;
não te acariciava o coração
o doce louvor ou dos negros cabelos,
Bruno Enei
262 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

ou dos olhares enamorados e puros;


nem contigo as companheiras nos dias festivos
falavam de amor.
Também morria logo depois
a minha doce esperança: aos meus anos
também negaram os fatos
a juventude. Ai, como,
como passaste,
querida companheira da minha jovem idade,
minha esperança tanto chorada!
é este aquele mundo? estes
os prazeres, o amor, ações, os acontecimentos,
dos quais tanto falamos juntos?
Esta a sorte dos seres humanos?
Ao aparecer da verdade [a morte]
tu, mísera, caíste: e com a mão
a fria morte e uma tumba desnuda
mostravas de longe.

Il sabato del villaggio

La donzelletta vien dalla campagna,


in sul calar del sole,
col suo fascio dell’erba; e reca in mano
un mazzolin di rose e di viole,
onde, siccome suole,
ornare ella si appresta
dimani, al dì di festa, il petto e il crine.
Siede con le vicine
su la scala a filar la vecchierella,
incontro là dove si perde il giorno;
e novellando vien del suo buon tempo,
quando ai dì della festa ella si ornava,
ed ancor sana e snella
solea danzar la sera intra di quei
ch’ebbe compagni nell’età più bella.
già tutta l’aria imbruna,
torna azzuro il sereno, e tornan l’ombre
giù da’ colli e da’ tetti,
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 263

al biancheggiar della recente luna.


Or la squilla dà segno
della festa che viene;
ed a quel suon diresti
che il cor si riconforta.
I fanciulli gridando
su la piazzuola in frotta,
e qua e là saltando,
fanno un lieto romore;
e intanto riede alla sua parca mensa,
fischiando, il zappatore,
e seco pensa al dì del suo riposo.
Poi quando intorno è spenta ogni altra face,
e tutto l’altro tace,
odi il martel picchiare, odi la sega
del legnaiuol, che veglia
nella chiusa bottega alla lucerna,
e s’affretta, e s’adopra
di fornir l’opra anzi il chiarir dell’alba.
Questo di sette è il più gradito giorno,
pien di speme e di gioia:
diman tristezza e noia
recheran l’ore, ed al travaglio usato
ciascuno in suo pensier farà ritorno.
Garzoncello scherzoso,
cotesta età fiorita
è come un giorno d’allegrezza pieno,
giorno chiaro, sereno,
che precorre alla festa di tua vita.
Godi, fanciullo mio; stato soave,
stagion lieta è cotesta.
Altro dirti non vo’; ma la tua festa
ch’anco tardi a venir non ti sia grave.

O sábado da vila

A donzelazinha vem do campo,


no pôr-do-sol,
Bruno Enei
264 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

com seu feixe de erva; e traz na mão


um buquê de rosas e de violetas,
com as quais, como se costuma,
ornar ela se prepara
amanhã, ao dia de festa, o peito e o cabelo.
Senta com as vizinhas
sobre a escada a fiar a velhinha,
de frente para lá onde se põe o dia;
e contando vem do seu bom tempo,
quando no dia da festa ela se enfeitava,
e ainda sadia e ágil
costumava dançar a noite inteira com aqueles
que teve companheiros da idade mais bela.
Já todo o ar escurecido,
torna azul o sereno, e voltam as sombras
já pelas colinas e pelos telhados,
ao branquejar da recente lua.
Ou, a sineta dá o sinal
da festa que vem;
e àquele som dirias
que o coração se abre.
Os guris gritando
na pracinha em grupo,
e aqui e ali saltando,
fazem um alegre rumor;
e entretanto volta à sua parca mesa,
assobiando, o lavrador,
e consigo pensa no dia do seu repouso.
Depois quando em volta apagou-se todo facho (lume),
e todo o resto cala,
ouve o martelo bater, ouve a serra
do lenhador, que trabalha
na fechada oficina sob a candeia,
e se apressa, e se ocupa
de fornecer o trabalho antes do clarear da aurora.
Este dia sete é o dia mais agradável,
cheio de esperança e de alegria:
amanhã a tristeza e o aborrecimento
trarão as horas, e ao trabalho usual
cada um no seu pensamento voltará.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 265

Rapazinho brincalhão,
esta idade florida
é como um dia de alegria cheio,
dia claro, sereno,
que precursa à festa da tua vida.
Divirta-se, meu rapaz; estado suave,
estação feliz é esta.
Outra coisa não te vou dizer; mas a tua festa
ainda que tardes a chegar, não te seja funesta.

Alessandro Manzoni (1785-1873)

Dos dois escritores que fizemos até agora, Alessandro


Manzoni é certamente o que mais pertence ao Romantismo. Foscolo
e Leopardi devem ser considerados românticos, mas nesses dois
escritores há ainda uma exigência tão viva, tão essencial, um respeito
assim profundo pela linguagem clássica, pura, pela expressão greco-
-romana, pela perfeição da linguagem, que podemos dizer que são
românticos, como psicologia, como tema e motivos da psicologia, mas
esse respeito para com a língua e certas restrições de suas culturas,
mais ligadas ao século XVIII, fazem com que esses dois não sejam
mesmo expoentes essenciais do Romantismo italiano.
Em vez, Manzoni é o corifeu, é o líder do Romantismo
italiano, porque ele resolve os problemas da consciência romântica.
Ele canta motivos de sensibilidade romântica e os resolve e os
exprime romanticamente, isto é, na base da filosofia de atitude e de
espiritualidade românticas. Então, Manzoni deve ser colocado ao
centro do Romantismo italiano, como o expoente mais popular, mais
representativo de toda essa espiritualidade, que é já presente em
Foscolo e Leopardi. O ponto de saída da arte de Manzoni, os motivos
e os temas da literatura manzoniana, são os mesmos que cantaram
Foscolo e Leopardi. Mas a solução é que é diferente, a atitude é
diferente.
Também Manzoni se põe o problema da dor, também
considera a vida como amargura, também para ele há um dualismo,
um dissídio, um contraste entre o ideal e o real, entre o ser e o não-
-ser, entre a existência e o devenir; também para Manzoni os nossos
íntimos sentimentos nem sempre descem numa realidade real. E isso
Bruno Enei
266 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

cria em nós melancolia, tristeza, pessimismo. Também Manzoni


era pessimista como Foscolo e Leopardi. Porém, o pessimismo de
Manzoni se resolve romanticamente, religiosamente, na base, isto é, de
uma visão religiosa do problema do homem, da História, da realidade,
uma visão religiosa que coloca tudo isso num plano de solução, num
plano de explicação, de compreensão. Porque o problema de Foscolo
e Leopardi era justamente explicar a razão da dor: qual é a finalidade
da natureza, da realidade, das amarguras e das dores?
Em Manzoni há uma explicação dessa dor. Não se procura,
como em Foscolo, resolver a existência da dor através de uma ilusão
confortadora. Não se procura, como em Leopardi, afastando-se, numa
atitude quase estoica, da realidade da vida. Manzoni sabe que existe
a dor, mas sabe também achar uma razão religiosa da dor. A dor é
um elemento positivo da vida, não é uma coisa mecânica, fatalística,
naturalística, não é um castigo, uma condenação. Para Manzoni,
além de não ser isso, a dor é um prêmio, um presente, uma certidão
que prova que quem sofre é querido pelos deuses. Quando a dor nos
visita é porque Deus está ao teu lado, e, num certo sentido, a dor é
a presença da divindade. Quer dizer que a vida, longe de ser aquele
triunfo de felicidade, que era a ilusão de Foscolo e Leopardi, é, em
vez, e deve ser, uma espécie de crise, que redime, que transforma, que
se justifica, que até se deseja, se pede, se implora. Quem não sofre
é porque não vive. E quem sofre certamente se purifica através da
dor. A dor então é providencial, é esta a grande descoberta romântica
de Manzoni. Ela tem uma finalidade, um alvo, que são a elevação, a
educação, a humanização dos nossos espíritos. Naturalmente, para se
chegar a uma compreensão da dor, nesse sentido, só é possível através
de uma convicção religiosa.
Então, o que de notável há no romantismo de Manzoni é seu
aspecto religioso. É ainda mais evidente do que o de Foscolo, porque
a religiosidade manzoniana é a própria religião tradicional, isto é, o
cristianismo e o catolicismo, que Manzoni não recebe repentinamente,
que não recebe passivamente, mas que ele transforma, subjetivando,
e que é cheia de influências realísticas, nacionalistas e francesas. Um
cristianismo e catolicismo não passivo, não tradicional, não dogmático,
mas cheio daquele pathos, de humanidade contemporânea, moderna,
que era feita das dúvidas e da insatisfação dos românticos.
Manzoni então cantará não somente o problema, se existe ou
não existe uma História humana. Os homens fazem guerra, matam-se,
odeiam-se, mas qual é a finalidade disso? Dizem que a História não
tem uma espiritualidade, mas Manzoni não se põe esse problema, se
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 267

existe ou não um significado da realidade humana, se nós temos uma


razão de ser. Seu problema é dizer: qual é a razão de ser, qual é a lei
que cria a História, quem se agita no íntimo da História, da realidade,
quem é que está dentro, escondido, e parece alheio, mas está presente,
está ao lado de qualquer nossa ação?
Manzoni vai dizer que, ao lado de qualquer ação, no íntimo
da História, da natureza, há uma providência que regula, que ganhará,
que não está ligada ao tempo, mas está ligada à vitória, à conquista
final, a um resultado último e infalível, que, apesar das aparências, a
natureza vai se transformando e melhorando como uma finalidade, que
a humanidade, com suas lutas e limitações, a humanidade melhora e
progride, e a conquista final é aquela do bem, da luz, do progresso, é a
da moral, da ética. Essa conquista se cria com o tempo. Aparentemente,
parece que ganham a violência, a vingança, o ódio, mas com o tempo
vê-se que é a verdade que se supera e se afirma.
Há um otimismo pessimista em Manzoni, isto é, sempre
considera a realidade sob um ponto de vista amargo, que não é fim, pois o
pessimismo é iluminado por uma fé. É importante que a presença desses
ideais seja uma presença transcendental, dentro das coisas. Apesar de
Manzoni viver em fé, apesar de adquirir uma transcendência de um ser
que fora do mundo é o dono do perdão, ele vê essa atuação desse ser
transcendente na própria realidade do mundo em que vivemos. Aqui
mesmo há o inferno e paraíso, onde aparentemente parece que o inferno
ganha, mas, em vez, através dos séculos vemos que a virtude, o amor
triunfam.
Isso se vê nas suas obras e nas duas tragédias, e no romance,
e em I promessi sposi, em que descreve a perseguição de dois coitados
operários, que apesar de serem perseguidos pelos potentes e pelo clero,
apesar disso já aqui no mundo ganharão a parada, sendo felizes, ao
passo que os que os perseguem serão os punidos, os castigados, quer
pela peste ou pelo arrependimento, que os faz reconhecer a injustiça
feita aos dois. É uma obra muito bonita, pela qual Manzoni vive ainda
hoje; justamente hoje, depois de Nietzsche, Schoppenhauer e a literatura
de Zola, de Verga,79 excessivamente negativa, mais disposta a demolir
que a construir, depois de Freud, que procurou fazer com que o homem
conhecesse o seu subconsciente, que é necessário voltar a um homem
como Manzoni, para achar-se a síntese dessas afirmações, achando uma
razão de ser.
Manzoni tem essa função, por isso é o líder do Romantismo

79
Giovanni Verga (1840-1922), maior expoente da corrente literária do verismo.
Bruno Enei
268 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

italiano. Sua palavra em política, em religião, em prosa, é sempre num


equilíbrio, numa ponderação conciliadora entre os dois aspectos da vida,
um positivo e o outro positivo e tristemente real. Mas Manzoni acha essa
síntese que faltou aos que foram românticos apenas como ciência. Sua
vida, que tem uma importância enorme na história da literatura europeia,
foi sem ações, sem heroísmos bravios, sem gigantismo. Sua virtude foi a
moderação, a dignidade, uma seriedade quase fechada e serena de homem
sábio, tipo Sócrates, observando e equilibradamente considerando as
coisas de estudo, os fatos a que assistiu e os acontecimentos históricos,
sendo a historiografia uma das disciplinas que mais ama: primeiro, pela
realidade dos acontecimentos grandiosos, que pode pessoalmente ver;
segundo, pelo imenso amor para a História, essa maravilhosa ciência
humana, que canta o nosso passado, o dos nossos avós e as coisas da
realidade da vida. Se a História se apresenta como uma espécie de conditio
sine qua non, que provocará a verdade de sua convicção, justamente a
História passada mostrará que sua convicção é justa, que sua fé é concreta,
que é uma convicção profunda, real, afetiva, cheia de testemunhos. De
forma que, se para falar de Foscolo, poderíamos até não dizer nada da
vida dele e também nada da vida de Leopardi, aqui se torna necessário
imediatamente entrar na biografia dele, sua educação, o ambiente em
que viveu.
Tendo nascido em 1785 e falecido em 1873, ele viveu a beleza de
oitenta e oito anos. Quase um século de vida, durante o qual aconteceram
coisas enormes na Europa. Em 1785, quando nasce, faltam quatro anos
para a Revolução Francesa, que explode em 1879. Assistiu menino
a ela. Depois, a todas as guerras napoleônicas, às vitórias dele, desse
homem que representa justamente o conceito democrático do homem,
que, com sua força e inteligência, é capaz de chegar aonde chegam só
os reis. Depois, assistiu em 1895, aos vinte anos, ao fim de Napoleão, ao
Congresso de Viena, que queria que a Europa, depois de uma revolução
daquelas, voltasse aos princípios e modos de viver anteriores à Revolução
Francesa. E por isso as guerras, as intervenções dos países e até da Igreja
contra os movimentos liberais da Europa.
E Manzoni assistiu a todos os movimentos contra o Congresso
de Viena: as lutas de Portugal, Espanha, Grécia, Países Baixos,
Alemanha, Itália, México, Argentina, Bolívia, Brasil, com suas lutas de
independência. Depois, assistiu à caída do rei Luiz XVIII e à subida de
Luís Felipe d’Orléans, em 1831, em que temos o movimento liberal da
França. Entretanto, todo aquele movimento da Itália, em 1848, 1849,
1859, 1861, em que a Itália se liberta da Áustria, ele, profundamente
católico, vê com uma imensa satisfação que a capital da Itália passa
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 269

a Roma, e o papa perde o Estado Pontifício. Ele, feliz dessa unidade,


nomeado senador. Então Manzoni, durante esses oitenta e oito anos, teve
a possibilidade de ver um panorama histórico denso e emotivo.
Morre em 1873, quando na Europa e no mundo começa uma
história muito mais violenta e injusta, a guerra do colonialismo, do
imperialismo, que levará às conquistas na Ásia e África, e às Guerras
de 1915 a 1918 e de 1939 a 1945. Então, Manzoni pôde ver tudo isso.
Ele não viveu desassossegadamente porque seu pai era economicamente
rico, era nobre: Pietro Manzoni. Era um homem muito medíocre, que se
interessava por agricultura, morava na vila de Brusuglio, pouco afeiçoado
à família. Sua mãe era de uma delicadeza extraordinária, de uma educação,
serenidade, vivacidade, fieldade a toda prova. E isso demonstra quanto
essa mulher sofreu e foi útil a Alessandro. A família de sua mãe é de gente
muito culta: seu pai até hoje é lido com interesse, Cesare Beccaria,80 que
era um iluminista milanês que escreveu Dei delitti e delle penne. Não há
juiz que não a conheça, pois é a primeira obra revolucionária em que,
em nome da razão, queria que não houvesse a condenação de morte.
Deve haver uma reeducação, uma transformação, um auxílio. Sua mãe
chamava-se Giulia Beccaria, e Manzoni nasceu a 7 de março de 1785.

Vida de Manzoni

Na sua vida podemos colher três momentos fundamentais:

Primeiro momento
Aquele que vai de seu nascimento até sua ida para a França, isto
é, o período de vinte anos, de 1785 a 1805. Estes são os anos durante os
quais ele viveu num ambiente familiar, muito poeta, tranquilo, em que
a falta de solidariedade, de afeto, de delicadeza e compreensão entre os
pais o faz perceber a falta de uma vibração que une uma família. Havia
uma certa incompreensão entre o pai e a mãe, entre um homem mais
prático, dedicado à agricultura, e a mãe, que vinha de um ambiente de
alta intelectualidade, sendo filho de Cesare Beccaria, em torno do qual
há um círculo de cultura racionalista e iluminista, que é a distinção mais
importante da cultura milanesa do século XVIII. Ela era sensível, íntima,
conhecedora da música, religiosa, acompanha a cultura e é quem mais
influencia o filho, e sofreu essa indiferença de ambiente em que se formou
80
(1738-1794)
Bruno Enei
270 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Alessandro. Por essa incompreensão entre o casal, Alessandro Manzoni


teve que estudar em colégio de padres, e num primeiro momento foi
estudar numa cidadezinha da Lombardia, Merate, e depois em Lugano.
A primeira educação dele foi dirigida pelos padres Somaschi81
que, desde o século XVI, na Itália, desde a Contrarreforma, se interessavam
pela educação dos meninos, pela cultura da infância, como ainda hoje.
Mas o interesse dessas escolas era de caráter católico, em que a cultura
tem um valor objetivo e dogmático de obediência. Não é livre, subjetiva,
em que se procura as próprias intimidades, as próprias inquietações. É
mansa, meiga, tranquila, em geral de caráter humanístico. Prevalece o
estudo do latim, do grego e dos clássicos italianos. Ela se confirmou nos
ambientes.
Manzoni formou uma cultura notável, embora não fosse fechada
no Romantismo. Mais tarde, foi estudar no Colégio Longone, em Milão,
dirigido pelos padres Barnabiti. Em 1800, Manzoni deixa o colégio,
esses colégios onde tinha feito esses estudos de línguas clássicas, de
onde sai com uma cultura notável, mas exclusivamente objetiva, sem
uma personalidade, sem endereço, sem uma perspectiva pessoal dos
problemas da vida. Sua mãe vivia desde 1792 separada do marido, e vivia
em Paris, junto a um nobre italiano, Carlo Imbonati. Por incapacidade de
viver naquele ambiente, Manzoni achou-se, logo que sai do colégio, só,
sem o pai, e ele, como era rico, com quinze anos então conheceu a vida,
o jogo, o vício, porque nesta sua primeira mocidade há um momento de
relaxamento moral, de desorientação espiritual, não soube frear a tempo
esses primeiros abraços e convites do vício e corrupção.
Mas uma coisa bonita é que nesse período já é escritor precoce,
e teve uma puxada de orelha de três grandíssimos escritores italianos:
Vincenzo Monti, o grande clássico, Vincenzo Cuoco, um historiador
vichiano,82 e Francesco Lomonaco, um patriota vichiano. Foram os que
salvaram Manzoni de uma dispersão que teria sido fatal e inevitável,
diante de um moço rico e culto, se não houvesse esse convite à seriedade e
à cultura. Foi nesse campo que ele entrou. Colhemos a oportunidade para
dizer o grande, o imenso valor que tem a amizade. Manzoni é, entre os
poetas italianos, um daqueles que teve essa imensa sorte: em momentos
críticos de sua vida, sempre em certos momentos, teve essa beleza do
conforto, da proteção, do estímulo, da solidariedade dos amigos, num
sentido nobre, elevado, não o que fica tranquilo, que cede, mas que sabe
colaborar com as nossas deficiências.

81
Ordem dos religiosos somascos.
82
Da escola de Giambattista Vico.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 271

Esse período vai até 1805. Já tinha escrito muitas coisas, como
a poesia In morte di Carlo Imbonati. Morre o amigo da mãe, e o filho
de Giulia é quem escreve uma poesia de louvor, de apoteose. Ele escre-
veu uma poesia extraordinariamente bonita para sua idade. Imagina que
Carlo Imbonati, morrendo, lhe aparece em sonho, dizendo-lhe o valor da
existência, a finalidade da existência, a coerência entre o dizer e o fazer,
o valor da verdade, a necessidade do dever. Explica coisas para Manzoni
que não são de Imbonati, mas do próprio Manzoni, que as atribui a esse
homem amigo de sua mãe. Já em 1805, isto é, com vinte anos, Manzoni
já tinha uma consciência humana, um programa de homem que se tornará
também um programa de escritor, baseado numa visão ética da realidade
e que mais tarde será também uma visão lírica da realidade. Já tem um
rumo, de onde nunca fugirá. Nisso iguala a Goethe, esses homens fiéis,
puros, firmes.

Segundo momento
Em 1805 começa outro período, que vai até 1810. São cinco
anos de uma intensidade extraordinária, em que acontece justamente o
contrário do que tinha acontecido nos anos anteriores. Se estudou em
colégios, se tinha aprendido uma cultura objetiva, agora, de 1805 a 1810,
viverá uma cultura revolucionária, racionalista, a cultura dos famosos
salões da França. Viverá essa cultura anárquica, psicologicamente no
revés. Ele viverá uma cultura que também catolicamente é heterodoxa, que
não obedece a uma igreja, a um totalitarismo político, livre, espontânea,
procurando sempre realizar-se num sentido pessoal. E isso cria uma
crise formidável em sua alma. Perde num certo sentido sua serenidade,
aquele conforto que sempre se encontra no conformismo. Perde isso
para adquirir um requinte de experiência, de cultura, uma descoberta
de atitudes psicológicas, se não tivesse vivido durante cinco anos num
ambiente de alto requinte em Paris.
Manzoni deve muito a homens como Claude Fauriel,83 um grande
crítico, marido da viúva de Condorcet, filósofo francês, e a irmã desta
viúva era casada com o filósofo ideólogo Cabanis.84 Na casa deste e
daquele havia um ambiente de cultura: os moços da esquerda, inquietos,
se reúnem para discutir problemas, livros, problemas filosóficos, música.
Há um diálogo de interesse espiritual.
Manzoni, moço, aprendeu todas essas orientações novas. E
importante é ainda que, sendo um moço, ele se enamora pela primeira

83
Claude Fauriel (1772-1844): historiador, linguista e crítico.
84
Pierre-Jean-Georges Cabanis (1757-1808).
Bruno Enei
272 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

vez, que foi de uma delicadeza extrema, de uma fineza íntima, de uma
moça que se chamava Enrichetta Blondel. Suíça, filha de um banqueiro
em Genebra, tocava maravilhosamente piano e muitas obras de Manzoni
foram escritas enquanto sua mulher tocava piano. Uma das maiores e
mais famosas obras da Europa, escrita em honra a Napoleão, foi escrita
em poucas horas, acompanhado no piano pela mulher. Quanto ele devia
a essa moça. Ela não era católica, era calvinista, uma mulher que sentiu
sempre uma insatisfação religiosa. Tinha sempre anseios, dúvidas, crises
espirituais, por um desejo de ser boa, de ajudar aos outros, certas dúvidas
do Além, do castigo divino, que influenciavam sua riqueza espiritual.
Ela discutia muitas vezes com um padre católico, Eustacchio
Degole, que não somente sabia abençoar. Era um daqueles que tinha
suas dúvidas, que além da crença há uma necessidade de convencer-se
dos problemas, e ela com ele foi falando até que, em 1808, Enrichetta
Blondel converteu-se ao catolicismo. Abandonou o calvinismo e sentiu
maiores confortos na religião romana. Mas seu casamento com Manzoni
foi no rito calvinista. E Manzoni, em vez, que tinha tido uma educação
profundamente católica nos colégios, ele, diante da cultura francesa, vai
perdendo seu catolicismo. Não vai mais à igreja. Então ele está ficando
não anticatólico, mas acatólico. Não acredita, é apático diante de sua fé.
Mas, com sua sensibilidade, vive com suas dúvidas, com esse desejo de
uma orientação religiosa diante do exemplo da mulher, nos diálogos com
o padre e com outro padre, Luigi Tosi.
Manzoni em 1810 volta a ser um católico praticante. Até os últimos
anos de sua vida, num modo profundamente persuasivo, simples, emulado,
como sentindo que a religião para ele é um descanso, algo que nunca
deveria ser objeto de crítica, de dúvida, sobre a qual possa construir suas
obras de literatura. Em 1810, renova o casamento, casando-se na Igreja
Católica. E este ano é justamente o ano em que Manzoni mesmo chamou
de ano da conversão. Isso tem uma importância enorme na personalidade,
na vida e obra dele. Se até 1810 suas obras são coisas honestas, sérias,
sempre um homem direito, correto, cheio de ideais nobres, agora todos
esses ideais, sentimentos, todos esses motivos são sempre iluminados
por um conflito religioso, por uma atmosfera de altíssima religiosidade.
Depois de 1810, não há obra em que não haja uma afirmação de caráter
religioso, em que não se sinta que todas suas obras sempre têm um fundo
profundamente vivo, religiosamente vivo.
Então nós devemos dividir suas atividades literárias anteriores
ao ano de 1810 das obras que virão depois de 1810. As anteriores são
notáveis, mas são as de um leigo: ideais altíssimos, nobres, de progresso, de
liberdade, mas são ideais que falham de calor, de uma convicção religiosa.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 273

Depois de 1810, em vez, não haverá sentimento humano que não seja
investido por uma religião. Achou uma razão de sua literatura, pondo a
humanidade e a religião numa única unidade. Ainda hoje qualquer um de
nós sente que a vida é a negação da religião. Parece que há uma contradição
entre os ideais do Evangelho e os da vida. A vida é matar, é potência, mas
os princípios religiosos dizem o contrário. Mas em Manzoni se chega a
essa grande unidade, a vida e a religião, com a religião ditando o modo
de viver. Não devia existir um contraste. Então, tudo seria resolvido num
plano de unidade.
Nós tínhamos chegado ao ano de 1810. Este ano para Manzoni é
um ponto firme na sua orientação, na sua educação, na sua espiritualidade,
na sua educação, na sua atividade de homem e de escritor. Sua conversão
religiosa é o futuro alicerce de toda sua produção literária, de sua atividade
de cidadão e de homem. A religião alimenta, transforma, sublima aqueles
ideais anteriores, vendo-os não mais somente como motivos imanentes,
terrenos, de cultura, de civilização, mas como verdadeiros imperativos
religiosos da cristandade e, assim, brotavam sucessivamente as obras
dele. Realizam-se numa solidão serena de pensamento de um homem,
isto é, que não se joga na vida como se quisesse transformar a realidade
na base de novos ideais, que representam a sua consciência e alma. Ele,
em vez, se afasta, e nessa solidão objetiva, tranquila, íntima, de pensador,
meditando sobre os acontecimentos contemporâneos e anteriores, com
essa meditação ele realiza aquela grande produção literária.

Terceiro momento
Poucos acontecimentos nos interessam da vida dele depois de
1810. Poderíamos lembrar que, em 1825, Manzoni conheceu um grande
filósofo italiano, católico, mas seguidor de Kant. É Antonio Rosmini,85
criador do movimento religioso italiano. A amizade com Rosmini deu aos
seus pensamentos essa base filosófica.
Em 1825, temos também outra conversão, a filosófica, isto
é, Manzoni abandona completamente as influências culturais do
Racionalismo e Iluminismo da psicologia francesa e, em vez, vê na filosofia
e interpretação rosminiana de Kant um apoio lógico para a defesa dos
seus ideais cristãos.
Uma outra data é o ano de 1827. Manzoni já tinha escrito seu
grande romance, seu imortal I promessi sposi, mas em 1827 ele sentiu
a necessidade de corrigir, de melhorar a linguagem, o vocabulário do
seu romance, e como era lombardo, de Milão, sua linguagem não era

85
(1797-1855)
Bruno Enei
274 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

a de Dante, Petrarca e Boccaccio, não era toscana, e Manzoni sentiu a


necessidade de um banho na região da Toscana, de corrigir seu romance,
indo morar em 1827 em Florença, onde, em contato com os clubes, os
jornais, os homens de cultura, corrigiu seu romance. Sua moradia lá
servirá “para dar uma outra limpada no seu romance, nas águas do rio
Arno”. Aí é que conhece Leopardi.
Uma outra data é 1848. Foi o ano, para a Europa, das grandes
revoluções, dos grandes acontecimentos. Na França, acaba a monarquia
de Francisco d’Orléans e começa a República. E na Itália começa a
primeira guerra de independência. Em Milão, o povo se organiza e reage
contra os austríacos, e conseguiram durante cinco dias tirar de Milão o
exército austríaco. Aí se organiza um governo provisório, que convida o
rei Carlo Alberto para ajudar o povo a expulsar os austríacos. O filho de
Manzoni86 tinha sido autorizado pelo pai para tomar parte nesses combates
e foi preso e feito refém dos austríacos. Não foi fuzilado porque, quando
o governo de Milão o convidou a assinar a carta com que convidara Carlo
Alberto, Manzoni não teve nenhuma dúvida, e assinou como cidadão, foi
digno, apesar de saber das consequências do filho, sabendo que poderia
significar a carta o início de sua independência.
Outra data é a de 1855. Manzoni teve uma doença quase mortal.
Então, já conhecido na Europa, foi visitado pelo arquiduque Ranieri da
Áustria, mas quando o carro parou diante de sua casa, seu doméstico
foi pedir se podia ser recebido, Manzoni refutou recebê-lo, dizendo que
nunca como escritor, poeta e cidadão italiano poderia receber a visita de
um homem que representa o governo estrangeiro na Itália. Em 1861, pela
honestidade, seriedade, religiosidade de suas obras, o governo italiano
que unificou a Itália em 1861 nomeia Manzoni senador do reino italiano,
e ele toma parte na primeira assembleia do senado italiano, depois de
séculos, em Torino.
Em 1865, devemos lembrar que foi justamente Manzoni que,
embora católico, não hesitou em se declarar contrário ao poder temporal
da Igreja, apoiando a ideia de que a capital do Reino Italiano fosse Roma
no momento em que ela fosse finalmente reunificada com o resto da Itália.
Por este motivo, em 1864 Manzoni tinha aprovado a transferência da
capital da Itália de Torino a Florença; justificou o seu voto dizendo que
apoiava Florença como capital porque isto significava que logo a capital
seria Roma. Em 1870, quando, depois de 20 de setembro de 1870, as
tropas italianas alcançaram Roma e a declararam capital da Itália, ele foi
condecorado cidadão de Roma. Em 1873, todo o povo italiano comemora
a sua morte, com oitenta e oito anos.
86
Pietro.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 275

Obras de Manzoni

As anteriores ao ano de 1810 não têm uma grande importância,


de forma que serão apenas citadas: Del trionfo della libertà, escrita em
1801; Adda, é um carme bucólico, à imitação de poesia, dedicada a
Vincenzo Monti; I quattro sermoni, discursos de caráter ético-moral;
In morte di Carlo Imbonati (1805); L’Urania.
Estas obras dificilmente demonstram literatura que não seja
italiana, não são as obras que nos dão as ideias da personalidade, da
importância, da significação da presença de Manzoni na história literária
italiana e universal. Manzoni, até 1810, é um liberal, um racionalista,
um progressista que exalta os ideais de liberdade no campo político e
religioso, que saía de uma cultura não religiosa, mais progressista. Em
vez, o que interessa para definir bem o perfil humano da poesia dele
são as obras posteriores ao ano de 1810: Gli inni sacri (1815-1822); Le
tragedie: Il Conte di Carmagnola (1820), dedicada a Claude Fauriel, e
L’Adelchi, dedicada a Enrichetta Blondel, em 1822; Le liriche; I promessi
sposi, que é sua obra-prima.
Antes de mais nada, para poder entender bem a dialética da
produção literária de Manzoni, é preciso ter presente o seguinte: Manzoni
é um poeta cuja religiosidade o leva a ver dialeticamente na realidade, nos
acontecimentos históricos anteriores ou contemporâneos, a ver a presença
divina de Deus. Manzoni é o poeta que não vê a justiça, a honestidade,
a verdade, a divindade somente colocada fora do mundo, ele considera,
procura, vê a solução da realidade na própria realidade. Isso é muito
confortador, bonito, pois representa a concepção romântica da existência
da vida, porque é verdade, a vida é moral, é luta, é angústia, como diziam
os românticos desesperados. Para Manzoni, que possuía uma fé, uma
convicção, tudo isso não é um castigo, não é negativo, mas é afirmativo,
positivo. O mal tem uma razão de ser na realidade. O mal tem uma razão
de ser porque é algo de providencial, não é fatal. Nasce nas coisas, mas
não nasce por um gosto sádico de levar o homem a essa angústia. Surge
por um desejo de transformar, de iluminar, de melhorar o homem. Se não
houvesse a dor, não haveria um progresso na realidade. Se não houvesse
esse aspecto negativo, não haveria o seu contrário, isto é, a bondade, que
é uma superação da dor. A luz é uma superação da escuridão, a bondade,
da maldade. O homem mau não é definitivamente mau. O pessimismo
negava uma solução à realidade, não podia encontrar uma dialética do
mal. Mas Manzoni, através de sua cultura e religião, encontra uma solução
ao seu pessimismo. Manzoni não nega o pessimismo. Também, como
Bruno Enei
276 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

os outros românticos, se põe diante da realidade com uma perspectiva


pessimística, mas se resolve numa crença, porque vê na realidade uma
dialética lógica, providencial, divina.
Sua obra notável será aquela em que podemos ver,
contemporaneamente presentes, um dentro do outro, esses dois motivos
de pensamento, da genialidade de Manzoni. Será universalmente grande
a obra de Manzoni, em que, ao lado do mal está o bem e ao lado dos
ruins, os bons, ao lado da escuridão silente da descrença, a crença, ao
lado da vítima, o perseguidor, ao lado do vencido, o vencedor, ao lado do
vencedor, o vencido. Teremos verdadeiramente a obra maior de Manzoni
quando houve essa superação. E essa obra, que encontrará essa harmonia
clássico-grega da realidade, no seu contraste, criando uma melodia de som
e não essa paz calma, culminante, será representada pelo seu romance I
promessi sposi.
É a obra mais significativa do século XVIII na Itália. Impõe
moral, bem, Deus, não-Deus, heróis, vencidos e vencedores, chegando
a recolher essas notas diferentes numa sinfonia que é a explicação
da realidade. Esse destino não é implacável. Há uma dialética, que é
possível, no I promessi sposi. Antes, porém, Manzoni já tinha escrito
obras sobre a nova sugestão religiosa, porém essas duas ou três obras
anteriores são em que considera somente um dos aspectos da vida: ou o
mal ou o bem, ou a injustiça ou a justiça, ou a realidade com seus defeitos,
ou a idealidade com suas ilusões. De forma que essas obras anteriores,
embora notáveis, são um pouco unilaterais, porque se limitam a ver um
perfil da realidade, um aspecto dela. Falta-lhes essa visão compreensiva
geral da harmonia da realidade.

Gli inni sacri


Manzoni como homem, com seu entusiasmo que achou uma
fé, começou um programa de trabalho. Foi o seu primeiro. Propôs-se
a escrever doze hinos sacros, celebrando as maiores festividades do
rito católico: Natal, Pentecostes, Todos os Santos, Finados, etc. Porém,
Manzoni não escreveu os doze, somente cinco. Desses cinco, quatro
foram publicados no ano fatídico de 1815: enquanto os plenipotenciários
das várias potências europeias se encontram em Viena e procuravam ter
principalmente a Europa enfraquecida pela potência napoleônica, por
um novo sistema político, Manzoni lançava um conjunto de ideias, uma
mensagem religiosa muito inferior a uma mensagem política.
O último hino de Manzoni foi publicado em 1822, e é o mais
bonito. São eles: Il Natale, La Passione, La Pentecoste, Il Nome di Maria,
La Ressurrezione. Desses cinco, o terceiro foi publicado em 1822. Aqui,
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 277

embora Manzoni se refira a fatos dogmáticos dessas festas, como o Natal


milagroso, a Virgem, embora se refira a dogmas da Igreja, embora os
ligue às festas sacras, repete coisas que são muito beáticas, pois são mais
de fé que líricas; nesses hinos sacros, é tanta a atitude humana deles, que
vemos como o cristianismo interessa a Manzoni, sobretudo do ponto de
vista da ética humana.
Esse Cristo que nasce num estábulo, reverenciado por reis,
acompanhado por milagres da natureza, é o símbolo da miséria humana,
da pobreza humana. É um ser humano também, como todos os outros,
como os pobres. Esse que sobe para a cruz é o símbolo da via crucis de
todos os erros humanos, que se levantam, é o drama de cada um de nós.
Essa Virgem é o símbolo de todas as mães que sofrem pela nobreza dos
filhos, pelos ideais que esquentam a alma da mocidade, que preocupa
a mãe, que considera seu filho Deus, ao mesmo tempo em que sofre
pelo ideal. La Ressurrezione é cheio dessa confiança, da possibilidade
do homem de livrar-se.
O hino mais importante é La Pentecoste. É o hino em que exalta
um dos momentos mais bonitos do ano católico, com que se celebra
a descida do Espírito Santo no espírito dos apóstolos, cinquenta dias
depois da Páscoa. Aquele hino em que a Igreja exalta a figura do Espírito
Santo, que representa a força no homem, faz luz no escuro, é o conforto
de uma divindade presente. Exalta-se a descida não restrita apenas aos
apóstolos, mas invoca que o Espírito Santo continue descendo em todos
os momentos e idades, praticando a inocência da infância, protegendo o
sorriso da mocidade, dando conforto, sustentando a fraqueza dos velhos,
que, fechando os olhos, esperam um mundo melhor do que aquele “chi
sperando muor”.87 Essa necessidade de um Deus presente no meio dos
homens, como uma chave de conforto, é uma visão triste da realidade
humana, uma imploração trágica da nossa fraqueza e da necessidade da
presença de alguém construtivo e tranquilo.
Representam os hinos o aspecto otimístico, religioso, ideal
de Manzoni; cantam um mundo fora da realidade. São os motivos da
cristandade. Não temos ainda a grande concreta poesia manzoniana, que
é o resultado de dois fatores em contraste, sintetizando-se.

Le tragedie
Manzoni escreveu duas tragédias, uma publicada em 1820 e outra
em 1822. A primeira é intitulada Il Conte di Carmagnola e é dedicada a
seu amigo Claude Fauriel. A segunda é L’Adelchi e é dedicada a Enrichetta

87
“quem esperando morre”
Bruno Enei
278 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Blondel. As duas tragédias são escritas em versos hendecassílabos soltos,


divididos em cinco atos, e não obedecem às regras clássicas aristotélicas de
unidade de tempo, de lugar e personagem. São tragédias renovadoras, que
ficam fora da tradição clássica, não obedecem aos princípios fundamentais
da tragédia clássica. São duas tragédias profundamente românticas.
Uma inovação importante há na tragédia manzoniana, que poderia
lembrar o aspecto da tragédia clássica, assimilada e subjetivizada por
Manzoni, que é o coro. Mas tem um sentido diverso, subjetivo, pessoal.
O conteúdo é de caráter histórico, porque sempre Manzoni, nas suas obras
fundamentais, se põe no centro, no coração da História. Sua poesia nunca
é uma poesia de imaginação, de fantasia, é sempre uma reflexão, um
pensamento, uma crítica, uma lirização, uma transfiguração de um exame
da realidade mais humana, que é justamente a realidade histórica.
Il Conte di Carmagnola, sua primeira tragédia, em 1820, é inferior
à segunda. Ela abrange um período de tempo que vai de 1425 a 1432, quer
dizer, sete anos. É um acontecimento histórico que durou esse período,
baseado num acontecimento do ano de 1428, que foi o ano da batalha de
Maclodio. O conde de Carmagnola é um daqueles aventureiros, capitães
de ventura, tão comuns na história da Renascença e do Humanismo. Esse
homem generoso, leal, corajoso, estava a serviço do duque de Milão, que
era Filippo Visconti. O conde tinha ganhado fortes adversários, grandes
batalhas, mas mais tarde, por um contraste entre a generosidade e a astúcia
dos homens políticos, deixou o ducado de Milão e foi servir na república
de Veneza. Em 1425 a 32 há uma guerra entre Milão e Veneza, que se
decide na formosa planície Maclodio. Aqui o conde venceu os adversários
de Milão, derrotou seus antigos companheiros de armas e foi generoso
com os vencidos: mandou em liberdade os chefes do exército milanês,
pois ele de propósito não queria humilhá-los e aproveitar essa vitória.
Por isso, o conde foi acusado por Veneza de traidor e foi condenado à
morte, sendo decapitado. É uma tragédia triste, amarga, em que domina
a injustiça, a frieza, a política, a astúcia, em que é vencida a lealdade,
a honestidade, a generosidade. Então há esse contraste entre um caráter
generoso, idealista, inocente e, em vez, Veneza fria, astuta, maquiavélica,
e ganha Veneza. As conclusões são pessimistas, é uma voz sem otimismo
da realidade.
L’Adelchi, a outra tragédia, é aumentada ainda por um profundo
sentimento íntimo humano. Também os acontecimentos que a inspiram são
um fato histórico, cuja duração é de três anos, entre 1772 e 1774. É a guerra
entre Carlos Magno, aliado do papa, e os longobardos, comandados por
Desidério, que tinha usurpado as terras da Igreja. Carlos Magno se oferece
como defensor dos direitos da Igreja. Num primeiro momento, Manzoni
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 279

descreve a bravura dos longobardos, e Carlos Magno teria perdido a


batalha se uma intervenção divina não tivesse indicado a ele como dirigir
os longobardos nos Alpes (Le Chiuse), e ele os vence. Isto seria muito
importante se não houvesse outros motivos de pôr em evidência. Os
motivos são determinados pelas figuras dos dois personagens do exército
longobardo: Ermengarda e Adelchi.
São irmãos, filhos de Desidério. Mas sofrem uma luta interior,
extraordinariamente grande, humana. Eles são a tragédia, e é pelos
acontecimentos que eles atravessam que a tragédia se torna altíssima
expressão de poesia. Ermengarda, loira, filha de um dos maiores reis, de
um povo forte, já estabelecido na Itália, essa rainha, essa moça se torna
mulher de Carlos Magno. Para evitar a guerra com Desidério, Carlos
Magno casa por razões políticas com Ermengarda. Mas para ela não tinha
sido um motivo político, mas um motivo humano, ela era uma admiradora
desse rei intrépido na Europa lendária, pelas gestas, pelas suas atitudes
diante da Igreja. Ela o amava. Mas quando Carlos Magno move guerra a
Desidério, ele a manda embora, devolvendo-a a seu pai. Esta ofensa a uma
mulher, a uma rainha, que vive de saudade, de amor, daquele ambiente
de prestígio, esse motivo é o drama de Ermengarda, inesquecível, que
aumenta este pathos, donde se move a tragédia de Manzoni.
Ermengarda acabará morrendo no convento de Breschia, e seus
últimos momentos são dignos de um Shakespeare, porque Manzoni
descreve a luta da alma de Ermengarda, entre o Céu e a Terra, entre Deus
e Carlos Magno, ela que quer esquecer e não pode esquecer, que sabe que
deverá morrer e esquecer o fato de ter sido mulher dele, de ainda sentir
um imenso amor por ele, e, ao mesmo tempo, como religiosa, quer viver
com a imagem de Deus, com essa visão celestial que se abre a ela.
Adelchi é devoto, religioso, cavalheiresco, mas não condivide a
política do pai. Mas, por ser filho, deve combater contra uma igreja em
que acredita, contra um Carlos Magno que é marido de sua irmã. É um
contraste que se desenvolve e que também o leva a morrer.
Temos então essas duas figuras fundamentais. L’Adelchi é uma
das obras mais delicadas, é a obra mais significativa antes de I promessi
sposi.
Nas duas tragédias há de notável também i cori. Nós temos
nelas três coros: um está no segundo ato de Il Conte di Carmagnola
e dois estão no terceiro e quarto atos de L’Adelchi. O valor dos coros
é o seguinte: o coro na literatura grega era aquela parte em que se
apresentava um personagem apresentando o drama. Chamava a atenção
da assistência para o drama que iria ser apresentado. O coro grego tinha
a importância de resumir brevemente os acontecimentos da tragédia,
Bruno Enei
280 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

de modo que o público pudesse encontrar facilmente a tragédia. Em


Manzoni, o coro não tem esse sentido de apresentação; é, em vez, o
ângulo particular reservado ao autor, o momento em que Manzoni
suspende os acontecimentos históricos para intervir, ele próprio, como um
personagem ideal, interpretando particularmente os acontecimentos até
então descritos. O poeta entra pessoalmente numa narração objetiva.
Isso é importantíssimo, porque, tirando os coros, as tragédias
manzonianas seriam históricas, narrações objetivas, elas não precisam
modificar os fatos, são verdadeiras páginas da História, documentadas.
Mas quando Manzoni as subjetiviza? Quando nos coros intervém com
suas ideias políticas e religiosas, e ele, sobrepondo a essa documentação
histórica, entra com seu sentimento, alma, atitude, sua visão cristã,
interpretando os acontecimentos narrados. Assim, no segundo ato de Il
Conte di Carmagnola, temos o famoso coro La battaglia di maschere,
em que Manzoni interpreta a mesquinhez dessas guerras intestinas entre
irmãos e irmãos, concluindo que isso apenas significa um enfraquecer
das forças italianas e permitir que os estrangeiros entrassem na Itália.
Justamente depois desse período é que a Itália começou a ser dos outros.
Então, essa visão subjetiva de acontecimentos históricos é notável, porque
aqui, no coro, Manzoni diz essas coisas na véspera da guerra com as quais
a Itália procura sua independência. Elas iluminam, dão coragem.
Nos outros dois atos, os dois coros são um de caráter político e o
outro de caráter religioso. O primeiro está no segundo ato de L’Adelchi:
uma descrição da guerra entre Carlos Magno e Desidério. O exército
de Desidério é representado como fugitivo diante da força de Carlos
Magno e os italianos são como assistentes dessa batalha, que se iludem,
que pensam ter o direito de aspirar que a vitória signifique a liberdade
e independência italianas. Manzoni chama os italianos à realidade,
dizendo que a liberdade e a independência são sempre coisas que se
devem conquistar com o próprio heroísmo, valor e coragem. Devem
abandonar as ilusões, que, depois das mortes e sacrifícios dos soldados,
deve tirar-se essa ilusão de que Carlos Magno possa dar de presente a
Itália que eles aspiram obter. Manzoni quer que os italianos se preparem,
se não querem voltar a trabalhar nos campos italianos, que no momento
estão molhados de suor.
O outro coro, no quarto ato88 de L’Adelchi, é a descrição da
morte de Ermengarda. É uma das páginas mais bonitas da literatura
italiana, para entender o espírito da poesia anterior a I promessi sposi.
Ermengarda se encontra circundada por freiras e desejaria que aquelas

88
Parte da Scena I do Ato IV foi analisada em aula.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 281

rezas e confissões pudessem destacar a alma de um passado belíssimo,


quando era mulher de Carlos Magno. Mas seu pensamento volta sempre
lá, lembrando Carlos Magno, com essa dor, com os cabelos compridos,
seus guerreiros, seu marido, aquele castelo onde acompanhava as
paisagens serenas da França, onde se sentia circundada pelas damas
da corte. Em sua alma conflita um desejo imenso de esquecer, para
viver um futuro em que se abra a possibilidade de uma felicidade sem
tragédia, que é a do Além, e que só pode esquecer vendo o Aquém. É
algo de providencial: la provida sventura. O destino de Ermengarda
é justamente esse, aquele de continuamente pedir a Deus de poder
esquecer a Terra, o amor de Carlos Magno e, ao mesmo tempo, de
nunca obter por Deus essa concessão, porque, não concedendo isso,
ela teria merecido a felicidade do Além. Sua dor é algo que Deus
coloca à disposição do homem, para que morresse a felicidade.
Os coros representam o segundo aspecto da produção literária
de Manzoni. Se os hinos representam a parte otimística, uma visão
religiosa da vida, os ideais de Manzoni, as tragédias são apenas uma
visão amarga do que a realidade é sem a descida do Espírito Santo, pelo
que ela é sem nenhuma presença divina. A realidade, a História, são só
mal, injustiça, punição de inocentes. Se os hinos sacros representam o
aspecto otimístico, as tragédias são o aspecto pessimista. E acharemos
as obras-primas quando os hinos sacros estarão presentes às tragédias
e vice-versa, quando os dois motivos estarão unidos numa unidade
conjunta, como acontece em I promessi sposi.
Depois das tragédias e de I promessi sposi, Manzoni escreveu
um grupo de líricas: Il proclame di Rimini, mas as mais importantes
são Il cinque maggio e aquela intitulada Marzo 1821. A de 5 de maio
é a da morte de Napoleão. Depois de um certo período, Manzoni,
acompanhado ao piano por Enrichetta Blondel, teve uma inspiração
e interpreta a figura de Napoleão como um símbolo do que é a
realidade. Napoleão nesta poesia surge como símbolo, como um mito,
ele representa o que a humanidade é nesta vida, isto é, Napoleão que
surge, que triunfa, que vence, que é derrotado, que sofre, primeiro pela
derrota em 1815 e depois porque é exilado em Elba e em Santa Helena;
é o símbolo do que acontece a cada um de nós. A vida reserva tristeza
e felicidade a cada um de nós. Esta insatisfação leva o homem até o
último momento, em que aparece um ser superior aos homens, isto é,
Deus, que sonha consolar o homem em razão da sua infelicidade. Então,
sua figura é extraordinariamente significativa. Napoleão não é visto
sob um ponto de vista político, econômico, como um revolucionário ou
um reacionário, um irreal imperador, mas como um símbolo, como um
Bruno Enei
282 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

homem que é o ecce homo da visão da realidade de Nazaré. Napoleão,


com seu domínio na Europa, podia ser a expressão absoluta do que
é o destino da humanidade. Napoleão é o homem que, apesar de ter
vencido, de ter infinitamente engrandecido a França, ele é insatisfeito
até o último momento, e que só se torna risonho porque a visão de um
império maior, de um mundo maior se abre ante ele, que é o mundo do
Além. O que o conforta é o prêmio de sua infelicidade.
Outra poesia é Marzo 1821. Nesta data há em Milão uma
revolta popular que dura cinco dias, uma rebelião em que os milaneses
procuraram rebelar-se aos austríacos. Há uma conspiração na Itália
setentrional, mas não teve nenhuma força, porque a intervenção da
Santa Aliança constrangia os chefes liberais a sair da Itália. Um é
Silvio Pellico, outro é Piero Maroncelli, que, como Byron, foi morrer
na Grécia. Em 1825-1827, Manzoni descreve sua esperança, que na
base dela o povo alcance sua independência. Mas a reação foi tão forte,
que o movimento foi sufocado ao nascer. Não foi publicada esta obra.
Mas, em 1848, quando verdadeiramente o povo milanês e não mais
uma conspiração se organizou para tirar Milão dos austríacos, então
Manzoni publicou esta poesia.

I promessi sposi
É um romance histórico que se refere a acontecimentos históricos
vividos na Lombardia entre 1628 e 1630 (ano da peste). Por isso, deve-
-se dizer que Manzoni baseou-se naquele gênero de romances históricos
que foi iniciado por Walter Scott. Qual é a diferença entre o conteúdo
histórico do romance de Walter Scott e o conteúdo histórico do romance
de Manzoni?
É o seguinte: a história no romance de Walter Scott tem mais
um caráter de simpatia, de imaginação, de informação, de curiosidade.
Num certo sentido, o romance de Walter Scott tem o sentido de instruir,
de educar o leitor sobre os acontecimentos apresentados de uma forma
simples, é mera curiosidade.
Em vez, em Manzoni a História tem uma função de documentação.
Não é curiosidade; é, em vez, uma prova da realidade, da verdade, do
seu idealismo, de sua fé, de sua concepção. Não é uma narração, uma
exposição. Tem um caráter interpretativo, não se interessa tanto dos nomes,
de datas, dos acontecimentos históricos, mas, em vez, da lógica interna,
humana, espiritual dos acontecimentos históricos. É uma interpretação
subjetiva e religiosa da História, é um testemunho do seu pensamento de
justiça, de verdade, da realidade da sua visão da vida.
Este romance teve sua primeira edição entre 1821 e 1823. E
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 283

nessa edição que foi publicada não faz muito tempo, não foi publicada
durante a vida dele, nem logo depois de sua morte, mas ultimamente. Essa
última edição tinha o título Gli sposi promessi. Foi mais tarde publicada
pelos filólogos, nesses últimos anos, para mostrar ao leitor e estudiosos a
imensa diferença entre a redação do primeiro e do segundo. No segundo,
começa por mudar o título do romance. Não é mais Gli sposi promessi,
mas I promessi sposi. Essa edição foi publicada pela primeira vez entre
1825 e 1857. Em 1827 é que acabou de sair a primeira edição desse
segundo romance manzoniano. Mas a definitiva edição, conforme nós hoje
a podemos ler, foi publicada muito mais tarde, isto é, entre 1840 e1842.
Então deve estar claro: num primeiro momento, Manzoni escreveu
um romance: Gli sposi promessi (1821-1823). Nunca foi publicado por
ele. Mais tarde, mudou o nome e ficou I promessi Sposi. A primeira edição
desse segundo romance foi entre 1825 e 1827, porém a edição definitiva
deste segundo é entre 1840 e 1842.
Deve-se lembrar o seguinte: primeiro, Manzoni, em 1827, foi
residir por um certo período em Florença, porque ele, como lombardo e
defensor de uma teoria de unidade da língua, como defensor e líder do
Romantismo italiano, não sabia separar o problema político do literário.
Um povo é politicamente unido quando é linguisticamente unido. A prova
de sua unidade política.
Se no século XIX a Itália anseia sua unidade política, também,
justamente pelas teorias do Romantismo, deveria ansiar uma unidade
linguística. Qual deveria ser a língua italiana igual para todos os escritores?
Apenas a língua modulada sobre o dialeto toscano, que se lembrasse de
Dante, Petrarca e Boccaccio, que se lembrasse da língua de que se serviu
o Humanismo e a Renascença; é a língua florentina. Manzoni, cheio de
lombardismo, de dialeto, foi corrigir, limpar sua linguagem, indo morar
em Florença, onde foi “sciacquare i suoi panni in Arno”.89 É um motivo
de caráter linguístico.
O romance que escreveu entre 1821 e 1823 é um romance exterior,
psicologicamente cheio de motivos queridos pelos românticos, como,
por exemplo, o sensualismo, a corrupção no clero, a figura demoníaca
dos ricos, dos potentes, dos poderosos, o crime, o delito; esses temas aí
são os mais descritos, os que mais enchem as páginas, onde prevalecem
e dominam.
Com a estadia de Manzoni em Florença e com uma meditação
sobre esse romance, Manzoni tirou todas essas imitações psicológicas de

89
Foi enxaguar as roupas no Arno, no sentido de que ele foi limpar a sua linguagem dos
dialetismos lombardos em Florença, considerada o berço da língua italiana.
Bruno Enei
284 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

um romantismo comum e deu ao seu romance aquela transparência, aquela


clareza, aquela convicção que são próprios desse romance imenso italiano,
que é o único grande romance italiano, com esse caráter de objetividade, de
intimidade, de solenidade e de austeridade. Então, a correção de 1827 não
é somente uma de linguagem, é também uma de conteúdo, de tonalidade.
É uma correção de sentimentos, é uma catarse, uma purificação de tons
que fazem um Manzoni profundamente religioso e não excessivo, pois ele
elimina os exageros e põe seu romance como uma página de história.
I promessi sposi90 narra o seguinte, referindo-se a um fato
histórico, a um acontecimento real, verdadeiro, acontecido na Lombardia
quando essa região pertencia à dominação espanhola, sobretudo aos dois
anos que vão de 1628 a 1630: dois jovens pobres, que não têm nada de
extraordinário, comuns, anônimos, amam-se profundamente, amam-se
tanto que estavam prometidos noivos e se encontram na iminência de se
casar. Nada de mais natural, alegre, estoico, do que o estado de alma de
Lucia e Renzo. Então, são dois moços pobres, de uma zona da Lombardia,
que é Lecco. Lá eles vivem. Mas esse casamento, que era uma aspiração
tão grande, profunda e legítima, esse casamento é hostilizado por dois
elementos: duma parte, pelo clero, e de outra, pela burguesia. Há um
rico senhor, Don Rodrigo, que, por uma simples aposta, luta, promete e
garante que esse casamento não se realizará. E um padre fraco, covarde,
Don Abbondio, dá mão forte a Don Rodrigo, fazendo tudo para enganar
esses dois, que não poderão, embora já vestidos para a igreja, casar-se.
Acontece uma infinidade de coisas, que se entrelaçam, como
a guerra famosa dos Trinta Anos. Lucia vai num primeiro momento a
Monza, onde fica num monastério, onde conhece uma freira corrupta.
Renzo vai a Milão, onde toma parte em guerras revolucionárias, com
uma boa-fé que não lhe poupa de conhecer a cadeia. De Bérgamo,
volta a Milão, e acontecem uma infinidade de vicissitudes, depois das
quais eles poderão realizar o sonho de dois anos atrás, e quem os casará
será o padre que num primeiro momento tinha impedido, com frases
latinas, tinha enganado esses dois, que, decepcionados, se afastaram.
Don Abbondio os casará. O romance se fecha com uma discussão
histórica de acontecimentos militares importantíssimos: o assédio de
Casale Monferrato e, sobretudo, com uma das páginas da Europa em
que Manzoni descreve a peste de Milão em 1830.
Com a descida dos lanzichenecchi91 acontece uma peste que
ceifa milhares de vítimas em Milão. Vem o roubo, o abandono das leis, a

90
O Capítulo XXXIII (Chiusura) foi analisado em aula.
91
Soldados mercenários.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 285

violência, e temos páginas maravilhosas, como a em que descreve a mãe


que leva sua menina morta. Manzoni num certo momento concentra sua
descrição sobre o lazzaretto.92 Lá, no meio de doentes, havia figuras que
Renzo conhecia. Uma dessas figuras é Don Rodrigo, que se encontra nos
últimos momentos de vida, e é justamente o padre Cristoforo, o contrário
de Don Abbondio, que pede a Renzo perdoá-lo. Consumido, cansado, ele
convida Renzo a perdoar Don Rodrigo, então ele entrou nos corredores e
vê um homem no chão e perdoa ao seu perseguidor. E depois, continua
olhando no lazzaretto e encontra sua Lucia, que ajudava as enfermeiras.
E Renzo volta aos antigos sentimentos de amor, de dedicação à sua
nobre Lucia.
Lucia revela a Renzo um acontecimento particular, que deixará
Renzo perplexo: ela, numa noite de terror, quando tinha sido roubada
do convento de Monza por um outro senhor, naquela noite ela faz um
voto à Virgem, que, se ela a salvar da violência, das preocupações que
ela tem, se isso acontecer, ela promete sua pureza, promete renunciar ao
casamento. Faz esse voto, que é uma das páginas maravilhosas, e conta
isso a Renzo, que fica perplexo e vai contar ao padre Cristoforo. Este,
com sua inocência, pureza, lutador, diz que Lucia não podia fazer esse
voto, de que já havia empenhado sua palavra, pois já era noiva de Renzo.
Não podia dispor disso se já era comprometida. Não se pode fazer o voto
sobre algo que já está prometido. A Igreja quer que os homens casem.
Pois então a palavra dela não podia ser negada por nenhuma outra razão.
De forma que o próprio padre dissolve o voto de Lucia. Então, Renzo
e Lucia serão casados por Don Abbondio, que conheceu a peste, que
sofreu, que reconhece os erros humanos de sua covardia.
Outros acontecimentos vêm. O famoso, monstruoso, valente
senhor, L’Innominato, converte-se à religião cristã, pois um dia recebeu
uma carta de Don Rodrigo, dizendo que uma moça no convento devia
ser roubada; era só falar com a freira, que era corrupta; essa moça fará
um plano de modo que Lucia seja vítima do rapto de L’Innominato. Um
dia, a monja indica uma estrada onde possa passear, e assim que Lucia
lá vai, um carro a leva ao castelo de L’Innominato, que a fecha e começa
a vê-la. Vê o candor daquele rosto, a sensibilidade daquela moça, sua
religiosidade. Fica preocupado ao ver que ela não tem medo, porque é
boa, é pura, e então começa a pôr o problema de Deus, da contingência
da violência, que dura até enquanto vivemos. Se eu sou forte, será que
depois não haverá um mais forte do que eu, mais tarde? Ele chega a
admitir a existência de Deus. Diante do problema da injustiça divina,

92
Lazareto, estabelecimento que abriga pessoas portadoras de doenças contagiosas.
Bruno Enei
286 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

L’Innominato sente uma crise espiritual extraordinária, bonita, profunda,


feita de perguntas imensas, raras, e ele se lembrava dessa delicadeza,
desse olhar puro, e sente um soar de sinos, e olha na rua, na estrada, e vê
gente vestida de cores diferentes, mulheres com os cabelos amarrados e
vestidos coloridos e cantando pela estrada. Como existe tanta alegria num
período de perseguição? E aí aquela velha diz a ele que é pelo fato de que
um cardeal, um parente de San Carlo ia visitar as paróquias em torno do
seu castelo. E ele pede para falar com o cardeal. Um defendendo a fé, a
razão, e outro, em vez, violento, cruel, com homicídios sem número na
sua consciência.
Há um choque enorme com Don Rodrigo, rindo e sempre
sendo um mesquinho. É muito mais fácil entender-se com grandes com
dignidade do que com mesquinhos. Põe seu castelo à disposição, que
vira um hospital. A vitória de Renzo está perto. Ao lado dele tem a figura
do padre Cristoforo, é um moço de origem rica e nobre, que um dia,
passeando na calçada, encontra um nobre espanhol que o desafia. Veio
um duelo, e o padre matou seu adversário, e esse choque criou uma crise
espiritual: ele fez voto de padre e entrou no clero. Foi sempre violento,
honesto, firme, mas pela justiça, pelos ideais cristãos. Será o cavalheiro
de Renzo e Lucia. Acabará como um vil no lazareto de Milão. Acaba de
um modo maravilhoso esse romance: Lucia muda seu voto, prometendo
que seu primeiro filho se chamaria com o nome da Virgem Maria. Renzo e
Lucia estavam lembrando o drama, as vicissitudes, e Renzo diz: “Quanto
sofremos!”. E Lucia, que nunca fez nada de mal.
Conclusão: o mal é devido às nossas ações, mas muitas vezes vem
por si. Mas, de qualquer modo, sejamos responsáveis ou não, venha o mal
sem nossa sensibilidade, mas serve para reconciliar os homens com Deus
e ter mais fé na verdade. Esse drama de Renzo e Lucia se fecha com uma
conclusão otimista. A vida é amargura, covardia, inimizade, mas devagar,
com a presença de Deus, o mal vai caindo, vão caindo os obstáculos, e o
que triunfa é o amor, a família, a verdade. É uma obra cheia de sugestões
religiosas, humanas, políticas.
Conceito de Manzoni sobre a arte: ela deve ter por finalidade a
utilidade, por meio o interessante, por objeto a História, isto é, a verdade.
Então, três são para Manzoni os elementos que constituem a obra d’arte:
primeiro, a verdade – precisa ser honesta, verdadeira, objetiva, histórica,
real, não imaginativa, fantástica; deve ser a realidade; segundo: deve ser
narrada num modo interessante, que o leitor se interesse por aquilo, que
o leitor sinta interesse pelo que lê; terceiro: deve ter como finalidade
uma atitude moral, deve educar, ensinar uma coisa. A obra d’arte é tudo
isso, mas é tudo isso e ainda mais, porque, para ser obra d’arte, deve ser
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 287

também imagem lírica a linguagem do poeta, uma transfiguração, num


plano lírico, do que é interessante, verdadeiro e útil.

A crítica literária e a estética de


Francesco De Sanctis

Francesco De Sanctis nasceu em Morra Irpino, em 28 de março


de 1817. Aos nove anos, foi a Napoli, onde estudou. Morreu em vinte de
dezembro de 1883. A crítica literária de De Sanctis é uma das mais firmes
expressões conscientes do Romantismo. Representa no espírito europeu
e, sobretudo, italiano, a revolução de pôr-se diante da arte, da poesia, da
prosa, com a atitude que ele é, no campo da crítica, como consequência
do Romantismo. Ele não só valorizou o Romantismo, a espontaneidade
e criação, mas também o modo de ler e criticar a obra de arte.
Antes, a crítica baseada na erudição dava apenas notícias
sobre um gênero, sobre um homem, etc. Não eram ensaios de valor, de
julgamento literário, de criação. Além dessa crítica, havia outra, que era
formalista, consequência do Humanismo e da Renascença, em que tanto
se valorizou a expressão, e em que o crítico, diante de uma obra de arte,
procurava a eloquência do autor e seus cânones aristotélicos.
Há uma outra atitude crítica antes de De Sanctis, que deriva da
filosofia alemã que veio com Hegel, que tinha um conceito de arte que o
levava a considerá-la como um meio de exprimir as ideias, e nada mais era
que a forma bonita de expressar-se, que são as convicções e princípios, que
nada mais são que a efêmera filosofia da criatura. É uma visão universal
da realidade, da natureza, e a obra de arte nada mais é que um meio de
exprimir as ideias. Ele chegou a dizer que, depois da época romântica, a
arte desapareceria, eliminada pela Filosofia, havendo aí uma sublimação
do conceito de arte e também uma ilógica condenação da obra de arte
sujeita a desaparecer.
Nisso, Hegel lembra Platão, mas é um artista, e De Sanctis,
num primeiro momento, é um discípulo de Hegel, mas o seu conceito
é substituir a estética das ideias de Hegel pela estética da forma. Hegel
tinha uma definição de arte que se pode chamar definição de ideias,
e sua estética é essencialmente ideológica. A obra de arte é um meio
contingente das ideias, ao passo que De Sanctis tem a estética da forma,
que é a obra d’arte. Não é moral em forma de pregação, não é conteúdo,
não é linguagem. Portanto, primeiro: o seu caráter não é moralidade;
Bruno Enei
288 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

segundo: não é conteúdo; terceiro: não é a linguagem, pois, se assim


fosse, a linguagem existiria antes da obra de arte, que canta e exprime
o conteúdo; a linguagem e a moral ficam fora do julgamento da obra
de arte, e sua primeira característica é o sentimento. Quem escreve, o
faz por uma necessidade que não podia deixar de aparecer, sabendo
realizar o sentimento humano, a paixão, a ilusão. A obra de arte tem suas
regras dentro de si. A força de um livro está na capacidade construtiva
do sentimento que inspirou o autor. O sentimento não é ceticismo, mas
cheio de amargura, com otimismo.
De Sanctis é o crítico que soube ver numa síntese os dois elementos
que parecem constituir a obra de arte: sentimento e linguagem. A obra de
arte é a forma em que o sentimento acha suas palavras. As palavras de
todos tomam os sentimentos do autor, o que é o seu caráter fundamental. A
forma é um conceito concreto, um alcance, uma conquista do sentimento
que se torna palavra, e a palavra é a expressão do sentimento. O poeta cria
suas palavras, chegando-se a dizer: linguagem de Dante, linguagem de
Ariosto, de Petrarca, e assim por diante, que não é a linguagem italiana,
mas a linguagem individual de cada um deles.
As palavras não têm sentido psicológico. De Sanctis, colocando
como base o sentimento, diz que o sentimento da arte é a imagem do
homem. Não existe dualismo entre o poeta e o homem. O poeta é um retrato
do que ele é como homem, como é liricamente, como é humanamente. A
sua lírica não é literatura, é um manifesto da sua imagem, é o homem que
cria seu mundo rico. A obra de arte é baseada no sentimento, é a literatura
de um povo, é a história lírica da alma, das vibrações de um povo, que o
escritor transmite através desta obra de arte.
Obras: Storia della letteratura italiana, Saggi critici, Studio su
Giacomo Leopardi, Saggio critico sul Petrarca, L’Autobiografia.
Francesco De Sanctis foi ministro da Educação (1861-1876),
vivendo em contato direto com os estudantes, ajudando-os a solucionar
seus problemas escolares, dando-lhes conselhos.

Giosuè Carducci e o Romantismo

O Romantismo italiano, como todo o Romantismo europeu,


num certo momento do seu desenvolvimento em poesia, filosofia,
crítica, história e religião, entre outros, apresenta aspectos de decadência,
indecisão, morbidez, incerteza ideológica, ética e lógica, que pode
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 289

representar uma crise. Até que foi uma expressão da dor, do desequilíbrio
entre real e ideal, até que quis manifestar o nosso anseio de humanizar-
-se da realidade, teve um grande sentido, que prova que o conceito
da dor é um conceito afirmativo, porque, sabendo justificar a energia
que a dor produz, perde-se o hábito de conformar-se: leva o homem a
despersonalizar-se e procurar a razão de sua existência. Pelo conceito
romântico será encontrada a satisfação, e esse é o aspecto dinâmico, real
do Romantismo. Mas quando o sentimento é sentimentalismo, amargura,
dúvida, desejo de luz, que torna-se procura transcendente de um
argumento incapaz de ser colhido, quando a energia torna-se morbidez,
que é le mal du siècle, ele torna-se moda, imitação, linguagem, e perde
sua vibração, personalidade, e é mecânico, o que leva qualquer poeta
a brincar com os problemas do homem, porque entenderam os pontos
firmes do Romantismo e aquelas leis se tornaram mecânicas.
Depois de 1848, foi sempre maior a decadência desse
Romantismo, que teve sua grande importância e vitalidade na primeira
metade do século XIX, e foi muito importante que até politicamente a
Itália alcançou seus ideais; e onde aparecem a poesia de Foscolo, a da
dor de Leopardi, a poesia amarga mas heroica de Manzoni, aparecem
também os filósofos Antonio Rosmini e Giuseppe Mazzini. Esta poesia
tornou-se depois lacrimosa, com umas manifestações de abolição,
perversidade, produzindo obras sem pudor, acentuando o mal, cantando
a renúncia da vida, a vida enclausurada, a exaltação ao suicídio, a
hipocrisia, a falsidade, tudo com uma inferioridade passiva, no sentido
de resignação, de conformismo, que é a negação do Romantismo, que é
o ato heroico diante da dor. Quem não se lembra de Zacinto? A poesia
em que aparece a dor, mas com heroísmo.
Mas neste [Romantismo], começa-se a perceber essa
incapacidade, essa falta de gigantismo heroico, como em Giuseppe
Mazzini. Este [Romantismo] é cético. Tudo isso é que individualiza
a caída do Romantismo. Em 1870, aparece um movimento moral e
filosófico, o Positivismo; em literatura, o Realismo e em crítica, a
crítica histórica, que criou uma crítica filológica, antes que chegasse em
filosofia, com o verismo.
Já na Itália, houve uma reação ao Romantismo, não contra o
primeiro Romantismo, mas ao que dizia que a vida é dor. Será uma
reação a essa doença romântica, à expressão dos últimos românticos, que
diziam que a literatura deveria ser popular. Desses últimos escritores, o
maior que representa sua idade e que fez polêmica com seu corpo e
alma, cultura, atividade de poeta, mestre e político, que soube incorporar
em si a missão antirromântica, é Giosuè Carducci, que na mocidade viu
Bruno Enei
290 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

as coisas melhores do verdadeiro Romantismo: os grandes políticos, os


mestres que foram os seus mestres, viveu os momentos dos pais e, depois
de 1862, tomou uma atitude conscientemente polêmica, antirromântica,
embora se sentisse romântico, mas sadio, numa literatura sublime.
Ele não nega a função popular e educadora que o Romantismo
atribuiu à poesia, mas é contra a morbidez, diante dessa linguagem
excessivamente fácil, e pôs em evidência a linguagem clássica, cheia
de cultura. Havia os poetas chamados Salicci piangenti, bêbedos,
desleixados, que se opunham a Carducci; eles procuravam amar na
imoralidade, e tal eram suas obras.
A excelência da poesia carducciana, sua dialética, seu
desenvolvimento, é baseada em dois pontos de saída. Por um lado, vê-se
uma cultura vasta, profunda, que não é assimilada pela inspiração, que
mais tarde ele dará à poesia, que não se torna orgânica. Por outro lado,
é um conjunto de desdém, paixão, sentimentos apaixonados, que não
sabem dispor-se na poesia e prosa no ritmo que lhe é próprio.
Mas o valor está em alcançar-se esse equilíbrio entre cultura e
inspiração, e que o Carducci das primeiras obras se redime nas últimas,
para que aquele equilíbrio e firmeza não sejam negados e que são, na
cultura, inspiração e paixão.
Carducci parece um imitador dos clássicos, depois, um
revolucionário, e num terceiro momento, essa cultura, que se tornou
viva, é a paixão serena. Além disso, particularmente na Itália, teve outros
sentidos. Ele significou uma volta à tradição clássica, que lembra Dante,
Petrarca, Parini, Alfieri, Foscolo. A exaltação, a testemunha poética, o
calvário político da primeira metade do século XIX e ainda trinta anos
de ensino universitário num dos maiores centros culturais da Europa –
Bolonha –, fizeram de Carducci um verdadeiro homem de valor, que,
como professor de literatura italiana, criou professores, como Guido
Mazzoni e Vittorio Rossi, que mais tarde educaram jovens na sã literatura
que Carducci ensinou.
Carducci nasceu em 1835, numa pequena cidade da Toscana,
Valdicastello, perto de Pietrasanta, na região de Versilia. Aí, o clima não
era dos mais saudáveis, por infiltração do mar (maremma), tornando-a
um verdadeiro pântano. Seu pai era médico, sendo chamado medico
condotto.93 Ao lado de sua profissão, ele possuía cultura com tendência
socialista, amante da pátria. Deu ao seu filho os primeiros anos de estudo,
educando-o com solidariedade para com o povo e com ideais patrióticos,
e isto mais tarde transpareceu nos escritos de Carducci.

93
Médico municipal.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 291

Até 1849, Carducci viveu em sua terra natal com a família e


chegou a conhecer o ambiente popular, com a liberdade da infância, sem
qualquer outra educação a não ser a que seu pai lhe dava, tornando-se
um menino vivo e inteligente, livre das mentiras sociais.
No dia 2 de novembro, há concurso para o magistério, havendo
poucos lugares, cinco ou seis. Este concurso é baseado numa prova
sobre o concurso secundário e ele fica interno no colégio. Depois de
quatro anos, tem direito ao curso de aperfeiçoamento, com as línguas à
escolha: alemão, inglês, francês.
Transferiu-se para Florença com a família, em 1849, onde
estudou num colégio religioso, Scolopi, até 1853, quando fez o concurso
para a Scuola Normale Superiore di Pisa, que era uma instituição
napoleônica, visto ter Napoleão desapropriado os cavaleiros de Malta de
sua propriedade, transformando-a num colégio para moças que fossem
fazer a escola normal, e junto da qual está a Universidade de Pisa, onde
Galileu Galilei deu aula.
Nela entrou Carducci, sendo seu exame sobre Manzoni, que
ainda se vê na biblioteca. Em 1856, defendeu tese, formando-se em
literatura italiana. Ensinou no ginásio de San Miniato por um ano, indo
depois a Florença. Corrigiu alguns clássicos para o editor Barbera. Foi
depois professor no Liceu de Pistoia, sendo daí chamado pelo ministro
da Educação, Terenzio Mamiani, à cátedra de Eloquência e depois de
Literatura Italiana na Universidade de Bologna, de 1873/74 até 1905,
sendo obrigado a deixá-la por paralisia.
Em 1876, foi deputado por Lugo, sendo republicano de 1862 a
1870. Quando moço, era extremista, não por política, economia, e sim
porque Mazzini foi o fundador do conceito republicano, influiu no seu
espírito, e ele achou que só o republicanismo possuía progresso, idealismo,
e que isto fosse necessário aos italianos. Mas em 1870, quando surgiram
as ideias marxistas, ele à frente defendeu a monarquia, que, segundo
ele, podia manter a ordem, não vendo, como os italianos, possibilidades
no marxismo. Em 1890, foi nomeado pelo rei italiano como senador.
Carducci, um verdadeiro lutador, educador, professor, poeta, cidadão
italiano no real sentido de italianidade, conservou a cátedra até 1905,
deixando-a por motivos de saúde. O governo deu-lhe uma pensão. Em
1906, por sua fama, cultura, exemplo de vida honrada, recebeu o Prêmio
Nobel de Literatura, o primeiro na Itália. Em 1907, ele morreu.
Carducci era um enamorado dos fatos históricos, estudando-os
com amor. Ele achava que as várias cidades da Itália deviam formar
uma só unidade. Em suas obras notam-se as pesquisas e lembranças
históricas.
Bruno Enei
292 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Obras de Carducci

Nos últimos anos de sua vida, Giosuè Carducci reuniu suas


obras em grupos. São seis os volumes de poesia: Juvenilia, Levia gravia,
Giambi ed epodi, Rime nuove, Odi barbare e Rime e ritmi.94
Suas obras em prosa são: Studio su Ludovico Ariosto, Studio
su Torquato Tasso, Studio su Parini minore, Studio su Parini maggiore,
Cavalleria e Umanesimo, Dello svolgimento della letteratura nazionale,
Discorsi parlamentari, Ça ira.95
Aquele conjunto de volumes de poesias foi feito na linha de
um desenvolvimento poético consciente, saindo do seu início até suas
últimas produções numa sucessão de valor, de ideal, que representam
uma fase da sua personalidade.
Juvenilia é o conjunto de suas produções da mocidade, que
Carducci, nos seus últimos anos, recolheu, de 1854 em diante, numa
ordem cronológica e ideal. São as poesias da primeira mocidade, em
que há a prova de cultura e do gosto histórico de Carducci. Não têm por
si grande valor de altíssima poesia, mas testemunham o gosto clássico
e, ao mesmo tempo, uma atitude polêmica a respeito da linguagem,
expressão dos últimos românticos. É a expressão da consciência, da luta
de Carducci à linguagem fácil e superficial. É uma preparação cultural,
desejo de voltar ao Classicismo, à língua austera.
Esta obra, junto com Levia gravia, que é o segundo volume,
são obras que se parecem, porque as exigências são as mesmas: cultura,
classicismo, polêmica contra os românticos, desejo de achar uma
linguagem que não seja só expressão de desabafo. Nelas Carducci põe
em evidência sua atitude hostil contra o Romantismo e adota formas
clássicas pagãs. As duas obras têm um aspecto positivo e negativo. O
positivo é a procura de uma linguagem mais atuante, sóbria, elaborada.
O defeito é que as duas obras ficam num plano de imitação, de estudioso
e literato. Ele ainda é um moço que está se preparando através de grandes
poetas da Antiguidade, imitando Dante, o Humanismo e a Renascença,
que põem em evidência o Carducci literato, um discípulo, um pedante
imitador dos clássicos.
Giambi ed epodi:96 são poesias satíricas, de protesto, polêmica,
94
Poemas de Carducci lidos em sala de aula: Giuseppe Mazzini (de Giambi ed epodi),
Il sonetto, Virgilio, Traversando la Maremma Toscana, Davanti San Guido (de Rime
nuove).
95
Em Francesco Flora, esta última obra consta como sendo um volume de sonetos.
96
A escolha do título Giambi ed epodi revela, segundo a crítica, a intenção de Carducci
de fazer uma poesia polêmica, assim como “giambo” e “epodo” eram, na antiguidade
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 293

ódio e amor, paixão. Carducci em geral age e atua contra a realidade


contemporânea da Itália. A poesia não é de paixão, mas de amor, isto
é, reevocação de grandes figuras. Epodi: há também os momentos da
História, com o choque entre velho e novo, que brilharam pelos idealismos.
Lendo-se esta obra, vê-se que todas as poesias são precedidas de um
Inno a Satana. Esta obra foi escrita em 1867. Carducci idealiza Satana
como o inquieto, insatisfeito, dinâmico, que simboliza o progresso, com
desejo de renovar, superar. Nesta obra, aparece o Carducci homem, na
sua apaixonada unilateralidade, porque é um livro de poesias de ódio, ou
amor, de sátira, ironia; aparece o Carducci unilateral, porque não sabe
transformar no equilíbrio próprio da poesia, sem saber se transfigurar
no lado humano; é uma atitude pessoal do homem que ainda não se
transformou em poeta.
É de grande importância se pusermos em comparação os três
volumes. Nos dois primeiros, caracterizados por uma atitude literária,
faltava-lhes originalidade espontânea, e no terceiro falta o valor. Nos
dois primeiros falta a personalidade e no terceiro falta a literatura, e só
tem o homem com os seus desesperos, falta o valor, a transfiguração, que
o leitor sente que os sentimentos se transformam em imagem: o homem.
Quando o homem se torna literato e quando o literato se torna homem, a
poesia se torna paixão e a paixão é a expressão da poesia.
Rime nuove são as poesias escritas depois de 1880, e elas se
distinguem das outras recolhidas. Estas “poesias novas” contêm os
dois elementos da personalidade: homem e poeta, poeta e homem; o
clássico e o apaixonado e o apaixonado e o clássico. Os três primeiros
saberão sugerir uma síntese, e teremos então, com Rime nuove, o melhor
Carducci, com poesias reais, objetivas, com paisagens ou poesias de
vibrantes sentimentos. O autêntico Carducci soube frear a paixão numa
forma clássica, e o Classicismo não é imitação, mas imagem do seu
sentir.

Odi barbare
Há nesta obra um sentido de respeito ao Classicismo, porque
as “poesias bárbaras”, de perfeição extraordinária, lembram versos
de Virgílio, Horácio, que são a mais alta expressão. Carducci sente-se
muito indigno de ser continuador e realizador de um novo classicismo,
com canções sáficas, arcaicas, de poetas gregos e latinos na métrica de
Safo e Alceu.
grega e latina, composições poéticas didático-satíricas. Carducci exalta nessas poesias
os grandes ideiais de liberdade e de justiça, o desprezo pelos arranjos políticos, e a
polêmica contra o poder do papa.
Bruno Enei
294 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Rime e ritmi
Nesta obra está esgotada sua inspiração consciente do meio
expressivo, e quase que domina o mecanismo. Até o nome exprime
certo artifício, é quase um clichê, tornando-se formalismo. São poesias
classicamente elegantes e linguisticamente perfeitas, mas não podem
deixar-nos uma impressão quanto é síntese viva, pois nelas prevalece
o formalismo. Prevalece o professor, é a didática dos seis volumes de
sua produção poética, é sua decadência, ele é conscientemente dono de
um modo de se exprimir. O que ele aí canta é um conjunto de ideias
de imanência, existência, do nosso viver, lutar, deveres na realidade, de
atuar, agir.
Carducci não é um místico da Idade Média, mas um poeta que
considera a vida um momento límpido em que nos cabe agir e trabalhar
pela pátria, pelo progresso, com solidariedade e compreensão, lembrando
a filosofia pagã. Ele tem grande polêmica com o cristianismo, pois
espiritualmente ele é pagão e, como Machiavelli, acha o cristianismo
uma renúncia, e o trabalho, como alegria. Sua poesia é sadia, porque
doentes eram os últimos poetas, então ele lançava a pagã mensagem da
vida. Raro haver nele melancolia, noite, suas poesias sempre se projetam
ao meridiano, em que se projeta Pan. O passado nunca é motivo de
saudade ou passiva admiração e sim de estímulo; por isso, ele evoca
os grandes momentos históricos, por exemplo, a Revolução Francesa,
momentos históricos esses sempre cheios de heroísmos.

A crítica de Carducci

Carducci, além de professor na Universidade de Bologna, foi


também crítico. Num certo sentido, representou uma atitude diferente,
por completo, de De Sanctis. Carducci não era crítico, porque não tinha
qualidade de filósofo, era um homem sadio e não um profundo conhecedor
da misteriosa intimidade de onde sai a obra de arte. Sua crítica é poética, sua
habilidade é saber com suas páginas fazer raciocinar, reviver poeticamente
de quem fala, mas não tem o valor de síntese de De Sanctis; ele fica num
plano exterior, não de interpretação. A crítica interpreta e não imita, ela
deve colher, definir por que é escritor, onde é sincero e onde não, onde é
absoluto e onde não é. O crítico colhe a ideia e a define, o poeta sente e
na base exprime, e o crítico vê. Carducci é poeta e não crítico.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 295

A LITERATURA DO
DECADENTISMO
Antes de falarmos em Pascoli, falaremos num movimento em
que ele se acha enquadrado, bem como outros, até Gabriele d’Annunzio.
É o Decadentismo, que é uma atmosfera completamente diferente, nova,
que representa uma consciência diferente da consciência romântica,
uma técnica temática que é um conjunto de temas distantes da temática
romântica. Esse movimento literário, ético, histórico verificou-se entre
o fim do século XIX e os primeiros anos do século XX.
Este movimento leva o nome de Decadentismo e, quando nele
se fala, está-se bem longe de julgar que seja a decadência da literatura,
de desvalorizar esse movimento, não é desprezo, não entendemos que
a literatura seja fraca, inferior, baixa, sem sentido, mas, ao contrário,
o Decadentismo, apesar das insuficiências, é uma grande afirmação
literária. Como qualquer movimento ao longo da História, fica ligado ao
Romantismo e é a sua superação. Desenvolver-se-á e tornar-se-á mais
exigente e consciente a certas exigências psicológicas do Romantismo.
No seu desenvolvimento e formação na Itália, França, Alemanha, é a
negação do Romantismo, sobretudo com dois motivos: um de caráter
moral e outro, literário.
O Decadentismo é um movimento que representa um complexo
de inquietação no campo ético e moral, e, no campo literário, representa
um conjunto de procuras técnicas formais. Devemos considerar os
dois aspectos: no ético e moral há uma desconfiança nos ideais e a
impossibilidade humana de crer nos ideais, na validade dos ideais; este
é o sentido antirromântico. O Romantismo foi uma literatura eloquente,
fácil, brilhante, emotiva, sobre a exaltação, os ideais de toda a espécie,
que é baseada na apologia dos ideais. Com o Decadentismo, não se
acredita mais nos ideais fora da consciência. O ideal é inquietação de
não poder acreditar nos ideais, e o poeta chega a dizer que é impossível
acreditar neles, e então cria-se uma literatura baseada no subconsciente,
na fisiologia, na confusão entre corpo e consciência, e penetra na
profundidade do homem. Não se cantam mais os ideais abstratos, mas
diz-se, amarga e honestamente, o que somos intimamente, o que é
obscuro, o que se fecha na nossa infinidade.
A literatura do Decadentismo é quase diabólica. Analisa objetiva
e amargamente o espírito, o que somos pelo que somos e não pelo que
deveríamos ser, com instinto quase animal, paixão, instinto. Não há ideal
Bruno Enei
296 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

fora do homem e nem é possível que haja num plano de idealismo ao


individualismo, em que o poeta canta suas atitudes diante do mundo,
suas reações, seus ideais, e no campo literário representa um conjunto de
aspirações temáticas revolucionárias. Não há mais o romance, o poema
longo, a canção, o madrigal, o clássico hendecassílabo, a métrica técnica.
Os versos são livres, sem rima, breves e longos, com uso de palavras
novas, pontuação irregular, com suspensão, interrogação, exclamação;
recorre-se a alegorias, símbolos, o poeta fecha-se em si, criando uma
palavra, um símbolo.
Quem lê Leopardi, Foscolo, Manzoni e depois lê d’Annunzio,
Pascoli ou os contemporâneos acha que isso não é poesia, pois não
tem métrica, mas seguem seu instinto, sua paixão. Nota-se ainda no
Decadentismo muita estética, que é uma atitude em que se vê alguns
poetas insatisfeitos com a palavra, com o verso e com as ações que eles
cantam, e o que mais apresenta isto é Gabriele d’Annunzio.
Um outro caráter é o do superhomem. Muitos poetas do
Romantismo queriam superar a mediocridade humana, o ceticismo, a
incompreensão do mundo, jogando a própria existência na ação, querendo
ser um superhomem. Esta é a filosofia de Nietzsche. Houve poetas que
encontraram no Decadentismo o refúgio a uma declaração de angústia,
melancolia, desespero, suave decepção utopista, com anseio de futuro, de
compreensão, e que cantaram simplesmente esse mistério que é a vida,
a consciência humana, a maldade dos homens, muitas vezes culpados
do mistério da existência, objetivando-se na natureza, fazendo às vezes
parte integrante da mesma, interpretando os animais, árvores. São os
poetas com desejo de comunhão, porque se sentem sós, odiados, sem
solidariedade, e um desses poetas é Giovanni Pascoli, que fala com
melancolia num átimo opaco do mal – fechando-se na natureza, em que
os animais são mais humildes e humanos que os homens. É o poeta que
condena o egoísmo, a maldade, a violência, que dividem os homens. Tudo
isto forma a literatura do Decadentismo.

Giovanni Pascoli (1855-1912)

Nasceu em San Mauro, uma cidade da Romagna, em 31 de


dezembro de 1855. Seu pai chamava-se Ruggiero; era administrador de
uma fazenda do príncipe Torlonia. Em 10 de agosto de 1867, quando
Pascoli contava com doze anos, seu pai, que voltava do mercado onde
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 297

fora fazer negócios, foi assassinado, tomando dois tiros vindos não
se sabe de onde. Ruggiero cai então de sua égua tordilha, e não pode
levar até sua casa, a seus filhos que o esperavam, “le due bambole”.97 O
infortúnio irreparável projetou uma sombra de dor indelével na alma do
pequeno Giovanni. No ano seguinte, isto é, em 1868, morreu uma irmã,
a mais velha, de dezoito anos; sua mãe, consumida pela dor, pela morte
de seu marido. A família ficou sem meios, vivendo em dificuldades, num
ambiente de hostilidade. Por outro lado, muitas pessoas interessavam-se
pelas crianças e pelo caso, em descobrir o assassino de Ruggiero, sobre
o qual havia muitas suspeitas.
Pascoli estudou no colégio Scolopi, em Urbino, onde escreveu
uma poesia, L’Acquilone, na qual lembra a morte de um menino que foi
seu colega de quarto. Fez depois a universidade em Bolonha e depois
Pisa, fazendo o mesmo curso de Carducci. Mas, antes de formar-se,
interrompeu seus estudos, em 1879, tomando parte em movimentos
anárquicos e socialistas, isto tudo pela sua atitude amarga diante da vida
e dos fatos graves que teve em sua vida.
Em 1879, houve o primeiro atentado contra a vida do rei Umberto
I (que mais tarde foi morto), por um anárquico chamado Giovanni
Passannante. E como Pascoli fazia parte deste movimento, foi preso e,
quando julgado inocente e libertado, voltou aos estudos e formou-se em
Letras, iniciando sua carreira de professor em cursos secundários em
Matera, Massa e Livorno.
Em 1895, começou a ensinar em curso superior, sendo professor
de gramática latina e grega em Messina, Sicília e Toscana, ensinando
também na Universidade de Bologna; e, em 1903, foi a Pisa, de onde
foi chamado, em 1907, para substituir Carducci na cadeira de Literatura
Italiana, na Universidade de Bologna, vivendo ele até 6 de abril de 1912,
quando morreu em Castelvecchio di Barga.
Pascoli levou uma vida de trabalho, de meditação, e os
acontecimentos levaram-no a uma atitude de misantropia, de afastamento
da vida citadina e social, que, mesmo sendo ele professor em Bolonha, vivia
em Castelvecchio, numa vida contemplativa, mas à qual faltava aquela
religiosidade de Manzoni. A solidão, com amargura, sem compreensão,
respeito, fez com que ele se fechasse nos estudos, na contemplação da
natureza, o que transparece em suas poesias. Ele chega até a imitar o canto
dos pássaros, o vento batendo nesta ou naquela árvore; esta habilidade e
conhecimento de Pascoli tem valor científico, pois ele possui uma atitude
cósmica.

97
As duas bonecas.
Bruno Enei
298 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Obras de Pascoli

Pascoli dedicou-se a quatro antologias, que foram usadas até


pouco tempo na Itália: Sul limitare (Ao limiar), poesias fáceis; Flor
da fiore (Flor entre flores). Estas duas são em italiano. Epos (Épico), de
caráter épico; Lyra (Lírico), de caráter lírico. Estas duas últimas são em
latim.
Pascoli revelou-se um grande poeta, e seu primeiro volume
de versos foi escrito em 1891, e se chama Myricae. Seguem: Canti di
Castelvecchio (1903), Primi poemetti (1904), Primi conviviali (1904),
Odi ed inni (1906) e Poemi del Risorgimento (1913).98
Mas Pascoli não ficou só aí, pois foi também um grande poeta
em latim, compondo Carmina, versos constantemente premiados em
Amsterdã, que foram reunidos em dois volumes depois da morte do
poeta.

Pascoli crítico

Como Carducci, Pascoli foi também crítico. Fez seus estudos


sobre o grande e conhecidíssimo poeta Dante Alighieri, do qual deixou
três livros de crítica: Minerva oscura (1898); La mirabile visione (1902);
Sotto il velame (1900).
Em algumas páginas em prosa e em algumas poesias Pascoli
mostra seu conceito sobre poesia. Ele diz que dentro de cada indivíduo há
um fanciullino,99 que é o contrário do que somos, que faz com que a gente
se transforme. E é por este fanciullino que nasce a poesia. Exteriormente
é-se uma coisa, e interiormente é-se o que se queria ser, o que dá uma
atitude e vida interior, completamente diferentes das exteriores. Esse
natural (o menino) escondido em nós é a característica da ingenuidade e
curiosidade, e os maiores poetas, como Homero, Dante, foram ingênuos
e curiosos, o que é uma manifestação subjetiva desse anjo interior que,
em certos momentos de inspiração, faz calar o homem exterior e ressalta
sua linguagem, em revelação dos segredos da natureza.
A teoria de Pascoli, com seu fanciullino, não nos leva a concluir
que ele tivesse um conceito muito sadio da poesia, que aí não é fruto
e imagem da fantasia. Mas é um conceito importante, porque está de
98
Poemas lidos em sala de aula: X agosto, Arano (de Myricae); La quercia caduta (de
Primi poemetti); La cavalla storna (de Canti di Castelvecchio).
99
Menininho, diminutivo de fanciullo.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 299

acordo com o Decadentismo, onde a poesia é um instinto que leva o


poeta a uma atitude de irracionalidade e misticismo. Qualquer escritor
do Decadentismo interpreta os acontecimentos como explosões do seu
íntimo, ao mesmo tempo é expressão de um misticismo, isto é, o homem
se confunde com a natureza, não a domando com a razão e lógica, e
sim, domina interpretando os acontecimentos, como explosões do
Racionalismo.
O poeta parece estar inspirado, a razão dominada pelo
instinto subconsciente, e ele então explode fisiologicamente, mais que
espiritualmente. Pascoli foi perfeitamente coerente na poesia. Como
crítico, ele lê interpretando até nas entrelinhas, o que se nota quando de
suas críticas sobre Dante, pois que a Divina Comédia é bela por outros
motivos, e que ele viu e interpretou a seu modo, chegando a julgar Dante
como uma “deusa obscura”.

Gabriele d’Annunzio (1863-1938)

É um assunto muito complicado os temas da poesia de


d’Annunzio, o sentido de sua obra na Itália e na Europa, enquadrá-lo
como líder representativo de todo o movimento literário que se chama
Decadentismo, enquadrá-lo como linha filosófica e psicológica, que está
ligado aos filósofos da segunda metade do século XIX e, sobretudo, a
Nietzsche. Mas tudo isso será mais tarde, em seguida à biografia dele,
que é o ponto de saída para examinar melhor a literatura contemporânea
italiana.
D’Annunzio fecha um período da história da literatura
europeia, da história da literatura italiana. É a última expressão de um
superomismo,100 de uma atitude sensualista, um apego físico-otimístico
diante da vida, que mais tarde, em vez, desaparece na literatura europeia.
Com d’Annunzio, embora haja nesse poeta a consciência melancólica
do tempo roendo as nossas energias, embora haja nele a consciência da
contingência do prazer, embora haja nele um delicado esforço de colocar
num plano ideal qualquer experiência sensual, filosófica, romântica,
amorosa, embora tudo isso, d’Annunzio é a expressão mais musical, a
expressão mais otimista, mais inebriante de toda uma imersão no átimo,
na vida, no momento, na existência.
Em d’Annunzio a arte é a continuação de uma atitude na vida,
100
Termo italiano que vem do pensamento filosófico de Nietzsche sobre o super-homem.
Bruno Enei
300 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

a vida é a atuação do programa de sensibilidade, de prazer, de otimismo


que ele cantará na sua poesia. O heroísmo da vida de d’Annunzio, o
sensualismo, a ebriedade de sua vida, a felicidade com que ele soube
sorver todos os instantes dos seus setenta e cinco anos de vida, de
uma forma de vida no amor, esse heroísmo na leitura ou poesia, na
amizade ou na melancolia, na meditação, tudo isso é a prova de uma
atitude existencialista de felicidade e de paganismo, de forma que, como
nós acabamos de falar sobre Carducci e Pascoli e estamos falando de
d’Annunzio, não seria errado fazer uma pequena comparação entre esses
três.
Em Carducci nós encontramos um paganismo de caráter
histórico, de caráter civil, isto é, Carducci, que não é um cristão, que
não é um renunciatário, que é, em vez, um homem que combina com
o Romantismo, sentindo na vida uma razão de ser, acreditando na
possibilidade de um progresso, alargando, acreditando que a vida tenha
seus imperativos e nossa necessidade seja de atuar certos deveres como
homem e cidadão, a poesia dele é uma grande expressão de paganismo,
entendendo-se por paganismo uma visão da vida que não tem a
preocupação do Além, uma visão da vida fechada na própria vida, pela
vida, na vida. Sem ligar, sem fazer depender esta vida de uma outra vida,
este mundo de um outro mundo; a vida é o nosso teatro de ação, o mundo
em que nós nos realizamos, o lugar onde o homem atua, faz um sentido
de progresso, de liberdade, de dever. Nós somos na vida lutadores, e
nossas lutas são num sentido de progresso a respeito de nossas famílias,
da sociedade, do país, da humanidade a que pertencemos. É um pagão
sadio, clássico, cuja poesia inspira a nobres ideais positivos, construtivos,
e é por isso que, conforme a afirmação em que dizia que o paganismo de
Carducci é um paganismo histórico, isto é, ligado à História, se forma
na História e a História nada mais é que a fenomenologia da História,
o registro das nossas ações, que possui uma lógica que é a confirmação
de um progresso que se vai realizando, que os homens têm o dever de
realizar.
Carducci tem um gosto pelo trabalho, pela luz, pela honestidade,
uma serenidade operosa. É por isso que muitos poetas e críticos não o
apreciam, porque é demais sereno, não tem melancolia, nem é lúgubre,
o que se procurava na poesia, e os franceses do século XIX diziam,
sobretudo Gide, que os bons sentimentos não fazem literatura, mas
que esta sai dos maus sentimentos. Os artistas devem procurar ângulos
escuros de nossa alma. É demagogia. Sabemos que o poeta procura o
amargo de nossas contradições, de nossa dúvida, é uma ambiguidade em
que há algo de demoníaco. D’Annunzio é claro como o meio-dia.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 301

Diante da realidade, qual é o poeta que vem depois? Que é


Pascoli? Sua atitude diante da realidade é de resignação, emulada de
aceitação, é passiva, desesperada, mas docemente desesperada diante de
uma injustiça, que não dá nenhuma esperança de redimir-se; o mundo é
mesmo este átimo épico de amor. A culpa é do próprio homem. Então,
Pascoli, diante da realidade, assume essa atitude passiva, humilde,
resignada, vai-se afastando, vai ser o intérprete de uma natureza vegetal
ou animal, interpondo as árvores, a vida dos pássaros, que parece uma
vida mais inocente, ainda que irracional.
D’Annunzio, em vez, diante da vida, é também de uma atitude
de paganismo, mas não de um paganismo histórico como o de Carducci,
não de resignação e aceitação como de Pascoli, mas é a atitude de um
sensual, um irracionalista, um superhomem, querendo transformar,
modificar a realidade, substituir a realidade. Percebe-se a influência
de Nietzsche sobre d’Annunzio, que é o criador dessa teoria de uma
alma, da vida espiritual, uma vida über,101 acima daquela medíocre de
todos os dias, que não é feita de horizontalidades, mas que é uma eterna
inspiração de aristocracia, de absoluto, e daí nasceu essa concepção de
superhomem que levará ao conceito de supernação, über Alles.102
Há essa força primitiva, essa analogia que se expande em todos
os aspectos da vida. Quer no heroísmo, quer no amor, na cultura, na
música, na poesia, ele procura dominar, transformar, renovar. Esse é
um dos aspectos do Decadentismo. Essa irracionalidade, que não sabe
ver na História uma dialética progressiva, mediando. Para d’Annunzio,
tudo consiste numa realização da própria subjetividade, do próprio eu,
que não é moral, que não é ética, religiosa, física, mas “eu”, analogia
irracional.
Por todas essas coisas, então, se conhece a literatura
contemporânea. Devemos concordar que, depois de d’Annunzio, a
literatura se transforma profundamente, porque, depois de 1928 e já antes,
desde 1915 e através de todos os anos, em 1936, as guerras na África, e
em 1938, onde é iminente a guerra mais trágica, e mais tarde, tudo que
aconteceu até nossos dias, muitos ideais do Romantismo e ilusões do
Romantismo, muitos sonhos do Romantismo, de nossa vontade de viver,
de nosso gosto de viver, muitas ilusões foram caindo, e a literatura então
se torna muito mais amarga, triste, sentia a necessidade de abandonar
essa musicalidade de prazer, essa atitude de serenismo, esse gosto de
mundanismo, sentia a necessidade de afirmar quão intimamente nossos

101
Termo em alemão que significa “acima”.
102
Expressão em alemão que significa “acima de tudo”.
Bruno Enei
302 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

instintos são ruins, quanto de absurdo há na vida, de falso, de hipócrita, de


equívoco, quanto há em cada um de nós na sociedade, nas instituições.
Então saiu essa literatura, que se afirma sobretudo com um
grande escritor, que viveu entre 1912 e 1935, Kirkegaard, e outros
do Existencialismo, como Sartre, Remo Cantoni,103 que criaram essa
literatura amarga, dolorosa, que abandona a rima, a tradição, que se joga
dentro da alma, procurando, como aqui no Brasil, as nossas contradições,
a nossa insatisfação. Não há em nossa literatura uma convicção profunda
que justifique a razão de ser da nossa existência. Quem lê poetas como
Camus, Ungaretti ou Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos,
vê que há uma profunda amargura e que esses poetas não se sabem
conformar com o existir, falta neles uma razão de existência.
A única razão é a ilusão, e não uma verdadeira razão. Morreu
alguma coisa na alma humana, há uma crise na cultura atual, e essa
crise começa com d’Annunzio. É o último que joga lá sua maravilhosa
eloquência, sua extraordinária maravilha. Hoje ninguém escreve coisas
bonitas. É tão amargo o futuro, é tão triste o presente, nossa alma é tão
despida de luzes, que não se pode ouvir se chove sobre as folhas, só
esse desejo de jogar-se na natureza, de passivamente aceitar uma chuva.
Hoje não se justifica uma poesia dessas. É bonita para a psicologia, para
o panorama humano em que d’Annunzio viveu. Vejam como se deve
colocar d’Annunzio:
Nasceu numa região chamada Abruzzi, onde existe uma cidade
chamada Pescara. É uma das regiões mais folclóricas da Itália. É um
povo de instintos ainda primitivos, feito de pastores, montes, selvas,
montanhas, águas, e a agricultura não é ainda moderna; e essa região,
famosa pelos seus rebanhos de ovelhas, é um mundo quase mítico, de
gente muito sóbria e, ao mesmo tempo, simples, cheia de paixões, de
instintos quase ferinos. É aqui que d’Annunzio viveu a sua primeira
infância, fazendo as escolas elementares. Saiu de Pescara, sempre,
porém, lembrando e levando consigo a tradição humana, espiritual de
sua terra. Na sua vida devemos dividir esses setenta e cinco anos em
quatro períodos fundamentais:

Primeiro período (1863-1910)


São quarenta e sete anos de vida, e são os mais importantes
para quem deseja conhecer a vida dele. É o período em que ele faz seus
estudos ginasiais e secundários num colégio da Toscana, na cidade de
Prato, no colégio Cicognini. E é importante notar, ainda menino ele

103
(1914-1978)
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 303

era de uma cultura extraordinária; e além de ser menino, era a sua uma
cultura de requinte, pelo fato que d’Annunzio procurava, por sua conta,
ler escritores raríssimos do mundo grego-latino, oriental, ou então,
escritores novíssimos do período em que viveu.
Com catorze ou quinze anos, lia essas obras, com uma memória
prodigiosa, sabendo grego, latim e outras línguas, sendo muito bonito;
ele tinha uma facilidade de entusiasmar e gozava infinitamente,
sentia-se feliz com o estudo, tinha gosto por essas leituras, vivia para
a leitura. E vivia literariamente o que ele lia. Era um perfeito leitor,
um dos que sentem o estudo como uma forma de realizar-se, sem o
tormento, a angústia de problemas morais ou religiosos, mas vivendo
das imaginações de um mundo irreal, de expressão de poesia, de prosa.
Tanto assim que a primeira obra de d’Annunzio é intitulada Primo
vere, escrita em 1879 e publicada no mesmo ano, isto é, quando tinha
dezesseis anos. É um conjunto de poesias de valor extraordinário, onde
já se percebia o grande d’Annunzio de mais tarde. Então, essa sua
seriedade nos estudos.
Uma segunda coisa no período é o fato de que, logo que acabou
o ginásio, ele foi se inscrever em Letras, em Roma. E como era muito
bonito, elegante, cultíssimo, conhecido, criou em torno de si uma
simpatia extraordinária. Começou a frequentar os artistas que se reuniam
em frente ao jornal Capitan Fracassa e frequentava também os serões
de um editor famoso, Sommaruga,104 onde conheceu todos os artistas.
Abriram-se para d’Annunzio as portas da aristocracia romana.
Roma está no coração da Itália, numa zona nem fria nem quente.
É uma cidade cheia de tradição, de vestígios, de relíquias, de restos de
um mundo caído, então é testemunha da força que o tempo tem de ruir,
de destruir. Ao mesmo tempo, é cheia de uma sã ambiguidade, de um
gosto são de viver, que consiste numa facilidade que os italianos têm
de viver, no centro da Igreja, etc. A cidade está cheia de monumentos,
de praças, águas e fontes que jorram, árvores e águas abundantes, que
provam uma natureza cheia, outonal, e neste ambiente vivia d’Annunzio,
perfeitamente. Uma alma mais delicada que d’Annunzio, que é Leopardi,
disse que tinha nojo de lá. Mas d’Annunzio tinha essa primavera, essas
mulheres firmes, fortes, bonitas, sadias, essa aristocracia meio corrupta,
essa hipocrisia bonita, era o mundo de d’Annunzio, no meio dos artistas
e poetas, o mundo em que se ia formando. Esse ambiente teve uma
importância enorme na sua educação.
Nesse período teve a oportunidade de fazer uma viagem à

104
Angelo Sommaruga.
Bruno Enei
304 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Grécia. Em Atenas, no Pireu, vendo o mundo daqueles poetas, o gosto


daquela arquitetura, daquele helenismo, de que estava impregnado
até nos últimos momentos de sua produção literária, essa clareza de
linguagem grega, transforma a inspiração de d’Annunzio, serve para sua
educação literária.
Um outro ponto importante até 1910 é o seguinte: d’Annunzio
faz uma viagem ao Oriente. A possibilidade para um homem, com todas
estas tentações, com seus instintos para a vida, para a felicidade, para
o amor, esse homem num mundo sensual, que é o mundo oriental, de
fantasia, de luar, aquela música no mundo persa, em suma, ele lá se
aprofunda, torna-se consciente do que ele será.
Outra coisa: ele teve neste período, com trinta e seis ou trinta
e sete anos, a possibilidade de conhecer uma das maiores artistas de
então, Eleonora Duse, uma das maiores atrizes no mundo dramático,
que o apreciou imensamente, tornando-se amiga dele, e a ela deve
d’Annunzio sua experiência, sua intimidade teatral. Se mais tarde ele
escreveu tragédias, ele as deve à sua intimidade com Eleonora Duse, que
lhe forneceu tudo e o introduziu no segredo do teatro.
Por fim, o seguinte: d’Annunzio foi também, neste período,
deputado no Parlamento italiano. Este homem, que amou, que viveu,
também tinha suas ambições, seus programas num plano de luta política.
No Parlamento representou num primeiro momento o partido da extrema-
-direita. É a conservação, o status quo. Num certo momento, enojado
pela mesquinhez de todos os dias, porque não havia nada de heroico,
então esse desejo de pôr o pé fora de casa, d’Annunzio sai da direita
e vai à esquerda, do lado dos comunistas, lançando então o primeiro
programa de uma Itália militarmente forte, heroica, que não é grande
mas que deve a d’Annunzio essa educação que vai de 1915 a 1938 e que
levou a Itália a um conjunto de derrotas, traindo sua missão na História,
que é de cultura e não de militarismo.
Eleonora Duse, com a influência e o sentido de amizade, essa
mulher que, depois de Sarah Bernhardt, entusiasmou a Europa, soube
encantar os teatros ingleses, franceses, alemães, e foi aplaudidíssima no
Rio em 1921; era tão feia quanto bonita. Na Inglaterra, um jornalista
entrou no seu camarim após ter representado Ibsen e ficou decepcionado
diante dela, que era modesta, que era tão vivaz no palco, e ela percebeu
isso e disse a ele “Eu só sou bonita quando quero”. Uma vez, na França,
representando Dumas, o presidente da República Faure foi congratulá-
-la, e ela desculpa-se, dizendo de sua dificuldade de representar não em
italiano, e ele lhe disse que “Não tinha percebido que falara em italiano”.
Sua música, seu modo de exprimir-se iam além da compreensão da
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 305

língua. Foi extraordinária sua influência sobre d’Annunzio, pois o levou


a ser um grande teatrólogo.

Segundo período (1910-1915)


Em 1910, d’Annunzio já era rico, conhecido, famoso, admirado,
seguido sobretudo pela mocidade na Itália, que condividiu as atitudes de
d’Annunzio. Para uma mocidade que infelizmente não estava satisfeita
com a Itália pequena de então e via nele, nesse poeta sensibilíssimo,
naturalístico, irracional, uma esperança, uma possibilidade de uma Itália
diferente, sobretudo os nacionalistas italianos, os que sonhavam com uma
Itália maior, mais poderosa, essa mocidade sonhadora de uma Roma, de
um império além do mar, essa mocidade via nele o mestre, o paradigma.
E como com poucos poetas, sua vida era seguida passo a passo, não
somente porque a mocidade o lia com entusiasmo e participação
extraordinária, mas sobretudo porque conheceram, acompanharam os
pormenores da vida humana de d’Annunzio, dos seus amores, viagens,
extravagâncias; ele levava consigo setenta malas, quarenta ternos, um
homem que eletrizava a mocidade de então.
No meio de tudo isso, gastava dinheiro, e muitos seus amigos
aproveitavam sua liberalidade, e teve uma crise econômica em 1910,
tanto assim que começaram a penhorar sua casa e edições e recorreram
à justiça, pelas dívidas que ele ou seus amigos contraíam. A sua vila,
com seus funcionários e empregados, aumentava cada vez mais suas
dívidas. Num momento, a vila onde morava na cidade de Settignano,
que se chama Capponcina, na mesma cidade onde morava Eleonora
Duse, essa vila foi sequestrada, e então d’Annunzio resolveu abandonar
a Itália. E então temos o segundo período, de 1910 a 1915, durante os
quais d’Annunzio, não por ideologia e princípios de moral, mas por
orgulho, protesto e vaidade, colocou-se em exílio e foi viver na França,
num lugar famoso na costa do mar, Arcachon, na vila Saint-Dominique,
e muitas vezes ia a Paris, continuando sua vida liberal, obtendo dinheiro
da alta aristocracia, fazendo-se antecipar o dinheiro sobre obras, indo
aos maiores hotéis sem dinheiro, não respeitando os limites que cada um
tem que respeitar.
Para ele, o que é sua restrição, a moral, não é uma moral
comum a todos. Há uma particular para os homens de gênio, para o
superhomem. Ele se considerava fora e acima dos seres. Todos devemos
obedecer a certos limites, mas o homem de gênio, que é admirado, que
representa na vida uma expressão poética altíssima, fica fora de qualquer
controle moral. De forma que d’Annunzio viveu assim, mas sempre com
uma capacidade extraordinária de produzir, tanto assim que na França
Bruno Enei
306 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

escreveu em italiano, mas escreveu também três obras num francês


muito bonito. São as seguintes: Saint Sébastien (musicada por Debussy),
La Pisanelle (ou La Mort Parfumée) e Le Chèvrefeuille.
Na França, d’Annunzio começou também uma outra atividade,
a entrar com a sua poesia a cantar temas heroicos e a exultar a força, a
violência, a guerra, a potência, e ele sempre falava de uma França e Itália
latinas, do mundo latino, da cultura latina, quer dizer que, neste período
(1910-1915), a Itália estava empenhada numa guerra na Líbia, contra a
Turquia, estamos também na véspera de uma grande guerra mundial, a
de 1914-1918.
D’Annunzio então quase cheira no ar esta atmosfera de sangue,
de potência, de ódio, de coragem; então ele começa uma exaltação, com
o mesmo vigor que exultava a vibração, o corpo, com a mesma força e a
mesma facilidade de expressão ele começa a lançar esse grupo à força, à
coragem, ao viver perigosamente, ou ao vivere inimitabile: na paz assim,
no ar assim, na guerra assim. Ser o paradigma do heroísmo.
Muitas obras testemunhavam isso. Uma canção a Umberto Cagni,
que foi ao Polo Norte e aos desertos e sacrificou-se por isso; e também
outras poesias, como Canzoni della gesta d’Oltremare. Então começou
a escrever essas obras. As edições, o entusiasmo da mocidade italiana
e francesa foi maior, tanto que d’Annunzio começou a ter importância
até no governo italiano, que via nele uma ótima oportunidade para criar
uma atmosfera de iniciativa italiana e, de fato, em 1915 d’Annunzio
abandona a França e volta à Itália. Já havia sido declarada a I Guerra
Mundial.
Numa cidade italiana historicamente importante que se chama
Quarto, perto de Gênova, aconteceu um grande fato: que Garibaldi, em
1860, escondido, perseguido pelas autoridades, tentou com mil homens
uma das coisas mais famosas de sua carreira, de libertar a Sicília dos
Bourbons. Foi uma iniciativa triunfante para ele, pois teve a força de
destruir o império fortíssimo que dominava a Espanha e a Itália meridional.
D’Annunzio começou a unir a Itália, escolheu Quarto, de onde Garibaldi
tinha saído, e lá fez uma oração, La sagra dei mille, exaltando essa vitória
de Garibaldi. Deu um valor enorme e pôs isso num plano quase místico,
de modo que todos os homens desejavam que a Itália entrasse na guerra,
e a 24 de maio de 1915 entrou na guerra ao lado da França, deixando
seiscentos mil mortos e feridos, que acabou com o Vittorio veneto. Esse
é o segundo período de sua vida.

Terceiro período (1915-1921)


É o período de d’Annunzio em que, poeta de certos ideais, se torna
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 307

o herói de certos ideais. Abandona escrever para fazer o que ele cantou.
Há isso em sua figura, isto é, d’Annunzio sempre pensou que a vida
devesse ser a realização de sua poesia, de sua insatisfação, considerando
a poesia a continuação fantástica de sua vida real. Ela ligava o que fazia
na vida.
Entre 1915 e 1921, temos uma continuação dos acontecimentos
heroicos, das coisas particulares extraordinárias nesse poeta. Temos a
encarnação de heroísmo que canta tudo: faz ainda La beffa di Buccari.
Voando sobre Viena, lança um manifesto para desistirem da guerra.
Durante a guerra, foi da Infantaria, da Marinha e da Aviação. Em 1916,
voando, perdeu o olho direito. Teve o reconhecimento não somente
italiano, mas de todos os aliados, dos Estados Unidos, da França, e
foi condecorado com cinco medalhas de prata e uma de ouro, além de
condecorações extraordinárias. Foi uma figura, um paradigma de força
e heroísmo.
Mas outra coisa está em evidência. Em 1918, o ano da paz, acabou
a guerra. A Itália devia ocupar uma cidade do norte, que se chama Fiume,
mas a paz não foi favorável a esse direito do povo italiano, de modo
que Fiume não foi anexada à Itália. Então, d’Annunzio, com outro ato
heroico, faz uma marcha, que se chama La marcha di Ronchi, e ocupou
esta cidade de 1919 até dezembro de 1920, quando, diante do sangue dos
italianos, ele renunciou a ocupar Fiume. Este é o terceiro período.

Quarto período (1921-1938)


É o período de ritiro, da solidão, o seu último período. Se o
primeiro, de 1863-1910, é o juvenil, da força, da ascensão, do arrojar-se,
se o período de 1910-1915 é o do exílio, da vaidade, se o de 1915-1921
é o período heroico, militar, corajoso, o último, em vez, de 1921-1938, é
o período de reconhecimento, da satisfação. Não de aposentadoria, mas
de satisfação, o homem que se sente satisfeito de ter-se realizado como
homem e como poeta. Ser amado, conhecido, imitado, lido, criando um
modo, uma atitude poética que se chama Decadentismo.
Em 1921, d’Annunzio vai viver numa cidadezinha, que é
Gardone Riviera, e lá se fixa numa maravilhosa vila, Cargnacco,
recolhendo os seus inéditos, dando ordem à sua epistolografia, escrevendo
em prosa, fazendo-se sentir de vez em quando, dando julgamento sobre
admoestações italianas, francesas, alemãs, russas, e, afinal, pondo-se ao
lado do governo italiano totalitário, pondo-se ao lado do fascismo, que
se deve considerar um produto de d’Annunzio.
A ele a Itália deve sua intervenção na guerra de 1915-1918, e
também essa consequência violenta, conquistadora, colonial, autoritária,
Bruno Enei
308 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

que foi o fascismo de 1922 a 1945. Esse período trágico e triste da Itália, a
ele se deve isso. Todos os nacionalistas juraram isso. Em 1924, a sociedade
das nações reconheceu os direitos da Itália sobre Fiume; então permitiu
que a Itália a anexasse outra vez. Em compensação, por esse fato, o rei
da Itália, Vittorio Emanuele III, deu a d’Annunzio, em reconhecimento
do que tinha feito em 1919, o título de príncipe de Montenevoso, e essa
vila que d’Annunzio ocupou desde 1921, Cargnacco, foi por ele batizada
com o nome vaidoso, nietzschiano de Vittoriale degli Italiani, onde se
considera a vitória italiana de 1915-1918.
No dia 10 de março de 1938, na véspera do segundo drama
trágico do mundo e, sobretudo, da Europa e Itália, d’Annunzio
improvisamente morreu na sua mesa de estudo, e talvez foi um bem para
a Itália. Sua vida foi esta. Ele viveu setenta e cinco anos, quando ainda
eram vivos Carducci e Pascoli. Influenciou toda a literatura italiana do
século XIX e boa parte do século XX. Mais tarde, só mais tarde é que
os escritores moços, as gerações moças terão a força, o desejo, o anseio
de jogar embora a eloquência e retórica, a sensibilidade, a morbosidade
de d’Annunzio, para procurar, em vez, uma nudez de espírito muito
mais angustiada, muito mais amarga, o que tinha sido sufocado durante
todo esse tempo, primeiro pela poesia dionisíaca de d’Annunzio, e, mais
tarde, sufocado pela disciplina violenta do fascismo, que é um filho de
d’Annunzio. Só mais tarde surgirá o Crepuscularismo, do pôr-do-sol,
que é uma reação a essa grandiosidade; o Hermetismo, com Ungaretti;
e só mais tarde surgirá, ainda ligado a d’Annunzio, o Futurismo, com
Marinetti. Essa é a figura de d’Annunzio.

Obras de d’Annunzio

Falando das obras dele, devemos eliminar de citar as inumeráveis


obras dele, porque em poesia e prosa escreveu centenas de volumes. Sua
obra foi publicada completa agora, e não acaba nunca. Mas deveremos,
examinando sua produção literária, olhar, observar sobre certos temas e
sobre certas obras que representam o melhor daquela época.
A primeira fase da produção poética de d’Annunzio, o primeiro
momento da dialética poética de d’Annunzio, é representada por obras
já citadas: Primo vere (1879) e duas outras: Canto novo105 (1882) e Terra
vergine. Este é o primeiro momento.
105
Desta obra, foi analisado em aula o poema O falce di luna calante.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 309

Depois teremos o segundo momento, de cansaço diante da


realidade e uma certa tristeza, e a procura de escrever uma obra que seja
a expressão de ideais: San Pantaleone (novela), Intermezzo di rime, Il
piacere, Il trionfo della morte (romance), Giovanni Episcopo (romance),
L’innocente (romance), L’isotteo e la chimera106 (poesia), Elegie romane
(poesia), Poema paradisiaco107 (poema, o mais famoso).
O terceiro período é o da influência de Nietzsche: Il fuoco
(famoso), Le vergini delle rocce, Forse che sì forse che no, La gloria
(tragédia), La figlia di Iorio (tragédia), Francesca da Rimini (tragédia),
La gioconda (tragédia), Laudi del cielo, del mare, della terra e degli
eroi. Desse período, a obra poética que talvez seja a mais importante é
esta, que contém quatro livros: Maia, Elettra, Alcyone, Merope.
Quarto período: Contemplazione della morte, Notturno, Le
faville del maglio, Il venturiero senza ventura, Il compagno dagli occhi
senza cigli, Cento e cento e cento e cento pagine del libro segreto.
Publicada três anos antes de morrer, esta é a última obra dele.
Foi a imagem de toda uma sensibilidade. Hoje nós não podemos
pensar e sentir como ele o fez, mas ninguém pode pôr em dúvida que
tudo que cantou era não somente subjetivo e pessoal, mas era geral, era
um momento de história da humanidade. De 1860 a 1915, houve na
Europa um período de tranquilidade, de riqueza, de burguesia, e então
a noia108 não era devida a uma insignificância da vida, mas era querer
mais do que a vida oferecia, mais diversões, procurar a inimitabilidade
de sensações, diversões mais raras, mais peregrinas, mais requintadas, é
o período do Decadentismo.
É preciso ler esse poeta para observar o seguinte: d’Annunzio
começa imitando Carducci. Carducci é o escritor pagão e clássico, isto
é, um poeta que não quer nada com aquela doença psicológica do último
Romantismo e que, reagindo àquelas neblinas emotivas, procurou na
forma um mundo solar de luz, de confiança, e renovou com sua poesia
uma esperança na vida, uma justificação da existência, e sua poesia foi
uma exaltação da paixão, do entusiasmo, das atuações humanas. Foi um
poeta sadio, no seu equilíbrio.
Então, é claro que d’Annunzio começa sua atividade aos
dezesseis anos, imitando esse poeta vivamente de sua idade, e que ele
conheceu, e que por muitos aspectos ficava perto de d’Annunzio, poeta
carnal, irracional, disposto a sentir a vida, a exaltar a vida. Se a gente lê
uma poesia de d’Annunzio, sente-se as palavras, os versos anteriores
106
Desta obra, foi analisado em aula o poema I seminatori.
107
Desta obra, foi analisado em aula o poema O Giovinezza!.
108
Enfado, tédio.
Bruno Enei
310 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

de Carducci. Mas começa a ver essa guerra, sente a coragem, o fascínio


do mar, do céu, das árvores, da natureza. Esse é o ponto de saída de
d’Annunzio: imitação de Carducci, de um naturalismo pagão, de um
classicismo, de uma língua de requinte.
Depois vem Canto novo, publicada em Roma. É a obra em que
se manifesta sua personalidade clara, já se revela livre da imitação de
Carducci, uma obra em que d’Annunzio é tão pessoal que os poetas que
ele imita, a quem ele atinge, são todos eles de tal forma subjetivados que,
mesmo quando cita versos de Dante, Petrarca, poetas gregos, latinos, até
frases inteiras, vê-se sua personalidade: ele transforma o vocabulário.
D’Annunzio pega todas as formas métricas da tradição e as transforma
para sua exigência, como o soneto, a canção, o madrigal, tudo ele torna
seu. É uma assimilação criadora, porém, não vítima. É a obra afirmativa
da personalidade de d’Annunzio, é a obra em que já se vê em que consiste
sua poesia: consiste nessa sensibilidade agudíssima de receber e de
imprimir qualquer sensação, qualquer vibração. Há em Canto novo essa
capacidade de d’Annunzio de quase despersonalizar-se, para tornar-se
aquela sensação que o move. Ele se transforma naquilo. E isso alcança
ainda com uma musicalidade, devida à estudadíssima diligência com que
ele sabe colocar as palavras. Coloca-as no verso abandonando qualquer
tradição, entrelaçando versos curtos e longos, numa linguagem que parece
falada e que é o resultado de uma lima extraordinária; ele alcança esse
ritmo, essa descida de palavras, de versos que se unem um ao outro, numa
paisagem, numa caminhada, numa sucessão quase mozartiana, uma atrás
da outra, uma imagem atrás da outra, fluindo, até concluir, e sai só quando
desperta, mas quase se perde seguindo seus versos. Canto novo foi a obra
que definitivamente confirma o valor de d’Annunzio, foi a obra que o
consagrou poeta, que fez com que ele se sentisse o intérprete de toda a
espiritualidade de então.
Em 1882, d’Annunzio publicou um conjunto de novelas, de
cantos, que tem o nome de Terra vergine. Esses cantos em prosa são
cantos que falam de paisagens, de tradições, de mitos, de figuras, de
amores, de tragédias de sua terra natal, Abruzzi, primitiva, arcaica, cheia
ainda de mitologia, de superstições, forte, mas bruta, ao mesmo tempo
generosa, rústica; é um mundo de sombra, um primórdio de paixões, de
grande amor e de grande ódio, em suma, ele vê em Abruzzi algo que o toca
de perto. Então, também aqui, uma notável afirmação da personalidade
de d’Annunzio.
Mas depois de 1883, depois desse primeiro desabafo sensual,
vibrativo, vibrante como uma corda tocada pelos sons, depois desse seu
palpitar diante das impressões da natureza, do passado, das coisas, das
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 311

relíquias, depois de tudo isso, une a vida ao homem físico, ao homem como
sensibilidade, como tato, como olho, ouvido, nariz, olfato. Em suma, essa
manifestação naturalista de d’Annunzio irracional, cheio de um fascínio
extraordinário, porque tudo nele vibra com a natureza, é poesia de olfato,
de ouvido, em que se reflete todo o encanto da natureza. Depois de tudo
isso, d’Annunzio se sente como cansado, sente-se insatisfeito, sente que
isso é pouco, que afinal de contas será um parêntese da vida esse hino à
vida, que a finalidade da vida, a teologia da vida não é um hino ao prazer;
ele sente que surge uma crise pela qual ele deve empenhar também sua
capacidade de poeta, em cantar ideais mais construtivos, mais humanos,
mais puros, mais íntimos.
Há uma fase de melancolia, de languidez, de cansaço, há uma
tentativa de renúncia, há um anseio de purificação. D’Annunzio gostaria
de empenhar a sua vitalidade num sentido moral, pragmático, humano.
Ele então começa a ler escritores, a sentir exigências novas ao ler
escritores novos. Dois russos exercem influência sobre ele: Dostoievski
e Tolstoi. Essas obras criam nele um desejo novo de religiosidade, de
humanidade, de preocupação, então ele começa a escrever as obras do
segundo período.
D’Annunzio não chega a levar esse seu anseio num plano
religioso, ele não alcança verdadeiramente superar seu sensualismo, ele
está fatalmente ligado a essa mensagem sensual; nunca ele se liberta
do que ele foi em Canto novo; por isso, não há neste segundo período
da produção literária de d’Annunzio uma mensagem nova, uma crise
espiritual verdadeira, uma afirmação religiosa, um idealismo humano.
Há só uma procura, uma análise, e essa procura e análise e insatisfação,
que nascem de uma ansiedade interior, tudo isso não vai além de um
estetismo. Que quer dizer? Que todas as aspirações se realizam no desejo
de ser um escritor do amor, ou como literatura, ou pela literatura. Amando
a bonita linguagem, a expressão, os livros raros, as posições singulares,
em suma, tornar-se um literato aristocrático, tipo alexandrino. O homem
que representa isso é o protagonista do romance Il piacere: Andreas
Pirelli, que é a autobiografia de d’Annunzio. Esse homem declara que
sua cidade é Roma, que seu mundo é o livro, com este cansaço, com este
prazer e desejo de sair do prazer, essa ilusão de humanidade, de bondade,
de dostoievskismo e de tolstoísmo, fica num plano de estetismo sem
solução.
São páginas maravilhosas, porque a expressão que usa
d’Annunzio na prosa é a expressão de um sol caindo, de langor, de
cansaço, bonito, flébil, baixo, correndo, analisando essa situação de
anseio, em umbra, luminoso, consciente, é um falar em bemol, tão
Bruno Enei
312 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

limpo, em baixo tom de fluido, períodos languíssimos, cai-se dentro


daquilo e esquece-se toda a vida, inebriando-se naquela. É o langor de
uma agonia com prazer, não com desespero. Não há nada de tragédia e
resolução em d’Annunzio, e também esse som não é metastasismo. É
a mesma coisa em todas as poesias desse período, sobretudo em Elegie
romane.

La pioggia nel pineto, de d’Annunzio,


com tradução e comentário de Bruno Enei

La pioggia nel pineto



Taci. Su le soglie
del bosco non odo
parole che dici
umane; ma odo
parole più nuove
che parlano gocciole e foglie
lontane.
Ascolta. Piove
dalle nuvole sparse.
Piove su le tamerici
salmastre ed arse,
piove su i pini
scagliosi ed irti,
piove su i mirti
divini,
su le ginestre fulgenti
di fiori accolti,
su i ginepri folti
di coccole aulenti,
piove su i nostri volti
silvani,
piove su le nostre mani
ignude,
su i nostri vestimenti
leggieri,
su i freschi pensieri
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 313

che l’anima schiude


novella,
su la favola bella
che ieri
t’illuse, che oggi m’illude,
o Ermione.
Odi? La pioggia cade
su la solitaria
verdura
con un crepitio che dura
e varia nell’aria
secondo le fronde
più rade, men rade.
Ascolta. Risponde
al pianto il canto
delle cicale
che il pianto australe
non impaura,
né il ciel cinerino.
E il pino
ha un suono, e il mirto
altro suono, e il ginepro
altro ancora, stromenti
diversi
sotto innumerevoli dita.
E immersi
noi siam nello spirto
silvestre,
d’arborea vita viventi;
e il tuo volto ebro
è molle di pioggia
come una foglia,
e le tue chiome
auliscono come
le chiare ginestre,
o creatura terrestre
che hai nome
Ermione.
Ascolta, ascolta. L’accordo
delle aeree cicale
Bruno Enei
314 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

a poco a poco
più sordo
si fa sotto il pianto
che cresce;
ma un canto vi si mesce
più roco
che di laggiù sale,
dall’umida ombra remota.
Più sordo e più fioco
s’allenta, si spegne.
Sola una nota
ancor trema, si spegne,
risorge, trema, si spegne.
Non s’ode voce del mare.
Or s’ode su tutta la fronda
crosciare
l’argentea pioggia
che monda,
il croscio che varia
secondo la fronda
più folta, men folta.
Ascolta.
La figlia dell’aria
è muta; ma la figlia
del limo lontana,
la rana,
canta nell’ombra più fonda,
chi sa dove, chi sa dove!
E piove su le tue ciglia,
Ermione.
Piove su le tue ciglia nere
sì che par tu pianga
ma di piacere; non bianca
ma quasi fatta virente,
par da scorza tu esca.
E tutta la vita è in noi fresca
aulente,
il cuor nel petto è come pesca
intatta,
tra le pàlpebre gli occhi
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 315

son come polle tra l’erbe,


i denti negli alvèoli
son come mandorle acerbe.
E andiam di fratta in fratta,
or congiunti or disciolti
(e il verde vigor rude
ci allaccia i mallèoli
c’intrica i ginocchi)
chi sa dove, chi sa dove!
E piove su i nostri volti
silvani,
piove su le nostre mani
ignude,
su i nostri vestimenti
leggieri,
su i freschi pensieri
che l’anima schiude
novella,
su la favola bella
che ieri
m’illuse, che oggi t’illude,
o Ermione.

A chuva no pinheiral

Cala. Sobre os limiares


do bosque não ouço
palavras que (se) diga
humanas; mas ouço
palavras mais estranhas (alheias)
que dizem as gotas e as folhas
distantes.
Escuta. Chove
das nuvens esparsas.
Chove sobre as tamargueiras
salobras e secas,
chove sobre os pinheiros
escamosos e hirtos,
chove sobre os mirtos
Bruno Enei
316 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

divinos,
sobre as giestas fulgentes
de flores agrupadas,
sobre as genebras espessas
de bolinhas perfumadas,
chove sobre os nossos rostos
silvestres,
chove sobre as nossas mãos
despidas,
sobre as nossas vestimentas
leves,
sobre os pensamentos juvenis
que a alma brota
regenerada,
sobre a ilusão bonita
que ontem
te iludiu, que hoje me ilude,
ó Ermione.
Ouves? A chuva cai
sobre a solitária
relva
com uma crepitação que resiste
e se modifica no ar
conforme as folhas
mais escassas, ou menos escassas.
Escuta. Responde
ao pranto o canto
das cigarras
que o pranto austral
não amedronta,
nem o céu cinzento.
E o pinheiro
tem um som, e o mirto
outro som, e a genebra
outro ainda, instrumentos
diversos
sob inumeráveis dedos.
E mergulhados
nós estamos no espírito
silvestre,
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 317

vivendo vida (igual às) árvores;


e o teu vulto transfigurado
está molhado da chuva
como uma folha,
e os teus cabelos
resplandecem como
as claras giestas,
ó criatura terrestre
que tens o nome
Ermione.
Escuta, escuta. O acordo
das cigarras aéreas
pouco a pouco
mais surdo
se torna sob o pranto
que cresce;
mas um canto a esse se mescla
mais rouco
que de lá sobe,
da úmida sombra longínqua.
Mais surdo e mais apagado
afrouxa-se, apaga-se.
Só uma nota
ainda treme, apaga-se,
ressurge, treme, apaga-se.
Não se ouve a voz do mar.
Agora se ouve sobre todas as folhas
desabar
a chuva argêntea
que purifica,
o estampido que varia
segundo (conforme) a folha
mais densa, menos densa.
Escuta.
A filha do ar
está muda; mas a filha
do lodo longínqua,
a rã,
canta na sombra mais funda,
quem sabe onde, quem sabe onde!
Bruno Enei
318 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

E chove sobre tuas sobrancelhas


Ermione.
Chove sobre teus cílios escuros
que parece tu chorares
mas de prazer; não branca
mas quase feita verdejante,
pareces da casca tu saíres.
E toda a vida é em nós fresco
fragrante,
o coração no peito é como pesca
virgem (não colhida)
entre as pálpebras os olhos
são como nascentes entre a relva,
os dentes nos alvéolos
são como amêndoas azedas.
E andamos de bosque em bosque,
ou juntos ou soltos
(e o verde vigor rude
nos enleia os tornozelos
nos emaranha os joelhos)
quem sabe onde, quem sabe onde!
E chove sobre os nossos vultos
silvestres,
chove sobre as nossas mãos
despidas,
sobre as nossas vestimentas
leves,
sobre os pensamentos juvenis
que a alma brota
regenerada,
sobre a ilusão bonita
que ontem
me iludia, que hoje te ilude,
ó Ermione.

Análise de La pioggia nel pineto


D’Annunzio é um sensitivo, um sensual, um lânguido, um
mórbido. Sentia todos os momentos de sua vida. Vivia todos os
instantes de sua vida e deixava que a natureza agisse sobre ele, física
e espiritualmente. É a última expressão de uma atitude sensualista,
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 319

de um apego físico otimístico que mais tarde desaparece na literatura


europeia. Mesmo com seu conhecimento melancólico da fugacidade
do tempo, consumindo nossas forças, mesmo com seu conhecimento
da incerteza e contingência dos prazeres, mesmo idealizando a
sensualidade, a filosofia, o romântico, o amor, ele é a expressão mais
otimista, melodiosa, inebriante de uma imersão no momento, na vida, na
existência, no átimo. Para ele a arte é a continuação de uma atitude na
vida, que é atuação, sensibilidade, prazer, panglossianismo, cantados em
sua poesia. E para provar essa sua atitude existencialista de felicidade, de
paganismo, basta ver sua vida cheia de heroísmo, de amor, a ebriedade,
a felicidade com que gozou seus anos de vida. Há em d’Annunzio esse
paganismo sensual, irracionalista, que quer transformar, renovar, tanto
no heroísmo, no amor, na cultura, na música, na poesia. Tudo consiste
numa realização da própria subjetividade, do próprio eu irracional. É
um dos aspectos do Decadentismo.
La pioggia nel pineto: chove lá fora. Chove sobre a paisagem
e sobre a alma de d’Annunzio. Não é uma chuva triste, cinzenta,
prenunciada por raios e trovões, assustadora, não é um temporal que
confrange o coração e abate a natureza. É em vez uma chuva brilhante,
prata líquida, alegre, que cobre tudo de prata líquida, é uma chuva de
verão, esperada e recebida com prazer pela natureza e pelos homens. É
uma chuva tão penetrante e renovadora que molha até os pensamentos
e lava as ilusões humanas. A chuva é um outro aspecto da vida, o de
renovação.
Assim que penetra nos limiares do bosque, é como se o véu da
fantasia e dos sonhos se erguesse diante dele, pois ele entrou no bosque
das ilusões com sua Ermione. E chove. E a chuva faz com que o poeta e
Ermione se confundam com a selva, participando da alma do bosque que
haure e absorve os brilhantes líquidos que as nuvens esparsas cascateiam
sobre eles. Ela os torna estáticos e transfigura Ermione, transfigura
sua vida humana como em êxtase. O único contato de d’Annunzio
espiritual com ela são as palavras: odi, taci, ascolta. Depois só o contacto
físico, natural, como das plantas. Aí é que começam a entender o cicio
das folhas e plantas. E a chuva cai. Não só sobre as plantas secas e
hirtas, mas também sobre as flores bonitas, também sobre dois seres
humanos que quase não o são mais, também sobre seus pensamentos
silvestres. E essa chuva de verão é forte, revigorante, regenerante. Tudo
rejuvenesce, até a alma. D’Annunzio imagina uma paisagem de verão,
sob a chuva, um bosque em que todos os seres tomam par, e nessa dança
da chuva, as folhas e as plantas emitem sons diversos, tocadas por dedos
infinitos. D’Annunzio é tão sensual que quer transformar-se também
Bruno Enei
320 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

em ser silvestre para poder, não pensando, apenas sentir o cair das gotas
da chuva sobre si. E seu solilóquio é apenas respondido por uma voz
não humana. E a chuva, que era fina e rara ao penetrarem no bosque,
aumenta e, soberana, faz calar os súditos aéreos, e só a rã interfere na
sua melodia. Não há sílabas pesadas na poesia. É tudo leve, flagrante,
imaterial, é uma sinfonia silvestre. Há uma continuidade de cenas, uma
variedade de motivos, um eterno movimento cadenciado pela chuva,
emoldurado pela chuva.
D’Annunzio, apaixonado, ouve o cantar das plantas. À sua
passagem e aos seus ouvidos até os sons da rã e da cigarra se transformam
em música. Ele e Ermione não falam, mergulhados no espírito silvestre,
vivendo a vida verde do pinheiral. Não há passado nem futuro, apenas
o presente com a chuva. D’Annunzio para de pensar, esquece seus
problemas espirituais, para sentir apenas, só sentindo as emoções físicas
e espirituais da chuva.
Esta poesia possui uma beleza que está toda na vaga, na torrente
musical que segue os movimentos das frondes e o murmurar das gotas
na floresta. Das gotas raras, das nuvens soltas e dispersas. E há um
avançar contínuo da chuva e dos dois amantes no pinheiral. Há um
eterno trio: a água, a floresta e os dois seres humanos. A chuva se torna
mais viva, grossa, densa, crepitando sobre as plantas e delas extraindo
uma maravilhosa e variada sinfonia. É um gozar silencioso da natureza,
com o pranto que vem do alto. Emudecem as vozes do bosque e seus
rumores, emudece o mar para ouvir o murmúrio fluente do pranto festivo
de verão.
E ambos, passeando pelas veredas do pinheiral gotejante e
fragrante, ora enlaçados ora apartados, identificam-se com a natureza
virente e esqueceriam o seu estado humano para inebriar-se na alma do
bosque, não fosse o pensamento rápido a sutilmente picá-los de que seu
amor não durará para sempre.
O valor desta poesia está todo no ritmo, na musicalidade das
palavras, como a chuva, que adquirem um valor, uma sensibilidade e se
tornam quase vibrações naturalísticas. Para d’Annunzio, as sílabas, além
do significado ideal, têm uma virtude sugestiva e comovida (agitada) nos
seus sons compostos. Diz adiante que, na língua italiana, os escritores
têm elementos musicais tão variados e tão eficazes para poder competir
com a grande orquestra wagneriana no sugerir o que somente a música
pode sugerir à alma moderna.
E por tanger a poesia com sua vitalidade, deve vencer também
as construções de palavras quais arabescos sonoros, como se fossem
objetos, animais e mulheres. Na sua arte mais humana, d’Annunzio
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 321

destrói e dispersa também o perigo do som que agrada como uma seiva
ou um contato: nasce assim a música individual da La pioggia nel pineto.
Sua música é uma harmonia sabedora de uma consciência terrestre,
mas quer ser temporal e fugitiva. Música do momento, da sensação
solitária, do puro fenômeno, não em razão de uma harmonia universal
humanamente medida em números, da qual tome significado e à qual
por sua vez não outorga.
O seu tempo é uma série de instantes iluminados, não quer ser o
curso do tempo. A sua poesia é a transposição artística da física, não da
História. Sua capacidade está toda no consumir o terrestre da memória:
em purificá-la do peso do tempo; e a profundeza do tom estará na mais
alta moral com que esta destruição e libertação do objeto estará acabada.
Para ele a vida é sentido, “una sostanza buona da fiutare, da palpare,
da mangiare”.109
E inicia descrevendo as palavras estranhas que dizem as gotinhas
e folhas longínquas, fala da chuva que cai sobre as tamargueiras verdes
mas secas, sobre os pinheiros escamosos, sobre os mirtos sagrados de
Vênus, sobre as giestas em ramalhetes, sobre as genebras perfumadas
como os cabelos de Ermione, sobre seus vultos silvestres (como as
árvores da floresta: são da mesma substância silvestre, pois do começo
ao fim o poeta esquece as palavras humanas). Mesmo não falando, ambos
sentem a chuva sobre seus pensamentos frescos que desabrocham da
alma deles, sentindo a frescura daquela chuva revigoradora, como a sente
a alma regenerada. E o crepitar da chuva é cadenciado e modificado no
ar pelas folhas mais densas ou menos densas. E as cigarras, indiferentes
ao pranto austral, cantam, acompanhadas pelos instrumentos agrestes
tocados por dedos inumeráveis. E vivem a vida das árvores, imersos
no espírito da selva, e o vulto de Ermione foi transfigurado pela chuva
como a folha prateada. Mas aos poucos ensurdecem as cigarras, e agora
um novo canto une-se ao da chuva. O canto das filhas do ar é substituído
pelo canto da filha do úmido: a rã. E ainda uma gota como em Gonçalves
Dias: “a folha luzente do orvalho nitente a gota retrai: vacila, palpita;
mais grossa, hesita, e treme e cai”. E a chuva de pequeninos brilhantes
pingos se transforma em grossas gotas de prata e não se sabe onde canta
a rã. E a chuva sobre os cílios de Ermione parecem gotas de alegria,
e ela parece quase verde sob as vestes molhadas; torna-se fragrante a
vida e as três comparações entre a pesca, as nascentes e as amêndoas,
essa naturalização do humano: o coração, os olhos e os dentes. E eles,
como a rã, estão quem sabe onde na floresta, perdidos, emaranhados

109
“uma substância boa de cheirar, de apalpar, de comer.”
Bruno Enei
322 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

pelas veredas rudes, caminhando ao longo de suas ilusões molhadas,


unidos pela sua mútua paixão, que apenas os ilude, mas que não mais
os iludirá.
Há nesta poesia a absorção da natureza sobre o homem. A
negação do homem que se confunde com a natureza e se torna uma
vibração dela. É perigosa, cheia de morbosidade, de uma vibração
excessivamente física, mas de uma eficácia extraordinária, lembrando
no campo da música um grande artista que também soube, na velocidade
de notas e cores, colher os elementos da natureza, valorizando-a sem
preocupar-se com as reações humanas, que é Debussy. Não há problema
espiritual, é uma transfiguração do imediato, da sensação do instante.

A LITERATURA ITALIANA
APÓS D’ANNUNZIO
Uma afirmação como esta naturalmente significa que
d’Annunzio representa o cume, o ponto final de uma orientação,
de uma atitude, de uma forma de poesia. Embora d’Annunzio
seja originalíssimo, novíssimo, personalíssimo, há porém muitas
restrições para se fazer, querendo colocá-lo no plano de uma literatura
contemporânea. Deve-se dizer que a literatura italiana com Carducci,
com Pascoli e com d’Annunzio conclui um período. Deve-se também
dizer, então, que é depois de Carducci, Pascoli e d’Annunzio que se
pode verdadeiramente pesquisar, analisar, estudar todo um período
de obras poéticas e de prosa, de ensaios, de viagens, para poder aí
encontrar o que de novo se vai apresentando na história da literatura
italiana.
Se a gente procurar então nesse fundo, nesses últimos anos
de d’Annunzio, se a gente procurar lá, vê-se que há endereços novos,
exigências novas, atitudes novas, linguagem completamente nova,
há toda uma polêmica, uma surda polêmica no sentido de renovar
a literatura italiana, tirando-se dos esquemas da poesia heroica de
Carducci, procurando desenvolver certos aspectos da poesia de Pascoli
e aproveitando certas sugestões da poesia de d’Annunzio.
Esse movimento aí, velho e novo, de um velho que vai
decaindo e de um novo que ainda não se afirma, esse movimento se
deve chamar como de transição na literatura italiana; é o momento
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 323

do adeus, do destaque num sentido de conteúdo e num sentido de


expressão de linguagem. Como sempre, não podemos dizer que a
poesia contemporânea italiana surge de um momento para o outro. É
evidente que essa nova literatura italiana, ao seu início, se apresenta
com caráter, sugestões, imitações dos maiores poetas, os mais
recentes, assim como é evidente que, justamente por uma leitura
mais tardia e mais consciente, a gente pode ver como, embora haja
sugestões, imitações, há porém algo que distingue essa literatura
e que esse algo que distingue uma literatura nova da velha, com o
andar dos anos, estará sempre tornando-se mais consciente, tomando
forma definitiva. Vamos ver, por exemplo: podia a literatura italiana
contemporânea esquecer completamente d’Annunzio? Podia esquecer
completamente Pascoli? Carducci? Não. Não poderia. Em nenhum
país ou lugar é possível abandonar o passado definitivamente, pelo
menos nos primeiros passos.
O que deve a literatura italiana a Carducci? Ele, nos seus
últimos anos, no seu último volume de poesias Rime e ritmi, revela uma
atitude que não é comum na sua poesia anterior. É de sentimentalismo,
de preocupação, de angústia humana. Carducci de Rime e ritmi,
embora seja um poeta estandartizado, mostra no seu íntimo o anseio
por uma outra poesia. O Carducci de Rime e ritmi estava saturado de
cantar heróis, de cantar a pátria, de exaltar grandes movimentos de luta
na História. Parece que ele se dobra mais em si como homem, como
indivíduo. Há um certo pessimismo na poesia de Carducci velho, e
essa poesia triste é ainda mais significativa justamente porque quem a
exprime é um velho, um homem de experiência, de glória, este velho
que o mundo vai acordando e que percebe que, além da pátria, há
em nosso íntimo algo que não se satisfaz completamente com esses
mitos.
Então a poesia contemporânea deverá muito a esse Carducci
angustiado e imenso dos últimos tempos. Por isso se explica que na
literatura contemporânea há escritores que devem tudo a Carducci,
para não citar Bartolini110 e Papini, que se conservam exclusivamente
ligados a Carducci. Então, em Carducci, do qual a literatura
contemporânea italiana quer afastar-se e que, ao mesmo tempo, em
vez, continua pegando dele uns aspectos que se julga merecer de
continuação.
A poesia de Pascoli é amarga, sentimental, decepcionada, de
derrota. O Pascoli se afasta do mundo dos homens, os julga ruins,

110
Luigi Bartolini (1892-1963).
Bruno Enei
324 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

não por um destino, por fatalidade, mas porque eles é que são ruins e
querem ser ruins. São os homens os carpidores da maldade, deste “átimo
épico do mal”. Pascoli se afasta e se fecha numa sentimentalidade,
numa decepção, numa procura de desvendar o mistério do mundo que
lhe foge. Entretanto, além disso, Pascoli é o poeta de uma linguagem
completamente nova, cheia de alegorias, de ilusões, é uma poesia
muito racional, muito consciente. A poesia de Pascoli é uma em que
parece que certas concepções de arte para ele não valem mais, não
vale mais aquela questão de dizer que arte é fantasia, é invenção, é
uma serena visão, um mundo de palavras e ritmos. Para Pascoli, a
poesia é um menino que no coração vai procurando o que ele sentia
quando era menino.
É um procurar nesse mundo misterioso, com a voz da
infância, controlando nossas sensações, é uma poesia fria, racional,
consciente, clara, breve, rápida, sem desabafos, isto é, é evidente,
dizendo assim, que está se pondo em evidência os caracteres da
literatura contemporânea, que deve muito a Pascoli, porque é cheio,
como os outros contemporâneos, de hermetismo, de racionalismo, de
consciência de poeta no momento em que escreve, de um seu refletir
fora e acima de fantasia, é comovido, angustiado, vigile,111 controlado.
Então, Pascoli não podia morrer, ele devia ficar presente, ele tem
muitas coisas a dizer a uma nova literatura.
D’Annunzio é talvez o que mais está presente, embora seja
o que está mais longe. Ele está mais longe de Carducci e Pascoli e,
entretanto, por outros certos aspectos, é o que está mais presente
na literatura contemporânea. O que cai de d’Annunzio? O gigante,
o titanismo, o heroísmo, o superhomem, cai aquela retórica do
indivíduo colocando-se acima dos outros, aquela retórica de indivíduo
inebriando-se de ideais singulares, excessivos, grandes, essa ebriedade
de d’Annunzio vai completamente caindo.
Porém, no d’Annunzio de Poema paradisiaco, de Noturno,
Alcyone, há também tanta melancolia, há também tanta insatisfação,
há também um esforço de eliminar a palavra – tanto assim que nos
últimos anos, em 1935, em Cento e cento e cento e cento pagine del
libro segreto, d’Annunzio afirma coisas que parecem de hoje quando
diz que na poesia possui um grande valor a pontuação, porque significa
silêncio, que representa as palavras. O homem sempre honesto afirma
que, se a literatura italiana devesse renovar-se, deveria renovar-se
tornando-se bárbara, abandonando o helenismo, uma beleza fria, por

111
Vigilante.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 325

uma palavra mais espontânea, mais árida; tudo isso é evidente na


poesia contemporânea, sobretudo no Hermetismo com Ungaretti e
Quasimodo.
Também d’Annunzio não podia ser esquecido, ele está
presente na literatura contemporânea italiana. Mas não são somente
estes três que renovarão a literatura. Há uma influência extraordinária
solicitando a renovação. Há todo um conjunto de intuições, de anseios,
de visões interiores solicitando a literatura italiana a abandonar a
mentalidade do século XIX, dos ideais do Romantismo, e quem são
eles?
São os filósofos, são os poetas, os prosadores, uma influência
dos escritores franceses sobre a literatura italiana. Nos alemães,
uma grandíssima importância têm Nietzsche e Schoppenhauer. Nos
franceses, Malarmé, Baudelaire, Verlaine, Rimbaud. O alemão Hölderlin
(Hyperion), um poeta quase como louco, cheio da possibilidade
futura na Alemanha. Também um grande poeta exilado na Noruega,
Kirkegaard (1813-1855), que construiu a sua fé, sua visão e convicção
num plano religioso de puríssima religiosidade, considerando como
uma coisa a situar-se, como presença, como existência; esse escritor
é justamente o fundador de um movimento filosófico que é muito
forte (1938-1945), é o fundador do Existencialismo (Sartre, Camus,
franceses; Jaspers, alemão; Cantoni,112 italiano).
Tudo isso transforma completamente, desorienta a alma dos
italianos. Aquela alma de italianos escrevendo sobre certos ideais,
certas formas, certas instituições, sobre uma certa obra especial.
Surge uma poesia baseada na própria individualidade interior, no
próprio sofrimento, decepção, surge uma necessidade de colher os
temas da poesia na própria alma, na própria monade,113 então essa
imensa revelação do conteúdo e da linguagem. Um escritor diz
que “a literatura contemporânea italiana, afinal de contas, se afasta
de Carducci, Pascoli e d’Annunzio e surge por eles e por todo um
conjunto de obras literárias europeias, abaixando de uma oitava o tom
da poesia de d’Annunzio”. Quer dizer que precisava tornar-se mais
humilde, mais essencial, mais íntima.
A primeira coisa que foi tentada por essa literatura eloquente
foi reduzir de uma oitava o tom da poesia de d’Annunzio, que era
muito otimista, precisava pôr a surdina e se tornaria mais simples, mais
cheia de desconfiança e mais penetrante, mais íntima, mais imagem

112
Alberto Cantoni (1841-1904).
113
Mônada.
Bruno Enei
326 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

de um drama interior. Toda a literatura contemporânea italiana, assim


como a europeia, é uma literatura nesse sentido: sóbria, simples,
sem eloquência, amarga, tudo isso reduzindo a sintaxe, suprimindo
certas formas de poesia antiga, tirando, por exemplo, a métrica,
abandonando o soneto, fixando a lógica, isto é, o poeta de hoje não
escreve construindo uma poesia nas suas várias passagens lógicas,
como Leopardi e Foscolo, que escrevem com uma lógica, construindo
uma tese, demonstrando um assunto, querendo defender um ponto de
vista. A poesia contemporânea não tem essa ordem, é um conjunto de
imagens e não de raciocínio.
A gente vê que é uma sucessão de alegorias, de imagens,
uma chamando a outra. Há um frangimento114 completo da sintaxe
tradicional. Aqui é o momento em que o poeta se realiza fora da
lógica, é um certo modo ilógico, porque sua lógica é, em vez, a
alma, o sentimento de sua amargura, que o inspira no momento e não
controla esse anseio como um raciocínio à base de uma filosofia, uma
reflexão abstrata, quase mais sugerindo do que demonstrando. É mais
uma sugestão do que uma verdadeira exposição, não demonstrando,
mas somente apresentando.
Querem que o autor entre naquele complexo sentimental
emotivo da poesia. O que é que cai? Justamente as ideias feitas, as
convencionais, dado que existia na base de uma filosofia abstratamente
otimista. Tudo isso cai. Surge a dúvida, a crise sobre a possibilidade
de ter ideais, surge a impossibilidade do absoluto valor da religião, do
Estado, da sociedade, da justiça. Não é verdade que há progresso na
História, isso não é motivo de poesia. Toda aquela bagagem que foi
da literatura romântica, que foi a época dos ideais da liberdade, da
igualdade, tudo isso cai. Há uma crise sobre os valores tradicionais.
E quais são os novos motivos? São a própria intimidade, as
insatisfações nunca satisfeitas, são o nosso problema de viver, de
existir, a nossa melancolia, não há poesia descritiva, é sempre uma
pesquisa interior, uma pregação de angústia, raramente esta poesia
contemporânea é expressão de otimismo, raramente há na poesia
contemporânea momentos de euforia, até o sorriso é uma expressão
amarga, é uma coisa que se olha com desconfiança, parece quase uma
burla: será verdade? Há uma desconfiança enorme, não se acredita
muito na amizade, no pudor, num programa, cada um de nós exilados,
porque não há uma fé que nos enquadre, há uma procura imensa de
liberdade. Todos os poetas são expressão de uma liberdade, isto é,

114
Quebra.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 327

sonham com uma bela e nova realidade e, ao verem essa vida de todos
os dias, o desgosto, essa rotina que a vida exige de cada um de nós,
começam a odiá-la e sentir-se diferentes, livres, e surge um problema:
que fazer com minha liberdade?
Há necessidade na literatura contemporânea, há esse imenso
imperativo de anexar essa liberdade vácua, pois, sem razão, não
significa nada. É preciso achar uma razão de existir, nem que seja, por
exemplo, morrer na Espanha, combater na China, algo que empenhe
a vida, que não me deixe abstrato. Há uma procura de fé na literatura
contemporânea. Está-se procurando uma poesia cética, fria, amarga,
mas é amarga porque, não tendo mais confiança em nada do que
foi, do que houve, está pesquisando as nossas emoções, os nossos
equívocos individuais e sociais, para ver se é possível aparecer uma
razão de viver.
Tudo isso não havia em Pascoli, Carducci e d’Annunzio. A
literatura revive completamente e sai de um plano nacional para ser
uma expressão num plano mais vasto, europeu e mundial, porque
a crise não é somente francesa, italiana, inglesa, alemã (Kafka),
americana (Hemingway), norueguesa, etc., é universal, em todos os
países, até na Rússia há essa decepção, esse empenho, e é por isso que
todos eles estão assim afastados das autoridades constituídas, sentem
ser odiados, sentem que não podem colaborar com a mentira.

Poemas de Giuseppe Ungaretti,


Guido Gozzano e Antonia Pozzi,
com tradução e análise de Bruno Enei

Non gridate più


(Giuseppe Ungaretti, 1888-1970)

Cessate di uccidere i morti,


non gridate più, non gridate
se li volete ancora udire,
se sperate di non perire.
Hanno l’impercettibile sussurro,
non fanno più rumore
del crescere dell’erba,
lieta dove non passa l’uomo.
Bruno Enei
328 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Não gritai mais

Cessai de matar os mortos,


não gritai mais, não gritai
se os quereis ainda ouvir,
se esperais de não perecer.
Têm o imperceptível sussurro,
não fazem mais rumor
do que a erva que cresce,
feliz onde não passa o homem.

Análise
De uma delicadeza extraordinária. Trata-se do problema dos
que viveram e que não vivem mais. Sobretudo dos homens que na guerra
1915-1918 morreram, matados pelos homens, diante do olhar deste
poeta, que foi combatente nessa guerra, quer na Champagne, quer no
dorso dos Alpes italianos.
Esse homem viu essa mocidade triste, decepcionada, cheia de
ideais e de anseios, cair abaixo do chumbo inútil da guerra, abaixo das
chagas que a baioneta sabe abrir no coração dos moços que viveram
longe das próprias famílias, das noivas, que naquele então brotava na
própria alma.
Depois da guerra, apesar de ter um milhão e meio de feridos,
depois de uma devastação que nenhuma doença cria e que o homem
com a guerra soube criar, em dezenove de dezembro de 1921, na Itália,
que foi uma das nações que venceram, na França, Inglaterra, Estados
Unidos e no império central da Alemanha, Áustria, Hungria, em todo
esse mundo europeu havia queixas dos insatisfeitos, dos homens de
governo querendo uma coisa, os derrotados não se conformando com
a paz, um dizendo ter direito, em suma, continuava em certo sentido, a
matar os mortos.
Então o poeta grita exasperado, angustiado, ele convida os
vivos a ter dó dos mortos que não precisam ser mais matados, porque já
morreram. Se não gritarem em cima desses ignotos soldados, sem mais
os afetos dos pais, sem luz do Sol, convida a um silêncio, se os vivos
ainda acreditam que a vida ainda mereça ser vivida. Se nos homens
existe ainda o pudor, que não seja melhor perire. A voz dos mortos que
convida a ter confiança na vida, a voz deles é uma voz muito silenciosa,
delicada, imperceptível e... [sem continuação].
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 329

Nostalgia
(Giuseppe Ungaretti)

Quando
la notte è a svanire
poco prima di primavera
e di rado
qualcuno passa.
Su Parigi s’addensa
un oscuro colore
di pianto.
In un canto
di ponte
contemplo
l’illimitato silenzio
di una ragazza
tenue.
Le nostre
malattie
si fondono.
E come portati via
si rimane.

Nostalgia

Quando
a noite está a se esvaecer
um pouco antes da primavera
e de quando em quando
alguém passa.
Sobre Paris se acumula
uma cor obscura (como)
de pranto.
Em um ângulo
da ponte
contemplo
o silêncio sem limites
de uma moça
delicada.
Bruno Enei
330 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

As nossas
doenças
se unem.
E embora levados embora
ficamos lá.

Análise
Esta poesia adquire um valor muito mais pictórico do que poderia
ser uma poesia sobre Roma. Estas linhas tão sutis, tão delicadas, não seriam
próprias para Roma. Roma é meio-dia, uma cidade abundante, generosa.
Paris é aristocrática, num sentido de decadência, de dança íntima, de
melancolia, de sentimentalismo. Uma mocidade febril, melancólica, de
perfis. O poeta imagina um anoitecer em Paris, onde ele se formou, como
Picasso; é uma cidade de uma cultura, de requinte, então parece que até
a natureza de Paris se reflete no cair do Sol, quando Paris se apresenta
não límpida, mas quase cinzenta, quase de chumbo. Uma neblina vai
deformando as coisas, cinzenta, melancólica, triste, de sonho, de modo
que as pontes, as casas se transfiguram. O poeta então saindo nesse pôr-
do-sol, em que a neblina do Sena, esse rio que tem séculos de história,
de tragédia, de suicídios, manda essa neblina que cria um ambiente sem
fundo, sem arredores, só se vê baixo e ele vê uma mocinha de seus 18 anos,
enamorada talvez, decepcionada, ansiosa, com um drama humano, uma
esperança, então ela se perde, vai lá, longe, pensando, com seu rosto gentil
parado, que se esfuma como a neblina. Ela talvez com seus problemas,
com um momento de intimidade, que a própria noite cria na alma dela,
por reflexo. Ele se vê nela e diz: as nossas duas doenças se fundem numa
só, que é a da paisagem que torna Paris melancólica e nós nos olhamos
fundidos numa mesma doença e nos sentimos levados embora sonhando.
Cada um por si, quem sabe onde pensam de atingir, alguém, será que se
realizará um ou outro, aquela moça esperando ou desiludida? Ele porque
sabe a vida. São levados embora pela doença da alma. Entretanto estão
parados, imóveis.

Noia
(Giuseppe Ungaretti)

Anche questa notte passerà.


Questa solitudine in giro
titubante ombra dei fili tranviari
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 331

sull’umido asfalto.
Guardo le teste dei brumisti
nel mezzo sonno tentennare.

Tédio

Também esta noite passará.


Esta solidão intorno (eu vejo)
titubeante sombra dos fios dos bondes
sobre o úmido asfalto (que se reflete).
Eu olho as cabeças dos cocheiros
no meio sono balançar.

L’assenza
(Guido Gozzano, 1883-1916)

Un bacio. Ed è lungi. Dispare


giù in fondo, là dove si perde
la strada boschiva che pare
un gran corridoio nel verde.
Risalgo qui dove dianzi
vestiva il bell’abito grigio:
rivedo l’uncino, i romanzi
ed ogni sottile vestigio...
Mi piego al balcone. Abbandono
la gota sopra la ringhiera.
E non sono triste. Non sono
più triste. Ritorna stasera.
E intorno declina l’estate.
E sopra un geranio vermiglio,
fremendo le ali caudate
si libra un enorme Papilio...
L’azzurro infinito del giorno
è come una seta ben tesa;
ma sulla serena distesa
la luna già pensa al ritorno.
Bruno Enei
332 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Lo stagno risplende. Si tace


la rana. Ma guizza un bagliore
d’acceso smeraldo, di brace
azzurra: il martin pescatore...
E non son triste. Ma sono
stupito se guardo il giardino...
stupito di che? Non mi sono
sentito mai tanto bambino...
Stupito di che? Delle cose.
I fiori mi paiono strani:
ci sono pur sempre le rose,
ci sono pur sempre i gerani...

A ausência

Um beijo. E já está longe. Desaparece


já lá embaixo, lá onde se perde
a estrada bosquiva que parece
um grande corredor no verde.
Subo aqui onde um pouco antes
ela vestia o seu belo traje cinzento:
[E tudo me fala dela].
revejo a agulha, os romances
e todos os sutis vestígios dela...
Debruço-me sob o balcão. Abandono
agora o rosto sobre o parapeito (numa atitude de melancolia).
E não estou triste. Não estou
mais triste. Retorna esta noite.
E em volta declina o verão.
E sobre um gerânio vermelho
fremindo as suas asas pintadas
se equilibra uma enorme borboleta...
O azul infinito do dia
é como uma seda bem esticada;
mas na serena extensão da tela
a Lua já pensa ao seu retorno.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 333

O banhado resplandece. A rã
se cala. Mas (neste momento) pula um lusco-fusco
de uma acesa esmeralda, de braços
azuis: o martim-pescador...
E não estou triste. Mas estou
surpreso olhando o jardim...
surpreso do quê? Nunca
me senti tão criança...
Admirado de quê? Das coisas.
As flores me parecem estranhas:
há ainda sempre rosas,
há apesar de tudo sempre gerânios...
(Apesar das tristezas e da melancolia da vida).115

Pudore
(Antonia Pozzi, 1912-1938)116

Se qualcuna delle mie parole


ti piace
e tu me lo dici
sia pur solo con gli occhi
io mi spalanco
in un riso beato
ma tremo
come una mamma piccola giovane
che perfino arrossisce
se un passante le dice
che il suo bambino è bello.

Análise
Um mãe moça que ouvisse um passante na rua e estivesse com
seu menininho e alguém dissesse que bonito, ela ficaria quase vermelha
de pudor. E assim é ela. Se você elogia meus versos, minhas palavras,

115
Entre parênteses, comentários do professor Bruno enquanto fazia a tradução do
poema.
116
Se alguma das minhas palavras / te agrada / e tu mo dizes / mesmo que seja somente
com os olhos / eu me escancaro / em um riso beato / mas tremo / como uma pequena
jovem mãe / que até mesmo enrubesce / se um passante lhe diz / que seu filho é belo.
Bruno Enei
334 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

isso me dá um prazer imenso, eu me abro toda de felicidade e logo depois


me sinto triste, não gosto de ser bajulada. É a poesia mesmo. Não diga
nada. Ouça só. É de uma feminilidade extraordinária. Chega quase a
uma conclusão, que diante da poesia, não há explicação, comentário. Há
uma atitude quase mística, silenciosa. É bonito numa moça como essa,
falando de poesia e sendo moça.117

117
Nas aulas seguintes ainda foram analisados os seguintes poemas: Fra terra ed astri,
de Domenico Gnoli (1838-1915); Io ti voglio fabbricare un capanno, de Angiolo
Silvio Novaro (1866-1938); La Sagra di Santa Gorizia (trecho), de Vittorio Locchi
(1889-1917); Che è che vaga nell’aria?, de Marino Moretti (1885-1979); La caccia
all’usignolo, de Corrado Govoni (1884-1965); e Lo sconosciuto, de Aldo Palazzeschi
(1885-1974).
ESCRITOS DE
BRUNO ENEI
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 337

Personagens dantescas

Justiniano118
Bruno Enei

Palcos de personagens, então, e púlpitos de poesia. Para


Justiniano também e para seu hino, que alto se derrama do Céu de
Mercúrio, para descer eterno na poesia, para se abaixar entre os
homens na

... aiuola che ci fa tanto feroci

como uma exortação e um ideal que as lutas lutadas e os


antagonismos inconciliáveis nunca, porém, saberão completamente
sufocar, justamente porque exortação e ideal de todos os tempos e de
todos os homens.
Aqui, neste apego à realidade e à vida, neste permanecer sempre
dentro da história, neste inserir-se no dever ser, aqui se vê outro aspecto
da grandeza e vitalidade da poesia de Dante.
O Poeta mais sublimemente visionário é também o mais sã e
coerentemente concreto e positivo. Nunca ele fala a esmo; nunca sua
página fica avulsa e centrífuga. Há, no seu Poema, uma simetria que
sempre o sustenta, uma construção que nunca se enfraquece, uma razão
poética que a cada passo enlaça, torna a chamar, unifica. Neste sentido,
a documentação é interminável: os círculos, as molduras e os Céus,
a dor, a esperança e a felicidade; a treva, a aurora e o dia; o corpo, a
sombra e a alma; a imprecação, a bênção e a contemplação; a Justiça, a
Misericórdia e o Amor; a realidade, a lembrança e o futuro; as cantigas,
o canto e o terceto.
Mesma coisa para o contrapasso e os temas de poesia. Vejamos,
por exemplo, o canto de Justiniano. Também como colocação, ele lembra
o sexto do Inferno e o sexto do Purgatório. Deles, é, antes, a continuação
ideal e a definitiva conclusão. No VI do Inferno, um Florentino, Ciacco,
fala das ruínas de Florença; no sexto do Purgatório, o encontro dos dois

118
Do ponto de vista das normas ortográficas, o texto relativo às aulas de Bruno Enei,
como pôde ser observado, segue a reforma ortográfica que entrou em vigor no início de
2009. Assim, para efeito de clareza, coerência e uniformidade, todos os textos constantes
nos três títulos que se seguem − “Escritos de Bruno Enei”, “Pronunciamentos de Bruno
Enei” e “Escritos sobre Bruno Enei” −, que reuniam diferentes ortografias, também
foram adaptados.
Bruno Enei
338 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

lombardos, Sordello e Virgilio, determina a invetiva à Itália; no sexto


do Paraíso, Justiniano celebra o Império.
Nos três cantos, então, o tema é o mesmo: político. Mas no
Inferno o olho não sai de Florença; no Purgatório a amargura do Poeta
já percebe a unidade e a paz de um povo concorde no interno de sua
nação; no Paraíso, não é mais Florença ou Itália que interessam, mas
o mundo. Ciacco, Sordello, Justiniano; Florença, Itália, Universo; o
município, a nação, o império. É mesmo uma trilogia, três tempos de
uma sinfonia que se conclui no Céu.
Se, além disso, perguntarmos o porquê do longo discurso de
Justiniano, ainda mais claramente saltam aos olhos a necessidade e a
legitimidade histórica do trecho.
Dante pede muito pouco a Justiniano, e pede com menor
calor que a Piccarda. Aqui, também, se trata de perguntas, digamos,
pretextos.

“Quem tu és? Por que tu moras nesse segundo grau celeste?”

“... non so chi tu se’, né perché aggi,


Anima degna, il grado de la spera
Che si vela ai mortai con altrui raggi;”

As duas perguntas ficam relegadas no fim do quinto, ao limiar


do grandioso canto sexto, como as de Dante a Ugolino ficaram no fim
do XXXII do Inferno, ao limiar do trágico trigésimo terceiro canto.
Justiniano podia responder às pressas. Podia dizer: “Sou
Justiniano. Estou aqui porque desejei a glória”. Não, a Divina Comédia
não é crônica, não é apresentação ou anágrafe. A resposta de Justiniano
ocupará um canto inteiro, sem pausa, sem interrupção; através de uma
rapidez de voos e imagens, através de uma intensidade de cores e de
sentimentos, através de uma alternativa de admiração e de penetração
que, no fim, põem diante dos olhos do leitor a grandeza veneranda e
poderosa da doutrina político-religiosa de Dante, o qual, na entidade
imperial, funde as duas civilizações romanas: aquela pagã e guerreira
de César, aquela cristã e humana de Cristo; une dois homens num só:
Enéas e Paulo em si mesmo.
Roma assim continua, sua civilização ressurge e torna a viver
na história, o império não se esgota no sentido político e na cadeia de
conquistas, porque aquela política e aquelas conquistas tinham um alvo:
unir politicamente o mundo na véspera de uma nova unidade e para que
fosse mesmo possível essa nova unidade.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 339

Assim, o império formado por Justiniano parece o forte e


nobre “caboclo” fazendo, com sua foice, a “picada” para a história
futura, para seu continuador, para quem, superando-o, vai para frente,
numa ação mais profunda e humana sim, mas impossível sem a
primeira.
Estes conceitos pertencem a Dante; foram sua fé, o antídoto
no esforço de vencer a polêmica daquela idade tão triste, a prova da
positiva assimilação em Dante das duas civilizações de Roma e do
Cristianismo e, no fim, o documento mais autêntico para definirmos
Dante como o primeiro e genial Poeta, que, criando nova literatura,
se liga, porém, à grande da antiguidade e a continua e renova.
São conceitos de Dante, mas quem os exprime, desta vez, é
um imperador, um imperador em pessoa.
Tem a celebração um caráter oficial. E se torna consagração;
uma consagração imperial e celeste.

(Gazeta do Povo, de Curitiba, 30/9/1951)

A propósito de “Uma Interpretação das


Américas”
Bruno Enei

Acabo de ler um livro que, embora cultural e espiritualmente


europeu, não é, porém, paradoxal definir “americaníssimo”.
Trata-se de “Uma Interpretação das Américas”, de Bento
Munhoz da Rocha Netto, Editora José Olímpio, 1948; um livro que
é americano pela sua teleologia e pela “europeidade”: pela aspiração
profunda e quase amargurada, pelo anseio vibrante e preocupado com
que o autor – olhos voltados para o mundo – padece, vive e propõe
uma consciente e humana unidade das Américas; e, por outro lado,
pelo senso alto e nobre da civilização europeia, de uma “europeidade”
que é bem outra coisa de que “europeísmo”, justamente porque se trata
de uma visão essencial, interior e “americana” da melhor Europa, da
Europa não como “ser” mas como “dever ser”: uma Europa que será
tal quando será “América”, a América de todos e para todos.
É um livro historicamente sintomático e significativo.
As gerações da primeira década do século XX, a que o autor
pertence, cresceram num terreno histórico complexo e severo, durante
Bruno Enei
340 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

o qual os ideais de outrora desfizeram-se e corromperam-se, trazendo


à superfície os mitos e os “slogans” de hoje.
Nós vimos o princípio de nacionalidade transformar-se em
nacionalismo, conhecemos os sobreviventes das trincheiras cinzentas
e obsessionantes de 1918, o enroscar-se desesperado e violento do
Estado em torno do nazismo e do fascismo da trágica guerra de 1939.
Assistimos agora, aliás, feita de provocações, de nervos, de pancadas
e réplicas –, com que os dois povos-guias e seus respectivos satélites
– ora relutantes e ora resolutos – procuram friamente convencer-se da
necessidade de um terceiro e atômico choque. Rimos, afinal, pouco e
padecemos muito mais; muito mais quer pelas causas econômico-sociais
que determinaram a atual situação e quer outrossim – e talvez mais –
pelo idealismo emotivo de nossa mocidade e educação, que não sabe
explicar tantas crueldades e animalidades, já acontecidas e perfiladas
no horizonte, em que devagar parecem tramontar as belas estrelas de
primeira grandeza de tanta espiritualidade dos séculos idos.
Daí a capacidade verdadeiramente particular com que sabe o
autor colher e individuar o que há de traído e de decadente nas coisas
da Europa, daí a firmeza no frisar o que de melhor naquela civilização,
no intuir os perigos do americanismo (como, em geral, de todos os
“ismos”) e em discriminar as peculiaridades físico-humanas dos povos
europeus, quer do grupo latino, quer do anglo-saxônico. Daí o horror do
autor pela guerra, o temor de que se crie uma mentalidade de violência,
de imposição e de “quantidade”. Daí o frequente recurso aos grandes
valores da comum civilização e do inesgotável cristianismo. Daí o apelo
vibrante e sincero para uma “unidade”, para uma irmandade espiritual
e ideal das Américas, baseada sobre os alicerces duma cultura, cujos
imperativos valem universalmente. Daí, enfim, o tom, a seriedade, a
espontaneidade vivida, a religiosidade pensativa e persuasiva deste livro
que, longe de ser a aula de um ilustre sociólogo, ou a doutrina de um
político de renome, se torna a expressão de longo solilóquio, o credo
de um homem e a declaração de fé de um “americano”, do americano
de amanhã, que nada mais deveria ser senão “o bom europeu destas
alturas do século XX”.
Quem meditou sobre as ruínas, sobre as causas e mesmo sobre
a “forma mentis” da última guerra sente que os problemas, mais que
resolvidos, foram exasperados e adiados. Sente, sobretudo, que falta no
mundo contemporâneo uma força mediadora entre tese e antítese. Estão
cansados os europeus. A Rússia e os Estados Unidos são frequentemente
unilaterais. Uma verdadeira universalidade que resolve, além e acima
do egoísmo e do “particolare”, como teria dito Machiavelli, não pode
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 341

surgir senão pelo retorno afetuoso e cordial aos padrões ideológicos e


éticos da civilização europeia, entendido esse adjetivo não tanto em sua
acepção geográfico-fisiológica, quanto na filosófico-religiosa.
Estamos numa volta da história. Chegou a hora das Américas,
ou, melhor, da América; da América europeia na sua origem inglesa,
europeia na sua origem latina. Trata-se de criar nova realidade, que, pela
dinâmica das ideias, embora ligada a uma série de princípios europeus,
não será nem inglesa nem latina, porque deverá ser, só tem razão de ser,
se for “americana”. Isso não esquecendo, entretanto, que “sem a cultura
europeia, a América seria tudo menos América”, como afirma o autor,
auspiciando uma América-civilização ou uma civilização americana em
que Canadá, Brasil e os demais países além e aquém do Rio Grande
não sejam pedaços e aglomerados, mas sim expressões de humanidade
de um sentir não fechado mas aberto, não hierárquico mas igual, não
político mas espiritual, pronto a tornar-se nota e coro de todos, numa
ressurreição de valores, de fé, de ética e de solidariedade em que a
sociologia e a economia, e seus múltiplos aspectos de capitalismo,
nacionalismo e proletarismo, seriam parte e não todo.
A história aguarda, então, uma dúplice missão das Américas:
o amálgama espiritual de seus povos internamente, e um programa de
civilização para todos: uma e outra coisa evitando a tentação da força,
retomando e desenvolvendo o que de melhor e de eterno souberam
formular e alcançar o pensamento e a alma europeia a respeito do
homem, da sociedade, dos deveres, dos direitos e de sua personalidade
que é outra que não o individualismo.
Há uma terra de ninguém entre o leste e o oeste, entre Estados
Unidos e Rússia. Cabe à América ocupá-la, à América sem demarcação,
sem a linha Rio Grande. Sua parte meridional, revendo, retemperando
e dinamizando o seu metafismo apaixonado e intransigente, e o Norte,
espiritualizando, essencializando e religiocizando o seu relativismo
hedonístico, e às vezes confiado, acharão os alicerces de uma civilização
viva, de uma razão de vida verdadeiramente histórica, de uma missão
universal que a humanidade vai procurando, e que espera e faz votos de
achar neste nosso continente, sendo ele, desde então, muito mais do que
uma mítica Atlântida dourada de povos cansados e o refúgio dos que
conheceram a tempestade, o cadinho silencioso e fatal, transformando,
fundindo, irmanando – no trabalho, na serenidade e na fé – qualquer e
todos que aqui aportaram, talvez ignaros de que aquela “Provvidenza
Storica” de G. B. Vico, aqui mesmo vai levando povos e costumes e
experiências para essa civilização de amanhã.
Esta, em geral, a tese do livro.
Bruno Enei
342 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Um exame mais minucioso das passagens e do conteúdo de suas


páginas nos poria diante de um conjunto de problemas e de concepções
particulares, que o autor afirma e desenvolve com lúcida segurança e
concreta visão, dando a essa obra uma razão de ser transcendente ao
puro e simples cientifismo, levantando-a, assim, e isolando-a numa esfera
superior. Não é por isso absolutamente indispensável neste momento
demorar-se sobre conceitos particulares. Com esses, aliás, se torna
também difícil não concordar quando se crê nos valores do espírito e do
“humus” ético-humano da cultura europeia.
O que sobretudo prende é o particular estado de alma movendo
o livro e transformando-o numa admoestação e num apelo, em torno do
que a íntima exigência religiosa, a visão ética e humana dos problemas e a
superior concepção de uma democracia em função qualitativa e universal,
criam uma atmosfera de inspiração ideal e de nobreza.
E é também um livro corajoso, quer pela franqueza com que
define os limites e as deformações da civilização europeia e de seus povos,
e ainda pelo temor com que o ânimo segue a ascensão histórica dos
Estados Unidos, que o autor quer não tanto “Potência” quanto Ente de
civilização, de progresso e de história. Acolá, no alto das Américas, os
Estados Unidos; aqui, no baixo das Américas, o Brasil: duas federações
na hora da “universalidade”, as quais parecem “as pessoas” a quem a
História quer confiar, e está sempre mais claramente confiando a missão
de formular – nos pressupostos da melhor Europa – o evangelho civil e
democrático de uma melhor humanidade.
Há, pois, muito a fazer! No terreno da cultura, da indústria, da
agricultura, das ciências, do trabalho, das relações entre os povos. Tudo
está aí para ser construído, com o olhar para o futuro, cada um se tornando
cada vez mais americano, individualmente e cotidianamente.
Quem está enamorado não espera que os outros se enamorem.
Deveria ser, sobretudo no Brasil, uma contenda sobre um plano
de solidariedade, de colaboração, de liberdade em que o ponto de chegada
seria a perda do individualismo de cada um e a aquisição da personalidade
de todos. Centros de cultura, intercâmbios, congressos...
Isso tudo é sugerido pelo livro de Bento Munhoz da Rocha. É
seu aspecto prático, a aplicação.
Quisemos aludir a isso a fim de que, na sua atualidade e
realização, se sinta quanto esse livro se torna uma singular contribuição
no momento difícil de nossa vida contemporânea, sendo justamente uma
crítica, uma proposta e uma interpretação das coisas de nossa idade, que a
documentação bibliográfica, o realismo e as citações testemunham como
resultado de severa e nobre meditação.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 343

É uma “interpretação” enfim, que os Europeus da Europa não


deveriam ignorar, assim como – embora poucos – não ignoramos e
soubemos compreender – no imediato anteguerra de 1939 – os alarmes,
as interpretações e os “avertissements” de Benedetto Croce, de Adolfo
Omodeo e de Thomas Mann.

(Gazeta do Povo, de Curitiba, 23/3/1952)

Leonardo da Vinci
Bruno Enei

Com particulares solenidades e festejos, a Itália, a França, a


Inglaterra, a América do Norte e do Sul, celebraram ontem, 15 de abril,
o quinto centenário do nascimento de Leonardo da Vinci.
No Rio de Janeiro a comemoração foi feita pelo mesmo Governo,
e, na Capital do Paraná, foi ela patrocinada pelo Secretário da Educação
do Estado, Dr. New­ton Carneiro.
Os meios intelectuais do mundo, pois, foram mobi­lizados por
esse acontecimento.
Não é fácil dizer brevemente quem foi, quem é Leonardo; que
representou e que representa ele hoje pa­ra nossa sensibilidade moderna.
Precisar-nos-ia evocar a idade, o ambiente literário, artístico e científico
que ele direta ou indiretamente viveu, lembrando os pinto­res, os escultores,
os arquitetos e poetas que, no então, em poucos decênios iluminaram
Itália e Europa de pintura, de escultura, de liberdade e de objetividade,
de afoiteza e de coragem, de experiências e de leis. É o tempo em que os
livros se tornam a natureza dos filólogos, assim como a natureza se torna o
livro dos cientistas. Tudo acaba de ser diletante, provisório, improvisado.
Tudo se torna clássico. O alvo de todos é a perfeição, o absoluto. Tudo
se torna ciência: de qualquer atividade e aspecto de atividade e gênero e
subespécie estabelecem-se o código, as leis, os fundamentos. É o tempo
em que, ademais, foi possível dar aos homens, além dos oceanos, terras
desconhecidas, julgadas abso­lutamente inexistentes, como esta nossa
América, onde agora vivemos e trabalhamos, augurando uma civiliza­ção
mais serena, uma operosidade mais humana, uma educação mais vasta
que não conheça as tristezas dos choques e o abatimento do rancor.
Assim, teríamos uma ideia do que foi a atmosfera vigorosa e
serena, confiada e heroica, indagadora e or­denadora, bela e límpida e
Bruno Enei
344 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

gentil de músicas, de poesias e de arte, precedendo e seguindo, entre a


segunda metade do século XV e a primeira do século XVI, os anos de
1452-1519 que representam os dois pontos extremos da vida de Leonardo;
deste filho genial e rebelde, sacer­dote de uma religião da vida a quem
nunca falhou, mís­tico e extasiado adorador da natureza, a qual, justa­mente
através da análise, da observação e da indagação mais minuciosa e mais
teimosa, lhe se torna um templo de leis inderrogáveis, uma construção
viva de conceitos e de lógica, e um edifício de harmonia.
Para compreendê-lo, três aspectos de sua personalidade devem
ser particularmente frisados: sua autono­mia, sua ânsia do infinito, sua
atitude criadora.
Muitos seus admiradores, querendo louvá-lo, limitaram e
alteraram a personalidade de Leonardo. Fize­ram dele uma figura
sublimemente fabulosa e romantesca; como, de fato, ele é, mas num
plano superior e absoluto, que é aquele onde a admiração dos pósteros
coloca – comovida e reverente – seus “egrégios” e protagonistas.
Chamaram-no, de vez em vez, poeta, filósofo e humanista,
empírico, empirista e positivista, cientista e artista.
Definiram-no um “enciclopedismo”; isso pode, talvez, fazer
pensar mais a uma “quantidade” do que a uma “qualidade”.
A eternidade de Leonardo fica muito mais em al­to de sua
“poliedricidade” e do seu “enciclopedismo”,
Não obstante a desmedida e assombrosa documen­tação de
suas pesquisas, de seus interesses e de seus re­sultados, Leonardo não é
Leonardo por um juízo de “quantidade”, Leonardo é Leonardo por uma
visual de “qualidade”.
Ele é uma “categoria”, um momento do nosso espírito, o
da “praticidade”, o da realização, que – saindo da esfera teorética
da contemplação e da especulação, desce esta contemplação a esta
especulação numa rea­lidade, numa criatura e numa criação, para, depois,
como a abelha da flor à colmeia e da colmeia à flor – remontar e sublimar-
-se na esfera do absoluto puro e teorético.
Chamá-lo “teórico altíssimo” não é, pois, tudo; assim como não é
igualmente tudo chamá-lo “mago da prática”, ou seja, “sublime pintor”.
O tom aristocrático e inconfundível de sua solitária personalidade
está naquele recolhimento soberano e atento do sábio contemplando e
seguindo o fenômeno para prender-lhe e determinar-lhe as leis, e naquela
atitude maravilhada e iluminada da posse, da aplicação, da matemática
certeza criativa.
Para Dante saber é amar, para Leonardo saber é criar.
Faltava à civilização humanístico-renascimental um gênio
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 345

com estas peculiaridades prometeicas. Não podia não surgir no século


das descobertas, no século das navegações, da Escola de Sagres e de
Colombo.
Assim, Leonardo, perto da poesia grande de Ariosto e da altíssima
ideologia de Machiavelli, veio completá-lo. E é mesmo por ele, por este
solitário e incansável especulador e atuante, que o humanismo tem hoje
uma sua historicidade e uma razão de ser além dos campos, inegavelmente
sublimes, das letras e da arte e da teoria.
Pensando em Leonardo, divisamos Galileu, compreendemos
Alexandre Volta; pensamos numa tradição de solene e religiosa ciência;
numa parábola que inicia com ele e que, irradiando e enobrecendo o homem
e o mundo, se continua e se desenvolve com Pasteur, com Guglielmo
Marconi, com Edison, com Fermi, com Einstein. Do “olho” de Leonardo
ao átomo e à hidrogeniana linha da ciência e de suas realizações não houve
interrupção de continuidade.
Por isso, não é ele nem propriamente literato nem filósofo. Nada
mais é a palavra nele senão aproximação e momento: uma espécie de nota
para não esquecer, uma espécie de plano para construir. Sua característica
é, na arte, a cor; na ciência, um instrumento: em ambos os casos, um
sensível. E se ele é humanista, é-o não no sentido mais comum; mas
naquele, mais vivo e mais nosso, de homem; que com a palavra-cor e com
a linguagem-instrumento, nunca esqueceu a humanidade, a vida interior, a
universalidade. Neste sentido ele é bem latino e moderno! Neste sentido,
ele é bem nosso contemporâneo: um nobre e superior contemporâneo de
quem falamos mais como falaríamos de um amigo, de uma pessoa querida
e ausente (da qual não sabemos, nem podemos fazer a menos), do que de
um homem que já foi.
Para o mundo todo, não só para a Itália, ele ontem não somente
nasceu, mas ele vive.

(Tapejara – Órgão do Centro Cultural


Euclides da Cunha, Ponta Grossa, ano III, n. 9, 1953, p. 3)

Da inutilidade da literatura
Bruno Enei

À pergunta – assaz banal, em verdade – sobre a utilidade da


literatura, poder-se-ia responder com uma observação muito divulgada e
Bruno Enei
346 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

comum, que é hoje de uma clareza insofismável, após o fervor filosófico


do século XIX, em que muitas abstrações e antinomias e pseudoconceitos
e transcendências no campo da estética, da lógica, e da economia e da
ética acabaram definitivamente de existir.
Hoje todos sabem que, em senso absoluto, nada é
verdadeiramente inútil. Hoje todos sabem que o termo inutilidade
tem um valor exclusivamente relativo e empírico. Até o mal não é
inútil porque é inevitável, e em nós. Bem e mal, eu e não-eu, objeto e
sujeito, tese e antítese, são conceitos, por si, abstratos, fora de uma sua
mediação representando a realidade. Se a vida não é mais um idílio e
uma procura da felicidade, e é, pelo contrário, um drama, esse drama
acabaria de ser tal sem os elementos imanentes do próprio drama, que
são justamente o bem e o mal, o útil e o inútil, o eu e o não-eu, numa
dialética constante e real, cuja resultante é o progresso, o vir a ser, as
quedas e os triunfos dessa nossa vida que, neste mundo, não sabe e não
pode ver um fim que significaria o fim justamente da história, que é a
nossa imagem, a epifania do nosso agir terreno.
É por isso que G. Vico, analisando o indivíduo como indivíduo,
já no século XVIII, afirmar que uns nossos defeitos e vícios, condenáveis
individualmente, num plano mais humano e universal da sociedade se
tornam, ao invés, virtudes e qualidades. Todo homem é, por exemplo,
violento, avarento, cobiçoso, – dizia G. Vico: e a violência do egoísmo,
a avidez do interesse, a fome da ambição são coisas condenáveis,
individualmente. Entretanto, são justamente esses três defeitos naturais
do homem que, no campo social, criaram a milícia, o comércio e a direção
política, a quem devemos a força, a riqueza e a sapiência dos estados e
das nações.
Nada é, pois, inútil. E, sobretudo, nada do que é inevitável pode
ser evitado. O que é necessário não pode ser contingente, pela lei da
contradição que não o permitiria. Tem que acontecer. Tem que existir.
Tem que ser.
Ora, a literatura é uma dessas coisas que não pode ser inútil
justamente porque é inevitável. Não se pode não ser poeta. A poesia é uma
categoria do nosso espírito, é uma fatalidade natural, uma necessidade
humana, um sinal divino. A arte ignora obstáculos. Nem a ditadura pode
calar-lhe a boca. E o seu canto supera os silêncios de mil séculos. Os
gregos, que condenaram filosoficamente a arte, foram poetas sublimes.
Os romanos, todos debruçados para as utilidades e as realidades da vida
prática, deram Lucrécio, Catulo, Virgílio e Horácio. E é inconcebível a
Alemanha sem Goethe, a Inglaterra sem Shakespeare, a Itália sem Dante,
a Espanha sem Cervantes, Portugal sem Camões. A França sem V. Hugo.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 347

É inconcebível uma humanidade sem arte: sem poesia, sem música, sem
pintura, sem as várias formas de arte. Há quem negue isso? Seria como
imaginar o mundo sem o céu, o céu sem as estrelas, as estrelas sem a luz.
Seria como afirmar que o pensamento humano pode ser não-necessário.
Seria como imaginar o absurdo de uma humanidade sem sentimento, sem
sensibilidade, sem emoção, que são justamente os alicerces inelimináveis
da arte.
A arte é essa companheira angelical e autônoma seguindo o
homem, cantando as suas tristezas e as suas esperanças, as suas dúvidas
e os seus acertos, os seus acontecimentos e os seus anseios. Cantando-os
e preconizando-os, muitas vezes.
Não, a arte não pode ser inútil. Ela é, aliás, tão vital, tão essencial
na vida de um povo que chega até a ser o termômetro do valor, da energia,
da possibilidade espiritual e humana de um povo. Um povo pobre de
poesia é como o olho sem luz. A sua literatura é a vibração, o seu poder
de vibração, a sua capacidade de nobreza. É verdade, sim, que as coisas
materiais ferem mais rapidamente os olhos, mas o que fica, mais tarde, é a
poesia, a arte, a literatura. E, observando bem, ver-se-á que até o poderio
material é escasso lá onde a poesia não for grande.
A palavra utilidade ou inutilidade é um termo que pertence à
filosofia prática: e a arte, além do mais, fica fora da terminologia prática.
Útil ou inútil poderá ser um objeto: mas a arte não é um objeto. A arte é
um produto do espírito: e nada que o espírito cria é inútil, pelo simples
fato que o cria e enquanto o cria.
É verdade que tanta literatura que anda por aí não presta. Como
tanta música, tanta pintura, tanta poesia não prestam. Mas essa é outra
questão, que será objeto de outros artigos. O que aqui interessava era
responder à pergunta que me foi feita alguns dias atrás. Uma pergunta
banal, de espíritos evangelicamente pobres, que os anos, os reveses da
vida, a insatisfação e o mau humor puderam tornar fatalmente cínicos e
indiferentes: à margem dos problemas, da vida, do futuro, que sempre
precisam, como a arte, de sinceridade, de entusiasmo, de inspiração, de
crença nos valores do homem.
A arte é outra coisa. Por cima de tudo isso ela – como dizia Dante
– se ne va beata: vai para a frente, feliz e serena, comovendo, despertando,
educando, humanizando.

(Jornal da Manhã, de Ponta Grossa, 15/8/1954;


Revista Uniletras, da Universidade Estadual de Ponta Grossa,
n. 6, 1984, p. 22-24)
Bruno Enei
348 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Necessità di un ritorno
Bruno Enei

Nessuno ignora la legittimità delle molteplici ragioni che,


specialmente in questi ultimi tempi, hanno sempre più portato il Brasile
ad avvicinarsi agli Stati Uniti.
La produzione del caffè, di cui gli Stati Uniti sono attualmente
il migliore mercato, il potere acquisitivo del dollaro, il commercio,
il giuoco internazionale d’importazione e di esportazione, il fattore
politico, economico e ideologico, l’ultima guerra e la presenza del
Brasile in Europa a fianco delle Nazioni Unite, la necessità degli aiuti
americani per lo sviluppo e l’attuazione di un vasto programma di
carattere agricolo e industriale, che valga a portare il Brasile su un piano
di sempre maggiore efficienza e produttività, sono gli aspetti pratici
più evidenti di una situazione che non si può mettere in dubbio.
C’è poi un fattore storico di capitale importanza: l’aspirazione
degli americani ad una intesa di carattere continentale, non nel senso
di coalizione di potenze in atteggiamento di minaccia, ma in quello
di una solidarietà di popoli e di interessi che, non fosse altro, la
stessa tendenza attuale in altre parti del mondo ha reso più cosciente,
più concreta, più urgente. Non si trata tanto, si badi bene, di una
“America agli Americani ” nel significato − alquanto angusto oggi
e anacronistico − di Monroe, ma di una America che sente e deve
sentire di essere veramente America in qualsiasi punto e parte del suo
vastissimo territorio. Una America unita, aperta, uguale; una immensa
federazione di Stati uguali e distinti nelle loro tradizioni, nelle loro
culture e caratteristiche, senza rinuncie e senza abdicazioni, ma in
spirito di comprensione e di amore, in nome di una reciprocità di
progresso e di interessi.
In Brasile − questo Paese di 50.000.000 di abitanti, con un
territorio grande quanto l’Europa, con immense risorce naturali quasi
inesplorate che stanno lí a chiedere la mano dell’uomo e la solidarietà
della tecnica e del capitale − non poteva rimanere insensibile a questo
imperativo americano di unità internazionale. Ha, perciò, lavorato e
lavora in questo senso. Non si può dire che non stia sulla strada buona,
anche se spesso è dato osservare un certo equivoco e fraintendimento
in questo ideale di intesa e di unità americana, evidenti soprattutto in
quella certa posizione di superiorità e di distacco in cui gli Stati Uniti
− data la sua potenza e il suo prestigio − vengono a trovarsi. Ma molti,
la parte migliore, distinguono perfettamente tra Stati Uniti e Unità
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 349

Americana, e sanno perfettamente che l’unità americana è una cosa e


gli Stati Uniti un’altra.
C’è, del resto, tutta una letteratura ormai che spiega e chiarisce
i vari aspetti e le diverse posizioni ideologiche di questa delicata a
annosa questione. Basterà ricordare qui, fra gli altri, i nomi di Manuel
Bonfim, Gilberto Freyre, Keyserling, Waldo Frank, Haya de la Torre,
Alceu Amoroso Lima, Pedro Calmon, Monteiro Lobato, Bento Munhoz
da Rocha Netto, Faris Michaele.
Che cosa ci ha guadagnato finora il Brasile? Molto e poco.
Alle volte, nulla. Certamente, gli Stati Uniti hanno dato quello che
potevano. Non possono dare quello che nessuno può dare. Ha
esportato, ha importato, ha imprestato. Molte cose qui parlano degli
Stati Uniti: automobili, benzina, ghiacciaie, trattori, costruzioni,
industrie, organizzazioni, esercito, aviazione, ecc. Nel campo tecnico
e commerciale, nel gusto dell’attività pratica dei negozi, in certi campi
della vita scolastica e parlamentare, la presenza degli Stati Uniti
è chiara, decisiva. Tutto ciò ha giovato al Brasile. Nessuno lo può
onestamente negare. Sarebbe sciocco negarlo.
Ma il Brasile non può importare quello che deve lui stesso fare,
quello che solamente a lui spetta di fare, con una sua interpretazione
originale e autonoma, con la propria anima, con la propria educazione,
se − in seno all’America − vuol essere qualcuno, come deve cercare
di esserlo: “qualcuno” e non “qualunque”, come si usava dire in Italia
durante il periodo in cui, nell’immediato dopoguerra, imperava la
parola, veramente negativa e scoraggiante, di un Giannini. Per essere
“qualcuno”, il progresso materiale, la evoluzione tecnica, l’apparenza
artificiale e gli ultimi resultati di moda non bastano. Ci vuole altro.
Ci vuole altro per colmare il divario tra metropoli e interiore, tra città
e borghi, tra popolo e borghesia. Ci vuole altro per superare quel
gusto “alessandrino” della “chácara”, del frutteto con una bella casa
per il riposo del sabato e della domenica e arrivare a un sentimento
dell’agricoltura, a una persuasione di produzione che metta l’accento
sulla produzione e non sull’edonismo e sul proritto: arricchire
arricchendo.
Oggi, si sa, gli Stati di tutto il mondo sono sollecitati da una
eccessiva e unilaterale preoccupazione di carattere politico. Tutto è fatto
in funzione politica. Se ci si preparasse a vivere, faremmo altre cose
che non facciamo perché ci preoccupiamo col morire e col difenderci.
E, invero, la situazione internazionale non è poi tanto critica e
disperata, come parrebbe in un primo momento. C’è ancora speranza.
C’è possibilità di una comprensione, di una distensione che faccia
Bruno Enei
350 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

in modo che il danaro sia più “democratico” e il comunismo meno


“russo”. Si può ancora discutere. Si pensa.
Perciò il Brasile, pensando alla sua America, dovrà tornare di
più a pensare a se stesso, che è poi il modo di pensare più concretamente
all’America. E allora affronterà più intensamente i suoi problemi interni,
i suoi problemi di popolo, di produzione, di educazione, di cultura,
di civiltà. E sentirà che il carro deve stare dietro ai buoi. Sentirà che
l’Europa − non l’Europa con l’elmetto, non l’Europa totalitaria − ma
l’Europa della cultura, dell’arte, della scienza ha ancora una parola da dire:
proprio l’Europa “dei vinti”: la Francia, l’Italia, la Germania. Dobbiamo
riprendere contatto con quelle idee, con quella universalità, con quei
valori. Non basta fare, dobbiamo credere.
Conosciamo davvero la vera Italia, la vera Francia, la vera
Germania? L’Italia, la Francia e la Germania senza “Napoleoni”
e napoleonismi? L’Italia di De Amicis, di Papini, di Pitigrilli, di
D’Annunzio non basta. L’Italia dell’Umanismo e del Rinascimento,
quella di Parini e di Alfieri, quella di Mazzini e di Cavour la conosciamo
davvero?
Questo ci aiuterebbe assai a conoscere noi stessi, il nostro
popolo, i nostri difetti, le nostre virtù, i nostri bisogni, il nostro da fare.
E ne verrebbe fuori un lavoro lento, raccolto, silenzioso, persuasivo. Ne
verrebbero fuori la nostra personalità, la nostra coscienza, la coscienza
della nostra funzione storica, del nostro imperativo umano e civile di
popolo neo-latino.
A fianco degli Stati Uniti, al centro del movimento americano, io
sento, io desidero, io riconosco la necessità di questo ritorno.

(Tapejara – Órgão do Centro Cultural


Euclides da Cunha, Ponta Grossa, ano IV, n. 5, 1954, p. 15)

Gêneros literários
Bruno Enei

É mesmo, este assunto, uma coisa velha e superada? Será mesmo


que, não digo, todos, mas, ao menos os que se interessam de crítica
e de poesia, estejam profundamente convencidos das razões lógicas
e estéticas pelas quais uma obra de arte é sempre uma obra de arte,
simplesmente porque obra de arte? Pela sua forma, isto é, pela inspiração
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 351

que a sustenta, pela lei que a governa, pela sua individualidade estética,
independentemente da sua dependência a um precedente literário, a
um modelo, a uma lei, a um gênero. Quantos “aristotelismos” ainda!
Quantos “ipse dixit” ainda! Quantas inúteis e abstratas saudades de
Homero, como mestre do Poema épico; de Sófocles, como mestre da
Tragédia; de Cícero, como mestre da Oratória, de Horácio lírico, de T.
Lívio historiador, etc., etc.! Parece de estar ainda nos tempos da disputa
entre românticos e clássicos.
Lê-se um poeta, e pensa-se noutro, ouve-se Bach e lembra-
se Corelli, olha-se Picasso e corre-se aos artistas do século XV. Faz-
se justamente como aqueles dois neófitos (de que fala Silvio Pellico
naquele seu breve mas imortal “Concialiatore”, publicado em Milão
entre 3 de setembro de 1818 e 17 de outubro de 1819), os quais –
tendo abraçada a religião do evangelho – disputavam se Zoroastro e
Confúcio fossem verdadeiros cristãos, sem minimamente pensar que se
Zoroastro é Zoroastro e Confúcio é Confúcio; é claro que o cristianismo
é o cristianismo, não podendo ser nem Zoroastro nem Confúcio, nem
tantas outras coisas, de ontem e de hoje, que acreditam de ser – sempre
por uma razão de apego ao gênero – uma continuação ou identidade.
Matou-se assim, e continua-se da mesma forma – a matar a
liberdade da arte, aquela liberdade que já A. Verri – no seu jornal “Il
Caffé” – chamou de “deusa do engenho”.
Tirania que obrigou T. Tasso a escrever a sua melancólica e
idílica “Gerusalemme Liberata” só às condições que admitisse que o
seu Godofredo fosse “o intelecto”, os seus Rinaldo, Tancredi e demais
heróis as “várias potências da alma”, os soldados “o corpo”, e Armida,
Ermínia e as demais infelizes encantadoras do seu mundo “as tentações
diabólicas”. E assim foi perdoado. E, mais ou menos, assim foi perdoado
Corneille. Mas, sabe-se que Voltaire, também pelo inconformismo ao
Classicismo, pela sua Henriade de 1723, foi insultado, surrado e exilado.
E que dizer das acrobacias a que a alegoria – essa irmã reacionária do
gênero e do conteúdo – obrigou a fantasia veneranda e bonita de tantos
poetas, inclusive Dante Alighieri, o poeta que tanta gente lembra mais
porque alegorizou a selva, a loba, a onça, e o leão do que porque cantou
Ulisses e seu desejo de conhecer, Brunetto e a sua saudade de professor,
Francesca e o seu amor?
Precisamos ainda libertar a arte; dar-lhe a sua autonomia,
a sua divindade, a sua necessidade, tirando-lhe qualquer sombra de
heteronomia, de conformismo, de escravidão (hoje é o 13 de maio)
ao conteúdo, à alegoria, ao gênero, à classificação; à árida e abstrata
classificação que nenhum outro valor poderá ter senão aquele, como
Bruno Enei
352 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

dizia já Croce, empírico e escolar de memorização e de pura indicação.


Precisamos ainda libertar a arte, não da imitação e do passado (Ninguém
começa e pode começar do nada, e é até fácil constatar como todos os
maiores começaram imitando e refazendo-se a um “precedente”, mas
dos “a priori” da retórica e da má fé dos que – fechando o mais no menos
– não admitem inovações, proíbem – ou querem proibir – à fantasia
de criar, e agridem o presente e o futuro jogando-os, arbitrariamente,
no passado, como se o passado quisesse dizer tradição e imobilidade
e não, como é lógico, progresso e experiência de uma humanidade
progredindo e experimentando. Arbitrariamente, porque o passado, esse
nosso venerável passado humano e histórico, protesta e reage, ensina
e ilumina, condenando sempre a imitação e o modelo, escarnecendo
sempre e tendo por nada, o conformismo e o gênero, declarando-nos e
provando-nos continuamente que nenhum de seus grandes homens foi
nunca grande porque imitou e conformou-se a este ou aquele preceito
da retórica, criando cada um deles a sua própria lei e a sua própria
originalidade de continuação e de valor.
O gênero! Ponho-me diante desta realidade brasileira de hoje,
e sinto. Sinto coisas tristes e luminosas. Sinto amarguras e comoções,
olhando e lendo, pensando e sonhando. Esse Rio de Janeiro tão pequeno
diante de um Brasil tão grande; essa gente emudecida e fixa que parece
aguardar; essa mocidade séria demais e contemporaneamente sem
orientação; esses alunos crentes no “jeito” e, entretanto, bons, inteligentes,
vivos como não conheci outros em tantos anos de magistério; o deserto
e o “chauvinismo”; essa “babel” dos jornais; esse eterno “falar mal” ad
personam, tão pouco alicerçado nas ideias e na boa fé, num ideal de
progresso e de riqueza comum e geral; tudo isso agita, ponhamos a fantasia
do artista, que pensa numa expressão, no alívio, na eficácia, na liberdade
da arte. Será que esse artista terá que pensar em Homero, em Sófocles,
em Cícero? Será que esse artista terá que pensar nas leis de Aristóteles, da
“Ars Poetica” e em Quintiliano? Será que esse artista terá que pensar na
Comédia, na Sátira, na Lírica, nas estandardizações, fixando a língua, o
metro, a quantidade, a unidade, o tempo; a prótase e o epílogo, a invocação
e a dedicatória? E quando é que ele pensará, então, à sua inspiração, àquela
sua inspiração que está lá dentro de sua alma, ansiosa de sair à luz como
as personagens de Pirandello?
A humanidade não se repete nunca. E, tanto menos, na arte. Se
isso acontecer, poderá haver mediocridade somente, e, até, popularidade,
mas nunca grandeza.
Homero, modelo do poema épico! Entretanto, a mesma Odisseia
é a contradição da Ilíada. A arte não tem gênero, não tem tipo, não tem
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 353

espécie, não tem classificação: coisas que Croce deixava para as ciências e
as matemáticas. A arte responde sempre a uma inspiração, a um sentimento
vivo e concreto, a um imperativo de atualidade e de contemporaneidade.
Notaram já, os meus leitores, que nenhum grande poeta ficou alheio ao
tempo em que viveu, que a obra deles cantou sempre o presente, e foi
uma meditação, uma polêmica, uma idealização, uma apresentação – na
forma e na substância – da própria idade, do próprio viver? A arte é sempre
criação, na linguagem e no conteúdo. E tantos gêneros há quantas são as
obras de arte. Infinitos gêneros, isto é, porque infinita, assim é de se esperar
tendo confiança no homem, é a série da poesia, diante da qual devemos
ver quanto e como ela é mesmo original e nova, compreendendo-lhe a
novidade, justificando-lhe a originalidade, legitimando-lhe a liberdade,
reconhecendo-lhe o direito de arte, não na base de um conformismo, mas
da sua originalidade, da sua honestidade, da sua realidade.
Conta-se que quando foi feito conhecer o ferro aos selvagens
americanos, os seus donos quiseram examinar logo se ele fosse ouro ou
prata. Como não fosse nem um nem outro, aqueles donos – imaginem
com quanta boa fé – decretaram que o ferro não era um metal legítimo.
Então, os jovens americanos quiseram propor que fosse o ferro examinado
só como coisa útil. Abre-te, céu: foram eles sonoramente batidos a fim de
que ficassem sabendo que sempre há-se a perguntar se uma coisa é igual
a outra, e nunca se pode ser útil e boa em si.
É uma anedota que cabe bem ao nosso caso; o caso do gênero,
o caso de tudo aquilo que a dogmática da retórica e da insensibilidade
soube criar contra a inovação, o progresso e a novidade, qualquer que
fosse ou se chamasse.
E não quero já dizer que tudo isso não seja hoje claro e pacífico.
É sim, até para os que admitem e aceitam essas verdades, com todas as
inevitáveis contorções e restrições que a “forma mentis” lhes impõe.
Mas, entretanto, quanta gente fica ainda “cheirando mal” diante da poesia
contemporânea; Picasso aqui e acolá, Carlos Drummond de Andrade e
Ungaretti, este ou aquele poeta moderno. Além das ambiguidades dos sim
e dos não, além das restrições dos porém e dos mas, é no campo prático,
no terreno quotidiano do ensino e das conversações que a gente percebe
quanto a categoria do gênero seja dura a morrer, abdicando a seus velhos
e soberbos direitos de um tempo.
E, assim, vai, também esse “gênero” – juntamente a tantas outras
coisas velhas e inúteis (“oh gran bontà dei cavalleri antichi”, exclamaria
Ariosto) sobre essas águas da vida, que móveis e dinâmicas deveriam
também ser. Vai; vai pesando e impedindo, negando e distinguindo,
concedendo e repelindo, mas – o que é inegável – também o rio vai, e
Bruno Enei
354 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

a humanidade progride e continua; amando até e respeitando esses seus


parasitos, embora com a consciência que muito mais fácil e rápida seria,
sem eles, a sua dura e eterna arrancada.

(Diário do Paraná, de Curitiba, 22/5/1955)

Impressões do Rio (I)


Colóquio com Carlos Drummond de Andrade
Bruno Enei

De pé, ao centro da Sala do Serviço de Documentação do


Ministério da Educação e Cultura, num ambiente aéreo em que os outros
grupos – atendidos pela incansável gentileza de José Simeão Leal – se
iam sempre mais distanciados, alheios e avulsos, encontrei-me com a
poesia, com a sensibilidade rápida e lúcida da nossa alma moderna.
Esqueci o ambiente: duas almas de frente, sem coreografia, sem
retórica, sem paisagem, como justamente acontece na lírica moderna
onde a adesão do espírito afasta a eloquência, e a imagem se torna
cristalina, essencial, pura realidade de uma angústia, de um anseio, de uma
ausência. Não houve cerimônias. Foi tudo pesquisa e vígil solidariedade,
grande desejo de compreender, de aproveitar do raro perfume da flor rara
do nosso imenso deserto contemporâneo. As perguntas e as respostas se
sucediam reciprocamente, se sobrepunham numa simultaneidade sem
apêndices inúteis.
A poesia moderna não tem mais nada que fazer com o século
XIX. Foi além: como sentimento e como forma. Os ideais não mais
são mitos e metas objetivos e imóveis: o amor, a beleza, a pátria, a
imortalidade, a glória e a felicidade desapareceram do céu alto de Platão.
Tornaram-se quase mentiras, menos que amargas ilusões, deixando uma
saudade, uma persuasão, uma atitude de recolhimento que procura, na
nossa interioridade mais subconsciente, os movimentos irracionais, o
tédio mais cansado, a verdade mais científica, mais sincera. A poesia
quer hoje saber o que somos; por que, como, quando somos. Não
sabe obedecer. Não quer persuadir. O poeta procura conhecer-se, e
revelar-se, construindo o seu mundo individual de apego, de crença;
de desconfiança, de austeridade. E a forma, a célebre forma oratória
e eloquente, toda construída numa arquitetura lógica de sintaxe, de
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 355

orações principais e secundárias; aquela forma vibrante ou melancólica


levando o poeta e o leitor num mundo ideal de hinos ou de lamentações,
aquela forma deixou a sua “demagogia” para tornar-se linguagem de
imagem, essencialidade de ritmo; pura concentração sem resíduos de
proselitismos, sem preocupações de hermenêutica. A linguagem árida e
fugaz de uma sugestão, de um pressentimento (D’altri diluvi una colomba
ascolto), de uma ironia (Odo la primavera nei rami neri indolenziti), de
uma analogia:

Tornano in alto ad ardere le favole,


Cadranno colle foglie al primo vento
Ma venga un altro soffio,
Ritornerà scintillamento nuovo,

A poesia libertou-se da canção, do madrigal, do soneto, do verso,


da sílaba. Não mede, escande imagens, e as coloca no ritmo puro de uma
visão consciente. Não há mais “meios”, e a poética é a própria poesia,
com seus espaços brancos, com suas pausas, com seu controle crítico,
com suas colocações fônicas. Herança e superação: através Baudelaire,
Verlaine, Rimbaud; através Novalis e Hölderlin; através Leopardi,
Pascoli e D’Annunzio.
– Minha formação foi solitária e irregular. Vim perdendo
melancolicamente a fé, e conheci o marxismo. Não é possível fechar-se
num dogma de obediência e de ortodoxia, e continuar sendo poeta. E
justamente diz De Robertis que “a poesia nos vinga de não sermos deus.
Deus é conhecimento imediato, universal, perfeito; e a poesia é o esforço
de avizinhar-se a esse conhecimento, com a dor de nunca nos vermos
chegar. Esta dor faz com que os poetas escrevam”.
– Não tenho. Não tenho, embora a procure, uma definição da
arte. As esquerdas condenam a nossa arte, e querem que ela não esqueça
o leitor e o povo. Mas eu não me preocupo com a comunicação. A
mensagem é sempre uma automensagem. E o gênio que cria não é o
intérprete do gosto que lê.
– Não tenho uma filosofia. Leio Nietzsche enquanto poeta.
Procuro Schopenhauer nas revelações líricas de suas penetrações
interiores. Conheço Croce pela sua “Estética”. Acho, acho que esse
filósofo é quem mais se tem aproximado de uma definição satisfatória
da poesia, entendida como lírica, como imagem, como linguagem,
distinguindo sempre a poesia pura da “non-poesia”. Para o poeta moderno
a filosofia é mais um elemento moral, um “meio”; um meio para que ele
seja sempre mais o pesquisador atento de suas profundezas, o ouvidor
Bruno Enei
356 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

impassível de seu diálogo interior, o analisador honesto do que somos,


do que queremos ser, do que deveríamos ser, do que, talvez, nunca
seremos, senão como anseio, como dor da consciência prévia de uma fatal
impossibilidade. Hegel, que confundiu a poesia com a filosofia, afirmou o
fim da poesia no panlogismo. Mas a verdade é que a poesia começa agora
o seu verdadeiro caminho, sem deviações, para o mundo do incônscio,
procurando conhecer o homem, após ter conhecido a natureza.
– E me diga, pode-se afirmar que a prosa de Graciliano e a sua
poesia iniciam uma nova linguagem no Brasil? – Sim, há essa tendência.
Está no espírito, na psicologia, na individualidade da nossa caracterização;
mas já faz muito tempo que se procura no Brasil novos rumos. Bandeira,
Machado, Andrade...
– E essa linguagem fechada, difícil, tantas vezes incompreensível?
Mas, todos os poetas são, ao aparecer, difíceis. E é natural, legítimo.
Dante é fácil? E Rimbaud? E Foscolo? E Leopardi? A poesia é uma eterna
renovação, uma dramática não-imitação. Precisa tirar da cabeça que a
poesia deva ser filosofia, oratória, moralismo. Precisa convencer-se de que
a poesia deve ser unicamente poesia. E precisa dobrar-se em si mesmo,
recolher-se, escutar-se; sinceramente, humildemente; numa sugestão,
numa impressão, como num colóquio de revelações, de fulgurações, onde
a compreensão exige colaboração, onde a falta das passagens lógicas é
substituída por um ritmo de imagens que sugerem, desvendam, iluminam.
Há, como em toda poesia de todas as épocas, há tanta não-poesia na
poesia contemporânea. Há muitos equívocos, muitas obscuridades, mas
vale a pena penetrá-los porque se trata, afinal, do nosso mundo moderno,
do nosso drama. Vale a pena estudar, procurar, analisar porque atrás de
tudo aquilo vibram sempre sentimentos, perfilam-se sempre homens,
inquietações, anseios; todo aquele conjunto de emoções, de aspirações,
de inconformações que forma a sensibilidade moderna. Essa sensibilidade
de lucidez, de transparências, de felicidades diferentes, de equilíbrios de
requinte.
E acho que não houve despedida, porque o pensamento continua
e “penetra profundamente no reino das palavras”.

(O Dia, de Curitiba, 14/10/1956)


Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 357

Impressões do Rio (II)


Apartes e sugestões
Bruno Enei

No ambiente universitário do Rio, nem sempre, após a palestra,


se dá – ritualmente – por encerrada “a sessão”. O diálogo continua, muitas
vezes, num círculo de amigável franqueza e de bela espontaneidade. Não é
o autógrafo que interessa, e sim o endereço. Fazem objeções. Perguntam:
em francês, em italiano; sem receios, sem recalques. Não me parece que
eles fizessem isso pela primeira vez. Há intimidade entre professores e
alunos, entre docente e discente. Há cordialidade e colaboração.
Não posso afirmar se há lá interesse para o magistério, mas tenho
a impressão de que a cultura, em geral, e a poesia, em particular, são
problemas sentidos com entusiasmo. A mocidade ainda crê na poesia:
na dos outros e na própria. E isso, hoje, num mundo de “sai você e entro
eu”, não é pouca coisa.
Após uma aula sobre Giovanni Papini, não foi por nada fácil
para eu documentar as limitações e restrições que – criticamente – se
devem fazer ao extravagante e barulhento autor de “Stoncature”, de
“Cog”, de “Il Diavolo”. Topara eu com uma inteligente e irredutível
“papiniana”. Tratava-se de uma luta entre crítica e psicologia. E fiquei
gostando daquela defesa, inicialmente intransigente como o meu ataque,
e, depois, mais acessível e serena como, aliás, se ia também tornando a
minha unilateralidade.
Tive mais sorte com Giuseppe Ungaretti. Ficamos todos de
acordo, numa convicção profunda de que a poesia moderna tem recursos
verdadeiramente notáveis. Uma delicadeza “velina”, “árida”, humana,
penetrando na alma, procurando-a, querendo desesperadamente revelá-
-la e satisfazê-la.
Após uma palestra sobre a poesia de G. G. Belli, dois padres –
incredibile dictu – usaram palavras de grande elogio. Entre outras coisas,
disseram, aqueles bons e cultos sacerdotes, que Belli é verdadeiramente
um grande poeta, e que a serenidade crítica do conferencista fora notável.
Louvando a minha habilidade, o meu equilíbrio! Pensei no Concurso para
a cátedra de Língua e de Literatura Italiana na Universidade do Paraná.
Que ironia, que comoção! Compreendi porque, às vezes, até beijar a mão
fica bem.
Na Universidade do Distrito Federal, foi uma moça – Maria
Carolina Figueiredo – quem me fez a entrega da flâmula que hoje está
Bruno Enei
358 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

aqui, estimulando e lembrando, ao lado destas estantes. Aquele inesperado


e delicado “a solo”, aquele polido perfil, aquela pronúncia linda,
responsável, em que as palavras pareciam cor e fios de fumaças, aquele
ambiente cordial e tenso me inspiraram, como resposta e agradecimento,
uma sugestão em forma de fábula e de saudade.
– Há em Pisa, na praça dos “Cavalieri” de Malta, ao lado da
“Torre” que Dante indicou como o lugar da última e trágica dor do
encontro de Ugolino com os filhos inocentes, bem perto da Universidade
onde Galileu “vide” os céus e Giacomo Leopardi cantou “A Silvia”, há,
em Pisa, um antigo Palácio. Napoleão transformou-o num Colégio: o
colégio da mocidade que se dedicaria ao magistério da Matemática, da
Física, das Letras. Um diretor, um secretário. Uma vastíssima biblioteca.
Cursos internos e especialização. Uma ampla sala de refeições. Um lindo
quarto para cada um. O moço vem das escolas secundárias. Inscreve-se
na Universidade. Sente a beleza, a necessidade, a coragem do magistério.
No dia 2 de novembro de cada ano, há concurso e seleção para entrar
lá dentro. Venceu? Então, nada mais cabe ao vencedor senão estudar,
escrever, frequentar as aulas na Universidade e os Cursos internos, pedir
livros, avizinhar os mestres, discutir, criticar, educar-se, tornando-se um
“cavalheiro” do ensino, um homem. Tudo é pago, tudo é fácil, numa
atmosfera aberta e sadia de liberdade, de discussões, de experiências. E
as garantias de permanência são os exames na Universidade (todos na
primeira época e com uma média de notas nunca inferior a 24/30) e as
provas internas obrigatórias sobre assuntos especializados de filosofia, de
filologia, de ciências, de matemática, etc. Acabados os estudos, há um
curso de um ano de aperfeiçoamento: pode ser lá mesmo ou, então, no
estrangeiro; na França, na Alemanha, na Inglaterra, na Espanha.
Daí saíram, entre outros numerosos, Giosuè Carducci, Pasquale
Villari, Alessandro D’Ancona, Ulisse Dini, Giovanni Gentile, Attilio
Momigliano, Luigi Russo, Enrico Fermi... Daí saíram, mais recentemente,
Aldo Capitini e Walter Bini, Carlos Ludovico Ragghianti e Carlo Varese,
e outros que, durante a ditadura fascista, souberam lutar e morrer, e outros
que ocupam hoje as mais ilustres Cátedras Universitárias, cargos de alta
responsabilidade no Governo, no Parlamento. Daí saíram cientistas, como
Fermi e Pontecorvo, que o mundo admira.
– Como? Os senhores se maravilham? Não acreditam? Pois, é
assim mesmo. O Estado não é bobo. Procura a qualidade. E paga, pois, o
tempo de teus estudos. Você deve somente estudar, sem outra preocupação
que aquela de um estudo sério, organizado, crítico, consciente, sem
restrição, sem credo, livre, seu.
Mas, a assistência ainda mais riu quando – com toda naturalidade
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 359

– tirei em campo os oficiais e os soldados, fazendo notar que, no campo


da cultura e do ensino, a guerra é até mais constante; diuturna e profunda;
esclarecendo, derrubando mitos, preparando uma atmosfera de discussão,
de dialética, de persuasão livre.
– No alto da Tijuca –
– Na Cascatinha –
– Onde for: no Rio, em São Paulo, no Paraná. Sonho com isso
desde que aqui voltei, desde que acreditei nos moços, nos inocentes, nos
que ainda não foram infeccionados pela realidade, pela indiferença. Sonho
sempre com isso, para que a mocidade se concentre e pense. Tenha tempo
de pensar sem aperto de horários, que a levem de um trabalho a outro, de
uma ocupação à outra, num cansaço física e espiritualmente visível; para
que se possa finalmente criar um ambiente “sine curis”, onde o estudo
seja, como os latinos queriam, verdadeiramente “otium”, vida solitária e
recolhimento, “specula” de idealidades e de realidades, de presente e de
passado, e trabalho “sine lassitudine”, como dizia Leonardo: discutindo,
lendo, citando autores, tornando as palavras ideias e as ideias profundas
convicções.
Porque dói, dói no coração ver tantas energias sem direção, tanta
sensibilidade sem guia, tanta possibilidade sem apoio, tanto desperdício
sem proveito, tantas almas capazes de dar e que, entretanto, crescem
como que esquecidas, quase ignoradas, sozinhas, num autodidatismo
naturalístico e pernóstico; aumentando, assim, ainda mais, o número,
deveras não pequeno, de pecados do nosso Brasil.

(O Dia, de Curitiba, 28/10/1956)

Cristóforo Colombo e sua época


Comemorando o dia 12 de outubro

Bruno Enei

Após tanta vasta bibliografia crítica em torno da Idade Média e


de seus inúmeros aspectos, não serei justamente eu – aqui e em tão breve
tempo – quem irá negar a função histórica daqueles longos séculos que
vão da caída do Império Romano, em 476, à descoberta da América, em
1942. A Idade Média foi uma necessidade.
Teve a sua razão de ser, domando a barbárie e salvando o patrimônio
Bruno Enei
360 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

imenso da antiga civilização. A realizar este desenho providencial, a


história teve de servir-se da “curtais”, da propagação do cristianismo pelas
armas, do mito do Sacro Império Romano, do feudalismo, da inquisição,
elementos estes assaz discutíveis hoje, mas racionais e únicos então. Em
torno da igreja, surgiram as aldeias, as escolas.
Entretanto, a cultura daquela idade, baseada em enciclopédias
e em “Summas”, nem sempre foi crítica e construtora; a economia,
palaciana, feudal, corporativística, foi fechada e sem respiro; o homem,
isolado nas cortes; e a Europa, alheia ao mundo dos povos bárbaros,
insensível à Ásia. Houve como que indiferença e medo diante da beleza
encantadora e dos mistérios fascinantes da Natureza. Foi, do ponto de vista
da ciência, a idade do empirismo e de uma unidade sem distinções, em
que uma existência hierárquica e piramidal do saber paralisava a pesquisa
objetiva e a análise, a espiritualidade “gótica” afastava os homens da vida
e de seus problemas, assim como lançava para o céu as suas torres agudas.
Era sobretudo o além que preocupava.
Mas já, no século XIII, a alma meiga e nobremente humana
de S. Francisco de Assis, saudando a natureza e reconhecendo em seus
elementos todos – na água, no fogo, no ar, no vento, até na morte – os
nossos irmãos e os mesmos felizes e inocentes filhos de um único Pai,
criador mais do que juiz, generoso mais do que severo; já, no século XIV, a
exaltação de Ulisses e de uma ética de atividades e de heroísmos imanentes
à vida, na poesia imortal de Dante Alighieri; já, no mesmo século, a lírica
saudosa e gentil de Francesco Petrarca, cantando melancolicamente a
beleza de Laura, o encanto da natureza e a brevidade da vida num anseio
de glória, de imortalidade e de saber; já, nesse mesmo século XIV, a
prosa aberta e franca de Giovanni Boccaccio, reconhecendo, sem mais
receio nenhum, o valor da inteligência, a força irreprimível do amor, a
potência da família, da sociedade, dos estados; já esses homens sentiam
e anunciavam a necessidade de uma civilização e de uma cultura mais
arejada, mas livre, mais revolucionária, mais imanente e intrínseca aos
problemas do homem e de sua vida aqui, na terra, onde ele é chamado a
realizar-se como sabedoria e ação.
Veio, pois, o humanismo. E a vida mudou-se completamente. O
empirismo tornou-se ciência; ciência dividindo-se na própria autonomia,
nos próprios campos, nas próprias leis e finalidades. O problema da física
foi a natureza, da medicina o corpo, da filosofia a lógica, da moral o
dever, da estética a arte, da astronomia os céus, das ciências naturais os
elementos, da química a propriedade das combinações e decomposições.
Foi a idade da beleza e da racionalidade, da arte e da ciência, da crítica
e da ação. A cultura tornou-se internacional. Surgiram as Academias e
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 361

as grandes Universidades. A imprensa e a bússola puseram-nos diante


do mundo antigo para conhecê-lo no seu valor objetivo e real, diante da
natureza ignorada para descobri-la, para povoá-la, para conhecer-lhe as
leis, criando os transportes marítimos, aéreos. Surgiu a política como
ciência no pensamento de Machiavelli. Surgiram o comércio, a indústria,
o capitalismo com seus bancos, com suas firmas e sociedades, com seus
mercados, com suas necessidades de matérias primas. Surgiu o jogo
dramático e empenhativo do empréstimo, do depósito, da concorrência,
da importação e da exportação. E a riqueza se reduziu. O dinheiro circulou.
Os palácios, as igrejas, as estradas, as cidades tornaram-se belíssimas
pelas artes e pelas inovações.
É insuficiente a afirmação de que o humanismo foi um fenômeno
unicamente literário e artístico. É insuficiente a afirmação de que o
humanismo foi um fenômeno unicamente italiano. O humanismo foi uma
revolução geral, uma concepção nova, renovação completa do espírito;
uma nova visão da realidade e da vida na base de uma confiança sem
limites no homem, em suas qualidades e possibilidades de realização e
de criação. E, embora teorizando na Itália e lá primeiramente pensado
e estudado, foi ele, contudo, um movimento de caráter essencialmente
europeu, espanhol, português, francês, alemão, inglês.
Nesse ambiente largo e aberto, nessa atmosfera de beleza e
de ciência, nessa espiritualidade de confiança e de imanência, é que
nós devemos colocar a figura de Cristóforo Colombo, se queremos
compreender o sentido histórico, científico, concreto e humano de seu
empreendimento. A Europa não era mais suficiente. A história do mundo
não podia ser mais fechada e circunscrita à história da Europa. Outras
exigências, outras forças, outras necessidades; a cultura, a ciência, a arte,
o comércio, a indústria, o capitalismo pediam outros panoramas, outros
continentes, outros povos, outra humanidade.
O mundo não podia mais continuar a ser assim pequeno, a Europa
já chegara à Islândia e ao Atlântico e à Ásia; quando os povos além
do Reno e do Danúbio se tornaram já cristãos; quando os Otomanos
ocuparam já o Mediterrâneo oriental, e a potência atlântica da Espanha
era uma admoestação; quando já eram fortes e ameaçadores os Estados
Nacionais.
E se as viagens de Polo até Pequim em 1271-1275, em 1292-1295
podem ser consideradas como os antecedentes românticos de Colombo, é
porém a satisfação dos descobrimentos durante o século XV que constitui
a garantia científica e real do seu sucesso. Portugal, Henrique o Navegador
(1394-1460), Madeiras em 1418, Açores em 1437, Cabo Verde em 1460,
o Golfo de Guiné em 1469, Bartolomeu Diaz e o Cabo da Boa Esperança
Bruno Enei
362 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

em 1485... são as etapas gloriosas dessa epopeia, são as notas solenes da


grande sinfonia da coragem e da nova Ilíada do mundo moderno, de que
Cristóforo Colombo foi um dos protagonistas e Camões o seu inspirado
cantor.
O problema era chegar ao Oriente pelo Ocidente. Pouca
importância teria saber quem iria realizar a grande façanha, quem a teria
prestigiada. Colombo, inspirado por Toscanelli, pensava que “interfinem
Hispaniae et principium Indiae mare parvum et navigabille est in paucis
diebus”. E tentou, em 3 de agosto. E, em 12 de outubro do mesmo ano de
1492 – vencido o misterioso Atlântico – S. Salvador unia-se à Europa. Era
a América? Era a Índia? Não merecem agora uma análise esses problemas.
Naquele momento, acabara não somente a Idade Média, e começava a
Idade Moderna; acabara não somente a história do mundo como sendo
unicamente a história da Europa, e começava a história de todos os povos,
de todas as experiências, de toda a humanidade; a história geral, a terra
total; a história coral e a terra universal dos homens que trabalham, que
estudam, que esperam, que sofrem para um mundo melhor.
Saudemos Colombo, saudemos esse dia: são símbolos de uma
nova fase da vida, são índices de novas perspectivas, de novos anseios;
são momentos de civilização e da nossa nobreza humana; alicerces da
democracia, da atividade inquieta e construtora da nossa vida moderna.

(O Filósofo – Órgão de Divulgação do Diretório Acadêmico


Dr. Joaquim de Paula Xavier, ano II, n. 3, Ponta Grossa,
outubro-novembro de 1956, p. 2)

Esperanças da crítica
Bruno Enei

Foi a vida de ontem; entretanto, estamos hoje bem longe das


formas enfáticas e exuberantes dos últimos anos serenos e despreocupados
do século XIX; daquelas também dos anos que – já no século XX
– precederam a primeira guerra. Até os interesses espirituais que
dominaram o panorama humano dos vinte anos, entre a primeira e a
segunda conflagração, ficaram já longe e apagados nesta nossa intensa e
ávida interioridade atual.
Nem o “otimismo” dionisíaco de D’Annunzio, nem a “mística”
coral da força e da obediência coletiva.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 363

As ilusões vieram-se tornando, cada vez mais, um anseio amargo


e exigente; os ideais antigos um mero devaneio sem apego; o otimismo
retirou-se numa atitude circunspecta e prudente; a intimidade revelou-se
num contraste difícil de confissão e de pudor, de ciúme e de abandono; e
o “modus vivendi et cogitandi” procurou mais e mais a linha hermética
e sutil, sem concessão; avarenta na expressão e sugestiva no tono e no
ritmo. À paixão veio substituindo-se uma delicadeza gentil e esquiva à
euforia, uma atitude de desconfiança sedenta; à exclamação, o silêncio
atônito e a pergunta monossilábica; à maravilha, a firmação, ao programa,
o propósito em ato. E cresceu, tornou-se mais íntima a dor: amadurecendo
os nossos espíritos, trazendo mais perto essa realidade penosa, despindo
as coisas e a alma, exigindo razões difíceis, criando dúvidas profundas,
solicitando soluções; lançando-nos, enfim, num isolamento dramático e
interior, para a procura e a pesquisa dentro da “mônada” fechada e ciumenta
onde cada um elabora por si a sua persuasão. Assim, a fé inquebrantável
que já caracterizou outros tempos; o sentimento que já empolgou outras
idades; a razão que já tornou abstratamente otimistas tantas gerações do
“siècle de lumière” cederam hoje o lugar à crítica. É ela atualmente quem
nos domina. É ela a nossa essência, a nossa definição; o nosso martírio
nobre e a nossa única esperança.
Crítica é hoje sinônimo de humanidade e equivalência do
pensamento. A própria filosofia, após Descartes, e, sobretudo, após Kant,
ao seu nome vetusto e tradicional prefere aquele, mais exigente e mais
expressivo, de crítica.
A crítica é, pois, a alma inquieta e responsável de nossa idade.
E não apenas na dúvida ela perfila a sua presença dolorida; não apenas
na insatisfação ela agita a sua angústia ávida; não apenas no tédio se
retrai desconfiada. Mas até mesmo uma nossa expressão de maravilha,
o nosso consenso, a promessa têm sempre o sabor vígil de um controle,
adquirindo a feição gentil e discreta da crítica. Crítico e consciente é hoje
até o entusiasmo: esse “lirismo” comovido da humana adesão que ilumina,
muitas vezes, os olhos que contemplam e acompanham a natureza e a
vida.
A retórica – essa filha tardia e cativante da decadência e da
transição – tem-nos cansado demais. Não nos convence. Fala sem acreditar.
É céptica, e não sabe que os seus ouvintes pessimistas e delicados não
mais a toleram.
Vai hoje a humanidade procurando novamente o equilíbrio difícil,
como já na Idade Média, na Renascença, no século XIX. Procura ela o
equilíbrio, que é convicção atingida, consciência firme, responsabilidade
e empenho. Procura ela ansiosa a sua razão de ser, a sua síntese, a sua
Bruno Enei
364 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

“revelação”; como u’a mensagem que, saindo da história, nos afaste do


passado alheio e dê consistência operosa ao nosso presente. Estamos
procurando a nossa mediação, aquela certeza lógica e emotiva que nos
lance liricamente, mais uma vez, no caminho da vida e das realizações.
Por isso, fala-se hoje quase sempre em análise, em crítica. Em
autocrítica; justamente como, em outros tempos, se falava em “examen
conscientiae”, em cultura, em apostolado. A melancolia, a dúvida, o
protesto foram já – conjunta ou isoladamente, as expressões da crise
espiritual. A nossa expressão peculiar é a crítica. Daí, esse nosso perfil
fugidio e alarmado, nervoso e afetuoso, árido e emotivo de hoje, que fica
tão longe daquela gravidade sublime e ascética de Dante Alighieri, daquele
idílio sonhador e satisfeito de Ariosto, daquela loquacidade apostólica de
Victor Hugo. É só observar os nossos escritores. A poesia, a pintura, a
arquitetura, a música têm sempre aquele perfil íntimo e solitário de um
solilóquio, de uma elaboração científica e pensada, de um organismo
complexo e sutil, como fosse a imagem de uma proposta ou o desenho de
um problema. Sem descrição, sem moldura; numa cristalização essencial
e exclusivamente lírica. É Camus ou Sartre; Ungaretti ou Montale; Carlos
Drummond de Andrade ou Graciliano; Picasso ou Morandi. É o cinema
ou a arquitetura; cada um, a seu modo, concedendo sempre menos ao
passado, censurando o que não queremos ser, edificando o que somos.
Que é, pois, crítica? E qual é a sua função? Parece inútil dizer
que a crítica nada tem que fazer com a psicologia, com o complexo, com
o preconceito, com a prevenção, com o mexerico. A crítica é sempre
elemento objetivo e sereno, construtivo e dinâmico. Nunca envilece, nem
nega, nem destrói pela sua própria natureza e pela sua intrínseca finalidade
realizadora. Não é uma força que, por sua essência, se ponha contra ou
a favor, como se fosse um árbitro alheio. É, pelo contrário, energia e
vigilância que procuram a validade e a atualidade, a universalidade e a
necessidade de uma obra ou de um princípio ou de uma afirmação com a
serena análise que é expressão do idealismo e do interesse interior. Crítica é
teoria e é prática: como teoria, ela é o próprio pensamento; e, como prática,
ela é atitude ética. O que significaria, então, pensar, se não fosse também
criticar? Como é possível pensar sem criticar? Pensar, sempre é síntese;
e, como tal, sempre é seleção, escolha, adesão objetiva. Pensamento e
crítica são atividades; atividades afirmativas, colocando algo de novo na
realidade, sugerindo e promovendo algo de fértil e de fecundo no plano
da história, no ramo do espírito. Deixar as coisas como estão é que não é
pensar. Porque, quem pensa – se verdadeiramente pensa – só pode construir.
Pensar é incessante construir. E o nosso “modo” de pensar hoje, o nosso
modo de construir é a crítica, essa expressão de um interesse interior
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 365

que nos avizinha da realidade e da vida. É essa a função da crítica. Uma


função de análise, de alta e responsável separação entre o que está morto
e o que está vivo, entre passado e presente, entre sinceridade e mentira,
entre honestidade e hipocrisia, entre retórica e necessidade.
Muitos ainda dos velhos hábitos vegetam na superfície da história.
A tradição e a inércia sustentam-nos e toleram-nos por amor de “quieto
vivere”. Mas a nossa sensibilidade reage salutarmente, numa atitude de
“nausée”, de insatisfação e de desgosto. Quer ela a sua imagem, a sua
idealidade; e procura-a na polêmica, na distinção, numa mediação que
só à crítica cabe conseguir.
E o nosso senso crítico de hoje tem, não há dúvida, as suas
esperanças. Nessa sua intrínseca identidade de pensamento e de análise
a crítica não significa necessariamente “crítica de”, “crítica contra”. Ela
tem autonomia de vida, independentemente de um mundo que lhe esteja
ou não para a frente como um obstáculo a ser superado. Ela possui uma
dialética imanente na própria vida interior e individual do pensamento que
– enquanto pensa – sempre elabora e analisa, sempre medeia e critica; e –
enquanto critica – pensa; construindo sempre, em termos de humanidade
e de valor. A sua polêmica é, pois, exterior, muitas vezes, somente porque
se dirige ao passado e à realidade; mas é sobretudo aquela interior, no
processo do espírito, que conta e vale; dando à crítica o seu sentido de
necessidade.
Aquela polêmica interior, imanente ao pensamento, é o essencial;
aquela polêmica entre o subconsciente e o consciente, entre o instinto e o
ideal, cuja síntese é a nossa dialética e a nossa construção. Assim, através
da crítica, uma outra unidade se realiza: aquela entre a razão que vê e
julga e o sentimento que acende e acredita.
De modo que, bem longe de pensarmos que a crítica queira dizer
negação, acabamos mesmo acreditando na sua função altamente positiva
e construtiva. Não devemos temê-la, mas exigi-la, considerando-a como
o único meio que a nossa “forma mentis” possui hoje para continuar no
seu dever de construir os novos valores da história, as nossas razões da
vida, os nossos ideais de ação, a nossa persuasão: valores, razões, ideais
e persuasão que não repetem e não imitam, como o pensamento – se
pensamento é – nunca é repetição e imitação.
Nessa aurora a surgir sobre as ruínas da crítica, estão as nossas
atuais esperanças; amarguradas por uma realidade que é sempre o “limite”
do ideal, e sustentadas pelo anseio e pela fé que a própria crítica desperta
na inquietação confiante de cada dia.

(Jornal da Manhã, de Ponta Grossa, 6/10/1957)


Bruno Enei
366 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Literatura na Princesa dos Campos Gerais


Bruno Enei

No primeiro lustro de uma existência útil, nosso diário não


poderia deixar de completar os trabalhos organizados pelo seu corpo
de redatores, sem oferecer aos amantes da literatura, obras dos poetas
princesinos que nos orgulham sobremaneira e projetam Ponta Grossa
no cenário nacional das letras.
Para muitos a surpresa encantará ao conhecerem pela vez primeira
a alma sensível de nosso povo, congregada pelos pensamentos
poéticos de Sigrid Lange, ou de Álvaro Augusto Cunha Rocha, ou de
Edipo Ribas, esse maravilhoso trio que tão bem sabe lapidar a palavra
e, burilando-a, apresentá-la como um sonho, ou como a vida sem
forma.
A par da nossa preocupação em confeccionar a página “Literatura
na Princesa dos Campos Gerais”, outra nos acudia qual foi a de
rebuscar em nossos meios intelectuais uma figura de real representação
cognoscitiva e por isso, com autoridade, nos descrevesse a alma do
poeta.
Daí não vacilarmos ao escolher Bruno Enei para levar a bom
termo tal delicado mister.

É a indefinida, a tenra transparência que justifica a sugestão


da poesia de Sigrid Lange. Visão, pressentimento, anseio perfilam-se
em distâncias íntimas, refletem-se em penumbras tênues, somem-se
no silêncio pensativo dos enlevos. E é a distância própria do espírito,
a sua penumbra, o seu silêncio palpitante e vibrátil; lá onde o mundo
inesquecível da espontaneidade e da liberdade vai se delineando com
carinho e tremor, com esperança e melancolia. Sábado, véspera da vida;
quando prevalecem – sem dominar – a idealidade, a transfiguração, a
impressão; quando a Nausica de Homero percebe em Ulisses o seu sonho
e a Silvia de Tasso, na límpida fonte que a reflete, tem a consciência da
sua realidade.
Aqui, não o episódio, mas como que a configuração e o presságio
de uma ausência querida, onde a natureza – como uma tela – se torna
desabitada e só.

Tua sombra não mais o luar acompanha,


nem a aurora teus sonhos adormecidos veste,
e na praia, as tuas pegadas as ondas apagaram.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 367

Em outro poema, a luz e a noite parecem os termos de uma


referência humana, de uma alternativa espiritual:

Eu quero dormir naquelas montanhas azuis


lá longe, ter por travesseiro as estrelas brilhantes,
e a noite a envolver-me, infinita.

E o morrer? Essa aparição pálida e muda que não deixa de


visitar a aurora da vida? O mundo e o céu – porque se sentiriam vácuos
– parecem solidários:

Mas chegará o dia, eu sei,


em que as estrelas se transformarão em lágrimas
e lavarão a terra
e a noite ficará eternamente branca
quando eu não existir mais.

Um dos pontos verdadeiramente altos desta poesia é “Beleza”:

Beleza é distância.
São as primaveras mortas
e as que ainda não nasceram
São nuvens, mares de ondas brancas
em praia azul.
São os silêncios verdes nas ilhas
do pensamento.
ou o voo longínquo de um pássaro
seguindo o sol.
Distância é beleza.

É aí sobretudo evidente o valor da palavra como “res”, como


elemento concreto e distante de uma pureza meditativa e idílica, vivendo
e inebriando-se de uma paisagem criada pelo sentimento, confirmada
pela natureza.
Não há problemas. Não há, nem pode haver problemas e reações e
protestos. É um mundo de espera, antes das coisas. Por isso, até aqui, essa
linguagem delicada e aérea de sinais e de desenhos límpidos e tênues onde
a transparência é sinceridade e a luz é o calor íntimo de uma geometria
emotiva.
Mas, qual não é a grata surpresa que outros poemas nos trazem,
onde a técnica e o tema revelam compreensões novas, interesses profundos,
Bruno Enei
368 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

interrogações, insatisfações, conclusões de uma meditação mais grave?


Ainda aqui, o ritmo conserva a sua vívida simplicidade.
É ainda o solilóquio de um espírito que se vai fazendo. A cultura,
a reminiscência literária, o aval alheio, a genericidade também não ousam
turvar o pudor e a autenticidade de um empenho consciente, de uma
personalidade que só conhece a sinceridade e a honestidade da primeira
pessoa: meu, tenho, galgo, minha mão, eu. Assim, “Marítimo” é já uma
sequência de constatações inelutáveis, insistentes, insidiosas: conclusões
colocadas lá, como dado de fato. E o espírito, assustado e descorado,
a lançar suas apelações até quando, embora sobre a areia, vislumbra a
miragem de uma esperança:

Peixes submersos no espaço.


E meus sonhos?
Barcos destroçados nos montes marítimos
E minha ilha?
Risos gravados nas ondas sonoras.
E minha juventude?
Rochedos rolados nas marés douradas.
E meus ideais?
Mas a fênix austral brilha sobre a areia.

E este sentido cósmico, assim fatalmente peremptório e aceito


que nos dá o poema “Abstrato”? Lembranças incônscias, certezas
dedutivas!

Nos abismos hiantes da memória


voluteiam lúridos fantasmas:
lembranças não invisas
de outras eras.
No poema seguinte, a ternura familiar para com a terra de nossa
existência se expande com o sabor de uma tentação superada, com o
carinho de uma declaração afetiva. Miragens e fábulas de eterna felicidade,
mundos abstratos (que Debussy colocava longínquos e submersos), Éden,
Arcádia, que a imaginação supõe, mas que não convencem definitivamente
e não valem a “aldeia” contingente e real do nosso sonho, da nossa
ação, da nossa dor quotidiana. Quase se aceitaria, mas o coração volta
saudoso e fiel:

Tenho visões de catedrais distantes,


de lagos profundos entre montanhas brancas,
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 369

e de cidades eternas.
Mas subitamente
atravesso o riacho
e galgo às pressas minha colina de verão,
ao ouvir o badalar dos sinos
de minha pequena aldeia.

Aqui, uma pausa: a conclusão de uma jornada. O epílogo que se


confunde com o novo prólogo.
Há já um passado e um futuro que o presente constata e determina.
Um sendo então, de relatividade, apesar de tudo; um balanço que não
desestima, ainda que evitando a euforia; a consciência, enfim, que a vida
tem outras experiências, outras aventuras, outras responsabilidades que
o drama de cada um não deixa de querer, de provocar, de consumar,
vivendo-as como alegria e tempestade.

Peguei o pôr-do-sol das conchas


em minha mão;
pétalas do mar e da areia,
cristais de areia.
Peguei pérolas, pequenos mistérios
das conchas do mar.
Mas ainda não cheguei nas praias submarinas
por onde as ondas passaram.

É esta a poesia atual de Sigrid Lange: uma poesia que, cada vez
mais, adquire sugestões e significados através de uma alegoria que é
própria das coisas; através de um simbolismo sem arbitrariedade, sem
esforço.
__________________

A uma realidade ininterrupta e agressiva, sem espaço de aventura


em sua contingência convulsa, sem brilho e sem folga em seu tecido
sucessivo e compacto, Álvaro Augusto Cunha Rocha resiste com a
“réplica” de sua poesia.
E é palavra de evasão e de encontro, de fôlego e de enleio, de
nostalgia e de propósito. Como um dique martelado contra a ameaça opaca
e invadente; abrigo e suporte de quem algo perdeu, mas não renuncia, e
fica como que à espera: observando, denunciando, lançando – vez por
outra a prudente esperança e a pálida certeza de uma possibilidade, de
uma vinda, ainda que não de um retorno.
Bruno Enei
370 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Se o presente, justamente porque presente, logra as instâncias,


ele é que, então, leva o poeta para a intimidade e a solidão, buscando aí
sentido, carinho, repouso. Repouso e energia. Socorre assim o passado,
que é o ponto em que o presente se nos torna humano e saudoso, digno
de referência, e evocação, de apego, como acontecimento que foi, como
acontecimento que não é mais, e não se repete: malogro de uma parte
de nós.
A presença do passado, pois, contra a presença do presente:
aquela, como autenticidade emotiva; esta como fatalidade insatisfatória.
E o confronto alma-realidade, aspiração-contradição; com o pesar pela
incompreensão, e a insistência sem renúncia. Assim, quer a sua poesia
ser a revelação de uma interioridade que não se pode abjurar. É o sinal
de um enlevo que ainda nos empenha e seduz. É tentativa, às vezes,
estremecida e inútil de uma desculpa por não poder aceitar, por não
querer mergulhar. Nada mais, e também nada menos: por uma questão,
sobretudo, de honra, de respeito, de apego humano. Como perdido numa
realidade que, por certo, não empolga, e que, entretanto, não elimina o
patrimônio de idealidades e de intuições que a inocência sonha e acaricia
solicitando, o poeta pronuncia a sua prece: que se lhe dê um lugar, que
se lhe reconheça o seu no diálogo e no monólogo. Não o direito, mas a
honesta afirmação que também existimos.
Retirando-a do presente despido e lúcido:

e o resto é noite,
Noite só

A eloquência se coloca então no passado; e o ilumina, e o


multiplica, e o suspende numa altura sem mais alcance:

Não precisou nem noite de São João


para que eu o soltasse. Bastou a minha infância,
nas asas da qual ele subiu alto, alto.
Tão alto que se pendurou numa estrela.

Aliás, é essa a condição: buscando

...sempre um remédio
na mesma obstinada esperança
de um tempo em simples tempo exaurido.
E mil vezes, assim, ter nascido; ferindo-se
...contra o inesperado gesto vil, urbano, sem sentido.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 371

E mil vezes, assim, ter morrido; descobrindo


...sempre no vasto espaço,
que algum vago amor está crescendo.
E mil vidas, assim, ir vivendo.

E se “Balão” é a sublimação afetiva de um tempo “exaurido”,


se “Condição” é atuante obstinação entre surpresas e constatações
irremediáveis, “Cidade Marítima” é o poema em que improvisamente
descem as luzes, e a existência parece “calcinar-se” numa sobrevivência
sem motivo e sem esperança, concluída e inconcludente:

Do sonho longamente ressentido, parto


e cumpro o destino circular da inconsequência.

Um ponto final sem “depois”? É sempre possível ao espírito


renascer e recomeçar. O seu destino é eterno “prelúdio”:

A terra, o pão, as semeaduras,


a água das madrugadas
o imenso amor dos homens e mulheres verdadeiros
– límpidas fontes da árvore da vida
estuante e difusa – clamam
Que teu arco se faça pura lâmina
na carne, e que o sangue mais íntimo,
incontaminado e recôndito,
jorre e cresça no desagravo do poema

É um augúrio, como se vê, o augúrio da persistência, de uma


réplica dentro da vida, embora com aquela prudência, com aquela
disposição da consciência que não aceita mais a confiança fácil e não se
deixa tentar pela euforia.
O augúrio de quem, após a “nausée”, apesar de tudo, retoma,
decidido e disposto, a sua “crux” e se encaminha pelos eternos andaimes
da vida.
Poesia que se caracteriza pela precisão, pela nitidez de uma
inteligência que se controla e se precavê. Poesia que, por uma exigência
de coerência interior, não faz concessão e se coloca, vítrea e responsável,
num plano precioso e elaborado de desenho íntimo, de inspiração
custosa e acariciada, mas não gratuita. A generosidade, o abandono, a
espontaneidade da transfiguração parecem ainda prematuros e inoportunos
numa disposição prevalentemente preocupada com a introspecção
Bruno Enei
372 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

autobiográfica, com a procura da palavra e com o seu valor de propriedade


e de língua. Escritor, antes de mais nada.
Sensibilidade delicada, gentil, circunspecta, onde a mensagem se
manifesta na identificação com a honestidade do artesão que apura com
escrúpulo e que aí encontra parte da solução e do conforto. Entretanto, é
poesia que cresce, tornando, a cada momento, mais humano e autêntico
o seu “travo de sal”.
__________________

Em Edipo Ribas, a poesia quer ser a conclusão e a apoteose de


uma experiência.
A dúvida, o amor, o carinho, a paixão, o pundonor são sentimentos
e atitudes que – de imediato – na poesia se tornam épicos, transfigurados
por uma solidariedade de cavalheiro e de trovador: sentindo, crendo,
empenhando-se humanamente naquilo que diz. Poeta da sensação improvisa,
vária, contraditória, revivida sempre numa tonalidade maior. Há nele
uma atmosfera longínqua e profunda de austeridade e de afirmação,
e a delicadeza e a dignidade de uma homenagem. Sempre essa força
magnífica que prorrompe. A poesia é a dádiva descontínua e sincera da
sua comoção, a forma atuante de uma gratidão. Consequentemente, o
seu dicionário é baseado na eloquência do período, no respiro de uma
estrofe, no conjunto do poema. Não é a palavra por si, mas a frase; e o
seu ritmo, a sua disposição:

Com este amor de altos destinos


como longínquo voo de pássaros de fogo,
rubros como ígneos pensamentos de amor,
rumo ao transcendente roteiro das auroras.

E os síngulos termos querem ser pausas e concentrações intensas


e apaixonadas de cor: fogo, aurora, morrendo amargo, morrendo quente,
grandíloquos versos, madrugadas ternura.
Isso explica “Súplica”, onde não precisamente a volúpia e o senso
ditam as expressões, mas as expressões recorrem ao senso e à volúpia
para declarar, evidenciar, convencer. Labaredas de ardência emotiva e
galharda.
Sobretudo em sua primeira parte, “Reflexão” é um “ex-abrupto”
impetuoso e apaixonado de crise, onde a meditação improvisa se faz
angústia à busca de uma resposta, abertura, sem reticência, de um drama,
interrogação que procura convencer-se:
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 373

...... E esta ânsia de infinito?


E a alvorada de um sexto sentido
que lhe inclina a ver a vida de outro ponto?
É alvorada e programa:
A necessidade compulsória de ser bom,
tolerante, compreensivo com os que sofrem
mágoas e desenganos,
frustrações e injustiças

É essa generosidade, essa nobreza de sentir, essa impressão


imediata que se deixa apreciar, que revela uma personalidade com suas
inquietações e suas dúvidas e seus idealismos.
Um de seus mais altos poemas chega ao indefinido da
transfiguração: como se a escultura cedesse o lugar à pintura, e a realidade
ao sonho. Não é a presença, mas um anseio como que visitante a eliminar
a distância, a restabelecer a unidade conservando a solidão:

Não te perturbes, querida,


pois é minha alma de poeta que te visita......

Momento gentil, sem pausa do primeiro ao último verso; como


um andar de melancolia, como um sopro de carinho.
“Chirú Mena” é uma concessão, um exercício de simpatia.
Mas, também nesta estampa gaúcha os “olhos andarengos”, “as tristezas
gaudérias”, a saudade da “querência” procuram a interioridade do vingador
de Sílvia.
É deste fundo sadio e independente que se desprendem
melancolias, insatisfações, anseios, amor. E a poesia é o seu momento
solene e pessoal de gala e de rigor.

(Jornal da Manhã, de Ponta Grossa, 5/6/1959)

O Humanismo e a Renascença
Bruno Enei

Já nas “Laudi” de Francesco de Assisi, é possível colher uma


atitude de compreensão e de amor para com o mundo e suas criaturas.
Bruno Enei
374 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Há, na poesia dele, como que natural necessidade de aproximação e de


reconciliação entre os seres e os elementos que constituem o conjunto da
realidade e da vida. Ele é o primeiro poeta que reconhece, canta e postula
uma unidade e uma harmonia entre todos e tudo, como aspectos sagrados
de uma mesma criação divina, a qual justifica tudo, e tudo santifica e
iguala num plano de beleza, de irmandade, de ação e de alegria. A vida é
e pode ser um hino de gratidão e de alento.
Mais tarde, no século XIV, essa atitude “francescana” torna-se
mais leiga, mais complexa, mais totalitária e consequencial. É Dante
Alighieri pondo o homem diante de suas responsabilidades e julgando-o
“sub specie aeternitatis”; revelando, condenando, exaltando o que ele
aqui – na terra – como homem, como cidadão, como pai, como filho,
como inteligência e capacidade, deixou de fazer podendo fazer, ou fez
não o devendo. Dante é poeta do homem vivo e ativo, do seu destino,
responsável do seu destino e do conteúdo de sua vida terrena, que deve ser
marcado de amor, de atitude, de ação. Em Petrarca, essa atitude humana
torna-se ainda mais lírica e mais íntima, chegando mesmo ao tom de
uma confissão, de um desabafo de anseios, de desejos e de disposições
psicológicas que prescindem ou seriam dispostas a prescindir de qualquer
preocupação metafísica. É a vida por si, a glória, o amor, a beleza, a ternura
que brotam improvisamente no seu canto de homem melancolicamente
sensível e enlevado diante das possibilidades das sugestões e da plenitude
de uma existência nobre e vivida com intensidade e pureza. E Giovanni
Boccaccio é o narrador objetivo e sereno da existência. Não há já mais
nele a preocupação de um julgamento transcendente. Não há já mais a
presença de uma crise, a melancolia de uma dúvida, a perplexidade de um
dissídio. Ele é o cantor da vida em seu idealismo imanente: juventude,
amor, inteligência, amizade, compreensão, liberalidade. As novelas de
seu “Decameron” são a documentação lírica e a consagração secular
e multíciple de valores históricos e humanos, de razões e finalidades
pelas quais a vida é bela em si e por si, valendo a pena de vivê-la na sua
nobreza de sentimentos e de realizações.
Assim, é possível constatar – do século XIII em diante – a presença
de sentimentos, de motivos e de ideais que não são idênticos e que, cada
vez mais, revelam uma transformação espiritual, uma sensibilidade nova
e uma nova concepção da vida em “fieri”; enriquecendo-se, dia a dia, de
autor em autor, de obra em obra, exigências, de clareza e de convicção.
A educação vai perdendo a sua rigidez e a sua unilateralidade. A cultura
tende a abandonar o abstratismo e o dogmatismo. A religião e a ética
se abrem, tornando-se sensíveis a outros deveres e a outros valores. A
literatura sente e canta temas, motivos e aspectos novos do indivíduo e
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 375

do homem livre, independente, cônscio de si e de suas possibilidades.


Os gêneros literários multiplicam-se significativamente, criando a
historiografia, a epistolografia, a biografia, a dramática, a oratória, o
idílio, a alegoria, o poema. Também a música, a pintura, a escultura, a
arquitetura se renovam profundamente e procuram – no mundo clássico
e alhures – técnicas, sugestões e ousadias de perspectivas, de formas e
de cores que, daí em diante, serão capazes de produzir aquele milagre de
beleza e de perfeição que é o patrimônio artístico dos séculos XV, XVI e
XVII da Europa e da Itália, em particular.
Paralelamente, deslumbra-se – em toda sua riqueza e significação,
na sua objetividade e energia – o mundo pleno e orgânico da Grécia e de
Roma. Aquelas obras, aqueles pensadores, aqueles poetas tornar-se-ão
o modelo, o alvo e o elemento de uma competição, de um empenho, de
uma referência em quanto se procura igualar e superar, estabelecendo
os “cânones” de uma beleza nova e diferente, de uma forma própria
e particular, de uma perfeição subjetiva e original, ligada à própria
inspiração e à própria visão da vida e de seus problemas.
Diante do deslumbramento, surge a aventura como possibilidade
inesgotável de experiências, de heroísmo, de sugestões afastando a
tentação da mediocridade, tonificando o alento, colocando o espírito num
ritmo de elevado “platonismo” que leva o homem para os mares, para as
terras, para o desconhecido, fazendo com que tudo se torne descoberto
na ciência, na consciência, na análise, na crítica, na formulação da lei
e do princípio que explicam e dominam a fenomenicidade. Atrás e
dentro desse elance, o realismo e as exigências práticas do comércio,
da indústria, da política, da nação como potência e supremacia após os
universalismos da Idade Média. A “fortuna”, o “acaso”, o “fato” perdem
seu sentido e abandonam seus troncos desprestigiados.
O homem toma posse de seu mundo. O espírito e o universo,
a realidade e a idealidade compõem-se na unidade de um monômio,
feito de equilíbrio e de lucidez. E tudo se torna história do homem: a
história da sua inteligência, da sua ética, da sua aventura, do seu sonho,
do seu empreendimento. A história da sua atuação e de seu encanto
dentro e diante do espetáculo da natureza e da possibilidade do existir. A
impressão facilita e amplia a difusão da nova espiritualidade. A pólvora
inicia o drama da ambição e da imposição. A política define a sua
autonomia, pretendendo separar-se da ética em obediência aos direitos
da atividade econômica e utilitária. A jurisprudência recomeça o exame
da sociedade e da sociabilidade. O sentimento religioso mortifica-
-se sob o impacto exuberante e unilateral do primeiro entusiasmo.
Entretanto, uma ética de equilíbrio, de dignidade, de atuação, de
Bruno Enei
376 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

responsabilidade, de qualidade, de honestidade satisfaz e caracteriza


os espíritos melhores. Por outro lado, o apego à vida, à sua beleza
de luz e de oportunidades absolutas desperta formas generalizadas de
hedonismo e de epicurismo, em cujo seio aparecem frequentemente
o fastio e a desilusão: premissas sintomáticas da necessidade de uma
futura revisão, em sentido religioso, a qual caberá ao Romantismo,
promovendo-a e atuando-a após longa e difícil crise.
O Humanismo e a Renascença são a expressão cultural e
filosófica da transformação espiritual que se descortina ao longo dos
séculos XIII e XIV. Quando todo esse lento e constante movimento
espiritual adquire consciência de si, objetivando-se na convicção e
na fé inabalável sobre as autênticas possibilidades da razão humana
resolvida a tudo reorganizar dentro de um plano crítico e científico de
pesquisas e de realizações, surgem então o Humanismo e a Renascença:
o primeiro, como fase propedêutica de uma cultura e de uma erudição
cujo interesse são justamente o “homem” e as “humanae litterae”; o
segundo, como afirmação da nova espiritualidade, celebrando a sua
conquista na filosofia, nas artes, nas ciências naturais e jurídicas, na
matemática. O século XV é a idade do Humanismo. O século XVI é
a idade da Renascença; aquele significa a conclusão da Idade Média,
este o início da Idade Moderna.
O centro do movimento foi a Itália, ainda que algumas
tendências a particulares exigências surjam, posteriormente, como
longínqua consequência e já sob a influência de sucessivos estímulos,
como o naturalismo, o empirismo, o racionalismo e o iluminismo,
os quais todos assumem em caráter mais polêmico e drástico diante
da realidade social, religiosa, política e econômica dos séculos XVII
e XVIII, quando o triunfo da razão coincide com a sua derrota,
preparando – sentimentalmente – o caminho do Romantismo e o início
da Idade Contemporânea.
O movimento não foi uniforme e geral. Nem podia ter caráter
popular. São as grandes cidades da Itália, sedes antigas e tradicionais
de cultura e de ciência, que hospedaram os primeiros humanistas:
Firenze, Roma, Milano, Napoli, Bologna, Mantova, Urbino, Ferrara.
São as grandes e muníficas Cortes das recentes e potentes Senhorias que
amparam e promovem as artes e o pensamento: os Medici em Florença,
os Papas em Roma, os Visconti em Milão, os Aragonesi em Nápoles,
os Gonzaga em Mântua, os Della Rovere em Urbino, os Estensi em
Ferrari. Em poucas décadas, a Itália e a Europa se transformam em
uma imensa e sublime galeria de pinturas, de esculturas, de palácios,
de músicas, de poetas e prosadores que organizam bibliotecas, que
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 377

promovem recepções, que animam as discussões, os salões e as


academias.
A tentação de citar nomes e obras é apenas dominada pela
consideração de que serão a leitura e o estudo dos síngulos poetas e das
síngulas obras que poderão testemunhar e documentar as afirmações
emitidas e os conceitos de caráter geral de uma apresentação preliminar
e introdutiva, como a presente.
Resta dizer que não seria exata nem suficiente uma definição
do Humanismo e da Renascença que não considerasse a ampla e
importantíssima produção literária em língua latina. Bastaria, para isso,
ter presente que a determinação de usar a língua italiana nos tratados e,
em geral, nas obras de caráter mais propriamente filosófico e científico
surge na metade do século XV, quando o Humanismo floresce e atua
em plenitude de sua energia e de seus propósitos.
Pelo que se refere à produção literária em língua italiana, deve-
-se, desde já, advertir que – à parte as matizes e a peculiaridade dos
síngulos escritores – apresenta-se ela com uma fisionomia e tonalidade
que a distinguem terminantemente da Literatura da Idade Média. A
literatura italiana do Humanismo e da Renascença sente-se, em geral,
alheia às preocupações de caráter moral ou religioso ou político. Não é
essa a sua razão e o seu motivo. Não a gravidade e a perplexidade, mas
a disposição contemplativa da natureza e do homem e uma atitude pura
e ingênua movem a palavra, dando-lhe um ritmo sereno e risonho de
admiração, de gáudio, de solidariedade. As coisas aparecem em si, por
si, livres, como é livre a sensibilidade do artista. É como que um canto
de descoberta, de surpresa inesperada e improvisa: uma visão. A visão
de um mundo que não é mais antigo e rotineiro porque a “renascença”
do espírito lhe oferece uma primavera de distinções, de autonomias, de
essencialidades.

Le donne, i cavalieri, l’armi, gli amori,


le audaci imprese io canto.

Assim, coisas. Nada mais do que coisas; sem alegoria, sem


símbolo, sem metáfora, colhidas e vividas como notas de uma melodia,
como elementos de um ritmo, como sinais de uma unidade: a melodia, o
ritmo, a unidade da vida, da natureza, do ser e de seu devenir. Um mito
e uma fábula dentro dos quais os homens vivem o sonho de beleza, o
gosto de existir, a fixação de uma íntima esperança, a fantástica proteção
do idealismo e da ternura dos momentos de encantamento. Por isso, a
linguagem é sempre leve e diáfana, a frase breve e delicada, o ritmo
Bruno Enei
378 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

claro e gentil. Entretanto, nada há de místico ou de primitivo nesta


simplicidade. O idílio é uma aspiração. E porque é uma aspiração, a
consciência vígil do escritor transforma-o improvisa e frequentemente
em elegia. O idílio é a confissão e a configuração de um desejo, da
vontade de abandono entre as luzes e as sombras de uma natureza
remota e idealizada. E a elegia é o retorno em si, a consciência da
brevidade e da inconsistência do sonho sonhado. Assim, uma nota
de melancolia vela e dissimula a contemplação risonha. Parece que a
inteligência não seja tudo, que a cultura não resolve, que algo ausente
reclame a sua presença e a sua crença: um criador, um Deus, que
explique e justifique e ampare, assim como acontecera anteriormente
durante os quinze séculos de cristianismo que a cultura não poderia
mais destruir ou ignorar como religião e consolo.

Quant’è bella giovinezza,


che si fugge tuttavia!
Chi vuol esser lieto, sia
di doman non c’è certezza.

Assim se exprime Lorenzo de’ Medici: com o enlevo e o


desencanto de uma contemplação e de uma consciência.
E ao redor de Lodovico Ariosto – a expressão mais alta da lírica
nova – e ao redor de Niccolò Machiavelli – expressão mais realística
do novo pensamento – vive a plêiade numerosa e excelente dos artistas,
dos escritores, dos pensadores que o Humanismo e a Renascença deram
à Itália, colocando a sua literatura no plano altíssimo que ela soube
conservar durante os séculos XV e XVI.

(Jornal da Manhã, de Ponta Grossa, 11/8/1962)

Carta a Sigrid Renaux


Gentilíssima Da. Sigrid

Queira perdoar o atraso desta carta. Maria nem sempre sabe ser
clara e pontual em suas obrigações. Mas corro “ai ripari.”
Os versos de Dante que Eliot cita pertencem ao “Purgatório”,
canto XXI, vv. 133-139:
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 379

Ed ei surgendo: “Or puoi la quantitate


comprender dell’amor ch’a te mi scalda,
quand’io dismonto nostra vanitate,
trattando l’ombre come cosa salda.”
Erguendo-se ele: “Tanto me extasia
o amor – disse – em que por ti me acendo,
que da nossa vaidade me esquecia,
tratar sombras, quais corpos, pretendendo”.

Estamos no quinto “girone” do Purgatório: onde se purificam


os “avari e prodighi”. Entre eles Stazio (Publius Papinius, 50-26 p-C).
Stazio não é porém, como o seu companheiro de pena, papa Adriano
V0, um avarento. Pelo contrário, é um liberal. Pecou por prodigalidade.
Afinal, trata-se de poeta e não de um burócrate.
Os cantos desse quinto “girone” vão do XIX ao XXII. Muitas
coisas acontecem aí. Muitas personagens se movem. Mas, o que, sobretudo,
empolga e enternece é a atmosfera de recolhimento e de recordação que tudo
envolve e enaltece. Um mundo solitário de compreensão e humildade, de
arrependimento e de dignidade. Seres que parecem terem renascido, novos
e livres de quaisquer de nossas pequenas e comuns falhas de vaidade, de
bazófia, de superioridade, de autossuficiência. Meu Deus, meu Deus, como
é tudo muito estúpido no homem da terra! E como é difícil não ser assim! E
como agora a gente sente que seria tão bom se fosse diferente! E um senso
de gratidão a Deus domina os espíritos daquele lugar, enquanto continuam
ouvindo exemplos de pobreza exaltada, de generosidade premiada, de
avareza punida. Condenação do vício e louvor da virtude contrária. Assim
vão purificando-se. No meio de tudo isso, o estrondo de um terremoto.
É o sinal que uma alma acaba de purificar-se e recebe as energias para
subir. Trata-se justamente da alma de Stazio; do gentil, delicado, afetuoso,
lúcido, puríssimo Stazio.
Sem saber quem são aqueles peregrinos, explica e fala,
acompanhando Dante e Virgílio. E, a um certo momento, apresenta-se:

Stazio la gente ancor di là mi noma:


Cantai di Tebe...
(Purg. XXI, v. 91:102)

Só a Virgílio atribui, pois, o valor de sua poesia, a razão dele


ser o poeta que foi, que não esquece – embora purificado – de ter sido.
Por isso:
Bruno Enei
380 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

E per esser vivuto di là quando


visse Virgilio, assentirei un sole
più che non deggio al mio uscir di bando.

O belo é que Stazio não sabe que Virgílio está ali. Não sabe que
está falando com Dante e que Virgílio o está ouvindo! Na terra, quando a
gente está ausente... É tão difícil não ceder à tentação de insinuações...
Diante dessa situação, Dante sorri, comovido e extasiado. Dá
quase a impressão de não ser capaz de conter-se. Mas Virgílio autoriza-o
a falar. Então, no ímpeto característico de suas melhores páginas de
afeto, de generosidade e de entusiasmo, Dante revela a Stazio a presença
de Virgílio, de Virgílio, naturalmente, só espírito; desse Virgílio a quem
Dante também, na terra e no além, na poesia e na purificação, tanto
deve.
A revelação de Dante surpreende Stazio, despertando-lhe toda
a sensibilidade e delicadeza de ser humano e de poeta. Inclina-se para
frente, como que querendo abraçar os pés de Virgílio. Como se isso fosse
possível. Como justamente se faria na terra. Mas Virgílio nega-se:

... Frate,
Non far, chè tu se’ ombra e ombra vedi.

Então, Stazio se levanta e justifica o seu ato, revelando a sua


devoção e atribuindo-o à sua gratidão ao poeta de Eneas, ao “guia” de
inumeráveis gerações de jovens que na poesia de Virgílio encontraram
o estímulo, o exemplo e a confiança para tornarem-se poetas e para
acreditar nos valores do espírito. E isso acontece onde afinal não deveria
acontecer: no Purgatório, mundo onde os valores terrenos, por altos que
sejam, deveriam ser esquecidos. Não acontece na terra, onde deveria
ser natural e normal lembrar e exaltar, acima da mediocridade e da
banalidade, os valores e as idealidades da nossa vibração interior.
Aqueles versos, pois, lembrados por Eliot são a expressão de
um carinho profundo, de um apego absoluto que, em um momento de
euforia, já no além, chegam a fazer com que o devedor e admirador
esqueça a atual condição do puro espírito, usando uma forma que é
tão terrena e humana, tão gentil e delicada como se se tratasse ainda
de realidade corpórea e de substância física. Uma página, em suma, da
nossa mais delicada, da nossa mais ideal e inesquecível humanidade:
aquela humanidade que Dante sublima e santifica também no além,
onde a gente desse grande e eterno poeta se apresenta nas formas nobres
e dignas que deveríamos evidenciar na terra. Eliot, entretanto, é um
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 381

daqueles que não espera de morrer para ser melhor, para ser gentil,
idealista. Coloca Dante na terra e aqui procura de atuá-lo.
Sei que a Sra. não precisava de todas essas explicações. Mas
não soube conter-me. Quis, mais ou menos, recriar a situação, para que
mais evidente e íntima lhe se evidenciasse a delicadeza, a humanidade,
a cultura de Eliot. Foi ele lá, na Divina Comedia, procurar um dos
momentos mais sublimes da gratidão, da admiração e da ternura. A
gratidão em nome do espírito, da poesia, da idealidade; da manifestação
de um apego a quem nos deu a alegria e a nobreza das idealidades e dos
sentimentos eternos. Uma palavra de exaltação à poesia! Parece quase
irônico, minha gentil Senhora, parece quase irônico isso hoje, quando a
poesia é a criatura suspeita e a inteligência algo que, para se conservar
autêntica, precisa novamente procurar o silêncio, as catacumbas e
os... “botões”. Que linda lição nos dá Eliot, lembrando esse trecho de
Dante... justamente quando, como dizia Petrarca, “povera e nuda vai,
filosofia”!
Dante! Esse mundo de pensamentos e de emoções, essa fonte
irresistível de ternura e de nobreza, de aristocracia e de espiritualidade!
Sim, penso em Goethe, em Novalis e em Hoelderlin. Duplamente:
porque sei que a Sra. os aprecia e porque, como Catão, voltei na minha
velhice a estudar o alemão, com o pastor João Pedro Bruekheimer,
em um curso de extensão universitária que eu mesmo, como Diretor
do Departamento de Letras, organizei para despertar a mocidade e esta
nossa atmosfera de mediocridade e de gratuidade. Assim, nas IVas feiras,
sou aluno de alemão e, no sábado, professor de Língua e Literatura
Italiana: um outro Curso que também organizei. E vamos indo muito
bem. Temos 70 alunos no Curso de Alemão, 140 no de Italiano.
Aliás, tenho aula às 16,30. Por isso, despeço-me. Devo ainda
“neun Zätze bilden”. Leben sie wohl, pois, meine Dame Renaux; leben
Sie wohl. Daqui a pouco iremos cantar:

Alle Vögel sind schon da, alle Vögel…

Não posso, não devo ficar atrás de Maria, que estuda alemão
com afinco e com o propósito de superar-me.
Recomendações ao Dr. Renaux e a seus filhos.

Ponta Grossa, 22 de junho de 1966


Bruno Enei
382 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Impressões de um leitor contemporâneo119


Bruno Enei

O que, sem tergiversação, distingue e caracteriza a poesia


contemporânea face ao passado, ainda que na sua livre e imprescindível
peculiaridade, é a consciência lúcida e difusa do que ela deve ser, do que
ela não mais pode ser. E isso, naturalmente, não de improviso e nem em
um só tempo. Entretanto, após a inevitável fase de transição, nenhuma
saudade seria já concebível e nenhum retorno e concessão compreensíveis.
Há hoje efetivamente, no mundo da poesia, um passado e um presente
inconfundíveis. E não é a superioridade dos resultados, mas o próprio
ponto de saída, o próprio modo de conceber a arte que estabelece e exige
essa distinção. Como os rios, também a arte contemporânea teve que
abrir o seu caminho, escavando, sem adaptação e conformismo, o leito
por onde só poderia encontrar saída a plenitude de sua humana presença.
E o seu leito seria sua própria plenitude, a coerente consequência e a
válida testemunha dessa plenitude; incontível – como acontece – por
meios e recursos que não sejam os seus próprios.
Em obediência a esse seu austero e doloroso destino de albatroz,
teve o poeta contemporâneo, na infinita e legítima liberdade da sua
natureza criadora, de fazer “tabula rasa” em torno de si para poder,
então, trazer até nós, sem mais exegese e muleta, apenas a objetiva
indicação, a evidência lírica, o elemento concreto de contemplações,
de confirmações, de conclusões, de pressentimento, de ternura. Trata-
-se assim de um mundo que não se está descrevendo ou ornamentando
como se fosse preexistente e extrínseco (paisagens, acontecimentos,
instituições), mas, pelo contrário, de um mundo que se está construindo
e criando; imagem de uma inquietação, realidade de um anseio, símbolo
de uma emoção a serviço de si mesma. Assim, como a formulação de
uma lei científica descobre, fixa e revela o mistério do fenômeno que, até
então, ignorávamos; da mesma forma, o poeta hodierno descobre, fixa e
revela a visão subjetiva e humana da sua meditação e idealidade. É por
isso que o seu melhor acento evita o canto, se concebido como adição
e reforço. Na sua própria liricidade, faz-se objetivo, essencial, sutil
como um conceito; humilde e sublime como uma inelutável e religiosa
contribuição; ingênuo e emotivo como uma revelação.

119
Este texto incorpora várias correções que o professor Bruno fez nas margens da
página do jornal. O próprio título, “Impressões de um Leitor Contemporâneo”, saiu
errado no jornal, que omitiu a palavra “Contemporâneo”.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 383

Não se trata mais – é preciso insistir nisso – de uma “saborosa”


idealização, de um cativante “embelezamento”, de uma genial
restauração, que da habilidade eloquente e ornada do poeta era a única
coisa que cada um de nós estava acostumado, por um hábito de séculos,
a aguardar e exigir. Não é mais assim. A palavra não é vazia e neutra.
Idealmente, não existe no dicionário que a pode registrar. Acabou
de ser retórica e ornamento. A cor, a nota musical, a palavra hoje, na
verdade, existem somente, em termos de arte, no momento em que se
tornam e em quanto forem imagem, identificação lírica, representação
de um sentimento, idealidade. São “res” e não “flatus”: atitudes,
responsabilidade, conhecimento lírico e fantástico.
É esta natureza teorética e construtiva que se deve hoje sentir e
colher na poesia contemporânea. Ela não é mais lazer, não é mais prazer.
Tem a seriedade, a austeridade, a necessidade da síntese. É uma síntese,
embora na sua forma peculiar de lírica e de fantasia.
Essa poesia sai, e não por sua culpa, do nada. Ninguém pode
dizer de possuí-la. Nenhuma ideia abstrata, nenhum mito, nenhum
cálculo ou conveniência a absorve ou devora ou humilha ou intimida.
Cansada de frustrações; impaciente de todas e quaisquer concessões
hegelianas; possuída de imenso afeto por esta débil e delicada semente
humana, que em nós está ao léu e desamparada; preocupada com o que
– após as amargas experiências de ontem – poderá ainda vir a acontecer;
certa – como em Plotino e em Marsílio – do que de belo e de superior
seria possível; amargurada pelo que é e convicta do que poderia não ser;
a poesia contemporânea não renuncia, todavia, à esperança e à sugestão
e – a seu modo – procura iluminar, comover e estimular com a seriedade
e a beleza da sua presença e autenticidade.
É por isso que, cada vez mais, torna-se inconcebível e gratuita a
pretensão daqueles que se obstinam em procurar na poesia contemporânea
os ensinamentos e os vestígios do passado, surpresos e perplexos porque,
no lugar da rima e da métrica, dos tropos e dos gêneros, da sintaxe e
das regras encontram versos brancos, liberdade, analogias, obsessões,
pausas, contrações, valores fônicos e evocativos... Não por polêmicas,
evidentemente, mas porque a poesia está trabalhando, construindo e
criando – o que não poderia não acontecer – os meios inexistentes e
adequados para a sua realização expressiva.
Sem esse mínimo de considerações preliminares, não é possível
compreender a poesia contemporânea. Kafka, Sartre, Camus, Ungaretti,
Quasimodo, Montale; Rilke e o modernismo brasileiro, Guimarães
Rosa e Drummond de Andrade e o próprio Manuel Bandeira perderiam
inevitavelmente o sentido e o valor que possuem.
Bruno Enei
384 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Para a intelecção e a apreciação da poesia contemporânea,


seria já um bom começo lembrar-se das palavras de um crítico de
renome: “A poesia nos vinga de não sermos deus. Deus é conhecimento
imediato, universal, perfeito; a poesia é o esforço de avizinhar-se a este
conhecimento, com a amargura de nunca poder a ele chegar. É esta dor
que leva os poetas de hoje a escrever”.

(Diário dos Campos, de Ponta Grossa, 4/12/1966)

A dor da poesia contemporânea


Bruno Enei

É, pois, a dor que leva o poeta de hoje a escrever; isto é, não é uma
disposição literária mas uma atitude. Entretanto, não sobre ela escreve o
poeta, sobre ela em si ou dele – indivíduo; mas pela dor, pela sua essência
humana de inquietação, de indagação, de providência. E, logo, de alento.
Sim, de alento, porque se trata, direta ou indiretamente, de uma revelação
em que se faz um processo à razão (já iniciado, aliás, com Kierkegaard);
não se quer, todavia, negar que uma ordem humana não deve sempre e
legitimamente ser uma ordem de razão. O mundo – a nossa presença aqui,
sobretudo – tem que ter sempre a sua teleologia. E é porque a temos que a
poesia, na verdade, quer chamar à sua responsabilidade a razão: essa árida,
temerária, oportunística razão que – por ter, desde o século XV, podido
fácil e inevitavelmente atingir tantos e sucessivos triunfos – acredita certo
o seu rumo unilateral e acaba tornando-se eufórica, abstrata, arbitrária
ao ponto de abandonar o homem e de reduzi-lo a aparência, a função, a
quantidade para – então – pensar de poder dispor da história, como se a
história fosse a história dela e não dele, o homem; que é quem só explica
e pode explicar ambas: razão e história.
Um tempo – começa por Petrarca – a dor era frequentemente
um prazer: nobre cômodo, privilegiado pretexto de sonhos, saudades,
descrições. Acrescente-se ainda mais alguma coisa: erudição, casticismo,
imaginação. Pronto: de um modo geral, estava feito um poeta. Oh, então,
o encanto do idílio e da bucólica, quando os calmos poentes, as risonhas
auroras, os límpidos rios, os longínquos bosques, o céu azul serviam de
encosto ao devaneio!
Hoje, a poesia – a melhor e mais autêntica poesia – cada uma a seu
modo e dentro da exigência que a move, repele isso tudo, relegando-o,
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 385

ao máximo, ao romantismo, e, na verdade, nem ao melhor. Ela tornou-


-se íntima, pudica, êxil ao ponto que muitos – surdos ou interessados
– não a distinguem ou a acusam de pessimista ou de derrotista e até
de fácil e simples que qualquer um faria, antepondo-lhe assim a velha
retórica de um tempo e as grandes defesas e os alados panegíricos.
Entretanto, a sua austeridade, a sua transparência, a sua essencialidade
deve-as a poesia contemporânea ao sentimento da dor que a sustenta e
move; uma dor que é frustração e melancolia; angústia e anseio, temor e
esperança, constatação e sonho, tédio e empolgamento, estado de alma
ferido e atraído por uma perspectiva de humana “existencialidade” que
– removidos os obstáculos – seria possível e irresistível – aqui e agora
– como única e sublime salvação, como início novo de competição, de
diálogo, de espiritualidade descoberta na beira do abismo.
Assim, após o romantismo, a dor teve sempre mais claramente
duas funções fundamentais: tirar à literatura a sua origem “literária”
(que, na verdade, não lhe foi nunca própria) e dar ao poeta a consciência
e a validez de um dever, de uma responsabilidade, de um risco que –
sendo em nome da verdade – vale a pena enfrentar.
Sem a compreensão desse afeto íntimo do poeta pelo sujeito,
sem a admissão da legitimidade dessa solidariedade que repele o culto
da palavra em si e que o imerge na sua visão para que da clareza “lógica
e fantástica” se faça, fatalmente, o termo concreto que a revela, ninguém
pode sinceramente entender ou comover-se diante de uma página sequer
da arte contemporânea, sentindo-lhe o aperto, a delicadeza, a disposição
para o sorriso e a cordialidade.

(Diário dos Campos, de Ponta Grossa, 11/12/1966)

Breve introdução ao estudo da estética


Bruno Enei

O caminho de Platão a hoje, percorrido pela Ciência estética,


tem sido dos mais lentos.
Não obstante o fato de uma multíciple e quase interminável
bibliografia de caráter crítico e literário, que não seria difícil de alegar
como prova do interesse que a arte sempre mereceu, não se pode negar
que houve tropeços, desvios e incertezas de toda sorte no estudo do fato
artístico. Maximamente, no sentido doutrinário e especulativo, que é
Bruno Enei
386 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

o que interessa. A literatura, por assim dizer, estética não teve, desde
o início, a idoneidade para estabelecer princípios metodológicos, para
formular os limites e as peculiaridades do novo campo de indagação.
Não teve a consciência lúcida e firme que lhe permitisse individuar e
caracterizar a natureza particular dos novos problemas, das diferentes
exigências e objetivos. Um semelhante trabalho exigiria não somente um
conceito maduro e profundo do espírito, como também − e sobretudo − a
instância lógica da necessidade de uma distinção intrínseca ao processo
espiritual, sem o que não seria possível edificar a nova ciência. Ao lado
do momento lógico, econômico e ético do espírito, já, de certa forma,
individualizados e admitidos, precisava − como afirma Benedetto Croce
− reconhecer e postular a existência de um outro momento, igualmente
distinto e necessário: o momento fantástico. Condição do fenômeno
artístico. Com isto, seria clara a visão global do espírito, único e absoluto
responsável, na sua dialética e unidade, de toda a realidade humana na
sua identidade e distinção. A afirmação da autonomia e da distinção
no momento fantástico seria, pois, a imprescindível condição para o
nascimento efetivo e o sucessivo desenvolvimento de uma doutrina
estética. Ora, inicialmente, e durante muitos séculos, esta distinção
na vida do espírito não houve. E, ainda menos, poderia ser sentida e
satisfeita a outra e mais decisiva exigência de descobrir e reconhecer a
particular natureza da fantasia, como última e autônoma possibilidade
do espírito.
Daí o avanço demorado, incerto e inadequado, sobretudo até o
século XVI, dos estudos literários e críticos. Não há ainda, é a opinião
de Croce, uma ciência estética. É sobretudo a retórica que inspira aquela
produção, empenhada em leis, normas e modelos formais de beleza e de
perfeição, como objetivos únicos da obra de arte e, afinal, como única
exigência, também.
À parte os pormenores e detalhes, será sempre possível, assim,
compendiar em três pontos fundamentais todo o pensamento que o
Classicismo, a Idade Média e a Renascença nos consignaram em torno
do problema da arte: uma concepção rigorística, considerando-a deleite,
e, por isso mesmo, indigna da esfera nobre do espírito e da “República”;
uma concepção pedagógica, reabilitando-a, na sua função de agradar
e de educar; uma concepção formalística, elevando-a a um plano de
abstrata beleza e de olímpica finalidade. Em suma, a arte-hetera, a arte-
-instrumento, a arte-marfim. E nada mais, ou pouco mais e sempre em
termos de pressentimento, de isoladas intuições nesta ou naquela idade,
deste ou daquele escritor. Precisa, mais ou menos, chegar aos nossos dias
para que seja evidente a convicção profunda e consciente da particular
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 387

natureza da arte; da sua inconfundível essência que – como síntese lírica


independente de todos e de quaisquer patrocínios, garantindo-se por si
mesma, librada na absoluta validez da imagem. Ao lado daqueles três
pontos fundamentais do pensamento estético, podem ser citados nomes
e conceitos: Platão com a sua atitude de censura e, ao mesmo tempo,
de trepidação por essa inferior e irresistível “cópia da ideia”, que é arte;
Aristóteles, com o realismo de seu conceito de arte como mimese e
catarse; Plotino, dando à arte o sentido de um grau no itinerário da
ascese espiritual; Lucrécio, Quintiliano; Horácio, sobretudo, com aquele
seu típico binômio de cidadão romano exigindo da arte o equilíbrio de
beleza e de utilidade (“utile-dulci”); a Idade Média, com sua interpretação
alegórica da obra de arte (“sotto ’l velame delli versi strani”); Bembo,
Castelvetro, e na mesma linha, embora um pouco mais tarde – Boileau,
com o conjunto de regras, de preceitos, de modelos e de medidas que a
literatura ocidental conservaria, mais ou menos, até o Romantismo. É com
o século XVII que o pensamento estético, acelerando o passo, inaugura
uma nova e mais fecunda fase de sua gestação. E convém notar, não sem
agrado e complacência, que é sobretudo em nome dos elementos emotivos
e fantásticos do espírito, em nome da insatisfação e de um inconformismo
perante a rigidez e o formalismo particularmente da segunda metade do
século XVI, que os problemas e as conclusões da não ainda nascida Teoria
estética começam, daí por diante, a serem vividos e pensados com uma
intensidade singular, tomando, por isso mesmo, um rumo sempre mais
claro e mais certo. Pertencem justamente ao século XVII as interessantes
e fecundas indagações que, sobre a fantasia em relação ao intelecto, sobre
o gênio em relação ao gosto, sobre o sentimento e o raciocínio, a metáfora
e o símbolo, estão ligadas aos nomes de Baltazar Gracián, de Lope de
Vega, de Sforza-Pallavicino, de Bacon, de Dubos e de tantos outros, aos
quais devemos intuições e reflexões que decididamente hão de contribuir
a orientar e a encorajar atenção dos estudiosos no sentido de procurar em
outros campos e setores da vida espiritual a origem própria e única da
arte. E, em pleno racionalismo, no meio das incertezas e decaídas de um
Leibniz e de um Wolf, quanto não significa para o nascimento da Ciência
estética a posição alcançada por Giambattista Vico (1668-1744)! É, de
fato, Vico quem coloca a arte como momento apaixonado e emotivo da
dialética espiritual entre o senso que não intui (“senza avvertire”) e a
razão que reflete com pensamento puro (“riflette con mente pura”). Em
continuação, devem ser lembrados Baumgarten (1714-1762), o criador
do termo “estética” como Ciência da “sensação” artística, e Kant e
Hegel. Em plena idade romântica, merece ainda destaque a posição de
um Francesco de Sanctis (1817-1883). Deve-se a ele a definição da
Bruno Enei
388 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

arte como “forma”: síntese de sentimento e expressão, imagem que –


contra a afirmação hegeliana – é válida por si, sem limites de tempo, de
condições históricas ou da ameaça de civilizações de níveis superiores.
Fecundíssimo de intuições e de prosseguimentos foi todo o século XIX,
quer para o bem e quer para o mal da Estética. Filósofos, críticos, artistas
deram uma contribuição que constitui o material e a condição histórica
sobre os quais a Estética mais recente, e mesmo a contemporânea,
atua ainda as suas pesquisas e expe­riências. E, se não propriamente no
sentido de uma posição de não ime­recido privilégio e de admissível
superioridade, a título, ao menos, de conclusão e de chegada aos nossos
dias, devemos aqui – em seguida e como encerramento – fazer menção do
pensamento estético de Benedetto Croce (1866-1952), a quem se deve,
como reação ao positivismo e ao idea­lismo abstrato, uma meditação
estética constante e copiosa de meio século. Com este filósofo, a Teoria
estética chega a conclusões e a resultados que – como ponto de saída – não
é mais possível ignorar ou desconsi­derar. A sua identificação de intuição
e de expressão abre o campo a consensos e a dissensos que constituem
a história viva e presente da Ciência estética, já adulta e madura de
experiências e de meditações, que são fiadoras de novas e ulteriores
conquistas no sentido de uma sempre melhor, mais essencial e íntima
compreensão do fenômeno artístico. Atualmente, a Estética chegou à
condição de maturidade e de certeza crítica que lhe permite considerar
definitivos ou suscetíveis unicamente de desenvolvimento e de progresso
alguns resultados e algumas conclusões fundamentais. Assim, não é
mais possível, em sede de raciocínio e de lógica, recolocar em dúvida a
peculiar natureza da fantasia como momento artístico do espírito; não
é mais possível recolocar em dúvida a autonomia e teoreticidade da
intuição lírica; não é mais possível reco­locar em dúvida o valor da obra
de arte como imagem e síntese, a sua idealidade, a sua autêntica razão
de ser que a distingue e a dispensa da proteção e do amparo de todas e
quaisquer intervenções alheias, ainda que efetuadas sob a alegação deste
ou daquele conteúdo, desta ou daquela exigência do pensamento, de
ética, de economia e política. A arte é em si mesma, na infinita liberdade
de sua inspiração e realidade. Daqui, para frente; no sentido de continuar a
caracterização da arte, a sua emancipa­ção, a sua necessidade e razão. Ela
é o momento em que o espírito se con­centra na imagem, como síntese de
idealidade e de expressão. Negar as conquistas atuais, pô-las em dúvida,
tergiversar, significa voltar atrás, recair no cipoal anterior do empirismo
estético, da confusão lógica, do mau gosto.
Não é lícito voltar atrás. Mas não é concedido parar e não ir para
a frente, formulando os novos problemas e resolvendo as exigências que
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 389

a vida – a vida do espírito, naturalmente – não renuncia nunca a propor


e a confiar à nossa meditação e ao nosso carinho.
Assim, a título mais de sugestão do que de outra coisa, eis aqui,
agora, em termos apenas de aceno e de alusão, algumas questões e
aspec­tos da estética sobre os quais reputo interessante chamar a atenção,
sobretudo dos estudantes do Curso de Letras de nossas Faculdades.
Ca­ber-lhes-á, em um futuro muito próximo, cuidar da formação e
da educação dos jovens. Uma orientação clara e correta da Teoria da
Literatura e da arte é, nesse sentido, um dos recursos mais eficientes
e fecundos, justa­mente porque promove a leitura, estimula a crítica,
favorece o contacto com a humanidade e a história.

O lugar da arte na vida do espírito


Embora com o objetivo de filosoficamente garantir-lhe a distinção
e a autonomia, não se pode dizer que seja próprio e adequado o lugar
geralmente reservado, na vida do espírito, à faculdade responsável
pela atividade artística. A concepção da fantasia colocada ali, logo no
início do espírito, em uma atitude de precedência, como condição de
sua ingenuidade, não pode convencer. Dá a impressão de não ter ainda
penetrado na intimidade do lar comum. Já na órbita espiritual, parece
ficar à margem, isolando-se em uma esplên­dida atitude de castidade e
de beleza que não pode ser tudo. Uma aérea aparição no vestíbulo de
um mundo, um início, um sonho, a “aurora” do dia humano, somente
daí por diante operoso e verdadeiramente constru­tivo: é, deve mesmo
ser só isso a arte? Não. Cabe à fantasia tarefa mais essencial e íntima.
Ela é a feição inspirada, a forma inconfundível em que se transfigura
e concentra o espírito sempre e toda vez que – ­acima e como reação à
precariedade e deficiência de uma situação e de um “estado” interno ou
externo, psicológico ou histórico, a essência vi­brátil e anelante do homem,
o induz a levantar-se sobre a realidade, em uma atitude de insatisfação,
de pressentimento, de contemplação. Direta ou indiretamente, a fantasia
– por conseguinte, a arte – é sempre de­núncia e superação. Não fuga ou
evasão, mas indicação lírica, canto da idealidade ou em contraposição à
realidade. Estado de alma como consequência e em oposição a um estado
real, em senso o mais lato. Não conheço arte estática e realística. É uma
ilusão. Sem a melancolia de uma ausência e sem o empolgamento de uma
contemplação a arte não pode nunca atingir o seu mais alto destino de
imagem e de forma. O que falta, o de que carece, o que não está e parece
além, o que deveria ser, o que pode até ter sido e que, entretanto, não é:
é isso justamente que a fantasia cabe intuir e exprimir. É esse o mundo
cuja imagem a fantasia determina e apresenta. Não é gratuita. Juntamente
Bruno Enei
390 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

com conforto, traz o estímulo e o enlevo da idealidade. Não, note-se


bem, idealização, mas idealidade. A fantasia não embeleza o que existe,
procura superá-lo. Ela sabe que a realidade, toda e qualquer realidade,
pelo simples fato de sê-lo, é sempre precariedade e inadequação. Sabe
que a realidade, por isso mesmo, acabará por tornar-se impedimento,
tédio, angústia. Sabe que, apesar das aparências, o homem é mais Dom
Quixote do que Sancho. Sabe que o drama humano é esse fazer e desfazer
contínuo, onde o ideal nasce não antes, mas após o real, do real, assim
como para Dante nasce:

.......... , a guisa di rampollo


a piè del vero il dubbio
(“em forma de broto ao pé da verdade a dúvida”)

Se, pois convém mesmo, na vida do espírito, estabelecer para


a fantasia um lugar determinado, será este não o vestibular idílico e
desinteressado do mundo humano, mas antes a última e decisiva força
a quem – após os acontecimentos – possa fazer e faz apelamento o
espírito para sonhar e ver, nos termos de expressão, a beleza sugestiva
e ideal daquilo que à realidade falta. Não, pois, pelo fato que a fantasia
precede, mas porque se adianta, não porque esteja na frente mas porque
se antecipa. A ingenuidade da fantasia não é privilégio mas conquista, não
é ignorância mas encantamento perante o que vê. No processo espiritual
a arte é sem­pre a eterna e inconfundível portadora de uma imagem. E
essa imagem não é senão a superação fantástica do que é, a antecipação
lírica do que deveria ser.

Intuição e expressão
Evidentemente, a arte é intuição. Esse termo embora discutido,
não deixa de definir, com bastante clareza e propriedade, a essência
teorética e ideal do fenômeno artístico. Entretanto, a identificação se tem
prestado a equívocos e a tergiversações.
Não é, propriamente, o risco latente de um retorno inoportuno
ao velho e sempre insuficiente dualismo de conteúdo e de forma, aquilo
que, neste momento, preocupa. Nem é a tão comum e sintomática
atitude de comprazimento e de verbosidade perante determinadas e
não desinteressadas “expressões”, próprias de outras idades e ligadas
a temas hoje em dia pacíficos, de fácil compreensão e talvez, por isso
mesmo, motivo de “saboroso” deleite. O que, na verdade, é inadmissível
é o empobrecimento gratuito de elemento fundamental e decisivo da
síntese artística – a intuição – em vantagem do outro – a expressão – e o
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 391

consequente deslize e a unilateral valorização do fato expressivo como


se ele independesse do fato intuitivo. A expressão, por si só, não pode
acabar por ser tudo. Ainda mais se por simples tabela, como acaba, enfim,
por acontecer, aí mesmo, onde tanta supremacia se lhe dá. Claro que, sem
expressão, não há intuição. A identificação vale; mas é justamente por­que
vale que, a meu ver é a expressão que para ser tal tem que ser nada mais do
que a própria intuição. É sempre a intuição que deve aparecer e manifestar-
-se, que não deixará de aparecer e de manifestar – se for efetivamente
intuição. Dizer que a expressão deve coincidir com a intuição significa
deixar ainda uma remota possibilidade para a suposição da exis­tência
material e separada de dois elementos, a intuição e a expressão, que – em
sede teorética – não é admissível, se é verdade que a arte não é adequação
e equacionamento, mas propriamente intuição e visão. Nada mais. É a
intuição que se cria e se faz a sua própria expressão. A ex­pressão tem de
ser a própria intuição. Não veste ornamento, mas a in­tuição. Se não o for,
toda vez que não o for, quer dizer que a responsabilidade da impressão de
dissonância, de mentira, de oportunismo, de concessão, de insuficiência
que a produção pseudoartística costuma despertar tem que cair, e cai,
sobre a intuição. Por um motivo ou por outro, é, nesses casos, a intuição
que falhou, deixando de ser intuição. É a in­tuição que é síntese, imanente
a si mesma, dentro de seu próprio pro­cesso interno, no momento em que
se analisa e tem a consciência de si que procura, de intrínseca e ideal,
tornar-se extrínseca e real. Também a intuição é todo o espírito de um
determinado momento e por uma de­terminada exigência. E a expressão
é essa sua presença inteira e su­blime. Nós distinguimos esta ou aquela
forma artística, uma escola, uma época. Isso, entretanto, deve acontecer,
e é legítimo que acontece, somen­te porque estamos ou deveríamos estar
distinguindo esta ou aquela intuição de um artista, de uma escola, de uma
época. É muito justo que apreciemos a expressão, mas unicamente porque
é a própria intuição. Assim, dizer que em um escritor pode haver “falsidade
de expressão”, e, ao mesmo tempo, “sinceridade de efusão” é um enorme
contrassenso. Falsa, nesse caso, não é a expressão, mas evidentemente,
a efusão. Flau­bert, que chegou a dizer que “de la forme naît l’idée”, teve
uma desmenti­da recente quando Lukács, com o único intuito de defender
e de dignifi­car a expressão, teve a oportunidade de afirmar que “toda
forma estéti­ca é a forma de um conteúdo determinado”.
Isto que aqui, a este respeito, se quis dizer, outro motivo não tem
se não o de convidar o leitor e o crítico a uma maior, mais aberta e compre­
ensiva atenção do fato intuitivo que, realizando-se em sua expressão, traz
consigo toda a intensidade ideal e subjetiva de um artista, de uma idade,
de uma exigência humana. De modo que, se um sentimento de ternura
Bruno Enei
392 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

e de contentamento prende-nos e acompanha-nos na presença e no con­


tacto com a obra de arte, deverá ser “intimizado” e dignificado por ser
especialmente atribuído e outorgado não propriamente à expressão mas à
intuição, como a única força espiritual a que de direito aquele senti­mento
cabe e pertence.

Teoreticidade e idealidade da arte


A arte é por essência, ativi­dade teorética e ideal: teorética porque
contemplativa e, a seu modo, cognoscitiva; ideal porque imagem de
um estado de alma. São essas as razões, para mim, de delicada e íntima
impressão de improviso, de solitá­rio, de superior, que em sua tácita
objetividade, caracteriza a arte e que ela sempre desperta e promana em
torno da página, do quadro, do ritmo. É o momento em que o espírito se
afasta, insatisfeito e anelante, da rea­lidade empírica para denunciá-la e
superá-la na luz de um sonho, de uma visão, de um enlevo. É o mundo
das aspirações que se vão concentrando e tornando realidade e imagem.
É a tristeza que condena e acusa não só as insuficiências como também a
precariedade e não quer, apesar de tudo, desesperar; é a solidão procurando
solidariedade e diálogo; é o entusiasmo arrancando da humanidade, onde
se agita, a existência e a realidade de valores, de “divinidades”, de razões
de encantamento e de estímulo. E a imagem é tudo; crença e testemunho,
evidência e descoberta: “substantia rerum sperandarum et argumentum
rerum parventium”. Não conceitos, porque a esta altura o espírito não
procura definições; não utilidades que a poesia ignora como tais; não
mesmo normas e costumes de ética, que só, logo após, poderão achar
motivo de renovação e de adesão. Agora, é o “a solo” de um estado de
alma, da idealidade, da contemplação: “io nel pensier mi fingo” (eu no
pensamento me represento, como dizia Leopardi). Conhecimento, sim,
evidência, revelação constatando e preanunciando. Mas não na forma
de uma pedagogia e de uma polêmica e sim na forma de uma imagem:
presença lírica da idealidade. E essa idealidade é mais a indefinida,
embora viva e precisa sugestão de uma esperança e de uma aspiração
do que a mensagem exata e racional de um programa e de uma solução
para sempre. A poesia nasce e renasce sempre: “debemur morti nos
nostraque”. E se, pois, é sobre o passado ou sobre o presente íntimo
ou externo que ela surge como procura de outrem o seu amanhã está
aberto a fim de que livres sejam os artesãos de coisas e acontecimentos
para as suas construções e novas afirmações de humanidade e de paz,
de compreensão, de edificação e de espirituali­dade. Um mundo de
subjetividade e de universalidade. É a poética e a poesia de um homem,
a mensagem e a transfiguração do “vidente”, a palavra e a essência de
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 393

um “dever ser”, de um “paradiso” como aspiração e pathos:


“Et j’ai vu quelquefois ce que l’homme a cru voir.” É essa a
bela, lúcida, construtiva, superior luta do poeta: homem e soldado. Preso
a uma convicção, “le front plein d’éminences”, despe e constrói, entre­
gando ao canto a sua contribuição, à imagem e ao ritmo, com a certeza
de estar assim agindo, com a convicção de que será para sempre claro
e válido o mundo lírico que a realidade de ontem lhe inspirou, que a
realidade de hoje deve exigir. É o espírito, todo o espírito concentrado
ali, como no seu último recurso, na sua última instância. Precisa liber­
tar-se, sei que é difícil libertar-se da incorrigível procura de hedonismo
a qualquer custo e de qualquer modo, da morbidez que corrompe tudo
e tudo transforma em utilidade e defesa. A poesia, antes de ser catarse,
como queria Aristóteles, porque purifica, é, a priori, purificação e magna­
nimidade, porque teoreticidade e idealidade, salto fora do real, despren­
dimento em nome de uma ternura e de um empolgamento. É por isso
que ela é participação, posição na vida, onde só pode haver motivo para
o canto do poeta. A poesia que não é lazer, mas empenho; que não é
gratuidade, mas necessidade; que não é capricho e técnica, mas desco­
berta e atitude, sensível a tudo o que a vida deve significar, como apego,
nobreza, lealdade, solidariedade, beleza, convívio:

“C’est la Rédemption! C’est l’amour! C’est l’amour!”

Li, em um escritor contemporâneo, este conceito: “A poesia


vinga­-nos de não sermos deus. Deus é conhecimento imediato, universal,
perfeito. A poesia é o esforço de aproximar-se a esse conhecimento
divino, com a amargura de nunca poder atingi-lo. É essa amargura que
leva os poetas a escrever”. E é de Cassiano Ricardo esta significativa
intuição da arte, colocada “nessa dolorosa viagem entre a consciência
e o mito”. Parece-me supérfluo, após essas citações, tecer aqui outras
e ulteriores reflexões sobre a essência teorética e ideal da arte, como
vigilante, eterno destino.

A arte e a crítica
A idealidade não é abstração. Ela tem a sua realidade. E é
justamente por isso que a arte é forma concreta e real. É a realidade
intuitiva e lírica da idealidade. A palavra do poeta não é o simples
vocábulo, assim como a tela não é a exposta tinta da loja e o ritmo a
nota do alfabeto musical. A imagem é sempre a realidade de um estado
de alma, que conhece sentimento; é a sua “paisagem”, como tam­bém foi
definida. Não é, pois, um acréscimo, uma soma. É a inspiração do artista
Bruno Enei
394 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

que cria e decide do modo e da forma da aparição e da pre­sença do seu


fantasma poético. Não é arbítrio. Assim como não é fácil. O tempo em
que se falava em espontaneidade e facilidade de expressão está longe. Na
verdade, não existiu nunca. E quando a leveza e transparência aparecem
como “forma” deve-se isso a conquista. E a prova mais insuspeita do
trabalho e da atenção do poeta está nas “correções” que ele pratica
em seus textos e que seria de suma importância que o crítico sempre
pudesse consultar e conhecer. Assim, se a delicada sen­sibilidade de
um Manoel Bandeira e de outros tão bem sabe sublimar e valorizar os
refazimentos da poesia brasileira, outros críticos e estu­diosos sabem o
preço de uma imagem de Ariosto ou de Leopardi, de Goethe ou de Rilke,
de Beethoven e de Van Gogh. Leonardo, que costumava a si mesmo dizer
“Sine lassitudine”, é lembrado pela impaciente e grave resposta com que
um dia rebateu as insinuações do superior do “Convento delle Grazie”.
Dizia: “Muitas vezes os grandes talentos, justamente quando menos
trabalham, é que mais criam e acertam.” Per­feitamente de acordo, pois,
com o poeta romano: “Mediocribus esse poetis non dii, non homines, non
concessere columnae.” Mas, qual seria mesmo a razão dessa reprovação
da mediocridade artística? A idealidade exige a sua realidade. Sem essa
condição, não é. Não é porque não é um fato naturalístico, mas humano. Ela
deve aparecer, ser, ser viva e presente na sua inconfundível subjetividade
e razão. E isso requer, evidentemente, preparação, cultura, sensibilidade,
auscultação de parte do artista. Miguel Ângelo, na sua infinita bondade
e humildade, atribuía a forma já ao próprio mármore. A figura estaria ali,
oculta e feita. Ao artista cabia o trabalho paciente e cuidadoso do artesão
que afasta o in­vólucro e o revestimento. A ilusão, repleta, além do mais,
de um pro­fundo senso de religiosidade, é muito instrutiva. O invólucro e
o reves­timento, entretanto, que escondem e velam as imagens dos poetas,
são, na verdade, do próprio artista, do homem. São as falhas do artista-
-ho­mem, os seus limites e a sua incoerência, não sempre e não somente
de caráter formal; as falhas, os limites e as incoerências que, antes de
serem de caráter estético, eram de caráter humano e moral. A intuição
con­tinua estando oculta, incerta, irrealizada porque não é ela mesmo,
em todo o seu esplendor, na sua necessidade e autenticidade. É então,
a in­tuição que não havia razão de ser, repetição, ambiguidade, ausência
de teoreticidade e de idealidade, superfluidade. Aparência e não arte.
É, muitas vezes, a intuição traída e tergiversada, sufocada nos ambages
do farisaísmo de todas as espécies, da retórica, da pusilanimidade, da
concessão. Entre as suas outras tarefas, cabe à crítica esse trabalho de
exame e de garantia, de autenticidade, como já foi feito, no início do
humanismo, quando a crítica era exigência do texto. Aqui, não se tratará
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 395

de um trabalho de filologia, mas de certeza e convicção, de prova e de


revelação da autenticidade da intuição, declarando-se que ela está mes­mo,
toda e só na página do artista, na sua nudez, que é, também, a sua absoluta
realidade. À crítica cabe a responsabilidade de descobrir na intuição os
defeitos e as deficiências da expressão, como defeitos e defi­ciências da
intuição. E não será a obscuridade, nunca gratuita, não será a heterodoxia
ou transgressão, sempre aparentes, que hão de poder barrar o caminho
da crítica. Ela deverá acabar constatando que aquela obscuridade nada
mais é do que a peregrinidade e novidade de uma presença rara, como
é sempre a verdadeira arte; que aquela heterodoxia e transgressão nada
mais são do que uma mais necessária, essencial autenticidade.
Chegado ao fim deste trabalho – esboço de aulas de Teoria da
Literatura, e, agora, colaboração ao primeiro número da Revista da
Faculdade a quem devo a alegria e a melancolia da vida do magistério,
não sei fugir à tentação (que é, também, um modo de homenagem e
gratidão), de citar as palavras com que Benedetto Croce houve por
bem um dia estimular os jovens da Universidade de Houston, no Texas,
dedicando-lhes o “Breviário de Estética” por ocasião da fundação
daquela Faculdade. No prefácio, aquele filósofo dizia: “A Estética,
melhor que qualquer disciplina filosófica, serve como introdução ao
ensino da filosofia, não havendo outra matéria que desperte tão depressa
o interesse e a reflexão dos jovens, como a arte e a poesia.”
Dando-nos a visão da idealidade, o ritmo e a imagem ao que
de mais íntimo e delicado vibra em nós, a Estética dá-nos também a
nobreza, a esperança, o estímulo, o dever de sermos e de virmos a ser
como seres espirituais e humanos. A arte é aquele sublime “áporo” de
Carlos Drummond:

Eis que o labirinto


(oh razão, mistério)
presto se desata:
em verde, sozinha,
antieuclideana,
uma orquídea forma-se .

E a “orquídea” será a poesia que se “revela”, e é também uma


humanidade mais humana e espiritual que a poesia tem a finalidade de
promover e indicar.

(Revista Minerva – Anuário da Faculdade Estadual de Filosofia,Ciências e


Letras de Ponta Grossa, n. 1, 1967, p. 20-27)
Bruno Enei
396 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Duas notas sobre estética


Bruno Enei

A Estética nos séculos XV e XVI

Com os séculos XV e XVI entramos na Idade Moderna.


O Humanismo no século XV e a Renascença no século XVI
significaram a superação da Idade Média e uma nova visão da realidade e
dos problemas da vida, baseada numa concepção mais profunda e positiva
do homem e de suas possibilidades criadoras. Muitos preconceitos de
caráter ético-filosófico, muitos princípios e dogmas perdem a própria
validez perante uma crítica e uma cultura severa e objetiva. Sobre­tudo,
uma confiança sem limites na capacidade do homem e a afirmação de
sua auto­nomia e do valor absoluto de sua imanência e de sua atuação
terrena abrem um cré­dito insólito à sua espiritualidade, colocando-a ao
centro da nossa história e da nossa responsabilidade. Tudo se modifica,
tudo se transforma, tudo se renova sob um estí­mulo de esperança e de
confiança que parecem um desabafo generoso e constante após uma
longa mortificação, finalmente superada. As ciências, as matemáticas,
a Fi­losofia, a Física e a Política estabelecem, cada uma, as regras e o
campo de suas pes­quisas e conquistas. Enquanto isso, a arte (a pintura, a
escultura, a arquitetura, a lite­ratura e a música) transforma a Europa em
um mundo incomparável de beleza e de milagre.
Contudo, no campo da Estética propriamente dita, também nos
séculos XV e XVI as novidades são bem poucas. Não há terreno para
isso. Sim, a realidade é criação do nosso espírito e tudo o que acontece
é a sua fenomenologia; mas a natureza autônoma e fantástica da arte
é um problema que ainda não surge e não pode surgir. Continuam
as antigas ideias. Repetem-se as velhas afirmações. Aceitam-se as
posições e conclusões da investigação greco-latina e da Idade Média. De
propriamente no­vo não há senão um esforço geral de aperfeiçoamento
e de sistematização no sentido retórico e formal. Estabelecer as
regras, definir os princípios, indicar os gêneros, fa­zer classificações,
propor modelos, distinguir dialetos e línguas, sugerir ou condenar
instrumentos de expressão numa hierarquia rígida e inflexível, isso
tudo foi objeto de estudo e de pesquisa, cuja seriedade é documentada
pelos numerosos e alentados tra­tados de Retórica, de Gramática, de
Oratória, de Eloquência e de Estilística desses dois séculos. Na Itália e
no estrangeiro, são inúmeros os escritores e as obras nesse sentido. Mas
o problema da arte fica em superfície. Não é resolvido. Não poderia ser
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 397

resolvido, posto, como era, em termos de formalismo e de expressão


como aparência e revestimento de algo. O meio expressivo em arte
não pode ser meio e objeto de in­vestigação, independentemente de
sua causa sentimental e de sua origem emotiva e fantástica. A arte é
síntese, síntese de forma e de conteúdo, de sentimento e de ex­pressão.
Por si só, falar em expressão não tem sentido. A Estética dos séculos
XV e XVI não sentiu o fenômeno artístico como criação, como lírica,
como síntese; por isso ficou, em geral, nas posições anteriores. Não
progrediu substancialmente, embora aqui e acolá, neste ou naquele
particular, e sobretudo na imitação, haja atitudes e con­clusões que
deixam adivinhar dúvidas, pressentimentos e insatisfações dignos de
considerações para o futuro da Ciência estética.
Mas, até o século XVIII, uma ciência que se interessa pela arte,
na sua natureza fantástica e autônoma, não existe. Da Grécia ao século
XVIII as afirmações não divergem substancialmente. Os problemas
são os mesmos e as mesmas soluções. A arte não é nem conteúdo nem
forma, nem ideia nem instrumento. Não é um ou ou­tro elemento. É
síntese, criação fantástica de uma realidade que não é sem ser, ao mesmo
tempo, sentimento e expressão. Ora, estudando a Estética, da origem do
pensamento ocidental na Grécia do século V a.C. até o século XVIII,
o que se observa é justamente sempre a mesma posição. Os gregos, os
latinos e a Idade Média parecem insistir mais sobre o conteúdo da obra de
arte, e o Humanismo e a Renascença pare­cem insistir mais sobre a forma
da obra de arte. Mas o resultado é o mesmo. Procu­rando os primeiros
uma razão pedagógica que justifique a obra de arte e estabelecen­do os
outros as regras e os princípios de uma perfeição exterior e formal, é que
reve­lam ambos, justamente por isso, uma incompreensão da obra de arte
que explica o motivo pelo qual a Estética, como ciência do belo, tardaria
ainda a nascer.
Aqui também, após estas breves mas necessárias explicações,
inútil se tornaria citar textos e conceitos da Estética dos séculos XV e
XVI. Contudo, a título de exemplo e como elemento de ilustração, eis
algumas definições.
1. A teoria mística de Plotino viu o seu prestígio aumentado
em um cli­ma de extraordinário fervor platônico. Marsilio Ficino, Pico
della Mirandola, Leon Battista Alberti, no século XV, Pietro Bembo,
Baldassare Castiglione e outros no século XVI escreveram longos
tratados sobre o belo e o amor, sobre o belo e Deus. E, sob os estímulos
dos escritores italianos, o mesmo fizeram os pensadores da Fran­ça, da
Alemanha, da Espanha e da Europa;
2. A teoria pedagógica da obra de arte vigorou plenamente
Bruno Enei
398 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

na Itália e na Europa, sendo seus defensores poetas e escritores como


Campanella e Tasso, Tassoni e Scaligero, Le Bossu e La Menardière;
3. A teoria didascálica era tão em apreço que, como foi observado,
aquela idade não considerou o gênero didascálico justamente porque
toda a poesia se­ria didascálica;
4. Até os grandes e sumos artistas afirmam conceitos de
objetividade, de perfeição, com modelos e medidas inaceitáveis hoje.

A História da Estética e a contribuição de


Giambattista Vico (1668-1744)
É a história da obra de arte que ficou ignorada durante longos
séculos. Da antiguidade clássica até a Idade Média e a Renascença, não
são a origem, a causa e a função do fenômeno artístico que constituem o
objeto da pesquisa. Após Platão e a sua condenação, o problema estético
sofreu uma grave pausa. E o que prende unica­mente a atenção é uma
procura de transação e de justificação que, apesar de tudo, aceitem a obra
de arte e façam com que haja uma reconciliação, reconhecendo para ela
uma existência subordinada de transmissão e de edificação em nome
da Filosofia, da Moral, da Utilidade. Daí, o binômio utile – dulci que
explicou a obra de arte até o século XVIII.
A Antiguidade não conseguiu ver profundamente a essência
do espírito. Não soube colher-lhe a sua natureza unitária e dialética,
constituída de momentos ideais entre si, distintos e autônomos e todos
igualmente válidos e eternos.
Já o dissemos outra vez: a Antiguidade clássica, e com ela a
Idade Média e a Renascença, não souberam ver entre a sensibilidade e a
inteligência uma outra forma soberana e independente de conhecimento.
A imaginação e a fantasia não são faculdades e momentos do espírito.
Simples graus intermediários, nada mais são do que um mais ou menos,
uma função provisória e contingente, um recurso e um expe­diente, e não
uma categoria e uma essência.
Assim, a obra de arte se tornou objeto da Filosofia, de uma
filosofia que era conhecimento, análise, definição do espírito e de sua
atividade. Foram a Eloquên­cia, a Gramática, a Retórica e a Estilística
que se apossaram da obra de arte, estudan­do-a em uma perspectiva
exterior e superficial de formalismos, de regras, de leis, de preceitos e de
gêneros que, não se interessando nunca pelo aspecto decisivo e essen­cial
(a sua natureza teorética e autônoma), fizeram com que o problema da
arte fi­casse sem uma solução satisfatória e lógica até o século XVIII.
No século XVIII encontramos Giambattista Vico (1668-1744).
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 399

A sua posição diante da obra de arte constitui-se em uma autêntica


reve­lação. É o início de uma nova definição do espírito e de uma nova
compreensão do fenômeno artístico. Não é ainda Vico o verdadeiro
fundador da Estética como ciência e teoria da intuição artística, mas
é a ele que se deve a descoberta da Fantasia, como de um momento
do espírito, de uma forma particular e autônoma, a quem fica ligada a
criação da obra de arte.
Em uma dúplice polêmica que – em oposição à Estética clássica
– coloca a arte acima dos formalismos apriorísticos, e que – em oposição
ao racionalismo car­tesiano – descobre a mais complexa e profunda
natureza de nossa espiritualidade, Giambattista Vico é o primeiro a
decididamente afirmar que entre o senso e o inte­lecto, no homem, há
uma outra faculdade: a faculdade fantástica que transforma e su­blima e
transfigura e realiza, em termos de expressão, os nossos sentimentos e
as nossas paixões.
Gli uomini prima sentono senza avvertire; poi avvertono con
animo per­turbato e commosso; quindi riflettono con mente pura. É esta
a dignità, a afirmação fundamental da Ciência Nova de Vico. Nasce
assim a filosofia do espírito. E a sua primeira afirmação é que o espírito é
sucessivamente senso, fantasia e filosofia; senso da infância, fantasia da
mocidade, filosofia da velhice do homem. É através dessas três etapas que
se processa a nossa biografia ideal. É através desses três momentos que
se realiza a nossa história humana. É a essas três diferentes faculdades
espirituais que se deve a nossa atuação individual. E, como as nações
nada mais são do que famí­lias e composições de indivíduos, também
na vida, na biografia, na história e na atua­ção das nações há três fases,
três épocas, três momentos: a fase do senso (idade dos deuses), a fase da
fantasia (idade dos heróis), a fase da filosofia (idade da civilização).
O homem de Vico é isso. E a sua atuação explica-se assim.
Sobe e desce. Desce e sobe em um descendo e crescendo quase
mecânico e analógico. É este o ponto fraco da filosofia de Vico, do
fundador do historicismo. E é, de fato, essa sua teoria dos cursos e
recursos históricos que revela os limites da descoberta. A distinção
­entre senso, fantasia e razão é ideal e não material, é dialética e não
cronológica, é contemporânea e não sucessiva, de modo que o senso
não cede lugar à fantasia, a fantasia, desaparecendo, não se destrói com
a presença da razão, mas uma categoria vive sempre ao lado da outra,
sendo sempre cada uma distinta e autônoma dentro de uma realidade
que é sempre uma e toda. Vico parece não ter sabido intuir claramente
o processo espiritual em sua passagem de uma forma a outra, como
diferença essen­cialmente qualitativa e não quantitativa. Mas o passo
Bruno Enei
400 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

para diante representado por seu pensamento é decisivo. Vico aponta


uma faculdade nova, descobre uma causa ignora­da, individua um
momento essencial da vida de espírito. Doravante, não haverá mais
motivos lógicos para condenar a obra de arte como hedonismo ou
para admiti-la ex­clusivamente porque é intermediária e subordinada a
algo que lhe empresta autoridade e dignidade. Vico redime a arte e lhe
reconhece toda a autonomia e significância. Após a condenação severa
de Platão, é este o grande e primeiro reconhecimento da beleza, do
valor, da autonomia, da teoreticidade da obra de arte.
Platão condena-a porque nascia como testemunha da parte
baixa e sexual de nossa espiritualidade. Vico exalta-a e sublima-a
justamente porque é a ela, à arte – consequência fantástica do espírito
– que cabe apresentar, em termos de expressão e de imagem, as nossas
paixões, as nossas emoções, os nossos sentimentos. A arte ­– forma
teorética e autônoma do espírito, intuição lírica e visão – redime assim
e santi­fica, se houvesse necessidade, a nossa personalidade, a nossa
sensibilidade, aquela parte enfim, irracional mas imanente e intrínseca
ao nosso espírito, que representa o ponto de sua origem, a razão de sua
existência, a matéria-prima de suas transfigura­ções.
Essa paixonalidade e, aliás, essa sensibilidade, esse fundo
irracional, são igualmente elementos constitutivos do espírito (o qual
não seria se não fosse isso tam­bém) e são, além do mais, a conditio sine
qua non da arte, que só aqui – na sensibili­dade e na fantasia – encontra
a razão de sua teoreticidade e de sua autonomia.
A fantasia – essa faculdade descoberta por Vico – é a energia
criadora que sopra, como um Deus, sobre as nossas paixões e as purifica
e as vivifica e as tor­na serenas e luminosas como estrelas que brilham em
um firmamento sem mais nuvem ou mancha: puras, cristalinas, formadas,
sugestivas como pontos de um sonho, como sinais de uma aurora, como
ritmos de visões onde o sentimento é a própria expressão e a expressão
é o próprio sentimento, num encontro e numa síntese simultânea e con­
creta que é a intuição, a expressão em que a fantasia transformou, dando-
-lhe forma, essa nova realidade espiritual, que se distingue das outras
realidades do espírito pela sua essência puramente fantástica.

(Revista Uniletras, da Universidade Estadual de Ponta Grossa,


n. 10, 1988, p. 119-123)
PRONUNCIAMENTOS
DE BRUNO ENEI
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 403

O Conceito da filosofia moderna


relativamente ao homem120
Bruno Enei

Para nós – professores e alunos da Faculdade Estadual de


Letras de Ponta Grossa121 – a abertura deste ano escolar possui destaque
especial.
Pela boa vontade e zelo dos alunos, pelo preparo e pela seriedade
dos professores, pelo empenho das mais altas autoridades do governo
do Paraná, esta nossa querida escola, após seu recente reconhecimento
federal, de cabeça erguida e com energia juvenil, acaba agora de fazer
ingresso – pares inter pares – no número das escolas superiores, onde
se educa e se forma a mocidade que amanhã terá a ventura e o orgulho
de dirigir o país: este nosso Brasil que vai, cada vez mais, “queimando
as etapas” e apressando o passo para ocupar – não somente perante as
outras nações americanas, mas mesmo perante o mundo – um lugar de
destaque na vida econômica, política, cultural e moral desta nossa idade
contemporânea.
Nossa ufania é legítima; legítima e grande sobretudo ao pensarmos
que, junto de nós e conosco, num vínculo profundo de solidariedade e de
idealismo, duas outras Faculdades estão para nascer122 com o propósito
de colaborar – nos campos severos da ciência – para que Ponta Grossa
se torne um centro de estudiosos e de profissionais; os estudiosos e os
profissionais que o Paraná aguarda e pretende, a fim de que sua marcha
seja verdadeiramente firme, profunda e sólida em cada setor, e, junto ao
econômico e ao financeiro, também, e sobretudo, naquele espiritual, que
é o que mais conta, se é verdade – como é verdade – que a vida de um

120
Trata-se do texto integral da aula proferida pelo Professor Bruno Enei (1908-
1967), na noite de 4 de março de 1953, por ocasião da abertura do ano letivo. O
original, datilografado, e sem título, chegou às nossas mãos graças aos préstimos da
Professora Maria Vilma Rodrigues Nadal, que o resgatou nos arquivos da biblioteca
da Universidade Federal do Paraná. Procuramos respeitar ao máximo a forma deixada
pelo autor, limitando-nos às necessárias atualizações ortográficas e de pontuação e a
eventuais reparos no que se refere a casos óbvios de italianismos, incompatíveis com a
clareza da expressão vernácula, dada a menor familiaridade que tinha ainda, naqueles
anos, o saudoso Mestre com o português. (SMZ)
121
Em verdade, A Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de Ponta Grossa,
criada por Decreto Estadual de 8 de novembro de 1949 e reconhecida federalmente por
Decreto de 10 de fevereiro de 1953. (SMZ)
122
Em verdade, a Faculdade Estadual de Farmácia e Odontologia de Ponta Grossa,
criada por lei de 16 de novembro de 1952. (SMZ)
Bruno Enei
404 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

povo, seu valor e significado na História não dependem propriamente


de elementos estatísticos, das di­mensões e riquezas e balanços, mas sim
da tonalidade, da sensibilidade, da cultura e do vigor espiritual com que
souber ele sentir e enfrentar e conceber e organizar e me­lhorar a vida nas
suas formas de viver.
E o momento em que vivemos é dos mais difíceis: para nós,
para os ou­tros, para a humanidade. Estamos vivendo anos duros, em que
os problemas se so­brepõem e se multiplicam e se atropelam e exigem
soluções e providências. Muitas velhas coisas subsistem com tenacidade,
e com tenacidade impedem o livre movimen­to da História: coisas velhas
no campo social, no campo da economia e naquele fun­damental do
espírito; na esfera limitada do indivíduo e naquela mais vasta e mais am­
pla da humanidade. E muitas coisas novas (novas somente porque ainda
não realiza­das, apesar de antigas quanto aos nossos ideais e anseios)
solicitam do nosso espírito uma ação corajosa e concreta.
Inútil e demasiado longo traçar aqui o panorama espesso e
emaranhado das coisas que tornam difícil e dramática nossa marcha para
a frente; sobretudo após esta última guerra, em que, pelo menos, um
grande inimigo da humanidade – o impe­rialismo – deveria para sempre
ter acabado de existir, por ser coisa anacrônica e esté­ril numa idade em
que, cada vez mais, percebemos que não é a quantidade mas a qua­lidade,
não o domínio mas a solidariedade, não o ódio mas o acordo que poderá
salvar o mundo e recolocá-lo no rumo das melhores tradições e dos mais
legítimos anseios.
Para nós que vivemos numa Faculdade de Letras (onde
trabalham educa­dores que – educando – se educam, e educandos que
– formando-se – se tornarão educadores), o que mais nos admira e
surpreende, nesta realidade contemporânea, é esse choque surdo e
ameaçador dos dois máximos sistemas de economia; é esse dúpli­ce
perigo da sufocação da liberdade em nome da justiça ou da justiça
em nome da li­berdade; é esse temor que a liberdade seja somente um
nome, assim como a justiça se­ja somente um pretexto; é esse pesar
que a democracia possa ser ou tornar-se injusta, assim como a justiça
possa ser ou tornar-se iliberal. O que mais move o nosso coração de
educadores e de educandos é o egoísmo fechado e irritado, o ceticismo
indiferente e surdo, o transigir, a insensibilidade, o oportunismo e os
demais aspectos decadentes da espiritualidade contemporânea, assim
insensível perante os grandes e eternos pro­blemas das verdadeiras
finalidades da vida e do viver.
Julguei-me profundamente honrado pela incumbência de
inaugurar este ano escolar. Mas, diante das considerações acima
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 405

mencionadas e diante das outras que continuadamente vieram surgindo


sob o estímulo da responsabilidade que eu, aceitan­do o convite, assumia,
uma justificável perplexidade invadiu minha alma nestes dias, sobretudo
pelo que se refere à escolha do assunto desta palestra inaugural.
Poderia falar sobre um escritor italiano, para ficar na minha
cadeira. Mas o que significaria? Que conexão com a vida presente
poderia ter uma palestra sobre assuntos abstratos de literatura, de poesia
pura ou de história da filosofia?
Resolvi, então, tratar brevemente dum assunto que, de qualquer
forma, apresentasse em si, contemporaneamente, assim o caráter de uma
aula, como um nexo e liame com a vida presente.
A escola, aliás, é vida; não sendo nem preparação nem outra
coisa a não ser a vida e o viver, é um presente que é tanto passado quanto
futuro, que é presente porque é passado e será futuro.
Assim, pareceu-me melhor dissertar aqui sobre o conceito da
filosofia moderna relativamente ao homem, às suas faculdades e aos
seus deveres.
Ao falar sobre o homem e apresentando-o aqui como o sente e
o consi­dera a filosofia mais clássica e mais concreta, julgo cumprir dois
precípuos deveres meus: o de levar a escola para a vida, a fim de que lhe
perceba sempre as vibrações e os problemas sem nunca dela se afastar, e
o de trazer o homem para a escola, a fim de que seja ele o seu problema e
o seu alvo como constante pesquisa teorética e como quotidiano trabalho
moral.
Cabe à escola, principalmente e, talvez, unicamente cabe
à escola brasileira, formar homens; homens que sejam homens e não
máquinas ou seres apáticos e agnósticos; homens que saiam da escola
com uma sadia visão social e nacional de uni­dade e de dignidade, que
saiam da escola com uma visão consciente e responsável da liberdade e
do público bem.
Assim desejava Fichte que fosse a escola alemã quando, no
início do século XIX, aquela nação, entre 1808 e 1813, alcançava sua
autonomia política e cultural, libertando-se da França napoleônica.
__________________

O primeiro grande caráter distintivo da filosofia moderna é a


concretização, fugindo das considerações genéricas e abstratas que,
de vez em vez, foram próprias às metafísicas, aos dualismos e aos
racionalismos de toda espécie.
Nós hoje – após Kant e Fichte, após Hegel e Gentile e Croce –
embora continuando-as e lembrando-as todas, ficamos muito afastados
Bruno Enei
406 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

da, embora grande, filosofia grega e daquela menor dos romanos, ficamos
afastados de todos aqueles mitos e pseudo-conceitos, aos quais, afinal,
numa forma ou noutra, podem ser reconduzidos, e se reconduzem, os
postulados do pensamento filosófico pré-kantiano.
Hoje, a filosofia colocou-se decididamente sobre um plano de
imanência, de absoluta imanência, tornando a trazer ao homem, e no
homem unicamente procurando, e nele vendo-lhes o criador e o gerador,
quaisquer leis, qualquer categoria, qualquer função, todos os deveres e os
direitos, todas as causas e os efeitos; tudo humanizando e subjetivando:
até a natureza, esta natureza externa e objetiva que so­mente nos é estranha
na sua materialidade, porque, no restante, ela é nós mesmos, de nós e por
nós vivendo e transformando-se e enriquecendo-se como pensamento
pen­sado, como, isto é, história do homem.
Filosofia, pois, hoje significa pensar; um pensar que não consiste
mesmo no colocar-se perante uma realidade diferente e preexistente, mas
sim fazer e criticar, realizando a nós mesmos! Um pensar e nada mais.
Tudo hoje torna a ser trazido para o espírito humano, para esta
nossa humanidade que é particular e universal, contingente e eterna,
relativa e absoluta, conforme se considere o indivíduo ou o homem, o
ser ou o vir a ser, o passado ou o futuro, o fato ou o dever ser.
Tudo torna hoje a ser trazido para o espírito humano: as categorias,
o céu, a História e quaisquer outros elementos que, anteriormente,
pertenciam ao espí­rito como seus atributos e hoje são o espírito; o espírito
como atividade, como ener­gia, como forma a priori gerando, fazendo-se
e realizando-se; criando, ininterrupta­mente, a História; a História que,
pois, nada mais é senão a fenomenologia do espírito, a sua epifania, a
sua realidade, a documentação sempre viva e estimuladora e fecunda do
que foi pensado e atuado.
Está aqui a razão pela qual, de um século para cá, tornou-se
a filosofia mais concreta e mais humana: mais concreta, abandonando
as utopias e as nuvens pa­ra, cada vez mais, avizinhar-se da realidade e
da verdade; mais humana, aqui também, abandonando as hipóteses, as
imaginações e os axiomas para a crítica e a análise, as quais a levaram a
encontrar no homem o todo e as partes, a origem e as causas de qualquer
acontecimento.
E daí é que veio o desenvolvimento gradual e crescente das
ciências na­turais, das ciências humanas, das ciências morais: elas
todas – cada uma no próprio campo e com os próprios objetivos –
procurando o homem, estudando o homem, ana­lisando-o, pesquisando-o
e perguntando-lhe o que ele é e o que deve ele ser, por que ele foi e é
assim, como ele será ou poderá ser.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 407

E a rainha de todas estas ciências é a filosofia, uma filosofia que


não é mais uma ciência porque trazia consigo a aparência do sistema
definitivo e imóvel, mas filosofia porque é, como deve ser, pensamento
concreto e universal, porque é, como deve ser, julgamento particular
e absoluto, de vez em vez formulando as questões e os problemas e
resolvendo-os conforme as circunstâncias e os tempos e as exigências
e necessidades, para depois, mais tarde, voltar novamente a formulá-los
e resolvê-los conforme as novas circunstâncias e tempos e exigências e
necessidades, numa contínua e ininterrupta e necessária “problemática”
em que cada coisa do espí­rito, justamente como cada caso e acontecimento
da vida, é eterno ser e não ser, é eterno acontecimento e ideal, eterna
realidade e dever ser.
E esta filosofia liga-se sobretudo ao movimento, à sensibilidade
e ao pro­cesso da espiritualidade humanística e renascimental, àquele
movimento filológico e cultural italiano dos séculos XV e XVI que, mais
tarde, se passou aos vários países da Europa, criando, na Inglaterra, a
filosofia do empirismo de Bacon, e, na França, a fi­losofia racionalística
de Descartes, para depois voltar novamente à Itália, e aí, através de
Giambattista Vico e da segunda metade do século XVIII, através de
Francesco de Sanctis e da arte e da ideologia romântica do século XIX,
chegou até Giovanni Gentile e Benedetto Croce: filósofo, o primeiro,
do atualismo; filósofo, o segundo, do his­toricismo e da dialética do
espírito.
É justamente através dos desenvolvimentos e dos esclareci-
mentos de toda esta filosofia vindos dos séculos XV e XVI que nós
chegamos às afirmações julgadas hoje até simples e naturais e abso-
lutamente comuns e quase indiscutíveis, e que, ao contrário, foram o
resultado de um desmoronamento inexorável, de uma polêmica sem
descanso, de uma análise paciente e vígil e severa.
Foi assim, pois, que se chegou hoje a colocarmos ao centro de
tudo o espírito por uma concepção que não é mais elegíaca ou hedonística,
mas dramática e ativa, da vida; e essa vida sempre é e sempre vem a ser
por aquela dialética espiritual que é a imagem da incansável e dinâmica
circularidade do espírito, interpretado e concebido com energia.
Para a filosofia moderna, então, o homem é essencialmente
espírito, atividade a priori que, embora atuando e saciando-se no ato,
nunca deixa de atuar e nunca se sacia suficientemente na constante
procura de transformar e de viver o passado, trazendo-o ao presente que
é a condição histórica e real do futuro.
E o espírito é energia que atua em dois campos: dois campos
distintos como forma e modo, mas, assim mesmo, sendo um ligado ao
Bruno Enei
408 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

outro, dependendo um de outro, e postulando o primeiro o segundo, e o


segundo o primeiro, justamente como a letra A precede a letra B e como
a letra B pressupõe a letra A; como o ontem prepara o hoje e o hoje
confirma o ontem.
Estes dois distintos campos do homem são o da esfera teorética
e o da esfera prática: produto o primeiro daquilo que o espírito cria e
atua como pensamento, produto o segundo daquilo que o espírito cria e
atua como ação.
É, pois, primeiramente, o homem pensamento e ação: e, como
pensamento, age no campo teorético; como ação, opera ele no campo
prático.
E, como não é concebível uma teorética que fique abstrata e
não se torne ação como pensamento, eis porque a esfera teorética desce
e junta-se à esfera prática do espírito numa unidade que é a própria
unidade do espírito. E, da mesma forma, como não é concebível uma
praticidade que fique um fato ilógico e irracional e, afinal de contas,
não se possa referir a um pensamento, eis porque a esfera prática volta
e junta-se à esfera teorética do espírito numa unidade que é a própria
unidade do espírito.
Não pareça isso tudo um simples virtuosismo. O bom senso, o
senso comum explica esse difícil raciocínio da árdua filosofia dizendo
simplesmente – mas confirmando e concordando – que o homem pensa e
age, e que uma coisa é pensar e outra agir, e que, não obstante a intrínseca
diferença e distinção, nenhum homem pensa sem agir, embora todos
compreendam e admitam que uma coisa é a ação do filósofo pensando
e outra coisa é a ação do político agindo; ações as duas, ações, isto é, o
pensamento do filósofo e o ato do político, mas uma diferente da outra,
porque a primeira é “ação teorética” e a segunda é “ação prática”.
__________________

A esta primeira afirmação da filosofia moderna em torno do


espírito hu­mano (e, então, mais simplesmente, em torno do homem e da
humanidade), uma outra segue, igualmente substancial e necessária, que
aqui logo se faz mister salientar. E é a seguinte.
Teoricamente, o espírito atua sob dois aspectos distintos e iguais.
O homem pensa e sente. Pensamento e sentimento, embora aspectos
teoréticos do espírito, não são a mesma coisa; são, aliás, duas coisas
diferentes e até contrárias.
O pensamento é lógica, é julgamento, procura do universal. E
quanto mais o pensamento for lógico, tanto mais será ele julgamento;
quanto mais ele se uni­versalizar, e do particular subir e se aproximar
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 409

e alcançar o absoluto e a verdade, tanto mais ele, o pensamento, será


pensamento; ao passo que o sentimento tanto mais será sentimento
quanto mais ele for particular e concreto e pessoal e subjetivo, deste e
não de todos. As duas coisas, então, pensamento e sentimento, são coisas
distintas e diferentes. Daí, sempre permanecendo na esfera teorética, os
dois aspectos teoréticos do espírito: o do pensamento ou da lógica e
o do sentimento ou da fantasia; os dois aspectos teoréticos do espírito
que, mais comumente, estamos acostumados a chamar com o nome de
filosofia e de arte; sendo a filosofia nada mais que pensamento, ex­pressão
lógica do pensamento, e a arte nada mais que sentimento ou expressão
lírica do sentimento. E todo homem pensa, e, por isso, todo homem é
filósofo. E todo ho­mem sente, e, por isso, todo homem é poeta. E o
verdadeiro filósofo só é verdadeira­mente filósofo porque possui – como
quantidade mas não como qualidade – uma for­ça de pensamento maior
que a normal, assim como o verdadeiro poeta só é verdadei­ramente
poeta porque possui – como quantidade, mas não como qualidade – uma
for­ça de expressão maior que a normal. E não pode aqui haver outra
alternativa, porque, se o filósofo fosse outra coisa que homem e pensador,
não seria ele, então, compreen­dido e estudado e criticado pelos outros
homens que, em maior ou menor quantidade, são também pensadores;
assim como, se o poeta fosse outra coisa que homem e sen­timento e
linguagem, não seria ele, então, compreendido e estudado e admirado
pelos outros homens que, em maior ou menor quantidade, são também
sentimento e linguagem.
E ao homem, como ser que pensa, cabe a origem de toda ideia,
e em qualquer terreno; assim como ao homem, como ser que sente e
se expressa, cabe a origem de toda arte, e em qualquer terreno e em
qualquer forma.
E pensar não quer dizer lembrar, saber, estudar; ou, pelo menos,
não quer dizer somente isto, mas, sobretudo, saber dominar a presente
realidade e julgar cada fato e achar cada razão conforme as exigências e
necessidades da realidade e de cada um. Assim como ser artista não quer
dizer desabafar-se, imitar ou ser arbitra­riamente esquisito, mas realizar –
na cor ou na linha, no ritmo ou na linguagem – o próprio sentir e o sentir
de todos, de forma que a leitura ou a visão nos deem e nos renovem
aquele fantasma do poeta e façam com que possamos reviver aquele
senti­mento e aquela imagem do poeta na sua eterna presença e no seu
eterno brotar e re­florescer.
E, como o homem sempre pensou, eis porque podemos falar
numa histó­ria da filosofia, que nos traz o pensamento pensado dos
homens que na Grécia ou em Roma, na Alemanha ou na França, na
Bruno Enei
410 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Inglaterra ou na Península Ibérica, na Europa ou na Ásia, antes ou depois


da Idade Cristã, ontem ou amanhã, trabalharam e sofre­ram na procura de
uma concepção da vida e de uma solução lógica dos problemas sempre
novos dos homens.
E, como o homem sempre sentiu, eis porque podemos falar
numa história da arte, e da arte nas suas diferentes formas, literária,
pictórica, musical etc., que nos traz a arte realizada pelos homens
que, aqui ou alhures, com Homero ou com Dante, com Goethe ou
com Shakespeare, com Camões ou com Castro Alves, sentiram, e este
sentimento transformaram na expressão límpida e serena da eterna e
melancólica be­leza.
Hoje, não é mais suficiente – e, aliás, nunca o foi – hoje não
é mais sufi­ciente viverem solitários e esquivos para serem chamados
filósofos. E o poeta não é poeta pela sua cabeleira ao vento ou porque
improvisa ou sabe fazer rir ou brinca com os versos, com as palavras e
faz acrósticos e sonetos. O primeiro, isto é, o filósofo, torna-se grande
quando está em meio à realidade e sabe vê-la e julgá-la, colhendo-lhe a
causa e o absoluto. E o segundo, isto é, o poeta, é verdadeiramente poeta
não quan­do faz política ou oratória, bajulações ou brincadeiras, mas sim
quando transforma seu sentimento numa imagem, numa imagem que é
aquele mesmo sentimento particu­lar do poeta que se tornou transmissível
e humano e universal. Filósofo que não é filósofo quando ele quiser ou
procurar tornar-se poeta, assim como o poeta não é poeta quando ele
quiser ou procurar tornar-se filósofo. Ambas as coisas, embora per­tençam
à esfera teorética do espírito, são diferentes e distintas justamente porque,
como o caminho do filósofo está na direção do absoluto, assim aquele do
poeta está no contrário, rumo ao particular. De forma que, quanto mais
absoluto for o pensa­mento, tanto mais será ele filosófico, assim como,
quanto mais lírico for o sentimento, tanto mais será ele poético.
Haveria mister de dizer mais, mas não é possível. Seja, nesta
altura, suficiente observar como, pois, é coisa verdadeiramente difícil ser
filósofo ou poeta, e como bem pequena é a roda de uns e de outros nesta
nossa Terra que não possui de­veras tantos filósofos e poetas quantas são
as estrelas que embelezam os nosso céus.
Destarte, a ciência do filósofo é a lógica, o pensar por absoluto;
assim como a ciência do poeta é a estética, a doutrina da beleza.
Foi desta forma, com esta distinção franca, com esta absoluta
inde­pendência e autonomia do pensamento e da arte, da ideia e da imagem,
da filosofia e da expressão, que nós pudemos chegar – após tantos erros e
tantas aberrações, e até de homens célebres como Platão e Cícero, como
Quintiliano e Dante Alighieri e Des­cartes e outros – a dar à arte sua
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 411

verdadeira definição de absoluta liberdade e de ab­soluta independência,


libertando-a, de uma vez para sempre, de todo híbrido conúbio, quer
com a filosofia, quer com a moral e a economia, porque a arte não é nem
filoso­fia, nem economia, nem sequer moral, não é conhecimento lógico
nem finalidade prá­tica e nem sequer educação, justamente porque é arte,
pura fantasia e imagem, ou, pa­ra dizê-lo com um termo clássico e claro,
é forma, isto é, síntese de conteúdo e de ex­pressão, em que conta não
o que o poeta diz, mas o como diz, e, melhor ainda, o como ele canta:
porque a poesia é mesmo um canto íntimo e silencioso, real e ideal, que
nos penetra e nos prende, levando-nos para o mundo de realidades e de
idealismos do rei­no arcano e sublime da beleza, que é o reino do nosso
mais profundo, mais verdadeiro e mais puro sentir.
__________________

Na esfera prática, da mesma forma, o espírito atua sob dois


aspectos dis­tintos e iguais. Pode o homem agir, e age, por um fim de
utilidade. Pode o homem agir, e age, por um dever. E, aqui também, a
primeira coisa não é a segunda, e a se­gunda não é a primeira, embora as
duas representem o aspecto prático do nosso espí­rito.
Não acho que se faça mister gastar muitas palavras para explicar
estes dois aspectos do homem prático.
Como em cada momento do dia, e perante um problema ou um
fato, nós constantemente pensamos e sentimos, ou deveríamos pensar e
sentir, assim, da mesma forma, em cada momento do dia, e perante uma
causa e uma ação, nós constantemen­te agimos e tomamos uma atitude,
ou deveríamos agir e tomar uma atitude.
Para um fim de lucro e de vitória, age o comerciante tratando de
seus negócios ou o político realizando seus planos. Para um fim prático
e mediato age o es­tudante procurando estudar e ser promovido, assim
como, sempre por um fim prático e mediato, age o banqueiro procurando
dobrar suas ações e investir seus capitais. E assim age o trabalhador e o
homem comum procurando melhorar sua moradia e o tom de sua vida.
Quem assim procede (e, mais ou menos, todos necessariamente
assim procedemos, porque nosso espírito é tudo isso e não pode não ser
tudo isso, e, como pensa e sente, assim também age, e age por um fim de
utilidade ou para um dever), quem assim pro­cede é movido pelo aspecto
econômico-político do nosso espírito. O qual espírito, pois, além de ser,
como vimos no campo teorético, lógica e fantasia, é agora, também, no
campo prático, economia e política.
Há mais. Há homens (os heróis que exaltamos, os apóstolos que
admira­mos, os santos que tomamos por exemplo e modelo): esses seres
Bruno Enei
412 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

que às próprias ações dão um estímulo mais puro e virginal, imprimindo-


-lhes um conteúdo mais desinteres­sado e eterno. São estes os homens que
agem por uma lei moral, por um imperativo ético, por um dever universal
e absoluto: como Sócrates aceitando a condenação por­que é um dever a
obediência às leis, como Cristo aceitando a cruz por um dever de resgate,
como todos os que, ontem e hoje, por um mais alto teor de vida, por uma
mais alta essência de vida, por um profundo anseio de civilização, de
amor e de bem, não ficaram aguardando que todos, indistintamente todos
– o que é um absurdo – acreditassem em seus ideais e modos de viver,
mas logo, e como que sozinhos, aqueles ideais e aquele costume de vida
individualmente atuaram, vivendo-os como dever.
Quem assim procede (e, mais ou menos, todos necessariamente
assim procedemos, porque nosso espírito é tudo isso e não pode não ser
tudo isso, e, como pensa e sente e age por um fim de utilidade, assim
também age por um dever), quem assim procede é movido pelo aspecto
ético e moral de nosso espírito. O qual espírito, pois, além de ser, como
vimos no campo teorético, lógica e fantasia, é agora, no cam­po prático,
economia e mora1.
E, como a lógica e a estética eram as ciências do espírito teorético
que pensa e sente, assim a economia e a ética são as ciências do espírito
prático que age e cumpre. E, como na esfera teorética do espírito humano
era possível uma história do pensamento ou da filosofia justamente porque
o homem pensa, e uma história da arte justamente porque o homem
sente, assim também, na esfera prática do espírito humano é possível
uma história da economia ou da política justamente porque o homem
age por um fim de utilidade, e uma história da moral justamente porque
o homem age por um dever.
__________________

É este o homem, o homem conforme a filosofia moderna. Ele é,


pois, tudo; tudo o que ele é, nada de menos do que ele necessariamente é,
nada de mais do que ele necessariamente deve ser. E ele, necessariamente,
é, como vimos, atividade teorética e atividade prática; atividade teorética,
atuando-se e exaurindo-se como pensamento e arte; atividade prática,
atuando-se e exaurindo-se como economia e moral.
Fora destas duas esferas do espírito, ou teorética ou prática, e fora
das quatro formas da lógica, da estética, da economia ou da moral, não
há mais nada; mais nada resta do que o homem ou pensa como lógica, ou
sente como fantasia, ou age como economia e política ou cumpre como
moral. E tudo, tudo o que o homem pensa e sente e age e cumpre pertence
àquelas duas esferas e atua-se numa daquelas quatro formas.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 413

De maneira que tudo cabe ao espírito e ao homem e tudo procede


dele. E nada lhe é estranho, porque nada fica fora dele, e também tudo o
que parecer estar­-lhe fora ou ser-lhe diferente, na verdade está fora ou é
diferente só na aparência, porque efetivamente ou pertence ou pertencerá
ao espírito, ao espírito do homem particular e contingente ou do homem
na sua universalidade e eternidade, do homem de ontem ou de amanhã;
o que, numa esfera que não seja a do egoísmo, tanto faz, porque, como
tudo vive, tudo também se extingue, e, como tudo se extingue, tudo
também vive, num viver e num morrer em que o que conta não é o
indivíduo físico mas a humanidade, que em nós e por nós vive e morre
sem nunca definitivamente morrer e viver.
E aqui cabe uma última observação antes de concluir esta breve
exposição,
Como tive já a oportunidade de dizer, relativamente à teorética
e à práti­ca do espírito, das quais, embora distintas e diferentes, uma é
outra e vice-versa, jus­tamente porque não tem sentido uma teorética
que não seja prática ou uma prática que não seja teorética, assim digo
agora que o homem é, de vez em vez, filósofo e poeta, economista e
moralista, mas pode ele ser, e o é, contemporaneamente, uma e outra
coisa, porque é inconcebível, mesmo pela unidade e contemporaneidade
do espírito, é inconcebível um filósofo que um pouco não seja também
poeta e economis­ta e moralista; é inconcebível um poeta que um pouco
não seja também filósofo e economista e moralista; é inconcebível um
economista que um pouco não seja também filósofo e poeta e moralista;
é inconcebível, enfim, um moralista que um pouco não seja também
filósofo e poeta e economista. O que é visível em qualquer página de fi­
losofia, em qualquer verso de poeta, em qualquer ação de economista e
em qualquer ato de moralista. Poder-se-ia desejar até que assim não fosse;
mas é absurdo que as­sim não seja justamente porque é simplesmente
natural que assim deva ser.
Nesta distinção e autonomia das formas do espírito, nós não
falamos de separação e de hiato e de hierarquia, no sentido tradicional de
espaço, de tempo e de qualidade. Aqui, uma forma do espírito equivale
a outra, uma forma do espírito fica aqui distinta e autônoma perante
a outra, mas, embora assim, constituem elas todas, num plano igual e
paralelo, o espírito, que é unidade, absoluta unidade a priori. Assim é que
a distinção de que aqui falamos não é uma distinção material e empírica,
mas ideal e dialética. Penetrando uma na outra e embora distinguindo-se
uma da outra, as quatro formas do espírito são os quatro momentos da
nossa humanidade que pensa, que sente, que atua e que cumpre; são as
quatro provas da circularidade eterna e dinâmica da nossa vida interior:
Bruno Enei
414 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

do nosso pensamento que é espírito, do nosso sentir que é espírito, do


nosso atuar que é espírito, do nosso cumprir que é espírito.
Para conhecermos o homem (o que constituía um imperativo
desde os tempos de Sócrates), a filosofia moderna tem deixado de lado
as altas esferas, as sublimidades, os voos abstratos e inconsistentes das
metafísicas e das magias para avizinhar-se do homem, analisando-o e
estudando-o na sua essência interior, na sua capacidade humana. E o
encontrou e conseguiu. É ele o que ele é, o que dissemos que ele é, o que,
enfim, todos sabíamos o que fosse.
É, pois, deste ponto que devemos agora mover e continuar, diante
do homem e de seus trabalhos, diante do seu pensar e sentir, diante do
seu atuar e cumprir, para melhor compreendermos, historicamente, o
que e por que o homem assim pensou e sentiu e atuou e cumpriu, para
melhor compreendermos, ativamente, o que e por que nós devemos hoje
assim pensar e sentir e assim agir e cumprir, no conjunto de passado e
de presente, de análise e de ação, de pesquisa e de fazer, que constituem
justamente a concreta contemporaneidade e a insuprimível organicidade
do homem de ontem e de amanhã, do homem vivente como indivíduo
real que morre e do homem vivente como momento ideal da humanidade
que continua.
Devemos ir para a frente: sempre sabendo mais e mais
procurando saber logicamente, sempre sentindo mais e mais procurando
sentir esteticamente, sempre agindo mais e mais procurando agir
economicamente, sempre cumprindo mais e mais procurando cumprir
eticamente.
Esta filosofia tem servido para despertar o homem, para libertá-
-lo das esperas, das místicas, do acaso, das incertezas, da melancolia e
do idílio, da apatia e da indiferença. Tem servido para despertar e abrir
os olhos ao homem, chamando-o a si mesmo e à sua interioridade. Tem
servido para fazê-lo compreender o quanto a vida é séria e dura e repleta
de lógica, também quando ela parece ilógica, como na guerra, no delito,
no erro, nas calamidades e nas dores: coisas estas todas que só existem
porque possuem uma razão de existir: uma razão que é humana, e, pois,
porque humanas, não podem elas não existir, sendo necessárias e às
vezes até benéficas e providenciais. Tem servido a estimular o senso
da responsabilidade e nos tornou, sobretudo, críticos. É esta, de fato, a
idade da crítica, da análise, da distinção, da indagação: no campo das
ciências que progridem e descobrem, nas doutrinas humanas que nos
acostumaram a considerar e a meditar. A palavra de hoje é justamente
a crítica; e isso não quer dizer que devemos dizer mal ou destruir, mas
antes construir observando, analisando, julgando, vendo o pró e o contra
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 415

das coisas, justificando e compreendendo um acontecimento ou um


pensamento ou uma obra de arte.
E temos diante de nossos olhos a história da filosofia, da
arte, da economia e da moral não apenas para lhes conhecermos os
acontecimentos e a cronologia e as curiosidades e os lados mortos e
inúteis, mas sobretudo para que possamos nos tornar sempre melhores
pensadores e melhores conhecedores de poesia, sempre melhores
homens econômicos e políticos, sempre mais atuadores de uma lei
moral. Homens simples e puros do dever, adoradores do verdadeiro
Deus, fiéis ao verdadeiro Deus que, como seu filho, desce em nós e em
nós age e cumpre, pensa e sente.
Neste sentido, também a religião pertence ao espírito. É natural,
é patente que ela pertença ao espírito. Pertence ao espírito como lógica
porque a religião é essencialmente concepção da realidade, da vida e
dos seus problemas. Pertence ao espírito como ética porque a religião
é, por outro lado, essencialmente costume de vi­da, alto e sublime dever,
maneira ética e moral de viver à luz de um princípio que é, ao mesmo
tempo, lógico e ético.
É claro que colocar-se desta forma perante o homem significa
também e justamente colocar-se perante a realidade, a natureza, os
problemas da terra, do céu, das ciências e da vida; significa também e
justamente colocar-se diante da História: a história de ontem que deve
ficar nos alicerces do hoje justamente como o hoje deve tornar-se o
alicerce do amanhã, num círculo que não é volta ou regresso ou réplica
ou mecanismo repetindo-se ou imitando, mas dialética e experiência do
espírito, do Espí­rito com o E maiúsculo, porque se trata do espírito de cada
um de nós como indivíduo e de cada um de nós como humanidade, de
cada um de nós em que o conceito de hu­manidade desce na concretização
da individualidade, e de cada um de nós em que a individualidade,
além do tempo e do contingente, se sublima e se ergue no conceito de
humanidade.
E a História é tudo. É o que verdadeiramente vale, porque é ela
que recolhe o quanto e o como o homem pensou e sentiu e agiu e cumpriu,
é ela que nos apresenta a experiência e nos sugere o quanto e o como hoje,
no presente, perante os fatos particulares e os particulares fenômenos, nós
devemos pensar e sentir e agir e cumprir.
__________________

É verdade que ao olharmos a realidade presente parece que –


nos ho­mens e nas coisas, no seio de cada país e no mundo – tudo seja
bem pobre e quase triste e mesquinho e miserável.
Bruno Enei
416 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

É verdade que ao olharmos para nós e em torno de nós parece


que tudo esteja perdido e que, em qualquer campo, tudo seja quase
irracional e ilógico, numa confusão individual e anárquica em que cada
um e todos só parecem adorar ao deus Belzebu, num desejo de superar
os outros, de enriquecer e dominar com a insensibilidade do egoísmo e
com a materialidade do animal.
Mas não é assim. Não é assim, quer porque a realidade
nunca foi e nunca será perfeitamente a imagem do ideal, quer porque,
se é verdade que tudo anda mal, é essa uma razão a mais para que
nós hoje digamos o que o homem é e o que deve ele ser, tanto mais
numa Faculdade de Letras, na abertura de suas aulas, cujo objetivo
fundamental deve justamente ser o de estudar o homem, de formar o
homem e de transformar em homem.
Não há, aliás, escuridão completa. E Deus vive sempre e nunca
o pode o homem esquecer e sufocar completamente.
ln interiore hominis est veritas, dizia Santo Agostinho. E na
alma do homem está também, como teorética e como prática, o que é
bom. E esse bom sairá, tem que sair. Devemos fazer com que saia. E
sairá, quanto mais o homem conhecer, lendo, estudando, observando,
sentindo, agindo e cumprindo.
Este homem da filosofia moderna assim considerado é um
passo para a frente e um início, justamente porque – embora seja sempre
absoluto o que é absoluto – nada é histórica e realmente definitivo
sistemático. Não se afaz ao homem, como homem, o lema de um curioso
escritor alemão que uma vez disse: “Escrevo o meu sistema filosófico
e depois caso”. O homem, verdadeiramente homem, nunca acaba de
escrever o próprio sistema filosófico, porque continuadamente o escreve
e o atualiza. Este homem da filosofia moderna é o homem como ideal,
como é e deveria ser. Mas ele seria abstrato e irreal se não fosse ou não
procurasse ser história, isto é, realidade.
Este homem é o guri que vai às carteiras da escola primária;
é o jovem sentado nas salas das escolas secundárias; é o homem que
acompanha, consciente e sério, as aulas dos cursos universitários. É o
homem do trabalho dos campos e do das cidades. É o professor e o pai
de família, É o velho que conhece a vida e a observa de olhos meigos
e bons. É o cidadão com sua vida particular e com sua vida coletiva e
social no seio da nação. Somos nós aqui reunidos: professores e alunos.
E faço votos que uns e outros, durante este ano escolar, saibamos
e possamos sempre mais ser dignos deste homem da filosofia moderna;
deste homem que pensa e constrói uma fé baseada na razão, que sente e
se forma um gosto baseado na crítica, que age e alcança seu bem-estar e
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 417

sua tranquilidade honesta, que cumpre e deixa um patrimônio de valores


e de ideais que a História recolhe para transmitir, amanhã e sempre, às
gerações vindouras.
Faço votos que esta jovem e querida Faculdade Estadual
contribua para a criação deste verdadeiro homem.
Tanto melhor para esta alta e límpida Ponta Grossa. Tanto
melhor para este Paraná promissor que aguarda da nossa Faculdade
seus mestres e homens de amanhã. Tanto melhor para este nosso Brasil
que precisa de homens vivos, francos, serenos, firmes e iluminados.
Tanto melhor para o mundo e para a História: esta criatura silenciosa e
angélica que nos segue e acompanha e não nos deixa e não nos esquece,
registrando sempre, em cada momento da vida e em qualquer lugar da
Terra, as pulsações do nosso pensar, as vibrações do nosso sentir, o calor
de nosso agir e a nobreza do nosso cumprir.
Abre-se, pois, assim, o nosso ano escolar. Para todos faço votos
que ele seja feliz e fecundo: fecundo de vida interior e feliz daquela
felicidade que surge espontânea para os homens de boa vontade.

Ponta Grossa (Paraná), 4 de março de 1953,


Salão Nobre da Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras.

(Revista Uniletras, da Universidade Estadual


de Ponta Grossa, n. 12, 1990, p. 5-17)

À margem da história
Bruno Enei

Ao iniciarmos a “Semana Euclidiana”, em nome da Diretoria do


Centro Cultural “Euclides da Cunha”, tenho a satisfação, como
primeiro conferencista deste ano, de cumprir o dever de apresentar
aos Senhores Diretores desta Rádio Clube Pontagrossense os mais
intensos agradecimentos pela cooperação compreensiva e patriótica
que sempre nos proporcionaram em nossas atividades cívicas e
culturais.

Em qualquer livro que se o procure, sob qualquer ponto de vista


que se o estude e considere, Euclides da Cunha deixa sempre no leitor
a impressão bem clara e firme da sua inconfundível personalidade de
escritor e de homem.
Bruno Enei
418 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Por um lado, a fundamental e singela unidade dos temas que


movem e articulam “Os Sertões”, “À margem da História”, “Contrastes
e Confrontos”, “Peru versus Bolívia”, é uma prova e a confirmação
de um particular mundo afetivo de inspirações e de interesses perante
os quais a alma de Euclides encontra a razão essencial e “eletiva” de
suas melhores vibrações de estudioso e de pensador. Por outro lado,
a tonalidade – entre profética e apostólica – com que ele escreve e
pensa, o realismo objetivo de seu descrever e deduzir, a solidariedade
larga de suas conclusões geológico-humanas, a contemporaneidade
espontânea de seus dualismos natureza-homem, paisagem-alma,
mitologia-história, barbárie-civilização, selva-rio, trabalho-escravidão,
primitivismo-técnica, superstição-religião induzem-nos logo para
uma apreciação de Euclides que vai bem além de uma consideração
individual e no-lo colocam num particular plano representativo e
numa particular posição histórica no quadro da Literatura Brasileira.
Estas duas conclusões fundamentais surgem naturais e legítimas
ao largo da leitura das páginas euclidianas. E quase toda página de seus
livros nos proporciona a confirmação e o motivo desta sua unidade de
inspiração e deste seu lugar de destaque na história literária do Brasil.
__________________

Euclides da Cunha não é somente um grande Euclides da Cunha.


Ele é ainda um grande ponto firme – e não apenas de chegada como
também de saída – na evolução histórica de nossa literatura; se é verdade,
como é verdade, que a literatura de um povo deve ser expressão de original
sentir, de nacionalidade, de problemas, de personalidade de temas e de
inspiração.
Neste sentido, apesar de seus limites de linguagem, de
pensamento e de atualidade (máxime perante umas soluções e sugestões
de caráter mais propriamente prático), Euclides da Cunha acaba com
aquela literatura colonial e imperial, toda, mais ou menos, impregnada
de remoinhos alheios e europeiamente estandardizada nos moldes e nos
acentos de um subjetivismo melancólico, de um lirismo inconsciente, de
uma exaltação superficial, de um individualismo sem história, sem pátria e
quase anárquico; indiferente, como é ele, a um concreto acolhimento – na
personalidade egoística do escritor – de algo que possa constituir e ser a
voz e a alma de nossa sensibilidade de povo e de nação.
Euclides da Cunha acaba sobretudo com aquele descritivismo
pelo descritivismo e com aqueles rimários fáceis e arbitrários de
todos os amores, de todos os cumprimentos e bajulações da literatura
encomiástica.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 419

Não quero dizer que a nossa literatura comece mesmo por ele;
mas percebe-se bem claramente que é Euclides da Cunha quem, com o
realismo e a humanidade de sua inspiração, continua e aprofunda o nosso
renovamento romântico, dando-lhe uma orientação popular e nacional,
um sentido firme, um rumo vital, a injeção de um sadio fermento de
brasilianidade, entendida ela como problema, como espiritualidade,
como sociedade, como história.
Percebe-se isto não apenas nos seus livros mais conhecidos e
citados, como também no seu breve mas íntimo epistolário para com os
amigos e os pais. Percebe-se isto, ainda, na sua breve mas significativa
atividade de poeta.
Há no seu epistolário uma larga veia de carinho e de cordialidade,
assim como há em seus versos um desejo ardente de renovação, uma
exigência de temas novos, uma necessidade de afastar os esquemas
acadêmicos do convencionalismo e da rima para dar livre desabafo a um
sentimento espontâneo de humanidade, a um real anseio de socialidade,
de progresso, de marcha para frente à busca de nós próprios, de uma
nossa língua, de uma nossa alma, de uma nossa expressão que seja
unicamente nossa.
Eis a sua protestação:

Detesto francamente estes mestres cruéis


que esmagam uma ideia sob quebrados pés...
que vestem um pensamento torto, encarquilhado e perro
como um correto frack no dorso de um corcunda.

Eis a sua definição do escritor:

Oh! Sim, quando a paixão o nosso ser inunda


e ferve-nos na artéria, e canta-nos no peito
como dos ribeirões o borbulhoso leito
parar – é sublevar
medir – é deformar.

E eis sua confissão:

Não tenho ainda vinte anos


e sou um velho poeta. A dor e os desenganos
sagraram-me mui cedo. A minha juventude
É como uma manhã de Londres, fria e rude.
Bruno Enei
420 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

E se quisermos achar a origem remota daquela capacidade


escultórea de Euclides, tão presente nas páginas de sua prosa, devemos
ler os sonetos “Dantão”, “Marat”, “Robespierre” e “Saint-Just”.
__________________

Isso me parece o essencial da personalidade artística e histórica


de Euclides da Cunha.
Há nele uma razão de escrever. Um motivo constante e
necessário o agita. E um anseio o empenha. Uma seriedade o move e não
lhe permite de ficar tranquilo e indiferente perante o que vê e escreve.
Há uma fé nele. E a fé, a inspiração, a solidariedade são os caracteres
essenciais do escritor, a quem o escrever não se apresenta como um
exercício e um lazer, antes como uma missão, como um empenho moral,
como um grito de protestação e um ato de coerência entre a vida e ideal,
entre livro e existência, entre pensamento e ação.
Possui este escritor uma mente nutrida e compe­tente conhecendo
os problemas, vivendo-os, analisando as situações e sabendo ler entre
os complicados enredos da multiforme realidade da vida, do indivíduo
e da so­ciedade. E possui ainda Euclides um coração que sen­te, que
enternece e torna-se solidário por uma atitude enérgica e revolucionária,
apontando a necessidade de uma solução e o rumo de uma redenção, sem
receios e sem medo perante a realidade que é obstáculo e reprovação.
A realidade pode ser a que for: mas Euc1ides não a contempla
com o olhar estranho e superior do literato, não a descreve com o gosto
cínico e indiferente do escritor verista satisfeito de escrever o que é.
Aquela realidade ofende sua mente experta e rasga sua sensibilidade de
cidadão. Ele a aponta como um honesto pro­motor público, a condena
como um probo juiz e sugere e indica a solução como um patriota
ardente.
Euclides da Cunha não é um revoltado. Euc1ides é um
apaixonado. E justamente porque é um apaixonado, eu tenho minhas
dúvidas a respeito de seu “positivismo”, de que muito falam os críticos
de Euclides, como Veríssimo, Ribeiro e Rondon. O positivismo acaba
dando à nossa cabeça o gosto pelas definições, pelas classificações,
pelas abstrações áridas que parece digam muito e afinal nada dizem.
Ora, em quais de suas páginas Euclides se revela abstrato, classificador
e árido? O positivismo acaba apagando a vida e tirando das coisas a
alma. E eu me pergunto se há uma página em que Euclides não faça
justamente o contrário, procurando a vida até nas coisas amargas e
mortas, projetando um ideal e um “vir a ser” também lá onde tudo é
cruel e inhumano.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 421

Na luz de um ideal, ele descreve uma realidade. Mas a medida


do gênio artístico de Euclides não está naquela realidade escrita, e
sim na perspectiva ideal em que fica ela encarada, no anseio com que
a sofre, no desejo de superá-la, de cancelá-la, apresentando-a como
uma lenda; uma lenda remota após a qual deveria seguir a história
que é reforma, progresso, solução, solidariedade, esforço dominando
a natureza e melhorando-a para que possa o homem viver e os homens
– do­nos e fazendeiros uns, operários e trabalhadores ou­tros – possam
conviver numa compreensão recíproca para a fundação, para o rápido
desenvolvimento de um povo que deve tornar-se nação, de um País que
deve tornar-se Estado, de um território imenso que deve racionalizar-
-se, humanizar-se, abandonando para sempre o “status quo” da colônia
e do império para tornar-se progressista, liberal e republicano.
Euclides é um homem novo: o verdadeiro brasileiro procurando
renovar os homens e criando brasileiros.
Leiam-se atentamente, em silêncio, sem retórica suas páginas.
Ver-se-á quanta dor há em suas páginas. E quanta amargura no coração
deste escritor-engenheiro; o que vale quanto dizer escritor-construtor.
__________________

O livro de que deveria eu sobretudo falar é “À margem da


história”: um conjunto de artigos e ensaios que podem estar vizinhos,
ainda que “Viação sul-ame­ricana”, “Martin Garcia”, “O primado do
Pacífico”, “Da Independência à República”, “Estrelas indecifráveis”
pareçam artigos mais ou menos alheios e estranhos.
Mas apraz-me expor aqui minhas impressões ime­diatas; máxime
uma impressão que justamente o título daquele livro me sugere.
Na verdade, o mundo de Euclides da Cunha é sempre um mundo
“à margem da história”. E é mesmo da­qui que deriva aquele não sei que
de arcaico e de ner­voso, de épico e de remoto, pesando e cristalizando-se
no vocabulário duro, invulgar e maciço de seus livros.
Tudo no melhor Euclides fica ainda à margem da história; tudo,
isto é, fica aquém da história porque não é ainda história, não possui
ainda movimento, não tem consciência.
Ele, cidadão até os primeiros anos do século XX, possuidor
de uma sensibilidade rara; nutrido de cultu­ra e ardente de ação como o
futuro homem do ano de Dois Mil, vê-se em torno de si uma realidade
cinzenta e imóvel, quase selvagem, primitiva: mais do que selvagem e
primitiva porque os homens civis aí trouxeram a escravidão, reduzindo
o trabalho, a dívida, rasgando a família, incentivando o ódio e a traição,
a avidez e a cobiça, numa confusão de sacro e de profano, de ignorância
Bruno Enei
422 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

e maquiavelismo, de irresponsabilidade e de crueldade, de cínico e de


anárquico.
Tudo é aqui “à margem da história”. Leiam-se as páginas do
primeiro artigo: “Impressões gerais”. Pare­ce viver num mundo ainda
inexplorado. Num mundo de lenda.
O que é a natureza amazônica? “Ao revés da admiração ou do
entusiasmo provoca um desapontamento. Em poucas horas o observador
cede às fadigas de mo­notonia inaturável e sente que o seu olhar,
inexplica­velmente, se abrevia nos sem fins daqueles horizontes vazios e
indefinidos como do mar”.
E o que se torna o cientista? “Depois de uma única enchente se
desmancham os trabalhos de um hidrógrafo”.
E o homem? “O homem ali é ainda um intruso im­pertinente.
A volubilidade do rio contagia o homem.A adaptação exercita-se pelo
nomadismo”.
Leiam-se as páginas onde Euclides descreve a en­trada de
Manaus. É um quadro grandioso de dor e de realidade, de amargura
e de protestação: “Na entrada de Manaus existe a belíssima ilha de
Marapatá – e essa ilha tem uma função alarmante. É o mais original
dos lazaretos. Um lazareto de almas. Ali, dizem, o recém-vindo deixa a
consciência. E uma preocupação: o homem, ao penetrar as duas portas
que levam ao paraíso diabólico dos seringais, abdica às melhores
qualidades nativas e fulmina-se a si próprio, a rir, com aquela ironia
formidável. E o que, realmente, nas paragens exube­rantes das héveas
e costiloas, o aguarda a mais criminosa organização do trabalho. De
feito, o seringueiro realiza uma tremenda anomalia: ele é o homem que
trabalha para escravizar-se”.
Euclides não descreve. O homem é quem lhe interessa: o homem
e o seu drama fatal. O drama do pai que deixa a família no Ceará, e
torna-se seringueiro, depois manso, depois freguês, depois escravo,
depois hóspede ignoto e perdido.
“Não o ligam sequer à terra”, grita Euclides, e aquela terra rica
o que era. E o homem embrutece.
Leia-se o outro artigo: “Rios em abandono”. Que impressão
dolorosa diante destas páginas em que Euclides descreve a biografia
dos rios nascendo, deslizando e morrendo com os homens; justamente
quando parece que a Natureza aí os semeou para que fossem as estradas
dos homens e para que os homens deles soubessem aproveitar com
raciocínio. Quanto é amargo esse parasitismo do homem!
Podemos dizer a mesma coisa para os outros artigos: “Um
clima caluniado” é um severo estudo de sociologia e de antropologia;
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 423

“Os caucheros” é uma página amarga de crueldade e de destruição em


que os homens aparecem reduzidos a “gafanhotos” da natureza e de si
próprios; “Judas-Ahsverus” é o trágico espetáculo de uma autoironia e
de uma autocaricatura que nos leva aos cenários das bólgias de Dante
Alighieri; “Brasileiros” é o esboço de raros brasileiros em que revive a
alma bandeirante construindo e agindo rumo ao leste; “Trans-acreana” é
um concreto programa de solução e de redenção.
Estes sete artigos parecem os sete momentos de um drama, o
drama de uma natureza deforme e de uma humanidade imóvel. Nos
últimos dois artigos, “Brasileiros” e “Trans-acreana”, surge uma luz,
surgem o esforço solitário de construção de um núcleo de pioneiros e a
vontade firme de um Profeta, de Euclides: a “vox clamantis in deserto”,
desejoso de levar aquele mundo primitivo e bravo para o seio da
história, sugerindo estradas e casas, bonificações e reformas, contratos e
providências, justiça e civismo.
__________________

Este livro tem-me feito uma grande impressão: uma impressão


mais profunda e mais íntima do que aque1a que tenho recebido ao ler
Monteiro Lobato e outros.
A realidade de Monteiro Lobato é menos remota. A sua
inspiração é mais política, mais polêmica, mais barulhenta. Euclides é
mais bíblico, mais humano, mais essencial. Nunca há nele ostentação,
gozo e snobismo: as qualidades negativas dos que presumem.
Este livro tem-me feito uma grande impressão, sobretudo porque
me parece que ele contenha um estímulo e uma sugestão que nos cabe
recolher e pôr em prá­tica.
O estímulo, a sugestão e o dever de nos comportar hoje como
se comportou ontem Euclides: lutando, ten­do coragem, estudando,
pondo-nos diante da realidade humana e social do Brasi1 com atitude de
responsabilidade, esforçando-nos, em cada momento, de afastá-lo sempre
mais da “margem da história”, empenhando-nos, em cada momento, de
levá-lo para a história: o que nada mais quer dizer se não que devemos
seriamente trabalhar; pacientemente, corajosamente nos esforçar para o
bem estar, para o progresso, para a espiritualidade de nossa Pátria, que
será o que nós formos e soubermos ser.

(Tapejara – Órgão do Centro Cultural


Euclides da Cunha, Ponta Grossa, ano III, n. 11, 1953, p. 13)
Bruno Enei
424 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Saudação à turma de bacharéis “Bruno Enei”

Pela sua majestade e pelo seu significado, esta cerimônia de hoje


traz à minha lembrança épocas remotas e solenes que o lirismo de mil
poetas e a página luminosa e humana de romances imortais souberam
transformar num mito de pureza e de generosidade, pondo-as num plano
altíssimo de épica, de apostolado e de abnegação.
Esta cerimônia de hoje traz à minha lembrança a idade dos
cavalheiros e dos paladinos do Rei Arthur e de Carlos Magno; a idade
justamente das investiduras: quando a defesa da fé, a proteção ao
desamparado, a tutela feminina, a vocação e o talento de dedicar-se – alma
e corpo – a um princípio e a um ideal de nobreza e de magnanimidade
recebiam solenemente uma consagração que, perante a Corte e os grandes
sacerdotes, se concretizava na entrega de uma espada cintilante, ou na oferta
de um indômito cavalo em arreios, ou numa couraça impenetrável.
Após disso, começavam, então, aqueles “uncti Domini” a sua
vida de viagens e de peregrinações, de lutas e de audácias, de aventuras
e de heroísmos de que a França e Itália, a Ásia e a Europa foram o
esplêndido teatro, e as Canções de Gesta e os Poemas da Távola Redonda
e do Ciclo Carolíngio são ainda as imagens imortais e comovidas.
Mas a humanidade foi indo; foi indo, arrancando do seu caminho
essa arcaica necessidade da valentia individual para fazer frente à injustiça
e à arbitrariedade. Deu ao indivíduo outros direitos e outros deveres; deu
às viagens e às peregrinações, às lutas e às audácias, às aventuras e aos
heroísmos outro conteúdo; um conteúdo mais humano, mais interior e
essencial. E, entre os outros imperativos, aquele de iluminar, de educar,
de esclarecer; de transformar a luz em calor, a ciência em amor, o saber
em ideais, o conhecimento em hábito moral, em uma atividade civil,
procurando fazer com que o menino se torne homem e o homem mais
homem.
Veio a escola: esta palestra de cavalheiros, esse quartel de
paladinos, esse templo de sacerdotes.
E vós, e nós somos esses cavalheiros de hoje, os paladinos de
carteira vazia mas de coração magnânimo, os sacerdotes pregando e
crendo nos valores da vida, nas luzes do progresso, na realidade de um
amanhã melhor.
__________________
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 425

Estais aqui, meus afilhados. E este é o ambiente em que


recebereis solenemente o diploma de bacharel. Essas vossas becas –
austeras como veste talar – esses vossos mestres – em atitude de alegria
e de gravidade –, essas autoridades civis, militares e religiosas – dando
um caráter público e nacional –, os vossos pais, os vossos amigos, os
vossos concidadãos aqui presentes, essa Banda do 13.o R. I., que o
exmo. Sr. General da 5.a D. I. pôs gentilmente à disposição para que
as notas brilhantes e cristalinas do Hino Nacional levassem os nossos
pensamentos à Pátria Brasileira, representam todos a moldura singular
e digna desta “ordenação” acadêmica e universitária, que, pela terceira
vez, se repete aqui, nesta cidade princesina, alta nas suas colinas, aberta
nos seus horizontes, risonha de ar e de luz.
Daqui a uns instantes, num juramento sagrado e numa comoção
profunda, Estevam Zeve Coimbra – digno diretor da Faculdade Estadual
de Filosofia, Ciências e Letras de Ponta Grossa – vos proclamará
professores. Estareis, então, como aqueles cavalheiros antigos e aqueles
paladinos, prontos a zarpar.
__________________

“Ite et praedicate”: é o grito do Evangelho. E vós ireis e pregareis:


e eu já vos vejo disseminados por esse Paraná adentro, criando centros
de vida espiritual, no meio da mocidade ainda informe que vos aguarda
como massas astrais, como galáxias a quem a vossa palavra deverá dar a
individualidade e a personalidade da educação.
Ireis: e queira Deus que chegue logo o momento em que a escola
seja o problema mais vivo do Brasil! Queira Deus que chegue logo o
momento em que se torne a escola a instituição a quem o Brasil se empenhe
de dedicar o seu carinho mais íntimo e o seu cuidado mais legítimo para
que possa o professor – também perante a sociedade – sentir-se prática
e economicamente, o que ele sabe de ser e de valer idealmente, no plano
moral e educacional, onde se coloca a sua obra quotidiana e heroica a
quem todos, indistintamente todos os outros – médicos, engenheiros,
advogados e militares, funcionários e burocratas – devem todos o tudo
que eles são. E saia uma Reforma adequada do ensino; e sejam os
programas, os vencimentos, as garantias, as aposentadorias, as relações
entre escola e família, entre professor e aluno, entre prova e nota; os
concursos e os demais aspectos da escola e do magistério objetos de
uma revisão sem retórica e de uma reestruturação sem diletantismos, na
sólida certeza de que a escola é tudo na vida de um país, tudo e acima
de tudo, porque a indústria e a economia, a honestidade e o civismo, a
brasilidade e a unidade de um e de todos vêm depois; e são efeitos e não
Bruno Enei
426 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

causas, corolários e não princípios, filhos e não pais sendo a escola quem
verdadeiramente cria e aperfeiçoa.
Tantos alunos a mais e tantos “Gregórios” a menos.
__________________

Ireis e pregareis. Mas... que pregareis?


Antes de mais nada, como vosso Patrono que sou, peço-vos o
seguinte:

Matai o cepticismo
É aquela doença fatal que cria o desprendimento para com tudo
e para com qualquer coisa: não interessa saber, interessa passar; não
há aspiração mas somente aguardamento dos anos que mecanicamente
deverão bem passar e suceder-se. A incompreensão, o enjoo, o tédio
esvazia tudo e deixa tudo sem uma razão, sem uma necessidade,
numa espécie de naturalismo providencial em que se perde a noção da
responsabilidade e o gosto de agir. Tudo vai para a frente não indo, tudo
passa sem passar, “panta rei”, como dizia o filósofo grego: tudo escorre
sem nada deixar na alma a não ser a inveja, o ódio, a antipatia, o ciúme,
a hipocrisia, a bajulação, a megalomania.
Matai o cepticismo na escola: ele ainda é o “câncer moral” da
mocidade. E criai o entusiasmo, a fé, o interesse, o fervor, conforme a
psicologia de cada um, crendo em que direis, fazendo com que vossas
aulas não sejam dádivas e esmolas cansadas e soberbas mas sangue
do vosso sangue, sentimentos da vossa sensibilidade, ideais do vosso
coração e seleção da vossa crítica e do vosso esforço intelectual.

Matai o mecanicismo
Nada na vida é igual. Nada é uniforme. A vida é um eterno e
dialético “vir a ser”: de cume em cume, de conquista em conquista, de
assimilação em assimilação. Renovai-vos continuamente se quereis
renovar. E a vossa aula seja um grito; uma declaração de fé que ignore a
rotina e o programa. Nunca uma mesma aula seja a mesma aula. E o aluno
não repita, mas elabore, mas diga na luz do seu sentir, na ordem de sua
intelecção, na lógica da sua exigência individual. Matai o mecanicismo
e criai a crítica.

Matai a gramática
E não falo só desse “sujeito” que – coitado – pode
contemporaneamente ser simples e composto, abstrato e concreto,
expresso e oculto, agente e complexo. Não falo só desse “predicado”,
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 427

ele também expresso e oculto, simples e composto, parcial e total, e


não sei o que mais. Não falo desses “adjuntos” e desses “complementos
circunstanciais” que, quando são adjuntos se tornam complementos, e
quando são complementos se tornam adjuntos, segurando o aluno numa
casuística de termos e de arbitrariedades sem fim. Falo de todas as
“gramáticas”. Porque todas as disciplinas têm uma gramática. Na história,
essa gramática se chama cronologia pela cronologia, fato pelo fato,
nome pelo nome; na geografia, essa gramática se chama comprimento,
medida, nomenclatura; na filosofia, essa gramática se chama silogismo,
definição, resumo; nas línguas, essa gramática se chama colocação de
pronomes, frases modelos, estandardização.
Matai tudo isso, até que tudo seja feito como fim e não como
meio. O fim é a cultura, é a educação, é a personalidade, é o homem
na sua espiritualidade e na sua formação. O resto, tudo o resto é meio
e instrumento. Que errem, meus afilhados, que errem quanto quiserem
os vossos alunos; mas que falem, que digam, que se exprimam, que se
abram, que demonstrem de interessar-se e de ler, que demonstrem que
sabem distinguir, que criticam, que se estão formando e educando.
Não é a elegância que conta, mas sim a propriedade. Um
dia eles irão procurar a “gramática” – assim como eu estou fazendo
–, mas, se – como um tapa na cara – dareis, agora, àquelas almas só
gramática e sempre gramática – não há dúvida – acabareis matando a
sensibilidade, o desejo de exprimir, a alegria de dizer a própria opinião:
e tudo ficará genérico, monótono, insignificante, retórico, repetido na
base de modelos e de preconceitos. Tudo ficará “suficiência” e “maior”;
só maior, infelizmente.
Matai a gramática, e dizei continuamente a vós mesmos e aos
vossos alunos o que é humanamente a história, a geografia, a literatura.
Ler e ler, discutir e discutir, analisar e analisar por um processo crítico e
consciente de cada instante para ter um panorama vivo e real do estudo,
da vida deste nosso mundo que, apesar de tudo, é um mundo humano.

Matai o ponto
Não há ponto. Uma aula não é um ponto. Um assunto não é
um ponto. Um acontecimento não se fecha num ponto. Ponto, questão
e perguntas: nada de tudo isso, meus afilhados. A cultura é sempre, em
qualquer classe e em qualquer idade, elaboração. Não se trata de repetir.
A escola não é repetição. Aquele determinado problema deverá ser
exposto numa lógica pessoal, numa ordem subjetiva, numa coloração
própria. Não somos autômatos.
__________________
Bruno Enei
428 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

E chega de... matar.


Nós devemos amar e respeitar. Devemos ser amados e
respeitados numa atmosfera de cordialidade, de compreensão e de
reciprocidade. Isso não quer dizer nota dez ou nota nove. A nota é um
sinal empírico e prático; e nem sempre diz o que nós pensamos do
aluno como homem. E, se for possível, procuramos dar notas não ao
aluno como discente, mas ao moço como homem. E fazei com que
esses moços-homens sejam mesmo homens-moços: isto é, abertos, sem
aprumos, confidenciais, leais, respeitosos, sem ar de suficiências e de
concessões. Até cumprimentando; sim, até cumprimentando nas ruas da
vida, onde somos homens perante homens, sem esperar que o professor
cumprimente primeiro e tenha quase medo de que ele – o aluno – não
responderá ou dirá aquele “sim senhor” que é uma gota fria e o início de
uma separação sem mais jeito nenhum. Fazei com que os alunos sintam
a sublime comoção e o legítimo orgulho de olhar e de cumprimentar
o seu professor. Que eles também – muitos dos quais amanhã serão,
talvez, nossos colegas – não nos odeiem, não nos denigrem, não nos
mortifiquem, sobretudo porque fomos amigos e bons.
Amai essa mocidade. Empolgai-a. Esse é o nosso primeiro e
fundamental dever. Empolgar por uma comoção íntima, quase religiosa,
por ideais altos e públicos, fazendo com que aquelas almas – em
simplicidade, no equilíbrio e no senso dos outros – vibrem e batam,
como vibra e bate uma sinfonia de afeto e de sinceridade.
Diversamente, quantas hóstias jogadas aos porcos, e quantas
bolotas aos anjos, como dizia um grande poeta!
Empolgai essa mocidade bonita do Brasil, erguendo-lhe a
cabeça, acendendo-lhe os olhos, tirando-lhe o cansaço e a desconfiança,
inculcando-lhe o orgulho de ser verdadeiramente “moça”.
Subireis na cátedra: mas saibais que hoje só empiricamente há
distinção entre cátedra e banco, entre professor e aluno, entre homem e
moço. A escola é verdadeiramente escola na sua unidade de intentos, de
interesses, de propósitos, de autoeducação: uma unidade de trabalho, de
operosidade, de responsabilidade pública e civil. Porque, trabalhadores,
trabalhadores do Brasil, somos todos, e em qualquer lugar do organismo
nacional e em qualquer momento da vida. E a escola é trabalho. Trabalho
e dor.
Eu li uma vez que um grande professor de uma Universidade da
Europa pedia ao Ministério da Educação do seu país um ano de licença.
Aquele professor baseava o seu pedido na singular declaração de que se
sentia cansado, e percebia que assim ele não teria nada de novo a dizer
aos seus alunos. Esse professor, nada menos, era um Prêmio Nobel de
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 429

Literatura. E o pedido foi deferido. Imaginem, meus afilhados! Até esse


escrúpulo, até essa preocupação de sentir que, além da aula disto ou
daquilo, cabe-nos dar algo de sempre novo, de humano, de espiritual,
fazendo com que até a mesma palavra se transforme e adquira matizes e
colorações diferentes durante uma aula.
A escola é justamente isso. A cultura é justamente esta
sensibilidade imaculada e ardente que a rotina não deve ofuscar.
Não desanimai. A vida do professor é dura: é economicamente,
praticamente, socialmente dura. É dura até entre os próprios professores.
Recebereis incompreensões e facadas. A “via crucis” levou Jesus Cristo
à sua e à nossa redenção. E tudo que no mundo for nobre, essencial,
verdadeiro nunca vencerá fácil. Fácil é o triunfo do mal e do vício. Fácil
é a piada. Mas é um triunfo transeunte e momentâneo. A educação fica.
A escola fica. Até o professor ruim fica; e os seus defeitos acabam, às
vezes, educando.
O problema não é queixar-se: o problema é ir para frente, é
melhorar-se e melhorar, educar e educar-se. A escola não é o mundo
frio e jurídico dos romanos. Não lhe cabe o lema: “Do ut des”. Por isso,
nos momentos difíceis e críticos que todos conhecemos, perguntai a vós
mesmos: “Mas... e o Brasil?, o Brasil está verdadeiramente satisfeito
comigo? Dou mesmo eu alguma coisa à minha Pátria? Sirvo a algo?”
Se, por acaso, a resposta for negativa, uma contração fria e dolorosa
arrepiará as vossas costas e atrás das orelhas. E não há dinheiro em
dia que sare essa amargura. Não há amargura maior do que essa para o
professor com a consciência do professor que sabe que a escola não é
engano e tapeação.
__________________

Eu tenho confiança em vós. Conheço-vos um por um. Sei as


dificuldades, as qualidades, as aspirações de cada um de vós. Tenho
confiança em vós. Sei que fareis bem. Quero que façais bem. Fareis bem
porque é o Brasil que quer isso junto à sociedade, às famílias, aos vossos
pais, aos pais dos meninos brasileiros. Fareis bem porque é esta Faculdade
Estadual moça que o quer. Sem a vossa operosidade, ela não tem razão
de ser. Não significa nada. Não tem uma necessidade, embora saibamos
todos que ela é já – e o será mais – um centro vivo e fecundo de estudos
e de cultura, uma exigência do Paraná, uma glória de Ponta Grossa, e dos
professores, a quem esta nossa Faculdade dá brilho e lustro, um lustro
e um brilho que não são, não, particulares e estranhos, mas citadinos e
públicos no mais alto sentido. Os convites desta cerimônia chegaram até
o longínquo Amazonas. E hoje, em Manaus, aqueles brasileiros sabem
Bruno Enei
430 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

que Ponta Grossa é a sede de uma Faculdade, de duas Faculdades e,


talvez, de uma terceira e de uma quarta Faculdade, dando-lhe todas essas
Faculdades o título prestigioso de Cidade Universitária.
__________________

E, agora, despeço-me. Não sei por que me elegestes Patrono.


Não sou nada. Não tenho nada. Querem até dizer que nem brasileiro eu
sou: eu que nasci na minha Barra Bonita e que tantos anos fiquei longe
de meus avós e de meus pais, que aqui estão sepultados, para sentir mais
profunda a vontade de agir e de servir esta terra que a nós cabe pôr na
história e na vanguarda do progresso e da nobreza sem o otimismo de
um instante e sim no trabalho de todo dia, sem milagres e escatologias,
mas agindo e fazendo: pondo uma pedra em cima da outra, como todos
fazem e fizeram desde que o mundo é mundo.
Mas quisestes nomear-me Patrono. E estou aqui.
Estou aqui, não só para pedir promessas; mas ainda para fazer
promessas. E duas, sobretudo: 10 – Acompanhar-vos-ei onde for, com
o carinho e a amizade de quem costuma encravar-se a um amigo como
a comoção se prega no âmago de nossas interioridades; 2o – Não vos
trairei. Continuarei sendo o que bondosamente quisestes ver em mim.
E procurarei de melhorar-me. Procurarei de melhorar-me porque isso é
justamente a escola: um melhorar contínuo, um melhorar-se sem trégua,
um melhorar que é igualmente dos alunos e dos professores, sendo a
vida uma eterna escola e a escola uma eterna vida que, para todos –
alunos e professores – nada mais é senão constante melhorar: educação
de cada instante e de sempre.

(Jornal da Manhã, de Ponta Grossa, 16/12/1954)


ESCRITOS SOBRE
BRUNO ENEI
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 433

Novo Docente-Livre da Universidade

Homenageado o professor Bruno Enei


por sua atuação no recente concurso

As pessoas presentes – O discurso de saudação – Agradecimento


do prestigioso educador

Como foi noticiado, realizou-se, na noite de sexta-feira última,


o jantar de homenagem ao Professor Bruno Enei, que lhe ofereceram
amigos e colegas, por sua atuação no recente concurso, para cátedra
de Língua e Literatura Italiana, da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras da Universidade do Paraná, em que lhe foi conferido o titulo de
Docente-livre.
Emprestaram solidariedade à manifestação, que teve lugar no
restaurante “Côte d’Azur”, o sr. Nivon Weigert, secretário de Estado dos
Negócios do Governo, o sr. Francesco Parenti, Cônsul-Geral da Itália,
no Paraná e Santa Catarina, o sr. Abílio Holzmann, chefe do Serviço
de Imprensa do Governo, o professor Mario Araujo, diretor do Colégio
Estadual Regente Feijó, de Ponta Grossa, os professores Milton Carneiro,
Wilson Martins, Temístocles Linhares, Brasil Pinheiro Machado e José
Loureiro Fernandes, da Universidade do Paraná, os drs. Reginaldo
Werneck Lopes, J. R. Vieira Neto, Eloy da Cunha Costa, Álvaro Augusto
Cunha Rocha, Gastão Lopes Borio, os srs. Paolo Parenti, João Alves
dos Reis e os Profs. Faris Michaele, os jornalistas Ray Feijó, Fernando
Pessoa Ferreira, Orlando Soares Carbonar, Aristeu Berger, Sebastião
França, Glauco Sá Brito, Daquino Borges e Eduardo Rocha Virmond.

DISCURSOS
No final do jantar, o Professor Wilson Martins, em nome dos
presentes, saudou o homenageado. Em segundo, falou o professor Mario
Araujo, interpretando o pensamento dos colegas do Professor Bruno
Enei, em Ponta Grossa, em cuja Faculdade de Filosofia é catedrático
interino de Italiano. O novo Docente-livre da Universidade do Paraná,
comovido, expressou os seus agradecimentos pelas demonstrações de
apreço que lhe eram tributadas ressaltando o sentido de estímulo e de
encorajamento que encontra na solidariedade dos seus amigos, para a
obra contínua exigida pela educação da juventude. Antes de encerrar-se
a reunião, o sr. Francesco Parenti, Cônsul-Geral da Itália, manifestou
a satisfação com que participava dela, homenageando as qualidades
Bruno Enei
434 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

de educador de cidadão evidenciadas pelo Professor Enei, durante as


provas do concurso para a cátedra da Faculdade de Filosofia.

A SAUDAÇÃO
É o seguinte o teor do discurso pronunciado, na ocasião, pelo
Professor Wilson Martins:
Mais do que alegria, a sua livre-docência, meu caro Bruno Enei,
me causou espantos. Digo “espantos”, no plural, porque são dois, e
contraditórios. [trecho apagado] todas as provas do seu concurso, tendo
admirado a inteligência e a coragem com que as enfrentou, tendo mesmo
me surpreendido – eu, que já o conhecia – com os seus esmagadores
conhecimentos de Literatura Italiana e com a sua cultura geral – eu me
espanto de que lhe tenham dado apenas o segundo lugar. Muitas das notas
que lhe atribuíram não corresponderam às suas provas: e quando as notas
não correspondem ao valor das provas, parece-me que a explicação só
pode caber nesta alternativa: houve, por parte dos que as atribuíram, ou
ignorância ou má fé. Também pode ocorrer que a conjunção seja outra, e
que a má fé se alie à ignorância para produzir esse resultado monstruoso
que é o desconhecimento da categoria de um candidato.
Ignorância ou má fé, ou ainda: ignorância e má fé, são, segundo
parece, elementos estranhos a um concurso universitário e contra os
quais ninguém terá armas eficientes. O próprio Benedetto Croce, o
próprio Flora, o próprio Momigliano, seu antigo mestre, não teriam
provavelmente obtido, nessas condições, resultados melhores.
Mas, se assim é, e aqui entra o meu segundo espanto −
contraditório, e, contudo, complementar do primeiro: se assim é, não
deixa de ser espantoso que você tenha conquistado essa livre-docência
que hoje é sua. Se se tratava de eliminá-lo, surpreende que não o
hajam eliminado, e se os seus conhecimentos não bastaram para obter
alguma coisa mais do que a livre-docência, não [trecho apagado] para
que tenham sido suficientes para ela. Porque, como se viu, não houve,
no caso, uma exata avaliação do seu valor – não o valor estimativo
e gratuito das opiniões pessoais e caprichosas, mas o valor efetivo e
objetivo, demonstrado em exames de natureza cientifica; e, se não houve
uma exata avaliação do seu valor, o resultado seria sempre arbitrário, e
tanto seria possível reconhecer-lhe uma livre-docência, como nada. A
injustiça seria a mesma e da mesma gravidade a ofensa cometida contra
a Inteligência.
Dessa forma, meu caro Bruno Enei, esta reunião não é, para mim,
um jantar de regozijo, mas um banquete funerário: o banquete funerário
de algumas esperanças e de algumas ilusões. Na minha ingenuidade,
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 435

eu acreditava que um concurso fosse um concurso e esperava que os


concursos se realizassem como concursos. Assim se vão as ilusões e as
esperanças da juventude; e assim se aprendem as lições de coisas.
Deplorei o espetáculo proporcionado por alguns dos seus
examinadores, mas admirei e respeitei o candidato. E, se até agora
falei, como suponho, em meu nome pessoal, estou certo de que
falarei, daqui por diante, em nome de todos os presentes. Admiramos
e respeitamos o candidato e nele saudamos, agora, afetuosamente, o
Homem e o intelectual. O homem, que não se deixou abater por um
ambiente declaradamente hostil, que não cedeu um milímetro das suas
convicções por qualquer baixa consideração de interesses; e o intelectual
que, naquela atmosfera [trecho apagado] sem piedade, soube garantir
a flama do espírito e assegurar a continuidade das grandes tradições
universitárias.
Quisemos testemunhar-lhe publicamente a nossa admiração e
a nossa amizade: quisemos dizer-lhe nesta noite que, como sempre tem
acontecido na história da inteligência, os que pretenderam diminuí-lo é que
saíram diminuídos, porque não há maior demonstração de irrecuperável
mesquinhez do que o ódio impotente e visível contra a superioridade,
qualquer que ela seja.

(O Dia, de Curitiba, 22/7/1956)

Afirma o professor Bruno Enei:

Profundo interesse cultural da mocidade


universitária carioca

Entrevista com o ilustre intelectual paranaense – Entusiasmo


pela gente moça que conheceu no Rio – Pronunciou nove aulas e
conferências – Escassa difusão da cultura italiana – Público sem
preconceitos – Cordialidade para com os visitantes – Entrevista
com Carlos Drummond de Andrade

Regressando domingo último da Capital Federal, onde, a


convite da Universidade do Brasil e da Universidade do Distrito Federal,
pronunciou uma série de nove aulas e conferências, o professor Bruno Enei
Bruno Enei
436 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

foi procurado pela reportagem de “O DIA”, que obteve suas impressões,


colhidas durante esse breve contato com os meios culturais cariocas.
O livre-docente de Língua e Literatura Italiana da Faculdade
de Filosofia da Universidade do Paraná revelou, nas entrelinhas de suas
declarações a respeito do que viu e sentiu no ambiente universitário que
acaba de visitar, um sincero entusiasmo pela nova geração de intelectuais
cariocas. A mocidade estudiosa do Rio conquistou Bruno Enei, brasileiro
de formação italiana, que voltando a se fixar em sua terra natal acaba de
descobri-la, no que tem de mais expressivo e prometedor.

INTERCÂMBIO CULTURAL
Iniciando nossa conversa, o professor fez questão de referir-se
à colaboração do Secretário da Educação, decisiva para concretizar sua
viagem ao Rio. Referiu-se ao sr. Vidal Vanhoni, destacando os esforços
que vem envidando no sentido de um maior intercâmbio cultural entre o
Paraná e os demais centros brasileiros fazendo com que sejam conhecidos,
fora dos limites do Estado, os nossos legítimos valores intelectuais. As
palavras são nossas: o professor é incorrigivelmente modesto. Fica,
entretanto, registrado o seu agradecimento.

CORDIALIDADE
– Qual sua mais forte impressão (favorável) trazida de sua recente
viagem?
– Tive muitas impressões fortes e favoráveis. Uma delas do
clima de simpática cordialidade entre professores e alunos, nas duas
grandes universidades cariocas. As relações entre discípulos e mestres
são as de amigos em estudo: ambos procuram o mesmo fim e é mútuo
o interesse em discutir problemas de cultura. Impressão igualmente
admirável causou-me o interesse da mocidade universitária pelo estudo
das culturas europeias, principalmente a francesa. É um interesse que
não se contenta em explorar superfícies, mas aprofunda-se no espírito
humano dos outros povos, com a mentalidade que considera uma língua
mais como humanidade do que como finalidade, pois, atrás das palavras
eles veem sempre almas.

PÚBLICO SEM PRECONCEITOS


– Aliás, esses jovens estudantes, que constituíram a maioria
presente às aulas e conferências que pronunciei, são um público
inteligente e destituído de falsos preconceitos formais. Formulam questões
objetivas e corajosas, após as palestras, estabelecendo francos debates,
substanciosamente esclarecedores.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 437

ESTUDO DO ITALIANO
– O ensino da língua e da cultura italiana é feito, na Universidade
do Brasil, pela catedrática Aída Sirene Bianchini e por três assistentes. E
na Universidade do Distrito Federal, pela notável professora catedrática
Marcella Mortara, de quem tive oportunidade de assistir magníficas aulas,
orientadas pela mesma mentalidade humanística a que já me referi, e
que me parece o verdadeiro caminho para o estudo sério de qualquer
língua.
Evidencia-se que, no Brasil, há um quase total desconhecimento
do idioma e do pensamento italiano, ao contrário do que sucede em
relação à cultura francesa, tradicionalmente difundida neste País. Dois
fatores parecem-me responsáveis por esse estado de coisas: em primeiro
lugar a falta de uma política de difusão cultural por parte do governo
italiano. E, em segundo, o fato de não figurar o italiano entre as línguas
incluídas no currículo secundário.
Em consequência, o conhecimento que se tem no Brasil do
espírito da Itália não vai além do relativo contacto com a música popular
daquele país. – Mesmo entre os meios mais esclarecidos, salta-se de
Dante para D’Annunzio, ignorando que, entre os dois, existem vários
séculos de pensamento, arte e ciência. A maioria dos que se julgam
atualizados com a literatura italiana pararam em Papini, quando se sabe
que o recém- falecido filósofo foi o expoente de um período de decadência
há muito ultrapassado. E desconhecem um Ungaretti, um Quasimodo, um
Montale, um Levi e outros, representes do que há de melhor na literatura
de nossos dias.

ENTREVISTA COM DRUMMOND


Encerrando a entrevista, acrescentou o professor Bruno Enei:
– Durante os escassos dias de minha permanência no Rio, respirei
uma atmosfera de encantadora simpatia. É comovente a naturalidade e
cordialidade com que é recebido o visitante. Tive a satisfação de ver, entre
os que assistiram minhas aulas e conferências, personalidades do valor de
Josué de Castro e Roberto Alvim Correia, ilustre ensaísta e catedrático de
literatura francesa da Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil.
Também tive ocasião de palestrar com o crítico Brito Broca, com Simeão
Leal, o incansável divulgador da cultura brasileira e incentivador da gente
moça, com o admirável educador Carneiro Leão, e fui apresentado a
Carlos Drummond de Andrade, com quem conversei por longos minutos,
conseguindo uma entrevista que, desde já, ponho ao dispor de seu jornal.
Esteve também presente a uma de minhas conferências o poeta Tasso
da Silveira, figura muito estimada nos meios estudantis da Capital
Bruno Enei
438 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Federal, que, sem embargo de sua saúde abalada, deu-me o prazer de


seu comparecimento.
Entre a gente mais jovem, Afonso Feliz de Souza, poeta de
talento e pessoa extremamente simpática. E três moças: Pina Martinelli,
aluna da Universidade Católica, Marly Santos Oliveira, que estreará
em livro brevemente, com um volume de poemas editado pela “Livros
de Portugal”, e Piera Brizzi, jovem pianista, que apresentará tese para
conclusão de seu curso na Universidade de Roma, sobre o tema “Folclore
musical brasileiro”, em dezembro próximo.
Enfim, foi essa uma experiência de aprendizado: aprendi
a confiar no futuro da cultura brasileira. Tenho agora motivos para
acreditar no desenvolvimento intelectual de minha Pátria, fundado nos
alicerces sólidos e sobretudo lúcidos que essa admirável geração está
construindo.

(O Dia, de Curitiba, 3/10/1956)

Professor Bruno Enei –


Um homem dentro da vida
Guaracy Paraná Vieira

O HOMEM
O professor, jornalista, crítico literário e ex-partigiano, Sr.
Bruno Enei, é filho do casal Dna. Natalina e Sr. Natale Enei (este de
saudosa memória), tendo nascido em Barra Bonita, Estado de S. Paulo,
no dia 8 de junho de 1908.

DENTRO DA VIDA
O menino Bruno Enei era o mais velho de seis irmãos, filhos
de um casal de lavradores, originário da região de Marche, na Itália,
imigrados para o Brasil no dia do casamento. Estudou na Escola
Pública de sua cidade natal – Barra Bonita – onde concluiu o curso
primário. Em 1919, logo após o término da I Grande Guerra, seus pais
desejaram volver à Itália e para lá viajaram acompanhados dos filhos.
Porém o ambiente de após-guerra, com suas misérias, o céu nublado de
novembro, o panorama da pátria castigada pela hecatombe chocaram
profundamente o espírito de Natale Enei. Três meses após retornavam,
definitivamente, ao Brasil. Mas, haviam tomado uma resolução:
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 439

deixariam um filho estudando na Itália. O escolhido foi Bruno, o mais


velho. Enquanto a família regressava à pátria brasileira, o brasileirinho
Bruno Enei, com apenas 11 anos de idade, ficava na Europa, ainda
conturbada pelo flagelo do após-guerra. Assim o menino solitário, elo
de ligação entre as duas pátrias de seus pais, entrava dentro da vida,
para a difícil caminhada de uma nobre profissão.

O ESTUDANTE
Bruno Enei iniciou seus estudos como interno no Seminário da
cidade de Ferno, pois como estrangeiro que era não podia frequentar
curso mantido pelo governo. Posteriormente, transferiu-se para a cidade
de Gubbio, onde fez o ginásio e colegial, concluindo o curso secundário
em 1932. Contrariando a vontade de seus pais – que o desejavam médico,
ingressou na Universidade de Pisa, no curso de Letras e Filosofia, pois
sua vocação, seu grande ideal, era transferir-se para a Universidade de
Florença, a fim de cursar um ano para defender tese e obter o grau de
Doutor. Diplomou-se em 1936.

O PROFESSOR
Em 1937, fez concurso de títulos e provas para a Cadeira de
Letras (Italiano, Latim e Grego) no Ginásio de Gubbio. Aprovado,
iniciou a concretização de seu sonho – ser professor. Posteriormente,
fez novo concurso de títulos e provas para lecionar Italiano e Latim no
Liceu de Perugia (curso colegial). Fez novo concurso e ingressou como
Professor de Italiano e História no Instituto Magistrale Superiore de San
Genesio. Outro concurso levou-o à Cátedra de Italiano na Universidade
para Estrangeiros em Perugia. Nesta Universidade conheceu a aluna
brasileira (paranaense) a professora Eny Caldeira, que recebera uma
bolsa de estudos e cursava o Curso Especial de Montessori, naquela
Faculdade. Esse encontro seria um acontecimento de invulgar relevância
para o seu retorno ao Brasil. Com ela passou a aprender o português,
pois nos longos anos de ausência, num meio estrangeiro, o menino
havia esquecido o idioma natal. Já alimentava o desejo de retornar ao
Brasil, ansioso por integrar-se no processo de desenvolvimento cultural
da sua pátria, distante, mas nunca esquecida. A infância passada em
Barra Bonita, as cantigas de roda, aquela ampla liberdade, a família,
permaneciam na sua alma sensível e amorosa.

O RETORNO
Em janeiro de 1951, após renunciar aos seus cargos e títulos –
inclusive o direito à cidadania italiana, se assim o desejasse – perante
Bruno Enei
440 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

a Embaixada Brasileira, legalizada a sua situação, embarcou para


o Brasil com a alma plena de esperança e do desejo de reintegrar-se,
definitivamente, na sua pátria. Iniciando suas atividades, em São Paulo,
realizou uma série de palestras no Instituto Brasil-Itália, onde travou
amizade com o escritor e jornalista Paulo Duarte, Diretor da Revista
“Anhembi”, da qual se tornaria assíduo colaborador.
Posteriormente, veio para Curitiba, onde através da amizade de
Eny Caldeira, integrou-se no meio cultural curitibano, tendo conseguido
colocação no Consulado Italiano. Trabalhou na Sociedade Dante Alighieri
e ministrou um Curso de Extensão na Universidade do Paraná. Em 1952,
revalidou o curso primário no Colégio Estadual Regente Feijó, em nossa
cidade. Na Universidade do Rio Grande do Sul revalidou o Curso de
Bacharel e Licenciado, regularizou sua situação perante as leis do ensino
no Brasil. Ainda neste mesmo ano, o Governador Bento Munhoz da
Rocha Netto, nomeou-o como Prof. Suplementarista (Latim) no Colégio
Estadual Regente Feijó. Posteriormente foi nomeado Catedrático Interino
de Teoria da Literatura, na Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e
Letras de Ponta Grossa. Em 1955 fez concurso de títulos e provas na
Secretaria de Educação e Cultura, para a Cátedra de Latim. Aprovado
em 10 lugar, foi nomeado para o Ginásio de Palmeira. Um ano depois foi
transferido para Ponta Grossa. Em 1956, fez concurso de títulos e provas
na Universidade do Paraná, para a Cátedra de Italiano, conseguindo a
Livre Docência. Quando residiu em Curitiba, lecionou no Instituto de
Belas Artes.

ATIVIDADE CULTURAL
Publicou, em 1954, o livro “La Poesia de Giuseppe Gioachino
Belli”. Quando na Itália, verteu para o italiano o livro de Bento Munhoz da
Rocha Netto – “Uma Interpretação das Américas”. Tem realizado várias
conferências, destacando-se as que pronunciou na Faculdade Nacional de
Filosofia, sobre “Estética e Crítica Literária” e na Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da Guanabara, versando sobre “Crítica Literária em
Relação à Literatura Italiana”. É sócio do Centro Cultural “Euclides da
Cunha”.

JORNALISTA
Na Itália foi Diretor do “Il Corriere de Perugia”, órgão do Comitê
de Libertação (movimento de resistência), ligado à 8a. Armada Britânica,
e colaborou na Revista Literária de Firenze. No Brasil colaborou no
“Estado de São Paulo”, “Gazeta do Povo”, “O Estado do Paraná”, “Jornal
da Manhã” e “Diário dos Campos”, na revista Anhembi.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 441

PARTIGIANO
Bruno Enei sempre acalentou na alma o sol da liberdade. Quando
a Itália entrou no conflito mundial, ao lado do nazismo, ele transferiu-
se para a França e integrou-se no Movimento de Resistência (Maqui),
participando de inúmeras ações, tendo sido ferido por duas vezes,
na França e nos Alpes. Retornou à Itália e filiou-se aos “Partigiani”,
dirigido pela Armada Britânica, através da “Allied Commision Patriots
Branch”. No posto de Major comandou o II Batalhão “Aldo Bologni”
de 1942 a 1945, tomando parte em todas as guerrilhas e emboscadas
visando debilitar as tropas nazi- fascistas. Entre essas ações destaca-
se: a Ação Armada sobre Triestina; ocupação da cidade de Pietraluga;
ataque às tropas alemãs na rodovia de Camporeggiano; libertação da
cidade de Gubbio, além de inúmeras passagens entre as linhas inimigas,
para fornecer informações aos aliados. Era o brasileiro anônimo,
lutando paralelamente com as Forças Expedicionárias Brasileiras,
contra o inimigo comum, contra o jugo opressor do nazi-fascismo.

A FAMÍLIA
Casou-se, em 10 de agosto de 1939, na cidade de Gubbio, com
a Srta. Maria Biancarelli, professora formada em Letras Clássicas,
pela Universidade de Roma, hoje brasileira naturalizada, lecionando
no Colégio Regente Feijó e na Faculdade de Filosofia. Do consórcio
nasceram os filhos Juliana e Ricardo (aluno do 20 ano científico no
Regente Feijó), ambos registrados como brasileiros na Embaixada
Brasileira na Itália.

MAIOR ALEGRIA
Considera sua maior alegria a oportunidade de dedicar-se à
juventude no trabalho da educação, contribuindo para a formação da
personalidade intelectual das gerações novas. Trazer para a juventude
do Brasil a sua experiência, o sentimento vivo de liberdade colhido num
ambiente de lutas, vibrar com esse anseio de cultura e desenvolvimento
que sente nos seus alunos, esse desejo de integrar-se na formação deste país
que tem para sua alma de idealista um dos maiores júbilos, compensando
todos os sacrifícios, as lutas da longa jornada, longe da Pátria e da família.
Dar algo de si pela juventude ávida de saber, considera a maior contribuição
que um homem possa almejar oferecer à coletividade.

O QUE APRECIA E O QUE PENSA


Aprecia a literatura italiana e entusiasma-se com o conhecimento
da pujante literatura brasileira contemporânea. Beethoven, Bach e
Bruno Enei
442 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Mozart, na música clássica, são seus preferidos. Pintura expressionista,


com algumas restrições, merece sua apreciação. Gosta de cinema e
teatro. Canto coral é a expressão vocal que mais lhe agrada. É filiado
à filosofia de Benedetto Croce. É um otimista quanto ao entusiasmo
da geração jovem brasileira, a quem cabe argamassar as bases de uma
cultura pujante e uma pátria grandiosa.
Acriação de uma opinião pública liberal, progressista, construtiva,
positiva, aponta como o principal problema brasileiro, capaz de ser
solucionado através da Escola, desenvolvendo com seriedade, coragem
e patriotismo, a cultura do povo, tarefa que a mocidade terá sobre seus
ombros. O Brasil não é apenas um país, é um continente, e seu povo
deve preparar-se para pensar sempre nesse sentido da grandiosidade que
lhe cabe estruturar. E nessa imensa e nobre tarefa o professor encontra
campo vasto e propício para realizar e cumprir sua missão.
Este o homem que fomos encontrar dentro da vida. Realizado
seu ideal de ser professor, mas cada vez mais exigente consigo mesmo
no dever de realizar sua parcela de trabalho na construção deste
sentimento de brasilidade, que empolga todos os bons brasileiros. Não
ambiciona outra glória que não seja a de servir, coerente com o lema
do Rotary Internacional (é membro do Rotary Clube de Ponta Grossa –
classificação: – Educação – Ensino Superior – Filosofia).
Modesto e retraído, cuidando de sua tarefa mais do que de
obrigações sociais, apesar de ser sócio das principais agremiações
recreativas, filantrópicas e esportivas, integra-se na vida da comunidade
pelo seu trabalho diuturno, abençoado pela estima espontânea e calorosa
de seus alunos, filhos de sua alma idealista. Veio de origem humilde.
Traçou caminho difícil em terra estranha, enquanto seus familiares,
no aconchego do lar, integravam-se na vida de suas comunidades.
Seu roteiro e seu exemplo marcam uma diretriz para os que estudam
e almejam realizar algo em favor do bem comum. Mestre e cidadão,
situa-se na vida como estímulo às gerações novas, que tanto terão que
lutar pela grandeza e soberania da Pátria.

(Diário dos Campos, de Ponta Grossa, 26/4/1964)


Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 443

Le celebrazioni dantesche a Ponta Grossa

Il corso “Lectura Dantis” a cura del prof. Enei

Nell’auditorio della “Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e


Letras de Ponta Grossa” (Stato del Paraná) il 22 maggio ha havuto luogo
la cerimonia inaugurale del “Curso de extensão universitaria – Lectura
Dantis”, promosso dal “Departamento de Letras” dello stesso Ateneo. É
una nobile iniziativa che onora e dimostra l’alto grado di cultura della
città chiamata “Princeza dos Campos”, ed una dimostrazione eloquente
dei vincoli che uniscono attraverso la lira poetica la Patria di Olavo Bilac
e quella di Dante.
Il corso “Lectura Dantis” é stato affidato al Prof. Bruno Enei,
cattedratico di indiscusso valore, profondo ed appassionato conoscitore
e cultore della letteratura italiana, che con la sua parola affascinante, per
oltre un’ora há tenuto avvinto l’auditorio, che non gli ha risparmiato
applausi fervorosi e felicitazioni.
Sensa dubbio, l’iniziativa Pontagrossense costituisce una delle
più importanti manifestazioni che sotto il cielo della Croce del Sud si
svolgono in omaggio al settimo Centenario del Sommo Poeta e che cosí
sia é dimostrato dall’alto consenso e dalla attenzione di cui il Corso é
stato oggetto da parte delle Autorità dello Stato del Paraná.
Sul palco, addobbato con loAuri-verde ed il Tricolore, troneggiava
il profilo del Sommo Poeta, e al tavolo d’onore presero posto il Dr. Lauro
Rego Barros, Segretario dell’Educazione e Cultura del Paraná, S. E. Rev.
Don Geraldo Pellanda, Vescovo di Ponta Grossa, il dr. José Craveiro
Bittencourt de Sá, Direttore della Facoltà Statale di Filosofia, Scienza
e Lettere di Ponta Grossa, Dr. J. Dantas, Direttore dell’Università di
Diritto, Dr. Jaime Gusmão, Direttore della Facoltà Statale di Farmacia e
Odontologia, Prof.a Donna Lourdes Zanardini Camargo, Superintendente
di Insegnamento Superiore del Paraná, Prof. Amadeu Puppi, Deputato
statale, Plauto Miró Guimarães, Vice Prefetto, rappresentante del Prefetto
di Ponta Grossa. Nell’auditorio direttori delle Scuole primarie e secondarie,
rappresentanti dei Direttori accademici, del Rotary Club, del Lyon Club,
Associazone Commerciale, della Stampa parlata e scritta, il Presidente
della Società “Dante Alighieri” di Ponta Grossa, ed um folto publico.
É con vivo rammarico e disappunto che gl’Italiani presenti
dovettero constatare la assenza del Console Generale d’Italia, che, invitato,
non inviò neppure un suo modesto rappresentante.
Bruno Enei
444 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Il Corso si concluderà il 15 dicembre. Le iscrizioni che già


raggiungono 207 partecipanti, sono gratuite e agli alunni saranno forniti
diplomi di frequenza.

(Tribuna Italiana, de São Paulo, 5/6/1965)

Da minha vedeta

Bruno Enei – A personificação da cultura


Raul Rodrigues Gomes

Criaturas vêm a este mundo com um poder tal de centripetismo


espiritual cuja explicação real só encontro nas reencarnações ou vidas
sucessivas.
Bruno Enei pertencia a esse grupo.
Por onde ele passou aqui, no estrangeiro, por várias instituições
na Itália onde elaborou os fundamentos de sua profunda cultura
humanística deixou um como rastro intérmino de simpatia. Desde
quando tivemos o primeiro encontro, me lhe prendi por uma admiração
e uma grande estima. Estima e apreço principalmente pela sua cultura,
cultura verdadeira posto não ostentar o ouropel do enciclopedismo.
Como criatura de sangue italiano, uma das pátrias de cultura
ocidental de maior profundidade, ela contrastava em nosso meio com
as fulgurações fáceis de sabedorrença, assentada em catálogo ou
enciclopédias.
Por isso impressionava quando ensinava ou quando realizava
conferências ou cursos.
Sua síntese biográfica é de grande significação: Nascido em
São Paulo, partiu para a Europa aos 11 anos. Lá fez o curso ginasial, o
colegial, ciências e letras e línguas. E submeteu-se a vários concursos
e chegou à cátedra universitária.
Um encontro com Eni Caldeira numa cidade italiana decidiu
de seu destino: o retorno ao Brasil. Esteve em seu Estado Natal, depois
transportou-se para o Paraná. Aqui fez a via da cruz para ingressar no
magistério secundário – e, curioso, teve de revalidar o ginasial para
abrir caminho no ensino.
Fixou-se em Ponta Grossa, onde ensinou no Regente Feijó e
na Faculdade de Ciências e Letras.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 445

Em Curitiba concorreu à cadeira de italiano na Universidade do


Paraná – porém, ali, ele doutor por Universidade da península, obteve
apenas a livre docência! Quando uma cultura de sua altitude deveria
conquistar a cátedra de italiano, quase sua língua materna, exibindo o
volume e rol de títulos.
Entre nós, raríssimos os capazes de o superarem nisso.
Porém não há estranhar essa sua derrota.
No Brasil concurso ainda é influenciado por forças que fazem
e tramam o que querem e na forma de interesses suspeitos.
Derrotado em cotejo em que esse epílogo jamais se faria em
qualquer parte do mundo – falo dos centros de alto nível de sabedoria e
ciência –, regressa a Ponta Grossa, cujas instituições de ensino ilustrou
até o final abrupto de sua existência totalmente dedicada à educação.
Culto, sociável, corajoso de opinião, mestre por vocação
e capacidade didáticas, os círculos educacionais de Ponta Grossa –
professores de todos os graus, egressos das escolas, intelectuais e
profissionais todos lhe queriam profundamente.
Deixou várias obras publicadas. E deve contar com vasta
bagagem a ser postumamente publicada. Orador, jornalista, prosador,
sobre tudo mestre insigne, dado seu mérito, sua desencarnação abriu
um vácuo no magistério secundário e superior da Princesa dos Campos
dificilmente preenchível.
Por isso, seu desaparecimento, absolutamente inesperado,
lançou a cidade inteira em luto e desolação. Poucos dias antes de sua
partida para o além, encontramo-nos aqui em Curitiba.
Jovial, adorável na sua conversa de sotaque um tanto italianado,
mas aberto às grandes ideias, sua conversa, como noutras vezes, até
aqui em meu lar fascinava-me sempre e eu desejara tornar infindável o
nosso diálogo, diálogo em que como nas lições de Platão mais aprendia
eu do que emitia qualquer conhecimento.
Na manhã em que num nosso matutino li a notícia de seu
traspasse, recebi tremendo impacto emocional.
Pois senti, senti profundamente seu desaparecimento posto
homens de seu elevado quilate não são muito comuns.
Nascido para postular na didática – não estranhem esse
conceito aí expresso – pois apostolando, ele não ensinava apenas
normativamente, educava, guiava, abria para os cérebros juvenis
horizontes infinitos, desses horizontes que não encontram, lá mesmo
longe o azul da serrania para lhes barrar a visibilidade e o avanço rumo
dele, aliás o inatingível mas sempre para a cultura uma ânsia insaciável
de conquista.
Bruno Enei
446 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

Estas palavras compõem apenas o espaço de um artigo de jornal


e não era possível na sua angustia exprimir todo o meu preito à sua
personalidade ímpar de confrade, e de amigo, e sobretudo de homem
como de Goethe em Weimar disse Napoleão.

(Diário Popular, de Curitiba, 14/1/1967)

Bruno Enei
Álvaro Augusto Cunha Rocha

Da parte da Professora Sigrid Renaux, da Universidade


Federal do Paraná, recebo três pastas de cartolina contendo anotações
de aulas tomadas taquigraficamente, e depois datilografadas por ela,
quando aluna do Professor Bruno Enei, na disciplina de Literatura
Italiana do Curso de Línguas Neolatinas da Faculdade Estadual de
Filosofia, Ciências e Letras de Ponta Grossa.
A remessa desse material, assim organizado e tão
providencialmente conservado pela aluna atenta e aplicada – hoje
mestre e doutora em Letras pela Universidade de São Paulo, com
especializações na área em Montpellier e Oxford – destina-se a
fazer-me conhecer o texto, enquanto indaga sobre a viabilidade de
sua publicação pela UEPG mediante proposta do Departamento de
Letras.
Um contacto ainda que apressado com essas lições devolve-nos,
a cada passo da leitura, e a despeito de transcorridas duas décadas e meia
dos apontamentos – um Bruno Enei integralmente “real”, na plenitude
do modo de ser interessado, entusiasta e estimulante que, em vida, na
cátedra como fora dela, tanto o caracterizou.
Ao longo das considerações expendidas a respeito das
escolas e autores estudados – destinadas à análise do jogo dialético
de influências e à identificação dos diferentes processos de criação
literária – e aí, portanto, as reflexões do professor sobre a linguagem,
o tempo, as aspirações, as transfigurações místicas, o peso histórico
e social – há sempre, reverberando por estas páginas, a poderosa e
instigante “atualidade” do Mestre. Exatamente como se ele estivesse
de fato “entre nós”, nítido e intenso, aqui e agora. Uma atualidade
crepitante como o seu próprio espírito solar – quando os seus critérios,
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 447

seus juízos de valor e sugestões evidenciam-se intactos com o decurso


de tempo. E não apenas válidos, mas valiosos; necessários mesmo
na colocação de problemas de capital importância no contexto das
preocupações culturais mais frequentes destes últimos vinte e cinco
anos. Uma atualidade hoje comovedora, que nos serve no presente
com a mesma claridade e a mesma força do passado – e que agora
sabemos provir menos daquele seu notório e inquestionável “domínio
da matéria” do que da sensibilidade agudíssima, que também o
distinguia.
Sensibilidade e coragem, paixão e liberdade, ato e palavra,
lucidez e sonho, esperança e crítica (a propósito, um de seus mais
brilhantes trabalhos de maturidade, escrito e publicado em Ponta
Grossa, denominava-se, muito significativamente, “Esperanças da
Crítica”...; “Jornal da Manhã”, PG., 6-10-57, p. 3), – eis aí algumas
das “polarizações” mais constantes do humanismo de Bruno Enei.
Aquele humanismo (aplicado aqui o vocábulo na acepção estrita
de atitude do espírito em prol do homem como valor) que nele foi
indissociável de uma rigorosa vocação de coerência pessoal. Vocação
sempre presente, perpassando-lhe a “práxis” do cotidiano mais
singelo com a força de uma exigência; capaz por isso mesmo de fazê-
-lo frequentemente pouco compreendido pela generalidade menos
perquiridora, ou mais complacente consigo mesma, ou envolvida com
escalas de valores que não incluíam o “autêntico” e o “legítimo” como
aspirações de um possível sentido – não necessariamente “da”, mas
“para” a existência...
Ministradas entre 1956 e 1958, estas aulas de Literatura
Italiana coincidem, sobretudo na sua etapa inicial, com uma das
melhores fases de nosso convívio com o “casal Enei”. Habituáramo-
-nos a escutar música juntos, na casa deles, aos sábados à tarde. Entre
um e outro dos festejados e sempre bem-vindos cafezinhos da esposa,
Dona Maria – uma competentíssima e suave professora de grego –
ficávamos horas inteiras repassando peças antológicas. Naquela época
estávamos preferindo o barroco ao romântico e a música de câmara à
sinfônica. Como honrosa exceção havia sempre Beethoven com suas
sonatas para piano nas soberbas interpretações de Bakaus, Wilhelm
Kempff e Schnabel. De suas sinfonias, a Sétima e a Nona; desta última,
um destaque obrigatório para o quarto movimento, precisamente – oh
glória e brio – o trecho marcado pela entrada do tenor...
Entre um e outro cafezinho, ou ao virar a face do disco
para se prosseguir na série apaixonante das Sonatas para Flauta e
Cravo de Bach; ou entre duas de “As Quatro Estações” de Vivaldi –
Bruno Enei
448 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

desenvolvíamos ideias que reencontro agora, expressas ou subjacentes,


nos textos organizados pela Professora Sigrid Renaux. E o que mais
emociona: revestidas das mesmas palavras candentes e precisas que
caracterizavam o “discurso” do amigo desaparecido.
Em 1956 o crítico e professor Wilson Martins, da Universidade
de Nova Iorque, numa saudação a Bruno Enei, referia-se, literalmente, a
seus “esmagadores” conhecimentos (“O Dia”, Ctba., 22-07-56). De Dante
a Leopardi, como de Petrarca a Ungaretti ou de Boccaccio a D’Annunzio
– a mesma grande massa de informações e as referências críticas que
transcendem de muito a área de especialização, para se projetarem, com
igual fundamentalidade e brilho, pelos domínios, sobretudo, da Filosofia
e da História.
Todos que conheceram Bruno Enei sabem do interesse que
devotava às pessoas e aos projetos e propósitos que lhe revelavam;
ao universo das intenções melhores e às atitudes do empenho; aos
sonhos, principalmente, que gravitavam à volta. Era a sua forma de
viver multiplamente: nele, creio, a única possível; era o seu perpétuo
mergulho “no outro”; a sua constante busca; certamente o meio e o
modo, que lhe eram naturais, de penetrar a vida e buscar-se a si mesmo;
o seu descobrir-se nunca definitivo nos passos do milagre, ciência e
consciência sempre a caminho. A ele, sobretudo por seu feitio participante
e a índole “antiacadêmica” por excelência, cabe-lhe a acepção de
“cultura” proclamada por Jean-Paul Sartre numa entrevista concedida
na Argélia, por volta de 1948, – depois muito difundida e prestigiada
pela geração que floresceu naquela década, particularmente influenciada
pelo grande pensador francês: “Cultura é a consciência em evolução
permanente, que o homem tem de si mesmo, do seu trabalho e do mundo
que o cerca”.
Hoje, passados dezesseis anos de sua morte e com a perspectiva
aberta pelo tempo que se alonga do ponto onde ele nos deixou,
tornam-se especialmente expressivas as iniciativas dedicadas à sua
marcante lembrança. A Bruno e Maria Enei, o Departamento de Letras
da Universidade local tem prestado homenagens muito significativas
e brilhantes (cf. UNILETRAS, UEPG, ns. 1 e 4) – e, certamente, dará
acolhida oficial – posto que, acolhida afetiva já demonstrou – a ideia
de publicação destas aulas de Literatura Italiana.
É claro que além da homenagem que se prestará ao colega imenso,
a edição irá servir amplamente, como bem observa em carta a Professora
Sigrid Renaux – “a futuras gerações de estudantes”.
Devo finalmente registrar nestas notas que a iniciativa da
pretendida publicação está coincidindo, prazerosamente, com projeto
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 449

em tramitação na Câmara Municipal de Ponta Grossa pelo qual se quer


instituir, como promoção anual, em nossa comunidade, uma semana de
atividades culturais variadas, que levará o nome “Semana da Cultura
Bruno e Maria Enei”. Trata-se, sem dúvida, de providência oportuna e
justa, capaz de preservar eficazmente a memória sentimental e histórica
de duas das mais extraordinárias figuras (intelectuais e humanas) que
esta cidade já abrigou.

(Diário dos Campos, de Ponta Grossa, 5/11/1983)

Perfis da cidade
Crônica de Vieira Filho

Os Vereadores José Ruiter Cordeiro e Manoel Osório Taques,


numa feliz iniciativa, propuseram aos seus pares a instituição da semana
da cultura “BRUNO E MARIA ENEI”, proposição essa que já foi
transformada em lei que tomou o n.o 3.589, de 8 de novembro de 1983.
Essa lei, cujo objetivo além da difusão da cultura em todas suas
manifestações, traz na sua intenção espiritual o desejo de prestar justa
e oportuna homenagem póstuma a um casal de Mestres cuja passagem
entre nós se constituiu num exemplo permanente de saber, sensibilidade,
humanismo e beleza estética raramente encontrado no seio de uma
comunidade por mais evoluída que ela pretenda ser.
O Professor Bruno Enei e sua esposa Professora Maria
Biancarelli Enei, ele nascido no Brasil mas com sua formação na Itália,
onde conheceu a jovem Professora Maria Biancarelli e com ela casou,
vindo posteriormente residir no Brasil, escolheram Ponta Grossa como a
cidade dos seus corações, integrando o corpo docente da então Faculdade
Estadual de Filosofia, Ciências e Letras, onde escreveram uma das mais
brilhantes folhas de serviço à causa do ensino e mais particularmente na
vivência permanente da difusão cultural, oferecendo, além do invulgar
saber que os caracterizava, toda a potencialidade de humanismo que
ressumava de seus espíritos de escol.
Embora o paralelo de saber que os notabilizou, o Professor Bruno
Enei, na exuberância de seu poder de comunicação e da formação de uma
mentalidade voltada para a pesquisa e para as profundas indagações no
campo do saber e do ensino, formou escola na comunidade que com ele
Bruno Enei
450 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos

conviveu, na condição de colegas e principalmente entre os que tiveram


a ventura de serem seus alunos, como estudantes de Literatura.
Contudo, o destaque alcançado em nível nacional pelo insigne
e saudoso Mestre foi acompanhado pela dedicada esposa e colega,
partícipe de toda sua glória de mentor da juventude de nossa terra no
campo espinhoso e nobre do ensino.
Hoje, quando o tempo poderia apagar a memória desses dois
luminares do magistério, muito embora a Biblioteca Pública Municipal
seja honrada com o nome do Professor Bruno Enei, eis que a iniciativa
dos ilustres edis José Ruiter Cordeiro e Manoel Osório Taques criando a
“Semana de Cultura Bruno e Maria Enei” vem perpetuar suas lembranças,
aliando seus saudosos nomes a uma promoção que irá envolver inúmeros
órgãos oficiais, entidades culturais e artísticas, representativas da
comunidade, além do entrosamento de estudantes do 10, 2o e 30 graus,
numa atividade que por certo conquistará renome no panorama artístico-
-cultural do Estado.
Todos os anos, na terceira semana do mês de março, de segunda-
-feira a domingo uma programação de eventos culturais e artísticos estará
congregando nosso povo como participante ou como assistente, numa
tarefa de magna importância coordenada pela Secretaria Municipal de
Educação e Cultura, homenageando de forma condigna os dois saudosos
mestres e dignificando suas memórias nesse esforço comunitário de dar
prosseguimento aos ideais que impulsionaram suas atividades quando
vivendo entre nós.
Se ambos já estavam imortalizados pela sua própria condição
de espíritos e pelo labor realizado, por certo estarão sempre presentes
nas gerações que forem se sucedendo, beneficiadas pelas luzes que tal
promoção lhes proporcionará, sob a égide espiritual de Bruno e Maria
Enei, que dessa forma material estarão presentes entre nós, cultivando na
juventude a messe de saber e bondade que esparziram às mancheias pelo
roteiro bendito de suas existências exemplares de apóstolos da cultura.
Merecem nosso aplauso os dois valorosos vereadores, pois que
interpretaram com muita fidelidade e concretizaram de maneira positiva
uma homenagem que toda a comunidade princesina almejava tributar à
memória dos Professores Bruno e Maria Enei.

(Diário dos Campos, de Ponta Grossa, 25/11/1983)


ORGANIZADORES
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 453

Sigrid Paula Maria Lange Scherrer Renaux


Carioca, ponta-grossense, radicada em Curitiba, Sigrid Paula
Maria Lange Scherrer Renaux é licenciada em Letras Neo-Latinas
(UEPG/PR) e Anglo-Germânicas (PUC/PR), mestre em Estudos Anglo-
-Americanos e doutor em Literatura Norte-Americana e Inglesa (USP),
com pós-doutorado pela Universidade de Chicago. Realizou também
cursos nas universidades de Montpellier, Oxford, Lancaster e Cambridge.
Bolsista da Comissão Fulbright/CAPES, do Conselho Britânico e do
Governo Canadense. Professora titular de Literaturas de Língua Inglesa
da UFPR (aposentada). Leciona atualmente no Curso de Mestrado em
Teoria Literária da UNIANDRADE.
Além de traduções de contos e artigos, publicou mais de cem
artigos e ensaios de crítica literária, principalmente sobre poetas,
romancistas e dramaturgos de língua inglesa, em capítulos de livros,
revistas nacionais e estrangeiras e em anais de congressos no Brasil e no
exterior.
Livros publicados:
A Volta do Parafuso: uma leitura icônico-simbólica do conto de
Henry James (Curitiba: Editora da UFPR, 1992)
The Turn of the Screw: a semiotic reading (New York: Peter
Lang, 1993)
Do mar e de outras coisas (Curitiba: O Formigueiro, 1979)
Azuis (Curitiba: ed. do autor, 2006)
Outros azuis (Governo do Paraná, Secretaria de Estado da
Cultura, 2009)

Hein Leonard Bowles


Nascido em Haarlem, na Holanda, é ponta-grossense desde 1959.
Professor titular aposentado de Língua Inglesa da Universidade Estadual
de Ponta Grossa (UEPG), cuja editora chefiou por vários anos, continua
a trabalhar com a revisão de textos e a publicação de livros, agora como
editor-chefe da Todapalavra Editora. Durante todo esse período de atuação
como editor, tem se dedicado, com especial interesse, à publicação de
obras que dizem respeito a Ponta Grossa e à região dos Campos Gerais.
Mestre pela UFSC e doutor pela USP, sua área de pesquisa
principal é a da linguagem metafórica convencional, tema de seu livro
Arqueologia da Raiva e do Entusiasmo (EdUEPG, 2005). Também
publicou o livro Jacu rabudo: a linguagem coloquial em Ponta Grossa
(Todapalavra Editora, 2009).
Bruno Enei: Aulas de Literatura Italiana e Desafios Críticos
foi organizado por Sigrid Paula Maria Lange Scherrer Renaux e Hein
Leonard Bowles
e editado por TODAPALAVRA Editora,
em Ponta Grossa, Paraná, no ano de 2010.
Dados técnicos
ISBN: 978-85-62450-07-5
Formato fechado: 160x230 mm
Fontes utilizadas: Times New Roman, Copperplate Gothic Bold e
Copperplate Gothic light, corpos 8; 9; 10; 11; 12; 14;18 e 23
Revisão por Sigrid Paula Maria Lange Scherrer Renaux e
Hein Leonard Bowles
Capa Élio Chaves Desenhos sobre obra de Ricardo Enei
Projeto gráfico Élio Chaves Desenhos
(eliochaves@terra.com.br)
Impressão por Gráfica Pallotti
Tiragem: 800 exemplares
Miolo: com 452 páginas em papel pólen 90 g/m2 e couchê 90 g/m2
Folha de guarda: impressão 1x0 em cor azul
Impressão 1x1 em cor preta
Capa dura revestida em papel couchê fosco 80 g/m2 Acabamento:
Laminação fosca, verniz localizado, costurado e colado,
impressão 4x0 (policromia)

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