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Diretor de projetos
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Carmencita de Holleben Mello Ditzel
Diretor de arte
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Secretário executivo
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Revisão
Sigrid Lange Scherrer Renaux
Hein Leonard Bowles
Capa
Élio Chaves Desenhos sobre obra de Ricardo Enei
Projeto Gráfico
Élio Chaves Desenhos
Bibliografia
10-01783 CDD-850-9
ISBN: 978-85-62450-07-5
TODAPALAVRA Editora
Rua Xavier de Souza, 599
Ponta Grossa – Paraná – 84030-090
Fone/fax: (42) 3226-2569
todapalavraeditora@hotmail.com
www.todapalavraeditora.com.br
Sumário
APRESENTAÇÃO. ........................................................................ 9
SOBRE BRUNO ENEI................................................................ 13
AGRADECIMENTOS................................................................. 19
AULAS DE LITERATURA ITALIANA
DO MESTRE BRUNO ENEI. ................................................... 21
ORGANIZADORES.................................................................. 451
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
APRESENTAÇÃO
,1
Texto reproduzido em sua íntegra nas páginas 446 a 449.
Bruno Enei
10 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
2
Texto reproduzido em sua íntegra nas páginas 449 e 450.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 11
3
Bruno Enei, dirigindo-se, como patrono, aos formandos da Faculdade Estadual de
Filosofia, Ciências e Letras de Ponta Grossa, em dezembro de 1954, texto reproduzido
em sua íntegra nas páginas 424 a 430.
Bruno Enei
14 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
4
Wilson Martins, em discurso por ocasião de um jantar oferecido por vários intelectuais
paranaenses a Bruno Enei, no dia 20 de julho de 1956. O evento, o nome dos participantes e
o discurso de Wilson Martins foram registrados nas páginas do jornal O Dia, de Curitiba,
em sua edição do dia 22 deste mesmo mês, texto este que se encontra transcrito nas
páginas 433 a 435. Ainda a respeito desse concurso, merece destaque o pronunciamento
da professora Marcella Mortara, catedrática de Língua e Literatura Italiana da Faculdade
de Filosofia da Universidade do Distrito Federal, em uma entrevista à Gazeta do
Povo, de Curitiba (21/6/1956), texto em que constam também as notas dadas aos dois
candidatos. Única entre os cinco membros da banca examinadora a dar vantagem ao
professor Bruno, por uma diferença expressiva na pontuação, ao ser indagada a respeito
de sua impressão sobre o concurso, a professora Mortara disse: “Minha impressão sobre
esse concurso está expressa nas notas que atribuí aos dois candidatos”. Finalmente, mais
de dez anos depois, Raul Rodrigues Gomes, em um artigo sobre Bruno Enei logo após a
sua morte, no Diário Popular, de Curitiba (14/1/1967, transcrito nas páginas 444 a 446),
ainda fala, com amargura e indignação, sobre esse incidente.
Bruno Enei
16 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
Matai a gramática6
5
Texto transcrito em sua íntegra nas páginas 354 a 356.
6
Bruno Enei, na mesma preleção a que faz referência a nota 3.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 17
AGRADECIMENTOS
Todapalavra Editora
AULAS DE
LITERATURA ITALIANA
DO MESTRE
BRUNO ENEI
LITERATURA ITALIANA I (1956)
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 25
A LITERATURA MEDIEVAL
uma necessidade cultural para todos, até para os povos não latinos. Por
outro lado, a igreja de Roma – herdeira de tantas instituições romanas
– fez sua aquela língua como a fizeram sua, durante tanto tempo, e, às
vezes, ainda hoje, a Filosofia, a Teologia, a Ciência. Mas, foi desde
então que começaram a aparecer obras e escritores das novas línguas,
dessas pequenas e ingênuas e claudicantes filhas de Roma, já, contudo,
suficientemente tentadoras e eficazes para oferecer à fantasia e ao intelecto
dos povos neolatinos as primeiras expressões de uma linguagem própria,
individual, cônsona a cada um.
Na “maré” dos dialetos – como sempre acontece – veio, então,
prevalecendo aquele da região mais organizada, mais viva e exuberante,
imprimindo uma diretriz e um caráter de disciplina e de uniformidade aos
demais. É esse o passo lento e histórico da formação da língua nacional de
um povo. Na Itália, por exemplo, existiam vários dialetos. Uns deles eram
até anteriores ao do Lácio, ao latim. Mas quando a língua de Roma decaiu
e se desfez, nessa maré de dialetos itálicos (o dialeto siciliano, o dialeto
sardo, o dialeto napolitano, o dialeto umbro, o dialeto vêneto, etc.), foi o
dialeto florentino que tomou a dianteira, galvanizando em torno de si os
demais, dando-lhes uma fisionomia, uma linha, uma disciplina e um vigor
de aperfeiçoamento e de nacionalidade. Foi, assim, o dialeto florentino que
determinou a língua italiana. E isso por ser a Toscana a região mais central
da Itália, a mais linguisticamente semelhante ao latim, a mais rica, a mais
política e economicamente organizada, devendo-se ainda acrescentar que
foi em Firenze que – logo de chegada, no século XIV – nasceram a
Divina Comédia de Dante Alighieri, o Canzionere de Francesco Petrarca
e o Decamerone de Giovanni Boccaccio: três obras-primas da literatura
italiana, representando cada uma delas, respectivamente, a mais alta
expressão da espiritualidade medieval, a límpida e saudosa melancolia
da passagem da Idade Média ao mundo moderno e a serena e realística
visão de nossa vida terrena feita de trabalho, de inteligência, de crítica,
de amor e de humanidade.
Eis, então, a língua italiana. E, alhures, surgem, ou já surgiram,
o espanhol, o português, o francês, o romeno. Línguas neolatinas estas,
destinadas – talvez – a criarem outras línguas neo-... (como está justamente
acontecendo aqui, no Brasil, onde a nossa língua – ao dizer de vários
filólogos – não é já mais somente o português de Portugal).
Quais as transformações, quais as diferenciações mais
representativas e peremptórias entre essas línguas neolatinas e o latim,
entre o italiano e a velha língua de Roma? Pois bem, a língua italiana
morfologicamente cria o artigo determinativo e indeterminativo, cria a
preposição composta, casando o artigo com a preposição simples (os
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 31
verbos em ere longo junto aos outros em ere breve), torna auxiliar o verbo
avere, dá um jeito para liquidar os verbos “depoentes”, pede auxílio ao
verbo essere para acabar com a conjugação autônoma passiva, acrescenta
o modo condicional, desenvolve o modo supino, etc. E as palavras deixam
de ser enquadradas nos grilhões da declinação. Ficam soltas, voltam à
liberdade, dançam entre o singular e o plural, entre o masculino e o
feminino, com um mínimo de variações que se limitam ao campo das
vogais: O e I para o masculino singular e plural, A e E para o feminino
singular e plural.
Sintaticamente, o trabalho de transformação é mais profundo e
delicado. A língua italiana prefere as formas finitas às infinitas, prefere a
coordenação à subordinação. E, acima de tudo isso, a particularidade do
gênio humano da alma italiana: o gosto pela clareza, pela simplicidade,
pela naturalidade, dando preferência à vogal límpida e aberta no corpo
e no fim do substantivo, evitando a cacofonia de consoantes antitéticas
e de difícil pronúncia, procurando uma equivalência e uma temperada
distribuição de vogais e consoantes, fazendo questão que a palavra saia
horizontalmente, sem verticalidade nenhuma, sem esforço nasal ou
gutural ou palatal: ler e dizer como está escrito, sem as sombras e os
impressionismos de outras línguas – a francesa, por exemplo. Língua,
pois, límpida, objetiva, firme, lírica, sem tristeza e sem exaltações, sem
equívocos e sem sensações, completamente livre da necessidade do
“requinte” fonético.
Dizer dos primeiros documentos da língua italiana não parece
essencial. Quem pode saber quando acaba e quando começa uma língua?
Essas criações são o resultado de todo dia, de todo momento. (Precisam,
entretanto, séculos para perceber que uma língua nasceu ou nascera.)
De qualquer forma, por enquanto, costuma-se dizer que um Documento
Lecchese de 746, a Carta Cassinese de 960 e um livro de banqueiros
florentinos de 1211 são os primeiros índices de que a língua latina já
era... italiana.
A LITERATURA ITALIANA NO
SÉCULO XIII
A literatura de um povo é sempre um fato posterior e sucessivo
à mera aquisição da língua. Surge uma literatura quando um conjunto de
Bruno Enei
32 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
A literatura didascálico-alegórica da
França setentrional
que o homem possa fazer para descontar seus vícios. E as poesias que
se inspiram no seu misticismo chegam a verdadeiras expressões de uma
exasperada sublimidade. A musa de São Francisco é o amor. A musa de
Iacopone é a dor.
Os críticos consideram Iacopone da Todi como a maior
personalidade italiana do século XIII, como aquele que melhor parece
prenunciar a figura angulosa, lutadora, enérgica de Dante. No quadro
da literatura italiana do século XIII, antes de chegarmos, então, à
grande lírica do Dolce Stil Nuovo, é a poesia religiosa de Iacopone da
Todi e de São Francisco que nos fala de um motivo já propriamente
italiano, que surge como reflexo de um meio italiano e como
expressões da sensibilidade e da espiritualidade italiana, que abandona
as solicitações estrangeiras da França e da Provença, dobrando-se em
si mesmo e cantando os seus sentimentos e os anseios desse idealismo
religioso.
Dizer-lhe poderei: “Teve de anjo semblante / Que fosse do Teu reino; / Não foi falta
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E eu a ele: “Eu sou um que, quando / Amor me inspira, anoto, e daquele modo / Que
ele dita dentro [de mim] vou exprimindo”.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 45
Giacomino da Verona
Irmão franciscano da segunda metade do século XIII, possuidor
de pouca cultura. Escreveu De Babilonia civitate infernali, onde
descreve um Paraíso e um Inferno materiais e caóticos, em conjunto
com os aspectos sobrenaturais de outras obras medievais. É uma poesia
em dialetos de importância histórica, mostra que há poetas de amor, de
moral, etc. Poderia fazer pensar ser o precursor de Dante, mas há uma
distância imensa de cultura entre um e outro.
Bonvesin da la Riva
Bonvesin era milanês. Desapareceu depois de 1313. Deu-nos
algumas obras de caráter moral, didático e religioso que nos mostram
uma literatura humilde de seu tempo, muito embora seja edificante. A
Bruno Enei
46 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
mais vasta dessas obras é Libro delle tre scritture. Três são os elementos
contidos na poesia: o negro – doze penas, castigos materiais que ele
imagina serem impostos aos pecadores; o rosso – ele descreve as
dores da paixão e do sofrimento de Jesus Cristo; o aureo – o Paraíso,
naturalmente em proporções bem pequenas. O amor e a luz são dois
elementos que invadem suas linhas.
Iacopone da Todi
Nasceu em 1236 e morreu em 1306. Foi um homem de cultura:
estudou Direito, exerceu a profissão de advogado. Vivia do seu trabalho,
frequentava a sociedade rica e gostava dela. Uma ocasião em que fora a
um baile com sua esposa, isso em 1268, ela ficou gravemente enferma
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 47
e morreu. Quando ele foi recolhê-la, abaixo de suas vestes elegantes ela
carregava o cilício. Nesse momento percebeu que ela era profundamente
religiosa e apenas o acompanhava por obediência. Ficou muitíssimo
impressionado, de tal forma que em 1278 renunciou à vida mundana e
tornou-se religioso.
Foi tão fiel que, quando da luta entre os conventuais e
espiritualistas, manteve-se com estes últimos, combateu contra
Bonifácio VIII, que favorecia os conventuais. Na luta travada entre a
Igreja e o Império, ele foi a favor da Igreja, foi firme e grande.
Numa guerra com uma família, pelo Castelo no Lácio, que
devia pertencer ao papa, ele combateu contra este. Foi preso cinco anos
(de 1298 a 1303). Na prisão ele lançou contra Bonifácio uma sátira
impetuosa, chamando-o de “O novo Lúcifer”, “Língua de Blasfêmia”.
Dante condenou Iacopone ao Inferno antes de morrer. Ele morreu no
convento de Collazone.
Atualmente é ainda muitíssimo estudado. Se há poeta que faça
lembrar Dante é Iacopone. É a maior personalidade poética da época
religiosa. O ambiente de que promanam suas poesias não é apenas
religioso, mas também moral e político. Tem, não obstante, as suas
deficiências. Aliado a seus defeitos, ele mostra a sua personalidade
própria de poeta. Entre as obras que deixou, menciona-se Pianto de la
Madonna de la passione del figlio Gesù Cristo.
Cecco Angiolieri
Nasceu em Siena em 1260, morreu em 1312. Foi considerado pela
crítica como no grupo dos poetas cômicos. Teve uma vida desregrada,
ímpia e triste. Deixou mais ou menos cento e cinquenta sonetos, sendo
o principal aquele em que canta seus vícios. Pode ser chamado de cínico
pela coragem que teve de mostrar nos seus versos o ódio imoral que
dedicava ao pai e à mãe.
Ele cantou principalmente uma mulher, Bechina, filha de Agevol,
a quem ele amou, com quem casou, porém não foi correspondido. Aí
começou sua infelicidade. Cantou contra o pai, que, apesar de ser rico,
não o ajudava e o deixava na pobreza. Alegrou-se quando o pai morreu.
O seu ódio era tanto que escreveu que até na morte não queria visitar
seu pai. À mãe ele odiou também e perto desse ódio detestou todo o
mundo.
Nos últimos três versos ele acorda, pensando como seria roubar
as mulheres bonitas para si e deixar as feias para os outros.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 49
Rustico di Filippi
O caráter de sua poesia não é amoroso, mas sim sonetos de
caricatura. Ele tinha uma capacidade extraordinária para descrever as
pessoas daquele tempo. Escreveu Sonetti, constituído de cinquenta e sete
versos, onde ele se revela um autêntico caricaturista da vida florentina.
Era entretanto um escritor de escassos conhecimentos históricos e seus
sonetos, muitas vezes, deixavam o leitor indiferente, porém se este o
entende, observa quadrinhos de valor político.
A LITERATURA ITALIANA NO
SÉCULO XIV
Neste século encontram-se três personalidades da literatura
italiana, que, pela importância das obras, são também três grandes
personalidades da literatura universal. Não há, pois, povo que não
conheça Dante Alighieri, Francesco Petrarca e Giovanni Boccaccio.
E interessante é notar que eles representaram três momentos de uma
idade, três fases da espiritualidade italiana, três momentos da dinâmica
espiritual e artística da literatura. A primeira fase é representada por
Dante, a segunda por Petrarca e a terceira por Boccaccio, fases estas
que são indicadas pela forma com que Dante exprime o seu mundo
artístico, o terceto; Petrarca o seu, o soneto; e Boccaccio o dele, a
prosa.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 53
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Não é esta a estrada pela qual posso aceitar voltar a Florença.
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O exílio que me foi dado eu o considero uma honra.
Bruno Enei
58 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
Obras de Dante
La Vita Nuova
É um livro que Dante chama Libretto, dedicado a um amigo seu,
o poeta Guido Cavalcanti, do Dolce Stil Nuovo. Provavelmente Dante
escreveu esta obra entre 1292 e 1293. Ela é formada de duas partes:
uma em prosa e outra em poesia. A prosa foi toda escrita entre 1292 e
1293, no período em que o poeta pensou em descrever, em narrar os seus
sentimentos, no período de amor para com Beatrice. E não apresenta por
isso diferenças de estilo. A poesia, em vez, sente os vários períodos em
que foi escrita, porque as poesias foram escritas em 1274 e 1292, isto é,
apresentam situações diferentes. Psicologicamente, porque representam
períodos de felicidade, morte, exaltação e diferenças de linguagem.
Estão divididas em trinta e uma poesias, que compreendem vinte e cinco
sonetos, quatro canções, uma balada e uma stanza.
O total desta obra é La Vita Nuova, e os críticos procuraram, uns,
dizer que ela assim se chama porque Dante aqui conta a sua mocidade,
sua vida dos primeiros anos; mas outros há que dizem que ela assim se
chama porque conta a vida de Dante que se transforma pela influência
de um nobilíssimo sentimento de amor. No entanto, as duas categorias
de críticos são unilaterais, pois nenhuma delas é justa; é em vez as duas
coisas ao mesmo tempo, como Dante diz na Vita Nuova, que ele está
descrevendo: os efeitos que esse amor provocava na sua mocidade,
naturalmente num sentido fisiológico e místico ao mesmo tempo.
Muito mais razões devem ser dadas aos críticos que chamaram
esse livro de Libretto Aureo, justamente porque fora de acontecimentos
materiais externos; é a sistematização de Dante de 1274 a 1292, e
transformando esse conceito até à teologia.
O enredo dessa obra é o seguinte: Dante começa descrevendo
quando ele viu pela primeira vez, aos nove anos, Beatrice, que entrava
no seu nono ano. Nove anos depois, quando Beatrice entrava no décimo
oitavo ano, Dante a viu outra vez, e Beatrice correspondeu à simpatia
de Dante com um sorriso que indicava simpatia mútua, e isso renova a
vida de Dante, ficando ele tão ciumento no estudo da alma, que se cria
no seu espírito, que ele procura esconder isto, amando outras mulheres,
para que as coetâneas de Beatrice não falassem sobre este seu amor, que
ele queria que fosse uma coisa misteriosa e ignorada por todos, pois
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 59
era puro e sacro demais para que fosse objeto de intrigas, e por isso ele
procurou esconder seu amor, fingindo amar as mulheres que chama de
donne dello schermo.
Mas acontece que Beatrice, entristecida, fica julgando Dante
inferior ao que ela sonhava e imaginava que fosse, de forma que ela lhe
tolhe a saudação (segunda fase).
A terceira fase é uma que se pode considerar incompreensível
hoje, mas perfeitamente real no Dolce Stil Nuovo, pois Dante continua
amando Beatrice, humanizando atitudes reais e concretas, também
suspendendo a saudação a Beatrice e ficando indiferente dela, vivendo
num sentido platônico e ideal. Seu amor torna-se profundamente
religioso, humilde e íntimo e lhe é indiferente a existência de Beatrice,
sua saudação, pois tudo isso é separado pela profunda paixão, pela
delicadeza de sentir do poeta, que vive somente do pensamento de
Beatrice, que se torna dominante em sua alma. Dante se fixa num
idealismo sereno, vivendo consigo mesmo de um sentimento que é só
seu e que não é realizado. A terceira fase é, pois, platônica.
Na quarta fase Dante descreve ter ficado doente, e imagina, no
furor da febre, um sonho no qual a morte do pai e da própria Beatrice
é iminente. Dante sara, mas em 1290, pouco tempo após este sonho,
morrem justamente o pai e Beatrice. Então temos poesias maravilhosas,
de uma dor nobilíssima, em que um sentimento individual torna-se quase
dor universal. Tem-se a impressão que Florença fica sem sol, sem céu,
e quando Dante vê cidadãos entrarem na cidade, ele pergunta por que
eles entram rindo em Florença.
Depois da morte de Beatrice, Dante enamora-se das donne
gentili, moças que, vendo esse poeta meio solitário, desesperado, sem
ter confiança na vida, procuraram consolá-lo; Dante ficou amando essas
moças. Mas, num desses momentos, Dante sonhou que Beatrice lhe
aparece, queixando-se dessa sua paixão por essas moças, e Dante então
afasta essas tentações e retoma sua pureza ideal, prometendo que nunca
mais dirá algo sobre essa mulher, até que escreva uma obra em que
Beatrice seja o símbolo do saber e da teologia, até que, depois de ter
conhecido a vida e estudado, escreva uma obra tão vasta, geral, universal,
que nela entrarão os dois elementos antípodas: o Céu e a Terra. La Divina
Commedia é, portanto, uma obra que ele já pensa em escrever desde
1292.
La Vita Nuova, na Itália, foi estudada até nos seminários, onde
os padres liam esta obra aos alunos, como uma obra de religião que
purificava o espírito, que fazia com que a mocidade se fechasse numa
esfera de religiosidade, pois a nobreza está nesta obra, em que não há um
Bruno Enei
60 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
verso que fale dos cabelos ou dos beijos de Beatrice: nada disto existe.
Tudo o que Dante fala é uma reflexão religiosa diante de uma aparição
que ele imagina quase como um milagre de Deus na Terra.
Vê-se como o cristianismo soube influenciar até nos sentimentos
que parecem ser menos puros e mais inferiores na vida humana. É o amor
que se livra de qualquer sensação sensual, que chega a um silêncio, a uma
meditação. Essa é a razão da moralidade da obra de Dante. E nesse sentido
vê-se a distância entre a poesia do amor em Dante e a poesia provençal,
ou da Escola Siciliana, daquelas atitudes acadêmicas de homenagem.
Há em Dante a profunda subjetividade, fora de qualquer objeto alheio a
ela; é o seu sentimento com Beatrice que cria seu vocabulário, palavras
essas que são condensações do seu espírito, enquadradas em vinte e
cinco poemas.
Essa obra deve ser considerada em si e por si. Porém, lendo a
Divina Comédia e as outras obras de Dante, sente-se como ele, antes
de ser o cantor de uma virgem, foi o cantor de Beatrice e transformou e
viveu nobremente esse sentimento de amor, e a ela deve sua atitude na
vida, que é um bem e um mal ao mesmo tempo, pois até a tragédia da
vida de Dante influi nas suas obras.
Tudo dá uma razão de viver: o amor de Beatrice renovou sua
vida. Ele será um missionário, num sentido mais amplo, pela escola
de nobreza que ele teve e esse amor de Beatrice que faz com que ele
alheie-se à realidade e se acostumasse que a poesia fosse a expressão
do nosso sentir e não de literatura por literatura. La Vita Nuova é
o romance da mocidade de Dante, a obra em que ele descreve sua
juventude ideal, a pureza da sua alma de moço.
Suas outras obras, em vez, têm outro caráter: não são repletas
de idealismo, de sentimentos puros, elas não se movem numa atmosfera
de religião, com o amor colocado num plano ideal de pureza, mas sim
pelo interesse de um homem culto pela língua, e de um cidadão pelo
Estado.
De Monarchia
É escrita em latim não clássico, o que não tem nada que dizer com
a perfeição rítmica de Cícero ou de Tito Lívio, pois é um latim medieval,
com um ritmo quase vulgar. É escrita nessa língua porque Dante dirigia
esta obra aos homens de cultura, aos políticos, à aristocracia daquele
tempo.
Parece que foi escrita entre 1312 e 1313, isto é, durante aquele
período em que aparece na Itália um imperador alemão sonhador, chamado
Arrigo VII, de Luxemburgo; ele era cheio de ilusões e veleidades, tendo
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 61
De Vulgari Eloquentia
É uma obra de caráter cultural e significa “sobre a língua italiana”.
Foi escrita nos primeiros anos do exílio, de 1304 a 1307. Deveria ser
composta de quatro livros, mas Dante não completou esta obra e parou
no capítulo XIV do segundo livro. Também esta obra é escrita em latim,
pela seguinte razão: Dante dirige-se à parte culta da nação, aos que
falavam latim.
O problema de Dante nesta obra é o seguinte: ele havia sonhado
com uma unidade religiosa e política e sonhava com uma linguística.
Com esta obra ele queria criar uma língua italiana literária, que não fosse
dialetal, nem provençal, mas que fosse de todos os italianos.
Até o século XIV, cada qual escrevia no seu dialeto. Dante quer
que se separe este conceito de língua como dialeto, ele quer uma língua
literária que seja a síntese de todos os dialetos, que seja aceita por todos
os escritores e que seja compreendida por todos. É uma grande exigência
de Dante, mas que terá continuadores em todos os séculos.
O conceito da língua literária: Dante faz a história da origem
das línguas. Depois, uma análise dos dialetos europeus, classificando os
dialetos italianos em catorze grupos: meridional, central, setentrional,
etc. Então analisa cada um desses dialetos e nota que nenhum deles
possui qualidades para ser a língua italiana literária, nem mesmo o
dialeto florentino, o seu, é digno de ser elevado a língua literária. Esta
língua imaginária deveria ter caracteres possuidores do melhor de cada
um dos dialetos. “Essa língua está em todos os dialetos e não está em
nenhum, pois o melhor deve formar esta língua.”
A língua italiana deveria ser: illustre, cortigiana, curiale e aulica.
Illustre: não deveria ser vulgar, do povo, da rua, mas sim nobre, limpa,
clássica. Cortigiana: devia ter como endereço a língua que se falava
nas cortes. Curiale: Dante imaginava que no seio da unidade político-
-religiosa haveria um lugar que fosse a cúria dos escritores: aquele grupo
de pensadores que formava as academias. Aulica: devia ser o fruto não
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 63
Il Convivio
Esta obra é escrita em italiano, em língua vulgar. É necessário,
portanto, ao se estudar as obras, atender à razão do autor ao escrever
a obra.
O De Monarchia é escrito em latim, porque Dante expõe um
princípio de sua fé, e como é uma obra austera, emprega o latim, por se
tratar de uma questão delicada, falando à classe culta, aos poetas de sua
cidade. Ao passo que, escrevendo Il Convivio, Dante tem diante de si
um outro público, uma outra assistência, mais numerosa, menos culta:
o povo, o qual não podia falar em latim, somente em italiano, em língua
vulgar. Esta é a razão primeira.
Dante concebeu esta obra como um conjunto de catorze tratados
ou livros, isto indicando que a atitude de Dante é tipicamente medieval,
pois é próprio da Idade Média escrever obras que se poderiam chamar
summas, obras universais. A espiritualidade contemporânea é bem a
contrária. Hoje nós procuramos a universalidade num sentido crítico.
E é tipicamente medieval também por uma outra razão: a finalidade
dessa obra. Dante pensa ser útil oferecer o mínimo de cultura que ele
pode oferecer.
Nessa obra Dante fala de um banquete secular, em que o povo
está convidando a um jantar em que o pão e todo o resto têm um valor
alegórico. Trata-se de dar a moral ao público. Foi escrita logo após o
exílio. Dante nunca a acabou, somente quatro livros dos que pretendeu
escrever.
O primeiro livro é o da introdução à obra, no qual afirma as
razões pelas quais escreve em língua italiana e qual o plano desta obra.
Os outros três livros são três tratados nos quais Dante demonstra o sentido
alegórico, místico, religioso das canções que os compõem. É uma obra de
divulgação, que poderia lembrar Dante como aluno de Brunetto Latini,
o que também explica a mentalidade de Dante, quanto ele está ligado à
mentalidade da Idade Média.
Bruno Enei
64 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
Le Epistole
Dante escreveu treze cartas, todas em latim, dirigidas ao imperador
Arrigo VII, aos senhores da Itália, aos florentinos, que ele chama de
scelerati, a Can Grande della Scalla, ao qual ele dedica a terceira parte
da Divina Comédia. A mais importante é A l’amico fiorentino. Esta foi
escrita entre 1315-16, e é a resposta a este florentino que convidava Dante
a voltar a Florença. Esta carta é interessantíssima porque é uma das páginas
autobiográficas mais profundas de Dante.
Aqui aparece sua honestidade, sua intransigência, pois Dante,
apesar de saber que o povo era conhecedor da sua inocência e que ele
poderia viver tranquilamente, nega voltar e é desta carta a frase: “Não é
esta a estrada pela qual posso aceitar voltar a Florença.”
As outras cartas demonstram assuntos que já são tratados. A para
Arrigo VII é de caráter político, na qual ele estimula a realizar rapidamente
a reconstrução do Império Romano. Aquelas aos senhores da Itália também
têm sentido político, nas quais convida a estes senhores a abrir as portas
e aceitar a chegada de Arrigo VII, fundador do Império Romano.
Importante é também uma outra, mas que fica num plano normal,
a carta aos florentinos, porque Dante ofende a esse povo, chamando-os de
bárbaros, isto porque considera este povo o mais fechado, o mais hostil
à abertura e à aceitação de Arrigo VII; no entanto, Florença era a única
que defendia a pátria.
Ele cria dois cantos no Purgatório, que são dos mais bonitos,
comparando-se os olhos de Donati a um anel do qual caiu a pérola.
Mas em Le Rime há um outro conjunto de poesias, que se chamam
Pietrosi, porque se referem a Pietra, por serem, voluntariamente, ásperas
e vítreas, quando Dante amou e não teve correspondência.
Essas são as obras menores de Dante. Cada uma tem a sua
importância, a sua função, e elas explicam um aspecto desse prisma que
é Dante. Hoje, elas nada mais são que uma propedêutica à leitura da Divina
Comédia. E isto é fato, não por ser mais interessante, mas porque mesmo
para Dante há mais consciência dessa obra, que parece a conclusão de
duas personalidades. Dante deixa as outras obras por serem secundárias,
como em Il Convivio e em De Vulgari Eloquentia; em La Vita Nuova,
Dante tinha a impressão de que teria escrito uma obra de caráter muito
mais universal, na qual haveria o Céu e a Terra. Nessa época ele já sente
que poderá ser o autor dessa obra.
La Divina Commedia
É um poema em três cantos, divididos em três partes ou cantigas:
a primeira parte chama-se Inferno; a segunda, Purgatório; a terceira,
Paraíso. Estas três cantigas praticamente possuem o mesmo número de
cantos, isto é, trinta e três cada uma delas, porque o primeiro canto deve
ser considerado como uma introdução à obra toda. E, considerando-o à
parte, é claro que todos têm trinta e três cantos.
O Inferno tem este canto a mais. É escrito em versos
hendecassílabos, formando tercetos (terzine).
No trigésimo quinto ano de sua vida, isto é, em 1300, e que
para a Idade Média era a metade do caminho da vida, quando em Roma
tínhamos o primeiro jubileu no mundo católico, decretado por Bonifácio
VIII, que Dante odiou, ele em vez de ir a Roma, imaginou uma viagem
ao Além.
A Divina Comédia é a narração viva, dramática, religiosa, de
um ser que visita o Além, levando consigo todos os seus ideais, paixões,
sentimentos, simpatias e ódios, sua cultura e religião, de forma que, pela
primeira vez na história da literatura universal, encontramo-nos com um
homem que leva à história do Além, como se o Além fosse a imagem do
Aquém.
Os três mundos da Divina Comédia são mundos de fé até um
certo ponto, porque eles adquirem todos os caracteres da vida humana:
poetas, políticos, papas, pessoas chorando, outras felizes, encontram a
vida em todos os seus aspectos. Nada há na Divina Comédia de fantástico,
de irreal, porque tudo é verdadeiro, concreto, positivo, de uma atualidade
Bruno Enei
66 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
14
Aquele que, por covardia, fez a grande recusa.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 69
A Divina Comédia
sob um ponto de vista humano
15
Sem esperança, vivem em desejo.
Bruno Enei
72 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
16
Estorninhos.
Bruno Enei
74 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
se tudo isso fosse colocado aqui num plano imanente, que permanece
dentro da experiência possível, não teria a grandeza e o sentido eterno
que adquire justamente porque colocado fora do mundo, fora do tempo,
na eternidade, como um obséquio da própria divindade à cultura.
Leia-se o Canto V do Inferno, onde um pecado se torna ao
invés o símbolo e a expressão da nossa humanidade. Francesca não é a
pecadora que condena e, embora condenada, as justificações, a saudade,
o pudor, a inocência com que ela evoca, não o seu pecado e sim o seu
amor, a redimem e a colocam naquele ar como o eterno feminino, como
a imagem de um sentimento sobre o qual a poesia nunca se cansará de
voltar.
Leia-se o Canto X, onde Farinatta se ergue magnânimo e
superior, na certeza da boa-fé, da honestidade, do seu heroísmo de
homem político, de vencedor e de cidadão.
Leia-se o Canto XIII, onde a figura do suicida se redime na
certeza de sua fidelidade e honestidade. Aquela selva contorta e árida
fica como a imagem do desespero, mas aquele desespero é a prova da
exasperação, da honestidade.17
Leia-se o Canto XV, onde Brunetto Latini não é o sodomita
condenado e sim o mestre que, também no Além, sente a dor de não
viver para continuar ao lado do aluno, aconselhando e indicando o rumo
da virtude e da glória.18
Leia-se o Canto XXVI, onde Ulisses não se aposenta como fazem
os vencedores comuns, mas, até esquecendo de ser pai, até esquecendo
de ser marido, até esquecendo de ser filho, e velho, já bem velho, é
apresentado como o desejoso de um mundo que não seja somente a
Europa, de um mundo que seja todo o mundo, desejoso de conhecer uma
humanidade que seja toda a humanidade, desejoso de conhecer outras
terras, além do Atlântico, para que a História desde então pudesse ser
não somente a história da Europa e sim a história de todos os povos, de
todas as experiências.19
17
Numa palestra, em outra ocasião, o prof. Bruno assim se referiu a este assunto: “O
canto XIII, naquela floresta habitada por Harpias, em que cada árvore é a alma de um
suicida, imagens do desespero e onde é redimida a figura de um suicida pela sua fé na
sua honestidade e fieldade”.
18
Na mesma palestra de que trata a nota anterior, o prof. Bruno assim se referiu a este
assunto: “Ao ler-se o Canto XV, é o mestre que sente também a dor de não viver junto
ao discípulo, recordando os primeiros anos de sua mocidade e predizendo-lhe um futuro
glorioso, e não o sodomita que aparece na figura de Brunetto Latini”.
19
Na mesma palestra de que trata a nota 17: “O vulto de Ulisses surge, no Canto XXVI,
como ansioso de descobrir e conhecer novas terras, do além-mar, para que a história da
Europa se tornasse a história universal, e para isso ele esqueceu Penélope, sua esposa,
Bruno Enei
80 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
Eneias, seu filho, e seu velho pai. Também ao incitar os companheiros a seguirem-no
nas viagens, diz: [...]”.
20
Na mesma palestra de que trata a nota 17: “No Canto XXXIII ergue-se a tétrica figura
do conde Ugolino, traidor, e ao mesmo tempo traído, desesperado, numa eterna dor
perante a morte de seus quatro filhos, e esta narração tão dolorosa é um dos episódios
mais trágicos da Divina Comédia”.
21
Na mesma palestra de que trata a nota 17: “Finalmente, no Canto XXXIV, que encerra
o Inferno, está a Judeca, uma enorme geleira onde habita Lucifero, com três fauces, e
rói com os dentes os traidores de Deus e da pátria, que são para ele [Dante] os maiores
pecadores possíveis e que são Judas, Bruto e Cássio: o primeiro, traidor de Cristo, os
outros dois, de César, que representa o Império de Roma”.
22
Na mesma palestra de que trata a nota 17: “Assim encerra-se o Inferno de Dante,
um Inferno que não é somente dor e castigo, mas também é julgamento. Esse sentido
ético e religioso de Dante é um dos maiores segredos da Divina Comédia, e ela pode
ser considerada como uma intenção de Dante de querer induzir os homens a encontrar
a verdadeira vida cristã. E essa viagem é uma viagem do próprio espírito humano pelo
caminho mundano dos erros e expiações, até chegar ao fim da dor extrema ou da eterna
beatitude. E o Inferno, que é o fim desse caminho cheio de mal, vícios, fraquezas e es-
curidão, é, pois, um reflexo mais terrível e medonho da tragédia e da comédia humana,
da qual somos ao mesmo tempo atores e espectadores”.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 81
24
Antologia, florilégio.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 83
Obras de Petrarca
Il Canzoniere
É o conjunto de trezentos e sessenta e seis poesias, das quais
mais de trezentas são sonetos; possui muitas canções, madrigais,
baladas. A obra é dividida em duas partes: a primeira é intitulada In vita
di Madonna Laura e a segunda, In morte di Madonna Laura. A distinção
feita entre as duas partes não tem um verdadeiro valor cronológico, isto
é, não quer dizer que todas as poesias que estão na primeira parte foram
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 85
escritas durante a vida de Laura, pois muitas delas foram escritas depois
de 1348, quando ela morre, ao passo que outras escritas antes pertencem
à segunda metade. O tempo tem sua função, mas a disposição de espírito
tem mais valor.
Na primeira parte Petrarca pôs as que exprimem uma poesia
diferente, na segunda revela outros aspectos da sua psicologia. O assunto
fundamental é o amor, isto é, o sentimento de Petrarca para com Laura,
mas não é somente amor que o poeta canta no Canzoniere. Temos poesias
religiosas, políticas, de caráter filosófico, descritivas, da natureza, mas o
núcleo fundamental é naturalmente o amor.
Agora temos que dizer que esse amor em Petrarca nunca foi
motivo de alegria, de felicidade, de forma que, em geral, Il Canzoniere
não é uma obra feliz: a expressão, a finalidade dessa obra não é otimística
porque esse amor não se realiza e porque o amor criou na alma de Petrarca
atitudes de tristeza, de melancolia, de crise religiosa, que eram próprios
da personalidade de Petrarca.
Il Canzoniere na base do amor é o desabafo de uma alma, o
desabafo de um homem em crise, e como isto é também a expressão de
uma idade em crise. Petrarca representa aquele período da passagem
entre a Idade Média e a Renascença em que muitos ideais vão caindo e
os novos ainda não têm força profunda, personalidade e convicção.
Petrarca tem apego à natureza e à mulher, que são conceitos
próprios da Idade Média. Sua maior preocupação é o Além, e tem pouco
apego à vida. Bem ao contrário como nos séculos XIV e XV, quando
se acendem na alma humana desejos de criar, explorar, conhecer coisas
novas, e então temos as descobertas geográficas com Colombo e tantos
outros, e por essa razão temos os pintores no século XV; é por isso que
se inventa a imprensa, a pólvora, a bússola, que são a prova de que o
homem deixou a Idade Média e seu empenho maior é a vida, a Terra
que ele deve melhorar, pois é seu dever a transformação de tudo num
mundo melhor. A história do mundo torna-se a da Europa e depois, da
América.
Petrarca é o poeta que prenuncia tudo isso, e em certos aspectos
que são os mais nobres, os mais delicados e humanos: o seu amor
pela cultura, pelo saber, quer conhecer, explorar a Antiguidade, ver o
que ela foi, com seus escritores que foram apóstolos antes de Cristo,
apresentando seus juristas, seus filósofos, seus heróis.
A beleza da natureza ele exulta sem medo, com uma claríssima
solidariedade, a natureza como criadora e renovadora. Aprecia as
paisagens matinais e vê entre os homens a mulher, e no meio delas, a
bela, que é Laura.
Bruno Enei
86 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
I Trionfi
É a segunda obra de Petrarca em italiano (1352). É um poema
alegórico feito à imitação da Divina Comédia, que Petrarca escreveu
nos últimos anos de sua vida, depois da sua volta da França para a Itália,
onde ficou morando definitivamente.
Esta obra artisticamente não tem nada de novo, não pede uma
comparação com Il Canzoniere, e não nos dá nada de novo, nem no sentido
dos motivos de valor artístico do Canzoniere. Petrarca é verdadeiramente
grande porque escreveu o Canzoniere, porém, psicologicamente, I Trionfi
tem valor notável. Com esta obra, nos últimos anos de vida do seu amor,
da sua decepção e da morte de Laura, voltando à Itália, quis num certo
sentido retratar o seu passado, confessar os erros da sua vida até então
e procurou também retomar o seu passado num sentido de mostrar, de
procurar, de enquadrar num sentido de nobreza, religiosidade, todos os
ideais que tinha no Canzoniere, que foram o motivo de sua vida.
Procurou o seu amor, o desejo imenso da glória, da honra,
procurou ser o maior poeta e de retomar o seu apego diante da natureza e
da vida, que podia ser considerada um pecado. Então procurou enquadrá-
-los num sentimento de divindade para que nunca pudesse ser dito que
ele esqueceu da existência de Deus. Então ele tentou religiosizar esses
seus anseios de mocidade. Portanto, I Trionfi é a descrição de uma visão
da vida em que, num primeiro momento, é o amor o primeiro triunfo, e
Petrarca o canta em todas as situações psicológicas que ele determina.
Sobre o amor há um outro triunfo, a castidade, a pureza,
desaparecendo então o amor. Sobre a castidade há o triunfo da morte.
Chega o momento em que o pensamento dominante é o fim, a consciência
de abandonar o mundo, a preocupação da morte, com versos belos sobre
Laura. Agora, o triunfo da fama: é verdade que a morte triunfa sobre a
vida, mas o homem que a tornou culta adquire um outro tempo, a vida
da fama, da glória, que às vezes não somente continua, mas começa
depois da morte, quando o homem continua sua vida junto aos seus
leitores e os que tiveram simpatia com ele; a fama, pois, vence a morte.
Depois temos o triunfo do tempo. A fama voa, diz Virgílio, porém ela
tem um limite e desaparece, empalidece, porque o tempo está acima
dela. Este é o quinto triunfo. E além do tempo, um outro triunfo ainda,
da eternidade, que é o pensamento de Deus e do Além. A vida humana
passa, pois, através desses triunfos: amore, castità, morte, fama, tempo,
eternità.
Nessa obra temos um Petrarca arrependido e desejoso de
purificar os seus sentimentos, fazendo ver como todas essas coisas que
o preocuparam durante a vida na sua alma sentimental, como esses
Bruno Enei
88 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
De Africa
É a última obra de Petrarca, quase só em latim. São nove
livros em hexâmetros latinos, escritos entre 1338 e 1340, antes que
fosse coroado poeta. Petrarca fala não tanto da África, mas do Império
Romano, da história de Roma, das glórias da ascensão da potência
romana, sobretudo aproveitando a Segunda Guerra Púnica, em que
Cipião ganhou de Aníbal. Essa obra deu a Petrarca a sua glória. Mas,
com o Romantismo, começou-se a se afastar das obras em latim e
apreciar-se nele o escritor em língua vulgar, e o primeiro crítico foi
Francesco De Sanctis.
e então nasceu esta filha, uma das moças mais bonitas da sociedade
napolitana.
Boccaccio amou profundamente essa moça. Mas é interessante
saber que ela é objeto nas suas obras de muitas páginas de caráter
autobiográfico. Porém ela não é lembrada com o nome de Maria, mas
como Fiammetta (Flamazinha). Pensem em Beatrice e em Laura, e
agora em Fiammetta, o fogo amoroso de Boccaccio, para compreender
a mentalidade desses escritores. E Fiammetta abandonou Boccaccio,
passando a outros amores, e isso o deixou numa amargura que só esqueceu
na velhice e que é objeto de páginas satíricas e que são intituladas Il
corbaccio, nas quais ele chicoteia a mulher como infiel.
A sua vida nesse ambiente foi tão serena, tão bonita, tão alegre,
em Napoli, pela sua beleza, inteligência, que Boccaccio nesse período
nem era chamado assim, mas, latinamente: Joannes Tranquillitatum (João
das Tranquilidades), pois tudo era risonho em torno dele.
Porém, isto vai até 1340, quando tinha 27 anos, porque no
terceiro período de sua vida as coisas mudam. De 1340 a 1345 apresenta
este período caracteres opostos àqueles com os quais ilustrava sua vida
em Napoli. Em 1340, o Banco Bardi faliu e então Boccaccio teve que
trabalhar e conhecer a realidade, pois não podia mais viver de riquezas, de
cheques, como aconteceu até então. Agora tudo muda. Então Boccaccio,
com 27 anos, deve começar uma experiência dura, amarga, de todos os
dias, ele que era o moço que não conhecia preocupações. Começou a ser
empregado em Florença, como mensageiro junto ao papa, sendo uma
espécie de embaixador, levando informações da república florentina aos
senhores da Itália.
Em 1352, ele teve da república de Florença a honra e a incumbência
de ir a Padova, e lá, convidar para a Universidade de Firenze ninguém
menos que Petrarca. Ele apresentou esse homem famoso à Europa e
ficaram amigos, mas com uma diferença, pois não era tão sério, honesto
e famoso como Petrarca, e foi uma amizade num plano de admiração de
Boccaccio para com Petrarca e simpatia desse para com Boccaccio.
Em 1362, Boccaccio já começava a manifestar sinais da
decadência e sobretudo pela sua miséria. Por um conjunto de coisas,
Boccaccio envelheceu física e espiritualmente; a sua velhice espiritual
constituiu uma preocupação de caráter religioso, que só se apresentou
depois de 1360, quando ele começa a pensar no Além, que ele não tinha
feito nada até então e que seus livros eram uma negação, sobretudo seus
diálogos fizeram que ele pensasse nisso.
Em 1362, quando estava em Certaldo, apareceu-lhe a fazer uma
visita imprevista um humilde frei que se chamava Gioacchino Ciani, que
Bruno Enei
92 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
Obras de Boccaccio
Il Decamerone
O título desta obra é de origem grega: deca = dez; emeron =
dia. É pois uma obra comutável: novelas em dez dias, contadas por dez
diferentes personagens. Dez dias x dez personagens dá cem.
Foi escrita entre 1348 e 1351, quando Boccaccio tinha 35 ou
36 anos, num período não mais de mocidade, em que ele podia sentir
a vida com maior equilíbrio e objetividade. O enredo desta obra é o
seguinte: durante a peste que havia em Florença em 1340, quando ela
era mais cruel, matando Laura, homens e mulheres, o poeta imagina que
um grupo de sete moças e três moços, encontrando-se numa das mais
famosas igrejas – Santa Maria Novella –, combinassem de ir viver nas
colinas de Florença durante a peste.
Os moços se chamavam: Filostrato, Panfilo e Dionello. Os
nomes querem ter algo de alegórico, e pelo menos um tem um sentido
autobiográfico: Dionello, que é o personagem que mais possa lembrar
os acontecimentos da vida juvenil de Boccaccio. Mas também os outros
dois nomes desta obra têm um sentido figurado. Filostrato é o vencido
pelo amor e Panfilo é todo amor. Dionello é um moço vivo, aberto, sem
disciplina, amante da vida, e é a imagem de Boccaccio.
As mulheres ou moças, nenhuma delas é mais nova do que
dezenove anos e mais velha do que vinte e seis, isso quer dizer que se
determina tudo num mundo de mocidade: Filomena, Fiammetta, Emilia,
Elisa, Lauretta, Neifile e Pampinea.
Estamos então diante de um mundo de mocidade, diante de dez
diferentes caracteres, diante de dez diferentes psicologias, e isso dá o
caráter de universalidade, de diferenciação que esse conjunto de novelas
possui. Os dias durante os quais o poeta imagina que esse grupo de
moços vive longe de Florença são na verdade catorze, mas a sexta-feira e
o sábado não são contados por serem os dias da penitência e da salvação.
Então, dois dias da semana não se contam, de forma que, durante os
quatro dias que sobram das duas semanas, ficam dez, um dia de cada
um dos personagens, que conta uma novela.
As novelas são contadas à tarde, quando os moços estabelecem
viver nos campos, gozando o ar, e vão contando a novela, e depois
dizem as próprias impressões, e assim temos também essa conclusão
viva, que contém essas impressões. No fim de cada dia há uma ballata
em verso, de modo que todos os dias do Decamerone se fecham com
versos, contados pelos moços e moças; e todo dia se nomeia um rei e
Bruno Enei
94 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
uma regina, que será quem deverá dizer as novelas, isto é, os temas das
novelas daquele dia.
Um dia se falará sobre o amor feliz, o infeliz, a inteligência, a
arte, a morte, e então as novelas devem ser inspiradas pelo rei ou rainha,
a não ser Dionello, que é livre de contar o que quer. É o moço mais livre
e cria por isso também uma variedade, isto é, a variedade do conjunto
desta obra.
Toda obra é precedida por uma introdução, que é a parte mais
trágica, mais triste, mais dolorosa do romance, em que Boccaccio
descreve a peste de Florença, mas como ele diz na introdução, o seu
livro é como uma montanha, é preciso subi-la para gozar de uma lúcida
paisagem, assim é a introdução.
Dois dias desses dez são livres, quer dizer que no primeiro e no
nono o assunto é livre, eles podem ser de qualquer assunto. Isso contribui
a quebrar a monotonia no conjunto da obra dessas cem novelas.
Portanto, estão bem construídas e estão ligadas a uma lógica
filosófica e existência artística. É interessante observar que as novelas são
cem, como cem são os cantos da Divina Comédia, o que confirma uma
impressão nos italianos: como a Divina Comédia é a comédia divina, o
Decamerone é a comédia humana. Esses elementos são indispensáveis
para compreender o Decamerone.
O espírito de Boccaccio coloca sua figura no seu lugar no
século XIV. Boccaccio representa o terceiro momento da dinâmica e
da dialética da literatura italiana no século XIV. Se uma literatura se
pode dizer que possua dialética, isto é, movimento, então diremos que
o primeiro aspecto da literatura é Dante, o segundo Petrarca e o terceiro
Boccaccio. O primeiro é o poeta do terceto, o segundo, do soneto, das
diretrizes psicológicas, da nossa sensibilidade. O terceiro é o do escritor
objetivo, sereno, da vida assim como ela é.
Em Dante nós temos um apóstolo julgando a vida humana, não
pelo que ela é, mas pelo que deveria ser na base de um ideal religioso e
político. Ele não se compraz com a realidade, que é para ele condenada,
e ele quer por meio dela transformá-la; ela torna-se o ideal político e
religioso que ele defende nas suas obras. Ele olha a realidade não
objetivamente.
Petrarca é o poeta que vive numa crise espiritual, na preocupação
que sente em si, a força de uma tradição moral, religiosa, política, que é
própria da espiritualidade da Idade Média, e ao mesmo tempo pressente
uma nova, que é a da Renascença. Então cria-se na sua consciência
esse choque, entre amor para a realidade e a preocupação de um mundo
severo do Além. Então essa poesia melancólica, essa descrição do papa,
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 95
primeiro, numa obra de arte não se julga o conteúdo que não pode ser
separado da forma, mas a obra de arte não vale pelo que diz, mas como
se diz aquilo. Deve ser profundamente educativa, não pelo que diz, mas
como o diz. Expressar-se educa muito mais do que dizer. A poesia tem
um outro modo de persuadir, de tocar nossa personalidade, portanto,
Boccaccio é um grande artista.
Boccaccio não tinha nenhuma preocupação ao escrever sua obra,
portanto não é nem imoral nem moral, é amoral, fica fora do julgamento.
Nós devemos pensar que Boccaccio no século XIV é um dos escritores
que mais reflete essa tendência para uma nova visão e concepção do
valor, e sua intuição da realidade é livre de preocupação e é considerada,
pois tira sua conclusão em si mesma.
Portanto, o Decamerone descreve a vida como é, e para
Boccaccio é uma belíssima coisa, porque é um conjunto de contrastes,
de artistas, de bobos e de medíocres, e o homem age, atua, realiza suas
aspirações e anseios. Tantas páginas das novelas de Boccaccio são um
hino ao aspecto do homem na vida. Não é verdade que suas novelas
falem só de corrupção. Porque ele trata da vida dos padres e freiras e
dos homens com uma delicadeza raríssima, onde descreve a candura das
moças e dos homens e a liberalidade das pessoas, de todos os clérigos, o
que quer dizer que ele também é idealista e agora o homem é virtuoso,
porque obedece a um catálogo de virtude. A liberalidade é uma virtude
religiosa e também humana.
O ser cavalheiro, ser leal, culto, são coisas boas ou não? O
fato que uma diferente religião sugira tudo isso, se esses elementos são
imperativos de todas as idades, o que é que há de imoral? Só o fato de
atribuir tudo isso não à religião. É verdade que o amor em Boccaccio,
descrito mais como um vício e naturalmente visto pelo conteúdo, pudesse
ser condenado, mas outros aspectos são esquecidos em que o assunto do
amor enobrece o leitor; quer dizer que sempre há essa objetividade da
vida, vista pelo que ela é, pela sua imanência fora do reflexo do Além.
É um espelho da vida, do que se faz, de nosso viver, do nosso desejar
quando somos moços, da nossa melancolia quando somos velhos; é a
vida como ela é, e o importante para compreender isso é ter um senso
lógico da passagem da vida à prosa.
Petrarca escreve sonetos que são pequenos instantâneos da
sensibilidade pessoal de um período longo, objetivo, narrador, depois
gozando aqueles aspectos da vida que constituem a realidade da vida,
de forma que é uma obra belíssima, juvenil, cheia de uma visão romana,
clássica da existência, porque os valores que ele canta são os mesmos que
ele hoje põe em evidência. Dante é o poeta do homem na espiritualidade
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 97
Obras pós-1348
Il corbaccio; De claris mulieribus; De casibus virorum illustrium
(plutarquiana); De genealogia deorum gentilium. As mais importantes
são: De montibus, silvis, fontibus, lacubus (histórico-geográfico);
Trattatello in laude di Dante (comentário da Divina Comédia); La vita
di Dante. Temos ainda Buccolicum Carmen, poesia em latim.
São obras escritas depois do Decamerone. E podemos dizer pelos
títulos, documentam com elas a grande transformação que encontramos em
Boccaccio, arrependido de uma vida que o preocupa. Boccaccio nos últimos
anos de sua vida, depois de 1362, mudou completamente o seu modo de
viver, preocupado com o Além, e o monge que lhe comunicou a visão fez
com que Boccaccio se fechasse no mundo moral, clássico e literário.
Em De claris mulieribus, fala das ilustres mulheres que souberam
ser ótimas mães e cidadãs: Andrômaca, Penélope, etc. Sabe exultar o
caráter das mulheres.
De casibus virorum illustrium fala dos acontecimentos de
homens ilustres e de homens destruídos, isto é, uma obra que faz pensar
na obra de Plutarco.
E seria interessante ilustrar, Il corbaccio é de origem espanhola,
quer dizer chicote; é uma obra em que Boccaccio descreve uma visão
que ele imagina ter tido, pelo seguinte: ele enamorou-se em 1348 de uma
viúva moça, bonita, mas que não escutou aos seus amores, e ele vinga-
-se dessa não-correspondência descrevendo uma visão em que o marido
descreve todos os vícios da mulher; é um livro de caráter misógino, que
instiga o ódio para a mulher. Boccaccio antes de 1348 não era misógino,
não odiava as mulheres.
De montibus, silvis, fontibus, lacubus e De genealogia deorum
gentilium são obras que poderiam ser a expressão da seriedade de
Boccaccio. Na primeira se interessa pela origem dos deuses pagãos.
Na segunda, de caráter científico, fala dos bosques, montes, lagos; é o
segundo aspecto clássico de Boccaccio.
Seus últimos livros, ele que era tão oposto de Dante, o amor que
teve justamente para com Dante poderia ser objeto de uma dissertação.
Petrarca era mais cheio de dúvidas, teve pouca simpatia para com
Dante, de forma que não admirava a intransigência moral de Dante.
Mas Boccaccio, embora o contrário de Dante, teve uma grandíssima
simpatia para com Dante.
Embora lhe interesse a vida e não os ideais, portanto estas duas
últimas obras são uma verdadeira prova de amor, de simpatia; têm uma
importância que prenuncia o Humanismo e a Renascença, de um autor
da Idade Média.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 99
Literatura religiosa
Domenico Cavalca escreveu uma obra, Vite dei santi padri,
em que são descritos os padres do antigo Oriente, o que sentiam, suas
tentações, etc. O conteúdo do livro é monótono, mas em algumas vidas,
como a de São João Batista, de Abraão, o estudo é íntimo e revela na
Bruno Enei
100 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
Novellieri
Como escritores de novelas, imitadores de Boccaccio, temos:
Giovanni Sercambi: um escritor inexperiente, querendo imitar o
Decamerone com sua obra.
Giovanni Fiorentino, apenas notável por uma certa clareza
expositiva, assinala o início da novela boccaccesca com sua obra Il
Pecorone.
Franco Sacchetti, o mais famoso de todos. Alguns de seus temas
têm semelhança com Boccaccio. Nos seus I sermoni evangelici aparecem
suas considerações morais, de homem religioso e bom cidadão.
E, finalmente, um humilde poeta, Antonio Pucci, com seu amor
por Florença, sendo um espírito mais pobre e simples que Sacchetti, e
suas obras melhores, os poemas Gismirante e La Reina d’Oriente.
Citamos apenas os nomes de Alesso di Guido Donati, Fazio
degli Uberti e Federico Frezzi, com os quais se encerra o século XIV,
com a sua dinâmica confirmada através dos artistas menores.
25
“Desejo morrer”.
LITERATURA ITALIANA II (1957)
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 103
O HUMANISMO
Obras de Poliziano
Opere classiche
Quer dizer, obras escritas em latim, onde é evidente o desejo
dele de alcançar a perfeição da linguagem. Aquele espírito próprio do
Humanismo, de num só sentido lutar junto com os clássicos, numa
inspiração de perfeição. Ambra é o nome de uma ninfa, de uma figura
mitológica, uma figura pagã grega. Esta ninfa era perseguida por um
bichão que se chamava Ombrone, que é o nome de um rio. Nos gregos
havia essa tendência de transformar um ser em humano e vice-versa,
como Ambra, que não queria saber nada de Ombrone, apesar de ele a
amar, isto é, um rio amando uma ninfa. Então ela pede à deusa da caça,
Diana, para ser transformada em pedra.
Mas o que é esta rupe?26 É um lugar perto de Florença, perto
do rio Ombrono, que se chama Poggio a Caiano, uma aldeiazinha num
lugar feio, por ter muita pedra.
Mas o poeta transforma tudo isso. Para ele a pedra se chama
Ambra, e Ombrono é um homem.
Em Poggio a Caiano, Lorenzo de’ Medici havia feito construir a
sua melhor vila. Este político, este administrador tinha a dois passos de
Florença uma maravilhosa vila, que ainda hoje existe: jardins imensos,
salões enormes, onde havia leituras, solenidades e banquetes. Nesta
vila ele ia descansar. E como se ama a casa em que se mora, então a
transformou em algo mitológico, levando essa vila a um plano de paraíso.
Esse lugar é Poggio. Lá tudo surgiu, porque uma ninfa quis ser pedra,
26
Rochedo.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 113
Opere populari
Até aqui, um ar grego, latino, literário. Agora teremos as obras
populares, obras que um crítico quis dizer que eram uma espécie de
doppe, que Lorenzo dava aos seus súditos: aquelas obras eram o estímulo
que jogava no povo para enganá-lo. Mas ele não era demagogo. Ele
queria que o povo brincasse. Ele tinha uma simpatia pelo povo, tomando
parte no carnaval, bebendo vinho com o povo. Sabia viver no meio dele,
de modo que suas três obras populares apresentam um aspecto de sua
personalidade.
I Beoni, La caccia col falcone, La Nencia da Barberino são as
obras populares, das quais foi dito que tinham um valor demagógico, que
Lorenzo de’ Medici quis simpatizar com o povo para que este não tivesse
consciência da sua escravidão. Mas nada disso. Elas são a sensibilidade
desse homem político que também sabia amar o povo, sendo o autor de
cantos carnavalescos, como Bacco e Ariana. As três obras acima são
pequenas e escritas em verso.
I Beoni é uma descrição humorística, mas sem despeito, sem
raiva, em vez, com uma atitude risonha de bonomia e solidariedade.
É uma descrição dos maiores bebedores de vinho de Florença. A
obra torna-se uma análise da sociedade florentina daquele período.
No entanto, esta obra perdeu muito do seu valor, porque não temos
documentos suficientes dos nomes dos bebedores; muitos deles eram da
alta sociedade, ocupando cargos importantes, de autoridade. E teria sido
interessante saber quem foram.
Lorenzo confunde os bêbados numa mesma classe, isto é, gente
do povo e gente de cultura, e os descreve saindo de uma cantina de
Florença, voltando para suas casas; é um desfile de bebedores. O fundo
desta obra é claramente popular.
La caccia col falcone põe em evidência o aspecto de homem
viril de Lorenzo de’ Medici, que não foi somente poeta, político,
27
Gaita de foles.
Bruno Enei
114 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
Opere erudito-platoniche
Altercazione − Em italiano é um termo que vem da palavra
altercare, que quer dizer discussão um pouco forte, acesa, quase uma
briga. Lorenzo imagina então uma discussão acerca deste problema: se
o homem é mais feliz na cidade, no meio civil, com todo conforto, ou
se a felicidade consiste em viver nos campos, na solidão, na natureza,
afastado dos luxos da cidade. Em que consiste a felicidade: em viver na
cidade ou longe dela?
Aqui intervém Ficino, o maior filósofo, que também vivia na
corte de Lorenzo, junto a Poliziano. Ficino é o fundador da Escola
Platônica e intervém como defensor de Platão. Afirma que a felicidade
não consiste nos bens naturais, isto é, vivendo na cidade ou no campo.
E sim, que a felicidade consiste em chegar ao sumo bem, consiste em
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 115
uma contemplação, que faz com que o homem abandone tudo, todas as
coisas terrenas. É uma obra platônica, uma contradição. Esse homem
que exulta o amor de dois pastores, esse homem abandona o chão. Essas
são suas contradições. É um outro aspecto, isto é, a poliedricidade de
Lorenzo. A felicidade é essa atitude platônica de elevar-se das ambições
terrenas, até chegar a Deus.
Canzoniere é uma obra que recolhe os madrigais de Medici
durante sua vida, e de vários períodos. Ele recolheu os que dedicava à
moça que amou. Obra de caráter humanístico, imita os grandes clássicos,
sobretudo Petrarca. Temos então Lorenzo de’ Medici popular e poeta,
escrevendo o Canzoniere num sentido clássico e ideal.
Le selve d’amore: obras não completas, em que ele recolheu
poesias sem ordem, de vários momentos, e que por isso se chamam
selve, isto é, não têm uma única linha, são caminhos diferentes. Nelas
está recolhida toda sua sensibilidade no campo do amor.
É uma figura não notabilíssima, mas digna de ser lembrada,
porque Medici, com sua multiplicidade de simpatias clássicas e platônicas
ou populares, de sensibilidade, é o espelho em que se refletem três, quatro
ou cinco aspectos próprios do Humanismo. Nele, o Humanismo, embora
não tenha chegado, representa seus vários aspectos.
Obras de Pulci
La Giostra
É uma obra que poderia lembrar Le Stanze de Poliziano, embora
seja muito inferior como estilo e sensibilidade, que Poliziano soube
levar tão alto. É uma obra encomiástica, de cumprimento, de simpatia
a Lorenzo de’ Medici. Trata-se de uma giostra, uma luta que houve em
Florença em 1469 (ano em que nasce Niccolò Machiavelli), que Lorenzo
ganhou, e então ela exulta esta vitória.
La Beca da Dicomano
Faz ver como é grande a simpatia de Luigi Pulci para com
Lorenzo e vice-versa, sendo uma simpatia também de caráter intelectual.
Aqui também Pulci descreve um pastor que exulta Beca, que é de
Dicomano. Temos então amores populares, exultando-se a saúde. Mas é
muito superior pela personalidade de Luigi Pulci.
Epistolario
É o conjunto das cartas de Pulci. Elas são importantes porque,
ao contrário daquelas de Petrarca, que se interessavam pela língua, pelo
estilo, estas são verdadeiras confissões e têm um valor autobiográfico,
mostrando a psicologia e preocupação de caráter cultural de Pulci,
sobretudo sua luta religiosa e suas dúvidas.
Pulci viveu num período em que os aspectos dogmáticos da Igreja
iam caindo. Todos os princípios da fé nem sempre souberam subsistir.
Ele então, diante de Copérnico e Ficino, começa a vacilar em sua fé. Mas
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 117
ele não tinha nenhuma fé que pudesse substituir essa fé. É o drama de
tanta gente e que pode ser objeto de tantas críticas. Esses poetas lembram
Pascal, que foi torturado por uma crise de fé, que substitua uma fé que
estava caindo. Essa obra põe em evidência a amargura interior de Pulci,
que é o mais popular dos humanistas – sincero, grandioso, simpático –
da literatura italiana do século XV. É o poeta que no Morgante exulta um
mundo diferente do Epistolario.
Il Morgante
É o título de um poema de Pulci constituído de vinte e oito
cantos em versos hendecassílabos oitavados. Essa forma métrica é
própria da poesia épico-cavalheiresca e que, por isso, aqui assume um
caráter italiano. Quem deu este caráter de italianidade foi justamente
Pulci. Outros serão Boiardo, Ariosto e Tasso.
Il Morgante é constituído de vinte e oito cantos, sendo os
primeiros vinte e um mais ou menos os acontecimentos de um poema
intitulado L’Orlando. Os sete outros imitam outro poema, La Spagna in
ruina.
O poema de Pulci como material de inspiração não é original.
Isso dá prazer, porque a verdadeira poesia não está na originalidade do
conteúdo, mas no tratamento do conteúdo e na forma. Porque o mundo
não possui muitos conteúdos novos. O mundo é sempre o mundo, que
se desenvolve entre mal e bem. O interessante é saber dar uma forma
própria. O seu valor está nisso, em ter sido original como forma, por
ter sido um tema já tratado por outros, ao qual ele deu sua própria
originalidade.
O conteúdo serve até um certo ponto somente para dizer por que
é que esta obra deve ser considerada como uma continuação da literatura
épico-cavalheiresca. Pomos em evidência um aspecto exterior histórico:
a literatura cavalheiresca, com o Ciclo Carolíngio, ligada à Idade Média,
essas canções de gesta estão presentes aqui. Mas não é o espírito da obra,
ela não é grande por isto, o seu valor não é somente épico. Seu valor está
fora da sua tradição.
Cada uma dessas obras, seja de Pulci, Boiardo, Ariosto ou
Tasso, ligadas pelo conteúdo à poesia épico-cavalheiresca, está ligada
pela arte e originalidade e estética da própria obra, por isto é que devem
ser lembradas.
O valor dessa obra está na popularidade de Pulci, no humorismo,
nessa capacidade de tornar contemporâneo, assim como ela pode aparecer
ao povo. Esta obra nada mais é que a visão do mundo cavalheiresco pelo
povo, pelos homens não cultos do século XV. Então a importância desta
Bruno Enei
118 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
Emilia. E a cidade mais famosa dessa região é Ferrara, onde havia uma
grande corte dominada pelos Estensi. Lá a mesma vida de riquezas,
de estudos do Humanismo de Florença, embora com uma importância
muito maior.
Boiardo viveu muito tempo em Ferrara, e seu cargo na corte era
de bibliotecário dos Estensi. Biblioteca cheia de volumes preciosíssimos,
a começar do século XIV. Sua vida lá não tem grandes acontecimentos.
Ele foi governador desta cidade, e quando Carlos VIII desceu à Itália, ele
conta defender Emilia das tropas, mas justamente lá é que os soldados
inimigos fizeram o que quiseram. Ele morre quando a Itália cai sob
Carlos VIII.
Obras de Boiardo
Il Timone
É uma ação teatral em que, à guisa das sacras representações,
ele reproduz um diálogo de Luciano. Serve para pôr em evidência sua
cultura, pois ele traduz latim e grego. Esta obra nada mais é do que uma
prova da sua cultura.
Il Canzoniere
Dedicado à moça que ele amou, que foi Antonia Caprara. Este
Canzoniere é feito à imitação daquele de Petrarca, nutrido dos mesmos
sentimentos, dos mesmos ideais, da mesma delicadeza de Petrarca.
Pode-se ver o Canzoniere considerando três momentos:
O primeiro é o da felicidade, em que o poeta ama Antonia e é
por ela amado. Aqui o poeta exprime-se com exuberância, devido ao
estado da alma feliz. O segundo é o da tristeza, é a parte elegíaca, em que
o poeta expõe a sua decepção, pois Antonia esqueceu-o. Então esse véu
de tristeza sobre o soneto. A terceira parte é o da superação, pois o poeta
supera sua tristeza numa visão de caráter religioso, em que ele inclui seu
amor, sublimando-o, com aquela pureza que é própria do platonismo do
século XV.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 121
L’Orlando Innamorato
Descreve o amor de Orlando. Mas o poema mais famoso da
literatura italiana do século XVI é o de Ariosto, a quem Camões tanto
deve, e chama-se L’Orlando Furioso. Ariosto é o continuador. Orlando
começa enamorado com Boiardo e acaba louco com Ariosto. É o cúmulo
da mentalidade do Humanismo e da Renascença. L’Orlando Innamorato
deveria ser um poema de cem cantos, mas a morte improvisada de
Boiardo deixou o poema incompleto, com sessenta e nove cantos. Qual
é o resumo desta obra?
Angelica, esta figura de moça brilhante, bonita, pura, brincando
com o fogo, uma dessas mulheres que não têm paixão, mas é naturalística,
sem procurar encontrar amores, sem sentido de corrupção, é filha do rei
Galifrone de Cataio, na China, cheia de esplendores e riquezas, que já
temos desde Il Miglione de Marco Polo. Angelica decide abandonar sua
família e seu país e, junto com seu irmão Argalia, vai para Paris.
O poema começa assim, com a chegada de Angelica e seu
irmão ao palácio de Carlos Magno, onde ela, depois de um riquíssimo
banquete, desafiou os paladinos de Carlos Magno, em nome do irmão.
Este luta com os paladinos e cobre-se de glória. A beleza de Angelica faz
com que os paladinos enamorem-se dela. E quando ela decide abandonar
Paris e voltar a Cataio, os paladinos vão atrás dela, prontos a enfrentar
privações, para poder contemplá-la; entre eles estão Orlando e Rainaldo,
os mais famosos.
A um certo momento, Angelica enamora-se secretamente de
Rainaldo e ele dela. Rainaldo não tem nada de novo por gostar dela, que
era uma coisa natural. Mas quando chegam à selva de Ardennes, entra a
parte mágica do poema. Rainaldo bebe da água do ódio e ela, a do amor.
Angelica fica loucamente apaixonada por ele e Rainaldo, odiando-a.
Orlando continua amando-a, mas não amado por ela.
Orlando e Rainaldo cobrem-se de glórias, no Oriente e Ocidente,
até chegarem a Albracà, onde Angelica é presa. Orlando toma parte em
duelos fortíssimos para libertá-la, enquanto Rainaldo fica indiferente,
mas Angelica gosta de Rainaldo e não de Orlando.
Num certo momento, eles ficam sabendo que Agramante, rei do
exército pagão dos mouros, agrediu Paris, e instado por Gano, marcha
contra a cidade. Facilmente teria a melhor contra Carlos Magno se
Orlando e Rainaldo, seus melhores paladinos, não voltassem a Paris,
tendo antes libertado Angelica. Porém, ao chegarem a Ardennes,
acontece o contrário: Rainaldo enamora-se novamente e Angelica odeia
loucamente Rainaldo. E chegam a Paris nesta situação, na véspera da luta.
Carlos Magno pede a Angelica ficar sob a proteção de Naimo, duque da
Bruno Enei
122 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
uma doação do rei Federico. Sannazaro era o dono dessa vila e lá morreu
em 1530, sempre contemplando o mar, em sua colina.
Obras de Sannazaro
De partu Virginis
Escrita em latim, é de caráter religioso-mitológico; mas o título
não justifica a obra, pois é simplesmente o pretexto para encher de
mitologia esse acontecimento. É uma imensidão no mundo clássico e
mitológico.
Eclogae piscatoriae
Conjunto de églogas, que aqui, em vez de falarem de campos e
pastores, falam de pescadores, de mar, e têm o valor de representarem o
início de uma tradição literária napolitana, em que o mar e os pescadores
constituem o começo dessa tradição.
Il Canzoniere
Conjunto de poesias em que o poeta exulta o amor por
Carmosina.
L’Arcadia
É a obra sobre a qual devemos mais falar e que deu nome às
academias literárias. O título desta obra é universal, porque foi muito
lida do século XV em diante, não somente na Europa, mas na Ásia e
na América, tornando-se seu título tão comum, que ficou como nome
de uma academia e de um movimento literário que se chamou Arcádia.
Chama-se de arcádicos os escritores ou as agremiações que não têm
grandes recursos. Sannazaro foi conhecido e teve uma grande influência
na literatura europeia e mundial.
L’Arcadia é um poema idílico, formado de doze prosas e doze
poesias, em que o escritor, com os nomes mudados, fala de si, de forma
que a obra tem um sentido autobiográfico. Sincerus, como se sabe, era o
nome de Sannazaro na Academia Pontaniana de Napoli. Então o poeta
imagina que Sincerus, para esquecer um amor seu, para evitar a sua
paixão, sua insatisfação, vai a um lugar afastado da realidade, um lugar
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 125
Obras de Alberti
I Trattati
Os séculos XV e XVI na Itália são séculos em que se escreviam
muitos tratados de fama internacional, como Il Galateo, um tratado do
século XV, que naquele tempo era o máximo dos bons costumes, hoje
considerados um horror. Era uma das preocupações dos humanistas,
a de saber viver em sociedade, algo muito coerente com essa cultura.
Temos outros tratados, como II Cortegiano, que tratava do ideal do
homem cortesão, que, pelas suas maneiras, muitas vezes pensamos que
é hipocrisia. Há centenas de trattati que falam de tudo.
Mas os tratados antes de Leon Battista Alberti eram escritos em
latim, por serem de origem ciceroniana. Cícero tem muitos tratados, obras
de caráter filosófico, que naquele tempo se chamavam trattati. Então, a
língua oficial deles era o latim.
Leon Battista Alberti começa a tratar dos assuntos de arte na
própria língua. Isto depois era uma coisa normal: na França, escreveu-se
em francês, na Espanha, em espanhol, e assim por diante. Mas antigamente,
se quiséssemos ler obras, tínhamos que ler em latim. Até Spinoza escreveu
em latim. Essa é, pois, a importância de Alberti, que os tratados com ele
abandonam o latim e começam a ser escritos em italiano.
Bruno Enei
128 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
Il Teogenio
É um tratado em que Alberti fala da contingência dos bens
materiais, como o homem sábio deve aceitar essa volubilidade da sorte,
da fortuna, da riqueza, da vida. A vida espiritual não consiste na posse de
bens, pois a vida espiritual sabe que os bens vêm e vão e que isso não é
caso de desesperar-se. A vida é sobretudo um desenvolver-se espiritual, é
um tornar-se sempre mais homem. Essa é a maior riqueza: a espiritual.
É este o conteúdo dessa obra, como teoria ligada à filosofia
greco-romana, ao estoicismo, que fazia questão da pobreza, como
Diógenes. Então é baseado nessas tradições, num sentido ético-
-moral: o homem deve ser forte pelo domínio das próprias paixões e
sentimentos.
De iciarchia
Quer dizer: do governo da casa. Trata da casa e do seu governo,
em relação ao governo do Estado. Faz essa comparação entre o modo
como um pai administra e se comporta com sua família com o modo
como um chefe de Estado deveria se comportar com o povo, que é seu
filho.
Della famiglia
É o tratado em que fala da figura do pai, da escolha da mulher, das
qualidades que deve ter a mulher, da educação dos filhos e, por ultimo,
da escolha e da amizade dos amigos. A figura do pai é esse homem que
providencia, que rege a casa, com o seu sentido de responsabilidade. A
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 129
mulher deve ser culta, educada, conhecedora da arte, para poder instruir
seus filhos; a necessidade de educar os filhos nos livros do savoir faire.
Exulta também o valor do sentido dos amigos. Temos então imagem das
ordens: o pai está no centro da tela, dirigindo e preparando os filhos para
a vida, tudo numa completa harmonia.
Em conclusão, Leon Battista Alberti, no meio da literatura
do Humanismo, tem a importância de ser o poeta, o representante,
o idealizador do conceito de homem, assim como o Humanismo o
concebia, como o homem deveria ser na mentalidade do Humanismo. É
o homem que fica satisfeito com o homem assim como ele é, ou como
deveria ser pela educação, pela perspectiva da vida.
Ele representa o ideal do homem sonhado pelo Humanismo, isto
é, o homem equilibrado, uma síntese da cultura e da experiência, da
inteligência e do coração, que fosse estudioso, que soubesse tudo, num
conjunto harmônico. Esse é o homem que Alberti descreve nas suas obras
e que ele mesmo encarnou, ao contrário de Leonardo da Vinci, que foi
um apaixonado do Humanismo e que sai fora dele, dessa serenidade.
Então esta figura nobre, bela, o que o italiano nunca soube ser,
mas num sentido frio e temperado, que é a prova do domínio sobre as
emotividades, que o espírito deve ter sobre as paixões, o que alcança
nos anos maduros. Alberti ama esta mentalidade de homem moderno,
equilibrado, aristotélico e cortesão, mas tudo sem excessos, num
equilíbrio perfeito. Essa é a sua figura, como o ideal do Humanismo.
A LITERATURA ITALIANA NO
SÉCULO XVI
que podemos dizer que estamos diante de uma nova visão da realidade,
pois com ela Machiavelli está longe do mundo da Idade Média e Ariosto,
da arte da Idade Média. O binômio utile et dulce, isto é, a utilidade do
conteúdo à doçura da palavra, não interessa a Ariosto: o seu conceito de
arte, a razão pela qual escreve, o seu desejo de contar não têm nenhuma
preocupação moral; escreve pelo gosto de contar, exprimindo nos seus
versos o ritmo da harmonia do universo.
Ariosto conta os vários elementos antagônicos que formam a
harmonia da vida, e sua poesia só tem esta aspiração, de ser a imagem
dessa harmonia. O mundo flui, corre, nele há bem e mal, ele é feito de
contradições, que dão a harmonia que é a vida. A finalidade de Ariosto é
essa, a de ser a imagem dessa harmonia.
Portanto, Ariosto é o ponto máximo da arte do Humanismo
e Machiavelli, do pensamento do Humanismo e Renascença: o que a
Itália pensou encontra-se em Machiavelli e o que ela cantou, em Ariosto.
Mais de que todos os outros, eles levaram para a Europa o espírito do
Humanismo e da Renascença, fazendo com que se nutrissem dessa
cultura e fizessem muito mais do que os italianos souberam fazer.
Depois do século XVI, os italianos caíram no rococó, foram dominados
e divididos. Então os franceses, alemães e ingleses criam os grandes
movimentos religiosos, na Alemanha com Lutero, o Classicismo na
França e a Filosofia na Inglaterra, com Hume e Kant.
A Itália receberá de volta toda essa cultura, com Newton
e Descartes, no fim de século XVIII e no século XIX, quando ela
começará a repensá-la, vinda de fora. A importância então que deve ter
a liberdade da própria pátria. A Itália era rica e feliz até o século XVI,
criando tudo isso. Depois foi escrava dos espanhóis, depois dos franceses
até 1714, depois dos alemães até 1918, e tudo isso impediu muito aos
italianos desenvolverem-se, como até com as últimas consequências do
Humanismo e Renascença: na França com a revolução, na Alemanha
com o protestantismo, e na Inglaterra com Hume.
28
Pastor de cavalos.
Bruno Enei
134 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
Obras de Ariosto
Le Commedie
São La Cassaria, La Lena, II Negromante, I Suppositi e La
Scolastica. No século XVI, que é de grande admiração pelo Classicismo,
muitas foram as comédias que se representavam nos teatros, e sobretudo
nos teatros dos senhores, as comédias latinas. Elas eram representadas
na língua original, isto é, em latim. A cultura era tão difundida que os
assistentes podiam encontrar os dramas na língua original.
O Humanismo foi justamente um período de alto nível cultural.
O teatro representado durante a Renascença era o velho teatro latino
de Plauto e Terêncio, ambos do período arcaico, muito anteriores a
Cícero e Horácio. Foram os primeiros representantes da literatura latina.
Neles não havia nada de extraordinário: eram suas peças baseadas num
fatalismo no qual o personagem não tinha nada do drama interior.
Depois do século XVII, na Itália e na Europa, depois dos
séculos XVI e XIX, o teatro teve uma transformação espetacular, com
Ibsen e Pirandello, cujos dramas são verdadeira arte, pois o drama é a
representação de um sentimento, é o choque entre dois desejos. O teatro
de Plauto não tinha nada disso, pois era baseado em assuntos leves e
fáceis, não tocando a intimidade do homem, como Othello e Macbeth.
Portanto, as comédias eram representadas em latim na Itália,
no século XVI. E Ariosto foi o primeiro que começou a fazer com
que o teatro iniciasse representações em língua italiana. As comédias
de Ariosto são muito fracas, porque são de imitação. Para ele o grande
comediógrafo é Terêncio, e ele o imita escrevendo em italiano. Suas
comédias podem ser consideradas como as primeiras em língua italiana,
representadas no século XVI, o que representa a vitória da língua italiana
Bruno Enei
136 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
Le Satire
As sete sátiras em Ariosto não querem dizer o que é hoje, isto é,
ofensas, polêmicas, obra ofensiva, desnudadora, que apresenta as coisas
como são. Em Ariosto, sátira tem um sentido mais horaciano, querendo
dizer cheio de acontecimentos, de humanidade; vem de satura, então
na sua etimologia antiga quer dizer conto autobiográfico, autoconfissão
dos problemas, dos anseios, entre outros. Elas são a produção em que
Ariosto conta os acontecimentos da sua vida, numa delas narrando
suas desventuras como cavallaro. Mandou-as a seus amigos em forma
de carta. Uma delas foi enviada a Pietro Bembo. É interessante lê-las,
porque explicam tudo que aconteceu na sua vida, pois têm esse valor de
confissão.
As comédias dão o Ariosto humanista e as sátiras, o Ariosto
homem.
L’Orlando Furioso
Se as comédias dão o humanista e as sátiras, o homem, esta obra
nos dá o Ariosto artista.
Trata-se de um poema épico-cavalheiresco, formado
definitivamente de quarenta e seis cantos, mas na primeira vez que foram
publicados, em 1516, eram apenas quarenta. Também na segunda vez que
foi publicado, em 1521, aparece com quarenta cantos, mas na última
edição antes de sua morte, em 1532, o poema saiu com o acréscimo de
seis cantos, então com quarenta e seis cantos.
Em 1503, quando entrou para o serviço de Ippolito d’Este, já
tinha começado a trabalhar no Orlando Furioso, trabalhando nele mais ou
menos trinta anos. E isso é a prova da seriedade, da honestidade, do amor,
da profunda unidade que havia entre Ariosto e o seu poema. Levado a um
plano mais alto, tem a unidade que deve haver entre o artista e a obra.
Não há poeta mais fácil que Ariosto. Leopardi é fácil e outros
o são, mas nenhum deles é tão limpo, tão simples, tão sublime na sua
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 137
esse hino à mocidade, sem seriedade. Por isso essa variedade evidente
no Orlando Furioso, o que o torna o poema menos estático e o mais
dinâmico da literatura italiana: não há canto em que os assuntos não
sejam cinco ou seis diferentes, como de Paris aos bosques e estradas,
procurando algo que não se alcança, com esse senso de entusiasmo que
é próprio do moderno.
Angelica foi definida como a criatura centrífuga, a força que
tira os cavaleiros de Paris. Paris faz com que os cavaleiros unam-se
num ideal político-religioso. Angelica é a vida, a expressão da vida,
que tira o homem dos seus propósitos de intransigência. Como a vida,
propósitos que se amenizam e se fecham na realidade. Por esta razão
que é grandíssimo Ariosto, o mais pictórico dos escritores italianos. Sua
obra é uma música, nada há nela de arquitetônico. Em Boiardo temos
cavaleiros fortes, mas Ariosto não tem nada disso. Ele prenunciou as
cores e a pintura de Rafael, que representa essa serenidade circular de
sine curis, não como a preocupação de Michelangelo. Ariosto é um
pouco essa visão. Serviu-se de um material de séculos de tradição e que
ele renovou.
Lívio. É importante pôr em evidência esse amor por Tito Lívio, que o
ajudou durante a vida a julgar a realidade, e por isso mesmo é um dos
maiores historiadores do Humanismo italiano e europeu. É uma figura
universal por ter sido um dos maiores políticos que existiu, criando uma
ideologia política e uma concepção histórica. Machiavelli atingiu sua
orientação histórica, examinando a história do seu tempo como também
os tempos do Império Romano.
É notável desde já esse casamento entre Humanismo e realidade,
entre experiência pessoal e cultura. Nele havia essa unidade. Ele não
procura a literatura latina por um desejo de elegância, mas para descobrir
nos acontecimentos históricos as leis eternas dos acontecimentos
humanos, a dialética dos Estados, a descendência de um povo, sua
hegemonia, o que significa povo, religião. Esses são os problemas da
grande figura de Machiavelli. Por esta razão é importante lembrar o ano
de 1498.
Esta data é a que representa o ano em que tomou parte direta na
política, nos negócios públicos, com um cargo de responsabilidade de
direção em que tinha possibilidade de observar os movimentos políticos
dos vários Estados italianos e europeus, as ambições dos chefes de
nações da Europa. O que houve em 1498?
Foi nomeado secretário da Seconda Cancelleria da república
florentina. Lorenzo de’ Medici morreu em 1492, e a Itália perdeu um
dos homens mais sábios politicamente, que pregava a harmonia. Dois
anos depois, em 1494, quando era justamente herdeiro o seu filho Piero,
a Itália foi invadida pelos franceses, que ocuparam os vários Estados
italianos até Napoli, com facilidade. Dizia-se que Carlos VIII ocupava a
Itália con il gesso. Quando ocupou Florença, os Medici foram exilados,
abandonaram Florença e só voltaram em 1512.
Nesses 18 anos, Florença foi república, sendo o presidente Piero
Soderini, e seu grandíssimo secretário foi Machiavelli. Nesse período
há lá uma agitação política e de caráter religioso, dirigida por um frei
que foi queimado, diante do qual Machiavelli riu quando era moço,
um frei generoso, que tinha uma coragem extraordinária. Foi Girolamo
Savonarola, e enquanto era queimado vivo, Machiavelli começou sua
vida de político, porque, enquanto Girolamo Savonarola poderia lembrar
Iacopone da Todi, desejando uma paz anacronística, Machiavelli é uma
expressão do mundo moderno, ao passo que Savonarola convidava os
florentinos a chorar por Deus.
Foi nesse período que Machiavelli sobe à Seconda Cancelleria,
que era o Ministério dos Negócios Internos e da Guerra. Então ele era
secretário com dois ministérios na mão: o do Interior e o da Guerra. De
Bruno Enei
142 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
forma que, com esses cargos, ele tinha possibilidade de conhecer a situação
econômica, política e moral da república florentina, mas, sobretudo, de
conhecer os vários Estados que se contendiam pelo predomínio.
Machiavelli esteve viajando muito. Esteve na França até 1510,
observando tudo em Carlos XVIII e Luiz XII, o que queriam fazer. Também
viveu muito tempo na Áustria e acompanhou as ambições políticas de
Maximiliano. Foi a Roma, então um Estado, e observou Alessandro VI,
um dos papas tão famosos daquele tempo, e também Giulio II e Clemente
VII, cujas ambições ele conhecia. Foi a Urbino, onde viveu um filho de
Alessandro VI, famoso por sua crueldade, e que era Cesare Borgia, com
o título de Duque de Valentino.
Então Machiavelli tinha na mão a situação da Europa, e a
incumbência de fato que ele tinha, viajando nesses lugares, era de
observar e escrever objetivamente o que via. Em vez, a coisa bonita é,
no entanto, sua objetividade, uma pessoalíssima, de forma que são obras
de extraordinário valor, revelando a capacidade, os segredos ideais que
determinavam aqueles planos e ações dos políticos de então.
Ele se consumia na Secretaria, trabalhando, discutindo, mas
acontece que em 1512 há na Itália uma guerra entre os Estados e a França,
que se fecha com a batalha de Ravenna e com a derrota dos italianos,
voltando a Florença os Medici em 1512. E Machiavelli, que tinha sido
secretário de 1498 a 1512, deve abandonar o seu cargo, porque os Medici
não confiavam nele por ter sido secretário da república florentina. Embora
não tivessem razão de afastá-lo, ele foi afastado e perseguido, porque
houve uma conjuração contra os Medici, e ele foi viver em San Casciano,
na vila de Albergaccio.
Salvo breves aparições em Florença, ele viveu nesse lugar até
1527, quando morre no dia 20 de julho. E esses anos, embora fossem
anos de dor, de provação, de penúria, pois como político nunca roubou
nada – e seu filho, escrevendo aos amigos, conta que seu pai não
deixou nada –, mas o que houve de bonito é que nesse silêncio ele
pôde completar suas grandíssimas obras. Todas elas escritas como num
relâmpago, com uma paixão, com um desespero, nesse período em
que a realidade o tinha afastado do mundo político de Florença, em
que se suspeita e ameaça, cheio de preocupações, é nesse período que
escreveu suas obras.
Em uma carta ele conta como vivia em Albergaccio, onde havia
um bosque em que mandava cortar a lenha, comendo com esses operários,
jogando cartas com eles, e à noite andava bem vestido e punha-se a falar
com os grandes políticos romanos da História de Tito Lívio, escrevendo
suas Considerazioni.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 143
Obras de Machiavelli
Il Principe
Quer dizer: senhor absoluto. Não se entenderia esta obra se
não se lembrasse do significado. Machiavelli, quando usa a palavra
príncipe, não a entende num sentido democrático, mas latino, o homem
que impõe a uma nação a sua vontade.
Esta obra foi escrita em 1513, isto é, no período fecundo da
atividade literária e filosófica de Machiavelli, quando o encontramos
exilado em San Casciano. É uma obra bem pequena, formada de vinte
e seis capítulos, sendo o último um capítulo cheio de fé, de entusiasmo,
porque é o capítulo com o qual ele convida um príncipe italiano dos
Medici a levantar os destinos da Itália.
Uma das razões de toda sua produção histórica, filosófica e
literária foi justamente isso, ele procurou estimular os políticos italianos
a unificar a Itália. A maior amargura de Machiavelli era a de ver que os
italianos eram os herdeiros legítimos de Roma. Diante desses blocos
fortes no século XVI, ele via a Itália como uma ovelha devorada pela
França, Espanha e Alemanha. Toda a sua obra era para acordar os
italianos a examinar, a espelhar-se na História de Tito Lívio, para ver o
que os seus ancestrais fizeram. Mas isto nunca aconteceu.
É por esta razão que Machiavelli fica na Itália como uma das
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 147
29
O valor consciente reagirá contra o furor bestial dos adversários.
Bruno Enei
148 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
30
Sorte, acaso.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 149
Istorie fiorentine
É uma obra voluminosíssima, em que Machiavelli descreve
a história de Florença, que é antiquíssima, pois vem do período de
Roma, e Catilina, que destruiu Florença. Mas a história de Florença
tornou-se mais importante em 1466, quando se transferiu para Florença
toda a história italiana, todos os acontecimentos. A política teve uma
importância enorme, devido à imensa cultura de Florença e à sua
colocação no centro da Itália. Machiavelli vai descrevendo tudo até a
morte de Lorenzo de’ Medici em 1492. O importante são os últimos
cinquenta anos, que em parte são acontecimentos que ele ouviu ou
pessoalmente viu, de 1469 em diante. Então, o enfraquecer-se do
exército italiano, e Machiavelli tenta fazer os italianos verem o que era
preciso para impedir a invasão da Itália.
Esta obra não foi escrita pela história nem pela boa linguagem,
também não é uma obra encomiástica. O seu objetivo é de analisar a
história de Florença e ver quais são as situações dos séculos XV e
XVI, para que seja possível um reerguimento da própria Itália. Ela
tem o mesmo valor de Castruccio Castracani, pois é uma visão de
acontecimentos históricos na base de uma teoria política.
La Mandragola
Calímaco, um moço bonito, inteligente, rico, gosta de uma
moça chamada Lucrezia e prepara um plano para fazer com que ela
também o ame: manda presentes à mãe da moça, Sostrata, que é
muito boba. Tinha um servo de grande habilidade, Ligúrio, que diz a
Lucrezia como ele está louco por ela. O marido de Lucrezia é muito
rico e bobo, Micchia. E como ela sempre vai à igreja, ele se dá com
o frade Timóteo, e por fim realiza seu plano, fazendo-se amar por ela.
Calímaco realiza seu plano como um príncipe realizaria seu plano
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 151
político. Esta comédia não tem o sentido torpe do século XVI, mas um
sentido amargo: que plano, que firmeza, que frieza com que Calímaco
realizou isso.
É uma comédia importante na literatura italiana, porque
no século XVI há um certo adormecimento do espírito religioso.
Espiritualmente a Renascença é uma polêmica, não é tão cristã como
a Idade Média, interessa-se mais pela cultura, e o problema religioso
fica adormecido. Os italianos ficam hipócritas religiosamente até o
século XIX, que faz com que muitos voltem ao catolicismo. Mas no
século XVIII a Itália foi muito hipotética, interessando-se mais pela
cultura, ciência e arte. Temos o Consiglio di Trento (1541-1560), em
que houve o imenso movimento de reação da Igreja contra a Reforma.
No século XVII há a inconsciência e a imoralidade, que se revela em
Manzoni com I promessi sposi, obra dominada pela imoralidade.
Sendo fraco o espírito religioso e moral no século XVI, é
evidente que a literatura transcendeu, caindo em manifestações como
o teatro, as farsas, o drama. Toda esta literatura é muito fácil, não é
muito pura; há um gosto pelo macabro, pelo lúgubre, imoral, fatos
sensuais, como em Pietro Aretino, de onde a palavra “aretinesco”.
Então, La Mandragola tem este enredo mais ou menos comum
no teatro da Itália. Porém, o espírito dela é bem diferente. É de uma
amargura e realismo extraordinários. A amargura deriva do realismo
com que Machiavelli observa as relações entre os indivíduos. Observa
com a mesma objetividade com que observava as relações entre os
Estados. No mundo sempre haverá pobres e ricos, fortes e fracos,
sinceros e falsos. O mundo é feito destes opostos, e quem ganha não
é a virtude, mas o vício, a força, a corrupção. La Clizia, uma outra
comédia de Machiavelli, não é importante.
Belfagor
Há uma revista dirigida por um dos maiores professores de
literatura italiana da Universidade de Pisa, Luigi Russo, intitulada
Belfagor. É importante essa novela. Tem o nome de um diabo de
Dante, que aparece nos Bolge, no oitavo círculo. É justamente este
diabo que aparece na novela. Machiavelli imagina que este demônio
volta à Terra e que a condição de voltar seja a de casar novamente com
a mulher dele, e a isto ele prefere o Inferno, deixando de sonhar com a
beleza da Terra e o que poderia voltar a fazer.
Machiavelli põe em evidência os defeitos, o egoísmo da vida
conjugal. Tem um valor misógino. Não é justa essa superioridade, mas
é uma obra muito viva polemicamente, e é por isso que Russo a adotou
Bruno Enei
152 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
31
A um tão grande nome nenhum elogio é par.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 153
Vida de Tasso
Obras de Tasso
sentido de emoção diante do drama de Aminta, é que ela aceita essa lei
natural da vida que é o amor. Então é um drama pastoril que se fecha
ainda otimisticamente. Embora aqui já se esteja longe da atmosfera
da Renascença, não podemos dizer que haja pessimismo, amargura,
contraste. O amor é uma lei natural à qual nem Silvia pode subtrair-se.
Por isso, se fecha otimisticamente, embora tenha momentos de tragédia;
apesar disso, o fecho é otimístico.
Diante dessa sociedade culta e burguesa do século XVI, a sua
linguagem adquire dois caracteres que são dele, isto é, a musicalidade
e a sombra, uma tonalidade de bemol. Quanto encanta sua música,
quase como a técnica de Petrarca. Tasso não é transparente, mas é
mórbido e musical, íntimo, cheio de sombras. Os desabafos de Aminta
são lindos.
Tudo isso é o prenúncio do Romantismo, do melodrama,
preparando, no fim do século XVI e no século XVII, o melodrama, pois
não foi escrito com a função de ser citado, mas para ser cantado. Temos
então Vivaldi, Scarlatti, com palavras e música ou música e palavras.
De todos esses artistas, o maior no século XVIII é Metastasio.
La Gerusalemme Liberata
É um poema épico, formado de vinte cantos. Os versos são em
decassílabos e rimados de oito em oito, formando oitavas. O assunto
está preso num período histórico que se refere às Cruzadas, nos últimos
dias do ano 1099. Os países europeus, com o início do caráter religioso,
jogaram-se no Oriente, com uma atitude comercial-econômica. A obra
tem uma importância pelo caráter mercantil. Tasso declara num seu
Discurso sobre o poema épico32 qual a razão pela qual vai buscar seu
assunto em 1099: ele sempre quis criar para a literatura italiana um
gênero que os italianos não possuíam, isto é, o poema épico. Então,
Tasso seria o criador do gênero épico na Itália. Essa foi sua mania,
que criou nele depois de 1585 um complexo que o levou à loucura.
Diz Tasso que o poema épico só poderia ser escrito quando ao poeta
fosse possível entrar num assunto com uma percentagem mínima de
imaginação e quando não fosse permitido um máximo de imaginação.
Tasso escolhe um fato que não fica nem muito longe de sua existência
nem muito perto. Ele nega a arbitrariedade da imaginação de um
Ariosto, mas não sabe conceber a poesia épica como unicamente
baseada na História, pois o poeta sempre deve acrescentar algo.
Tasso publicou, em 1587, I discorsi dell’arte poética, e, em 1594, I discorsi del poe-
32
ma epico, as duas obras a respeito das discussões sobre os poemas heroicos ou épicos.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 159
A LITERATURA ITALIANA NO
SÉCULO XVII
O século XVII na literatura italiana é um século que, apesar dos
últimos estudos que procuraram valorizar os aspectos positivos deste
século, é um século em conjunto considerado de decadência. Nos últimos
anos depois de d’Annunzio, sobretudo depois do período dos futuristas
e da poesia de Papini,33 Ungaretti34 e outros, procurou-se explicar, para a
poesia italiana valorizar o que de positivo havia no século XVII e o que
tinha sido negado até então. A crítica literária italiana do século XVIII,
com Baretti e De Sanctis, sempre procurou admitir que foi um século de
decadência.
Agora há uma tentativa de revalorizar o século XVII, mas
tirando-se a comédia da arte, as ciências, a historiografia, a literatura
italiana é muito inferior às tradições de Dante, Petrarca e Boccaccio,
muito inferior ao nível clássico da literatura do Humanismo e da
Renascença. Por que ela deve ser considerada de decadência? Por duas
razões:
1. Os poetas do século XVII cantaram sem sentir profundamente
o que cantavam. Não tiveram grandes ideais, não sentiram anseio de
caráter religioso, moral, não sentiram as grandes idealidades que devem
sempre estar como alicerces da poesia. Não é possível uma literatura
onde não haja grandes sentimentos, ideais e consciência. É verdade que
33
Giovanni Papini (1881-1956).
34
Giuseppe Ungaretti (1888-1970).
Bruno Enei
162 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
eles não representam e não definem e não dão o valor definitivo de uma
obra de arte se não surgem sobre um ideal e persuasão. E o século XVII
não apresenta poetas que sentiram esses ideais, tanto num plano nacional
como social. Não há aspiração de justiça, de religião. A razão ficou em
conformismo, e poucos poetas ficaram evidentes nessa crise. Se se
quisesse julgar pelo conteúdo das obras, deve-se dizer que os poetas
nunca vão além da sensualidade, da musicalidade. Morboso de exterior
e poroso de sentimentalismo;
2. O caráter literário nada mais é, do ponto de vista de forma e
expressão, do que a continuação do Humanismo e da Renascença, porém
com a diferença que, como movimento literário, o século XVII, apesar
de não ter sido um grandíssimo século, como o do Humanismo e da
Renascença, sempre teve grandes, nobres e últimas concepções, aquela
aspiração de equilíbrio, a uma forma que fosse clássica, que fez com
que aquela literatura, embora não cheia de sentimento, não vibrando,
embora tudo isso, sempre fosse uma grande literatura, pela serenidade,
pelo gosto, pelo sentido de perfeição, pelos seus ideais de perfeição.
Nos séculos XV e XVI há também uma filosofia que se
conclui com Machiavelli, isto é, uma visão ideal da realidade, uma
visão magnânima do homem. Sem falar dos filósofos que continuam
no neoplatonismo com Giordano Bruno e Tommaso Campanella. Em
vez, no século XVII não há idealidade, são apenas, no aspecto literário,
imitadores do Humanismo e da Renascença. Mas eles se tornam
extraordinariamente elegantes. Quando só se propõem a alcançar a
beleza e ela não pode ser alcançada, porque já o foi, só resta um jogo,
um cerebralismo, um capricho, um arbítrio do poeta, que se esforça em
procurar formas novas, dando um ritmo musical, equívoco, recorrendo a
figuras gramaticais, que transformam a literatura em algo extravagante,
como a metáfora, a alegoria de coisas brevíssimas.
Temos como exemplo o Seiscentismo, também chamado
Marinismo, Gongorismo e Barroco, em que o poeta mais representativo
deste século e o mais inventor dessas fórmulas foi Giambattista Marino.
Era um estilo grandioso, extraordinário, extravagante, onde o que
interessa é o capricho das formas, o objeto é maravilhar o visitante.
Temos estes quatro nomes para designar este século.
Como exemplo de suas palavras: para exprimir a dor, diziam
“aborti di dolore”;35 outro dizia que a caneta e o papel eram “faccio
strale de la penna e campo il foglio”.36 Isto tudo não é normal, sereno,
35
“abortos de dor”
36
“da pena faço flecha e campo a folha”
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 163
versos: então andava nessa sensualidade pelo vinho e acaba com o vinho
do Monte Pulciano.
43
Giovanni Battista Zappi (1667-1710).
44
(1664-1718)
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 169
45
Poeta dos reis.
Bruno Enei
170 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
Se cerca, se dice:
“L’amico dov’è?”.
“L’amico infelice”,
rispondi, “morì”.
Ah no! sì gran duolo
non darle per me:
rispondi ma solo:
“Piangendo partì”.
Che abisso di pene
lasciare il suo bene,
lasciarlo per sempre,
lasciarlo così!
46
Se procura, se diz: / “O amigo, onde está?” / “O amigo infeliz”, / responde, “morreu”.
/ Ah, não! Tão grande dor / não lhe dês por mim: / responde, mas somente: / “Chorando
partiu”. / Que abismo de penas / Deixar o seu bem, / Deixá-lo para sempre, / Deixá-lo
assim!
47
Se Deus tu quiseres ver, / Olha-o em todo objeto; / Procura-o no teu peito, / E o
encontrarás contigo! / E se, onde Ele mora / Não entendestes ainda, / Confunde-me, se
puderes; / Dize-me, onde Ele não está.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 171
A LITERATURA ITALIANA NO
SÉCULO XVIII
Com o século XVIII nós nos encontramos diante de uma nova
espiritualidade, diante de uma nova literatura, diante de novos métodos,
de novas acepções e atitudes na literatura italiana. O século XVIII é um
século muito complexo, cheio de acontecimentos, de atitudes que, nas
sucessões do seu dinamismo, levam ao Romantismo italiano. Parece
que este século seja como um trait d’union entre o Humanismo e a
Renascença e o Romantismo. O Humanismo e a Renascença foram dois
movimento construtivos, realizadores, duas verdadeiras afirmações.
Também o Romantismo será uma grande afirmação. Qual a diferença
entre as três afirmações?
O Humanismo e a Renascença afirmam sobretudo a cultura, o
equilíbrio, a beleza, a serenidade, a perfeição. Uma aspiração cultural
num sentido de nostalgia, de saudade com o mundo clássico. Parece que
os estudiosos, eruditos, filósofos do século XV e XVI da Itália, depois
da Idade Média, em que os problemas foram outros, parece que todos
eles sentiram a necessidade de renovar o ar, voltando aos temas e formas
do mundo clássico; através de meditação, de leitura, de uma secreta
competição eles quiseram renovar o mundo com um novo classicismo.
O Romantismo italiano foi uma afirmação no campo do
sentimento, da popularidade, da dor, da concepção de vida baseada na
vida, na amargura, entre o choque do real e do ideal; foi o contrário,
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 173
realidade, que não está dizendo nada, sentem que é uma literatura abstrata,
sem conteúdo, sem sentimento, sem valor, sem humanismo. Sentem que
é supérflua, é inútil, não tem uma razão de ser. Eles gostariam que ela
fosse a acepção da vida, da realidade, dos anseios humanos, e em vez, é
barroca. Então se propuseram os moços dos últimos vinte anos do século
XVII e os moços dos primeiros vinte anos do século XVIII renovar a
literatura italiana. Pelo menos tiveram a consciência, a convicção que
todo o século estava errado. Isso é uma grande coisa, porque, quando
um povo sabe que está errado, é algo bom. Então tiveram a certeza que
aquele século não era literatura e propuseram de “combattere il cattivo
gusto ovumque esso s’annidi”.49
E o que era “cattivo gusto”? Era o Barroco, o Marinismo, o
Seiscentismo. Essas alegorias, metáforas e grandiosidades, o desejo
de surpreender. O que propuseram fazer? Substituir tudo isso pela
ingenuidade, simplicidade e clareza. Quais os objetivos da renovação
nos primeiros quarenta anos do século XVIII? Serem simples, claros,
ingênuos, naturais, acabar com as iluminações e dar, em vez, à palavra
um tom de penumbra, de sombra, um ritmo melancólico, íntimo, até
sentimental. Quer dizer que, quanto eram grandiosos os outros, tanto
queriam ser simples estes. É uma rebelião a essa saturação da imaginação,
do Barroco. E para isso eles criaram uma escola, uma academia, um
movimento chamado Arcádia. Como a criaram?
Em 1690, dez anos antes do fim do século XVII, havia um grupo
de catorze escritores que costumava reunir-se em Roma, no palácio da
rainha da Suécia, Maria Cristina, que renunciou ao trono e foi morar em
Roma, onde reunia em torno de si os homens cultos da Itália central,
que lá iam ler as obras estrangeiras. E tudo isso numa intimidade, numa
amizade. E quando ela morre em 1689, um ano depois, esses catorze
escritores continuaram a reunir-se, lendo cada um as próprias obras,
poesias, desabafando-se um ao outro. E num certo momento um desses
poetas saiu-se com uma expressão de beleza, pois, quando um amigo
seu estava lendo uma poesia, ele disse: “ei mi sembra di vivere in
l’Arcadia”.
Assim surgiu o desejo de fundar uma academia com o nome de
Arcádia, em que se exprimisse tudo numa atitude espiritual. Não foi por
acaso que foi escolhido este nome como de batismo dessa literatura do
século XVII. Eles nada mais queriam do que a simplicidade, a clareza, e
quando é que os homens viveram em simplicidade, em clareza, senão na
Arcádia? No livro VII da Eneida, com o rei Evandro e seu filho Palante,
49
Combater o péssimo gosto onde quer que se encontre.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 175
quando Eneias canta suas misérias e sua dor e vai com os deuses para uma
terra onde fundará uma cidade que deverá vingar a destruição de Troia, o
filho de Evandro pede licença para combater com Eneias e morre. Palante
vem de um mundo de pastores, de primitivos, de simples, vivendo do
que a natureza oferecia, afastado das lutas da idade, como num paraíso
ideal, a Arcádia. Como o mundo do iluminismo de Rousseau. Então, daí
fundou-se a Arcádia, as leis da Academia, que foram escritas em latim,
não o de luxo, de Cícero, Homero, Tito Lívio, mas o dos primitivos, das
doze tábuas romanas, tudo simples, e quem escreveu isso foi o poeta
Gianvincenzo Gravina, um enamorado do mundo clássico.
Os poetas que fundaram a Academia se chamavam pastores,
isto é, simples guiadores de ovelhas. O chefe, o patrono deles, era
naturalmente “il grande pastor dei pastori: Gesù Bambino”, não o da
cruz, que é muito trágico, mas o menino loiro e simples. E nenhum dos
poetas tem o próprio nome, pois em geral adotavam nomes gregos, tendo
muito gosto em escolhê-los. O maior deles, Pietro Trapassi, chamou-se
Metastasio.
Essa Arcádia difundiu-se em toda a Itália. Não é um fenômeno
romano, mas italiano. Em todos os lugares tomava nome diferente, como
em Perugia, onde se chamava Frontone. Esse é o perigo da Arcádia,
tanto que transformou tudo em amorzinhos e as mulheres se tornam
excessivamente etéreas e os homens efeminados, num certo sentido. Daí
a revolução de Alfieri, que não apenas põe o homem como herói, mas
também as mulheres masculinizam-se, como Nicol, Myrra, Clitemnestra.
Mas isto tudo se torna muito choroso, e o poeta que se excedeu nesse
sentido é Giovanni Battista Zappi, que foi tão criticado por De Sanctis.
Caiu então a literatura nesse absurdo, e ficou chata, num sensabor,
numa simplicidade excessivamente tola, sem vida, sem aspirações, sem
problemas, sem véu de sombras, sem amarguras, sem nada de triste, como
é a realidade. É muito fora do mundo essa atmosfera. Porém, a Arcádia
levou tudo que era ruim do século XVII e criou três grandes coisas que
são notáveis, isto é, le ariette, il melodramma e la canzonetta.
Le ariette são refrãos, leitmotifs, seis ou sete versos curtos em
que os poetas sabiam fazer o a solo no melodrama, esses momentos a
sós, que exprimiam tudo e são a alma do melodrama, cantados em geral
pela mulher. Il melodramma é uma continuação de Petrarca, é algo de
muito mais breve, de onde nascerá a canção de hoje. La canzonetta é a
criação maior da Arcádia, onde a palavra se transforma em música e a
música, um conjunto de palavras. Os poetas sabiam que o melodrama
escrito deveria ser cantado, com o ritmo do poeta e do músico. O maior
escritor foi Pietro Metastasio.
Bruno Enei
176 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
52
Este vocábulo significa cortar o pescoço dos bois.
Bruno Enei
180 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
dos maiores poetas italianos, Ugo Foscolo, que justamente dedica muitos
versos maravilhosos de uma sua obra a este velhinho que muitas vezes o
levava sob as tílias, onde contava o que era preciso para ser poeta.
Qual é o conceito de arte de Parini? Ele volta ao conceito clássico
da arte, que Dante já tinha, isto é, a poesia é utile et dulce, é um binômio
de utilidade e doçura, a arte deve ser bela, elegante, correta, lúcida, fácil
e horaciana, e ao mesmo tempo deve ter uma finalidade moral, civil,
quer dizer que Parini concebia a arte como Dante a concebia, e Horácio,
isto é, um binômio de utilidade e elegância, isto que está a provar o
Classicismo italiano, que prova o sentido moral de Parini, renovador
junto com Alfieri.
LITERATURA ITALIANA III (1958)
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 187
O ROMANTISMO
O Romantismo italiano
54
(1783-1851)
Bruno Enei
198 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
I Sonetti
Os sonetos (escritos de 1798 a 1802) são a primeira manifestação
poética de Foscolo. Conhecido como um dos maiores escritores italianos
de sonetos, Foscolo com eles continua aquela gloriosa tradição de
sonetistas italianos que começam com Guinizelli e perpetuam-se com
Dante, Petrarca, Tasso, tornam-se expressão altíssima com Alfieri e
tornam-se, com Foscolo, não um ideal transformado em suavidade, em
sonho, em fé, como em Dante e Petrarca, mas uma visão amarga, uma
dor parada, uma imobilidade e uma resignação diante da negação dos
ideais, e a morte é como um elemento da natureza. Foscolo, num plano
dantesco de altíssima idealidade, transmite ao soneto uma amargura de
expressão, uma densidade dolorosa, uma sensibilidade sem felicidade,
um desabafo parado, imóvel, quase desesperado, uma gravidade que o
soneto de Dante não pode ter, pois descreveu Beatriz numa base de fé,
e então Beatriz é cantada como uma melodia quase horizontal, aberta,
larga, simples. Petrarca, em vez, transforma seu motivo ideal numa
suavidade, numa visão, num sonho, é o poeta do violino com a surdina.
Foscolo, em vez, torna o soneto imóvel, com uma amargura, uma dor
parada, uma visão que não se consola, que não acha confiança, que
exprime uma resignação. Mesmo assim, os sonetos ainda são como
Bruno Enei
206 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
Alla sera
É Foscolo diante do cair do Sol, diante dessas sombras que
fecham a luz, a atividade, o movimento do dia, e que jogam o mundo
nesse silêncio, nessa escuridão, nessa imobilidade que é a noite. Foscolo,
diante desse espetáculo, sente que há uma analogia entre a natureza e o
homem. Consiste no seguinte: como existe para a natureza a noite, assim
existe para a vida humana uma noite, que é a morte. A morte é essa
sombra que fecha as atividades humanas, que leva do cenário do mundo
o homem, com os seus ideais. Tira a morte o homem desse cansaço,
dessa responsabilidade, assim como a noite tira a natureza do seu esforço
ativo do dia. Se então a morte encontra sua imagem na noite, quando ela
desce ao mundo, tanto no inverno como no verão, nós a abençoamos e
saudamos com imensa saudade; embora ela no inverno apareça triste,
esquálida, trazendo nuvens impressionantes, ela é bonita também no
verão, quando, como uma jovem, passa, acompanhada pelos ventos, os
zéfiros. A noite, como a morte, leva o homem a pensar. E ele, pensando,
chega à conclusão que todo dia acabará, o que poderia dar motivo de
desespero incrível, de amargura. Entretanto, nesse soneto Foscolo
declara sua felicidade diante da constatação do fim, da realidade, porque
sente que seu espírito, seu pessimismo diante desse espetáculo da noite
e da morte o fazem pensar.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 207
A Zacinto56
É o soneto em que Foscolo chora sobre as coisas que nós
perdemos na vida. Tudo o homem perde, o que ele sonha e deseja na
infância, na adolescência, na idade que o leva justamente à vida. Então,
é o soneto em que Foscolo chora, medita, pensa, aperta-se-lhe o coração
diante do que ele e os homens perdem na vida. Tudo o homem perde:
quantos sonhos e imaginações não nos acompanham? Quantos ideais
não nos estimulam a desejar o futuro mais cedo do que ele vem? Não
vemos a hora de chegar aquilo, pois temos a impressão de que aí se
realizam.
É a poesia que Foscolo dedica à cidade em que nasceu, Zacinto,
uma ilha da Grécia que pertencia a Veneza, por isso é poeta italiano. É
uma saudação à pátria. Todos no mundo têm a sorte de rever a pátria,
menos ele, pois, entre as outras decepções e amarguras, sente que lhe
faltará também esse dom, o de rever a terra em que nasceu. Ele evoca sua
infância naquela pátria, sonhando na cidade, fantasticando naquela ilha
cheia de árvores, de atmosfera que se espelha no mar e que é vista mais
como uma imagem do mar do que em realidade na terra. Não é um mar
comum, igual aos outros, pois dele, num certo momento, saiu Vênus,
envolta de espuma. Ele deu ao mundo uma mulher, que é símbolo da
beleza. Então Foscolo evoca esta ilha, que é tão bonita que o próprio
Homero, cantando coisas que não tinham nada a ver com Zacinto, não
pôde diante daquela beleza silenciar e entoa um hino ao céu e às árvores
de Zacinto. Até que Homero acabou de cantar a peregrinação de um
infeliz, que, contrariamente a Foscolo, teve porém a sorte de voltar à
terra natal; uma terra menos bonita, mas é a pátria de Ulisses, que beijou
sua Ítaca pedrosa. Foscolo sente que morrerá longe da terra em que
nasceu e termina dizendo que os estrangeiros se lembrem de levar aos
olhos de sua mãe o seu corpo.
A Zacinto é todo um hino de saudação à sua pátria distante,
é todo um lamento por não poder mais rever sua terra natal, em que
exprime sua recordação, seu íntimo afeto para com a ilha em que nasceu
e que ele agora vê como através de um sonho, não como uma imagem
brilhante, cuja fulgurante beleza fere a vista, mas como um reflexo,
espelhada nas águas do mar, como a imagem das coisas perdidas na vida.
De certo modo, para Foscolo é o cantar de sua infância desaparecida,
do seu próprio eu que deixou em Zacinto, dessa sua meninice feliz e
despreocupada, rodeada de árvores, pelo céu límpido e pelo mar tão
belos, que só uma deusa poderia ter criado toda aquela beleza. É em
56
Soneto analisado em aula.
Bruno Enei
208 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
Zacinto que ele vê sua cidade, não mais na materialidade de suas ruas e
palácios, mas apenas na sua delicada imagem, que se reflete no mar; é
em Zacinto que ele vê sua infância, onde seu “corpo fanciuletto giacque
nelle sacre sponde”,57 ainda não imaginando que a dor e a amargura
da existência logo fariam um outro berço para ele. E, ao envolver-se
no turbilhão da existência, as correntes das decepções arrastam-no de
um lugar ao outro em procura de um ancoradouro, que ele só encontra
quando uma vaga mais serena o leva de volta a Zacinto, neste mar
cujas ondas foram o berço de uma divindade. Foi a virgem Venere que,
nascendo do mar, deu a transparência do céu e a exuberância de suas
florestas com seu primeiro sorriso, que recorda este ambiente helênico
que preanuncia as Grazie.
Não vale a pena viver se, vivendo, gozamos tudo isso? Não é já algo,
tudo isso?
A vida não parece que seja somente negação e destruição. Nem
tudo é ruim, nem tudo está perdido. Há algo que a levanta e enobrece,
que lhe dá um conteúdo, uma razão pela qual podemos dizer que a vida é
uma coisa bonita. Essa é a razão: a contemplação da beleza. Só vivendo
é possível viver e adorar a beleza. A beleza, não somente num sentido
físico, natural, mas a beleza num sentido platônico, ideal. Se não houvesse
a existência, como o homem teria a visão do belo? Então há já uma razão
sobre a qual Foscolo coloca os seus pés. Ele já achou um dos motivos
pelos quais procura o viver: a beleza.
Nestas duas poesias, um outro motivo aparece pelo qual devemos
viver: é a poesia, ao lado da beleza. Como não é bonito ser poeta, que
satisfação maior do que de exprimir os próprios sentimentos, emoções,
num ritmo de expressão, de imagens, o que há de mais bonito do que
pegar uma caneta e escrever um conto, pintar um quadro, o que há de mais
bonito do que a arte? E como se poderia ser poeta se não se vivesse?
A poesia tem um valor formidável. Nada aguenta a poesia. Só
ela faz com que o homem possa eternizar o que ele sente. Há no homem
um elemento de imortalidade: Dante não morre, Petrarca, Beethoven, da
Vinci, pois o que eles cantaram é eterno, é vivo, é lido. A única coisa que
existe é a poesia: de um poeta não se pode esquecer, ainda que falem mal
dele. Então esse conceito altíssimo: o valor eternizador da poesia. Esses
dois motivos e ilusões já representam um aspecto construtivo da poesia
de Foscolo, estamos vendo esse dinamismo, como ele já encontrou duas
razões pelas quais já vale a pena viver: a beleza e a poesia.
Camila, irmã dos Horácios, morta pelo irmão porque chorava a morte de seu noivo,
60
All’amica risanata61
Depois de uma doença, volta a sarar, volta a ser o que era.
Aqui, nesta poesia, a doença é um simples parêntese. Enquanto ela é o
61
Analisado em aula.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 211
I Sepolcri
É assim intitulada. Entretanto, numa poesia em que se canta
a morte, em que se chora diante do limite humano, diante do destino
amargo em que o homem sabe que tem uma duração que não vai além de
um certo período e que deve deixar amores, simpatias, então nesta obra,
em vez, em que só se fala da vida, em que não é a morte que interessa,
mas a vida, os ideais pelos quais devemos viver, então esse pessimismo
criando um otimismo, essa visão amarga criando o estímulo da vida. Essa
consciência do nosso morrer e ao mesmo tempo essa aspiração a uma
imortalidade que só se consegue através de uma atitude de honestidade,
de empenho.
I Sepolcri foram publicados em Bréscia em 1807. Há muitas
razões que justificam a publicação dessa obra. Mas três são essencialmente
fundamentais:
1. No Pré-Romantismo italiano houve um escritor, Ippolito
Pindemonte, que escreveu nesse mesmo período uns versos, uma poesia
em versos soltos, que ele nunca acabou, e cujo título era I Cimiteri. Sobre
essa obra Pindemonte teve com Foscolo conversações em Veneza. Um
dos motivos exteriores da publicação dessa obra é esse;
2. Há uma razão histórica mais importante: em 1804, Napoleão,
na lei de Saint-Cloud, tinha proibido na França que os mortos fossem
sepultados nas igrejas, de modo que os túmulos fossem colocados fora
da cidade, num lugar igual para todos, e que as inscrições tivessem os
nomes examinados antes de serem colocados, por uma comissão. Já em
1806, essa lei valia também na Itália. Então acabava aquele costume
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 213
essa valorização da existência, embora não se negue que a vida não seja
infelicidade e tristeza e amargura.
Le Grazie
Constituem um poema fragmentário, que Foscolo nunca pôde
acabar. Não, porém, no sentido da inspiração, isto é, no sentido lírico,
estético, mas simplesmente num sentido material, concreto, isto é, que
não é acabado, como as sinfonias de Schubert. É uma obra que Foscolo
nunca pôde completar, mas, lírica, estética e humanamente Le Grazie
constitui uma outra grande afirmação, um outro grande momento de
Foscolo.
Ele começou a escrever em 1803. Aliás, em 1803 publicou
uns versos que depois colocou neste poema, como se fossem versos
não seus, mas de autores desconhecidos, ignorados, da literatura grega.
Voltou mais tarde sobre o poema, em 1808, mas o período fundamental
em que se dedicou à obra é em 1812-1813.
Neste período, Foscolo se encontrava em Florença, e lá, um
grandíssimo escultor, famoso porque no campo da escultura traz o
Neoclassicismo, como Vincenzo Monti e Foscolo na literatura, e que
se chama Antonio Canova,62 faz a exposição de uma estátua de Vênus,
que deixou uma impressão extraordinariamente profunda na alma de
Foscolo, sobretudo por aquela seriedade própria do Neoclassicismo
na inspiração à beleza. Então Foscolo pensou em escrever um hino a
Vênus, mas este foi devagar alargando-se, completando-se, enchendo-se
de ideias, num plano vastíssimo. Pensou então em escrever, não um hino
a Vênus, mas a Le Grazie. Como elas são três, propôs-se a escrever três
hinos. Aí a origem de Le Grazie.
Depois de 1812-1813, voltou a esse poema, antes de ir ao exílio
em 1815. Mais tarde, em 1823-1824, voltou, sem acabá-lo. Como o
podemos ler hoje, foi feito desse modo por um crítico italiano, Giuseppe
Chiarini,63 que, na base dos versos de Foscolo, pôde dar aos versos
aquela ordem em que se os lê hoje.
Foscolo queria “idoleggiare tutte le idee metafisiche della
bellezza”. Era seu ponto de saída. Queria exaltar todas as ideias,
consequências, efeitos, num plano civil de educação, de sensibilidade,
que a beleza exerce física e espiritualmente. Para Foscolo, a arte, que
é sobretudo beleza no sentido estético, exerce uma função essencial,
categórica, indiscutível.
62
(1757-1822)
63
(1833-1908)
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 219
64
As três Graças, Aglaia, Talia e Eufrósina, divindades pagãs, personificações da beleza
graciosa e sedutora.
Bruno Enei
220 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
65
Historiador latino do século IV.
66
Morro, outeiro.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 221
A crítica de Foscolo
que o poeta escreve uma coisa e age de outro modo. Queremos que o
que o poeta diz seja sua fé, sua luta, que os ideais não sejam ideais de
eloquência, de retórica. Não, a obra d’arte deve ser a imagem do que
intimamente ele sente e acredita.
Mas chega isso para que ela seja uma obra d’arte? Além de o
conteúdo ser verdadeiro e coerente, além dessa moralidade, há algo
que a distingue de qualquer outra produção, isto é, a imagem, a forma,
essa síntese, essa unidade de ritmo e de sentir, que é a conquista do
Romantismo. A obra d’arte deve sair do sentimento, da sinceridade, de
uma exigência moral, deve ser uma coisa necessária, deve ter um caráter
universal. Não deve ser uma imitação, reprodução literária, lírica, de um
sentimento; o que faz um poeta não é somente isso, mas ele deve fazer
com que essa visão da realidade se transfigure numa realidade fantástica.
Então essa estética romântica, essa concepção de unidade, de conteúdo
e de linguagem, pela qual o conteúdo vale tanto quanto a expressão, aí
Foscolo é deficiente, pois não tem a clareza de De Sanctis e de Croce.
Obras críticas: Discorso sul testo della Commedia di Dante:
Foscolo procura a coerência da sorte de Dante, que era um homem
indignado com uma realidade medíocre, e da sua insatisfação, a imagem
era a Divina Comédia; Saggi sul Petrarca; Saggio storico sul testo del
Decamerone; Saggio sulla letteratura italiana; Della nuova scuola
drammatica in Italia.
Vida de Foscolo
numa confissão que não tinha testemunhas, num colóquio sem pudor e
com infinito pudor. Sem pudor, porque diz tudo que sente, e com pudor,
porque o diz com uma nobreza extraordinariamente grande.
Então, é a contradição que determina em Leopardi um particular
estado de alma, um particular estado de espírito, que provocam essas
expressões e revelações líricas que são as suas poesias, que começam
com o ano de 1817 até 1827, uns poucos dias, umas poucas horas, uns
minutos antes que morresse. Uma de suas poesias foi ditada minutos
antes de morrer.
Esse contraste, esse drama, em que consiste? Nessa
insatisfação tipicamente romântica e tipicamente nossa, também
nessa insatisfação que faz com que a gente não fique satisfeita com
a realidade. Há continuamente em cada um de nós, e sobretudo nos
sensíveis como Schoppenhauer, Leopardi, Goethe, Shakespeare, Dante,
essas grandíssimas expressões, há algo de intimamente polêmico
com a realidade, no meio da qual agem. Surge um pretexto que pode
ser religioso, político, musical, entre outros. Qual era seu problema?
Descobrir por que vivemos. Qual a razão da existência? Por que viemos
e por que devemos fazer o que devemos fazer?
Se a gente raciocina sobre tudo isso, a gente se desespera,
como aconteceu com Tolstoi. Essas perguntas são de uma tragicidade
extraordinária, essas perguntas demonstram o drama das pessoas. O
problema é esse: qual a razão da existência, por que devemos sofrer, a
dor é uma necessidade? Como é que a dor sai da perfeição, que a dor é
algo consciente ou é algo fatal, misterioso? Qual a razão dessas lutas,
dessas guerras, dessas epidemias, desse perigo eterno do homem? O que
faz a gente viver? Por que tudo isso? Essa é a vida, esse é o melhor dos
mundos? Leibnitz dizia que o mundo é formado de indivíduos no melhor
dos mundos. Há essa perfeição? Podemos ficar satisfeitos com o mundo
como é?
Leopardi era também de uma cultura extraordinária. Em 1809,
quando tinha onze anos, já escrevia tragédias e traduzia obras gregas
e latinas; com quinze, escreveu uma obra, Storia dell’ astronomia; em
1815, com dezessete anos, escreveu um enorme livro, que dedicou a seu
pai: Saggio sopra gli errori popolari degli antichi. Depois de 1812, com
catorze anos, já sabia francês, latim, hebraico, alemão, inglês e espanhol.
E durante sete anos, que ele chama de esperadíssimos, fechou-se Leopardi
na biblioteca de seu pai, de 1810 a 1817, e noite e dia estudou todos os
livros, o que foi a razão da sua enfermidade física, de uma corcunda e de
sua vista, que lhe proibia absolutamente de ler.
A cultura de Leopardi era uma cultura essencialmente baseada
Bruno Enei
Início da década de 1950
Autor: Não identificado
Acervo: Ricardo Enei
Bruno Enei
Década de 1930
Autor: Não identificado
Acervo: Ricardo Enei
Bruno Enei
Década de 1930
Autor: Não identificado
Acervo: Ricardo Enei
Da esquerda para a direita,
Giuliana Enei, Maria Enei e
Ricardo Enei
Década de 1950
Autor: Não identificado
Acervo: Casa da Memória
Ainda no mesmo jantar, da esquerda para a direita, Bruno Enei, Camila Concesi,
Maria Enei e Margherita Masini.
Década de 1950
Autor: não identificado
Acervo: Casa da Memória
Prof. Bruno discursando, como paraninfo, por ocasião da formatura
dos bacharéis em Letras Neo-Latinas, no Clube Guaíra, em 8/12/1958.
Autor: não identificado
Acervo: Sigrid Renaux
Ricardo Enei
descerrando a foto
em homenagem ao
seu pai na Biblioteca
Pública Municipal
Professor Bruno Enei,
em Ponta Grossa.
Década de 1960
Autor: não identificado
Acervo: Ricardo Enei
Discurso do professor Bruno Enei em evento cultural
Década de 1950
Autor: não identificado
Acervo: Casa da Memória
Vida de Leopardi
68
Caruncho.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 243
depois abandona tudo isso e se vai fechando cada vez mais diante de sua
intimidade, exprimindo sua amargura e infinitos anseios do infinito, que
é próprio de sua poesia.
Temos os Primeiros idílios (1819-1921). O primeiro período se
reduz a um ano: 1822-1823. Leopardi num primeiro momento acreditava
que sua infelicidade e insatisfação dependessem do lugar onde morava.
Achava-o mesquinho, e como ele fosse morar em Milão, Florença,
Bolonha, ele pensava que talvez fosse mais feliz, podia amar, apreciar e
criar aquele desejo imenso que era próprio e instintivo, o desejo de fama,
de imortalidade transcendente, mas num sentido romano: nome nominis,
como Dante.
Então aconteceu que Leopardi queria absolutamente sair da
cidade. Mas a sua administração era regida pela mãe, que não tinha a
compreensão de aderir ao desejo do filho. Leopardi tentou até sair de
noite e foi surpreendido no telhado procurando sair para Roma, sair
daquele lugarejo e ir a um lugar onde houvesse amor pelo saber. Mas só
meses mais tarde, diante das exigências suas, é que foi-lhe permitido ir a
Roma, junto aos parentes da mãe, os marchesi.
Foi uma viagem desastrosa, pois eram horrorosas as estradas
daquela época. Com exceção da Igreja, achou Roma uma imensa
decepção. Sua decepção, amargura e desespero foram sem possibilidade
de redenção. Disse que Roma era grande demais para os romanos. As
mulheres eram bonitas, mas não havia delicadeza, uma interioridade,
naquele pomar feminino que é próprio de Roma, cheia da flora que é a
primavera; não há nada de outonal que mais se avizinhasse disso. Não
gostou dos romanos, que eram todos empertigados e mentirosos, ele
que procurava o entusiasmo. E os homens de cultura o decepcionaram,
pois só viviam para um ordenado, e um bajulando o outro. Foi a maior
decepção dele.
Uma coisa somente o perturbou profundamente e o fez chorar,
que descreve numa carta a seu irmão: é aquele carvalho rígido de ferro,
abaixo de cujas sombras viveu Torquato Tasso, que é tão vizinho de
Leopardi. Esse Tasso triste, que joga uma sombra na literatura do século
XVI, com suas preocupações, que acaba louco, esse Tasso que é objeto
de tanta poesia, esse foi o único que penetrou na alma de Leopardi, que
faz com que veja nele um seu ideal irmão.
Leopardi volta à sua cidade. Escreve uma poesia, Alla sua
donna, que não existe, é só dele, de sua fantasia, e com essa poesia jura
não escrever mais poesia porque sente que está esgotada a esperança,
que não há razão para crer, que a felicidade humana depende de viver,
de nascer onde o homem nasce já infeliz, porque nasceu. Então essa
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 245
71
A Silvia, Le ricordanze, La quiete dopo la tempesta, Il sabato del villaggio, Canto
notturno di un pastore errante dell’Asia, compostos entre 1828 e 1830.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 247
consciência, numa cultura. Ele é de uma genialidade tão viva, tão atuante,
que se pode dizer que tenha elementos para ser brilhante, oferecendo-se
também como filósofo. Podemos até falar de uma filosofia leopardiana.
Mas falta-lhe aquela objetividade que se exige da verdadeira filosofia. Seu
pensamento é muito pessoal, subjetivo, incongruente, não é uma linha,
mas é cheia de contrastes, de influências diferentes, é real e, por isso, é
mais emotiva do que objetiva.
Quando se lê Dante justamente porque suas afirmações têm valor
de universalidade e de necessidade, os de Leopardi são sempre a sua
vida pessoal. Mas, de qualquer modo, isto se dá numa visão filosófica da
realidade viva. Sua consciência filosófica se baseia no seguinte: na sua
mocidade, afirma o positivo, um apostolado de caráter cético; o homem
procura a verdade, mas é impossível a ele alcançar a verdade. Ela consiste
para Leopardi em saber qual é a origem do mundo, qual é o fim do mundo
e por que existe o mundo. Entretanto, para o intelecto humano que tem
esse problema, por que existe tudo isso, para que serve, quando acabará,
tudo isso se resolvia com a fé.
Antes de aceitar uma religião tradicional, ele se choca com esse
problema, e através da Filosofia falou que é impossível ao intelecto
humano alcançar a razão da existência. Nós observamos que os acidentes
do mundo, o homem, o trabalho, a dor, nada mais são do que fenômenos.
Mas há esses fenômenos? A coisa em si que é? Por quê? Quando? Como?
Isso é o que a razão humana queria possuir. Então, ao homem é negada
a verdade.
Há uma outra afirmação importante que constitui um alicerce:
Leopardi tem também uma convicção materialista da realidade e da
natureza. Leopardi não vê uma finalidade na realidade humana, na
natureza. Por que existe o dia e a noite, por que o homem nasce e morre,
por que trabalha e sofre, para que servem as estrelas? Não poderia ser
de outro modo? Se cada um de nós se pesasse, esse problema é só a
religião que o resolve. Através de todas as correntes filosóficas atuais,
todas essas formas são aleatórias e não alcançam-se as razões da vida,
a razão do ser. Leopardi não via nenhuma razão na existência, não pode
admitir uma finalidade. Então a razão do ceticismo e do materialismo
no pensamento leopardiano.
Com esses dois sentimentos a priori, olha a realidade e, através
de uma conclusão de caráter empirista, ele nota e observa que no mundo
o homem não pode ser feliz e que a vida é infelicidade, é essa sua
conclusão. É triste, é uma afirmação gravíssima. Sua aspiração é a de ser
feliz, mas ele não alcançará a felicidade. Então essa negação da felicidade
como uma realidade. Só pode ser ilusão, nunca é uma realidade.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 249
felicidade, toda a felicidade absoluta, isso não é devido a ela por si, mas
à natureza humana. É ela que leva o homem a um desejo de felicidade
absoluta, que faz com que o homem não se satisfaça com uma felicidade
relativa. É ela que torna infeliz o homem, porque provoca a razão além
dos seus limites.
Então, essa natureza, que num primeiro momento parecia como
uma boa mãe, que ofereceu como possibilidade de felicidade a fantasia,
agora se torna madrasta. Esse pensamento amargo, doloroso, sem solução
é a base de toda a literatura leopardiana, em prosa e em poesia. É essa
visão clara da realidade e da vida humana, é essa convicção clara, lúcida,
sem ilusões, que vai afastando continuamente Leopardi de qualquer
desejo de viver.
Chega a um momento em que é imobilidade, inerzia, não se
queixa do conteúdo da vida, não se queixará mais da infelicidade da
vida, do conteúdo de infelicidade que a vida oferece a cada um de nós.
Por isso é que a vida é insuportável, que não tem uma razão de ser, que
não alcança nem a realização dos nossos anseios, sem oferecer algo que
possa fazer com que o homem se justifique. O fato de o homem viver é
a sua infelicidade.
Isso Leopardi chama de noia, isto é, o tedium vitae. O cansaço
e o tédio, não porque a vida seja decepção, porque seja dor, porque seja
dificuldades, mas porque a vida é, pelo que ela é. A gente não sabe por
que é. A vida não oferece nenhuma realidade, não oferece uma dor que
não seja tragicamente dolorosa. A dor muitas vezes é mais na nossa
imaginação do que na realidade. Às vezes sofre mais porque persegue
com a fraqueza a dor, do que doloroso por si. Mas muitas vezes é uma
ilusão. A vida não tem nada de substancial, de definitivo. O mundo, a
existência, não têm nada que os justifique.
Um poeta que se põe numa posição tão extremista, como seria
possível para ele resolver seu problema? Leopardi nunca tem esse desejo
de negar-se, matando-se. Sempre sentiu essa necessidade de matar-se,
mas nunca o fez. Sempre teve uma reação, e isso é o aspecto heroico,
pois, sem fé, sem iluminação, só poderia liquidar-se, mas nunca o fez.
Primeiro conceito: Leopardi apresenta, na sua amarga poesia, não
um aspecto cético, como poderíamos pensar, mas apresenta uma solução
heroica. Qual é ela? Que, na humanidade, somos todos dominados pelo
mesmo destino, por uma única realidade misteriosa: a dor. Então, os
homens constituem um exército, em que cada um de nós tem o seu lugar
de soldado, que não é o que luta matando outro soldado, mas o que luta
no sentido de solidariedade entre eles.
A batalha dos homens não é de ofensiva, de morte, diante dos
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 251
72
Dialogo di Plotino e di Porfirio.
Bruno Enei
252 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
poesia sua idealidade ideal. Como os grandes, esses homens que tiveram
essa divinitas, essa capacidade superior de poder realizar.
Obras de Leopardi
Lo Zibaldone
É um conjunto de quatro mil e quinhentas páginas, escritas pelo
próprio punho, com uma letra pequena, que se pode ver em Recanati, nas
mesas da biblioteca, escritas entre 1817 e 1832. Então, Lo Zibaldone é o
conjunto de quinze anos de meditação e de leitura. Hoje este título (esse
conjunto de pensamentos, críticas, esboços) conserva-se assim. Leva este
nome, mas já foi tentado mudá-lo quando foi publicado pela primeira
vez, porque ele não tinha nenhuma intenção de publicar esta obra, pois
ela era simplesmente uma obra sua, uma espécie de regressione de seus
estudos, tinha caráter exclusivamente pessoal.
Mas quando morreu, foi nomeada uma comissão de grandes
estudiosos, e o chefe era Giosuè Carducci, para preparar a obra para o
centenário do nascimento de Leopardi. Por isso foi publicada entre 1838
e 1900. Então teve um título diferente. Chamou-se Pensieri di varia
filosofia e bella letteratura, mas não era um título leopardiano, mas de
estudiosos. Hoje em dia os poetas costumam chamar obras como essa de
“diário”. Vai-se escrevendo tudo que se sente e pensa, falando de Deus
ou de uma banalidade. Vai-se escrevendo, vai-se jogando e tem o valor
de ser de uma sensibilidade extraordinária. Tem-se ciúme de mostrá-lo.
É o diário que cada um faz por si, pondo em evidência sua interioridade,
que não se acredita em não dever dizer, por orgulho, inocência ou pureza,
aquilo que não se aprecia. No diário se vê o que diversamente parece
ser. Assim é Le Confessioni de Santo Agostinho, aquilo que Rousseau
chamou Les Confessions e Heine chamou de Tagebuch. Benvenuto
Cellini escreveu sua autobiografia.
Essa é a importância das confissões. Leopardi faz isso no
Zibaldone. Não podemos estudar nenhuma obra sem conhecer esta.
Leopardi, citando capítulos, páginas em línguas diferentes, programas de
estudo, diz que escreveu uma obra assim para estabelecer um programa
de trabalho. Ele constrói, apesar de toda sua amargura. É o espelho de
cada um de nós. São as aquarelas e os instantâneos de nossa vida. Essa
obra é de uma importância extraordinária. Ele se apresenta em toda sua
generosidade, pureza, beleza, humanidade, nesse trabalho contínuo, de
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 253
73
Giesta (arbusto, flor).
Bruno Enei
254 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
L’Epistolario
É uma outra obra importantíssima para conhecer a alma
leopardiana. É um conjunto de novecentas cartas, que Leopardi escreveu
ao seu irmão Carlo, à sua irmã Paulina, a parentes como Pepoli, ao pai, à
sua mãe Antici e a Antonio Ranieri, Tomase, Colletta, aos seus amigos,
respondendo ou dirigindo-se a eles. Estas cartas têm uma importância
extraordinária, porque nunca o epistolário italiano foi tão íntimo, tão
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 255
são os meios melhores para exprimir sua alma, mas, em vez, a lírica e a
prosa. Nunca a sátira, nunca esse jogar, esse desprezo de acontecimentos
contemporâneos à vida do poeta.
Nunca Leopardi será o poeta que poderá transformar a realidade
política, social, econômica da idade em que viveu, fazendo sobre os
personagens essas sátiras, fazendo ironias e humorismo. Ele fica sempre
au dessus de la mêlée.74 Sempre o problema do conformismo italiano é o
motivo de sua sátira. Três obras devem ser lembradas nesse sentido:
I nuovi credenti
Trata-se de uma sátira contra o idealismo do século XIX.
Esses que acreditam no progresso, numa paz a vir, na solidariedade,
na espiritualidade humana, esses levianos idealistas do século XIX.
Entretanto, sabemos que Leopardi era profundamente idealista. E soa
mal saber que lança essas sátiras contra o espiritualismo do século
XIX.
77
Esses três poemas foram analisados em aula.
Bruno Enei
258 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
Le poesie filosofiche
Alla sua donna (1823), Ad un vincitor di pallone, Nelle nozze
della sorella Paolina, Alla primavera, e Bruto minore. São as poesias em
que Leopardi abandona a finalidade melódica, que é própria dos primeiros
idílios. Aqui ele é mais desesperado e mais áspero e essencial. Aqui o
substantivo predomina sobre o adjetivo, os verbos estão no presente,
mais do que no perfeito. É uma constatação, não uma lembrança, é
uma poesia amarga, sem esperança, em que não há a consolação dos
primeiros idílios.
Depois de 1812, escreveu A Silvia e Il risorgimento. Mas
interessa lembrar que, quando voltou dessa viagem, depois de ter vivido
em Milão, Bolonha, Florença e Pádua, ele volta a Recanati, depois
desses anos de afastamento. Em 1829, ele volta a uma felicidade de
expressão que cria um grupo de poesias maravilhosas, de uma beleza
que eternamente a gente continua lendo e procura penetrar no fundo,
descobrindo mensagens sempre novas: Il passero solitário, Il sabato del
villaggio, La quiete doppo la tempesta, Canto notturno di un pastore
errante dell’Asia. Uma das mais bonitas é Le ricordanze. Há também
aquele grupo de poesias de amor para Fanny, que são cinco: Il pensiero
dominante,78 Amore e morte, Consalvo, Aspasia, A se stesso. Agora duas
poesias do período napolitano: Il tramonto della luna, cujas últimas
estrofes foram ditadas antes de morrer, e La ginestra.
78
Analisado em aula.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 259
A Silvia
A Sílvia
Soavam os tranquilos
aposentos, e as ruas nas vizinhanças,
ao teu perpétuo canto,
quando aos trabalhos femininos cuidadosa
sentavas, muito contente
daquele vago futuro que tinhas em mente.
Era o maio perfumoso: e tu costumavas
assim passar o dia.
Eu os estudos elegantes
às vezes deixando e os suados papéis,
onde o tempo meu primeiro
e de mim se gastava a melhor parte,
de sobre os balcões do paterno refúgio
aguçava os ouvidos ao som da tua voz,
e à mão ligeira
que percorria a fatigante tela.
Olhava o céu sereno,
as ruas douradas e as hortas,
e aqui o mar longe, e acolá o monte.
Língua mortal não diz
o que eu sentia no coração.
Que pensamentos suaves,
que esperanças, que corações, ó minha Sílvia!
Como então nos aparecia
a vida humana e o destino!
Quando me lembro de tantas esperanças,
um sentimento me aflige
amargo e inconsolável,
e volto a maldizer minha desventura.
Ó natureza, ó natureza,
por que não dás pois
aquilo que prometes então? por que tanto
enganas os filhos teus?
Tu antes que as ervas secasse o inverno,
por fechada doença combatida e derrotada,
perecias, ó tenrazinha. E não vias
a flor dos anos teus;
não te acariciava o coração
o doce louvor ou dos negros cabelos,
Bruno Enei
262 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
O sábado da vila
Rapazinho brincalhão,
esta idade florida
é como um dia de alegria cheio,
dia claro, sereno,
que precursa à festa da tua vida.
Divirta-se, meu rapaz; estado suave,
estação feliz é esta.
Outra coisa não te vou dizer; mas a tua festa
ainda que tardes a chegar, não te seja funesta.
79
Giovanni Verga (1840-1922), maior expoente da corrente literária do verismo.
Bruno Enei
268 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
Vida de Manzoni
Primeiro momento
Aquele que vai de seu nascimento até sua ida para a França, isto
é, o período de vinte anos, de 1785 a 1805. Estes são os anos durante os
quais ele viveu num ambiente familiar, muito poeta, tranquilo, em que
a falta de solidariedade, de afeto, de delicadeza e compreensão entre os
pais o faz perceber a falta de uma vibração que une uma família. Havia
uma certa incompreensão entre o pai e a mãe, entre um homem mais
prático, dedicado à agricultura, e a mãe, que vinha de um ambiente de
alta intelectualidade, sendo filho de Cesare Beccaria, em torno do qual
há um círculo de cultura racionalista e iluminista, que é a distinção mais
importante da cultura milanesa do século XVIII. Ela era sensível, íntima,
conhecedora da música, religiosa, acompanha a cultura e é quem mais
influencia o filho, e sofreu essa indiferença de ambiente em que se formou
80
(1738-1794)
Bruno Enei
270 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
81
Ordem dos religiosos somascos.
82
Da escola de Giambattista Vico.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 271
Esse período vai até 1805. Já tinha escrito muitas coisas, como
a poesia In morte di Carlo Imbonati. Morre o amigo da mãe, e o filho
de Giulia é quem escreve uma poesia de louvor, de apoteose. Ele escre-
veu uma poesia extraordinariamente bonita para sua idade. Imagina que
Carlo Imbonati, morrendo, lhe aparece em sonho, dizendo-lhe o valor da
existência, a finalidade da existência, a coerência entre o dizer e o fazer,
o valor da verdade, a necessidade do dever. Explica coisas para Manzoni
que não são de Imbonati, mas do próprio Manzoni, que as atribui a esse
homem amigo de sua mãe. Já em 1805, isto é, com vinte anos, Manzoni
já tinha uma consciência humana, um programa de homem que se tornará
também um programa de escritor, baseado numa visão ética da realidade
e que mais tarde será também uma visão lírica da realidade. Já tem um
rumo, de onde nunca fugirá. Nisso iguala a Goethe, esses homens fiéis,
puros, firmes.
Segundo momento
Em 1805 começa outro período, que vai até 1810. São cinco
anos de uma intensidade extraordinária, em que acontece justamente o
contrário do que tinha acontecido nos anos anteriores. Se estudou em
colégios, se tinha aprendido uma cultura objetiva, agora, de 1805 a 1810,
viverá uma cultura revolucionária, racionalista, a cultura dos famosos
salões da França. Viverá essa cultura anárquica, psicologicamente no
revés. Ele viverá uma cultura que também catolicamente é heterodoxa, que
não obedece a uma igreja, a um totalitarismo político, livre, espontânea,
procurando sempre realizar-se num sentido pessoal. E isso cria uma
crise formidável em sua alma. Perde num certo sentido sua serenidade,
aquele conforto que sempre se encontra no conformismo. Perde isso
para adquirir um requinte de experiência, de cultura, uma descoberta
de atitudes psicológicas, se não tivesse vivido durante cinco anos num
ambiente de alto requinte em Paris.
Manzoni deve muito a homens como Claude Fauriel,83 um grande
crítico, marido da viúva de Condorcet, filósofo francês, e a irmã desta
viúva era casada com o filósofo ideólogo Cabanis.84 Na casa deste e
daquele havia um ambiente de cultura: os moços da esquerda, inquietos,
se reúnem para discutir problemas, livros, problemas filosóficos, música.
Há um diálogo de interesse espiritual.
Manzoni, moço, aprendeu todas essas orientações novas. E
importante é ainda que, sendo um moço, ele se enamora pela primeira
83
Claude Fauriel (1772-1844): historiador, linguista e crítico.
84
Pierre-Jean-Georges Cabanis (1757-1808).
Bruno Enei
272 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
vez, que foi de uma delicadeza extrema, de uma fineza íntima, de uma
moça que se chamava Enrichetta Blondel. Suíça, filha de um banqueiro
em Genebra, tocava maravilhosamente piano e muitas obras de Manzoni
foram escritas enquanto sua mulher tocava piano. Uma das maiores e
mais famosas obras da Europa, escrita em honra a Napoleão, foi escrita
em poucas horas, acompanhado no piano pela mulher. Quanto ele devia
a essa moça. Ela não era católica, era calvinista, uma mulher que sentiu
sempre uma insatisfação religiosa. Tinha sempre anseios, dúvidas, crises
espirituais, por um desejo de ser boa, de ajudar aos outros, certas dúvidas
do Além, do castigo divino, que influenciavam sua riqueza espiritual.
Ela discutia muitas vezes com um padre católico, Eustacchio
Degole, que não somente sabia abençoar. Era um daqueles que tinha
suas dúvidas, que além da crença há uma necessidade de convencer-se
dos problemas, e ela com ele foi falando até que, em 1808, Enrichetta
Blondel converteu-se ao catolicismo. Abandonou o calvinismo e sentiu
maiores confortos na religião romana. Mas seu casamento com Manzoni
foi no rito calvinista. E Manzoni, em vez, que tinha tido uma educação
profundamente católica nos colégios, ele, diante da cultura francesa, vai
perdendo seu catolicismo. Não vai mais à igreja. Então ele está ficando
não anticatólico, mas acatólico. Não acredita, é apático diante de sua fé.
Mas, com sua sensibilidade, vive com suas dúvidas, com esse desejo de
uma orientação religiosa diante do exemplo da mulher, nos diálogos com
o padre e com outro padre, Luigi Tosi.
Manzoni em 1810 volta a ser um católico praticante. Até os últimos
anos de sua vida, num modo profundamente persuasivo, simples, emulado,
como sentindo que a religião para ele é um descanso, algo que nunca
deveria ser objeto de crítica, de dúvida, sobre a qual possa construir suas
obras de literatura. Em 1810, renova o casamento, casando-se na Igreja
Católica. E este ano é justamente o ano em que Manzoni mesmo chamou
de ano da conversão. Isso tem uma importância enorme na personalidade,
na vida e obra dele. Se até 1810 suas obras são coisas honestas, sérias,
sempre um homem direito, correto, cheio de ideais nobres, agora todos
esses ideais, sentimentos, todos esses motivos são sempre iluminados
por um conflito religioso, por uma atmosfera de altíssima religiosidade.
Depois de 1810, não há obra em que não haja uma afirmação de caráter
religioso, em que não se sinta que todas suas obras sempre têm um fundo
profundamente vivo, religiosamente vivo.
Então nós devemos dividir suas atividades literárias anteriores
ao ano de 1810 das obras que virão depois de 1810. As anteriores são
notáveis, mas são as de um leigo: ideais altíssimos, nobres, de progresso, de
liberdade, mas são ideais que falham de calor, de uma convicção religiosa.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 273
Depois de 1810, em vez, não haverá sentimento humano que não seja
investido por uma religião. Achou uma razão de sua literatura, pondo a
humanidade e a religião numa única unidade. Ainda hoje qualquer um de
nós sente que a vida é a negação da religião. Parece que há uma contradição
entre os ideais do Evangelho e os da vida. A vida é matar, é potência, mas
os princípios religiosos dizem o contrário. Mas em Manzoni se chega a
essa grande unidade, a vida e a religião, com a religião ditando o modo
de viver. Não devia existir um contraste. Então, tudo seria resolvido num
plano de unidade.
Nós tínhamos chegado ao ano de 1810. Este ano para Manzoni é
um ponto firme na sua orientação, na sua educação, na sua espiritualidade,
na sua educação, na sua atividade de homem e de escritor. Sua conversão
religiosa é o futuro alicerce de toda sua produção literária, de sua atividade
de cidadão e de homem. A religião alimenta, transforma, sublima aqueles
ideais anteriores, vendo-os não mais somente como motivos imanentes,
terrenos, de cultura, de civilização, mas como verdadeiros imperativos
religiosos da cristandade e, assim, brotavam sucessivamente as obras
dele. Realizam-se numa solidão serena de pensamento de um homem,
isto é, que não se joga na vida como se quisesse transformar a realidade
na base de novos ideais, que representam a sua consciência e alma. Ele,
em vez, se afasta, e nessa solidão objetiva, tranquila, íntima, de pensador,
meditando sobre os acontecimentos contemporâneos e anteriores, com
essa meditação ele realiza aquela grande produção literária.
Terceiro momento
Poucos acontecimentos nos interessam da vida dele depois de
1810. Poderíamos lembrar que, em 1825, Manzoni conheceu um grande
filósofo italiano, católico, mas seguidor de Kant. É Antonio Rosmini,85
criador do movimento religioso italiano. A amizade com Rosmini deu aos
seus pensamentos essa base filosófica.
Em 1825, temos também outra conversão, a filosófica, isto
é, Manzoni abandona completamente as influências culturais do
Racionalismo e Iluminismo da psicologia francesa e, em vez, vê na filosofia
e interpretação rosminiana de Kant um apoio lógico para a defesa dos
seus ideais cristãos.
Uma outra data é o ano de 1827. Manzoni já tinha escrito seu
grande romance, seu imortal I promessi sposi, mas em 1827 ele sentiu
a necessidade de corrigir, de melhorar a linguagem, o vocabulário do
seu romance, e como era lombardo, de Milão, sua linguagem não era
85
(1797-1855)
Bruno Enei
274 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
Obras de Manzoni
Le tragedie
Manzoni escreveu duas tragédias, uma publicada em 1820 e outra
em 1822. A primeira é intitulada Il Conte di Carmagnola e é dedicada a
seu amigo Claude Fauriel. A segunda é L’Adelchi e é dedicada a Enrichetta
87
“quem esperando morre”
Bruno Enei
278 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
88
Parte da Scena I do Ato IV foi analisada em aula.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 281
I promessi sposi
É um romance histórico que se refere a acontecimentos históricos
vividos na Lombardia entre 1628 e 1630 (ano da peste). Por isso, deve-
-se dizer que Manzoni baseou-se naquele gênero de romances históricos
que foi iniciado por Walter Scott. Qual é a diferença entre o conteúdo
histórico do romance de Walter Scott e o conteúdo histórico do romance
de Manzoni?
É o seguinte: a história no romance de Walter Scott tem mais
um caráter de simpatia, de imaginação, de informação, de curiosidade.
Num certo sentido, o romance de Walter Scott tem o sentido de instruir,
de educar o leitor sobre os acontecimentos apresentados de uma forma
simples, é mera curiosidade.
Em vez, em Manzoni a História tem uma função de documentação.
Não é curiosidade; é, em vez, uma prova da realidade, da verdade, do
seu idealismo, de sua fé, de sua concepção. Não é uma narração, uma
exposição. Tem um caráter interpretativo, não se interessa tanto dos nomes,
de datas, dos acontecimentos históricos, mas, em vez, da lógica interna,
humana, espiritual dos acontecimentos históricos. É uma interpretação
subjetiva e religiosa da História, é um testemunho do seu pensamento de
justiça, de verdade, da realidade da sua visão da vida.
Este romance teve sua primeira edição entre 1821 e 1823. E
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 283
nessa edição que foi publicada não faz muito tempo, não foi publicada
durante a vida dele, nem logo depois de sua morte, mas ultimamente. Essa
última edição tinha o título Gli sposi promessi. Foi mais tarde publicada
pelos filólogos, nesses últimos anos, para mostrar ao leitor e estudiosos a
imensa diferença entre a redação do primeiro e do segundo. No segundo,
começa por mudar o título do romance. Não é mais Gli sposi promessi,
mas I promessi sposi. Essa edição foi publicada pela primeira vez entre
1825 e 1857. Em 1827 é que acabou de sair a primeira edição desse
segundo romance manzoniano. Mas a definitiva edição, conforme nós hoje
a podemos ler, foi publicada muito mais tarde, isto é, entre 1840 e1842.
Então deve estar claro: num primeiro momento, Manzoni escreveu
um romance: Gli sposi promessi (1821-1823). Nunca foi publicado por
ele. Mais tarde, mudou o nome e ficou I promessi Sposi. A primeira edição
desse segundo romance foi entre 1825 e 1827, porém a edição definitiva
deste segundo é entre 1840 e 1842.
Deve-se lembrar o seguinte: primeiro, Manzoni, em 1827, foi
residir por um certo período em Florença, porque ele, como lombardo e
defensor de uma teoria de unidade da língua, como defensor e líder do
Romantismo italiano, não sabia separar o problema político do literário.
Um povo é politicamente unido quando é linguisticamente unido. A prova
de sua unidade política.
Se no século XIX a Itália anseia sua unidade política, também,
justamente pelas teorias do Romantismo, deveria ansiar uma unidade
linguística. Qual deveria ser a língua italiana igual para todos os escritores?
Apenas a língua modulada sobre o dialeto toscano, que se lembrasse de
Dante, Petrarca e Boccaccio, que se lembrasse da língua de que se serviu
o Humanismo e a Renascença; é a língua florentina. Manzoni, cheio de
lombardismo, de dialeto, foi corrigir, limpar sua linguagem, indo morar
em Florença, onde foi “sciacquare i suoi panni in Arno”.89 É um motivo
de caráter linguístico.
O romance que escreveu entre 1821 e 1823 é um romance exterior,
psicologicamente cheio de motivos queridos pelos românticos, como,
por exemplo, o sensualismo, a corrupção no clero, a figura demoníaca
dos ricos, dos potentes, dos poderosos, o crime, o delito; esses temas aí
são os mais descritos, os que mais enchem as páginas, onde prevalecem
e dominam.
Com a estadia de Manzoni em Florença e com uma meditação
sobre esse romance, Manzoni tirou todas essas imitações psicológicas de
89
Foi enxaguar as roupas no Arno, no sentido de que ele foi limpar a sua linguagem dos
dialetismos lombardos em Florença, considerada o berço da língua italiana.
Bruno Enei
284 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
90
O Capítulo XXXIII (Chiusura) foi analisado em aula.
91
Soldados mercenários.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 285
92
Lazareto, estabelecimento que abriga pessoas portadoras de doenças contagiosas.
Bruno Enei
286 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
representar uma crise. Até que foi uma expressão da dor, do desequilíbrio
entre real e ideal, até que quis manifestar o nosso anseio de humanizar-
-se da realidade, teve um grande sentido, que prova que o conceito
da dor é um conceito afirmativo, porque, sabendo justificar a energia
que a dor produz, perde-se o hábito de conformar-se: leva o homem a
despersonalizar-se e procurar a razão de sua existência. Pelo conceito
romântico será encontrada a satisfação, e esse é o aspecto dinâmico, real
do Romantismo. Mas quando o sentimento é sentimentalismo, amargura,
dúvida, desejo de luz, que torna-se procura transcendente de um
argumento incapaz de ser colhido, quando a energia torna-se morbidez,
que é le mal du siècle, ele torna-se moda, imitação, linguagem, e perde
sua vibração, personalidade, e é mecânico, o que leva qualquer poeta
a brincar com os problemas do homem, porque entenderam os pontos
firmes do Romantismo e aquelas leis se tornaram mecânicas.
Depois de 1848, foi sempre maior a decadência desse
Romantismo, que teve sua grande importância e vitalidade na primeira
metade do século XIX, e foi muito importante que até politicamente a
Itália alcançou seus ideais; e onde aparecem a poesia de Foscolo, a da
dor de Leopardi, a poesia amarga mas heroica de Manzoni, aparecem
também os filósofos Antonio Rosmini e Giuseppe Mazzini. Esta poesia
tornou-se depois lacrimosa, com umas manifestações de abolição,
perversidade, produzindo obras sem pudor, acentuando o mal, cantando
a renúncia da vida, a vida enclausurada, a exaltação ao suicídio, a
hipocrisia, a falsidade, tudo com uma inferioridade passiva, no sentido
de resignação, de conformismo, que é a negação do Romantismo, que é
o ato heroico diante da dor. Quem não se lembra de Zacinto? A poesia
em que aparece a dor, mas com heroísmo.
Mas neste [Romantismo], começa-se a perceber essa
incapacidade, essa falta de gigantismo heroico, como em Giuseppe
Mazzini. Este [Romantismo] é cético. Tudo isso é que individualiza
a caída do Romantismo. Em 1870, aparece um movimento moral e
filosófico, o Positivismo; em literatura, o Realismo e em crítica, a
crítica histórica, que criou uma crítica filológica, antes que chegasse em
filosofia, com o verismo.
Já na Itália, houve uma reação ao Romantismo, não contra o
primeiro Romantismo, mas ao que dizia que a vida é dor. Será uma
reação a essa doença romântica, à expressão dos últimos românticos, que
diziam que a literatura deveria ser popular. Desses últimos escritores, o
maior que representa sua idade e que fez polêmica com seu corpo e
alma, cultura, atividade de poeta, mestre e político, que soube incorporar
em si a missão antirromântica, é Giosuè Carducci, que na mocidade viu
Bruno Enei
290 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
93
Médico municipal.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 291
Obras de Carducci
Odi barbare
Há nesta obra um sentido de respeito ao Classicismo, porque
as “poesias bárbaras”, de perfeição extraordinária, lembram versos
de Virgílio, Horácio, que são a mais alta expressão. Carducci sente-se
muito indigno de ser continuador e realizador de um novo classicismo,
com canções sáficas, arcaicas, de poetas gregos e latinos na métrica de
Safo e Alceu.
grega e latina, composições poéticas didático-satíricas. Carducci exalta nessas poesias
os grandes ideiais de liberdade e de justiça, o desprezo pelos arranjos políticos, e a
polêmica contra o poder do papa.
Bruno Enei
294 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
Rime e ritmi
Nesta obra está esgotada sua inspiração consciente do meio
expressivo, e quase que domina o mecanismo. Até o nome exprime
certo artifício, é quase um clichê, tornando-se formalismo. São poesias
classicamente elegantes e linguisticamente perfeitas, mas não podem
deixar-nos uma impressão quanto é síntese viva, pois nelas prevalece
o formalismo. Prevalece o professor, é a didática dos seis volumes de
sua produção poética, é sua decadência, ele é conscientemente dono de
um modo de se exprimir. O que ele aí canta é um conjunto de ideias
de imanência, existência, do nosso viver, lutar, deveres na realidade, de
atuar, agir.
Carducci não é um místico da Idade Média, mas um poeta que
considera a vida um momento límpido em que nos cabe agir e trabalhar
pela pátria, pelo progresso, com solidariedade e compreensão, lembrando
a filosofia pagã. Ele tem grande polêmica com o cristianismo, pois
espiritualmente ele é pagão e, como Machiavelli, acha o cristianismo
uma renúncia, e o trabalho, como alegria. Sua poesia é sadia, porque
doentes eram os últimos poetas, então ele lançava a pagã mensagem da
vida. Raro haver nele melancolia, noite, suas poesias sempre se projetam
ao meridiano, em que se projeta Pan. O passado nunca é motivo de
saudade ou passiva admiração e sim de estímulo; por isso, ele evoca
os grandes momentos históricos, por exemplo, a Revolução Francesa,
momentos históricos esses sempre cheios de heroísmos.
A crítica de Carducci
A LITERATURA DO
DECADENTISMO
Antes de falarmos em Pascoli, falaremos num movimento em
que ele se acha enquadrado, bem como outros, até Gabriele d’Annunzio.
É o Decadentismo, que é uma atmosfera completamente diferente, nova,
que representa uma consciência diferente da consciência romântica,
uma técnica temática que é um conjunto de temas distantes da temática
romântica. Esse movimento literário, ético, histórico verificou-se entre
o fim do século XIX e os primeiros anos do século XX.
Este movimento leva o nome de Decadentismo e, quando nele
se fala, está-se bem longe de julgar que seja a decadência da literatura,
de desvalorizar esse movimento, não é desprezo, não entendemos que
a literatura seja fraca, inferior, baixa, sem sentido, mas, ao contrário,
o Decadentismo, apesar das insuficiências, é uma grande afirmação
literária. Como qualquer movimento ao longo da História, fica ligado ao
Romantismo e é a sua superação. Desenvolver-se-á e tornar-se-á mais
exigente e consciente a certas exigências psicológicas do Romantismo.
No seu desenvolvimento e formação na Itália, França, Alemanha, é a
negação do Romantismo, sobretudo com dois motivos: um de caráter
moral e outro, literário.
O Decadentismo é um movimento que representa um complexo
de inquietação no campo ético e moral, e, no campo literário, representa
um conjunto de procuras técnicas formais. Devemos considerar os
dois aspectos: no ético e moral há uma desconfiança nos ideais e a
impossibilidade humana de crer nos ideais, na validade dos ideais; este
é o sentido antirromântico. O Romantismo foi uma literatura eloquente,
fácil, brilhante, emotiva, sobre a exaltação, os ideais de toda a espécie,
que é baseada na apologia dos ideais. Com o Decadentismo, não se
acredita mais nos ideais fora da consciência. O ideal é inquietação de
não poder acreditar nos ideais, e o poeta chega a dizer que é impossível
acreditar neles, e então cria-se uma literatura baseada no subconsciente,
na fisiologia, na confusão entre corpo e consciência, e penetra na
profundidade do homem. Não se cantam mais os ideais abstratos, mas
diz-se, amarga e honestamente, o que somos intimamente, o que é
obscuro, o que se fecha na nossa infinidade.
A literatura do Decadentismo é quase diabólica. Analisa objetiva
e amargamente o espírito, o que somos pelo que somos e não pelo que
deveríamos ser, com instinto quase animal, paixão, instinto. Não há ideal
Bruno Enei
296 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
fora fazer negócios, foi assassinado, tomando dois tiros vindos não
se sabe de onde. Ruggiero cai então de sua égua tordilha, e não pode
levar até sua casa, a seus filhos que o esperavam, “le due bambole”.97 O
infortúnio irreparável projetou uma sombra de dor indelével na alma do
pequeno Giovanni. No ano seguinte, isto é, em 1868, morreu uma irmã,
a mais velha, de dezoito anos; sua mãe, consumida pela dor, pela morte
de seu marido. A família ficou sem meios, vivendo em dificuldades, num
ambiente de hostilidade. Por outro lado, muitas pessoas interessavam-se
pelas crianças e pelo caso, em descobrir o assassino de Ruggiero, sobre
o qual havia muitas suspeitas.
Pascoli estudou no colégio Scolopi, em Urbino, onde escreveu
uma poesia, L’Acquilone, na qual lembra a morte de um menino que foi
seu colega de quarto. Fez depois a universidade em Bolonha e depois
Pisa, fazendo o mesmo curso de Carducci. Mas, antes de formar-se,
interrompeu seus estudos, em 1879, tomando parte em movimentos
anárquicos e socialistas, isto tudo pela sua atitude amarga diante da vida
e dos fatos graves que teve em sua vida.
Em 1879, houve o primeiro atentado contra a vida do rei Umberto
I (que mais tarde foi morto), por um anárquico chamado Giovanni
Passannante. E como Pascoli fazia parte deste movimento, foi preso e,
quando julgado inocente e libertado, voltou aos estudos e formou-se em
Letras, iniciando sua carreira de professor em cursos secundários em
Matera, Massa e Livorno.
Em 1895, começou a ensinar em curso superior, sendo professor
de gramática latina e grega em Messina, Sicília e Toscana, ensinando
também na Universidade de Bologna; e, em 1903, foi a Pisa, de onde
foi chamado, em 1907, para substituir Carducci na cadeira de Literatura
Italiana, na Universidade de Bologna, vivendo ele até 6 de abril de 1912,
quando morreu em Castelvecchio di Barga.
Pascoli levou uma vida de trabalho, de meditação, e os
acontecimentos levaram-no a uma atitude de misantropia, de afastamento
da vida citadina e social, que, mesmo sendo ele professor em Bolonha, vivia
em Castelvecchio, numa vida contemplativa, mas à qual faltava aquela
religiosidade de Manzoni. A solidão, com amargura, sem compreensão,
respeito, fez com que ele se fechasse nos estudos, na contemplação da
natureza, o que transparece em suas poesias. Ele chega até a imitar o canto
dos pássaros, o vento batendo nesta ou naquela árvore; esta habilidade e
conhecimento de Pascoli tem valor científico, pois ele possui uma atitude
cósmica.
97
As duas bonecas.
Bruno Enei
298 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
Obras de Pascoli
Pascoli crítico
101
Termo em alemão que significa “acima”.
102
Expressão em alemão que significa “acima de tudo”.
Bruno Enei
302 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
103
(1914-1978)
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 303
era de uma cultura extraordinária; e além de ser menino, era a sua uma
cultura de requinte, pelo fato que d’Annunzio procurava, por sua conta,
ler escritores raríssimos do mundo grego-latino, oriental, ou então,
escritores novíssimos do período em que viveu.
Com catorze ou quinze anos, lia essas obras, com uma memória
prodigiosa, sabendo grego, latim e outras línguas, sendo muito bonito;
ele tinha uma facilidade de entusiasmar e gozava infinitamente,
sentia-se feliz com o estudo, tinha gosto por essas leituras, vivia para
a leitura. E vivia literariamente o que ele lia. Era um perfeito leitor,
um dos que sentem o estudo como uma forma de realizar-se, sem o
tormento, a angústia de problemas morais ou religiosos, mas vivendo
das imaginações de um mundo irreal, de expressão de poesia, de prosa.
Tanto assim que a primeira obra de d’Annunzio é intitulada Primo
vere, escrita em 1879 e publicada no mesmo ano, isto é, quando tinha
dezesseis anos. É um conjunto de poesias de valor extraordinário, onde
já se percebia o grande d’Annunzio de mais tarde. Então, essa sua
seriedade nos estudos.
Uma segunda coisa no período é o fato de que, logo que acabou
o ginásio, ele foi se inscrever em Letras, em Roma. E como era muito
bonito, elegante, cultíssimo, conhecido, criou em torno de si uma
simpatia extraordinária. Começou a frequentar os artistas que se reuniam
em frente ao jornal Capitan Fracassa e frequentava também os serões
de um editor famoso, Sommaruga,104 onde conheceu todos os artistas.
Abriram-se para d’Annunzio as portas da aristocracia romana.
Roma está no coração da Itália, numa zona nem fria nem quente.
É uma cidade cheia de tradição, de vestígios, de relíquias, de restos de
um mundo caído, então é testemunha da força que o tempo tem de ruir,
de destruir. Ao mesmo tempo, é cheia de uma sã ambiguidade, de um
gosto são de viver, que consiste numa facilidade que os italianos têm
de viver, no centro da Igreja, etc. A cidade está cheia de monumentos,
de praças, águas e fontes que jorram, árvores e águas abundantes, que
provam uma natureza cheia, outonal, e neste ambiente vivia d’Annunzio,
perfeitamente. Uma alma mais delicada que d’Annunzio, que é Leopardi,
disse que tinha nojo de lá. Mas d’Annunzio tinha essa primavera, essas
mulheres firmes, fortes, bonitas, sadias, essa aristocracia meio corrupta,
essa hipocrisia bonita, era o mundo de d’Annunzio, no meio dos artistas
e poetas, o mundo em que se ia formando. Esse ambiente teve uma
importância enorme na sua educação.
Nesse período teve a oportunidade de fazer uma viagem à
104
Angelo Sommaruga.
Bruno Enei
304 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
o herói de certos ideais. Abandona escrever para fazer o que ele cantou.
Há isso em sua figura, isto é, d’Annunzio sempre pensou que a vida
devesse ser a realização de sua poesia, de sua insatisfação, considerando
a poesia a continuação fantástica de sua vida real. Ela ligava o que fazia
na vida.
Entre 1915 e 1921, temos uma continuação dos acontecimentos
heroicos, das coisas particulares extraordinárias nesse poeta. Temos a
encarnação de heroísmo que canta tudo: faz ainda La beffa di Buccari.
Voando sobre Viena, lança um manifesto para desistirem da guerra.
Durante a guerra, foi da Infantaria, da Marinha e da Aviação. Em 1916,
voando, perdeu o olho direito. Teve o reconhecimento não somente
italiano, mas de todos os aliados, dos Estados Unidos, da França, e
foi condecorado com cinco medalhas de prata e uma de ouro, além de
condecorações extraordinárias. Foi uma figura, um paradigma de força
e heroísmo.
Mas outra coisa está em evidência. Em 1918, o ano da paz, acabou
a guerra. A Itália devia ocupar uma cidade do norte, que se chama Fiume,
mas a paz não foi favorável a esse direito do povo italiano, de modo
que Fiume não foi anexada à Itália. Então, d’Annunzio, com outro ato
heroico, faz uma marcha, que se chama La marcha di Ronchi, e ocupou
esta cidade de 1919 até dezembro de 1920, quando, diante do sangue dos
italianos, ele renunciou a ocupar Fiume. Este é o terceiro período.
que foi o fascismo de 1922 a 1945. Esse período trágico e triste da Itália, a
ele se deve isso. Todos os nacionalistas juraram isso. Em 1924, a sociedade
das nações reconheceu os direitos da Itália sobre Fiume; então permitiu
que a Itália a anexasse outra vez. Em compensação, por esse fato, o rei
da Itália, Vittorio Emanuele III, deu a d’Annunzio, em reconhecimento
do que tinha feito em 1919, o título de príncipe de Montenevoso, e essa
vila que d’Annunzio ocupou desde 1921, Cargnacco, foi por ele batizada
com o nome vaidoso, nietzschiano de Vittoriale degli Italiani, onde se
considera a vitória italiana de 1915-1918.
No dia 10 de março de 1938, na véspera do segundo drama
trágico do mundo e, sobretudo, da Europa e Itália, d’Annunzio
improvisamente morreu na sua mesa de estudo, e talvez foi um bem para
a Itália. Sua vida foi esta. Ele viveu setenta e cinco anos, quando ainda
eram vivos Carducci e Pascoli. Influenciou toda a literatura italiana do
século XIX e boa parte do século XX. Mais tarde, só mais tarde é que
os escritores moços, as gerações moças terão a força, o desejo, o anseio
de jogar embora a eloquência e retórica, a sensibilidade, a morbosidade
de d’Annunzio, para procurar, em vez, uma nudez de espírito muito
mais angustiada, muito mais amarga, o que tinha sido sufocado durante
todo esse tempo, primeiro pela poesia dionisíaca de d’Annunzio, e, mais
tarde, sufocado pela disciplina violenta do fascismo, que é um filho de
d’Annunzio. Só mais tarde surgirá o Crepuscularismo, do pôr-do-sol,
que é uma reação a essa grandiosidade; o Hermetismo, com Ungaretti;
e só mais tarde surgirá, ainda ligado a d’Annunzio, o Futurismo, com
Marinetti. Essa é a figura de d’Annunzio.
Obras de d’Annunzio
relíquias, depois de tudo isso, une a vida ao homem físico, ao homem como
sensibilidade, como tato, como olho, ouvido, nariz, olfato. Em suma, essa
manifestação naturalista de d’Annunzio irracional, cheio de um fascínio
extraordinário, porque tudo nele vibra com a natureza, é poesia de olfato,
de ouvido, em que se reflete todo o encanto da natureza. Depois de tudo
isso, d’Annunzio se sente como cansado, sente-se insatisfeito, sente que
isso é pouco, que afinal de contas será um parêntese da vida esse hino à
vida, que a finalidade da vida, a teologia da vida não é um hino ao prazer;
ele sente que surge uma crise pela qual ele deve empenhar também sua
capacidade de poeta, em cantar ideais mais construtivos, mais humanos,
mais puros, mais íntimos.
Há uma fase de melancolia, de languidez, de cansaço, há uma
tentativa de renúncia, há um anseio de purificação. D’Annunzio gostaria
de empenhar a sua vitalidade num sentido moral, pragmático, humano.
Ele então começa a ler escritores, a sentir exigências novas ao ler
escritores novos. Dois russos exercem influência sobre ele: Dostoievski
e Tolstoi. Essas obras criam nele um desejo novo de religiosidade, de
humanidade, de preocupação, então ele começa a escrever as obras do
segundo período.
D’Annunzio não chega a levar esse seu anseio num plano
religioso, ele não alcança verdadeiramente superar seu sensualismo, ele
está fatalmente ligado a essa mensagem sensual; nunca ele se liberta
do que ele foi em Canto novo; por isso, não há neste segundo período
da produção literária de d’Annunzio uma mensagem nova, uma crise
espiritual verdadeira, uma afirmação religiosa, um idealismo humano.
Há só uma procura, uma análise, e essa procura e análise e insatisfação,
que nascem de uma ansiedade interior, tudo isso não vai além de um
estetismo. Que quer dizer? Que todas as aspirações se realizam no desejo
de ser um escritor do amor, ou como literatura, ou pela literatura. Amando
a bonita linguagem, a expressão, os livros raros, as posições singulares,
em suma, tornar-se um literato aristocrático, tipo alexandrino. O homem
que representa isso é o protagonista do romance Il piacere: Andreas
Pirelli, que é a autobiografia de d’Annunzio. Esse homem declara que
sua cidade é Roma, que seu mundo é o livro, com este cansaço, com este
prazer e desejo de sair do prazer, essa ilusão de humanidade, de bondade,
de dostoievskismo e de tolstoísmo, fica num plano de estetismo sem
solução.
São páginas maravilhosas, porque a expressão que usa
d’Annunzio na prosa é a expressão de um sol caindo, de langor, de
cansaço, bonito, flébil, baixo, correndo, analisando essa situação de
anseio, em umbra, luminoso, consciente, é um falar em bemol, tão
Bruno Enei
312 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
a poco a poco
più sordo
si fa sotto il pianto
che cresce;
ma un canto vi si mesce
più roco
che di laggiù sale,
dall’umida ombra remota.
Più sordo e più fioco
s’allenta, si spegne.
Sola una nota
ancor trema, si spegne,
risorge, trema, si spegne.
Non s’ode voce del mare.
Or s’ode su tutta la fronda
crosciare
l’argentea pioggia
che monda,
il croscio che varia
secondo la fronda
più folta, men folta.
Ascolta.
La figlia dell’aria
è muta; ma la figlia
del limo lontana,
la rana,
canta nell’ombra più fonda,
chi sa dove, chi sa dove!
E piove su le tue ciglia,
Ermione.
Piove su le tue ciglia nere
sì che par tu pianga
ma di piacere; non bianca
ma quasi fatta virente,
par da scorza tu esca.
E tutta la vita è in noi fresca
aulente,
il cuor nel petto è come pesca
intatta,
tra le pàlpebre gli occhi
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 315
A chuva no pinheiral
divinos,
sobre as giestas fulgentes
de flores agrupadas,
sobre as genebras espessas
de bolinhas perfumadas,
chove sobre os nossos rostos
silvestres,
chove sobre as nossas mãos
despidas,
sobre as nossas vestimentas
leves,
sobre os pensamentos juvenis
que a alma brota
regenerada,
sobre a ilusão bonita
que ontem
te iludiu, que hoje me ilude,
ó Ermione.
Ouves? A chuva cai
sobre a solitária
relva
com uma crepitação que resiste
e se modifica no ar
conforme as folhas
mais escassas, ou menos escassas.
Escuta. Responde
ao pranto o canto
das cigarras
que o pranto austral
não amedronta,
nem o céu cinzento.
E o pinheiro
tem um som, e o mirto
outro som, e a genebra
outro ainda, instrumentos
diversos
sob inumeráveis dedos.
E mergulhados
nós estamos no espírito
silvestre,
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 317
em ser silvestre para poder, não pensando, apenas sentir o cair das gotas
da chuva sobre si. E seu solilóquio é apenas respondido por uma voz
não humana. E a chuva, que era fina e rara ao penetrarem no bosque,
aumenta e, soberana, faz calar os súditos aéreos, e só a rã interfere na
sua melodia. Não há sílabas pesadas na poesia. É tudo leve, flagrante,
imaterial, é uma sinfonia silvestre. Há uma continuidade de cenas, uma
variedade de motivos, um eterno movimento cadenciado pela chuva,
emoldurado pela chuva.
D’Annunzio, apaixonado, ouve o cantar das plantas. À sua
passagem e aos seus ouvidos até os sons da rã e da cigarra se transformam
em música. Ele e Ermione não falam, mergulhados no espírito silvestre,
vivendo a vida verde do pinheiral. Não há passado nem futuro, apenas
o presente com a chuva. D’Annunzio para de pensar, esquece seus
problemas espirituais, para sentir apenas, só sentindo as emoções físicas
e espirituais da chuva.
Esta poesia possui uma beleza que está toda na vaga, na torrente
musical que segue os movimentos das frondes e o murmurar das gotas
na floresta. Das gotas raras, das nuvens soltas e dispersas. E há um
avançar contínuo da chuva e dos dois amantes no pinheiral. Há um
eterno trio: a água, a floresta e os dois seres humanos. A chuva se torna
mais viva, grossa, densa, crepitando sobre as plantas e delas extraindo
uma maravilhosa e variada sinfonia. É um gozar silencioso da natureza,
com o pranto que vem do alto. Emudecem as vozes do bosque e seus
rumores, emudece o mar para ouvir o murmúrio fluente do pranto festivo
de verão.
E ambos, passeando pelas veredas do pinheiral gotejante e
fragrante, ora enlaçados ora apartados, identificam-se com a natureza
virente e esqueceriam o seu estado humano para inebriar-se na alma do
bosque, não fosse o pensamento rápido a sutilmente picá-los de que seu
amor não durará para sempre.
O valor desta poesia está todo no ritmo, na musicalidade das
palavras, como a chuva, que adquirem um valor, uma sensibilidade e se
tornam quase vibrações naturalísticas. Para d’Annunzio, as sílabas, além
do significado ideal, têm uma virtude sugestiva e comovida (agitada) nos
seus sons compostos. Diz adiante que, na língua italiana, os escritores
têm elementos musicais tão variados e tão eficazes para poder competir
com a grande orquestra wagneriana no sugerir o que somente a música
pode sugerir à alma moderna.
E por tanger a poesia com sua vitalidade, deve vencer também
as construções de palavras quais arabescos sonoros, como se fossem
objetos, animais e mulheres. Na sua arte mais humana, d’Annunzio
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 321
destrói e dispersa também o perigo do som que agrada como uma seiva
ou um contato: nasce assim a música individual da La pioggia nel pineto.
Sua música é uma harmonia sabedora de uma consciência terrestre,
mas quer ser temporal e fugitiva. Música do momento, da sensação
solitária, do puro fenômeno, não em razão de uma harmonia universal
humanamente medida em números, da qual tome significado e à qual
por sua vez não outorga.
O seu tempo é uma série de instantes iluminados, não quer ser o
curso do tempo. A sua poesia é a transposição artística da física, não da
História. Sua capacidade está toda no consumir o terrestre da memória:
em purificá-la do peso do tempo; e a profundeza do tom estará na mais
alta moral com que esta destruição e libertação do objeto estará acabada.
Para ele a vida é sentido, “una sostanza buona da fiutare, da palpare,
da mangiare”.109
E inicia descrevendo as palavras estranhas que dizem as gotinhas
e folhas longínquas, fala da chuva que cai sobre as tamargueiras verdes
mas secas, sobre os pinheiros escamosos, sobre os mirtos sagrados de
Vênus, sobre as giestas em ramalhetes, sobre as genebras perfumadas
como os cabelos de Ermione, sobre seus vultos silvestres (como as
árvores da floresta: são da mesma substância silvestre, pois do começo
ao fim o poeta esquece as palavras humanas). Mesmo não falando, ambos
sentem a chuva sobre seus pensamentos frescos que desabrocham da
alma deles, sentindo a frescura daquela chuva revigoradora, como a sente
a alma regenerada. E o crepitar da chuva é cadenciado e modificado no
ar pelas folhas mais densas ou menos densas. E as cigarras, indiferentes
ao pranto austral, cantam, acompanhadas pelos instrumentos agrestes
tocados por dedos inumeráveis. E vivem a vida das árvores, imersos
no espírito da selva, e o vulto de Ermione foi transfigurado pela chuva
como a folha prateada. Mas aos poucos ensurdecem as cigarras, e agora
um novo canto une-se ao da chuva. O canto das filhas do ar é substituído
pelo canto da filha do úmido: a rã. E ainda uma gota como em Gonçalves
Dias: “a folha luzente do orvalho nitente a gota retrai: vacila, palpita;
mais grossa, hesita, e treme e cai”. E a chuva de pequeninos brilhantes
pingos se transforma em grossas gotas de prata e não se sabe onde canta
a rã. E a chuva sobre os cílios de Ermione parecem gotas de alegria,
e ela parece quase verde sob as vestes molhadas; torna-se fragrante a
vida e as três comparações entre a pesca, as nascentes e as amêndoas,
essa naturalização do humano: o coração, os olhos e os dentes. E eles,
como a rã, estão quem sabe onde na floresta, perdidos, emaranhados
109
“uma substância boa de cheirar, de apalpar, de comer.”
Bruno Enei
322 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
A LITERATURA ITALIANA
APÓS D’ANNUNZIO
Uma afirmação como esta naturalmente significa que
d’Annunzio representa o cume, o ponto final de uma orientação,
de uma atitude, de uma forma de poesia. Embora d’Annunzio
seja originalíssimo, novíssimo, personalíssimo, há porém muitas
restrições para se fazer, querendo colocá-lo no plano de uma literatura
contemporânea. Deve-se dizer que a literatura italiana com Carducci,
com Pascoli e com d’Annunzio conclui um período. Deve-se também
dizer, então, que é depois de Carducci, Pascoli e d’Annunzio que se
pode verdadeiramente pesquisar, analisar, estudar todo um período
de obras poéticas e de prosa, de ensaios, de viagens, para poder aí
encontrar o que de novo se vai apresentando na história da literatura
italiana.
Se a gente procurar então nesse fundo, nesses últimos anos
de d’Annunzio, se a gente procurar lá, vê-se que há endereços novos,
exigências novas, atitudes novas, linguagem completamente nova,
há toda uma polêmica, uma surda polêmica no sentido de renovar
a literatura italiana, tirando-se dos esquemas da poesia heroica de
Carducci, procurando desenvolver certos aspectos da poesia de Pascoli
e aproveitando certas sugestões da poesia de d’Annunzio.
Esse movimento aí, velho e novo, de um velho que vai
decaindo e de um novo que ainda não se afirma, esse movimento se
deve chamar como de transição na literatura italiana; é o momento
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 323
110
Luigi Bartolini (1892-1963).
Bruno Enei
324 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
não por um destino, por fatalidade, mas porque eles é que são ruins e
querem ser ruins. São os homens os carpidores da maldade, deste “átimo
épico do mal”. Pascoli se afasta e se fecha numa sentimentalidade,
numa decepção, numa procura de desvendar o mistério do mundo que
lhe foge. Entretanto, além disso, Pascoli é o poeta de uma linguagem
completamente nova, cheia de alegorias, de ilusões, é uma poesia
muito racional, muito consciente. A poesia de Pascoli é uma em que
parece que certas concepções de arte para ele não valem mais, não
vale mais aquela questão de dizer que arte é fantasia, é invenção, é
uma serena visão, um mundo de palavras e ritmos. Para Pascoli, a
poesia é um menino que no coração vai procurando o que ele sentia
quando era menino.
É um procurar nesse mundo misterioso, com a voz da
infância, controlando nossas sensações, é uma poesia fria, racional,
consciente, clara, breve, rápida, sem desabafos, isto é, é evidente,
dizendo assim, que está se pondo em evidência os caracteres da
literatura contemporânea, que deve muito a Pascoli, porque é cheio,
como os outros contemporâneos, de hermetismo, de racionalismo, de
consciência de poeta no momento em que escreve, de um seu refletir
fora e acima de fantasia, é comovido, angustiado, vigile,111 controlado.
Então, Pascoli não podia morrer, ele devia ficar presente, ele tem
muitas coisas a dizer a uma nova literatura.
D’Annunzio é talvez o que mais está presente, embora seja
o que está mais longe. Ele está mais longe de Carducci e Pascoli e,
entretanto, por outros certos aspectos, é o que está mais presente
na literatura contemporânea. O que cai de d’Annunzio? O gigante,
o titanismo, o heroísmo, o superhomem, cai aquela retórica do
indivíduo colocando-se acima dos outros, aquela retórica de indivíduo
inebriando-se de ideais singulares, excessivos, grandes, essa ebriedade
de d’Annunzio vai completamente caindo.
Porém, no d’Annunzio de Poema paradisiaco, de Noturno,
Alcyone, há também tanta melancolia, há também tanta insatisfação,
há também um esforço de eliminar a palavra – tanto assim que nos
últimos anos, em 1935, em Cento e cento e cento e cento pagine del
libro segreto, d’Annunzio afirma coisas que parecem de hoje quando
diz que na poesia possui um grande valor a pontuação, porque significa
silêncio, que representa as palavras. O homem sempre honesto afirma
que, se a literatura italiana devesse renovar-se, deveria renovar-se
tornando-se bárbara, abandonando o helenismo, uma beleza fria, por
111
Vigilante.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 325
112
Alberto Cantoni (1841-1904).
113
Mônada.
Bruno Enei
326 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
114
Quebra.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 327
sonham com uma bela e nova realidade e, ao verem essa vida de todos
os dias, o desgosto, essa rotina que a vida exige de cada um de nós,
começam a odiá-la e sentir-se diferentes, livres, e surge um problema:
que fazer com minha liberdade?
Há necessidade na literatura contemporânea, há esse imenso
imperativo de anexar essa liberdade vácua, pois, sem razão, não
significa nada. É preciso achar uma razão de existir, nem que seja, por
exemplo, morrer na Espanha, combater na China, algo que empenhe
a vida, que não me deixe abstrato. Há uma procura de fé na literatura
contemporânea. Está-se procurando uma poesia cética, fria, amarga,
mas é amarga porque, não tendo mais confiança em nada do que
foi, do que houve, está pesquisando as nossas emoções, os nossos
equívocos individuais e sociais, para ver se é possível aparecer uma
razão de viver.
Tudo isso não havia em Pascoli, Carducci e d’Annunzio. A
literatura revive completamente e sai de um plano nacional para ser
uma expressão num plano mais vasto, europeu e mundial, porque
a crise não é somente francesa, italiana, inglesa, alemã (Kafka),
americana (Hemingway), norueguesa, etc., é universal, em todos os
países, até na Rússia há essa decepção, esse empenho, e é por isso que
todos eles estão assim afastados das autoridades constituídas, sentem
ser odiados, sentem que não podem colaborar com a mentira.
Análise
De uma delicadeza extraordinária. Trata-se do problema dos
que viveram e que não vivem mais. Sobretudo dos homens que na guerra
1915-1918 morreram, matados pelos homens, diante do olhar deste
poeta, que foi combatente nessa guerra, quer na Champagne, quer no
dorso dos Alpes italianos.
Esse homem viu essa mocidade triste, decepcionada, cheia de
ideais e de anseios, cair abaixo do chumbo inútil da guerra, abaixo das
chagas que a baioneta sabe abrir no coração dos moços que viveram
longe das próprias famílias, das noivas, que naquele então brotava na
própria alma.
Depois da guerra, apesar de ter um milhão e meio de feridos,
depois de uma devastação que nenhuma doença cria e que o homem
com a guerra soube criar, em dezenove de dezembro de 1921, na Itália,
que foi uma das nações que venceram, na França, Inglaterra, Estados
Unidos e no império central da Alemanha, Áustria, Hungria, em todo
esse mundo europeu havia queixas dos insatisfeitos, dos homens de
governo querendo uma coisa, os derrotados não se conformando com
a paz, um dizendo ter direito, em suma, continuava em certo sentido, a
matar os mortos.
Então o poeta grita exasperado, angustiado, ele convida os
vivos a ter dó dos mortos que não precisam ser mais matados, porque já
morreram. Se não gritarem em cima desses ignotos soldados, sem mais
os afetos dos pais, sem luz do Sol, convida a um silêncio, se os vivos
ainda acreditam que a vida ainda mereça ser vivida. Se nos homens
existe ainda o pudor, que não seja melhor perire. A voz dos mortos que
convida a ter confiança na vida, a voz deles é uma voz muito silenciosa,
delicada, imperceptível e... [sem continuação].
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 329
Nostalgia
(Giuseppe Ungaretti)
Quando
la notte è a svanire
poco prima di primavera
e di rado
qualcuno passa.
Su Parigi s’addensa
un oscuro colore
di pianto.
In un canto
di ponte
contemplo
l’illimitato silenzio
di una ragazza
tenue.
Le nostre
malattie
si fondono.
E come portati via
si rimane.
Nostalgia
Quando
a noite está a se esvaecer
um pouco antes da primavera
e de quando em quando
alguém passa.
Sobre Paris se acumula
uma cor obscura (como)
de pranto.
Em um ângulo
da ponte
contemplo
o silêncio sem limites
de uma moça
delicada.
Bruno Enei
330 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
As nossas
doenças
se unem.
E embora levados embora
ficamos lá.
Análise
Esta poesia adquire um valor muito mais pictórico do que poderia
ser uma poesia sobre Roma. Estas linhas tão sutis, tão delicadas, não seriam
próprias para Roma. Roma é meio-dia, uma cidade abundante, generosa.
Paris é aristocrática, num sentido de decadência, de dança íntima, de
melancolia, de sentimentalismo. Uma mocidade febril, melancólica, de
perfis. O poeta imagina um anoitecer em Paris, onde ele se formou, como
Picasso; é uma cidade de uma cultura, de requinte, então parece que até
a natureza de Paris se reflete no cair do Sol, quando Paris se apresenta
não límpida, mas quase cinzenta, quase de chumbo. Uma neblina vai
deformando as coisas, cinzenta, melancólica, triste, de sonho, de modo
que as pontes, as casas se transfiguram. O poeta então saindo nesse pôr-
do-sol, em que a neblina do Sena, esse rio que tem séculos de história,
de tragédia, de suicídios, manda essa neblina que cria um ambiente sem
fundo, sem arredores, só se vê baixo e ele vê uma mocinha de seus 18 anos,
enamorada talvez, decepcionada, ansiosa, com um drama humano, uma
esperança, então ela se perde, vai lá, longe, pensando, com seu rosto gentil
parado, que se esfuma como a neblina. Ela talvez com seus problemas,
com um momento de intimidade, que a própria noite cria na alma dela,
por reflexo. Ele se vê nela e diz: as nossas duas doenças se fundem numa
só, que é a da paisagem que torna Paris melancólica e nós nos olhamos
fundidos numa mesma doença e nos sentimos levados embora sonhando.
Cada um por si, quem sabe onde pensam de atingir, alguém, será que se
realizará um ou outro, aquela moça esperando ou desiludida? Ele porque
sabe a vida. São levados embora pela doença da alma. Entretanto estão
parados, imóveis.
Noia
(Giuseppe Ungaretti)
sull’umido asfalto.
Guardo le teste dei brumisti
nel mezzo sonno tentennare.
Tédio
L’assenza
(Guido Gozzano, 1883-1916)
A ausência
O banhado resplandece. A rã
se cala. Mas (neste momento) pula um lusco-fusco
de uma acesa esmeralda, de braços
azuis: o martim-pescador...
E não estou triste. Mas estou
surpreso olhando o jardim...
surpreso do quê? Nunca
me senti tão criança...
Admirado de quê? Das coisas.
As flores me parecem estranhas:
há ainda sempre rosas,
há apesar de tudo sempre gerânios...
(Apesar das tristezas e da melancolia da vida).115
Pudore
(Antonia Pozzi, 1912-1938)116
Análise
Um mãe moça que ouvisse um passante na rua e estivesse com
seu menininho e alguém dissesse que bonito, ela ficaria quase vermelha
de pudor. E assim é ela. Se você elogia meus versos, minhas palavras,
115
Entre parênteses, comentários do professor Bruno enquanto fazia a tradução do
poema.
116
Se alguma das minhas palavras / te agrada / e tu mo dizes / mesmo que seja somente
com os olhos / eu me escancaro / em um riso beato / mas tremo / como uma pequena
jovem mãe / que até mesmo enrubesce / se um passante lhe diz / que seu filho é belo.
Bruno Enei
334 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
117
Nas aulas seguintes ainda foram analisados os seguintes poemas: Fra terra ed astri,
de Domenico Gnoli (1838-1915); Io ti voglio fabbricare un capanno, de Angiolo
Silvio Novaro (1866-1938); La Sagra di Santa Gorizia (trecho), de Vittorio Locchi
(1889-1917); Che è che vaga nell’aria?, de Marino Moretti (1885-1979); La caccia
all’usignolo, de Corrado Govoni (1884-1965); e Lo sconosciuto, de Aldo Palazzeschi
(1885-1974).
ESCRITOS DE
BRUNO ENEI
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 337
Personagens dantescas
Justiniano118
Bruno Enei
118
Do ponto de vista das normas ortográficas, o texto relativo às aulas de Bruno Enei,
como pôde ser observado, segue a reforma ortográfica que entrou em vigor no início de
2009. Assim, para efeito de clareza, coerência e uniformidade, todos os textos constantes
nos três títulos que se seguem − “Escritos de Bruno Enei”, “Pronunciamentos de Bruno
Enei” e “Escritos sobre Bruno Enei” −, que reuniam diferentes ortografias, também
foram adaptados.
Bruno Enei
338 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
Leonardo da Vinci
Bruno Enei
Da inutilidade da literatura
Bruno Enei
É inconcebível uma humanidade sem arte: sem poesia, sem música, sem
pintura, sem as várias formas de arte. Há quem negue isso? Seria como
imaginar o mundo sem o céu, o céu sem as estrelas, as estrelas sem a luz.
Seria como afirmar que o pensamento humano pode ser não-necessário.
Seria como imaginar o absurdo de uma humanidade sem sentimento, sem
sensibilidade, sem emoção, que são justamente os alicerces inelimináveis
da arte.
A arte é essa companheira angelical e autônoma seguindo o
homem, cantando as suas tristezas e as suas esperanças, as suas dúvidas
e os seus acertos, os seus acontecimentos e os seus anseios. Cantando-os
e preconizando-os, muitas vezes.
Não, a arte não pode ser inútil. Ela é, aliás, tão vital, tão essencial
na vida de um povo que chega até a ser o termômetro do valor, da energia,
da possibilidade espiritual e humana de um povo. Um povo pobre de
poesia é como o olho sem luz. A sua literatura é a vibração, o seu poder
de vibração, a sua capacidade de nobreza. É verdade, sim, que as coisas
materiais ferem mais rapidamente os olhos, mas o que fica, mais tarde, é a
poesia, a arte, a literatura. E, observando bem, ver-se-á que até o poderio
material é escasso lá onde a poesia não for grande.
A palavra utilidade ou inutilidade é um termo que pertence à
filosofia prática: e a arte, além do mais, fica fora da terminologia prática.
Útil ou inútil poderá ser um objeto: mas a arte não é um objeto. A arte é
um produto do espírito: e nada que o espírito cria é inútil, pelo simples
fato que o cria e enquanto o cria.
É verdade que tanta literatura que anda por aí não presta. Como
tanta música, tanta pintura, tanta poesia não prestam. Mas essa é outra
questão, que será objeto de outros artigos. O que aqui interessava era
responder à pergunta que me foi feita alguns dias atrás. Uma pergunta
banal, de espíritos evangelicamente pobres, que os anos, os reveses da
vida, a insatisfação e o mau humor puderam tornar fatalmente cínicos e
indiferentes: à margem dos problemas, da vida, do futuro, que sempre
precisam, como a arte, de sinceridade, de entusiasmo, de inspiração, de
crença nos valores do homem.
A arte é outra coisa. Por cima de tudo isso ela – como dizia Dante
– se ne va beata: vai para a frente, feliz e serena, comovendo, despertando,
educando, humanizando.
Necessità di un ritorno
Bruno Enei
Gêneros literários
Bruno Enei
que a sustenta, pela lei que a governa, pela sua individualidade estética,
independentemente da sua dependência a um precedente literário, a
um modelo, a uma lei, a um gênero. Quantos “aristotelismos” ainda!
Quantos “ipse dixit” ainda! Quantas inúteis e abstratas saudades de
Homero, como mestre do Poema épico; de Sófocles, como mestre da
Tragédia; de Cícero, como mestre da Oratória, de Horácio lírico, de T.
Lívio historiador, etc., etc.! Parece de estar ainda nos tempos da disputa
entre românticos e clássicos.
Lê-se um poeta, e pensa-se noutro, ouve-se Bach e lembra-
se Corelli, olha-se Picasso e corre-se aos artistas do século XV. Faz-
se justamente como aqueles dois neófitos (de que fala Silvio Pellico
naquele seu breve mas imortal “Concialiatore”, publicado em Milão
entre 3 de setembro de 1818 e 17 de outubro de 1819), os quais –
tendo abraçada a religião do evangelho – disputavam se Zoroastro e
Confúcio fossem verdadeiros cristãos, sem minimamente pensar que se
Zoroastro é Zoroastro e Confúcio é Confúcio; é claro que o cristianismo
é o cristianismo, não podendo ser nem Zoroastro nem Confúcio, nem
tantas outras coisas, de ontem e de hoje, que acreditam de ser – sempre
por uma razão de apego ao gênero – uma continuação ou identidade.
Matou-se assim, e continua-se da mesma forma – a matar a
liberdade da arte, aquela liberdade que já A. Verri – no seu jornal “Il
Caffé” – chamou de “deusa do engenho”.
Tirania que obrigou T. Tasso a escrever a sua melancólica e
idílica “Gerusalemme Liberata” só às condições que admitisse que o
seu Godofredo fosse “o intelecto”, os seus Rinaldo, Tancredi e demais
heróis as “várias potências da alma”, os soldados “o corpo”, e Armida,
Ermínia e as demais infelizes encantadoras do seu mundo “as tentações
diabólicas”. E assim foi perdoado. E, mais ou menos, assim foi perdoado
Corneille. Mas, sabe-se que Voltaire, também pelo inconformismo ao
Classicismo, pela sua Henriade de 1723, foi insultado, surrado e exilado.
E que dizer das acrobacias a que a alegoria – essa irmã reacionária do
gênero e do conteúdo – obrigou a fantasia veneranda e bonita de tantos
poetas, inclusive Dante Alighieri, o poeta que tanta gente lembra mais
porque alegorizou a selva, a loba, a onça, e o leão do que porque cantou
Ulisses e seu desejo de conhecer, Brunetto e a sua saudade de professor,
Francesca e o seu amor?
Precisamos ainda libertar a arte; dar-lhe a sua autonomia,
a sua divindade, a sua necessidade, tirando-lhe qualquer sombra de
heteronomia, de conformismo, de escravidão (hoje é o 13 de maio)
ao conteúdo, à alegoria, ao gênero, à classificação; à árida e abstrata
classificação que nenhum outro valor poderá ter senão aquele, como
Bruno Enei
352 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
espécie, não tem classificação: coisas que Croce deixava para as ciências e
as matemáticas. A arte responde sempre a uma inspiração, a um sentimento
vivo e concreto, a um imperativo de atualidade e de contemporaneidade.
Notaram já, os meus leitores, que nenhum grande poeta ficou alheio ao
tempo em que viveu, que a obra deles cantou sempre o presente, e foi
uma meditação, uma polêmica, uma idealização, uma apresentação – na
forma e na substância – da própria idade, do próprio viver? A arte é sempre
criação, na linguagem e no conteúdo. E tantos gêneros há quantas são as
obras de arte. Infinitos gêneros, isto é, porque infinita, assim é de se esperar
tendo confiança no homem, é a série da poesia, diante da qual devemos
ver quanto e como ela é mesmo original e nova, compreendendo-lhe a
novidade, justificando-lhe a originalidade, legitimando-lhe a liberdade,
reconhecendo-lhe o direito de arte, não na base de um conformismo, mas
da sua originalidade, da sua honestidade, da sua realidade.
Conta-se que quando foi feito conhecer o ferro aos selvagens
americanos, os seus donos quiseram examinar logo se ele fosse ouro ou
prata. Como não fosse nem um nem outro, aqueles donos – imaginem
com quanta boa fé – decretaram que o ferro não era um metal legítimo.
Então, os jovens americanos quiseram propor que fosse o ferro examinado
só como coisa útil. Abre-te, céu: foram eles sonoramente batidos a fim de
que ficassem sabendo que sempre há-se a perguntar se uma coisa é igual
a outra, e nunca se pode ser útil e boa em si.
É uma anedota que cabe bem ao nosso caso; o caso do gênero,
o caso de tudo aquilo que a dogmática da retórica e da insensibilidade
soube criar contra a inovação, o progresso e a novidade, qualquer que
fosse ou se chamasse.
E não quero já dizer que tudo isso não seja hoje claro e pacífico.
É sim, até para os que admitem e aceitam essas verdades, com todas as
inevitáveis contorções e restrições que a “forma mentis” lhes impõe.
Mas, entretanto, quanta gente fica ainda “cheirando mal” diante da poesia
contemporânea; Picasso aqui e acolá, Carlos Drummond de Andrade e
Ungaretti, este ou aquele poeta moderno. Além das ambiguidades dos sim
e dos não, além das restrições dos porém e dos mas, é no campo prático,
no terreno quotidiano do ensino e das conversações que a gente percebe
quanto a categoria do gênero seja dura a morrer, abdicando a seus velhos
e soberbos direitos de um tempo.
E, assim, vai, também esse “gênero” – juntamente a tantas outras
coisas velhas e inúteis (“oh gran bontà dei cavalleri antichi”, exclamaria
Ariosto) sobre essas águas da vida, que móveis e dinâmicas deveriam
também ser. Vai; vai pesando e impedindo, negando e distinguindo,
concedendo e repelindo, mas – o que é inegável – também o rio vai, e
Bruno Enei
354 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
Bruno Enei
Esperanças da crítica
Bruno Enei
Beleza é distância.
São as primaveras mortas
e as que ainda não nasceram
São nuvens, mares de ondas brancas
em praia azul.
São os silêncios verdes nas ilhas
do pensamento.
ou o voo longínquo de um pássaro
seguindo o sol.
Distância é beleza.
e de cidades eternas.
Mas subitamente
atravesso o riacho
e galgo às pressas minha colina de verão,
ao ouvir o badalar dos sinos
de minha pequena aldeia.
É esta a poesia atual de Sigrid Lange: uma poesia que, cada vez
mais, adquire sugestões e significados através de uma alegoria que é
própria das coisas; através de um simbolismo sem arbitrariedade, sem
esforço.
__________________
e o resto é noite,
Noite só
...sempre um remédio
na mesma obstinada esperança
de um tempo em simples tempo exaurido.
E mil vezes, assim, ter nascido; ferindo-se
...contra o inesperado gesto vil, urbano, sem sentido.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 371
O Humanismo e a Renascença
Bruno Enei
Queira perdoar o atraso desta carta. Maria nem sempre sabe ser
clara e pontual em suas obrigações. Mas corro “ai ripari.”
Os versos de Dante que Eliot cita pertencem ao “Purgatório”,
canto XXI, vv. 133-139:
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 379
O belo é que Stazio não sabe que Virgílio está ali. Não sabe que
está falando com Dante e que Virgílio o está ouvindo! Na terra, quando a
gente está ausente... É tão difícil não ceder à tentação de insinuações...
Diante dessa situação, Dante sorri, comovido e extasiado. Dá
quase a impressão de não ser capaz de conter-se. Mas Virgílio autoriza-o
a falar. Então, no ímpeto característico de suas melhores páginas de
afeto, de generosidade e de entusiasmo, Dante revela a Stazio a presença
de Virgílio, de Virgílio, naturalmente, só espírito; desse Virgílio a quem
Dante também, na terra e no além, na poesia e na purificação, tanto
deve.
A revelação de Dante surpreende Stazio, despertando-lhe toda
a sensibilidade e delicadeza de ser humano e de poeta. Inclina-se para
frente, como que querendo abraçar os pés de Virgílio. Como se isso fosse
possível. Como justamente se faria na terra. Mas Virgílio nega-se:
... Frate,
Non far, chè tu se’ ombra e ombra vedi.
daqueles que não espera de morrer para ser melhor, para ser gentil,
idealista. Coloca Dante na terra e aqui procura de atuá-lo.
Sei que a Sra. não precisava de todas essas explicações. Mas
não soube conter-me. Quis, mais ou menos, recriar a situação, para que
mais evidente e íntima lhe se evidenciasse a delicadeza, a humanidade,
a cultura de Eliot. Foi ele lá, na Divina Comedia, procurar um dos
momentos mais sublimes da gratidão, da admiração e da ternura. A
gratidão em nome do espírito, da poesia, da idealidade; da manifestação
de um apego a quem nos deu a alegria e a nobreza das idealidades e dos
sentimentos eternos. Uma palavra de exaltação à poesia! Parece quase
irônico, minha gentil Senhora, parece quase irônico isso hoje, quando a
poesia é a criatura suspeita e a inteligência algo que, para se conservar
autêntica, precisa novamente procurar o silêncio, as catacumbas e
os... “botões”. Que linda lição nos dá Eliot, lembrando esse trecho de
Dante... justamente quando, como dizia Petrarca, “povera e nuda vai,
filosofia”!
Dante! Esse mundo de pensamentos e de emoções, essa fonte
irresistível de ternura e de nobreza, de aristocracia e de espiritualidade!
Sim, penso em Goethe, em Novalis e em Hoelderlin. Duplamente:
porque sei que a Sra. os aprecia e porque, como Catão, voltei na minha
velhice a estudar o alemão, com o pastor João Pedro Bruekheimer,
em um curso de extensão universitária que eu mesmo, como Diretor
do Departamento de Letras, organizei para despertar a mocidade e esta
nossa atmosfera de mediocridade e de gratuidade. Assim, nas IVas feiras,
sou aluno de alemão e, no sábado, professor de Língua e Literatura
Italiana: um outro Curso que também organizei. E vamos indo muito
bem. Temos 70 alunos no Curso de Alemão, 140 no de Italiano.
Aliás, tenho aula às 16,30. Por isso, despeço-me. Devo ainda
“neun Zätze bilden”. Leben sie wohl, pois, meine Dame Renaux; leben
Sie wohl. Daqui a pouco iremos cantar:
Não posso, não devo ficar atrás de Maria, que estuda alemão
com afinco e com o propósito de superar-me.
Recomendações ao Dr. Renaux e a seus filhos.
119
Este texto incorpora várias correções que o professor Bruno fez nas margens da
página do jornal. O próprio título, “Impressões de um Leitor Contemporâneo”, saiu
errado no jornal, que omitiu a palavra “Contemporâneo”.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 383
É, pois, a dor que leva o poeta de hoje a escrever; isto é, não é uma
disposição literária mas uma atitude. Entretanto, não sobre ela escreve o
poeta, sobre ela em si ou dele – indivíduo; mas pela dor, pela sua essência
humana de inquietação, de indagação, de providência. E, logo, de alento.
Sim, de alento, porque se trata, direta ou indiretamente, de uma revelação
em que se faz um processo à razão (já iniciado, aliás, com Kierkegaard);
não se quer, todavia, negar que uma ordem humana não deve sempre e
legitimamente ser uma ordem de razão. O mundo – a nossa presença aqui,
sobretudo – tem que ter sempre a sua teleologia. E é porque a temos que a
poesia, na verdade, quer chamar à sua responsabilidade a razão: essa árida,
temerária, oportunística razão que – por ter, desde o século XV, podido
fácil e inevitavelmente atingir tantos e sucessivos triunfos – acredita certo
o seu rumo unilateral e acaba tornando-se eufórica, abstrata, arbitrária
ao ponto de abandonar o homem e de reduzi-lo a aparência, a função, a
quantidade para – então – pensar de poder dispor da história, como se a
história fosse a história dela e não dele, o homem; que é quem só explica
e pode explicar ambas: razão e história.
Um tempo – começa por Petrarca – a dor era frequentemente
um prazer: nobre cômodo, privilegiado pretexto de sonhos, saudades,
descrições. Acrescente-se ainda mais alguma coisa: erudição, casticismo,
imaginação. Pronto: de um modo geral, estava feito um poeta. Oh, então,
o encanto do idílio e da bucólica, quando os calmos poentes, as risonhas
auroras, os límpidos rios, os longínquos bosques, o céu azul serviam de
encosto ao devaneio!
Hoje, a poesia – a melhor e mais autêntica poesia – cada uma a seu
modo e dentro da exigência que a move, repele isso tudo, relegando-o,
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 385
o que interessa. A literatura, por assim dizer, estética não teve, desde
o início, a idoneidade para estabelecer princípios metodológicos, para
formular os limites e as peculiaridades do novo campo de indagação.
Não teve a consciência lúcida e firme que lhe permitisse individuar e
caracterizar a natureza particular dos novos problemas, das diferentes
exigências e objetivos. Um semelhante trabalho exigiria não somente um
conceito maduro e profundo do espírito, como também − e sobretudo − a
instância lógica da necessidade de uma distinção intrínseca ao processo
espiritual, sem o que não seria possível edificar a nova ciência. Ao lado
do momento lógico, econômico e ético do espírito, já, de certa forma,
individualizados e admitidos, precisava − como afirma Benedetto Croce
− reconhecer e postular a existência de um outro momento, igualmente
distinto e necessário: o momento fantástico. Condição do fenômeno
artístico. Com isto, seria clara a visão global do espírito, único e absoluto
responsável, na sua dialética e unidade, de toda a realidade humana na
sua identidade e distinção. A afirmação da autonomia e da distinção
no momento fantástico seria, pois, a imprescindível condição para o
nascimento efetivo e o sucessivo desenvolvimento de uma doutrina
estética. Ora, inicialmente, e durante muitos séculos, esta distinção
na vida do espírito não houve. E, ainda menos, poderia ser sentida e
satisfeita a outra e mais decisiva exigência de descobrir e reconhecer a
particular natureza da fantasia, como última e autônoma possibilidade
do espírito.
Daí o avanço demorado, incerto e inadequado, sobretudo até o
século XVI, dos estudos literários e críticos. Não há ainda, é a opinião
de Croce, uma ciência estética. É sobretudo a retórica que inspira aquela
produção, empenhada em leis, normas e modelos formais de beleza e de
perfeição, como objetivos únicos da obra de arte e, afinal, como única
exigência, também.
À parte os pormenores e detalhes, será sempre possível, assim,
compendiar em três pontos fundamentais todo o pensamento que o
Classicismo, a Idade Média e a Renascença nos consignaram em torno
do problema da arte: uma concepção rigorística, considerando-a deleite,
e, por isso mesmo, indigna da esfera nobre do espírito e da “República”;
uma concepção pedagógica, reabilitando-a, na sua função de agradar
e de educar; uma concepção formalística, elevando-a a um plano de
abstrata beleza e de olímpica finalidade. Em suma, a arte-hetera, a arte-
-instrumento, a arte-marfim. E nada mais, ou pouco mais e sempre em
termos de pressentimento, de isoladas intuições nesta ou naquela idade,
deste ou daquele escritor. Precisa, mais ou menos, chegar aos nossos dias
para que seja evidente a convicção profunda e consciente da particular
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 387
Intuição e expressão
Evidentemente, a arte é intuição. Esse termo embora discutido,
não deixa de definir, com bastante clareza e propriedade, a essência
teorética e ideal do fenômeno artístico. Entretanto, a identificação se tem
prestado a equívocos e a tergiversações.
Não é, propriamente, o risco latente de um retorno inoportuno
ao velho e sempre insuficiente dualismo de conteúdo e de forma, aquilo
que, neste momento, preocupa. Nem é a tão comum e sintomática
atitude de comprazimento e de verbosidade perante determinadas e
não desinteressadas “expressões”, próprias de outras idades e ligadas
a temas hoje em dia pacíficos, de fácil compreensão e talvez, por isso
mesmo, motivo de “saboroso” deleite. O que, na verdade, é inadmissível
é o empobrecimento gratuito de elemento fundamental e decisivo da
síntese artística – a intuição – em vantagem do outro – a expressão – e o
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 391
A arte e a crítica
A idealidade não é abstração. Ela tem a sua realidade. E é
justamente por isso que a arte é forma concreta e real. É a realidade
intuitiva e lírica da idealidade. A palavra do poeta não é o simples
vocábulo, assim como a tela não é a exposta tinta da loja e o ritmo a
nota do alfabeto musical. A imagem é sempre a realidade de um estado
de alma, que conhece sentimento; é a sua “paisagem”, como também foi
definida. Não é, pois, um acréscimo, uma soma. É a inspiração do artista
Bruno Enei
394 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
120
Trata-se do texto integral da aula proferida pelo Professor Bruno Enei (1908-
1967), na noite de 4 de março de 1953, por ocasião da abertura do ano letivo. O
original, datilografado, e sem título, chegou às nossas mãos graças aos préstimos da
Professora Maria Vilma Rodrigues Nadal, que o resgatou nos arquivos da biblioteca
da Universidade Federal do Paraná. Procuramos respeitar ao máximo a forma deixada
pelo autor, limitando-nos às necessárias atualizações ortográficas e de pontuação e a
eventuais reparos no que se refere a casos óbvios de italianismos, incompatíveis com a
clareza da expressão vernácula, dada a menor familiaridade que tinha ainda, naqueles
anos, o saudoso Mestre com o português. (SMZ)
121
Em verdade, A Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de Ponta Grossa,
criada por Decreto Estadual de 8 de novembro de 1949 e reconhecida federalmente por
Decreto de 10 de fevereiro de 1953. (SMZ)
122
Em verdade, a Faculdade Estadual de Farmácia e Odontologia de Ponta Grossa,
criada por lei de 16 de novembro de 1952. (SMZ)
Bruno Enei
404 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
da, embora grande, filosofia grega e daquela menor dos romanos, ficamos
afastados de todos aqueles mitos e pseudo-conceitos, aos quais, afinal,
numa forma ou noutra, podem ser reconduzidos, e se reconduzem, os
postulados do pensamento filosófico pré-kantiano.
Hoje, a filosofia colocou-se decididamente sobre um plano de
imanência, de absoluta imanência, tornando a trazer ao homem, e no
homem unicamente procurando, e nele vendo-lhes o criador e o gerador,
quaisquer leis, qualquer categoria, qualquer função, todos os deveres e os
direitos, todas as causas e os efeitos; tudo humanizando e subjetivando:
até a natureza, esta natureza externa e objetiva que somente nos é estranha
na sua materialidade, porque, no restante, ela é nós mesmos, de nós e por
nós vivendo e transformando-se e enriquecendo-se como pensamento
pensado, como, isto é, história do homem.
Filosofia, pois, hoje significa pensar; um pensar que não consiste
mesmo no colocar-se perante uma realidade diferente e preexistente, mas
sim fazer e criticar, realizando a nós mesmos! Um pensar e nada mais.
Tudo hoje torna a ser trazido para o espírito humano, para esta
nossa humanidade que é particular e universal, contingente e eterna,
relativa e absoluta, conforme se considere o indivíduo ou o homem, o
ser ou o vir a ser, o passado ou o futuro, o fato ou o dever ser.
Tudo torna hoje a ser trazido para o espírito humano: as categorias,
o céu, a História e quaisquer outros elementos que, anteriormente,
pertenciam ao espírito como seus atributos e hoje são o espírito; o espírito
como atividade, como energia, como forma a priori gerando, fazendo-se
e realizando-se; criando, ininterruptamente, a História; a História que,
pois, nada mais é senão a fenomenologia do espírito, a sua epifania, a
sua realidade, a documentação sempre viva e estimuladora e fecunda do
que foi pensado e atuado.
Está aqui a razão pela qual, de um século para cá, tornou-se
a filosofia mais concreta e mais humana: mais concreta, abandonando
as utopias e as nuvens para, cada vez mais, avizinhar-se da realidade e
da verdade; mais humana, aqui também, abandonando as hipóteses, as
imaginações e os axiomas para a crítica e a análise, as quais a levaram a
encontrar no homem o todo e as partes, a origem e as causas de qualquer
acontecimento.
E daí é que veio o desenvolvimento gradual e crescente das
ciências naturais, das ciências humanas, das ciências morais: elas
todas – cada uma no próprio campo e com os próprios objetivos –
procurando o homem, estudando o homem, analisando-o, pesquisando-o
e perguntando-lhe o que ele é e o que deve ele ser, por que ele foi e é
assim, como ele será ou poderá ser.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 407
À margem da história
Bruno Enei
Não quero dizer que a nossa literatura comece mesmo por ele;
mas percebe-se bem claramente que é Euclides da Cunha quem, com o
realismo e a humanidade de sua inspiração, continua e aprofunda o nosso
renovamento romântico, dando-lhe uma orientação popular e nacional,
um sentido firme, um rumo vital, a injeção de um sadio fermento de
brasilianidade, entendida ela como problema, como espiritualidade,
como sociedade, como história.
Percebe-se isto não apenas nos seus livros mais conhecidos e
citados, como também no seu breve mas íntimo epistolário para com os
amigos e os pais. Percebe-se isto, ainda, na sua breve mas significativa
atividade de poeta.
Há no seu epistolário uma larga veia de carinho e de cordialidade,
assim como há em seus versos um desejo ardente de renovação, uma
exigência de temas novos, uma necessidade de afastar os esquemas
acadêmicos do convencionalismo e da rima para dar livre desabafo a um
sentimento espontâneo de humanidade, a um real anseio de socialidade,
de progresso, de marcha para frente à busca de nós próprios, de uma
nossa língua, de uma nossa alma, de uma nossa expressão que seja
unicamente nossa.
Eis a sua protestação:
causas, corolários e não princípios, filhos e não pais sendo a escola quem
verdadeiramente cria e aperfeiçoa.
Tantos alunos a mais e tantos “Gregórios” a menos.
__________________
Matai o cepticismo
É aquela doença fatal que cria o desprendimento para com tudo
e para com qualquer coisa: não interessa saber, interessa passar; não
há aspiração mas somente aguardamento dos anos que mecanicamente
deverão bem passar e suceder-se. A incompreensão, o enjoo, o tédio
esvazia tudo e deixa tudo sem uma razão, sem uma necessidade,
numa espécie de naturalismo providencial em que se perde a noção da
responsabilidade e o gosto de agir. Tudo vai para a frente não indo, tudo
passa sem passar, “panta rei”, como dizia o filósofo grego: tudo escorre
sem nada deixar na alma a não ser a inveja, o ódio, a antipatia, o ciúme,
a hipocrisia, a bajulação, a megalomania.
Matai o cepticismo na escola: ele ainda é o “câncer moral” da
mocidade. E criai o entusiasmo, a fé, o interesse, o fervor, conforme a
psicologia de cada um, crendo em que direis, fazendo com que vossas
aulas não sejam dádivas e esmolas cansadas e soberbas mas sangue
do vosso sangue, sentimentos da vossa sensibilidade, ideais do vosso
coração e seleção da vossa crítica e do vosso esforço intelectual.
Matai o mecanicismo
Nada na vida é igual. Nada é uniforme. A vida é um eterno e
dialético “vir a ser”: de cume em cume, de conquista em conquista, de
assimilação em assimilação. Renovai-vos continuamente se quereis
renovar. E a vossa aula seja um grito; uma declaração de fé que ignore a
rotina e o programa. Nunca uma mesma aula seja a mesma aula. E o aluno
não repita, mas elabore, mas diga na luz do seu sentir, na ordem de sua
intelecção, na lógica da sua exigência individual. Matai o mecanicismo
e criai a crítica.
Matai a gramática
E não falo só desse “sujeito” que – coitado – pode
contemporaneamente ser simples e composto, abstrato e concreto,
expresso e oculto, agente e complexo. Não falo só desse “predicado”,
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 427
Matai o ponto
Não há ponto. Uma aula não é um ponto. Um assunto não é
um ponto. Um acontecimento não se fecha num ponto. Ponto, questão
e perguntas: nada de tudo isso, meus afilhados. A cultura é sempre, em
qualquer classe e em qualquer idade, elaboração. Não se trata de repetir.
A escola não é repetição. Aquele determinado problema deverá ser
exposto numa lógica pessoal, numa ordem subjetiva, numa coloração
própria. Não somos autômatos.
__________________
Bruno Enei
428 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
DISCURSOS
No final do jantar, o Professor Wilson Martins, em nome dos
presentes, saudou o homenageado. Em segundo, falou o professor Mario
Araujo, interpretando o pensamento dos colegas do Professor Bruno
Enei, em Ponta Grossa, em cuja Faculdade de Filosofia é catedrático
interino de Italiano. O novo Docente-livre da Universidade do Paraná,
comovido, expressou os seus agradecimentos pelas demonstrações de
apreço que lhe eram tributadas ressaltando o sentido de estímulo e de
encorajamento que encontra na solidariedade dos seus amigos, para a
obra contínua exigida pela educação da juventude. Antes de encerrar-se
a reunião, o sr. Francesco Parenti, Cônsul-Geral da Itália, manifestou
a satisfação com que participava dela, homenageando as qualidades
Bruno Enei
434 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
A SAUDAÇÃO
É o seguinte o teor do discurso pronunciado, na ocasião, pelo
Professor Wilson Martins:
Mais do que alegria, a sua livre-docência, meu caro Bruno Enei,
me causou espantos. Digo “espantos”, no plural, porque são dois, e
contraditórios. [trecho apagado] todas as provas do seu concurso, tendo
admirado a inteligência e a coragem com que as enfrentou, tendo mesmo
me surpreendido – eu, que já o conhecia – com os seus esmagadores
conhecimentos de Literatura Italiana e com a sua cultura geral – eu me
espanto de que lhe tenham dado apenas o segundo lugar. Muitas das notas
que lhe atribuíram não corresponderam às suas provas: e quando as notas
não correspondem ao valor das provas, parece-me que a explicação só
pode caber nesta alternativa: houve, por parte dos que as atribuíram, ou
ignorância ou má fé. Também pode ocorrer que a conjunção seja outra, e
que a má fé se alie à ignorância para produzir esse resultado monstruoso
que é o desconhecimento da categoria de um candidato.
Ignorância ou má fé, ou ainda: ignorância e má fé, são, segundo
parece, elementos estranhos a um concurso universitário e contra os
quais ninguém terá armas eficientes. O próprio Benedetto Croce, o
próprio Flora, o próprio Momigliano, seu antigo mestre, não teriam
provavelmente obtido, nessas condições, resultados melhores.
Mas, se assim é, e aqui entra o meu segundo espanto −
contraditório, e, contudo, complementar do primeiro: se assim é, não
deixa de ser espantoso que você tenha conquistado essa livre-docência
que hoje é sua. Se se tratava de eliminá-lo, surpreende que não o
hajam eliminado, e se os seus conhecimentos não bastaram para obter
alguma coisa mais do que a livre-docência, não [trecho apagado] para
que tenham sido suficientes para ela. Porque, como se viu, não houve,
no caso, uma exata avaliação do seu valor – não o valor estimativo
e gratuito das opiniões pessoais e caprichosas, mas o valor efetivo e
objetivo, demonstrado em exames de natureza cientifica; e, se não houve
uma exata avaliação do seu valor, o resultado seria sempre arbitrário, e
tanto seria possível reconhecer-lhe uma livre-docência, como nada. A
injustiça seria a mesma e da mesma gravidade a ofensa cometida contra
a Inteligência.
Dessa forma, meu caro Bruno Enei, esta reunião não é, para mim,
um jantar de regozijo, mas um banquete funerário: o banquete funerário
de algumas esperanças e de algumas ilusões. Na minha ingenuidade,
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 435
INTERCÂMBIO CULTURAL
Iniciando nossa conversa, o professor fez questão de referir-se
à colaboração do Secretário da Educação, decisiva para concretizar sua
viagem ao Rio. Referiu-se ao sr. Vidal Vanhoni, destacando os esforços
que vem envidando no sentido de um maior intercâmbio cultural entre o
Paraná e os demais centros brasileiros fazendo com que sejam conhecidos,
fora dos limites do Estado, os nossos legítimos valores intelectuais. As
palavras são nossas: o professor é incorrigivelmente modesto. Fica,
entretanto, registrado o seu agradecimento.
CORDIALIDADE
– Qual sua mais forte impressão (favorável) trazida de sua recente
viagem?
– Tive muitas impressões fortes e favoráveis. Uma delas do
clima de simpática cordialidade entre professores e alunos, nas duas
grandes universidades cariocas. As relações entre discípulos e mestres
são as de amigos em estudo: ambos procuram o mesmo fim e é mútuo
o interesse em discutir problemas de cultura. Impressão igualmente
admirável causou-me o interesse da mocidade universitária pelo estudo
das culturas europeias, principalmente a francesa. É um interesse que
não se contenta em explorar superfícies, mas aprofunda-se no espírito
humano dos outros povos, com a mentalidade que considera uma língua
mais como humanidade do que como finalidade, pois, atrás das palavras
eles veem sempre almas.
ESTUDO DO ITALIANO
– O ensino da língua e da cultura italiana é feito, na Universidade
do Brasil, pela catedrática Aída Sirene Bianchini e por três assistentes. E
na Universidade do Distrito Federal, pela notável professora catedrática
Marcella Mortara, de quem tive oportunidade de assistir magníficas aulas,
orientadas pela mesma mentalidade humanística a que já me referi, e
que me parece o verdadeiro caminho para o estudo sério de qualquer
língua.
Evidencia-se que, no Brasil, há um quase total desconhecimento
do idioma e do pensamento italiano, ao contrário do que sucede em
relação à cultura francesa, tradicionalmente difundida neste País. Dois
fatores parecem-me responsáveis por esse estado de coisas: em primeiro
lugar a falta de uma política de difusão cultural por parte do governo
italiano. E, em segundo, o fato de não figurar o italiano entre as línguas
incluídas no currículo secundário.
Em consequência, o conhecimento que se tem no Brasil do
espírito da Itália não vai além do relativo contacto com a música popular
daquele país. – Mesmo entre os meios mais esclarecidos, salta-se de
Dante para D’Annunzio, ignorando que, entre os dois, existem vários
séculos de pensamento, arte e ciência. A maioria dos que se julgam
atualizados com a literatura italiana pararam em Papini, quando se sabe
que o recém- falecido filósofo foi o expoente de um período de decadência
há muito ultrapassado. E desconhecem um Ungaretti, um Quasimodo, um
Montale, um Levi e outros, representes do que há de melhor na literatura
de nossos dias.
O HOMEM
O professor, jornalista, crítico literário e ex-partigiano, Sr.
Bruno Enei, é filho do casal Dna. Natalina e Sr. Natale Enei (este de
saudosa memória), tendo nascido em Barra Bonita, Estado de S. Paulo,
no dia 8 de junho de 1908.
DENTRO DA VIDA
O menino Bruno Enei era o mais velho de seis irmãos, filhos
de um casal de lavradores, originário da região de Marche, na Itália,
imigrados para o Brasil no dia do casamento. Estudou na Escola
Pública de sua cidade natal – Barra Bonita – onde concluiu o curso
primário. Em 1919, logo após o término da I Grande Guerra, seus pais
desejaram volver à Itália e para lá viajaram acompanhados dos filhos.
Porém o ambiente de após-guerra, com suas misérias, o céu nublado de
novembro, o panorama da pátria castigada pela hecatombe chocaram
profundamente o espírito de Natale Enei. Três meses após retornavam,
definitivamente, ao Brasil. Mas, haviam tomado uma resolução:
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 439
O ESTUDANTE
Bruno Enei iniciou seus estudos como interno no Seminário da
cidade de Ferno, pois como estrangeiro que era não podia frequentar
curso mantido pelo governo. Posteriormente, transferiu-se para a cidade
de Gubbio, onde fez o ginásio e colegial, concluindo o curso secundário
em 1932. Contrariando a vontade de seus pais – que o desejavam médico,
ingressou na Universidade de Pisa, no curso de Letras e Filosofia, pois
sua vocação, seu grande ideal, era transferir-se para a Universidade de
Florença, a fim de cursar um ano para defender tese e obter o grau de
Doutor. Diplomou-se em 1936.
O PROFESSOR
Em 1937, fez concurso de títulos e provas para a Cadeira de
Letras (Italiano, Latim e Grego) no Ginásio de Gubbio. Aprovado,
iniciou a concretização de seu sonho – ser professor. Posteriormente,
fez novo concurso de títulos e provas para lecionar Italiano e Latim no
Liceu de Perugia (curso colegial). Fez novo concurso e ingressou como
Professor de Italiano e História no Instituto Magistrale Superiore de San
Genesio. Outro concurso levou-o à Cátedra de Italiano na Universidade
para Estrangeiros em Perugia. Nesta Universidade conheceu a aluna
brasileira (paranaense) a professora Eny Caldeira, que recebera uma
bolsa de estudos e cursava o Curso Especial de Montessori, naquela
Faculdade. Esse encontro seria um acontecimento de invulgar relevância
para o seu retorno ao Brasil. Com ela passou a aprender o português,
pois nos longos anos de ausência, num meio estrangeiro, o menino
havia esquecido o idioma natal. Já alimentava o desejo de retornar ao
Brasil, ansioso por integrar-se no processo de desenvolvimento cultural
da sua pátria, distante, mas nunca esquecida. A infância passada em
Barra Bonita, as cantigas de roda, aquela ampla liberdade, a família,
permaneciam na sua alma sensível e amorosa.
O RETORNO
Em janeiro de 1951, após renunciar aos seus cargos e títulos –
inclusive o direito à cidadania italiana, se assim o desejasse – perante
Bruno Enei
440 Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos
ATIVIDADE CULTURAL
Publicou, em 1954, o livro “La Poesia de Giuseppe Gioachino
Belli”. Quando na Itália, verteu para o italiano o livro de Bento Munhoz da
Rocha Netto – “Uma Interpretação das Américas”. Tem realizado várias
conferências, destacando-se as que pronunciou na Faculdade Nacional de
Filosofia, sobre “Estética e Crítica Literária” e na Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da Guanabara, versando sobre “Crítica Literária em
Relação à Literatura Italiana”. É sócio do Centro Cultural “Euclides da
Cunha”.
JORNALISTA
Na Itália foi Diretor do “Il Corriere de Perugia”, órgão do Comitê
de Libertação (movimento de resistência), ligado à 8a. Armada Britânica,
e colaborou na Revista Literária de Firenze. No Brasil colaborou no
“Estado de São Paulo”, “Gazeta do Povo”, “O Estado do Paraná”, “Jornal
da Manhã” e “Diário dos Campos”, na revista Anhembi.
Bruno Enei
Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 441
PARTIGIANO
Bruno Enei sempre acalentou na alma o sol da liberdade. Quando
a Itália entrou no conflito mundial, ao lado do nazismo, ele transferiu-
se para a França e integrou-se no Movimento de Resistência (Maqui),
participando de inúmeras ações, tendo sido ferido por duas vezes,
na França e nos Alpes. Retornou à Itália e filiou-se aos “Partigiani”,
dirigido pela Armada Britânica, através da “Allied Commision Patriots
Branch”. No posto de Major comandou o II Batalhão “Aldo Bologni”
de 1942 a 1945, tomando parte em todas as guerrilhas e emboscadas
visando debilitar as tropas nazi- fascistas. Entre essas ações destaca-
se: a Ação Armada sobre Triestina; ocupação da cidade de Pietraluga;
ataque às tropas alemãs na rodovia de Camporeggiano; libertação da
cidade de Gubbio, além de inúmeras passagens entre as linhas inimigas,
para fornecer informações aos aliados. Era o brasileiro anônimo,
lutando paralelamente com as Forças Expedicionárias Brasileiras,
contra o inimigo comum, contra o jugo opressor do nazi-fascismo.
A FAMÍLIA
Casou-se, em 10 de agosto de 1939, na cidade de Gubbio, com
a Srta. Maria Biancarelli, professora formada em Letras Clássicas,
pela Universidade de Roma, hoje brasileira naturalizada, lecionando
no Colégio Regente Feijó e na Faculdade de Filosofia. Do consórcio
nasceram os filhos Juliana e Ricardo (aluno do 20 ano científico no
Regente Feijó), ambos registrados como brasileiros na Embaixada
Brasileira na Itália.
MAIOR ALEGRIA
Considera sua maior alegria a oportunidade de dedicar-se à
juventude no trabalho da educação, contribuindo para a formação da
personalidade intelectual das gerações novas. Trazer para a juventude
do Brasil a sua experiência, o sentimento vivo de liberdade colhido num
ambiente de lutas, vibrar com esse anseio de cultura e desenvolvimento
que sente nos seus alunos, esse desejo de integrar-se na formação deste país
que tem para sua alma de idealista um dos maiores júbilos, compensando
todos os sacrifícios, as lutas da longa jornada, longe da Pátria e da família.
Dar algo de si pela juventude ávida de saber, considera a maior contribuição
que um homem possa almejar oferecer à coletividade.
Da minha vedeta
Bruno Enei
Álvaro Augusto Cunha Rocha
Perfis da cidade
Crônica de Vieira Filho