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que-o-ensino-da-lingua-inglesa-nao-deve-ignorar-
fatores-culturais

Publicado em NOVA ESCOLA 28 de Novembro | 2018

Para se aprofundar

BNCC: por que o ensino


da Língua Inglesa não
deve ignorar fatores
culturais
Em entrevista, especialista defende o ensino de línguas
estrangeiras que inclui os aspectos culturais de cada
idioma

Em entrevista à Nova Escola, a professora da Universidade Federal da


Integração Latino-Americana, Laura Fortes, doutora em Letras pela Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
(FFLCH/USP), aprofunda o conceito e explica como o contato com outros
idiomas ajuda a ampliar o repertório do aluno, trazendo uma nova
perspectiva sobre a própria cultura e até mesmo sobre as posições
construídas social e historicamente.

O aluno que se apropria de uma segunda língua tem recursos para ler o
mundo. Essa é uma afirmação pertinente? Em que sentido?
Laura Fortes: Acredito que, se o aluno passou pelo processo de
aprendizagem de línguas com foco em suas diferentes práticas sociais – tanto
materna quanto estrangeira –, poderá posicionar-se de modo engajado em
diversos campos de atuação em nossa sociedade contemporânea. Nesse
sentido, o contato com outras línguas poderá ampliar esse campo de atuação,
possibilitando aproximações com outros efeitos de sentido, produzidos
histórica e culturalmente. Por exemplo, em guarani, a palavra mba’eapo pode
ser traduzida como trabalho ou arte, porque, segundo sua cosmovisão –
modo de ver o mundo —, todo trabalho realizado é interpretado como arte e
beleza. Em inglês, um dos exemplos mais emblemáticos é o do termo nigger,
que, em contraste com a designação black, vincula-se a memórias
historicamente construídas pelas grandes violências sofridas durante a
escravidão e, mesmo em tempos atuais, carrega as marcas desses processos
de sofrimento e discriminação.

A partir de uma nova perspectiva, trazida do contato com uma língua


estrangeira, o aluno também passa a ver a sua própria língua materna e
cultura de um jeito diferente? Pode explicar isso?
Há um texto conhecido da psicanalista Christine Revuz em que ela afirma que
"aprender uma língua é sempre, um pouco, tornar-se um outro". Esse “outro”
é o exterior e, ao mesmo tempo, o interior, que me constitui, pois só existo a
partir do olhar do outro (família, amigos, colegas de trabalho e de escola etc.).
Nesse sentido, o contato com outras línguas pode ampliar o repertório de
modos de ver e de compreender o mundo, deslocando o olhar, trazendo uma
aproximação do sujeito ao diferente e, ao mesmo tempo, uma nova
perspectiva sobre sua própria cultura, que já não lhe é tão transparente. Uma
vez que aprende que sua perspectiva do mundo não é a única, compreende e
se apropria de outros conceitos e visões que, consequentemente,
transformam posições construídas anteriormente.

Nesse processo de apropriação de uma outra língua, é importante que o


aluno consiga se apropriar também de elementos da cultura, para que a
língua tenha o valor formativo que a Base se refere?
A divisão de língua e cultura tem sido discutida por diversas pesquisadoras
no campo da linguística aplicada, dentre as quais se destaca a Professora
Maria José Coracini, da Unicamp, que defende a ideia de “língua-cultura”. Ou
seja, não há separação entre língua e cultura, pois, ao enunciar algo por meio
da língua, o sujeito já está, mesmo que inconscientemente, fazendo sentido a
partir da cultura, isto é, a partir de conceitos, valores e ideologias socialmente
e historicamente construídos.

Como o professor deve atuar para ensinar além da língua, a cultura, ou


uma nova forma de ver e pensar o mundo?
A resposta a essa pergunta constitui um grande desafio, pois o ato de ensinar
vai além das escolhas pedagógicas, metodológicas e didáticas. O ato de
ensinar é dinâmico e, portanto, construído desde o planejamento até as
interações em sala de aula e fora dela. Entretanto, eu arriscaria dizer que a
concepção de língua-cultura, por exemplo, ou outras concepções de língua
mais abrangentes (tais como as elaboradas pelas teorias de letramentos)
possam constituir caminhos possíveis para a reflexão e atuação do professor
no contexto de ensino formal de línguas.
A língua, inclusive a estrangeira, tem um valor linguístico, mas também
um valor humano. Como esse último aspecto da língua deve estar
presente nas aulas?
São dimensões que não se separam, pois são socialmente construídas. Daí a
necessidade de abertura à diversidade linguística e cultural, pois é por meio
dessa compreensão que se pode aprender o outro em sua diferença e,
justamente nessa diferença, compartilhar, aprender, construir outros olhares,
outros posicionamentos. Nesse sentido, a BNCC apresenta uma visão muito
restrita da língua como valor humano, pois limita as experiências de contato
com as línguas estrangeiras apenas à língua inglesa.

Como levar aos alunos esse conceito, na prática?


Não há um modo único de proposta didática. Mas acredito que uma forma
de trabalhar com esse conceito em sala de aula poderia ser uma abordagem
intercultural das diferentes línguas-culturas em sua diversidade, ou seja,
oportunizar o contato — no sentido do letramento — com diferentes modos
de fazer sentido em outras línguas-culturas, por meio de textos verbais e não-
verbais diversos, passando por uma grande variedade de gêneros discursivos,
sempre levando em conta que são produzidos e colocados em circulação por
determinadas práticas sociais. Nessa perspectiva, os conteúdos não podem
ser vistos como estanques e disciplinares, mas como dinâmicos e articulados
de modo interdisciplinar, uma vez que as práticas de linguagem — línguas-
culturas — são atravessadas por acontecimentos históricos, construção (e
desconstrução) de conhecimentos em diversas áreas, processos econômicos
e políticos etc.

O modo de avaliar também precisa mudar?


A meu ver, as avaliações devem ser coerentes com os conteúdos abordados e
devem explicitar ao aluno os seus percursos de aprendizagem, com critérios
coletivamente construídos, contribuindo para sua formação e para seu
processo de aprender a aprender.

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