O capital social

1
como motor do
desenvolvimento
sustentável
Fernando Curi Peres*

D
esenvolvimento sustentável é um termo abrangente que
incorpora as diversas dimensões da realização pessoal dos
membros dos diferentes grupos populacionais. Ele vai muito
além do crescimento econômico, embora este seja um pré-
requisito fundamental para se alcançar aquele. Inclui
dimensões como liberdade de expressão e direitos às diversas
formas de dignidade nas relações sociais, associadas a um
mínimo de acesso a bens e serviços disponíveis a outros
grupos populacionais ou a outros membros de seu grupo. A
sustentabilidade do desenvolvimento está associada ao grau
de agressão à natureza que as diferentes tecnologias
implicam e à manutenção das taxas de crescimento
induzidas por novos investimentos em algum estoque de
capital. Embora quase toda atividade econômica implique
alguma agressão ao ambiente, a qualidade de vida das
gerações futuras pode ser comprometida quando ferimos a
natureza de forma que ela não consiga regenerar-se.
O grande desenvolvimento científico-tecnológico que
caracteriza a história contemporânea traz consigo alguns
elementos que, aos mais afoitos, sugerem perspectivas

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malthusianas para a humanidade. De um lado, a
globalização aumenta as expectativas ou o grau de aspiração
das pessoas, as quais tomam como referência a qualidade de
vida das populações mais ricas. Globalização que está
associada a fenômenos derivados da facilidade de dispersão
de informações, à migração de fatores de produção,
principalmente de tecnologias, poupanças e capitais físicos, e
à universalização dos mercados. Por outro lado, é
cientificamente aceito que, com as tecnologias atualmente
disponíveis, é impossível estender a toda humanidade o padrão
de consumo atualmente desfrutado pelas populações ricas. Nas
palavras do renomado ecologista Dr. Paulo de T. Alvim,
falando dos resultados da famosa reunião científica de Haya,
em 1994:
“A solução implícita a que chegaram insinua a criação de um
peculiar programa internacional que seja capaz de manter os
pobres na situação em que se encontram, uma vez que, como
era de se esperar, não lhes foi possível encontrar qualquer país
rico com sincera aspiração de se tornar pobre.” 1
Ora, sabe-se que a produção de alimentos pela agricultura
poderia ser suficiente para eliminar a fome no mundo, além
de produzir considerável volume de fibras e outras matérias-
primas para a indústria. No entanto, ainda persistem
regiões ou grupos populacionais famintos, mesmo existindo
recursos e conhecimentos suficientes para alimentar a todos.
Para os otimistas, assim como os conhecimentos científicos
indicaram o caminho da solução dos problemas
Malthusianos da fome, algum avanço na ciência,
possivelmente com a descoberta de novas fontes de energia
aproveitável, deverá apontar para novas soluções na extensão
dos níveis atuais de consumo dos ricos para todo o mundo.
Mas apontar soluções possíveis ou viáveis não quer dizer que
elas serão conseguidas automaticamente.
Os economistas dividem os fatores de produção em cinco
estoques de capitais: financeiro, físico, natural, humano e
social. Os estoques de capitais financeiros e físicos estão
associados à capacidade de poupança dos grupos. Neles está
embutida uma importante fração do conhecimento
tecnológico dos grupos. Os estoques de capitais naturais
medem os ativos que a natureza nos deu e formam a base
física sobre a qual edificamos nossas sociedades. O estoque de
capital humano está associado à capacidade produtiva das
pessoas. Depende, portanto, das competências dos indivíduos,
medidas por seus conhecimentos, habilidades e atitudes.
Investimentos em educação e saúde são formas de
aumentar esses estoques. Finalmente, o capital social tem
sido descrito como “a cola que mantém agregado o tecido
social” das nações. Trata-se de um bem público que pode
aumentar significativamente a eficiência das transações,
reduzindo seus custos.
Neste artigo, tratamos dos investimentos em capital social no
crescimento das economias, dando condições para o
desenvolvimento sustentável. Uma importante característica
dos cinco estoques de capitais é que eles podem substituir ou
ser parcialmente substituídos em seus efeitos de provocar
crescimento econômico e, conseqüentemente, permitir o
desenvolvimento. O exemplo mais marcante dessa
possibilidade de substituição entre capitais é o do Japão, que
se transformou na segunda maior economia do planeta,
mostrando altos índices de desenvolvimento, com um estoque
de capital natural relativamente pobre. De fato, a
possibilidade de investimentos em determinado estoque de
capital pode se apresentar como a alternativa mais atrativa
em certas situações e o aumento nos estoques de um tipo de
capital pode funcionar como fonte de atração para
investimentos em outras formas de capital. Regiões de altos
estoques de capitais humanos e sociais tendem, por exemplo, a
receber muito mais investimentos de capitais físicos e
financeiros. Ou, vendo o problema por outro ângulo, nas
regiões de baixos estoques de capitais sociais e humanos, os
investimentos em capitais físicos e sociais tendem a ser
filtrados por subgrupos populacionais privilegiados,
reduzindo sua capacidade de gerar crescimento.
Existe, gerindo os setores agropecuários das economias, uma
t
1
ALVIM, Paulo de T. “Desenvolvimento Sustentável: Alternativa do Terceiro
Mundo” Revista Preços Agrícolas, agosto de 1999, p. 3-4
25
“lei de ferro” que limita a capacidade do setor de criar
empregos diretos e que, conseqüentemente, desenha para a
agricultura um papel de contínuo perdedor de gente. Isso
acontece porque as tecnologias mecânicas e biológicas
causam aumentos sustentados na produtividade do
trabalho permitindo que, a cada dia, um número maior de
pessoas possa ser alimentado e a indústria abastecida de
certas matérias-primas por um número cada vez menor de
trabalhadores. Foi esse avanço contínuo dos conhecimentos
científicos que derrotou a visão malthusiana da fome.
Alguns antecedentes relevantes
No Brasil, o início do processo de retirada das populações do
campo aconteceu antes da introdução da agricultura
moderna (derivada do conhecimento científico). Ele começou
como uma escolha político-social que caracterizou nossa
sociedade na maior parte do século XX. Historicamente pode-
se indicar a década de vinte como o período de maturação das
idéias urbano-industriais — Semana de Arte Moderna de
1922, Coluna Prestes e o Movimento Tenentista — que
orientaram nosso processo social durante a maior parte do
século. Essas idéias transformaram profundamente nossa
sociedade que era, até então, essencialmente agrária.
O Movimento Tenentista, como o nome indica, surgiu no seio
da jovem oficialidade do Exército e da Marinha. Eles
formavam, naturalmente, um grupo privilegiado em termos
educacionais no País. Suas bandeiras refletiam os principais
valores democráticos das sociedades contemporâneas: extensão
a toda população, inclusive às mulheres, do direito ao voto;
industrialização e urbanização do País; educação para todos;
moralização das ações públicas dos três níveis de governo e,
acima de tudo, um forte componente nacionalista em sua
visão de desenvolvimento. Essa postura nacionalista teve fortes
implicações nas opções econômicas que se seguiram às
Revoluções de 30 e 32, as quais marcaram o início da
mudança de poder na sociedade brasileira.
Nos primeiros 15 anos de governo de Getúlio Vargas, foram
assentadas as bases para a industrialização-urbanização que
26
iria acontecer, num ritmo muito forte, no restante do século. A
agricultura tinha, à época, próximo de 60% do PIB do País e
cerca de 80% da população. Para o processo de
industrialização-urbanização que se desejava, seriam
necessários grandes estoques de capitais físicos, financeiros e
humanos. Estes investimentos (correspondentes aos aumentos
nos estoques) teriam que vir do exterior ou do setor agrícola.
Embora a maior parte das máquinas, equipamentos e
tecnologias em geral para permitir a instalação das indústrias
tivesse que vir do exterior, ela deveria ser financiada por
recursos internos, já que o sentimento nacionalista dos
tenentes, e conseqüentemente da sociedade, era hostil ao
“capital estrangeiro”. Ora, as poupanças e recursos humanos
eram mais abundantes na agricultura e dela deveriam,
então, vir aos setores urbanos.
Na Europa Ocidental e na América do Norte, os recursos
migraram do setor rural para os urbanos via forças de mercado.
No Brasil, a praga inflacionária que secularmente nos assolava
dificultava o bom funcionamento dos mercados, principalmente
o de capitais. Na ausência de mecanismos de mercado que
encaminhariam as poupanças e as pessoas para as atividades
industriais dos centros urbanos, esses recursos tiveram que ser
extraídos, “ou expropriados”, via políticas específicas. Algumas
políticas foram desenhadas de forma a extrair poupanças e
outras, para extrair recursos humanos da agricultura.
Entre as medidas destinadas a extrair poupanças da
agricultura, pode-se citar as três mais notáveis, denominadas
políticas dos três ts: (1) a subvalorização das taxas de câmbio,
que foi a mais efetiva; (2) a taxação das exportações, que
“Existe, gerindo os setores agropecuários
das economias, uma ‘lei de ferro’ que
limita a capacidade do setor de criar
empregos diretos e que, conseqüentemente,
desenha para a agricultura um papel
de contínuo perdedor de gente”
eram formadas unicamente por produtos da agricultura; e
(3) o tabelamento dos preços dos produtos agrícolas,
subsidiando a indústria através da manutenção de baixos
preços para os alimentos, à época o principal componente dos
gastos dos seus trabalhadores. Com a subvalorização das taxas
de câmbio, os produtos que o País vendia ao exterior rendiam
poucos recursos em moeda nacional ao produtor e, de outro
lado, custavam poucos recursos aos importadores. Foram
criados inúmeros entraves fiscais e burocráticos para impedir a
importação de bens de consumo, mas mantidas as vantagens
para os importadores de máquinas, equipamentos e insumos
para os setores industriais. A taxação das exportações
produziu volumosos recursos governamentais, que puderam ser
destinados ao financiamento de novas iniciativas industriais.
Finalmente, o tabelamento dos preços dos produtos da
agricultura, expediente extensivamente usado durante a
segunda metade dos anos cinqüenta e início dos sessenta,
funcionava como uma clara transferência de renda da
agricultura para os setores urbanos: já que a indústria
nascente não podia pagar os reajustes de salários, requeridos
pelo processo inflacionário e que os operários urbanos
mereciam, a agricultura os pagava!
A nova orientação política inaugurada com a vitória do
Movimento Tenentista e implementada por Getúlio Vargas foi
muito eficiente na indução da transferência de recursos
humanos do campo para as cidades. Pode-se citar dois
instrumentos brilhantemente utilizados para conseguir esse
propósito: (1) a introdução de uma atraente legislação social
nas áreas urbanas do País e (2) o diferencial na qualidade
entre os sistemas educacionais públicos rural e urbano. A
legislação social foi introduzida no Brasil através dos
chamados Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs), dos
quais o dos marítimos foi o primeiro, criado em 1933. O
IAPB, Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Bancários, o
IAPC, Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Comerciários,
o IAPI, Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriários,
e muitos outros foram criados até o início dos anos quarenta.
A característica comum entre eles era que todos se destinavam
ao atendimento do operariado urbano. Forneciam
aposentadoria, assistência médica e, muitas vezes, assistência
habitacional aos seus trabalhadores e às respectivas famílias.
Isto deve ser contrastado com o fato de só no início dos anos
setenta, portanto três décadas após, os trabalhadores do campo
terem acesso a um incipiente sistema de seguridade social, com
o surgimento do Funrural, que passou a oferecer meio salário
mínimo de aposentadoria e alguma assistência médica aos
trabalhadores rurais do País.
O sistema educacional rural público brasileiro sempre foi de
qualidade muito baixa. Mesmo na época em que o sistema
público de alguns estados era de boa qualidade, o sistema
rural já era muito ruim. Os professores recém-formados que
queriam ingressar na carreira do magistério tinham, em
geral, que passar algum tempo lecionando em escolas rurais,
até completar pontos suficientes para conseguir suas vagas
nas cidades. Desta forma, todo o sistema funcionou
tripulado somente por trainees que estavam ali esperando a
oportunidade de conseguir suas vagas nas escolas urbanas.
Ora, sendo honestos com suas convicções íntimas, os únicos
valores que estes professores poderiam comunicar aos
estudantes estavam altamente viesados no sentido de valores
urbanos. Some-se a isto o fato de as escolas rurais terem
funcionado, e continuarem ainda hoje a funcionar, em
condições precárias na maioria dos casos: os prédios escolares
são de baixa qualidade e de layout pobre; o número de
professores é pequeno, obrigando os alunos de diferentes
idades/graus a atenderem, simultaneamente, a mesma
classe; além do mobiliário e dos equipamentos educacionais
serem precários ou em geral ausentes, como ocorre com as
bibliotecas, por exemplo.
Como os sistemas educacionais rurais públicos funcionam
como parte de sistemas maiores que incluem os urbanos, seus
objetivos estratégicos, inclusive as metas e processos utilizados,
refletem objetivos que visam à juventude urbana. Ora,
nossos sistemas educacionais públicos sempre foram altamente
centralizados, inicialmente obedecendo as diretrizes
nacionais e, mais recentemente, as estaduais. Os programas
nacionais e/ou estaduais eram desenhados de forma a
oferecer o que era visto como a melhor alternativa para
t
27
alunos das maiores cidades, onde estavam localizadas as
capitais estaduais e federal. Como conseqüência, os
programas das escolas públicas rurais de 1º e 2º graus eram
pouco adaptados às necessidades de vida de jovens que
eventualmente quisessem permanecer no campo. Os
calendários escolares não eram apropriados à vida rural —
no Centro-Leste, por exemplo, as escolas davam provas finais
aos estudantes na época em que seu trabalho era mais
necessário no campo — e o conteúdo programático preparava
os jovens para deixar o meio rural.
Mais recentemente, os governos estaduais e municipais estão
reconhecendo a baixa qualidade dos sistemas rurais de
educação e estão, literalmente, acabando com esse tipo de
educação. Os estudantes de áreas rurais estão sendo
transportados para as cidades para assistirem às aulas nas
escolas urbanas. Esta postura tem caracterizado, inclusive,
governos que têm discursos favoráveis a reformas agrárias,
destinadas a manter no campo frações maiores de suas
populações, apontadas como mão-de-obra excedente pelas
forças de mercado. Funcionando desta forma, os sistemas
educacionais rurais públicos continuam desempenhando o
papel de importantes indutores de migração. Concretamente,
não há nada de errado com esta atitude política dos governos.
De fato, é bastante apropriado preparar os jovens para
deixarem as atividades agropecuárias, já que, como foi dito, há
um excedente populacional nas atividades agropecuárias que
deverá ser realocado. O problema é a inconsistência de discursos
populistas: falam em realocar populações urbanas de volta
na produção agropecuária, mas ao mesmo tempo
implementam políticas educacionais destinadas a estimular
a migração para as cidades.
O resultado das medidas destinadas a extrair recursos da
agricultura para financiar e tripular a urbanização e
industrialização mostra que o objetivo principal foi
atingido: o País tem hoje uma grande parte de sua
população vivendo nas cidades. Os custos associados àquelas
políticas não foram, a nosso ver, desprezíveis. Elas deixaram
seqüelas que têm alto custo social. A primeira refere-se aos
valores anti-rurais desenvolvidos como justificativa para a
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extração dos recursos da agricultura durante um período
tão longo. Como foi possível penalizar um setor importante
da economia por um período de muitas décadas
consecutivas? Politicamente a sociedade teve que desenvolver
um conjunto de valores hostis à vida rural, como forma de
justificar aquelas medidas. Segundo esses valores, a
agricultura foi associada a um setor retardatário,
culturalmente atrasado, contrário aos valores modernos da
sociedade, com empresários que queriam manter o atraso de
seus trabalhadores para melhor explorá-los e aversos às
modernas relações de trabalho. Ora, visto assim, estavam
justificadas as políticas destinadas a extrair os recursos do
setor. Além disso, isto certamente agravou a seletividade da
migração rural-urbana ocorrida no período. O melhor
capital humano foi o que migrou primeiro, atendendo aos
apelos urbanos dos valores sociais anti-rurais desenvolvidos.
O problema de auto-estima das populações rurais do País
também deve ser, em parte, debitado à conta dos valores
anti-rurais da sociedade.
Eventuais problemas de desabastecimento surgiram durante
o período de forte extração dos recursos da agricultura. Os
governos responderam com a criação de sistemas de subsídios
que transferiram rendas para uma fração de agricultores
privilegiados em termos empresariais. Políticas de crédito
subsidiado e de preços mínimos permitiram o surgimento de
uma agricultura dicotomizada no País. Uma agricultura
tradicional, pobre e continuamente em processo de
empobrecimento, e uma outra agricultura, moderna e
capitalizada. Junto com a aceleração da inflação e o
acirramento das políticas corporativistas, elas certamente
contribuíram para o agravamento da perversa distribuição
de renda da economia.
A segunda seqüela deixada pelas políticas de cunho
“tenentista” tem a ver com o sentimento nacionalista do
movimento. Trata-se da criação das empresas estatais como
reação à alternativa dos capitais estrangeiros. Sob a
pressuposição de que o que era do governo era mais justo,
foram criadas empresas públicas que logo adquiriram
características especiais. De um lado, elas criaram um
corpo de funcionários privilegiados que ganhavam salários
e benefícios muito maiores que os existentes nas empresas do
setor privado. De outro, sua direção era escolhida com
critérios políticos, muitas vezes com sérios prejuízos à sua
eficiência administrativa. Isto exigia um contínuo aporte
de recursos governamentais para a manutenção dessas
empresas que eram, conseqüentemente, pouco competitivas.
Muitas vezes essa pouca competitividade era mascarada
por poderes monopolistas ou por favores especiais do Estado
em suas atividades operacionais. Desta forma, foi reforçada
uma arraigada cultura corporativista, que tem justificado,
perante a sociedade, a concessão de privilégios diversos a
grupos sociais politicamente poderosos, especialmente como
resultado de ações governamentais.
As políticas que moldaram a sociedade brasileira no século
XX têm traços que precisam ser entendidos e considerados
em ações que visam ao desenvolvimento sustentável. Os
valores anti-rurais da sociedade ainda hoje justificam a
penalização do setor agrícola, transferindo rendas para os
urbanos, como aconteceu recentemente com as políticas
têxtil e algodoeira. Para garantir as rendas e empregos na
indústria têxtil, foi permitida a importação de algodão sem
tarifas, baixando, conseqüentemente, o preço interno do
produto. Enquanto o algodão era importado sem custos
alfandegários, as compras externas de tecidos eram taxadas
pesadamente. Além disso, o algodão importado foi
disponibilizado para a indústria com financiamento longo
(um ano ou mais) e a taxas de juros muito baixas (6-8%
ao ano), enquanto as taxas reais de juros internas eram
superiores a 40-50% ao ano. Nesta situação, o resultado
não poderia ser outro se não a falência de um grande
número de pequenos produtores de algodão, que tinham na
cultura sua principal fonte de renda. As estimativas mais
conservadoras indicam que pelo menos 400 mil famílias
produtoras perderam seu principal sustento. Hoje, a
produção de algodão no Brasil está se restabelecendo em
grandes empresas da região do cerrado e com alto grau de
mecanização. Embora pudesse-se argumentar que esta
substituição viria a acontecer de qualquer maneira, ela
não precisaria ter acontecido com a velocidade observada e,
portanto, com custos sociais tão altos. Um outro exemplo
pode ser dado pelo comércio externo de couros. A recente
política de taxação da exportação de couros, para favorecer
a indústria de calçados, deverá causar realocações de renda
sobre as quais a sociedade não se manifestou ou sequer tem
consciência das verdadeiras implicações.
A pesada interferência do Estado na alocação das rendas/
produção permitiu o surgimento de um fenômeno muito
perverso na nossa sociedade. Um grande número de leis
foram promulgadas, mesmo sabendo-se que não seriam
cumpridas. Elas, no entanto, davam ao funcionalismo
público e aos políticos um enorme poder de ameaça,
estimulando a corrupção e, conseqüentemente, reduzindo os
estoques de capital social da sociedade. Finalmente, a
cultura corporativa da sociedade permitiu que grupos
privilegiados exaurissem os recursos do Estado, praticamente
impossibilitando-o de oferecer serviços de qualidade às
populações, especialmente às mais carentes. Hoje, além dos
serviços governamentais serem de baixa qualidade, as
estruturas burocráticas/corporativas filtram qualquer
tentativa de melhorá-los, apropriando-se dos recursos
adicionais eventualmente alocados para aquela finalidade.
O investimento em capital social
e o desenvolvimento sustentável
Que iniciativas podem ser realisticamente implementadas
no sentido de estimular o desenvolvimento sustentável? O
desenvolvimento pressupõe o crescimento econômico. Para
promover o crescimento, é necessário investir no aumento
dos estoques de quatro tipos de capitais — financeiro, físico,
humano e social. O estoque de capital natural é
relativamente fixo para cada economia. Poucos casos, como
os que envolvem cursos d’água de regiões de fronteira ou as
conquistas territoriais, podem resultar em mudanças de
seus estoques. Uma outra maneira é através da incorporação
de conhecimentos científicos, que trazem novos valores para
recursos cujas utilidades eram, até então, desconhecidas. Os
t
29
 FOTOS ADI LEITE
capitais físico e financeiro são percebidos pelas populações como os
mais importantes na promoção do crescimento. Novos
investimentos nesses estoques geram empregos imediatos e
melhorias facilmente percebíveis na qualidade de vida das
populações. O problema com esses investimentos é que seus efeitos
podem ser efêmeros, uma vez esgotada a fonte de novos recursos.
Quando os investimentos não estão associados a novas atividades
econômicas viáveis, ou competitivas, no mundo que tende para a
2
globalização, seus efeitos são rapidamente dissipados e a
tendência é o retorno para a situação anterior.
Investimentos em capitais humanos e sociais estão mais
intimamente ligados ao crescimento de médio e longo prazo. Isto
porque estes investimentos têm mais longo prazo de maturação.
“Existe um enorme potencial empreendedor
No entanto, seus resultados são mais estáveis, garantindo taxas na população brasileira, especialmente
de crescimento duradouras. Um aspecto interessante quanto aos
na população rural. (...) Na agricultura
investimentos em capitais humanos e sociais é que eles dependem
menos de bens e serviços importados que os investimentos em a parceria é uma instituição
capital físico, por exemplo. De fato, os investimentos mais
secular onde o dono do trabalho participa
importantes nesses estoques são conseguidos por iniciativas das
próprias comunidades, as chamadas grass root ou de baixo dos riscos do empreendimento”
para cima. Isto é particularmente alentador na situação
presente de Estado falido. As comunidades podem desenhar seus medidas políticas desestabilizadoras que produziram grandes
planos de investimento para aumento nos estoques desses capitais prejuízos à economia. A tabela de correção das dívidas
sem depender de grandes financiamentos governamentais. previamente contratadas que caracterizaram o Plano
Com a acirrada disputa pelos recursos governamentais entre os Cruzado, na segunda metade dos anos oitenta, foram
diversos setores da sociedade/economia, a agricultura não pode responsáveis por uma enorme fuga de divisas do País. Ao
ter muitas ilusões de que venha a receber uma parcela contrário de residentes da Argentina, Venezuela e México, que
significativa dos investimentos públicos. Elas têm que atrair os tinham grandes quantidades de recursos depositados em bancos
novos investimentos oferecendo boas oportunidades aos estrangeiros, os brasileiros mantinham seus recursos aplicados
investidores privados. Que elementos são importantes nesse aqui. Após a quebra geral dos contratos do Plano Cruzado,
processo de atração? Os estoques de capitais humano e social são grandes quantidades de recursos de residentes no País foram
fundamentais neste caso. Altos estoques de capital social enviadas para depósitos em paraísos fiscais, trazendo inúmeros
garantem a estabilidade institucional que reduz os riscos dos prejuízos às nossas contas externas e, em conseqüência, ao
novos investimentos. Em sociedades com instituições instáveis, as desempenho do resto da economia. O envio de recursos para
incertezas vão muito além dos riscos normais de mercado e os depósitos e aplicações no exterior foi incrementado como
capitais tendem a fugir dessas situações. Desta forma, as resultado dos confiscos do plano implementado pelo governo
perspectivas de quebras de contratos entre as partes funcionam Collor, no início dos anos noventa. De maneira semelhante, os
como fortes inibidores de novos investimentos. mais recentes movimentos no sentido de não-pagamento de
No Brasil tivemos, em nossa história recente, uma série de nossa dívida externa certamente resultariam em enormes

30
prejuízos para a economia se a sociedade brasileira tivesse agido
de forma irresponsável, como tinha sido sugerido pelos
patrocinadores da proposta de política.
Altos estoques de capital social dependem, fundamentalmente,
de confiança entre as pessoas. A confiança tem o atributo da
transitividade: por confiar em alguém que por sua vez confia
em outro, eu posso também confiar nessa terceira pessoa. Onde
é grande a confiança entre as pessoas, os custos das transações e
da informação são baixos. Um interessante exemplo desta
redução de custos é dado pelo sucesso dos programas de
microcrédito em certas regiões rurais, onde é muito caro para
o sistema bancário obter informações cadastrais tradicionais.
Nessas regiões, as famílias conhecem bem aqueles que merecem
crédito e que irão, com maior probabilidade, honrar seus
compromissos financeiros. Em regiões de grandes estoques desse
capital, as iniciativas grupais são facilitadas e o espírito cívico
é aguçado. Portanto, para investir no aumento desses estoques,
é necessário aumentar as ações grupais e desenvolver o civismo
das pessoas. Ações grupais são estimuladas quando criamos
grupos horizontais para enfrentar os problemas e melhorar a
qualidade de vida das comunidades. A criação de clubes de
serviços, clubes esportivos, associações gremiais, grupos artísticos
e educacionais, organizações não governamentais diversas e
outros grupos formais destinados a melhorar a vida das
pessoas, institucionalizados ou não, são exemplos de ações que
aumentam os estoques de capital social de uma comunidade.
O civismo é uma dimensão do capital social que dificulta seu
investimento em nosso País, pelo menos nas relações da
população com os governos. Isto decorre de fatos como o
mencionado anteriormente, de promulgação de leis para não
serem cumpridas ou para serem cumpridas só por alguns. Um
exemplo é o caso da carga tributária total dos nossos três níveis
de governo. Estima-se que a taxação total (total de impostos e
taxas devidos aos três níveis de governo) da nossa economia
corresponde a cerca de 60% do PIB. A arrecadação efetiva foi
de cerca de 32% do PIB no ano passado. A diferença é uma
medida do grau de informalidade (ou de corrupção) da nossa
economia. Como nenhum economista sério acredita que as
empresas e famílias suportariam pagar toda a carga devida,
isso funciona como um mecanismo de depreciação dos estoques
atuais de capital social e inibe novos investimentos. É um
importante instrumento de poder à disposição de funcionários
públicos e de políticos e um grande estimulador de relações
clientelísticas entre estes e uma parte da população.
É uma pena que nossa tradição legal funcione de modo a
estimular a informalidade na economia. Existe um enorme
potencial empreendedor na população brasileira,
especialmente na população rural. Estudos recentes, relatados
pelo Global Entrepreneurship Monitor, mostram que o País
está entre os primeiros do mundo em espírito empreendedor.
Na agricultura, a parceria é uma instituição secular onde o
dono do trabalho participa dos riscos do empreendimento. A
correspondente instituição urbana — as firmas terceirizadas
— surgiu só recentemente com o aumento da competição entre
as empresas, resultado das forças que causam o fenômeno da
globalização. Assim, é preciso aproveitar esta característica
cultural dos nossos cidadãos, aumentando as oportunidades
derivadas das suas iniciativas empresariais. É fundamental,
portanto, que nossa legislação tributária seja reformada de
maneira inteligente para evitar a informalidade e estimular
o desenvolvimento do civismo.
Finalmente, uma palavra sobre as implicações da ausência de
democracia nos estoques de capital social. Regimes não
democráticos necessitam, por condição de sobrevivência,
quebrar as relações de confiança entre os indivíduos. Com
baixos graus de confiança, os grupos não se formam e,
conseqüentemente, não constituem ameaça aos dominadores.
Uma importante medida dos governos autoritários é a criação
de polícias secretas que espalham a desconfiança entre os
indivíduos, impedindo que os grupos se formem e venham,
futuramente, a ameaçar o poder daqueles governos.
Desenvolver a democracia é, portanto, uma importante forma
de investimento em capital social. 8
*
Prof. Titular do Departamento de Economia, Administração
e Sociologia da Esalq-USP, Piracicaba, SP
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