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123 AFOME NA OBRA DE JOSUE DE CASTRO —CONSCIENCIA E CIENCIA DE UMA TRAGEDIA* Eliab Barbosa Gomes Prof, do Dep. de Ciéncias Humanas e Filosofia Coordenador do Comité da Agao Cidadania da UEFS Mestre em Sociologia 1 — ACONSCIENCIA DA FOME E lastimavel que a meméria do brasileiro se volte para as futilidades. Todos, criangas, jovens, adultos e velhos, j4 ouviram falar em Pelé, Garrincha e Jairzinho. ‘Os meios de comunicacao estéo ai para exaltar os seus feitos. Mas quem se lembra de algum escritor ou cientista brasileiro? Muitos se destacaram em outros paises por suas obras, mas so anénimos aqui dentro. Deles na se fala nem se escreve. Esto condenados ao esquecimento. Hoje, tentamos romper a barreira do siléncio imposta aos nossos intelectuais e rememoramos a obra de Josué de Castro, Fazemo-lo no intuito de contribuir para © debate sobre um dos grandes problemas que nos aflige, a fome. Alids é inconce- bivel que, ao se instalar comités dedicados a,luta contra a fome no pajs, nao haja mengéo ao nome de Josué de Castro. ‘Oferecemos & comunidade académica, um breve roteiro de suas principais ‘obras, deixando que Josué de Castro fale sobre as mesmas. Nao se trata de analise critica, mas de um simples invent4rio sobre a fecunda obra deste escritor nordestino, que teve seus tiltimos anos marcados pela nostalgia. Longe do pais, por forga do golpe de 64, confessa aos amigos antes de morrer ~ “néo se morre s6 de enfarte ‘ou de glomero-nefrite crénica... Morre-se também de saudade”. Em 23 de selembro de 1973, deixa de ter saudades para deixar saudades, morre aos 65 anos. Se vivo e perguntado pelo dia e cidade do seu nascimento, Josué de Castro por certo se expressaria desta forma; Nascia 05 de setembro de 1908, na cidate do Recife, que ¢ sob certos aspectos a Hong iKongda América, com asuamisériaacumulada empastadaneste grupode has que futuam sonolentas, entre os braces dos dos ios: 0 Caparibe e © Beberibe. Foi orioo meu primeio professor deistéria do Nordeste, da histéria desta terra quase sem tistéria, A verdade é que a historia dos homens do Nordeste me entrou mais pelo lhar do * Este trabalho foi apresentado na Vill Jornacia Universitaria da UEFS, denominada Jornada, Josué de Castro, Ago da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, em 14 de dezombro de 1993, ‘306 0 litulo - Josué de Castro por Josué da Castro. Sitientibus, Feira de Santana, n.12, p.123-429, 1994 124 que pelos owvidos. Entrou-me por dentio dos mous olhos vidos de crianga sob a forma ddestas imagens que estavam lange de serem claras ¢ risonhas, Foi com estas sombvias imagens dos mangues eda lama que comece! a ria o mundo da ‘minha infércia. Nada eu via que no provocasse a sensacode uma verdadeira descoberta. Foi assim que eu vi, sent formigar dentro de mim a terivel descoberta da fome .. quando ctesci¢ sa pelo mundo afora, vendo outas paisagens, me apercebi, com nova surpresa, que © que eu pensava ser um fendmeno local, um drama do meu bairro, era uma tama, universal, (CASTRO, 1967, p.15-19) Os trechos acima séo falas de Josué de Castro, hamenageado com justica pela Jornada Universitaria promovida pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Trata-se do “Socidlogo da Fome”, assim chamado pelos seus contemporaneos, dada a sua luta am eleger a fome como tema a ser pesquisado de forma intensiva pelas Ciéncias Sociais. Neste sentido, a sua obra’se constitui um exemplo. Sao mais de duas dezenas dedicadas 4 questéo. Destacam-se entre elas - Documentario do Nordesie. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1937; Ensaios de Biologia Social. S40 Paulo: Brasiliense, 1960; Ensaios de Geografia Humana. Sao Paulo: Brasiliense, 1957; Geogratia da Fome (0 difema brasileiro: pao e aco). Rio de Janeiro: Antares/Achiamé, 1980, Geopolitica da Fome. Sao Paulo: Brasiliense, 1951; 0 livre negro da fome. S40 Paulo: Brasiliense, 1960; Sete palmos de terra e um caixdo. Sao Paulo: Brasiliense, 1964; Homens e Caranguejos. S40 Paulo: Brasiliense, 1967. Em 1967, escreve, no exilio, Homens @ Caranguejos. C tema deste lv é historia da descoberta que da fome fiz nos meus anos de infancia nos alagados da cidade do Recite, onde convivicom os alogados deste ma de mista, Procuro mostrar neste ivr de ficgo que ndo foi na Sorbonne nem em qualquer outra Universidade sébia que travel conhecimento com 0 fendmeno da fome. © fendmeno se revelou fespontaneamente a meus olhos nos mangues do Capibaribe, nos baitres miseréveis da cidade do Recife: Afogados, Pina, Santo Amaro, lia do Leite. Esta 6 que foi a minha Sorbonne: a lama dos mangues do Recife, fervihando de caranguejos e povoadla de seres hhurtanos feitos de came de caranguejo, pensando @ sentindo como catanguejo. Seres anfibios —habitantes datera edaqua, melo homens emelobicho. Alimentadosnainfancia ‘com caldo de caranguejo: este lite de lama. Seres hurmanos que se faziam assim ios delete dos caranguejos. Que aprendiam a engatinhar ea andar com es-carenguejosdalama que depois de terembebido na infancia este lete de lama, de se terem enlamnbuzado com ‘aldo grosso da lama dos mangues ¢de se terem impregnado do seu cheitade terrapocre ede miséria, nuncamaissepodiambertar destacrosta delamaqueastomavataoparecidos ‘com os caranguejos, seus irméos, com as suas duras carapacas entambuzadas de lama. (CASTRO, 1967, p.12). Il — ACIENCIA DA FOME Ao descobrir a tragédia da fome, primeiro em suas cercanias, bairros mise- Sitientibus, Felta de Santana, 0.12, p.123-129, 1994 125 raveis do Recife e depois como um problema que allige 2/3 da populag&o mundial, Josué de Castro sai da constatagéo pura e simples do fenémeno para uma inves- tigagéo cientifica rigorosa. Se os dados empiticos que utiliza hoje esto defasados, © mesmo néo se pode dizer da sua metodologia, E talvez o primeiro socidlogo a realizar pesquisa parlicipante o que se induz quando fala de sua sociologia comprometida com 0 processo social a qual no deixa de_ser cientiica por esse Seu ‘engajamento. Ao contrtio, ela 6 bem mais cientfica do que a antiga sociologia, que se presumia cientifica, mas nao passava, em seu falso cientificismo, de um instumento de inconscienle mistificagao da realidade social, cujo contacto direto ela sempre evitava, preocupada pela fraglidade dos sistemas em vigor e pelo recoio de que ao menor contacto tudo pudesse vit abaixo. (CASTRO, 1964, p.15). Em suas obras, juta para destruir os preconceitos em torno do fenémeno da fome, denunciado por ele em Geopolitica da Fome, comoa “conspiragao dosiléncio” Silencio imposto estrategicamente pelos agentes econdmicos que esconderam aos olhas ‘do mundo feias tragédias como.ada China, onde durante oséeulo XIX, carca de 100 milhées de individuos morreram de fome, por falta de um punhado de arroz, ou como ada India, na ‘qual 20 milhées de vidas humanas foram destruidas por esse flagelo, nos uitimos 30 anos do séoulo passado, (RECLUS, in: CASTRO, 1955, p.34}. Silencio explorado pela literatura ‘ocidental que ocultou aos olhos do mundo a verdadeira situagdo de enormes masses humenas debatendo-se dentro do clrculo-de ferro da fome. (CASTRO, 1951, p.35). Por outro lado, a propria ciéncia e a propria técnica ocidentais, certamente envolvidas com suas brilhantes conquistas no dominio das forcas da natureza, nao se sentia a vontade para confessar abertamente o seu quase absoluto fracasso em melhorar as condigdes dessas massas esfomeadas e, com seu reticente siléncio sobre o assunto, faziam-se, consciente ou inconscientemente, clmpiices dessa mesma conspiracéo mental. A sua metodologia sociolégica ndo é aquela defendida nos centros académi- cos, do distanciamento entre o investigador e o seu objeto de estudo, que acaba por produzir simples inventarios destituidos de vida. Josué de Castro diz: ~ "O nosso estudo sociolégica & 0 oposto deste género de ensaio 0 estudo de sociologia comprometido e participante... Ademais, a verdadeira sociologia cientifica, como qualquer outro ramo da ciéncia contempordnea, 6 bem menos arrogante acerca de suas verdades do que a sociologia classica, desde que hoje se sabe muitober como todas as verdades sao relativas. E que o que chamamos de realidades cientificas, nao sd no mundo da sociologia, mas mesmo no terreno mais sdlido da natureza fisica, 840 sempre produtos da interagéo entre os préprios fatos e 0 ato de observar do pesquisador, e que na verdade néo existem realidades fora do campo de nossa observagéo. HA apenas possibilidades. (CASTRO, 1964, p.15). Em 1946, publica o livro Geografia da Fome, Trata-se de um estudo cientifico Sitientibus, Feita de Santana, n.12, p.123-129, 1994

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