You are on page 1of 8

Morte no Trânsito: Homicídio doloso?

I – Dolo Direto e Dolo Eventual


Consequência do princípio da reserva legal(1), que o legislador
penal inscreveu no marco primeiro do Código, ninguém será
condenado pela prática de fato que não esteja, com todos os seus
elementos, previsto no texto normativo incriminador. É este um dos
postulados políticos “mais importantes das declarações dos direitos e
garantias individuais”(2), porque serve a prevenir as arremetidas do
arbítrio e da ilegalidade.
A ação humana que se não ajuste à descrição legal da figura
delituosa carecerá de ilicitude e, pois, não recairá na sanção do direito.
Pelo comum, têm caráter objetivo e material os elementos de
composição do fato típico. Há-os também de natureza subjetiva, os
quais dizem com o processo intencional do agente; daqui o chamar-
se-lhes elementos subjetivos do injusto. Não basta, porém, que o fato
típico (isto é, que corresponda aos termos da definição legal) seja
antijurídico para que constitua crime; há mister que o tenha o agente
praticado com culpa. A lição de José Frederico Marques é, ao
propósito, cabal:
“A conduta objetivamente ilícita de que proveio a lesão a interesse
penalmente tutelado só será delituosa e punível, se contiver o coeficiente
subjetivo da culpabilidade”(3).
Duas são as formas da culpabilidade: o dolo e a culpa (“stricto
sensu”). Dolo, segundo a clássica definição de Costa e Silva, “é a vontade
consciente de praticar um fato que a lei define como crime”(4); culpa, a “violação
do cuidado objetivo exigível”(5).
Quando a vontade do agente não tira a um resultado certo e
determinado, o dolo diz-se indireto. Há dolo eventual, “quando o agente,
conscientemente, admite e aceita o risco de produzir o resultado”(6). Entre o dolo
eventual e a culpa consciente há esta notável diferença: na culpa
consciente, o sujeito prevê o resultado, contudo espera que este não
ocorra; no dolo eventual, ao revés, o agente, demais de assumir o risco
de produzi-lo, consente no resultado. Disse-o, numa síntese perfeita, o
2

eminente Costa e Silva(7):


“Quando o agente espera ou acredita que o resultado não se verificará,
quando repele como impossível ou improvável, não existe dolo, mas
apenas culpa (consciente)”.
Estes conceitos, bem trilhados de quantos versam com mão
diurna e noturna os mais graves autores de Direito Penal, era
necessário lembrá-los aqui (posto muito a nosso pesar), a fim de
podermos atender a algumas dificuldades e objeções que o tema dos
delitos de trânsito geralmente suscita.

II – Dolo Eventual e Culpa Consciente


Em verdade, ainda que em números discretos, conhecem-se
casos de motoristas que respondem a processo perante o Júri (órgão
do Poder Judiciário do Estado competente para julgar os crimes
dolosos contra a vida), por haver causado a morte de pedestres. Tê-la-
iam causado por inobservância desmarcada de regras de trânsito,
como: dirigir em estado de embriaguez, trafegar em velocidade
incompatível com a segurança, desobedecer ao sinal fechado ou à
parada obrigatória, disputar corrida por espírito de emulação, etc.
A essência da qualificação legal do crime, a acusação pública
deduzira-a desta fórmula: o motorista que, naquelas condições, dirigia
seu veículo, se não quis a morte da vítima (dolo direto), ao menos
assumiu o risco de produzi-la (dolo indireto eventual). Pelo que,
havendo cometido o crime dolosamente, devera ser julgado pelo seu
juiz natural: o Júri.
Tal conclusão, que parece acautelada por sólido fundamento,
desapresenta, no entanto, quando submetida ao crisol do raciocínio
lógico, documento de seriedade: afeta encerrar silogismo inabalável,
todavia é menos que uma operação fantástica do espírito, porque é
um impudente sofisma (vênia!). Primeiro que o mais, a afirmação de
que o autor de morte no trânsito, naquelas circunstâncias, deva ser
julgado pelo Júri, porque praticou o delito dolosamente, contém falsa
premissa. Deveras, não foi dolo o que aí pudera ter existido, nem
sequer dolo eventual, senão culpa (bem que consciente). No dolo
3

eventual, de feito, a doutrina imprimiu sempre esta nota conspícua:


não basta a caracterizá-lo tenha o agente assumido o risco de produzir
o resultado lesivo; necessita que nele haja consentido. Vindo ao nosso
ponto: o motorista, de quem se afirmasse que obrara com dolo
eventual, cumpria que, além de ter assumido o risco de causar a morte
da vítima, com isso mesmo houvera concordado, o que repugna ao
bom-senso e afronta a lição da experiência vulgar.

III – Acidente de Trânsito: A Verdadeira Doutrina sobre o Ponto


Este ensinamento é o que nos deparam os penalistas de superior
quilate, dentre os quais pompeia Nélson Hungria. Dois exemplos, que
se transcrevem pela suma autoridade de quem os ministrou e por
fazerem ao nosso caso, dirimem e soltam plausivelmente a questão.
Em seus preciosos Comentários ao Código Penal (1978, vol. I, t. II),
discorre desta sorte o egrégio escoliasta:
a) “Um motorista, dirigindo o seu carro com grande velocidade, já
em atraso para atender ao compromisso de um encontro
amoroso, divisa à sua frente um transeunte, que, à aproximação
do veículo, fica atarantado e, vacilante, sendo atropelado e
morto. Evidentemente, o motorista previu a possibilidade desse
evento; mas deixando de reduzir ou anular a marcha do carro,
teria aceito o risco de matar o transeunte, ou confiou em que
este se desviasse a tempo de não ser alcançado? Na dúvida, a
solução não pode ser outra senão a do reconhecimento de um
homicídio simplesmente culposo (culpa consciente)” (p. 120);
b) “Nota-se que, principalmente na justiça de primeira instância,
há uma tendência para dar elasticidade ao conceito do dolo
eventual. Dentre alguns casos, a cujo respeito fomos chamados
a opinar pode ser citado o seguinte: três rapazes apostaram e
empreenderam uma corrida de automóveis pela estrada que liga
as cidades gaúchas de Rio Grande e Pelotas. A certa altura, um
dos competidores não pôde evitar que o seu carro abalroasse
violentamente com outro que vinha em sentido contrário,
resultando a morte do casal que nele viajava, enquanto o
4

automobilista era levado, em estado gravíssimo, para um


hospital, onde só várias semanas depois conseguiu recuperar-
se. Denunciados os três rapazes, vieram a ser pronunciados
como coautores de homicídio doloso, pois teriam assumido ex
ante o risco das mortes ocorridas. Evidente o excesso de rigor:
se eles houvessem previamente anuído em tal evento, teriam,
necessariamente, consentido de antemão na eventual
eliminação de suas próprias vidas, o que é inadmissível
(grifamos). Admita-se que tivessem previsto a possibilidade do
acidente, mas, evidentemente, confiaram em sua boa fortuna,
afastando de todo a hipótese de que ocorresse efetivamente. De
outro modo, estariam competindo, in mente, estupidamente,
para o próprio suicídio” (p. 544).
Pelo magistério do pontífice máximo de nosso Direito Penal,
está, como era forçoso, a Jurisprudência dos Tribunais de Justiça do
País. Confirma-o bem o acórdão seguinte, redigido pelo mui douto e
insigne Desembargador Djalma Lofrano:
“Homicídio culposo — Caracterização — Réu embriagado que, em
velocidade excessiva, atropela, matando e lesionando transeuntes —
Conduta antijurídica, que não foi, porém, querida nem consentida
intimamente — Hipótese de culpa consciente e não de dolo eventual —
Recurso provido para que se proceda a novo julgamento perante o
Tribunal do Júri” (RJTJESP, vol. LXXXIX, p. 385).

IV – A Solução Legal: A Pena Conforme a Culpa


Dado que numa única semana(8) perde o Brasil, em acidentes de
trânsito, mais indivíduos que na II Guerra Mundial (470), será digno de
louvor todo o empenho de resolver este magno problema. No que não
se pode consentir é em que se perverta o espírito da lei, havendo-se
por dolo o que simplesmente fora culpa (não importando se
consciente).
Ainda que sob a cor de impedir tragédias e atalhar os males da
direção perigosa de veículos, todo aquele que decidir por essa rigorosa
craveira estará fazendo tábua rasa do direito positivo e, sobre isto,
5

contravindo ao princípio fundamental de hermenêutica: o processo


lógico. É que obra em fraude da lei quem, ressalvando-lhe as palavras,
desatende a seu espírito(9). Em suma: ter na conta de autor de crime
doloso motorista que, naquelas condições, deu causa a acidente em via
pública, seria, falando lisa e sinceramente, atropelar o Código Penal
(“transeat”).
A 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (valha a verdade),
julgando recentemente processo de réu acusado de homicídio, que
provocara durante “racha”, atribuiu ao fato a definição jurídica mais
grave (crime doloso). O argumento de Aquiles do venerando acórdão
(de que foi relator o Exmo. Sr. Min. Celso de Mello) teve esta
substância: “esse tipo de delito deve ser reprimido grave e energicamente”(10).
Mas para reprimir tal modalidade criminosa não fora preciso,
“data venia”, alterar a estrutura típica do delito; bastara aplicar ao
infrator a pena segundo sua culpabilidade (que a pena, conforme o
brocardo, deve corresponder à culpa, medindo-se pelo delito): se
maior da marca a censurabilidade do procedimento do acusado,
máxima houvera de ser sua reprimenda penal; “se a conduta do réu for
extremamente censurável, aplica-se a pena máxima do delito culposo, não se
falando, nesse caso, em dolo eventual”, ensina André Luís Callegari(11).
Contra aqueles que se afanam em submeter à barra do Júri
homicidas de trânsito sempre colherá esta advertência de José
Frederico Marques:
“Crimes dolosos contra a vida não são, portanto, todos aqueles em que
ocorra o evento morte. Se esta integra a descrição típica de um crime, nem
por isso se torna este um crime doloso contra a vida. Para que assim seja
qualificado, é necessária a existência do dolo direto, em que a vontade
inicial e o evento se casaram, visando ambos à vida”(12).
A doutrina acima exposta — que sustenta ser caso de crime
culposo (e não doloso) o homicídio cometido por motorista em estado
de embriaguez — conta, de presente, com os auspícios de nossa Mais
Alta Corte de Justiça.
Com efeito, muito há — 6.9.2011 —, decidiu a 1a. Turma do
Supremo Tribunal Federal que se trata de hipótese de crime culposo o
6

homicídio praticado, sob a influência de álcool, na direção de veículo


automotor (art. 302 do Código de Trânsito).
O ven. aresto, de que foi relator o Min. Luiz Fux, tem a seguinte
ementa:
“1. A classificação do delito como doloso, implicando pena sobremodo
onerosa e influindo na liberdade de ir e vir, mercê de alterar o
procedimento da persecução penal em lesão à cláusula do due process of
law, é reformável pela via do habeas corpus.
2. O homicídio na forma culposa na direção de veículo automotor
(art. 302, caput, do CTB) prevalece se a capitulação atribuída ao fato
como homicídio doloso decorre de mera presunção ante a embriaguez
alcoólica eventual.
3. A embriaguez alcoólica que conduz à responsabilização a título
doloso é apenas a preordenada, comprovando-se que o agente se
embebedou para praticar o ilícito ou assumir o risco de produzi-lo.
4. In casu, do exame da descrição dos fatos empregada nas razões de
decidir da sentença e do acórdão do TJ/SP, não restou demonstrado que o
paciente tenha ingerido bebidas alcoólicas no afã de produzir o resultado
morte.
5. A doutrina clássica revela a virtude da sua justeza ao asseverar que
o anteprojeto Hungria e os modelos em que se inspirava resolviam muito
melhor o assunto. O art. 31 e §§ 1º e 2º estabeleciam: a embriaguez pelo
álcool ou substância de efeitos análogos, ainda quando completa, não
exclui a responsabilidade, salvo quando fortuita ou involuntária. § 1º Se a
embriaguez foi intencionalmente procurada para a prática do crime, o
agente é punível a título de dolo; § 2º Se, embora não preordenada, a
embriaguez é voluntária e completa e o agente previu e podia prever que,
em tal estado, poderia vir a cometer crime, a pena é aplicável a título de
culpa, se a este título é punível o fato (Guilherme Souza Nucci, Código
Penal Comentado, 5a. ed., p. 243; Editora Revista dos Tribunais).
6. A revaloração jurídica dos fatos postos nas instâncias inferiores
não se confunde com o revolvimento do conjunto fático-probatório.
Precedentes: HC nº 96.820/SP, rel. Min. Luiz Fux, j. 28.6.2011; RE nº
99.590, rel. Min. Alfredo Buzaid, DJ 6.4.1984; RE nº 122.011, rel.
7

Min. Moreira Alves, DJ 17.8.1990.


7. A Lei nº 11.275/06 não se aplica ao caso em exame, porquanto
não se revela lex mitior, mas, ao revés, previu causa de aumento de pena
para o crime sub judice e em tese praticado, configurado como homicídio
culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB).
8. Concessão da ordem para desclassificar a conduta imputada ao
paciente para homicídio culposo na direção de veículo (art. 302, caput, do
CTB), determinando a remessa dos autos à Vara Criminal da Comarca de
Guariba/SP” (STF; HC nº 107.801/SP; rel. Min. Luiz Fux; j.
6.9.2011).
Por seus lógicos e jurídicos fundamentos — que estão
conformes com o magistério perene de Nélson Hungria, o maior de
nossos penalistas —, pode muito bem o referido acórdão servir de
pedra de toque (ou precedente judicial) para todas as decisões que se
venham a proferir nas causas criminais instauradas pela prática de
homicídio na direção de veículo automotor, por agente sob efeito de
embriaguez (não preordenada).
Faz também muito ao nosso caso a lição de Sérgio Salomão
Shecaira, exposta em sólido parecer publicado em Estudos de Direito
Penal, 2010, vol. I, pp. 95-121; Editora Forense.
À consulta se era “possível, ao menos em tese, a prática do delito na
modalidade de dolo eventual, pelo simples fato de estar o acusado conduzindo seu
veículo em excesso de velocidade” (p. 98), respondeu, após acurado e severo
exame da questão agitada, o competente professor titular de Direito
Penal da USP:
“Assim, podemos perceber que andar em excesso de velocidade causando a
morte de outrem não caracteriza a conduta de homicídio doloso, por não
ser possível imputar, a título de dolo eventual, a responsabilidade do
evento, finalisticamente considerado.
Não se deve, sob a influência da pressão da mídia, reconhecer qualquer
alteração na estrutura do delito, para mandar alguém a júri. Por mais
grave que tenha sido a conduta culposa ela não pode ser transformada em
dolosa, sob pena de criarmos um Direito Penal do Terror que venha a
satisfazer interesses punitivos extra-autos” (op. cit., p. 107).
8

Carlos Biasotti
Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

Notas

(1) “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia
cominação legal” (art. 1º do Cód. Penal).
(2) José Frederico Marques, Curso de Direito Penal, 1956, vol. II, p. 73.
(3) Op. cit., p. 158.
(4) Comentários ao Código Penal, 1967, p. 84.
(5) Heleno Fragoso, in Comentários ao Código Penal, de Nélson
Hungria, 1978, vol. I, t. II, p. 555.
(6) Celso Delmanto, Código Penal Comentado, 1991, p. 30.
(7) Op. cit., p. 88.
(8) Valdir Sznick, 1978, p. 3.
(9) Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 1933, p.
138.
(10) O Estado de S. Paulo, 28.5.96.
(11) In Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 13, p. 197.
(12) A Instituição do Júri, 1963, pp. 130-131.

You might also like