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P ARTE III

TERRITÓRIOS PERCORRIDOS
ENTRE A FORMAÇÃO,
A PESQUISA E A INTERVENÇÃO
CONSIDERAÇÕES SOBRE A ARTE E A
CIÊNCIA DA MUDANÇA: REVOLUÇÃO
DAS COISAS E REFORMA DAS PESSOAS.
O CASO DA SAÚDE

G ASTÃO W AG N ER DE S OUSA C A M P O S

Um processo de mudança pode sempre começar “aqui e agor


agoraa ”

O homem morreu?
A humanidade teria sido aprisionada pela mídia, pelo mercado,
pelo poder institucional, perdendo, em decorrência, quase toda capa-
cidade de iniciativa? A ordem social estaria congelada pelos próximos
mil anos?
Nenhum serviço público conseguiria funcionar com eficiência e
equidade?
Todos os movimentos populares e entidades sindicais estariam
condenados à prisão do corporativismo e à paralisia decorrente da buro-
cratização?
E, principalmente, caberia ainda perguntar: — Na vigência real
de todos esses impasses, alguém ainda acreditaria na possibilidade de
mudanças, de reformas, ou de revoluções, com sentido humano e demo-
crático?
Andamos tão pessimistas e amargos que, de supetão, tenderíamos
a responder a essas questões com um certo cinismo velho e outrora já
bastante ridicularizado pelo humorista Henfil: — “Não sei de nada, só
sei que tenho de sobreviver”.
No entanto, hoje, próximo ao ano 2000, mais do que nunca há
necessidade de nos metermos em uma empreitada filosófica, teórica e
prática, que procurasse responder a esses desafios de maneira inovadora.
Como recuperar a vontade dos indivíduos, grupos e coletividades, de
241
242 ♦ G ASTÃO W AGNER DE S OUSA C AMPOS

maneira a compor-se uma massa crítica apta a construir projetos novos.


Projetos críticos e alternativos ao senso comum, ao niilismo e à mixór-
dia neoliberal, as três modalidades de discurso atualmente dominantes.
Mas as coisas e as pessoas são duras à mudança. Embora, é a
história que nos confirma, mudanças ocorram.
Aprendemos que a ocorrência de grandes transformações depende
sempre de pelo menos dois elementos: do desejo, da vontade desespera-
da de alterar o statu quo, de uma dimensão subjetiva portanto; e também
do domínio de uma certa ciência, de um projeto conscientemente cons-
truído, uma vertente, inapelavelmente, vinculada ao exercício da razão.
A mudança resultando da combinação de uma racionalidade fria
do cálculo político com a desrazão louca dos que não se conformam
com a racionalidade dos poderosos, sempre forte o suficiente para justi-
ficar de mil e uma formas o statu quo.
Há séculos, a humanidade vem penosamente trabalhando estas
“ciências” da mudança. Eu lembraria aqui, entre outros, os saberes acu-
mulados pela filosofia, psicanálise, análise institucional e, principalmente,
pela política em seu sentido mais amplo. Existem ensinamentos riquís-
simos nestas fontes, o problema maior de hoje em dia é que deixamos de
nos debruçar sobre as experiências do passado já que não esperamos
muito do futuro. A crise da vontade estimulando a cronificação da crise
dos saberes. Não sabemos mais como fazer o que queremos e nem mes-
mo se queremos mesmo aquilo que supomos.
Entre outros pontos, eu gostaria de retomar aqui uma noção da
velha dialética e que me parece vem sendo ignorada pela maioria dos
movimentos sociais que, neste século, ousaram pensar ou tentaram cons-
truir o novo. Refiro-me à antiga ideia de que se, por um lado, as coisas,
ou as estruturas, determinam a vida das pessoas, por outro, são estas mes-
mas pessoas que constroem as coisas, as normas, os valores e as estruturas.
Ou seja, qualquer projeto mudancista que aspire ao sucesso deve-
ria tentar, ao mesmo tempo, tanto a mudança das pessoas, dos seus valo-
res, da sua cultura ou ideologia, quanto providenciar alterações no fun-
cionamento das instituições sociais. Dizendo de outra maneira, temos
de mexer, simultaneamente, com as pessoas, com as estruturas e com as
relações entre elas. Isto parece-nos óbvio, mas frequentemente nos es-
quecemos desta antiga evidência, assumindo desvios unilaterais. Temos
valorizado ora reformas estruturais, como no socialismo real; e ora,
Considerações sobre a arte e a ciência da mudança ♦ 243

idealisticamente, apenas a renovação dos comportamentos e sentimen-


tos humanos, como no caso da maioria dos movimentos de inspiração
religiosa.
Especificamente, penso ser útil retomarmos uma antiga discussão,
hoje um tanto abandonada, sobre as possibilidades e maneiras de con-
duzir mudanças institucionais articuladas a movimentos mais amplos de
reforma social e, nesse sentido, gostaria de levantar alguns pontos:
♦ É impossível abalar a hegemonia das classes dominantes e o
poder de Estado sem a existência e o apoio de movimentos multicêntri-
cos de milhões de pessoas, que questionem sistematicamente o exercício
de micropoderes em instituições de produção de bens e serviços, da
administração pública, de ensino, de representação política e, até mes-
mo, religiosas.
Caberia a nós construir um novo conhecimento, experimentar novas
formas de dirigir organizações, superando o eixo central de todas as
escolas de administração que buscam, de diferentes maneiras, reduzir
sujeitos humanos à condição de instrumentos dóceis aos objetivos da
empresa, transformando-os em insumos ou em objetos. O desafio de
nossa época estaria em inverter este sentido: governar para produzir
sujeitos!
♦ Ligado a esse objetivo estaria um outro relacionado à construção
de um saber crítico que negasse o suposto determinismo absoluto do
geral sobre o particular, do econômico e do político sobre as instituições
e destas sobre as pessoas e grupos. Admitir a possibilidade de o novo sur-
gir da base da sociedade, e reforçar o movimento de mão dupla que combina
o efeito demonstração de ações exemplares, o embate público de proje-
tos contraditórios com a desobstrução dos canais de baixo para cima.
♦ Isso implicaria a superação do maximalismo do “tudo” e do
pessimismo do “nada”. Buscar a totalidade mesmo sabendo que ela é
sempre inatingível, que ela não existe a não ser como abstração que nos
estimula a viver desejando e a prosseguir combatendo enquanto seres
sociais. Trabalhar com coeficientes, com gradações de liberdade, de au-
tonomia, de qualidade, de justiça, etc., sempre buscando aperfeiçoá-los,
transformá-los, adaptá-los.
Um exemplo dramático, mas esclarecedor: buscar a liberdade até
quando internados em um campo de concentração é condição indispen-
sável para salvar a humanidade de cada um. Quem desiste, degrada-se.
244 ♦ G ASTÃO W AGNER DE S OUSA C AMPOS

Quem persiste, quem insiste, salva-se da ignomínia ainda que nem sem-
pre do sofrimento, capacitando-se, contudo, para sobreviver, depois, com
um mínimo de saúde mental e autoestima. Nesse caso, que programa
libertário assumir? A totalidade estaria na destruição do Campo, um
objetivo que nunca deve ser completamente descartado, mas que por si
só não cria um projeto que assegure tanto a sobrevivência física quanto
a de algum grau de liberdade. Assim, que relações estabelecer com os
companheiros de dificuldade? De disputa feroz pelas migalhas, ou de
paternalismo, ou de parceria madura? Como relacionar-se com os po-
derosos donos do poder absoluto? Servilmente, arrogantemente, com
negaceios e táticas de disfarce e de combate? Enfim, nem sempre se
consegue a salvação em um inferno desse, mas sempre se pode tentar, e
no esforço da busca é que se constroem os sujeitos capazes de autono-
mia, de felicidade, de solidariedade, de gozar os prazeres e as belezas da
existência. Sujeitos saudáveis, ainda que cadavéricos, ante sujeitos doen-
tios, ainda que hígidos. São paradoxos que deveríamos considerar, não
para negar a higidez física, mas para também relativizá-la. De qualquer
maneira, a totalidade almejada é física, moral, mental, ética. . .
O exemplo do Campo de Concentração, guardadas as devidas pro-
porções, aplica-se a trabalhadores ou a usuários das instituições con-
temporâneas. Há muitas distorções, mas as pessoas degradam-se mais
ou menos conforme seus coeficientes de resistência, conforme sua capa-
cidade de engajar-se em projetos que os distingam da degradação domi-
nante, e isso acontece ainda quando os objetivos possíveis de serem leva-
dos à prática sejam muito reduzidos e parciais. Como diria Sartre, é
dado a cada pessoa possibilidades de progresso, de se constituir como
sujeito, pisando nas próprias contradições e deficiências dos esquemas
dominantes, sejam eles familiares, ou estatais, empresariais ou religio-
sos. É verdade, como mais tarde admitiu esse mesmo filósofo, que as
condições de existência, a história de vida, a época, condicionam as
possibilidades existenciais. Ampliando-as ou limitando-as, às vezes, a
um mínimo inimaginável, mas, sempre, sempre, restará ao indivíduo
alguns espaços de liberdade, algumas possibilidades de abrir-se ao mundo
e aos outros sem a perda de todas as condições para o exercício saudável
da própria subjetividade.
Outra diretriz fundamental a esse processo de revolução permanente
e progressiva, liga-se ao esforço para diminuir ao máximo a distância
Considerações sobre a arte e a ciência da mudança ♦ 245

entre os que comandam, planejam e dirigem, e a maioria executante de


ações e serviços ordenados. Trabalhar para que todos sejam em alguma
medida gerentes, reformular os organogramas das instituições redistri-
buindo o poder de decidir. Atribuir a cada grupo a livre organização do
seu próprio processo de trabalho, trazer para a base as agruras e dificul-
dades de manutenção e reprodução das organizações. É óbvio que este
processo é antagônico à lógica da propriedade privada, e que se opõe à
tradição burocrática e clientelista das instituições públicas. Mas é disso
mesmo que se trata, da criação de condições sociais para que o conjunto
da sociedade experimente os limites dessas contradições, buscando e
amudurecendo novas soluções porque as velhas — neoliberais ou esta-
tizantes — estão a se esgotar.
Por último, particularmente em relação às empresas públicas, de-
veríamos cuidar com mais carinho e rigor para que o que explicitamen-
te objetiva e justifica a existência de uma certa instituição fosse cumpri-
do. Trata-se do óbvio, mas de um óbvio que não costuma ser levado à
prática. Quantos hospitais, escolas e organismos públicos não vegetam
sem atingir os objetivos a que se propõem?
A principal forma de resolver este conflito estaria na abertura des-
sas organizações. Deixar que a sensibilidade, o desejo e as necessidades
dos usuários, da clientela, penetrassem em todos os poros da organiza-
ção, de tal forma que todos os que ali trabalhassem viessem a sentir essa
pressão. Não se trataria exclusivamente nem só da adoção dos mecanis-
mos de mercado concorrência e “livre-escolha” —, e tampouco só de
modelos de gestão colegiada, mas da combinação criativa dessas tradi-
ções visando assegurar a interferência da sociedade na vida interna das
organizações.
No caso brasileiro da Reforma Sanitária, sou de opinião que, até
hoje, exploramos muito pouco todas essas possibilidades e que optamos
por um desvio estruturalista aparentemente mais viável e breve. Nas
duas últimas décadas, empenhamo-nos muito mais na mudança do apa-
rato legal e da estrutura político-administrativa, esquecendo-nos das
pessoas concretas que operariam e usufruiriam dessa máquina que criá-
vamos. O resultado disso está sendo um impasse. Mudou-se muito, para
pouquíssimos resultados concretos. Ou pior, a crise dos serviços de saú-
de e da saúde pública prossegue sua trajetória destrutiva, à revelia do
esforço de um conjunto de atores a quem se convencionou denominar de
246 ♦ G ASTÃO W AGNER DE S OUSA C AMPOS

Movimento Sanitário. Além do mais, a cronicidade da crise vem provo-


cando, ao contrário do que se poderia esperar, uma monumental indife-
rença da sociedade. Hospitais públicos, programas sanitários respeita-
bilíssimos, se derretem ante os olhos de um país adormecido em berço
verde-amarelo. O próprio Movimento Sanitário se esgota, vendo seus
quadros serem arrastados ou para um ceticismo abestalhante ou para
uma adesão acrítica às selvagerias do neoliberalismo.
Como fugir a este impasse? Como superá-lo?
Não temos receitas, mas, daqui de Campinas, observando o
mundo a partir da província, viemos acumulando algumas reflexões
teóricas e experiências práticas que valeria sumariar. Trata-se de uma
modesta contribuição, mas, centralmente, procuraremos responder ao
seguinte desafio: como e em que sentido reformar o sistema público
de saúde?
Em primeiro lugar, gostaria de enfatizar, como o fiz no livro A
reforma da reforma: repensando a aaúde,1 que nosso projeto de mudança,
apesar dos obstáculos evidentes, deve ser muito abrangente. Não a ponto
de descambar para o voluntarismo ou para a utopia. Mas também não
pode fugir de alguns conflitos fundamentais de nossa época, sob pena de
perder-se.
Assim, estamos obrigados a repensar os serviços públicos, a redis-
cutir sua burocratização, emperramento e ineficiência, propondo altera-
ções radicais dos seus padrões de funcionamento.
Da mesma forma, chegou o tempo de inventarmos novos mo-
dos de organizar as práticas da clínica e da saúde pública, superando o
criticismo em que se atolou o pensamento de esquerda nas décadas de
60 e 70.
Por outro lado, ao mesmo tempo, temos de criar movimentos, si-
tuações e contextos, que favoreçam a constituição de sujeitos coletivos,
ainda que inacabados, e sempre presos a diversas contradições e limita-
ções, mas maduros o suficiente tanto para realizar as mudanças indica-
das como para sustentá-las e renová-las no curso da vida.
Creio que esses são nossos maiores desafios práticos e teóricos.
Tratarei de discuti-los com um pouco mais de precisão e detalhe.

1
Gastão W. S. Campos. Reforma da reforma: repensando a saúde. São Paulo: Hucitec,
1991.
Considerações sobre a arte e a ciência da mudança ♦ 247

O fator humano na mudança: pequena história de como o


subestimamos em um passado recente e de como estamos
aprendendo a revalorizá-lo
Ainda em 1985, quando comecei a estudar os médicos brasilei-
ros,2 deparei-me com uma maioria de autores que explicava tanto a
produção da doença, quanto o funcionamento dos serviços de saúde,
pela dominância de estruturas supra-humanas. Às vezes, admitia-se até
a origem humana destes arranjos infernais, mas argumentava-se que,
progressivamente, haveriam escapado ao comando dos homens, passan-
do, a partir daí, eles próprios, a controlar a vida e a determinar o curso
da história. Refiro-me ao “complexo médico-industrial”, ao “aparelho
estatal”, à “instituição médica”, etc.
A saída, bem, a saída passava pelo conformar-se à condição de au-
tômato repetidor ou em incorformar-se, destruindo revolucionariamente
a estrutura que nos criara à sua imagem e semelhança e, portanto. . . Não
havia muita saída, teoricamente pelo menos, porque na prática, em várias
situações, movimentos, sindicatos, partidos, grupos, intelectuais, meteram-
se a fazer o diferente e alteraram parcialmente a ordem das coisas.
Na saúde, por exemplo, Cecília Donnangelo era uma referência
obrigatória desde os anos 70. Ela inspirou a criação do movimento dos
sanitaristas e dos médicos tidos como renovadores. O curioso, o parado-
xal, foi que ela, em suas pesquisas, demonstrara o peso determinante do
Estado e da infraestrutura econômica na conformação de políticas sociais.
A assistência médica funcionaria sempre em decorrência ou do seu ca-
ráter de mercadoria ou por ser necessária à reprodução da força de tra-
balho. A ideologia dos médicos, o papel deles no processo de trabalho,
a oferta de serviços aos indivíduos, o modelo de atenção, tudo parecia
bastante explicado por esta gigantesca macroestrutura: o complexo mé-
dico-industrial articulado funcionalmente ao Estado, o qual seria, por
sua vez, uma espécie de interventor e reprodutor da lógica já inscrita na
infraestrutura econômica e política.3
Na época, essa explicação parecia-me perfeita. Totalmente autoe-
vidente, globalizante. Nossa mestra, a Cecília, esticara ao máximo o

2
Gastão W. S. Campos. Os médicos e a política de saúde. São Paulo: Hucitec, 1988.
3
Maria C. F. Donnangelo. Saúde e sociedade. 2.a ed. São Paulo: Duas Cidades, 1979.
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sofisticado instrumento que a ocasião lhe oferecia: uma mistura de mar-


xismo com estruturalismo, uma combinação dos sistemas obsessivos de
L. Althusser com as inovações desestruturantes de N. Poulantzas; tudo,
evidentemente, retemperado com a verve tropical e militante da própria
Donnangelo.
De qualquer maneira, partíamos de uma abordagem instigante e
criativa, porém pobre de história, pobre de análise sobre atores sociais.
O estudo da Cecília sobre os médicos,4 por exemplo, é muito mais uma
demonstração dos modos como alterações na estrutura do mercado re-
percutiam sobre os profissionais, do que uma verificação das reações
destes às transformações do momento. Os médicos apareciam mais como
agentes da voz passiva do que como sujeitos de alguma mudança ou
resistência.
Apesar de vivermos à sombra de 68, naquele tempo éramos assim:
todos um pouco estruturalistas. Críticos, mas sempre dispostos a jogar
toda a culpa pelos rumos da história em alguma macroinstituição colo-
cada acima do poder de interferência dos pobres mortais.
Como ainda hoje, já naquele tempo reinava Foucault. Muitos o
criticavam, mas muitos aderiam às interpretações nietzsche-heidegge-
rianas que ele foi inventando, as quais viam os homens presos a máqui-
nas e a dispositivos totalitários de discurso, de saber ou de poder. Numa
tentativa de fugir ao reducionismo do marxismo estalinizado, Foucault e
outros estudaram detalhadamente os modos de dominação dos homens,
mas esqueceram-se de explicar como eles próprios — todos autores
críticos — podiam ter existência real. Ou seja, como a revolta contra o
estabelecido era possível. Como era possível, na prática, fugir ao impé-
rio, à disciplina, dos saberes e dos poderes instituídos. Como era possí-
vel, enfim, produzir-se um discurso que escapasse ao da ordem.
Nesse sentido, no da compreensão dos modos de castração da au-
tonomia dos homens, devemos muito a estes intelectuais e temos muito
a aprender com Cecília, Foucault, Lacan e outros. No entanto, agora
urge a construção de conceitos que enriqueçam a noção de práxis esta-
belecida por Marx.
Restaurar a confiança na razão depende, entre outras coisas, da
reconstrução das noções de mudança, de transformação, de desenvolvi-

4
Maria C. F. Donnangelo. Medicina e sociedade. São Paulo: Pioneira, 1975.
Considerações sobre a arte e a ciência da mudança ♦ 249

mento e de progresso. Inventar até mesmo um novo nome para essas


coisas, que negue e incorpore todos esses conceitos e não se restrinja ao
maximalismo do termo “revolução”. Eventos tão raros e improváveis e
que se desvanecem como chuvas de verão, ou melhor dizendo, como
chuvas de sangue, ao primeiro sinal de que não se desmontaram as má-
quinas de dominação, os micropoderes.
Inventar “novos modos de andar a vida”. Imaginar a possibilidade
concreta de tal empreitada. Dar-se o direito de ousar pensar o novo,
mesmo após o colapso do socialismo real, mesmo após o impasse cor-
porativo que hoje paralisa a criatividade da maioria dos sindicatos, mes-
mo após a mesmice burocrática que toma conta da maioria dos gover-
nos socialistas ou democráticos, mesmo constatando a indiferença egoísta
da maioria das pessoas que trabalha em instituições. Apesar de tudo
isso, ousar repensar a mudança, a reforma, e a instituição de sociedades
mais justas, igualitárias, democráticas e felizes.
Para Foucault, por exemplo, todo olhar dos profissionais de saúde
estaria marcado pela estruturação do saber clínico: os olhares, se clí-
nicos, sempre estariam, automaticamente, enviesados por uma certa óti-
ca caolha, independente do sujeito e do contexto de onde partisse essa
mirada.5
Jean Clavreul6 sofisticou e radicalizou ainda mais essa concepção
ao acrescentar-lhe a noção de “ordem médica”: entidade a-histórica e
sem corpo, que tomaria o lugar de todo e qualquer médico sempre que
estivesse exercendo o ofício da clínica. A cadeia de significantes da Clí-
nica — Lacan aplicado à análise de prática social —, inevitavelmente se
incorporaria ao profissional transformando-o em mero “cavalo” da or-
dem médica, de tal forma que a relação médico-paciente seria sempre
um encontro de um objeto — o doente reduzido pela clínica a um subs-
trato para a doença — com um outro objeto, o pobre do médico conde-
nado a repetir um comportamento estereotipado. Uma coisa com outra
coisa, relação física ou química? Humana quando?
Note-se como era difícil escapar desses esquemas teóricos. Feliz-
mente, a vida real resolveu seguir desconhecendo-os e a prática clínica
concreta permaneceu sendo também isso, mas teimou em ser mais um

5
Michel Foucault. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense, 1980.
6
Jean Clavreul. A ordem médica. São Paulo: Brasiliense, 1983.
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monte de outras coisas ignoradas por essas análises. Infelizmente, mui-


tos, a partir desses referenciais, passaram a repudiar a clínica em sua
essência, propondo sua substituição por inúmeros programas inspirados
na Saúde Pública e na Epidemiologia. E o que seria, no fundo, a tão
moderna alternativa da Vigilância à Saúde, hoje apresentada como uma
panaceia, como uma via para a construção de uma tal de “saúde cidadã”,
senão uma reedição empobrecida destas parcialidades? O diabo era que
também a Saúde Pública era vista com desconfiança, armações do Esta-
do para assegurar a reprodução do statu quo.
Havia também os italianos, Berlinguer, Basaglia, discípulos de A.
Gramsci, ignorados pela escola francesa, mas que com menos retum-
bância foram influenciando o movimento sanitário brasileiro. Eram menos
elaborados, mais desestruturados e pouco afeitos aos maneirismos aca-
dêmicos tão ao gosto de boa parcela da “inteligência” universitária na-
cional. Mas apesar de sua “simplicidade” influenciaram bastante o ideá-
rio das lutas sanitárias no Brasil.
Berlinguer e Basaglia falavam da história, de vontade e de cons-
ciência política e, principalmente, demonstravam a existência de mu-
danças em consequência da ação de grupos humanos concretos. Os lou-
cos e agentes terapêuticos promovendo a reforma psiquiátrica,7 sindicatos
operários e a saúde nas fábricas,8 movimentos sociais e a reforma do
sistema de saúde italiano.9
Em larga medida, nos deixamos influenciar pela Itália. A criação
dos movimentos de saúde do trabalhador e de saúde mental deve muito
a esses contatos internacionais.
No entanto, foi a partir dessas mesmas teorizações que alguns in-
ventaram os tecnoburocratas como sendo os novos e mais importantes
agentes da reforma sanitária. Devido à desorganização e inorganicidade
da sociedade local, a infiltração de técnicos bem-intencionados no apa-
relho estatal conseguiria implementar mudanças. Era uma aplicação
empobrecida da teoria das “brechas e fissuras” existentes na couraça de
dominação dos Estados burgueses, de onde personalidades progressistas
conseguiriam contornar o sentido dominante da ordenação social. A
partir daí criou-se toda uma cultura da assessoria, da transcendência dos
7
Franco Basaglia. A psiquiatria alternativa. São Paulo: Brasil Debates, 1979.
8
Giovanni Berlinguer. A saúde nas fábricas. São Paulo: Cebes-Hucitec, 1983.
9
G. Berlinguer. Reforma sanitária: Itália e Brasil. São Paulo: Hucitec, 1988.
Considerações sobre a arte e a ciência da mudança ♦ 251

planejadores e do planejamento, do entrismo, dos lobismos de esquerda,


ações que perduram até hoje, já que se constituiu no Brasil uma verda-
deira massa de especialistas em Saúde Pública com alguma consciência
social e ética, mas muito dependentes do Estado para sobreviver.
Funcionários de quem? Em geral, entre a cruz e a caldeira, servem
a deus e ao diabo, ou paralisam-se em conflitos hamletianos. De qual-
quer maneira, constituíram-se como atores sociais, particularmente como
construtores de matrizes discursivas, de normas e de legislações.
No fundo, quando passávamos à prática, quando pensávamos mo-
delos concretos de atenção à saúde, sempre recorríamos à produção de
organismos internacionais, particularmente à Opas. Assim, aderimos à
Medicina Comunitária, à Atenção Primária, ao Planejamento e Progra-
mação como via de reconstrução de políticas de saúde e, mais recente-
mente, aos Distritos Sanitários e à ideia de Sistemas Locais. No Brasil,
combinamos o pensamento crítico francês e italiano com esse funciona-
lismo sincrético da Opas, criando uma teoria rica em razão mesmo do
sincretismo que a tomava viável e possível de experimentação em muni-
cípios e regiões, nos quais se construíram condições políticas propícias
à renovação de sistemas de saúde.
Mais tarde, Emerson Mehry, ao reconstruir a história da Saúde
Pública, demonstraria o papel dos sanitaristas na invenção de modelos
tecnoassistenciais e, até mesmo, na definição das grandes linhas da po-
lítica de saúde de cada período.10
No meu livro Os médicos e a política de saúde tentei criticar tanto os
estudos que pretendiam explicar a história exclusivamente a partir dos
discursos e representações de sujeitos sociais, como outros que só trata-
vam do “complexo médico-industrial”, monstro supostamente potente
para constituir a prática de todos os atores sociais.
Assim, estudei os médicos vendo neles os produtores de um dis-
curso, de projetos e de políticas de saúde. Contudo, também os vi presos
às conveniências e limitações do seu próprio status econômico e social.
Influenciados por essas duas determinações, percebi-os como sujeitos
intervindo, individual e coletivamente, no cenário nacional. Concluí serem
os médicos os principais elaboradores e divulgadores da política de saú-
de predominante no país e, evidentemente, de cunho neoliberal. Percebi

10
Emerson E. Merhy. Saúde pública como política. São Paulo: Hucitec, 1992.
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que nem o Movimento de Renovação, ligado aos setores de esquerda,


conseguira criticar a ordem médica, e muito menos ousara propor sua
reformulação, permanecendo preso a um discurso político ambíguo.
No fundo, eu buscava encontrar uma combinação de metodolo-
gias que me permitisse analisar um pedaço da realidade social de ma-
neira dialética. Pretendia superar o reducionismo mecanicista das esco-
las para as quais o comportamento humano era totalmente explicado ou
pela economia, ou pelos poderes institucionais, ou, até mesmo, pelo
inconsciente. Ou seja, queria escapar da ideia da morte do homem. Mas
tampouco concordava com os fenomenologistas que omitiam a impor-
tância dos condicionamentos estruturais na práxis dos sujeitos.
Em certa medida, tive sucesso na empreitada. Identifiquei a exis-
tência de uma heterogeneidade entre os médicos. Eles se dividiam em
distintas correntes políticas. Percebi que essas divisões fundavam-se em
possibilidades concretas de desenvolvimento dos serviços de saúde. Ou
seja, na área médica não ocorrera uma expropriação radical dos profis-
sionais pelo capital, o que permitiu que os médicos conservassem maior
autonomia laboral do que outras categorias. Em consequência, no seu
cotidiano, eles se deparavam tanto com formas privadas de pequena
produção de serviços, como com situações de trabalho coletivo em sis-
temas empresariais particulares ou estatais. Portanto, no horizonte da
categoria, havia tanto projetos com orientação socializante como outros
de cunho privatista.
Demonstrei a importância das lideranças e do processo de organi-
zação de movimentos, na definição dos rumos políticos da categoria.
Organizaram-se tanto correntes conservadoras e marcadamente corpo-
rativas, como outras mais abertas às reformas democráticas propostas
pela esquerda. Contudo, evidenciei também que, à revelia da orientação
ideológica das correntes, todas elas respeitavam os interesses básicos
dos médicos, identificando-os com uma defesa da tradição, da autono-
mia profissional e do predomínio do poder médico nos serviços de saú-
de, e isso até mesmo quando a permanência dessas características se
opusesse às necessidades da maioria.
Faltou-me segurança, na ocasião, para me utilizar desse estudo
como alternativa de análise que ajudasse a consolidar a tímida reorien-
tação das ações políticas e gerenciais em saúde então apenas esboçada.
Já afirmei anteriormente que éramos todos um pouco estruturalistas,
Considerações sobre a arte e a ciência da mudança ♦ 253

além do mais, estávamos cercados de estruturalistas por todos os lados,


e fui, na época, repreendido por conspícuas autoridades acadêmicas pelo
excesso de pirotecnia para compor conceitos “já vulgares na ciência po-
lítica”. Na verdade, eu tentava compor uma metodologia que me permi-
tisse estudar sujeitos sociais singulares, e não os tradicionalmente estu-
dados pela ciência política: refiro-me aos partidos, sindicatos, movimentos
revolucionários, etc. Só que eu não queria também fazer nem só antro-
pologia e nem só psicologia, disciplinas que tinham como objeto o estu-
do de agrupamentos, digamos, exóticos no caso da primeira disciplina e
muito singulares no caso da outra.
Pelo sim ou pelo não, o fato foi que caí na esparrela. Acreditei na
onipotência do establishment universitário e me esqueci, desliguei-me
daquelas preocupações com os sujeitos, sem contudo desligar-me de
todo. A coisa ficou meio que no inconsciente, e em certa medida, influen-
ciando todos os meus futuros trabalhos.
Mas a reprimenda produziu efeitos negativos: renunciei a traba-
lhar de forma sistemática a noção de sujeito, e abandonei a preocupação
de entender o porquê de os homens se rebelarem contra as estruturas,
modificando-as, arrebentando-as, ou, simplesmente, utilizando-as com
finalidade diversa da prevista. E o pior foi que me distanciei também do
estudo dos sujeitos concretos — médicos, governos, partidos, doentes,
etc. — que fazem e sofrem o sistema de saúde no Brasil.
Posteriormente, a vida veio repondo esta discussão um tanto à re-
velia das minhas inseguranças e das de tantos outros setores de esquer-
da. No Brasil, o surgimento do novo sindicalismo e do movimento que
depois resultaria no Partido dos Trabalhadores teve importância decisi-
va na valorização do tema referente à constituição de sujeitos históricos.
A insistência na autonomia dos trabalhadores, na organização a partir
da base, e na democracia como valor estratégico, obrigou setores da
intelectualidade a atualizarem os seus conhecimentos. É verdade que,
hoje, esse impulso atenuou-se, e o PT no governo de sindicatos ou de
cidades se vê preso a velhos dilemas comuns a vários outros movimen-
tos revolucionários ou reformistas. Há burocratização, há imobilismo
social e político, há luta sem princípios pelo poder, e não se conseguiu
instaurar o autogoverno dos cidadãos na cidade ou dos trabalhadores
nos sindicatos. De qualquer forma, ficou a certeza de que a sociedade
brasileira não é tão gelatinosa como se intuía, nem tão amorfa que não
254 ♦ G ASTÃO W AGNER DE S OUSA C AMPOS

seja capaz de organizar-se com indepedência das elites. E ficou também


a experiência e um acervo teórico-prático que hoje tentamos desdobrar
e enriquecer.
Eder Sader, com o seu Quando novos personagens entram em cena,11
publicado em 1988, refletiu teoricamente sobre essas experiências,
aproximando-as das elaborações do historiador E. Thompson, do so-
ciólogo F. Weffort, dos filósofos F. Guattari, J. Habermas, M. Chaui e
C. Castoriadis. Emerson Mehry, Pedro Jacobi, entre outros, na saúde,
trataram de revalorizar o tema do protagonismo social.
Mas sobretudo, pudemos, durante a década de 80, enquanto par-
ticipantes do movimento sanitário, vivenciar situações concretas quando
éramos governo e, portanto, víamo-nos obrigados a aplicar o pensamento
crítico que construíramos.
Nesse sentido, o breve período, dois anos e meio, em que estive à
frente da Secretaria de Saúde de Campinas (SP), transformou-se em
verdadeiro laboratório onde testamos o modelo sincrético acima referi-
do, identificamos seus limites e buscamos inventar novas manerias de
gerir instituições de saúde. Parte disso relatei no livro a A saúde pública e
a defesa da vida,12 mas foi aí que percebemos a necessidade de combinar
noções de reforma da estrutura — descentralização, regionalização e
hierarquização de serviços — com outras mais ligadas às práticas clíni-
cas e de saúde pública. Denominamos a este movimento de “construção
de novos modelos de atenção”.
Nesta época também experimentamos sistemas de gestão colegia-
da, criamos colegiados de governo desde as unidades locais até a cúpula
da secretaria; inventamos novas modalidades de cogestão de hospitais e
regiões e adaptamos propostas oriundas da Zona Leste de São Paulo
que advogavam comissões gerenciais tripartites, envolvendo represen-
tantes do governo, dos profissionais e da clientela local.
Reformulamos os organogramas do sistema como um todo e de
cada unidade em particular, procurando romper com a verticalidade das
estruturas e a centralização do poder de mando — serviço médico, de
enfermagem, etc. e criamos unidades operacionais com função e objeto

11
Eder Sader. Quando novos personagens entram em cena. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1988.
12
Gastão W. S. Campos. A saúde pública e a defesa da vida. São Paulo: Hucitec,
1991.
Considerações sobre a arte e a ciência da mudança ♦ 255

de trabalho bem-definidos, reforçando, na prática, a interdisciplinarida-


de e a redistribuição de poder, tanto entre as várias categorias de traba-
lhadores, como entre governo, trabalhadores e usuários.
No Hospital Psiquiátrico Cândido Ferreira realizou-se um radi-
cal processo de reestruturação do poder e da lógica de gestão. Foram
criadas várias unidades autônomas com papéis bem-definidos, cada uma
delas com um colegiado de gestão e com representantes no colegiado
geral da instituição. O Planejamento passou a realizar-se a partir de
cada local de trabalho com envolvimento de todos os componentes da
comunidade. Criaram-se equipes de saúde multiprofissionais que parti-
cipavam da gestão e elaboravam projetos terapêuticos para a unidade de
serviço e para cada paciente em particular, introduzindo-se o hábito da
reavaliação periódica das atividades e do desempenho dos vários atores.
Infelizmente, apenas parte destas alterações transformou-se em lei
ou foi incorporada à cultura do movimento sanitário local. Em con-
sequência, o governo seguinte reintroduziu uma série de contrarrefor-
mas de cunho autoritário e centralizadoras. Mas até hoje, três anos pas-
sados, persistem algumas reformas apesar da má vontade dos atuais
dirigentes.
Trabalhávamos com a intenção de ampliar a autonomia das equi-
pes locais, capacitando-as a gerenciarem seu próprio processo de traba-
lho a partir de diretrizes genéricas. Para isso, tivemos de adaptar técni-
cas do planejamento estratégico-situacional de Carlos Matus, e de outros
métodos, às nossas necessidades e possibilidades. Luis Cecílio partici-
pou deste processo e teimou em dar-lhe seguimento mesmo depois de
encerrada a gestão em Campinas. Em Piracicaba, Belém, Ipatinga, ex-
perimentamos desenvolver o que iniciáramos em Campinas. O caminho
que trilhávamos pareceu-nos promissor. Este livro tenta relatar nossos
achados, dúvidas e desafios.

Reformulação da estrutura e das maneiras de se governar


ser viços públicos de saúde
serviços
Uma das principais diretrizes para a consolidação de uma autênti-
ca Reforma Sanitária objetivaria a progressiva desalienação dos traba-
lhadores de saúde.
Hoje em dia, nos serviços públicos e privados, há uma nítida sepa-
ração, um claro distanciamento, entre os profissionais e os pacientes,
256 ♦ G ASTÃO W AGNER DE S OUSA C AMPOS

entre as equipes e a comunidade, entre os trabalhadores e seus meios


de trabalho.13
A maioria dos funcionários públicos tem oscilado entre a apatia
burocrática e espasmos de corporativismo, raramente incluindo no rol
de suas reivindicações qualquer defesa da Saúde Pública. Em particular,
a postura dos médicos tornou-se paradigmática da grosseria, indiferen-
ça e insensibilidade de uma categoria ante o sofrimento humano.
Nesse contexto, falar em qualidade da atenção — até mesmo em
raras situações quando há recursos financeiros suficientes — soa ridícu-
lo para alguns mais cínicos, ou utópico para outros ainda ciosos da sua
própria condição humana.
Ante esse círculo vicioso o que fazer?
O movimento sindical — refiro-me aos setores mais combativos —
tem prescrito um receituário, a meu ver, muito simplificado e unilateral.
Com justiça, clama por melhores salários, planos de cargos mais equânimes,
carreiras e, timidamente, tem também lutado por melhores condições de
trabalho. No entanto, recusam-se a tratar do tema nuclear dessa crise: não
questionam o modo de funcionamento dos serviços públicos, nem tam-
pouco o da Clínica ou o da Saúde Pública. Com o que terminam presos à
lógica conservadora que os escraviza ao clientelismo e à burocracia.
O pensamento administrativo mais progressista, sob variados pre-
textos, não se cansa de inventar técnicas gerenciais supostamente poten-
tes para enquadrar os trabalhadores pouco produtivos e alienados. Mé-
todos de planejamento surgem tão rapidamente quanto sucessivamente
fracassam. Então, alguém acrescenta um adjetivo — estratégico — ou
um slogan — qualidade total —, e a vida cotidiana nos serviços prosse-
gue alheia às novidades teóricas.
Os hospitais e centros de saúde seguem, ano após ano, governo
após governo, incapazes de assegurar tanto acesso aos necessitados, como
eficácia no atendimento às necessidades sanitárias. Fala-se em programas,
ações programáticas, vigilância em saúde, treinamento e, agora, em
controle de qualidade. Às vezes, tenta-se até comprar a boa vontade
dos funcionários mais graduados com a introdução de pagamento por
produtividade.
Para não faltar com a verdade, deve-se admitir que em algumas
localidades logra-se algum sucesso. Contudo, logo em seguida, costuma
13
Gastão W. S. Campos. A saúde pública e a defesa da vida, cit.
Considerações sobre a arte e a ciência da mudança ♦ 257

haver resistência aos avanços, muda-se o governo, e lá se vai quase todo


o esforço por água abaixo.
Não que todo este arsenal seja inútil. Longe de mim escrever tal
heresia. O fato é que são insuficientes, e isso não é uma dedução teórica,
é uma constatação empírica. Necessitamos de planejamento, avaliação de
desempenho, de salários e carreiras adequados, e de muito mais. . ., até
deveríamos acrescentar. Contudo, quando objetivarmos, de fato, erradicar
o desinteresse, a alienação, o agir mecânico e burocratizado, necessita-
remos sempre de algo maior e diverso do que todos estes instrumentos
modernos criados pelas Teorias da Administração de Organizações.
A dificuldade, no entanto, está em que este “algo mais” é um fenô-
meno um pouco mais complexo do que uma simples tecnologia de ges-
tão. Tratar-se-ia, conforme hoje entendo, da criação, por meio de expe-
riências concretas, de novas formas de governar a coisa pública.
Algo tão simples e direto como seria fazer uma radical revolução
silenciosa. Algo tão singelo quanto reordenar a distribuição de macro e
micropoderes. Tratar-se-ia, na verdade, da atualização de uma velha
utopia anarquista, do detalhamento de antigo preceito doutrinário do
socialismo, que nunca foi levado à prática, e que, hoje, mereceria ser
reexaminado à luz de experimentações concretas que realmente implan-
tassem o autogoverno das instituições.
Ou seja, teríamos de criar sistemas de gestão que permitissem a
combinação de diretrizes até agora consideradas e tidas como antagôni-
cas. Haveríamos de inventar, na prática, novas combinações para os ele-
mentos polares que compõem binômios como o da centralização e des-
centralização, autonomia da base e responsabilidade com objetivos gerais
da instituição, planejamento de metas e atendimento às flutuações da
demanda, entre outros. Antinomias complexas, cujo equacionamento
exigiria uma flexibilidade doutrinária e operativa a que não estamos
habituados. Exigiria ainda um grau de democracia, de distribuição de
poder, de confiança no outro, estranhos à sociedade atual e, evidente-
mente, à máquina estatal e ao serviço público.
No livro O Estado e a revolução,14 Lênin chegou a afirmar que o
objetivo mais importante da revolução e do socialismo seria a instalação
de uma intricada rede de autogoverno, suficiente para reordenar a
14
V. I. Lenin. O Estado e a revolução. Obras completas. Vol. IX, 4.a ed. Moscou:
Progresso, 1977.
258 ♦ G ASTÃO W AGNER DE S OUSA C AMPOS

produção e distribuição de bens e serviços segundo uma nova lógica: a


do interesse coletivo.
Todos sabemos que o socialismo real funcionou durante décadas
de maneira capenga e depois fracassou espetacularmente. Sabemos tam-
bém que mal tentaram experimentar esse sistema idealizado de autogo-
verno, de democracia direta, e que, ao contrário, terminaram construin-
do o modelo mais centralizado e autocrático de todos que a humanidade
já vivenciou.
A maioria dos partidos de esquerda e a maior parte dos sindicatos
de trabalhadores também foram se esquecendo dessa consigna. Não ousa-
ram conservar e aperfeiçoar a esperança de substituir a descentralização
e variedade do mercado capitalista por outra forma superior de organi-
zação, que não só assegurasse maior autonomia e liberdade a cada produ-
tor como também superasse o caráter excludente da propriedade privada.
Em consequência, hoje em dia, tornou-se senso comum a noção
que advoga a concentração de poder em cado organização social. Nin-
guém, quase ninguém, estranha ou critica as rígidas estruturas hierár-
quicas e a usurpação de poder pelas cúpulas, fatos corriqueiros em quase
todas as instituições estatais ou privadas. Manda quem é proprietário ou
dispõe de mandato governamental. Todos nos submetemos a esse pa-
drão de dominação. Não há sequer alternativas culturais ou ideológicas
de peso. Todos nos conformamos a essa maneira de exercício da autori-
dade e da obediência. Da família à fábrica, das relações interpessoais ao
hospital, em todos os lugares, acostumamo-nos a funcionar conectados
a esquemas, mais ou menos rígidos, de papéis e de objetivos.
No meu livro Reforma da reforma: repensando a saúde,15 publicado
em 1992, defendi uma radical reformulação da estrutura organizacional
e dos modos de governar os serviços públicos de saúde.
Centralmente, sugeri uma ampliação prática da diretriz da des-
centralização, principalmente por meio da progressiva e concomitante
delegação de autonomia e de maiores responsabilidades às equipes de
saúde. Quer em hospitais, ou em ambulatórios, ou em centros de saúde,
imaginei organizarem-se os profissionais por equipes, recortadas segundo
o compromisso claro com um certo papel e uma certa função no siste-
ma: saúde da criança na região “x”, cirurgias ou internação de pacientes

15
W. S. Campos. Reforma da reforma: repensando a saúde. São Paulo: Hucitec, 1991.
Considerações sobre a arte e a ciência da mudança ♦ 259

no hospital “y”, etc. E que essas equipes, a partir de diretrizes políticas,


administrativas e assistenciais, de conteúdo mais geral, deveriam, elas
próprias, definir as normas e procedimentos referentes ao desempenho
de suas atribuições, incluindo a organização do processo de trabalho,
seleção de meios e técnicas necessários ao cumprimento dos objetivos
previamente definidos.
Argumentei que essa negociação de mão dupla — de um lado,
diretrizes governamentais e pressão social, e de outro, autonomia —
seria a base para o estabelecimento de um CONTRATO, onde estariam
explicitados, de uma forma bastante concreta e operacional, direitos e
deveres desses trabalhadores e dos clientes. Refiro-me a compromissos
com indicadores de produtividade, de qualidade, de humanização e de
acolhimento dos pacientes ou grupos comunitários.
Em consonância com a experiência dos movimentos populares da
região leste da cidade de São Paulo, advoguei a criação de um sistema de
cogestão tripartite: com o poder executivo, trabalhadores de saúde e usuá-
rios. Na verdade, tentamos, em Campinas e em São Paulo, estender para
as unidades e regiões de saúde o espírito da lei constitucional que criou os
Conselhos nas diversas instâncias de governo: município, estados e União.
Ora, conforme demonstrei, não faz parte da tradição política bra-
sileira nem a abertura do Estado ao controle da sociedade e nem a
convivência com formas, ainda que moderadas, de autogoverno. Assim,
hoje, estamos sendo reconduzidos ao velho ciclo vicioso de que nada
poderia ser diferente, já que formas democráticas de gestão não funcio-
nariam (!), e, portanto, a saída estaria ou em déspotas esclarecidos ou na
livre iniciativa. . .
Na realidade, julgo que não se constituíram atores coletivos po-
liticamente empenhados na invenção dessa nova maneira de viver a vida
institucional. Os ocupantes de cargos executivos, em geral, não costu-
mam abrir mão do poder e, frequentemente, dificultam ou até mesmo
destroem todos os rebentos de democracia direta. Muitos segmentos pro-
fissionais têm se aproveitado da autonomia recém-adquirida para se pro-
teger dos encargos decorrentes da função para a qual foram contrata-
dos e a população, bem essa, ou seria imediatista e histérica, ou
prestar-se-ia à manipulação política ou, simplesmente, assistiria bestifi-
cada ao insucesso do Sistema Único de Saúde. Um desastre, e já estaria
comprovada mais uma vez a tese de que autogoverno e cogestão de
260 ♦ G ASTÃO W AGNER DE S OUSA C AMPOS

instituições públicas seriam meras quimeras, fantasias anarquistas. . .


Acredito, contudo, que essas afirmações, que esses argumentos,
são sofismas maquiavélicos, todos interessados em conservar as elites no
comando da vida em sociedade e em manter o povo embrutecido. Às
vezes, até partem de figuras bem-intencionadas mas cansadas por suces-
sivas derrotas em frentes institucionais e políticas.
De qualquer forma, desistindo-se do autogoverno e da cogestão
caímos inevitavelmente ou na destruição do Estado ou nas velhas for-
mas de funcionamento da máquina pública. Mas essas duas alternativas
já as conhecemos bem: redundam em desperdício, corrupção, clientelis-
mo, privatização do público e em burocratização. Aí, então, ou nos des-
cabelamos, ou nos transformamos em neoliberais: que tudo se privatize
e que cada um cuide do seu próprio interesse. . ., ou então não aceita-
mos tão ingenuamente o argumento de impossibilidade e concluímos
que autogoverno e cogestão são consignas revolucionárias e dependen-
tes, portanto, da instituição de umas duas ou três ou até sei lá quantas
revoluções. Ainda que revoluções de um novo tipo, lentas e progressi-
vas, de qualquer forma, estamos obrigados a concluir que só atingire-
mos esses objetivos revolucionando a base da sociedade, transformando
a cabeça e o comportamento de cada trabalhador, alterando as normas e
procedimentos de cada e da maioria das instituições e modificando a
cultura e a distribuição de poder em toda a sociedade.
Entendo que na área da saúde há condições mais favoráveis para o
desenvolvimento de experiências que caminhem no sentido acima de-
fendido. Provavelmente, essas vantagens seriam decorrentes da tradicio-
nal e peculiar autonomia profissional de médicos e de outras categorias
da saúde e, no caso brasileiro, da legislação que prevê controle social
dos serviços públicos. E tanto é verdadeira essa constatação que hoje já
podemos avaliar casos concretos nso quais esse novo estilo de gestão,
ainda que parcialmente, foi experimentado.
E nesses projetos ficou sempre evidente a constatação de que a
busca da democracia direta redunda também em maior explicitação de
toda sorte de conflitos. Os egoísmos, interesses, preconceitos e dife-
renças, de cada segmento ou grupo, tendem a ser colocados na ordem do
dia e não há como deixar de tratá-los no processo regular de gestão.
Acredito não haver processo mais eficaz para a constituição de su-
jeitos coletivos. Dessa maneira, por intermédio da vivência da contratação
Considerações sobre a arte e a ciência da mudança ♦ 261

de pequenos ou de grandes projetos, só assim, as pessoas amadurecem e


aprendem a fazer valer seus direitos, porém considerando sempre a rela-
tividade deles, já que estarão obrigados a atentarem para a fala e o inte-
resse dos outros, sem o apoio de quem cada um quedará impotente na
maioria das situações.
Concluindo esse raciocínio, caberia ainda acrescentar que tal mo-
vimento só será possível se se investir na dialética da produção de sujei-
tos coletivos autônomos e socialmente responsáveis —, que se auto-
produzem. Não que esta produção se dê espontaneamente. Longe de
mim imaginar tal simplificação! Ao contrário, prevejo a necessidade de
trabalho árduo e longo e antevejo a indispensabilidade de “animadores”
e de “apoiadores” desse processo, que tanto podem ser um governo re-
cém-eleito, como a direção de uma instituição, ou parcelas dos traba-
lhadores da base, ou segmentos politizados de usuários, de qualquer
destes ou de outros pontos, ou melhor ainda de todos eles, poderão
surgir incentivos e propostas “não diretivas” para a constituição de
experiências de autogoverno, pois, sem dúvida, o senso comum não pa-
rece ser suficiente para engendrar este tipo de reforma nos costumes
políticos de uma sociedade.
Do ponto de vista teórico, em Campinas, temos nos apoiado criti-
camente — basicamente, reservando-nos o direito de reelaboração —
em toda a tradição referida na primeira parte deste capítulo. Ou seja, de
Gramsci ao agir comunicativo de Habermas, do planejamento estraté-
gico às avaliações de desempenho, em tudo, temos buscado instrumen-
tos úteis ao sucesso de projetos deste tipo. Caberia à Universidade, aos
intelectuais, aos dirigentes políticos, investigarem fórmulas de sociali-
zar estes saberes, traduzindo-os para formulações mais acessíveis e apli-
cáveis às situações concretas de cada caso ou de cada instituição.
Ultimamente, temos valorizado o acervo já acumulado pelos mo-
vimentos de psicoterapia e análise institucional. Tosquelles, na França, e
Basaglia, na Itália, ambos, constataram o efeito terapêutico benéfico da
participação de doentes na gerência de casas de saúde, hospitais, e ou-
tros serviços. Participar do governo de instituições influía positivamente
sobre o processo de cura de muitos pacientes, aumentando-lhes a capa-
cidade de relacionamento social e a iniciativa. Para estes homens, o
autogoverno não era apenas um princípio político ao qual aderiam. Re-
presentava mais, representava um meio para a progressiva constituição
262 ♦ G ASTÃO W AGNER DE S OUSA C AMPOS

de sujeitos autônomos, capazes de sobreviver aos conflitos e dificuldades


inerentes à época e à vida em sociedade.
Se tais experiências tiveram esses efeitos salutares, por que não
estendê-las ao conjunto da sociedade? Haveria caminho mais à mão
para estimular a maioria a saltar para fora da sua alienação cultural,
ética e política, do que permitir-lhe o exercício da arte de governar
ainda que só um pedacinho do mundo?
Lapassade, Baremblitt, Guattari, e outros, vêm trabalhando no-
ções de grande valia para a universalização de experiências de autogo-
verno. Talvez devêssemos nos apropriar de vários desses ensinamentos,
independente de serem aplicados por especialistas em supervisionar aná-
lise de instituições. Em outras palavras, imagino que todo gerente, co-
ordenador, ou integrante de equipes de saúde, deveria receber formação
e ser orientado para operar com esses conhecimentos no dia a dia. De
tal forma que a descentralização do poder decorrente do autogoverno
não descambe nem para a guerra civil entre grupos, nem para corpora-
tivismos alienantes e tampouco para a paralisia institucional.

Reordenação da clínica e da saúde pública


Há trinta anos o pensamento crítico aplicado à análise da saúde
vem demonstrando o papel de controle social da Clínica e da Saúde
Pública. Evidenciou a estreita ligação da primeira à lógica de mercado,
e da segunda às razões de Estado. Pouco se tem discutido, no entanto,
sobre as maneiras de resgatá-las deste limbo onde o estruturalismo si-
tuou todos os discursos fundados em saberes pretensamente científicos e
em poderes suprassocietários.
Colocando de outro modo, interessaria ou não à humanidade re-
construir essas práticas sanitárias de forma que lhes aumentasse a capa-
cidade de defender a vida dos indivíduos?
Se respondermos de maneira afirmativa à questão deveríamos, em
consequência, nos empenhar em somar à crítica outras propostas positi-
vas, ou seja, sugestões de como reordenar a Clínica e a Saúde Pública
superando os limites que lhes foram impostos pela história. E aqui não
estou falando exclusivamente da ampliação do horizonte de conheci-
mentos científicos, de novas descobertas, de novas técnicas diagnósticas,
preventivas ou terapêuticas. Penso, particularmente, na redefinição da
função social da Clínica e da Saúde Pública. Afinal, hoje, já é possível
Considerações sobre a arte e a ciência da mudança ♦ 263

imaginarmos novos objetivos e, portanto, novas relações entre profissio-


nais e pacientes, entre as instituições de saúde e a sociedade.
Recentemente, acusaram-me de onipotência e de idealismo por
pretender julgar as práticas em saúde segundo sua capacidade de defesa
da vida,16 mas se assim não for por que razão conservá-las? Por que
cuidaríamos da sua reprodução social ao invés de simplesmente lutar-
mos por suprimi-las da face da terra? Por que deveríamos despender
tempo e dinheiro com elas, senão para que nos auxiliem na reprodução
e manutenção da vida?
Não há onipotência nesse desejo, haveria se as pensássemos como
únicas ou, até mesmo, principais instâncias de manutenção da vida. Não
se trata disso. Do que se trata é da crítica ao caráter ritual habitualmente
assumido pela Clínica, à sua tendência de medicalizar a saúde e a doen-
ça, e ao predomínio de procedimentos ditados pelo interesse econômi-
co. Do que se trata é de apontar a estreita vinculação da Saúde Pública
com a dominação política e econômica, não estando, nem uma e nem
outra, ordenadas segundo o império da luta contra o sofrimento, a dor, a
doença e a morte.
Examinemos primeiramente as possibilidades de reformulação da
Clínica.
Dentro desse propósito, valeria repensarmos os critérios utiliza-
dos para delimitar a noção de CUR A.
Pouco progredimos neste campo desde os trabalhos sobre O normal
e o patológico, de Georges Canguilhem, nas décadas de 40 e 60.17 E mais
grave ainda foi que retivemos, com uma trivialidade repetida por muitos
em tom religioso, apenas uma certa parte das conclusões do filósofo
francês. Contentamo-nos em reter dele a ideia de que a clínica médica é
de fato normativa, chegando até a ordenar “os modos de andar a vida”. A
Medicina Social, durante todos esses anos, fez pouco mais do que torcer
o nariz à Clínica e abrir a boca de espanto ante as contradições da velha
dama, fazendo, com desprezo, um sonoro e pudico “Oh!”.
Na verdade, não soubemos dar prosseguimento à obra de Can-
guilhem, superando o relativismo paralisante que seus raciocínios ini-
cialmente poderiam sugerir. Sim. . . de fato, a ênfase na descoberta de
16
João C. L. Fernandes. A quem interessa a relação médico-paciente. Cadernos de
Saúde Pública, vol. 9, n.o l, jan.-mar. 1993.
17
G. Canguilhem. O normal e o patológico. 2.a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982.
264 ♦ G ASTÃO W AGNER DE S OUSA C AMPOS

que a doença era percebida a partir de normas socialmente construídas e


não se fundava exclusivamente em supostos valores anormais, eterna-
mente válidos e escritos desde sempre na natureza, somente à espera de
que algum cientista os viesse desvendar, estas surpreendentes conclusões
como que ofuscaram nosso discernimento, impedindo-nos de olhá-las
com outro viés que não o impregnado pelo negativismo da época.
Ninguém perguntou — a partir e de dentro do discurso de Can-
guilhem, e não contra ele como era comum à ordem médica fazê-lo,
mas poucos perguntaram — e daí? Depois disso tudo que nos explicou
o filósofo-médico como ficamos no hospital, na escola médica, na Saú-
de Pública? Mais espertos e irônicos, isso sem dúvida, todos ficamos.
Mas, e a luta contra a morte, e o desafio de manter a vida utilizando-se
e apoiando-se também em procedimentos específicos à clínica e à epi-
demiologia, enfim, ao campo singular dos serviços de saúde e não às
outras instâncias da organização social, que lições poderíamos reter?
Hoje, depois de todo o porre de academicismo crítico, deveríamos
retornar a Canguilhem utilizando-o, agora, para a reconstrução das prá-
ticas sanitárias. Refiro-me a conceitos como os seguintes:
“[. . .] para o homem a saúde é um sentimento de segurança na vi-
da, sentimento este que, por si mesmo, não se impõe nenhum limite”.18
“A saúde é uma maneira de abordar a existência com uma sensa-
ção não apenas de possuidor ou portador, mas também, se necessário, de
criador de valores, de instaurador de normas vitais”.19
Ora, fica evidente nessas citações, bem como em toda a obra do
autor, a conceituação dinâmica e não mecânica dos termos saúde, doença
e cura. Contudo, o dinamismo, o subjetivismo e o relativismo cultural
dessas noções não anulam a irredutibilidade desses valores para um dado
indivíduo, vivendo em um certo tempo e em certo espaço social e geo-
gráfico. Tampouco mascaram a estreita vinculação dessa instauração de
normas vitais com os desejos, interesses e necessidades de cada um e de
toda uma coletividade. Ou seja, saúde pressupõe uma certa capacidade
de utilização de instrumentos naturais e artificiais — socialmente cons-
truídos, como o foram a Clínica e a Saúde Pública — com o intuito de
afastar a dor, o sofrimento e a morte.

18
G. Canguilhem. O normal e o patológico. 2.a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982.
19
Ibidem.
Considerações sobre a arte e a ciência da mudança ♦ 265

Pois é exatamente baseando-nos nessa irredutibilidade que pode-


ríamos propor uma reconstrução do conceito de Cura: curar alguém
seria sempre lutar para a ampliação do COEFICIENTE DE AUTONOMI A
dessa própria pessoa.
Partindo das limitações decorrentes da doença, das contingências
impostas ou pela genética ou pelo contexto psíquico e social, os serviços
de saúde deveriam trabalhar para aumentar a capacidade dos indivíduos
e das comunidades de lidarem com essas dificuldades, eliminando-as ou
recebendo apoio para reduzir seus efeitos maléficos.
Em dezembro de 1992, eu já intuíra que: “o objetivo de todo traba-
lho terapêutico é ampliar a capacidade de autonomia do paciente”.20
Ou seja, as instituições de saúde deveriam existir tanto para ajudar
cada cliente a melhor utilizar os recursos próprios, partindo sempre do
reconhecimento da vontade e desejo de cura de cada um, como para lhes
oferecer recursos institucionais também voltados para melhorar as con-
dições individuais e coletivas de resistência à doença. Nesse sentido,
faria parte fundamental de qualquer processo terapêutico todo esforço
voltado para aumentar a CAPACIDADE DE AU TONOMI A do paciente,
para melhorar seu entendimento do próprio corpo, da sua doença, de
suas relações com o meio social e, em consequência, da capacidade de
cada um instituir normas que lhe ampliem as possibilidades de sobrevi-
vência e a qualidade de vida.
A aplicação dessa diretriz não só revalorizaria a prática clínica,
como estimularia o combate à medicalização, na medida em que ensejaria
novos procedimentos terapêuticos mais ligados ao psíquico, à reeducação
sanitária, instituindo novas formas de avaliação das práticas em saúde.
Por exemplo, seria mais adequado, como tratamento da hipertensão,
os que combinassem tecnologias medicamentosas potentes para reduzir
índices pressóricos, com ações voltadas para aumentar a capacidade das
pessoas de escutar e de lidar com o próprio corpo, com eventuais patologias
e com as condições externas que as agravam ou que lhes protegem: servi-
ços de saúde, tensão e nervosismo no trabalho, obesidade, tabagismo, etc.
Isso exigiria de cada Equipe de saúde uma abordagem mais in-
tegral e holística de cada caso, levando-as a superar, na prática, o

20
Gastão W. S. Campos. Modelos de atenção em saúde pública. Saúde em Debate,
n.o 37, dez. 1992.
266 ♦ G ASTÃO W AGNER DE S OUSA C AMPOS

mecanicismo biologicista e reducionista que vem sustentando teorica-


mente a degradação da clínica.
Defendo um movimento progressivo, um processo, onde se bus-
caria descentrar, ampliar o horizonte e as responsabilidades do olhar
clínico, demonstrando que a cura ou a promoção da saúde dependem
sempre do meio social e da história psíquica de cada indivíduo e que,
portanto, as ações clínicas, se se pretenderem eficazes, não poderão nun-
ca se restringir à mera utilização de drogas ou de técnicas cirúrgicas.
Ou seja, além desse clássico padrão de intervenção terapêutica, ur-
giria trazer para o rotineiro espaço da prática clínica a valorização da fala
e da escuta. Falas do profissional, do doente e da sociedade, escuta de uns
pelos outros. Sem a renovação dos modos como vem se exercendo a co-
municação profissional-paciente, ou serviço de saúde-comunidade, nunca
diminuiremos a dependência do homem moderno da instituição médica.
Independência aqui não quer dizer rompimento ou tampouco des-
ligamento. Não se dispensa o apoio da Clínica. Ao contrário, imagina-
-se até que uma prática clínica renovada poderia contribuir para que os
indivíduos tenham relações mais produtivas e maduras com a doença,
com a prevenção da saúde, com os profissionais, com os dispositivos tec-
nológicos e até mesmo com as instituições de saúde. As equipes de saúde
poderiam trocar com os clientes noções sobre as maneiras que eles pró-
prios poderiam acionar os recursos médicos, sociais e individual-fami-
liares, existentes em cada situação específica.
Não há como atender e, ao mesmo tempo, transformar a demanda
ávida por ações médicas que deságua em prontos-socorros, sem a con-
tribuição da própria clínica reformulada e competente para estabelecer
novas relações com a clientela. Daí a importância estratégica de temas
como Vínculo, Acolhimento, Contrato, Autocuidado, entre outros, to-
dos componentes essenciais ao repensar do exercício moderno da clíni-
ca. Ver como estes aspectos são incorporados ao processo de gestão.
Um projeto desses depende, portanto, da demonstração de que a
passividade do paciente ou da comunidade é, em geral, um empecilho à
cura, à prevenção e à promoção da saúde. Não haverá forma mais con-
tundente de combate à medicalização do que a introdução no discurso
da saúde e, por decorrência, nas práticas médicas, do tema do Autocui-
dado. Avaliar toda ação por sua capacidade de influenciar o coeficiente
de autonomia dos pacientes.
Considerações sobre a arte e a ciência da mudança ♦ 267

Assim, por exemplo, um programa de atenção à terceira idade


teria entre seus principais objetivos assegurar maior autonomia aos idosos.
Como? Conservando-lhes a capacidade de locomoção, a liberdade de ir
e vir, estimulando o enfrentamento de discussões sobre a pertinência do
velho, direitos, modos de vida, e, sobretudo, examinando a contribuição
que equipes de saúde poderiam dar a estes sujeitos vivenciando expe-
riências existenciais e sociais muito bem-definidas e concretas. De for-
ma semelhante poderíamos avaliar programas de saúde mental, DST,
saúde da mulher, etc.
Depois da acusação de onipotência, depois que me imputaram o
desejo de fazer reformas sociais a partir da Saúde, me vejo obrigado a
comentar o que, a mim, me parecia o óbvio. É evidente que a ação clínica
não é o lugar mais promissor de onde se poderiam reconstruir culturas,
ideologias, costumes e, em suma, sujeitos sociais. Não, sem dúvida, não o
é. Contudo, eu perguntaria em acréscimo: e há, de fato, este lugar místico?
Seria a Igreja, o partido, a família, a psicanálise, ou a disciplina dos quar-
téis, espaços mais adequados à construção de novas relações humanas?
Cada dia me convenço mais de que esse lugar está, ao mesmo
tempo, em todo e em nenhum lugar. E que, portanto, não há por que
renunciar à esperança de mudança também nas instituições de saúde.
Hospitais, centros de saúde, campanhas, todo e qualquer espaço poderá
ser ordenado em função da defesa da vida das pessoas, afinal essa é a
razão social que os legitima, é este o seu valor de uso, e tanto isso é
verdadeiro que perdidos esses valores não haveria por que conservá-los.
Ou seja, os serviços de saúde devem contribuir para a melhoria das
condições de sobrevivência de indivíduos concretos. E essas melhorias
sempre dependerão de ações sobre as dimensões biológicas, psíquicas e
sociais das pessoas. A clínica não é onipotente em nenhum desses cam-
pos. Os corpos biológicos, inapelavelmente, se desgastam e morrem. A
mente ante o racionalismo do clínico ou do epidemiologista é mais
complexa do que o somatório de todos os computadores de ontem e de
hoje. E as condições sociais, essas resistem até as revoluções, quanto
mais à ação de uma ou outra equipe de saúde. . .
Mas, mesmo assim, sempre haverá ações terapêuticas indicadas
para melhorar as condições de existência, e, de preferência, muitas vezes
teremos de combinar elementos dos três níveis de intervenção acima
citados. Como tratar a hipertensão arterial de um adulto ocidental sem
268 ♦ G ASTÃO W AGNER DE S OUSA C AMPOS

considerar as questões do trabalho, da renda, dos afetos, das frustrações,


de possíveis anomalias morfológicas ou funcionais? Não se trata de oni-
potência, mas da busca de competência na defesa da vida. Resgatar o
valor de uso da clínica, libertá-la de sua escravidão ao valor de troca.
Infelizmente, a ordem médica é extremamente conservadora. É
resistente a reformas de fundo dos modelos de atenção, tende ao endeu-
samento dos meios diagnósticos e terapêuticos, abandonando, cada dia
mais radicalmente, a essência da clínica. Médicos especialistas transfor-
mam-se em operadores de máquinas, em efetuadores de procedimentos
parciais e insuficientes quando se tem em mira a cura do paciente. Tal
postura só se sustenta do ponto de vista científico por meio da operação
que transforma a pessoa de cada paciente em um objeto sobre o qual se
instala a doença, sempre muito igual a si mesma. Se por um lado essa
transformação do sujeito da doença em objeto se justifica em algumas
situações, como quando há coma profundo e espera-se pronto resta-
belecimento da consciência, ou quando se faz necessário estudar o corpo
como objeto de saber, na maioria das circunstâncias; tal postura é redu-
cionista. Chegando a ser, em minha opinião, uma das principais causas
da ineficácia da clínica moderna. Até mesmo um cirurgião não pode
desconhecer a subjetividade do seu cliente, se se tem como critério valo-
rativo o restabelecimento integral do cliente.
Creio que deveríamos imaginar estratégias para a implosão dessa
ordem médica conservadora a partir de dentro dela mesma, compondo
uma série de ações e de mudanças que utilizassem elementos e materiais,
sejam abstratos ou concretos, pertencentes à própria instituição que pre-
tendemos reformular. O amadurecimento histórico das contradições da
medicina biológica e mercantil autorizam-nos a supor viáveis alterações
fundamentais na prática clínica.
É nesse sentido que imagino o reforço do vínculo profissional/equi-
pe de saúde com o paciente como um dos instrumentos capazes de poten-
cializar transformações nessa prática. A ideia do vínculo prende-se tanto à
busca de maior eficácia (aumento do percentual de curas), como à noção
que valoriza a constituição de espaços propícios à produção de sujeitos
autônomos: profissionais e pacientes. Ou seja, só há vínculo entre dois
sujeitos, exige-se a assunção do paciente à condição de sujeito que fala e
deseja e julga, sem o que não se estabelecerão relações profissional/
/paciente adequadas.
Considerações sobre a arte e a ciência da mudança ♦ 269

Vínculo, mais desmitificação dos meios diagnósticos e terapêu-


ticos, mais estímulo ao autocuidado, mais trabalho em equipes com
maior autonomia profissional e concomitante maior responsabilidade
pela solução de problemas de saúde e pela gerência dos processos de
trabalho, e. . . são todos caminhos para se vencer a resistência da clínica
mecanicista e biologicista, para se derrotar o poder de controlar mentes
e corpos e para se limitar a ganância da clínica puro valor de troca. . .
caminhos. . .
De qualquer modo, é necessário que questionemos também o ab-
solutismo da Clínica e da Epidemiologia, sempre quando elas reivindi-
carem o monopólio do estabelecimento de normas sanitárias, ou a ex-
clusividade em definir o que é doença e o que é saúde.
É sempre bom recordar que essa normatividade nunca tem uma
objetividade positiva absoluta, tem graus de objetividade misturados com
outros graus de subjetividade e outros tantos de determinação mais so-
cial. As normas de saúde variam com as condições sociais e as histórias
individuais. Do que não deveríamos deduzir que estaria vedado à Clíni-
ca ou à Epidemiologia o confronto com esses padrões individuais ou
sociais de normatividade. Não, pelo contrário, a melhoria dos padrões
de consciência sanitária (cidadania aplicada às necessidades de saúde)
dependerá muito de uma Clínica e de uma Saúde Pública críticas, capa-
zes de dialogar com a sociedade a partir dos parâmetros, achados e
descobertas, produzidas pela pesquisa e pela prática dessas disciplinas.
O que urgiria alterar seria a relação de autoridade entre estes dois ato-
res: ordem médica e sociedade civil. A troca de opiniões e de certezas
precisa ser bem mais flexível e bem mais intensa e constante.
A normalização das noções sobre saúde e doença realizada so-
mente a partir de conhecimentos positivos (anatomofísiopatológicos),
ou estatísticos (formalismo quantitativo), ou até mesmo sociológicos
(formalismo crítico-qualitativo), tem propiciado uma pura idolatria dos
meios e das formas, desligados dos fins, dos resultados e dos conteúdos
das práticas sanitárias. O sofrimento e as doenças das pessoas, as possibi-
lidades concretas de minorá-los, tudo isso tem ido para segundo plano.
E na verdade, em qualquer circunstância, só se consegue viver
gastando a vida, gastando saúde, e, segundo Canguilhem, saúde seria
exatamente essa maior disponibilidade de escolher entre vários modos
de andar a vida, e a doença seria a redução dessas possibilidades, e a
270 ♦ G ASTÃO W AGNER DE S OUSA C AMPOS

morte o zero absoluto de escolha entre riscos, a almejada condição idea-


lizada do risco nulo de adoecimento!
Enfim, a utopia do corpo conservado para sempre só se realiza
com a Mumificação. Dura-se para sempre, só que à custa do movimen-
to, do prazer, da dor e da vida.
Por outro lado, ao adoecermos, ou no início, ou no meio, ou no
fim do episódio mórbido, sempre, em algum momento, teremos de inven-
tar um esforço vital, sem o qual não derrotaremos a morte. Na dialética
desses impulsos sobrevivemos, até que um dia, derrotados, morremos.
Toda essa digressão é para criticar a histeria médico-sanitária diante
de alguns riscos e sua imensa indiferença diante de outros. Só o restabe-
lecimento da arte da fala e da escuta entre profissional e paciente, entre
equipe e família, entre instituições médico-sanitárias e sociedade, con-
seguirá resgatar a eficácia e a qualidade da Clínica e da Saúde Pública.
Examinemos, agora, alguns aspectos da Saúde Pública contempo-
rânea.
A Saúde pública diferencia-se da clínica por mirar os problemas
de saúde através de um olhar dirigido ao coletivo, embora ocasional-
mente se utilize de intervenções sobre indivíduos para atingir seus pro-
pósitos mais gerais. Acostumamo-nos, também, a pensar no Estado como
o principal ator a dirigir as atividades da Saúde Pública, embora seja
possível imaginar-se ações desencadeadas por segmentos ou organiza-
ções da sociedade civil.
A Saúde Pública vive, hoje, uma crise sem precedentes, crise de
identidade. Não é simples definir seu objeto de intervenção, nem suas
atribuições, ou tampouco seus limites. Não há definições precisas. Con-
tudo, ela já conheceu momentos de glória. Em relação à poliomielite,
por exemplo. A vacinação em massa alterou radicalmente a relação da
sociedade com essa doença e com suas sequelas. Nas décadas de 50 e 60
a ortopedia e a pneumologia tendiam a multiplicar uma verdadeira pa-
rafernália tecnológica, destinada a reabilitar e a compensar as marcas
que as frequentes epidemias de pólio deixavam nas pessoas. Hoje, cor-
tou-se o mal pela raiz e a ortopedia mudou seu eixo, sobrevivendo liga-
da à traumatologia decorrente da violência da vida moderna: acidentes
de trânsito, de trabalho, guerras, etc.
Naquele tempo, a Saúde Pública, utilizando procedimentos inter-
nos ao seu campo — centralmente, a vacinação — conseguiu reordenar
Considerações sobre a arte e a ciência da mudança ♦ 271

um ramo da Clínica. Hoje, a Saúde Pública até consegue, por meio da


Epidemiologia, diagnosticar as consequências trágicas da violência, mas
a maioria das medidas que solucionariam radicalmente esse problema
não estão ao alcance dos serviços de saúde. Escapam-lhe do âmbito de
atuação e se situam nas políticas de trânsito, na legislação, no combate
da criminalidade, e em outras ações que escapam à capacidade de in-
tervenção dos serviços de saúde. Penso que aí se situa um dos pontos
elucidativos dos impasses atualmente vivenciados por esse ramo de ati-
vidade. Ou seja, em muitos casos sobra aos especialistas sanitaristas
exortar a sociedade a reagir a certas contradições da ordem social, res-
tando-lhe um campo muito restrito para ações típicas e exclusivas da
saúde.
Na verdade, assim como no caso da violência, há nas sociedades
industrializadas, como o é a brasileira, uma tendência de ampliação da
importância das chamadas doenças crônico-degenerativas, de determina-
ção mais complexa, e sempre dependentes de um leque de intervenções
também muito mais variado. Hipertensão arterial, diabetes, neoplasias,
envelhecimento, doenças mentais ou psicossomáticas ou autoimunes,
todas, exigem ações tanto de cunho mais social quanto de proteção indi-
vidual. Em todos esses casos, o discurso sanitarista mais purista fica a
dever a explicação do processo saúde-doença e, ainda mais dramatica-
mente, também deve quando propõe medidas de intervenção em defesa
da vida dos grupos populacionais atingidos por alguma dessas enfermi-
dades. E é exatamente nestas lacunas que reina a Clínica medicalizante
e biologicista, e de onde se propõe até o fim da Saúde Pública.
No entanto, o raciocínio exposto está longe de esgotar os porquês
da crise. No Brasil seguem varonis as epidemias de malária, de dengue,
cólera, aids, e, ainda, as endemias de tuberculose, hanseníase, mortali-
dade infantil e materna. E aí?
Bom, se é verdade que o conceito de público é muito mais amplo
do que o estatal, não há como separá-los completamente. E, portanto,
não há como separar a crise do Estado da da Saúde Pública. Como o
primeiro, também a última tendeu à burocratização. Os sanitaristas in-
ventaram a mania de vigiar quase tudo, exatamente para compensar a
incapacidade de resolver o essencial de cada momento. Abandonaram o
risco da escolha do essencial, a ideia de concentração de esforços. Aí,
muito se perde e pouco se resolve. A rotina até segurou a raiva, e segurou
272 ♦ G ASTÃO W AGNER DE S OUSA C AMPOS

bem. Mas apenas rotina não segurará o cólera, e nem a mortalidade


infantil e tampouco a aids.
A Saúde Pública sofre também com a recessão, com a brutal con-
tenção de investimentos em quase todos os projetos de cunho mais social.
Padece ainda de todos os males característicos da administração públi-
ca: clientelismo, baixa produtividade, pequena criatividade, falta de ini-
ciativas, centralização de poder, etc. A retomada do dinamismo da Saúde
Pública depende, portanto, como já me referi anteriormente, do enfren-
tamento desses nós críticos, depende de uma reforma da coisa pública,
de uma mudança radical nos modos de funcionamento do Estado.
Em consequência desse conjunto de situações desfavoráveis identi-
fica-se, hoje, uma tendência da inteligência sanitária à humildade confor-
mada. Explico melhor: há um rebaixamento significativo dos objetivos
da Saúde Pública, ninguém, nem mesmo os especialistas em saúde, acredi-
ta na eficácia ou na possibiliade de se implementarem projetos de impacto
sobre determinado quadro epidemiológico. Há uma crise da vontade po-
lítica, ninguém ousa mais pensar em erradicar alguma epidemia ou ende-
mia. Ao contrário, argumenta-se e demonstra-se a inevitabilidade da con-
vivência com uma série de moléstias para as quais já possuímos tecnologias
de combate. Assim, o cólera teria entrado no Brasil para ficar, e inúmeros
sanitaristas advertem a sociedade para aprender a conviver com ele. Não
há sequer planos para erradicação da malária, prefere-se vigiar.
Além da superação dessa postura de subalternidade, da construção
de uma nova subjetividade sanitária, urgiria recuperar a capacidade de
proteção social da Saúde Pública. Ou seja, reconhecer o papel de pron-
to-socorro social dessa atividade. A Saúde Pública, como instituição,
existe exatamente para diminuir o impacto mórbido das agruras da or-
dem social. Enquanto não se melhora a distribuição de renda, ou en-
quanto a sociedade a melhora gradativamente, em qualquer dos casos,
espera-se da Saúde Pública, utilizando-se de combinações tecnológicas
de impacto sanitário, diminuir a morbidade e a mortalidade em virtude
de problemas evitáveis. Se no parágrafo anterior eu reclamava do exces-
so de humildde e de subserviência da Saúde Pública, agora reclamo da,
às vezes, proverbial arrogância de ousar pensá-la substituindo as revolu-
ções ou reformas sociais.
Na realidade, perdemos a capacidade de combinar, com liberdade,
uma série de tecnologias conforme o problema a ser enfrentado, de
Considerações sobre a arte e a ciência da mudança ♦ 273

maneira que alivie e diminua as agruras do social e do econômico sobre


a vida e morte das pessoas. Repensar a Saúde Pública hoje exige hetero-
doxia metodológica. Exige autorizarmo-nos a pensar como arsenal à
disposição do sanitarista toda uma série de técnicas, mutáveis conforme
a disponibilidade de recursos e o problema a ser enfrentado. Dessa for-
ma, há que se pensar em Campanhas, com toda a sua verticalidade e
temporalidade, e também na instauração de rotinas de vigilância. Ousar
pensar uma Saúde Pública ativa, que procure a comunidade, que inves-
tigue e descubra processos mórbidos; mas que seja também capaz de
criar meios de incorporar cidadãos, com toda a sua subjetividade e pre-
conceitos, em programas nos quais essa dimensão é essencial, como no
caso da prevenção de doenças cardiovasculares, neoplásicas, ou em pro-
gramas de saúde mental, desospitalização, etc.
Combinar a capacidade de diagnóstico e de eleição de riscos da
Epidemiologia, sempre autorizando a Saúde Pública a trabalhar com
uma certa autonomia ou pelo menos fornecendo-lhe uma série de argu-
mentos para o diálogo com a sociedade; com a valorização e eleição de
prioridades pelos processos políticos, refiro-me a Conselhos de Gestão,
programas de política social, ou através de movimentos sociais, ou cul-
turais, muitas vezes seguindo lógicas diversas de outras de origem mais
médica ou epidemiológica.
São indicações gerais, mas creio que começam a demarcar um
campo em torno do qual poderia se reconstruir a legitimidade social da
Saúde Pública.

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