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A comunicação, a explicação
e a compreensão:
ensaio de uma epistemologia
compreensiva da comunicação1
Dimas A. Künsch
Professor e Coordenador do Programa de
Pós-graduação em Comunicação
da Faculdade Cásper Líbero
Doutor em Ciências da Comunicação
E-mail: dimas.kunsch@gmail.com
não e não! Um elefante é como um enorme injustiça em chamar de cegos e, não menos
barril para se guardar coisas”, defenderam os perversamente, de heréticos os estudiosos de
que haviam cuidado de perceber as exatas di- Comunicação.
mensões da barriga. Faz sentido. Afinal de contas, poder-se-ia
“E, furiosos, brigaram entre si, com pu- inclusive argumentar, uma dose de heresia,
nhos, gritos e berros: ‘É com isto que um ele- no sentido grego de , “escolha”, “op-
fante se parece’. ‘Não, não é assim que o ele- ção”, e também religioso – de que a parábo-
fante é.’ ‘O elefante não tem nada a ver com la budista se utiliza, significando desvio da
isso.’ ‘É assim que o elefante é’”, concluíram ortodoxia –, não costuma fazer mal a nin-
os cegos em sua cegueira, como diz a parábo- guém, em área de conhecimento alguma.
la budista, que finaliza com o ensinamento Aliás, o próprio Adorno (1986, p. 187), ao
do Iluminado: defender com veemência o ensaio como for-
ma de expressão do conhecimento, afirma
que “a mais intrínseca lei formal do ensaio
Nesse mundo estranho é a heresia”.
ao estudo, à pesquisa
e ao melhor da Teorias que (de fato) não se conversam
vocação científica,
a ordem é Talvez não se deva negar abruptamente a
força de expressão, lato sensu, dessas imagens
dividir, separar,
– não pensadas literalmente, portanto –,
encaixotar, engavetar nem desqualificar o que nelas pode nos levar
a pensar melhor e com alguma dose maior
de ousadia sobre o empenho dos principais
“É exatamente assim”, conclui a moral de protagonistas do campo da Comunicação
Buda, que a congregação dos heréticos, em delinear, com alguma segurança maior,
monges, brâmanes e ascetas peregrinos, os contornos e limites de seu “elefante”, com
passivos da heresia, deleitando-se na here- o necessário debate de teorias, estudos e re-
sia, apoiando-se em concepções heréticas,
são cegos, sem olhos: não conhecem nem
sultados de pesquisas.
o bem nem o mal, não sabem o que é cer- Reconhecidamente, é possível admitir,
to nem o que é errado, discutem e brigam, negativamente, sem grandes concessões à in-
combatem e atacam-se uns aos outros com sensatez epistemológica, a existência de uma
os punhais de suas línguas, dizendo, “isto é inteligência que Morin (2000, 2001) chama
certo e isto é errado”, “isto é errado e isto é
simplesmente de “cega”. Uma inteligência, no
certo” (Campbell, 1992, p. 19).
sentido de saber, de que somos, aliás, todos
As imagens que a pequena história evoca herdeiros e ao mesmo tempo seus produto-
podem induzir a certo exagero, se aplicadas res e reprodutores, tradicionalmente muito
de forma irreverente ao entendimento daqui- mais apta a analisar, recortar, definir, con-
lo que às vezes se deixa ver, talvez mais do que ceituar, enquadrar e explicar (o “elefante”),
se imagina ou se deseja, no campo nosso de que a “tecer em conjunto” (sentido que Mo-
cada dia da Comunicação, com suas teorias rin assume do latim complexus) e a incluir,
antigas e novas, seus resultados de pesquisa, a abraçar os sentidos de um mundo que é
suas diferentes visadas epistemológicas. “misturado”, no dizer de Riobaldo, persona-
Menos mal, se for assim. Enfim, nada mais gem de Grande sertão: veredas. Nesse modelo
alentador que obter de algum entendido, sine de pensamento, regido pela análise e pela ex-
ira et studio, a garantia de que há realmente plicação, o Erklären assume o estatuto san-
um tremendo exagero, mais, uma gigantesca gue-azul de suprema nobreza, empurrando
para fora do palco os esforços humanos do das com afinco: o tempo e o assentamento
Verstehen.2 de poeira revelaram ser essas discussões não
De fato, se a posição teórica contrária a apenas necessárias, mas essenciais para o
esta percepção, de recorte mais pessimista,3 avanço da produção de conhecimentos e das
pudesse ser facilmente admitida, não esta- práticas que neles se sustentam.
ríamos retomando hoje, por exemplo, com A língua, diz o ditado popular, toca onde
ênfase, o tema da interdisciplinaridade, que, o dente dói. E a dor, como se mostra, é a dor
para dizê-lo de forma drástica, tende em causada pela separação, a fragmentação, a
geral a significar a derrubada de muros e não-dialogia entre conhecimentos e saberes
barreiras que disciplinas e áreas inteiras de dispersos, o mais das vezes, a rigor, blinda-
conhecimento ergueram ao redor de si para dos. É nesse sentido crítico, como reforça
manter afastados os “inimigos”, assumindo a o Documento de Área das Ciências Sociais
forma espúria de verdadeiros latifúndios de Aplicadas 1,4 que a interdisciplinaridade
conhecimento mutilado. Nesse mundo es- transformou-se num debate hoje de ampli-
tranho ao estudo, à pesquisa e ao melhor da tude internacional, tendo adquirido recen-
vocação científica, a ordem é dividir, separar, temente no Brasil status de “política pública
encaixotar, engavetar. Nele, a compreensão de educação”:
– no sentido original latino de comprehende-
Pode-se afirmar que a interdisciplinarida-
re, que é o de incluir, integrar, somar – é fla- de é uma abordagem epistemológica para
grantemente derrotada. Assustado, o diálogo superar a fragmentação imposta pela es-
mantém-se à distância. pecialização, que orientou a implantação
Retomando o tema da interdisciplinari- da universidade brasileira, a partir da dé-
dade, com tudo o que ele possui de promes- cada de setenta. Supõe diferentes modos
de relação entre saberes, como também a
sa e em igual medida de desafios, observa-se
redefinição constante de fronteiras entre
como discussões que há décadas vêm nos in- campos. Nesse sentido, a abordagem inter-
comodando, cansando até, tendo a partir de disciplinar aponta para um conceito reno-
certo momento sido mantidas no limbo do vado de ciência em que estão presentes as
esquecimento quase completo, são retoma- imbricações entre ciência, política, econo-
mia, sociedade, cultura e arte.5
2
Erklären e verstehen (explicar e compreender, respectiva-
mente, em alemão) são objeto das preocupações de Wilhelm “Como nossa educação nos ensinou a
Dilthey (1833-1911) no contexto da discussão sobre as dife- separar, compartimentar, isolar e não a unir
renças entre “Naturwissenschaften” e “Geisteswissenchaften”.
O conceito de compreensão nas chamadas “ciências humanas”, os conhecimentos, o conjunto deles cons-
no entanto, é particularmente associado à obra de Max Weber titui um quebra-cabeças ininteligível”, es-
(1995a; 1995b). Movendo-se aparentemente na perspectiva
da proposição metodológica de Dilthey, Weber trabalha na
creve Morin (2000, p. 42-43), para quem “a
direção de pensar que o estabelecimento de relações “causais” incapacidade de organizar o saber disperso
ou “explicativas”, nas ditas “ciências naturais”, encontraria seu e compartimentado conduz à atrofia da dis-
correlato na dimensão “compreensiva” das “ciências humanas”.
Aqui, neste trabalho, o entendimento de “compreensão” vincu- posição mental natural de contextualizar e
la-se fundamentalmente ao pensamento da complexidade, de de globalizar”. Essa mentalidade, modelo
Edgar Morin, e à natureza da compreensão como um Os sete
saberes necessários à educação do futuro (2000).
ou, mais ambiciosamente, paradigma de
3
A opção pelo signo da compreensão e a consequente fuga, até
onde se imagina possível, do furor explicativo, como deverá fi- 4
Disponível em www.capes.gov.br. Acessado em 16/02/2014.
car claro na sequência, deixa o caminho aberto. positivamente, 5
O trecho deixa clara uma visão compreensiva da interdisci-
para o reconhecimento compreensivo dos esforços coletivos de plinaridade, apontando na direção, necessária e fundamen-
estudo e pesquisa em Comunicação. Discuto o verdadeiro pes- tal, do diálogo entre disciplinas e áreas de conhecimento e de
simismo que costuma vigorar no campo da Comunicação em saber, sem renunciar ao esforço de “redefinição constante de
outro texto (Künsch, 2012a), brincando que se trata da “arte de fronteiras entre campos”. Pode-se supor, no espírito do texto,
carpir defunto vivo”. Aliás, pode-se considerar o pessimismo um que por “redefinição de fronteiras” não se entenda de modo
subproduto do signo da explicação, isto é, da utopia delirante de algum o erguimento de muros e barreiras que, enfim, apenas
que é preciso, hic et nunc et ad aeternum, dizer sempre a última contribuiriam para consolidar a indesejável fragmentação, a
palavra sobre tudo e sobre qualquer coisa, senão não vale. não-dialogia.
conhecimento – não nos ocuparemos neste volta não garantida do herói com o elixir da
texto das distinções entre os termos –, que bem-aventurança.
eleva o conhecimento científico à catego- A não-dialogia, a solidariedade indigente,
ria de quintessência de todo saber, certeza o vício explicativo e a eterna esperança de se
e verdade, constituindo-se num autêntico dizer a última palavra sobre tudo, nas ruas
feudalismo de ideias, não produz apenas da vida tanto como nos corredores e salas da
cegueira cognitiva. Também, como deve ter academia, conduz facilmente àquela atitude
ficado claro já na breve exposição sobre o negativa de que se falava antes: é como se so-
tema da interdisciplinaridade, reduz o po- frêssemos de uma doença incurável, que nos
tencial comunicativo entre estudiosos, pes- tornasse incapazes de nos reconhecermos
quisadores, professores e demais atores do como campo de conhecimento e de identi-
campo da Comunicação. A ternura, para a ficarmos as reais questões que nos acossam,
qual Restrepo (1998) reivindica o estatuto desafiam e animam, nossa produção cien-
de uma verdadeira episteme, segue sendo tífica, nossas teorias, nossos programas de
aplastada pelo jogo infeliz do certo e do er- pós-graduação em número crescente, nos-
rado, do vencedor e do vencido, o jogo do sos mestres e doutores, nossa tradição, nossa
perde-e-ganha, uma vez que nosso modelo memória. A fragmentação de saberes, a in-
de conhecimento, ainda segundo Restrepo, feliz ideia que “equipara conhecimento à ci-
reveste-se de uma natureza predominante- ência organizada” (Adorno, 1986, p. 167) e o
mente violenta, “guerreira”. complexo, no sentido junguiano do termo,6
Em resumo, e paradoxalmente, admiti- de certeza e verdade, leva facilmente à triste-
da como possível essa linha de raciocínio, za e desânimo epistemológico, um nada sau-
conversa-se pouco porque se conversa mal, dável sentimento depressivo, que, em outro
na Comunicação, sobre as coisas que de fato lugar, chamei ironicamente de “espírito de
contam para o campo – e isso não advém, em carpideiras” (Künsch, 2012a).
primeiro lugar, do fato, real, de que os tem- Um dos pressupostos fundamentais para
a conformação de um campo de conheci-
pos se aceleram e de que a correria é insana,
mento, relembra o pesquisador Luiz Claudio
por causa das coisas todas que conhecemos.
Martino, da UNB (2008), é que as teorias a
A defesa em maior ou menor grau intran-
ele associadas conversem entre si. Não parece
sigente de feudos intelectuais vem associada
ser esse o caso na Comunicação. Em pesqui-
ao desprezo, possivelmente velado, pela voz
sas que realizou já há alguns anos, compa-
alheia, ou à simples má vontade auditiva,
rando obras de teorias da Comunicação uti-
impedindo com isso a tessitura de sentidos
lizadas em cursos de Comunicação, chegou à
em ambientes discursivos de matriz dialógi-
desanimadora conclusão de que os próprios
ca, compreensiva, que junta, integra, propõe
livros de teorias da Comunicação não sabem
sínteses, abre para novas questões, envolve,
direito o que de fato merece esse título. No
abraça o antigo e o novo, a luz do meio-dia caso das obras em espanhol (2009), nenhu-
e o lusco-fusco do alvorecer, os silêncios da ma teoria é comum às nove obras analisadas,
noite e o canto alegre dos pássaros saudando e “quase 2/3 das teorias apresentadas não
a aurora. Impede, numa dimensão sempre têm correspondência entre os pares (apare-
difícil de avaliar, que essa diversidade de sen-
tidos, visões e pontos de vista se torne parte 6
“Um complexo é uma reunião de imagens e ideias, conglome-
integrante de toda busca individual e cole- radas em torno de um núcleo derivado de um ou mais arqué-
tipos, e caracterizadas por uma tonalidade emocional comum.
tiva de conhecimento, incluindo-se, nessa Quando entram em ação (tornam-se ‘constelados’), os comple-
busca tantas vezes sofrível, o erro, as insegu- xos contribuem para o comportamento e são marcados pelo
afeto, quer uma pessoa esteja ou não consciente deles. São parti-
ranças, as incertezas e os devaneios, as idas cularmente úteis na análise de sintomas neuróticos”, segundo o
e vindas, as cavernas ocultas tanto quanto a Dicionário Crítico de Análise Junguiana (Samuels, 2003).
cem apenas em uma obra)” (Martino, L.C., ta meio aposta em construção no presente
2007, p. 21). ensaio e em outros textos semelhantes, não
“Em última instância”, conclui Martino é difícil entender que, em suma, não se está
(2007, p. 21-22), “o que estes dados nos mos- pleiteando o descarte dessa nossa nem abso-
tram é que não temos uma ideia muito pre- lutamente excelente nem tampouco horro-
cisa do que é teoria da comunicação”. Pura rosa tradição de estudos em Comunicação.
generosidade do autor: em última instância, Pelo contrário. Fazê-lo seria incorrer, sim-
a bem da verdade, dever-se-ia dizer que não plesmente, no ingênuo erro da incompreen-
há “precisão” alguma. Porém, para além des- são, da arrogância e do dogmatismo episte-
sa constatação, como se vem tentando aqui mológico. Seria como dar vazão à vontade
de algum modo mostrar, mais que demons- de se comprar com a moeda do certo e do
trar, há um modelo bem conhecido e robus- errado exatamente aquilo que se está desde-
to de pensamento por detrás da cobrança de nhando por encontrar-se assentado, como se
precisão, uma cobrança que pode, aliás, ser
considerada equivalente à exigência de cla-
reza, rigor e verdade na definição do que seja O pensamento
teoria da Comunicação. compreensivo não
Muito mais que conversa e diálogo, o que se arrisca a assumir
nesse modelo de pensamento se demanda, superficialmente a
no campo da Comunicação, é algo próximo
àquilo que Descartes imaginava ser a certe-
síntese em oposição à
za que nasce da evidência. Aí, é até possível análise, o geral contra o
brincar de contar teorias e achar que existem particular e vice-versa
poucas (Charles R. Berger), ou que existem
teorias demais (Robert T. Craig). Ou, ain-
da, ironicamente, se perguntar previamente:
“Existem teorias da Comunicação?” (Marti- está enfim afirmando, tão solidamente, sobre
no, L.C., 2007).7 a plataforma desse modelo reducionista.
Uma epistemologia compreensiva não se
pauta pela noção de certo e de errado como
Inclusão, exclusão e compreensão
pares de opostos ou como pontos finais e ex-
Não há, porém, por que sermos ingra- cludentes de uma suposta linha que leva do
tos com o modelo epistemológico de ma- erro, numa ponta, à verdade, na outra. Tem
triz fortemente não compreensiva do qual em alta conta a proposição antiga da coin-
somos todos, e há bastante tempo – como cidentia oppositorum, uma noção preciosa
herdeiros do que se convencionou chamar a Nicolau de Cusa (1401-1464), que já apa-
de pensamento moderno –, tanto coprodu- rece, entretanto, nos pré-socráticos, nome-
tores quanto, muito provavelmente, também adamente em Heráclito de Éfeso (535-475
vítimas. Porque, se se atenta bem para o sig- a.C), um dos pais do pensamento dialético.
nificado mais autêntico desta meio propos- Heráclito era contemporâneo de Parmênides
(540-470 a.C.), “o da ontologia”, o qual se
7
Por seu turno, Luís Mauro Sá Martino, docente da Cásper concentra, como sabemos, “nas luzes da ra-
Líbero, desenvolve um estudo das intersecções institucionais e
epistemológicas na formação das teorias da Comunicação (cf. zão a garantir a densidade e firmeza dos con-
Martino, L. M., 2012a; 2013). Seu exame do discurso teórico ceitos inteligíveis eternos”. Um personagem
vem indicando um considerável grau de dispersão epistemo-
lógica no que diz respeito à constituição das teorias, amparado
não exclui o outro:
nas materialidades discursivas, seja no exame de livros-texto
de teorias da Comunicação (Martino, L. M., 2008; 2010) como [O eleata Parmênides] não desautoriza o
nos programas de ensino da disciplina (2012b). pensamento do jônico Heráclito [...], que
direciona o foco de suas reflexões para o rias entre si e no seio de cada campo de
movimento, a mudança, o sensível e, por conhecimento, ainda que, por múltiplas
fim, a complementaridade dos opostos.
[...] Fértil, o logos filosófico sobre cujas ba-
razões, que aqui não é o caso de se tentar
ses se constrói o pensamento de Heráclito aprofundar, não haja garantia alguma de
não avassala nem torna irrelevante o logos sucesso. Acredita poder apostar em algo
filosófico de que tão bem se utiliza o seu maior que o simples “debate de posições”,
parceiro, como se deve supor, no mesmo, uma prática esta que lembra muitas vezes
ingente e multiforme “amor à sabedoria”
= filosofia. Enquanto aquele pensa o devir, o que ocorre na parábola budista quando
este pensa o que permanece, com sua mais os cegos passam a querer explicar o que é
que legítima preocupação frente à possi- para eles um elefante.
bilidade, real, de que um conhecimento Insistamos, como Pascal, na aposta: apos-
erigido sobre as bases incertas e flexíveis
dos sentidos resulte em pura doxa, opinião
tar na possibilidade da compreensão pode
(Künsch, 2008, p. 183-184). nos trazer mais vantagens que desistir de
acreditar nela (cf. Santos, 2008, p.34). Tam-
bém as ciências modernas, tanto as da na-
A epistemologia abre alas tureza quanto em sua cola as do espírito,
à ontologia, e o signo apostaram, por pelo menos quatro séculos
da explicação domina. inteiros. Acreditaram, em vão, poder “atingir
toda a verdade”, ainda que tendo para isso
Porque, poderíamos
que “arrebentar a porta, derrubar a porta”,
até dizer, a inversão para chegar “ao lugar luminoso onde a ver-
dos termos se dá de dade esplendia seus fogos” e constatar que a
modo quase automático verdade “era dividida em metades, diferen-
tes uma da outra”,9 constituindo-se, como
resultado, naquilo que Santos (2008, p. 15),
inspirado em Ortega y Gasset, designa como
O pensamento compreensivo não se ar- “pensamento ortopédico”.
risca a assumir superficialmente a síntese A insistência em ousar pôr os saberes, as
em oposição à análise, o todo contra as par- disciplinas e as teorias para se conversarem
tes, o geral contra o particular e vice-versa. não ignora que, no fundo, todas elas de fato
Incluir e abraçar sentidos, tendo a incerteza e em alguma medida se conversam, ainda
como princípio motivador da perene busca: que possam não assumi-lo conscientemente,
eis aí um projeto que clama por vigor, mais tendo-se em conta o que Bakhtin proclama
que por rigor. O pensamento compreensivo como a intertextualidade e a dialogia ineren-
tem em alta consideração a palavra do po- tes a todo discurso. A não-ignorância dessa
eta, quando ele diz que “traduzir uma par- realidade, porém, não deixa de levar igual-
te na outra parte” é uma “questão de vida e mente em conta o poder dialogicamente
morte”, assim como leva igualmente a sério, corrosivo da monofonia e do discurso au-
sem fechar uma resposta, a pergunta desse toritário, “aquele em que se abafam as vozes
mesmo poeta, se é ou não arte saber fazer dos percursos em conflito, em que se perde a
essa tradução.8 ambiguidade das múltiplas posições, em que
O pensamento compreensivo, de novo,
o discurso se cristaliza e se faz discurso da
convoca para a conversa e o diálogo de
verdade única, absoluta, incontestável” (Bar-
conhecimentos, saberes, disciplinas e teo-
ros, 1994, p.6).
8
Ferreira Goulart, no poema “Traduzir-se”. 9
Carlos Drummond de Andrade, no poema “A verdade”.
óricas utilizadas era de novo um trabalho d) Diferenciar sem opor: trabalha-se com a
apresentado ao GT “Epistemologia da Co- noção de coincidentia oppositorum, da com-
municação”, por Immacolata Lopes, no ano plementaridade de opostos, no seguimento
anterior (2007). Para a autora, a inter-, me- das ideias de Heráclito e de outros autores,
lhor, “a transdisciplinaridade não busca ma- contemporâneos: “O pensamento construí-
nipular o que acontece no interior da disci- do sobre a base de certezas científicas e epis-
plina, mas o que sucede quando ela se abre, temológicas (...), além de não dialógico, não
ou melhor, quebra”. Essa quebra e abertura democrático, não compreensivo, traz em si,
das disciplinas “também as transborda pelo sim, algo ou muito daquela violência a que se
estabelecimento de relações cada vez mais refere Maffesoli (2009), e que Sodré (2006)
densas, não somente entre ciências humanas chama de ‘ditadura’” (Künsch, 2012, p. 103).
e sociais, mas das ciências com as artes, com
a literatura, com a experiência comum, com
a intuição, com a imaginação social” (Lopes, A humildade que
2007, p. 15-16). a noção de douta
É aqui, no confronto com a fértil e desa- ignorância inspira,
fiadora noção de complexidade, muito mais complementa Santos
que em conversa com a linha metodológi-
(2008, p. 26), “não
ca adotada por Dilthey e Weber, apontada
antes, que uma epistemologia da compre- significa negatividade
ensão se insere, em diálogo direto com a ou cepticismo”
inter-, trans- ou multidisciplinaridade. As
relações, “cada vez mais densas” – compre-
ensivas –, a que se refere a autora, avançam
para além das disciplinas, com o intuito de e) Pertinência do conhecimento: um traba-
trazer para a roda de conversas os diferentes lho apresentado ao GT em 2012, por Carlos
saberes, as artes, a experiência comum, algo Alberto Carvalho e Leandro Lage, se propõe
que, afinal, a nossa tradição científica domi- a “pensar a pertinência como noção baliza-
nante não foi até hoje muito capaz de fazer. dora das pesquisas em comunicação” (Car-
Como assinalado antes, a interdisciplinari- valho; Lage, 2012, p. 1). A proposta de ruptu-
dade volta a assumir um lugar central nas ra com o positivismo duro e com o conceito,
políticas públicas brasileiras de educação e, também duro, de certeza se faz acompanhar
também, de pesquisa. Quem acompanha as do convite a trabalhar sob a perspectiva do
reuniões do Conselho da Compós e a ava- “rigor da indisciplina”, de modo, inclusive, a
liação dos Programas de Pós-Graduação reconhecer, compreensivamente, “a riqueza e
pela Capes, talvez melhor que outros, sabe diversidade das pesquisas comunicacionais”,
bem disso. como adiantam os autores já no resumo.
c) Objeto em movimento: a “radical inde- Argumento nessa mesma direção em “Mais
terminação” do objeto de estudo da Comu- interrogações e vírgulas, menos pontos finais:
nicação leva a autora de mais um trabalho pensamento compreensivo e comunicação”
apresentado a esse mesmo GT, Lucrécia Fer- (Künsch, 2009), com o auxilio valioso daquilo
rara, a sugerir, compreensivamente, menos que Morin (2000, p. 35-46) denomina “Os prin-
certezas e mais indagações no campo da Co- cípios do conhecimento pertinente”, entre os
municação, e a se perguntar sobre a possibi- quais se encontram as noções de contextualiza-
lidade de se “pensar em uma epistemologia ção de todo conhecimento, da multidimensio-
em constante revisão e atualização de seus nalidade, da complexidade e da “inteligência ge-
paradigmas” (Ferrara, 2008, p. 40). ral”, entre outras. É fácil perceber as vinculações
do “conhecimento pertinente”, que o autor situa ao longo deste ensaio, que não se envergonha
entre Os sete saberes necessários à educação do fu- de assumir sua verdadeira “intenção tateante”,
turo (Morin, 2000), com os demais saberes: as como propõe Adorno. A ideia de aposta, que
cegueiras do conhecimento, ensinar a condição nos vem de Pascal (1623-1662), foi também
humana, ensinar a identidade terrena, enfrentar evocada toda vez que se tentou deixar claro
as incertezas e ensinar a compreensão. que a compreensão, a conversa e o diálogo não
f) Douta ignorância: a “inesgotável diver- oferecem, por si mesmos, qualquer garantia
sidade do mundo”, propõe Santos, a partir do de sucesso14 – razão pela qual, justamente, se
pensamento de Nicolau de Cusa, abre espaço está pleiteando a atitude da aposta.
para “uma reflexão centrada na ideia do sa- “Apesar de não podermos racionalmen-
ber do não saber. O importante não é saber, te determinar que Deus existe”, afirma Pas-
e, sim, saber que se ignora” (Santos, 2008, p. cal, nas palavras de Santos (2008, p. 34),
25). “Com efeito”, diz Nicolau de Cusa, “ne- “podemos pelo menos encontrar um meio
nhum outro saber mais perfeito pode advir racional de determinar que apostar na sua
ao homem, mesmo ao mais estudioso, do existência nos traz mais vantagens do que
que descobrir-se sumamente douto na sua acreditar na sua não-existência”. A aposta,
ignorância, que lhe é própria, e será tanto conclui Santos, “envolve um risco certo e fi-
mais douto quanto mais ignorante se sou- nito de ganhar ou perder e a possibilidade
ber” (apud Santos, 2008, p. 25). de obter um ganho infinito”.
O autor português observa que Nicolau Está se referindo, não parece haver dúvi-
de Cusa, filósofo e teólogo, acaba antecipan- da, ao conhecimento do divino a que Pascal
do em cinco séculos o princípio da incerte- aspirava. Em nosso caso, encerrando por aqui
za de Heisenberg, incerteza essa que, como este ensaio, “não porque não haja nada mais
apontado no parágrafo anterior, constitui a ser dito” (Adorno), basta talvez acreditar
para Morin um dos saberes necessários à que há mais ganhos humanos, cognitivos e
educação do futuro. A humildade que a no- práticos, em se apostar em uma epistemolo-
ção de douta ignorância inspira, comple- gia da compreensão que em não se fazê-lo.
menta Santos (2008, p. 26), “não significa Tanto no campo da Comunicação, que foi o
negatividade ou cepticismo”: “O facto de não tempo todo o foco da discussão neste texto,
ser possível atingir a verdade com precisão como em outros campos de saber e de co-
não nos dispensa de a buscar. Ao contrário, nhecimento, onde estudiosos, pesquisadores
o que está para além dos limites (a verdade) e curiosos possam estar tentando entender o
comanda o que é possível e exigível dentro que um elefante é.
dos limites (a veracidade, enquanto busca da (artigo recebido nov.2014/aprovado nov.2014)
verdade)” (Santos, 2008, p. 26). 14
Remeto mais uma vez ao texto de Braga, “Para uma episte-
g) Aposta de Pascal: sugestão, proposta e mologia do diálogo”, que levanta a discussão sobre o fato de
aposta foram termos usados com abundância que “não há valores automáticos na conversação” (2012, p.109).
Referências
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