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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA


DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS

SHIRLENE ALMEIDA DOS SANTOS

NOS TRAÇOS DA MULHER:


A menina negra na literatura infantil negro-brasileira.

SALVADOR
2016
1

SHIRLENE ALMEIDA DOS SANTOS

NOS TRAÇOS DA MULHER:


A menina negra na literatura infantil negro-brasileira.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da
Bahia como parte dos requisitos para a obtenção do
título de Mestre.

Linha de Pesquisa: Leitura, Literatura e Identidades.

Profº Drº Sílvio Roberto dos Santos Oliveira.

SALVADOR
2016
2

FICHA CATALOGRÁFICA
Sistema de Bibliotecas da UNEB
Bibliotecária: Jacira Almeida Mendes – CRB: 5/592

Santos, Shirlene Almeida dos


Nos traços da mulher: a menina negra na literatura infantil negro-brasileira /
Shirlene Almeida dos Santos. – Salvador, 2016
247f.

Orientador: Silvio Roberto dos Santos Oliveira.


Dissertação (Mestrado) - Universidade do Estado da Bahia. Programa de Pós-
Graduação em Estudo de Linguagens. Departamento de Ciências Humanas. Campus I.

Contém referências.
1. Literatura infantil. 2. Negras na literatura. 3. Literatura infanto-juvenil
brasileira. I. Oliveira, Silvio Roberto dos Santos. II. Universidade do Estado da
Bahia, Departamento de Ciências Humanas.

CDD: 809.89282
3

SHIRLENE ALMEIDA DOS SANTOS

NOS TRAÇOS DA MULHER:


A menina negra na literatura infantil negro-brasileira.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da
Bahia, como parte dos requisitos para a obtenção do
título de Mestre.

Linha de Pesquisa: Leitura, Literatura e Identidades.

Profº Drº Sílvio Roberto dos Santos Oliveira.

Aprovado em 29 de Abril de 2016.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________/__/___
Profº Drº Sílvio Roberto dos Santos Oliveira (Orientador)
Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia

_____________________________/__/___
Profª Drª Sayonara Amaral de Oliveira
Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia

_____________________________/__/___
Profº Drº Marcos Aurélio dos Santos Souza
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Educação
4

Dedico este trabalho ao grande amor da minha vida,


minha mãe, Marinalva Almeida (in memoriam), que
cercou minha vida com belas histórias, coloriu meu
ser com seu amor e seu exemplo. Vencedora,
superou a morte, pois vive em mim para sempre.
De toda a minha literatura é a minha melhor página!
5

AGRADECIMENTOS

Agradecer é coisa de
gente que tem memória.
(Marinalva Almeida)

O trabalho acadêmico é doloroso, o processo de escrita é solitário, desequilibra, evidencia os


meus anseios, envolve-me em muitas teorias, desvela inúmeras possibilidades, é o início do
caos: eu me desfaço, para que um texto se faça.
Clarice Lispector, em sua obra A Hora da Estrela (1977), informa que escrever é como
esfregar uma pedra na outra: às vezes sai faísca.

Foi esfregando pedras, que eu ingressei no Mestrado do PPGEL. Lembro-me de ter chegado
atrasada à minha primeira aula, envergonhada e muito preocupada, pois naquele dia, eu havia
deixado minha mãe no hospital internada para poder estudar.

O ingresso no mestrado foi a concretização de um sonho que comemoramos juntas, a minha


pesquisa fala do nosso amor, o meu e o da minha mãe, Marinalva Almeida, mas tudo mudou
quando ela se internou antes das aulas iniciarem e, mesmo em meio ao processo de morar em
um hospital, eu frequentava as aulas e realizava as atividades, até que, 4 meses após sua
internação, ela faleceu e levou com ela minha vida, meu coração, minha sanidade e a vontade
de continuar os estudos.

E foi assim que eu descobri o que é a morte absoluta, aquela que deixa seu coração pulsando,
mas, seu sopro de vida já se esvaiu, por que falta o delicado essencial. Lívia Natália, em seu
poema intitulado Da Morte Absoluta (2015), traduz tudo o que eu sinto:

Se houve, um dia,
flores nos meus cabelos,
ela não lembrará.

Não haverá seus dedos


encaracolando minha cabeça
e caminhando brutos pelo meu mundo.

Suas mãos conversarão com a madrugada


e eu,
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insone
tentarei penetrar neste outro sonho,
em que te demoras.

Quando eu,
finalmente,
entrar na carne do sonho,
a promessa de sua presença silenciará.

Eu terei a madrugada,
os cabelos crespos,
a falta de sonhos
mas as mãos da minha mãe,
onde estarão?

Quando amanhecer e eu vier exausta


prenhe de sua falta,
Mãe de sua ausência,
o que será da minha delicadeza sem temperança?

O que será de seus olhos mortos,


feitos de nada?
o que será, minha mãe, da sua ausência corporificada?

O que será de mim, órfã de uma mãe que


voou,
mesmo não tendo asas? (NATÁLIA, Lívia, 2015, p. 96 e 97).

Converti minhas emoções em texto, mas preciso admitir que se a escrita desequilibra o
estudante, eu já estava desequilibrada e do meu desequilíbrio, da minha dor de mulher órfã, de
uma mãe que jamais deixei partir, da minha saudade, do nosso amor e das minhas boas
lembranças de uma vida regalada de uma boa mãe é o lugar de produção da minha escrita.
Foi difícil, as pedras que precisei esfregar e carregar me pesaram e, por vezes, pensei que não
fosse concluir esta etapa, mas terminei.

O lugar de produção da escrita deste trabalho como já fora dito é um lugar de saudade, de luto
e também de muita coragem e peleja. Entretanto, o lugar de nascimento da minha escrita é o
âmbito doméstico, proveniente dos bairros periféricos da cidade de Salvador, influenciado por
uma mulher a quem tive a sorte de chamar de Mãe e que estava sempre atenta as
representações literárias, haja vista que era amante da leitura e enamorada pela escrita de
poesia.

O lugar doméstico, periférico, feminino, atento e sensível é um lugar comum para as mulheres
negras, cito Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, que do seu quarto de despejo na
favela refletia e escrevia em seu diário sobre a sociedade, política, literatura, identidade e
representações. Ousadamente a comparo com minha mãe, que do seu quarto refletia e escrevia
7

outra representação de negritude para mim, sua filha. E assim, muitas escritoras insurgiram,
obviamente algumas com mais visibilidade do que outras, mas, suas histórias estão
interligadas.

Quando criança o texto literário infantil escrito por minha mãe me colocou no rol das
princesas, enalteceu minha identidade, fortaleceu minha auto-estima e ilustrou a importância
da representatividade. Já na fase adulta, esse mesmo texto me mostrou que a mulher negra
apesar de ter o acesso às letras por vezes inviabilizado continua escrevendo, algumas vezes
mesmo sem seguir a norma culta da língua (a exemplo de Carolina Maria de Jesus) e ainda
assim, estes escritos podem romper os espaços reservados.

A reflexão supracitada mostra o quão é importante para mim homenagear minha mãe neste
espaço da minha pesquisa, pois foi do texto dela que insurgiu o meu, e, juntos, esses textos
romperam o espaço doméstico e/ou subalterno e adentraram a academia, espaço público,
político, de poder e conhecimento por vezes encastelado e distante da realidade da população
negra. Nossos trabalhos (o meu e o da minha mãe) estão interligados.

Em entrevista concedida ao site blogueiras feministas em setembro de 2010 (vide referência


no final da pesquisa), Conceição Evaristo afirma que: (…) “A literatura feita pelas pessoas do
povo, ela rompe com o lugar pré-determinado.”

Não consegui sozinha o mérito de ter uma pesquisa adentrando os átrios da academia, além do
auxílio da minha mãe, contei com o de muitos docentes, amigos, familiares e instituição de
fomento à pesquisa e, como a minha mãe afirmava: quando se está muito triste, Deus nos
envia anjos e, por isso, eu preciso agradecer, porque tenho memória e muitos anjos.

Então agradeço a Deus pelo milagre da vida, pela força que engendrou em mim e por ter me
dado a melhor mãe que eu poderia imaginar.

À minha mãe, meu anjo, pela vida, pelo amor, boas histórias e por ter me escolhido como
filha; honraria maior eu não poderia ter tido. Agradeço por ter me dado esta pesquisa, que
considero sua. Eu, ousadamente, escrevo para homenageá-la, escrevo por que a pesquisa me
usa, tal qual aparelho espírita, e sai pelos meus poros.
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Mãe, sei que nosso amor venceu a morte, que está sempre comigo, e, isto me alegra, conforta
e me dá forças para seguir com esta vida. Eu a amo infinitamente.

A meu pai, José, meu herói, por tanto amor e apoio.

À minha irmã, Shirlei, pelo amor, pela companhia, cuidado, conselhos, por ser minha reta e
meu compasso.

À minha madrinha Domingas, minha fada madrinha que me ajuda e ilumina minha vida.

A Cláudio Lessa pelo auxilio, conselho, condução e incentivo.

Aos meus primos Osmar e Rosângela pelo amor e apoio.

A meu orientador Silvio Roberto, que suportou pacientemente meu estado emocional, me
ajudou a ficar de pé e acreditou na minha pesquisa quando ela ainda era embrionária. Suas
lições, leituras do meu texto e indicações de outras obras auxiliaram a finalização desta etapa
acadêmica.

Aos professores do PPGEL, que me ajudaram na construção do meu texto e na minha


composição como pesquisadora.

À professora Andrea Bethânia pela doçura dos seus ensinamentos.

Ao professor Marcos Aurélio, pelo carinho, cuidado, por acreditar em mim, me apoiar sempre
e por indicar tantos caminhos e leituras que aguçaram minha reflexão para a escrita deste
texto.

À minha turma do Mestrado, família que Deus me deu, por tanto amor, por não permitir que
eu desistisse apesar de tudo.

A Jober Pascoal, por ler meus textos, me indicar bons livros, por me emprestar seu ombro,
ouvidos e por segurar minha mão quando eu mais precisei.

Aos meus amigos, em especial Fábio, Leila, Luciana, Erivalda e Carlos que me amaram, me
apoiaram, incentivaram e aguentaram o meu nervosismo inerente à construção desta pesquisa.

A Ícaro Nascimento, príncipe do meu conto de fadas, pelo seu amor, incentivo, confiança em
mim, auxílio, paciência e parceria.

A Carlos Domingos, pela parceria e apoio.

À Fabiana Freitas, que me emprestou seus olhos para corrigir com muito carinho meu texto,
quando meus olhos já estavam cansados demais para tal feito.

A Richard, que com seu canto e delicadeza alegrou minha vida.

À Camila, Geysa, Danilo e Roseli pela gentileza dos inúmeros auxílios.

A FAPESB, pela concessão da bolsa de estudos que permitiu a consolidação desta pesquisa.
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A toda dor e a todos os entraves, pois foram eles que me tornaram forte para seguir em frente.

A todos que, de alguma forma me auxiliaram, deixo-lhes meu mais belo sorriso de gratidão.
E, por fim agradeço à minha mãe novamente, pois sem ela nada do que foi feito se faria.
Escrevo para te chamar à existência. Cada linha que a duras penas escrevi é por amor a você!
Haverá uma eternidade para o nosso amor. Até breve, durma em paz meu anjo, eu velo por
você!
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De mãe

O cuidado de minha poesia


Aprendi foi de mãe
mulher de pôr reparo nas coisas
e de assuntar a vida.

A brandura de minha fala


na violência de meus ditos
ganhei de mãe
mulher prenhe de dizeres
fecundados na boca do mundo.

Foi de mãe todo o meu tesouro


veio dela todo o meu ganho
mulher sapiência, yabá,
do fogo tirava água
do pranto criava consolo.

Foi de mãe esse meio riso


dado para esconder
alegria inteira
e essa fé desconfiada,
pois, quando se anda descalço
cada dedo olha a estrada.

Foi mãe que me descegou


para os cantos milagreiros da vida
apontando-me o fogo disfarçado
em cinzas e a agulha do
tempo movendo no palheiro.

Foi mãe que me fez sentir


as flores amassadas
debaixo das pedras
os corpos vazios
rente às calçadas
e me ensinou,
insisto, foi ela
a fazer da palavra
artifício
arte e ofício
do meu canto
de minha fala.

(Conceição Evaristo)
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RESUMO

No imaginário infantil, comumente, as histórias se iniciam com a célebre frase “Era uma vez”,
em geral sucedida pela descrição da princesa apresentada como bondosa, bonita, sábia e de
pele clara que supera os infortúnios vindouros, se apaixona e vive feliz para sempre. A
literatura infantil está repleta de representações como essas, que se consolidaram ao longo do
tempo e contribuíram para a ausência dos negros no cenário literário e/ou para uma
representação objetificada, historicamente iniciada com o processo escravagista, fortalecendo,
assim, a proliferação de uma série de estereotipia em relação ao negro. Quando analisamos a
presença do negro, mais especificamente da menina negra na literatura, descobrimos que a
maior parte das produções foi feita por brancos representando personagens negras como
verdadeiras caricaturas, pois, de acordo com Cuti (2010), os autores brancos se recusam a
abandonar sua brancura no ato da produção literária, logo, não acessam a subjetividade negra.
Para estar no lugar do outro, para tentar traduzir o outro é necessário um desprendimento de si
mesmo.
Mediante tais constatações buscamos outras formas de ler a menina negra na literatura infantil
e julgamos que ninguém melhor para falar das meninas negras de agora do que as meninas
negras de outrora (mulheres). As mulheres negras possuem a experiência de menina negra já
vivida e o anseio de representações futuras. A mulher negra quando escreve pensa em todo
seu coletivo. A literatura escrita por negros sobre os negros possui muitos objetivos, dentre
eles, o de combater o racismo e a estereotipia. A literatura negra é o grito dos que tinham
direito apenas ao sussurro, é a voz dos ditos marginais, é a escrita das suas experiências e
questões. É a voz de homens, mulheres e crianças negras. O presente trabalho objetiva de
analisar o que as mãos negras femininas têm produzido e como estas produções têm
representado as meninas negras. E, diante da impossibilidade de analisar a representação da
menina negra em toda historiografia literária brasileira, encontramos a editora Mazza, que
publica obras infantis produzidas por negros, sobre negros, intencionando libertá-los dos
estereótipos, empoderando-os. Por conseguinte, analisamos dez obras da editora Mazza
escritas por mulheres negras representando personagens negras, a fim de verificar como os
estereótipos marginalizantes, racistas e sexistas preconceituosos estão sendo desconstruídos.
Martha Rodrigues, Madu Costa, Nilma Lino Gomes, Maria do Carmo Galdino, Patrícia
Santana, Iris Amâncio e Kiusam de Oliveira são os nomes das escritoras negras que tem
produzido textos literários que colocam em evidência as meninas negras, sua história, sua
estética, sua religião, sua cultura e suas demandas. Este movimento de desconstrução, auto
afirmação, combate ao racismo, escrita negra e propagação de novas representações negras se
constitui em uma onda chamada de “nós por nós” (se a história é sobre o negro, deixem que
eles segurem a caneta). Imbricado neste movimento de resistência foi que esta pesquisa
bibliográfica insurgiu. Consideramos que esta discussão auxiliará no fortalecimento da
premissa de que a história da escritora/menina negra não pode passar em branco.

PALAVRAS-CHAVES: Literatura Infantil Negro-Brasileira; Escrita Feminina Negra;


Representação; Menina Negra; Editora Mazza.
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ABSTRACT

In the children's imagination, often, the stories begin with the famous phrase "Once upon a
time" generally succeeded by the description of the Princess presented as kind, beautiful, wise
and clear skin that overcomes the coming misfortunes, falls in love and lives happily ever.
Children's literature is replete with representations as these, which have been consolidated
over time and contributed to the absence of blacks in the literary scene and / or an objectified
representation historically started with the slave process, strengthening thus the proliferation
of series of stereotyping in relation to black. When we analyze the presence of black, more
specifically the black girl in the literature, we found that most of the production was done by
white representing black characters like true cartoons because, according to Cuti (2010),
white authors refuse to leave its whiteness in the act of literary production, so do not access
the black subjectivity. To be in the place of the other, to try to translate the other a detachment
from self is necessary.
Upon such findings we seek other ways of reading the black girl in children's literature and
believe that no one better to talk about black girls now than black girls of yore (women).
Black women have a black girl experience already experienced and the longing for future
representations. The black woman when he writes thinks of all his collective. The literature
written by black on black has many goals, among them, to fight racism and stereotyping. The
black literature is the cry of those who were entitled only to whisper, is the voice of marginal
said, is the writing of his experiences and issues. It is the voice of men, women and black
children. This study aims to analyze what the female black hands have produced and how
these productions have represented the black girls. And, given the impossibility of analyzing
the representation of the black girl in the whole Brazilian literary historiography, we find the
Mazza publisher, which publishes children's books produced by black on black, intending to
release them from stereotypes, empowering them. Therefore, we analyzed ten works of Mazza
editor written by black women representing black characters in order to verify how the
marginalizing stereotypes, racist and sexist bigots are being deconstructed.
Martha Rodrigues, Madu Costa, Nilma Lino Gomes, Maria do Carmo Galdino, Patricia
Santana, Iris Amancio and Oliveira Kiusam are the names of black writers who have
produced literary texts which show black girls, its history, its aesthetics, its religion, their
culture and their demands. This movement of deconstruction, self affirmation, combating
racism, black writing and spread of new black representations constitutes a call wave of "us
by us" (the story is about the black, let them hold the pen). Imbricated in this resistance
movement was that this literature rebelled. We believe that this discussion will assist in
strengthening the premise that the story of writer / black girl can not go unchallenged.

KEYWORDS: Children's Literature Black-Brazilian; Black Women Writing;


Representation; Black girl; Publisher Mazza.
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - A redenção de Cam..................................................................................................47


Figura 2 - A felicidade de Iara..................................................................................................65
Figura 3 - Abayomi...................................................................................................................66
Figura 4 - Infância negra feliz...................................................................................................66
Figura 5 - Família de Iara..........................................................................................................67
Figura 6 - O cheiro de Abayomi...............................................................................................67
Figura 7 - Pai Griot...................................................................................................................70
Figura 8 - A menina negra Iara.................................................................................................71
Figura 9 - Menina qual é a sua cor? .........................................................................................99
Figura 10 - Minha cor no mundo............................................................................................100
Figura 11 - A família da menina negra...................................................................................101
Figura 12 - Representatividade importa! ...............................................................................103
Figura 13 - Roda de marrons...................................................................................................104
Figura 14 - Mosaico brasileiro................................................................................................104
Figura 15 - Faces do Brasil.....................................................................................................105
Figura 16 - Brasil, um país colorido? .....................................................................................105
Figura 17 - A rainha Ginga.....................................................................................................120
Figura 18 - Kizzy, a menina negra em cor de rosa. ...............................................................132
Figura 19 - Kizzy, bela e inteligente. .....................................................................................135
Figura 20 - Kizzy e a mania do saber. ....................................................................................136
Figura 21 - As perguntas de Kizzy. ........................................................................................137
Figura 22 - Kizzy nas rodas de conversa. ..............................................................................138
Figura 23 - A avó de Kizzy.....................................................................................................139
Figura 24 - Entremeio sem babado. .......................................................................................139
Figura 25 - As perguntas furtadas de Kizzy............................................................................140
Figura 26 - A solidão de Kizzy...............................................................................................141
Figura 27 - Kizzy resiste e ressurge. ......................................................................................141
Figura 28 - O renascimento de Kizzy.....................................................................................142
Figura 29 - Kizzy feliz entre os seus babados. .......................................................................143
Figura 30 - Mãe Dinha. ..........................................................................................................145
Figura 31 - A elegância da idade de Mãe Dinha.....................................................................145
Figura 32 - A cozinha e as histórias da Mãe Dinha................................................................147
14

Figura 33 - Mãe Dinha, a curandeira......................................................................................149


Figura 34 - Mãos que curam...................................................................................................150
Figura 35 - Mãe Dinha, inventora de diversões. ....................................................................150
Figura 36 - Mulata a caminho do sítio para as festas de natal, Jean Baptiste Debret. .........151
Figura 37 - Mãe Dinha, avó, mãe e madrinha de todos! ........................................................152
Figura 38 - Meninas negras de outrora, meninas negras de agora..........................................154
Figura 39 - Mariana, negra linda! ..........................................................................................158
Figura 40 - Mariana, a menina negra que voa! ......................................................................158
Figura 41 - A mãe de Mariana................................................................................................160
Figura 42 - Mariana na escola: um nó apertado! ...................................................................160
Figura 43 - A fuga de Mariana................................................................................................162
Figura 44 - O mundo de Mariana............................................................................................163
Figura 45 - Mariana amarra o sapato para ser amarrada em um abraço. ...............................165
Figura 46 - Mariana, a menina negra risonha. .......................................................................168
Figura 47 - Mariana encontra a Mãe África............................................................................169
Figura 48 - Princesa Dandara..................................................................................................170
Figura 49 - O bicho de estimação de Dandara........................................................................171
Figura 50 - Luanda, a menina forte.........................................................................................173
Figura 51 - Almas negras fazem a dança da resistência. .......................................................174
Figura 52 - A união das meninas negras.................................................................................175
Figura 53 - Betina de tranças ao vento....................................................................................175
Figura 54 - A avó de Betina....................................................................................................177
Figura 55 - Betina no espelho.................................................................................................178
Figura 56 - Betina e sua avó vão à escola...............................................................................179
Figura 57 - Betina cresce e sua avó envelhece. ......................................................................183
Figura 58 - O abraço. .............................................................................................................186
Figura 59 - Betina, mulher, negra, cabeleireira. .....................................................................190
Figura 60 - Conhecendo Gabriela...........................................................................................202
Figura 61 - Entrevistando Gabriela.........................................................................................203
Figura 62 - Os avós de Gabriela..............................................................................................204
Figura 63 - O pai de Gabriela..................................................................................................205
Figura 64 - Gabriela, a princesa negra inventada. ..................................................................206
Figura 65 - O pai de Gabriela contando história. ...................................................................209
Figura 66 - Pedro, o guerreiro. ...............................................................................................210
15

Figura 67 - O ponto de despedida...........................................................................................211


Figura 68 - Mãe e filha............................................................................................................212
Figura 69 - A princesa negra Oxum........................................................................................216
Figura 70 - Os cinco lenços de Oxum.....................................................................................219
Figura 71 - Ogum bebe o doce mel de Oxum.........................................................................221
Figura 72 - Oduduá e Obatalá.................................................................................................223
Figura 73 - Separação de Oduduá e Obatalá...........................................................................228
16

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: NA GRAFIA DE MINHA MÃE, UMA PESQUISA.................................18

1. NEGRITUDE E ESTEREÓTIPO: HISTÓRIAS INCOLORES......................................28

1.1 PALAVRAS QUE NEGAM A REPRESENTAÇÃO AFIRMATIVA NEGRA:


LITERATURA E ESTEREÓTIPO...........................................................................................32
1.2 IDÉIAS QUE NEGAM A REPRESENTAÇÃO AFIRMATIVA NEGRA: RACIALISMO
E ESTEREÓTIPO.....................................................................................................................40

2. DO ESTEREÓTIPO À LITERATURA NEGRA: ENEGRECENDO CAMINHOS


LITERÁRIOS...........................................................................................................................59

2.1 IMAGINAÇÕES QUE NEGAM A REPRESENTAÇÃO AFIRMATIVA NEGRA:


QUEBRANDO ESPELHOS.....................................................................................................59
2.2 NO PALIMPSESTO BRANCO INSURGE A LITERATURA NEGRA..........................71

3. MÃOS NEGRAS ESCREVEM OUTRAS HISTÓRIAS..............................................107

3.1 DO SILÊNCIO À CANETA: A ESCRITA DA MULHER NEGRA NA LITERATURA


INFANTIL NEGRO-BRASILEIRA.......................................................................................107
3.2 ENTREMEIOS LITERÁRIOS: UMA MENINA NEGRA INTELIGENTE...................130
3.3 MÃE DINHA: HISTÓRIAS DAS MENINAS NEGRAS DE OUTRORA E DE
AGORA..................................................................................................................................144

4. HISTÓRIAS DE QUEM CARREGA NA PELE A COR DA NOITE....................155

4.1 MENINAS NEGRAS COM CADARÇOS DESAMARRADOS: NARRATIVAS DE


LIBERTAÇÃO.......................................................................................................................157
4.2 NAS TRANÇAS DE BETINA: NARRATIVA DE RAIZ...............................................175
4.3 GABRIELA E OMO-OBÁ: NARRATIVAS DE PRINCESAS......................................192
17

5. ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES......................................................................................229

REFERÊNCIAS....................................................................................................................236

APÊNDICE............................................................................................................................245

ANEXO..................................................................................................................................246
18

INTRODUÇÃO: NA GRAFIA DE MINHA MÃE, UMA PESQUISA

“(...) recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem - o hoje - o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida- liberdade”.
(Conceição Evaristo)

Apaixonada por literatura, olhos vidrados nas ilustrações e ouvidos atentos para
escutar a voz da minha mãe que, após um dia de trabalho, dedicava seu tempo para contar-me
histórias. Eu sentia as narrativas correrem pelo meu corpo e divagava tentando imaginar quem
poderia tê-las escrito1.

Em minha fantasia de menina, construí a imagem do autor como uma espécie de fidalgo, que
residia em uma luxuosa casa e escrevia suas narrativas em um confortável gabinete, com
estantes repletas de livros que alcançavam o teto, e a imaginação dele era tão fértil quanto a
minha.

Eu era grata ao fidalgo, que me fazia viajar por tantas narrativas, mas à medida que o tempo
passava, minhas exigências de leitora aumentavam; então, eu comecei a identificar
similaridades em todas as histórias. Todos os personagens eram brancos, descritos como bons
e belos, moravam em suntuosos castelos que, normalmente, ficavam próximos a algum
bosque e/ou floresta encantada. Os inimigos e infortúnios eram superados com ajuda mágica.
Príncipe e princesa se encontravam, casavam-se e eram felizes pra sempre. Depois de ouvir
tantas histórias, quase sempre com as mesmas características, eu notei que nenhuma daquelas
meninas das narrativas se parecia comigo.

Eu indagava mentalmente ao fidalgo/autor: mas, e eu? Por que não me inseriu nas tramas que
eu tanto gostava? Confesso que fui buscar tais respostas com minha mãe, ou melhor, lancei
sobre ela umas das minhas mirabolantes perguntas: Mãe, não existe princesas negras nesses

1
Toda a pesquisa está escrita na 1ª pessoa do plural, exceto a introdução e os agradecimentos que foram escritos
na 1ª pessoa do singular.
19

livros? De pronto ela respondeu que sim e eu retruquei dizendo que queria conhecê-las. E
assim, minha mãe se lançou numa busca sem sucesso.

Diante do insucesso de não ter encontrado narrativas com personagens de princesas negras,
minha mãe teve uma ideia criativa: se a princesa não encantar, eu tiro ou pinto ela na história
ou, ainda, escrevo outra história! Então, minha mãe comprou um livro infantil grande com as
figuras descoloridas, um caderno, tesoura, lápis de cor e cola e se pôs a escrever uma nova
narrativa.

Ela escrevia a nova história no caderno, recortava e colava em cima do texto original e coloria
as gravuras do livro. Eu, ainda menina, não tinha consciência de que ela estava forjando um
livro infantil. Eu julgava que estava tendo o privilégio de ver como um livro era feito, e
finalmente, conhecendo um autor de verdade. Ele não era homem, branco, rico, nem um
ocioso fidalgo. Era mulher, mãe, pobre, trabalhadora, forte, doce, inteligente, criativa e negra.
Minha primeira e preferida autora foi minha mãe.

História concluída, eu não me cansava de escutar a narrativa em que eu finalmente fazia parte,
invés de apenas viajar imaginando. A narrativa era sobre uma princesa negra, a gravura
lembrava tanto a Cinderela, mas minha mãe insistia que não era ela e, de fato, não era. Aquela
Cinderela se parecia comigo, era a representação de que o negro tudo podia fazer, aquela
princesa me inspirou, aquela princesa me colocou dentro das narrativas que eu tanto gostava.

Anos se passaram, a menina se tornou a primeira mulher da família a ingressar na faculdade e


na graduação em Pedagogia na Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Meu objeto de
pesquisa era sobre literatura. Afinal, se minha mãe, na minha infância, possuía três empregos,
conseguiu criar duas filhas, solteira, e, após o trabalho, escrevia conto, reconto e poesia, eu
também podia. Como muito assertivamente informa Conceição Evaristo no poema De Mãe,
escrito nos Cadernos Negros, volume 25: “foi mãe que me fez sentir as flores amassadas (...) e
me ensinou, insisto, foi ela a fazer da palavra artifício, arte e ofício, do meu canto, de minha
fala” (EVARISTO, 2002, p 36 e 37).
20

No entanto, antes de iniciar a escrita sobre a temática, criei coragem para perguntar a minha
mãe por que ela havia pintado de negro a Cinderela2 (imagem do texto) quando eu era
criança? E ela adoravelmente respondeu: para você ser uma princesa! A partir daí, das grafias
da minha mãe, um caminho de pesquisa começou.

Na graduação eu quis compreender o que é identidade negra e, agora, no mestrado em


Linguagens, também na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), quero compreender se
quando as mulheres negras escrevem representando meninas negras, sua escrita é diferente; se
quando mãos como a da minha mãe escrevem, elas desconstroem as representações fixas
(como a escrita do autor/fidalgo). Eu queria testar a “teoria” que vi em casa, pois eu acredito
que um livro infantil, uma representação e uma autoria mudaram o rumo da minha trajetória
de menina negra e que experiências como essas podem, também, ressignificar a vida do
coletivo de meninas negras que revogam visibilidade literária e social.

Essa preocupação pode ser exemplificada na atitude de minha mãe que doou meu livro
forjado a uma creche; de acordo com ela, outras meninas negras também mereciam ser
princesas.

Vale salientar que a princesa de minha mãe, diferente dos contos clássicos, não precisava se
casar para ser princesa e/ou ser princesa não era sinônimo de subserviência. Na obra de minha
mãe, princesa é toda menina negra que, por benção da sua cor é linda, é empoderada, constrói
sua história, trabalha, estuda e encanta, faz o que quer simplesmente porque quer e pode!

Conceição Evaristo (2007) escreveu um texto intitulado “Na Grafia-Desenho da Minha Mãe,
um dos Lugares de Nascimento da Minha Escrita”. Evaristo e eu tivemos como primeira
representação de autora as nossas mães e é deste texto a inspiração do título desta introdução.

Conceição Evaristo, filha de lavadeira, via sua mãe em dias nublados utilizar o chão de lama
como papel e um graveto como caneta; ela se colocava a desenhar na terra o sol. Para
Evaristo, mais do que desenhar o sol, sua mãe chamava por ele (para secar suas roupas, fruto
do seu trabalho). Acredito que, quando uma mulher negra escreve, ela chama a existência,

2
Na fase adulta eu já havia adquirido consciência de que a imagem original era da Cinderela enegrecida por
minha mãe, Marinalva.
21

algo que gosta, necessita ou simplesmente coloca pra fora algo que lhe é incômodo, um
protesto. Isso igualmente explica as grafias da minha mãe.

A luta da minha mãe em busca de representatividade para mim, sua filha negra, pode ser
encontrada em outras mulheres como, por exemplo, uma avó apelidada de Ita que, diante do
sofrimento da sua neta Gisele por falta de representatividade e pelo preconceito que sofria na
escola por conta do seu cabelo crespo, lançou, em 2015, um curta metragem intitulado
Fábulas da Vó Ita3.
No curta, Gisa, uma menina negra, se sente isolada em um reino onde ninguém se parece com
ela. Cansada da discriminação, a menina procura uma bruxa para que esta altere sua
aparência, mas graças aos cabelos crespos da menina (diferente de todos os cabelos do reino),
ela pôde ser reconhecida por sua mãe, a rainha Andrea, que há anos procurava sua filha, a
princesa perdida. A trama finaliza mostrando que Gisa, ou Gisele, não precisa alterar seu
cabelo, ele é a marca da sua realeza, é a sua coroa.

O livro A Bailarina e a Bolha de Sabão4, publicado em 2013 pela atriz e escritora Maria Gal, é
outro exemplo de luta pela representatividade. O livro é inspirado em sua infância, quando ela
fazia balé e sofria preconceito das demais colegas brancas. A narrativa mostra uma menina
negra que passa por igual situação, pensando inclusive, em criar uma fórmula mágica para
alterar seus cabelos a fim de ser aceita, mas descobre que a fórmula correta é ter amor por si
mesma. O trauma virou obra.

E, por fim, cito a obra de Veralindá Menezes, publicada em 2008, intitulada Princesa Violeta.
Neste conto de fadas a autora homenageia sua filha, a atriz Sheron Menezes que, quando
criança, sonhava com uma princesa que se parecesse com ela, mas não encontrava, já que não
havia nenhuma que fosse negra.

A minha história se imbrica na de tantas outras mulheres e meninas; estamos todas conectadas
em prol de outras representações, o que torna a minha história, embora pessoal, coletiva e
política. Queremos outras histórias, pois como afirma o provérbio africano: até que os leões
tenham suas histórias, os contos de caça glorificarão sempre o caçador5.

3
As informações sobre o curta-metragem foram retiradas do blog catarse. Vide referências no final da pesquisa.
4
As informações sobre o livro foram retiradas do blog a bailarina e a bolha de sabão. (Vide referências no final
da pesquisa).
5
Provérbio africano retirado do livro Tranças e redes- tessituras sobre África e Brasil. (Vide referências).
22

Esta pesquisa é sobre as histórias dos leões e é por isso que comecei contando um pouco da
minha história. Vale salientar que o fato de narrar a minha história pessoal não significa que
quero inviabilizar (nem poderia) os escritos do outro, eu apenas quero que mulheres e escritos
como os da minha mãe possam falar. Afinal, o perigo reside na unicidade e na fixidez das
histórias. E, por falar em história, reafirmo que este trabalho é sobre literatura infantil, mais
especificamente sobre as meninas negras da literatura infantil, igualmente negra.
Cuti (2010) chama de literatura negro-brasileira a literatura produzida por negros, que possui
o negro como o seu leitor ideal e tem como objetivo principal combater o racismo e a
estereotipia brasileira. Eu utilizo e compartilho desta mesma compreensão.

Gostaria de falar sobre todas as meninas negras a fim de compreender como elas sempre
foram representadas na historiografia literária brasileira, mas devido à imensidão deste
objetivo, foi necessário recortar meus anseios. Todavia, fiz um breve passeio por vários
momentos literários e pude notar que as meninas negras ora foram apagadas do registro
literário, ora sua representação era marcada pelo racismo e pela estereotipia. Além disso,
como eu pronunciei, queria ver outras representações, outras história, queria ver a
desconstrução, por isso, ao recortar meu objeto de pesquisa (as meninas negra na literatura),
desviei meu olhar das mãos brancas, que sempre representaram a nós, negras, e olhei para as
mãos negras como as da minha mãe, a fim de verificar o que elas têm produzido, como elas
tem representado as meninas negras e, assim, encontrei um coletivo de mulheres escritoras
negras que produzem obras infantis representando de forma positivada as meninas negras, eu
encontrei a editora Mazza.

Maria Mazzarelo é uma mulher negra que fez Mestrado em Editoração em Paris e sua
dissertação foi sobre a criação de uma coleção que fosse capaz de recontar com fidelidade a
verdadeira história do negro no Brasil. Retornando ao Brasil, ela fundou a editora em 1981,
em Belo Horizonte, a qual batizou com seu apelido, Mazza.

A consolidação da editora foi difícil, pois é necessário travar uma grande luta para publicar a
negritude, reunir escritores negros, ter lucro e visibilidade com as publicações, mas em 2003,
o então presidente Luís Inácio Lula da Silva, sancionou a Lei 10.639, que determina a
inclusão da História e Cultura Africana e Afro-brasileira no âmbito escolar, o que provocou
uma movimentação muito grande nas editoras que, agora, passaram a tentar lançar livros
sobre essa temática no mercado.
23

Com a aprovação dessa Lei e o discurso de valorização e resgate da memória africana e afro-
brasileira, a Mazza, uma exceção positiva no mercado editorial brasileiro devido a sua
trajetória visionária e de resistência, teve a possibilidade de atingir novos públicos e adquirir
maior visibilidade através da inserção dos seus livros no âmbito escolar.

A inspiração de Maria Mazzarelo para fundar a editora Mazza, foi a falta de representações
literárias positivas para o negro em sua infância. Isso se tornou um diferencial para a editora,
onde mãos negras escrevem e novas representações aparecem, pois quando falamos e/ou
escrevemos de nós mesmos, a história é sempre diferente, ainda que receba influência
colonizada, racista e patriarcal. A voz negra que sai do quarto de despejo 6 é sempre diferente.
A Cinderela “escrita” pela mão negra da minha adorada mãe é diferente, pois ela me deu
assento neste voo literário.

O cenário contemporâneo revelou outras autorias e a escrita da mulher foi potencializada,


novas representações foram desveladas e empoderamentos requisitados. A
contemporaneidade revelou, também, novas personagens femininas, a fim de mostrar que as
mulheres podem ser o que quiserem. A menina negra, marginalizada de outrora, agora
também é personagem central. Os textos deram destaque às questões do feminino negro, à
autoafirmação e aceitação de si. Em suma, a contemporaneidade marca a escrita de novas
histórias.
Diante de tantas mudanças no cenário literário, objetivei neste trabalho investigar a seguinte
questão problematizadora: como a menina negra é representada na literatura infantil negro-
brasileira nas obras escritas por mulheres negras?

O anseio da referida questão foi analisar como a menina negra tem sido apresentada nas
narrativas infantis escritas por mulheres negras para que, pudéssemos7 refletir sobre tais
apresentações, a fim de descobrir como as mesmas têm desconstruído e/ou questionado os
estereótipos fixos e excludentes acerca do negro. Estereótipos tais como o do negro sem
cultura, feio, selvagem, relacionados à depreciações religiosas etc.

6
Analogia à obra Quarto de Despejo (1960), de Maria Carolina de Jesus, que chamava de quarto de despejo a
favela, lugar de produção da sua escrita.
7
O nós é invocado porque, ao produzirmos uma pesquisa, pensamos na contribuição da mesma para um campo
de saber, pensamos no coletivo, nos possíveis leitores.
24

O meu olhar sobre as obras produzidas pelas mulheres negras é um olhar prioritariamente
extraliterário. Não objetivei avaliar se o texto, por exemplo, possui uma rima, ou qual é seu
efeito estético mais preponderante. Observei (para além do texto) quais os discursos que estes
livros têm trazido, se o estereótipo está sendo debatido e desconstruído, de que maneira as
personagens são apresentadas no texto e nas ilustrações, quais as temáticas que estão sendo
debatidas e o que uma criança pode aprender e/ou desconstruir ao ter contato com tais obras.

O objetivo geral deste trabalho foi analisar a representação da menina negra nas obras infantis
negro-brasileiras escritas por mulheres negras. Igualmente, como objetivos específicos,
busquei compreender o que é estereótipo e quais são os principais estereótipos encontrados na
literatura e como esses são danosos para o coletivo negro. Objetivei, também, compreender o
que é a literatura infantil negro-brasileira e em quê ela se diferencia da literatura infantil
brasileira, assim como busquei compreender a mulher escritora dentro deste novo cânone
literário, como elas produzem e o que produzem, e, por fim, olhei para suas produções.

Analisei as obras das mulheres negras da editora Mazza, mais especificamente dez títulos, que
representam as meninas negras.

Olhar é um exercício de poder, pois denota reconhecimento, chama à existência, aprecia,


qualifica, classifica, julga e imputa valor (positivo ou negativo), logo, olhei as meninas negras
como uma forma de chamá-las à existência e ampliar sua visibilidade e representação
positivada.

O trabalho pretende compreender sobre a produção literária das mulheres negras, se este
protagonismo produz uma escrita representativa negra diferenciada; analisar como a escrita
das mulheres negras tem desconstruído os estereótipos.

A escolha dessas obras esgota todo o repertório da Mazza, o que deu um caráter inédito ao
trabalho, pois são obras que, apesar do incentivo da Lei, são pouco conhecidas, haja vista os
entraves da publicação negra. Quando eu afirmo que esgota o repertório da editora é o porque
a produção literária infantil da Mazza conta com 73 livros, dentre eles 36 obras são sobre
personagens negros e, dentro deste universo, 10 obras são de mulheres negras que escrevem
sobre meninas negras, logo o enfoque se deu dentro deste recorte.
25

Vale salientar que dentro desta seleção de 36 obras com personagens negros estão as
produções de homens negros sobre meninos e/ou meninas negras, as produções de mulheres
negras sobre os meninos negros, as obra de homens e mulheres negras que produziram
narrativas para o público infanto juvenil e a produção de homens e mulheres brancas
representando a negritude.
Diante do anseio de realizar os objetivos e responder à questão problematizadora acima
citada, o trabalho foi estruturado em quatro seções:

 A primeira traz a discussão sobre o que é estereótipo, sendo necessário fazer um breve
mapeamento dos principais estereótipos encontrados na literatura, a fim de
compreender as mazelas que eles ocasionam à população negra;
 A segunda seção fala sobre a insurgência da literatura negra, cânone literário que
objetiva dentre, outras demandas, subverter a estereotipia, refletindo sobre a
contribuição dessa literatura para a representação da menina negra;
 A terceira seção apresenta a participação da mulher na literatura negro-brasileira,
mostrando as principais características da escrita das mulheres negras, refletindo sobre
a importância do protagonismo negro feminino na representação das meninas negras,
além de tecer um contraponto entre a produção feminina negra e branca, assim como
verificar as diferenciações no discurso da mulher negra no tocante à representação da
menina negra. O objetivo então é verificar se e/ou como o “lugar de fala” da mulher
negra altera os discursos e representações da menina negra;
 Na quarta e última seção elenquei alguns estereótipos a fim de analisar como as obras
os estão desconstruindo; abordei questões sobre a liberdade negra (liberdade do corpo
subjugado, sobre a liberdade da visão da África como berço de incivilidade, enfim
libertação da estereotipia), liberdade da estética negra, o cabelo negro, a fim de
verificar se está acontecendo um movimento de inserção do corpo negro no rol da
beleza e, por fim, abordei sobre as princesas, se as mulheres estão apresentando
princesas negras de forma a suscitar o empoderamento das meninas.

Nesta análise prioritariamente extratextual, avaliei os discursos engendrados sobre as


meninas, que podem ser ou não a personagem central da trama, assim como analisei as
ilustrações do texto, a fim de verificar como as meninas negras são representadas em seu
fenótipo, em seus traços, trajes e posicionamento. Estas análises têm o intuito de verificar de
como as narrativas escritas por mulheres negras desconstroem os estereótipos
26

marginalizantes, preconceituosos e sexistas sobre a menina negra; o que não me impede de


identificar/pontuar a presença de resquícios da manutenção dos estereótipos em alguma obra
analisada.

Vale salientar que a menina negra (objeto de pesquisa) se fez presente através da análise das
diversas obras literárias brasileiras e, também, através das dez obras produzidas pela editora
Mazza (recorte de pesquisa). A variedade de obras possibilitou análises, comparações,
reflexões e contrapontos sobre a mesma temática: a representação da menina negra.

Em se tratando de metodologia, foi utilizada a pesquisa bibliográfica a fim de fazer um


levantamento sobre o que já fora escrito sobre estereótipo, literatura negro-brasileira, escrita
de mulheres negras e a representação da menina negra e, para melhor embasamento da
pesquisa, foi utilizado o recurso da análise de algumas obras pré-selecionadas com
personagens negras. , a fim de cumprir o objetivo de verificar como as histórias desconstroem
os estereótipos marginalizantes

Espero que esta pesquisa seja um grande chamado às mulheres negras para continuarem
produzindo, às meninas negras para que se unam, resistam e lutem por uma melhor
representatividade de si mesmas, assim como almejo que as obras da Mazza Edições se
tornem conhecidas e que este trabalho sirva de bússola, onde as meninas possam saber onde
encontrar obras que falem delas.

Espero, também, que esta pesquisa possibilite aos estudantes e profissionais das áreas de
Letras e Educação uma ampliação de conhecimento sobre a temática estudada. Vale ressaltar
que a leitura de apenas um recorte, seja ele étnico, racial, cultural, de gênero, não contribui
para o respeito à diversidade do indivíduo, assim como não promove o conhecimento da
multiplicidade de representações existentes. A história de enfoque único contribui para a
criação dos “guetos literários”, onde um dado povo, seu gênero, sua cor, sua etnia, seu credo,
seus valores sociais, econômicos e culturais são respeitados em detrimento do outro,
mostrando quão perigosa é a história única8, que exclui a possibilidade de conhecer e aprender
com o outro (alteridade).

8
O termo o perigo de uma história única evocado no texto foi cunhado pela autora nigeriana Chimamanda
Adichie em ocasião do evento Tecnology, Entertainment and Design – TED (Tecnologia, Entreternimento e
Design) ocorrido em Monterey, Estados Unidos em 2009, posteriormente a palestra foi disponibilizada em vídeo
no site Youtube. No evento Adichie problematizou os perigos provenientes da exaltação e conhecimento de uma
27

Um dos diferenciais deste trabalho repousa na concepção de que a criança precisa ter acesso a
uma diversidade de narrativas, a fim de que se conheça e respeite o outro, mas que, também, é
imprescindível a sua real inclusão nas narrativas de forma positivada para que ela não recuse
sua própria identidade. O diferencial deste trabalho reside na máxima que a literatura não
pode ser um espelho vampiro9, no qual o leitor se olha e não se enxerga, e, sim, um lugar de
conhecimento do outro, de auto representação e afirmação, afinal, a história da menina negra
não pode passar em branco.

só história, cultura, identidade, etnia, padrão de beleza e representação, especialmente para a vida da criança. A
criança tende a introjetar aquela representação como algo que ela deve possuir/alcançar, negando assim, sua
própria identidade e desconsiderando a existência de tantas outras. Adichie ilustra a importância do contato com
uma diversidade de histórias, inclusive, a do próprio individuo, bem como a exaltação das diversas
narrativas/identidades como forma de não sucumbir ao recebimento de uma só fonte cultural que empodera uma
cultua e transforma em folclore as demais. (Vide referência da palestra no final da pesquisa)

9
O termo espelho vampiro é utilizado na obra Jogo Duro - Era uma Vez uma História de Negros que Passou em
Branco (1990), de Lia Zatz. . (Vide referência no final da pesquisa)
28

1 NEGRITUDE E ESTEREÓTIPO: HISTÓRIAS INCOLORES

PSIU!
Essa dor da qual falo
Não fala
foi calada
a fio de espada.
(Cuti)

Os contos de encantamento iniciam-se com a célebre fórmula “in nillo tempore”: era
uma vez. Geralmente, a ela sucede-se a descrição da personagem principal, apresentada como
bondosa, doce, gentil, inteligente; no caso das histórias de matrizes europeias disseminadas no
imaginário colonizado acrescente-se o dado da pele clara.

Em boa parte das histórias, os personagens superam os infortúnios, se apaixonam e vivem


felizes para sempre. Nesses formatos de narrativa, algumas prerrogativas podem ser alteradas;
no caso da tradição hegemônica, dificilmente a mudança refere-se à tonalidade da pele, o que
possibilita indagar: onde estão os outros personagens e tradições nessas narrativas? Os ditos
“diferentes”? Especificamente, indagamos onde estão os negros nas histórias ou, ainda, como
seriam as histórias se, por ventura, os negros estivessem nelas?

Comumente acreditamos que inexistem mãos negras literárias que escrevem a história do
negro; este pensamento errôneo, por vezes, tem servido como resposta à dificuldade em
localizar obras negro-centradas. Pensando nesta demanda, em 1981 Maria Mazarello
Rodrigues, a partir das suas experiências de militante do movimento negro, ao retornar ao
Brasil, após seu mestrado em editoração na Universidade de Paris, funda a Editora Mazza10.

Mulher negra, Maria Mazarello Rodrigues resolve lançar o que falta no mercado: negritude
positivada. Diríamos que, ao lançar suas obras, ela está se auto lançando também, está
suprimindo as lacunas literárias de representação da menina negra que fora um dia e da

10
Mazza é o apelido de Maria Mazzarelo Rodrigues.
29

mulher negra que é agora, haja vista que, como negra, entende bem as mazelas ocasionadas
pela falta de representatividade.

Em 2010 em uma entrevista à Revista Raça, que posteriormente fora disponibilizado no site
da própria revista, Maria Mazarello declarou que durante 24 anos muitas foram as
dificuldades para a produção e circulação das narrativas com personagens negros e, somente a
partir de 2003, com a obrigatoriedade da Lei 10.639, que aborda o ensino da história e cultura
afro-brasileira e africana, as editoras lançaram um selo negro aumentando, assim, a produção
e disseminação de obras com esta temática.

A mesma afirma também que, por ser uma mulher negra, sentiu na pele o que é ser criança e
não se identificar com nenhuma personagem e que essa falta de referência foi a válvula
propulsora para a sua entrada no mercado, apesar de afirmar que entrou pela porta dos fundos
devido o descumprimento da lei 10.639/2003 por maior parte dos Estados brasileiros.

Maria Mazzarelo ilustra, ainda, as oportunidades provenientes da Lei supracitada, embora


continue acreditando que há muito a ser feito nos âmbitos social, político e literário para
desconstruir preconceitos e fazer com que o público conheça outras literaturas além da
predominantemente branca com traços europeus. Com isso, a editora Mazza busca outras
representações da negritude. Segundo Stuart Hall (1997), as representações são sempre
relacionais e carregadas de imagens e mensagens carregadas de sentimentos e atitudes sobre
aquele(s) que está(ão) sendo representado(s)/exibido(s).

A representação é um conceito e prática ao mesmo tempo, além de ser peça chave para a
construção das identidades, especificamente a negra, logo, para impactar a esfera pública e
transformar o imaginário coletivo, combater o racismo e desconstruir os estereótipos as boas
representações são grandes ferramentas.

A Editora Mazza demonstra seu intento em desconstruir os estereótipos relacionados à


negritude através da sua vasta produção, onde discute o racismo e apresenta aos seus leitores
novas representações estéticas, valoriza a cultura e a tradição afro-brasileira. Com isso, Maria
Mazzarelo almeja que as meninas negras conheçam narrativas que as façam sentir-se inseridas
no mundo literário, fato que não aconteceu na sua infância. Problema de menina, resoluções
de mulher.
30

A produção literária infantil da Mazza conta com 73 livros, dentre eles 36 obras são sobre
personagens negros e, dentro desse universo, 10 obras são de mulheres negras que escrevem
sobre meninas negras. Vale salientar que, dentro desta seleção de 36 obras (incluindo a obra
lançada em 2016, intitulada Saci dos Quilombos, do autor Fabiano Moraes), com personagens
negros, estão as produções de homens negros sobre meninos e/ou meninas negras, as
produções de mulheres negras sobre os meninos negros, as obra de homens e mulheres negras
que produziram narrativas para o público infanto-juvenil e a produção de homens e mulheres
brancos representando a negritude.

Além disso, a Mazza conta, também, com a coleção Artista Mirim, do ilustrador Thiago
Amormino. Trata-se de uma coleção de cincos livros para colorir, na qual três deles trazem
crianças negras/artistas mirins ilustradas em suas capas.

A editora possui também uma coleção produzida por mulheres brancas; citamos as coleções
De Lá Pra Cá e a coleção Quero Ser. A primeira é uma coletânia de readaptações dos contos
clássicos da Cinderela, Cachinhos Dourados, Rapunzel e João e Maria, agora, renomeados
respectivamente como: Cinderela e Chico Rei, Afra e os três lobos-guarás, Rapunzel e o
Quibungo e Joãozinho e Maria. Esta coleção mostra que as princesas dos contos de fadas, as
princesas de lá da Europa são brancas, mas, a autora Cristina Agostinho readapta as histórias,
objetivando mostrar as princesas de cá do Brasil, as princesas negras.
A coleção Quero Ser (lançada em 2016) conta as atividades exercidas por cada profissional.
Algumas profissões e histórias são ilustradas com personagens negras, como os médicos,
dentistas, enfermeiros e cozinheiras. As profissões voltadas para área de saúde, por exemplo,
não eram associadas à imagem do negro, a julgar pela historiografia do Brasil que, por longas
décadas, endeusaram duas profissões, Direito e Medicina, que eram destinadas ao branco.
Estas duas coleções representam mudanças significativas no cenário literário.

Gostaríamos de olhar a representação das meninas negras na literatura de forma geral, mas
devido à imensidão dessa ambição e por não podermos dar conta de tantas meninas, de tantas
obras e tantos períodos históricos, delimitamos nosso anseio e olhamos com mais afinco para
as meninas negras divulgadas pela Mazza na contemporaneidade. Esse recorte se torna ainda
mais específico quando desviamos nosso olhar das narrativas escritas por homens e mulheres
brancas; esta delimitação se justifica pelo fato de que, historicamente, o povo negro, mais
especificamente as meninas negras, foram presas em grilhões e mãos brancas e/ou o
31

patriarcado escreveu suas histórias. Agora queremos ver as narrativas das meninas negras de
outrora, as mulheres negras que hoje escrevem para que as meninas negras de agora possam
surgir. É a era do “nós por nós”.

As 10 obras da Editora Mazza que se encontram dentro dessa delimitação são:

 Cheirinho de Neném, de Patrícia Santana, publicado em 2011;


 Que Cor é a Minha Cor?, de Martha Rodrigues publicado em 2005;
 A Ginga da Rainha, de Irís Amâncio, publicado em 2005;
 Entremeio Sem Babado, de Patrícia Santana, publicado em 2007;
 Mãe Dinha, de Maria do Carmo Galdino, publicado em 2007;
 Cadarços Desamarrados, de Madu Costa, publicado em 2009;
 Meninas Negras, de Madu Costa, publicado em 2010;
 Betina, de Nilma Lino Gomes, publicado em 2009;
 Gabriela, a Princesa do Daomé, de Marta Rodrigues, publicado em 2013;
 Omo-Oba – Histórias de Princesas, de Kiusam de Oliveira, publicado em 2009.

As obras acima citadas serão analisadas ao longo do texto. Os livros da editora Mazza11 têm
como objetivo maior desconstruir os estereótipos relacionados aos negros através de uma
literatura que, também, se afirma negra. Sendo assim, antes de olharmos as produções das
escritoras negras que representam meninas negras, é necessário compreender o que é o
estereótipo e o que é a literatura negra, tão enfatizada pela Editora Mazza, que se engaja na
luta pela divulgação de textos com conteúdo negro-centrados, na propagação de mãos e
personagens negros e na descoberta de novos leitores negros.

O momento é de representatividade, de enegrecer caminhos. O momento é de espelhos


literários negros.

11
As informações contidas sobre os livros da Editora Mazza estão disponibilizadas em seu catálogo de edições,
no site da editora e estão informados nas referências desta pesquisa.
32

1.1 PALAVRAS QUE NEGAM A REPRESENTAÇÃO AFIRMATIVA NEGRA:


LITERATURA E ESTEREÓTIPO

Maria Mazarello Rodrigues, ao criar a Mazza, evoca a necessidade de outras


representações e outros discursos, pois como acima mencionado, a literatura brasileira
historicamente sempre esteve contaminada por traços brancos e europeus, fortalecendo o
estereótipo, segregação e racismo. Sendo assim, é importante pensarmos que a presença do
negro na literatura brasileira não está isenta do tratamento marginalizador que marca sua etnia
desde o processo de construção dessa sociedade. Para entender esta afirmação, basta evocar o
questionamento de Jorge Hilton, licenciado em Ciências Sociais, especialista em História da
Cultura afro-brasileira e vocalista do grupo Simples Rap’ortagem que em sua canção Quadro
Negro questiona “quem escreveu a história do negro em nosso país? Basta ver a cor do giz”.

Domício Proença Filho (2010) evidencia que a trajetória do negro no discurso literário
brasileiro possui dois posicionamentos: a condição negra como objeto, numa visão
distanciada, e o negro como sujeito, numa atitude compromissada. Logo, temos de um lado a
literatura sobre o negro e do outro a literatura do negro. Obviamente, é importante ressaltar
que, embora hoje tenhamos uma literatura do negro, os resquícios da outra trajetória
permanecem em nossa literatura e na sociedade.

Ainda para Proença Filho (2010), a condição negra como objeto, numa visão distanciada,
inicia-se historicamente com o processo escravagista, ainda que alguns estudiosos e
historiadores identifiquem o racismo como um processo que antecede à escravidão. O fato é
que o processo escravagista sempre existiu dentre os povos, citamos: os gregos, romanos,
persas, egípcios, chineses, incas, bantos dentre outros, que escravizavam os derrotados nas
guerras, possuidores de dívidas e ou ilegalmente negociados por troca de insumos para
obtenção de mão-de-obra gratuita.

A escravidão dos africanos, todavia, além do argumento da necessidade da mão-de-obra


gratuita, forçosa, se alicerçou na prerrogativa de que os negros mereceriam a condição de
escravos. A sua pele passou a ilustrar sua categoria de inumano, primitivo, sem inteligência e
sem alma; logo, a escravidão moderna caracterizou-se pelo argumento cruel de que o
indivíduo, devido à sua cor, estava destinado à escravidão.
33

O processo escravagista influenciou todo o pensamento e comportamento social com relação


aos negros, fazendo-nos crer que sua historiografia inicia-se com sua condição de escravizado
e continua com a abolição, perdurando até os dias atuais sob uma condição marginalizante.

Após a abolição da escravatura não houve nenhum tipo de assistência para os negros libertos,
o que fez com que muitos, embora teoricamente livres, continuassem escravizados. E, se a cor
da pele indicou a quem se destinava a escravidão, após a o fim desta, a cor da pele vai indicar
a quem se destinam os piores salários, condições insalubres de moradia e saúde, educação
precária ou inexistente, a violência, os estereótipos, racismo, discriminações e preconceito. A
cor da pele vai justificar a marginalização social como forma de escravidão moderna, que
manterá os negros cativos numa situação imposta de inferioridade.

A condição negra como objeto, descrita por Domício Proença Filho (2010), influencia a
produção literária, uma vez que a literatura de maior propagação, divulgação e poder
simbólico social e político, é, inicialmente, escrita por mãos brancas, tendo o branco como seu
leitor real e ideal. Esses escritores e/ou leitores vivenciaram o processo escravagista ou foram
contaminados com uma educação reducionista do negro, fazendo com que sua produção
literária fosse o extravasamento do seu acervo de preconceito interiorizado. Esse,
perversamente, atinge a subjetividade do próprio negro, que passa a se negar, a negar sua
negritude/descendência africana ou a reproduzir ideologias que o marginalizam e o induzem a
cometer preconceito contra o próprio negro. Afinal, se a vida é uma literatura, ninguém quer
ser o dito “pior personagem da história”.

De acordo com Cuti (2010), o século XIX ilustra o período de fortalecimento da identidade
nacional, marcado pela Independência, Abolição, República e a crítica literária brasileira não
poderia ficar à margem desse processo, considerado de avanço das relações sociais. Temáticas
como a do bom selvagem, os amores arrebatados, a vida social urbana e a saga da escravidão
passam a ser a tônica do momento. Existe um investimento na concepção da cor local, na
exaltação da geografia, da fauna, da flora, na importância da construção de uma identidade
nacional. Todavia a forma de escrita ainda é transplantada do modelo europeu.

A expressão da cor local serviu para referir-se ao investimento do Brasil nas temáticas
envolvendo, especialmente, o índio, depois o negro e o miscigenado, embora, na realidade, a
concepção de progresso estivesse atrelada à cor branca.
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Cuti (2010) afirma que, nesse contexto de construção e fortalecimento da identidade nacional,
os escravizados e seus descendentes foram, predominantemente, utilizados como temática
literária pelo viés do preconceito e da comiseração. Como a escravização havia “coisificado”
os africanos e sua descendência, a literatura passa a atuar como o reflexo e reforço das
relações tanto sociais quanto de poder, operando no mesmo sentido ao caracterizar as
personagens negras, negando-lhes complexidade e, portanto, humanidade.

A escravização vai escrever o papel do negro na literatura, o que já se inicia com a cor da mão
que segura a pena e escreve a literatura sob a ótica do “vencedor”. É claro que mãos mais
escurecidas que possuem “mentes embranquecidas”, também seguirão a receita.

De acordo com David Brookshaw (1983), no período anterior a 1850 (abolição do tráfico de
escravos a partir da consolidação da Lei Eusébio de Queiroz), o negro praticamente inexiste
no âmbito literário, apontando que os escritores não consideravam os escravizados como
humanos.

No Brasil, primeiro foram divulgados os personagens indígenas, simbolizados em sua maioria


como selvagens nobres, como na obra de José de Alencar, O Guarani (1857). Posteriormente
o negro aparece na literatura, a princípio para contrastar com a representação do índio, que
não se curvava à escravização. E por fim, o negro começa a aparecer de forma mais patente na
literatura, descrito com índole escrava e resignado à sua condição e humilde.

Dessa forma, a escravização foi aceita por boa parte dos escritores que, por vezes, dependiam
das instituições escravocratas para a materialização das suas obras e/ou eram proprietários de
escravizados. Obviamente isto configurou as representações do negro sob uma série de
estereótipos.

Dentre os muitos estereótipos relacionados à figura do negro, destacamos o negro como


“animal”. Este estereótipo é encontrado, por exemplo, na obra O Comendador (1856), de
Francisco Pinheiro Guimarães, na qual o negro é descrito com uma aparência desumana: ora
possui uma magreza que expõe todos os ossos, ora possui uma obesidade doentia. Além disso,
o autor afirma que, enquanto andavam, os negros tinham sua pele constantemente corroída
por vermes e seus corpos eram repletos de cicatrizes provenientes dos castigos da
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escravização. Pinheiro, mesmo supostamente a fim de promover em seu leitor um sentimento


de piedade para com os negros, deu-lhes uma representação animalesca.

Ainda segundo Brookshaw (1983), outro estereótipo encontrado na literatura é do “escravo


fiel”, por exemplo, na peça O Cego (1845), de Joaquim Manoel de Macedo, na qual o negro
não questiona a instituição da escravização, ao contrário, assume-se escravo e grato ao seu
senhor, chegando a se auto-intitular como um cão fiel que tem os pés vigiados pelos
escravocratas.

Gregory Rabassa (1965) também analisou os estereótipos relacionados aos negros na


literatura, sendo um deles o estereótipo do “escravo nobre”, encontrado no romance
abolicionista A Escrava Isaura (1875), de Bernardo Guimarães. Esta obra apresenta aos seus
leitores uma escrava que é mais branca do que negra; por isso, Isaura vence a escravização.

Enquanto escravizados de pele negra eram descritos de forma animalesca, Isaura era descrita
como bela, ingênua, culta, possuidora de uma pele cor-de-rosa desmaiada, pálida. Para
mostrar um escravizado vencendo seu amo cruel, foi necessário embranquecer a escrava
Isaura, uma vez que “negro”, “beleza” e “vitória” não eram termos que se combinavam à
sociedade da época, o que seria uma subversão; portanto, os autores embranqueciam os
escravizados e/ou não citavam a tonalidade de sua pele.

Ainda segundo Gregory Rabassa (1965), outro estereótipo é o da “mulata sensual”,


encontrado na obra de Aluísio de Azevedo, O Cortiço, que, embora tenha sido publicado em
1890, foi planejado antes da abolição da escravatura. Essa narrativa mostra a relação entre
negros livres, escravizados e o povo miscigenado, todos expostos em sua pobreza a funcionar
numa espécie de determinismo social, além da figura de Rita Baiana, a mulata
exageradamente sensual que, com seus encantos, enfeitiça o mulato Firmo e o imigrante
Jerônimo, homem branco que elimina seu rival, mostrando que a sensualidade negra leva o
homem à destruição.

Ainda sobre obra O Cortiço, temos outra personagem feminina marcante, Bertoleza, uma
negra escravizada que se envolve com João Romão, dono do cortiço, um homem sem
escrúpulos. Bertoleza, por sua vez, sonha com a liberdade através da aquisição de uma carta
de alforria e, em prol deste sonho, ela economiza todos os seus ganhos.
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Bertoleza, descrita como crioula na narrativa, mantém com João Romão uma relação marital,
haja vista que vão morar juntos no cortiço. Ela submete-se a todos os caprichos de João
Romão, que a ilude dando-lhe uma carta falsa de alforria. Dessa forma, Bertoleza era a
quitandeira, a escravizada e a amante; suas economias e os frutos do seu trabalho deram a
João Romão ascensão social, que continuou a tratá-la sem nenhuma afetividade. João Romão
estava apenas exercendo a relação escravo-senhor, roubando do outro sua liberdade através da
exploração de seu trabalho e, ainda, fazendo uso sexual do que julgava ser de sua posse.

Na trama, Bertoleza era descrita como suja, sempre em meio aos fogões e panelas,
atrapalhada em seus afazeres; não possuía folga nem descanso e, à medida que João Romão
galgava posição social, pior ele a tratava e mais suja Bertoleza ficava, pois o dinheiro
embranqueceu ainda mais o indivíduo e ampliou as distâncias sociais e raciais entre os dois.

No decorrer da narrativa, é possível notar que a personagem Bertoleza tinha vergonha de si


mesma, da sua condição inferiorizada diante de João Romão, mas resignava-se ao silêncio e
aceitação das suas amarguras. Aluísio de Azevedo [1890] (2004) informa aos seus leitores
que Bertoleza era covarde e se sentia uma mancha negra, citamos: “E contentava-se em
suspirar no meio de grande silêncio durante o serviço de todo o dia, covarde e resignada,
como seus pais que a deixaram nascer e crescer no cativeiro.” (AZEVEDO, 2004, p.134)

Sabemos que Bertoleza e seus pais não eram covardes, eles foram submetidos forçosamente
ao processo escravagista e, aqueles que não se sujeitassem, eram mortos.
Identificamos várias tensões nessa narrativa, por isso, indagamos: estaria Bertoleza com João
Romão por enxergar nele a brancura da liberdade que tanto aspirava? Seria João Romão o
protótipo de superioridade que ela desejava pra si? Seria ele uma saída do seu lugar
subalterno?

A negritude também é evocada na trama de forma pejorativa, sendo uma mácula na vida de
Bertoleza, algo que precisava ser superado, logo, ela recorre à miscigenação e se envolve um
branco para alcançar a cura.

Na obra, a personagem, não tem tempo para cuidar de si mesma, é descrita como sofredora,
feia, pobre, velha, imunda pelo trabalho escravo ao qual era submetida e possuidora de um
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coração cheio de desgosto que não viu a luz. Um tremedal de nojo. Compreende que sua
condição animalesca transformou sua relação com João Romão.

Bertoleza já não se achava digna de amor e esperava de Romão tão somente conforto, amparo
em sua velhice, a segurança da brancura; afirmava que, embora negra (condição inferior),
possuía sentimento, mas apenas esperava de João Romão a concretização da ideia de que
aquele que come a carne (usufrui da sua mocidade e força do seu trabalho braçal) deve roer os
seus ossos (fazer-lhe companhia no momento da velhice e do desgaste). À medida que suas
demandas aumentavam, Bertoleza deixava de ser amante de João Romão para ser apenas
escravizada braçal dele.

Aluísio Azevedo apresenta a heroína Bertoleza como um estorvo, um obstáculo na vida e


progresso de João Romão, o qual usufruiu das economias para a libertação de Bertoleza e
suprimiu os louros provenientes de seu trabalho, passando a enxergá-la como um balcão velho
de uma quitanda, um sono ruim em um colchão fétido, a cúmplice de todo o seu mal, logo, era
necessário extirpá-la.

Sendo assim, João Romão elabora um plano de traição contra sua escravizada, tentando
devolvê-la a seu antigo dono. A cilada foi construída e, no momento que Bertoleza estava
imbuída em seus afazeres, em meio ao fogão, faca e escama de peixe, um séquito de soldados
veio levá-la ao cativeiro. No entanto, Bertoleza recupera sua coragem e, num ato de heroísmo,
ela mesma se premia com seu maior anseio: a liberdade. Inconformada com o seu destino
enfia a faca, instrumento de seu trabalho no próprio ventre e sai da vida para a liberdade da
morte.

João Romão, por sua vez, é considerado abolicionista, recebendo, inclusive, a honraria de ter
uma rua com seu nome. Sobre Bertoleza e da contribuição dela e de tantos negros que
permanecem no anonimato nada se sabe.

Em outra obra de Aluisio Azevedo, O Mulato (1881), temos a representação inversa: o bonito
e culto mulato Raimundo desperta interesse em Ana Rosa, sua prima branca e rica; no final da
trama, Raimundo é assassinado à pancadas. As duas narrativas tentam mostrar que os brancos
estão melhor equipados para a sobrevivência; além disso, o estereótipo da mulata sensual
associou-se a outro estereótipo: o da mulata imoral, degenerada, causadora de destruição. Na
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narrativa de Azevedo, Rita Baiana é comparada a uma cobra, animal amaldiçoado que, na
literatura bíblica, leva os homens ao pecado. Acentue-se o fato de que, sob essa tradição, a
mulher é a intermediária entre o homem e o pecado, intento da serpente.

Após a Lei do Ventre Livre, em 1875, a literatura abolicionista começou a se expandir: os


autores começam a apontar em seus escritos a necessidade de libertar os escravizados, porém
não por uma questão humanitária, mas sim pelos riscos que os mesmos ocasionam aos
brancos e suas famílias. Com isso outro estereótipo é fortalecido: o estereótipo do “negro
demônio”, imortalizado, por exemplo, na obra de Joaquim Manoel de Macedo, Vítimas
Algozes, publicada em 1873.

Embora a obra citada tenha sido publicada antes da Lei do Ventre Livre, autores como David
Brookshaw (1983) informa que existem indícios documentais de que o governo do período
solicitou a Joaquim Manoel de Macedo uma obra para preparar o público para a lei do Ventre
Livre.

Na obra Vítimas Algozes, temos três personagens negros marcantes: Simão, apresentado
como fera, em decorrência do próprio processo de escravização; Pai Raiol, o feiticeiro que faz
a criada seduzir o seu senhor e envenenar a senhora e as crianças; e a mucama Lucinda, que
corrompe a filha do seu servo.

Lucinda é um personagem feminino muito significativo na trama; trata-se de uma menina de


12 anos que é dada como presente à filha de um senhor agrícola de nome Cândida, menina
descrita como loira, de olhos azuis, inocente, um anjo em candura, que simpatiza com
Lucinda devido a sua habilidade em fabricar e costurar bonecas. Logo, uma aproximação
entre escravizada e senhora se constitui. Lucinda, embora escravizada, sabia ler, escrever e era
bastante persuasiva; tornou-se mucama de Cândida, ocupando o lugar de Joana, uma ama de
leite livre que cuidara anteriormente da menina. Esta substituição é apresentada pelo autor
como o prelúdio de uma tragédia: a perversão de Cândida provocada por Lucinda.

Nesse intuito, ocorrem muitos diálogos entre as personagens, a mucama ensina o que acontece
quando uma menina torna-se mulher, suscitando nela desejos corporais, informando-lhes os
deleites de ter vários namorados ao mesmo tempo e, de repente, Cândida deixou de ser
39

inocente, pois passou a frequentar salões e festas e Lucinda, objetivando lucrar com os
namorados da menina, a incentivava a insinuar-se para os rapazes.
A mucama torna-se amante do recém-chegado francês Alfredo Souvanel, um delinquente a
quem Lucinda associou-se. O objetivo era que Souvanel seduzisse e engravidasse Cândida a
fim de induzi-la ao casamento e, uma vez casados, o francês conseguiria proteção e libertação
para a escravizada.

O plano fora executado: Cândida foi seduzida, engravidou, mas a verdadeira identidade de
Souvanel, assim como a participação de Lucinda na trama, fora descoberta e ambos foram
entregues ao governo para receber suas devidas punições.

Durante toda a trama, Lucinda é vista como pervertida, perigosa, corruptora, aquela que
desvia Cândida dos bons costumes, a que escurece a brancura da sua honra. É vista, ainda,
como algoz, alguém que foi modificada pelo processo escravagista, que transforma humano
em bicho. Lucinda não é vista como uma menina que, lastimosamente, teve que aprender
artifícios para resistir aos entraves da escravidão e lutar por sua liberdade, pois quando não há
esperança de libertação, é necessário atacar a fortaleza e foi o que Lucinda fez: lutou e resistiu
fazendo uso das armas que possuía para ter o direito de ser humana e livre.

A obra de Macedo, de cunho abolicionista, mostra os perigos da escravização para os brancos


e suas famílias. O autor alimenta a ideia de que esse perigo se torna pior devido aos
escravizados nascidos no Brasil, pois estes seriam mais espertos do que os negros trazidos da
África, uma vez que eles estão mais propensos à revolta.

Gregory Rabassa (1965) afirma que Macedo propagou um ponto de vista pseudo-sociológico,
sob o qual os negros são descritos como degradados e a escravização como acentuadora dessa
condição, pois arrastariam, inclusive, as famílias dos escravocratas à sua degeneração. Assim,
tornava-se imperativo remover a instituição escravagista da sociedade brasileira e livrar as
famílias do contato deste povo de cultura e origem bárbara, afinal, a África era considerada o
berço de todas as misérias.

David Brookshaw (1983) amplia a visão de Rabassa (1965) ao informar que Macedo adota o
estereótipo da África selvagem, berço de todos os infortúnios, tais como doenças, feitiços,
pobreza, guerras, mortes etc. Macedo corrobora a ideia de que a África era o berço da sífilis e
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se referia com desdém à cultura e as línguas africanas, às quais intitulava de algaravia bárbara.
Sob essa ótica, se o contato com os brancos era um momento de civilização para os negros,
para os próprios brancos era uma desgraça.

Outro estereótipo indicado por Domício Proença Filho (2010) é o do “negro vítima” e do
“negro vingativo”, ambos encontrados na obra de Castro Alves. O negro vítima aparece na
trama quando o escravizado lamenta sua sorte, pede perdão, auxílio divino ou resigna-se a
condição que lhes é imposta, furtando da narrativa qualquer movimento de reação ou revolta
do escravizado. Como ilustração, podemos citar o poema de Castro Alves, Navio Negreiro
(1960), no qual o autor invoca o Deus dos desgraçados (escravizados), a fim de questionar
como pode ser verdade “tanto horror perante os céus” e também para pedir clemência diante
do sofrimento imensurável ocasionado pelo bestial processo escravagista. Já o negro
vingativo, obviamente, priorizava a vingança invés da luta pela liberdade.

Temos, também, o estereótipo do negro como uma categoria/raça inferior, apresentado, por
exemplo, na obra de Monteiro Lobato, O Presidente Negro, publicada em 1926, que conta a
história de um cientista que cria um invento capaz de prever o futuro. Assim, transporta-se
para o ano de 2228 e prevê que um negro será eleito presidente dos Estados Unidos e, devido
à ideia de superioridade da nação em questão e da suposta inferioridade do negro eleito, o
mesmo tem sua vida ceifada e um branco, possuidor de uma raça superior, assume a
presidência. Esta obra lobatiana está amalgamada às teorias raciais eugênicas.

Na literatura encontramos também o estereótipo do negro infantilizado, serviçal e subalterno,


o negro pervertido, propenso à promiscuidade, estereótipos que permanecem vivos na
sociedade brasileira.

1.2 IDÉIAS QUE NEGAM A REPRESENTAÇÃO AFIRMATIVA NEGRA: RACIALISMO


E ESTEREÓTIPO

Uma vez citadas as teorias raciais, é necessário fazer um breve panorama sobre as
mesmas, que foram fomentadoras de inúmeros estereótipos sobre os negros e estes, por sua
vez, se disseminaram além das esferas sociais, políticas e econômicas até a esfera literária.
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As teorias raciais foram responsáveis pela propagação de estereótipos tais como: o negro
degenerado, predestinado a atos degenerados, promíscuo, criminoso, intelectualmente inferior
e todos estes discursos contaminaram, inclusive, a literatura. Por isso, consideramos
necessário realizar este breve percurso sobre as teorias raciais, a fim de compreender o quão
perversa elas foram e como seus resquícios são nitidamente vivenciados até os dias atuais pela
população negra, que continua sendo vista de forma inferior, como se fosse inerente à sua
essência a sexualidade desenfreada, a tendência a marginalidade, a predestinação a trabalhos
braçais, a bestialidade, a feiura, dentre outros estereótipos. Isto também afetou diretamente as
produções literárias destinadas ao público infantil.

As teorias raciais tiveram como prelúdio a época das grandes viagens, durante os séculos XV
e XVI. Este período inaugurou outras concepções sobre a história ocidental, além de trazer à
tona outras percepções de diferença entre os homens. Nas narrativas contadas sobre as
viagens e navegações, os ditos homens novos eram descritos como estranhos em seus
costumes, selvagens e primitivos.

O conceito de primitivo12 fora adotado para elucidar quem eram os primeiros homens a existir
e para afirmar que toda a humanidade estava condicionada a uma única espécie evolutiva.
Esta percepção fundamenta a teoria humanista de Jean Jacques Rousseau (ano) apud Lilia
Moritz Schwarcz (1993), que intitula este condicionamento a uma única evolução possível de
perfectibilidade, ou seja, a capacidade de o indivíduo resistir aos ditames da natureza ou
aceita-los, é um principio de liberdade.

Todavia, no decorrer do século XIX, outra visão aparece: trata-se da visão evolutiva, que
prega que o indivíduo está condicionado a se aperfeiçoar, sendo esta sua capacidade singular e
inerente. Isto difere da concepção de Rousseau (ano) apud Lilia Moritz Schwarcz (1993), que
alega não haver a obrigatoriedade de atingir o dito estado de civilização.
A tradição humanista recebeu influência da Revolução Francesa, ocorrida no século XVIII,
estabelecendo bases filosóficas para se pensar a sociedade enquanto totalidade, propagando os
princípios de igualdade e liberdade.

12
Primitivo significa o primeiro a existir, aqui no Brasil os primeiros povos foram os índios, porém, os
colonizadores que aqui chegaram. tais como os portugueses, espanhóis, dentre outros, ao se compararem com os
índios julgaram-se mais cultos e avançados do que os povos encontrados, sendo assim, no decorrer do tempo
primitivo, passou a ser associado a atraso e selvageria.
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Lilia Moritz Schwarcz13 (1993) menciona que Rousseau, em seus estudos, utiliza o homem
americano como um modelo lógico para refletir sobre o estado da natureza; reflexão esta que
não significa o retorno ao paraíso original, trata-se de um convite à sociedade ocidental para
pensar sobre o próprio estado de civilização, refletindo sobre as consequências do seu alcance.
Rousseau, inclusive, questiona o estado de civilização ao indagar sobre qual vida se torna
mais facilmente insuportável: a natural ou a civil?

Essa indagação se atenta ao fato de que, por vezes, a vida civilizada tem causado aos
indivíduos exaustão de si mesmos. Em contrapartida não é comum vermos esse tipo de queixa
daqueles que levam uma vida natural.

A visão anteriormente descrita de Rousseau (ano) apud Lilia Moritz Schwarcz (1993) pode
ser considerada idílica, porém teve muita influência no decorrer do século XVIII; entretanto,
na segunda metade desse século, outras considerações deste Novo Mundo surgiram, dentre
elas a vertente de Buffon (ano) apud Lilia Moritz Schwarcz (1993) sobre a infantilidade do
continente e a de De Pauw (ano) apud Lilia Moritz Schwarcz (1993) sobre a degeneração
americana.

Para Buffon (ano) apud Lilia Moritz Schwarcz (1993), o continente era carente: os animais e
os indivíduos frágeis devido à debilidade da terra. Para De Pauw ((ano) apud Lilia Moritz
Schwarcz (1993), a debilidade era orgânica: os indivíduos eram decaídos e degenerados. No
entanto, a partir do século XIX, a visão humanista perdeu influência para uma visão mais
rígida no tocante ao patrimônio genético, aptidões intelectuais e inclinações morais. Como
efeito desta concepção, o termo raça passou a ser introduzido de forma mais ativa na
classificação social, se estendendo até a participação no campo literário a partir do século
XIX, disseminando a ideia, inclusive na literatura, da existência de heranças físicas
permanentes e inerentes aos grupos humanos. Inaugura-se um projeto marcado pela diferença,
a qual narra, ordena e classifica.

13
Para tratar das teorias raciais adotamos a organização estrutural dos estudos de Lilia Moritz Schwarcz, que
agrupa as principais teorias raciais em duas grandes vertentes: a monogenista e a poligenista e dentro destes
grupos elas condensa as teorias que julga ser de maior influência social. O objetivo de adotarmos o modelo da
autora é devido ao fato de interessar-nos mais compreender os discursos que as teorias raciais construíram e/ou
consolidaram e como estes discursos fomentaram a construção de estereótipos que influenciam a literatura invés
de fazer uma analise ampla e histórica sobre cada uma das teorias raciais.
Os autores Broca, Buffon, Rosseau, Gobineau, Lê Bom e De Pauw são apud’s da obra de Schwarcz.
43

Schwarcz (1993) explicita que nesse debate emergem as reflexões sobre as origens da
humanidade e duas grandes vertentes despontaram: a monogenista e a poligenista. De um lado
temos a visão monogenista, dominante até meados do século XIX, pautada nos conceitos
bíblicos que pregam que a humanidade é única e as diferenças eram justificadas “devido à
maior degeneração ou maior perfeição proveniente do jardim do Éden”. A outra visão foi a
poligenista, que contestava o dogmatismo religioso e acreditava que a existência humana
partia de vários centros de criação e cada um correspondia às diferenças raciais observadas. A
versão poligenista fortaleceu a análise do comportamento humano a partir da interpretação
biológica, perspectiva esta que foi encorajada com os estudos da frenologia, antropologia e a
nova técnica de craniologia, que passaram a interpretar a capacidade humana tomando em
conta o tamanho e proporção do cérebro dos diferentes povos.

Paul Broca (ano) apud Lilia Moritz Schwarcz (1993) é um dos mais conhecidos nomes dos
adeptos aos estudos do crânio. Para ele, a diversidade humana era fruto das diferenças na
estrutura racial. Seu objetivo era chegar à reconstrução das raças puras, por isso condenava a
hibridação humana em função de uma suposta esterilidade das espécies miscigenadas. Broca
acreditava na imutabilidade das raças, traçando inclusive paralelos entre a não fertilidade da
mula e uma possível esterilidade do mulato, pois o mestiço seria semelhante à mula: não
fértil.

Já outros deterministas, como Gobineau e Lê Bom (ano) apud Lilia Moritz Schwarcz (1993,
tinham concepções opostas. Para eles, os mestiços eram infelizmente muito férteis; porém, o
fruto desses cruzamentos gerava uma população que herdava sempre as características
negativas da raça tida como inferior; logo a hibridação era um fenômeno a ser evitado.

Na versão poligenista, a mistura das raças era um fator central, os mestiços personificavam a
degeneração que poderia advir do cruzamento de espécies diversas.

Esse determinismo de cunho racial, denominado de darwinismo social ou teoria das raças,
enxergava de forma desanimadora a miscigenação, já que acreditava que não se transmitia
caracteres adquiridos nem mesmo por meio de um processo de evolução social; ou seja, as
raças consideradas inferiores estavam determinadas a permanecer na sua condição, logo todo
cruzamento era um erro, pois os resultados são imutáveis. O objetivo desta teoria era enaltecer
a raça considerada superior, os brancos, e a existência de um tipo puro e, portanto, não sujeito
44

ao processo de miscigenação e, por fim, compreender que a mistura significa degeneração


social e racial.

O determinismo racial afirmava que a distância existente entre as raças é semelhante à


distância entre um cavalo e um asno. Pregava que existe uma continuidade física e moral
entre as raças, o que corresponde a uma divisão cultural e à preponderância do grupo racial-
cultural determinando o comportamento humano, hostil à possibilidade de livre-arbítrio do
indivíduo.

A culminância de todo esse pensamento, conforme explica Lilia Moritz Schwarcz (1993), foi
a consolidação de um ideal político, um diagnóstico sobre a submissão ou mesmo a possível
eliminação das raças inferiores, convertendo-se, assim, na prática avançada do darwinismo
social – a eugenia, expressão que provém do grego eu: boa; genus: geração, termo criado em
1883 pelo cientista Francis Galton.

A eugenia é um movimento científico e social que a partir de 1880 aplicou diversos ditames,
tais como: controlar a produção de nascimento dos desejáveis, promover casamentos entre
determinados grupos e inviabilizar certas uniões consideradas perigosas para o progresso da
sociedade.

Esse movimento promoveu uma administração científica e racional da hereditariedade através


da introdução de políticas e práticas de seleção social, as quais acreditavam que o bom
desenvolvimento de uma nação seria o resultado da consolidação de uma raça pura. Essa
premissa pautava-se, também, na justificativa de que o resultado de um casamento híbrido era
sempre degenerado e fraco, uma vez que o produto carregava sempre os defeitos de cada um
de seus ancestrais. Vale ressaltar que os grupos negros, amarelos e miscigenados seriam
sempre os povos incivilizáveis, não perfectíveis, ou seja, incapazes de alcançar o progresso.

As teorias raciais se baseavam também em caracteres anatômicos, tais como cor da pele,
forma, fisionomias, e capacidade intelectual do crânio a fim de separar os indivíduos. No final
do século XIX, a noção de raça foi ampliada para além da questão biológica, para a tradução
da ideia de nação, de civilização, a qual era um estágio acessível a poucas raças; os mestiços,
negros e amarelos eram considerados sub-raças, decadentes, degeneradas e naturalmente
inclinadas a criminalidades.
45

No Brasil, as diferenças já existentes passaram a ser adjetivadas na vida social, nos textos
médicos, nos textos das leis, falas oficiais, nos romances naturalistas, nas teses científicas, nas
ciências naturais, na história, na literatura infantil; em todos os âmbitos de poder político ou
artístico fora propagado que a raça determina o destino de um povo.

A raça, de acordo com Patrícia de Santana Pinho (2004), é uma construção social e cultural,
que responde às formas racializadas de dominação, de maneira igualmente racializada. No
início do século XX, o conceito de raça passou a ser ainda mais discutido entre as pessoas,
nos conflitos diários, clínicas médicas, personalidade dos personagens etc.

Os modelos deterministas raciais foram bastante populares no Brasil, servindo para explicar
as diferenças e hierarquias, transformando-se em uma espécie de jargão comum até os anos
1930. Entretanto, o desafio era adequar as teorias que chegavam de fora ao contexto brasileiro
tão mestiço, afinal, após a escravidão, em um momento em que se redescobria a nação, os
negros, os mestiços e os africanos de forma geral passaram a ser compreendidos como um
entrave para a formação de uma verdadeira identidade nacional.

Muitas ações foram utilizadas no Brasil a fim de alcançar o progresso, dentre elas, citamos a
seleção matrimonial, a esterilização dos grupos considerados doentes, ações que, de acordo
com Lilia Moritz Schwarcz, não tiveram sucesso, pois não conteve a miscigenação. Com o
fim da escravização e a inauguração da democracia através da República em 1822, surge a
ideia de igualdade mediante a Lei para todos os indivíduos, apesar de sabermos que
conquistas políticas são negadas em nome da natureza.
Em suma, adotar as teorias raciais no Brasil pós-escravidão significava frear a miscigenação
avançada ou, ainda, adotar uma política que não se ajustava às demandas locais, apesar de no
Brasil circular a ideia de que o futuro da nação seria branco.

O final da escravização gerou, também, uma amnésia proposital em um Brasil que precisava
avançar e, por isso, era necessário esquecer/apagar a escravização. Em suma, como não era
possível frear a miscigenação passamos a considerá-la como uma característica brasileira, um
legado da fusão harmônica entre os povos.

O Brasil buscou meios de negar a ideia de inferioridade inata dos mestiços, como pregavam
os teóricos raciais europeus, sendo assim, elaborou uma medida otimista para driblar o
46

conceito da miscigenação como produtora de degenerados. Passando a conceber que a


miscigenação fabricava uma população branca fisicamente e culturalmente. A tese do
branqueamento se ancorou no conceito de que a mistura entre as raças produzia naturalmente
uma população mais clara, haja vista que o gene branco era considerado predominante, o mais
forte.

Essa percepção influenciou a população a se relacionar com pessoas de pele mais clara que
elas, assim como fazer uso da mão-de-obra de imigrantes europeus para ampliar a imagem de
uma raça mais forte no Brasil. A imigração era uma agente de purificação étnica, pois sem
brancos e embranquecidos o Brasil não alcançaria o progresso material e a sociedade
padeceria da falta de avanços morais e intelectuais.

No Brasil dentre os teóricos raciais podemos citar Sílvio Romero (1954), um dos principais
nomes do branqueamento, que através da junção das raças, acreditava em um futuro de
progresso para o Brasil, pois através desta agregação iria desaparecer da sociedade o sangue
negro e índio. Todavia reconhecia que o alcance deste feito demoraria a se completar, fazendo
inclusive uma estimativa de três ou quatro séculos.

Roberto Ventura (1991) afirma que Silvio Romero divergiu de sua crença acima disposta a
partir de 1913, passando a acreditar na impossibilidade de eliminar as raças consideradas
inferiores, pois os caracteres das mesmas são persistentes, passando então a propagar que só
haveria duas possibilidades para o Brasil: ou se tornar um país de mestiços ou ser dominado
por raças inferiores e, portanto, ele passou a condenar a miscigenação, apoiando a importância
do purismo e superioridade das raças.

João Batista de Lacerda, médico e cientista brasileiro, concorda e acrescenta outros liames
diante da percepção de Silvio Romero. Para ele, os miscigenados são inferiores, mas possuem
características importantes, tais como força física e resistência a enfermidades, além de serem
superiores moralmente se comparados aos negros, logo, era melhor um país de miscigenados
do que um país de negros. Para Lacerda, os filhos dos mestiços, na terceira geração, teriam
todas as características genéticas dos brancos, desse modo, o apagamento era possível,
embora julgasse que demoraria em média um século para o alcance de tal progresso.
47

A percepção de João Batista pode ser esboçada através da obra de arte A Redenção de Cam
(1895), de Modesto Brocos, exposta no livro O Espetáculo das Raças, de Lilia Moritz
Schwarcz (1993).

Figura 1 - A Redenção de Cam

Fonte: SCHWARCZ, 1993, p.16.

A pintura expõe três gerações distintas, exibindo uma mulher mestiça ao lado de seu esposo
branco e no colo dela está o filho deles, uma criança fenotipicamente branca, e ao lado do
casal, em pé e de braços erguidos em estado de glória e êxtase, uma idosa representando a
mãe da mestiça agradecendo a possibilidade de clareamento da família, agradecendo aos céus
a possibilidade de eliminar a mancha vergonhosa da negritude, agradecendo a redenção do
neto que foi liberto da memória escravagista.

A pintura do espanhol faz referência às teorias raciais do final do século XIX e o título da
obra é de conotação bíblica, fazendo alusão à punição de Noé a seu filho, que zombou de sua
nudez e embriaguez. Este episódio, descrito no livro Gênesis da Bíblia, expõe que Noé
amaldiçoou Cam, descendente africano e possuidor de pele escura, a ser o último dos escravos
dos seus irmãos, sustentando o fato de que a escravidão negra era um ato condizente à
vontade de Deus. Entretanto, a obra de Brocos é uma alegoria ou, ainda, uma analogia entre
raça e religiosidade e não está preocupada com a maldição africana e, sim, com a redenção
que pode haver a partir da miscigenação.

Entre os eugenistas brasileiros podemos citar o médico baiano Nina Rodrigues, um dos nomes
mais radicais na corrente racista. Rodrigues considerava o mestiço como um degenerado
48

físico, uma anomalia, e o negro como um malgrado social, um elemento que inferiorizava
todo povo brasileiro.

Segundo Thomas Skidmore (1976), Nina Rodrigues condenava a miscigenação que, para ele,
acarretava o apagamento da raça branca na sociedade. Além disso, Rodrigues pregava que os
negros, pertencentes à uma raça inferior, nasciam com características raciais que os
condicionavam ao distúrbio social e à propensa criminalização, o que deveria ser levado em
conta junto às autoridades policiais, bem como a necessidade de uma abordagem policial
diferenciada para os negros, assim como o aumento da responsabilidade penal em relação a
negros e mestiços, delinquentes por natureza.

A ideologia de Nina Rodrigues vigora até os dias atuais, a julgar que a população carcerária
brasileira é, em sua maioria, de negros, que sofrem uma abordagem policial assassina: mata-
se primeiro, investiga-se depois. Os negros são sempre os ditos criminosos. A bala perdida no
Brasil sempre encontra um corpo negro.

Ainda é possível citar, entre os nomes brasileiros, Euclides da Cunha que, apesar de
considerar a miscigenação nociva em sua obra Os Sertões (1902), afirmava que esta
percepção não se aplicava ao sertanejo, a quem definia como forte, pois a intimidade com a
terra inóspita do sertão enrijeceu seu organismo, índole e costumes. O sertanejo, ainda que
retrógrado, não era um degenerado como os demais mestiços. Euclides da Cunha realizou
nessa obra uma relação entre raça e clima.

No início do século XX, este debate foi reelaborado por autores como Gilberto Freyre, que
enaltecia a miscigenação como espécie de herança brasileira, embora isso não significasse que
os lugares sociais de negros e mestiços continuassem socialmente marcados e marginalizados
devido a sua raça. A mestiçagem passa a ser o elo de transição no país, que passa pelo
processo acelerado de cruzamento, depurações e seleções naturais, era agora vista como uma
esperança de levar o Brasil ao caminho da brancura. A miscigenação iria lavar “a mancha da
negritude que impede o progresso da nação”. É no século XX, também, que se intensifica a
representação negra e mestiça de forma exótica ao invés de meramente negativa.
49

É necessário abordar que a miscigenação, outrora vista como aberração e, posteriormente,


como exotismo, é, na realidade, o produto cruel do estupro da mulher negra14, como apontado
por Kabengele Munanga (2008). Por conseguinte, desta relação forçosa entre a negra
(escravizada) e o branco, surgiu o mulato, visto até hoje como um instrumento de prazer e
fornicação, enquanto o negro permanece sendo visto como um empregado, como a força que
sustenta a economia. Atualmente, ambos continuam, em sua maioria, na pobreza e com pouca
ascensão social.

Munanga (2008) considera, ainda, a miscigenação como uma variante que distingue os
indivíduos pertencentes à mesma etnia, uma vez que passou a ser vista como instrumento
embranquecedor da população e, também, como uma possibilidade de ascensão social:

O fato de aceitar o branqueamento, o que é uma maneira de dizer que o mulato tem
um lugar especial na sociedade, tem como consequência a redução do
descontentamento entre as raças. Assim, no Brasil, o negro pode esperar que seus
filhos sejam capazes de furar as barreiras que o mantiveram para trás, caso eles se
casem com gente mais clara (MUNANGA, 2008, p.81).

Agora a miscigenação é a forma de negociação para o alcance do empoderamento e ascensão


social, ainda que este resulte num processo de aculturação. Munanga (2008) afirma, inclusive,
que boa parte da população afro-brasileira sonha com esta passagem, sonha com o
empoderamento através do relacionamento inter-racial, enfraquecendo a solidariedade para
com o grupo negro. Além da miscigenação, o autor cita que o dinheiro também possui poder
embranquecedor, afinal agora “(...) o brasileiro pode mudar de raça, ou melhor, de
identificação racial, no decorrer de sua vida. (...) O dinheiro compra tudo até o status para o
negro” (MUNANGA, 2008, p.84).

O autor considera a miscigenação como produtora de uma alienação identitária, uma vez que
a mestiçagem faz com que o indivíduo não declare sua negritude. Para comprovar tal
percepção, Munanga (2008) apresenta em sua obra mais de cem nomes que podem ser dados
aos negros para disfarçar a sua própria identidade, como forma de desconhecê-la, negá-la, ou
assumir outra identidade, a fim de também se tornar superior, lembrando que a superioridade
estava atrelada aos brancos.

14
A miscigenação é fruto do estupro da mulher negra e índia, porém enfatizamos apenas as nuances referentes à
negritude por uma questão de abordagem de pesquisa.
50

As teorias raciais do século XIX fortaleceram a estereotipia com grande relevância social por
serem ditas por vozes de grande respaldo e influência, como médicos e inúmeros outros
cientistas. As teorias raciais também utilizaram o campo literário como meio de fortalecer e
disseminar os estereótipos que violentam a população negra e miscigenada até os dias atuais.

Monteiro Lobato é um dos principais nomes da literatura brasileira que utilizou suas obras,
também, como um extravasamento das suas concepções eugênicas. O cronista, ensaísta,
tradutor, bacharel em Direito, considerado um dos grandes nomes da literatura infantil
brasileira, atuou como promotor público, foi fazendeiro, mas foi como escritor que alcançou
grande destaque. Suas obras são de grande influência social e política, além de serem fontes
de grandes polêmicas envolvendo racismo e eugenia, elementos sempre presentes em suas
narrativas.

Em 1918, o autor comprou a Revista do Brasil, responsável pela publicação dos seus textos,
além da divulgação de novos escritores, posteriormente, fundou sua própria editora, a
Monteiro Lobato & Cia., depois chamada Companhia Editora Nacional. A partir destes fatos,
pode-se compreender o quão fácil era para Lobato escrever e disseminar seus livros.

A obra A Menina do Narizinho Arrebitado, publicada em 1921, teve um número significativo


de exemplares distribuídos nas escolas de São Paulo. Lobato escrevia, publicava e facilmente
disseminava suas obras na sociedade, inclusive em locais considerados para muitos de difícil
acesso, como a escola, lugar também de formação de mentalidade e ideologia, ampliando o
reconhecimento de sua marca e de seu texto, fazendo com que crescesse a demanda por seus
exemplares. Muitos outros livros foram publicados e grandes eram as tiragens, fazendo
inclusive com que Lobato tivesse que importar maquinários para a sua gráfica.

Outras estratégias adotadas por Monteiro Lobato para incrementar a venda dos livros foram
bonitas capas coloridas e didáticas, além de contar com uma distribuição diferenciada,
fazendo uso de vendedores autônomos espalhados por todo o Brasil. O grande perigo de
tantas facilidades reside no fato de o autor ser racista, mais do que isso: um eugenista. A
Eugenia prega a purificação das raças através da união de pessoas brancas a fim de garantir a
existência apenas de pessoas “saudáveis” e, para tanto, era necessário promover a eliminação,
segregação e esterilização das pessoas negras. Lobato considerava os negros e mestiços como
degenerações que deveriam ser eliminadas
51

Lobato participava da SESP (Sociedade Eugênica de São Paulo), fundada em 1918. Muitos
eram os associados, dentre eles destacamos os psiquiatras Renato Kehl e Franco da Rocha,
Arnaldo Vieira de Carvalho, fundador da Faculdade de Medicina de São Paulo, o sanitarista
Arthur Neiva e o educador Fernando de Azevedo. Pessoas eugenistas de grande influência
social e política que disseminaram suas ideias na Saúde, Educação, Literatura, dentre outros.

Lobato trocava correspondências com Renato Khel e Arthur Neiva, algumas das quais podem
ser encontradas na sua obra A Barca de Gleyre, publicada em 1944, onde afirma seu desprazer
em circular pelas ruas e visualizar os negros e suas características bizarras, suas degenerações
e anormalidades físicas e morais, pregando, inclusive, que a vingança do negro escravizado
trazido da África foi associar-se ao branco e tornar-se mulato. Ainda nesta obra afirma que
sua escrita é um processo indireto de fazer eugenia.

Na já citada obra O Presidente Negro, publicada em 1926, Lobato abordava o receio da


dominação do negro que poderia, inclusive, alcançar o cargo de presidente do país. Ao longo
da trama ele também aborda práticas eugênicas como o fornecimento de pílulas
esterilizadoras para o povo negro.

Na contemporaneidade, muitos são os que defendem Lobato informando que sua escrita era
fruto da época em que vivia; o fato é que, enquanto escritor consagrado, ele poderia utilizar a
Literatura como um instrumento de combate racial, mas utilizou-a como um meio de
estimular a segregação e o racismo, um meio de propagar práticas eugênicas.

Em 30 de junho de 2010, o Conselho Nacional de Educação recebeu uma denúncia feita por
Antônio Gomes da Costa Neto, mestrando da Universidade de Brasília, informando que a
obra Caçadas de Pedrinho, publicada em 1933 por Monteiro Lobato, possuía conteúdo racista
por relacionar a personagem Anastácia, empregada doméstica da trama, como um indivíduo
inferior, associando-a a um animal, especificamente a um macaco da cor de carvão que
facilmente trepa em uma árvore. A facilidade do feito reside no caráter animalesco que, de
acordo com Lobato, é comum ao povo negro. Face a esta denúncia, uma celeuma midiática se
formou: escritores, como Ziraldo, criticaram a proibição das obras de Lobato, o que não fora
cogitado pela relatora do caso, Nilma Lino Gomes, pedagoga e atual Ministra das Mulheres,
da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos no Brasil.
52

O fato é que as obras de Lobato ferem a Constituição Federal de 1988, Lei 7.716 de 1989, que
criminaliza o racismo, assim como o Estatuto da Criança e do Adolescente por afrontar as
crianças em seus direitos tanto quanto a evolução dos direitos humanos.

As obras lobatianas permanecem sendo utilizadas nas escolas; são os clássicos da literatura
infantil e não se poderia proibir sua circulação. Com base nisso, foi proposta a inclusão de
notas explicativas, alertando aos leitores os inúmeros crimes contidos nessa obra, além disso,
o parecer da relatora Nilma Lino Gomes convida os educadores a terem cuidado na utilização
dessas obras nas escolas, pois é muito fácil ler Lobato quando se é uma criança branca.

Difícil é ser uma menina negra insultada na trama, na vida, na escola. Na obra Negrinha, de
Monteiro Lobato, publicada em 1920, o autor narra a história de uma menina órfã de 7 anos,
que era fusca, sem brilho, mulata, suja, que vivia escondida pelos cantos dos cômodos. Filha
de escravos, nascida na senzala, Negrinha era “criada” por dona Inácia, a quem o autor
descreve como uma senhora robusta, boa, mulher de fé, que possuía o lugar reservado no céu
por ter feito a caridade de aceitar em seu lar uma menina negra para ser sua empregada.

Na trama são descritas todas as atrocidades físicas e morais que Dona Inácia proferia e que a
menina sofria, até mesmo por chorar de frio e fome. Negrinha cresceu magra, assustada e
atrofiada, sua dona mal permitia que caminhasse por receio de que a mesma estragasse seu
assoalho e seu jardim. Negrinha apanhava por ações e omissões. Dona Inácia recebia
adjetivações como bondosa, filantrópica, sendo considerado o mais próximo de uma má
qualidade o fato de ser descrita como gorda, resultado da vida regalada que possuía, enquanto
Negrinha era adjetivada de peste (bubônica), trapo, cachorro, lixo, coisa ruim, diabo; nunca
soubera o que é carinho.

Lobato, numa tentativa de demarcar a ignorância da menina, afirmava que ela achava bonito o
nome “bubônica”, pois, como era de pouca inteligência, não sabia o que significava. Ela não
sabia que personalizava a peste: seu corpo era marcado de sinais e cicatrizes, seu corpo era o
esboço de dor e sofrimento, um ímã para atrair pancadas, apanhava todos os dias, com ou sem
motivo, e seu rosto tinha a face de uma careta.

Lobato justificava os desmandos de Dona Inácia para com a menina alegando que ela fora
senhora de escravizados, normalizando tal prática; com a abolição da escravatura, o acoite foi
53

tirado dela, mas não a vontade de judiar dos negros, e Negrinha era um remédio para conter os
vícios do seu passado. Dona Inácia era doente, possuía a enfermidade da crueldade que o
processo escravagista gerou nela.

No final, a narrativa nos direciona para o momento em que Dona Inácia recebe a visita das
suas sobrinhas; neste momento, Negrinha descobre algo que nunca tinha visto: uma boneca.
Seu estado de êxtase face ao brinquedo foi tamanho que apiedou o coração de sua dona, que
se tornou humana pela primeira vez na trama e permitiu que Negrinha brincasse com suas
sobrinhas e seus brinquedos no jardim. Vale relembrar que, diferente de Negrinha que era um
animal inato, Dona Inácia havia se tornado um animal devido à influência negativa que
sofrera no período da escravidão.

Durante a brincadeira, Negrinha percebeu que, mendiga ou princesa a boneca é igual para
qualquer menina, um elemento de preparação para se tornar mãe, mulher, e que ela também é
humanamente igual à sobrinha de Inácia. E foi durante aquela brincadeira que Negrinha teve a
epifania de se descobrir gente, com alma. Essa descoberta a matou, pois, findadas as férias, as
sobrinhas de Dona Inácia partiram, levando consigo a boneca, e ela não suportou perder a
humanidade adquirida de menina que brinca e sorri.

Assolada em sua tristeza, Negrinha morreu deitada numa esteira, como um cão sem dono, em
seguida foi colocada em cova rasa como os indigentes; os vermes comeram sua carne preta
(carne sem qualidade) com desprezo e dela só restaram dois pensamentos: para as sobrinhas
de Dona Inácia ela não passava de uma menina ingênua que nunca tinha visto uma boneca e
para dona Inácia era um objeto bom de bater. E assim, Negrinha partiu da vida para a
liberdade da morte, delirando que estava arrodeada de bonecas loiras que pareciam o que ela
foi induzida a conceber como anjo.

Na obra descrita, é possível identificar os lugares demarcados e segregados entre negros e


brancos, mesmo após a dita da Abolição da Escravatura. Negrinha, embora livre, continuou
escravizada, à mercê de Dona Inácia que, tal como uma viciada, tem recaídas do período
escravagista, logo, precisa de um corpo negro para se aliviar da sua doença. Por outro lado
Negrinha, estava condenada a carregar o fardo da sua estereotipia que a enclausura numa
condição de escravizada, ignorante, submissa, um animal sem dono, pois, mesmo livre, não
tinha pra onde ir.
54

Seguindo a lógica do livro, a liberdade do negro é a morte, pois a vida lhe é fadada de
sofrimentos e até a representação de anjos loiros de olhos azuis não lhe salvam, inclusive na
hora morte há desamparo, não há representatividade, afinal, o branco normalmente não salva
o povo negro, mas bondosamente atira-lhe um pouco de terra sobre sua cova, ansiando que a
terra lhe seja leve e o seu descanso garantido.

A representação da infância de Negrinha é dispare da infância normalmente representada por


Lobato com seus demais personagens, Narizinho e Pedrinho, que são crianças dotadas de
inteligência, que se posicionam politicamente, são leitores ativos, imaginativos e se divertem
bastante. Seus corpos só trazem marcas das boas experiências que vivem no Sítio do Pica Pau
Amarelo, já Negrinha tem sete anos, mas não é uma menina, não é gente, é uma peste, uma
doença, sendo assim, não é digna de afetividade, pois é nociva ao bem estar do branco, tem
seu direito de fala destituído assim como seu direito de ir e vir na trama, pois até o
movimentar-se do negro é visto como prejudicial para o branco.

A obra de Monteiro Lobato mostra um abismo entre as diferentes infâncias ou será que existe,
para o autor, uma infância negra? Se existe, ele tratou de ocultar. Escondeu tanto que quando
Negrinha descobriu o segredo, que os negros são humanos, este segredo a matou. A menina
ousadamente cometeu o delito de encontrar sua própria alma.

David Brookshaw (1983) afirma que os escritores, especificamente os abolicionistas, fizeram


uso dos estereótipos como uma forma de reconhecer, interpretar o outro, incutindo suas
interpretações nas mentes de seus leitores. Na obra de Lobato, por exemplo, encontramos o
estereótipo da negritude como castigo, estigma que pode ser exemplificado também em
Memórias da Emília, publicada em 1936, na qual a personagem Tia Nastácia é descrita como
analfabeta, a negra de estimação, negra que é tratada como parte da família. Os traços e
estereótipos dos negros eram descritos com desapreço e, até certo ponto, provocavam
sentimento de desprezo e horror.

Monteiro Lobato15 em seus livros sintetiza, então, toda esta estereotipia através da
personagem Tia Anastácia (chamada na obra de Nastácia numa forma de apropriação e
alienação de si mesma e do seu próprio nome), negra e empregada doméstica, descrita como

15
Referência aos estereótipos do negro encontrados nas obras de Monteiro Lobato: Reinações de Narizinho
(1920), Caçadas de Pedrinho (1933), Memórias da Emília (1936) e História de Tia Nastácia (1937).
55

negra estimação (estereótipo do escravo fiel), era cozinheira e apenas para exercer tal função
braçal ela serviria (estereótipo do negro subalterno) considerada sem inteligência. Nastácia é
descrita nas obras de Lobato de forma animalesca, como já foi visto, intitulada de macaca da
cor de carvão, beiçuda, com nariz achatado etc. Quando Lobato tentava provocar em seus
leitores certa complacência por ela, atrelava sua cor a um castigo divino.

O autor, em suas narrativas, aborda o estereótipo do “negro sem cultura” ou de “cultura


inferior”, conforme intitula Domício Proença Filho (2010). Este estereótipo é relatado na obra
lobatiana Histórias de Tia Nastácia, publicada em 1937, na qual, diante do anseio do
personagem branco Pedrinho em conhecer histórias folclóricas, solicita à personagem da
empregada doméstica, a negra Anastácia, (representação do povo, do outro), que narre as
histórias orais de seu povo. Durante a contação das narrativas, Nastácia é a todo o momento
interpelada pela boneca falante Emília, que diz que só escutar tais narrativas folclóricas e
bestiais como um relato da ignorância deste povo e não por prazer na escuta.

Em Memórias da Emília (1936), a boneca afirma não compreender como uma pessoa
bondosa, apesar de ignorante, como Tia Nastácia nasceu preta. Dona Benta (outro
personagem da trama) tenta esclarecer a dúvida de Emília lhe informando que Tia Nastácia é
preta somente por fora.

A confusão de Emília nos faz refletir que o estereótipo se fortalece também na ignorância,
pois comumente ataca-se o que em essência não se compreende. Por isso, Kabengele
Munanga (2005) afirma que o conhecimento da negritude não deve se restringir apenas aos
povos de ascendência negra, interessa também aos povos de outras ascendências étnicas,
principalmente branca, pois receberam uma educação envenenada pelos preconceitos, eles
também tiveram suas estruturas psíquicas afetadas.

Além disso, essa memória não pertence somente aos negros, pertence a todos, tendo em vista
que a cultura da qual cotidianamente as pessoas se alimentam é fruto de todos os segmentos
étnicos que, apesar das condições desiguais nas quais se desenvolveram, contribuíram, cada
um ao seu modo, para a formação da riqueza econômica e social e da identidade nacional.

É preciso, conforme elucida Munanga (2005), que conheçamos nossa origem histórica para
desconstruir a ideia de que a África, por exemplo, é o berço da ignorância. Obviamente, é
56

importante enfatizar que a escravização é, sem dúvida, a grande causadora dos estereótipos
relacionados ao negro, principalmente em relação a África, sua origem.

A escravização, somente entre os anos de 1525 e 1851, arrebatou para o Brasil mais de cinco
milhões de africanos; isso sem considerar os que morreram ainda em solo africano, em
decorrência da violência da captura, e os que morreram nas condições insalubres da travessia.

Durante todo o tráfico, por interesse comercial, era preservada uma pífia informação acerca da
origem e/ou identidade étnica do africano, identificado a partir do seu local de desembarque.
Entretanto, posteriormente, com a ilegalidade do tráfico de escravizados a partir de 1850 (Lei
Eusébio de Queiroz), os africanos passaram a ser desembarcados em rotas clandestinas,
perdendo, assim, a correspondência de seu desembarque com sua origem.

Reginaldo Prandi (2010) salienta que este apagamento das origens culturais culminou no
fortalecimento do estereótipo de que o negro não possui um passado, que a história do negro é
a escravização, que o negro é escravo (essência) e não escravizado (condição). Um povo sem
história é obrigado a adotar a história do outro e/ou ter uma história forjada e disseminada
pelo outro, pela ótica do colonizador.

A ilegalidade do tráfico de escravos e a consequente perda da informação sobre o local de


origem dos negros fizeram com que muitos escravocratas atribuíssem aos negros uma nova
origem, agora relacionada ao porto clandestino em que eles desembarcavam. Prandi (2010)
acredita que esses negros não deixaram traços de sua cultura nativa em nossa sociedade, uma
vez que, com o fim da escravidão em 1888, a população negra tentou se integrar na sociedade
brasileira, não como africanos, mas como brasileiros, adotando assim uma identidade
diferente da sua própria. Para o autor, o Brasil tornou-se um país de negros que não sabem
bem de onde vieram e que são apenas brasileiros.

Ainda de acordo com Reginaldo Prandi (2010) a escravização diluiu a cultura africana na
cultural nacional através de recortes genéricos da sua língua, culinária, música, arte etc. Cada
contribuição negra é fruto do seu apagamento; sendo assim, embora possamos identificar o
legado africano, é impossível identificar o povo ou nação proveniente: tudo é África, sem
diferenças e especificidades. Mais do que isso, os próprios afrodescendentes, por não
57

conhecerem a sua própria origem, seus antepassados, não acessam os signos dos seus aspectos
culturais apagados pela cultura brasileira.

No entanto, é preciso refletir que os recortes culturais africanos se aglutinam à cultura


brasileira, também, para sobreviver de uma forma generalizada, ainda que isso ocasione a
perda de suas especificidades.

As religiões de matriz africana, embora tenham sofrido perdas significativas em seus cultos,
perdido o reconhecimento de algumas divindades e se tornado uma religião aberta a todas as
etnias, é, apesar de tudo, um lugar de refúgio à cultura africana. O Candomblé é um grande
reservatório da África (a mesma sem especificidades citada por Prandi). Isto justifica o fato
das intensas perseguições que esta religião e seus adeptos sofrem, uma vez que essa religião
comumente é vista sob o estereótipo de seita satânica e/ou ainda justifique a ideia
enclausuradora de que todo negro é adepto do Candomblé, como se na África só existisse esta
religião ou se a mesma fosse uma prerrogativa da negritude.

O estereótipo é a principal estratégia do discurso do colonizador, é a forma de manipular as


minorias, identificá-las e aprisioná-las numa condição inferior em todas as esferas sociais,
econômicas, acadêmicas, estéticas, dentre outras. Homi Bhabha (2013) menciona que o
estereótipo é ambivalente e transita entre o que está sempre “no lugar”, já conhecido, e o que
deve ser repetido. O problema do estereótipo é a sua fixidez e sua consequente repetibilidade,
viabilizando concepções históricas equivocadas e embasando estratégias de marginalização,
assumindo um caráter de verdade e predictabilidade, portanto, é necessário duvidar,
desconfiar das ideias arraigadas, testar, movimentar, desconstruir a estereotipia, pois é onde
residem os discursos de poder discriminatório, seja ele racista ou sexista.

Inúmeras esferas de poder foram contaminadas pelos estereótipos, dentre elas a literária,
através da propagação de discursos que geram políticas, hierarquizações raciais, culturais e
suas discriminações. E, como não podemos negar o poder das palavras, tampouco podemos
negar os malefícios da palavra não dita. Bhabha (2013) afirma que a palavra nega a identidade
e as singularidades da diferença sexual ou racial. Quando a palavra é negada às minorias, os
estereótipos falam por elas.
58

Homi Bhabha (2013) verifica que o estereótipo tem um caráter de fetiche e representa um
jogo entre a metáfora, como substituição (escondendo a ausência e a diferença) e a metonímia
(que continuamente fixa, repete e registra a falta percebida). O estereótipo é um jogo de
dominação e prazer, uma vez que reconhece a diferença, mas a recusa, pois vê nas diferenças
uma ameaça à originalidade pura, à estabilidade do discurso original. Com isso, se nega ao
indivíduo negro o reconhecimento afirmativo da sua diferença, impelindo que o sujeito se
liberte dos estereótipos, ideologias de dominação racial e cultural que o colonizador criou em
torno da sua pele, do seu corpo, do seu cabelo e sua cultura. (BHABHA, 2013, p. 129-130,
grifo nosso)

Frantz Fanon (2008) afirma que o estereótipo atribui um peso negativo à negritude, fazendo
com que o próprio indivíduo negro sinta-se castigado a ser ele próprio, como se fosse um mal
erradicável, logo sua diferença se torna negativa, pois os discursos coloniais, através dos seus
estereótipos, impedem a circulação de outras histórias.

Tornamos a afirmar que a palavra nega a identidade negra. E, impedir a circulação de novas
histórias é um dos caminhos de fixação do racismo.
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2 DO ESTEREÓTIPO À LITERATURA NEGRA: ENEGRECENDO


CAMINHOS LITERÁRIOS

Não vou mais lavar os pratos


Nem vou limpar a poeira dos móveis. Sinto muito.
Comecei a ler. (...) Aboli
Não lavo mais os pratos
Quero travessas de prata, cozinhas de luxo. E joias de
ouro.
Legítimas.
Está decretada a lei áurea.
(Cristiane Sobral)

2.1 IMAGINAÇÕES QUE NEGAM A REPRESENTAÇÃO AFIRMATIVA NEGRA:


QUEBRANDO ESPELHOS

Façamos agora o exercício de imaginar uma menina negra iniciando sua vida de
leitora, ela se depara com os estereótipos raciais e culturais das narrativas infantis: os heróis
são brancos e o diabo é negro. Este é o primeiro contato ideológico, psíquico e representativo
dessa criança.

Frantz Fanon (2008) questiona o que resta para este indivíduo, senão tentar amputar, gerar
uma hemorragia do próprio sangue negro que circula em seu corpo? Provavelmente, essa
menina se voltará para sua mãe, um dos seus elos representativos de maior força e o recusará,
rejeitará a negritude de sua mãe, se afastará de si e se identificará com a “positividade” do seu
oposto. A brancura passará a ser o seu imaginário ideal; capaz de promover a transformação
do sujeito diante do espelho, permitindo-lhe postular equivalências, semelhanças, identidades
entre os objetos e as informações do mundo ao seu redor.

Esse momento pode ser de extremo conflito, uma vez que o sujeito pode se deparar com uma
imagem alienante de si mesmo, daí a confrontação. Esse espelho branco não gera narcisismo,
60

não gera gosto afirmativo exacerbado por si mesmo, mas sim agressividade, recusa de si e é
nessa forma de identificação infantil que habita o poder colonial relacionado ao estereótipo,
que faz com que o indivíduo reconheça a diferença, mas a recuse. Sua identidade negra é
construída pela ameaça da falta, porque esta criança mirou-se no espelho vampiro16, onde ela
se olha e não se reconhece, pois o que ela vê não lhe gera vontade de ser. E tudo isso pode
acontecer no momento que uma menina abre um “inocente” livro de literatura infantil.

Geni Guimarães narra, em sua obra Leite do Peito, publicada em 1988, o momento em que
uma criança se mira no espelho imaginário de representatividade negra e vê a história de seu
povo destituída de lutas, passiva à escravização, sofrendo espancamentos. Inconformada, diz:

[...] Vinha mesmo era de uma raça medrosa, sem histórias de heroísmo. Morriam
feito cães. Justo era mesmo homenagear Caxias, Tiradentes e todos os Dons Pedros
da história. Lógico. Eles lutavam, defendiam-se e ao seu país. Os idiotas dos negros,
nada (GUIMARÃES, 2001, p. 64).

No trecho acima citado, podemos visualizar novamente o estereótipo do negro fiel, resignado,
que aceita a escravização sem se insubordinar e como esta representação equivocada inflama
a criança, causando a negação da sua etnia, fazendo com que a mesma se torne cúmplice do
discurso colonizador, de que os negros mereciam padecer do que lhe foi imposto, exaltando
inclusive o colonizador, o outro.

A literatura padece de dois estigmas: ora é invisibilizada, ora é repleta de representações


distorcidas. O negro está na obra, mas não estão lá suas questões. A representação negra nos
livros infantis está amalgamada à manipulação de sua própria cultura. Sua “inferioridade”
passa a ser visivelmente mostrada na pele, geralmente associada à escuridão, às trevas,
atrelada ao perigo do retorno do olhar após mirar-se no espelho. O ato de reconhecimento e
recusa da diferença é sempre atacada pela questão de sua reapresentação ou construção.

O estereótipo é, nesse sentido, um objeto “impossível”. Por essa mesma razão, os


esforços dos “saberes oficiais” do colonialismo – pseudocientífico, tipológico, legal-
administrativo, eugênico – estão imbricados no ponto de sua produção de sentido e
poder com a fantasia que dramatiza o desejo impossível de uma origem pura, não
diferenciada. Sem ser ela mesma o objeto do desejo, mas, sim, seu cenário, sem ser

16
O termo espelho vampiro é utilizado na obra Jogo duro - Era uma vez uma história de negros que passou em
branco (1990), de Lia Zatz, e serve para ilustrar que, eventualmente, a literatura atua para a criança negra como
um espelho vampiro, haja vista que os vampiros são conhecidos por não terem reflexo de si diante do espelho;
assim são as crianças negras que, ao olharem suas representações na literatura, não se veem, não se reconhecem
e/ou não gostam como são representadas; sua essência negra é apagada/inexiste diante do espelho literário, logo,
elas negam a si mesmas diante do espelho e/ou assumem a imagem refletida no espelho do outro.
61

uma atribuição de identidades, e sim seu cenário, sem ser uma atribuição de
identidades, e sim, sua produção na sintaxe do panorama do discurso racista, a
fantasia colonial exerce um papel crucial naquelas cenas cotidianas de subjetificação
em uma sociedade colonial (Bhabha, 2013, p. 139).

O estereótipo está atrelado à impossibilidade de “salvar” a raça através do branqueamento. De


forma contraditória, o negro que nega a si próprio não o faz pelo anseio consciente de ser
branco, mas o cenário social que o estereótipo forja cria vontades inconscientes e aplicáveis,
ou seja, faz com que ele queira ser aquilo que nunca quis. Esta fantasia colonial também pode
ser encontrada nas “doces” páginas da literatura infantil.

Esse cenário forjado pelo estereótipo é palco do fortalecimento ao ódio contra o negro, que
brota/atinge inclusive de negro para negro, gerando os negrófobos 17 que, de acordo com
Fanon (2008), são os negros que foram motivados a odiar a sua negritude, o que talvez
justifique a lastimosa intensificação do genocídio da população negra.

O estereótipo é um texto muito forte, ambivalente de projeções, introjeções, estratégias


metafóricas e metonímicas, deslocamento, culpa, agressividade, máscaras, fantasias, saberes
“oficiais”, posições e oposições. Integra o discurso racista, que é um discurso de guerra, por
exercer poder e abranger os micro-poderes com força política, econômica e social; manipula a
casa, a igreja, a escola, o quartel e outras instâncias de forma distanciada, objetivando,
normalizando e disciplinando os atos, sem que seus aplicadores percebam a própria
manipulação e/ou ainda controlem a própria manipulação, é o panóptico18.

Michael Focault (2014) informa que poder não se tem, se exerce. Em seus estudos, o autor
descaracteriza o Estado como único detentor do poder: para ele, nas instituições, como
clínicas, igrejas e escolas, existe um micropoder que exerce domínio sobre o indivíduo,
manipulando suas atitudes, o qual é intitulado de biopoder. No entanto, para isso, é necessário
a consolidação de outro poder denominado por Focault (2014) de biopolítica, que se preocupa
com a vida do sujeito, o que ele produz e o que consome. Os poderes que estas instituições

17
Negrofobia, segundo Fanon, é o efeito que o preconceito pode causar no próprio negro, fazendo-os rejeitar
seus próprios caracteres negros, assim como não assumirem sua negritude. Isto se deve ao fato do povo negro
estar rodeado de representações inferiorizantes de si mesmo, as quais criam rejeições/fobias de si mesmo.
18
Conceito criado no final do século XVIII pelo filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham que, ao estudar o
sistema penitenciário, criou um projeto de prisão circular onde um observador central poderia ver todos os locais
onde houvesse presos. Bentham concebeu também que o panóptico pode ser utilizado em outras instâncias tais
como escolas, igrejas etc. De acordo com Michel Focault este processo inaugura e dissemina dispositivos
disciplinares cada vez mais complexos e eficientes no intuito de promover a vigilância social.
62

operam no indivíduo acontecem de forma silenciosa, ou seja, ele não possui uma percepção
concreta de que está sendo dominado.

A ideia de panóptico, descrita por Jeremy Bentham, influenciou muito os estudos de Focault
(2014), pois, ao estudar um sistema penitenciário onde supostamente existia um vigilante em
meio aos presos, Bentham percebeu que foi incutida na mente dos detentos a ideia de que
sempre haveria um vigilante analisando seus atos, o que eliminava qualquer possibilidade de
insubordinação. Obviamente não existia uma vigilância 24horas, logo, eram os presos que se
autovigiavam, pois foram condicionados.

Focault (2014) utiliza a análise do inglês Bentham para refletir que os micropoderes exercem
um poder no indivíduo de tal forma que eles mesmos se autorregulam e o poder centralizador
fica (aparentemente) ausente ou invisibilizado, dando a entender que eles são dominados por
um indivíduo indeterminado e/ou, ainda, dando a ideia de que não são dominados, que suas
atitudes são livres de influência e dominação.

Nessa sociedade de controle, descrita por Focault (2014), fixamos nosso olhar para a literatura
que, assim como as demais instituições, exerce poder e manipulação sobre os indivíduos,
pode-se perceber que a literatura infantil, criada a partir do discurso burguês, almejava a
manipulação das crianças através da criação de histórias disfarçadas de inocência, encanto e
magia para conduzi-las a objetivos próprios de cunho moral, subserviente e acrítico.

A literatura, secularmente, está subjugada à instrumentalização pedagogizada e manipuladora


da necessidade de construir uma classe de futuras crianças burguesas, obedientes,
enclausuradas. Todavia, a contemporaneidade nos assola e fazendo-nos contestar esses textos,
reivindicar a posse da caneta. Como explicita Fanon (2008), falar é existir para o outro; logo,
“quanto mais assimilar os valores culturais da metrópole, mais o colonizado escapará da sua
selva. Quanto mais ele rejeitar sua negridão, seu mato, mais branco será” (FANON, 2008, p.
34).

Fanon (2008) utiliza os conceitos de selva e mato de forma provocativa, uma vez que o povo
negro teve suas origens associada a uma África bárbara, selvagem, primitiva, incivilizada. O
autor traz a tona termos carregados de estereotipia negativa (mato e selva) e mobiliza a fixidez
destes estereótipos, modificando-os, desconstruindo-os e dando-lhes uma percepção
63

positivada, haja vista que o colonizador pregava a concepção de mato e selva africana como
caracteres a serem superados, entretanto Fanon (2008) afirma a importância de preservá-los,
de preservar o local de origem negra e não se deixar contaminar pelo contexto do outro.

Ao propagar a importância de valorizar o mato e a selva do povo, Fanon (2008) os positiviza,


destrói a estereotipia, pois, como ele mesmo afirma, o povo colonizado teve introjetado um
complexo de inferioridade em relação à sua origem, enxergando na nação colonizadora, na
cultura da metrópole, a civilização. Ele desconstrói tal acepção através do texto e linguagem
de seu discurso.

Ao realizar um breve levantamento dos estereótipos, percebe-se que estes construíram uma
imagem literária e social do negro fixando-o em uma posição social, padrão de beleza etc.,
forjando um caminho de subalternidade da negritude nos traços literários. Sendo assim, toda
essa ânsia em compreender de onde surgiram os principais estereótipos em relação ao negro,
compreender o que é estereótipo, analisar como ele aparece no âmbito literário, é para que
enfim possamos subvertê-lo.

É somente no final dos anos de 1960 e 1970 que se inicia o que Reginaldo Prandi (2010)
intitula de “movimento de recuperação das nossas raízes culturais”, reflexo da mobilização
cultural ampla em locais como Estados Unidos, Europa e aqui no Brasil, trazendo
questionamentos sobre as verdades da civilização ocidental, o discurso e a produção literária
do colonizador, a dita superioridade dos valores burgueses vigentes e os valores estéticos
europeus.

Para questionar tais demandas, foi necessário “beber” em nossas raízes, buscar uma
identidade e forjar uma produção negra, reinventar o passado. Ainda que de forma mítica, era
preciso voltar-nos em direção à África em busca de fontes mais originais do que as que são
comumente propagadas no Brasil. É preciso construir uma nova história entre o Brasil
contemporâneo e a velha África para que, enfim, possamos suplantar os estereótipos
disseminados pelo colonizador.

No final dos anos de 1960, surgiram no campo literário outros textos, agora compromissados
com outras dimensões étnicas; iniciou-se a onda dos marginais (público que sempre esteve à
margem dos espaços empoderados pela literatura canônica, a exemplo dos negros e mulheres)
64

que revogaram a posse da caneta, solicitaram a autoria, a circulação e a visibilidade dos seus
escritos. Sim! Afirmamos escritos! Pois, assim como grita Ferréz19 (2005): agora a
gente fala20, agora a gente canta e, “na moral”, agora a gente escreve! Mudamos o foco e
tiramos nossa própria foto. É chegado o momento de raspar os escritos brancos estereotipados
sobre os negros e escrevermos outra história. É tempo de sankofa literário21.

Férrez (2005) afirma que a negritude mudou o foco e agora escreve sua própria história. Um
exemplo desse momento de sankofa literário pode ser exemplificado através da obra
Cheirinho de Neném, publicada em 2011 pela Editora Mazza. Esta narrativa foi ilustrada por
Thiago Amormino e escrita por Patrícia Santana.
Thiago Armomino se apresenta no livro como um mineiro, nascido em Belo Horizonte,
formado em Design Gráfico. O livro Cheirinho de Neném é a sua primeira obra ilustrada, já
Patrícia Santana é uma escritora negra, pedagoga e diretora de uma unidade escolar em Belo
Horizonte. Essa trama é inspirada na chegada da sua segunda filha e na receptividade do seu
irmão para com ela. O objetivo era mostrar aos leitores a importância da afetividade e que esta
premissa não é inerente apenas à menina/criança branca.

Na obra Cheirinho de Neném, aparece uma inversão de gênero dos personagens a fim de
diferir um pouco a narrativa criada da experiência pessoal da autora. No livro, a menina negra
de nome Iara estava toda feliz por ter acabado de ganhar um irmão, que recebeu o nome de
Abayomi.

19
Ferréz é o nome artístico de Reginaldo Ferreira da Silva, escritor, romancista, contista e poeta. Ferréz é um
expoente na literatura marginal, produção que surgiu nas periferias das grandes cidades, é produzida por seus
agentes e preocupa-se com os temas relacionados a este universo.
20
Quando Ferréz aborda que agora o marginalizado fala não significa que ele nunca falou e, sim, é uma forma de
ilustrar que a contemporaneidade trouxe uma maior visibilidade para essas vozes e/ou maior reindivicação de
visibilidade.
21
Sankofa na língua Akan significa (san- voltar, retornar; ko- ir; fa- olhar, buscar e pegar) em português
podemos traduzir como “volte e pegue”. O símbolo adinkra do sankofa é a representação de um pássaro com sua
cabeça virada para trás pegando um ovo de suas costas e tem o formato de coração estilizado. É frequentemente
associado ao provérbio: "Não é errado voltar atrás pelo o que esqueceste”. No texto acima, o sankofa é evocado
de forma metafórica para expressar um chamado ao povo negro de voltar-se para a sua cultura, sua origem a fim
de beber em sua fonte e adquirir os antídotos necessários para subverter, enfrentar e resistir aos estereótipos.
65

Figura 2 - A felicidade de Iara

Fonte: SANTANA, 2011.

A menina negra possui identidade, ocupa lugar no discurso, pois possui nome, Iara, de origem
tupi que, na mitologia indígena, é uma bela sereia que habita nos rios e lagos. A cultura
africana possui uma mitologia similar, porém a senhora das águas - mãe das águas - é
chamada de Janaína ou Yemanjá e, devido ao imbricamento com a mitologia indígena, muitas
vezes, Yemanjá é ilustrada como uma sereia. Observamos que o nome da menina faz
evocação à cultura brasileira como uma forma de criar teias históricas e culturais entre povos
comumente marginalizados, formando a identidade da menina em questão.

A ancestralidade e linhagem são utilizadas como elo entre a família da história e a família dos
leitores. A autora se vale de elementos culturais para formação de um corpo que se quer
negro; por exemplo, o nome do recém-chegado irmão de Iara é Abayomi e a autora informa
aos leitores que este nome é de origem Iorubá e significa presente, nascido para trazer
felicidade. Esse dado reafirma que os nomes dados aos personagens, ora de origem indígena,
ora de origem africana, é uma forma de enaltecer, fortalecer e mostrar ao leitor a
ancestralidade/linhagem de Iara, exibindo, inclusive, as inúmeras influências contidas em seu
nome.

A trama prossegue mostrando a ansiedade da menina face ao seu novo irmão, ela queria olhá-
lo, conhecê-lo, admirar sua beleza, sentir seu cheiro bom. A obra mostra a figura do bebê
Abayomi, envolto nos braços carinhosos de sua mãe enquanto repousa tranquilo sobre o olhar
e proteção da sua irmã. Repleto de afeto como toda criança deve ter.
66

Figura 3 - Abayomi

Fonte: SANTANA, 2011.

Iara cheirava seu irmão, cheiro de bala e de jardim, cheirava sua vida nova, deixava emergir o
cheiro dele para dentro dela, num processo de simbiose, expondo, inclusive, o sentimento de
pertencimento e interconectividade que o povo negro deve ter. Iara cheirava o fim da sua
solidão de filha única. A autora, conforme a ilustração abaixo, faz questão de enfatizar uma
menina negra tendo uma infância feliz ao lado de seu irmão, recheada de cores, flores, doces,
brinquedos, tudo que habitualmente relacionamos às crianças.

Figura 4 - Infância negra feliz

Fonte: SANTANA, 2011.

A história também nos apresenta a família de Iara e Abayomi, envoltos em afetividades e


brinquedos, uma família sólida e amorosa, diferente de como normalmente os negros eram
concebidos como degenerados em sua moral, de baixa intelectualidade, feios etc. A família
67

aqui ilustrada é feliz, a julgar por Iara que durante toda a narrativa alegra-se com a
possibilidade de partilhar tudo com seu irmão, desde seus brinquedos até o cômodo da casa.

Figura 5 - Família de Iara

Fonte: SANTANA, 2011.

A alegria de Iara é tamanha que ela se vê atemorizada pela possibilidade de Abayomi


ausentar-se, sumir, ir embora, mas seus temores são dissipados por sua mãe. E assim, todos os
dias Iara prossegue pertinho do seu novo irmão, sentindo seu cheirinho de neném.

Figura 6 - O cheiro de Abayomi

Fonte: SANTANA, 2011.

Além de a autora nos premiar com uma narrativa recheada de afetividade, um livro colorido,
repleto de imagens que alegram os olhos e aguçam o olfato, pois Iara desperta no leitor
cheiros que permeiam a infância, tais como o cheiro de uma criança, cheiro de bala, caramelo,
doce, jardim, cheiro de alegria, de felicidade. Patrícia Santana elucida um elemento
interessante na narrativa, que é a exaltação da estética negra através dos cabelos: Iara e sua
68

mãe exibem seus cabelos crespos com tranquilidade, sentem-se a todo instante felizes e
bonitas por serem quem são, como são e por terem uns aos outros.

O pai de Iara também exibe um penteado afro, ele utiliza dreadlocks, que significa dread-
medo/terror, locks- cabelo/tranças medonhas. De acordo com Patrícia de Santana Pinho
(2004), esse penteado surgiu na Jamaica, em 1930, como forma de protesto dos rastafáris, que
se rebelaram contra o sistema dominante através do cultivo de tranças impossíveis de serem
desfeitas, desafiando a ideia de que o cabelo do homem, inclusive do homem negro é sempre
curto.

Os rastafaris22 (rastas) acreditavam que o que é feio para a Babilônia (como eles chamavam o
sistema capitalista) é bonito para a filosofia rasta.
Nilma Lino Gomes (2008) explica que a técnica dos dreadlocks consiste em fazer tranças
jamaicanas no cabelo, tranças que normalmente são tiradas após três meses, mas, nesse caso,
o indivíduo permanece com seus cabelos trançados para que estes fiquem emaranhados. A
autora ilustra que esse penteado põe fim a um processo de castração, pois a imposição dos
cabelos curtos, no caso do individuo negro, é um ato de poda, que elimina a negritude
representada pelos cabelos crespos para que o sujeito possa ser inserido na sociedade, logo, os
dreadlocks simbolizam a liberdade.

No Brasil os dreadlocks se tornaram um elemento fundamental da identidade negra e, embora


não tenha surgido na África, simboliza uma tentativa de inversão de significados negativos do
cabelo crespo. Comumente, esse penteado é mal visto e associado ao desleixo, odor
desagradável e sujeira, já que se associa o cabelo não desembaraçado ao cabelo não lavado, o
que é um engano.

A obra Cheirinho de Neném provoca uma ruptura, pois em uma narrativa onde os bons
cheiros são evocados, a autora Patrícia Santana (2011) inclui o penteado dos dreadlocks,
símbolo diacrítico negro no rol dos bons aromas.

A autora vale-se da representação capilar, também, como forma de enaltecer o cheiro do


negro, não apenas o cheiro capilar, mas também o cheiro corporal, pois o corpo do negro, no

22
O rastafarismo é um movimento religioso que adotou Haile Selassie I, um antigo imperador da Etiópia como
Jah ou Jah Rastafari (Deus encarnado). O nome rastafári vem de ras que significa cabeça e Tafari foi o nome
recebido por Haile antes da sua coroação.
69

Brasil, está associado também aos maus odores, haja vista que no período escravagista os
negros carregavam os dejetos de seus donos para descarte além do fato, óbvio de que ninguém
está isento de suar, imagine, então, um escravizado.

Patrícia de Santana Pinho (2004) ilustra que o cheiro foi um dos elementos utilizados para
aproximar os escravizados da classificação de animais. A palavra catinga (de origem tupi),
por exemplo, muito utilizada na sociedade brasileira, serve para descrever o “odor
característico” dos negros, índios e animais. Catinga é, portanto, um dos termos depreciativos
usados para classificar o corpo negro. Logo, a autora do livro infantil evocou elementos
negros tão estereotipados e inferiorizados, como o corpo, a estética, a família, a beleza, a
ancestralidade e ressignificou todos estes elementos, devolvendo-nos uma trama cheirosa e
afetuosa.

Patrícia Santana (2011) faz uso de elementos simbólicos para a construção de sua narrativa,
que apresenta uma família negra, consciente de suas origens africanas, que reinventa e resgata
símbolos, linguagem, referência e estética, não de uma África “original”, mas da África
reinventada, hibridizada.
O resgate da linguagem africana é exemplificado através do nome do irmão de Iara, Abayomi.
Sabemos que, com o processo escravagista e a imposição da adoção dos nomes considerados
santos e católicos, os negros adotaram forçosamente novas identidades (nomes), que em nada
comungavam com sua ascendência histórica e cultural. A autora rompe com os grilhões do
passado dando um nome Iorubá ao personagem.

A autora resgata e valoriza a mitologia, enaltece a estética do individuo negro como


pertencente a um determinado grupo, como um ato político que indica de onde aqueles
personagens se originam, valorizando, também, a oralidade, pois em uma das passagens da
narrativa, Iara solicita a seu pai que lhe ensine uma cantiga de ninar para que ela possa cantar
para seu irmão, sendo assim, o pai da menina, tal como um griot ensina-lhe a canção que,
posteriormente, será ensinada a seu irmão em um processo significativo de repasse do saber
oral geracional. Os saberes orais são de grande significado na cultura africana, que na trama é
associada à família de Iara como forma de mostrar sua descendência.

De acordo com Ione da Silva Jovino (2006), griot é a forma como os franceses chamam os
diélis, nome bambara dos contadores africanos de história; são poetas e músicos conhecedores
70

de muitas línguas e religiões, viajam pelas aldeias, escutando relatos e recontando a história
das famílias como um conhecimento oral vivo. Diéli significa também sangue, e a circulação
do sangue é a força da vida. Os griots (diélis) não são os únicos contadores de história;
existem também os Domas, que são os mais nobres contadores, são mestres iniciados, agentes
ativos da vida humana e espiritual, herdeiros das palavras sagradas transmitidas pelos
ancestrais. O Doma não pode mentir, caso minta, ele perde a capacidade de ser um contador,
pois quem mente mata a pessoa civil e religiosa, afasta-se de si mesma e da sociedade

Figura 7 - Pai Griot

Fonte: SANTANA, 2011.

A obra evoca símbolos que não são efêmeros para a construção da identidade, a fim de que
esses elementos atinjam as meninas negras de forma abrangente, ainda que Stuart Hall (2006)
aborde que as identidades são móveis, híbridas e que sofrem, ao longo do tempo e espaço,
inúmeras alterações devido às influências. Pinho (2004) elucida que a linhagem e
ancestralidade perpassam estas barreiras do tempo, ligando todos os povos em meios a tantas
diferenças, fazendo com que, através do reconhecimento da origem do seu povo e da sua
história, eles construam a sua própria identidade.

É necessário ressaltar que a maior parte das meninas negras não gozam da mesma “sorte” de
Iara e seu irmão em ter um lar, brinquedos e alegrias. As crianças negras são impelidas, por
vezes, à vida adulta de forma muito rápida, ora para auxiliar a família em seu sustento ora por
falta de uma família. As meninas negras nem sempre são tão felizes com sua imagem e
beleza, principalmente diante dos meios de comunicação que as expõem constantemente
como feias, informando-as que seus cabelos são rebeldes, animalescos e precisam ser
domados. Apesar de todos estes agravantes, Patrícia de Santana expõe, também, em seu texto,
o desejo de como ela gostaria que as meninas negras fossem: felizes por serem meninas
negras.
71

Figura 8 - A menina negra Iara

Fonte: SANTANA, 2011.

2.2 NO PALIMPSESTO BRANCO INSURGE A LITERATURA NEGRA

Reza a lenda que a criança que fomos um dia definirá o adulto que seremos, daí a
importância da infância enquanto momento de formação do sujeito crítico, autônomo social e
político. E, neste processo de formação infantil, a literatura é bastante utilizada nas
instituições escolares a fim de promover a mediação social, a educação formal, a moralização
ou a evangelização de crianças.

Philippe Ariés (1981) está em conformidade com muitos etimólogos, afirmando que a palavra
infância vem do latim infantia, formado por in-, negativo, mais fari, “falar”, e significa aquele
que não fala, fazendo referência às crianças que tiveram este poder destituído pelo adulto. A
ausência da voz da criança estava atrelada à ideia de que este individuo era incapaz de pensar
logicamente e estruturar ideias a fim de representar seus pensamentos no universo adulto.

Um dos estudos mais consistentes sobre a infância ocidental foi desenvolvido por Ariés
(1981) que, através da representação artística das crianças provenientes de classes mais
abastadas financeiramente, constatou que até o final do século XVII elas eram caracterizadas
como homens de tamanho reduzido, inclusive nos trajes. Fazendo isso, o autor ilustra as
diferentes concepções sobre a infância em diferentes tempos e lugares, sendo que o século
72

XVII caracterizava o não-lugar da infância, pois não eram respeitados os fenômenos


biológicos e psicológicos do indivíduo. Era considerada a ideia de dependência física; sendo
assim, logo que este desenvolvimento físico (desmame) era assegurado, geralmente aos setes
anos, a criança era tida como independente e passava a conviver diretamente com adultos,
compartilhando do trabalho, jogos e de todos os momentos, deixando nítido o fato de não
haver nenhuma separação, exceto nos processos decisórios.

Como exemplo do que foi exibido no parágrafo anterior, podemos citar Regina Zilberman
(2003), que denuncia que na Idade Média existia o total descuido com a vida e integridade das
crianças, que não recebiam nenhum cuidado específico e afeto, sendo totalmente
negligenciadas, tratadas com brutalidade e mortas com muita frequência. Um dos fatores
preponderantes para a criança ser tratada desta forma é a estrutura mais comum de sociedade
que perdurou até o século XVII na Europa, uma sociedade aristocrática, fundiária, dominada
pelos grandes proprietários de terra, que não tinham como premissa estruturante o afeto e a
intimidade familiar.

Todavia no final do século XVII, houve o enfraquecimento da aristocracia fundiária e a


ascensão e centralização do poder do governo absolutista. O Estado moderno agora acredita
que a crescente natalidade, o descuido com a criança e a influência de inúmeras pessoas no
âmbito do lar prejudica a preservação da herança patrimonial e a linhagem familiar. Portanto,
o Estado moderno reconhece na família nuclear seu maior sustentáculo, sendo necessário
fortalecer a sua estrutura e universalizar um novo padrão tido como ideal.

Ainda de acordo com Zilberman (2003) nesse período emerge da sociedade uma classe
predominante, a burguesia capitalista que, aliada com o poder político centralizador
absolutista, cria e propaga a sua ideologia familista, agora pautada na individualidade,
privacidade, afetividade entre cônjuges e filhos, devido à crença de que a harmonia familiar
fortalece a dominação e a perpetuação da tradição de uma dada família. A burguesia valida o
status social da infância, pregando, inclusive, a importância dos casamentos por amor, o qual
faria as mulheres abdicarem de suas vidas profissionais para dedicar-se ao lar, marido e filhos,
ou seja, sustentando o modelo burguês.

A família burguesa nascida na Europa no final do século XVII rompe com o modelo familiar
vigente, criando novos padrões de relações familiares, projetando na sociedade um olhar
73

peculiar para as crianças, que deixaram de ser vistas como adultos em miniatura para serem
vistas como seres que necessitam de afeto e cuidados específicos. A criança tornou-se um
elemento importante para a reestruturação do papel da mulher, pois sem a infância não
existiria a concepção de maternidade como nós a conhecemos hoje.

Podemos dizer que, ao lançar a mulher para dentro da casa, a infância passou a existir mais
intensamente para ocupar a mulher como mãe e esposa. De certa forma, a conceituação da
infância também enclausura as crianças, que passam a viver mais no reduto do lar sob a
proteção de suas mães. Portanto, o século XVIII assiste a mudança completa da infância, que
agora preserva as crianças e as coloca no centro das atenções.

A família burguesa propagou o discurso da invenção da infância ao difundir a ideia de


valorização infantil e a preocupação em torno da criança e seu futuro e este conceito perdura
até os dias atuais.

Diante da exacerbada preocupação com a infância, a escola se torna o elo da unidade perdida
entre a criança e o mundo. Essa intermediação é caracterizada de forma direta pela voz dos
docentes e de forma indireta via livros didáticos, literários, laboratórios, conferências, mapas
e brinquedos. Vale ressaltar que, na escola, a convivência social era apenas entre as crianças,
e não com os adultos, sendo, portanto, outra modalidade de clausura, que também reforça o
estado pueril e retira a criança do conjunto da sociedade.

Ariés (1981) aponta que, a partir do final do século XVII verdadeiros tratados práticos de
educação em forma de conselhos aos pais foram escritos, incitando a escolha do ofício dos
filhos, da escola, conselhos para os mestres, referências e indicações de leituras, jogos e
métodos pedagógicos.

É importante entendermos que a infância burguesa tinha cor e era branca e, ao passo que a
escola serviu de contato da criança com o mundo externo, serviu também como um meio de
regulação das crianças brancas com as crianças negras, pois caberia, também, à escola
informar às crianças burguesas os perigos de tal contato. E se o processo de escolarização da
criança branca foi difícil – pois elas primeiro necessitaram alcançar o status de criança que
precisa de cuidados especiais para, em seguida, receber as devidas atenções, instruções etc. –
74

pensemos, então, quão difícil foi a trajetória do negro que, inicialmente, precisava a adquirir o
status de humano, criança, para quiçá tentar alcançar alguma pífia instrução.

Como dito acima, as crianças negras não deveriam se misturar com as crianças burguesas,
pois se acreditava que as primeiras possuíam valores que poderiam corromper as demais.
Sendo assim, a educação dos negros só foi pensada com mais afinco no período da Lei do
Ventre Livre, que tinha como prerrogativa a libertação de crianças nascidas de escravizados a
partir de 1871. Contudo, é necessário salientar que, antes da proclamação desta Lei, a elite
brasileira refletia sobre o que fazer com as crianças que seriam lançadas na sociedade.

Agostinho Marquês Perdigão Malheiros (apud FONSECA, 2001)23 foi um jurista brasileiro e
ministro do Supremo Tribunal de Justiça do Império do Brasil, um dos principais nomes a
preocupar-se com a questão da criança negra. Em 1867, data em que Marquês Perdigão
começou a questionar a si próprio e a sociedade sobre que tipo de educação essas crianças,
que seriam membros do Império, deveriam receber e concluiu que as crianças negras
deveriam adquirir uma educação moral, religiosa e profissional, a fim de que se tornassem
lavradores, trabalhadores agrícolas, aprendessem um ofício mecânico e, assim, pudessem
trabalhar para si mesmas ou para os outros.

Algumas dessas crianças poderiam ser utilizadas em ofícios letrados e as escolas deveriam ser
abertas e gratuitas, cabendo aos senhores das mães fazerem uso do que Malheiros intitula de
“prudente arbítrio”, para decidir se as crianças deveriam ou não ser educadas, pois a instrução
não deveria ser forçosa, ou seja, não havia uma obrigatoriedade que imputassem os donos de
escravizados a educar seus filhos, algo que os escravocratas não possuíam nenhum interesse.

O pensamento de Malheiros era vago em relação ao acesso à educação das crianças; sua idéia
remetia a um favor que poderia ou não ser prestado ao negro. Além disso, seu conceito de
educação para os negros reforça as idéias retrógradas de que eles são pessoas corruptoras,
degeneradas e de baixa intelectualidade, logo, fadadas a tentar se corrigirem moralmente e ao
exercício de funções braçais, como uma espécie de continuidade do regime escravocrata e
como uma forma de manutenção da mão-de-obra barata e/ou gratuita.

23
As informações sobre Perdigão foram retiradas do livro Negro e Educação – Presença do Negro no Sistema
Educacional Brasileiro, de Marcus Vinícius Fonseca. Vide referências no final da pesquisa.
75

Diante desse impasse, foi promulgada a Lei 2.040, popularizada com o nome de Lei do
Ventre Livre, segundo a qual todo filho de escravizado, nascido após 28 de setembro de 1871,
deveria ficar sob a tutela do senhor da sua mãe e este poderia fornecer a esta criança dois
destinos: ser responsável por sua criação e mantê-la trabalhando até os 21 anos ou, quando a
criança completasse oitos anos de idade, entregá-la ao Estado mediante uma indenização.
Nessa circunstância, a maior parte dos escravocratas optava pela vaga ideia de criação e
utilização da mão-de-obra do indivíduo até os 21 anos.

Essas crianças foram utilizadas para suprir a falta da mão-de-obra que imperava desde a
implantação da Lei Eusébio de Queiroz, em 1850, que pregava o término do tráfico de
escravizados. O Estado, por sua vez, além de considerar o gasto das indenizações, não achou
prudente investir em unidades escolares para receber essas crianças negras, haja vista que
poucas eram entregues ao Estado.

A exclusão do negro no processo educativo é histórica. Marcus Vinícius Fonseca (2001)


elucida que, em 1836, foi determinado, no Rio de Janeiro, que caberia a um pedagogo educar
as crianças, ensinando-lhe as ler, escrever e contar e que os gastos seriam de responsabilidade
da Administração Pública; entretanto, estava vetado o acesso aos escravizados, negros,
africanos e portadores de doenças contagiosas no âmbito escolar. Esta última decisão foi
adotada para preserva a saúde dos demais alunos e conter o perigo de educar tal população (os
negros) devido à influência corruptora que os excluídos representavam.

Fonseca (2001) ilustra, ainda, a atitude de Dom Pedro II que, a fim de proteger suas filhas dos
negros, elaborou um regulamento com 36 artigos com o objetivo de lhes assegurar uma
educação conveniente à nobreza. Seu conteúdo alertava sobre os perigos dos negros
corruptores e orientavam as meninas a não conversarem e/ou brincarem com os negros e,
principalmente, tomassem todo cuidado para não ver os “molequinhos” nus.

Doravante, a partir de 1871, uma mudança ocorreu na educação pública, que deixou de ser
ameaça para se tornar uma necessidade. Entretanto, as demandas formativas de negros e
brancos eram distintas.

No congresso Agrícola, realizado em 1878 no Rio de Janeiro, ficou estabelecido que é de


responsabilidade do Estado a Educação Primária e Secundária, assim como a abertura de
76

unidades escolares, ainda que em locais inóspitos e distantes, onde os negros e desvalidos
deveriam receber uma educação que permitisse somente trabalhar em lavoura, enquanto os
brancos eram educados para alcançar profissões letradas, nas áreas de saúde, jurídica, política,
dentre outras.

Felipe, França e Teruya (2012) afirmam que a escola pública não incluiu realmente o negro
no âmbito escolar até 1930. Obviamente, as lutas, os movimentos negros e até o próprio
Estado e suas pífias instituições promoveram, de forma irregular, a educação do negro nesse
período. Os autores citam exemplos de escolas formadas pelo próprio negro, embora não
apresentem registros. Citamos o Colégio Perseverança ou Cesarino, fundado em 1860, em
Campinas, o Colégio São Benedito, fundado em 1902 na mesma cidade, para educar meninas
negras e/ou filhas de homens negros. Além dessas, outras escolas foram criadas, como a
Escola Primária do Clube Negro Flor de Maio de São Carlos, fundada em São Paulo, e a
Escola de Ferroviários de Santa Maria, no Rio Grande do Sul.

A Frente Negra Brasileira, na cidade de São Paulo, promovia cursos de alfabetização,


primário regular e preparatório para o ginásio para alunos negros e, por fim, os autores citados
trazem o registro de uma escola, fundada por um negro, chamada Cosme no Quilombo da
Fazenda Lagoa-Amarela, em Bragança, no Estado do Maranhão, para que os escravizados e
quilombolas aprendessem a ler e escrever.

A educação do negro é o esboço de sua luta contra um sistema opressor, segregacionista e


racista; é, também, o retrato da sua astucia para resistir e enfrentar a opressão, como é o caso
de Luís Gama que, de acordo com Cunha (1999), aos 17 anos tornou-se amigo de um hóspede
da casa onde era escravizado e este, por sua vez, o ensinou a ler e escrever e, em posse deste
conhecimento, ele forjou sua própria alforria. A educação liberta.

Em 1932, vinte e seis educadores assinaram um documento intitulado Manifesto dos


Pioneiros, com objetivo de fomentar novas diretrizes e políticas relacionadas à educação. O
manifesto criticava a escola tradicional, que beneficia uma minoria burguesa, e pregava, entre
outros ditames, que a educação fosse laica, gratuita e obrigatória, devendo ser única e comum,
sem privilégios econômicos para uma minoria e todos os professores devem ter formação
universitária. Entretanto, Felipe, França e Teruya (2012) explicitam que, embora o documento
defendesse a Educação como direito e dever do Estado, e que este, por sua vez, deveria
77

promover a aprendizagem do indivíduo de acordo com suas capacidades, esta intenção pouco
beneficiava o negro, pois ainda imperava na elite brasileira a ideia de que o negro possuía
capacidade cognitiva inferior.

Somente a partir de 1960, com a ampliação da rede de Ensino Público, normalizou-se a


presença do negro nas escolas. Todavia, a luta do ingresso deu lugar a outras demandas, como
o combate às práticas discriminatórias em sala de aula, às relações raciais conflituosas
existentes, os conteúdos programáticos racistas, além da precarização das escolas, haja vista
que o Estado não se preocupa em oferecer um ensino de qualidade para a nova clientela.

Observamos concepções de infância e trajetórias distintas para o alcance da escolarização,


assim como formações acadêmicas diferenciadas. Essas variáveis de infâncias forjadas
fizeram com que a classe burguesa, elite branca, adotasse diferentes formulações e fizesse uso
de diversas áreas de conhecimento e aparatos a fim de continuar instruindo o futuro da nação,
as crianças brancas, a se manterem segregadas das crianças negras, evitando, assim, suas
corrupções e degenerações.

Marisa Lajolo (2011) informa-nos que foi a partir desta prerrogativa que algumas áreas
começaram a se preocupar com a infância a fim de conduzi-la. Áreas como a Pedagogia e as
Artes, mais especificamente a Literatura, destacam-se entre as vozes responsáveis pela
imagem da infância em circulação.

Edmir Perrotti (1986) afirma que a literatura infantil precisava suscitar a formação do caráter e
a formação para a vida: já que a criança não tinha contato direto com a realidade, a ideia era
criar uma linguagem irreal (mágica), para adestrar o indivíduo num objetivo maior e evitar
que o jovem burguês se encantasse com a vida pública proletária. A literatura infantil não era
um arauto para o apagamento das diferenças sociais e culturais; ao contrário, era um meio de
promover o distanciamento das diferenças.

A literatura dirigida ao público infantil começa a ser publicada no Brasil nos fins do século
XIX e início do século XX. Obviamente, neste período, por se tratar de um país colonizado,
importou a Literatura europeia tal como ela foi fundamentada nos moldes do discurso
burguês. As únicas alterações feitas pelo Brasil a esta Literatura foram lexicais e sintáticas.
78

Esse modelo literário aceito buscava formar crianças e jovens, adequando-os ao ideal burguês,
que era considerado um avanço social.

A literatura europeia e seus tradicionais contos de fada possuem uma fórmula que, para
muitos, nunca envelhece; é formalmente iniciática na literatura, um padrão: suas narrativas,
iniciadas com frases tipo “era uma vez”, “havia uma cabana”, “em certo lugar”, descerram
para a criança um mundo extraordinário, que atrai, encanta e também atemoriza. Essas frases
representam um tempo mítico, haja vista que significa que aquela narrativa pode ter
acontecido em qualquer tempo, podendo, inclusive, remeter ao tempo presente.

A ideia de mito no século XIX, por exemplo, na acepção usual, tinha caráter de fábula, ficção,
invenção; já a concepção que precedeu esse século compreendia o mito como uma história
pautada em verdades, mesmo que simbólicas, que fornecia os modelos para a conduta
humana, conferindo, por isso mesmo, significação e valor à existência. Isso fica mais patente
nas sociedades mais antigas da própria Europa e de outros continentes. Devido às adjetivações
do mito, Mircea Eliade (1963) acredita que eles, frequentemente, estavam misturados aos
contos e representavam os ritos de iniciação da fase imatura (infantil) à fase adulta.

Para Mircea Eliade (1963), o problema consiste em determinar se o conto descreve um


sistema de ritos pertencentes a uma determinada cultura ou se seu enredo iniciatório é
“imaginário”, no sentido de não estar ligado a um contexto histórico-cultural, exprimindo, ao
contrário, um comportamento anti-histórico, arquetípico da psiqué. Acreditamos que, além
desta problemática, existe outra, que é o alastramento dos contos de uma dada cultura em
modelos imaginativos de outros povos; isso ocorreu, por exemplo, com os contos de fada
europeus que, embora tenham sido produzidos em um contexto cultural específico,
disseminaram-se de tal forma que se tornou um modelo de conduta para outras culturas.

Não se pode menosprezar o fato de que esses contos, possuem matrizes universais; o que se
disseminou foi o modelo estrutural e moral europeu, pois versões dessas mesmas histórias já
eram conhecidas por outros povos, fato estudado, por exemplo, por Carl Yung, Bruno
Bettelheim, Paul Zumthor, além do próprio Eliade.

De todo modo, os contos possuem um caráter iniciatório, pois suas narrativas desenvolvem-se
sempre após provas iniciatórias, lutas contra monstros, obstáculos aparentemente
79

insuperáveis, enigmas a serem solucionados, tarefas impossíveis etc. Trata-se de uma descida
ao Inferno para posterior ascensão ao Céu (o que possui o mesmo significado de morte e
ressurreição), que sempre resulta em final feliz. O fato é que toda existência do protagonista é
composta por uma série ininterrupta de provas, mortes e ressurreições.

Sejam quais forem os termos de que se serve a linguagem moderna para traduzir que todo
indivíduo é marcado pelas suas experiências, elas determinam sua vida e progresso. Todo
indivíduo, em algum momento, se depara com um grande problema aparentemente insolúvel
(morte), o enfrenta e o supera (passa pela prova), alcançando assim a felicidade (ressurreição).
A prova, que pode ser, por exemplo, matar um monstro, descerra uma séria realidade de
iniciação, pois representa a passagem de morte e ressurreição simbólica, o que significa não
apenas a superação dos problemas, mas a morte da ignorância e da imaturidade para o alcance
da idade espiritual do adulto.

Mircea Eliade (1963) afirma, inclusive, que em grande número de culturas primitivas, os ritos
de iniciação permanecem vivos, até mesmo os indivíduos das sociedades modernas ainda se
beneficiam dessa iniciação imaginária proporcionada pelos contos. Caberia, então, refletir se
o conto maravilhoso não se converteu muito cedo em um “duplo fácil” do mito e do rito
iniciatório, se teve o papel de reatualizar as “provas iniciatórias” ao nível do imaginário. Essas
reflexões surpreenderão somente àqueles que consideram a iniciação um comportamento
exclusivo do homem das sociedades tradicionais.

Embora os mitos e os contos tenham se tornado uma literatura de diversão, para Mircea
Eliade (1963), mais importante do que estudar cada mito como uma história isolada é
compreender os efeitos desses mitos e contos em cada grupo social, principalmente nas
sociedades em que o mito permanece vivo, ou seja, praticável, se refazendo e se adaptando
durante anos para não ser esquecido. Daí a importância de refletirmos sobre os contos de
fadas que permanecem até os dias atuais, ditando modelos de comportamento humano.

Retomamos a ideia de que tais narrativas encantam porque se propõem a promover uma
viagem por lugares e culturas distintas, a fim de desbravar histórias encantadas de diversos
povos, suscitando diversão e aprendizado, ao mesmo tempo elas atemorizam, não somente
devido aos vilões que povoam as narrativas, mas também pelo fato de não conseguirem
80

oferecer uma viagem divertida a todos os tripulantes, principalmente se o tripulante for uma
criança negra de olhos atentos ao itinerário.

Façamos um breve exercício de viajar por uma das histórias mais conhecida dos contos de
fadas, a história da Cinderela ou A Gata Borralheira, publicada em 1697 por Charles Perrault
e republicada em 1812 pelos irmãos Grimm, é de cunho universal, mas as versões
consagradas são de matrizes europeias, conforme demonstrou Bruno Bettelheim (2012).

A Cinderela ou A Gata Borralheira narra a história de um pai rico e viúvo que se casa com
uma mulher que possui duas filhas descritas como “feias” e “negras de coração”. Após o
enlace matrimonial, as regalias da bela e bondosa Cinderela acabam e ela passa a ser tratada
como uma serviçal da família, cuidando de todas as demandas domésticas.

A moça trabalha o dia inteiro e à noite dorme ao lado de uma lareira para aquecer-se; por isso,
vive coberta de cinzas e todos passaram a chamá-la de Gata Borralheira (assim como no
português borralho, o próprio título da história, cunhada na raiz francesa, relaciona o nome às
cinzas, Cendrillon). Na versão de Charles Perrault, a irmã caçula passa a chamá-la de
Cinderela, que significa, portanto, empregada suja, de baixa condição, que deve vigiar as
cinzas da lareira. Deram um nome à personagem e a alienaram dela mesma. A fuligem muda
Cinderela e seu rosto transformou-se em negro, pois a escuridão lhe cobriu a beleza, os
espaços que ela passou a ocupar são os espaços dos serviçais na casa, em especial a cozinha,
por isso ela se tornou indigna de conviver com o restante da família.

A Gata Borralheira aceitava de forma paciente e resignada seu infortúnio, conservando em


meio ao caos a sua pureza. Bruno Bettelheim (2012) afirma que Cinderela estava enegrecida
apenas por ter se misturado às cinzas e borralhos; negras, realmente, eram as almas de suas
irmãs. Entretanto, diante de seu infortúnio, Cinderela nutria o sonho de alcançar a aceitação
social e eis que surge uma possibilidade de alcançar tal anseio, haja vista que é divulgado no
reino que o príncipe regente irá promover um grande baile e todas as donzelas estavam
convidadas. Na ocasião do evento, o príncipe iria escolher dentre as convidadas àquela que
seria sua esposa.

Cinderela não fazia parte da nobreza, o baile era algo inatingível, mas, em meio à
desesperança, surge a figura da Fada Madrinha com poderes para reverter a sorte da menina.
81

Para adquirir sucesso, a garota deveria livrar-se da sua negrura circunstancial, se transformar,
reaver sua beleza, armas poderosas para ascensão social. Em um passe de mágica, todos os
entraves desaparecem e dão lugar a um belo vestido, carruagem e um decisivo sapato de
cristal, todos os elementos reunidos para que a Gata Borralheira subisse as escadas sociais. E
assim aconteceu, o príncipe, encantado por Cinderela, lhe desposa e a salva da sua condição
de subalternidade imposta. A trama termina informando que Cinderela e seu príncipe viveram
felizes para sempre.

O livro Contos de Fadas, publicado em 2010 pela editora Zahar, ilustra os contos de Perrault,
Grimm, Andersen e outros, apresentados por Ana Maria Machado e traduzidos por Maria
Luiza Xavier de Almeida Borges. Nesta obra, podemos verificar que, na versão de Charles
Perrault, após o término da narrativa, são apresentadas duas lições de moral:

1- (...) Beldade, ela vale mais do que roupas enfeitadas.


Para ganhar um coração, chegar ao fim da batalha.
A doçura é que é a dádiva preciosa das fadas.
Adorne-se com ela, pois que esta virtude não falha.

2- É por certo grande vantagem


Ter espírito, valor, coragem,
Um bom berço, algum bom senso,
Talentos que tais ajudam imenso.
São dons do Céu que esperança infundem.
Mas seus préstimos por vezes iludem, e teu progresso não vão facilitar,
Se não tiveres, em teu labutar,
Padrinho ou madrinha a te empurrar (PERRAULT, 2010, p.30 e 31).

O objetivo de propormos essa breve análise de um conto de fadas tradicional não foi para
desestimular a sua leitura, renegar o encantamento que estas narrativas causam às crianças
geração após geração ou, ainda, negar os ensinamentos morais que essas histórias apresentam.
Essa divagação sobre a narrativa é para atentar-nos aos discursos imbricados na trama.
Discursos que expõem a negritude como um fardo, um castigo, uma espécie de condenação,
atrelando a negritude a tudo o que é feio, destituído de bondade, condenado à subalternidade,
inferior, sem cultura, onde o único modo de ser feliz e/ou obter ascensão social é subverter ao
que se é.

No caso de Cinderela, sua negrura era circunstancial, mas, quando se é realmente negro, como
subverter o que se é? Alguns autores, como Lúcia Pimentel Goés (1991), declaram que é
necessário notar que essas narrativas refletem outro contexto social, refletem a sociedade
82

europeia. O grande fato é que o Brasil importou estas literaturas fazendo apenas pífias
“adaptações tropicais”.

Um dos grandes nomes da literatura infantil brasileira é Monteiro Lobato, que, na década de
1920, nacionalizou a invenção literária burguesa ao criar suas próprias narrativas, ainda que
não desprezasse a influência europeia. De acordo com Ione da Silva Jovino (2006), a partir do
final dessa década e início da década de 1930, foi quando os personagens negros apareceram
na literatura infantil e salienta que as primeiras histórias com personagens negros foram
publicadas em uma sociedade recém-saída de um longo período de escravidão; logo, as
narrativas evidenciavam o negro em uma condição de subalternidade.

Para a autora, inexistiam obras nesse período em que o conhecimento, cultura e a estética
negra fossem tratadas de forma positiva. Nas obras mais divulgadas, os personagens negros
não sabiam ler, nem escrever, apenas repetiam o que ouviam, ou seja, não possuíam o
conhecimento considerado erudito e eram representados de um modo estereotipado e
depreciativo.
Obviamente, Ione da Silva Jovino (2006) negligencia a poesia ou a prosa de autores como
Luiz Gama, Cruz e Souza ou Lino Guedes; devemos compreender suas observações no
tocante às narrativas infantis, embora seja possível, ao menos, recordar as incursões de Lima
Barreto às narrativas populares de matriz negra, material publicado em jornais desse período.

Tendo como arcabouço a obra Cinderela, acima citada, façamos agora uma breve imersão na
obra de Monteiro Lobato, Memórias de Emília, publicada em 1936. Neste volume, Emília, a
boneca falante, resolve registrar suas memórias através do Visconde de Sabugosa. Ela solicita
que ele escreva sobre a viagem dos personagens do sítio ao céu, de onde retiraram um anjo de
asa quebrada e levaram para o sítio.

O livro narra, na seção O Anjinho de Asa Quebrada, a forma degradante como a boneca trata
Anastácia, ante a recusa da cozinheira em cortar as asas do anjo que Emília havia confinado.
Como ela não fez o que a boneca pediu, o anjo, depois de curado, retorna ao céu. Aborrecida,
Emília culpa Nastácia, e chama-a de “Burrona! Negra beiçuda!” e diz que Deus a marcou com
a cor negra:

Quando ele preteja uma criatura é por castigo. (...) Esta burrona teve medo de cortar
a ponta da asa do anjinho. Eu bem que avisei. Eu vivia insistindo. Hoje mesmo
83

insisti. E ela, com esse beição todo: Não tenho coragem... É sacrilégio... Sacrilégio é
esse nariz chato (LOBATO, 1966, p. 103- 104).

Este trecho demonstra não somente uma chateação de Emília mediante a partida do amigo,
mas sua concepção sobre Nastácia, sobre quem ela expõe os traços fenotípicos, associando-os
a questões de baixa intelectualidade, de desprovimento de beleza e do castigo da cor
produzido pelas esferas do sagrado.

Essa ideologia em muito se assemelha às críticas realizadas por Gregório de Matos Guerra
(1969) “à negra Margarida, que acariciava um mulato com demasiada permissão dele”. O
poema reedita o mito bíblico de Cam ao ver o pai, Noé, nu. O filho é condenado a ser o menor
de todos os irmãos, restando-lhe o lugar de escravo da família do patriarca. Essa mitologia
serve de estrutura para o racismo, que teve o poeta Gregório de Matos como um dos
principais precursores.

Um contraponto reivindicativo da representação de Tia Anastácia nas obras de Lobato é


encontrado no poema Tia Anastácia, de Giovane, o Sobrevivente24, autor contemporâneo,
baiano, rapper, que divulga suas produções em saraus pela cidade de Salvador - Bahia:

Tia Anastácia está revoltada


Tia Anastácia está revoltada
Tia Anastácia está revoltada
Hoje eu estive com Tia Anastácia
Ela me disse que está muito revoltada
Por que o Sítio do Pica-Pau Amarelo está tirando ela como otária
Ela faz os bolinhos e dona Benta recebe a medalha
Tia Anastácia está revoltada
Tia Anastácia está revoltada
Farinha de trigo tem que ser
Tia Anastácia
(SOBREVIVENTE, 2014. p.51).

Retomando ao livro Memórias da Emília, a segunda seção da obra, narra o momento em que
Dona Benta (matriarca da obra, dona do sítio onde as narrativas acontecem) reúne seus netos
para contar-lhes a história de Peter Pan. No momento em que todos estão reunidos, Tia
Nastácia, da cozinha, pede que Dona Benta aguarde ela terminar de lavar a louça, uma vez
que também almeja ouvir a narrativa. Dona Benta aguardou, mas não sem antes ouvir a

24
A poesia de Giovane faz alusão ao fato de que são comercializados produtos alimentícios com a marca Dona
Benta, sendo Tia Nastácia a cozinheira da obra. Para Nastácia o trabalho, para Dona Benta o mérito.
84

indignação de Emília, que afirmava não saber para quê uma cozinheira quer saber a história
de Peter Pan.

No decorrer da história, Tia Nastácia interrompe Dona Benta, informando que só ouviu falar
de fadas em histórias que não são reais, mas Emília ordena que ela se cale, pois só entende de
cebola, alho, vinagre e toucinho, que uma fada jamais apareceria para ela, uma vez que fadas
não aparecem para gente preta: “Eu se fosse Peter Pan, enganava Wendy dizendo que uma
fada morre sempre que vê uma negra beiçuda...” (LOBATO, 1966, pág.166).

Os textos e representações lobatianas tornaram-se cada vez mais indigestas para a população
negra que, a partir da década de 1970, buscou de forma mais exacerbada por novas
representações, afinal a contemporaneidade reivindica elementos mágicos, imaginativos e
fantásticos associados positivamente ao negro; abolir esses lugares socialmente demarcados
pelos salões das casas grandes e quintais subalternos das senzalas que, mesmo após a
abolição, permaneceram.

Ressaltemos as versões baiana, oriundas da tradição oral, apresentadas por Edil Silva Costa
(1998), que ressaltam em várias de suas cenas e situações marcas das representações de
identidade negra, além do fato de várias das narradoras serem negras.

O que podemos compreender deste sucinto panorama literário infantil é o quanto a viagem
literária é difícil para a criança negra e o quanto estas narrativas clássicas influenciaram a
literatura infantil brasileira. Se na história da Cinderela a protagonista recebe auxilio da Fada
Madrinha, Monteiro Lobato completa informando que não existe auxílio para pessoas negras,
não existe fada negra. O que resta para o público negro: renegar sua identidade e/ou querer
assumir a identidade branca do outro? Afinal, ninguém quer ter o pior papel da história.
Portanto, o que, eficazmente, resta para os negros é escrever outras narrativas, subverter
discursos, modificar estereótipos fixados e ter acesso real na viagem literária, gostar do
itinerário.

Se Monteiro Lobato reforça os estereótipos das narrativas europeias em suas tramas, é


possível, também, utilizar esses estereótipos como tema para problematizar, incomodar, trazer
para o debate, desconstruir. Esse anseio é um dos elementos fundadores da chamada literatura
infantil negro-brasileira. É preciso forjar um cânone, valorizar os fios identitários, repertórios
85

culturais, estética e histórias negras com representações afirmativas e positivas. E é na


infância que essa formação deve acontecer, pois é quando a personalidade começa a se
configurar. Como afirma Ana Rita Santiago: “É preciso, já na infância, a circulação de signos
que inibam práticas de assimilação e de branqueamento e promovam auto reconhecimento
imbuído de referências positivadas de africanidades” (SANTIAGO, 2012, p.138).

Ione da Silva Jovino (2006) afirma que somente a partir da década de 1975 vamos encontrar
produção literária infantil mais comprometida com outras representações sociais. O resultado
dessa proposta é a existência de obras em que a cultura e os personagens negros figuram com
mais frequência. Esse esforço é desenvolvido por autores que abordam em seus textos temas
considerados tabus, tais como o preconceito e a discriminação racial.

Muitas obras desse período tinham uma preocupação em romper com as representações
distanciadas e estereotipadas de outrora, apresentando personagens negros em situações do
cotidiano, resistindo e enfrentando, de diversas formas, o preconceito e a discriminação,
resgatando sua identidade racial, representando papéis e funções sociais diferentes,
valorizando as mitologias, as religiões e a tradição oral africana. Como exemplo, podemos
citar a obra Betina, de Nilma Lino Gomes, publicado pela editora Mazza (2009), que narra a
história da menina negra Betina que aprendeu a trançar, gostar e valorizar seus cabelos e sua
estética com sua avó e esta, por sua vez, aprendeu o mesmo com sua avó, mostrando a
importância do conhecimento ancestral transmitido oralmente entre o povo negro. Além de
gostar dos seus cabelos, a personagem-título abre um salão de beleza, que adquire sucesso em
vários países a fim de divulgar seu conhecimento ancestral e exaltar a sua estética negra,
empoderando outras meninas.

Apesar da existência de obras como Betina, é importante frisar que, embora algumas
narrativas quisessem romper com modelos estereotipados, terminavam por apresentar
personagens negras que repetiam algumas imagens e representações com as quais pretendiam
romper. Essas histórias terminavam por criar uma hierarquia de exposição dos personagens e
das culturas negras, fixando-os em um lugar desprestigiado do ponto de vista racial, social e
estético.

A partir da década de 1970, amplia-se a mobilização para uma nova escrita literária com
representações negras diferenciadas e positivadas. É o momento também de reutilização do
86

papel preenchido com o discurso colonizador, de raspar esses escritos tal como se fez com o
pergaminho palimpsesto e reescrever as histórias. No entanto, quando se raspa uma narrativa
para tentar construir outras, ficam as marcas, as cicatrizes no papel, as cicatrizes da história.

Na questão negra essas cicatrizes são: a escravidão, a fixidez de estereótipos, o racismo, o


preconceito, o sexismo, a discriminação, a marginalização. Cicatrizes essas que se tornaram
temáticas revisitadas e revertidas na literatura infantil negro-brasileira.

No final da última subseção, informamos que na segunda metade do século XX e, mais


fortemente, a partir dos anos 1980, a literatura infantil brasileira exibia um quadro de
progressivo esgotamento e superação dos ímpetos de negação do passado e da exaltação da
ideia de brasilidade fundada na mestiçagem, representada a partir de uma visão distanciada do
negro. A partir da década de 1970, escritores negros se organizam em coletivos, a exemplo do
grupo Gens (Grupo de Escritores Negros de Salvador), na Bahia, Negrícia, no Rio de Janeiro,
Palmares, em Porto Alegre e Quilombhoje, em São Paulo. Estes coletivos, dentre outras
vertentes, buscaram a valorização do negro, sua cultura, tradição, história, religião, estética,
lutaram contra o racismo, escreveram outras narrativas no cenário literário, fazendo com que
seus escritos circulassem e que outro público leitor se consolidasse.

Muitos foram os acontecimentos históricos que propiciaram o surgimento de um novo campo


literário, como: o Movimento Negro Unificado contra a discriminação racial (1978), a
publicação dos Cadernos Negros25 (1978), a ampliação da chamada classe média negra, o
aumento de profissionais negros no Ensino Superior, ampliando o mercado de trabalho e de
consumo, além das Leis Educacionais 10.639/2003 e a Lei 11.645/2008, que indicam a
obrigatoriedade do ensino de História e cultura afro-brasileira e indígena; essas foram
algumas contribuições para a construção de um ambiente favorável à presença significativa
dos negros através de seu pertencimento étnico.

Essas constatações sobre atos e acontecimentos que propiciaram e/ou fortaleceram a literatura
negra escapam aos objetivos deste trabalho, todavia os mencionamos apenas como pano de
fundo para compreendermos que, ampliados os públicos e a demanda, ampliam-se, também, a
produção de conhecimento literário e de pesquisas especificamente no âmbito acadêmico.

25
Coletânea de poesias negras escritas por autores negros e que também são os responsáveis pela editoração e
circulação das suas próprias produções com o intuito de conscientizar, valorizar e consolidar um público leitor
que se afirme negro.
87

Esses acontecimentos possibilitaram o aumento da produção literária negra e a compreensão


do que se intitula Literatura Negro-Brasileira. As objetivações e diferenciações dessa
literatura do cânone brasileiro em geral é um dos objetivos desta pesquisa.

Diante de tantas lutas e do surgimento de tantos coletivos, o momento tornou-se, pois,


propício à construção de operadores teóricos que possibilitaram a reflexão crítica da arte
negra e a conceituação da literatura negra.

A publicação dos Cadernos Negros, por exemplo, desde 1978, tem uma produção marcada
pelo tema negro, memória cultural, protesto contra o racismo, resistência a todas as formas de
inferiorização, buscando um público que se afirme negro, e tentando formalizar uma
linguagem que escape e denuncie o estereótipo. Acreditamos que os Cadernos Negros,
ilustram através da sua produção, esse nosso posicionamento e se estende à produção infanto-
juvenil através de autores como Geni Guimarães, Júlio Emílio Braz, Joel Rufino, Heloísa
Pires, dentre outros.

Já que o momento é propício à pergunta, indagamos, afinal, o que é a literatura negro-


brasileira cunhada por Luís Cuti (2010)? Não há um consenso sobre a nomenclatura. Muitos
autores irão refletir sobre a denominação ou sobre seus sentidos. Domício Proença Filho
(2010) apresenta duas respostas para esta questão: por um lado, ele afirma ter caráter restrito
e, por outro lado, caráter amplo, lato sensu.

Em sentido restrito considera-se negra uma literatura feita por negros ou por descendentes
assumidos e, como tal, reveladora de visões de mundo, ideologias, forma de realização,
condição sócio-histórico e cultural ligadas a um intuito de singularização de uma cultura
específica. No sentido lato sensu, essa literatura seria feita por quem quer que seja, desde que
a temática da produção esteja centrada nas questões peculiares dos negros e seus
descendentes. Embora ele apresente estas duas vertentes, alega que no Brasil adota-se o
sentido restrito do conceito e diz que esse sentido suscita o risco do que ele chama de
preconceito velado, pois elimina a possibilidade de escritores engajados e interessados na
temática terem sua produção legitimada dentro dessa literatura.

Domício Proença Filho (2010) critica, também, o aprisionamento que a literatura negra causa
ao escritor em face de uma temática e, por fim, alega considerar a importância de a literatura
88

ser um lugar de afirmação, reconhecimento e valorização da cultura e contribuição dos


negros, afirmando inclusive que a literatura feita por negros cria uma linguagem que gera uma
poética nova de cânone. E, essa dimensão já está inserida na literatura brasileira e não no que
ele chama de nicho discriminatório de uma literatura negra.

O autor acima citado apresenta considerações ambíguas sobre a literatura negra: por um lado
a considera excludente, haja vista que elimina os interessados não-negros de se inserir neste
cânone, ora a considera aprisionante, pois confina os negros dentro do mesmo conteúdo.
Acredita que a dimensão literária produzida pelos negros já está incluída na literatura
brasileira, não havendo a necessidade de segregação. Contraditoriamente reconhece a
importância da literatura negra como forma de valorização, reconhecimento e afirmação dos
negros, julgando inclusive que sua literatura cria uma linguagem poética única e nova, o que
justifica a crença de que esta unicidade poética não está inserida de forma positivada na
literatura brasileira como ele afirma.

Julgamos que Domício Proença Filho (2010), escritor negro, estaria buscando talvez a
democratização literária, na qual todos os escritores pudessem produzir seus textos, ter suas
peculiaridades de linguagem exaltadas e suas obras valorizadas, independente da sua cor. Se
for realmente este o anseio do autor com suas colocações ambíguas, seu posicionamento é
ingênuo por acreditar que a literatura é impessoal, democrática, acessível e incolor.

Utilizando, ainda, as afirmativas de Domício Proença Filho (2010), que alega que a literatura
não tem cor, questionamos: quem escreveu a história do negro nas obras literárias? Quem os
representava? Quem falava por eles? Quem comercializava mais facilmente as obras? Quem
consumia estas narrativas? E, por fim, quem tentava silenciar as vozes consideradas
minoritárias?

Sim, a literatura brasileira, predominantemente, sempre teve cor. Afinal, nunca foi incômodo
para o cânone brasileiro ter a cor branca, mas é de extremo incômodo os negros forjarem um
cânone em que realmente possam se inserir, que questione e supere a temática da
escravização, os estigmas, preconceitos, racismo e a reprodução da estereotipia negra.

Ana Rita Santiago (2012) alega que o risco citado por Domício Proença Filho (2010) se
constitui na verdade “na possibilidade de destecer as tramas alimentadas por depreciações
89

presentes nas teias literárias e de tecer textos com fios afirmativos de identidades negras
brasileiras” (SANTIAGO, 2012, p. 133).

A autora define literatura negro-brasileira como um segmento da literatura brasileira


comprometida com temáticas afins ao legado afro-brasileiro, forjadas por escritores (as)
negros (as) que se assim se declaram e que assim são denominados por estudiosos, leitores e
críticos. A percepção de Ana Rita Santiago, embora concorde, em partes, com o que Domício
Proença Filho (2010) chama de literatura negra em caráter restrito, retira da conceituação do
autor a possibilidade desta literatura ser escrita por afrodescendentes, para ela, a literatura
negra deve ser escrita por negros/as, caso contrário será uma literatura afrodescendente, afro-
brasileira e não negra.

Eduardo de Assis Duarte (2010) assinala que o termo literatura negra gera um abalo à noção
de identidade nacional e reflete que o manto da pátria nunca foi tão gentil a julgar pela
historiografia literária repleta de vazios, esquecimentos, omissões, silenciamentos e recusa de
muitas vozes consideradas desqualificadas. Segundo o autor, desde o período colonial, o
trabalho do negro está presente em praticamente toda produção artística, porém sem o devido
reconhecimento e visibilidade. A literatura, por exemplo, sofre impedimentos para
divulgação, materialização do livro e circulação.

O surgimento de uma especificidade dentro do cânone gera um incômodo, é indigesta a ideia


de que os negros possuam uma literatura só deles; logo, surgem duas tentativas: a primeira é a
de tentar inviabilizar esta especificidade através de argumentos de que a literatura é uma só,
que não existe uma escrita negra diferenciada, a ideia de que todos possuímos um pé na
senzala, que somos um país miscigenado, somos todos afrodescendentes, todos podemos
produzir essa literatura, que não é específica, uma vez que está inserida na literatura brasileira
de forma geral. A segunda tentativa é a de desmerecer a qualidade dessa literatura, é informar
que não existem narrativas engajadas, na evocação de uma produção que deve ser pura, deve
estar imbuída no paradigma da arte pela arte, uma arte cuja finalidade é não ter um fim, além
de si mesma. Questionam se a produção negra não resultaria de uma oportunidade histórica.
Eis a opinião de Duarte:

A nosso ver, a ideologia do purismo estético, ela sim, faz o jogo do preconceito, à
medida que transforma em tabu as representações vinculadas às especificidades de
gênero ou etnia e as exclui sumariamente da “verdadeira arte”, porque “maculadas”
90

pela contingência histórica. Este purismo é, no fundo, um discurso repressor, que


cala a voz dissonante desqualificando-a como objeto artístico. É o caso de se indagar
qual valor concede sustentação a valores estéticos enrijecidos por séculos de
colonização ocidental (DUARTE, 2010, p.75).

O resultado de todas essas tentativas e/ou condicionamentos resulta no que Eduardo de Assis
Duarte (2010) intitula de estágio de quase completa ausência de história e de um corpus da
literatura negra devido à pífia quantidade de pesquisas sobre a mesma, assim como a
inexistência de uma recepção crítica ampla e atualizada e de disciplinas de Literatura negra
nos cursos de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras, Educação e afins. Todas essas
ausências manteriam a cortina de silêncio que cobre os escritores negros, que permanecem,
em sua maioria, desconhecidos publicamente. Contudo, embora o autor apresente esses
fatores negativos, informa que, nas últimas décadas, a literatura brasileira tem passado por um
processo de revisão, motivada pela emergência de novos sujeitos sociais, que reivindicam
fazer parte do território discursivo literário, uma vez que, antes, foram relegados ao silêncio
nas margens do cânone cultural hegemônico.

Envolvidos na tentativa de compreender a literatura negra, citamos Zilá Bernd (1987), que
define literatura negra como aquela produzida por um sujeito de enunciação, que se afirma e
se quer negro. Bernd (1987) não se atém à cor da pele do escritor, mas à enunciação do
pertencimento. De acordo com ela, a literatura negra é o momento que o eu individual se
identifica com a comunidade, é o momento em que o “eu-que-se-quer-negro” se encontra com
o “nós coletivo”. Esta definição parece implicar que qualquer pessoa poderia se identificar
existencialmente com a condição de negro, se deslocar para escrever sobre um dado grupo
social num processo de análise, crítica e empatia.

A percepção de Zilá Bernd (1987) evoca, também, a reflexão sobre a diferença entre ser e
agir. A literatura negra, como seu próprio nome informa, está atrelada a um sujeito de
enunciação que é e se afirma como negro e não alguém que se quer negro, se imagina negro
ou julga compreender o que é ser negro. Ser favorável a temática negra não torna o indivíduo
negro, pois as experiências são distintas.

A literatura negra, além de evocar o sujeito de enunciação, evoca o lugar de fala e experiência
negra, reclama a violência de um passado histórico, questiona situações marginalizantes,
como a fixidez da estereotipia, o preconceito e prima pela valorização da estética, da
linguagem negra, do legado histórico social e cultural, reivindica o reconhecimento, a escuta
91

das vozes negras; em suma, forja um cânone onde o negro possa ser inserido de tal forma a
construir e/ou fortalecer sua identidade. Assim, a literatura negra é a escrita proveniente da
experiência de ser negro, o que Conceição Evaristo (2007) intitula de Escrevivência26: escrevo
o que eu sou porque sou; se a história é minha eu devo escrevê-la. Quiçá esta seja a grande
diferença da escrita negra. Conforme a própria Evaristo afirma: “A nossa escrevivência não
pode ser lida como histórias para “ninar os da casa grande” e sim para incomodá-los em seus
sonos injustos” (EVARISTO, 2007, p.21).

Um exemplo dessa escrita, que é um transbordamento de si, pode ser encontrada na obra
infantil Minha Mãe É Negra Sim! escrita pela pedagoga negra Patrícia Santana (2008). A
afirmação étnica é nítida logo no título da obra. A narrativa conta a história do menino Eno,
nome nigeriano que significa presente. Eno passa por uma situação vivenciada por muitas
crianças no âmbito escolar quando lhe é solicitado que ele desenhe e pinte sua mãe. Ao
escolher o lápis de cor preta para pintá-la, é interpelado por sua docente, que pede a ele para
pintar seu desenho num tom mais claro para que se torne mais bonito. Chateado o aluno
decide não mais pintar o desenho e se recusa retornar a escola.

O banzo (apresentado na obra como tristeza de negro) de Eno é tamanho que seu avô o visita
e conta a história do povo negro, uma história de luta, a fim de induzir o menino a enfrentar a
situação discriminatória vivenciada por ele. Eis que o menino retorna à escola em posse do
desenho da sua mãe pintada em negro e diz: “Professora, meu desenho de mãe, não pintei de
amarelo, pintei de preto em negro como é a minha mãe, como é a jabuticaba, o ébano, a
beleza da noite escura. Pintei com a cor de mim mesmo” (SANTANA, 2008, p.26).

Esta talvez seja a definição mais bonita da literatura negra: é a escrita pintada com a cor de si
mesmo.

Esse alargamento de vozes e mãos na escrita e representação da história negra é o que


podemos intitular de literatura afro-brasileira ou afro-descendente, afinal, sendo os brasileiros

26
Embora consideremos o fato de que a negritude gera uma escrita diferenciada, compreendemos também a
fragilidade da Escrevivência pregada por Conceição Evaristo, uma vez que não há garantias de que a experiência
do negro represente a todos de forma aabrangente, assim como não há garantias de que o negro ao escrever
produzirá um texto fiel à questão negra, pois, sendo ele o fruto das influências colonizadoras, patriarcas e racistas
seu texto pode ser o resultado deste corpo marcado, invés de um texto que proteste tais marcas. Todavia,
acreditamos que na Escrevivência pregada pela autora é possível mais facilmente tecer fios de comunicação e
significação com o coletivo negro.
92

frutos da miscigenação proveniente da violência colonizadora, parece normal o argumento de


sermos todos um pouco negros, que mais importante que a cor da pele no processo de escrita
é a enunciação do pertencimento. Estes discursos diluem a negritude na miscigenação, que é o
estupro colonial até os subsequentes produtos da ideologia da democracia racial, afastando o
negro da sua própria identidade afirmativa. É possível compreender, também, que esse
alargamento de vozes (literatura afro-brasileira ou afro-descendente) possibilita a
consolidação de outras formas de produção de texto sobre o negro, a configuração de outra
autoria e o consequente deslocamento de autores que tentam compreender, problematizar o
negro e suas questões.

Cuti (2010), em sua obra já citada Literatura negro-brasileira, afirma que “negro e afro não
tanto faz”27, marcando a importância do lugar da literatura negra. Uma vez que se lutou tanto
para definir a sua existência, termos como afro-brasileiro ou afro-descendente representam o
risco da descentralização ou não–pertencimento de seus autores, uma vez que estas narrativas
podem ser escritas por qualquer mão, o verdadeiro risco desta literatura reside no excesso de
permissividade.

Denominar de afro a produção negro-brasileira dos que se já se assumem negros, por


exemplo, é projetá-la à origem continental de seus autores, relegando à marginalização a
literatura brasileira através da hierarquização das culturas. Afro-brasileiro e afro-descentes são
expressões que transformam a literatura brasileira em um apêndice da literatura africana. É
como se apenas a produção dos brancos compusesse a literatura brasileira.

Atrelar a literatura negro-brasileira à literatura africana é rejeitar a realidade brasileira: “A


literatura africana não combate o racismo brasileiro. E não se assume como negra. Ainda a
continentalização africana da literatura é um processo desigual se compararmos com outros
continentes” (CUTI, 2010, p.36).

A produção literária de negros e brancos abordando as relações inter-raciais tem vieses


diferentes por conta da subjetividade de cada sujeito; ou seja, é diferente devido ao lugar
sócio-ideológico de onde cada um produz.
Para Cuti (2010), quando um escritor produz seu texto, ele manipula seu acervo de memória
onde moram seus preconceitos e esta manipulação cria um círculo vicioso que,

27
Um dos títulos do livro Literatura negro-brasileira de Cuti.
93

constantemente, alimenta os preconceitos. A quebra deste círculo tem sido forjada por suas
próprias vítimas, uma vez que o escritor negro-brasileiro faz do preconceito e da
discriminação racial temas de seus textos para romper com o preconceito existente na
produção dos autores brancos. Por isso, para o autor supracitado, a representação dos
personagens negros em livros de autores brancos ou mestiços é mediada pelo distanciamento,
enquanto que a produção dos autores negros segue uma trajetória de identidade e afirmação
em seus discursos.

Vejamos:

A obra Menina Bonita do laço de Fita, de Ana Maria Machado 28, foi publicada em 1986, e é
considerado um marco da literatura infantil com personagens negros. Quiçá não seja uma das
obras com personagens negros mais conhecida e utilizada no âmbito escolar, todavia foram
mãos brancas que escreveram essa narrativa, que conta a história de uma menina negra sendo
interpelada por um coelho branco, que almeja saber a todo custo o que ela faz pra ser tão
pretinha, pois o animal queria ter “filhos pretos” como a menina.

A figura do coelho, um animal excessivamente copulador por si só, já é sugestivo e, na trama,


trata-se de um coelho adulto, pois sua preocupação é reprodutiva; logo, temos um coelho
adulto interpelando uma criança negra sobre sexo. Obviamente, a presença alegórica do
animal desvia a atenção do leitor do tema da narrativa, que, neste caso, é o desejo do coelho
em procriar. Vale salientar que, na obra, a menina negra faz balé e é possível visualizá-la em
uma das imagens do texto com pernas torneadas usando uma malha curta e branca,
característica da sua dança, realizando uma coreografia com uma das suas pernas suspensa, e
logo adiante o coelho branco adulto, macho, olhando a menina e desejando ter filhos negros
como ela ou com ela? Sendo assim, em plena contemporaneidade, voltamos sutilmente ao
estereótipo da negra erotizada.

A autora inicia a história de uma forma diferenciada (positivada), expondo uma foto da
personagem e em seguida a descrevendo como uma menina linda, de pele lustrosa,
inteligente, olhos brilhantes, parecendo uma princesa negra da África e essas comparações

28
Ana Maria Machado é considerada uma personalidade no meio literário infantil dentro e fora do Brasil.
Formada em Letras, além de escrever narrativas, adapta e traduz livros estrangeiros. Premiada nacional e
internacionalmente Ana Maria Machado ocupa a cadeira n.1 da Academia Brasileira de Letras.
94

possibilitam a identificação da criança com a obra. Além disso, enfatiza o fato de que na
África existem princesas negras, mudando o estereótipo da África como um lugar selvagem e
de que os reinados são prerrogativas dos brancos. Muda, também, a ideia de que negro é
“burro” e que lhe cabe apenas exercer papel de inferioridade.

A forma como Ana Maria Machado (2000) descreve a personagem é comumente encontrada
nas narrativas clássicas, onde a personagem principal é caracterizada em beleza e bondade.
Aqui se realiza o mesmo feito, só que com uma menina negra, dando a entender que seu
objetivo é inserir esse público no âmbito sempre excluído dos contos maravilhosos. A autora
nforma que a menina é muito bela e, se não bastasse seus encantos, sua mãe ainda lhe trança
os cabelos (ressalta a estética negra) e os enfeita com laço de fita.

Diante de tanta beleza da menina eis que surge um coelho branco almejando quando casar-se
ter uma “filha” como ela. Esse coelho sempre vai visitar a menina para perguntar: “Menina
Bonita do Laço de Fita, qual o teu segredo pra ser tão pretinha? A menina não sabia, mas
inventou” (MACHADO, 2000, p.6).

Apesar da descrição positiva da menina no início da narrativa, podemos notar outra questão-
problema trazida na trama: a criança tem sua negritude interpelada pelo coelho e ela não sabe
informar sobre sua própria história; então, em sua inocência de menina, ela passa a forjar
justificativas para a sua negritude.

Todo dia o coelho insistia na pergunta e a menina seguia inventando várias respostas, até que
a mãe da personagem (descrita como uma mulata linda e risonha) intervém, informando ao
coelho que a menina é pretinha assim devido “às artes” da avó preta dela, uma reposta vaga,
mas que suscita no coelho a compreensão de que, se ele quiser ter coelhos negros, deverá
casar-se com uma coelha de igual cor. Outro ponto problemático da narrativa: a mãe negra da
menina, responde que a negritude da sua filha é proveniente das artes da sua avó. No Brasil,
comumente atribuímos o termo “artes” às peraltices, ato impensado, indevido, errôneo, à
insensatez das crianças ou coisas do tipo; logo, parece que a negritude da menina era
resultado da insensata existência de uma avó preta na família, afora a óbvia associação com a
questão da sexualidade.
95

A história finda com o coelho branco casando-se com uma coelha negra e tendo inúmeros
filhotes de cores variadas e, por fim, a narrativa mostra uma “coelha preta” apresentada como
muito linda e charmosa saindo às ruas e todos lhes perguntando o segredo para ela ser uma
coelha preta tão linda e ela responde que foi conselho da mãe da sua madrinha, neste caso A
menina Bonita do Laço de Fita. E a história continua...

Outra questão problematizadora da história reside no fato da personagem não ter nome.
Sabemos que é o nome que primeiro identifica, distingue os indivíduos, o torna sujeito. Se a
menina não tem nome, ela é realmente um sujeito social? Possuirá história?

Ana Célia Silva (1995) aborda que a criança negra raramente é retratada e quando,
finalmente, é, “nunca tem nome, é chamada por apelidos ou por sua cor (negrinho)” (SILVA,
1995, p.32).

A história de Ana Maria Machado (2000) objetiva apresentar um problema em torno do não
conhecimento da menina sobre sua negritude, suscitando em seus leitores a ideia de que ao
final da narrativa a menina finalmente descobrirá a razão da sua negritude através da sua mãe
(conhecimento ancestral); mas, no momento de situar, informar e construir esta identidade, a
história apresenta argumentos evasivos, pouco consistentes e superficiais, impossibilitando a
real construção identitária da criança negra.

Ilustrar essa obra como exemplo não tem o objetivo de desmerecer sua narrativa, mas de
mostrar que a cor da pele gera experiências distintas. Daí a importância de demarcar
afirmativamente a literatura como negra, pois as terminologias afro-brasileira ou afro-
descendente abrigam textos e escritores não-negros (mestiços e brancos), portanto, pessoas a
quem o racismo não atinge, indivíduos cuja identidade ou a herança africana não está no
corpo, não passando pela experiência em face da discriminação racial.

Adotamos neste texto o termo literatura negra29 invés de literatura afro-brasileira e/ou afro-
descendente por enxergar mais facilmente uma relação entre a menina negra e um texto

29
Ao adotar o termo literatura negra não desconsideramos as fragilidades do termo, em torno de questões como:
se o autor negro (assumidamente negro) que escreve literatura negra (temática negra) por ventura escrever uma
narrativa de outra temática estaria ele provisoriamente fora da literatura negra? Seria então a autoria negra um
lugar dentro e fora do cânone literário? Não idealizamos responder tais fragilidades e sim, demarcar que
adotamos um olhar sobre a produção que ocorre dentro da literatura negra.
96

produzido por um escritor que se afirma negro e se propõe a escrever textos enfatizando esta
representação; acreditamos que as similaridades destas experiências produzirão um texto mais
próximo à realidade da menina negra e, também, como forma de visibilizar o coletivo negro,
que possui maior dificuldade na materialização do livro, reconhecimento dos seus autores,
consolidação de um público leitor e a circulação das suas obras.

Mas, afinal, o que diferencia a literatura negra das demais escritas é somente a cor da pele?
Cuti (2010) responde:

(...) a escrita afro-brasileira ou afro-descendente tenderia a se diferenciar da escrita


negro-brasileira em algum ponto. O ponto nevrálgico é o racismo e seus significados
no tocante à manifestação das subjetividades negra, mestiça e branca. Quais as
experiências vividas, que sentimentos nutrem as pessoas, as fantasias, que vivências,
que reações, enfim, são experimentadas por elas diante das consequências da
discriminação racial e de sua presença psíquica, o preconceito? Esse é o ponto!
(CUTI, 2010 p. 38 e 39).

E, se todas as justificavas não forem o bastante para enfatizar o motivo deste texto concordar
com Cuti (2010) na importância de demarcar o cânone da literatura negro-brasileira, basta
realizar a pergunta reversa: é importante a existência da literatura “branca-brasileira”? De
acordo com Maria Nazareth Soares Fonseca (2006), quando nos referimos à literatura
brasileira, não precisamos usar a expressão “literatura branca”, pois é fácil perceber que, entre
os textos consagrados pelo “cânone literário”, o autor e autora negra aparecem muito pouco,
e, quando aparecem, são quase sempre caracterizados de forma inferiorizante, como a
sociedade os percebe. Assim, os escritores de pele negra, mestiços, ou aqueles que,
deliberadamente, assumem as tradições africanas em suas obras, são sempre minoria na
tradição literária do país. Daí a relevância do termo.

Entretanto, é importante apresentarmos outras formas de representação do negro e suas


temáticas na literatura. Maria Nazareth Soares Fonseca (2006) sintetiza a diferenciação entre
literatura negra, literatura afro-brasileira e literatura afro-descendente informando que a
literatura negra é a produção de negros sobre a realidade racial no Brasil, sua luta é pela
conscientização da população negra, para formar, fortalecer e afirmar a identidade dos grupos
excluídos da sociedade brasileira. A literatura negra busca reverter as imagens negativas
relacionadas ao termo “negro” para que o mesmo deixe de ser visto como um fardo, e passe a
ser visto como um fato.
97

Já a literatura afro-brasileira revela a relação África- Brasil, está relacionada com a África,
seja aquela que nos legou uma imensidão de escravizados ou a Mãe-África, berço da
civilização; e, por fim, a literatura afro-descendente possui um duplo sentido: de um lado, está
vinculada as matrizes da cultura africana e, ao mesmo tempo, tenta traduzir as mudanças
inevitáveis que as heranças culturais sofreram na diáspora.

Eduardo de Assis Duarte (2014) elenca algumas características que definem a literatura negra,
dentre as quais se destacam: uma voz autoral negra, ponto de vista, temática, linguagem e o
público. A voz autoral negra está integrada à escritura e à experiência, é a voz do autor em
formação e da consciência da comunidade. O ponto de vista indica a visão do mundo autoral e
se relaciona à história, à cultura e à problemática da população negra. O ponto de vista negro
difere-se do branco e objetiva superar modelos europeus. A linguagem expressa valor étnico,
cultural, político e ideológico. A linguagem é a expressão da diferença cultural e normalmente
é oriunda da África e está inserida no processo transculturador em curso no Brasil.

A temática é diversa, podendo contemplar o resgate da história do povo negro na diáspora


brasileira, a denúncia do processo escravagista, a exaltação dos heróis negros, a reconstituição
da memória de luta, questionar o discurso colonial, destacar a riqueza das lendas e mitos que
em sua maioria é fruto da herança oral, recuperar a memória ancestral e os elementos dos
rituais religiosos, além de celebrar o vínculo com a ancestralidade africana, proporcionar
identificação com os personagens negros, trazer ao leitor os problemas relacionados à miséria
e exclusão, a exaltação do negro, sua história e cultura, seu corpo, sua beleza, sua estética e
enfrentamento a discriminação, preconceito, racismo e superação dos estereótipos.

E, por fim, a literatura negra intenciona a formação de um horizonte recepcional negro, anseia
pela constituição de um público marcado pela diferença cultural para promover sua afirmação
identitária. Trata-se, também, de uma meta ambiciosa, pois tenta implantar e/ou ampliar o
gosto e o hábito da leitura em um público comumente marcado pela pobreza e por uma série
de restrições que, historicamente, o impeliram da fruição da leitura, uma vez que os livros
selecionados e lidos formam críticos, contestadores e transformadores da estrutura social
vigente.
98

Exemplificando a literatura negra, citamos a obra de Martha Rodrigues 30, intitulada Que cor é
a minha cor? publicada pela editora Mazza, em 2005 e ilustrada por Rubem Filho que se
apresenta no livro como um menino negro que vive desenhando. Formado em Belas Artes,
especialista em Gravuras, além de ilustrar livros infantis, faz projetos gráficos, capas de livros
diversos, é escritor de obras infantis como Pretinha de Neve e os setes gigantes; se define
como orgulhoso da sua cor e, se sente feliz por ajudar outras crianças a se orgulharem
também.

A obra Que Cor é a minha Cor? demonstra, a julgar pelo título indagativo e incerto, que se
trata de uma busca por si mesmo, uma descoberta.

A negritude, historicamente, sempre foi representada pelo viés dos estereótipos ou omitida do
âmbito literário, fazendo com que os leitores negros não se auto afirmassem ou rejeitassem
sua ascendência africana, logo, ser negro é um tornar-se, é um renascimento, possível apenas
quando as representações positivas fazem com que o negro vá ao encontro de si mesmo,
assumindo, então, quem realmente eles são, sentindo-se bem com isso e preparado para
resistir aos ditames vindouros.

Na narrativa, Martha Rodrigues (2005) apresenta uma menina (sem nome) que a todo instante
incentiva seus leitores a localizarem-na na própria história e na sociedade. Suas perguntas são
do tipo “você sabe onde estou? Você pode me encontrar? Você sabe quem eu sou?”. Podemos
compreender tais indagações como indicativos que essa menina negra precisa, enfim, ser
reconhecida de forma positiva na sociedade, precisa passar pelo crivo do outro, a fim de ter
uma representatividade. Precisa de um reconhecimento do outro para legitimar a sua
existência.

Essa necessidade de interpelação do outro para ressignificar sua própria existência e/ou
identidade é de acordo com Stuart Hall (2011), proveniente da crise identitária, pois, diferente
do que concebíamos no período Iluminista, a identidade não é fixa e inata e, sim, móvel e
constantemente construída, face as nossas relações e interpelações humanas. A identidade é
definida historicamente e não biologicamente. O sujeito pode possuir várias identidades e

30
As referências pessoais, profissionais e acadêmicas da escritora Marta Rodrigues foram apresentadas na 4º
seção deste trabalho no item 4.3 GABRIELA E OMO-OBÁ: NARRATIVAS DE PRINCESAS
99

ainda continuar, a todo instante, em busca dela. Tal com a menina da narrativa, que a todo o
momento tenta construir a sua própria identidade através do leitor, a quem ela interpela.

A menina não possui nome, o que é contraditório, pois, como afirma Ana Célia da Silva
(1995), é o nome quem primeiro nos identifica, humaniza e constrói nossa história, logo a
personagem da narrativa embora inexista por falta de nome, está buscando construir sua
própria identidade. Todavia é possível também compreender a ausência do nome da
personagem como uma forma de indicar que a menina poderia ser qualquer uma, inclusive o
seu leitor; entretanto se foi este o objetivo da autora, a mesma desconsiderou que a criança
(público alvo da sua obra) não possui criticidade o suficiente para compreender tal estratégia.

A menina, na trama, não se assume como negra, embora a tez da sua pele demonstre o
contrário; ela evoca a todo o momento que é fruto da miscigenação, pois, está sempre
relacionando sua pele a cor marrom, algumas vezes com o marrom escuro, mas, nunca com a
cor preta, afinal é preciso ter coragem para ter na pele a cor da noite.

A confusão dessa narrativa reside no fato da menina demonstrar seu intento em compreender
sua identidade, embora lhe falte coragem para assumi-la. Estaria ela, a seu modo, afirmando-
se negra quando adota o termo marrom escuro? Ou estaria buscando formas de atenuar o peso
da negritude adotando o termo pele marrom? Ou, ainda, todas estas indagações são
irrelevantes? Stuart Hall (2011) naturaliza toda esta desordem ao afirmar que: “A identidade
plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia”. (HALL, 2011, p.13).

A página inicial do livro mostra a menina negra entre vários lápis coloridos indagando ao seu
leitor que cor é a sua cor e se é possível encontrá-la?

Figura 9 - Menina qual é a sua cor?

Fonte: RODRIGUES, 2005.


100

A imagem nos remete a várias possibilidades, dentre elas a vida do negro na sociedade, que
nega, encurrala, apaga, marginaliza e destitui o negro de todos os âmbitos de empoderamento,
pois a menina negra desaparece em meios às cores, como se sua negritude justificasse seu
apagamento; talvez isso explique o fato de ela indagar se o leitor pode encontrá-la, se pode
enxergá-la em sua invisibilidade. A pergunta “que cor é a minha cor?” é também de caráter
afirmativo: a menina almeja que sua etnia seja pronunciada, pensada e reconhecida. Suscita
que seu leitor responda “negra” ainda que ser negra seja sinônimo de apagamento; essa
menina negra resiste em ser ela mesma, ainda que reproduza termos como “pele marrom”
comumente cristalizados em nossa sociedade.

A história narra a busca da menina em afirmar sua cor através do reconhecimento dela na
sociedade e, para tal, ela vai tecendo associações do seu tom de pele com elementos e objetos
diversos, como um meio de inserção no mundo, informando e indagando ao seu leitor sobre
sua etnia, traços e identidades.

 Minha pele é da cor das folhas de amendoeira no outono. Você pode me encontrar?
(RODRIGUES, 2005, p.4)
 A árvore mais linda da minha rua. Madeira da minha cama, da cor da minha cor. Onde
eu estou? (RODRIGUES, 2005, p.8)

Vide ilustração:

Figura 10 - Minha cor no mundo

Fonte: RODRIGUES, 2005.


101

A menina, ao fazer correlações da sua pele no mundo, se auto adjetiva como bonita,
mostrando a aceitação de si mesma ao enxergar a sua cor/etnia como a mais bela. Todavia, a
imagem remete, também, à solidão da menina negra olhando pela janela o mundo lá fora,
aguardando o momento em que realmente será inserida no âmbito social, quando será vista.

A menina anônima faz correlações dela com objetos, animais, seres inanimados e, por fim, ela
associa sua negritude à sua família, seus ancestrais, mostrando que a identidade é tecida por
muitas ramificações

Figura 11 - A família da menina negra

Fonte: RODRIGUES, 2005.

Brilhante, forte. O meu pai gosta de café


Pela manhã, minha mãe gosta com leite.
Marrom... escuro...
Cor da minha cor.
Você sabe onde eu estou? (RODRIGUES, 2005, p.10).

Na citação acima, é possível enxergar, novamente, o uso de um termo apaziguador da


identidade (cor marrom) como forma de fugir à afirmação da identidade negra, mas, também,
pode ser um indicativo das diversas tonalidades que concerne à pele negra, a fim de não criar
uma identidade totem (padrão igualitário) que enclausura os negros a serem todos iguais,
esquecendo o processo diaspórico que seus antepassados passaram.

Ainda nessa citação, podemos verificar que, quando a família da menina é evocada, é deixado
de lado as objetificações da negritude para elucidar um elo que, de fato, represente e ilustre
algo similar a si própria, pois a identidade se fortalece na representatividade.
102

Outro fator interessante na ilustração acima é a representação do feminino negro apresentado


em seu teor de subserviência, mostrando que, se o negro é visto como uma categoria inferior,
a categoria “menina negra” está contida dentro de uma categoria ainda menor. Vejamos que
na ilustração a mãe serve o café ao seu marido, seu olhar parece de insatisfação e lhe falta
atrevimento para mirá-lo na face. Esses mesmos olhos cerrados são esboçados na menina, que
caminha em direção à mesa trazendo o bolo.

A chamada nos impulsiona a evocar a necessidade de os homens negros amarem as mulheres


e meninas negras, demonstrar afetividade e/ou, ainda, reconhecer que elas têm direito ao afeto
e não somente ao trabalho braçal. A mulher negra foi naturalizada como aquela a quem se
destina o trabalho e a sexualidade e a mulher branca a quem se destina o amor, casamento e
afeto. A mulher branca é sempre o protótipo da liberdade e a mulher negra da escravidão. Se
na narrativa estivesse sendo apresentado um casal branco ou, ainda, um homem negro e uma
mulher branca, provavelmente a mulher branca estaria sendo servida, pois sua companhia
denota status e ascensão racial. Sua presença embranquece e, por isso, é sempre mais
valorizada.

No tocante à identidade forjada a partir da evocação da família, Nilma Lino Gomes (2002)
explica que se trata da ideia que um indivíduo faz de si mesmo e do outro, portanto, a
identidade só é obtida através do contraste ou conflito com o diferente, pois essa não se
constrói no isolamento, ela é negociada toda a vida através de diálogos internos e externos. À
luz desta percepção de Gomes (2002), podemos perceber que a personagem da trama faz esse
processo de interpelação com o leitor, haja vista que a todo tempo ela indaga se eles a vêem,
se a encontram, se sabem algo sobre ela, o que mostra de forma emitente a necessidade do
outro para consolidação de si mesmo.

Todavia, é necessário explicitar que, além dos olhares díspares, a identidade também é
interpelada por olhares similares (como o da família da personagem), que ressignificam o
indivíduo, pois a identidade caminha em junção com a necessidade de representatividade; já
que a sociedade anula a personagem, apaga, não sabe quem ela é ou onde ela está, fazendo-a
por todo o tempo reclamar visibilidade e representatividade. E, que representatividade maior
pode haver para uma menina do que sua família?
103

Figura 12 - Representatividade importa!

Fonte: RODRIGUES, 2005.

Martha Rodrigues (2005), embora mulher, negra e, provavelmente, alguém que almeja, com
esse livro, romper com alguns estereótipos, acaba por apresentá-los, porque não está isenta
das marcas de estereotipia que percorre todo o corpo negro que faz com que as escrituras
sejam rasuras, ora do que se sofreu, ora do que se almeja superar; por isso, é comum que
mulheres negras não escrevam como mulheres negras, pois, quando ela vai construir uma
narrativa, acaba evocando seu acervo de memórias contaminadas por representação de
mulheres e meninas negras subservientes.

Não sabemos ao certo se, ao trazer tais elementos conflituosos, Martha Rodrigues (2005)
estaria reproduzindo as marcas do seu passado e/ou estaria provocando o seu leitor com estes
liames. Entretanto afirmamos (novamente) que se foi este o objetivo da autora, a mesma
desconsiderou que a criança (público alvo da sua obra) não possui criticidade o suficiente para
compreender tal estratégia de variações subliminares.

No final da trama a autora nos informa que nessa roda de tons marrons, estão ela e o leitor
numa tentativa de informar que todo indivíduo é um pouco negro, devido à miscigenação
forçosa das raças. Esta passagem da narrativa pode denotar também o intento da autora em
embranquecer a menina ou evitar o preconceito com o discurso de que somos todos iguais,
híbridos, misturados.
104

Figura 13 - Roda de marrons

Fonte: RODRIGUES, 2005.

Doravante a narrativa, nos apresenta um mosaico de quadros com índios, portugueses,


holandeses, enfim, os colonizadores do Brasil, imigrantes, e dentre estes quadros está à figura
do índio e do negro, não o negro livre, o negro escravizado mostrando-nos que esta junção
formou o Brasil.
Figura 14 - Mosaico brasileiro

Fonte: RODRIGUES, 2005.

O mosaico apresentado pela autora constitui um Brasil dividido em suas representações: de


um lado um Brasil mestiço, colorido, onde o negro está imbricado, e do outro um Brasil que
não se mistura, um Brasil que se diz puro e que, obviamente, exerce poder sobre o Brasil que
se diz multirracial e multicolor.
105

Figura 15 - Faces do Brasil

Fonte: RODRIGUES, 2005.

A ideia romântica de Martha Rodrigues (2005) é a de que o Brasil se misturou de forma


harmônica e que, dessa mistura, surgiu um Brasil colorido e todas estas cores enfeitam a vida
das pessoas, fortalecendo a diversidade e o mito da democracia racial no Brasil, mostrando o
Brasil como o protótipo de Mãe gentil. Entretanto, indagamo-nos se o objetivo da autora não
seria inquietar o leitor com tais provocações? Seria o objetivo de Martha Rodrigues (2005)
mostrar seu intento de unificar o Brasil e seu povo? Propagar que vivemos o mito da
democracia racial, haja vista que existe mais de um Brasil? Com quantos lápis de cor se pinta
um país?

Figura 16- Brasil, um país colorido?

Fonte: RODRIGUES, 2005.

Essa obra traduz o caminho que os escritores tem feito em busca da sua voz literária, em
busca do encontro e resgate de si mesmo, sua história, etnia e identidade. O caminho ainda
está sendo percorrido; alguns estereótipos estão sendo desconstruídos e outros, infelizmente,
reproduzidos, mas é imperativo que continuemos enegrecendo caminhos literários a fim de,
106

encontrar nossa fórmula, nosso tom. Obras como Que Cor É a Minha Cor? são importantes
para ilustrar quão difícil é o debate dessas temáticas e como é importante fazê-lo.

Martha Rodrigues (2005) buscou inserir a literatura negra e sua obra de forma harmônica
dentro do miscigenado cânone brasileiro a fim de diminuir as distâncias entre quem escreve e
quem lê, além de ampliar o horizonte dos leitores.

O fato é que a literatura negra está dentro e fora do cânone brasileiro: está dentro porque se
utiliza da mesma língua e está fora porque não se enquadra no ideal romântico do espírito
nacional. É a voz das minorias e está empenhada em apontar o etnocentrismo que exclui o
negro do mundo das letras e em afirmá-lo como agente de arte e cultura, daí o caráter
marginal desta literatura.

Neste ponto, tornamos a afirmar que a literatura negra é a voz, a escrita, a experiência e a
representação das minorias e, dentro da minoria negra, é possível identificar outras camadas
minoritárias, tais como a mulher negra escritora e as personagens de meninas negras. Se a
história do homem negro sempre foi omitida, silenciada, distorcida, não contada, imagine a
história produzida por uma mulher negra que escreve uma literatura negra, comumente
considerada menor. A literatura infantil negro-brasileira é assim considerada por se destinar às
crianças, e, dentro desse universo infantil, destacamos um grupo ainda menor: o das meninas
negras.

Esse emaranhado de minorias, que podem ser empoderadas através da literatura infantil
negro-brasileira e/ou na literatura negro-brasileira, aponta a relevância desses cânones
forjados se consolidarem cada vez mais.
107

3 MÃOS NEGRAS ESCREVEM OUTRAS HISTÓRIAS

Eu, mulher, negra, resisto!


(Alzira Rufino)

3.1 DO SILÊNCIO À CANETA: A ESCRITA DA MULHER NEGRA NA LITERATURA


INFANTIL NEGRO-BRASILEIRA.

Um número considerável de obras infantis apresenta ao leitor um problema


aparentemente insolúvel (pode ser um monstro, um feitiço, um inimigo, um problema social,
uma enfermidade etc.) e ao longo da narrativa as lutas vão sendo tecidas para que um final
feliz seja escrito. A história não é diferente quando pensamos nos caminhos que as mulheres
negras percorrem para se tornarem e se afirmar como escritoras negras.

O ápice das desventuras (se é que se pode assim intitular) das mulheres negras foi o processo
escravagista que, conforme Schuma Schumaher e Érico Vital Brazil (2013), da segunda
metade do século XV até meados do século XIX, foram trazidas da África por volta de quatro
milhões de escravizadas dos mais diversos povos étnicos numa terrível caçada humana.

As mulheres eram capturadas em menor quantidade, pois não eram consideradas as “peças”
mais desejadas para os escravocratas e negociantes; eles preferiam os homens fortes para
demanda braçal. Quando não conseguiam comprá-los, optavam por mulheres de “peito
atacado e/ou peito em pé”: em outros termos, valia mais a negra que possuía o modelo de
corpo jovem e saudável que agradasse aos negociantes.

Durante a viagem no navio negreiro, por vezes, era consentido à mulher um tratamento
“diferenciado”, onde era permitido que elas viajassem no convés do navio, onde o ar
circulava. Esse benefício propiciava que as mulheres negras ficassem próximo aos
marinheiros, a quem serviam sexualmente de forma forçosa a qualquer momento. O problema
dessa questão é a retirada forçosa da mulher de seu habitat social, sua cultura, sua condição
108

humana, sua família e/ou comunidade, de seus valores e retirada, inclusive, de sua integridade
física. O problema é o grande estupro.

Schumaher e Brazil (2013) relatam, ainda, a história de uma embarcação de nome


Relâmpago, que aportou em Salvador-Bahia, em 29 de outubro de 1851. Nesta embarcação
estava uma jovem de 16 anos proveniente do reino Fon, no Daomé. Ela foi batizada de Eva e
descrita como mulher de cinco pés de altura, cara redonda, olhos grandes, nariz chato, beiços
revirados e pés pequenos. Além dos abusos do trabalho forçoso, Eva, assim como tantas
outras mulheres e meninas, foi subjugada sexualmente e depois levada para o mercado de rua
para ser comercializada por pessoas que iriam continuar a lhe dar o tratamento acima descrito.
Outro agravante: estas mulheres, ao chegarem às casas, fazendas dos seus “donos”,
despertavam a ira das senhoras brancas, que as enxergavam como concorrentes sexuais, haja
vista que seus maridos e familiares passavam a ter relações íntimas com elas.

Outra “retirada” que estas mulheres sofreram foi a de seus nomes, já que ao chegar ao Brasil
recebiam nomes cristãos, tornavam-se Marias, Evas e até Felicidade, para consolidar a ironia.
A mudança de nome simbolizava uma alienação de si mesmas e atestava que era a vontade de
Deus que elas fossem escravizadas. Algumas mulheres associavam seu novo nome ao seu
lugar de origem, utilizado como sobrenome. No entanto, mesmo em face de tantas perdas, não
perderam a memória nem a coragem de lutar para escrever outro capítulo nessa narrativa.

Embora a escravidão tenha sido oficialmente abolida em 13 de maio de 1888, Maria Lúcia de
Barros Mott (2010) fez um breve levantamento dos escritos de algumas mulheres negras no
período de escravidão. Embora a autora não dê informações desse processo de escrita, é
importante pensar que, em meio a esse caos, elas escreviam. De acordo com a autora, no
Brasil, o escrito mais remoto é de Rosa Maria Egípcia de Vera Cruz, nascida na África e
trazida para o Brasil quando tinha seis anos. Ela escreveu Sagrada Teologia do Amor Divino
das Almas Peregrinas, uma narrativa que possuía 200 páginas. Já Teresa Margarida da Silva e
Orta (1752) escreveu Aventuras de Diófanes. Além delas, a autora cita, também, Maria
Firmina dos Reis, considerada a primeira romancista do Brasil, que escreveu Úrsula em 1859,
escondendo-se sob o pseudônimo de Uma Maranhense.

Schumaher e Brazil (2013) informam, ainda, acontecimentos que talvez justifiquem o fato de
algumas mulheres negras escreverem no período escravagista. Dentre esses, podemos destacar
109

que, em 1721, o governador de Minas Gerais, Dom Lourenço de Almeida, recebeu ordem de
Dom João VI para que os filhos ilegítimos, da mulher negra com o homem branco,
aprendessem a contar, ler e escrever em português e latim. Obviamente não havia, na prática,
escravocratas que cumprissem tal lei.

Os mesmos autores indicam que neste período, no Maranhão, um negro de nome Cosme teria
fundado o Quilombo da Fazenda da Lagoa Amarela, onde se ensinava as crianças a ler e
escrever. Assinalamos, por acréscimo, que notícias de negros e negras alfabetizadas em
português em ou em suas línguas de origens não era tão incomum, a julgar, por exemplo, que
em 1835, a Revolta dos Malês, em Salvador-Bahia, reuniu negros islâmicos alfabetizados.

Em 1854, o decreto 1.331 proibiu o acesso à escola por escravizados e alforriados. Porém,
com a implementação da Lei do Ventre livre (que libertava os filhos de escravizados após o
cumprimento de 21 anos de trabalho), os filhos de escravizados poderiam ser enviados a
associação de instrução. A própria Maria Firmina, em 1880, fundou uma escola mista e
gratuita em São Luís, no Maranhão. Vale salientar que a pífia escolarização ofertada aos
negros era para educá-los ao exercício do trabalho subalterno, salvo alguns casos, como acima
citados, quando não cumpriam esse papel.

A história da produção literária da mulher negra no período marcado pela escravização é


repleta de vazios, silenciamentos e omissões, o que dificulta o acesso pleno a fatos e
narrativas. Muitos escritos se perderam e/ou suas autorias foram subvertidas. Muitas
memórias foram esquecidas e, mesmo com o término da escravidão, esse acervo ainda é de
difícil acesso.

Entretanto, não podemos cair no que Joel Rufino dos Santos (2013) intitula de “a lenda dos
arquivos queimados de Rui Barbosa”, que foi um abolicionista e Ministro da Fazenda no
primeiro governo provisório do Brasil (1889-1890), que, diante da eminência do término da
escravidão e dos reclames dos escravagistas por uma indenização devido à perda de suas
posses, julgou que quem merecia uma indenização eram os escravizados e não os
escravagistas. Então, Rui Barbosa ordenou a incineração dos registros oficiais contidos no
Ministério da Fazenda: papeis, livros, documentos de matrículas, documentos relativos à
escravidão, matrículas dos menores de idade, filhos livres de mulheres escravas e os libertos
sexagenários. O decreto de Rui Barbosa se justificava na necessidade de apagar o que ele
110

denominava como “mancha negra da escravidão”, que passou a envergonhar a moral do país,
mas, na prática, impediu que as indenizações legais fossem reivindicadas.

É impossível negar que esse ato ocasionou uma perda de informações históricas do povo
negro, mas, a maior parte dos documentos oficiais sobre a escravidão não estavam no
Ministério da Fazenda, e, sim, nos registros policiais, nas tribunas, igrejas, cartas e diários
particulares. Com isso, é possível desfazer a lenda de que toda a história do negro se perdeu
ou que o negro não possui história, apesar das dificuldades de acesso a tais materiais.
Sublinhamos novamente: o dado realista é que a ideia de reparação, antiga ou contemporânea,
foi altamente afetada pelo sumiço dos citados documentos.

As mulheres negras, mesmo invisibilizadas e condenadas ao silêncio, sempre produziram e


seus escritos provocam rasuras no discurso colonizador. Maria Firmina, por exemplo, em seu
romance Úrsula, denunciou a violência do sistema escravagista, questionou sua legitimidade e
pregou que a escravidão não extirpou dos negros suas qualidades e a coragem para lutar.

No avanço das décadas e das percepções sobre o Brasil republicano, há exemplos mais
contemporâneos que demonstram como algumas preocupações, embora atualizadas,
permaneceram. Nesse universo, um exemplo mais recente é Carolina Maria de Jesus, mãe de
três filhos, que estudou até o segundo ano primário e lia tudo que lhe caia nas mãos, catava
papéis e metal para manter sua família na favela do Canindé, em São do Paulo, e no lixo
encontrou o insumo (papel) para escrever sua obra.

No livro O Quarto de Despejo (1960), Carolina Maria de Jesus criticava a pobreza, a política,
o sistema precário de saúde brasileira, o racismo e a marginalização enfrentada pela mulher
negra na sociedade; afinal, a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, mas não assinou as carteiras
de trabalho da população negra. A autora criticava os impasses que uma mulher negra
enfrenta para se tornar escritora. Sua obra conta as agruras do morador da favela, intitulada
por ela como ”quarto de despejo da sociedade” (a senzala contemporânea), assim como a
forma era percebida pelo patriarcado. Tudo isso sem negar sua voz de mulher, mãe, negra,
sujeito e escritora:

(...) Eu escrevi peças e apresentava aos diretores de circos. Eles respondiam-me:


- É pena você ser preta.
111

Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rústico. Eu até
acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Por que o cabelo de
preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na
cabeça ele já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reincarnações, eu quero
voltar sempre preta (JESUS, 2007, p.65).

Percebemos, nesse trecho, que, mesmo diante da dificuldade de ascensão devido à sua
negritude, Carolina Maria de Jesus (2007) afirma que, se mil vidas tivesse, escolheria ser
negra.

Na obra Quarto de Despejo, a autora demonstra o que a possibilidade de escrita representa


para a mulher negra: um lugar de luta, insubmissão, protesto e força. A escrita negra é a
reversão de uma grafia que outrora foi estigmatizada para uma grafia de libertação:

(...) Dia 1 de janeiro de 1958 ele disse-me que ia quebrar-me a cara. Mas eu lhe
ensinei que a é a e b é b. Ele é de ferro e eu sou de aço. Não tenho força física, mas
as minhas palavras ferem mais do que espada. E as feridas são incicatrizáveis
(JESUS, 2007, p.49).

Essa experiência de conhecer as mazelas impostas devido à sua cor e, mesmo assim, afirma-se
negra e gostar de ser negra, acreditamos ser mais facilmente compreendida por uma negra.
Nesta pesquisa enfatizamos a importância do protagonismo feminino na escrita literária
infantil (visibilidade dos textos escritos por mulheres negras) e a representativa da menina
negra. Considerando que a mulher negra possui a experiência passada de menina negra, a
experiência presente de mulher negra e o desejo futuro de mulheres e meninas negras. Ela
conhece os estereótipos que a menina enfrenta, conhece as diferenciações dessa infância e as
discriminações que a criança sofre. Defendemos a bandeira de que essa literatura tem um
caráter diferenciado na voz de mulheres negras. Esse protagonismo é considerado por muitos,
como produtor de textos militantes, mas, afinal, o que queriam que as mulheres negras
escrevessem depois de arrancar as mordaças de sua boca?

Vale salientar que, embora defendamos o protagonismo negro com um recorte de pesquisa,
não ansiamos, com isto, descredibilizar a escrita de mulheres brancas representando as
meninas negras, afinal o ato de escrita literária também ganha significações quando o autor se
desloca e tenta compreender o outro, problematizar o outro, num processo expressivo de
alteridade. Também não pretendemos afirmar que a melhor representação da menina negra
repousa nos textos escritos pelas mulheres negras.
112

Compreendemos a precariedade da representação, sua fragilidade e/ou impossibilidade de


descrever, falar e representar as meninas negras de maneira que atenda os anseios de todo o
coletivo feminino negro. Defendemos o protagonismo negro (escrita negra/ lugar de fala e
produção negra) numa tentativa de dar visibilidade a um grupo com maior dificuldade na
produção e circulação de suas obras e, também, por enxergarmos as possíveis similaridades
(de experiência, história, estética, cultura etc.) entre menina e mulher negra.

Na tentativa de enxergar (sem qualificar) as diferenciações representativas das meninas


negras, citamos as obras de Lia Zatz Tenka, Preta, Pretinha (2007), e a obra de Neusa Baptista
Pinto, Cabelo Ruim? – A história de três meninas aprendendo a se aceitar (2007). De um lado,
temos uma escritora branca abordando a solidão afetiva da menina negra, um corpo que
possui inclinações, simpatia pela temática negra e, do outro, temos uma escritora negra
narrando o enfrentamento da menina negra face ao estereótipo de sua estética, seu cabelo; um
corpo negro que escreve sobre uma situação que lhe é corriqueira, um enfrentamento diário.

Não queremos, com isso, desmerecer e/ou exaltar a literatura de uma escritora em detrimento
da outra, ou, ainda, determinar quem deve escrever narrativas negro-centralizadas. O objetivo
é, apenas, mostrar que corpos diferentes possuem experiências diferentes e estas, por sua vez,
produzem textos diferentes.

A obra Tenka, Preta, Pretinha (2007), de Lia Zatz, narra a história de uma menina negra que,
apesar de querida por todos e ser uma espécie de “casamenteira” entre suas amigas, percebe
que ninguém se interessa por ela afetivamente e começa a questionar se isso se deve ao fato
dela ser negra.

A narrativa mostra a solidão da menina/mulher negra, o enclausuramento afetivo que lhe é


imposto devido à sua cor. A menina conversa com sua mãe (recorre ao saber ancestral) sobre
a situação que vem enfrentando e a mesma tranquiliza sua filha, afirmando que isso também
aconteceu a ela, que ela foi a última entre as suas amigas a ter um namorado, mas que superou
a situação. A mãe normaliza a solidão da mulher negra e, por fim, muda as vestimentas e alisa
o cabelo da sua filha. A nova aparência deixa a menina feliz. A mãe muda a imagem da filha
para que ela alcance o que lhe falta: um laço afetivo com alguém do sexo oposto.
113

Todavia, para a menina tentar despertar tal sentimento, foi necessário, assim como a
Cinderela, embranquecer. Lia Zatz (2007) cria um simulacro de beleza para Tenka através da
adoção de uma estética branca, dando a entender que se tornar bonita é adquirir os signos
brancos e, somente através deles, Tenka poderá ter êxito no que almeja. É possível
compreender, também, que a mãe negocia a identidade da filha, o que comumente é feito
pelas pessoas: negociar um elemento para o alcance de outro.

O livro Cabelo Ruim? – A história de três meninas aprendendo a se aceitar (2007), de Neusa
Baptista Pinto, conta a história de três garotas negras que, embora distintas, descobrem que
possuem cabelos parecidos: todos crespos. Elas enfrentam discriminação na escola por conta
de seus cabelos. Uma das meninas chega a afirmar que, assim como os demais alunos, ela
também não gosta deles, o considera feio, e, por causa disso, é repreendida por suas amigas.
Uma delas assegura que não acha seu cabelo feio, embora ele necessite de produtos químicos
para ficar “ajeitado”. Já a outra menina diz que, embora seu cabelo seja bonito, deve ficar
amarrado para não ficar volumoso.

A aceitação dos cabelos ocorre quando as meninas se dão conta de que, em diferentes
contextos, são os cabelos lisos que recebem destaque e valorização. Saturadas desta
representação, elas compreendem que é chegado o momento de reescrever essa história.

A narrativa segue expondo que, após as aulas, as meninas passaram a se encontrar para
explorar seus cabelos e todas as suas possibilidades, realizar penteados, tecer elogios umas às
outras, contemplar a beleza de seus fios. Ao final da trama, elas percebem que as práticas de
cuidado e zelo capilar mudaram sua história sem necessitar mudar o cabelo, foi preciso,
apenas, mudar o próprio olhar sobre si. Uma espécie de renascimento, um tornar-se negra. Na
resolução do problema nessa narrativa não há negociações, a quebra do estereótipo em torno
da estética negra denota uma alavancagem na autoestima dessas meninas, uma mudança de
ordem social e relacional.

Nessa obra, é possível identificar o poder simbólico da palavra, que faz com que a menina
reverta sua percepção inferiorizada sobre si mesma, deixando claro que a identidade, mesmo
construída a partir do conflito com a diferença, pode ter uma descrição afirmativa. Se, por
ventura, a menina negra só tivesse contato com tramas cuja resolução residisse em
114

negociações e mudanças no seu corpo, isso poderia impelir que ela assumisse os traços
identitários do outro e/ou rejeitassem a sua própria identidade.

Essa diferença pode ser sintetizada numa citação de Cuti (1987) apud Maria Lúcia de Barros
Mott (2010), em entrevista publicada na revista Afinal (13 jan. 1987): “a experiência interior
de um negro, nenhum branco tem”.

Embora conheçamos as significações do deslocamento literário, é curioso o fato dessas


mulheres brancas, em sua maioria, não pesquisarem a representação da menina branca na
literatura; talvez por que a brancura seja algo considerado normal, talvez para furtar o
protagonismo negro do cânone literário infantil negro e feminino ou, ainda, como afirma bell
hooks31 (2013), talvez por que ainda não entenderam criticamente o sentido de ser branca:

Curiosamente, a maioria das brancas que escrevem teorias feministas focadas na


“diferença” e na “diversidade” não tomam a vida, o trabalho e as experiências das
mulheres brancas como temas de sua análise da “raça”, mas enfocam, ao contrário,
as mulheres negras ou mulheres de cor. Mulheres brancas que ainda têm de entender
criticamente o sentido do “ser branca” em suas vidas, a representação do ser branco
em sua literatura, a supremacia branca que determina seu status social põem-se
agora a explicar a negritude sem questionar criticamente se sua obra nasce de uma
postura antirracista consciente. Aproveitando as obras de mulheres negras, obras que
no passado eram consideradas irrelevantes, elas agora reproduzem os paradigmas da
serva-senhora em sua atividade acadêmica (hooks, 2013, p.140).

As mulheres brancas têm produzido seus escritos representando e influenciando um grupo


específico, o público infantil que recebe estas narrativas como valores absolutos, assimilando-
os. Conforme bell hooks (2013), elas constroem suas narrativas sem a preocupação em saber
se as mesmas produzem discursos de combate ao racismo (principal elemento caracterizador
da literatura infantil negro-brasileira).

Todavia, é necessário questionar se alguém a quem o racismo não afeta poderia tecer um
discurso consistente para sua desconstrução? Se essas mulheres brancas ainda precisam
compreender o sentido de ser branca em suas vidas, como poderia aviltar essa demanda para
se lançar em narrativas sobre a negra? Alguém que nem ao menos se conhece (ou tenta se

31
bell hooks é o pseudônimo de Glória Jean Watkins, escritora norte-americana que adotou este nome como
uma homenagem aos sobrenomes da sua mãe e avó. A autora pede para que seu nome seja grifado em letras
minúsculas, pois, julga que em seus livros o mais importante é o conteúdo, a substância e não ela mesma.
115

conhecer) poderia representar o outro? Estariam elas tentando se entender a partir das
diferenciações do outro?
Tornamos a afirmar que não objetivamos impedir (nem poderíamos) que as mulheres brancas
escrevam/representem meninas negras, pois as mulheres negras também fazem o contrário em
suas obras infantis quando, por exemplo, as meninas negras contracenam com meninas
brancas. O objetivo é refletir sobre os discursos dessa literatura, problematizar. Afinal, mais
importante do que responder é perguntar.

bell hooks (2013) critica, também, o fato de que as mulheres brancas agora se apropriam das
obras de mulheres negras e suas temáticas, antes consideradas irrelevantes, para assim
reproduzir paradigmas da serva-senhora. Este exemplo é possível ser identificado na premiada
obra A Bonequinha Preta, publicada em 1938 por Alaíde Lisboa de Oliveira.

A narrativa conta a história de uma menina chamada Mariazinha, que possui uma boneca
preta como carvão. A trama descreve todo o cuidado que a menina tem com a boneca, dando-
lhe comida, dormindo com ela, costurando-lhe roupas e indagando se a boneca gosta dela,
recebendo sempre respostas afirmativas. Certo dia, Mariazinha precisa ausentar-se e ordena
que a boneca preta fique quieta e não faça “artes”. Mas, ao se ver sozinha na casa, a boneca
escutou um barulho de um gato que passava na rua, encostou a poltrona junto a janela,
pendurou-se para ver o gato e acabou caindo. Passa por alguns apuros na rua, mas, ao final da
trama, Mariazinha a reencontra e não reclama com a boneca, perdoando-a.

À luz das reflexões de bell hooks (2013), podemos ver nessa obra a relação serva-senhora, na
qual a figura do corpo negro é subjugado a uma pessoa branca. Nessa trama, a menina é
descrita como boazinha, a boneca preta é desobediente. A branca possui uma boneca preta
que, pejorativamente, possui uma cor de carvão; tem afeto pela boneca, mas exerce poder: a
imagem negra aparece objetificada na figura do brinquedo, cuja dona é uma pessoa branca.
Como já mencionado, em outra parte da narrativa, vemos a menina pedindo à boneca que não
faça “artes”, ou seja, que não aja de forma insensata. A boneca preta, que está associada a
insubordinação, desobedece sua dona e por isso, passa por infortúnios (castigos).

Se o livro A Bonequinha Preta é um exemplo da relação senhora-serva, vejamos agora uma


obra onde um dos objetivos é a desconstrução desta relação: trata-se do livro A Ginga da
Rainha, publicado em 2005 pela editora Mazza. A autora, Iris Amâncio, é mulher, negra,
116

licenciada em Letras pela Faculdade Santa Marcelina, mestra em Literaturas de Língua


Portuguesa pela PUC (Pontifícia Universidade Católica) de Minas Gerais e doutora em
Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atua como professora de
Língua Portuguesa também na PUC de Minas Gerais e é Coordenadora de Extensão na
mesma unidade.

A narrativa apresenta aos leitores um pouco da história da Rainha Njinga Mbande 32 (nascida
na Angola em 1582) através do diálogo entre uma menina e sua empregada; inicialmente.
ambas não possuem suas origens étnicas reveladas na história. O livro apresenta, também,
gravuras do Museu Histórico de Angola.

O fato de Amâncio (2005) não identificar inicialmente a origem étnicas das personagens
(menina x empregada) julgamos ser de forma intencional, a fim de que seu leitor identifique
suas origens étnicas no desenrolar da trama, a qual se inicia com o grito da menina Aninha
perguntando a sua empregada Maria se tem comida pronta.

Maria já aguarda a menina de segunda a sexta com a comida pronta sobre a mesa, sua tarefa
era cuidar dela nesses dias, garantindo que as recomendações da sua mãe fossem cumpridas,
dentre elas: almoçar, estudar, descansar, brincar etc.

O diálogo inicial não demarca afetividade e, sim, uma relação de prestação de serviço e
clientela, onde os espaços sociais ficam bastante demarcados e segregados: o lugar da senhora
e o da serva.

- Troca de rôpa e vem almoçá, Aninha! Vê se obedece sua mãe!...


- Não precisa falar, Maria. Eu já sei...Todo dia é sempre a mesma coisa: chegar,
trocar de roupa, almoçar, descansar um pouquinho e fazer o para casa logo depois...
- Eu sei que cê faz tudo direitim, mais minha obrigação é falá.
- Tudo bem, Maria. Não esquenta, não...
Embora Maria seja jovem – tem só 39 anos – não frequentou escola por muito
tempo. Aninha até sabe que ela escreve outras coisas além do próprio nome... Às

32
Rainha Njinga Mbande, também conhecida como Ngola Ana Nzinga Mbande, Rainha N'Ginga, Rainha
Ginga, rainha Nzinga, Nzinga I, rainha Nzinga Ndongo, Nzinga Mbandi, Nzinga Mbande, Jinga, Singa, Zhinga,
Ginga, Ana Nzinga, Ngola Nzinga, Nzinga de Matamba, rainha Nzingha de Ndongo, Ann Nzingha, Nxingha e
Mbande Ana Nzingha, nascida em Nzinga, foi rainha de Matamba e Angola, viveu de 1581 a 1663 e representa a
resistência à ocupação do território africano pelos portugueses que lá aportaram para o tráfico de escravos.
Conquistou o reino do Ndongo aos 41 anos, foi batizada com o nome de Ana de Sousa. Jinga é uma figura
heroica de resistência contra o colonialismo português; inteligente com habilidades políticas e de negociação,
uma líder nata.
117

vezes, Maria fica com vergonha, achando que fala tudo errado. Sua baixa
escolaridade, porém, nunca a impediu de conversar com quer que fosse. As duas,
por exemplo, ficavam no maior papo todo dia, até a hora de Aninha fazer o dever
(AMÂNCIO, 2005, p.10).

A menina da trama deveria obedecer à mãe e não a empregada e, a partir destes indicativos,
intuímos que a trama nos remeterá ao distanciamento entre menina/senhora e a empregada
que, provavelmente, seria narrada como, inferior em vários aspectos na trama, diferente da
menina que seria possuidora de uma cultura letrada. Já Maria seria o protótipo da ausência de
cultura que tanto a envergonha.

Para compreender melhor as induções feitas ao texto, será necessário, portanto, remeter ao
contexto ao qual se refere Terry Eagleton (2002) na reconceituação da palavra “cultura”, cujo
transcurso chega à contemporaneidade, ao retomar um dos mais perspicazes pensadores do
século XX, Raymond Williams ([1953] 1976). Este, informa-nos que, ainda no século XIX, a
cultura passou a ser entendida como confinada a uma pequena e privilegiada fração de
pessoas, reduzida gradualmente ao domínio das artes, significando um fator de distinção
social, inclusive, promovendo um distanciamento entre a cultura e a experiência cotidiana,
bem como a dissenção dessa em relação à política e às disputas sociais.

Se tornou sintomático o uso da palavra “cultura” para designar o território da instabilidade, do


conflito e da disputa, conforme afirma Eneida Leal Cunha (2009), que reconhece igualmente a
dificuldade na diluição das fronteiras entre a “alta cultura” e a “baixa cultura”. Do ponto de
vista do valor cultural, principalmente, a hierarquia prevalece e se manifesta em diversos
planos da vida social.

Logo, julgavámos conseguir ver esse “rebaixamento” na figuração do imaginário da “casa


grande” e da “senzala”, o qual toma as personagens da obra A Ginga da Rainha em suas
diferentes ocupações e atividades. Enquanto, na casa, Aninha ocuparia um lugar de prestígio
na sala, Maria cozinha e mal consegue se expressar, porém a trama nos surpreende ao mostrar
que a menina, durante toda a trama, mesmo após realizar a sua refeição, permanece no âmbito
da cozinha conversando e interagindo com sua empregada, desconstruindo, portanto, a
representação arraigada comumente realizada pelas escritoras brancas pois, como afirmou bell
hooks (2013), normalmente, quando a mulher branca escreve, ela fortalece a segregação entre
brancas e negras.
118

Posteriormente, a obra nos informa que Maria gostava de ouvir notícias pela Rádio Itatiaia,
enquanto arrumava a casa, acompanhava de tudo: notícias, fofocas, brigas etc. Já Aninha
gostava de dialogar sobre o que acontecia em sua escola, brigas e “frescuras infantis” e as
lições que aprendia. Naquele dia, em particular, quis contar à Maria um pouco do ocorrido em
sua aula de Literatura.

- Maria, você não sabe da maior... Minha professora mandou a gente sentar em roda,
porque ela ia contar uma história muito interessante. Todo mundo reclamou, é claro,
principalmente os meninos... Afinal, nós estamos na 5º série e já passamos da fase
de fazer perninha de índio!
- Que bobage, Aninha. Isso num é vergonha pra ninguém. Ocês num sabia que é um
custume?!... Lá na roça, quando ia a famía intera pra casa da Vó Sinhana, ela
mandava nóis sentá em vorta dela e danava a contá um monte de história antiga. Eu
gostava mêrmo era de umas que falava de bicho e de monstro que aparecia nas
fazenda da redondeza.
- Sabe que a professora falou a mesma coisa?! Ela disse que isso é muito comum
entre o pessoal do interior e que é tradicional na África. Como a história era sobre
uma rainha angolana, ela logo explicou que sua intenção era experimentar com a
gente esse costume de lá. Legal, né?
- Também acho. Mais conta pra mim o que ela falô sobre essa rainha... (AMÂNCIO,
2005, p.14).

A obra faz evocação à forma de contação de histórias africanas, à influência da oralidade e à


transmissão de narrativas de forma geracional e, em seguida, a menina apresenta-nos mais
detalhes sobre a sua recém-descoberta rainha Jinga: geniosa, inteligente, cheia de ginga,
participava ativamente das discussões com os adultos e tinha pavor de injustiças. E Aninha
estava tão maravilhada diante das informações dessa rainha negra e empoderada que teceu o
seguinte diálogo com sua empregada.

Adivinha qual era o nome dela?


- Jinga, uai?!...
Aninha ficou irritada com a resposta de Maria, mas logo percebeu que ela mesma
não havia perguntado direito.
- Não, Maria. Olha só, eu me esqueci de te explicar uma coisa...
Naquele tempo, depois do contato com os portugueses e dos primeiros batizados, os
líderes das tribos africanas passaram a ter dois nomes: um é em língua nativa e outro
em português. Sabe qual foi o segundo nome dela?
- Maria, é claro! Ela num era preta? Vó Sinhana sempre falô pra a gente que Maria é
nome da maioria das muié preta da roça.
- Nossa, Maria, não é sempre assim, não. Além do mais, você nem sabe que a gente
não deve falar preta... Minha professora deixou bem claro na última aula que preto é
cor de coisa e negro é que é raça.
- Oiá só, que coisa! Agora tudo é a tar de professora! Mais, afinar, qual era o nome
da poderosa?
- Só podia ser Ana, igualzinho ao meu!
- Hum... Mitida!
- Já pensou? Eu tenho nome de rainha angolana! Ela era Ana de Sousa e eu sou Ana
Carolina Ribeiro de Souza!
- E ocê já gosta bem de andá cum essas trancinha no cabelo. Aí que fica cum jeito de
africana mêrmo! (AMÂNCIO, 2005, p.18,19 e 20).
119

Nesse momento da trama, as identidades são reveladas e tanto a menina quanto a empregada
surgem negras na história. Entretanto, ainda que existam as diferenças, inclusive de classe,
que podem causar distanciamentos, as segregações étnicas entre menina e empregada são
desconstruídas, pois, durante toda a narrativa, é possível vermos as duas sempre tecendo
diálogos, trocando informações e compartilhando o mesmo espaço.

Maria contava para a menina que, a julgar pela série, deve ter em média 10 ou 11 anos, as
notícias que ouvia na rádio, as brigas dos vizinhos, as lembranças da sua filha de seis anos, até
os problemas com seu marido e a sua bebedeira, esquecendo, inclusive, que Aninha não
passava de uma menina; esta, por sua vez, contava suas experiências escolares e
compartilhava com a empregada seus saberes e permitia que Maria lhe contasse os dela, sem
fazer juízo de valor ou considerá-la inferior.

O fato de Maria possuir baixa escolaridade não foi um empecilho para construir uma amizade
com a menina que, após a aula, passava mais tempo na cozinha do que em lugares
considerados de maior prestigio na casa, tudo para compartilhar da companhia de Maria,
mostrando-nos que, quando a mulher negra escreve, ela busca desconstruir os lugares
demarcados de serva e senhora.

O interessante na trama é o fato de a autora esconder-nos, inicialmente, a etnia das


personagens, porém, a julgar pelos elementos comumente associados aos negros como baixa
escolaridade, variação linguística diferenciada e profissão sem status, traçamos o perfil da
empregada Maria como negra antes mesmo da sua negritude ser revelada, mas a personagem
Aninha é inteligente, possuidora de empregada, e a ela facilmente atribuímos a brancura da
ascensão social, mas, uma vez revelada sua surpreendente negritude, relembramos a
concepção de Kabengele Munanga (2008) que afirma que o dinheiro compra tudo, até o status
de branco para o negro.

Entretanto, Iris Amâncio (2005) provoca-nos ao informar que Aninha não estava interessada
em se relacionar com a brancura, mas em afirmar sua negritude, mostrando que, embora
difícil, é possível o negro ascender socialmente sem negar sua etnia, descrita na obra através
da ênfase à estética capilar (as tranças da menina), que é valorizada e referenciada na
narrativa.
120

Além disso, a autora menciona a importância da representatividade que abarca mulher e


menina simultaneamente, pois ambas, Ana e Maria, estão em êxtase por conhecer a história de
uma heroína negra, tal como elas. A empolgação e a conversa sobre os feitos da rainha se
estende tanto que Aninha só se retira da cozinha para fazer sua lição de casa.

É importante frisarmos a relevância da representatividade, pois, Segundo Marina Luiza Horta


(2010) a falta de representação da criança negra faz com que o processo de branqueamento as
atinja, o que culmina na deturpação das suas identidades.

Durante toda a narrativa imagens do Museu Histórico de Angola são apresentadas, e ao final
da trama, são exibidas fotos e fatos da rainha Nzinga Mbandi, um pouco da sua historiografia
e seus feitos. Dentre as imagens destacamos esta:

Figura 17 - A rainha Ginga

Fonte: AMÂNCIO, 2005, p.29.

A obra traduz a importância de conhecermos a historiografia do negro, suas lutas e


contribuições, a fim de conhecermos nossas origens e linhagem, elementos que conectam os
negros em diversos locais, períodos e contexto social. A história de resistência do povo negro
une as classes sociais, comumente segregadas, representadas pelas personagens Ana e Maria
que, embora separadas socialmente, são unidas pela mesma identidade étnica.
121

A escola também aparece como um local fomentador de conhecimentos e fortalecimentos de


identidades. Como já citado, a identidade é interpelada a todo tempo, ela é construída ou
abalada constantemente através das relações sociais que ocorrem, sejam na escola, na família,
ou em qualquer espaço social. A escola, por exemplo, é um local que interfere na construção
identitária, pois lá é onde se permeiam diversos olhares que se confrontam e, se a criança
desconhece suas origens, pode ter pouca autoestima e sucumbir às representações étnicas e
raciais alheias.

Nilma Lino Gomes (2002) afirma que na escola circundam diferentes percepções sobre o
pertencimento racial, cultural e histórico, sendo assim, é sua função encontrar diversas
maneiras de tratar as semelhanças, igualdades, identidades e alteridades que ali perpassam. “O
olhar lançado sobre o negro e sua cultura, no interior da escola, tanto pode valorizar
identidades e diferenças quanto pode estigmatizá-las, discriminá-las, segregá-las e até mesmo
negá-las” (GOMES, 2002, p.39).

A obra de Alaíde Lisboa (1938), em contraponto com a obra de Iris Amâncio (2005), nos
mostra que o processo de construção dos textos de mulheres negras e brancas é distinto. As
mulheres brancas, por exemplo, ignoram a relativa ausência das vozes de mulheres negras;
elas acreditam que estão mais conscientes do racismo, enquanto que as negras acreditam que
pouca coisa mudou (hooks, 2013), elas ainda exercem poder, até as suas necessidades para
tornar-se uma escritora denotam poder, se comparadas à condição de produção de texto das
mulheres negras.

Virginia Wolf (2014) problematizou o que uma mulher precisa para escrever: dinheiro, um
espaço próprio e um teto todo seu. A autora questiona, inclusive, o que as mães fizeram com
suas vidas de modo que suas filhas não possuíam herança ou algo que lhes dessem autonomia
de ser e fazer o que quisessem: “O que nossas mães ficaram fazendo que não tiveram riqueza
nenhuma para nos deixar? Retocando a maquiagem? Olhando vitrines? (...) mas, se for
verdade, sua vida feliz e esbanjadora deixou pouquíssimos traços de deleite em seu rosto”
(WOLF, 2014, p.35)

Para Wolf (2014), se as mães tivessem deixado dinheiro, suas filhas poderiam discutir sobre
qualquer área do saber e produzir seus escritos, mas depois, ela recorda que inútil seria tal
122

feito, pois, somente no final do século XIX, no Reino Unido, as mulheres casadas adquiriram
o direito de serem proprietárias legais do dinheiro que ganhavam e/ou do seu próprio dinheiro.

Muitas são as indagações de Wolf (2014) sobre a condição do homem e da mulher, por que,
por exemplo, elas bebem água e eles bebem vinho? Por que o homem vive numa situação de
superioridade e as mulheres de subserviência? A autora chama atenção, também, para a
quantidade de livros que são escritos por homens retratando as mulheres, refletindo sobre
essas representações.

É importante notar que as necessidades de produção de escrita que Virginia Wolf (2014)
descreve são para as mulheres brancas, haja vista que a mulher negra não poderia sequer
vislumbrar a possibilidade de ter posses em sua família, um teto e um tempo de ociosidade
produtiva. A julgar por Carolina Maria de Jesus (2007), que tudo o que possuía era luta,
vontade, pobreza e um quarto de despejo (casa na favela) para escrever. Os negros, em tese,
não possuíam nada e desse nada talvez insurja seu texto, um texto que reclama, que protesta,
um texto que assim como a Boneca Preta, se insubordina.

Conceição Evaristo (2007) menciona que a escrita negra é um ato de insubordinação.


Historicamente, não fomos formatados para as letras e, sim, para sermos representados por
elas, normalmente, da pior forma possível. Como escrever é se rebelar através das palavras,
essa insubordinação fica evidente até mesmo quando um texto fere as normas culta da língua
(tal como os textos da escritora Carolina Maria de Jesus), ou quando seu discurso objetiva
contornar todo o rumo da historia. Como Evaristo (2007) afirma, a escrita da mulher negra é
produzida para incomodar os da “casa grande” em seus sonos injustos.

Todas estas afirmativas e exemplificações textuais não objetivam construir um panorama


cronológico onde dataríamos as produções de mulheres negras e brancas na literatura infantil,
mas sim enfatizar que mulheres negras e brancas produzem textos diferentes, pois possuem
experiências diferentes. A escrita da mulher negra ao produzir literatura infantil negro-
brasileira é diferente, pois a mulher negra traz no corpo a negritude e a experiência do racismo
e usa este corpo para destecer os estereótipos. Repetimos: o objetivo desta diferenciação é
afirmar a importância do protagonismo negro na construção da própria história, afinal, como
afirma Férrez (2005), é importante mudar o foco, e tirar você mesmo a sua foto.
123

Defender a autoria negra, endeusar o protagonismo é dar ao negro o direito de falar sobre si,
se representar e/ou representar seu coletivo. A escrita negra cria um contra discurso, uma
contra ideologia e sua produção se torna mais patente no começo do século XXI quando, de
forma mais latente, as mulheres se refugiaram no imaginário, na insubmissão da fantasia,
procurando reinventar seu papel no mundo (FREITAS, 2012).

Maria Consuelo Cunha Campos (2010) afirma que, no Brasil, o período contemporâneo,
especificamente o ano de 1978, em pleno regime ditatorial, é duplamente significativo.
Primeiro, devido à luta pela igualdade racial (nesse ano é fundado o Movimento Negro contra
a Discriminação racial), depois, por que em meio à luta pela visibilização e valorização da
literatura negra brasileira, é criada a série literária Cadernos Negros, tornando assim a
contemporaneidade um momento efervescente de luta e produção, que se intensifica à partir
de 1980, com a circulação de vozes comprometidas em reconstruir trajetórias marcados por
esquecimentos provenientes do discurso hegemônico. O momento torna-se profícuo para
elaborações de outras memórias coletivas contrárias à estereotipia que configurou o negro nas
histórias.

A literatura não é para as mulheres negras uma mera transgressão das leis e do sistema, que
lhes proibiam acesso à criação artística, é mais do que isso, é um território de liberdade
clandestina, uma saída secreta da clausura da linguagem e do pensamento masculino,
machista, sexista, estereotipado e racista que as descreviam. Apenas desabafo? Militância?
Literatura infantil engajada, focada apenas nas temáticas negra? Não, a literatura infantil
negra produzida pelas mulheres negras é um registro do seu inconformismo, é a descrição da
sua luta, é um palimpsesto, uma reescritura da produção literária eurocêntrica, canônica,
masculina, racista e estereotipada.

A literatura negra é o resultado de um corpo marcado pela cicatriz histórica da opressão


escravagista, de um psiquismo que se fez cultura e que, através da escrita, procura maneiras
de falar de si mesma e grita formas inovadoras de estar e fazer. A literatura negra é uma fenda
em um grande muro.

A escrita da mulher negra tenta representar um coletivo de mulheres/meninas negras, é a


escrita de um todo significativo, pois, quando a mulher negra escreve, ela o faz também por
aquelas que nos séculos anteriores e, até mesmo nos dias, atuais tiveram sua cultura
124

silenciada. Quando a mulher negra escreve, ela pensa na sua mãe, irmã, amiga, vizinha, seu
povo, nas meninas. Conceição Evaristo publicou um poema intitulado Para a Menina, nos
Cadernos Negros, volume 21, no ano de 1998, que reafirma o que acima fora dito ao apontar
que ela sonha com os dias da menina e a vida lhe surge grata por poder descruzar as tranças e
passear nas veias de caminhos, esperança.

Todavia, afirmar a importância do protagonismo negro não significa que mulheres negras e
brancas devem seguir separadas socialmente e literariamente, significa que, embora elas
possuam experiências isoladas, devem seguir unidas para superar outro mal que,
historicamente, as tem suplantado: o patriarcado. Este pode ser visto, inclusive, no inocente
texto literário infantil.

Vejamos a obra Pretinha de Neve e os Setes Gigantes (2010), de Rubem Filho. A narrativa
conta a história da princesa negra Pretinha, que mora em um castelo na África, numa
localidade que cai neve, daí o nome da obra. Pretinha vive infeliz, pois se sente sozinha no
castelo sem ter com quem brincar e a sua mãe, uma bela rainha negra, passa o dia ocupada,
cozinhando, fazendo doces, lavando os pratos e servindo o rei. Ela ocupa um alto cargo, mas
exerce uma função contrária.

O rei, que possui voz de trovão, se tornou rei devido ao matrimônio e, mesmo assim, detém
todo o poder. A narrativa apresenta uma inversão confusa de valores.

Pretinha passa boa parte do seu tempo na cozinha (lugar quente e historicamente subalterno)
perguntando ao tacho de cobre se existia alguma menina mais solitária do que ela. Um dia, o
tacho respondeu para a menina ter paciência, pois os adultos têm cada vez menos tempo para
as crianças. Certa vez, já cansada da sua solidão, a menina resolveu fugir do castelo. Colocou
a capa vermelha, emprestada do clássico Chapeuzinho Vermelho, e foi conhecer o bosque,
local mais quente. No seu trajeto sentiu fome, avistou a casa onde residiam setes gigantes,
entrou, se alimentou e dormiu. Pretinha e os setes gigantes se tornaram amigos e, na casa
deles, aprendeu a brincar, diferente do conto clássico da Branca de Neve, no qual a princesa
aprendia a realizar tarefas domésticas que a prepararam para o enlace matrimonial do final da
trama.
125

Enquanto Pretinha se divertia, sua mãe, a rainha, sofria com a ausência da sua filha. Até o rei
considerava o castelo triste sem Pretinha e, então, resolveu ir buscá-la, se desculpou com
menina, prometeu mudar e pediu que ela retornasse para casa. Pretinha perdoa o rei, mas fica
triste por ter que se separar dos seus novos amigos e voltar para o castelo frio. Os gigantes
sugerem ao rei construir outro castelo para eles no bosque, para que se tornem vizinhos.
Assim é feito e todos os domingos eles se reúnem para um agradável almoço.

A história apresentada acima objetivava recontar o clássico conto maravilhoso da Branca de


Neve e os Setes Anões, dos Irmãos Grimm, misturando elementos de outras fábulas, como a
do Chapeuzinho Vermelho e Cachinhos Dourados. Rubem Filho (2010), nessa obra,
provavelmente queria desconstruir velhos estereótipos através da inserção de personagens
negros num espaço fantasioso e em uma categoria de poder, porém, o que ele narrou foi que,
mesmo quando um negro assume um papel considerado de prestígio (rei, rainha, princesa),
nada muda, pois, embora o negro alcance status, permanece sendo representado de forma
“inferior”. Obviamente, nenhuma criança se identifica com algo considerado o “pior da
história”. Além disso, o autor reproduz um texto patriarcal, no qual a mulher, ainda que seja
rainha, está subjugada ao homem.

Muitas foram as inversões desta narrativa deslocada para a África, especificamente para o alto
de uma montanha que neva, os anões se transformam em gigantes, o espelho mágico numa
panela de cobre e a princesa branca tornou-se negra, ocupando, enfim, um lugar de
empoderamento. O autor, inclusive, brinca com este lugar de poder que fora destituído do
negro ao iniciar sua obra provocando seus leitores se eles sabiam da existência de palácios,
reinos e neve na África, questionando e desconstruindo a ideia relacionada à suposta
selvageria do continente e, consequentemente, dos negros, sugerindo também que a
aristocracia não é prerrogativa da Europa.

Diferente da história tradicional, o rei não gostava de Pretinha, achava ela muito travessa e
questionadora (melhor seria uma menina silenciosa?). A rainha negra atuava como uma
empregada doméstica de avental, cozinhando e servindo ao rei e marido na bandeja. Boa parte
da trama se passa na cozinha, lugar de serviçais e não de reis e senhores.
Se no conto clássico a maior inimiga da Branca de Neve é a madrasta, que lhe inveja a beleza,
Pretinha não é descrita na obra como bela; ao contrário, é descrita como chata e
questionadora. Até mesmo quando o rei resolve buscar Pretinha, leva consigo bombons
126

envenenados para dar a menina, a fim de que ela dormisse, caso resistisse ao retorno,
mostrando seu papel de “macho”, detentor da voz firme, do poder e do uso de qualquer
artifício (sem nenhuma singeleza) para alcance do que quer.

No final da trama, mesmo o rei tendo se arrependido e Pretinha tendo o perdoado, todos se
reúnem, não para viver felizes para sempre, mas para almoçar juntos. A rainha/mãe/
empregada agora cozinha dobrado, fortalecendo o que agora podemos considerar estupro
invisível/simbólico da mulher negra, através do estereótipo da mulher negra como empregada
e/ou que as mulheres em geral possuem como um devir: ser cuidadora do lar, filhos e
maridos.

Apresentamos o posicionamento negro feminino que se contrapõem à representação acima


com um trecho do poema da escritora Mel Adún:

Não vou mais lavar os pratos,


Agradeço a Sobral
Vou ser agora meu bem, viu, meu mal?
Cansei de ser você: de sonhar sonhos
Cansei de me emperiquitar
Pra encontros enfadonhos (ADÚN, 2008, p.40).

A voz poética de Adún (2008) sugere a negação de papeis serviçais e a recusa de submissão
aos projetos do outro. A obra Pretinha de Neve e os Setes Gigantes é, também, exemplo de
que as mulheres – e neste caso citamos as mulheres em geral – sejam elas brancas ou negras,
devem se unir e escrever obras que reajam ao sistema patriarcal, afinal, o patriarcalismo
atinge a todas as mulheres, é uma experiência que lhes é comum. Diríamos, inclusive, que os
danos ocasionados por essa condição, de forma geral, são motivos do chamado para que, neste
lugar inóspito de submissão, as mulheres escrevam.

Elaine Showalter (1994) fez um estudo sobre a crítica feminista no território selvagem. Seus
escritos são importantes para a pesquisa, pois a autora também busca compreender a produção
textual das mulheres na contemporaneidade. Para ela, existem duas formas de crítica
feminista: a primeira é ideológica e está relacionada à mulher como leitora, leva em
consideração as imagens e estereótipos da mulher na literatura, e tem como disfunção a
obsessão em rever, criticar, suplantar a teoria crítica masculina. Showalter (1994) elucida que
esse ato retarda o investimento da mulher na própria escrita, na construção da sua própria
127

teoria crítica, que representa a segunda forma da crítica feminista, esta por sua vez, está
relacionada relacionada a mulher como escritora.

Showalter (1994) preocupa-se com as omissões e os falsos juízos apresentados nos escritos
sobre a mulher, mostrando que a leitura feminista pode ser uma ação intelectual de libertação,
porque, ao analisar tais representações, é possível recusá-las e indica que a crítica feminista é
revisionista, reivindicativa, e, objetiva decodificar e desmistificar perguntas e respostas
disfarçadas entre texto, sexualidade, gênero etc.

A escrita feminina esta relacionada à inscrição do corpo e da diferença do feminino no texto,


uma formação teórica, uma esperança de avanço.

A autora, também, reflete sobre a dificuldade em definir a diferença na escrita feminina (se é
uma questão de estilo, experiência etc.), chamando essa diferença de divergência delicada, de
natureza sutil e elusiva da prática da escrita feminina. Essa divergência nos desafia a
responder sobre a experiência, a exclusão e a história da escrita da mulher pautada em leitura
e pesquisa. Por fim, ainda elenca alguns critérios diferenciadores da escrita da mulher: os
aspectos biológico, linguístico, psicanalítico e cultural, sendo que cada aspecto é sequencial
uma vez que um critério não se sobrepõe ao outro.

O aspecto biológico é a diferença da escrita da mulher mais extrema e indelével que afirma
que corpo é texto. Nos séculos XVII e XIX, eram recorrentes as metáforas do corpo e a
escrita, pois uma vez que o texto também vem do corpo, da sexualidade, a criação literária
remete à gestação e às dores do parto. Entretanto, quando a mulher escreve, ela traduz o que
perpassa seu corpo, e também escreve em algum lugar fora dele, se desloca, por isso é
complexo compreender a diferença da escrita feminina por uma questão biológica, haja vista
que o corpo é impregnado de influências externas que mediam práticas, manipulam o corpo
da escrita (o eu). Portanto, é mais objetivo analisar a escrita do corpo na produção.

A linguagem é outro aspecto que diferencia a escrita da mulher. É através dela que definimos
e caracterizamos diferenças e similaridades entre as escritas feminina e masculina, além de
compreendermos o mundo que nos cerca. A linguagem feminina deve por sua própria
natureza lidar com a vida apaixonada, científica, poética e politicamente de forma a torná-la
invulnerável.
128

O desafio da mulher é reinventar a linguagem, não falar apenas contra, mas fora do discurso
falocêntrico e racista. O desafio é reinventar um discurso livre da definição de falocentrismo e
estereotipia. Vale salientar que a linguagem das mulheres sempre existiu no estágio matriarcal
da pré-história, mas perdeu a guerra dos sexos e teve sua língua marginalizada e delegada aos
cultos misteriosos e aos ritos de feiticeiros da Europa Ocidental.

Em algumas culturas, as mulheres desenvolveram uma comunicação resultante de sua


necessidade de resistir ao silêncio imposto na vida pública. Logo, o problema não é a língua,
e, sim, o fato de que lhes fora negado o recurso total da língua, as mulheres foram forçadas ao
silêncio, eufemismo ou a circunlóquio (discurso pouco direto que foge do ponto principal).

O aspecto psicanalítico é moldado pelo corpo, linguagem e socialização do papel sexual. A


dificuldade deste aspecto é superar o modelo de Freud, que atesta uma desvantagem
linguística e literária feminina devido à inveja do pênis, o complexo da castração. O falo
possui uma significação privilegiada, o que transforma a mulher/artista em deslocada,
deserdada e excluída. Para Freud, a escrita de ficção feminina é o relato dos seus sonhos e
desejos eróticos insatisfeitos. Elaine Showalter (1994) debate este aspecto freudiano
indagando: qual a necessidade de a mulher querer ter um falo para escrever se ela pode usar o
cérebro?

A psicanálise explica as semelhanças da escrita da mulher em diferentes contextos, mas não


pode explicar as mudanças históricas, diferenças étnicas ou a força formadora dos fatores
genéricos e econômicos. É preciso ir além da psicanálise para um modelo de escrita mais
abrangente, o modelo cultural, que incorpora ideias que envolvem corpo, linguagem e psiqué
da mulher, uma vez que todos esses elementos são construídos através das influências
culturais.

Os estudos de Elaine Showalter (1994) expressam que, no final do século XVIII e XIX, foram
construídos modelos gráficos utilizados para compreender o que diferencia ou separa a escrita
feminina da masculina. Um dos modelos foi o diagrama vitoriano, que mostra uma esfera
feminina menor e separada da esfera maior dos homens. Nesse modelo, as mulheres
redefinem sua esfera e atividades através da centralização de seu ponto de vista e da
consciência da comunalidade, de valores, instituições, relações, métodos e comunicações que
129

unificam a experiência feminina cultural respeitando as variantes de classe e etnias. A


separação das esferas objetivava suscitar o ativismo da mulher por seus direitos.

Outro modelo apresentado foi o dos antropólogos Arderner, que acreditavam que as mulheres
são silenciadas, mas não são totalmente subjugadas ao poder masculino dominante. As
mulheres esboçam um modelo de situação da cultura para poderem ser vistas pelo grupo
dominante e por si mesmas. Os grupos silenciados e os dominantes geram ideias ordenadoras
da realidade social, mas os grupos dominantes controlam a estrutura na qual a consciência
pode ser usada. Assim, o grupo dominado tem sua fala mediada pelo dominador. Toda
linguagem é a linguagem do dominante e a mulher fala através dela. Para se expressar, as
mulheres encontraram, no ritual e na arte literária, uma expressão no meio da estrutura
dominante.

No diagrama de Ardener33 as esferas estão interligadas: existe a esfera maior, que é a


masculina e a menor, que é a feminina, que está contida na dos homens; porém, uma parte da
esfera feminina está fora da esfera dominante, tem destaque e esse espaço fora do limite é
chamado de território selvagem. Assim, as mulheres sabem como é a parte crescente
masculina, mas os homens desconhecem o território selvagem feminino, que é o lugar da
crítica feminina, da arte, da ficção, da literatura e da teoria, é o lugar onde a mulher deve dizer
o que foi silenciado. É um lugar revolucionário, onde o oprimido fala e a mulher pode
escrever ao seu modo fora do patriarcalismo.

A escrita no território selvagem é também uma escrita de fronteira, pois, não está totalmente
fora do limite dominante, uma vez que sofre pressão política, econômica e social. O texto da
mulher nesse território, é uma abstração, um discurso de duas vozes (silenciado e dominador).

O modelo de Ardener é importante, inclusive, por informar a existência de muitas estruturas


silenciadas, como, por exemplo, a mulher negra que tem as estruturas raciais e sexuais
silenciadas. Este duplo silenciamento que as produções literárias da mulher negra sofrem, vão
refletir na maior dificuldade de produção, credibilidade, visibilidade e circulação das suas
narrativas.

33
Shirley e Edwin Ardener criaram o diagrama de Ardener para o âmbito da Antropologia e a crítica feminista o
adaptou a produção literária das mulheres.
130

Ana Rita Santiago (2012), além de atestar que a literatura negra produzida por mulheres
negras se constitui, obviamente, de temas sobre negritude e feminismo circunscritos através
de elementos de memórias ancestrais, tradições culturais, experiências vividas, sejam elas
positivas ou negativas, afirma que sua escrita é, também, um momento de reversão: elas
escrevem para (des)silenciarem suas vozes autorais e, para através de sua escrita, criarem
novos perfis de personagens, agora com poder de fala e decisão; ou seja, não mais servas,
senão senhoras de si mesmas.

Entretanto, apesar de todas estas objetivações e lutas, suas produções ainda são
consideravelmente ausentes nos inventários da literatura infantil negro-brasileira e nas
diversas instâncias artísticas, culturais e literárias.

(...) Não querem a tua presença


Riscam teu nome com ausência
Mulher negra, chega,
Mulher negra, seja,
Mulher negra, veja,
Mulher negra, veja,
Depois do temporal (RUFINO, 1996, p.17),

3.2 ENTREMEIOS LITERÁRIOS: UMA MENINA NEGRA INTELIGENTE

Entremeio Sem Babado é uma das obras da escritora Patrícia Santana, publicada pela
editora Mazza em 2007 e ilustrada por Marcial Ávila. Este ilustrador, nascido em Diamantina
(Minas Gerais), formado em Artes Plásticas, especialista em Esculturas e desenhos. Estudou
Desenho animado e Publicidade, é discente de Especialização em Estudos Africanos e
trabalha com estamparia em Belo Horizonte. Marcial Ávila se apresenta no livro como um
sujeito que desde criança já desenhava usando carvão no aterro do fogão a lenha da casa onde
morava; agora adulto, adora pintar quadros com anjos negros que já viajaram para outros
países.

A escritora negra Patrícia Santana, para escrever a obra supracitada se inspirou em seus dois
filhos, um casal de crianças com características distintas: a menina Maira é dada a indagações,
tal como a menina da trama, e seu filho Vitor, que é afetuoso e solidário como o âmbito
familiar que cerca a personagem negra da narrativa. A inspiração para o título Entremeio Sem
131

Babado é de sua mãe, que assim a chamava na infância, e hoje a autora compartilha este
termo com seus filhos e todas as crianças leitoras desse livro.

As inspirações da autora para a produção da obra estão descritas em seu próprio livro e nos
remete às influências inerentes ao processo de escrita da mulher negra, que, como já fora dito
neste trabalho, quando escreve pensa na menina negra que ela foi um dia, em sua filha, irmã,
amiga, enfim, pensa nas meninas negras de forma geral. Este pensar sobre alguém, a ponto de
crer que a sua vivência é pertinente ao outro, só é possível pelos liames “aproximadores”
étnicos que a literatura negro-brasileira prega e que adotamos neste trabalho, um destes liames
é a experiência de ser negro, que Cuti (1987) vai informar que branco nenhum possui.

Sérgio Vaz, poeta marginal e fundador de um dos saraus mais conhecidos em São Paulo, o
Sarau da Cooperifa, ao participar, em 2015, do evento nacional de literatura, em Salvador,
intitulado ELLUNEB (Encontro de Leitura e Literatura da Universidade do Estado da Bahia)
iniciou sua explanação indagando-nos: o que é a literatura marginal? É a literatura feita por
marginalizados. O que é a literatura negra? É a literatura feita por negros. E quem não é negro
pode escrever literatura negra? Pode, mas, não vai ficar bom! Por que quando escrevermos
sobre dor, o sangue está escorrendo de verdade pelos nossos corpos. Queremos com nossas
produções colocar em pauta os despautados.

Sérgio Vaz (2015), de forma muita lúcida, enfatiza os liames da experiência, vivência e
diríamos, inclusive, os liames corporais das literaturas que estão à margem da elite, que,
embora não aceite o estabelecimento deste cânone, ora quer escrevê-lo julgando que podem
representar/sentir a dor e a alegria das minorias, ora acha que os esforços para seu
estabelecimento é desnecessário, pois esta literatura já está diluída no cânone brasileiro, e ora
a rechaça considerando-a de baixa qualidade. A elite deu muito pouco ao povo negro e
normalmente rejeita suas produções.

Pensando ainda nas considerações de Vaz (2015), refletimos que, se a escrita de textos
pertencentes à literatura negra já são difíceis para os próprios negros, imagine para aqueles
que não o são? Afirmamos que é difícil para o negro porque é um corpo que está em processo
de afirmação, de construção, é um corpo negro que finalmente se assume como tal e que tenta
se libertar das amarras da estereotipia, do sexismo, do racismo, dos embranquecimentos
literários; por isso a escrita é difícil, pois este corpo está propenso a reproduzir nas suas obras
132

as agruras representativas que sofreu. Já o corpo branco está propenso a reproduzir o que
sempre praticou: discursos colonizadores, racismo, segregação, estereotipia.

À luz das reflexões de Vaz (2015), retomamos a obra Entremeio Sem Babado, que conta a
história da menina negra intitulada de Kizzy, caracterizada como “perguntadeira”, que
representa o protótipo do eterno feminino34. Kizzy é apresentada na trama como uma
“menina-menininha” que gosta de tudo em cor de rosa, blusa, saia e calcinha.

Peculiar é a narrativa infantil que informa aos seus leitores a cor da calcinha que uma criança
gosta de usar. Quando a autora informa características tão íntimas da menina, percebemos o
apelo à sexualidade da mesma, pois se a literatura infantil serve para aguçar o imaginário,
devemos pensar em Kizzy com sua calcinha cor de rosa? Implicitamente, um corpo é
chamado à trama, um corpo que se revela em sensualidade.

Figura 18 – Kizzy, a menina negra em cor de rosa

Fonte: SANTANA, 2007.

É importante frisar que a sexualidade está para além do corpo. Jefrey Weeks (1993) ilustra
que ela está atrelada também às palavras, imagens, rituais e fantasias, que está relacionada às
representações simbólicas e ganham significados através de processos inconscientes e formas
culturais, sendo assim, a descrição de Kizzy possibilita aos leitores, ainda que de forma
inconsciente, associar sua descrição à sexualidade, haja vista que, historicamente e
culturalmente, a negritude vem sendo associada a ideia de sensualidade, falta de pudor,
lascívia e sedução. O corpo negro como fetiche.

34
Eterno feminino é uma expressão utilizada por Johann Wolfgang Von Goethe para designar a atração que guia
o desejo do homem no sentido de uma transcendência. É o desejo sublimado.
133

Michael Focault (1988) informa que as percepções atreladas a sexualidade são forjadas, a
própria sexualidade é uma invenção social constituída a partir de inúmeros discursos que
regulam, normalizam e institui saberes que produzem verdades as quais são consideradas por
autores como Bhabha (2013) como estereótipos, porém para superá-los é preciso perceber que
está sendo vítima dele.

A identidade feminina fixa é outra invenção. Segregamos culturalmente do universo feminino,


o que deve fazer parte do universo masculino e reproduzimos estes discursos a fim de gerar
sua fixidez. Stuart Hall (2006) afirma que

A identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos


inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento.
Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece
sempre incompleta, está sempre “em processo”, sempre sendo “formada”. As partes
“femininas” do eu masculino, por exemplo, que são negadas, permanecem com ele e
encontram expressão inconsciente em muitas formas não reconhecidas, na vida
adulta. Assim, em vez de falar da identidade como uma coisa acabada, deveríamos
falar de identificação e vê-la como um processo em andamento. A identidade surge
não tanto da plenitude da identidade de que já está dentro de nós como indivíduos,
mas de uma falta de inteireza que é “preenchida” a partir de nosso exterior, pelas
formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros. Psicanaliticamente,
nós continuamos buscando a “identidade” e construindo biografias que tecem as
diferentes partes de nosso eus divididos numa unidade porque procuramos
recapturar esse prazer fantasiado da plenitude (HALL, 2006, p.38 e 39).

Hall (2006) nos orienta a perceber que a identidade feminina é forjada, obviamente, pela
negação dos símbolos cristalizados como de meninos; dentre esses elementos estão os modos,
a forma de se vestir, de falar, os jogos e brincadeiras, e, as meninas que normalmente fogem à
clausura dos lugares demarcados são consideradas masculinizadas; em situação oposta os
meninos são considerados efeminados. No geral todo aquele que foge ao dito padrão são
considerados espécies falhas e com anomalias.

Se pensarmos no ponto de vista da identidade de gênero, um processo enclausurador irá se


desvelar afinal, como fora informado nesta pesquisa; para a infância, tal como a concebemos
hoje, se consolidar foi necessário aprisionar as mulheres no reduto dos seus lares para cuidar
dos seus filhos igualmente enclausurados.

Pensemos, então, na clausura da menina negra? Além da clausura da escravidão e todo tipo de
infortúnio, atualmente ela se vê obrigada a se engendrar numa identidade duplamente totem
(padronizada) no tocante gênero e negritude, devendo adotar signos, atitudes e símbolos
134

pulverizados para que todas as meninas negras assumam. Isso se deve ao fato das disfunções
da luta dos movimentos negros que, ao buscar a valorização da cultura, estética e
religiosidade negra, projetou, ainda de que forma não intencional, um modelo de menina
negra a ser seguido.

No senso comum, “negro de verdade” deve usar seus cabelos crespos, pertencer à religião de
matriz africana e, no caso da menina, deve adotar os jogos, atitudes, brinquedos, cores,
habilidades, profissões e silenciamentos pertinentes às meninas e mulheres negras.

Essas imposições veladas e forjadas desconsideram, inclusive, as especificidades da África, as


diversidades dos negros diaspóricos, as influências e negociações sociais provenientes do
relacionamento e interpelações com os demais indivíduos e, principalmente, que o ato de
assumir e valorizar a estética e religiões de matriz africana, por exemplo, não é moda, é um
ato político.

Nilma Lino Gomes (2008) ilustra os perigos de conceber um discurso e um julgamento que
ditam que o sujeito que alisa seus cabelos, por exemplo, está embranquecendo e/ou negando
sua negritude, haja vista que a estética negra não pode se adequar a uma visão de mundo
cristalizado. O objetivo maior de assumir cabelos crespos é problematizar comportamentos
sociais racistas. Não queremos com isso apresentar o cabelo alisado como o cabelo ideal,
assim como não podemos impelir a população de usar seu corpo, seu cabelo como um arauto
político frente ao racismo.

É um ato de resistência quando o negro resolve encrespar seu cabelo diante de uma sociedade
que diz que somente o cabelo liso é bom; se dizem que só existem santos católicos, enfrentam
e cultuam seus orixás; se eles obrigam os negros a se calar eles gritam.

Guacira Lopes Louro (2014) nos convida ao exercício da desconstrução informando–nos que
isso permite perturbar a ideia de via única de tudo e observar que o poder pode exercer várias
direções:

O exercício do poder pode, na verdade fraturar e dividir internamente cada termo da


oposição. (...). Por outro lado não custa reafirmar que os grupos dominados são,
muitas vezes, capazes de fazer espaços e das instâncias de opressão lugares de
resistência e de exercício de poder (LOURO, 2014, p;37).
135

É possível nos lugares de opressão forjar arautos de resistência, a cor rosa, por exemplo, não
está comumente atrelada a uma cor que representa mulheres fortes e sim, as meninas
delicadas, educadas, obedientes, que vivem em um mundo de magia e silêncios. A cor rosa
está associada às meninas que são princesas e comumente as princesas são brancas. Não seria
este o ponto de ruptura, de desconstrução da trama? A autora apresenta-nos a personagem
Kizzy que revoga o direito de usar a cor rosa, resignificando-a?

Patrícia Santana (2007), após apresentar Kizzy e falar das suas características, continua
trazendo informações físicas e estéticas da personagem, em seguida ela informa-nos que a
menina explora seu cabelo crespo em todas as suas potencialidades através de penteados
étnicos.

Menina-menininha com o cabelo de dia de um jeito: com birotes enfeitados, com


gominhas coloridas, rabo de cavalo, de tranças e solto com baião de dois
(SANTANA, 2007, sem número).

O cabelo crespo é um dos ditames mais fortes na infância negra. Para muitos, o ato de pentear
o cabelo crespo é um ato doloroso e violento; atualmente buscamos redirecionar o ato de
pentear o cabelo do outro como uma forma de amor e cuidado. Quando Patrícia Santana
(2007) apresenta um mosaico de possibilidades de penteados que Kizzy utiliza ao longo da
obra, ela está resistindo às imposições sociais que prega só um formato de beleza: o cabelo
liso. Em contraponto ela nos mostra quantas possibilidades existem para o cabelo negro além
do alisamento.
Figura 19 – Kizzy, bela e inteligente

Fonte: SANTANA, 2007.

O cabelo no continente africano denota pertencimento ao lugar: algumas tribos usavam um


determinado penteado com mais frequência do que outros, logo, era identificado o grupo
136

pertencente do indivíduo através do seu penteado. Aqui no Brasil, o cabelo também


demonstra a qual grupo você pertence, remete a uma herança ancestral.

A obra, ao enfatizar a importância de assumir seu cabelo crespo, reforça a concepção de


Nilma Lino Gomes (2008) de que nenhum padrão estético negro é indissociável do político.
Nenhuma identidade se constrói em um espaço social vazio.

A ilustração anterior nos mostra Kizzy utilizando uns dos seus penteados: cabelo com tranças
e solto, afinal ela é o retrato da liberdade de ser quem é. Outro fato interessante é que após as
especificações capilares da menina a trama apresenta uma gravura dela envolta em suas
leituras mostrando que beleza e inteligência não são elementos segregados para a menina
negra. Kizzy gostava de ler revistas, almanaques, livros, folhetos e rótulos e tudo sobre a
África, sua origem, linhagem e ancestralidade, enfatizando a importância de conhecer um
pouco de tudo, inclusive de si mesma. Conhecer sua origem histórica te liberta da clausura da
história distorcida proveniente do olhar do outro.

Figura 20 - Kizzy e a mania do saber

Fonte: SANTANA, 2007.

Muitas eram as indagações de Kizzy; sua mãe, desenhada na trama como uma mulher negra
que também assume seus cabelos crespos (referencial de beleza para a sua filha) se vê em
meio aos livros para tentar responder à menina em suas indagações tais como:

O que é gordura trans? O que significa melanina? De que é feita a farinha?


As perguntas iam se juntando; às vezes, com respostas; outras com um grande e
sonoro: CHEGA!!!! (SANTANA, 2007, sem número)
137

Figura 21 - As perguntas de Kizzy

Fonte: SANTANA, 2007.

Na figura acima, Kizzy é apresentada em tamanho menor diante da imensidão de suas


perguntas e curiosidades, menores também são suas roupas. As roupas diminuem e a
curiosidade e inteligência aumentam. Comumente, a sociedade concebe pessoas que utilizam
roupas curtas como objetos sexuais, fetiches e esta imagem normalmente está desassociada de
questões intelectuais.

Tornamos a indagar, seria esta a forma que autora encontrou para desconstruir o estereótipo
em torno da negra sensual? Mostrando uma menina sensual que não se atém a este aspecto?
Uma menina que, embora sensualizada, se volte para o conhecimento?

Kizzy utiliza a cor de rosa, tornando-se uma princesinha que não é subserviente e não é
silenciosa, muito pelo contrário, pergunta e causa incômodo a amigos e familiares com suas
curiosidades. Envolve-se no âmbito social, participa das conversas de adulto, questiona e se
posiciona; para muitos, ela pode ser considera mal-educada, mas, Kizzy sempre fala o que
necessita, causa a desordem da desconstrução dita por Guacira Louro (2014).

Ao passo que Patrícia Santana (2007) enfatiza inicialmente a sexualidade da menina na trama,
ela quebra em sequência esta sexualidade, mostrando-nos que, embora Kizzy seja bonita, está
mais preocupada em poder falar.

Posteriormente, a obra nos apresenta a menina entrando nas conversas alheias e, de pergunta
em pergunta, de leitura em leitura, suas intromissões se fazem presentes. Kizzy participava
perguntando coisas do tipo: quem é a pessoa que vocês estão falando? De onde veio esta
138

pessoa?

Essas perguntas ora causavam estranheza, pois soava como um desvio das regras de etiqueta,
uma falta de educação, ora suas perguntas causavam risos e, por vezes, Kizzy ouvia que
crianças não podiam ter respostas, pois se trata de uma conversa de adulto.

A autora demarca a segregação existente entre o mundo da menina e o mundo dos adultos.
Essa separação é proveniente da invenção burguesa da infância que, inicialmente, não afetou
as meninas negras, mas, como vemos na trama, atualmente a concepção da infância, a ideia de
que as que as crianças são frágeis e delicadas, que necessitam de cuidados e devem ser
poupadas do contato com o mundo adulto, afetam também a criança negra. Os espaços
demarcados denotam poder e, obviamente, o espaço empoderado das respostas não está do
lado de Kizzy. A autora provoca a ideia de que a criança precisa crescer para aprender, porém
Kizzy não estava disposta a esperar.

Figura 22 - Kizzy nas rodas de conversa

Fonte: SANTANA, 2007.

Diante da angústia de não ser respondida e de ser vetada a sua participação em conversas
adultas, a menina busca respostas na pessoa que ela julga ser possuidora de maior
conhecimento; um saber ancestral é evocado surge na trama, a figura da avó, a quem Kizzy
indaga: por que as crianças não podem participar das conversas de adulto?

Em meios à suas linhas de costura, a avó de Kizzy profere uma característica para a sua
atitude, informando-a que quem interfere na conversa alheia é chamado de entremeio sem
babado.
139

Figura 23 - A avó de Kizzy

Fonte: SANTANA, 2007.

O termo entremeio sem babado deixa a menina confusa. Sua face, como veremos na
ilustração abaixo, se transforma e, angustiada, ela tenta compreender o seu significado.

Pronto, o que era aquilo? Ao pé da letra, era um enfeite de roupa que faltava um
complemento.
Kizzy pensava: Mas por que eu sou um entremeio sem babado?
Descobriu que algumas falas eram assim, tinham alguns sentidos esquisitos
(SANTANA, 2007, sem número).

Figura 24 - Entremeio sem babado

Fonte: SANTANA, 2007.

Embora não compreendesse o real significado do termo, sentiu-se incompleta, era um enfeite
sem complemento? O que lhe faltava? A censura da boca fechada? Era mal-educada e/ou
inconveniente? Kizzy se viu num conflito, pois as interpelações externas indicavam que era
necessário uma mudança em seu comportamento ao passo que ela não se contentava em ser
“entremeio sem babado” e, diante desta situação, a menina adoeceu, pois gostava de fazer
perguntas.
140

Figura 25 - As perguntas furtadas de Kizzy

Fonte: SANTANA, 2007.

Após a prostração (refletida na imagem similar à postura de quem faz uma oração) diante da
exigência de negociações e mudanças a fim de se adequar na sociedade. Kizzy concluiu que
foi perguntando que ela aprendeu tantas coisas, foi participando das conversas que ela
descobriu de quem sua mãe gostava e em quem podia confiar.

A menina ficou com a sua identidade em conflito entre aquilo que ela realmente é e o que a
sociedade a impele, ficou receosa se deveria ou não mudar. Inicialmente, ela ficou sozinha,
alheia às conversas, sem perguntar, sem falar. Ficava isolada, não em meios aos seus
brinquedos, mas, em meio a seus livros e rótulos.

A atitude de Kizzy nos remete a postura de bell hooks (2013), que afirma que encontrou nos
livros e na teoria uma forma de superar as agruras de menina negra que não se enquadrava
socialmente e para superar, também, os problemas da sua vida adulta. hooks (2013) informa
que chegou a teoria machucada, com dores internas e intensas e que ela não sabia se poderia
continuar vivendo.

Aproximou-se da teoria como forma de compreender o que acontece ao seu redor e dentro
dela, pois queria que a dor fosse embora. Ela fez da teoria um lugar de cura.

As crianças são os melhores teóricos, pois não receberam a educação que nos leva a
aceitar nossas práticas sociais e rotineiras como “naturais” e, por isso, insistem em
fazer as perguntas mais constrangedoramente gerais e universais, encarando-as com
um maravilhamento que nós, adultos, há muito esquecemos. Uma vez que ainda não
entendem nossas práticas sociais como inevitáveis, não veem por que não
poderíamos fazer as coisas de outra maneira (hooks, 2013, p.83).

Kizzy não compreendia a necessidade de mudar, porém insistia em suas perguntas, cujas
141

respostas, quando existiam, a levavam ao maravilhamento e, quando não vinham,


impulsionava sua condição de pesquisadora. Condição salvadora da solidão em que ela se
deparou. A solidão de ter se apartado de si mesma.

Figura 26 - A solidão de Kizzy

Fonte: SANTANA, 2007.

Então, finalmente, Kizzy se cansou e percebeu que gostava do rótulo que havia sido dado a
ela, e não queria mudar. Preferia ser como era, menina-menininha cor de rosa e perguntadeira.
Escolheu um dia para voltar a ser quem ela era, ou seja, para mostrar que sua identidade foi
interpelada, posta à prova, e o resultado foi uma Kizzy resistente, que não cedeu aos ditames
impostos, e então, no domingo, em meio às conversas, comida farta e samba do terreiro da sua
avó, Kizzy resolveu voltar a se envolver na conversa dos outros.

Figura 27 - Kizzy resiste e ressurge

Fonte: SANTANA, 2007.


142

O interessante deste trecho da trama é que ele acontece em meio a uma roda de religião de
matriz africana e, também, o assunto abordado: nomes.

Sabemos que o processo escravagista fez com que os negros africanos fossem arrancados de
sua terra natal e fossem destituídos de qualquer tratamento humanitário, alienados de si
mesmos, pois, ao chegar ao Brasil, foram renomeados com nomes católicos, não por serem
considerados filhos de Deus, mas para ilustrar que Deus concordava com tal barbárie. Assim,
sobrenomes como Santos, Jesus, Divino Espírito Santo são indicativos que os negros foram
renomeados e alienados de si mesmos.

A religião do candomblé tem devolvido o nome e a identidade aos descentes de africanos,


pois, ao tornar-se membro desta religião, o indivíduo passa por um ritual que, entre outras
atividades, está o ato de se isolar em um quarto, se despojar de luxos, raspar a cabeça, enfim,
renascer mais humano, centrado e com sua fé renovada e, em face deste renascimento, o
indivíduo recebe outro nome de origem africana, que traduz sua personalidade e sua ligação
com o seu orixá, o qual deve ser utilizado naquele âmbito entre os seus adeptos. Seria então o
candomblé, uma família de renomeados e renascidos.

E, foi em meio a esta temática que Kizzy se intrometeu e descobriu que seu nome é de origem
africana e significa: aquela que fica, que não vai embora. Foi um momento epifânico para ela
que descobriu que seu nome traduz sua identidade e intencionalidade, foi um renascimento da
menina, negra, cor de rosa e perguntadeira.

Figura 28 - O renascimento de Kizzy

Fonte: SANTANA, 2007.


143

Empoderada e feliz com a descoberta de si mesma, Kizzy abraça a sua avó em sinal de
gratidão e resolve brincar com as demais crianças, inclusive as meninas brancas, sobre nomes
e significados. A presença de personagens brancos ao final da trama nos mostra como a
religião de matriz africana, embora rechaçada socialmente, recebe adeptos de diversas etnias.

Foi um domingo de alegrias e descobertas para Kizzy que, afirmativamente, era entremeio e
sem babados. E, no final da trama, a autora nos apresenta um glossário com os nomes e
significados suscitados na brincadeira. Nomes de diversas origens: africana, germânica,
hebraica, dentre outros, nesta roda de nomes estava o de Kizzy.

Figura 29 - Kizzy feliz entre os seus babados

Fonte: SANTANA, 2007.

O que podemos concluir é que a história Entremeio Sem Babado, tal como seu título, foi
desenrolando um carretel de emoções e acontecimentos ao tratar de tantas questões, como a
sexualidade da menina negra associada à inteligência. Este foi um babado confuso e dúbio:
ora pensamos que o estereótipo da mulata sensual estava sendo reincorporado, ora pensamos
que este estereótipo foi contaminado, pois a sexualidade da menina foi interligada a uma
representação intelectualizada, voltada para os estudos e curiosidades. Kizzy não é só um
corpo, é um corpo que pensa, fala, se impõe e se empodera, logo, a partir desse imbricamento,
percebemos o viés de contaminação em meios às representações colonialistas e patriarcais.

A história também nos apresenta a importância da valorização estética, que, através da


exibição de várias possibilidades de penteados, tenta desconstruir a imagem do negro
associado à feiura, ao cabelo ruim etc.

O livro enfatiza, ainda, a influência da oralidade através da consulta ao saber matriarcal da


família, a valorização da religião de matriz africana e, por fim, a trama encerra seu babado
144

mostrando-nos uma menina negra, empoderada, conhecedora da sua história, sua


descendência africana e, mesmo sabendo de todas as imposições externas, resiste sendo quem
é, inclusive ante as crianças brancas, pois, como afirma Nilma Lino Gomes: “Uma coisa é
nascer criança negra, ter cabelo crespo e viver dentro da comunidade negra e outra coisa é ser
criança negra, ter cabelo crespo e estar entre os brancos” (GOMES, 2008, p.187).

A identidade da menina é colocada à prova e, assim como no livro, só diante do outro e sua
influência é que percebemos se sucumbimos em tentar ser o outro ou se seguimos sendo nós
mesmos. Como pudemos ver, as atitudes e a estima de Kizzy não se abalaram mediante as
crianças brancas, ao contrário, ela permanece enfatizando sua cultura e suas origens de uma
forma muito tranquila. Nilma Lino (2008) sintetiza o objetivo dessa e tantas outras obras da
literatura negro-brasileira.

É espelho social que o negro brasileiro tem se olhado. Assim, ele se constrói como
sujeito imerso numa tensão entre uma imagem socialmente construída em um
processo de dominação e a luta pela construção de uma auto-imagem é um desafio.
Construir uma auto-imagem, um “novo negro”, que se paute nas referências
identitárias africanas recriadas no Brasil, também o é. Esta última tem sido uma das
estratégias de identidade construídas por uma parcela da população negra.
Olhar para a África, mais precisamente a África pré-colonial, na tentativa de
recuperar valores, referências artísticas, culturais, estéticas através de um resgaste da
ancestralidade africana. A civilização africana aparece, então, como um mito e traz
ao negro brasileiro a possibilidade de ser visto sem a marca da coisificação e da
negação, ou seja, de ver-se e ser visto como humano (GOMES, 2008, p. 143).

Toda a trama conspirou para que as meninas negras se reaproximem da cultura africana, para
que preservem/construam sua identidade negra face ao racismo.

3.3 MÃE DINHA: HISTÓRIAS DAS MENINAS NEGRAS DE OUTRORA E DE AGORA

Mãe Dinha, obra publicada pela editora Mazza em 2007, ilustrada por Rubem Filho
(cujas referências pessoais, profissionais e acadêmicas já foram citadas neste trabalho) e
escrita por Maria do Carmo Galdino, mulher negra nascida em Conselheiro Lafaiete – Minas
Gerais, que se mudou para Belo Horizonte, onde se casou, tornou-se mãe e se graduou em
Letras pela PUC (Pontifícia Universidade Católica) de Minas Gerais. Lecionou no Jardim da
Infância e se engajou na luta por moradia em Vila Dionísio. Seus livros são inspirados em
seus filhos e netos e a temática étnica racial é inspirada em sua vida, na relação com seus pais
e nas suas experiências de mulher negra trazidas em sua pele.
145

A presente história não é sobre as meninas negras de hoje, e sim, de antigamente, que narram
um pouco sobre a vida de nossos antepassados, a fim de que conheçamos como eles viviam,
seus ensinamentos e experiências e como estas ressignificam nossas identidades. E assim, a
trama se inicia apresentando a menina de outrora, Mãe Dinha, uma avó diferente daquelas que
comumente são apresentadas nas narrativas infantis. Mãe Dinha é negra, possuidora de uma
pele reluzente em tons de bronze, olhos cor da noite com brilho de estrelas.

Figura 30 - Mãe Dinha

Fonte: GALDINO, 2007.

Posteriormente, outras características da Mãe Dinha são apresentadas: ela usava um lenço na
cabeça para prender seus cabelos brancos como a nuvem, andava com a elegância vagarosa
proveniente da sua idade, em passos curtos acompanhados de gemidos, pois a idade também
atribui seu peso, suas mãos estavam sempre disponíveis nos momentos bons e ruins.

Figura 31 - A elegância da idade de Mãe Dinha

Fonte: GALDINO, 2007.

A representação de Mãe Dinha nos remete a das mulheres e meninas negras de outrora,
envolta em seus afazeres domésticos, de lenço na cabeça, tal como Bertoleza, da obra O
Cortiço, de Aluísio de Azevedo, ou, ainda, a personagem Tia Anastácia, nas obras de
146

Monteiro Lobato, ambas citadas nesta pesquisa. Essas são representações que a literatura
contemporânea busca superar, mas, no caso da obra Mãe Dinha, estas representações são
apresentadas como uma forma de olhar o passado para ressignificar o presente.

Olhar para o passado, nesse livro, não tem o objetivo de inferiorizar mulheres e meninas
negras, mas reconstruir o passado, ainda que de forma mítica, forjar identidades étnicas, o que
Nilma Lino Gomes (2002) intitula de “identidade negra” e Stuart Hall (2011) intitula de
“identidade móveis e/ou híbridas”, porém, independente da terminologia, ambos reconhecem
a mobilidade de tais identidades.

Hall (2011) aborda as identidades de forma geral (identidade negra, de gênero etc), Gomes
(2002) enfatiza um grupo (povo negro) específico para tecer conceitos identitários. Por sua
vez, Patrícia Santana de Pinho (2004), em face da mobilidade, não fixidez e as distinções
identitárias do mesmo grupo étnico devido às inúmeras influências sociais, políticas, culturais
que o indivíduo recebe, elenca elementos, tais como o mito de origem, linhagem e
ancestralidade. Pinho (2004) julga que estes elementos conecta todos os indivíduos
pertencentes a mesma identidade, que intitula de étnica.

Pensando no livro Mãe Dinha, quando a autora resgata um passado africano, é com o intuito
de que a experiência apresentada se torne comum aos atores presentes na contemporaneidade
e que as vivências de Dinha produzam matéria-prima para a construção das identidades.

Pinho (2004) nos convida a pensar na negritude, também, como uma estrutura de sentimentos
que se desenvolve de forma social e histórica, e não como um desdobramento automático
prévio, biológico e essencialmente definido. A identidade negra seria, portanto, o conjunto de
elementos que podem suscitar ou não a identificação nos indivíduos.

No caso da trama citada, o processo de construção da identidade negra, evoca muitos


elementos que constroem fronteiras35, que excluem “os outros” e incluem o “nós”. Esse “nós”
somos aqueles que possuímos um passado em comum com Mãe Dinha, enquanto “o outro”
são os que não reconhecem, nem compartilham das nossas tradições.

35
A identidade como construtora de fronteiras citadas pela autora Patrícia de Santana Pinho é embasada nos
estudos de Frederick Barth um dos primeiros nomes a pensar e conceituar a identidade em 1969.
147

Embora pareçam excludentes, esses liames de cor sempre existiram; julgamos, inclusive, que
os negros fazem uso deles na literatura para forjar um cânone forte, peculiar, que facilmente
revela a quem se destina, por isso é necessário associar a metáfora da fronteira com a
metáfora da origem, pois o fator mais latente é o sentimento de pertencimento a um grupo que
reivindica sua ancestralidade e tradição cultural em comum.

A obra Mãe Dinha segue seu curso abordando a vida da personagem, mostrando elementos
que nos indicam seu lugar de origem, seus ritos e cultura. Galdino (2007), autora da trama,
afirma algumas atitudes, atividades e rotina da mãe Dinha:

Durante o dia sempre algumas merendas: biscoito de polvilho, broas embrulhadas


em folha de bananeira, coalhada, sementes de abóbora torradas, coquinhos e torrões
de rapadura...
À noite debulhava histórias ao debulhar o milho.
Sabia cantigas de adormecer o medo do escuro (GALDINO, 2007, sem número).

Em meio às informações acima citadas, uma imagem de cozinha antiga, rústica nos é
mostrada, uma cozinha de fogão à lenha, para configurar uma mulher negra possuidora de
habilidades culinárias. A imagem demarca que no passado o âmbito da casa, as habilidades do
lar, os espaços de pouco privilégio na casa, tais como o varal de roupas e a cozinha, eram os
únicos lugares socialmente destinados para a mulher negra.

Um livro de receitas se apresenta diante do leitor, receitas realizadas de forma peculiar,


evocando elementos da cultura africana, como o uso da folha de bananeira como aparato
alimentar. Além dos dotes culinários Mãe Dinha possui outro saber: ela conta histórias, afinal
como anciã, além de ter construído suas próprias narrativas conhecia a dos seus antepassados.
Sabia contar histórias e cantigas de cura para que o indivíduo pudesse, por exemplo, ter sono
ou espantar os medos.
Figura 32 - A cozinha e as histórias da Mãe Dinha

Fonte: GALDINO, 2007.


148

O livro da autora Galdino (2007) parece uma história contada, quase visualizamos alguém
narrando quem foi Mãe Dinha e tudo o que ela sabia, devido à evocação da oralidade muito
presente nos contos africanos. Quem estaria contando a história de Mãe Dinha?
(responderemos posteriormente).

Ione da Silva Jovino (2006) explicita que contar histórias é um ato que nos remete à
existência humana, pois está imbricada à necessidade de comunicar aos outros as experiências
significativas para todos.

É comum os povos se orgulharem das suas histórias, tradições, mitos e lendas, expressões
culturais que devem ser preservadas. Atualmente, tais expressões podem ser lidas, mas isso
não apaga a íntima relação entre literatura e oralidade.

Os contos de fadas, por exemplo, Edil Silva Costa (2015) salienta que foram narrativas orais
colhidas, alteradas e reescritas para as crianças. As alterações se justificavam porque muitas
destas narrativas possuíam teor erótico ou cruel, por isso, eram considerados impróprios para
o público infantil.

Os contos orais circulavam antes da construção da infância burguesa, logo, não obedecia à
suas censuras e, por se tratar de um patrimônio comum, não fazia distinção entre os adultos e
crianças.

A origem dos contos não é exata: há quem acredite que os contos de fadas, por exemplo, são
alterações dos contos africanos, dos contos pérsios etc. Os contos africanos também foram
recolhidos, apesar de que sua influência oral se manteve muito forte, todavia as narrativas
africanas sempre foram olhadas com rechaço.

O próprio Monteiro Lobato, em sua obra Histórias de Tia Nastácia publicada em 1937,
apresenta-nos uma sucessão de narrativas similares aos contos africanos, mas com o intuito de
torná-la uma narrativa menor proveniente de um povo que ele considera bestializado.

Edil Silva Costa (2015) alega que a cultura (literatura) oral popular é produzida e interligada
às comunidades narrativas, que considera ser um grupo de pessoas que compartilham histórias
e laços de afinidade em comum. E, ainda que estas pessoas possuam modos de vida distintos,
149

não estão isoladas, e a conservação das suas tradições não as impedem de interagir com os
demais grupos humanos.

A história, embora escrita, possui uma presença oral muito forte; é como se a escritora
estivesse abrindo um baú com todos os saberes de Mãe Dinha que, além de saber cozinhar,
cantar cantigas e contar histórias, sabia curar com elementos da natureza. Podemos nos
indagar: estaria uma criança interessada em receitas curativas? Mas, como afirmamos, esse
livro se enraíza em experiências orais que não distinguem adultos de crianças, se preocupa em
apresentar as práticas do passado às meninas negras de agora, meninas que comumente
ouvem dos parentes mais velhos, receitas como estas ou, ainda, são curadas por chás, que na
infância são considerados verdadeiras fórmulas mágicas de cura. Coisas que só a nossa mãe
e/ou avó conhecem. Coisas que somente mãos como a da Mãe Dinha poderiam fazer.

Figura 33 - Mãe Dinha, a curandeira

Fonte: GALDINO, 2007.

Vejamos algumas de suas receitas:

Limas murchas no baú para curar gripes que insistiam.


Laranjas colhidas no pé preveniam qualquer mal- estar que deixasse as crianças
prostradinhas.
(...)
Uma cruz de palha na testa parava qualquer soluço.
Um naco de papel grosso no céu da boca estancava o sangue que corria pelo nariz.
Nenhuma dor, nenhum mal resistia a seus bons tratos (GALDINO, 2007, sem
número).
150

Figura 34 - Mãos que curam

Fonte: GALDINO, 2007.

As receitas de Mãe Dinha estão também imbricadas aos saberes religiosos, que espantam as
doenças e o mal, daí a evocação da cruz de palha. Além disso, Mãe Dinha também sabia fazer
brinquedos e jogos, sabia de tudo um pouco.

Figura 35 - Mãe Dinha, inventora de diversões

Fonte: GALDINO, 2007.


O livro segue expondo Mãe Dinha como Mãe de todos, madrinha de muitos e, diante dela, o
mundo fica mais mágico, pois ela possui a firmeza de uma mãe que já sofreu muitas agruras, a
doçura de madrinha e trouxe consigo a herança da África. Herança de fortalezas, lutas,
alegrias, amores e dores. Em seguida a narrativa apresenta a imagem da pintura Mulata a
Caminho do Sítio Para as Festas de Natal, do artista francês Jean Baptiste Debret.
151

Figura 36 - Mulata a Caminho do Sítio Para as Festas de Natal, Jean Baptiste Debret

Fonte: GALDINO, 2007.

Essa pintura descreve como os brasileiros comemoravam os festejos natalinos, entre o período
1834 e 1839, e como estas festas provocavam uma interrupção no trabalho para a realização
de reuniões com os parentes, amigos e proprietários de sítios vizinhos da cidade. Era um
período de alegria em que as pessoas faziam excursões rumo ao local dos festejos, no entanto,
os escravizados deveriam levar os itens pessoais de seus donos, tais como lençóis, esteiras,
travesseiros, roupas etc. As reuniões familiares luxuosas eram regadas com alimentação farta
e atividade de natação nos rios, enfim, era um momento de diversão.

A imagem de Debret é endereçada a uma mestiça que, neste caso, pertence à classe dos
artífices abastados. A imagem remete à excursão para os festejos natalinos: logo à frente
temos uma menina negra ao lado de seu escravizado encabeçando a excursão, seguida de
outras duas senhoras mestiças abastadas e, por fim, aparece o séquito das escravizadas.

Acreditamos que o objetivo da autora, ao evocar essa pintura de Debret, é nos mostrar que,
embora o sentimento afetivo seja exaltado na trama, não podemos esquecer que são muitos os
sentimentos que constituem a identidade negra, dentre eles o sentimento de dor, proveniente
da memória escravagista, e que esta cicatriz, também, é um elemento importante na
composição das mulheres e meninas negras da sociedade contemporânea.
152

No decorrer da narrativa, Mãe Dinha é apresentada como alguém que tem a capacidade de
juntar pessoas que possuíam elos em comum com ela, não somente elos sanguíneos,
biológicos, mas laços de identificação ancestral ou afetivo. Mãe Dinha tinha muitos netos que,
ainda que não fossem biológicos, seus netos seriam.

Figura 37 - Mãe Dinha, avó, mãe e madrinha de todos!

Fonte: GALDINO, 2007.

A ligação exposta entre Mãe Dinha e a África reafirma a concepção de Paul Gilroy (2012), de
que as identidades étnicas estão interligadas a uma “ideia de África”. Este discurso se ampara
na crença de uma essência africana, que poderia de maneira mágica, conectar todos os negros
do mundo.
Ainda hoje, alguns autores e movimentos negros acreditam nessa ideia de uma cultura pura,
como se as identidades construídas fossem expressões das diferenças étnicas associadas.

Patrícia de Santana Pinho (2004), por exemplo, ao adotar alguns elementos formadores da
identidade étnica36, como o mito da origem, linhagem e ancestralidade, nos indica que,
mesmo essas características unindo os negros de forma geral, os representam de forma
peculiar. Parece paradoxal, mas o fato é que a África é um continente plural, assim como as
imaginações que criamos sobre ela, logo, Pinho (2004) e Gilroy (2012) adotam a concepção
pluralista de que a negritude possui reconhecidamente variações de classe, gênero, idade,
sexualidade e subjetividades. No entanto, mesmo com tantas variações, ambos acreditam que
existe uma particularidade negra que, para Gilroy (2012), é definida por práticas e agendas
culturais que conectam todos os negros dispersos.

36
Patrícia de Santana Pinho adota o termo identidade étnica ao se referir as identidades que possuem elementos
comuns compartilhados em um dado grupo assim, como também utiliza o termo identidade negra ao abordar as
identidades que possuem disparidades dentro do mesmo grupo.
153

A particularidade que conecta a negritude está assentada na experiência social e suas


conexões com as gerações, o período histórico e o contexto cultural aos quais pertencem e dos
quais se transforma. Para Gilroy (2012), essa peculiaridade reside na estrutura dos
sentimentos, que estimula a formulação de subjetividades que são compartilhadas por
gerações, fazendo com que as pessoas em tempos distintos se sintam conectadas e imaginem
ligações com o grupo e, a partir desse contato, definam sua relação com a organização
institucional e ideológica da sociedade.

Essa partícula está, também, relacionada aos elementos (origem, mito e linhagem) sempre
evocados por Pinho (2004), pois essas construções imaginadas compartilham as histórias de
sua linhagem geracional.

Kwame Anthony Appiah (1997) informa que toda identidade humana é construída e histórica,
e todo indivíduo carrega um quinhão de imprecisões, que a cortesia chamou de mito, a
religião de heresia e a ciência de magia. Para Appiah (1997) histórias, biologias e afinidades
culturais inventadas estão em toda identidade. A identidade africana, por exemplo, no século
XIX, não era possível ser concebida, pois cada tribo e cada povo eram muito diferentes.

O povo negro africano tem muito menos em comum culturalmente do que se pode imaginar.
Para o autor supracitado, o que os negros têm em comum é a forma como são percebidos pelo
outro, como pertencente a uma mesma raça e esse argumento é suficiente para discriminá-lo.
Appiah (1997) exemplifica, inclusive, que se um judeu se esquecer de que é um judeu, algum
outro povo o lembrará, e assim é com os negros. Essa percepção nos faz lembrar que,
atualmente, os negros têm realizado uma reviravolta nesse aspecto: eles mesmos têm se
lembrado da sua negritude e expõe como querem ser vistos.

Para Appiah (1997), selecionamos traços mais destacados das tribos africanas e aplicamos a
todo um grupo ou, ainda, aqui no Brasil, Pinho (2004) explica que bebemos na fonte de uma
África mítica, a fim de fortalecer uma identidade. Por isso, Appiah (1997) vai alegar que,
somente agora, começa a existir uma identidade que se pode chamar de africana e que suas
bases são a noção de negritude, a experiência comum e a metafísica compartilhada,
“falsidades” sérias demais para serem ignoradas.
154

Essas invenções ou falsidades sérias, como alega Appiah (1997) são importantes para a
construção étnica, e fortalecimento de uma linhagem, ainda que de forma mítica, haja vista
que os textos sempre remetem, a origem negra, à maldição, ao castigo e à condenação. Um
exemplo disso pode ser encontrado no texto bíblico (Gênesis capítulo 9, versículos 22 a 27),
onde a descendência de Cam37, filho de Noé teve sua linhagem fadada à escravidão.

Na contemporaneidade, os negros evocam uma linhagem que busca a liberdade, que intenta se
livrar do fardo da escravidão e que, embora reconheça as agruras passadas, resiste, se projeta,
se auto valoriza, conecta os negros e é compartilhada geracionalmente, tal como a linhagem
negra de Mãe Dinha, que nos remete à história de um povo cheio de lutas e dores, mas
também amores, conhecimento, saberes e histórias, elementos que podem abarcar o negro em
diferentes contextos, épocas e espaços.

Por fim, retomamos a pergunta: quem conta a história de Mãe Dinha?


A autora nos responde que a história está sendo contada pela bisneta da Mãe Dinha e que esta,
por sua vez ouviu a história com sua mãe, que ouviu de sua avó.

A história encerra mostrando a bisneta de Mãe Dinha contando essa narrativa para sua filha,
uma menina negra, linda, com ouvidos atentos à narrativa e olhos fixados em sua mãe e no
álbum de família que ela apresenta.

A história de Mãe Dinha não pertence somente a esta família, que continuará recontando essa
narrativa gerações afora; a história de Mãe Dinha pertence a todos os leitores que, não sendo
netos dela, sempre seriam.

Figura 38 - Meninas negras de outrora, meninas negras de agora

Fonte: GALDINO, 2007.

37
Cam tinha descendência africana, a bíblia explicita inclusive que ele mudou-se para o sudeste da África e
proximidades do Oriente Médio, e foi o antepassado das nações daquelas localidades. A Bíblia (livro de Salmos
78: 50-51) refere-se ao Egito, por exemplo, como "as tendas de Cam".
155

4 HISTÓRIAS DE QUEM CARREGA NA PELE A COR DA NOITE

(...) A palavra negro


tem chaga tem chega!
(...) A palavra negro
tem sua história e segredo
e a cura do medo
do nosso país.
A palavra negro
tem o sumo
tem o solo
a raiz.
(Cuti)

No poema Ter na Pele a Cor da Noite, de Márcio Meireles, lançado nos Cadernos
Negros, edição Melhores Poemas, publicado em 1998, o autor faz uma séria afirmação:

É preciso ter coragem


para ter na pele a cor da noite
(...) como língua incendiária
que todas as línguas fala
e torna esta cor escondida
em nova cor revelada
cor do dia, cor do sonho
de todo homem e mulher
todo bicho, toda mata
cor a correr pelas veias
a preencher os abismos
criando um caminho novo
pra raça humana avançar.
É preciso ter coragem
pra ter na pele a cor da noite
e sobreviver nesses dias.
É preciso ter coragem
e olhos de lua a brilhar
pra ser o futuro que se quer
mesmo o que virá (MEIRELES, 1998, sem numeração).

Grande verdade dita em forma de poesia. É preciso ter coragem para aguentar os açoites, para
fugir dos grilhões. É preciso ter coragem para lutar contra o racismo e opressão, para lutar por
melhores empregos, outro status. É preciso ter coragem para encrespar, para assumir sua
156

religião, usar suas contas e seus traços. É preciso ter coragem para desconstruir o estereótipo e
não sucumbir a ele. É preciso ter coragem para resistir aos olhares que insistem em nos ver
como objeto sexual. É preciso ter coragem para ser uma menina negra, é um ato de muita
coragem carregar esta cor, mas as meninas negras resistem.

De forma proposital, repetimos inúmeras vezes que é preciso ter coragem para ser negro e se
assumir negro a fim de ilustrar as inúmeras dificuldades que os negros enfrentam.
Imaginemos, então, quanta coragem é necessária para ser um negro leitor e/ou escritor?

É preciso, como dizem os movimentos negros, “matar um leão por dia” para se inserir no
exercício das letras, historicamente negado e, ainda, escrever narrativas em que as meninas
negras protagonizem.

É preciso ter coragem para tomar a chave da senzala escondida na gaveta dos balcões ou,
como diria o já saudoso José Carlos Limeira: “(...) me basta mesmo essa coragem suicida de
erguer a cabeça e ser um negro vinte e quatro horas por dia”. (LIMEIRA, apud
CONCEIÇÃO; BARBOSA, 2000, p15)

Se os negros abordam a todo instante a importância de ter coragem não é por que enxergam
ou produzem (nem poderiam) racismo e estereotipia, mas por que eles anseiam por mudanças,
como afirma Geni Guimarães:

Não sou racista.


Sou doída, é verdade,
tenho choros, confesso.
Não vos alerto por represália
nem vos cobro meus direitos por vingança.
Só quero,
banir de nossos peitos
esta gosma hereditária e triste
que muito me magoa
e tanto te envergonha
(GUIMARÃES, 1993, p.74).

Neste intercurso, realizado ao longo deste trabalho, elencando e conceituando as estereotipias,


mostrando a insurgência de um cânone negro e suas representações, mais uma vez nos
imbuímos nessas narrativas literárias, buscando verificar como as resistentes escritoras negras
têm produzido e representado meninas negras que desconstroem estereótipos. Naveguemos
juntos nas histórias.
157

4.1 MENINAS NEGRAS COM CADARÇOS DESAMARRADOS: NARRATIVAS DE


LIBERTAÇÃO

Inicialmente, elas foram furtadas do seu local de origem, vendidas, usadas,


subjugadas, o ferro marcou sua pele, alisou seu cabelo, a sociedade determinou seu lugar, a
mordaça calou a sua voz e mãos brancas escreveram sua história. Agora raspamos o
palimpsesto branco para que os textos negros, recheados de meninas negras, apareçam
almejando desconstruir o estereótipo do negro com tendência a ser escravo, escravo dos
padrões sociais e estéticos, da intolerância religiosa, da percepção de inumanidade. Eis que
surgem as meninas negras em busca de liberdade.

Imbuída neste anseio de libertação, a escritora Maria do Carmo Ferreira, conhecida como
Madu Costa, mulher, negra, professora, contadora de história e escritora, nos premia com
duas narrativas, ambas ilustradas por Rubem Filho (cujas referências pessoais, profissionais e
acadêmicas já foram citadas neste trabalho): a primeira intitulada Cadarços Desamarrados,
publicada em 2009, e a segunda, Meninas Negras, publicada em 2010, ambas pela editora
Mazza.

Madu Costa informa que a inspiração para a obra Cadarços Desamarrados foi a possibilidade
de reavivar sua infância tão querida, de menina negra, através da personagem que inventou.
Ela explicita, em nota nesse livro, que se viu naquela personagem, deitada no chão,
enxergando bichos nas nuvens, e reviveu todos os embaraços e desembaraços que a vida
impõe para que cresçamos.

A obra se inicia com a célebre frase “Era uma vez uma menina”, frase que normalmente nos
leva a um tempo mítico, que pode ser qualquer período, mas, na trama este momento é agora.
É a vez de Mariana, uma menina negra descrita como magra, com cabelos crespos, olhos de
jabuticaba madura e boca bem feita. Mariana era linda!

Mariana é uma menina que busca a liberdade, a mesma encontrada nos elementos contidos em
seu nome: o rio, o mar, o ar. Mariana brilhava noite e dia e voava no tempo. Madu Costa
(2009) nos informa que em seu mundo tudo é leve e solto.
158

Figura 39 - Mariana, negra linda!

Fonte: COSTA, 2009.

Mariana tinha a leveza de pensar aquilo que quisesse e a liberdade de viver na dimensão da
sua imaginação e não lhe agradava estar amarrada aos moldes do pensamento alheio.

Outrora, o corpo e o pensamento da menina negra foram exotizados, erotizados, prostituídos,


desfigurados, explorados. Mariana quer a reapropriação de si mesma. Marina quer a liberdade
representada no uso contínuo de seus tênis com cadarços desamarrados.

Os cadarços dos tênis corriam soltos e deixavam rastros por onde ela passava. Lá ia
Mariana, voar junto com os cadarços. Ela agora era uma pipa. Os cadarços eram sua
rabiola. O sonho era a linha.
Fio comprido!...
E a menina voava, voava!...
O tempo passava... A menina passeava no tempo: pra lá e prá cá... (COSTA, 2009,
sem numeração).

Figura 40 – Marina, a menina negra que voa!

Fonte: COSTA, 2009.


159

Tanto a figura quanto a citação nos indicam que o objetivo de Mariana é ser livre. Quando
pensamos em liberdade, falamos em sermos donos de nossas vidas, de nossos corpos e das
nossas vontades e de sermos capazes de mudar as situações, ter possibilidades, escolher os
caminhos e rumos. Quando uma menina negra pensa em liberdade com tanto afinco, como
Mariana, é por que, obviamente, está sendo destituída dela.

Historicamente, à representação da figura feminina negra estar aprisionada ao um passado


escravagista, ao domínio masculino, à comparação inferiorizante com as meninas brancas, a
destinação aos piores rendimentos econômicos, a falta de afetividade inclusive no espaço
escolar, à falta de beleza, intelectualidade, liberdade de culto e outros tantos grilhões, logo se
torna legítimo que, na contemporaneidade, a busca pela chave da liberdade seja contínua.

A trama nos instiga a pensar em inúmeras formas de libertação que a figura feminina negra
busca, logo, algumas indagações feitas por Sueli Carneiro se fazem necessárias:

Quando falamos em romper com o mito da rainha do lar, da musa idolatrada dos
poetas, de que mulheres estamos falando? As mulheres negras fazem parte de um
contingente de mulheres que não são rainhas de nada, que são retratadas como
antimusas da sociedade brasileira, porque o modelo estético de mulher é a mulher
branca. Quando falamos em garantir as mesmas oportunidades para homens e
mulheres no mercado de trabalho, estamos garantindo emprego para que tipo de
mulher? Fazemos parte de um contingente de mulheres para as quais os anúncios de
emprego destacam a frase: “Exige-se boa aparência” (CARNEIRO, 2001, p. 2).

Comumente, a busca pela liberdade está ancorada nas desigualdades e, talvez, a solução
pareça estar num mundo distante e é para esse mundo que Mariana se desloca, mas a narrativa
segue seu curso informando que a menina, constantemente, é chamada à realidade.

Eis que surge na trama outra personagem: a mãe de Mariana, uma senhora negra com cabelos
crespos, que a chama da janela de casa a fim de lembrá-la que é chegada à hora de se arrumar
para ir à escola, e, portanto é hora de amarrar o tênis e voltar à realidade. Mariana obedece à
sua mãe e amarra bem de leve seus sapatos, pois não gosta de “nó cego” e não pode perder
seu meio de fuga.
160

Figura 41 - Mãe de Marina

Fonte: COSTA, 2009.

Até este momento da narrativa, sabemos que Mariana almeja a liberdade representada por
seus sapatos desamarrados; é um sinal que ela envia à sociedade que está em outra dimensão,
onde as amarras não lhe afrontam. Elencamos, neste trabalho, vários elementos que,
historicamente, impedem o voo da menina negra, mas qual é o fator de gravidade que traz
Mariana a realidade? Ela quer se sentir livre de quê? Sigamos na narrativa a fim de descobrir.

Posteriormente, Madu Costa (2009) nos direciona para outro espaço, o escolar, e nos mostra
Mariana sentada diante de uma docente branca; seu olhar está perdido, ela está em outra
dimensão, está no seu território de liberdade, com os sapatos desamarrados, até que sua
professora a chama para a realidade:

- Amarra o cadarço menina! É perigoso deixá-lo solto. Já pensou se você pisa nele.
Cai no chão e quebra o braço?
A menina olhava para a professora e dava um nó apertado nos cadarços.
Era um nó no cadarço e outro na garganta... isso só causa embaraço...
O tempo ia passando e Mariana logo olhava para a janela e começava a voar
(COSTA, 2009, sem número).

Figura 42 - Mariana na escola: um nó apertado!

Fonte: COSTA, 2009.


161

Começamos, a partir de então, a vislumbrar na trama qual é a clausura de Mariana, menina de


livre imaginação, que enxerga poesia em tudo e que precisa dar um nó bem apertado nos
sapatos e outro na garganta para poder suportar o que acontece no âmbito escolar.

A escola é um lugar onde as identidades são forjadas, interpeladas, onde o reconhecimento do


outro e as representações se mostram mais presentes; é o lugar de maior socialização infantil,
ou seja, é um lugar que pode auxiliar a criança ou anulá-la.

A solidão de Mariana na sua classe rodeada de colegas brancas, tal como a docente, nos
mostra a sensação da menina em ser minoria, diferente. A escola, para ela, é um lugar de
desajuste, um lugar onde ela não se encaixa. Sabemos que, mesmo diante das ações e políticas
afirmativas, se falta reconhecimento social e valorização infantil, nenhuma dessas medidas
vigora a contento.

De acordo com Humberto Maturana (1999), a valorização do outro está associada à aceitação
do outro e é esta aceitação que legitima a boa convivência. Quando não há este
reconhecimento do outro, o preconceito religioso, racial, social ou de gênero impera e a
relação social, obviamente, não se constitui. Aceitação do outro é quando alguém, ainda que
dispare de você, o considera merecedor de gozar dos mesmos direitos que você; é alguém a
quem se deve respeito.

Mariana, que vive feliz o tempo inteiro sendo quem ela é, amarra os sapatos para entrar na
escola. O amarrar dos sapatos denota uma alteração imposta ao corpo e à mente da menina, o
que Michael Focault (1987) intitula de docilização dos corpos: o uso da disciplina como um
instrumento de dominação e controle destinado à suprimir ou domesticar os comportamentos
divergentes.

Ao mesmo tempo em que a escola é uma instituição que objetiva educar e proteger seus
alunos, também inseriu mecanismos que os controlam e os mantêm na iminência da punição,
que para Mariana é ser invisível, inferiorizada, não fazer parte daquele grupo, não ser
reconhecida. Esses mecanismos controladores formam o que Focault (1987) chamou de
tecnologia política, com poderes de manobrar o espaço, o tempo, a identidade, o
conhecimento e os pensamentos, unificando e os hierarquizando. A sociedade está presa à
disciplina.
162

Focault (1987) enxergava instituições como a escola como um âmbito complexo, haja vista
que não podemos falar em conhecimento sem falar de poder, por isso, ele utiliza o termo
poder-conhecimento para ilustrar que não há relação de poder que não esteja acompanhada da
criação de saber e vice-versa. Com base nesta criação, podemos agir contra aquilo que não
queremos ser e ensaiar novos modos de organizar o mundo em que vivemos.

Quais seriam as criações de Mariana? O mundo imaginativo que a acolhia? E quais seriam os
meios que a menina fazia para chegar até ele? Simples: fuga. Se educar é marcar o corpo do
outro, quando as marcas ficam pesadas demais, Mariana aciona seus mecanismos de fuga
daquele sistema opressivo.

- Professora, posso ir ao banheiro?


- Pode sim, Mariana! Antes de ir, amarre o cadarço do tênis, ouviu?!
Ah! De novo os cadarços... Mariana dava um nozinho de nada e saía toda apressada.
Ela estava muito apertada. Apertada na carteira. Apertada na sala de aula.
Apertada de vontade de imaginação (COSTA, 2009, sem número).

Figura 43 - A fuga de Mariana

Fonte: COSTA, 2009.

A fuga de Mariana, baseada na vontade mentirosa de ir ao banheiro, era a chave para sua a
liberdade, os sapatos desamarrados da menina é a forma poética que ela desconstrói toda a
opressão que vive no âmbito escolar e viaja para outro mundo; provavelmente, lá ela não era
invisível. Invés de ir ao banheiro, Mariana sentava-se no chão do pátio, se punha a olhar as
nuvens com seus sapatos desamarrados e, nas nuvens, via animais e sereias. Se bell hooks
(2013) fez da teoria um lugar de cura, Mariana fez de sua imaginação um abrigo.
163

Figura 44 - O mundo de Mariana

Fonte: COSTA, 2009.

Em seu mundo, o tempo passa voando e logo Mariana se apertou novamente, pois chegou o
momento de retornar à sala de aula. É o momento de encarar a figura icônica para a criança: a
professora.

A professora olha bem séria para Mariana. E ela, já adivinhando o que a professora
iria dizer, repete baixinho, olhando para o chão: “Amarre o cadarço, menina! Já
pensou se você cai e quebra o braço?”
A menina olha, nesse momento, bem nos olhos da professora; dá um sorriso e, num
sobressalto: “Já pensou, se em vez de bronca e de me mandar amarrar o cadarço,
você abre os seus braços e me amarra num abraço?”.
Antes que a professora possa ler seus pensamentos, olhando nos olhos da mestra,
Mariana abaixa e amarra os cadarços; sonhando com aquele abraço!... (COSTA,
2009, sem número).

A citação acima ilustra que olhar fixamente para o outro é um exercício de poder, que pode
rebaixar o indivíduo a um sentimento de inferioridade, o que fez com que Mariana se curvasse
e amarrasse seus sapatos, contendo, assim, quem realmente ela é, pois percebeu no olhar do
outro o desagrado.

A prisão de Mariana é claramente revelada nessa citação: a menina padece de uma clausura
chamada falta de afetividade, a qual pode ser caracterizada pela ausência de cordialidade,
respeito, consideração, interesse ou atenção.
164

O tratamento distanciado acontece com mais freqüência com uma aluna negra. As relações
são mais facilmente marcadas pela indiferença no trato, pela diferença no modo de olhar, de
falar com aquela criança, pelo silêncio diante dos seus posicionamentos, pelo uso de
brincadeiras e apelidos, que introjetam na criança o sentimento de inferioridade, fazendo-a
pensar que não merece receber carinho.

A falta de carinho no âmbito escolar faz com que as crianças possuam baixa autoestima,
assim como o excesso podem deixá-las mimadas e egoístas. Tudo é questão de acertar o tom.
Seria uma questão de acertar o tom da pele?

A professora de Mariana não tece por ela um mau trato físico, não a chama com nomes
pejorativos, mas hierarquizou as relações, criou um distanciamento tão grande entre ela e a
menina que só desamarrando os sapatos Mariana poderia aguentar. Todavia, a menina
guardava uma fé bonita de que o abraço viria; vivia em contínua negociação entre amarrações
e solturas, numa tentativa de ser feliz e agradar/se adequar a sua professora. Mariana é a
representação do trânsito rumo à liberdade, que, paradoxalmente durante todo tempo almeja a
prisão de um abraço.

Edgar Morin (2000), em sua obra Os Sete Saberes Necessários para a Educação do Futuro,
expõe que os alunos pensam de acordo com as inscrições culturais registradas em seus corpos
e, para que essa inscrição seja feita de forma positiva, é necessário a valorização da
diversidade cultural através do reconhecimento das peculiaridades de cada educando, dessa
forma, a criança aprende de maneira favorável. Por isso, Morin (2000) salienta que a
inteligência é inseparável da afetividade: a criança aprende mais quando se sente amada.

A afetividade pode asfixiar o conhecimento, mas também pode fortalecê-lo. Existe


uma estreita relação entre a inteligência e a afetividade: a faculdade de raciocínio
pode se ver diminuída e até destruída por um déficit de emoção; um debilitamento
da capacidade para reacionar emocionalmente pode chegar a ser a causa de
comportamentos irracionais (MORIN, 2000, p.27).

Diante de tais constatações, a trama se encerra com a imagem sensível de Mariana, em sinal
de obediência, amarrando seus sapatos à espera de um abraço.
165

Figura 45 - Mariana amarra o sapato para ser amarrada em um abraço

Fonte: COSTA, Madu, 2009.

Esse ato de Mariana não significa que ela é subserviente ou que lhe falta resistência aos
entraves que enfrenta, ao contrário, Mariana resiste sendo quem ela é, resiste criando seu
universo particular, construindo seu arauto de liberdade e insistindo em ser livre, mesmo
quando a sociedade lhe impõe os grilhões, ela segue lutando para que sua professora
reconheça sua humanidade, pois seu problema não é de inferioridade e, sim, de inexistência.

O mundo imaginário criado por Mariana é seu ato de resistência, sua fuga. Até os cinco anos
de idade, é comum que as crianças inventem mundos e amigos imaginários, assim como é
comum vermos crianças conversando com personagens que só existem em sua imaginação,
criando histórias e outros artifícios, dando nomes, inventando características e, até,
conseguindo visualizar seus companheiros “irreais”. Até essa idade, é muito comum a criança
conversar com as vozes dentro de sua cabeça.

Essas situações irreais possibilitam à criança imaginar e viajar, criando histórias absurdas ou
lógicas, se comunicar, criar estratégias de resolução de problemas do mundo que a cerca ou
fugir de situações que lhe causem dor ou medo; por exemplo, se uma criança vê os pais
brigando com frequência, é comum que elas criem situações imaginárias para se omitir do
momento da briga, pois a imaginação é também um mecanismo de defesa.

Normalmente, a partir dos seis ou sete anos de idade, essas criações fantasiosas tendem a
diminuir, pois a capacidade de enxergar o mundo de uma forma real e concreta se amplia;
porém Mariana não podia crescer a tal ponto de abandonar seu mundo irreal, pois ele era seu
166

meio de superar seus infortúnios. É através de seu mundo e seus sapatos desamarrados que
Mariana desconstrói a ideia de que está fadada à falta de afetividade.

O cabelo crespo de Mariana é outro elemento destacado inicialmente na trama, quando a


menina é apresentada com características físicas associadas à beleza, ela não tem problemas
com sua aparência física ou estética, e se mostra livre e feliz até o momento de ir à escola,
onde a falta de afetividade mina a alegria da menina.

De acordo com Nilma Lino Gomes (2008), o cabelo crespo com textura natural era utilizado
pelos ativistas negros norte-americanos como os Panteras Negras38. Esse penteado objetivava
reconstituir a África através de um processo de luta contra a hegemonia, ajudando a fortalecer
e a classificar a raça do povo negro norte-americano, que não gostava de ser visto como negro
e sim, como afro-americano, numa tentativa de fazer parte da localidade em que estava
inserido.

A terminologia “cabelo afro”, comumente conhecido como Black Power39, é um estilo de


cabelo insurgido por questões políticas, provenientes do movimento de contestação dos
negros na década de 1960, que, dentre outras questões, reivindicavam o lugar de beleza ao
cabelo crespo, numa tentativa simbólica de retirar o negro do lugar de inferioridade racial.

O cabelo afro se difere do cabelo black power, pois o primeiro, também conhecido como
crespo natural, possui um corte mais baixo e, geralmente, forma desenhos geométricos,
ondulados ou de figuras na nuca; já o black power é um estilo de cabelo pejorativamente
conhecido como capacete, pois possui corte redondo ou quadrado.
Logo, Mariana e a sua mãe exibem cabelos crespos em textura natural, no ato político que
resignifica a negritude associando-a a beleza, quebrando com a estereotipia que pregava o
contrário, apresentando, mais uma vez, ao seu leitor, a importância de ser você mesmo.

38
Movimento de protesto dos negros norte-americanos surgido no final de 1960, época de tensão, conflitos e
lutas por direitos civis. Os Panteras Negras defendiam os direitos da população negra e para tal pregavam a
resistência armada contra a opressão. O grupo nasceu prometendo patrulhar os guetos (bairros negros) para
proteger seus moradores contra a violência policial dentre outros ideias.

39
Black Power (poder negro) foi um movimento entre os negros principalmente dos Estados Unidos ocorrido no
final dos anos de 1960 que objetivava enfatizar o orgulho negro, a criação de instituições culturais, educacionais
e políticas para promover os interesses coletivos, os valores e autonomia para a comunidade negra. Os ativistas
deste movimento utilizavam os cabelos naturais como ato político, ou seja, como forma de reivindicar liberdade
e inserir o negro no rol da beleza, logo os cabelos naturais popularmente foi conhecido com o nome do
movimento.
167

A solidão de Mariana é algo que se destaca na trama. Em várias imagens do livro podemos
ver a menina sozinha e/ou acompanhada de suas imaginações. Ana Cláudia Lemos Pacheco
(2013) salienta que a figura feminina negra e mestiça está fora do mercado afetivo, pois sua
representação se naturalizou no mercado do sexo, da erotização, do trabalho doméstico ou em
concepções escravizadas e não merecedoras de afeto. Em contrapartida, as mulheres brancas
pertencem à cultura do afeto, do casamento e das relações estáveis. “Mais que qualquer grupo
de mulheres nesta sociedade, as negras têm sido consideradas “só corpo, sem mente” (hooks,
1995, p.469).

Seria Mariana acéfala aos olhos da sua docente para ser castigada com tamanha solidão? A
falta de mente a objetificava, e objetos não merecem amor.

Norbert Elias (2001) afirma que a solidão pode ser derivada de uma desilusão amorosa, um
amor mal correspondido, que faz com que o individuo se sinta impedido de ter novas
experiências amorosas. A solidão também pode existir quando não encontramos uma pessoa
do mesmo lugar social, o que impede o compartilhamento de vivências coletivas, ou, ainda,
pode referir-se às pessoas que, simplesmente, são deixadas sozinhas. A solidão pode assolar
até os indivíduos que vivem cercados de pessoas, caso não seja alvo de afetividade delas.
Logo, a partir dessas concepções, podemos constatar a solidão de Mariana, que se acentua
normalmente quando o teor de melanina é grande, mas se a solidão é uma prisão, se a
estereotipia isolou as meninas negras, o mundo imaginário de Mariana lhe dá asas.

Como já discorrido inicialmente, pensar em liberdade requer pensar nas múltiplas formas de
estar à margem da sociedade, por isso, é tão legítima a luta contras as opressões de classe,
credo, gênero e etnia. Lutar por liberdade, ser livre, é ter a possibilidade de exercer seus
direitos, de competir, de escolher, de amar, de ter fé, de ser você. Ser livre é fazer escolhas e
redefinir o presente ou desfazer as amarras existentes.

Em 2010 Madu Costa escreveu outro livro, intitulado Meninas Negras, publicado pela editora
Mazza, e, em nota, a autora ilustra que sua inspiração para esta narrativa foram seus filhos,
Karina, Fernanda e Victor, e seus netos, Yan e Bruna. Madu acredita que através da leitura é
possível mudar o mundo e as temáticas étnicas raciais são apenas o extrapolamento do seu
sangue e das experiências que traz em sua pele. Para ela, seus personagens são todos os
168

meninos e meninas do mundo, que sonham, brincam, estudam e, principalmente, resistem ao


tempo e continuam sendo eles mesmos.

O título em plural nos indica que Madu Costa apresentará a história de mais de uma menina;
logo a trama se inicia apresentando-nos Mariana, que é descrita como uma menina negra,
alegre e sonhadora, que gosta da sua cor. Seu nome, assim como o da Mariana do livro citado
anteriormente, é uma mistura do mar, do rio e ela vive a sorrir todo o tempo.

É um nome que carrega em seu bojo elementos da natureza, cultuados nas religiões africanas.
Os orixás são deuses ancestrais da natureza como, por exemplo, Oxum, considerada Senhora
dos rios e das águas doces, e Yemanjá, Senhora das Águas salgadas. Ao enfatizar a
importância dos elementos da natureza contidos no nome de Mariana, aproxima-se o nome da
religiosidade africana e, em contrapartida, das imagens das princesas africanas negras Oxum e
Yemanjá, realçando que a menina negra possui representações de princesas (negras) que lhe
são próximas.

Figura 46 – Mariana, a menina negra risonha

Fonte: COSTA, 2010.

Mariana é uma menina linda e tão negra que mal conseguimos enxergar seus olhos, mas ela,
por sua vez, enxerga e sente tudo a sua volta. Os traços grossos de Mariana são enaltecidos de
forma positiva. Normalmente, a beleza nos livros infantis segue um padrão europeu, onde se
endeusa os ditos traços finos no contorno do nariz e lábios, a magreza dos corpos. Mariana,
por sua vez, aparece com seus lábios grossos, destacados na cor vermelha, e sendo
caracterizada como linda.
169

Grosseiros não são seus lábios, grosseria é não enxergar sua beleza. De braços abertos e pés
descalços, diante do mar a menina sorri para a sensação de liberdade que tanto lhe apetece.

Na escola, Mariana aprendeu que os negros foram trazidos da África para ser escravizados no
Brasil; nesse momento Mariana voa até a África e sonha com a liberdade. Seu sonho de
liberdade atravessa o Atlântico e encontra a Mãe África livre.

Figura 47 - Mariana encontra a Mãe África

Fonte: COSTA, 2010.

A escola e os livros didáticos, comumente, apresentam o negro como escravizados, dando aos
seus leitores a compreensão de que a historiografia do negro já começa assim, numa visão
objetificada e animalesca, o que fortalece o estereótipo do negro designado à escravidão,
assim como a África como o berço da incivilidade, pobreza, fome, guerras, doenças, religiões
profanas e repleta de pessoas designadas à escravização.

Entretanto, a educação que Mariana recebeu fez com que ela compreendesse as mazelas da
escravização e a fez viajar até a África, não uma África animalesca e primitiva, e sim, aquela
representada pela figura feminina da Mãe, aquela que acolhe a todos nós, a África enquanto
berço cultural, que precisa ser liberta de estereotipias, segregação e tantos outros problemas e
representações negativas.

O sonho de liberdade de Mariana depara-se com uma África distinta daquela demonstrada nos
noticiários, de miséria extrema, enfermidade e morte. Mariana vê uma África que sorri e com
essa representação libertadora, ela almeja ter liberdade, pois a menina mira-se nessa Mãe e
quer se sentir livre ao olhá-la, uma vez que, normalmente, mirar-se no espelho africano
170

equivale a olhar para escravidão; porém a educação de Mariana é emancipatória e a faz olhar
para África como elo importante de sua identidade, e não como o berço das mazelas.

É importante salientar que a ideia que concebemos da África, de acordo com Patrícia de
Santana Pinho (2004), é um construto de realidade e imaginações que resultam na figura
mítica da Mama África que nos ampara e, para tal, estabelecemos uma rica produção cultural
de elementos estéticos que remetem à África, ou ao que imaginamos ser dela. Dentre esses
elementos se encontra o uso de penteados afros compostos por dreadlocks, tranças naturais ou
sintéticas, uso de tecidos coloridos, em sua maioria oriundos da Índia ou de Bali, tudo com o
objetivo de adornar a Mama África.

O corpo negro passou a carregar essa africanidade, anteriormente concebida como negativa,
retrógrada, associada à feiura e maus odores, agora ela é ressignificada em civilização,
cultura, orgulho e beleza. As imaginações da África a tornaram forte, e fortaleceram a
identidade de todo um povo, que passou a reescrever a África em seu corpo.

Em seguida, a trama apresenta-nos outra menina: Dandara, de nome emblemático, pois, de


acordo com a história do Brasil colonial, Dandara foi a esposa de Zumbi dos Palmares e com
ele teve três filhos, seu nome significa Princesa Guerreira e/ou Princesa Negra. Ela lutou com
afinco para proteger e libertar os escravizados, mas pouco se sabe dela. Existem especulações
de que se suicidou em 1694 para evitar voltar a ser escravizada.

Desse modo, a segunda menina da trama é a princesa negra Dandara, descrita como uma linda
menina negra de olhos grandes, inteligente e de sorriso aberto.

Figura 48 - Princesa Dandara

Fonte: COSTA, 2010.


171

Dandara é apresentada com armas diferentes das utilizadas pela esposa de Zumbi dos
Palmares40, sentada em uma escrivaninha, empunha a sua arma: a caneta, que utiliza para
escrever e pintar uma nova história. Na narrativa, Dandara desenha seus objetivos que, no
caso especifico, é ganhar um bicho de estimação; ela quer uma girafa ou um leão.

Figura 49 – O bicho de estimação de Dandara

Fonte: COSTA, 2010.

Que provocativos os animais de estimação intencionados por Dandara. Onde já se viu uma
menina querer um leão ou uma girafa? Comumente pensaríamos que as meninas deveriam
querer um gato, um cachorro ou, quem sabe, um adorável coelhinho e não animais
considerados selvagens.
Selvagem é como normalmente a África é representada, e primitivo é como são apresentados
seu povo e sua cultura. A mídia, por exemplo, apresenta a África, como terra de incivilidades,
um imenso deserto, um grande safári e, reforça essa idéia exibindo imagens como a do leão
perseguindo a gazela. Somando-se a isso, há doenças, guerras, mortes e pobreza extrema, um
lugar sombrio é África representada na tela da televisão. Tudo conspira para que o indivíduo
se distancie da selva e se aproxime da metrópole, como diz Frantz Fanon (2008).

Entretanto, como já fora dito neste texto, Fanon (2008) nos convida a ressignificar os
elementos normalmente vistos com o viés da estereotipia e nos incita a preservar nossa selva
(cultura, linguagem, ritos, ancestralidades), pois, se nos aproximarmos da metrópole, nossa

40
Zumbi dos Palmares foi líder do Quilombo dos Palmares, o maior dos quilombos do período
colonial,localizado em Pernambuco, na serra da Barriga, região hoje pertencente ao município de União dos
Palmares, no estado de Alagoas. É considerado um dos grandes líderes de nossa história, sinônimo de resistência
e luta contra a escravidão. Lutou pela libertação dos cativos, liberdade de culto e práticas culturais africanas no
Brasil. O dia da sua morte 20 de novembro é lembrado nacionalmente como o Dia da Consciência Negra.
172

selva se embranquecerá e/ou se dissipará. Num processo de inversão, ele positiva elementos
vistos como negativos, logo, é revelador o fato de a menina querer animais selvagens; de
forma analógica, seu anseio denota um meio de preservar nosso legado, é um ato de
resistência.

Diante da metrópole branca, a menina prefere sua selva negra, não a selva estereotipada das
representações de outrora. O leão de estimação que Dandara tanto quer, só almeja abocanhar
o desconhecimento do povo sobre seu lugar de origem.

Na escola, Dandara também aprende com sua professora sobre a África e suas terras e, devido
a esta lição aprendida, a menina olha pela janela e solta sua imaginação, sonha com girafa,
elefante, tigre e leão.

Educar as crianças sobre a África é uma forma de desconstrução, pois elas receberam uma
educação contaminada de más representações, histórias distorcidas sobre o negro. Aprender é
um exercício de liberdade.

Valdemir Zamparoni (2004) argumenta:

O Brasil precisava reconhecer de fato que era herdeiro cultural da África, que a
construção da identidade passava "pelo conhecimento da própria história, não no
sentido de resgatá-la idealisticamente, mas de fazê-la presente como referência
cultural”. Pois bem, qual a referência cultural que temos da África e dos africanos no
Brasil? Qual a imagem da África e dos africanos que circulam em nossos meios
midiáticos e acadêmicos e que ajudam a formar nossa identidade?
A resposta é que o que ainda hoje predomina é a de uma África exótica, terra
selvagem, como selvagem seriam os animais e pessoas que nela habitam:
miseráveis, desumanos, que se destroem em sucessivas guerras fratricidas, seres
irracionais em meio aos quais assolam doenças devastadoras. Enfim, desumana. Em
outra vertente o continente é reduzido a uma cidade, nem mesmo um país. O termo
África passa, nesses discursos, a servir para referenciar um lugar qualquer exótico e
homogêneo (ZAMPARONI, 2004, p. 40).

A última menina negra apresentada na trama é Luanda, outro nome emblemático por se tratar
da capital de Angola, localizada na costa do Oceano Atlântico. Luanda é descrita como uma
menina bonita, de tom de chocolate, que dança como ninguém, seu corpo é forte e ela só
aprende o que lhe convém.
173

Figura 50 - Luanda, a menina forte

Fonte: COSTA, 2010.

A apresentação de Luanda, dançando sorridente, desmitifica algumas associações que


poderíamos fazer do corpo negro sempre atrelado a sensualidade. Luanda, por sua vez, dança
e seu corpo exala fortaleza, ao dançar ela se reapodera de seu corpo e de si mesma a ponto de
rechaçar o que não lhe convém. Luanda seleciona o que quer aprender e explicita como
almeja ser representada.

Na escola de Luanda, a professora também fala do povo vindo da África, da sua cultura, e
Luanda traduz esse aprendizado em sua dança:

Luanda de som na alma negra tão natural,


Balança seu corpo para resistir.
Dança sua história, menina feliz (COSTA, 2010, sem numeração).

Na citação acima, dois elementos são significativos: primeiro o uso do corpo como prática de
libertação e resistência; por várias vezes explicitamos, neste texto, como o corpo negro foi
tratado, explorado, subjugado, e, agora, nesse processo de inversão, o corpo é um texto de
resistência, que não aceita a exploração, um texto que reivindica, que se empodera e está
associado à mente, não é um objeto sem órgãos; outro fator significativo é a afirmação de que
Luanda possui a alma negra, que é outro fator de inversão, pois normalmente, quando se
intenciona atribuir bondade aos negros, apesar de sua negrura, muitos afirmam que se trata de
um negro com alma branca, pois a brancura e a bondade andavam de mãos dadas.

Patrícia de Santana Pinho (2004) reflete que, no século XIX, defendia-se a noção de que cada
raça deveria ocupar uma posição na escala evolutiva da humanidade de acordo com as suas
características corporais, como a cor da pele, textura dos cabelos e traços do corpo, e que estas
174

características estavam diretamente relacionadas à alma do individuo; ou seja, a aparência


determinava a alma e a personalidade. Os corpos negros, por sua vez, foram associados às
trevas e a escuridão. Seu rosto era considerado grosseiro, atrasado. A cor negra da pele era
sinônimo de sujeira, sub-humanidade, como se a escuridão da pele fosse o revelar da
escuridão da alma.Vale salientar que a escuridão, a negrura é a representação de feiúra, atraso
e nocividade.
Agora, positivamos os elementos renegados, a bondade é negra. Agora bom mesmo é ser
negro de alma negra, bom mesmo é não perder a raiz.

Figura 51- Almas negras fazem a dança da resistência

Fonte: COSTA, Madu, 2010.

Por fim, Madu Costa (2010) nos apresenta as três meninas que, embora separadas por
histórias culturais, sociais e econômicas distintas, estão unidas em suas negritudes, em suas
peles marrons, seus olhos vivos, seus gostos por ouvir e contar histórias e seus saberes
ancestrais.

Madu Costa (2010) encerra a narrativa convidando as meninas negras a se unirem, e a


reverenciar seu berço cultural africano. A África, que é evocada como um mito, traz ao negro
brasileiro a possibilidade de ser visto sem o estigma da coisificação e da negação e, sim, pelo
viés da humanidade. A narrativa convida as meninas negras a juntar seus conhecimentos,
imaginações e, principalmente, convidam as meninas negras a resistirem e serem felizes.

Elas se enxergam cada vez mais no


lindo espelho da Mãe África.
E juntam os conhecimentos com a
imaginação de um povo resistente
175

que nunca desiste de ser feliz. (COSTA, 2010, sem numeração).

Figura 52 - A união das meninas negras

Fonte: COSTA, 2010.

4.2 NAS TRANÇAS DE BETINA: NARRATIVA DE RAIZ

Toda menina negra tem um cabelo lindo, que não foi feito para ser domado, foi feito
para ser livre, enrolado, trançado, destrançado, foi feito para ficar solto lá no alto como uma
coroa, para acompanhar o movimento de pular corda ou brincar de elástico. Todo cabelo de
menina negra tem raiz, uma raiz forte que sustenta a sua história, a história de ser menina
negra.

De tranças soltas ao vento e embalada pela célebre frase da brincadeira infantil de pular corda:
“senhoras e senhores, pulem num pé só... senhoras e senhores, deem uma rodadinha... e vão
para o olho da rua!!!” apresentamos Betina.

Figura 53 – Betina de tranças ao vento

Fonte: GOMES, 2009, p. 03.


176

Betina é o livro escrito por Nilma Lino Gomes, em 2009, e publicado pela editora Mazza. A
autora é licenciada em Pedagogia e Mestra em Educação pela UFMG (Universidade Federal
de Minas Gerais), Doutora em Antropologia Social pela USP (Universidade de São Paulo) e
pós-doutora em Sociologia pela Universidade de Coimbra. Integra o corpo docente da Pós-
Graduação em Educação, Conhecimento e Inclusão Social da FAE/UFMG (Faculdade de
Educação da Universidade Federal de Minas Gerais). É membro da Associação Nacional de
Pós-graduação e Pesquisa em Educação (ANPED), da Associação Brasileira de Antropologia
(ABA) e da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN). Atualmente, ocupa a
função de Ministra Chefe de Estado do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos
Direitos Humanos (informações encontradas do currículo Lattes da escritora).

As ilustrações do livro supracitado foram feitas por Denise Nascimento, mulher negra que
registra na obra que quando criança gostava de desenhar nos álbuns de corte e costura da sua
mãe; de acordo com ela, a capa dura do álbum facilitava o desenho. Agora, adulta, continua
registrando brincadeiras, emoções, reverenciando e espelhando a memória e sua beleza pelo
mundo.

Nilma Lino Gomes (2009) informa, em nota no livro Betina, que a inspiração para essa
narrativa foi seu gosto pela leitura e pela contação de histórias, que aprendeu com sua mãe.
Quando se tornou professora e adquiriu interesse pela cultura negra, descobriu que contar
histórias é uma prática ancestral. É uma forma de falar de si, cultivar a memória dos
antepassados e educar as gerações. Para ela, o mundo necessita conhecer a história de
homens, mulheres, meninas e meninos negros que lutam incessantemente por uma vida mais
bonita e digna. É necessário olhar de forma afirmativa, por meio de ações, para a vida das
pessoas que nunca desistiram de seus sonhos. Betina é um exemplo disso, por isso Gomes
(2009) resolveu contar a história desta menina e deu seu nome ao livro.

A trama se passa na rua Minervina, onde podemos ver uma menina negra linda, com tranças
no cabelo, brincando na rua de pular corda. Sua avó a observa carinhosamente da janela e
indaga-se, através da canção, que diz: “meninina, minha menina, quem te fez tão bonitinha:
foi o sol, foi a lua ou as estrelas miudinhas?” (GOMES, 2009, págs.4 e 5).
177

Figura 54- A avó de Betina

Fonte: GOMES, 2009, p. 05.

A narrativa inicia sua trama expondo Betina reclamando dos inevitáveis puxões para
desembaraçar o cabelo e ganhar um novo penteado; sua avó explica que faz tudo com muito
carinho, reparte seu cabelo em pequenas partes, usa pente com dentes grossos de madeira,
tudo para tornar a experiência afetiva e carinhosa, um momento de cuidados.

A avó tirava as tranças ou coque antigos, lavava o cabelo da neta, passava o creme
para desembaraçar, desembaraçava, lavava de novo e secava com a toalha. Nessa
última etapa, o cabelo já não tinha mais creme. Uma dica: o segredo para um bom
trançado é deixar o cabelo bem limpinho e sem creme. Evita caspa e facilita o
manusear dos fios.
Depois de todas essas etapas, a avó sentava-se em um banquinho, colocava uma
almofada para Betina sentar-se no chão, jogava uma toalha sobre os ombros da
menina, dividia o cabelo em mechas e ia desembaraçando, penteando e trançando
uma a uma, com uma rapidez incrível (GOMES, 2009, p.6).

O ato de pentear o cabelo, delicadamente detalhado na trama, faz seu leitor transpor-se para o
lugar de Betina, um lugar que é tão familiar para as meninas negras que possuem cabelos
crespos. Embora a dor seja inevitável diante do desembaraço, o prazer do penteado refeito é
recompensador. O momento da realização da trança capilar é, também, o momento de tecer
bons diálogos entre avó e neta.

Penteado findado, Betina corre até o espelho. Ela sempre gostava do que via. E, do outro lado
do espelho, sorria para ela uma menina negra linda, com dois olhos grandes e pretos como
jabuticaba, um rosto redondo e bochechas salientes, cheia de trancinhas com enfeites
coloridos nas pontas.
178

Figura 55 – Betina no espelho

Fonte: GOMES, 2009, p. 09.

O espelho, para muitas meninas negras é um instrumento de sofrimento, haja vista que, na
sociedade, elas se vêem interpeladas por representações que ditam um padrão de beleza
distinto do seu. A mídia, por exemplo, em seus diversos comerciais, desenhos, filmes
animados e programas, nos mostra que a representação capilar de beleza é distinta do cabelo
crespo. Ainda que as ações afirmativas queiram desconstruir este ditame, ele persiste
historicamente. E, apesar de tantas interpelações que Betina recebe, a representatividade e
valorização, encontradas em sua família através da figura da avó, prevalece fazendo com que
o ato de se olhar no espelho seja um momento de alegria, de encontro consigo mesma.

Paul Giroy (2012) descreve que o prazer existente na identidade, o prazer de se identificar
sendo negro, ou, ainda, o prazer de sentir que faz parte de um grupo, recria sentimentos e
torna místicos e metafísicos os valores contidos nas noções de raça, cultura, nacionalidade e
história. As identidades engendram emoção e sentimentos, por isso, são múltiplas e
complexas. Betina representa o prazer de ser, o prazer de se identificar como uma menina
negra, de fazer parte de um grupo. E, este deleite fortalece sua identidade, cultura e história.

A trama discorre exibindo Betina com seu novo penteado, fardada, indo feliz para a escola
acompanhada de sua avó. A escola, para a menina, não era uma tortura, era um palco, onde
ela, menina negra, era a estrela e podia exibir suas tranças engenhosamente produzidas por
sua avó.
O caminho da escola era a passarela da menina, que ouvia vários elogios no caminho.
179

Figura 56 – Betina e sua avó vão à escola

Fonte: GOMES, 2009, p. 11.

Os cremes que a avó usava para lavar o cabelo de Betina eram tão cheirosos! No
outro dia, ao sair à rua com os cabelos trançados, por onde a menina passava, os
comentários eram:
- Que tranças lindas!
- Lá vai Betina, de tranças novas!
- Parecem rendas!
- Parecem bordados!
- Que cabelo cheiroso!
Na escola, a professora comentava:
- Uai! Já mudou de penteado de novo, Betina. Essa menina é impossível!
Betina sorria com suas bochechas salientes e respondia orgulhosa:
- Foi a minha avó quem fez (GOMES, 2009, p.10).

Betina se sentia linda e, reza a lenda, que quando estamos bem o universo conspira a nosso
favor, entretanto, preferimos crer que a segurança imposta por Betina, ainda que de forma
sutil, legitima sua beleza, fazendo com que todos a apreciem. A avó da menina é um elemento
chave no seu empoderamento; pois é a progenitora de Betina que lhe dá a credibilidade de que
seu cabelo é tão lindo quanto ela.

A professora de Betina enxerga a menina e sua beleza, e o fato de ela não ser anônima aos
olhos da professora, pessoa que naturalmente a criança tenta ser alvo de afeto, fortalece sua
estima. A professora de Betina a olha. Ela não é invisível.
Segundo Tzvetan Todorov (1996), podemos ser indiferentes à opinião dos outros, mas não
ficamos insensíveis à falta de reconhecimento da nossa própria existência.

O reconhecimento é duplamente importante, primeiro porque determina a existência humana


e segundo por sua singularidade estrutural, pela valorização das ações do indivíduo. O
reconhecimento comporta que a existência humana seja reconhecida e o valor do indivíduo
180

seja confirmado. Quando esse reconhecimento não acontece (principalmente por pessoas de
grande peso social e afetivo, como é a figura do professor) a criança se sente rejeitada.

A rejeição é um desacordo, é um julgamento, uma negação, em suma, é um peso muito


grande para a criança saber que falta algo que ela não pode alcançar.

Quando a sociedade olha para uma menina negra, por exemplo, e a destitui de beleza, está
fazendo um julgamento, estabelecendo um padrão e relegando à criança a um lugar de
inferioridade que ela não consegue superar, a não ser que negue ou tente alterar seus símbolos
diacríticos, como cabelo e/ou aparência física. A rejeição fica internalizada no sujeito, por
isso, vemos casos de crianças que anseiam poder crescer para alterar seu corpo, seu cabelo,
sua aparência e, assim, poder ser aprovadas, se enquadrar, fazer parte, mas esta situação não é
a de Betina.

Outro elemento interessante sobre Betina e seus cabelos é o cheiro, característica evocada
constantemente, afinal, ela é a menina dos cabelos cheirosos, característica que sempre fora
dissociada dos negros. Patrícia de Santana Pinho (2004) salienta que, além de ser considerado
feio e grosseiro, o corpo do negro sempre foi associado ao fedor e sujeira, citando, inclusive,
que, no século XIX, houve uma produção em massa de sabonetes e um novo padrão de
higiene foi estabelecido, tudo com o objetivo de enfatizar as fronteiras do corpo e as
hierarquias sociais.

O padrão de higiene se traduzia, também, em um formato capilar: para mulher, o “cabelo


bom” era liso e solto, para os homens, curtos. O cabelo crespo, por sua vez, com seu volume e
embaraço, era considerado como sujo e despenteado.

Atualmente, pessoas negras convivem com perguntas do tipo: É fácil a água penetrar em seus
cabelos? Você consegue lavar seu cabelo com essas tranças? Ou seja, a estética negra é
constantemente associada ao desleixo, mas o cabelo de Betina, num processo de inversão, é
associado a bons cheiros, esmero, cuidados e bordados, é um cabelo minuciosamente
construído.
181

O livro segue seu curso mostrando aos leitores como é a jornada de Betina no âmbito escolar.
No recreio, por exemplo, a menina era interpelada por suas colegas, que queriam saber mais
sobre as suas tranças:

- Dá para fazer no meu cabelo, Betina? – perguntava uma menina.


- Dá sim, mas tem que ver o tamanho do cabelo. Se o cabelo estiver curto ou for
muito liso, é preciso emendar com um pouco de cabelo comprado na loja.
- Mas aí vai colocar um cabelo de mentira! Credo!- diziam outras colegas
- Calma, gente!- alertava a garota. – É um tipo de emenda que parece cabelo, mas
quase ninguém nota. Muita gente usa, sabia? Gente negra, gente branca... (GOMES,
2009, p. 12).

O cabelo do negro se tornou um dos elementos que compõem a africanidade. Vários símbolos
foram evocados para construir a identidade africana, dentre eles citamos o uso de roupas
coloridas, turbantes, cabelo de textura natural, crespo, black power, dreadloks, trançados ou
fazendo uso de fibra sintética, todos estes elementos fazem parte da popularização da
identidade africana, que, embora possuam elementos inventivos, como diria Kwame Anthony
Appiah (1997), são falsidades sérias demais para serem ignoradas. O uso e a valorização de
todos esses símbolos diacríticos fortalecem a propagação de um novo modelo de beleza.

Esses símbolos são mais reais e acessíveis para o povo negro do que assumir simulacros de
beleza para se enquadrar em um padrão branco. Em seus estudos, Nilma Lino Gomes (2008)
colhe relatos de mulheres que fizeram uso de produtos extremamente nocivos, que as
deixaram carecas ou machucadas em sua raiz histórica e capilar, tudo para alcançar um liso
que fugirá dela três meses depois.

Betina faz da sua identidade um espetáculo, fazendo ser visto e respeitado seu padrão estético.
Despertando interesse, inclusive de quem normalmente a rechaça, e quando recebia
interpelações negativas, reagia.

Mas havia também quem não gostasse das tranças de Betina. Menino e menina que
torciam o nariz e puxavam as tranças da garota quando ela estava distraída. Betina
respondia, de forma enérgica, não deixava passar nada:
- Para com isso! Tá com inveja é?! Se quiser, peço a minha avó para fazer trancinha
no seu cabelo também (GOMES, 2009, p.12).

A identidade negra é marcada por muitas ausências devido a todo processo histórico que
sofremos por isso; normalmente, a criança, quando tem sua identidade interpelada, se não
estiver ancorada em positivas representações, reverbera essa interpelação como o indicativo
182

de que lhe falta algo. E, quando a menina negra entende que lhe falta algo para ser bonita ou
agradar a sociedade ela cria simulacros: se ela não pode, por exemplo, alisar o cabelo, ela
brinca com algo que encubra sua beleza e sane seu problema, como, por exemplo, utiliza
panos compridos soltos sobre a cabeça, criando um cabelo liso em movimento.

Sabemos que as invenções são importantes instrumentos de defesa e fuga utilizadas com
afinco pelas crianças, normalmente, até os cinco anos de idade, mas Betina inverte essa falta.
Se alguém interpela negativamente sua estética, é porque gostaria de ser como ela, e não o
contrário, e, em situações como estas, muito altivamente, a menina evoca a figura da sua avó
para solucionar o problema. Vale salientar que para Betina os críticos da sua estética não
passam de invejosos da sua beleza.

Simone de Beauvoir [1949] (2009) afirma que nas escolas mistas, onde convivem meninos e
meninas, é comum os meninos oprimirem e perseguirem as meninas, pois, de maneira geral, a
casta considerada superior é hostil com as classes que considera inferior. Para os que se
julgam superiores, é ultrajante achar que podem adquirir algum saber com os sujeitos
considerados inferiores, haja vista que sua crença é de que elas não possuem nenhum
conhecimento. Por isso, é muito comum, na sociedade, pessoas brancas, por exemplo, não se
consultarem com médicos negros ou os homens não consultarem uma mulher.
Betina percebe que essa perseguição e hostilidade é fruto da ignorância, do preconceito e
reforça a idéia de levar uma mulher negra (sua avó) para educar àqueles que se julgam donos
da educação; para a menina a ida da sua avó à escola aplacaria a inveja velada que os alunos
possuem do seu cabelo.
A idéia de levar sua avó à escola para trançar o cabelo dos discentes é também uma tentativa
de deslocamento, de fazer com que aqueles meninos e meninas tentem se colocar no lugar de
Betina, a fim de a respeitarem. Quem sabe usando as tranças como ela, sentindo na pele como
é ser ela, a opinião do outro mude? Tudo é uma questão de ser e conhecer.

Estas interpelações ajudaram na formação de Betina, pois, como explicita Nilma Lino Gomes
(2002), nenhuma identidade se forma no vazio, é necessário troca de experiências,
interpelações, negociações, interações sociais, aprendizagens, enfim, é necessário se
relacionar. Conhecer o modo como cada pessoa forma sua identidade é conhecer um pouco a
singularidade de sua história e esta troca é que orienta as ações, reações e interações dos
indivíduos e seus contextos
183

Posteriormente, a trama nos empurra anos à frente e ilustra que os anos se passaram. Betina
foi crescendo e sua avó envelhecendo:

- Betina, sinto que daqui a pouco tempo, vou me encontrar com os nossos ancestrais.
- Quem são os ancestrais, vó? Ih! Acho que já sei. É gente morta, né?
- Mais ou menos, querida! São pessoas que nasceram bem antes de nós e já
morreram. Algumas nasceram aqui mesmo, no Brasil, e outras viviam numa terra
bem longe, chamada África. Elas nos deixaram ensinamentos e muita história de
luta. A força e a coragem dessas pessoas continuam até hoje em nossas vidas e na
história de cada um de nós (GOMES, 2009, p. 14).

Figura 57 – Betina cresce e sua avó envelhece

Fonte: GOMES, 2009, p. 15.

Adeptos das religiões de matrizes africanas das mais variadas nações, tais como Ketu,
Angola, Efon, Ijexá, Jeje, Nagô-Vodum, Congo, Caboclo e Umbanda, partilham outras
crenças, práticas e rituais no momento da morte.
Reginaldo Prandi (2001) conta que, com a criação do mundo, coube a Obatalá 41 a criação do
homem para povoar a Terra, porém os seus mistérios e segredos pertenciam aos orixás
(ancestrais divinizados africanos que correspondem aos elementos da força da natureza).
Os homens conquistavam seus objetivos graças às oferendas que dedicavam às entidades,
mas, com o alcance dos seus ideais, os homens passaram a se considerar verdadeiros deuses,
de modo que deixaram de alimentar as divindades.

Obatalá se cansou desta situação e construiu um espaço sagrado para viver com os demais
orixás. Esse espaço fica entra a Terra (Aiê) e o Céu (Orum). Obatalá decidiu, também, que os
homens deveriam morrer, esta era a forma de eles saberem que não são deuses, pois lhes falta

41
Obatalá é o grande Orixá, é o criador do mundo, dos homens, animais e plantas. De acordo com a mitologia
yorubá, ele foi o promeiro Orixá criado por Olodumaré, popularmente conhecido como Oxalá ou o Rei do Pano
Branco.
184

a imortalidade, entretanto, Obatalá decidiu que cada homem deveria morrer a seu tempo e sua
42
hora, então criou Iku, a Morte, contudo, à morte foi imposta uma condição: só Olodumaré
podia decidir a hora de morrer de cada homem. A Morte leva, mas a Morte não decide a hora
de morrer. O mistério maior pertence exclusivamente a Olorum (Deus maior).

Quando Iku, a Morte, toca no indivíduo, tira dele o seu Emi (sopro divino), o indivíduo fica,
portanto, imóvel. O Emi, por sua vez, retorna para Olodumaré e sua alma é levada por Oiá
Yansã43 a um dos noves espaços de Orum (Céu ou mundo imaterial onde vivem os orixás,
ancestrais e Olodumaré). Se a alma for de um homem, será cultuado como Egun, ancestral
masculino, reverenciado na sociedade Egungun. Se for um espírito de mulher, se juntará às
Iami Oxorongá, as mães veneráveis, ancestrais femininas, que são cultuadas na sociedade
Gueledé.

Ainda de acordo com Prandi (2001), foi Oiá Yansã quem inventou o ritual funerário, pois, no
dia que Iku levou Odulecê, seu pai adotivo, ela, tomada por uma tristeza, resolveu prestar-lhe
uma homenagem e reuniu todos os instrumentos de caça de seu pai e os enrolou num pano.
Preparou todas as iguarias que ele tanto gostava de saborear. Dançou e cantou por sete dias,
espalhou por toda parte seu canto através do vento, reuniu no local todos os caçadores da
Terra. E na sétima noite, acompanhada dos caçadores, ela adentrou na mata e colocou aos pés
de uma árvore sagrada os pertences de seu pai adotivo.

Olurum, que por ser Deus Supremo tudo vê, emocionou-se com a homenagem de Oiá e a
transformou em guia dos mortos a caminho do Orum e transformou seu pai em orixá. Oiá
tornou-se, portanto, a Mãe dos espaços dos espíritos, guiando o morto a um dos noves espaços
espirituais de acordo com suas ações. O ritual realizado por Oiá Yansã recebeu o nome de
axexê e é realizado até hoje pelos adeptos das religiões de matriz africana, mostrando o
caráter de fundação da mitologia africana.

De acordo com Vanda Machado (2013), o axexê se configura como um conjunto de


obrigações e rituais que acontecem quando um membro da comunidade falece. Dentre essas

42
Na religião Yorubá Olodumaré é o Ser Supremo criador do Céu, da Terra, dos orixás e dos homem. É também
conhecido como Olorum.

43
Na Mitologia Yorubá, Oyá é o nome de um rio na Nigéria. É a divindade dona dos ventos e tem também
como missão guiar os mortos a um dos nove céus.
185

obrigações está uma espécie de reunião com duração de sete noites, onde as pessoas se
reúnem para celebrar a vida que aquele indivíduo teve e a vida espiritual que terá. O axexê é
marcado com danças e comida farta, em seguida são oferecidas moedas, que são depositadas
numa metade de cabaça exposta no meio da sala, e, no dia seguinte, todos são convidados
para uma última refeição com o Egun, o espírito do falecido.

A morte tem um significado diferente para a comunidade que confessa a fé em religiões de


matrizes africanas. Para eles, o indivíduo que morre ancestraliza-se, há uma espécie de
endeusamento, morre-se a matéria, mas a alma permanece viva, podendo, inclusive,
reencarnar e/ou se comunicar com os vivos. O corpo dos homens vivos é a morada dos deuses
e, por isso, a ancestralidade é motivo de comemoração.

Não sabemos ao certo se essa comunicação entre vivos e mortos é algo acessível a todos os
falecidos, pois algumas ritualísticas e informações são transmitidas apenas aos membros das
religiões em questão.

A reencarnação para os adeptos das religiões de matrizes africana, diferente da doutrina


espírita, não faz ligação com evolução espiritual, carma ou castigo. Para a religião de matriz
africana reencarna-se, simplesmente, por que é bom estar vivo, portanto, a pessoa sempre
reencarna em um descendente seu, renascendo sempre na mesma família. Apesar disto, cada
indivíduo é único, pois a cada reencarnação seu ori (cabeça) receberá um odu (destino), que é
diferente a cada vida.

A morte é, também, sinônimo de ancestralidade, pois quando o indivíduo ancestraliza, ele se


torna um espírito, um elo da natureza que pode ser encontrado em todos os lugares: na água,
na terra, no mar, entre os seus, cuidando e protegendo, até se comunicando dentro da
espiritualidade. É como se a morte, paradoxalmente, não morresse. A morte adquire, também,
um caráter de reencontro, onde o novo ancestralizado encontra os demais, por isso a conversa
de Betina e sua avó não possui o peso normalmente atribuído à morte. Na conversa, a morte é
relacionada com a idéia de uma viagem e dá indícios que elas poderiam se reencontrar um dia.
A morte é, ainda, sinônimo de celebração, pois todo ancestral deixa um legado, um presente, e
isso era também um motivo de alegria em meio a dor da saudade.
186

Diante do comunicado de sua avó que vai encontrar seus ancestrais, Betina se oferece para
acompanhá-la nesta viagem, mas ela informa que ainda não é sua hora, no tempo certo elas se
reencontrariam, mas antes de ela partir, queria deixar um legado para a menina: ensinar-lhe a
fazer tranças, mas com uma condição:

- (...) Vou lhe ensinar a fazer tranças.


- Mesmo? Oba! Oba! As meninas lá na escola vivem me pedindo para trançar os
cabelos delas e eu ainda não sei...
- Mas com uma condição – afirmou a avó.
- Qual? – Betina arregalou ainda mais os olhos grandes.
- Você vai trançar o cabelo de toda a gente, ajudando cada pessoa que chegar até
você a se sentir bem, gostar mais de si, sentir-se feliz de ser como é, com o seu
cabelo e a sua aparência.
- Ih! Vó! Mas isso é difícil! Parece até aquelas histórias de fada em que a menina
tinha que fazer alguma coisa para ficar feliz no final!? Não sei se eu consigo isso...
- É claro que consegue! E onde está esta força que eu vejo nestes olhos cor de
jabuticaba? E essa coragem que vejo pulsar neste coração? É claro que consegue!
- Então, tá, vó! Eu aceito! Quando começamos? Ah! Mas, antes, fale com os
ancestrais para esperarem mais um pouco. Nós duas temos muita coisa para fazer,
aqui, ainda (GOMES, 2009, p.16)

Figura 58 - O abraço

Fonte: GOMES, 2009, p 17.

A conversa de Betina e sua avó era de tal leveza que não parecia que a mesma estava se
despedindo, talvez porque não estivesse. Transmitir para a menina seu legado, era, também,
uma forma de não morrer. Abraço apertado, acordo firmado. Betina iria receber um presente,
mas com ele uma responsabilidade, ela iria se transformar em uma fada negra. Sim, uma fada
negra para ajudar o seu povo a tornar-se negro, adquirindo o prazer de ser negro, através de
seu cabelo.

Betina fada-madrinha não ajudaria a uma só pessoa como a fada-madrinha da Cinderela, mas
ajudaria a todo um coletivo que a procurasse.
187

Se a madrinha de Cinderela deu-lhe roupas e um sapato de cristal, Betina daria de volta o


amor do sujeito por seus próprios cabelos. O cabelo faz parte de um sistema de linguagens
que indica características que variam desde religião, até status social, origem geográfica e
afirmação estética. Quantos bordados Betina vai tecer ao cuidar do cabelo de alguém?

A narrativa segue seu curso informando que, no decorrer do tempo, Betina aprendeu a trançar
com maestria, passando a trançar o cabelo de sua mãe, irmãs, irmãos, primos, vizinhos e até o
cabelo da sua avó. Neste momento da trama, ficamos sabendo que Betina tem outros
familiares além dela, a informação da família de Betina se fez importante, pois, logo em
seguida, a autora torna a informar que o tempo passou e agora a avó da menina já foi
encontrar os ancestrais, mas Betina não está sozinha, ela tem os outros membros da sua
família, embora nenhum deles apareçam na obra.

Com o passar do tempo, Betina se transformou de menina trançadeira em mulher cabeleireira.


Empresária, montou seu próprio salão de beleza, tinha funcionários e o estabelecimento
sempre cheio de pessoas que a procuravam em busca de tranças charmosas. O trabalho de
Betina ficou conhecido, inclusive, fora do país.

Quem passava pelo salão de Betina saía de lá com os cabelos bem tratados, com
penteados diferentes, tranças criativas e cheio de energia boa! Parecia mágica!
Betina pensava: “Se minha avó estivesse aqui, ela ia ficar orgulha!”, e os seus olhos
derramavam lembranças (GOMES, 2009, p. 18).

De acordo com Silmária Souza Brandão (2008), o cenário brasileiro, principalmente o cenário
imperial, conduzido por Dom Pedro II, ressaltou lugares profissionais, destacando o
estereótipo relacionado ao ideal de feminilidade, como submissão, emotividade e dependência
financeira, em contraponto à masculinidade vinculada à inteligência, força física e o papel de
provedor do lar. Concepções patriarcais como estas fortaleceram, por um longo período, o
afastamento oficial das mulheres do ambiente de trabalho.

A autora supracitada entende que o patriarcado é um sistema caracterizado pelas relações de


dominação e exploração, é uma estrutura hierárquica, onde os homens exercem dominação
sobre as mulheres. As mulheres, no sistema patriarcal, não são seres considerados propensos
ao trabalho e exercícios intelectuais, elas são vistas como objetos de satisfação sexual
masculina, o que indica o controle de seus corpos, logo, sua única prestação de serviço era
servir aos homens.
188

Idéias arraigadas como essas induzem à construção de representações femininas como seres
passivos, dóceis e inoperantes.

Maria Lúcia de Arruda Aranha (1989) conta-nos que na Lucânia – Itália, por exemplo,
quando um menino nasce, se derrama uma bilha (vaso bojudo) d’água pela estrada,
simbolizando que a criança estava destinada a percorrer o mundo; já quando nasce uma
menina, a água é derramada na ladeira, significando que sua vida irá se desenrolar dentro das
paredes domésticas.

O exemplo de Aranha (1989) serve como indicador de que as definições patriarcais se


estendem a um período anterior analisado por Silmária Souza Brandão (2008), assim como
atingem outras localidades, não somente o Brasil.

Aranha (1989) informa-nos, também, que somente quando se trata de comunidades primitivas
é que a mulher desempenha um papel social relevante na tribo, mesmo havendo divisão
sexual das tarefas elas não eram insubordinadas, porém, à medida que é alterado o modo de
produção fazendo surgir a propriedade privada, a mulher é confinada ao mundo doméstico e
subordinada ao chefe da família, assim, sua sexualidade é controlada. A mulher é confinada
ao lar para cuidar dos filhos e as meninas ficam presas no lar à espera do casamento.

A literatura, por sua vez, reforça tais estereótipos, pois com frequência, são produzidos
personagens de mulheres confinadas ao lar, cuidando de seus maridos, e o pai por sua vez, é o
provedor, o intelectual e a mãe é a emoção destituída de qualquer racionalidade.

A era industrial e, posteriormente, o capitalismo, lançam as mulheres ao mercado de trabalho,


mas as distinções entre mulher e homem já estavam estabelecidas. De acordo com Anailde
Almeida (2010), essas distinções vão definir privilégios, distribuições de atividades e
diferenças.
Nesse sentido, Alda Motta (1986) afirma que o trabalho feminino está imbuído em uma
estratificação social, numa organização hierárquica, onde a mulher é duplamente dominada
enquanto estrato feminino e classe econômica. Entretanto, o fato da mulher ter se inserido no
mercado de trabalho não tirou dela o caráter de mãe e cuidadora do lar; a mulher ainda se vê
premida a dar conta dos dois âmbitos, um que lhe é considerado inato (ser mãe, esposa e dona
de casa) e outro que ela buscou em um ato de ousadia (o mercado de trabalho).
189

Heleieth Saffioti (1987) alega que a chegada do capitalismo revela um caminho de


adversidades para as mulheres, pois, no nível super estrutural, ela era considerada inferior,
pois sua força física é considerada limitada. No desenvolvimento das atividades complexas
ela também tem sua capacidade de decisão, controle e racionalidade consideradas
comprometidas, logo, os espaços ocupados possuem menor prestígio social, menor salário, e
nenhuma valorização profissional. Desse modo, profissões como empregada doméstica, babá,
cuidadora de idosos, costureira, diarista e cabeleireira foram profissões demarcadas
historicamente e culturalmente para as mulheres, profissões consideradas de baixo prestígio e
rendimento.

Sabemos que as mulheres lutam constantemente para mudar a situação acima descrita, assim
como sabemos que o número de mulheres atuantes no mercado de trabalho e nas
universidades é crescente, assim como tem aumentado sua presença em cargos de prestígio,
mas esse aumento ainda não garantiu a normalização da mulher enquanto boa profissional,
não diminuiu as diferenças entre homens e mulheres e não fizeram seus salários aumentarem;
e, quando isso ocorre, estamos diante de uma mulher considerada uma exceção à regra.

Apesar dos entraves, as mulheres não devem abandonar o trabalho, afinal, como alega Simone
de Beauvoir [1949] (2009), o trabalho é o único meio para que a mulher se torne
independente, inclusive economicamente.

O trabalho singulariza a mulher, é um exercício de liberdade e faz com que ela se torne e se
afirme sujeito autônomo. Esta autonomia proveniente do trabalho tira da mulher o olhar de
inutilidade que o patriarcado lançou sobre ela, o que a transformou, erroneamente, em uma
parasita. Quando a mulher trabalha o sistema de dependência desmorona e, sendo assim, a
mulher não precisa mais de intermediários para viver, ela não precisa do mediador masculino
para, minimamente, suprir suas necessidades. A mulher se basta ao ponto de decidir se quer
ou não uma figura masculina em sua vida e como quer esta figura. O trabalho é uma forma de
reapropriação de si, logo, é legítimo que, cada vez mais, busquemos espaço, respeito,
equidade e visibilidade.

Como já citado, as mulheres consideradas exceções, em sua maioria, são brancas, pois, como
explicita bell hoocks (2013), o status da mulher branca é diferente da mulher negra. As
190

experiências da negra denotam que, dentro da categoria considerada menor (mulher), existe
uma ainda menor, que é a mulher negra.

O status da mulher branca faz com que apesar dos entraves, ela rompa mais facilmente as
barreiras, e alcance um cargo de prestígio social. Entretanto, se para uma mulher branca é
difícil galgar sucesso profissional, seria então, um ato impossível para a mulher negra? A
idéia de intelectualidade historicamente sempre teve cor.

Nilma Lino Gomes (2008) desconstrói os lugares cristalizados ao empoderar Betina, uma
menina/mulher negra, fazendo dela uma cabeleira, profissional de cuidado e beleza. Todavia,
esta é a rasura da narrativa inserir intelectualidade em uma profissão considerada por muitos
como mecânica, a outra rasura é que Betina, não é só uma cabeleireira, ela é também uma
empresária que administra um negócio de sucesso internacional, é chefe e não precisou de
brancura ou de um falo.

Sabemos que devem ter sido muitas as lutas travadas para que uma mulher negra alcance tal
feito, mas a autora quis mostrar que sim, é possível, pois as mulheres negras são inteligentes e
capazes.

Betina confirma, na trama, a concepção de Beauvoir [1949] (2009), que diz que o trabalho
elimina a necessidade da mediação masculina, figura inexistente na trama.
O trabalho reapropriou Betina de si mesma, deu-lhe completude.

Figura 59 - Betina, mulher, negra, cabeleireira

Fonte: GOMES, 2009, p 19.


191

A narrativa se encerra com Betina sendo convidada a proferir uma palestra na Escola
Municipal Pixinguinha, com o objetivo de falar como seus penteados tem devolvido a
autoestima das pessoas. Embora nervosa, Betina aceitou o convite e ao chegar ao local da
palestra, após ser apresentada aos educandos pela diretora, ela iniciou sua apresentação
perguntando quem gostaria de fazer-lhe alguma pergunta e, assim, uma menina negra com
características similares às suas na infância, quis saber como ela aprendeu a trançar cabelos,
ao que foi respondido:

- Na história da minha família, a arte das tranças foi ensinada de mãe para filha, de
tia para sobrinha, de avó para neta e assim por diante. Uma mulher foi ensinando
para a outra até chegar a mim. Mas isso não aconteceu só a minha família. É uma
forma muito comum de ensinar e aprender presente na história de muitas famílias
brasileiras (e também de outros países), principalmente, as negras. Em nosso país,
muito do que sabemos hoje, tem sido comunicado dessa maneira – explicou a
cabeleireira, emocionada.
- Poxa! – suspirou uma menina negra sentada bem à frente de Betina. – Então, a
gente tem muita história para aprender e para contar. Fale mais, Betina!!! (GOMES,
2008, p.22).

O livro finda mostrando a importância dos saberes orais para os descendentes africanos, a
importância da escuta e do compartilhamento, o respeito aos ancestrais, além de mostrar que o
cuidado com a estética é uma forma de expressar e divulgar a riqueza do universo negro e a
força ancestral que movimento o Brasil.

Toda a trama nos mostrou que o cabelo remete à vida privada tecida, cuidada e valorizada no
reduto do lar e, também, à vida pública, onde é interpelada, rechaçada e/ou valorizada. O
cabelo é um dos traços mais marcantes da ancestralidade do indivíduo e denota não somente
status, mas, pertencimento social.

Betina utiliza seu cabelo como perfomance individual de menina negra e como perfomance
coletiva, mostrando de forma orgulhosa a qual grupo ela pertence.

Betina é uma menina/mulher negra que tem o que falar, defende seu posicionamento político
com o corpo e, ainda que lhe faltem as palavras, seu cabelo fala por ela. Esperamos que o
mundo esteja cada vez mais repleto de Betina’s e nossos ouvidos atentados para escutá-la.
192

4.3 GABRIELA E OMO-OBÁ: NARRATIVAS DE PRINCESAS

Quem nunca escutou uma mãe afirmar que sua filha é uma princesa? Quem nunca
escutou que todo menina é uma princesa? Estas considerações escutadas corriqueiramente,
nos impelem a indagar: o que é ser princesa? Será mesmo que toda menina é uma princesa?
Quem usa a coroa e empunha o cedro? Em qual narrativa habitam as princesas?

Na literatura infantil, as princesas são personagens que povoam as narrativas. No Brasil as


histórias de/com princesas de maior circulação e influência refletem um contexto europeu, são
os chamados contos de fadas ou contos maravilhosos.

De acordo com Luiza Vilma Pires Vale (2001), os contos maravilhosos se diferenciam dos
contos de fada. Nos primeiros, o personagem principal tem problemas de ordem social e
econômica, como é o caso de Aladim, que necessitou roubar para sobreviver, nos contos
maravilhosos os personagens são ajudados por seres mágicos, tais como gênios, objetos
mágicos como lâmpadas, anões, duendes, gigantes etc. Já os contos de fada são narrativas
povoadas por reis, rainhas, príncipes, princesas, bruxas e, principalmente, fadas.

Segundo Marie-Louise Von Franz (1990), a origem dos contos de fadas é duvidosa e pouco se
sabe da sua origem. Inicialmente, foram escritos para o público adulto e eram contados nos
campos, salas de fiar e em diversas reuniões das quais apenas os adultos participavam e não
tinha o objetivo de ensinar moralidade.

Sheldon Cashdan (2000) explicita que, originalmente, os contos de fada traziam temáticas
como morte, assassinato, canibalismo, traições e castigos terríveis, incesto, adultério, dentre
outras. Todavia, convencionou-se a crença de que os contos de fadas surgiram na França, e as
primeiras foram obras infantis publicadas na primeira metade do século XVIII são as Fábulas
de La Fontaine, que retomam a tradição das fábulas gregas de Esopo e Fedro.

No século XVIII foram editadas, entre 1668 e 1694, os Contos da Mamãe Gansa (1691/1697
– sob o título original de Histórias ou Narrativas do Tempo Passado com Moralidades),
escrito por Charles Perrault, sendo que este atribuiu a autoria da obra a seu filho Pierre
Darmança. Os contos de fadas (8 volumes, 1696/1699) de Mme. d’ Aulnoy, as aventuras de
Telêmaco, de Fénelon (1699), lançadas em 1717 após a sua morte. Essas obras são de suma
193

importância para a Literatura Infantil, pois são textos apoiados na Antiguidade Clássica ou em
narrativas transmitidas oralmente entre o povo.

As primeiras obras consideradas infantis são provenientes das narrativas orais, consideradas
como folclore da sociedade, que foram recolhidas, “lapidadas moralmente”, modificadas para
tornar-se adequada às crianças.

A Literatura Infantil universal possui três grandes expoentes, representantes do que se


condicionou classificar, inicialmente, como Literatura Infantil. O primeiro deles é Charles
Perrault, advogado nascido em Paris, considerado o responsável pelo surto inicial. Foi
incorporado à literatura infantil a partir do XVIII.

Lígia Cademartori (1986) explicita que os contos chegaram a Perrault através dos contadores
que, na época, se integravam à vida doméstica como servos. A autora o descreve como um
burguês que desprezava o povo e as superstições populares.

Perrault pertencia à classe abastada da sociedade, então, por se julgar um homem culto,
ironizava a cultura popular, mas se valia dela para fazer suas obras. Em suas narrativas, ele
utiliza o sarcasmo em relação ao povo e as superstições populares, ao passo que também
escrevia obras marcadas pela preocupação de fazer uma arte moralizante através de uma
literatura pedagógica.

Já Lúcia Pimentel Góes (1991) afirma que as ideias de Perrault refletem sua época; seus livros
são de cunho moral, de inspiração cristã, e o maravilhoso ocupa lugar modesto em suas obras
e as fadas44 raramente aparecem em sua narrativa.

Lígia Cademartori (1986), por sua vez, aborda que o trabalho de Perrault é o de um adaptador,
pois ele se apropriou dos contos orais populares, acrescentando-lhes características e detalhes
que correspondem ao gosto da classe à qual se destinavam suas obras: a burguesia.

Entre alguns de seus contos mais conhecidos estão: A Bela Adormecida no Bosque,
Chapeuzinho Vermelho, Barba Azul, O gato de botas, A Gata Borralheira ou Cinderela, O

44
Segundo Jesualdo (1978), as fadas são seres de origem certamente pagã que tem em seu poder ‘armas
encantadas’ com os quais se dignificam presentear seus favoritos.
194

Pequeno Polegar etc. Foram contemporâneos de Perrault: Mme. d’ Aulnoy, Condessa Murat e
Mme. Leprince de Beaumont entre outros.

Segundo Jesualdo (1978), assim como os contos de Perrault, são de origem popular, os contos
narrados pelos irmãos Luís Jacob e Guilherme Carlos Grimm (segundo representantes),
também foram pautadas no recolhimento e lapidação das experiências orais da sociedade. Os
irmãos Grimm, como ficaram conhecidos, foram filósofos, folcloristas, historiadores e
pesquisadores. De acordo com Goés (1991), em suas viagens, eles se hospedavam de em casa
em casa, colhendo diretamente do povo suas memórias, matéria de seus contos. O material
recolhido foi publicado entre os anos de 1812 e 1822, na Alemanha, como contos infantis e
lendas para a lareira no volume Contos de Fadas para Crianças e Adultos. Nesta obra constam
narrativas como: A Bela Adormecida, Branca de Neve e os Sete Anões, Chapeuzinho
Vermelho, A gata borralheira, O príncipe Rã, João e Maria, O Lobo e a Raposa, O pequeno
Polegar etc.

Vale salientar que muitas obras publicadas por Perrault foram republicadas pelos os Irmãos
Grimm, que mudaram algumas características relativas ao enredo das histórias como, por
exemplo, no conto da Chapeuzinho Vermelho publicado por Perrault, essa morre no desfecho
da história, na versão dos Irmãos Grimm, aparece um lenhador para lhes salvar. Portanto, os
irmãos Grimm modificam as histórias acrescentando-lhes complacência e finais mais alegres.

Em 1805 nasceu em Odessa, Dinamarca, o terceiro grande expoente literário, Hans Christian
Andersen. Filho de um sapateiro e uma serviçal, sendo um de seus avós um maníaco
inofensivo, Andersen era motivo de zombaria das crianças de sua sociedade. Considerado
feio, teve dificuldade para estudar, foi para Copenhague e viveu na miséria, até que encontrou
o protetor Collin, que o levou para sua casa.

Após a conclusão da escola secundária, Andersen começou a escrever narrativas sem êxito,
mas devido à sua habilidade em contar histórias infantis, reelaborou a matéria popular,
criando ficções originais como, por exemplo, O Patinho Feio, A Rainha da Neve, A Roupa
Nova do Imperador, A Pequena Vendedora de Fósforos, Sapatinhos Vermelhos, O
Soldadinho de Chumbo, A Princesa e a Ervilha, A Pequena Sereia etc.
195

De acordo com Goés (1991), nos contos de Andersen, é possível verificar a presença da sátira,
da ironia sutil, um profundo sentimento humano, cheio de dolorosa tristeza, lembranças da
sua infância, credulidade, simplicidade de gente humilde, alegria ingênua, rudeza para com os
poderosos. Sua obra é poética e moralmente ponderada.
Jesualdo (1978) assegura que nas obras de Andersen, mais do que nos outros autores, é
possível verificar a presença do maravilhoso, um maravilhoso que não é artificial, como nos
contos de fadas, um maravilhoso real e humano, produto, talvez, da própria vida do autor.

O dia do aniversário de Andersen (02 de abril) ficou dedicado ao Dia Internacional do Livro
Infantil. Ele, que foi um poeta, um romântico, diferente dos demais que apenas se apropriaram
da cultural popular oral, Andersen de fato escreveu inúmeros contos, sendo, portanto
considerado o Pai da Literatura Infantil.

Todo esse breve passeio pelos contos de fada clássicos europeus é devido à grande influência
de tais narrativas; seus personagens e suas obras são recontados na literatura, nos filmes e
imortalizadas no imaginário infantil. Um dos personagens mais marcantes são as princesas,
filhas de família nobre, descritas geralmente, com passividade, pureza e bons sentimentos;
normalmente, nessas tramas, elas sofrem infortúnios, mas são ajudadas ou pelo destino ou por
seres mágicos, em uma só mirada encontram o amor de suas vidas, se casam, e passam a ser
princesas casadas que vivem felizes para sempre.

As princesas popularmente conhecidas (Cinderela, Branca de Neve, Rapunzel, Bela


Adormecida) são representadas com seus cabelos lisos, traços finos e pele clara, sinônimos da
considerada verdadeira beleza. E o que faz exatamente uma princesa?

A Mattel, empresa californiana fundada 1945 e responsável pelos filmes da boneca mais
popular do mundo, a Barbie, lançou em 2004 o filme A Princesa e a Plebeia e, em uma das
cenas do filme, podemos ver o empregado de confiança, Julian, ensinando a plebeia Érica a
ser princesa através de uma canção45:

Como Ser Uma Princesa


Julian:
Uma princesa sabe usar uma colher

45
Canção retirada do website <https://www.letras.mus.br/barbie/1186600> e presente no filme lançado em 2004,
o primeiro musical das séries Barbie, dirigido por William Lau, inspirado, na obra The Prince and The Pauper,
do escritor americano Mark Twain.
196

Tem mil sapatos pra escolher o que quiser


Tem conduta exemplar, é discreta ao jantar
E demonstra interesse para ouvir
Uma princesa nunca esquece de sorrir

Pés delicados ao dançar


O protocolo respeitar
Goste ou não a solução é dizer sim
Sua postura, por favor,
Mais elegante que uma flor
Saber curvar e sempre acenar assim
O seu porte é perfeito
Sem mania ou trejeito
A cabeça vira devagar

Érica:
Eu vejo

Julian:
Caminhando com cuidado
Um sorriso delicado
O que sente nunca demonstrar, voar
Uma princesa sabe como se portar
Uma princesa nunca pode descansar
Ser paciente e sorrir
Ter elegância ao dormir
Quando falar saber mostrar erudição
Condes e lordes conhecer
Mil instrumentos aprender
Ser afinada pra cantar qualquer canção
E o seu lindo olhar
Nos faz sonhar
Não importa onde for
Então tudo é inspiração
Que perfeição, ela é como uma flor
Pés delicados sim

Érica:
É hora de dançar
Julian:
E com disposição

Érica:
Atender se alguém chamar

Julian:
Sempre pronta para o que acontecer
Sua postura sim

Érica:
A postura por favor

Julian:
Um golinho assim

Érica:
Tenha sempre bom humor

Julian:
Esperar a hora certa pra dizer
Uma princesa não precisa cozinhar
197

Uma princesa sabe como encantar

Após ouvir esta canção, perguntamos, será que realmente toda menina quer ser princesa ou,
ainda, esse tipo de princesa? Uma princesa que é bonita tem luxo, mas não pode expressar
suas opiniões ou sentimentos, que não exerce nenhuma função por vontade própria, que é
impelida a demonstrar felicidade a todo momento, que precisa corresponder a um padrão de
beleza? Devem existir outras formas de ser princesa...

O mercado fílmico e/ou consumidor, assim como a literatura, não pensava em outras formas
de representar as princesas a não ser revestidas de brancura. Em contrapartida, a onda dos
movimentos negros ganhou cada vez mais força e os coletivos/grupos artísticos, poéticos e
literários aumentaram paulatinamente nos bairros periféricos, discutindo e lutando pela
importância de novas representações e a garantia de direitos para o povo negro, assim como
combate ao racismo e a discriminação. Por conseguinte, o negro conquistou uma ampliação
(embora pequena) de visibilidade, devido ao aumento da sua participação em espaços
considerados privilegiados, tais como as universidades públicas através da política das cotas
raciais, o que fez com que os negros fossem vistos como consumidores aos olhos do mercado,
logo, uma gama de produtos alegando africanidade surgiram. Dentre eles podemos citar:
maquiagens, cremes corporais, cremes capilares e alisamentos que, possuem alto teor de
compostos químicos, nocivos a saúde capilar.

Embora o negro tenha se tornado consumidor, a mídia persiste mostrando majoritariamente


em suas propagandas a figura do branco, é como se apenas o branco comesse, amasse, se
maquiasse, trabalhasse etc. (GOMES, 2008).

E, foi pensando no negro como consumidor, que a Walt Disney Animation Studios lançou, em
2009, o filme A Princesa e o Sapo, o filme se inspirou no conto dos Irmãos Grimm O Príncipe
Sapo46, e apresenta na trama a personagem Tiana, primeira princesa negra da Disney.

Princesa negra? O que assistimos foi a história de uma garçonete negra, órfã de pai, digna e
trabalhadora que sonhava em ter seu próprio negócio. A trama prossegue informando que ela

46
O Príncipe Sapo é um conto de fadas que se tornou conhecido pela versão dos irmãos Grimm; é
tradicionalmente uma trama que conta a história de uma princesa mimada que conhece um sapo quando deixa
sua bola de ouro cair à beira de um lago; embora relute, a princesa hospeda o sapo em sua casa e com um beijo o
transforma em príncipe.
198

conheceu um príncipe, diferente dos demais da Disney, pois Naveen é negro, boêmio, dado às
aventuras envolvendo bebidas e mulheres, ele era a representação da depravação e da
malandragem.

Tiana é narrada como forte, mas sua força é braçal, ela rejeita relacionamentos, fugindo ao
estereótipo da mulata sensual. A moça espera que, se um dia cogitar se casar encontre um
rapaz tão trabalhador quanto ela, logo, o príncipe não a agrada.

Entretanto, através de um ato mágico, os dois são transformados em sapos. A magia não foi
feita por uma boa fada que auxilia a mocinha, mas sim, por um bruxo que invoca os
ancestrais, chamados de “amigos do outro lado”, para prejudicar o príncipe e separá-lo da
mocinha. Os ancestrais, uma vez invocados, saem de suas tumbas em vultos escuros e
emitindo gemidos; neste momento, máscaras africanas aparecem na tela, dando a entender
que “o outro lado” é a África endemoniada; é uma cena que causa medo até em gente grande.

A magia é feita por intermédio de um vodu47 e um pacto de sangue, e neste momento o bruxo
promete sua alma aos ancestrais, tal qual uma cerimônia satânica. Magia feita, os personagens
são transformados em sapos e a figura do negro é substituída pela presença do animal,
considerado por muitos como de mau agouro. Somente no final da trama, quando o príncipe
aprende a trabalhar (Naveen é o único príncipe que aprende o trabalho braçal), Tiana se
apaixona por ele, desfaz o encanto com um beijo e se torna princesa, não pelo sangue, mas
pelo casamento.

Doravante, seria extremista informar que a mídia, ainda que minimamente, não tenha nos
presenteado com algumas boas representações do negro, um exemplo disso é o desenho
animado intitulado Doutora Brinquedos, uma série infantil animada produzida para a televisão
pela Brown Bag Films, que estreou no Brasil em 2012 no canal Disney Channel e Disney
Junior.

A série é sobre uma menina negra de seis anos com lindos cabelos crespos, filha de uma
médica, que se intitula doutora, pois consegue consertar/curar os brinquedos e, com um toque

47
Vodu, Vodum, vodun ou voodoo são termos que se referem aos ramos de uma tradição religiosa baseada nos
ancestrais. Vodu pode designar tanto a religião quanto os espíritos centrais nessa religião. Comumente é
associada a prática de representar o indivíduo em um boneco, e, ao machucar o brinquedo, machuca-se também
o sujeito envolvido neste ritual.
199

de magia, consegue falar com eles. Em um dos episódios, ela “conserta” uma boneca negra
que tem como “defeito” a negação do seu cabelo. A doutora a ensina a gostar de si mesma e
assumir seu crespo como uma expressão de negritude, beleza e engajamento político. Este
desenho mostra que o mundo mágico do “Era uma vez”, quando bem utilizado, traz muitos
benefícios às crianças.

Os contos de fada têm sido usados para divertir, fazer a criança viajar no tempo mítico do
“Era uma vez” que pode ser em qualquer tempo, pois é uma partícula perdida.
Nos contos de fada, conforme ilustra Bruno Bettelheim (2012), a criança pode enfrentar seus
medos, ansiedades, aprender valores, mas e a questão da representação?

O desejo de ser princesa atinge toda classe e etnia de meninas; elas querem ser, fazer parte da
realeza. A imagem da princesa está associada à beleza, luxo e poder, elementos sedutores para
qualquer indivíduo. Mas como uma menina negra poder ser princesa, se comumente
concebemos as princesas como a Cinderela ou aquelas mostradas no filme da Disney e da
Mattel? Não existem princesas negras?

Objetivando apresentar a seus leitores a existência da realeza negra, em 2011 foi lançada a
cartilha Somos Todas Rainhas, produzida pela Associação Frida Khalo e Articulação Política
das Juventudes Negras, a fim de enfatizar o legado africano que nos deixou de herança uma
história de lutas de um povo de ricos costumes, tradições orais e narrativas repletas de
soberania, com as presenças marcantes de princesas, rainhas e imperatrizes negras, dentre as
quais a cartilha destaca Hatshepsut, filha de Thothmes I, primeira mulher a conduzir um
império na história da humanidade, cerca de 1.500 anos antes de Cristo. Governou o império
egípcio por 22 anos e foi a primeira a usar os trajes sagrados do Faraó. Sua morte ainda é
misteriosa; não se sabe ao certo se foi natural ou se ela foi assinada por seu enteado,
Thothmes III, que, após sua morte, assumiu o trono e mandou apagar as memórias da antiga
rainha, inclusive, deformando seu rosto nas estatuas faraônicas.

Temos, ainda, a rainha de Sabá, também conhecida por Makeda ou Belquis, que viveu no
século X a.C. e reinou sobre as terras de Sabá, Arábia e Etiópia, exercendo uma intensa
atuação diplomática. Seus feitos são narrados na Bíblia, no Alcorão e nas lendas da Síria,
Israel e Egito. Sabá empreendeu uma longa viagem a Jerusalém para aprender conceitos de
sabedoria com o rei Salomão e, em posse de tais conhecimentos, ela introduziu a religião e a
200

cultura de Israel em sua própria terra. Na Grécia, chamavam-na de “Minerva negra” e “Diana
etíope”.
As mulheres africanas de diferentes classes sociais, servas e rainhas, lutaram contra a invasão
e a exploração estrangeira do continente, lutaram pela manutenção de sua soberania.

As rainhas foram chamadas, na Etiópia, de Candaces, um termo atribuído às mulheres/rainhas


africanas que ocupam cargos de Chefe de Estado, mulheres negras que governam.

A cartilha Somos Todas Rainhas (2011) apresenta a seus leitores cinco Candaces mais
conhecidas (os nomes não são revelados em seus estudos), dentre elas: a Candace que se opôs
ao movimento em direção ao sul dos exércitos de Alexandre, o Grande; a Candace que lutou
contra o governador romano do Egito, Patronius; a Candace citada na Bíblia no livro de Atos,
capítulo 8, versículo 27; a Candace que guerreou contra Nero; e a última Candace não deixou
registros seguros de modo que a pesquisa não a cita em seus relatos.

Podemos observar que as princesas e rainhas africanas de fato exerciam o poder, elas
chefiavam, guerreavam, comandavam, são figuras reais e não imaginadas, diferente dos
contos clássico de fadas (não intencionamos fazer juízo de valor) que, embora princesas, não
mandavam em nada, elas tinham o poder da beleza e não o da decisão, sua coroa era
decorativa, pois quem segurava o cedro e comandava o reino eram os homens.

A cartilha Somos Todas Rainhas (2011) prossegue desvelando um reinado de rainhas


africanas, dentre elas a Rainha Dahia-Al Kahina, que governou a Mauritânia desde 688 e
resistiu à expansão islâmica na África. Também a Rainha Yaa Asantewaa que liderou o povo
Ashanti na guerra contra os ingleses - conflito que passou a ser conhecido como a Guerra Yaa
Asantewaa, o nome da rainha. Após meses de combate, os ingleses enviaram 1.400 soldados
armados e, a rainha e outros líderes Ashanti foram capturados e deportados, colocando fim à
guerra. Porém, a resistência desse povo perdurou.

A seguir, citamos outras rainhas guerreiras:

 Cleópatra que nasceu no ano 69 a.C., assumiu o trono do Egito junto a seu irmão
Ptolomeu XIII quando tinha dezoito anos de idade e, quando perdeu o controle de seu
governo, preferiu o suicídio;
201

 Aqualtune foi uma princesa que viveu durante o século XVII, era filha de um
importante rei do Congo. Participou de combates liderando 10 mil guerreiros, no
entanto, após perder uma batalha, foi capturada e trazida para o porto de Recife, no
Brasil, para ser escravizada. Chegando ao Brasil, tomou conhecimento das histórias de
resistência do povo negro do local, fugiu para o Quilombo dos Palmares e liderou um
dos quilombos palmarinos;
 Rainha Teresa, que liderou o Quilombo do Quariterê, em Mato Grosso, próximo à
atual fronteira com a Bolívia, por duas décadas no século XVIII;
 Luíza Mahim, mulher negra de etnia jejê-nagô, atuou em levantes que aconteceram na
Bahia nas primeiras décadas do século XIX, entre eles, a Revolta dos Malês, em 1835,
e a Sabinada, em 1837. Tornou-se livre em 1812 e sua origem ainda é duvidosa, não se
sabe se nasceu na Bahia ou se nasceu na África, todavia, Mahim dizia ter sido princesa
na África;
 Taitu Bitul, imperatriz liderou as tropas contras os invasores italianos e, graças a seu
empenho, a Etiópia permaneceu como o único território livre do continente africano
após a divisão e colonização pelos países europeus no final do século XIX;
 Nzinga aqui já retratada, também conhecida como Jinga ou Ginga, foi rainha do
Ndongo Oriental, região da África Centro-Ocidental, onde hoje se localiza a Angola, e
lutou contra a invasão europeia;
 A rainha Na Agontimé foi casada com o rei Agonglo que governou o reino do Daomé,
atual República do Benin fundada no início do século XVII.

Com tantas princesas e rainhas negras, por que as meninas negras estão condenadas a um só
modelo de soberania? Na contemporaneidade, a literatura infantil negro-brasileira tem
fortalecido a insurgência de novas princesas com outras características. As meninas estão
reivindicando a chave do castelo e o direito ao trono, afinal, toda menina quer ser princesa,
mas nem toda princesa precisa ser igual.

Entre as princesas insurgentes está Gabriela, a Princesa de Daomé, uma obra de Marta
Rodrigues, publicada em 2013 pela editora Mazza e ilustrada por David Smyth. O ilustrador,
nascido na Inglaterra, graduou-se como Design Gráfico, em Londres. Em nota, no livro
supracitado, ele afirma que antes da conclusão da sua graduação, trabalhava para BBC,
Channel 4, SKY, MTV dentre outros. Após uma trajetória de sucesso na TV inglesa, veio
202

morar no Brasil, na cidade de Tiradentes, Minas Gerais. No Brasil, Smyth possui uma loja de
Arte contemporânea com materiais reciclados, móveis rústicos e participa de exposições.

Marta Rodrigues escritora negra, se descreve, em nota no livro, como uma menina curiosa que
cresceu e se tornou mãe e, assim sendo, começou a contar histórias para suas filhas; anos se
passaram e ela começou a contar histórias para seus netos e, quando o repertório tornou-se
escasso, passou a inventar histórias/escrever e, agora, a menina-avó, como se intitula, escreve
para todos os meninos e meninas do Brasil e do mundo.

A trama se inicia apresentando-nos Gabriela, descrita como uma menina negra de quase 8
anos, com olhos bonitos e cílios longos, seus cabelos possuem muitas trancinhas enfeitadas
com adereços coloridos; quem descreve as características de Gabriela, é uma mulher negra
que a conheceu no ônibus. A mulher estava indo para o trabalho e Gabriela estava indo
assistir a um Grupo de Teatro de bonecos chamado Giramundo, acompanhada da sua mãe e
seu irmão de 2 anos.

Figura 60 - Conhecendo Gabriela

Fonte: RODRIGUES, Marta, 2013, p 04.

Admirada com a beleza da menina, a mulher sentou-se ao seu lado e de pronto Gabriela
colocou a mão em um dos muitos bolsos da sua calça, tirou chicletes e ofereceu a moça. A
mulher achou diferente o fato de Gabriela não lhe tratar por senhora, e sim por você, porém
ela não o fez de forma desrespeitosa, só não lhe agrada o distanciamento que o tal pronome
sugere. O encontro da mulher com menina sucedeu tal como uma entrevista:

- Você gosta do seu nome, Gabriela?


- Ahhh... Eu adoro, foi meu pai que escolheu, porque ele viu num filme uma moça
muito carinhosa, doce e bonita com este nome. Meu pai não é do Brasil, ele não
nasceu aqui não (RODRIGUES, Marta, 2013, p. 6).
203

A explicação de Gabriela acerca de seu nome faz com quem pensemos quem é a tal Gabriela,
fonte de inspiração do seu pai? No Brasil temos uma Gabriela muito conhecida, trata-se da
famosa personagem do escritor baiano Jorge Amado. Gabriela Cravo e Canela48 é um
romance publicado em 1958 e narra a história de uma mestiça sertaneja sensual, que vive um
tórrido caso de amor com um árabe de nome Nacib. A trama se passa no período cacaueiro na
região de Ilhéus e é ambientada na década de 1920, exibindo uma sociedade patriarcal,
arcaica e autoritária, afetada por muitas transformações, dentre as quais está a presença de
Gabriela, moça sensual, de poucos pudores, de extrema sexualidade e sensualidade, que atiça
o desejo dos homens da sociedade, que anseiam tê-la.

Gabriela, não se enquadra aos dogmas de casamento, ela quer viver seu amor de forma livre.
Além de bela, possui excelentes dotes culinários. Gabriela é o estereótipo da mulata boa de
cama e cozinha.

A coincidência do nome Gabriela nos faz pensar se a autora Marta Rodrigues se inspirou na
Gabriela, personagem de Jorge Amado para nomear sua personagem. A Gabriela amadiana
mantém um relacionamento com um estrangeiro e a Gabriela de Marta Rodrigues, além de ser
fruto de uma relação inter-étnica, é adjetivada como princesa de uma localidade fora do
Brasil, o Estado africano Daomé. Não sabemos se esta inspiração se deu de fato, estamos
apenas tecendo fios de conectividade, tentando conceber quais influências imperaram no
momento de construção de uma personagem feminina negra.

Figura 61 - Entrevistando Gabriela

Fonte: RODRIGUES, 2013, p 07.

48
As informações sobre o romance Gabriela foram retirados do livro de Jorge Amado, Gabriela Cravo e Canela,
lançado em 1959, cujas referências constam ao final deste trabalho.
204

A entrevista prossegue e a mulher negra, curiosa, indaga sobre a origem do pai de Gabriela. A
menina informa que seu pai é alemão, nascido na Europa. A cidade dele se chama Bremen.
Diz, também, que já conheceu seus avós e que eles ficaram “malucos” com seus cabelos e
seus cílios compridos e que a Alemanha é um lugar lindo!

Figura 62 - Os avós de Gabriela

Fonte: RODRIGUES, 2013, p 08.

A imagem, acima representada, mostra o espanto do casal branco diante da figura da menina
negra. O cabelo da menina, que está sendo tocado/descoberto pelo seu avô sorridente, denota
o estranhamento, o caráter de exotismo diante dos símbolos diacríticos do negro.

Patrícia de Santana de Pinho (2004) exemplifica que os brancos europeus, quando chegam a
Salvador – Bahia, por exemplo, buscam trançar seus cabelos, não porque valorizam e/ou
acham bonito o penteado, mas porque estão vivendo um momento lúdico, desprovido de
seriedade e precisam fantasiar-se a caráter. Esse olhar fantasioso, que resulta em risos, é
explicitado na figura acima.

Pinho (2004) também discorre que o olhar fixo do branco para com o negro nem sempre é
sinônimo de aprovação, pois o olhar retifica e transforma pessoas com traços fenotípicos
distintos em objeto de riso e aversão.

Poderíamos sintetizar que a menina era um elemento diferente, exótico, motivo de riso dos
seus avós, que, embora pudessem amá-la pelo laço sanguíneo, não poderiam deixar de
demarcar as diferenças entre eles, sendo assim, nem todo contato físico é sinal de aprovação.
205

O cabelo do negro, diariamente, desperta o desejo de ser tocado, como uma forma de espanto,
é como se o curioso indagasse: Será mesmo possível alguém ter um cabelo assim?
O branco enxerga o cabelo do negro como um elemento de riso, incompreensão, algo que até
pode ser utilizado em um momento de relaxamento, mas para a vida séria, é necessário a
adoção de outro padrão de beleza: o seu. (Obviamente, a autora se posiciona de forma geral,
tendo consciência que existem os brancos que não comungam com esse viés).
Essa percepção não atingiu (ainda) Gabriela, que, por ser menina, talvez ainda conceba que
todo sorriso é sinal de alegria.

Gislene Aparecida dos Santos (2004) informa que, no Brasil, o racismo opera gerando seres
que não podem reconhecer a discriminação: o discriminador não reconhece que discrimina e o
discriminado, por sua vez, não percebe que foi discriminado e, assim, ele auxilia na
manutenção das estruturas e do discurso de discriminação.

A entrevista prossegue com a mulher do ônibus indagando sobre a profissão do pai de


Gabriela, que, por sua vez, responde que ele é fotografo, viaja para muitos lugares, já viu
muitas guerras e que foi ele quem disse que ela é uma princesa.

Figura 63 - O pai de Gabriela

Fonte: RODRIGUES, 2013, p 09.

Em seguida, incomodada, talvez, pelas indagações da recém-conhecida mulher serem sempre


relacionadas a seu pai, Gabriela informa:
206

Princesa é a filha da rainha, você sabe? Esta é a minha mãe, tá vendo? Ela é linda
demais, né? Este é o meu irmão Pedro, a gente é um pouquinho diferente, só por
fora, ele se parece mais com o meu pai. Esse cabelinho vermelho parece que tá
pegando fogo, você não acha? (RODRIGUES, 2013, p.9).

A trama mostra que o referencial cultural de Gabriela é seu pai, entretanto, num “desvio
narrativo”, ela enfatiza a beleza de sua mãe, que possui aparência similar à dela, e, em
seguida, afirma ser igual a seu irmão apenas por dentro, devidos aos laços sentimentais e
sanguíneos, pois, fenotipicamente, eles são distintos e, nem por isso, a menina sente-se em
condição de inferioridade.

Posteriormente, a mulher do ônibus pede para que Gabriela conte como é essa história de
princesa. A menina responde que tudo começou quando o seu pai conheceu sua mãe:

(...) Ele achou a minha mãe andando na rua. E foi falar com ela. Mas já sabia que ela
é uma rainha, sab. Ele diz que ela anda, fala e se move igual a uma rainha.
A menina olhou pela janela, abriu um sorriso e continuou:
- E aí ele foi ficando... Foi ficando. E apareceram trabalhos em outros lugares e ele
falou para o chefe dele: “Ó, eu não posso ir mais, por que eu encontrei uma Rainha”.
O chefe achou que ele estava brincando, mas não tava não. Ele ficou, casou com a
minha mãe e aí eu cheguei!
Ele fala que eu gostei tanto da barriga da minha mãe que eu não queria sair de lá. Aí,
ele levou a minha mãe para o hospital e aí o médico me tirou de lá de dentro. É que
eu não gostei nada... Eu ficando molinha e não chorava.
E aí ele pensou que eu não gostava dele. Você pensa! E ele me contou que eu era
uma princesa que tinha vindo de longe... Para eu dar um chorinho para o ar nos
meus pulmões... esta caixa de vento que a gente tem aqui, oh! (RODRIGUES, 2013,
págs 12 e 13).

Figura 64 - Gabriela, a princesa negra inventada

Fonte: RODRIGUES, 2013, p 13.

A figura e a citação, apresentadas acima, nos mostram os liames de um relacionamento inter-


étnico entre um homem branco e uma mulher negra. Durante todo o relato, Gabriela enfatiza
207

que sua mãe é uma rainha, numa tentativa que elevar socialmente sua mãe, para tornar-se
digna do amor do seu pai, um homem branco. Sabemos que a brancura está associada ao
avanço, intelectualidade, sendo assim, a mãe de Gabriela, transformando-se em rainha, era
merecedora de tal sorte.

Gislene Aparecida dos Santos (2004) explicita que muitas mulheres negras encaram o vínculo
com o homem branco como um meio de ascensão social. Unir-se a um homem branco é um
meio de superar a discriminação e adicionar elementos positivos à sua identidade, como um
meio de combate à estereotipia. O homem branco é o ícone salvador da mulher negra, da sua
condição de pária.

Quanto mais o homem se aproximar do modelo que consideramos de príncipe, mais dignidade
e brancura ele proporcionará a mulher negra, portanto se o branco for um europeu, rico e
nobre vale muito mais do que os brancos brasileiros.

O pai de Gabriela possui características consideradas de um príncipe, ele é branco e europeu


e, como casou com uma mulher considerada inferior, precisa torná-la digna dele e o meio é o
faz-de-conta. O pai idealizou Gabriela como uma princesa, esta, por sua vez, imaginou sua
mãe uma rainha. Talvez, aos olhos da menina, se a mãe não fosse rainha, não poderia ter
atraído à atenção de seu maravilhoso pai. E assim, uma família de realeza é forjada.

Não sabemos se a mãe de Gabriela se auto intitula rainha, numa forma de demonstrar altivez
face à brancura de seu marido, ou se ela, simplesmente é assim adjetivada pela filha
deslumbrada, ou ainda, se é assim considerada pelo seu marido. O fato é que não sabemos a
opinião da mãe de Gabriela, porque, até o presente instante da trama, ela não tem voz, só
quem fala é a menina e, no geral, sobre o pai branco e a entrevistadora negra, por sua vez, está
mais preocupada em saber como uma menina negra foi transformada em princesa. É possível
que a preocupação/curiosidade da entrevistadora repouse no sentimento de nostalgia ou
tristeza causada pela ausência da possibilidade dela ser princesa quando criança.

Neusa Santos Souza (1990) explicita que os estereótipos lembram o branco da negritude do
indivíduo, este por sua vez tentam dizer aos brancos através de suas atitudes que não são tão
inferiores como eles imaginam. Logo, aqueles que querem ascender socialmente, mas não
podem, apelam para os sentimentos, como é o caso da mãe de Gabriela, que, de acordo com a
208

trama, caminha e fala de forma diferente, talvez numa tentativa de emitir sinais da sua
possível positividade em meio à negrura e, assim, conseguir o feito de casar-se com um
branco/príncipe e livrar-se de todos os sinais que a associam a mulher borralheira, ascendendo
ao status de princesa.

A trama segue seu curso informando-nos que, quando finalmente Gabriela nasceu, e, deu um
choro bem alto, seu pai a saudou dizendo: Bem-vinda, Princesa do Daomé49!

A realeza atribuída a Gabriela ao nascer tem origem africana, de uma terra repleta de reinos
de outrora, e seu pai evoca um deles a fim de endeusar sua filha, fortalecendo sua linhagem e
pertencimento histórico. E, também por que seria difícil associar o fenótipo de Gabriela a uma
de uma princesa alemã. O fato é que, independente dos motivos, Gabriela se tornou uma
princesa de acordo com sua linhagem e ancestralidade.

Gabriela cresceu amando escutar música, conversar e ouvir histórias, porém, de acordo com a
menina, seu pai não era bom em contar narrativas, lhe faltava a habilidade de um griot
africano, as histórias que ele contava eram relatos de suas viagens e pessoas que ele conhecia.

As histórias contadas pelo seu pai denotavam um homem pertencente à uma cultura
comumente considerada erudita, de alguém que conheceu outros povos, línguas e tradições;
suas narrativas eram factuais, diferente da mãe da menina que, de acordo com Gabriela,
contava histórias bonitas de verdade:

(...) Mas a minha mãe!! Ela sabe cada história bonita, a mãe dela contou pra ela. Eu
vou contar para os meus filhinhos e aí a história não morre, fica viva na família
quando um conta para o outro.
- E o Pedro? Ele é um príncipe?
- Não – diz Gabriela – Pelo menos não ainda. O Pedro já é um guerreiro!
- Você me conta por quê?
- Ah... Aconteceu um dia, ele estava com febre, não respirava direito, fomos com ele
para o hospital. O doutor falou que ele tinha que ficar lá, e nós ficamos lá com ele.
Mas só minha mãe podia ficar com o Pedro lá dentro. (RODRIGUES, 2013, p.16).

49
Daomé é um estado africano que corresponde hoje ao Benim, país da região ocidental da África, limitado ao
norte pelo Burkina Faso e pelo Níger, a leste pela Nigéria, ao sul pela Enseado do Benum e a oeste pelo Togo.
Entre o século XVII até os 1900 existia o reino Daomé, que foi conquistado pelas tropas senegalesas pela França
e incorporado à África Ocidental Francesa.
209

Figura 65 - O pai de Gabriela contando história

Fonte: RODRIGUES, 2013, p 17.

Neste momento, podemos presenciar, na trama, uma inversão, onde a menina negra volta-se
para a figura da sua mãe, valorizando sua cultura, sua ancestralidade, sua forma milenar de
compartilhar saberes e as histórias compartilhadas por seu povo. Frantz Fanon (2008)
explicita que, quando uma menina tem sua representação e identidade interpeladas de forma
negativa, a primeira reação dela é olhar para a sua figura mais próxima, no caso, sua mãe, e
renegá-la, renegar seus traços, sua cultura e sua estética, entretanto Gabriela realiza o
processo contrário.
Além de tecer elogios à mãe, a menina tece elogios, também, a seu irmão, a quem ela não
intitula de príncipe, seu irmão é um guerreiro, pois superou uma enfermidade que deixou toda
a família triste e, com medo de perdê-lo.

A mãe de Gabriela conta sobre a recuperação de seu filho Pedro:

(...) Pedro estava melhorando, ele visitou a terra dos ancestrais (vocês sabe quem
são?) . Os avós, bisavós, tataravôs da gente, todos que já morreram. E os ancestrais
disseram para ela que o Pedro foi só para visitar, não era para ficar não. Disseram
que ele é um guerreiro, que agora não tem mais medo, por que sabe conversar com o
medo, e assim deve ser um guerreiro (RODRIGUES, 2013, p 19).
210

Figura 66 - Pedro, o guerreiro

Fonte: RODRIGUES, 2013, p 19.

A experiência do menino é relacionada às religiões de matrizes africanas devido à evocação


da ancestralidade (familiares mortos), entretanto, a escritora evoca uma tradição africana, mas
descreve uma experiência espírita de quase morte, onde o indivíduo, normalmente, atesta ter
morrido por alguns segundos, visitado um lugar que seria de passagem entre a terra e o plano
espiritual, quando normalmente encontra um familiar para informá-lo que não é chegado o
seu momento. Diferente das religiões de matriz africana que, o indivíduo ao se deflagrar com
a morte, encontra o orixá para acompanhá-lo ao mundo dos espíritos.

Entretanto, obviamente o bebê Pedro não relatou esta experiência a mesma foi relatada por
sua mãe, que atesta ter se comunicado com seus ancestrais, que lhe contaram o feito,
informando que eles protegeram o menino. Julgamos que mais importante do que saber que
mãe de Gabriela conversa com espíritos é ilustrar a coragem do menino que, mesmo bastante
enfermo, sobreviveu, resistiu, além de ser uma forma de enfatizar que a cura aconteceu devido
à intervenção dos ancestrais, enaltecendo assim, a cultura africana.

Após a superação do infortúnio, o pai de Gabriela ficava temeroso a cada viagem de trabalho,
temia que algum mal acontecesse a sua família, por isso, sempre se comunicava por telefone,
e a mãe da menina, antes destituída de voz, agora acalma sabiamente seu marido, informando-
lhe que a família deles não iria se separar, afinal família só “estica” com o tempo.

Nesse momento, é chegado o ponto de desembarque da entrevistadora anônima e Gabriela se


despede:

(...) – Não esquece de perguntar ao seu pai se você também não é uma princesa. Não
é do Daomé, mas quem sabe, de um outro lugar , você é tão bonita e gosta de
conversar que nem eu!
- Tá bem vou perguntar.
211

Desço do ônibus, sem conseguir parar de pensar. A Gabriela não sabe, mas o meu
pai não pode mais me responder, ele já está na terra dos ancestrais, não tive tempo
de perguntar a ele sobre isso.
Fiz o caminho até o trabalho apressada, só pensava em ligar o computador e
pesquisar sobre Daomé (RODRIGUES, 2013, págs 22 e 23).

Figura 67 - O ponto de despedida

Fonte: RODRIGUES, 2013, p 22.

A trama de Marta Rodrigues (2013) se mostra confusa em vários aspectos, ora ela enfatiza o
relacionamento inter-étnico como um possível meio de embranquecimento e ascensão
familiar, ora apresenta a personagem da mãe destituída de voz e a figura da menina
deslumbrada pela representação europeia do seu pai e, de repente, um processo de inversão se
mostra.

Talvez esse tenha sido o objetivo da autora, tecer e destecer discursos, pois, de súbito, a mãe
adquire voz e sabedoria, a filha passa a se mirar no seu espelho cultural, elementos da cultura
africana são evocados, já que, até então, na narrativa inter-étnica, só uma etnia havia sido
apresentada mais profundamente.

A autora dissocia a figura da mãe de Gabriela do estereótipo de sexualidade e sensualidade, a


personagem não aparece envolta em roupas provocantes, que enfatizam seu corpo, não
representa o estereótipo da “negra tipo exportação”, ou seja, negra com atributos físicos
capazes de atrair jovens estrangeiros considerados promissores, ao contrário, sua
representação é elegante e afetiva, conforme podemos ver na figura a seguir.
212

Figura 68 - Mãe e filha

Fonte: RODRIGUES, 2013, p 21.

Outro elemento importante da trama é a forma como a princesa Gabriela se veste. Ela é uma
princesa que usa chinelo e calça com bolsos cargos, elementos que, normalmente associamos
ao universo masculino, quebrando os conceitos binários que segregam o universo feminino
marcado por fragilidade, sensibilidade e feminilidade inventada e o mundo masculino
marcado por esperteza, agilidade e inteligência. Gabriela transita entre os dois mundos (que
para ela não existem), desconstruindo, assim, o lugar cristalizado e hierarquizado que segrega
meninas e meninos.

Gabriela desconstrói as diferenças das identidades sexuais, assim como, desconstrói, também,
a representação estética europeia tão arraigada que nos engendrou um único modelo de
princesa: branca, loira e passiva.
De acordo com Anailde Almeida (2010), ao desconstruir os estereótipos sexuais
desconstroem-se, também, a distribuição de atividades e privilégios que naturalmente tendem
para o lado masculino.

O pai da menina é outro destaque na trama, embora ele seja alemão, orgulha-se em ter uma
filha princesa, não uma princesa europeia, mas uma princesa proveniente do Reino africano
de Daomé. A autora por sua vez, limita-se a não informar nada a respeito desse reino com o
intuito de que os leitores se tornem pesquisadores de si mesmos, da sua herança, cultura e
ancestralidade.
No final da trama, podemos notar, também, que a princesa Gabriela, diferente das princesas
dos contos clássicos, não está preocupada em casar-se, ser resgatada por um príncipe e viver
feliz para sempre, ela está preocupada em suscitar em outras figuras femininas negras a
213

percepção de que elas também são princesas de origem africana, ela está preocupada em
empoderar pessoas, está preocupada em resistir para sempre.

Kiusam de Oliveira também escreveu um livro sobre meninas que são princesas negras; sua
obra é intitulada como Omo-Oba: Histórias das Princesas, publicada em 2009 pela editora
Mazza e ilustrada por Josias Marinho, homem negro, desenhista e arte-educador formado pela
Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais. Em nota no livro
supracitado, ele conta que nasceu na cidade à margem do Rio Guaporé, de nome Real Forte
Príncipe da Beira, em Rondônia e, desde menino, era encantado por histórias que envolviam a
fortaleza, floresta e o rio. E, deste encanto nasceu sua paixão por desenho, produção e ensino
de Arte.

Kiusam é mulher, negra, contadora de histórias, bailarina, coreógrafa, professora de danças


afro-brasileiras. Pedagoga com habilitações em Orientação Educacional, Administração
Escolar e Deficiência Intelectual, é Especialista na temática das relações étnico-raciais,
Mestre em Psicologia e Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Em nota em
seu livro, ela afirma que sua inspiração para a escrita dessa narrativa foram os seus três
sobrinhos Kayo Odê, Yasmim e Isabella, pra quem ela busca formas de ensinar maneiras de
estarem fortes no mundo a partir da valorização da autoimagem negra e dos cabelos blacks ou
trançados.

A autora objetiva com esta narrativa propagar um discurso engajado na política do


empoderamento das identidades negras, promover as suturas psíquicas necessárias para que as
crianças de todos os tempos sejam capazes de encontrar caminhos plenos em meio à todas as
diferenças.

Omo-oba em Yorubá significa filho/filha do rei, sendo assim, a narrativa se propõe a contar
histórias das filhas do rei, ou seja, histórias de princesas, mais especificamente, a história de 6
princesas.

Antes de iniciarmos a trama, gostaríamos de compartilhar a apresentação poética da obra


realizada por Kiusam de Oliveira:

As histórias deste livro mostram como princesas se tornaram, mais tarde, rainhas.
Essas histórias vêm de fontes tradicionais conhecidas, contadas e recontadas pelo
214

povo africano (iorubano) e afro-brasileiro, nas quais uma mulher chamada Oduduwá
criou o planeta Terra e, se uma mulher teve esta capacidade, o poder está com ela.

Como todas as histórias antigas, quando infinitamente recontadas, podem ser


interpretadas de diferentes formas, porque, ao recontá-las, cada pessoa reforça o
conhecimento de que mais necessita. Neste livro, reforço características que julgo
capazes de empoderar meninas de todos os tempos.
Que tudo se movimente! (OLIVEIRA, 2009, p.7).

Que tudo se movimente com o poder das princesas apresentadas na trama, são elas: Oiá,
Oxum, Iemanjá, Olocum, Ajê Xalugá, Oduduá. Em cada história de uma dessas princesas está
apresentado seus gostos, encantos, poderes, mitos e os ritos. A narrativa de cada princesa é
apresentada da seguinte forma no sumário do livro:

Oiá e o búfalo interior


Oxum e seu mistério
Iemanjá e o poder da criação do mundo
Olocum e o segredo do fundo do oceano
Ajê Xalugá e o seu brilho intenso
Oduduá e a briga pelos setes anéis (OLIVEIRA, 2009, sumário)

Kiusam de Oliveira (2009) apresenta as personagens princesas através de arquétipos, modelo


ou padrão passível de ser reproduzido por simulacro. De acordo com Antônio Houaiss (2001),
a palavra arquétipo deriva do grego archetupon e do latim archetypum, e, indica um modelo.
O prefixo arché significa o que está a frente, origem das coisas. Segundo Gislene Aparecida
dos Santos (2004), os arquétipos são formas de organizar as representações humanas. Logo,
as narrativas adquirem um caráter de fundação, mostrando como a história das princesas se
consolidaram, como seu respeito fora construído e seus feitos foram realizados. Trata-se de
uma narrativa que se confunde com o real, devido ao caráter de história de origem.

Marie-Louise Von Franz (1990), em seus estudos sobre CarL Gustav Jung, criador do
conceito psicológico arquetípico, explicita que eles são comuns a todos os seres humanos,
pois existe um consciente coletivo, uma matriz originária comum ou, ainda, recordações
inatas ou herdadas de nossos antepassados, que podem ser vivenciadas de forma positiva ou
negativa. Se forem vivenciados de forma positiva, o individuo se sentirá realizado através da
sua cultura, mas se for vivenciado de forma negativa, pode enclausurar o sujeito em situações
sociais de fanatismo e rigidez ideológica.

Os arquétipos criam seus símbolos e cada cultura o reconstrói ou atualiza no tempo histórico.
Esses símbolos surgem nos mitos, sonhos, contos de fadas e nas artes.
215

Reginaldo Prandi (2001) ilustra que os mitos são utilizados para compreender a realidade e
afirmar verdades. Para os iorubanos, os mitos apresentam-se como o início, o meio e o fim:
está na origem do mundo e nos orienta a interagir com o mesmo. O mito é o caminho para
alcance do passado, presente e futuro.

As históricas míticas criadas, selecionadas e contadas pelos anciãos e legitimadas pelas


instituições de poder local, se configuram como a própria história do povo. O mito não é uma
forma de literatura ultrapassada que fala de um passado remoto. O mito é também um guia
que orientará a vida na Terra.

Como já fora dito, cada cultura atualiza os mitos e seus arquétipos, sendo assim, a autora
Kiusam de Oliveira (2009) o fez ao transformar os orixás femininos, conhecidas como yabás
(divindades ancestrais iorubanas que fazem intermediação entre as pessoas e o Deus Supremo
Olorum), em meninas, princesas negras, para torná-las próximas dos humanos, a fim de que
eles compreendam, através dos contos, os mitos africanos, mitos que possuem caráter
fundador da nossa cultura, que são reverenciados até os dias atuais entre os adeptos e
simpatizantes das religiões de matrizes africanas, herança dos nossos antepassados,
arquetípicos comuns para o povo negro que compartilha da mesma linhagem africana.

Objetivando ver positivadas e endeusadas as princesas negras, naveguemos em duas histórias


do livro Omo-Oba.
A primeira história é a de Oxum e seus Mistérios e a segunda Oduduá e a Briga Pelos Setes
Anéis50.
Oxum é descrita, na trama, como uma menina negra linda, perfumada, e todos os meninos a
queriam por perto. Desde criança os atributos de Oxum são: beleza, vaidade, atrevimento, a

50
O livro Omo-Oba apresenta a história de seis princesas africanas, entidades religiosas. Três destas entidades
recebem mais culto no Bahia e no Brasil, são mais conhecidas e, dentre elas, destacamos: Oiá (Senhora dos
ventos), Oxum (Senhora dos rios, Deusa do amor e da beleza. Oxum é o nome de um rio localizado em Oxogbô,
região da Nigéria, em Ijexá) e Yemanjá (Mãe das águas salgadas); em contrapartida as demais três princesas são
pouco conhecidas, seu culto é mínimo se comparado aos das outras princesas: Olocum (Orixá andrógena,
senhora do mar. Ela é mulher durante o dia e sereia a noite), Ajê Xalugá (Senhora das Marés, irmã mais nova de
Iemanjá) e Oduduá (Divindade primordial, criadora da Terra, seu nome significa a cabaça de onde jorrou a vida).
Logo, escolhemos uma das divindades mais conhecidas e outra menos conhecida e cultuada, apesar de que isto
não tira a importância de nenhuma das princesas citadas. Falaremos de Oxum, deusa da beleza e Oduduá,
criadora da Terra. Cada princesa escolhida enfatiza características que comumente associamos a uma princesa
Oxum o poder da beleza, Odudá o poder da criação. Poder e beleza se unem isto sem contar que estas princesas
possuem concepções estéticas distintas e nem por isso deixam de ser bonitas, princesas. Princesas fortes,
guerreiras, bonitas, poderosas e diferentes entre si.
216

genialidade, determinação e a maternidade. Sabia ser guerreira, mas preferia cuidar de sua
beleza: de suas unhas, seus cabelos, sua pele e das jóias de ouro que só ela possuía.

A descrição inicial da princesa Oxum mostra a diferença desta princesa africana das princesas
dos contos de fada clássicos europeus. Oxum, assim como as demais princesas, era vaidosa e
extremamente bela. O fato de escolher cuidar de sua beleza, não retira sua força, era uma
guerreira astuta e determinada, possuía genialidade. Oxum também exibia suas posses, que
nenhuma outra princesa possuía, e tinha como uma das características marcantes a habilidade
para a maternidade. As mulheres que gostariam de ser mãe podiam contar com sua ajuda, por
isso quando a menina Oxum crescesse iria ser chamada, também, de Mãe Oxum. Essas
habilidades de Oxum não são comumente descritas nos contos clássicos, onde as princesas
casavam-se e a trama não apresentava sua vida após o casamento, sabíamos apenas que elas
se casavam, mas a trama não fala em maternidade, por exemplo. Maternidade e princesa são
elementos segregados, mas Oxum os une.

Oxum possuía um segredo, um dom, uma magia: ela podia hipnotizar quem ela quisesse com
sua beleza. Suas cores preferidas eram amarelo-ouro e dourado, pois a princesa Oxum gostava
de jóias, riquezas. Na história das princesas africanas, a beleza tem outra configuração
estética; a figura abaixo ilustra uma menina negra, de traços grossos (boca e nariz)
representada em beleza e ocupando lugar de prestígio social, haja vista que tem posses e jóias.
A princesa Oxum é o protótipo da inversão.

Figura 69 - A princesa negra Oxum

Fonte: OLIVEIRA, 2009, p 16.

Oxum a todos encantava com sua beleza e delicioso perfume (associação do negro ao bom
odor). Ela usava uma coroa de ouro com penduricalhos em fios de ouro, enfeitados nas pontas
217

com gotas de chuva também de ouro (em ioruba, coroa se chama adê). Oxum era puro brilho e
vaidade, andava com um espelho na mão esquerda e uma adaga na mão direita, mostrando
que beleza não está, necessariamente, dissociada de força, e que esta não é uma prerrogativa
masculina. Um espelho na mão e uma adaga na outra é uma forma de juntar os elementos
considerados femininos e masculinos, normalmente segregados nos contos tradicionais.
Oxum desconstrói os lugares sacralizados e põe fim às hierarquizações e sistemas binários
que impõem a fragilidade às mulheres e a força aos homens.

De acordo com Anailde Almeida (2010), cada cultura determina de modo diferente a
personalidade do menino e da menina, enquanto representação nos hábitos cotidianos,
relações sociais, a maneira como reagem àquilo que normalizou-se crer que eram elementos
simbólicos pertencentes ao sexo masculino ou feminino, sejam as cores, valores, gestos,
comportamentos, atividades, interesses, dentre outros. Logo, podemos perceber as diferenças
culturais relacionadas às identidades de gênero na cultura africana e na europeia.

Outro fator de destaque na trama é o uso e valorização da linguagem iorubana, aprisionada


historicamente ao estereótipo de algaravia bárbara, agora a linguagem serve como elemento
de reconstrução da voz de um povo, que fala de um determinado lugar, acerca da sua cultura.
Sabemos, por exemplo, que o processo escravagista fez com que o africanos perdessem o
direito à seu idioma, tendo que aprender a língua portuguesa no Brasil, mas no conto de
Oxum, não só a linguagem é preservada, como é ensinada a seus leitores através de nomes
pessoais e significados de utensílios.

O espelho de Oxum é um instrumento simbólico que representa sua beleza e esta exerce poder
sobre os homens, que se rendem a seus encantos e vontades. Se as princesas europeias,
mesmo bonitas, fazem a vontade dos homens, Oxum é o contrário, por ser bonita, os homens
que devem obedecê-la. Ela consegue sua obediência não por força, mas com inteligência e
doçura. O espelho de Oxum é, também, um convite às meninas negras a se olharem e
descobrirem o quanto são lindas.

A trama segue seu curso informando que Oxum possuía um amigo de nome Ogum (Senhor do
Ferro, da Guerra, da Agricultura e da Tecnologia) que nutria por ela um sentimento especial,
um sentimento profundo de bem-querer. Ele pensava: Como eu gosto de Oxum (OLIVEIRA,
2009, p.18).
218

Ogum, embora criança, trabalhava bastante, construía objetos de ferro: utensílios e


ferramentas agrícolas em geral. Ele era o melhor, nem os adultos conseguiam acompanhá-lo.
A descrição do amigo de Oxum, Ogum mostra que, nos contos africanos não existe distinção
entre elementos masculinos e femininos, não existe também distinção entre o mundo adulto e
infantil. Se a burguesia engendrou em nossa sociedade a idéia de que as crianças são seres
frágeis que precisam constantemente de cuidados, Ogum embora criança, era forte, possuía
um oficio e era melhor na sua execução do que os homens, mostrando, também, que para a
criança não havia segregação entre vida pública e privada. A vida do individuo estava
imbricada socialmente.

Entretanto, um dia Ogum se cansou do seu oficio, abandonou a cidade e passou a morar no
meio da floresta, com o passar do tempo, sem seus utensílios, os moradores da cidade ficaram
sem instrumentos para plantar e colher e a fome se alastrou na cidade. Vários amigos foram
procurar Ogum na floresta a fim de resgatá-lo, mas foram expulsos de lá. Houve uma
assembleia na cidade com o objetivo de discutir o que poderia ser feito para trazer de volta o
menino Ogum.

Embora não houvesse distinção entre a vida pública e a privada ou o uso de elementos
masculinos e femininos, o processo decisório estava nas mãos dos homens, que decidiam o
rumo da cidade através das suas assembleias, mas Oxum, ousadamente, não gostou de ficar de
fora do processo de decisões, do exercício do poder; ela foi à assembleia e se ofereceu para
entrar na mata e trazer seu amigo de volta. Embora os homens duvidassem que ela
conseguisse tal feito, concordaram.

Oxum, menina negra que tem em seu poder dois elementos, beleza (espelho) e força (adaga),
tinha, também, a liberdade de escolher qual arma usar diante de uma situação-problema e, no
caso de Ogum, ela decidiu que ganharia essa demanda não por força (adaga), mas por beleza e
astúcia.

Oxum vestiu uma saia com cinco lenços pendurados, que com o vento iam espalhando seu
maravilhoso perfume. Ela tirou sua coroa (adê), soltou seus lindos cabelos negros e crespos,
num ato de sensualidade proveniente da representação de liberdade do corpo, ficou descalça e
foi em direção ao acampamento de Ogum.
219

Ao adentrar na selva, Oxum vale-se da sua imagem a fim de suscitar em Ogum afetividade
para subjugá-lo. Oxum queria mostrar que a personalidade decidida de Ogum poderia ser
interpelada, negociada e alterada pela sua presença icônica.

Ao adentrar na floresta, invertem-se os papeis: Oxum se transforma na super-heroína que está


indo resgatar o mocinho. Para Anailde Almeida (2010), a super-heroína é a dona da magia, da
graça e da beleza, é a representação do bem, ela tem uma função similar a de uma fada, que
auxilia o indivíduo fazendo uso, obviamente, de armas simbólicas, como um espelho, para
que se faça ela mesma serva do mundo a serviço do bem.
Seria Oxum, então, uma fada negra indo salvar seu amigo Ogum?

De acordo com Nelly Novaes Coelho (2009), a origem das fadas está ligada aos cultos e ritos
religiosos. Em boa parte dos contos irlandeses e celta, por exemplo, a heroína é um ser
sobrenatural que aparece como uma mensageira de outro mundo; sua aparição está
relacionada a mistério.

Oxum é o arquetípico de uma divindade religiosa, uma mensageira do mundo dos ancestrais,
logo, sua aparição está envolta em mistério, sua aparição sobrenatural está imbuída em
resoluções milagreiras.

Figura 70 - Os cinco lenços de Oxum

Fonte: OLIVEIRA, 2009, p 20.

Quando Oxum avista a cabana de Ogum, ela finge que não o viu e começa a dançar com a
graça das águas calmas, delicadas, suaves, num leve vaivém. Os movimentos proferidos por
220

seu corpinho de princesa liberava um perfume delicioso que alcançou o acampamento do seu
amigo.

- Que perfume delicioso é este? – perguntou-se o menino Ogum.


E saiu para ver de onde vinha o perfume. Eis que viu sua querida Oxum dançando
lindamente com o vento. Mas Oxum fazia de conta que não estava vendo seu amigo
Ogum .
Conforme Oxum dançava para Ogum, que já estava escondido entre os arbustos,
cada vez mais ela se aproximava dele. Quando Oxum estava bem pertinho dele, já
hipnotizado por tanta graça e beleza, viu uma colmeia de abelhas e disse:
- Abelhas, abelhinhas. Derramem seu mel em minhas mãos para que eu possa adoçar
o coração de um menino que precisa voltar para os seus afazeres na cidade
(OLIVEIRA, 2009, p.21)

Na citação acima, podemos ver duas representações da menina negra. Na primeira


representação, temos a menina negra que se comunica com seu corpo, e a segunda, é a menina
que se comunica com insetos, no caso as abelhas, atribuindo à narrativa um caráter
maravilhoso.

Na primeira representação, Oxum se apropria de seu corpo para tecer um diálogo com Ogum.
O corpo é construído biologicamente e simbolicamente na cultura e na história. O corpo é
natural, mas também é simbólico, e vai se constituindo através de nossas significações e
representações; é marcado por uma série de valores e exigências sociais. Nilma Lino Gomes
(2008) nos informa que o corpo é linguagem que traduz existência, é um símbolo explorado
nas relações de poder.

De acordo com Gomes (2008), é no corpo que se dão as sensações, pressões e julgamentos. O
corpo revela a forma de ser no mundo e torna possível a compreensão de como as relações são
construídas. O corpo está para além das funções fisiológicas, ele tem sentido e significado, é
através dele que uma pessoa se projeta em direção a alguém. O sujeito, por meio do corpo,
expressa algo e realiza uma determinada ação.

Oxum utiliza, portanto, seu corpo para se comunicar com Ogum, despertar-lhe sensações
sensuais e afetivas, projetar-se para ele, impulsionar nele uma relação esperada.
Normalmente, as meninas negras têm seus corpos explorados e dominados, mas na trama
vemos uma inversão: Oxum utiliza seu corpo (sem precisar fazer uso/abuso sexual dele) para
dominar Ogum, subjugar ele às suas vontades com tamanha sutileza que o dominado não
221

percebeu que estava sendo dominado. O corpo de Oxum se ressignifica, se transforma em


texto e Ogum, inevitavelmente, o leu.

Para concluir seu feito, Oxum solicita ajuda das abelhas, que, encantadas com a delicadeza de
seu pedido, abriram para ela uma fenda na colméia e escorreram em suas mãos um mel puro,
doce e brilhante como o ouro que ela tanto gostava. Não há quem resista ao doce poder de
Oxum.

Observamos, neste momento, que se trata de uma narrativa maravilhosa, onde acontecem
encantamentos e magias, tais como animais que falam e/ou compreendem, princesas que
recebem ajuda mágica para solucionar seus problemas. Neste caso, dupla magia, pois Oxum,
por si só, já hipnotiza os meninos com sua beleza, ainda dando-lhes o néctar de mel para
adoçá-los, é o arremate final.

Encantado, Ogum segue Oxum até a cidade, vendo-a dançar, sentindo seu delicioso aroma e
bebendo do doce mel, até que, quando percebeu, já estava na cidade. Se nos contos europeus
as princesas são resgatadas por seus príncipes e os acompanham em seus destinos, nos contos
africanos as mulheres ativas e guerreiras são seguidas pela figura masculina. Elas abrem
caminho na selva.

Figura 71 - Ogum bebe o doce mel de Oxum

Fonte: OLIVEIRA, 2009, p 23.


222

Todos os amigos do menino Ogum, crianças e adultos, começaram a aplaudir o seu


retorno; assim, os utensílios voltariam a ser feitos e Ogum reassumiria suas funções
de ferreiro.
Ogum fez de conta que voltou por conta própria e disse:
- Prometo nunca mais abandonar a cidade nem meu ofício de ferreiro. Agradeçam a
Oxum, que me fez voltar para cá.
E todas as pessoas que lá estavam gritaram:
- Ora, iê, iê, princesinha Oxum (OLIVEIRA, 2009, p.22).

Diante do feito de Oxum, ela se torna reconhecida em sua comunidade, logo, é necessário
reverenciar a princesa Oxum, saudamos “Ora, iê, iê” ou, ainda, “Ora, iê, iê, ô” que significa
em yorubá: Salve a Senhora da bondade; ou Salve a mãezinha benevolente.

Com a volta de Ogum, a fartura espantou a fome e a morte e Oxum salvou a todos com sua
dança de amor.

Outra narrativa apresentada no livro Omo-Oba é a seguinte história: Oduduá e a Briga Pelos
Setes Anéis.

Diferente de Oxum, que é a deusa da beleza, caracterizada com seus cabelos longos, crespos,
negros, lindos, perfumada, vaidosa e dona de uma beleza hipnotizante, Oduduá, personagem
dessa história, é descrita como dona de uma beleza rústica, era uma princesa negra que não
gostava de se enfeitar.

Oduduá era a Terra, tinha, inclusive, a cor e a força da dela. Desde criança, Oduduá só
possuía dois desejos: um era habitar para sempre em sua cabaça e o outro era possuir os sete
anéis. Seus atributos incluem rapidez e determinação. Tal como uma Candace, era uma
guerreira, que sempre saía em busca do que almejava; suas cores preferidas eram o marrom e
o vermelho.

A figura de Oduduá desconstrói o conceito arraigado sobre o que é ser princesa, que se
sacralizou como sendo vaidosa, bem arrumada, enfeitada e de longos cabelos, pois bem, esta
princesa possui uma beleza rústica, não usa adereços, seus cabelos são curtos, tal como
relacionamos ao cabelo dos meninos, no entanto, ela é apresentada como uma linda princesa
como uma forma de mostrar ao leitor que existem muitas formas de ser bonita.

Além dela, a trama apresenta-nos Obatalá, um belo príncipe, e dá indícios de que eles são
irmãos, mas não confirma esta prerrogativa.
223

Antes do Céu e da Terra existirem os dois já moravam juntos dentro de uma cabaça.

Figura 72 - Oduduá e Obatalá

Fonte: OLIVEIRA, 2009, págs. 42 e 43.

Oduduá e Obatalá moravam em uma pequena cabaça, viviam apertados tendo que ficar um
em cima do outro. E, esta situação era motivo para brigas constantes:

Todas as noites, o príncipe Obatalá decidia que a princesa Oduduá deveria dormir
embaixo dele.
- Princesa Oduduá, ordeno que você durma novamente embaixo de mim – exclamou
Obatalá.
- Principe Obatalá, eu ordeno que você pare de ordenar.
Temos que chegar a uma decisão comum – retrucava a princesa Oduduá.
Mas isso não era o suficiente para o príncipe Obatalá mudar sua forma de agir. Tudo
tinha que acontecer do jeito que ele havia planejado (OLIVEIRA, 2009, p.44).

As posições discutidas dentro da cabaça denotam relações de poder, onde a figura masculina
que, imperativamente, almeja fica sempre por cima, denota seu sentimento de liderança,
superioridade, chefia e controle e, por isso, se sente no direito de determinar o lugar que a
figura feminina deve ocupar: sempre abaixo dele, sem possibilidade de alteração; abaixo
devido a sua condição de inferioridade.

Michael Focault (1987) informa que o poder é uma estratégia, e não um privilégio que alguém
possui e transmite ou do qual se apropria. O poder é, na realidade, uma manobra de
manipulação e dominação.

O caráter tático do poder o torna problemático, pois é muito difícil aceitar que um pólo
detenha poder e o outro não. Assim sendo, é muito difícil aceitar a arbitrariedade das
224

manobras que destitui Oduduá de qualquer poder e reveste Obatalá como explorador de seu
corpo, da sua vontade, do seu direito de ir e vir, da sua capacidade de decisão e mudança.
Oduduá não é como as princesas dos contos clássicos de fadas, ela não aceita permanecer em
situação de passividade e inferioridade.

A narrativa segue informando-nos que Oduduá e Obatalá ganharam, de um parente próximo,


um presente: 7 anéis de ouro para dividir entre eles. Mas, sete é um número ímpar, logo, seria
impossível dividir igualmente. Quando, de repente, outra ordem de Obatalá se torna
conhecida:

O príncipe Obatalá ordenou:


- Quem dormir em cima fica com quatro anéis nos dedos; quem dormir embaixo fica
com três anéis nos dedos. Eu ordeno que, novamente, eu durma em cima, por que eu
sou a pessoa certa para ser o Senhor dos Anéis (OLIVEIRA, 2009, p.45).

Comumente, pensamos que só existe um dominador porque alguém se permite dominar, mas,
indagamos, será mesmo que alguém quer ser dominado? Será que o indivíduo percebe que
está sendo dominado e/ou, ainda, será que ele consegue reagir diante da dominação?

Focault (1987) sugere que olhemos mais para o poder como modelo de batalha do que uma
cessão ou uma conquista que se apodera de um domínio. Se compreendermos que o poder é
uma batalha, poderemos reagir e tentar tomar posse da espada. O poder incita lutas,
possibilidades e, também, a capacidade de resistência.

Essa capacidade de promover resistência face à descoberta da dominação é um ponto positivo


do poder, pois, como explicita o autor, o poder também incita e faz-nos perceber que ele
produz corpos dóceis, corpos disciplinados e propensos a se enquadrar e obedecer, como tem
feito Oduduá.

O poder diminui a força política entre homens e mulheres ao passo que propaga a diferença,
repressão e censura. Pregando que há diferença de gênero, concepção promovida pelo
retrógrado sistema patriarcal, que colocava o homem como o provedor feito para pensar e
mandar e a mulher para sentir e obedecer.
225

Obatalá não permite negociações, ele define ações, decide sem nenhuma justificativa, ele
afirma que Oduduá deve dormir em baixo e ficar com o menor número de anéis, tal como um
jogo, onde o indivíduo que se adapta às regras tem poder mudá-las.

Guacira Lopes Louro (2014) informa-nos que as relações entre as figuras masculina e
feminina implicam em constantes negociações, avanços, recuos, consentimentos, revoltas e
alianças, logo, Obatalá não estaria se relacionando efetivamente com Oduduá, estava apenas
lançando sobre ela suas ordens.

Louro (2014) prossegue indicando que representações como a de Obatalá traduzem um jogo
onde os participantes, embora em atividade, estejam submetidos a um esquema fixo, que
estipula quem é o vencedor. O perdedor é sempre o outro, o outro que não compartilha da
masculinidade hegemônica, mas isto não que dizer que tais manobras anulam o sujeito.

Focault (1987) informa-nos, ainda, que o poder também possui seu lado positivo, pois ele não
apenas nega, impede, ele também incita e produz. Ele faz o indivíduo perceber a docilização
do seu corpo sendo construída através da imposição disciplinar e, a partir disso, o indivíduo
pode reagir, resistir, confrontar. Caso o individuo não possa resistir, a relação será de
violência, que pode ser simbólica e/ou física.

Antônio Maia (1995) alerta que a relação de poder é, também, marcada pelo enfrentamento e
é um exercício de liberdade. As verdadeiras relações de poder estão onde a liberdade possa
estar, caso contrário é autoritarismo. Não há poder sem liberdade e potencial revolta.

Falando em potencial revolta, retomada da liberdade e resistência, sigamos na trama a fim de


verificar o posicionamento de Oduduá diante da fixidez comportamental de Obatalá, que se
ampara na crença estereotipada de meninos e meninas, que, por serem considerados
diferentes, justifica tal tratamento:

- Principe Obatalá, eu não aceito mais esta imposição social sobre mim. Não é por
que você é homem que deve ter sempre sua vontade atendida. Sou mulher e tenho
meus direitos do mesmo jeito que você os tem.
- Penso que, por ser homem, somente eu devo ter direitos, Sendo assim, ordeno que
você se deite novamente embaixo de mim e eu ficarei com os quatro anéis nos
dedos- respondeu o príncipe Obatalá.
A princesa Oduduá, irada, partiu para cima dele numa briga sem-fim. Enquanto
lutavam, tentavam cada um pegar os anéis, sem sucesso. Lutaram, mas lutaram tanto
que a cabaça se rompeu em duas partes. Conforme a cabaça se rompeu, a parte de
226

cima dela foi projetada para o espaço juntamente com o príncipe Obatalá; e a parte
debaixo permanceu lá com a princesa Oduduá. E os anéis? Bem devem estar
espalhados pelo mundo (OLIVEIRA, 2009, p.45).

Observamos, na citação, que Obatalá se acha superior a Oduduá por uma questão biológica,
ele é homem, apesar de sabermos que o caráter biológico das identidades de gêneros são
construídos, moldados e/ou tornados. Entretanto, a questão biológica, de acordo com Guacira
Lopes Louro (2014), serviu, por muito tempo, como arcabouço para delimitar e segregar
meninos e meninas, construindo distinções psíquicas, comportamentais, diferentes habilidades
sociais e talento, tudo isso a fim de demarcar o lugar social a que cada gênero estava
destinado. Desse modo, obviamente, os ditos diferentes estavam destinados a pior
representação. A questão é que o dominador é quem define o que é diferença e quem é
diferente, pois só com a fixidez destes conceitos estabelecidos é que poderiam ser atribuídas
as desigualdades.

Guacira Lopes Louro (2014) apresenta- nos os estudos realizados por Joan Scott em 1988
para que possamos refletir acerca das implicações dos termos diferença – desigualdade, haja
vista que, historicamente, as mulheres consideradas diferentes sempre lutaram por igualdade
social, política e econômica, mas, com o avanço das teorias femininas, elas passaram a
conceber que são diferentes e que isto não as torna inferiores, mas, sim, com necessidades
especificas. As feministas passaram a positivar suas diferenças e daí a confusão: as mulheres
almejam igualdade ou afirmação das diferenças?

Louro (2014) explicita que Scott responde tal demanda explicando que a igualdade, por si só,
é um conceito político que supõe diferenças, afinal, ninguém reclama por igualdade para os
sujeitos que já são idênticos, na verdade, reivindica-se que os sujeitos diferentes sejam
respeitados, tenham direito à voz e vez de forma idêntica.

Caso exemplificado por Oduduá, que exige igualdade de direitos em face de sua positivada
diferença. Ela não almeja ser homem, ela quer ser mulher em sua plenitude ou, como afirma
Simone Beuvoir [1949] (2009), que nada defina ou sujeite as mulheres, que a liberdade seja a
sua única essência.

Stuart Hall (1992) informa que as diferenças e os antagonismos sociais produzem uma
variedade de sujeitos, isto é, produzem uma variedade de identidades. As diferenças de credo,
227

de etnia, de religião, de valores sociais, econômicos, culturais e políticos constroem diversas


identidades de meninas negras, produzem diversas princesas. Então, se as identidades são
múltiplas, a representação de uma só modelo de princesa já não satisfaz.

É importante salientar que as diferenças não devem ser utilizadas (como normalmente são)
como camadas, que se sobrepõem às outras construindo hierarquias de representação, ou seja,
elencando, por exemplo, a representação da princesa branca dos contos de fada clássicos
europeus como superior às princesas de origem africana.

Ainda na citação que revela a briga de Oduduá e Obatalá, observamos que a expressão sempre
evocada pela figura masculina é que a menina deve deitar-se abaixo dele, o que denota uma
apropriação de seu corpo, se configura como um abuso sexual simbólico do corpo da menina
negra. Dizemos simbólico porque não houve o estupro físico, mas esta violência simbólica
extirpou da menina, por um breve momento na narrativa, o direito de decidir sobre seu
próprio corpo, o direito de definir onde, como e com quem ela almeja ficar.

Indignada com essa situação, a princesa negra reclama, mas o príncipe não a escuta porque,
para ele, a menina não tem voz, não decide, ela tem apenas ouvidos para acatá-lo. Um ser sem
voz (sem posicionamento) é um individuo inexistente.
Irada, Oduduá parte para a briga com Obatalá, descontruindo a ideia de que a força física é
um premissa masculina, e rompe a cabaça, rompe com todo o sistema opressor que as
meninas negras foram submetidas. A ruptura faz dela Senhora da Terra, dona de si e do seu
universo. Oduduá pode refazer seu mundo por que a força está com ela.

Essa narrativa serve para explicar o mito da criação do Céu e da Terra e para explicar como
eles foram separados, pois Obatalá tornou-se o senhor do Céu e Oduduá, a senhora da Terra.

Por fim, Kiusam de Oliveira (2009) enfatiza que os anéis continuam perdidos e indaga se os
leitores seriam capazes de achá-lo.
228

Figura 73 - Separação de Oduduá e Obatalá

Fonte: OLIVEIRA, 2009, págs. 46 e 47.

Essas duas últimas narrativas reforçam a importância da representatividade, pois, através da


exposição das personagens de princesas negras, guerreiras, decididas e belas, empoderamos o
coletivo de meninas negras que se miram nessas histórias, enxergando as semelhanças físicas
e/ou emocionais com as personagens apresentadas e se sentem endeusadas. As personagens
das princesas da trama assim, como as meninas existentes na sociedade, precisam ser
guerreiras para poder ocupar seu trono, por vezes usurpado por uma única representação e/ou
pelo estereótipo.

Essas histórias devolveram a coroa às meninas que julgavam jamais poderem ser bonitas,
porque trazem em seus corpos a ausência dos símbolos que determinam a quem se destina a
realeza. Todas as meninas reunidas desta pesquisa indicam um caminho de empoderamento,
lutas, alegrias, sonhos e beleza. Reunidas, elas desconstruíram estereótipos relacionados à
beleza, sexualidade exacerbada, falta de intelectualidade, predestinação à escravidão, enfim,
quantas revoluções estas meninas causaram.

E, quando fecharmos as páginas deste grande livro infantil, só nos resta pedir que as meninas
negras resistam, burlem os discursos hegemônicos racistas e sexistas, busquem, leiam e
escrevam outras representações de si mesmas e continuem quebrando as cabaças dos
estereótipos, pois a luta é muito grande, mas quem tem a coragem de carregar na pele a cor da
noite, resiste e segue em frente.

Poder às meninas negras, nos livros e na vida.


229

5 ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES

Sou negra ponto final


devolvo-me a identidade
rasgo minha certidão
sou negra
sem reticências
sem vírgulas sem ausências
sou negra balacobaco
sou negra noite cansaço
sou negra
(Alzira Rufino)

Certa vez, Regina Zilberman (2003) escreveu que o contato com a literatura infantil se
inicia através da voz. As crianças ouvem as narrativas contadas pelos adultos e, em alguns
casos, além de ouvir, acompanham as ilustrações do livro quando ele se faz presente. E,
assim, palavras e imagens se tornam um elo que une a criança à obra literária. Palavras e
imagens são introduzidas na epiderme daquela criança, se instalando no seu cognitivo e
transformando-a em um leitor.

É a posse dos códigos de leitura que muda o status da criança e a integra num universo maior
de signos, para além da audição e o deciframento das imagens visuais.

O crescimento da criança se faz nessa imersão de palavra e escrita, e seu desenvolvimento


intelectual é demonstrado a partir da habilidade de verbalizar os conteúdos assimilados, estas
ações decretam o que Zilberman (2003) intitula de imperialismo do texto.

Quando pensamos em império, comumente, associamos a ideia de poder. E que poder tem o
texto que muda a criança, transformando-a em leitora, que atinge seu intelecto com novas
imagens, discursos e representações. Que poder tem o texto que adentra a pele do indivíduo
num processo simbiótico. Todavia, com o poder surgem, também, as indagações, dentre elas:
quais as obras literárias as crianças tem lido? Qual a reação epidérmica e intelectual essa
230

literatura tem causado nas crianças, especificamente, nas meninas negras? Quem escreve as
obras infantis de maior circulação e influência no Brasil?

Zilberman (2003) informa que os livros, por vezes, são recebidos pelas crianças como um
instrumento a ser respeitado. A escrita projeta verdades, sacraliza saberes, não sabendo elas
que o livro existe, também, para ser questionado.

O texto escrito é imposto às crianças, e esta imposição é histórica, hierárquica, patriarcal,


racista e influenciada pela mídia, editoras e, até mesmo, pela escola. Essas imposições fazem
com que variadas crianças tenham acesso às mesmas modalidades de cultura e representação.

Diante de tais reflexões, esta pesquisa lançou olhares para os ditos “diferentes”, as minorias
que foram obrigadas a se enquadrar em histórias homogêneas. E, inicialmente, buscamos
compreender quais foram essas histórias e os que elas trouxeram.

Imbuídos nas intenções acima descritas, atestamos que a literatura brasileira,


predominantemente, foi escrita por mãos brancas; até mesmo porque, por um longo período,
as mãos negras estavam presas aos grilhões do processo escravagista.

Inicialmente, a literatura fora escrita51 com mais afinco por mãos masculinas, em seguida por
mãos femininas, ambas brancas. Em seus textos, homens e mulheres brancos ora se auto
retratavam, ora retratavam o outro, os negros.

A literatura produzida pelos brancos representando, especificamente, as meninas negras, se


revelou um arauto de racismo e estereotipia; que piora se somarmos isto à inserção e
disseminação das obras de origem europeia, narrativas distantes da cultura brasileira. E, por
fim, quando as produções brasileiras despontam no cenário literário, eram narrativas
influenciadas pelo modelo europeu e/ou preocupadas em propagar ideias eugênicas, como é o
caso das obras de Monteiro Lobato (considerado maior expoente da literatura infantil
brasileira). A literatura era, portanto, um lugar difícil para os negros.

51
A palavra escrita também denota visibilidade.
231

Cuti (2010) informa que os brancos não escreviam narrativas com representações positivadas
dos negros, pois, para realizar tal feito, é preciso mergulhar no universo do diferente52, atuar
como se fosse o diferente. Para Cuti (2010), os escritores brancos brasileiros poderiam ter
oferecido tais experiências ao seu público, mas perderam esta oportunidade, pois se negaram a
estar não na pele, mas no coração de um negro e, a partir daí, produzir seu texto.

Quando analisamos a presença do negro, mais especificamente da menina negra na literatura,


vamos descobrir que a maior parte das produções foi feitas por brancos representando
personagens negras como verdadeiras caricaturas, pois, ainda de acordo com Cuti (2010), os
autores brancos se recusam a abandonar sua brancura no ato da produção literária, logo, não
acessam a subjetividade negra. Para estar no lugar do outro, para tentar traduzir o outro, é
necessário um desprendimento de si mesmo.

Ainda segundo Cuti (2010), o sujeito branco bloqueia em suas narrativas, a humanidade do
negro, promovendo sua invisibilidade, seja transformando ele em seu mero apetrecho tal
como um objeto, seja o apresentando na trama sem função, sem história, sem família, sem
nome, surgem como se tivessem origem no nada. A humanidade do negro agride o branco
porque este se ampara nas falácias do racismo.

Observando as considerações de Cuti (2010) e comparando-as com suas percepções já citadas


neste trabalho, verificamos que em 1987 Cuti, declarou na Revista Afinal, que a experiência
interior do negro nenhum branco possui, o que torna inviável qualquer tentativa de
deslocamento com o intuito de compreender o outro. Vinte e três anos depois Cuti (2010)
afirma que os escritores brancos, de forma empática, podem tentar se colocar no lugar do
indivíduo negro, divagando como seria possuir sua pele e suas emoções, para que assim
pudessem representar a negritude de forma mais positiva. Todavia, este “novo”
posicionamento de Cuti (2010) não anula o fato de que a experiência de ser negro é única e
exclusiva do próprio negro, mas esta afirmação não mais impede que os brancos representem
os negros de forma mais positivada através do processo de alteridade.

Mediante tais constatações buscamos outras formas de ler a menina negra na literatura infantil
e, se o branco não consegue e/ou não quer sentir o que é ser negro, se não consegue e/ou quer
abandonar sua brancura a fim de melhor representar os negros, foi mais viável considerar

52
Entende-se por diferente o outro.
232

(nesta pesquisa) que ninguém melhor para falar das meninas negras do que as mulheres
negras; afinal, ninguém melhor do que você mesmo para se narrar, pois, a experiência de ser,
é intrasferível.

A literatura escrita por mãos negras objetiva resgatar a origem renegada do negro, combater o
racismo, atribuir beleza ao seu corpo, valorizar seus mitos, ritos, crenças, desconstruir
estereótipos. Essa literatura, considerada por muitos como engajada, forja um novo cânone,
intitulado por Cuti (2010) como literatura negro-brasileira.

A importância do cânone da literatura infantil negra é porque a literatura brasileira sempre


teve cor, a branca, e agora é necessário que tenha também a cor negra.
A literatura infantil negro-brasileira ainda possui dificuldade para ser encontrada, porque são
muitos os entraves que impedem a sua circulação e visibilidade. Historicamente,
convencionou-se a crença de que o negro não foi feito para as letras e/ou intelectualidade.
Entretanto, mesmo diante das dificuldades editoriais, foi possível encontrar uma editora por
nome Mazza, apelido da mulher negra Maria Mazzarello que, ao criar esta editora, construiu
um abrigo onde os escritores negros podem escrever, propagar seus textos e encontrar outros
leitores.

A editora Mazza busca dar às crianças negras o prazer de ser negra, de ser bem representada,
de se inserir no contexto literário. Os livros da Mazza não almejam suprimir a leitura de
outros textos e, sim, fazer com que outras representações circulem, pois o perigo reside na
unicidade da história. Se uma menina negra lê que só existem princesas brancas ou se ela tiver
acesso somente a representações inferiorizantes, o que resta para ela? Negar-se?

Sendo assim, os livros da editora Mazza almejam inserir na pele da menina negra a sua
própria negritude, dando-lhe poder, poder para enfrentar toda e qualquer forma de racismo e
estereotipia. A Mazza almeja dar poder às meninas de ser quem são.

Esta pesquisa possui um caráter inédito, pois se volta para uma editora que, embora possua 35
anos no mercado, a circulação das suas obras só ganhou mais força a partir de 2003, com a
obrigatoriedade da Lei 10.639, que prega o ensino da história e cultura afro-brasileira nas
escolas. Essa Lei possibilitou uma maior visibilidade das narrativas negras e sua inserção no
âmbito escolar, lugar onde as meninas negras passam maior parte do tempo.
233

Olhamos para todas as meninas negras produzidas por mulheres negras e publicadas pela
editora Mazza; este feito transforma o trabalho em uma bússola, que mostrará às meninas
onde podem se encontrar. Olhamos para todas essas narrativas, dez mais especificamente,
com o objetivo de verificar como as mulheres negras têm conseguido, através das suas
narrativas, desconstruir a estereotipia que tanto enclausurou a representação literária das
meninas negras.

Responder essa objetivação acima descrita é importante, pois o estereótipo projeta discursos
que tem valor de verdade, ou seja, não precisa ser provado, e esse valor é reproduzido
constantemente na sociedade. A estereotipia projetou discursos que afirmam, dentre outras
questões, que as meninas negras não possuem inteligência, são feias, seus corpos possuem um
odor característico, tem predestinação a serem escravizadas, destinadas a lugares considerados
sem prestígio social, designadas apenas para o sexo e não à afetividade, descendentes da
África, considerada o berço da incivilidade, magia e miséria extrema e nunca poderão ser
princesas nem em obras infantis.

Historicamente, esses e outros estereótipos têm sido considerados verdadeiros, fomentando


práticas racistas e discriminatórias que se repetem diariamente. É chegado o momento de
outras representações.

Serge Moscovici (1978) informa que a representação é uma preparação para a ação, ela guia o
comportamento e, sobretudo, remodela e reconstitui os elementos do meio ambiente em que o
comportamento teve lugar. Diante desta premissa, apontamos para ação e voltamos à questão
central: como estão sendo representadas as meninas negras na literatura produzida por
mulheres negras?

Ao analisar as dez narrativas da editora Mazza, verificamos que muitas desconstruções têm
sido feitas: a maioria das narrativas relaciona às personagens negras a sua ascendência
africana, numa tentativa de apresentar a África como berço de uma linhagem e ancestralidade
negra; a estética e a beleza negra são valorizadas através da exaltação ao cabelo como um ato
político e a exposição de vários penteados se intensifica; a personagem negra é apresentada de
forma empoderada, resistindo e se posicionando na sociedade; o corpo negro é representando
de forma positivada, sem associações à lascívia, mas a bons odores e resistência; as religiões
de matrizes africanas servem como arcabouço para apresentação dos mitos de fundação e para
234

o desvelamento de princesas negras; as meninas negras são apresentadas como seres


inteligentes; enfim, muitos discursos de combate ao racismo e a estereotipia foram
engendrados nas tramas da Mazza, mostrando que um caminho de luta tem sido feito e é
importante que se torne conhecido.

Obviamente, em algumas narrativas da editora, é possível ver resquícios de estereótipos que


as escritoras tentam desconstruir, afinal, elas foram vítimas da estereotipia e, por vezes, ainda
que de forma inconsciente, acabam reproduzindo as experiências que tanto almejam
subverter.

A importância dessas narrativas repousa na premissa de que as crianças constroem suas


identidades através de relações, interpelações sociais e, também, através dos laços afetivos
que constroem com as narrativas.
As crianças constroem suas identidades devido o poder da literatura de convencer, alimentar o
imaginário, ações, pensamentos e resgatar memórias.

Essa construção tem na autoafirmação sua base fundadora. Somente quando o indivíduo
possui uma identidade fortalecida e bem representada pode se livrar dos estigmas, forças
exteriores que os desvalorizam, e lutar contra seus opressores. E, assim, a negritude não será
um fardo e, sim, um fato.

O indivíduo encontrará prazer em ser ele mesmo, resistirá aos entraves e exibirá
corajosamente sua pele da cor da noite, como afirma Lívia Natália (2015) em seu poema
OutrÁfricas:
O Negrume de minha pele
não dói na ponta dos meus dedos,
não dói entre minhas pernas,
nem nos joelhos.
Não dói quando meu cabelo se dobra
em cachos crespos,
não dói.
Esta cor que fala antes de mim,
que chega alastrando-se
e a tudo contamina
com seu cheiro salobro de outraÀfricas,
em mim não dói.
Ela dói no outro.
Arde, violenta seus olhos,
fere, na carne grossa do medo,
a brecha macia que sabe
do vermelho-irmão de todo sangue (NATÁLIA, Lívia, 2015, p.135).
235

Esperamos que este trabalho empodere as meninas negras e as auxiliem para que continuem
buscando e escrevendo representações positivadas de si mesmas, que mais histórias sejam
escritas, que os livros da editora Mazza se tornem conhecidos e apreciados. Esperamos que
esta pesquisa auxilie docentes e estudantes das diversas áreas em suas práticas pedagógicas.
E, por fim, esperamos que as meninas negras se afirmem como negras e ponto final, aliás,
final não, porque a história continua.
236

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APÊNDICE: Mulher negra escreve, menina negra aparece! (Álbum de família)

(Marinalva Almeida, primeira escritora conhecida por Shirlene Almeida).

(Marinalva, mulher negra escreve e Shirlene, uma menina negra aparece. Empoderamento e representatividade
importam).
246

ANEXO: Mulheres negras escrevem, meninas negras aparecem! (Fotografias)

Patrícia Santana, escritora dos livros Cheirinho de Neném (2011) e Entremeio Sem Babado (2007). Criou as
meninas negras Iara e Kizzy, respectivamente.

Martha Rodrigues, escritora dos livros Que Cor É a Minha Cor? (2005) e Gabriela, a Princesa do Daomé (2013).
Criou uma personagem sem nome e a menina Gabriela, respectivamente.

Iris Amâncio, escritora do livro A Ginga da Rainha (2005). Criou a menina Ana.

Maria do Carmo Galdino, escritora do livro Mãe Dinha (2005). Criou as personagens Dinha, sua neta e bisneta.
247

Madu Costa, escritoras dos livros Meninas Negras (2010) e Cadarços Desamarrados (2009). Criou as meninas
Mariana, Dandara, Luanda e Mariana, respectivamente.

Nilma Lino Gomes, escritora do livro Betina (2009). Criou a menina Betina.

Kiusam de Oliverira, escritora do livro Omo-Oba- Histórias de Princesas. Criou as princesas negras Oiá, Oxum,
Iemanjá, Olocum, Ajê Xalugá e Oduduá.

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