You are on page 1of 48

LA CLAREIRA DA CLARICE – “Assinatura”

Álvaro Ricardo de Souza Cruz. Procurador da República


em Minas Gerais. Mestre em Direito Econômico e Doutor
em Direito Constitucional, Professor da Graduação e da
Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais. Vice-Presidente do Instituto Mineiro de
Direito Constitucional. Membro do Instituto de
Hermenêutica Jurídica/MG. Coordenador das 1ª e 3ª
Câmaras da ordem constitucional e da ordem econômica na
PRMG.

Daniel Guimarães Medrado de Castro. Especialista em


Direito Público: Controle de Contas, Transparência e
Responsabilidade pela PUC-Minas e TCEMG. Mestrando
em Direito Público pela PUC-Minas (Pesquisador Bolsista
FAPEMIG). Diretor do Instituto de Defesa da Cidadania e
Transparência – IDCT. Membro da International Law
Students Association – ILSA. Advogado.

É curioso observar a reação de um operador do direito quando se depara com uma tese nova.
De um modo geral, a desconfiança estravaza para a crítica ou para a pilhéria se o ambiente o
permite. “Animais como sujeitos de direito?” Quem é o “animal que teve essa ideia?
“Responsabilidade penal de empresas?” Como explicar a intenção, o dolo específico de um ser
inanimado, fantasia do próprio direito? “Aborto de anencefálicos?” Que diabo é isso? Direito
virtual?” Já sei, o do pobre, do negro e da prostituta? “Direito espacial?” Uai, tem direito de Ets?
“ Direito e literatura?” Esse pessoal não tem o que fazer: ou é direito ou é lazer, certo?
Interessa-nos aqui indagar o porquê dessa reação pouco hospitaleira sobre o “novo”. Alguns
podem dizer que os juristas são tradicionalmente tradicionais, essencialmente conservadores e
defensores do status quo.
Preferimos outra explicação. Estamos acostumados a uma rotina. Acordamos. Escovamos os
dentes. Tomamos café da manhã. Repetimos cumprimentos, olhares, dizeres, de modos diferentes,
mas no fundo sempre igual. A rotina nos conforta. A rotina nos embala e nos deixa seguros diante da
ausência de surpresas. Ela é nossa velha conhecida, uma amante confiável. Não nos assusta em sua
mesmidade, pois mesmo aquilo que inova, vez por outra, inova como o mesmo. Já esperamos o
novo na tecnologia. De início, essa novidade nos constitui, porquanto acreditamos que nós somos a
novidade. Depois, até certa idade, embarcamos no novo para nos sentirmos novos novamente,
radicalmente atuais. Mais tarde, simplesmente a aceitamos.
No terreno dos valores, a novidade surge como estrangeira no território da xenofobia. Os
valores dizem o que somos, pois somos aquilo que acreditamos. Não estamos dispostos a
racionalizar aquilo que nos demos dogmaticamente ou aquilo que recebemos sem pedir. A
segurança da perenidade garante a estabilidade da existência.
O Direito nos remete à técnica, à Ciência, mas revolve o tempo todo em nossos valores, nossas
crenças e tradições. O modo de vê-lo exige que a “novidade” se dê no mesmo (direito) e que a
“mesmidade” seja inovadora. Acertar o ponto desse prato exige talento. Exige arte! Pede a benção
de Deus e dos orixás...
Talvez seja por isso que tantos considerem uma excentricidade a opção pela Arte ou pela
Religião. Para muitos soa estranho que autores que se julgavam herdeiros (salvadores?) do
Iluminismo, como Max Horkheimer e Jürgen Habermas se debruçarem sobre temas religiosos em
sua última fase (ou pelo menos a mais recente). Porque o exigente pensamento da “Teoria Crítica”
teria desembocado nas relações entre a Filosofia, a Sociologia e a Teologia? Excentricidade?
Proximidade da morte e necessidade de acertos de conta com Deus? Pura carolice?
E a opção pela Arte? Theodor Adorno teria buscado uma “torre de marfim” no estético por sua
desilusão com o mundo? Sua crítica à razão instrumental e à totalização do arbítrio, a percepção de
que, mais cedo ou mais tarde, todas as revoluções são traídas, o levaram a desistir do “iluminismo”?
Sua crítica à sociedade de consumo simplesmente lhe impuseram à erudição artística e à apologia
do jazz sobre a cultura popular?
Também a Fenomenologia de Heidegger e a Hermenêutica Filosófica de Gadamer voltaram-se
fortemente para o elemento estético. Por evidente que não se trata aqui da estética transcendental de
Kant, que a percebia como sensibilidade empírica ou pura (tempo e espaço) como pressupostos do
conhecimento. Mas, como percepção de que havia vida além do “Aufklarüng”.
Não precisamos aqui compilar ou listar um número significativo de pensadores que
aproximaram seu pensamento da Religião e da Arte. Falando de um por todos, falamos em Jacques
Derrida, como um pensamento filosófico que galvaniza essa ideia.
Mas, e o susto, o horror, a náusea sartreana que tal proximidade traduz em nossos operadores
do direito? Em nosso sentir essa rejeição se explica pela convicção de que Arte e Religião traduzem
apenas um raciocínio doxático. A crença em uma divindade ou na perfeição da não existência
(Nirvana) implicariam justamente o abandono da razão, daí sua implicância. A seu ver, o senso
estético que nos permite gostar ou não de uma escultura, apreciar ou não uma música ou uma
pintura, aprovar ou não a arquitetura de um edifício ou de uma roupa, recairia exclusivamente no
campo do “subjetivismo”.
Diz o ditado: “Gosto não se discute!” Também já ouvimos que “Em Política e Religião, cada
um tem sua opinião!” Ou seja, a Arte e a Religião não traduzem uma discussão “racional”, não
permitem a busca pela “verdade”, porquanto extrangeiras à Epistemologia.
Porque? Êta palavrinha difícil, sô! Por que o quê? Já não está clara a ideia? Já não
esclarecemos o suficiente? Já não há claridade o bastante na clareira desse argumento? Qualquer
fiscal, Juiz ou I(n)spe(c)tor diria que sim? Sem mais discussão, pois não precisamos mais
i(n)specionar o que já foi i(n)specionado. Será?
“Claramente não!”, diria Clarice Lispector, uma ucraniana, nascida no ano de nascimento de
do pai (1920) de um dos autores desse ensaio, recifense de coração e “carioca da gema” Ela sempre
usou a arte literária como bússula na busca pela essência humana. Logo, no mínimo, não se
contentaria com o ponto final nessa discussão. Ela exigiria uma alternativa. Insistiria na questão.
O que responder? Cada um responde com, por e a partir de suas “pre-visões” e de seu
horizonte efeitual, repetindo o que diria Gadamer. E é justamente por sua entificação hermenêutica
que pretendemos explicar tanto o espanto e tanta ojeriza com a “novidade” no campo jurídico, como
lidar com Direito e Literatura, quanto pelo interesse de tantos filósofos pela Arte e pela Religião.
Para Gadamer, a raiz dessa resposta encontra-se em Platão. Platão, discípulo de Sócrates.
Sócrates, certamente um homem de inteligência acima da média. Um superhomem de Nietzche que
voa como as águias e vê como os homens são pequenos?
Os “homens pequenos” de sua época justificavam tudo pelo “animismo”. Eles animavam a
natureza, entificando rios, águas, fogo, terra, ar. Os céus eram entificados, transformados em deuses
e demônios, e assim permitiam aos “homens” explicar tudo aquilo que desconhecia. Crença em
crendices e lendas, crença em mitos que a tradição transformou com o passar do tempo em dogmas
a serem aceitos sem questionamentos.
Sócrates, tal qual Ulisses na Odisséia, não quis seguir o canto das sereias. Sócrates encontrou
seu mastro para se amarrar e o chamou de “razão”! Sua salvação era a psiché humana! A alma
racional era capaz de salvar o homem de si mesmo e de sua imaginação mítica. Separar razão de
afecção, cindir episteme e doxa, ciência da mera opinião, como modo único de conhecer o mundo.
Conhecimento pleno: paidea! Conhecimento pleno: conhece-te a ti mesmo!
Liberdade para a mente. Liberdade para o racional. O filósofo no mundo de lendas e mitos
tornou-se um “revolucionário” capaz de dividir a Filosofia em antes e depois de si. Um “extremista”
capaz de retirar os grilhões impostos pelos eikones da mitologia. Ele queria libertar-nos dos fios e
das teias das Parcas do Fatalismo e do temor de um destino mil anos antes já traçado para nós. Para
seu discípulo, tirar-nos da caverna. Levar-nos para fora! Elevar-nos ao real, ao mundo das ideias, o
hiperurânio platônico!
Como? Lembrando o que sempre soubemos: o remédio, a cura, o pharmakon platônico pela
anamnese, pelo parto maiêutico da lembrança da perfeição. Somente assim o belo pode ser
considerado belo. Não pela harmonia, pela dimensão, pelas cores, aromas e sabores, como
ensinavam os naturalistas. Mas pela ideia, pela forma da perfeição, pelo bem que todos guardamos
em nosso interior. Nela, podemos encontrar o divino. Nela, encontramos a justiça!
A Filosofia de Platão exige a elevação de nosso espírito, o abandono do irreal na procura pelo
verdadeiro, pela verdade que só pode ser encontrada no real. Entre o original e a cópia, o discípulo e
professor da Academia nos conduz ao primeiro, ao princípio, ao fundamento. Negar a verdade é
regressar à caverna, às correntes do mito, à materialidade imaterial de nossa irrealidade concreta e
cotidiana.
Uns preferem ascender e aprender. Outros, preferem charfurdar na lama. E, se quisermos
descer a um nível ainda mais baixo, devemos procurar a imitação da imitação, a cópia da cópia, o
retrato do retrato, em suma, a Arte! Platão rejeita a Arte porquanto nada se faria mais longe da
verdade. A escultura de um homem, até aquelas elaboradas por seu contemporâneo Fídias, nada
mais seria do que a cópia imperfeita de uma cópia da ideia do ser humano. Como tal a Arte
encapsula nosso espírito, pois nos eternece, nos enfraquece, nos entorpece e seu desfrute nos
impede de viajar em busca do hiperurânio!
Gadamer tenta explicar na tradição herdada pelo pensamento platônico, que mediou toda a
antiguidade e o medievo e nos chegou na atualidade, como uma herança não questionada, não
problematizada.
A consciência plena trazida pelo cogito cartesiano reproduz as crenças platônicas e pitagóricas
de uma hipercerteza trazida pelo pensamento puro da matemática, a língua da natureza, segundo
Galileu. Nossa racionalidade “moderna” é denunciada por Gadamer como herança dos gregos e do
cartesianismo e acusada de sucumbir a outro mito: o mito de sua pureza e de sua superioridade
(talvez melhor seria dizer univocidade!). O mito de que o único saber é o científico, o saber
“objetivo”! O mito de “verdades inquestionáveis”, apodíticas, como “dois e dois são quatro” sequer
pode ser colocado em dúvida! A certeza de que a aritmética e que a Geometria poderiam
“matematizar” o mundo, entificado pela ordem e pela previsibilidade das máquinas, agora pode ser
enfiada dentro de um método.
O homem podia compreender o mundo e assim poderia submeter a natureza. A ordem poderia
“legislar” e então ordenar o homem e com ele todo o mundo. Nossa razão entende, desdobra,
desvela, ilumina, joga luzes sobre tudo!
Mas, crer em uma compreensão plena, seria uma atitude epistêmica? Quem é capaz de
demonstrar seu pleno entendimento sobre as coisas? Será que a demonstração matemática não
implica a criação de novos “monstros” ainda mais poderosos? Será que o mastro de Sócrates não
era a cauda de um dragão? Quem entende o entendimento? Quem compreende a compreensão?
Quem explica racionalmente cada ato que praticou em sua vida? Cada momento de fúria? Cada
palavra mal colocada? Deguste a resposta de Clarice:

Se me perguntassem sobre Ofélia e seus pais, teria respondido com o decoro da


honestidade: mal os conheci. Diante do mesmo júri ao qual responderia: mal me conheço –
e para cada cara de jurado diria com o mesmo límpido olhar de quem se hipnotizou para a
obediência: mal vos conheço. (P.63)

Clara clareira em sua clarividência, Clarice! A compreensão, o acontecer hermenêutico nunca


alcançará a plenitude, exceto no tempo mítico da salvação, do êxtase, do gozo, do prazer de dizer:
“eu entendi!” A suspensão temporal, a provisoriedade, a incompletude, as sombras trazidas pela
própria luz nos permitem caminhar, tatear e até compreender...
Doxa e episteme não são inimigas uma da outra. São irmãs siamesas inseparáveis porquanto
batem com um só coração. Não há Ciência do Espírito e Ciência da Natureza. Tampouco há Ciência
e Hermenêutica. Gadamer propõe haver Ciência com Hermenêutica, Arte na Ciência, Ciência na
Religião, porquanto em tudo há o humano, há o ser humano.
Até mesmo no Direito! Se para alguns é fácil perceber a “arte” da oratória nos debates do Júri,
de certo não podem se esquecer que falar e redigir também são um dom. O convencimento exige o
bem falar e o bem escrever, de modo a fazer o Outro 'sentir' o argumento, sentir a dor, o receio, a
violência praticada contra o Outro. Não sendo assim, jamais terá compreendido como se dá o
Direito.
Contudo, os operadores do Direito, legítimos herdeiros de Sócrates, Platão e Descartes
desconfiam do novo e desconfiam da Arte como caminho para a verdade. Essa atitude torna o
homem um “ser unidimensional”, como apregoa Herbert Marcuse. Talvez, por isso, a procura de um
novo conceito para a Razão, a procura de novas bases para o Iluminismo, para a desconstrução do
cientificismo. Não! Habermas, Adorno, Horkheimer, Heidegger, Gadamer e Derrida não
enlouqueceram com suas (des)ilusões. Ou, se o fizeram, Clarice talvez perguntasse junto a
Foucault: “Quem, afinal de contas, diz o que é o normal?” “Quem 'de-fine' o que é loucura?”
“Quem diz o que é o racional?”
Compreender se aproxima de entender, de fixar o sentido, de captar a ideia. Heidegger deixa
evidente que na clareira da compreensão a afecção é co-originária. Razão pura é pura mentira, é
puro mito. Compreender é sentir, é deixar-se levar, é atinar, patinar em sensações. Compreensão se
dá com a sensação, tal qual esclarece Clarice em seu conto o grande passeio:

Era uma velha sequinha que, doce e obstinada, não parecia compreender que estava só no
mundo. (p. 29)

A senhora, de nome Mocinha, perdera tudo, especialmente seu marido e seus filhos, Maria
Rosa e Rafael. Mas continuava vivendo, pois de algum modo estancara a dor, esterelizara o
sentimento. Assim, não compreendia a solidão. Contudo, na casa em que dormia de favores, o
rapaz, filho dos donos, e sua namorada decidiram passear de carro e levá-la. A promessa do passeio,
a expectativa da viagem a Petrópolis, por si só já a fez sentir o quão dura era a cama em que dormia.
Em outras palavras, sua sensibilidade há muito adormecida voltava diante da condição humana que
recuperara. E foi assim: as sensações do passeio foram demasiadas e todas de uma só vez:

Na rua, de novo pensou em Maria Rosa, Rafael, o marido. Não sentiu a menor saudade.
Mas lembrava-se. Dirigiu-se para a estrada, afastando-se cada vez mais da estação. Sorriu
como se pregasse uma peça a alguém: em vez de voltar logo, ia antes passear um pouco.
Um homem passou. Então uma coisa muito curiosa, e sem nenhum interesse, foi iluminada:
quando ela era ainda uma mulher, os homens. Não conseguia ter uma imagem precisa das
figuras dos homens, mas viu a si própria com blusas claras e cabelos compridos. A sede
voltou-lhe, queimando a garganta. O sol ardia, faiscava em cada seixo branco. A estrada de
Petrópolis é muito bonita. (…) Saciada, espantada, continuou a passear com os olhos mais
abertos, em atenção às voltas violentas que a água pesada dava no estômago, acordando
pequenos reflexos pelo resto do corpo como luzes. A estrada subia muito. A estrada era
mais bonita que o Rio de Janeiro, e subia muito. Mocinha sentou-se numa pedra que havia
junto de uma árvore, para poder apreciar. O céu estava altíssimo, sem nenhuma nuvem. E
tinha muito passarinho que voava do abismo para a estrada. A estrada branca de sol se
estendia sobre um abismo verde. Então, como estava cansada, a velha encostou a cabeça no
tronco da árvore e morreu. (p. 37-38).

Sentimento é fluido, é água, que vem e que volta. E quando se bebe dela, quase sempre vem a
vertigem: Mocinha sentiu ali tudo que escondera de si. Não tinha saudade dos Outros, por mais
caros que eles fossem para ela. Saudade é nostalgia. Ver-se nova, com cabelos compridos, ser capaz
de vislumbrar a vida, fora demais. Ela queria viver, mais do que um simples desejo. Ânsia,
sofreguidão pela vida, “altíssima e sem nenhuma nuvem”: um abismo. Uma catarata de sentimentos
despejou-se no instante em que ela voltava a ser gente. E morreu sendo gente...
A Arte de Clarice Lispector nos sugere uma nova forma de compreensão. Compreensão de um
texto, das coisas, do Outro, enfim do mundo. “Com-preensão” não é uma atitude solitária. Não é um
ato solipsista. O 'ser humano' é humano, porquanto é dado ao Outro. Sua ipseidade pode até se
“manifestar” na aparência de um ego encapsulado, de uma consciência distante que observa o
mundo. E que assim pode categorizá-lo, matematizá-lo. Essa mônada esconde o que somos: um ser-
para-o-outro, um ser-pelo-outro, um ser-com-o-outro. Nossa solidão, nosso “des-amparo” impõe
uma proximidade na distância impossível de “ser-com”, de “ser-com-outro”. Mocinha percebeu,
sentiu essa solidão, e não mais suportou o desamparo. Finalmente compreendeu e então preferiu ir!
A “com-pre-ensão” não se furta do mundo e não se furta do tempo. Somos no tempo, somos
também com o tempo, pois somos tempo. Mocinha era uma velha? Se sim, certamente uma velha
mocinha. Somos muitos, de criança a velho em poucos segundos. A temporalidade nos constitui,
mas não por um tempo que é medido e regrado pelos relógios e pelo calendário. Não o tempo da
sucessão infinita das pequenas (e que sempre nos parecem grandes) urgências. Somos a memória de
um passado que se torna presente sem ser convidado. O tempo pesa sobre nós no presente de uma
tradição que somos jogados sem que ninguém nos peça desculpas. Haveria algo a se desculpar? O
tempo pede desculpas? Haveria culpa no pedido? Ou a necessidade do perdão? Haveria futuro na
“pre-sença” da culpa sem desculpa e sem perdão? Com a palavra, tanto Mocinha quanto a Comissão
da Verdade no desvelamento da ditadura. Com a palavra eu e você! Quem? Aquele que agora nos
lê!
Somos um turbilhão de sensações esperando uma desculpa para desabrochar, para
ex(im)plodir freneticamente. A brasa viva, que debaixo do carvão, espera por um vento, por um
sopro para se tornar fogo, para se tornar vida. Uma visão, uma sensação, uma música, um filme, um
abraço, uma benção que nos embalam na condição temporal que nos damos enquanto seres
humanos.
Não pedimos nosso nome, nossos pais, nossa casa, nossa cidade, nossa língua. A “pre-sença”
lida com a dádiva de poder indagar sobre isso. De pedir explicação sobre o que Heidegger designa
de primado ôntico e ontológico da “pre-sença”, pois somos esse “poder perguntar”.
“Com-pre-ensão”? Explicação! Explicação? Plicação externa? Plicação exterior? Plicar
implica 'dobrar' sobre si mesmo, ensina o dicionário. “Ex-plicar” nada mais é do que 'des-dobrar',
colocar a nú a dobra. É o que se esconde? É que jamais teremos um entendimento perfeito, integral,
pleno, definitivo, absoluto de nada. A promessa do mecanicismo do Cogito cartesiano e da “razão
pura” de Kant não podem se cumprir. Chegamos ao ser sempre por aquilo que as coisas 'dizem' a
nós ou por aquilo que 'perguntamos' a elas. A fenomenologia de Heidegger e a Hermenêutica de
Gadamer se esforçaram para nos livrar da pretensão de uma hipercerteza, de um reducionsimo
gnoseológico na compreensão. O excesso de significação e a infinitude nos marcam como uma
dádiva e um castigo. Ricouer e Lévinas disputam filosoficamente aquilo que compartilham.
Compreensão é pulsão, movimento, mas o “Eu penso” cartesiano supõe parada. Para os
herdeiros de Sócrates, reflexão e pensamento pressupõe quietude, silêncio e vagar na ação. Supõe
ponderação, avaliação criteriosa. Mas, o tempo não para. Podemos até suspendê-lo, dar férias a ele e
pedí-lo que volte mais tarde. Podemos adiar, mas ele não adia. Ele cobra, pois sempre volta pelas
fissuras do espaço. Melhor: vai sem nunca ter ido realmente. O pensamento não é estático e as
associações conceituais que fazemos são incessantes. Ontologizamos enquanto respiramos.
Seguramos a respiração, mas as trocas gasosas no sangue não se interrompem. Clarice nos conta
com seus contos um segredo: nós não controlamos o 'entender”, pois ele é dado a nós e nos faz ser
quem nós somos. O 'entender' é dado do modo e da forma que podemos perceber o que Gadamer
entificou como o “acontecer hermenêutico”. Os pensamentos se sucedem. Vão. Vêm. Alguns se
fixam em nossa memória. E surgem inesperadamente sem pedir licença, sem nosso consentimento.
Não há pausa para fôlego. Eles vêm tal qual uma onda que nos leva no turbilhão de um “caudo”, no
tempo em que queremos ver a luz, nos instantes em que debaixo d'água não sabemos mais se
voltaremos a respirar.
Clarice procura em seu estilo, denominado por outrem de “Fluxo de Consciência”, esculpir na
literatura o “acontecer hermenêutico”. Ela exige a leitura de seu texto no lapso de uma respiração e
outra do leitor. Todo esse texto em um átimo. Como se qualquer esperança de descanso, de pausa,
como as vírgulas e os pontos finais de um texto devessem pedir desculpas à Autora por estarem
graficamente 'presos' ao texto.
Em toda a obra “Felicidade Clandestina”, Clarice parece desafiar o leitor a lê-la de um fôlego
só, sem pausa, sem descanso. Escolhemos aqui uma passagem ilustrativa no conto “Os desastres de
Sofia”. O próprio nome já é convidativo: Sofia? Sabedoria? Razão? A personagem, uma menina na
tenra infância, se comprazia em um jogo de irritar seu professor. Para ela, era necessário tirá-lo de
sua letargia, de sua mesmidade, para que livre de seu casulo, deixasse a casmurrice e pudesse então
voar. Irritá-lo seria sua forma de amor, pois só assim ele faria mais, ele seria mais! Ela era senhora
da situação e seu professor um joguete para sua “boa ação”. Tudo ia bem até o dia que ele pediu à
turma que escrevesse uma redação. Ela o fez o mais rápido que pode. Mas ali revelou seu presente.
Chamada à sala de aula, temia pelo fim de seu 'jogo'. Mas temia também que ele descobrisse sua
'forma de amar' e que assim descobrisse a verdadeira Sofia. Ela agora está diante de sua vítima, que
de repente pode tornar seu algoz por revelar sua alma. Nessa sequência, Clarice nos dá uma aula de
como se esculpe um personagem, de como a compreensão e as sensações nos vem sem controle
algum e com isso escava a alma humana.

Mas o professor ficou imóvel e não entregou o caderno.


Para a minha súbita tortura, sem me desfitar, foi tirando lentamente os óculos. E olhou-me
com olhos nus que tinham muitos cílios. Eu nunca tinha visto seus olhos que, com as
inúmeras pestanas, pareciam duas baratas doces. Ele me olhava. E eu não soube como
existir na frente de um homem. Disfarcei olhando o teto, o chão, as paredes, e mantinha a
mão ainda estendida porque não sabia como recolhê-la. Ele me olhava manso, curioso, com
os olhos despenteados como se tivesse acordado. Iria ele me amassar com mão inesperada?
Ou exigir que eu me ajoelhasse e pedisse perdão. Meu fio de esperança era que ele não
soubesse o que eu tinha feito, assim como eu mesma já não sabia, na verdade eu nunca
soubera.
– Como é que lhe veio a ideia do tesouro que se disfarça?
– Que tesouro? - murmurei atoleimada.
– Ficamos nos fitando em silêncio.
– Ah, o tesouro!, precipitei-me de repente mesmo sem entender, ansiosa por admitir
qualquer falta, implorando-lhe que meu castigo consistisse apenas em sofrer para sempre de
culpa, que a tortura eterna fosse a minha punição, mas nunca essa vida desconhecida.
– O tesouro que está escondido onde menos se espera. Que é só descobrir. Quem lhe
disse isso?
O homem enlouqueceu, pensei, pois que tinha a ver o tesouro com aquilo tudo? Atônita,
sem compreeender, e encaminhando de inesperado a inesperado, pressenti no entanto um
terreno menos perigoso. Nas minhas corridas eu aprendera a me levantar das quedas mesmo
quando mancava, e me refiz logo: “foi a composição do tesouro! Esse então deve ter sido o
meu erro!” Fraca, e embora pisando cuidadosa na nova e escorregadia segurança, eu no
entanto já me levantara o bastante da minha queda para poder sacudir, numa imitação da
antiga arrogância, a futura cabeleira ondulada:
– Ninguém, ora... respondi mancando. Eu mesma inventei, disse trêmula, mas já
recomeçando a cintilar.
Se eu ficara aliviada por ter alguma coisa enfim concreta com que lidar, começava no
entanto a me dar conta de algo muito pior. A súbita falta de raiva nele. Olhei-o intrigada, de
viés. E aos poucos desconfiadíssima. Sua falta de raiva começara a me amedrontar, tinha
ameaças novas que eu não compreendia. Aquele olhar que não me desfitava – e sem
cólera... Perplexa, e a troco de nada, eu perdia o meu inimigo e sustento. Olhei-o
surpreendida. Que é que ele queria de mim? Ele me constrangia. E seu olhar sem raiva
passara a me importunar mais do que a brutalidade que eu temera. Um medo pequeno, todo
frio e suado, foi me tomando. Devagar, para ele não perceber, recuei as costas até encontrar
atrás delas a parede, e depois a cabeça recuou até não ter mais nada onde ir. Daquela parede
onde eu me engastara toda, furtivamente olhei-o.
E meu estômago se encheu de uma água de náusea. Não sei contar.
Eu era uma menina muito curiosa e, para a minha palidez, eu vi. Eriçada, prestes a vomitar,
embora até hoje não saiba ao certo o que vi. Mas sei que vi. Vi tão fundo quanto numa
boca, de chofre eu via o abismo do mundo. Aquilo que eu era anônimo como uma barriga
aberta para uma operação de intestinos. Vi uma coisa se fazendo na sua cara – o mal-estar
já petrificado subia com esforço até a sua pele, vi a careta vagarosamente hesitando e
quebrando uma crosta – mas essa coisa que em muda catástrofe se desenraiza, essa coisa
ainda se parecia tão pouco com um sorriso como se um fígado ou um pé tentassem sorrir,
não sei. O que vi, vi tão de perto que não sei o que vi. Como se meu olho curioso se tivesse
colado ao buraco da fechadura e em choque deparasse do outro lado com outro olho colado
me olhando. Eu vi dentro de um olho. O que era tão incompreensível como um olho. Um
olho aberto com sua gelatina móvel. Com suas lágrimas orgânicas. Por si mesmo o olho
chora, por si mesmo o olho ri. Até que o esforço do homem foi se completando todo atento,
em vitória infantil ele mostrou, pérola arrancada da barriga aberta – que estava sorrindo. Eu
vi um homem com entranhas sorrindo. Via sua apreensão extrema em não errar, sua
aplicação de aluno lento, a falta de jeito como se de súbito ele se tivesse tornado canhoto.
Sem entender, eu sabia que pediam de mim que eu recebesse a entrega dele e de sua barriga
aberta, e que eu recebesse o seu peso de homem. Minhas costas forçaram desesperadamente
a parede, recuei – era cedo demais para eu ver tanto. Era cedo demais para eu ver como
nasce a vida. Vida nascendo era tão mais sangrenta do que morrer. Morrer é ininterrupto.
Mas ver matéria inerte lentamente tentar se erguer como um grande morto-vivo... Ver a
esperança me aterrorizava, ver a vida me embrulhava o estômago. Estavam pedindo demais
de minha coragem só porque eu era corajosa, pediam minha força só porque eu era forte.
“Mas e eu?”, gritei dez anos depois por motivos de amor perdido, “quem virá jamais à
minha fraqueza!” Eu o olhava surpreendida, e para sempre soube o que vi, o que eu vira
poderia cegar os curiosos.
Então ele disse, usando pela primeira vez o sorriso que aprendera:
– Sua composição do tesouro está tão bonita. O tesouro que é só descobrir. Você... ele
nada acrescentou por um momento. Perscrutou-me suave, indiscreto, tão meu íntimo como
se ele fosse o meu coração. Você é uma menina muito engraçada, disse afinal.
Foi a primeira vergonha real de minha vida. (p. 108-111).

O texto acima diz mais do que o conjunto de palavras que ali se dá. O ritmo frenético de
sucessão de sentimentos, descrevendo aquilo que se dá a nós sem que nos demos conta, encanta o
modo pelo qual compreendemos as coisas. Caímos na velocidade da queda em um abismo. E
caímos na constatação de um sorriso. O parto da vida na metáfora do sorriso é poesia pura do
abismo da alma humana. Esse ritmo, que começa lento no instante da expectativa, dispara em
corrida na transformação do professor e da aluna, respectivamente em ser humano e em mulher.
Essa alternância joga com aquilo que mil textos de filosofia e de hermenêutica não seriam capazes
de clarear, qual seja, a compreensão como ek-sistencial humano, no qual razão e emoção não se
distinguem na humanidade que nos constitui.
A literatura e a arte são episteme e a Ciência é doxa, porquanto episteme e doxa não se
dissociam. Arte e Literatura são Ciência justamente porque estão além, vão além de quaisquer
fronteiras, pois são capazes de dizer aquilo que não pode ser dito por uma razão que se julgava
pura: o rosto levinasiano, o olhar no olho, tudo que nos faz humanos e que pertence ao indizível...
E Clarice se põe entre o dito e o dizer pela mundaneidade do acesso a nossa cotidianeidade, a
relação entre uma aluna e um professor em sala de aula. Existentivo e existencial se fundem pelo
olhar no olho que denuncia a infinitude de nossa compreensão.
E Clarice insiste no ponto quando se depara com uma coisa “in-significante”. O quê? Um
ovo!!! Mas o que vem primeiro, o ovo ou a galinha? Um jogo de contrários, um movimento
dialético e temporal, sem princípio e sem fim, naquilo que antecipa aquilo que nos é dado com
“pre-visão” de tudo que acessamos. Mais do que a Khôra de Platão, expressa na metampsicose
grega da cisão de alma e corpo, Clarice nos oferece a khôra derridiana, ao deslizar sobre a im-
possibilidade de unir significado e significante na linguagem. Com a palavra a artista:

Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo.
Ver um ovo nunca se mantém no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto um ovo
há três milênios. - No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. - Só vê
o ovo quem já o tiver visto. - Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. - Ver o
ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. - Olhar curto e indivisível; se é que há
pensamento; não há; há o ovo. - Olhar é o necessário instrumento que, depois de usado,
jogarei fora. Ficarei com o ovo. - O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não
existe. (…)
O ovo é uma coisa suspensa. Nunca pousou. Quando pousa, não foi ele quem pousou. Foi
uma coisa que ficou embaixo do ovo. - Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para
não quebrá-lo. Tomo o maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei
que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro. (…)
Uma vez um homem foi acusado de ser o que ele era, e foi chamado de Aquele Homem.
Não tinham mentido: Ele era. Mas até hoje ainda não nos recuperamos, uns após outros. A
lei geral para continuarmos vivos: pode-se dizer “um rosto bonito”, mas quem disser “o
rosto” morre; por ter esgotado o assunto.
Com o tempo, o ovo se tornou um ovo de galinha. Não o é. Mas, adotado, usa-lhe o
sobrenome. - Deve-se dizer “o ovo da galinha”. Se se disser apenas “o ovo”, esgota-se o
assunto, e o mundo fica nu. - Em relação ao ovo, o perigo é que se descubra o que se
poderia chamar de beleza, isto é, sua veracidade. A veracidade do ovo não é verossímel. Se
descobrirem, podem querer obrigá-lo a se tornar retangular. O perigo não é para o ovo, ele
não se tornaria retangular. (Nossa garantia é que ele não pode: não poder é a grande força
do ovo: sua grandiosidade vem da grandeza de não poder, que se irradia como um não
querer.) Mas quem lutasse por torná-lo retangular estaria perdendo a própria vida. O ovo
nos põe, portanto, em perigo. Nossa vantagem é que o ovo é invisível. E quanto aos
iniciados, os iniciados disfarçam o ovo. (p.48-52, nosso destaque).

“Somos” iniciados? Somos iniciantes? Ou apenas arrrogantes o suficiente para dar uma
significação hermenêutica e fenomenológica a uma obra de arte? E justo uma obra que diz com
todas as letras que não devemos entender, que não devemos impor a forma (retangular), a ideia, a
concepção para aquilo que se dá sem forma e sem ideia: não há essencialidade no código
linguístico, logo, se nos arriscamos, o fazemos sempre a partir do ente, certos de que não
acessaremos o ovo, sob pena de quebrá-lo. Não se trata aqui de dizer, em tom de desculpa, que esta
foi a nossa interpretação de um texto (por mais pobre que ela seja). Isso soaria como um pedido
prévio de perdão para a ousadia de entificar o ser da arte. Ousadia porque desvelar antes de mais
nada “im-plica” “re-velar”, ou seja, velar novamente, exigindo do leitor a correção justamente
daquilo que nossa “pre-visão” obscureceu.
Arte como um jogo de luzes e de sombras. Verdade como responsabilidade ecológica de
responder ao Outro e, então, finalmente “poder-ser”. Ambiguidade e não certeza, aquilo que
justamente nos faz ser humanos.
E clarice é uma expert nesse jogo de tom sobre tom. Nada blazé, nada que seja distante. Tudo
que não queremos que seja “des-coberto”, ou seja, que “queremos” que permaneça “coberto”, não
visto, escondido parece ser sua obsessão. A alma humana, o modo sempre 'diferente' de manifestar
e encobrir nossas contradições são uma temática constante em seus escritos.
O ser humano constitui-se na/pela/com contradição. Somos humanos pelas ambiguidades que
a todo custo queremos (sonhamos?) velar. Desejamos sempre esconder aquilo que refoge ao
“personagem ideal” que construímos. Construção querida? Construção imposta? Talvez um pouco
dos dois! Mas, de todo modo, construímos de forma a procurar jamais trazer à tona nossos medos,
nossos pudores, nossas fraquezas, nossos apetites e desejos, se incompatíveis com aquilo que
esperamos de nós mesmos ou que os Outros esperam de nós: ser-para-o-outro, ser em função do
que o Outro deseja.
Mas, por mais 'sólido' que seja esse personagem, por mais moldado que o tornemos, sempre e
a cada vez que somos, o inconsciente e nossas afecções trazem à superfície o que não queremos
transparecer. Atos falhos, sonhos, recalques, tiques nervosos ou cotidianos, lapsos e essencialmente
nossa forma particular de compreeender as coisas.
Clarice Lispector joga luzes e sombras sobre a compreensão humana. Ela permite que
desfrutemos a inteireza do ser humano, expondo o quão absurda é a pretensão de que nosso
'intelecto puro' se aproprie do mundo para julgá-lo. Para os mais afoitos, para aqueles criados no
mundo da objetividade e da resposta imediata dos games e do controle remoto, para os cultores da
razão instrumental, a obra em questão implica uma aula sobre a humanidade que incomoda, pois as
pessoas não se dão conta de que, mais do que assistir, elas fazem parte do espetáculo. Uma aula
imprescindível a todos, em especial ao curso de Direito.
Ignorar as vaidades, o orgulho, os medos, as fraquezas humanas na tomada de depoimento de
testemunhas e em interrogatórios, em debates acalorados e “espetaculosos” típicos do Tribunal do
Júri parece ser uma receita certa para a incompetência. Perceber a sutileza de um olhar, a mudança
de timbre da voz, lidar e 'conduzir' aquele que 'altera' seu humor com facilidade é uma arte própria
da prática do direito.
Rever uma decisão impõe um controle da vaidade pessoal. Logo, obter sucesso em embargos
declaratórios implica um ato de humildade do Juiz, nem sempre ao alcance da mão. Pela mesma
forma, percebemos a dificuldade dos membros do Ministério Público para acatarem decisões de
rejeição de sua promoção de arquivamento, seja em matéria penal seja em inquéritos civis públicos.
Calamandrei foi um mestre nesse jogo de vaidades togadas. Ignorar suas regras é pedir sua
exclusão do jogo, tornar-se um pária ou motivo de piada.
Clarice ilumina, mas os apressados entendem que precisam antes ler o “manual”, pois nele a
verdade e a resposta para o caso ou para o concurso podem ser encontradas. Mas, não se dão conta
de que essa pressa e de que essa urgência são típicas de uma 'razão objetiva' tirânica própria de uma
existência inautêntica. Não se dão conta de que numa viagem o importante não é apenas a chegada
ao destino, pois não percebem o valor da viagem em si, do 'caminhar para', do percurso, da vida.
Quem engole tudo de uma vez não sente o gosto da comida, não aprecia o tempero e o sabor das
coisas.
Nesse sentido, Clarice nos leva pela mão e nos leva rumo ao interior da alma humana,
mostrando exemplarmente como nossas afecções constituem pilares de nossa compreensão. No
conto que dá nome à obra ora em análise, “Felicidade Clandestina”, ela nos mostra como a
gentileza e a oferta escondem a crueldade humana. O texto versa sobre o desejo de uma menina de
ler o livro “Reinações de Narizinho” de Monteiro Lobato. O livro pertencia a sua colega, que era
filha de um livreiro, e lhe era oferecido por empréstimo por essa sua amiga. Todos os dias ela ia a
casa da amiga para pegar o livro e todos os dias voltava para casa de mãos vazias diante de algum
percalço relatado pela “amiga”. As “desculpas” se sucediam e ela não percebia o jogo em que
estava enredada, pois a 'maldade' da “amiga” não era escancarada, pois a “pedinte” não duvidava da
lealdade e da amizade da colega “talentosa”, como pinta nossa autora:

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com
barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas,
esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo.
Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a
implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia. (…)
Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro
esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a
outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus
olhos espantados. (p. 09/11).

O jogo de esperança/desejo de um lado e de manipulação/crueldade chega ao fim quando a


mulher do livreiro testemunha a cena e se dá conta horrorizada do maquiavelismo de sua filha e
ordena o empréstimo imediato do livro, impondo ainda a condição de que não haveria prazo para a
devolução: a menina poderia ficar com o livro o tempo que quisesse.
Agora, o jogo se inverte. Em verdade, a pedinte não queria de fato ler o livro, ela queria
apenas possuí-lo. Seu desejo não era o saber. Seu desejo era ter aquilo que a “amiga” possuía. Mais
do que “amigas”, eram de fato “inimigas íntimas”. Ter o livro era ser o que a Outra era! Aquilo era a
sua felicidade. Mas, ao contrário do que supõe a nossa lógica formal, a felicidade não é 'pura',
'vestal', 'genuína'. Essa felicidade deriva da inveja e é, portanto, inconfessável, 'bandida',
'clandestina', 'humana'.

Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina para mim. A felicidade
sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. (p. 12)

Pressentir, sentir previamente. Sentir novamente, como entender, mas um entendimento


sempre incompleto, pleno, porque não conseguimos nos ver, pois a imagem que fazemos de nós
está sempre invertida, sempre distorcida pelo espelho. Nosso olhar, nossa visão é sempre míope,
especialmente quando se trata de nós mesmos, o mais estranho e estrangeiro que se coloca diante de
nós em nossa intimidade.
No jogo da aceitação, presente está a tentativa e o erro. Descobrimos por acaso o que os
Outros projetam sobre nós e então descobrimos o que fazer para ser aceito. Uma frase, uma piada,
um canto, um jeito, um modo de ser, de vestir-se de comportar-se recebem a sanção ou o veto
alheio. Firmar-se implica a sedução do Outro, mesmo que essa sedução implique a rejeição, tal qual
vimos com Sofia. Mas, outra estratégia bem comum é a do personagem que criamos, que nos
controla e que reafirma aquilo que Sartre entende por “être pour autrui”. Mais uma vez aprecie o
tempero de Clarice:

Se era inteligente, não sabia. Ser ou não inteligente dependia da instabilidade dos outros. Às
vezes o que ele dizia despertava de repente nos adultos um olhar satisfeito e astuto.
Satisfeito, por guardarem em segredo o fato de acharem-no inteligente e não o mimarem;
astuto, por participarem mais do que ele próprio daquilo que ele dissera. Assim, pois,
quando era considerado inteligente, tinha ao mesmo tempo a inquieta sensação de
inconsciência: alguma coisa lhe havia escapado. A chave de sua inteligência também lhe
escapava. Pois às vezes, procurando imitar a si mesmo, dizia coisas que iriam certamente
provocar de novo o rápido movimento no tabuleiro de damas, pois era esta a impressão de
mecanismo automático que ele tinha dos membros de sua família: ao dizer alguma coisa
inteligente, cada adulto olharia rapidamente o outro, com um sorriso claramente suprimido
dos lábios, um sorriso apenas indicado com os olhos, “como nós sorriríamos agora, se não
fôssemos bons educadores” - e, como numa quadrilha de dança de filme de faroeste, cada
um teria de algum modo trocado de par e lugar. Em suma, eles se entendiam, os membros
de sua família; e entendiam-se à sua custa. Fora de se entenderem à sua custa,
desentendiam-se permanentemente, mas como nova forma de dançar uma quadrilha:
mesmo quando se desentendiam, sentia que eles estavam submissos às regras de um jogo,
como se tivessem concordado em se desentenderem. (p. 17-18)

Interpretamos cotidianamente o papel de nosso personagem, ou se preferirem os vários papéis.


Em casa, na família, no trânsito, no trabalho, com os amigos, com os vizinhos, no clube, no teatro,
no estádio, cada espaço vivido exige de nós um papel a ser cumprido escrupulosamente. Alguns,
mais estóicos, acreditam que o ente de seu personagem é o seu ser. Outros, mais céticos, tem
consciência desse distanciamento entre o ser e o ente e, então, percebem que podem imitar a si
próprios.
Logo, não se trata aqui apenas de criticar “pessoas que fazem um tipo”, o 'professor culto', a
'mulher fatal', o 'homem experiente', o 'empresário competente', o político 'tocador de obras', os
“pais bons educadores”. O que Clarice denuncia é a distância que existe dentro de nossos ek-
sistenciais, é a percepção de que não conhecemos a nós mesmos, que estamos sempre nos
surpreendendo, que temos sempre um acesso indireto sobre aquilo que nosso ser manifesta.
Mais do que isso, o texto acima constrói uma gramática profunda sobre o entendimento
familiar, no qual o tabuleiro faz das pessoas peças de um jogo no qual até mesmo desacordos são no
fundo acordados. Clarice mostra o limite que temos em nossas relações. Até onde ir, o que abordar,
o que revelar, o limite entre o dizer e o indizível. Uma percepção fina, um guia de sobrevivência em
qualquer relação que impede o 'desvelamento' abrupto daquilo que o Outro não vê e mesmo não
vendo não suporta que lhe seja revelado.
No texto a revelação foi surda e se deu na visita que o personagem faz a sua prima. O afeto ali
recebido parecia uma bofetada, uma ofensa. Ele sabia que a prima não tinha filhos, mas que em
essência era mãe. E o amou naquele dia como filho, jogando sua máscara fora e fazendo o
impossível: tocando seu ser, sem que ele entendesse e pudesse o compreender como ela o fizera.
Ele pode se ver, ele pode realizar o milagre de ter acesso a si próprio, um simplesmente não ser, um
nada, como se arrancasse de seus olhos aquilo que nos impede de vermos e que Clarice metaforiza
pela miopia. Aprecie:

Lá pelas tantas, limpando os óculos, tentou, embora com certa isenção, o golpe da
inteligência e fez uma observação sobre as plantas do quintal. Pois quando ele dizia alto
uma observação, ele era julgado muito observador. Mas sua fria observação, sobre as
plantas recebeu em resposta um “pois é”, entre vassouradas no chão. Então foi ao banheiro
onde resolveu que, já que tudo falhara, ele iria brincar de “não ser julgado”: por um dia
inteiro ele não seria nada, simplesmente não seria. E abriu a porta num safanão de
liberdade.
Mas à medida que o sol subia, a pressão delicada do amor da prima foi se fazendo sentir. E
quando ele se deu conta, era amado. Na hora do almoço, a comida foi puro amor errado e
estável: sob os olhos ternos da prima, ele se adaptou com curiosidade ao gosto estranho
daquela comida, talvez marca de azeite diferente, adaptou-se ao amor de uma mulher, amor
novo que não parecia com o amor dos outros adultos: era um amor pedindo realização, pois
faltava à prima a gravidez, que já é em si um amor materno realizado. Mas era um amor
sem a prévia gravidez. Era um amor pedindo, a posteriori, a concepção. Enfim, o amor
impossível.
O dia inteiro o amor exigindo um passado que redimisse o presente e o futuro. O dia
inteiro, sem uma palavra, ela exigindo dele que ele tivesse nascido no ventre dela. A prima
não queria nada dele, senão isso. Ela queria do menino de óculos que ela não fosse uma
mulher sem filhos. Nesse dia, pois, ele conheceu uma das raras formas de estabilidade do
ideal inatingível. Pela primeira vez, ele, que era um ser votado à moderação, pela primeira
vez sentiu-se atraído pelo imoderado: atração pelo extremo impossível. Numa palavra, pelo
impossível. E pela primeira vez teve então amor pela paixão
E foi como se a miopia passasse e ele visse claramente o mundo. (p. 23).

Se o acesso direto ao ser da “pre-sença” é impossível para a Fenomenologia, tal se torna


possível na literatura, pois o nada do personagem era no fundo o seu ser. E, ele só teve acesso a ele
pelo amor, outra temática sempre presente na obra em questão. Mas, o sentimento é líquido, não se
fixa, escorre, se desfaz, se liquefaz, vaporiza e volta a molhar. Parece sólido, eterno e em seguida
pinga e flui. Não fica. Dá a vida e vai além da morte. Manifesta-se na comida, pois alimenta o
espírito. Mas, não é transparente. Tem mais facetas do que um caleidoscópio pode jogar em nossa
retina. De retilíneo não tem nada, fazendo pouco daqueles que se acham aptos a julgar o amor dos
Outros.
Clarice se desfaz da tradição na tradição. Confunde. Amor de mãe não é puro, amor de mãe é
possessivo, pois a mãe que não é “mãe judia” deve “judiar” de seus filhos: não é mãe, é madrasta.
Toda madrasta é ruim? Somos “bela(o)s adormecid(a)os em nossos preconceitos. O amor a Deus
pode até ser leve, cândido, como nos ensinou São Francisco, mas ainda assim ele o faz como um
amor filial, de filho para Pai. Logo, o amor a Deus continua, de certo modo, grave, respeitoso.
Poderia ele ser diferente? Poderíamos inverter a polaridade do amor? Poderíamos amar a Deus, não
com amor filial, mas como se ele fosse nosso filho? Impossível jogar com tais conceitos? Pois, a
literatura chega ao impossível: Clarice joga essa divisão “para cima” no texto “Perdoando Deus”:

Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de
Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho, mesmo, sem nenhuma prepotência ou
glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que
existe. Soube também que se tudo isso “fosse mesmo” o que eu sentia – e não
possivelmente um equívoco de sentimento – que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma
pequenez se deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-lhe-ia aceitável a
intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para mim, mas muito certo, e
não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que Deus é. Com
amor grave, amor solene, respeito, medo e reverência. Mas nunca tinham me falado de
carinho maternal por ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga,
assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre (p. 41/42).

O impossível tropeça no real quando a personagem que 'olhava para cima' pisa em um rato
morto. Sua fobia por ratos faz desaparecer toda essa relação nova que se instaurara com Deus. Por
que Deus teria colocado logo debaixo de seus pés aquilo que ela mais embrulhava seu estômago e a
nauseava? Logo agora que ela sentia a plenitude do amor? Ela não poderia perdoar essa grosseria
que Deus lhe aprontara...
Mas, como pode ser o amor pleno se o mesmo era medido, era condicionado por aquilo que
ela aprovava? Como amar aquilo que lhe era repulsivo? Como entender aquilo que ela
instintivamente rejeitava? O rato de Clarice pode ter muitos nomes, mas Lévinas o “conceitua”
como o estrangeiro. Tudo aquilo que nos surge como desconhecido, desde a “verdura” para a
criança como a tecnologia para os mais velhos surge como aquilo que deve ser rejeitado. O centro
da discussão no conto pode ser traduzido pela velha/nova discussão entre o universalismo e o
relativismo cultural: podemos amar a tudo? Podemos amar apenas aquilo que gostamos? Somente
aquilo que amamos merece consideração? Podemos “amar” o nosso contrário? Pois amar é se abrir
ao Outro e respeitar a alteridade do Outro. Nosssa hospitalidade pode ser alguma vez incondicional
ou ela é sempre uma “hostipitalidade”, uma hospitalidade condicionada, sempre com um pé atrás?
O amor é sempre puro, uma entrega total e sem condicionantes? Alguém ama sem esperar nada em
troca? Ou nosso amor em alguma medida envolve algum tipo de cálculo? Se a compreensão é
sempre afetada pela emoção, não seria também a emoção pautada de algum modo pela razão? Essa
relação dialética não seria biunívoca?
Ao perceber o quanto seu amor era condicional, a personagem percebeu a distância de seu
amor diante do amor de Deus, pois o Deus que ela amava era um “Deus” criado por sua
imaginação, que lhe permitia negar aquilo que lhe causava repulsa. Um “Deus” assim permite aos
homens justificar qualquer interesse, qualquer violência, justifica o fundamentalismo: cruzadas,
jihads, atentados, inquisição, exclusão, excomunhão. Seu amor para Deus padecia de algo mais, de
um detalhe, mas de um detalhe que fazia toda a diferença! E ela só se deu conta com o rato que
Deus colocara debaixo de seus pés. Ao se dar conta disso ela pode compreender e então perdoá-lo:

… mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha pensado que já estava
pronta para o rato também. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor
um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não
sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por
ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem
compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é
também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento
chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o
que eu amaria – e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar
um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise
que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e
então me foi perguntado com alguma ironia se eu também queria o rato para mim. É porque
só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei
pegar num rato sem morrer de minha pior morte. Então, pois, que eu use o magnificat que
entoa às cegas sobre o que não se sabe nem vê. E que eu use o formalismo que me afasta.
Porque o formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é
pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo que eu
ainda extraí de mim de um grito mudo. Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem
eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala. Talvez eu
tenha que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato.
Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque
contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o rato
enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida. Talvez eu tenha que
chamar de “mundo” esse meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza
do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que
“Deus” é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo
de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu
contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim,
estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui
foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo
me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu
amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida
maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe. (p. 43/45).

Podemos almejar a plenitude desse amor? Ou ele sufoca por sua divindade jogando em nosso
rosto nossa humanidade? Mas, será que essa violência não nos desperta para nossa humanidade? O
apelo do amor em Clarice que lhe permite perdoar a Deus nos lembra o quão exigentes são as
filosofias de Derrida e de Levinas. Será que em algum momento conseguiremos ir além da mera
tolerância e alcançarmos a hospitalidade incondicional? Será que conseguiremos responder
plenamente o apelo do Outro? Clarice não ritualiza sua resposta. Ela prefere indicar apenas o
primeiro passo: precisamos nos (re)conhecer para que (re)conheçamos o Outro para finalmente
podemos ser. Olhar no espelho é difícil, pois em geral nem sequer sabemos se o espelho existe.
Mas, se algo nos faz humanos, esse algo é a busca por ele. Busca que não é épica, que não precisa
uma jornada espiritual a Santiago de Compostela, que não será encontrada em manuais de auto-
ajuda, mas que está em algum lugar de nossa existência.
Essa procura é o que nos faz humanos. É pois nossa responsabilidade empreendê-la, por mais
que não nos demos conta de precisamos fazê-la, pois, então, jamais nos permitiremos poder ser.
Mais do que existentiva, essa procura é existencial, pois cada existência terá um percurso a fazer.
Essa responsabilidade tem muitos nomes. Clarice “es-colhe” a sinceridade! E nos pergunta: pode
ser a sinceridade “pura”? Pura com quem? Conosco mesmo ou com o Outro? Ou não é possível
essa cisão?
Essa 'pureza' é sempre esperada, mas raramente encontrada. A espera se faz presente na
literatura no amor ma(pa)ternal. Mas, Aristóteles já nos ensinava que essa é uma relação sempre
desigual, pois o pai é sempre dependente do filho e não vice-versa, como em geral se pensa 1. Torna-
se poética no amor dos casais, pois “que seja eterno enquanto dure”, nos relata Vinícius de Moraes.
É mitificada na amizade. Espera-se em todas elas aquilo que é divino: a completude presente apenas
no politicamente correto.
Uma amizade se dá sempre em uma relação de troca? Ela se traduz em um livro caixa de dor
e prazer? Ou ela está acima dessas “pequenezas” pois antes de tudo a amizade verdadeira é uma
virtude. Temos ouvido que o amigo sincero se coloca sempre ao lado do Outro nas horas difíceis.
Ouvimos também que o amigo sincero é aquele que se arrisca a apontar problemas e defeitos no
Outro como forma de cura de seus problemas. Preto no branco! A virtude se coloca acima do mero
prazer da diversão que a amizade pode trazer.
Finalmente um porto seguro? Um lugar no qual a razão pode analisar o certo e o errado nos
sentimentos? A amizade se tornou um lugar para “dissecarmos” a sinceridade? Clarice nos nega
essa quietude e diz que a simplicidade não compõe nossa alma. Para ela, nem quando o “amigo
sincero” se “arrisca” em dizer “a verdade” para o Outro, encontramos a pureza das coisas. Essa

1
Acrescente-se que os pais conhecem melhor seus filhos do que estes os conhecem, além do que o progenitor é mais
apegado a sua prole do que esta ao progenitor, visto que aquilo que é produzido pertence ao que produz, do que é
exemplo um dente ou cabelo ou qualquer outra coisa em relação a quem o detém, ao passo que o produtor não pertence
ao produto, ou pertence num menor grau. Do ponto de vista da duração, o afeto do pai também supera o do filho. Os
pais amam seus filhos logo por ocasião do nascimento destes; os filhos, diferentemente, amam seus pais somente com o
decorrer do tempo e depois de terem adquirido discernimento ou percepção, ao menos. Estas observações explicam,
inclusive, porque o afeto dos pais é mais forte na mãe. Os pais, assim, amam seus filhos como eles mesmos (um filho
sendo, por assim dizer, um outro eu e outro porque produzido a partir da separação de si mesmo); os filhos amam seus
pais como a fonte de sua existência. (ARISTÓTELES. Ética à Nicômaco.Tradução de Edson Bini. Bauru. Edipro, 2002,
p. 234).
atitude corajosa em busca da “cura” do Outro quase sempre vela algum “recalque”, algum interesse,
alguma inveja que o “amigo sincero” esconde do mundo, esconde do amigo e por vezes dele
próprio. O dito sempre traz consigo aquilo que não pode ser dito, mas ainda assim a “sinceridade”
exige que seja dito, pois a ambiguidade é um traço de nossa humanidade.
A pureza em Clarice não é linear. Pelo contrário, a lealdade e a sinceridade se impõem em sua
“pureza” justamente no reconhecimento de que nada é para sempre. Bom exemplo se encontra no
filme “Cinema Paradiso”, no qual o personagem Alfredo dá uma das mais notáveis demonstrações
de amor: pede a Totó que vá embora e não volte nunca mais! Como o afastar, como a distância
imposta pode ser uma forma de amor? Talvez no momento em que nosso amor consiga transcender
nossa possessividade e concebê-lo como desprendimento...
Em dois contos ela nos ensina o quão difícil é dosar a tendência de nosso querer
incondicional. O primeiro é chamado de “Legião estrangeira”. Nele a personagem recorda com a
comoção trazida pela chegada de um pintinho em sua casa e com isso a amizade que tivera no
passado com uma menina de oito anos, Ofélia, anos antes. Ofélia a irritava justamente por lhe dizer
aquilo que ela era. Mas, sua sinceridade era uma bofetada, especialmente porque feita por uma
“pirralha”. Essa posição de superioridade de uma criança em relação a um adulto lhe era
intolerável, mas sua consciência não lhe permitia expressar sua frustração, pois fazê-lo era de
alguma forma uma confissão de que Ofélia estava certa.
Até que um dia “a relação finalmente se endireitou” e a criança voltou a ser criança deixando
que a personagem pudesse também voltar à condição de adulta. A chegada de um pintinho fez a
mudança. Ofélia pedia silenciosamente para vê-lo, mas ela se negava a “ouvir” tal pedido, impondo
a sua verbalização, ou seja, que Ofélia se despisse e voltasse a reconhecer o que era: uma criança. A
descrição em fluxo de consciência é sedutor, mas o ponto que aqui nos interessa é a “dosimetria” do
amor. Ofélia amou tanto o bichinho que acabou sufocando-o. Era demais para a criança que não
pode confessar seu “crime passional” e fugiu.

No chão estava o pinto morto. Ofélia! Chamei num impulso pela menina fugida.
A uma distância infinita eu via o chão. Ofélia, tentei eu inutilmente atingir à distância o
coração da menina calada. Oh, não se assuste muito! às vezes a gente mata por amor, mas
juro que um dia a gente esquece, juro!a gente não ama bem, ouça, repeti como se pudesse
alcançá-la antes que, desistindo de servir ao verdadeiro, ela fosse altivamente servir ao
nada. (p. 79/80).

O amor mata e a morte não é apenas a 'física'! Quantos excessos são praticados em função do
amor? Quanto mais se protege um filho, mais ele se torna incapaz de se proteger. Quanto menos se
protege, mais culpa sentimos pois a razão linear nos exige a proteção e então mais culpa se sente
em suas quedas. Quanto mais se ama, menos o(a) parceira(o) deseja um amor fácil, gratuito. Mais
se deseja aquele que se distancia (valoriza?). Nada mais distante da linearidade e da simplicidade
está o amor! Os adultos se perdem nesse jogo de abertura no qual a melhor forma de buscar o amor
é mostrando como arma de sedução o desinteresse pelo candidato a parceiro. Como explicar que o
excesso de solicitude abafa o amor e que muitas vezes o “príncipe virou um chato”, como nos
lembra Cássia Eller. Como entender a necessidade de escapar do amor que então se tornou uma
prisão?
A medida de tudo, o tempero certo nunca está ao alcance da mão. Como então explicar para
Ofélia, uma menina de oito anos, que seu amor sufocou aquilo que mais amava? Se nós, adultos,
não o sabemos e jamais entenderemos, o que dizer a Ofélia? Mesmo assim, a mulher quis dizê-lo e
talvez aí, finalmente o desejo de amparar a menina se fez amor!
No conto “Uma amizade sincera”, a sinceridade foi encontrada justamente na distância! A
afirmação da amizade exigiu justamente a sua negação. Como? Em curtas linhas, dois amigos muito
próximos veem paulatinamente sua amizade perder sua “vida”. Faltava o interesse comum por
alguma coisa, faltava diálogo a despeito da conversa, faltava assunto quando um deles “puxava o
papo”. Todo esforço possível foi feito pelos dois para reavivar aquilo que tinha sido: uma amizade
sincera! Mas, justamente o esforço para “juntar os cacos” da amizade velava aquilo que já se dava e
que os dois não queriam compreender: a amizade já não era mais a mesma!
O que fazer? Como ser um amigo sincero nessa situação? O que é sinceridade afinal de
contas? Insistir em 'velar' aquilo que já não é mais? Fingir que as coisas permanecem quando não
mais o são? Há solução para tais perguntas? Quem pode saber! No conto, a sinceridade traduziu-se
também pelo desprendimento:

Afinal o que queríamos? Nada. Estávamos fatigados, desiludidos.


A pretexto de férias com minha família, separamo-nos. Aliás ele também ia ao Piauí. Um
aperto de mão comovido foi o nosso adeus no aeroporto. Sabíamos que não nos veríamos
mais, senão por acaso. Mais do que isso; que não queríamos nos rever. E sabíamos também
que éramos amigos. Amigos sinceros. (p. 16).

E a sinceridade em relação a nós mesmos? Talvez a mais exigente e radical cobrança de uma
existência autêntica. É o que retrata o texto “Os obedientes”, a estória de um casal “normal” que
vivia sua mesmidade cotidiana, até que:

Esse homem e essa mulher começaram – sem nenhum objetivo de ir longe demais, e não
se sabe levados por que necessidade que pessoas têm – começaram a tentar viver mais
intensamente. À procura do destino que nos precede? E ao qual o instinto que nos levar?
Instinto? (…)
Eles tateavam. Num vício por ambos descoberto tarde demais na vida, cada qual pelo seu
lado tentava continuamente distinguir o que era do que não era essencial, isto é, eles nunca
usariam a palavra essencial, que não pertencia a seu ambiente. Mas de nada adiantava o
vago esforço quase constrangido que faziam: a trama lhes escapava diariamente. Só, por
exemplo, olhando para o dia passado é que tinham a impressão de ter – de algum modo e
por assim dizer à revelia deles, e por isso sem mérito – a impressão de ter vivido. (…)
E quando faziam o balanço de suas vidas, nem ao menos podiam nele incluir essa tentativa
de viver mais intensamente, e descontá-la, como em imposto de renda. (…)
Tinham a compenetração briosa que lhes viera da consciência nobre de serem duas pessoas
entre milhões iguais. “Ser um igual” fora o papel que lhes coubera, e a tarefa a eles
entregue. Os dois, condecorados, graves, correspondiam grata e civicamente à confiança
que os iguais haviam depositado neles. Pertenciam a uma casta. O papel que cumpriam,
com certa emoção e com dignidade, era o de pessoas anônimas, o de filhos de Deus, como
num clube de pessoas. (p. 82/83).

Se de um lado o “Eu penso” nos coloca no controle e nos ilude com a crença de que dirigimos
nossas ações e nossa vida, a narrativa de Clarice enfoca claramente como as coisas se dão para nós.
Somos uma consciência que dita nossos passos ou somos ecos daquilo que nos conduz à resposta
que o apelo do Outro nos coloca. Talvez nem um nem o outro, talvez sempre a caminho, a clareira
da abertura que encontramos em nosso mundo2.
Somos seres jogados no mundo e nossa ipseidade dificilmente consegue viver mais de uma
vida. E, por milagre, quando o fazemos, a angústia de cada decisão, o arrependimento por aquilo
que foi e por aquilo que poderia ter sido nos domina. De algum modo, estamos enredados em
situações difíceis de se desvencilhar, no qual nossas gaiolas parecem mais confortáveis e menos
desafiadoras do que a “liberdade”.
O casal não queria sair de sua gaiola, mas mesmo assim algo os incomodava. O texto não nos
diz o que e o porque dessa angústia. No plano existencial Heidegger diria que a existência
inautêntica seria aquela na qual a “pre-sença” nega a si seu primado ontológico, ou seja, deixa se
levar e não questiona seu “ter-sido”, seu “ser-aí” e seu “ser-por-vir”. A mesmidade resoluta do casal
nos dá indicativos dessa angústia em seu plano existentivo, mas como tudo na vida, sem luzes o
suficiente para que possamos fazer um diagnóstico.
De todo modo, algo de comum a ele creio que a maioria de nós compreende. E essa situação
em geral não nos vem por imagem, mas pela fala. Ela se manifesta quando ouvimos (ou fazemos)
pequenos reparos aos Outros, pequenas censuras àquilo que nos soa diferente. Um decote mais
ousado, uma piada fora de contexto, uma observação sem propósito, uma combinação de roupas
excêntrica implicam desabafos de nossa cotidianeidade afrontada. Negar o Outro nos afirma,
conforta a reafirmação daquilo que “escolhemos” ser ou daquilo que “nos tornamos”. Como se se
segurássemos em uma pedra e agradecéssemos a Deus por não termos seguido a correnteza, sem
nunca perdermos a curiosidade (inveja?) de querer saber o que teria sido de nós se nos
entregássemos a ela.
E os reparos podem se voltar a nós mesmos. Um carro novo, uma moto, uma roupa nova, uma
bolsa cara são atos chamados por Walter Benjamin de “pequenas sobrevivências” que nos mantém
fortes em nosso 'castelo' cotidiano. Ser “alternativo”, viajar, estudar um idioma novo, entrar para

2
Curiosa essa passagem no conto “Os desastres de Sofia” que pode ilustrar nosso raciocínio: “Meu enleio vem de que
um tapete é feito de tantos fios que não posso me resignar e seguir um fio só; meu enredamento vem de que uma
história é feita de muitas histórias. E nem todas posso contar – uma palavra mais verdadeira poderia de eco em eco fazer
desabar pelo despenhadeiro as minhas altas geleiras”. (p. 99/100)
uma aula de dança ou de culinária, buscar o “novo” naquilo que é o “mesmo” pode nos salvar? Se
não, para alguns é lenitivo suficiente para nos mantermos fortes com aquilo que nos angustia,
porque se a enterrarmos bem, sequer saberemos que a angústia existe!
Precisamos nos proteger dessa angústia e então nos encastelamos atrás de altas muralhas,
geladas como geleiras, agressivas como animais, para nos escondermos, especialmente de nós
mesmos. Eis que algo pequeno, fora do lugar como uma palavra no texto “Os desastres de Sofia” ou
um dente quebrado no conto “Os Obedientes” nos faz desabar. Para Clarice, a implosão de uma
existência inautêntica se dá por 'um motivo à toa', aparentemente pequeno, sem importância. E traz
à superfície a angústia que faz ao rei ver que está nú e impõe a exigência de sinceridade para
consigo mesmo. E sua exigência vai ao extremo:

Assim chegamos ao dia em que, há muito tragada pelo sonho, a mulher, tendo dado uma
mordida numa maçã, sentiu quebrar-se um dente da frente. Com a maçã ainda na mão e
olhando-se perto demais no espelho do banheiro – e deste modo perdendo de todo a
perspectiva – viu uma cara pálida, de meia idade, com um dente quebrado, e os próprios
olhos... tocando o fundo, e com a água já pelo pescoço, com cinquenta e tantos anos, sem
um bilhete, em vez de ir ao dentista, jogou-se pela janela do apartamento, pessoa pela qual
tanta gratidão se poderia sentir, reserva militar e sustentáculo de nossa desobediência.
(p.86/87).

Extremo? Decisão extrema? Decisão? Falta de lucidez? Ou lucidez demais? Como lidamos
com situações sem saída? Como reagimos diante da frustração completa de nossos desejos? Como
fará uma geração criada para ter cada um de seus delírios satisfeitos imediatamente por seus pais
quando tiverem que se olhar perto demais no espelho? Como lidamos com um diagnóstico
terminal? Quanto a racionalidade formal conta para o enfrentamento de dilemas que a vida insiste
em colocar diante de nós?
Se não optarmos pela “escolha” do escorpião diante do inevitável, o que nos resta? Será que
não há na vida nada que realmente valha a pena? Será que não há nada de importante? Não nos
resta uma esperança? O que é esperança? Em casos que tais procurar um dicionário seria suficiente
para sabermos o significado do que é esperança? É algo que se coloca no futuro ou algo que nos
acalenta no presente? É um sentimento? Bom ou ruim? Clarice joga com os conceitos e palavras no
conto “Uma esperança” lidando com sua significação na dubiedade entre o sentimento e o animal. E
lida com a angústia de não vê-la concretizada com a ameaça personificada por uma aranha. Veja o
jogo de palavras:

Aqui em casa pousou uma esperança. Não a clássica que tantas vezes verifica-se ser
ilusória, embora mesmo assim nos sustente sempre. Mas a outra, bem concreta e verde: o
inseto.
Houve um grito abafado de um de meus filhos:
– Uma esperança! E na parede bem em cima de sua cadeira! Emoção dele também que
unia em uma só as duas esperanças, já tem idade para isso. Antes surpresa minha: esperança
é coisa secreta e costuma pousar diretamente em mim, sem ninguém saber, e não acima de
minha cabeça numa parede. (…)
Foi então que farejando o mundo que é comível, saiu de trás de um quadro uma aranha.
Não uma ranha, mas me parecia “a” aranha. Andando pela sua teia invisível, parecia
transladar-se maciamente no ar. Ela queria a esperança. Mas nós também queríamos e, oh!
Deus, queríamos menos que comê-la.(p. 92/93).

Sim! A despeito de sua extrema exigência, na clareira de Clarice ainda há algo que valha a
pena. Algo que nos sustente e que nos mantenha firmes. Algo que “leva ao”, mas que também
impede o crime passional: o amor! Mas a pena de nossa autora tem o condão de vê-la manifestar-se
de inúmeras formas, modos e situações. Mas nenhuma delas límpida, translúcida, reta ou linear.
Essa abertura se dá sempre na ambiguidade, na contrariedade, da dubiedade no qual o jogo da
dialética se faz sempre presente. Amamos brigando com o Outro, amamos nos afastando do Outro,
amamos criticando o Outro, desde que sejamos nós que brigamos ou xingamos, pois não admitimos
que o estrangeiro possa brigar ou xingar aquele que é tão nosso que nos faz ser o que somos.
O amor para Clarice se dá das formas as mais diversas mostrando o quanto nossa cegueira
deixa de perceber a riqueza do cotidiano. Desfrute:

Comi com a honestidade de quem não engana o que come: comi aquela comida e não o seu
nome. Nunca Deus foi tão tomado pelo que Ele é. A comida dizia rude, feliz, austera: come,
come e reparte. Aquilo tudo me pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem ternura,
comi sem a paixão da piedade. E eu bem valia aquela comida. Porque nem sempre posso a
guarda de meu irmão, e não posso mais ser a minha guarda, ah não me quero mais. E não
quero formar a vida porque a existência já existe. Existe como um chão onde nós todos
avançamos. Sem uma palavra de amor. Sem uma palavra. Mas teu prazer entende o meu.
Nós somos fortes e nós comemos. Pão é amor entre estranhos. (p. 90/91).

Amor pode ser sólido, ter gosto, estar temperado. Amor pode assumir a forma de doce, como
um cajuzinho ou salgada como um cigarrete ou na combinação de ovo com bacon. Amor está na
oferta verbalizada no “Tá servido?” dito em cada refeição por nossos pais. Ou no apelo pungente de
mãe “Come, meu filho!” Amor puro! Felicidade clandestina e fugaz que não percebemos o valor da
dádiva quando é dada e que se manifesta na presença permanente da ausência. Alimentar o Outro,
matar a fome do Outro. Terá havido exemplo melhor de amor do que o esforço (hoje já quase
esquecido) de Betinho em sua campanha contra a fome? Na tradição cristã, a celebração da
memória do amor de Deus pela humanidade se dá justamente pelo pedido de compartilhar “pão e
vinho”. Há amor maior do que aqueles que saem às ruas para alimentar o Estrangeiro?
Mas, o alimento não precisa ser “de comida ou de bebida”. O amor pode se dar na palavra.
Amor é uma palavra. Amor em palavras: “Veste um casaco, meu filho!” “Toma cuidado!” “Deus te
abençoe!” Sentimento puro daquilo que é parte de mim. Carência na distância do espaço que cada
corpo fecha dois corações que querem ser apenas um. Carência pura do Outro que exige a presença,
assim como nosso estômago exige a comida e nossos pulmões o oxigênio. Um falar que é um fazer-
se “pre-sente” à “pre-sença”. Um doar-se pelo som. Uma promessa de salvação de uma solidão
inata à condição humana.
Como o “Eu penso” pode compreender o amor? Como o formalismo pode enfim
compreender? O mecanicismo poderia supor que o desenvolvimento do estrogênio e da testosterona
desencadeariam a “urgência” do ato sexual e as carícias preliminares se uniriam à necessidade do
“re-encontro” permanente explicado pela eclosão de sentimentos. Seria tudo? Ou faltaria tudo
nessas palavras?
E o amor ma(pa)ternal poderia também ser explicado por meio do institnto de auto-
preservação? Como os pais vêem os filhos como uma parte de si, um pedaço de si, sua extensão no
espaço e sua continuação no tempo, o amor ma(pa)ternal justificaria e exigiria os maiores
sacrifícios pelos filhos. Mesmo correto, Darwin seria o suficiente?
Amor teria sinônimo? Se não, um antônimo: o ódio. As coisas seriam simples. Amar seria
oposto do odiar. Fazer o bem, ninar, acalentar, acariciar seria exatamente o oposto de injuriar,
agredir, caluniar, deturpar, brigar. Seria assim tão simples? Tão linear? A lógica matemática coloca
de um lado e de outro a aceitação, a doação, o afeto, o carinho, a carícia, o sexo? Poemas, luz da
lua, rosas vermelhas, maçãs do amor, jogos de sedução resumiriam uma relação de modo linear?
Haverá coisa mais impossível do que julgar comportamentos passionais e judicializar um crime,
“medindo” a pena, a reparação civil, definir a guarda de crianças em um divórcio? O desafio do
impossível derridiano se impõe para juízes, advogados, promotores de justiça em seu cotidiano.
Eles ritualizam por meio de um labirinto de regras e manuais uma “im-possibilidade” sem sequer se
darem conta disso, pois a urgência e a pressa de passar para o outro caso ou de ir embora se faz
maior.
A “razão pura” pode afinal “com-pre-ender” nossos sentimentos? Classificá-los, dividí-los,
testá-los, definí-los? Afinal, o que pode essa razão? Ela pode, sem entender os sentimentos,
entender a si própria? E sem o fazê-lo, ela pode então “com-pre-ender”? Clarice diz que não, pois o
amor extravaza qualquer noção de unidade, de simplicidade, de identidade típicos do “cogito”
cartesiano.
Sendo assim ela nos dá uma aula sobre hermenêutica. Uma aula não planejada, não ordenada,
não prevista, inacabada, pois sempre aberta à revisitação. Se incompleta é porque falta aguma
coisa! Falta alguma coisa também nessa análise? Sempre faltará! Poderíamos responder. Mas o
cético poderia insistir: falta nos dizer porque vocês escolheram Clarice? Haverá uma resposta direta
para essa pergunta? Haverá resposta bastante para essa pergunta? Para alguma pergunta? Se não
podemos fechar a abertura, o que nos resta é seguir jogando migalhas na estrada, tal qual João e
Maria.
Traços, tropos, pistas na clareira! Talvez por que Clarice tenha com sua clareza se tornado
Clara, irmã no amor fransciscano de Franscisco. Mãe no amor das irmãs Clarissas! Talvez! Talvez
porque sua c(l)aridade tenha aberto aos autores desse texto a crença de que homens pequenos
também podem a seu modo serem artistas. Talvez...

A CLAREIRA DE CLARICE – “Contra – Assinatura”

Uma leitura pode ser solitária, jamais solipsista. Ao lermos um texto estabelecemos um
diálogo com o autor e com os personagens que o compõem, estejam eles expressos ou até mesmo
encobertos pela descrição apenas da sua forma de pensar. A leitura é sempre um evento apropriante
pelo qual pretendemos tomar como nosso o que está escrito e vamos além, desvelamos (ou, por que
não(?!), desbravamos) o não escrito e damos vida ao texto por meio da interpretação.
O texto, a partir do momento em que ganha forma, flutua das mãos do autor e ganha uma
nova e promíscua identidade, que é aquela percebida pelo leitor. Cada um, diante do seu horizonte
factual, irá compreender a realidade do escrito de uma forma diferente, transformando-o em cada
leitura. É evidente, entretanto, que o autor assombra a percepção do leitor, tornando a compreensão
um rio de sensações que deságua necessariamente na alteridade.
Nesse sentido, a Clareira de Clarice propõe aos leitores que flutuem pelos contos de Lispector
e, ao mesmo tempo, dialoguem com temas jurídicos e filosóficos. Esse triângulo amoroso firmado
entre Direito, Literatura e Filosofia, contudo, não pode ser abordado como uma doutrina esotérica
de Platão, destinada aos iniciados, aos que já caminharam pelos campos das três áreas. Assim, o
objetivo dessa segunda parte do texto é apenas auxiliar o intérprete para que clareie 3 a sua
compreensão desta escritura. Que seja um texto para interessados. Que seja uma leitura com os seus
diversos personagens. Comecemos por dar rosto à musa inspiradora4!
3
Clarear a clareira? Facilitar a compreensão de um texto? Ou conduzir, levar compulsoriamente um texto para
determinado sentido? Se assim o fosse, clarear implicaria aprisionar, confinar a liberdade, prender o
inapreensível. Clarear aqui deve assumir outro sentido: testemunhar! O que? Que a “com-pre-ensão” é um jogo
de adição que vai além da pura razão (kantiana)! Que não prende a existência no jogo da intencionalidade de
noema e noesis (hursseliano)! Que a razão não se dá sem a afecção como clareira da fumaça (heideggeriana)!
Que estabelece um jogo sem começo e sem fim, com limite sabidamente ilimitado entre consciência e
inconsciência (seja freudiano ou da neurociência de Mlodinow)! E que ainda vai além, como revelação e eleição
construída pela ética da alteridade levinasiana. Que seja um clarear de um texto para interessados, “bons leitores
na chamada de Derrida”. Que seja clarear a partir do rosto de seus personagens. Rostos que fogem a qualquer
definição, como o da “musa inspiradora”! Um clarear que implica a interpelação nossa do dizer que está sempre
além das possibilidades de sentido que o dito de qualquer texto traduz. Um clarear que mais do que estabelecer
interseções entre os sentidos desvelados implica sempre a solicitação como ética da alteridade. Clarice é
estrangeira. Mais do que ucraniana seu trabalho atesta a complexidade do Outro. Outro que exige a resposta
correta como apelo ético da hermenêutica. Hermenêutica que se traduz pela evasão do ser, pela percepção de que
o limite do sentido se impõe pela sintaxe, pela semântica e pela pragmática, tendo como guia o apelo silencioso da
ética. – Nos adverte, aquele que assina.
4
Seria isso possível? Clarice é descrita sempre como indecifrável, conhecida apenas pelos amigos mais íntimos.
Benjamim Moser descreve o desolamento de um jornalista que, ao entrevistá-la, resume as respostas em “Não sei, não
Clarice Lispector5, uma das principais escritoras brasileiras, não nasceu em terras tupiniquins.
Foi jogada ao mundo em solo ucraniano6, mais precisamente na cidade de Tchetchelnik,
supostamente em 10 de dezembro de 1920 7. Concebida no ventre de uma judia - Mania Krimgold
Lispector –, deparou-se já nos seus primeiros instantes de vida com a contradição provocada pelas
perseguições ao Outro invisível, ao Outro sem face8.
Em março de 1922 desembarca com a família em Maceió e logo se muda para Recife,
permanecendo até os seus 15 anos. Na capital pernambucana Clarice experimentou a magia da
infância e da juventude, relatando-as em diversos contos, como no caso da filha do livreiro em
Felicidade Clandestina.
Em 1935 muda-se para o Rio de Janeiro com a família. Na Cidade Maravilhosa teve a sua
primeira história publicada no semanário “Pan” em 1940. “Triunfo” é um conto que expressa as
sensações do abandono. As sensações de um quase amor. As sensações de Luísa, deixada por Jorge
sob o pérfido argumento de haver um cuidado em excesso9.
No mesmo ano veio ao mundo “Eu e Jimmy”, um conto que, ao narrar a relação de um casal
sob a perspectiva da mulher, apresenta fortes críticas a subserviência feminina. A narrativa, ainda,
traz alguns intrigantes pontos filosóficos, como a utilização pela jovem do pensamento hegeliano
para encerrar a relação amorosa10. É possível compartilhar da incompreensão de Jimmy que, além
de se deparar com o fim de um amor, teria que decifrar o esfíngico pensamento hegeliano. Como
um prato, vazio, degustado lentamente.
Com o reconhecimento da sua aptidão pela escrita, foi trabalhar na temida Agência Nacional
como redatora e repórter, ficando como responsável pela distribuição de notícias aos jornais e
emissoras de rádio. Era o seu primeiro emprego no jornalismo.
Embora os caminhos até aqui narrados possam apontar para uma formação jornalística, em
verdade, Clarice graduou-se em Direito pela Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do
Rio de Janeiro – UFRJ) em 1943, mesmo ano em que se casou com Maury Gurgel Valente, o pai de

conheço, não ouvi dizer, não entendo do assunto, não é do meu domínio, é difícil explicar, não sei, não me considero,
não ouvi, desconheço, não há, não creio”.
5
Clarice não nasceu Clarice. O nome dado por seus pais foi Haia Pinkhasovna Lispector. Contudo, ao chegar ao Brasil
todos membros da família mudaram de nome.
6
Apesar de que, como afirmava, “Naquela terra eu literalmente nunca pisei: fui carregada de colo"
7
1920. Uma data. Um ano. O início de uma década. Não! Não para mim! Vou além. Nostalgia! Amor condicional
na sua incondicionalidade! Pai. Meu pai. Seu nascimento.
8
A Guerra Civil Russa (1918-1921), desencadeada pela Revolução de 1917, promoveu um ataque violento aos judeus
pelo Exército Branco, que acreditavam que a Revolução foi resultado de um complô judaico-bolchevique.
9
“Você, você me prende, me aniquila! Guarde seu amor, dê-o a quem quiser, a quem não tiver o que fazer! Endente?
Sim! Desde que a conheço nada mais produzo! Sinto-me acorrentado. Acorrentado a seus cuidados, a suas carícias, ao
seu zelo excessivo, a você mesma! Abomino-a! Pense bem, abomino-a!”
10
“Disse-lhe que o primitivo equilíbrio tinha-se rompido e formara-se um novo, com outra base. É inútil dizer que
Jimmy não entendeu nada, porque Hegel era mais um ponto no fim do programa e nós nunca chegamos até lá.
Expliquei-lhe então que estava apaixonadíssima por D... e, numa maravilhosa inspiração (lamentei que o examinador
não me ouvisse), disse-lhe que, se caso, eu não poderia unir os contraditórios, fazendo a síntese hegeliana, inútil a
digressão."
seus dois filhos, Pedro e Paulo.
No ano da formatura publicou o seu primeiro livro, “Perto do Coração Selvagem”, que fora
agraciado com o prêmio de melhor romance de estreia da Fundação Graça Aranha. O livro recebeu
inúmeras críticas positivas, sendo visto como uma obra que retirou o romance brasileiro do
ostracismo11. Com o seu jeito introspectivo e com escolha seletiva das palavras, Clarice foi erigida
já no seu trabalho inicial como a mulher que escreveu a melhor novela em língua portuguesa, como
exclamou o poeta Lêdo Ivo12 no jornal carioca A Manhã e transcrito no Jornal de Alagoas em 25 de
fevereiro de 1944.
Após morar por seis meses em Belém do Pará, muda para Nápoles, para onde seu marido,
agora diplomata, foi designado. A desilusão do partir é clara 13. A distância do Brasil, porém, não
seria um óbice para as suas publicações. Em 1946, em uma vinda ao Rio de Janeiro, lança o seu
segundo livro, “O Lustre”. Com o propósito de imergir no inconsciente dos personagens, a obra,
contada em terceira pessoa, reforça a marca introspectiva da ainda jovem escritora.
Nas vestes de esposa de diplomata, Clarice roda o mundo. Nápoles, Paris, Berna e
Washington são alguns dos seus endereços até 1959, quando se separa de Maury e retorna ao Rio de
Janeiro. O Leme é o palco escolhido. Aliás, a nossa musa, com toques de Geppetto, fez o
apartamento 701 do Edifício 88 da Rua Gustavo Sampaio ter a sua própria “estória”. Na noite de 14
de setembro de 1966, possivelmente por uma guimba de cigarro acesa, o apartamento pega fogo e
quase conduz a escritora à morte14. História triste, que ela preferia não lembrar15.
As décadas de 1960 e 1970 foram as mais frutíferas em termos de publicação. Eram tantos
sentimentos e histórias a serem contados que Clarice não parou nem por um momento. Na manhã
de 09 de dezembro de 1977, mesmo sedada em razão de um câncer de ovário, ditou as últimas
frases literárias a sua amiga Olga Borelli 16. Partiu para outro mistério, como exclamou Carlos
Drummond de Andrade.
Com os seus quase 57 anos de vida, Clarice nos brindou com nove livros de romance, sete de
contos, quatro de literatura infantil, dois de crônicas, um de entrevista, inúmeras crônicas e contos
11
Sérgio Millet, importante crítico da época, escreve um artigo no Estado de São Paulo de 15 de janeiro de 1944
expressando o seu entusiasmo com a obra. “Ia enterrar o volume na estante, quando, acordada a consciência
profissional, lê ao acaso a página 160 e acha-a excelente: sóbria e penetrante. A continuação da leitura não o
decepciona."
12
Instituto Moreira Salles, Clarice Lispector: Cadernos de Literatura Brasileira, 49. Disponível em
http://ims.uol.com.br/Clarice_Lispector/D676
13
Quando chega à Itália escreve uma carta em que diz "Na verdade não sei escrever cartas sobre viagens, na verdade
nem mesmo sei viajar."
14
Clarice ficou em coma por três dias e hospitalizada por dois meses. Em razão dos graves ferimentos, quase teve a sal
mão direita amputada.
15
Como declarou em uma entrevista ao Jornal da Tarde em 05 de fevereiro de 1969: “o incêndio que sofri há algum
tempo destruiu parcialmente a minha mão direita. Minhas pernas ficaram marcadas para sempre. O que aconteceu foi
muito triste e prefiro não lembrar. Só posso dizer que passei três dias no inferno , aquele que – dizem – espera os maus
depois da morte. Eu não me considero má e o conheci ainda viva”.
16
Engraçado. Pensei que seria uma contra-assinatura do primeiro texto e não uma biografia sobre Clarice. Aliás,
biografia da clausura, que de-fine o indefinível. Que fecha a im-possibilidade de Clarice.
publicados em jornais e onze trabalhos publicados postumamente. Haia Pinkhasovna Lispector
repousa no Cemitério Israelita do Caju. Clarice vive na eternidade de sua obra17.
Então ela não morreu! Pois, morre a cada dia quem prossegue obstinadamente se
negando em seu cotidiano ou vive quem lega um legado que ecoa ao lado de Fernando Pessoa
e Carlos Drummond. Vida ou morte. Viver ou morrer. Ninguém melhor do que Sócrates entre
seus discípulos diante de sua escolha de Sofia: enfrentar o Tribunal ou a cicuta. Essa tragédia
é bem grega, pois com tonalidades teatrais. Onde está o mito e a Paideia socrática?
A entificação platônica de Sócrates nos diz que ele foi o arquiteto da ontologia clássica
cosmológica, defendendo a necessidade de se buscar o conhecimento verdadeiro, incapaz de se
curvar às necessidades momentâneas dos seus adversários sofistas. Um saber cunhado na
racionalidade reflexiva e com a aptidão de construir conceitos absolutos, infalíveis e imutáveis.
Uma compreensão que transcendesse a visão ordinária que cada um tem do mundo, pautada na
irracionalidade, no subjetivismo e no senso comum (doxa).
O filósofo pretendeu encontrar a verdade da coisa em si, isto é, um conceito que espelhe o que
cada objeto é na sua essência. Com isso ele acreditava combater o relativismo retórico sofista, que
manuseava a “verdade” em busca de um convencimento puramente argumentativo.
Nesse mister, Sócrates desenvolveu o método dialógico maiêutico, acreditando ser possível
encontrar a essência de um conhecimento a partir de desconcertantes questionamentos. Em outras
palavras, com afirmações e refutações alcançadas a partir de perguntas hábeis, seria factível
encontrar a verdade, que já se localizava na mente humana.
A maiêutica pode ser traduzida como um chamado para a autorreflexão (conhece-te a ti
mesmo) do homem na busca por uma verdade ontológica, caminho único para a prática do bem e da
virtude. A racionalidade socrática permanece como uma das maiores heranças do Ocidente.
Influenciou não só seus discípulos em seu tempo, mas a cultura de um mundo máquina que insiste
em negar os dados que Deus costuma jogar. Entre seus discípulos diretos, ninguém se destacou mais
do que Platão18.
17
Obra que vai além das convenções literárias. Obra que vai além do seu tempo. Obra que se perpetua para além
de qualquer taxionomia, qualquer classificação. Indecifrável. Não ontológica. Não redutível ao estudo do ser,
estudo (nascido?) central no pensamento daquele que propõe na assinatura do texto sua impossibilidade: ler
Clarice sob sua ótica, o da renovação do Direito por uma hermenêutica da alteridade. Clarice nasce e renasce, vive
e revive no olhar do Outro. O Outro. Sempre o Outro. Obra que se abre à visitação do Outro e somente existe pelo
Outro. Enquanto houver Outro.
18
Platão. Discípulo de Sócrates. Professor e aluno. Orientador e Orientando. Álvaro e Daniel. Relações que se repetem
e que se imiscuem de tal forma que não é possível dizer quem é o verdadeiro Sócrates. Ou, de uma forma atual, quem é
o verdadeiro Álvaro. Não há! Simplesmente não há. Verifica-se tão somente uma figura idealizada. Estigmatizada.
Álvaro: uma mente brilhante? (ou um maluco de carteirinha?); um orientador impecável? (ou um arrebatador
manicomial?); um cruzeirense doente! Amigo!!! Álvaro não é isso. Não é só isso. Vai além. (Meu amigo Guilherme
seguramente diria que muito, mas muito além mesmo.) Além do que eu posso, idealmente, idealizar. Álvaro é uma im-
possibilidade. Uma in-finitude de pro-jetos. Nem mesmo o próprio Álvaro seria capaz de alcançar a finitude do seu ser
e se auto-de-finir. Talvez o fechamento ontológico de quem é Álvaro fosse possível somente no mundo mágico de Walt
Disney, onde o espelho ganha vida e diz á bruxa quem ela é (a mulher mais linda de todo reino [até o aparecimento de
Branca de Neve]). Talvez esse espelho exista para Platão, que tenha o visto em seu Mundo das Ideias. Talvez tenha sido
Platão também desenvolveu a sua filosofia por uma busca pela verdade ontológica,
expressando que o ser das coisas encontrava-se em um mundo metafísico, o mundo das ideias.
A realidade, assim, seria dividida dicotomicamente em um mundo sensível (das coisas) e um
mundo inteligível (das ideias). O acesso ao primeiro dar-se-ia pelos sentidos do homem (olfato,
paladar, tato, audição e visão), ao passo que o mundo inteligível estava em uma esfera supraceleste,
que exigiria ir além dos sentidos, que exigiria o suprassensível, isto é, alcançável apenas pelo
intelecto.
O mundo das ideias seria o espaço metafísico no qual encontrava-se o verdadeiro
conhecimento; onde seria possível apreender a essência de todas as coisas, aquela essência sem
forma e impalpável. Nesse Hiperurânio estaria a existência do belo em si, do bom em si e das
demais realidades em si. Enquanto verdade, esses conceitos eram essencialmente imutáveis e
absolutos19.
Por sua vez, o mundo sensível seria uma construção a partir da existência do mundo das
ideias, ou seja, uma sombra do inteligível, verdadeira cópia. Como tal seria uma realidade flexível e
não perene, cujo produto das inferências seria puramente doxático e não conduziria ao
conhecimento.
Mas, se as coisas acessíveis pelos sentidos são sombras, como poderia o homem conhecer a
verdade que o permitiria formular conceitos no mundo sensível? A Teoria das Ideias platônica
compreendia que a alma era imortal e o fato do indivíduo encarnar como homem significava a sua
passagem pelo mundo das ideias, o que lhe permitiu um contato, ainda que breve, com a verdade
ontológica.
“[...] a alma, em sua situação originária, pode ser comparada a um carro puxado por dois
cavalos alados, um dócil e de boa raça, o outro indócil (os instintos sensuais e as paixões),
dirigido por um cocheiro (a razão) que se esforça por conduzi-lo bem. Esse carro, num
lugar supraceleste, circula pelo mundo das ideias, que a alma assim contempla, mas não
sem custo. As dificuldades para guiar a parelha de cavalos fazem com que a alma caia: os
cavalos perdem as asas, e a alma fica encarnada num corpo. Se a alma viu as ideias, por
pouco que seja, esse corpo será humano e não animal; conforme as tenham contemplado,
mais ou menos, as almas estão numa hierarquia de nove graus, que vai do filósofo ao
tirano. A origem do homem como tal é, portanto, a queda de uma alma de procedência
celeste e que contemplou as ideias. Mas o homem encarnado não as recorda. De suas asas
restam tão somente cotos doloridos, que se excitam quando o homem vê as coisas, porque
estas lhe fazem recordar as ideias, vistas na existência anterior. É este o método do
conhecimento: o homem parte das coisas, não para ficar nelas, para encontrar nelas um ser
que não têm, mas para que lhes provoquem uma lembrança ou reminiscência (anámnesis)

roubado por Descartes, que viu as coisas como fórmulas matemáticas e enxergou a hipercerteza. Talvez tenha sido visto
pelos exegéticos, que vislumbraram a clareza irrefutável das leis. Talvez o nosso Direito devesse parar por aí (às vezes
até parece que parou), mas, como não vi o espelho mágico e não consigo sequer dizer quem é meu orientador em sua
essência, procuro caminhos que me trazem dúvidas e incertezas. Que quanto mais me aproximo da verdade verdadeira,
mais ela se distancia. Talvez esteja no ab-ismo.Talvez eu seja um tolo. E se eu for um tolo, seria um tolo por essência?
19
Um lugar sem lugar, num tempo além do tempo. Um tempo que se fazia espaço pela distância entre as formas e
as sombras, entre a episteme e os eikones. Um lugar que gera o tempo da eternidade no qual o tempo se torna
espaço e, o espaço, o tempo. Hiperurânio que se entifica pela escritura derridiana no qual a khôra deixa de ser a
junção de ideia à matéria (Timeu de Platão) para assumir a possibilidade sempre impossível de um signo gráfico
e/ou um sinal fônico assumir sentido para o Outro.
das ideias em outro tempo contempladas. Conhecer, portanto, não é ver o que está fora,
mas, ao contrário, recordar o que está dentro de nós. As coisas são apenas um estímulo para
nos afastarmos delas e nos elevarmos às ideias.” (MARÍAS, 2004. Pg 52/53)

Em outras palavras, quando Clarice disse “Você é perfeito, ovo. Você é branco.”, para Platão,
essa percepção somente seria factível porque a alma da nossa escritora já tivera contato com a
concepção do que é a brancura quando passou pelo mundo das ideias. Esse processo cognitivo
exigiu a visitação da essência da brancura, que só é encontrada no mundo inteligível.
A neve, a nuvem, a pétala da margarida ou mesmo o ovo, por ser uma cópia do existente no
mundo das ideias, jamais alcançaria a plenitude da brancura e, com isso, Clarice não poderia dizer
que algo é perfeitamente branco por uma simples correspondência com outro objeto. Aliás, como
aquele ovo estava no mundo sensível, a sua brancura perfeita era pura aparência, pois como cópia,
nunca alcançaria a perfeição.
O conhecimento para Platão, portanto, estava alocado na alma (psyché) do homem, que
deveria rememorar o que fora visto no mundo das ideias. Por esse processo de reminiscência
(anamnese20) o homem seria capaz de chegar ao ser do ente.
A anamnese seria explicada através da mítica e da dialética. Em outras palavras, a natureza
das coisas era uma característica da divindade, pois era Deus quem detinha a visão ampla e irrestrita
do Mundo das Ideias.
O conhecimento, porém, não era privativo dos deuses e poderia ser alcançado pelos homens
quando, as suas almas, na sua imortalidade, conseguiam enxergar o Hiperurânio.21
O filósofo, como detém um conhecimento mais apurado em relação aos demais, possui a
função de lhes auxiliar no processo cognitivo, fazendo com que rememorem o conhecimento que
obtiveram no Mundo das Ideias. Para tanto, Platão se alicerça em um método dialético e dialógico,
no qual, por meio do diálogo, a alma retoma a memória da verdade sobre as coisas22.
A instrução realizada pelo sábio deveria primar pelo diálogo falado em sobreposição à escrita,
uma vez que esta conduz o homem a um conhecimento de pura aparência, já que a rememoração
seria condicionada a um elemento exterior (os sinais), e não um retorno à alma.
A escritura, que no mito de Thoth23, é inicialmente apresentada ao rei Tamuz como um
20
“anamnese são as recordações de verdades desde sempre conhecidas pela alma e que reemergem de vez em quando na
experiência concreta” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 149).
21
“No entanto, o conhecimento característico dos “deuses” não é, em Platão, vedado a priori ao homem – pelo
contrário, quando realiza a mais superior das suas capacidades, o homem se converte em philosophos, porque, pelo
conhecimento das Ideias, aproxima-se de Deus, que é sophos. Por isso também se diz no Timeu que o conhecimento dos
archai, que distingue sua divindade, é acessível entre os homens àquele que Deus ama (53d); de modo semelhante,
afirma-se no Fedro, que a alma do filósofo, por meio da anamnese, permanece tanto quanto possível constantemente no
mundo das ideias, cujo conhecimento confere a Deus sua divindade (249 c), e que dessa maneira o filósofo se torna
“perfeito”.” (SLEZÁK, 1993, p. 113)
22
Para justificar esse ponto, Platão, no diálogo Ménon, demonstra como que um escravo, que não possui qualquer
conhecimento forma (educação), consegue deduzir alguns formatos e “conceitos” matemáticos.
23
“Diante disso cabe destacar que Platão recorre ao uso de um mito para explicar a origem da escritura como
phármakon, tratando-se este mito, inclusive, de um dos únicos mitos platônicos rigorosamente originais. Por que, na
fortalecimento da memória, tratando-se de um remédio (phármakon24) a ser utilizado pelos egípcios
no aprofundamento do saber, viria a ser um veneno (phármakon), pois tornariam os homens
esquecidos e escravos da escritura25.

“Eis aqui, oh Rei” , diz Theuth, “um conhecimento (máthema) que terá por efeito tornar os
egípcios mais instruídos (souphoterous) e mais aptos para se rememorar
(mnemenikotérous): memória (mnéme) e instrução (Sophia) econtraram seu remédio
(phármakon)”. [...] A tradução corrente de phármakon por remédio – droga benéfica – não é
de certa forma inexata. Não somente phármakon poderia querer dizer remédio e desfazer, a
uma certa superfície de seu funcionamento, a ambiguidade de seu sentido. Mas é também
evidente que, a intenção declarada de Theuth sendo a de fazer valer seu produto, ele faz
girar a palavra em torno de seu estranho e invisível eixo e a apresenta sobre um, o mais
tranquilizador, de seus polos. [...] Por outro lado, a réplica do rei supõe que a eficácia do
phármakon possa inverter-se: agravar o mal ao invés de remediá-lo. [...]Theuth teria ,
assim, des-naturado o phármakon, dito o contrário (tounatíon) daquilo que a escritura é
capaz. Ele fez um veneno passar por remédio. (DERRIDA, 2005, p. 44/46).

Aliás, esse subalternismo da escritura, como denuncia Derrida, irá permear todo o
pensamento ocidental, que firma uma relação imanente do logos com a phoné na construção do
pensamento metafísico de clausura do conceito de linguagem. Clausura que essencializava signo,
significado e significante, prendendo, com pequenas variações, a semântica de toda a filosofia
da consciência e da Revolução Científica galileana. Semântica traduzida pela verdade como
correspondência da fala ao mundo. Verdade como demonstração empírica (matemática).
Matemática como língua de Deus. Deus travestido de homem. Homem vestido como máquina.
Máquina objeto. Máquina instrumento. Razão. Razão instrumental. (peço licença para
invadir o texto por estar exprimido entre as excessivas notas de rodapé.)
Deixemos Derrida para mais tarde. O momento agora é de repartir pães – ou seria um
saboroso Eisbein - com os membros da Escola de Frankfurt 26 e a Teoria Crítica a essa razão
seqüência de um discurso altamente racional que é o empreendido por Sócrates, fazer uso de um mito? Ricoeur nos
responde que se trata da necessidade de diferenciação entre origem e começo, sendo o último histórico e a primeira,
mítica. Derrida dirá, ainda, que mito e escritura possuem forte vínculo, por ambos fazerem oposição ao saber, e por
possuírem uma significação de ruptura genealógica e de distanciamento da origem. O mito, assim como a escritura, está
condenado a repetir sem saber e é num repetir sem saber (um mito) que se define a origem da escritura.” (SILVA, 2011)
24
Pharmakon. Um indecidível derridiano. Remédio ou veneno! Remédio e veneno!
25
Sócrates – Pois bem: ouvi uma vez contar que na região de Náucratis, no Egipto, houve um velho deus deste país,
deus a quem é consagrada a ave que chamam íbis, e a quem chamavam Thoth. Dizem que foi ele quem inventou os
números e o cálculo, a geometria e a astronomia, bem como o jogo das damas e dos dados e, finalmente, fica sabendo,
os caracteres gráficos (escrita). Nesse tempo, todo o Egipto era governado por Tamuz, que residia no sul do país, numa
grande cidade que os gregos designam por Tebas do Egipto, onde aquele deus era conhecido por Ámon. [...] Thoth: -
Eis oh Rei, uma arte que tornará os egípcios mais sábios e os ajudará a fortalecer a memória, pois com a escrita descobri
o remédio para a memória. – Oh, Thoth, mestre incomparável, uma coisa é inventar uma arte, outra julgar os benefícios
ou prejuízos que dela advirão para os outros! Tu, neste momento e como inventor da escrita, esperas dela, e com
entusiasmo, todo o contrário do que ela pode vir a fazer! Ela tornará os homens mais esquecidos, pois que, sabendo
escrever, deixarão de exercitar a memória, confiando apenas nas escrituras, e só lembrarão de um assunto por força de
motivos exteriores, por meio de sinais, e não dos assuntos em si mesmos. Por isso, não inventaste um remédio para a
memória, mas para a rememoração. Quanto á transmissão do ensino, transmites aos teus alunos não a sabedoria em si
mesma, mas apenas uma aparência de sabedoria, pois passarão a receber uma grande soma de informações sema a
respectiva educação! Hão de parecer homens de saber, embora não passem de ignorantes em muitas matérias e tornars-
se-ão, por consequência, sábios imaginários, em vez de sábios verdadeiros. (PLATÃO, Fedro ou da Beleza, p. 120/121)
26
Embora aqui façamos uma reconstrução histórica de como iniciou o pensamento da Escola de Frankfurt – por meio
instrumental criada por Descartes.
O Istitut für Sozialforschung27 (ou Instituto de Pesquisa Social, em tradução livre), criado com
o auxílio financeiro de Felix Weil – aluno do filósofo Karl Korsch -, surgiu em 1923 como um
anexo da Universidade de Frankfurt e sob a condução rápida de Kurt Albert Gerlach 28, substituído
por Carl Grünberg.
Com um viés inicialmente marxista, desenvolveram um projeto filosófico-sociológico-
político, no qual questionavam o progresso da ciência como razão instrumental, por meio da qual, o
homem, através da técnica e do empirismo, seria capaz de conhecer todas as coisas.
O pensamento matematizante cartesiano – que norteou o cientificismo da modernidade (além
das contribuições galileanas e de Bacon) -, não obstante tenha sido de estrondosa relevância para
romper com o misticismo e o teologismo, também universalizou a identidade do Homem e retirou
sua historicidade como componente essencial para a formação do conhecimento29.
Nessa perspectiva, capitaneada por Horkheimer, será formulada uma forte crítica à Teoria
Tradicional30, sustentando que a técnica seria instrumento de dominação. O conhecimento não teria
outro sentido além de dominar o objeto conhecido. A relação entre a razão técnica e a razão prática,
unificada para o conhecimento de um dado objeto, daria ao homem o poder sobre este.
Ora, se antes a natureza desconhecida, como um saber não alcançável pelos homens, era uma
forma mítica de dominação, agora, pelo uso da razão, que me permite tudo conhecer, posso dominá-
la. Posso, então, dominar tudo aquilo que conheço, inclusive o próprio homem, quando o coloco na
condição de objeto “dissecável”.31Mundo máquina. Homem preciso. Humanidade exata.
do Instituto de Pesquisa Social -, é preciso asseverar que aquela não se confunde com um local de pesquisa, tratando-se
de uma corrente de pensamento, isto é, como uma ideologia filosófica que irá permear o pensamento de diversos
autores. Aliás, o termo “Escola de Frankfurt” só será utilizado quando do retorno do Instituto à Universidade de
Frankfurt, em 1950.
27
Como afirma Matos (1993), cogitou-se nomeá-lo como Instituto para o Marxismo, reforçando o seu viés ideológico.
Entretanto, por diversas razões, entre elas, o anticomunismo acadêmico da Alemanha da década de 1920 e 1930,
preferiu-se adotar o Termo Instituto para Pesquisas Sociais.
28
Falecido em outubro de 1923 e que pouco contribuiu para o Instituto.
29
“O que a teoria crítica tem de diferente da teoria tradicional, para além da questão do método, é a consideração do
caráter histórico da própria razão. Jamais chegaríamos a notar que a razão iluminista traz em si o seu contrário se a
abordássemos a partir de sua definição puramente lógica e a-histórica. É a historicidade da razão que permite ver no seu
desenvolvimento o entrelaçamento de fatores de diversas ordens que nos obrigam a considerar conjuntamente a
racionalidade e a mitificação, o progresso e a regressão, a civilização e a barbárie. A ilusão da linearidade nos mostraria
a civilização sucedendo à barbárie, a racionalidade sucedendo ao mito e o progresso como incompatível com o retorno a
estágios primários de conhecimento e sociabilidade. Uma teoria crítica, que considera a totalidade das relações nas
práticas humanas e não apenas a seleção de elementos que desenham o progresso linear, nos obriga a dialetizar o
processo histórico, ao nos mostrar que qualquer realidade, na medida em que se afirma historicamente, traz em si aquilo
que a nega.” (SILVA, 1997)
30
“No seu conceito tradicional, a teoria é concebida como “um conjunto de proposições que dizem respeito a um
determinado domínio de conhecimento, e cuja coerência é assegurada pelo fato que de algumas são deduzidas
logicamente todas as outras”. A “validade” duma tal teoria “com respeito ao real consiste em que as proposições
deduzidas destes princípios coincidem com acontecimentos, dados de fato”. Daí o seu ideal de matematização que
deveria dotá-la em termos de universalidade”. (ASSOUN, 1991. P. 33/34)
31
“[...]a aporia a que se referem Adorno e Horkheimer: a emancipação se converte em submissão, na medida em que o
progresso da razão instrumental coincide com a regressão do humano à categoria de coisa. O impulso para a dominação
da natureza nasceu do temor frente ao desconhecido. Os mitos e os rituais cumpriram primeiramente esta função, em
que o homem, para controlar, se submetia. A ciência, ao desencantar a natureza, isto é, ao substituir a relação com as
Exatamente precisa em sua compulsão mítica pela razão. Mundo sem dogmas, sem doxa, sem
arte ou religião. Hermenêutica como ciência técnica que examina os métodos de interpretação
como dedução da lógica formal. Razão plena. Razão total. Totalidade na/da razão que abafa a
alteridade, negando ao Outro o direito a ter direitos, o direito de existir, como testemunhou
Hanna Arendt.
O nazismo e o facismo, que seriam projetos de coisificação do homem, teriam se alicerçado
nessa razão, cujo método sobrepõe-se ao observador, que deve ser encarado como um ser objetivo e
neutro, que não possui qualquer condição valorativa na sua análise.
Horkheimer, então, expressa que essa neutralidade do cientista não contribui para a
constatação da realidade, que é constituída a partir de agentes históricos 32. As coisas não podem ser
concebidas como algo dado aprioristicamente, pois a compreensão depende da presença humana,
que se dá em um determinado pano de fundo histórico33. O homem é um ser histórico e social e,
como tal, as suas compreensões partem deste panorama.
A Teoria Crítica olha o Homem como ser cognitivo a partir da sua historicidade e sua
individualidade, rechaçando processos universalizantes da identidade humana. A humanidade não
pode ser concebida a partir da massificação das pessoas, como se todos detivessem uma única
identidade. Como se todos fossem um só. “Trata-se de apelar “contra o entendimento e o
raciocínio”, “à alma e à intuição”, “contra a forma matemática”, “à forma orgânica”, “contra o
abstrato”, “ao sensível”, “contra o mecânico”, “ao vivo”.” (ASSOUN, 1991, p. 29).
Se não se pode cindir o pensador do pensamento ou a teoria da práxis (SOBOTTKA, 2008, p.
215), por que não trabalhar a filosofia e a religião, a teologia e a revolução sob um mesmo olhar
teórico e científico?34 E a conciliação entre a arte e a filosofia? Seria possível?
Adorno nos mostra que sim. Em sua Teoria Estética 35 irá em busca de um resgate
emancipatório da sociedade, asseverando que a arte, como último refúgio da alienação social,
forças pela formalização metódica de índole matematizante, apaziguou a exterioridade, destituindo-a de vida. Mas o
triunfo da instrumentalidade dominadora instaurou uma outra fonte de dominação, a própria razão enquanto
essencialmente dominadora.”(SILVA, 1997).
32
ibidem supra.
33
A teoria em sentido tradicional, cartesiano, como a que se encontra em vigor em todas as ciências especializadas,
organiza a experiência à base de formulação de questões que surgem em conexão com a reprodução da vida dentro da
sociedade atual. Os sistemas das disciplinas contêm os conhecimentos de tal forma que, sob circunstâncias dadas, são
aplicáveis ao maior número possível de ocasiões. A gênese social dos problemas, as situações reais nas quais a ciência é
empregada e os fins perseguidos em sua aplicação, são por ela mesma considerados exteriores. - A teoria crítica da
sociedade, ao contrário, tem como objeto os homens como produtores de todas as suas formas históricas de vida. As
situações efetivas, nas quais a ciência se baseia, não é para ela uma coisa dada, cujo único problema estaria na mera
constatação e previsão segundo as leis da probabilidade. O que é dado não depende apenas da natureza, mas também do
poder do homem sobre ela. (Horkheimer, 1989a, p.69).
34
Horkheimer irá trabalhar essa perspectiva no texto Teoria Crítica ontem e hoje. “Se a tradição, as categorias religiosas
e, em particular, a justiça e a bondade de Deus não forem transmitidas como dogma, como verdades absolutas, mas
como a nostalgia daqueles capazes de uma verdadeira tristeza, e isso precisamente porque essas doutrinas não podem
ser demonstradas e porque essa dúvida é seu lote, a mentalidade teológica, ou pelo menos sua base, poderá ser
conservada de uma forma adequada. A introdução da dúvida na religião é um momento necessário para salvá-la.”
(HORKHEIMER apud MATOS, 1993, pg. 90)
35
Que como já mencionado, não se confunde com a transcendental kantiana.
guarda uma potencialidade humana que não pode ser subjugada ao totalitarismo da razão
instrumental e da sociedade contemporânea36.
Nessa esteira, ele irá criticar a massificação da cultura, que não mais se mostra como um
produto da subjetividade humana, mas como uma indústria cultural, na qual os meios de
comunicação indicam qual o bem cultural deve ser consumido pelos indivíduos. Criou-se a cultura
em série como um produto de consumo. A música, o cinema e as obras de arte devem ser um
reflexo daquilo que o capitalismo quer que os indivíduos almejem. O herói das telonas serve para
alimentar o sentimento narcisista de que ele (o herói) é algo que eu quero e posso vir a ser37.
Nosso autor, ainda, enxerga que essa indústria visa universalizar as sensações que temos
diante de uma música ou de uma obra de arte, tornando a concepção do que é belo como algo
objetivo e aplicável a todos. Por outro lado, ele reconhece que a qualidade de uma música não está
exclusivamente alinhavado com o sentir do ouvinte; com o gosto que ele tem por música. Não! Ao
contrário do que acostumamos a ouvir, gosto se discute! Mas essa discussão não deve se dar a partir
de visões aprioristicamente matematizadas ou puramente “passionais”38.
Assim, em resposta à pergunta retórica formulada no início deste trabalho, Adorno não
procurou se encastelar em uma Torre de Marfim, em um elitismo acadêmico, mas quis apontar para
a colonização da arte pelo capitalismo, que tem massificado e matematizado, tornando-o um ser
sem identidade, sem perceber que mais do que ser apreciada, a arte é constitutiva da nossa condição
humana.
Essa ausência de identidade foi escancarada por Hebert Marcuse ao discorrer sobre o homem
unidimensional, administrado pelas forças econômicas e tecnológicas sob a ótica de uma realidade
monológica, que impõe um caminho singular como forma de se alcançar o bem estar.
O sucesso social é obtido por aquele que segue os comandos de ação sussurrados por uma voz
invisível, que desenha todo trajeto a ser seguido, mas, travestindo a dominação e o controle com o
figurino teatral da liberdade, assevera que a escolha é de quem caminha.

Um homem, que viaje de carro a um lugar distante, escolhe a rota de sua viagem num guia
de estradas. Cidades, lagos e montanhas aparecem como obstáculos a serem ultrapassados.
O campo é delineado e organizado pela estrada: o que se encontra no percurso é um
subproduto ou anexo da estrada. Vários sinais e placas dizem ao viajante o que fazer e
pensar. Espaços convenientes para estacionar foram construídos onde as mais amplas e
surpreendentes vistas se desenrolam. Painéis gigantes lhe dizem onde parar e encontrar a
pausa revigorante. [...] A rota é feita para o benefício, segurança e conforto do homem. E a
obediência às instruções representa o único meio de se obter resultados desejados
(MARCUSE, 1998, p.79).

36
ANTUNES E RAMOS, 2000, p.23.
37
“Todos os heróis da indústria cultural são sempre pensados para refletir algo do que as pessoas já percebem em si
mesmas, só que engrandecido pela elaboração dos meios técnicos cada vez mais refinados da indústria da diversão.”
(FREITAS, 2008, p.19)
38
Como se fosse mesmo possível cindir a razão da emoção como se divide uma maçã ao meio.
A estrutura social, tecnológica e instrumental domina o homem, que já não mais é capaz de
apresentar respostas como produto de uma racionalidade reflexiva, tracejando a verdade como
correspondência de um conhecimento técnico. Verdade é o que a ciência me diz que é. A
verificabilidade e a irrefutabilidade são os pressupostos que capitaneiam o científico e identificam o
verdadeiro. Afinal, é científico!!!
Se é científico, posso deitar na boia e seguir o fluxo.(?) Verdade universal e imutável.(?)
Único caminho para se chegar a verdade.(?) “GPS” que traz conforto e segurança.(?) Estrada que eu
chego à hipercerteza.(?) Doce ilusão! Essa racionalidade se transsexualiza em irracional ao ver o
conhecimento como algo dado, alcançável pelo esforço puro do intelecto e destacado das
experiências e “com-pre-ensões” do mundo em que somos lançados.
Ao chegar a essa altura do texto, ouço um reclame silencioso que obstaculiza o seguir como
um caminhão de concreto que edifica abruptamente a tradução de pensamentos; que traduz o
intraduzível; que age como um rotulador entificante que diz: “isso é isso; aquilo é aquilo; fulano
pensava assim, sicrano assado”. Algo me incomoda. Uma voz retumbante que exige um regresso a
origem. Regresso que não se confunde com cronologia. Origem que não se dá por um olhar greco-
romano-cristão. Precisamos ouvir Walter Benjamin.
A origem, no pensamento benjaminiano, inquiri a ruptura de uma linearidade temporal, o que
permitiria uma conectividade do passado com o presente e a atualização permanente do evento
histórico. Origem39 como primeiro salto para a salvação de um passado esquecido, que não se
confunde com uma verdade perdida ou com o apontamento para o progresso. Esse movimento de
restauração, sempre incompleto, inacabado e acessível por meio de uma lembrança ou da leitura de
um signo, estabelece uma nova ligação entre passado e presente que, ao mesmo tempo, destrói e
constrói a historicidade (VIEIRA, 1996, p. 108).
Retornar a origem não significa visitar o passado, mas recriá-lo a partir das experiências do
presente, com as sensações e sentimentos carregados ao longo da história, de modo que em cada
revisitação ocorre um evento novo, uma nova visão daquilo que aconteceu em momento pretérito.
Dá-se vida nova ao já vivido. Quando o autor da “assinatura” se defronta na atualidade com um
prato de cajuzinhos, teimo em arriscar que, por mais que a nostalgia lhe permita rememorar as
percepções sentidas naquela época, a tradução dos seus sentimentos não é uma transcrição, mas
uma nova vivência, empregando àquele momento as percepções do que ele é hoje.
Presente e passado percebidos de forma não linear 40. Benjamin, abraçado pela tradição
39
Segundo VIEIRA (1996), “A palavra "origem" em alemão (Ur-sprung) também quer dizer "primeiro salto", por isso
Benjamin considera a noção de origem como "saltos" ou "recortes inovadores" que interrompem a monotonia da
história oficial”
40
“A tradição de interpretação no contexto judaico-rabínico, que se construiu em função de um processo de
rememoração dos textos bíblicos, onde o passado era trazido até o presente e a ele sobreposto e esses dois tempos juntos
permitiam a inserção do futuro, o tempo da chegada do Messias, levou os judeus a criarem noções de tempo e espaço
não-lineares, menos rígidas do que as da maior parte dos povos ocidentais [...]” (OLIVEIRA, 2002, p. 72)
judaica, não vislumbrava a história como um caminhar acrítico sobre o passado (puramente
racional; descritivo dos acontecimentos; regido por um tempo homogêneo e vazio). Ele vai além e
diz que a história deve ser compreendida como “objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo
homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’” (BENJAMIN apud OLIVEIRA, 2002, p.
73).
Essa percepção temporal é ponto basilar para o conceito de tradução em Benjamin, para quem
traduzir não é descrição de obra morta. Nem tampouco a transcrição para língua materna, através
do uso dos elementos linguísticos, de uma obra estrangeira estática. Ao revés, o escrito “pervive”
(Überleben) para além de sua produção e se instala como evento histórico renovável em cada
leitura. O original de uma obra não possui uma finitude conceitual; não está no campo definitivo da
língua.
Traduzir é ser tocado pelo original. É encontrar a sua originalidade própria: a “im-
possibilidade” entendida em sua traduzibilidade! Constituir aquilo que é comunicado no texto. Para
tanto, é preciso transcender a língua materna e resgatar a língua pura. Um resgate da afinidade
meta-histórica das línguas, constituída a partir da intencionalidade reciprocamente complementar
das múltiplas línguas sobre o objeto visado. A língua pura traria o que foi comunicado da coisa por
cada uma das línguas tomadas como um todo. O que permeia é a intencionalidade comunicada e
não os elementos estruturantes da língua estrangeira. Benjamin (2011, p. 109) exemplifica com os
termos “Brot” do alemão e “Pain” do francês. Evidentemente que cada uma das palavras possui um
sentido diferente para o cidadão francês e o alemão, que constitui o modo de visar. Mas a
intencionalidade comunicada, concernente ao objeto visado, é idêntica.
Traduzir também é tocar o texto. É destruí-lo e recriá-lo. É, nas palavras de Flávio Kothe
(KOTHE, 1976, p. 63), “uma trans-construção do original, uma recriação interpretativa dele,
tocando-o como uma tangente toca um círculo, e num só ponto". Não se confunde com estudo
referencial em que se busca uma correspondência com o original, mas uma conformação com que é
visado na obra. É a expressão na língua materna daquilo que foi visado na língua pura, recriando a
obra.

A tarefa do tradutor é redimir, na própria, a pura língua exilada na estrangeira, liberar a


língua do cativeiro da obra por meio da recriação (Umdichtung). Em nome da pura língua,
o tradutor rompe as barreiras apodrecidas da sua própria língua: Lutero, Höderlin, George
ampliaram as fronteiras do alemão. Sendo assim, o que resta de significativo para o sentido
na relação entre tradução e original pode ser apreendido numa comparação: da mesma
forma como a tangente toca a circunferência de maneira fugidia e em um ponto apenas,
sendo esse contato, e não o ponto, que determina a lei segundo a qual ela continua sua via
reta para o infinito, a tradução toca fugazmente, e apenas no ponto infinitamente pequeno
do sentido do original, para perseguir, segundo a lei da fidelidade, sua própria via no
interior da liberdade do movimento da língua.

Ao atravessar a Escola de Frankfurt, posso sentir o afrouxamento das amarras da lógica


apofântica e visualizar um novo horizonte. Mas ainda não posso parar. A caminhada continua e
somos, então, lançados no pensamento de Martin Heidegger e sua Ontologia Fundamental41.
Com o objetivo de apenas rascunhar42 os caminhos43 do filósofo alemão, deixando migalhas
pelo caminho, vale destacar que o autor empreita por uma fenomenologia que pretende desvelar o
sentido do “seer”44, apontando o vazio por detrás do fenômeno, sendo este o todo que compõe o
“seer’ dos entes.
Para tanto, as luzes são jogadas no “seer” do homem, que é o único capaz de perquirir o
sentido do Ser. Apenas o homem compreende, apenas ele ek-siste. Essas luzes desvelam que a
quididade do homem é não ter uma essência fixa, que é sempre um projeto, um poder-ser. E é por
isso que Heidegger utilizará o termo Dasein45 para designar o “seer” humano, que na tradução para
o português é empregada como “Ser-aí” ou, melhor dizendo, “presença”46.
41
“O termo fundamental presente na expressão indica que a investigação não se mantém mais no âmbito de uma
ontologia positiva, mas desce até o fundamento mesmo das ontologias em geral e sonda como elas retiram desse
fundamento sua própria determinação. Com o projeto da ontologia fundamental, temos em verdade uma clara
modulação do projeto crítico transcendental kantiano. A diferença está apenas no fato de a obra não se voltar mais para
as condições de possibilidade de um conhecimento efetivo dos objetos da experiência possível, mas antes para as
condições de possibilidade de colocação da própria questão do ser enquanto horizonte mais originário em relação a tais
condições.”(CASANOVA, 2010, p.79)
42
Já que a pretensão de abordar a completude do pensamento heideggeriano nesta obra seria a décima terceira tarefa de
Héracles.
43
Segundo Casanova (2010), Heidegger, ao estruturar as suas obras completas em 1970, teria afirmado que não tinha
obras (Werke), mas caminhos (Wege).
44
“O que significa “seer”? O que se entende por “é” quando dizemos que uma coisa é desse ou daquele modo? As
categoria de Aristóteles não teriam passado ao largo dessa questão, quando, por exemplo, formam um enunciado do
tipo “Éder é atleticano!”, ao se fixar no esforlo de dizer que seria substância ou o que seria uma qualidade? “Seer” é o
conceito mais universalmente empregado e cujo conteúdo teria sido o mais esquecido pelo conhecimento humano. Seria
suficiente a noção grega de “seer” como um “simplesmente dado”, uma “mera presença”, “aquilo que que está
presente”, da qual seria possível aferir suas caracterísricas gerais para a formulação de um universal, seja como espécie
ou como gênero? Por que a filosofia, que tantos progressos teve desde os jônicos, não caminhou no exame dessa
questão? Heidegger propõe em sua obra Ser e Tempo abordar esse “esquecimento” tomando como ponto de partida o
ser do homem, ou seja, aquele para o qual a pergunta sobre o “seer” faria sentido, e perceber que qualquer compreensão
humana parte de determinado horizonte, ou seja, é construído sobre um ponto de partida que sempre nos é dado.”
(CRUZ, 2011, ´p. 120/121)
45
O termo “ser-aí” designa em um primeiro momento simplesmente o ser do homem. No entanto, ele não se mostra
apenas como mais uma definição que irá incontornavelmente se juntar ao longo rol das definições cunhadas no interior
da história do pensamento ocidental. Quase como se pudéssemos dizer: ser-aí é o conceito heideggeriano de homem.
Não, não e uma vez mais não! O emprego do termo ser-aí indica no presente contexto uma transformação radical no
modo mesmo de pensar o ser do homem. Antes de mais nada, é preciso ter em vista o fato de ser-aí não ser um termo
cunhado por Heidegger a partir da pergunta: o que é o homem? O termo ser-aí inviabiliza desde o princípio a colocação
de uma tal pergunta, na medida em que possui um modo de ser que o distingue fundamentalmente de todos os entes
marcados pela presença de propriedades quididativas. “(CASANOVA,2010, p. 89)
46
A tradução da obra Ser e Tempo utiliza a expressão “pre-sença” como tradução do Dasein. Entretanto, vale a
consideração de Nunes (2010), que assevera que “trata-se de um equívoco da tradução, que apenas transladou o termo
Da-sein a partir da sua etimologia, conflitando com a semântica proposta por Heidegger. “Por isso, não é o homem
Dadeiende, mas Dasein: a abertura, o aí da existência fáctica, que vai tanto do homem para o ser quanto do ser para o
homem, está enfeixada Semânticamente do Da de Dasein, relação que se perde no etimologismo praticado pela tradução
brasileira de Ser e Tempo, que seria de exemplar competência não fosse o hamletiano prejuízo desse único defeito – by
one defect – que o fez traduzir o mesmo termo Dasein por pré-sença, sem perceber que, na leitura, a etimologia não
vigora sobre a semântica e que, nesse ato de leitura, a palavra deixa de ser neutra (das Dasein), funicionando a presença
como Anwesende ou como présence, assim escrito, certa vez, em francês, por Heidegger, de acordo o que se pode ler
nor Beiträge, da terceira fase. “No sentido empregado pela primeira vez essencialmente em Sein und Zeit, este termo
não se traduz, quer dizer, ele contradiz o ponto de vista do pensamento e do modo de expressão da história do Ocidente
até agora: Da Sein. No sentido literal significa, por exemplo: a cadeira esta aí; o tio esta aí. Chegou e está presente: daí
présence (sic). Da-sein significa propriamente um “ente”, mas não no modo de ser no sentido dito acima...”” Apesar da
A multiplicidade de projetos do Ser-aí, que o insere como poder-ser e o permite vir-a-ser, ao
mesmo tempo, o conduz inexoravelmente ao ter-que-ser. Mais que um projeto, o Ser-aí é uma
realidade no mundo fático e precisa romper com a sua indeterminação para se concretizar como
possibilidade existencial. Mas como que se dá esse movimento existencial de modo que não insira a
possibilidade da presença em um plano existentivo? Em outras palavras, como não acorrentar a
presença em um projeto de vir-a-ser pensado do lado de fora da sua existência?
Devemos então retomar a percepção do Ser-aí como existente, isto é, como ek-sistere47.
Heidegger manuseará o termo ek sistere para expressar a abertura da presença ao mundo como seu
modo de “seer”. A concretização do Ser-aí como “ente que é” imprescinde da interrelação com o
mundo circundante a que pertence, que o determinará como um Ser-aí-jogado-no-mundo 48. A
presença pertence a um mundo no qual ele vive as suas experiências; e esse mesmo mundo também
servirá como horizonte inicial para as suas experiências.
Assim, a visão de um Ser-jogado não pode ser confundida como uma pretensão absorvente da
presença pelo mundo circundante, como a meia dentro de uma a gaveta, na qual a primeira está
“dentro” da segunda. Não há aqui uma conexão espaço/temporal de dentro e fora, de antes e depois,
como causa e consequência. O Ser-aí possui uma condição constitutiva e de abertura com o mundo,
por meio da qual simultaneamente ele constrói e é constituído pelo mundo.

O ser-aí é essencialmente um existente. Enquanto um existente, ele se constitui


originariamente a partir de um movimento ek-stático. Esse movimento ek-stático confunde-
se com um comportamento que Heidegger denomina em Ser e Tempo como descerrador.
Na medida mesmo em ek-siste, o ser-aí des-cerra (er-schliest) o horizonte total, a partir do
qual os entes se manifestam: na medida em que ek-siste, o ser-aí libera o mundo como
campo de manifestação dos entes em geral, como espaço de abertura do ente na totalidade.
Assim, o que temos aqui pode ser descrito da seguinte forma: 1) o ser-aí existe; 2) a
existência traz consigo um movimento de descerramento e liberação do mundo como
campo de manifestação dos entes; 3) o surgimento mesmo desse horizonte torna possível a
manifestação dos entes que, em seguida, vêm ao encontro do ser-aí e requisitam dele um
modo de comportamento e, assumindo um tal modo de comportamento, se determina como
é. Dizer isto, por sua vez, significa afirmar que o ser-aí é um ser-no-mundo, um ente que
funda todos os seus comportamentos em relação aos entesem geral em um comportamento
originário em relação ao mundo. A questão fundamental passa a ser, por conseguinte,
determinar como se constitui afinal tal comportamento. (CASANOVA, 2010, p. 92).

Com efeito, há uma imanência entre o “ser-aí” e o mundo, de modo que a sua presença no

arguta leitura de Nunes, acreditamos que o termo “presença” constitui uma boa tradução no conceito banjaminiano.
Presença. Presente. Pre-sente. Pre-(s)ente. Movimento do Ser do ente. A terminologia não carrega a estaticidade
substantiva do seer humano, mas um movimento constante, motivo que nos permite o atrevimento em continuar a
utilizar a expressão traduzida “pre-sença”
47
“Sistere, ser; ek, para fora. Enquanto substantivo de uma oração, o ser entrevisto na luz da articulação, do acontecer, e
seu verbo. O cuidadoso trabalho de ver o verbo ser do substantivo ser. Terá sido à toa que Heidegger insistentemente
trouxe à tona o dizer da língua grega, posto que nenhuma outra língua teve um poder tão grande em seu dizer, como
tiveram os gregos com as declinações e articulações de seu verbo einai?”(BRASIL, 2010, pg. 99)
48
“O ser-aí é um ente jogado em um mundo fático que constrói a sua dinâmica existencial a partir de uma familiaridade
com esse mundo. Ele é um ser-no-mundo não porque se encontra dentro de um espaço dado específico chamado mundo
e porque precisa necessariamente se adequar a esse espaço circundante. Ao contrário, ele é essencialmente um ser-no-
mundo, porque encontra no mundo a sua própria morada.“(CASANOVA, 2010, P. 101)
mundo dos entes se desvela como essencial para a concretização do seu projeto de ser. Não há um
mundo sem a presença humana da mesma forma que a presença não pode existir sem o mundo.
Justamente em razão disso que a constituição do mundo do Ser-aí também não é alcançada no plano
da metafísica, como se o Dasein obtivesse o sentido do seer dos entes a partir da observação do
mundo como espectador. Não! Ele é um partícipe nessa dimensão constitutiva do mundo, que é de-
finida, repisemos, a partir do horizonte factual a que ele pertence.
Como os entes do mundo não possuem uma existência 49, eles são vislumbrados por Heidegger
como “instrumentos-para”50 o Dasein a partir da forma com que eles se a-presentam na sua
cotidianidade. Isto é, uma caneta em cima da mesa de trabalho tem o seu sentido desvelado pelo
Ser-aí como um objeto que será utilizado para a confecção de uma peça processual, ou para a escrita
de uma carta, ou para fazer anotações, por exemplo. Somente o Ser-aí é capaz de compreender o
sentido do ser daquela caneta, e isso dar-se-á pela sua abertura com o mundo. Essa compreensão da
significância do ente se dá por essa abertura do Dasein com o mundo. Para ser mais exato, por esse
“evento apropriante” (Ereignis) por meio do qual o Dasein se apropria do mundo ao mesmo tempo
em que é apropriado por este.
Note-se que a compreensão deixa a perspectiva de produto de uma razão pura, como fruto da
ação cognitiva do intelecto, para transformar-se em uma condição de possibilidade do Dasein, como
um ek-sistencial que permite a abertura do Ser-aí com o mundo circundante.
O Dasein é um projeto de existência que se dá em-função-de-si 51, isto é, ao caminhar pela
mundanidade do mundo, o ser-aí desvela o sentido do ser dos entes a partir da sua condição de ser-
jogado, a partir da sua pro-jeção do mundo, da visão do seu mundo. Portanto, a compreensão é uma
abertura do Dasein para si, como forma de conhecer a si mesmo enquanto ser-no-mundo, sendo fim
em si mesmo52.

49
Uma vez que, conforme mencionamos, só o Dasein ek-siste, devido a sua capacidade exclusiva de indagar sobre o
sentido do ser.
50
Ver CRUZ, 2011, pg. 126/127.
51
“Dasein é “em cada caso meu(...) deve-se sempre usar um pronome pessoal ao dirigir-se a ele: “eu sou”, “você” (ST,
42). Todo homem é “em função de si mesmo, (...) de seu próprio objetivo, como diz Kant. Este “em função de si mesmo
constitui o si mesmo enquanto tal”. O significado de mundo é sustentado pelas necessidades e pelos propósitos de
Dasein. É o Dasein um indivíduo isolado, egoísta? ONTOLOGICAMENTE sim, ONTICAMENTE não: a neutralidade
de Dasein “ significa um peculiar isolamento do homem, mas não no sentido factual, existenciário, como se o filósofo
fosse o centro do mundo; ela é o isolamento metafísico do homem”. Apenas porque o Dasein é “em sua essência
metafísica determinado por sua individualidade, pode ele como um ente concreto propositalmente escolher a si como si
mesmo” ou “abandonar esta escolha. “Esta individualidade é sua liberdade, e liberdade é a egoidade (Egoität) que, em
primeiro lugar, torna possível que o ente seja egoísta ou altruísta”. Ela não ajuda a introduzir a relação eu-tu. Isto apenas
substituiria um solipsismo individual por um “solipsismo de um par”. A egoidade de Dasein é mais profunda do que
este contraste; Dasein funciona tanto como eu quanto como você. Porque Dasein é sempre “meu”, ele não é instância de
um gênero (genus) ao modo de um ser-simplesmente-dado” (INWOOD, 2002, p. 30)
52
“O segundo existencial que estrutura a abertura do Dasein é a compreensão. Nós já utilizamos com frequência este
verbo: o Dasein se compreende, ele compreende seu mundo... o que isso significa? O Dasein, como dissemos, é em
função de si. Este ser em função de si é a raiz na qual se configura o mundo, o mundo sendo sempre pro-jetado, lançado
em vista de mim mesmo, como “meu mundo”. Ser em função de si significa ao mesmo tempo duas coisas: estar aberto
para si, conhecer-se em termos de ser-no-mundo (e não se conhecer no retorno reflexivo a si), e ser fim para si mesmo.
Este é o sentido da compreensão: o si mesmo aberto em projeto como ser-no-mundo. O compreender não é portanto
A compreensão é sempre um olhar lançado pelo Dasein enquanto ser-no-mundo e, como tal,
nunca será capaz de atingir a completude de possibilidade de significações 53, estando sempre eivada
por um ponto cego diante do seu olhar. Há sempre um espaço cuja visão (Sicht) da presença não
consegue alcançar. E é nesse panorama que Heidegger denominará a compreensão da presença
como Durchsichtigkeit, isto é, como clarividência. A compreensão é uma clareira na escuridão da
indeterminabilidade, que a-presenta apenas uma das in-finitas formas de conhecer.
Mas, antes54 da compreensão, o Dasein possui outra abertura para o mundo, que é a sua
disposição afetiva (Befindlichkeit). O Ser-aí existe faticamente no mundo e as suas experiências
fáticas permitem que ele seja tocado (e toque) pelo mundo em sua mundanidade. Cada experiência
possui um sentimento que potencializa a presença em seu projeto e interfere na sua forma de
compreensão.

Como a “disposição” pode ser, para o Dasein, um modo de ser sua própria abertura? Na
Befindlichkeit, faz-se necessário ouvir o verbo reflexivo sich befinden, o encontro das
coisas. Na disposição, o Dasein faz a experiência de si mesmo, vem a si mesmo, abre-se
para si mesmo. Como? Explicitando o seu puro Dass, sua facticidade. O Dasein existe
facticamente. Isso não quer dizer a facticidade de um ente intramundano, mas a experiência
do fato do si mesmo que assoma na “tonalidade”, no sentimento. O que há no fundo de todo
sentimento é: a experiência da minha facticidade.[...] A disposição possui uma segunda
característica: o Dasein está disposto enquanto ser-no-mundo. A disposição expõe o mundo
em totalidade, ele é a exposição mesma na qual o mundo está presente e me concerne,
numa totalidade. A disposição, os “sentimentos” não são simples estados subjetivos
passageiros sem importância, e tampouco são “paixões da alma”. Radicalmente, o
sentimento deve ser compreendido como um existencial, nem “interior” nem “exterior”,
mas sim modo de abertura do ser-no-mundo: a disposição é minha exposição fundamental.
Não há experiência do mundo que não se anuncie num “sentimento”, ainda que seja a
apatia![...] Enfim, a terceira característica da disposição, a possibilidade mesma de um ser
tocado pelo ente intramundano. A disposição é a abordagem do mundo, nela o mundo
sempre já me abordou. [...] Para tal, devemos ser “afetáveis”, constituídos por uma
fundamental abordabilidade pelo ente – é precisamente o mundo aberto em totalidade na
disposição que fornece a possibilidade de um ser tocado , implicado pela resistência, pela
importunidade, pelo caráter assustador, etc. (DUBOIS, 2004, p. 35/36)

Sentimentos, contudo, não unidirecionalizados. A presença é dúbia; é complexa. Os


sentimentos não são absorvidos de forma pura ou idealizada. O amor pode ser externado das mais
diversas maneiras e com as múltiplas miscigenações. Como o amor de Deus percebido por Clarice

uma capacidade teorética do Dasein (entendimento ou razão), ainda que a origem desta também esteja nele. Trata-se
muito antes de uma estrutura de seu ser, de sua existência, como poder ser, como abertura para si mesmo como
possibilidade. O possível do Dasein, suas possibilidades, por sua vez, não são categorias da modalidade, mas sua
existência mesma, sua mais própria “realidade”. [...] Compreender-se quer dizer em princípio mal-compreender-se,
estar na caverna, opacidade, cegueira. Ou ainda, a compreensão é sempre modulada: ela é ou imprópria, compreensão
de si a partir do que se faz, do que se diz se deve fazer etc., ou é uma compreensão própria de si, abertura verdadeira.
Sobre esta última, tendo em vista nosso ponto de partida, nada ainda sabemos, salvo que a compreensão própria de si
deverá possuir a forma de uma ruptura com compreensão imprópria, uma certa apropriação própria, pelo Dasein, de seu
poder-ser.” (DUBOIS, 2004, P. 36/37)
53
Se é que há uma completude (enquanto finitude) de possibilidades.
54
Anterioridade no sentido lógico ou kairológico, nunca a partir de uma perspectiva de linearidade temporal. Enquanto
possibilidade existencial do Dasein, não é possível pensar em um distante do outro, assim como não é possível pensar o
aluno sem o professor, o mestre sem o discípulo, Buchecha sem... (ops! esse é sim possível pensar um sem o outro,
embora pudéssemos refletir essa passagem musical a partir da relação do Dasein com o Mitsein, mas deixemos isso para
outra oportunidade.)
em “Perdoando Deus”. O amor não está apenas no beijo, na carícia, nas boas palavras. O
encontramos naquilo que mais nos afugenta. Seja no rato do conto clariceano ou no prato de
cajuzinhos servidos ao autor da “assinatura”. Uma mescla de rejeição ao gosto com a ternura do
gesto. Uma ambivalência de sensações traduzidas como “amor”. Os sentimentos da presença não
são descritíveis sob o manto da razão pura. Não possui uma essência por detrás de sua palavra.
Clarice percebeu que a essencialização do amor (ou do bom) o torna insípido, inalcançável e
inexistente. A afetividade não está inscrita nas teias da razão. A pureza do amor de Deus não passa
de um jogo de contrários da idealidade do ideal de bom e ruim. Enquanto for assim, Ele não existe.
Ao questionar o porquê de Deus ter-lhe feito pisar em um bicho tão detestável como um rato, a
autora se depara com a percepção de que não há uma forma linear da afeição. O sentir não está no
binarismo em que se propõem ações emolduradas como afáveis ou detestáveis, encaixotadas como
amor ou ódio. O amor não pode ser ontologizado nem mesmo na beleza poética de Pablo Neruda.
O amor é experimentado na mundanidade do mundo e, como tal, afeta a compreensão do
Dasein; como ele abre a si próprio e para mundo. A compreensão não se dá apenas pelos elementos
sensitivos do Dasein, mas perpassa necessariamente pelas sensações que ele teve no seu comportar
com os entes intramundanos e com os demais seres-aí. E é nessa abertura do Dasein para o outro,
como um ser-junto-ao-outro, que se desvela o terceiro ek-sistencial do Ser-aí, o discurso.
Para Heidegger, o discurso é a expressão do ser-no-mundo, detendo a linguagem uma função
referencial, construindo o sentido do signo a partir do seu emprego. A minha expressão é sempre
referente a alguma coisa. Eu sempre expresso algo referente a alguma coisa e para alguém.

O discurso, a discursividade originária do Dasein, que se diz, se exprime como ser-no-


mundo, é uma estrutura com quatro polos. Todo discurso é um discurso sobre...
(referência), diz alguma coisa do que fala (significação), comunica, partilhando o ser para a
coisa da qual fala (comunicação), exprime o modo de ser-no-mundo daquele que fala
(expressão de sentido). (DUBOIS, 2004, p. 40).

A linguagem traz uma significância e não um significado, não figurando como representação
da realidade, mas, ao revés, como forma de abertura da presença ao mundo. Os signos não são
espelhos daquilo que a presença pode perceber no mundo. Não trata-se de uma exteriorização da
compreensão que já encontra-se interiorizada. Não! A compreensão não se dá de forma intuitiva ou
solipsista, mas decorre da intersubjetividade do Dasein com o outro existente (Mitsein 55), por meio
do discurso.
Quando Clarice é indagada pelo filho se prefere prato raso ou prato fundo, a compreensão não
se dá apenas pela interiorização de uma realidade captada por meio dos sentidos e sensações
(compreensão e disposição) (que existem uma variedade de tipos de pratos, que podem ser
utilizados em inúmeras ocasiões e que ela deveria optar por algum), mas há uma abertura que lhe
55
Que assume a condição de Mitsein enquanto Outro, mas que não perde a sua condição de Dasein.
permite tocar e ser tocada pela outra existência (o Mitsein - o seer de seu filho de coração), de modo
que o sentido do enunciado irá exprimir uma realidade específica, que é a percepção de que o
infante apenas quer ludibriá-la e não se alimentar. Esse sentido somente se dá nessa relação com o
outro e através da linguagem, pois haverá sempre o “não dito”, o perceptível na faticidade do
Dasein enquanto ser-junto-ao-outro.
A concepção de que a presença é sempre um ser-junto-ao-outro, fazendo com que a sua
existência esteja conectada com a existência do Mitsein, entretanto, é criticada por Levinás, que
sustenta que o filósofo alemão enxerga a presença como um ser-em-função-de-si e que o ser-junto-
ao-outro seria um evento totalizante de apropriação do Outro pela presença na formação de sua
subjetividade. O Outro seria coisificado pela presença, como elemento constitutivo do seu “seer”56.
O filósofo lituano naturalizado francês se sente preso na Ontologia, seja a socrática ou a
ontologia fundamental de Heidegger. Assim, nos propõe a evasão do ser. Um movimento de
nadificação do nada, que busca o antecedente ao Dito, “para o que transcende e significa em si
mesmo”. Esse movimento de anterioridade metafísica propõe a saída do Si Mesmo para o
Impessoal, para o anonimato essencial. É o “retornar à escuridão do ser empastado em si mesmo, à
condição de ser não-condição, à noite que paira no ser em si mesmo” (MELO, 2003, p. 35), o
retorno ao Il y a. A evasão do ser deságua na alteridade enquanto anterioridade significativa, isto é,
o movimento de saída da ontologia desvela a relação ética como filosofia primeira, como
antecedente à compreensão.
Esse movimento se completa pela inversão do sujeito, passando o Outro a ser o comandante
do entendimento. A ética primeira de Levinás, ao mesmo tempo que constitui, antecede a existência
do Dasein, pois trata-se de uma ética que está além de qualquer sociedade individualizada; é uma
ética humana.
O autor transfere radicalmente o cuidado (Sorge) e a solicitude (Fursorge) do plano
existentivo para o plano existencial, sustentando que há uma ética que transborda as construções
éticas de qualquer sociedade, uma ética aplicável a toda humanidade e que dará supedâneo para a
liberdade e a igualdade. Estamos aqui a falar da Responsabilidade57 como uma ética primeira58.
56
“[...] a abertura do eu heideggeriano ao outro não vai muito ale da imersão do sujeito na realidade do Dasein e da
possessão. Para Levinás, Heidegger submete , pela imanência, o outro ao mundo [...]” (MELO, 2003, P. 30)
57
“A responsabilidade é o que caracteriza a existência subjetiva do sujeito e o que possibilitaria um discurso ético que
não se encontra num circuito fechado da relação entre dois amantes (eu-tu), a qual é pensada a partir da realização das
suas necessidades. O terceiro desestabiliza, chega como presença que rompe e violenta a vontade, provoca um exame de
consciência: todos somos culpados; todos somos responsáveis pelo outro. O terceiro é anterior à lei: as leis que regem a
prática da justiça são baseadas na igualdade entre os indivíduos; os direitos dos indivíduos se fundam na dinâmica do
respeito entre iguais; a justiça que pensa a sociedade moderna propõe a paz pela limitação, isto é, a retórica da justiça é
fruto da defecção, de uma relação marcada pela indiferença, pela indiferença á totalidade. O terceiro intervém no
âmbito dessa indiferença e se interpõe para além daquilo que a sociedade moderna chama de moral, para além da lógica
das ciências, dos arquétipos psicanalíticos, racionalistas, céticos e utopias sociais. O terceiro é o falante inefável,
operante responsável, comunicante inigualável. O terceiro revela que aquilo que chamamos de justiça está a serviço da
totalidade: aquilo que levinás chama de injustiça da ação do terceiro.” (MELO, 2003, p. 87)
58
“Levinás , por sua vez, também se afasta da tradição filosófica na medida em que não aceita maia a tese de que a
O Dasein está acorrentado em sua responsabilidade e dela não pode prescindir, pois ele só é
na medida em que evade de si na resposta ao chamado do apelo do Outro. O rosto do Outro 59 é
sempre um apelo ao Dasein; sempre uma exigência de agir com responsabilidade; sempre um”eis-
me-aqui”. O Outro que se apresenta diante de mim invoca minha responsabilidade, clama pela
relação do ser-para-o-outro.
A expressão “Não matarás!” traduz a responsabilidade do Dasein com o Outro, que edifica a
própria existência. A evasão como resposta sustenta a própria existência humana. Está fincado
na sua existência esse comando. É uma “im-possibilidade” ética que se firma diante da ambiguidade
de sua possibilidade real. Embora na concretude haja a hipótese factual de matar o Outro, o seu
apelo diante de mim é sempre uma impossibilidade ética de matar. Há uma resistência
racionalmente inteligível, mas anterior a compreensão.
Se a impossibilidade de matar fosse uma impossibilidade real, se a alteridade do outro não
fosse uma força de resistência, sua alteridade não seria mais exterior para mim que aquela
da natureza que resiste as minhas energias, das quais eu me dou conta pela razão; ela não
seria mais exterior que o mundo da percepção que, afinal de contas, é constituído por mim.
A impossibilidade de matar é, por vezes, uma resistência ao eu e uma resistência que não é
violenta, é uma resistência inteligível (...) Ela é racional, mas é racionalidade anterior a
compreensão. (LEVINAS apud MELO, 2003, p. 207/208)

A escolha em retirar a vida do Outro60 consiste na consciência de um agir contrário à sua


existência enquanto ser-para-o-outro e, portanto, irresponsável. Antes da liberdade do agir, há a
responsabilidade no agir. Como condição existencial do Dasein, ele sabe que deve agir, mas, caso
escolha pelo impessoal, pela existência inautêntica, a responsabilidade como ética primeira não se
dissipará.
O olhar do Outro limita o nosso agir, impõe que sejamos responsáveis. Como nossa existência
está sempre conectada ao Outro, a vigilância ética vista no olhar do Outro nos impõe o agir
responsável61.
responsabilidade é decorrente da liberdade. A responsabilidade não nasce de uma boa vontade, de um sujeito autônomo
que quer livremente se comprometer com o outro ser. Ela nasce como resposta a um chamado. A responsabilidade é o
fundamento primeiro e essencial da estrutura ética, a qual não aparece como suplemento de uma base existencial prévia.
Aquém do ser se encontra uma subjetividade capaz de escutar a voz, sem palavras de um dizer original, e aponta para
uma outra dimensão do eu. Prévio ao ato de consciência, anterior ao sujeito intencional, o eu já responde a um
chamado. A responsabilidade pelo outro ser precede a representação conceitual ou a mediação de uma mandamento
ético. Ela é obediência a uma vocação, a uma eleição bem além do ser. A responsabilidade determina a liberdade do eu,
pois esta não consegue mais se justificar por ela mesma.” (KUIAVA, 2008, p. 263).
59
“O rosto tem uma existencialidade e uma significação: é em relação ao outro, e o outro é em relação ao rosto. O rosto
é a revelação epifânica de Outrem que se dá na concretude histórica e que possui uma abstração que não é integrada no
horizonte mundano.” (MELO, 2003, p. 90)
60
O não matarás levinasiano é a coluna vertebral da Ética da Alteridade. Enquanto todos os demais constructos
em torno da moral, sejam heteronômicas ou autonômicas, como a moral universal de Kant partem do Nós ou do
Eu, Levinás pretende constituir a distinção entre o certo e o errado, entre o bem e o mal, sempre a partir da
necessidade alheia. O Outro retoma o centro da Moral e da Ética.!
61
“A responsabilidade por outrem não equivale ao pensamento que remonta à ideia outrora dada ao “eu penso” e por ele
reencontrada. O conatus essendi natural do Eu soberano é posto em questão diante rosto de outrem, na vigilância ética
em que a soberania do eu reconhece “detestável”, e seu lugar ao sol – “imagem e começo da usurpação de toda terra”. A
responsabilidade por outrem significada – como ordem – no rosto do próximo, não é, em mim, simples modalidade da
“a percepção”transcendental. [...] Com efeito, aqui não se trata de receber uma ordem, primeiro percebida e a que, a
seguir, se obedece, por decisão, num ato de vontade. A submissão da obediência precede o entendimento da ordem – o
Além da responsabilidade como uma reação do Dasein ao rosto do outro e como uma reação
a partir de nós mesmos à outra pessoa e sua exigência62, a responsabilidade se manifesta na
substituição do Dasein com o Outro, de modo que as sensações experimentadas pelo rosto alheio
desencadeiam uma responsabilidade no meu eu. Quando nos defrontamos com uma situação de
extrema dor do Outro, ainda que não tenhamos qualquer relação com o fato, sentimo-nos
responsáveis. Isso explica o sentimento de aversão diante de um documentário sobre o holocausto,
mesmo não tendo participado da guerra ou ter algum parente que sofreu com os seus efeitos.
Substituímo-nos no sofrimento do Outro e assim somos capazes de perceber a nossa
responsabilidade, a nossa ética transcendental.
Como pode se perceber, a filosofia levinasiana acentua a questão do Outro na formação do
Dasein, asseverando que, em contraposição à Ontologia – que, segundo Levinás, estaria focada
exclusivamente no Eu (Kant) ou no Nós (utilitarismo, hedonismo, etc.), totalizando a relação com o
Outro, que seria uma espécie de objeto apropriado para a constituição do subjetivismo 63 -, o rosto do
Outro é elemento constituinte da formação da ética do Dasein. O Eu simplesmente não existe senão
a partir do Outro, senão pelo Outro, pela alteridade.
Totalização trazida pelo pensar ontológico na visão de Levinás. A prisão trazida pela
hipercerteza não logrou desfazer-se pela revolução da Ontologia Fundamental de Heidegger.
Era preciso ir além, sabendo haver sempre algo que nos escapa, que está adiante do que
podemos ouvir, pensar classificar, nomear, rotular. Há algo que não podemos dizer, pois as
palavras são sempre insuficientes. Percebemos isso em relação a semântica da palavra
“infinito”. Clarice escapa desse lugar comum. Ela escolhe a riqueza da simplicidade: o
“ovo”!!! Mesmo aquilo que seria rizível (conceituar o que é um ovo) é atestado em sua poesia
como uma incapacidade da ontologia. O dito nunca diz tudo. Para Levinás, toda linguagem e
toda a razão pretendem ignorar o “Dizer”, pois acreditava que a razão era a totalidade do
humano. E a crença totalizante se sustentava na Ontologia. Assim, era preciso ir além dessa
prisão! Eis a obsessão de Levinás. Eis o que o liga a Jacques Derrida (1930-2004).
A “differánce”64 derridiana se coloca claramente na obra de Clarice. Como se a filosofia

que mede ou atesta a extrema urgência do mandamento em que se adiam para sempre as exigência da dedução que o
“eu penso” poderia levantar, ao toar conhecimento da ordem” (LEVINÁS apud CRUZ, 2011, p. 140)
62
Ver CRUZ, 2011, p. 138/140.
63
“A ontologia, como filosofia primeira, é uma filosofia do poder. O caminho de todo o Ocidente foi uma redução de
toda a alteridade à mesmidade. A ontologia causou, assim, uma luta entre os poderes assimiladores, cuja regra do jogo
consiste em reduzir a identidade do outro à identidade do eu. O mesmo provoca necessariamente a abolição de toda
exterioridade, assim como não reconhece mais uma vontade superior a si própria. Com as palavras de Levinas, “uma
redução do Outro ao Mesmo, pela intervenção de um termo médio e neutro que assegura a inteligência do ser”. O
conhecimento foi interpretado como assimilação. O eu autônomo determinou as regras do jogo, tudo sendo esclarecido
e modelado pela consciência do eu. O outro foi tematizado a partir do horizonte de compreensão do eu. “Não é,
portanto, uma relação com o outro como tal, mas a redução do Outro ao Mesmo”. O eu se constitui no acontecimento
ntológico
por excelência.” (NODARI, 2002, p. 195)
64
“Desenvolvido nos seus primeiros trabalhos e especialmente aprofundado no texto de cunho programático ‚La
de Derrida encontrasse descanso no movimento da literatura de Clarice. Como se o “comme
si”65 derridiano finalmente encontrasse na língua portuguesa o seu lugar. Lugar inquieto que
insiste em se tornar tempo. Um tempo que busca repouso no espaço da escrita. Espaço da
dialética fragmentária que faz com que as meninas más usem meias três quartos em sua
felicidade clandestina. Um aí onde/quando Clara e Francisco podem se tocar jamais se
tocando. Uma literatura onde não pode haver qualquer fixação de sentido, porquanto não há
jamais a certeza de que foi fixado pela Autora ou pelo personagem que ganha vida, tal qual
Jostein Gaarder o faz com sua Sophia. Como nesse texto que agora se lê. Quem fala? Clarice?
Os personagens? Álvaro? Daniel? Você leitor(a)? Todos? Ou mais alguém?
O ser derridiano é sempre um ser diferido, sempre entificado, sempre modificado pela
magia da interpretação. A “brisure”66, que possibilita o “trait”67 da identidade daquele que
escreve, cria também a possibilidade de um entendimento próprio e único para cada um que
se depara com as linhas de nossa autora.
Isso se escancara no amor. Clarice assombra o limite estruturalista do binarismo (sim e
não) típico da ontologia ocidental. Daí um subjetivismo que limita e julga o Outro. Clarice

différance‛ (DERRIDA, 1972: 1-29), o motivo da différance apresenta-se como ponto de partida decisivo para a crítica
da metafísica da presença e do logocentrismo. Não podendo entrar aqui em detalhe na complexidade deste motivo, é
importante focar a dimensão semântica da différance, por forma a compreender o modo como esta se manifesta no que
toca à questão da democracia. A introdução do a na palavra francesa ‘différence’ associa ao significado habitual de
diferença como ‘nãoidentidade, alteridade’ o significado temporal do diferre latino, ainda presente no português
‘diferir’, no sentido de ‘remeter para mais tarde, adiar’ A différance envolve ainda o sentido de diferença radical como
‘alergia’ ou ‘polémica’, assim como a dimensão espacial do intervalo. Trata-se de um motivo que se assume para
Derrida não como conceito, mas como condição de possibilidade da constituição de conceitos, assim como de qualquer
entidade,
possuindo esta uma identidade apenas na medida em que pressupõe uma relação permanente com o outro e a dimensão
espácio-temporal desta mesma relação.” (SEPÚLVEDA, 2009, pg 05/06)
65
“O mesmo é dizer que esse evento não tem lugar senão onde não se deixa domesticar por nenhum “como se”, ou pelo
menos por nenhum “como se” já legível, decifrável e articulável como tal. Ainda que nessa pequena palavra, o “como”
do “como se”, tal como o “como” do “como tal” – cuja autoridade funda e justifica toda a ontologia tal como toda a
fenomenologia, toda a filosofia como ciência ou como conhecimento –, essa pequena palavra, “como”, poderia bem ser
o nome do verdadeiro problema, para não dizer o alvo da descontrução. (DERRIDA, 2001, p. 74)
66
“Na obra inicial, Derrida inspirava-se no sonho de roger Laporte de “encontrar uma única palavra para designar a
diferença e a articulação” (DERRIDA, 1999, p. 80), uma única palavra, brisure, para rotura e juntura. Em Gramatologia,
a palavra aportuguesada “brisura” pretende dar conta dos muitos sentidos que Derrida toma de Laporte, ou seja: “parte
fragmentada, quebrada. Cf. brecha, fratura, fenda, fragmento – articulação por charneira de duas partes de uma obra de
carpintaria, de serraria. A rotura de uma veneziana. Cf. junta” (DERRIDA, 1999, p. 80). Lembro também que quando o
termo brisura é introduzido como um dos subtítulos do segundo capítulo de Gramatologia, seguindo-se não por acaso
aos anteriores “o fora e o dentro” e “o fora é o dentro”. Uma brisura, portanto, nunca como fora ou dentro, mas sim
como o entre dois ou a oscilação que, não sendo nem fora nem dentro é também sempre fora e dentro. O interessante
aqui é notar que esta “estrutura” sob rasura, brisurada, entre aspas, vai disseminar-se, na conferência de 1993 e
publicada em 1994 sob os olhares de alguns espectros, para descrever, ou inscrever, a economia espectral do que, neste
momento, Derrida nomeia de “experiência”: a experiência de um “agora sem conjuntura. Um agora desajuntado ou
desajustado, ‘out of joint’, um agora desencaixado que sempre corre o risco de nada manter junto, na firme conjunção
de algum contexto, cujas bordas são ainda indetermináveis” (DERRIDA, 1994, p. 17).” (HADDOCK-LOBO, 2013,
268)
67
“Um traço sugere a ideia de liberdade, de precariedade, de multiplicidade de possibilidades. Está ali e facilmente
poderia ser apagado. A partir da compreensão do conceito de traço no pensamento de Jacques Derrida, conceitos como
memória, tempo, sujeito, narrativa e escritura, podem ser mais bem esclarecidos. Um traço não é fixo, porque se
inscreve e se apaga, “de um só golpe”, como costuma se expressar o filósofo. Nas palavras dele, traço seria aquilo que
“produz o espaço da sua inscrição senão dando-se o período da sua desaparição” (AMARAL, 2000, 31)
percebe que o amor extravaza qualquer limite, que o humano contraria a rigidez dos sentidos.
Não há em sua obra uma representação total. “Passe-partout”68 derridiano se infiltra na
narrativa dessa ucraniana/brasileira por meio de um pensamento fragmentário, sem pontos
fixos de partida ou pontos de chegada pré-concebidos.
Sutil. Leve. “Subjetile”69. Um sentido que paira no background de seu texto, entre a
representação e o real, como um jogo de espelhos permanente entre os entes, jamais como
correspondência do texto com o real. Que real? Que realidade? E que texto? Um texto que
tira o fôlego, que sonda nossa alma e que ora extasia, ora enfraquece nossos sentidos. Que
passa por tudo que sonhamos em ser. Que não para nunca. Que torna-se outro no retorno a si
mesmo. Que torna impossível a dialética entre o universal e o particular. Por um sinal gráfico
de seu passado que não é e jamais deixará de ser presente na presença daquele que lê.
Um não lugar; um não dito; um indecidível; um inomeável; Khôra. Em sua proposta de
desconstrução da Khôra platônica70, o filósofo franco-argelino a-presenta a experiência anterior a
experiência; aquilo que é pensado antes do pensamento; um começo antecedente ao começo; um
terceiro gênero. Que não é nem feminino nem masculino; nem sensível nem inteligível; nem logos
nem mythos. Um nome sem referente. Comum a todos os indecidíveis. Uma fissura de luz que
surge na escuridão do deserto. Uma clareira contra a totalidade da Ontologia. Clara Clarice!
Clarice que percebe a Khôra derridiana como um indesconstrutível na desconstrução71. Um

68
“Derrida enumera algumas dicotomias (ou "oposições bifaciais") que fazem parte da história da arte ocidental. Um
espaço "entre", que deve ser solicitado, "para dar lugar à verdade em pintura". Espaço que se refere, de alguma forma, a
fronteiras: entre o quadro e a parede; entre a borda de dentro e a de fora da moldura; entre a moldura e o quadro; entre o
tema principal e seus "acompanhamentos"; entre a imagem e o que o pintor "quis dizer" (o meio e a mensagem, a
imagem formal e a intenção do autor).” (SANTOS, 2010, p. 41)
69
“Nesse sentido que Derrida irá dizer que o subjétil aparece então como outro, nem sujeito nem objeto. Um quê (sem
que) que nasce pelo chamamento e ao mesmo tempo não é, sempre escapa (trai). Uma espécie de nascimento
expropriado, deslocado de um em si – da necessidade de um senso –, que não se deixa repetir ou representar, se
distingue tanto da forma quanto do sentido. Uma palavra que é fora do senso poderá ser somente traduzida se colocada
como subjétil: louco de nascença. Desta forma, o subjétil demarca um problema para tradução não como uma
impossibilidade de transferência ao outro, mas pela impossibilidade de um retorno a um encerramento de sentido, a uma
equivalência ou afinidade entre diferenças.” (ANDRADE, 2013, P.84/85)
70
“(khôra) pode significar “região ocupada”, “lugar”, “espaço”. Pode-se dizer que khora determina a materialidade e a
espacialidade das coisas que podem ser percebidas no mundo e que estão sujeitas à geração. F. Trabattoni, sob uma
perspectiva mais geral, diz que khora pode ser vista como o extremo resíduo da realidade, posto além dos limites
daquilo que é formal, bom, ordenado. É o caótico, o causal, o ininteligível” (1998, p.289). R. Gazolla de Andrade
afirma que “esse gênero de ser é uma natureza que suporta o nascimento das coisas, mas ela mesma é inengendrada:
indeterminada, apesar de poder dar nascimento a todas determinações; não tem forma, apesar de receber todas as
formas; é invisível apesar de receber o visível; não tem movimento próprio, apesar de recer e poder ser potencializada
pelo movimento dos seres que nel penetram (1994, p.49/50)” (PAVIANI, 2001, p. 145)
71
“Algo, en esta línea de no aparición, de no revelación hay un llamado tiempo. Un entremedio del tiempo de Babel y
del tiempo antes de Babel. Un instante o un lugar, no lo sabemos nunca; Lo ahistorico per se. El fragmento que voy
citar situa, me atreveria a afirmar, la outra cara de la desconstrución, la possibilidad de ló indeconstructible. “Pero el
relato de Babel (construcción y desconstrucción a la vez) sigue siendo una historia. Demasiado llena de sentido . Aqui el
limite invisible pasará menos por el proyecto de Babel y su desconstrucció, que entre el lugar de Babel (acontecimiento,
Ereignis, historia, revelación, escatoteológica, mesianismo, direción, destino, respuesta y responsabilidad, construcción
y desconstrucción) y “una cosa” sin cosa, como uma indesconstructible Khôra, la que se precedea si misma en la
prueba, como si ellas fueran dos, Ella y su doble; el lugar que da lugar a Babel seria indesconstructible, no como uma
construcción cuyos fundamentos estarían seguros, protegido de toda desconstrucción interna o externa, sino como el
espacio mismo de la dé-construction. Es ahí donde ocurre y donde hay esas cosas que llamamos por ejemplo teologia
heterotrófico. Deserto no deserto. Um não lugar. Não um receptáculo. Nem uma coisa. Um instante
espacial. Uma espacialidade da temporalidade não medida. Uma anacronia. Um há-aí-não-está. O
ahistórico em si. Uma im-possibilidade. Uma aporia. Khôra não possui uma residência ou um local
fixo. Não possui um nome, pois é anterior a língua e a nomeação. Não pode ser compreendida senão
pelo rastro deixado. Pelas migalhas esquecidas. Pelas pistas na Clareira, que apenas sua literatura
nos ilumina.
Talvez, com esse movimento de regresso ao fim que é começo, seja hora de transferir a
caneta. Talvez, ao seguir as migalhas deixadas na “assinatura”, assim como João e Maria, eu tenha
perdido o caminho. Estrada perdida que é sempre um novo achado, como a casa de doces que
abrigava a bruxa má. Bruxa capaz de transformar frágeis crianças em heróis dos quadrinhos. Talvez,
como João e Maria, na busca por Clarice, tenha encontrado outro roteiro que, ao invés da bruxa,
visualizei o rosto da assinatura. Talvez ele também me oferecera doces (como a bruxa). Talvez
sejam cajuzinhos. Talvez, já com açúcar nas mãos, seja o momento de dar ao leitor a
responsabilidade de completar, de forma incompleta, a incompletude desta obra. Talvez...

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

AMARAL, Adriana Cörner Lopes do. Sobre a memória em Jacques Derrida. In “Em
torno de Jacques Derrida”. Orgs. Evandro Nascimento e Paula Glenadel. Rio de Janeiro: 7Letras,
2000.
ANDRADE, Sergio Pereira. Sobre a Subjetilidade Fora de Si. Belo Horizonte: Sapere
Aude v.4, 1º semestre de 2013.
ANTUNES E RAMOS, Márcia Antunes do Nascimento; Luis Marcelo Alves.
Conhecendo os caminhos da Teoria Crítica. Revista Online Bibl. Prof. Joel Martins, Campinas, v2,
n.1, out. 2000.
ASSOUN, Paul-Laurent. A Escola de Frankfurt. Trad. Helena Cardoso. São Paulo:

negativa y sus análogos, la desconstrucción y sus análogos, este colóquio y sus análogos.” (FATHY, 2009, 77)
Editora Ática S.A, 1991.
BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor./Escritos sobre mito e linguagem.
Organização: Jeanne Marie Gagnebin. Tradução: Susana Kampff e Ernani Chaves. São Paulo: Duas
Cidades, 2011.
BRASIL, Luciano Gomes. Transcendência em Heidegger: sobre racionalidade e
fundamento. Revista Aproximação UFRJ, nº 3, 1º semestre 2010.
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. A RESPOSTA CORRETA: Incursões Jurídicas e
Filosóficas sobre as Teorias da Justiça. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2011.
DERRIDA, Jacques. A Farmácia de Platão. Tradução: Rogério da Costa. São Paulo:
Iluminuras, 2005.
_________________. L’Université sans condition. Paris: Galilée, 2001.
DUBOIS, Christian. Heidegger: uma introdução a uma leitura. Trad. Bernardo Barros
Coelho de Oliveira. Rio de Janeiro: Jorge Zafar Ed., 2004.
FATHY, Safaa. Khôra: luz y desierto. Revelación de ló escuro. Estudios visuales:
Ensayo, teoría y crítica de la cultura visual y el arte contemporâneo, Nº. 6, 2009.
FERREIRA, Teresa Cristina Montero. Eu sou uma pergunta: uma biografia de Clarice
Lispector. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
FREITAS, Verlaine. Adorno e a Arte Contemporânea. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2008.
GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Editora Atica,
1995.
HADDOCK LOBO, Rafael. Notas sobre o trajeto aporético da noção de experiência no
pensamento de Derrida. Uberlância: Revista Educação e Filosofia v. 27, n 53, p. 259-274, 2013.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo, Vol I. Tradução de Márcia Sá Cavalcante
Schuback. 13ª edição. Petrópolis: Vozes, 2004.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo, Vol II. Tradução de Márcia Sá Cavalcante
Schuback. 13ª edição. Petrópolis: Vozes, 2004.
INWOOD, Michael. Dicionário Heidegger. Tradução: Luísa Buarque de Holanda. Rio
de Janeiro: Jorge Zafar Ed., 2002
KOTHE, Flávio René. Para ler Benjamin. Rio de Janeiro: Ed. Livraria F. Alves, 1976.
KUIAVA, Evaldo Antônio.A Responsabilidade como princípio ético em H. Jonas e E.
Levinás: uma aproximação. In Fenomenologia hoje III: bioética, biotecnologia, , biopolítica. Orgs:
Ricardo Timm de Souza; Nythamar Fernandes de Oliveira. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008.
MARCUSE, Herbert. A Sociedade como obra de arte. Trad. Ricardo Corrêa Barbosa.
Revista Novos Estudos. Nº 60, julho de 2001.
MARCUSE, Herbert. Tecnologia, Guerra e Fascismo. São Paulo: Unesp, 1998
MATOS, Olgária C. F. A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do iluminismo. São
Paulo: Moderna, 1993.
MOSER, Benjamin. Clarice. Tradução José Geraldo Couto. São Paulo: Cosac Naify,
2009.
NODARI, Paulo Cesar. O rosto como apelo à responsabilidade e à justiça em Levinás.
Síntese – Revista de Filosofia, v. 29, nº 94, p. 191-220, 2002.
NUNES, Benedito. Heidegger e Ser e Tempo. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
OLIVEIRA, Maria Clara Castelhões de. O PENSAMENTO TRADUTÓRIO
JUDAICO: FRANZ ROSENZWEIG EM DIÁLOGO COM BENJAMIN, DERRIDA E HAROLDO
DE CAMPOS. Belo Horizonte: Revista Em Tese v. 5, p. 1–305, dez. 2002.
PAVIANI, Jayme. Filosofia e método em Platão. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.
PLATÃO. Fedro ou Beleza. Tradução: Pinharanda Gomes. 6ª Ed. Lisboa: Guimarães
Editores, 2000.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia. São Paulo: Paulus, 2003.
SANTOS, Olivia Niemeyer. A experiência do limite: a tradução de la Verité. Campinas:
Tese de Doutorado pela Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem,
2010.
SEPÚLVEDA, Pedro. O pensamento da différance e a democracia por vir – a partir de
Jacques Derrida. Lisboa: Krisis, 2009.
SILVA, Franklin Leopoldo e. CONHECIMENTO E RAZÃO INSTRUMENTAL. São
Paulo: Revista de Psicologia da Universidade de São Paulo – USP, vol.8 n.1, 1997.
SILVA, Natália Lipovetsky. Breves apontamentos sobre a mediação entre memória e
história à luz do phármakon platônico. Revista Eletrônica da Faculdade de Direito de Franca,
Franca, v.4, n. 1, pg. 32/45 2011.
SLEZÁK, Thomas Alexander. Platon lesen. Friedrich Frommam Verlag - Günther
Holzboog: Stuttgart – Bad Cannstatt, 1993.
SOBOTTKA, Emil Albert. A Escola de Frankfurt nos anos 1930. Sobre a Teoria Crítica
de Max Horkheimer. In: A Modernidade como desafio teórico: ensaios sobre o pensamento social
alemão. Org. Ribeiro, Adelia Miglilevich (et al). Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008.
VIEIRA, Josalba Ramalho. Duas leituras sobre “A Tarefa do Tradutor” de Walter
Benjamin. Florianópolis: Revista da UFSC Cadernos de Tradução vol. 1 n.1, 1996.

You might also like