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A Linguagem do Advogado

I– Como “a palavra é por excelência a arma do advogado”(1), só quem


souber manejá-la com propriedade e segurança conquistará triunfos
profissionais invejáveis. O que aspira aos primeiros lugares da
Advocacia deverá, portanto, ou fale ou escreva, ostentar suas
credenciais de cultor das boas letras.
Ainda que dele se não exijam os mesmos atributos por que se
distinguem e recomendam à pública admiração os escritores de muito
nome (v.g.: torneio clássico da frase, dicção peregrina e elegante, galas
de estilo, etc.), nunca se dispensará, porém, o advogado da estrita
observância dos requisitos a que se obriga todo aquele que, em razão
do ofício, tenha de enunciar pontualmente seu pensamento: clareza e
correção(2). Nenhuma qualidade se avantaja à clareza. Dada ao homem
para comunicar suas ideias, a palavra somente alcançará seu fim se
clara e inteligível(3).
Pelo que, falha no intuito de expressar-se quem, por deficiência
verbal, não é pronta e cabalmente compreendido; mas falha
gravemente se é advogado, visto que em seu brasão profissional o
campo maior compete por direito de preferência à arte de persuadir.
Só o argumento que facilmente se percebe é poderoso a influir
no ânimo de terceiro e movê-lo ao talante do expositor. À disciplina
do pensamento há de corresponder, pelo conseguinte, expressão
verbal precisa e livre de tudo o que o possa tornar obscuro e
impenetrável.
A precisão do termo, intimamente associada ao conceito de
clareza, impõe que ao rigor do raciocínio lógico suceda representação
oral e escrita por palavras que lhe evidenciem o vero sentido e lhe
sejam acomodadas.

II – Da mesma sorte que os outros profissionais, têm os advogados


seu falar próprio: a linguagem forense.
Vocábulos e expressões técnicas do direito, constitutivos da
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fraseologia jurídica, haverá de conhecê-los bem o advogado e


empregá-los com severa propriedade. A primeira providência, pois, de
quem deseja adquirir o estilo do foro é ler os bons textos legais e as
obras jurídicas estimáveis pela castiça locução vernácula portuguesa(4).
A essa mui particular feição de escrever, em que à ordem lógica
dos conceitos corresponda fiel e perfeita representação gráfica e
artística, chamou-lhe Jhering “elegantia juris”(5).
A expressão clara do pensamento não se mostra incompatível
com o bom gosto literário, antes o aconselha e encarece. Nenhum
espírito culto se recusará, em verdade, a aplaudir consigo o esforço
daquele que imprimiu no seu escrever o selo da arte e da estética. A
duvidar alguém, é ler uma página de Rui, Castilho ou Herculano, e
logo se convencerá de que a glória literária não lhes cingiu a fronte a
esses eminentes escritores, senão após aturada e constante dedicação à
arte da linguagem.

III – O método mais seguro e eficaz para adiantar-se alguém nos


segredos de sua língua é conversar assiduamente os autores que
melhor a possuíram: os clássicos(6). Detendo-se na leitura criteriosa de
suas obras, não será maravilha se lhes vier a adquirir, com o andar do
tempo, as excelências da forma e a riqueza do estilo. Tal prodígio será
simples corolário do processo de assimilação. Não se cuide fora isto
desairoso, por implicar, em certo modo, imitação de outrem. De todo
o ponto inatendível é semelhante objeção. Primeiro, porque a
presunção da originalidade cede àquele dito profundo e solene do
mais sábio dos homens: Não há nada de novo debaixo do Sol(7)! Tudo o que
hoje dizemos, já o disseram os antigos, e não raro com mais arte e
propriedade. Além disso, a imitação do autor clássico dará a conhecer
ao leitor curioso, enquanto não alcance o seu próprio estilo, as
maneiras mais expressivas de dizer, os meneios sintáticos mais
apurados e as construções que melhor se conformem ao gênio da
língua. Tanto que o alcance, porém, libertar-se-á do arquétipo
literário. De fato, como observou preclaro escritor, “saber imitar é
aprender a não imitar mais, porque é habituarmo-nos a reconhecer a imitação e a
passar sem ela, quando já não for precisa”(8).
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IV – Os mais crassos defeitos que podem aviltar a pena do escritor


são os erros gramaticais inescusáveis.
“Não há escritor sem erros”, proclamou o exímio Rui(9), aludindo
certamente não aos erros toleráveis e invencíveis, mas àqueles que
afrontam os cânones elementares de gramática. Esses não conhecem
absolvição. Identificam-se pela denominação de solecismos, e são
infrações gravíssimas das leis do bem escrever. No evitá-los deve o
advogado pôr toda a sua diligência e tento(10).
É a notar que as petições, sobre constituírem o assento material
de uma pretensão levada a Juízo, valem como carta de crédito
intelectual de quem as elaborou. Por elas também se homenageia o
juiz a quem se destinam. E não entra em dúvida que nenhum motivo
de lisonja deparará ao magistrado, que a tiver de despachar, uma
petição pejada de erros de português.
Aos lidadores da palavra — os advogados sobretudo — lembre-
lhes sempre esta advertência do venerando Bluteau: “Indício quase
sempre certíssimo de não saber um homem uma língua é o desprezá-la, porque
ninguém despreza o que sabe”(11).

Notas

(1) Nereu Corrêa, A Palavra, 1972, p. 22.


(2) Donde a exortação de J. Soares de Melo: “O advogado deve escrever
de forma elegante, precisa e clara. Falar com exatidão” (Perfis
Acadêmicos, 1957, p. 97).
(3) Exemplo das consequências, verdadeiramente funestas do estilo
travado e obscuro, traz este despacho lançado em confusa
petição: “Indefiro, até onde entendi”.
(4) Será bem que o advogado leia, por acrescentar os cabedais de
sua linguagem forense, as obras que ao propósito escreveu
Eliasar Rosa, eminente conhecedor assim de nosso idioma
pátrio como do Direito: Os Erros mais Comuns nas Petições,
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Glossário Forense, Dicionário de Conceitos para o Advogado, etc;


Ainda: procure ter sempre à mão uma boa gramática (a do
provecto Napoleão Mendes de Almeida, por exemplo), os
dicionários de Caldas Aulete e Laudelino Freire ou do Aurélio, e
alguns livros sobre questões de linguagem como: Tréplica, de
Ernesto Carneiro Ribeiro; Estudos da Língua Portuguesa, de Mário
Barreto; Língua Vernácula, de José de Sá Nunes, etc.
Tocantemente a leituras, vem a pelo este alvitre de um sábio:
“Ler sem anotar pouco adianta; ler, sem um bom dicionário ao lado, é
perda considerável de tempo. É que a leitura se faz, palavra por palavra”
(Eliézer Rosa, A Voz da Toga, 2a. ed., p. 71).
(5) Cf. Edmundo Dantès Nascimento, Linguagem Forense, 1980, p.
222.
(6) Do vasto rol de autores que passam por modelos acabados da
boa linguagem podemos citar esta meia dúzia: Rui Barbosa, “o
maior dentre os nossos escritores” (José Rizzo, Estudos da Língua
Portuguesa, 1922, p. 207). Obras: Parecer sobre a Redação do Código
Civil, Réplica, Oração aos Moços (“a peça mais trabalhada da língua
portuguesa” — cf. Nereu Corrêa, op. cit., p. 42), etc.; Antônio
Vieira, “o clássico mais autorizado da língua portuguesa” (Francisco
José Freire, Reflexões sobre a Língua Portuguesa, 1842, 1a. parte, p.
10). Obras: Sermões, História do Futuro, Cartas, etc.; Manuel
Bernardes, “o mais suave e delicioso clássico português!” (Silveira
Bueno, História da Literatura Luso-Brasileira, 1965, p. 54). Obras:
Nova Floresta, Luz e Calor, Últimos Fins do Homem, etc; Alexandre
Herculano: “A sua palavra é um relâmpago: deslumbra, fulmina”
(Alves Mendes, Discursos, 1879, p. 127). Obras: Lendas e Narrativas,
Eurico, Opúsculos, etc; Camilo Castelo Branco, “o mais opulento dos
clássicos portugueses” (Castilho, in As Sabichonas, 1872, trad.).
Obras: Amor de Perdição, Boêmia do Espírito, A Queda dum Anjo, etc;
Machado de Assis: “Originalíssimo na invenção, timbrava outrossim
na correção da linguagem” (Fausto Barreto e Carlos de Laet,
Antologia Nacional, 41a. ed., p. 95). Obras: Memórias Póstumas de
Brás Cubas, Memorial de Aires, D. Casmurro, etc.
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(7) Eclesiastes, cap. I, v. 10.


(8) Antônio Albalat, A Arte de Escrever, 9a. ed., p. 40; trad. Cândido
de Figueiredo.
(9) Réplica, nº 10. Isto sentia bem Tobias Barreto, quando disse: “Há
três cousas neste mundo que o homem não pode ter completamente puras:
a consciência, a boca e a gramática” (Obras Completas, 1926, vol. II, p.
173).
(10) Breve exemplário de solecismos hediondos:
a) “Fazem” 81 dias que o réu está preso (por faz);
b) “Haviam” muitas pessoas no local (por havia);
c) O irmão “interviu” na briga (por interveio);
d) Os policiais “deteram” o réu (por detiveram);
e) O juiz “penalizou” com rigor o acusado (por apenou, puniu,
castigou, etc.);
f) “Interim” (ínterim), “ávaro” (avaro), “púdico” (pudico), “gratuíto”
(gratuito) e aquele que tem sido o mais frequente dos solecismos
de prosódia (ou pronúncia): “récorde”, em vez de recorde.
Sinônimo de proeza, façanha, marca, etc., recorde é a forma
aportuguesada de “record”. Sua pronúncia: recorde (ó), a despeito
do intolerável sestro de alguns locutores, que persistem,
obdurados, na cacologia “récorde”. Não era caso de se lhes
remeter um memorando fonético?! Estamos que sim!
(11) Prosas Portuguesas, 1726, 2a. parte, p. 189.

Carlos Biasotti
Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

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